Antonio Carlos Queiroz Filho
C o r p o r e m a por uma Geografia Bailarina
1a Edição
por uma geografia bailarina
corpo
que é poema
que é mapa
corpo que é poema
corpo-afeto
que é mapa corpo-afeto que conta uma história
que conta uma história
de quem viveu os lugares
de quem viveu os lugares
como a si mesmo
como a si mesmo
por isso corpo como primeira Geografia corpo-grafia que é sobretudo vida
por isso corpo como primeira Geografia
corpo-grafia que é sobretudo
vida
CORPOREMA por uma geografia bailarina
Antonio Carlos Queiroz Filho
CORPOREMA por uma geografia bailarina
2018
1a Edição E-book, 378 páginas Abril, 2018 Vitória-ES, Brasil ISBN: 978-85-924688-0-4 © Antonio Carlos Queiroz Filho
TÍTULO Corporema: por uma Geografia Bailarina. AUTOR Antonio Carlos Queiroz Filho. EDIÇÃO Antonio Carlos Queiroz Filho. CONSELHO EDITORIAL Eduardo Marandola Jr., Manoel Fernandes. Rafael Borges, Igor Robaina
A presente publicação encontra-se disponível gratuitamente em: - Site AcademiaEdu de Carlos Queiroz; - Site do Grupo de Pesquisa RASURAS;
“Me dê um gole de vida”
(Criolo)
“Deixa eu dançar pro meu corpo ficar odara”
(Caetano Veloso)
SUMÁRIO Agradecimentos; p. 10
Prefácio; p. 13
Dizer, Dizeres; p. 20
Gesto, Gestos; p. 31
Palavra, Palavras; p. 39 Grafia, Grafias; p. 48
Saber, Saberes; p. 36
Dança, Alguém Dança; p. 72
Afetar, Ser Afetado; p. 84
Corpo que Sente; p. 117
A Fabricação do Corpo-Montagem; p. 139
Corpo-Grafia; p. 169
Habitar (de) um Corpo Triste; p. 175
Espasmos de um Corpo Poético; p. 251 Redescoberta Do Corpo; p. 260
“O Corpo é a nossa Primeira Geografia”; p. 307
O que pode a Geografia como Corpo que Dança?; p. 323
Braga, Te Amo; p. 347 Nota Final; p. 352
Referências; p. 355
Posfácio; p. 353
Anexos; p. 362 Sobre o autor; p. 378
Que a leitura deste livro Possa fazer suscitar Descomeรงos E desaprendizagens.
AGRADECIMENTOS - À querida e especial Mônica Tenore, pelo acolhimento afetivo e por me permitir fazer de sua escola minha segunda casa. Sem isso, este livro não teria acontecido; - À querida Profa. Dra. Ana Francisca de Azevedo, supervisora da minha pesquisa de pós-doutoramento na Universidade do Minho (Portugal), pela generosidade e estímulo intelectual; - À Maria Vicente e Dona Conceição pelos sorrisos perenes; - Ao querido amigo Ricardo Martins e sua companheira Vânia da Silva pela amizade e acolhimento; - Aos colegas de aula de dança e respectivos professores das escolas de dança em Portugal, a saber, Backstage, Ent’Artes, Apolo Braga e An-Dança, pela partilha desses momentos tão intensos e especiais; - Às bailarinas Margarida Carvalho, Lara Machado, Diana Faria e Carolina Costa e aos bailarinos João Pedro e Afonso Ferreira, pelo brilhantismo e simplicidade que inspira e contagia; - À minha amiga de longa data, Marília Colares, pela presteza nos momentos mais necessários; - Ao mestre Luizinho, professor de dança de salão em Pontevedra (Espanha), pela alegria e acolhimento; - À professora de dança criativa, Cristina Novo, pelo incentivo poético; - À grande amiga Thay Bettini, pelas longas horas de companhia e afago, mesmo estando do outro lado do oceano; - Aos estimados colegas de turma, ensaios e espetáculo da Escola de Dança Mônica Tenore, pelo amor à dança, algo que me inspirou e motivou intensamente, em especial, aos bailarinos George Falcão, Rodrigo Rithelly,
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Marcos Saleme e Rick Alves, bem como, as bailarinas Layli Rosado, Aline Canavese, Alana Moreira, Beatriz Afonso, Paloma Rigamonte e Rebeca Freitas; - À querida bailarina e profa. Gabriela Camargo, pelos devaneios poéticos e diálogos atenciosos; - À minha querida profa. de dança contemporânea, Maitê Bumachar, por me ensinar a “ter um corpo que dança”; - À querida Carla Pirola, minha profa. de Ballet Clássico, pelo carinho e dedicação em ensinar; - Aos meus queridos alunos do RASURAS, em especial, Rafael Borges e Lorena Aranha, pela partilha de ideias; - Ao querido amigo Igor Robaina, pelo estímulo e acolhimento intelectual; - Aos queridos amigos e professores Eduardo Marandola Jr. e Manoel Fernandes, pela leitura cuidadosa e interlocução sempre criativa; - Às instituições que, de algum modo, contribuíram com a pesquisa que resultou neste livro:
- Portugal:
Universidade do Minho Escola de Dança Backstage Escola de Dança Apolo Braga Ent'Artes Escola de Dança Conservatório de dança An-Dança Quorum Ballet Los INnato Cia de Dança (Costa Rica)
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- Itália:
Il Filo di Paglia (Centro de Formação e Produção em Dança Contemporânea, Cinema e Vídeo)
- Espanha:
LJ Studio de Dança
- Brasil:
Universidade Federal do Espírito Santo RASURAS Grupo de Pesquisa Escola de Dança Mônica Tenore
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PREFĂ CIO em Pas de Deux,
- por Eduardo Marandola Jr.... e Manoel Fernandes e...
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- Quatro versos despisados
Você acabou de ler, leitor(a), mas peço que leia de novo:
Que a leitura deste livro Possa fazer suscitar Descomeços E desaprendizagens.
Agradeço a gentileza, pois estes quatro versos são o mote que me permitem iniciar este pequeno texto. O primeiro descomeço já aconteceu, nesta repetição. O segundo aconteceu primeiro, que foi quando fiquei desconsertado com a tarefa de escrever um texto com a alcunha de prefacio para um livro que se pretende descaminho. Devo confessar que me sinto confortável com a tarefa de pensar edifícios conceituais, foi assim desde a graduação. Os descomeços e desaprendizagens exigem mais. Não deixa de ser curioso, já que tantos acusam tais perspectivas de propor caminhos fáceis e pouco rigorosos para o conhecimento e o pensamento. Mas acho difícil desconsiderar a dificuldade para um acadêmico assumir a incompletude de seu fazer, a tortuosidade de seu pensamento, as possibilidades abertas de seu esforço e trabalho. Mas é exatamente o que este belo livro de Antonio Carlos Queiroz Filho se propõe. Corporema: por uma geografia bailarina apresenta-se do início ao fim como descomeço, como provocação, como enlevo para a alma. O livro todo é um convite para um pensar e um sentir amalgamados que não procura tanto as edificações quanto as degenerescências. Floresce no
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movimento corpóreo-sensível que eriça nossas geografias. Corpo que é mapa, que é poema, que vive lugares em devir, dançando. Não é uma proposta epistemológica, mas é uma epistemologia (ou várias), como proposta de composição de um pensamento que transpassa o corpo, vivifica-o enquanto geografia. Queiroz
Filho,
poeta-geógrafo,
lutador-geógrafo,
geógrafo-
fotógrafo, geógrafo-dançarino, entrelaça estas possibilidades em um livro que transpira sensibilidade. Toma a abertura nietzschiana da reabilitação da carnalidade do pensamento e transmuta tudo em poesia. O corpo de lutadordançarino (entre eles o geógrafo) deriva em busca de experiências, na casa, na rua, no pensamento. A geografia bailarina, que não é campo nem subcampo, mas experiência, é o verdadeiro desaprendizado, renovado a cada dança, a cada movimento, a cada esforço de oscilação vacilante de conceitos. Experiência geográfica, entre Brasil e Portugal, entre lugares, viagens e na solidão do apartamento. Descomeços em expectativas frustradas, geografias interrompidas, bifurcadas. Confesso que o geógrafo que pediu que o autor fizesse uma construção epistemológica de seu livro é este que agora tenta não encetar o pensamento aqui posto em vigor. Mas confesso que o autor dificultou ao máximo, mesmo que não tenha tido a intenção, de que qualquer um lhe coloque alguma alcunha: seu Corporema é prenhe de possibilidades, de linhas de fuga, de reticências e passagens ocultas. Quem vê claramente Deleuze e Guattari deveria também enxergar Bachelard, que se assombreia em Manoel de Barros. Rancière e Gonçalo M. Tavares, Pellejero e Massey, Oliveira Jr. e Gil, Agamben e Augé são outros dos vários diálogos entremeios, que são compostos entre política, estética, poética
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e epistemologia, pois Queiroz Filho não se esquiva da questão do conhecimento.
Sua
estético-política
tem
pretensões
epistemológicas,
comprometida com outras formas de pensar, fazer e ser geografias. Talvez por isso seja inútil delimitar que geografia seja esta. Com a força colocada no sensível, potencializa a corporeidade, a arte e a linguagem pela sensibilidade, o que dialoga de tantas formas com esforços e buscas das mais diversas no pensamento e na ciência contemporâneas. Este livro é, antes de mais nada, um movimento para fazer suscitar desaprendizagens e descomeços. Desta feita, caro leitor(a), do despisado dos versos iniciais, resta agora apenas a sua leitura.
Eduardo Marandola Jr. Fevereiro de 2018
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- Desapresentando Corporema
Por Manoel Fernandes de Sousa Neto Poeta-Docente
A escrita é uma maravilhosa invenção e, ao mesmo tempo, a expressão de um universo de apropriações que separa leitores e não-leitores, sociedades letradas das comunidades ágrafas, oralidades múltiplas de escrevinhações formatadas. O mundo mágico que nasce com as letras e se impõe na racionalidade das leis, desdobra-se como um código que qualifica as sociedades como civilizadas a partir do ato de representar a tudo por gramáticas normatizadas. A esse projeto de humanidade, de certa humanidade inscrita em língualinguagem-literagem única, se insurgiram cotidianamente muitas culturas lastreadas em suas polifônicas memórias orais, pictóricas, gestuais, rituais, mantendo para bem além de comportados pés-de-página ou lembranças sutilmente indexadas, a capacidade humana de continuar dizendo o que foi interdito, maldito, desdito, indizibilizado. A lição parece ser a de que a natureza pelos humanos nomeada, reside na humanidade para além de suas representações inventadas. É impossível dizer tudo, improvável dizer todas as coisas apenas com palavras ou ainda alcançar os limites da própria realização desse tal de animalhumano. Aqui não estamos a sugerir que os vocábulos deveriam desinscrever-se, apagar-se em sua própria tinta. É adorável brincar com as palavras, criá-las, grafá-las e muito difícil pensar sem a existência delas. Mas as nomeações como norma de humanidade, aquelas nomeações que visam desqualificar as
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inimagináveis potências humanas, não podem servir a um projeto de emancipação demasiadamente humano. É talvez por isso que o livro, esse objeto com um corpo, tenha mudado ao longo da história e agregado milhares de referentes e referências, para guardar e deixar soar vozes e sons e imagens que o habitam, para explodir com as palavras do sagrado e as mais eróticas figurações do profano. E eis, que diante de nossos olhos, está agora o livro de um geógrafo-bailarino (ou seria um bailarino-geógrafo?), propondo uma geografia que dança e faz do corpo o território de todas as primaveras geógrafas – o território do corpo-sentido seria/é/viraria-a-ser para Carlos Queiroz a matriz de todas as geografias possíveis. Ao ler o e-book Corporema, baralharam nos nossos alumbramentos, imagens-movimento várias, como as do experimento-documentário-filme Baraka dirigido por Ron Fricke; a figura do jovem chinês que fez, com seu balé, dançarem tanques em plena Praça da Paz Celestial naquela Pequim de mil novecentos e oitenta e nove; a pequena vietnamita queimada a correr - menina do napalm - com seu corpo frágil desse campo de concentração estatudinense a céu aberto do imperialismo. O corpo para o amor e para a morfina, enfim, lugar de todas as possibilidades de recordar à humanidade, em sua própria pele, as epistemes da existência, dessa res-extensa que pensa, das resistências, das re-existências. O livro-virtus-virtual, em Corpo-Dança-Poema desse filho também de um outro Queiroz, levanta exatamente a necessidade de dizer que dançar é também um modo de pensar-sentindo/sentir-pensando os diversos conatus do mundo, esse esforço do humano em realizar suas potências, em suas tristes ou alegres paixões. Afinal o corpo só se encontra por afetos.
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Afetos afeitos a amar a cidade de Braga, os miúdos de Portugal que indagam sobre haverem ainda aprendizes-bailarinos de idade distante das primeiras letras, supervisoras de pós-doctor criticas de muitos ocularcentrismos como Ana Azevedo, tatuagens na epiderme dos suores musculares das palavras. O livro de Carlos Queiroz me lembrou infâncias, desde jogos de lego a traçados com gravetos escritos na terra nua como grandes fronteiras imaginárias. Lembrou como é bom dançar até que as pernas não saibam mais de si. Relembrou nossas leituras eventuais ou sistemáticas de muitos/as autores/as – nenhum/a deles/as referenciados/as formalmente aqui por obra, página, ano, tradução – que vão de Deleuzes Foucaultiados a Masseys Haesbaertianas. O jogo epistêmico da obra que leitores vão paginar com mouses in/or touche pads, propõe que não se está propondo ou defendendo nada além do direito de humanar-emanar-irmanar ao proclamar que não há fronteiras ou margens para o conhecimento entre formas não divinais de ciência e arte, linguagem, linguaviagens. O prazer de termos lido este livro-dança é de sentidos que não podemos expressar dizendo, porque tudo enfim falharia caso se prestasse a ser uma apresentação. Des-apresentamos a si estas trezentas e lá vai de páginas sem saber o que dizer enfim, além de um conselho só, leia Corporema na des-ordem que achar melhor.
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DIZER, dizeres
- E tem sido libertador reconhecer a escrita, a linguagem e o fazer científico como “um produto direto do coração”.
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Um querido amigo professor disse-me, na ocasião da leitura de uma versão ainda bastante preliminar deste livro: você precisa balizar, de pronto, que Geografia é essa que você está tentando fazer. E aqui estou eu, como um menino tímido que se aproxima de sua primeira paixão adolescente, buscando, de algum modo, colocar em palavras algo que considero ser da ordem do gesto, do movimento intensivo e processual. Portanto, não sei se consigo ou, inclusive, não sei se devo tentar dizer, em dois ou três parágrafos, sobre qual seria essa Geografia que estou “tentando” fazer. Talvez porque desde 1998, ano em que entrei no curso de Licenciatura em Geografia da Universidade Estadual do Ceará, até o ano de escrita e publicação deste livro, fui atravessado por muitas “geografias”. No entanto, percebo em mim que há algum tipo de permanência. Há algo que tem ficado para fora, como uma aresta que nunca se apara e que eu até poderia tentar qualificá-la como definidora dessa geo-grafia. Como uma emoção que transborda, penso em três termos: a sensibilidade, poética e a experiência. Essas são palavras que comunicam um modo de pensar, um modo de grafar. E lembro que foi na ocasião do meu curso de doutoramento (2005 – 2009) que verdadeiramente comecei a tentar, pelos estudos do cinema, uma Geografia que para mim se constituía como uma articulação desses três elementos:
Por estar numa perspectiva em que as teorias, conceitos, em que o método, muitas vezes, aparentava ter mais “força” do que seu fazedor, fui cultivando silenciosamente a sensação de estar perdido, como que embrenhado num mundo de estranhezas e alheamentos, mergulhado num mar revolto de “quases”, floresta de eternidades esfaceladas, despedaços de mim mesmo. Como pude ficar assim, semivivo, por tanto tempo? Eu não queria mais ser o “homem do subsolo”. O que passou a existir em mim durante esse período foi uma
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espécie de incompletude perenizada pela minha nostalgia de algo que não havia acontecido. Hoje percebo que esse movimento fez com que eu deixasse de reconhecer a mim mesmo enquanto ser – fazedor de uma geografia – tal que, meu estranhamento tornou-se tamanho, a ponto de negá-la. Olhava para ela e não me sentia acolhido, seguro. Adormecido por este sentimento de desamparo, fui seguindo, como se estivesse com os pés nus sobre um chão duro, batido por outros tantos pés que já haviam por ali passado” (Trecho da tese de doutorado, intitulada: Vila-Floresta-Cidade: território e territorialidades no espaço fílmico, 2009).
Por isso, se fosse para dar algum tipo de “baliza”, arriscaria dizer que Geografia para mim é mesmo como um gesto que partilha de tais artifícios. É um modo de se colocar em cena, um modo de se colocar diante de e no mundo. E são esses gestos que a “definem”. Qual seu gesto? Esta é a questão que realmente importa, porque esta será “a” Geografia, dito de outro modo, esta será a sua Geografia. No meu caso, reconheço um sentimento que é perene: o de que essa minha Geografia será sempre a tentativa de um dizer mais “humano”. Por isso, retomo algo que escrevi sobre a política dos afetos como constituinte daquilo que considero efetivamente um “dizer humano”.
- Dizer-Humano
Talvez um dos princípios daquilo que considero um dizer-humano esteja contido na ideia de um humano que não se contenta, um humano perenizado pela inquietude, a exemplo do que fala Gonçalo Tavares em diálogo com Bachelard, quando diz que:
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Descer ao porão é sonhar Devemos olhar para a linguagem Como se olha para um objecto – para uma mesa, por exemplo E ver, por vezes, a linguagem de baixo para cima […] Observar depois um perfil da palavra Depois outro; Ver os sapatos da palavra e o seu chapéu A sua nuca e o seu rosto. Porque pensar Também é mudar de posição relativamente À própria linguagem. Não olhar sempre da mesma maneira para as palavras.
(Gonçalo Tavares, 2013)
Interessa-me, portanto, aquilo que escapa, que se configura como um duplo, aquilo que é e não é, que pode e não pode, ao mesmo tempo. É uma aposta no dizer-sensível, a exemplo daquele contido na poética de Manoel de Barros quando diz que:
tudo aquilo que não nos leva a coisa nenhuma serve para a poesia. tudo aquilo que a nossa civilização rejeita pisa e mija em cima serve para poesia (do livro “Matéria de Poesia”)
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Esse, talvez, seja nosso maior desafio, principalmente se pensarmos num contexto de mundo que nos coloca diante de palavras e imagens que povoam os muitos horizontes que nos cercam, “informando” mais e “entoando” menos. O fato é que talvez estejamos nós obedientes demais a elas, palavras e imagens que autorizam, sedutoramente, “o que podemos” e “como podemos”. É o tal do “lirismo bem comportado” de que fala Manoel Bandeira (Poética). Por isso aposto numa “gramática-desobediente”, que busca promover rasuras e rupturas nos entendimentos de mundo já consolidados. Ela nos “autoriza” a inventar, a ficcionar cosmologias e imaginações de toda a ordem. E o modo como resolvi fazer isso tem amparo conceitual e imaginativo, e seria importante compartilhar aqui:
•
Primeiro, em Jacques Rancière (2009), quando ele diz que “Escrever é uma maneira de ocupar o sensível e de dar sentido a essa ocupação”.
•
Segundo, em Clarice Lispector (1998a), quando diz que: “Bem atrás do pensamento tem um fundo musical. Mas, ainda mais atrás, há o coração batendo Assim o mais profundo pensamento É um coração batendo”. Entre o coração
batendo
e
um
sensível
como
campo
de
possibilidade, ou seja, campo político, acalenta-me também a perspectiva de Bachelard, quando fala que a imaginação é a “potência maior da natureza humana” (Bachelard, 1993, p. 18).
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E se, para ele, o ato poético é a “chama do ser na imaginação”, então me vem a questão: o que temos apagado, o que temos silenciado, o que temos negligenciado diante do nosso “dizer o mundo”? Ainda com Bachelard, temos que a imaginação é “[…] uma dádiva da consciência ingênua. Em sua expressão, é linguagem criança” (Bachelard, 1993, p. 4). Parafraseando (Bachelard), seria o mesmo que dizer assim:
Tornar imprevisível a palavra, o pensamento, a linguagem, (a Geografia, a Comunicação, a Ciência) não seria um ato de liberdade? Que encanto a imaginação poética Encontra para zombar de censuras! Antigamente, codificavam licenças. Mas a poesia Ao colocar a liberdade no próprio corpo da linguagem Passa então a se constituir como um fenômeno de liberdade. (Adaptado de Bachelard, 1993)
E tem sido libertador reconhecer a escrita, a linguagem e o fazer científico como “um produto direto do coração” (Bachelard, 1993, p. 2), que se assume como uma imaginação criadora: Bachelard diz que “não há poesia se não houver criação” (Bachelard, 1993, p. 15) e porque não dizer: não há Geografia, Ciência, Arte, Vida, Humano, se não houver criação. Gostaria de ressaltar que essa aposta não é a instituição de um marcador de poder, um ato
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normativo, mas, sim, o delineamento de um horizonte, ainda que anuviado, de possibilidades.
Dizer-Poesia...
O que pode o humano? O que pode um humano? O que pode um Dois Três ? E o que não pode um, Pode três? Pode dizer com afeto? Pode fazer, corpo ereto? Pode querer, meio incerto? Mas Quem pode? Quem diz? Quem faz? Quem quer? Quem quer o que? Um dizer outro Atravessado, provocado: – Pelo rasgo do verbo – Pelo choro do substantivo – Pelo silêncio do adjetivo – Pelo ensejo da palavra quando hesita E se precipita:
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– Num hífen, numa vírgula, num ponto: Fora do lugar Ali nasce o fazer-sentido Quando compreendido como o Fazer-sentir Um fazer-sentir inventivo Comprometido com A potência criativa Que está no efetivamente aberto No rascunho No fragmento Na rasura No que “jogamos fora”
Considero importante evidenciar que tem sido cada vez mais difícil pensar em linguagem dissociado de experiência. Do mesmo modo, a quase impossibilidade de tomar, nesse sentido, linguagem-experiência que não seja entendida nos termos da “desobediência” (Skliar, 2014; Larrosa, 2015). Para Carlos Skliar, a linguagem desobedece quando:
Já não há o que dizer e se anuncia aos ventos o nome do mundo, um mundo desvairado que se move e se enreda no próprio som de sua falácia, até cair exausto; quando o ar é pouco e a palavra que descreve o ar é mais nula ainda (Skliar, 2014, p. 15).
Mas tão importante quanto a sua própria desobediência, é o fato da linguagem, enquanto uma forma estabelecida de estética-política, se permitir
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ser desobedecida. Talvez nem seja uma permissão e sim uma tomada de poder daqueles que fazem dela seu lugar de liberdade e emancipação. Daqueles que ora desconfiam, ora desconhecem e, por isso mesmo, fazem atuar o indefinido como efetiva abertura do possível, dos possíveis. Se a língua (os dizeres e suas grafias) não desobedecesse e não fosse desobedecida, enfatiza Skliar (2014, 17), “não haveria filosofia, nem arte, nem amor, nem silêncio, nem mundo, nem nada”. Do mesmo modo, Jorge Larrosa (2015) fala de como ele tem se engajado diante do desafio de pensar em “como deixarmos de ser o que somos para ser outra coisa, diferente do que vimos sendo” (Larrosa, 2015, p. 5). Ao fazer isso, o autor coloca “a experiência e não a verdade” (Larrosa, 2015, p. 5) como aquilo que dá sentido aos nossos atos estético-políticos. Em suas palavras, a vida, como experiência, é relação: com o mundo, com a linguagem, com o pensamento, com os outros, com nós mesmos, com o que se diz e o que se pensa, com o que dizemos e o que pensamos, com que somos e o que fazemos, com o que já estamos deixando de ser. A vida é a experiência da vida (Larrosa, 2015, p. 74). Nestes termos, problematizar o humano, penso, passa necessariamente pelo problematizar a vida enquanto atributo do dizer, enquanto atributo da conexão linguagemexperiência. Disso nasce minha grafia, minha Geografia.
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Dizer-Vida...
Que cala e sente Que fica e vai Que faz e deixa fazer Que inventa e cria Que nasce e faz nascer Como? É possível? São perguntas recorrentes. Elas me chegam a todo o momento por meio daqueles que tem a certeza como sua cartilha. Como? É possível? Por muito tempo pensei no sim como resposta. Nem havia percebido que ao fazer isso, ao dar essa resposta, estava criando outro tipo de aprisionamento, outro caminho a ser seguido. Não quero isso. De modo algum. Como? É possível? A resposta eu tirei de Larrosa: não e talvez… A pergunta “de que outro modo” Não pode ser outra coisa que uma abertura. Para o que não sabemos. Para o que não depende de nosso saber Nem de nosso poder Nem de nossa vontade. Para o que só pode se indeterminar Com um quem sabe, Como um talvez.
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Geografia Minha...
Que é partilha Que é Senão Talvez Plural Incompleta Pedaço de pedaço Fragmento Instante Momento Contexto Processo Sensível Pensamento Poética Política Dos afetos Das palavras Dos gestos Dos movimentos Dos corpos Das pessoas Geo-grafia Escrita da terra Linguagem da terra Terra que é gente Gente que é Por isso: - geografias
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GESTO, gestos
- Meu compromisso não é com a verdade, para fazer jus à poética manoelesca, referência à Manoel de Barros, poeta das coisas pequenas e dos horizontes esticados.
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Este livro...
É um
fr a g m e n
t
o
Como tal, foi escrito, por vezes, num tom ensaístico, outras, num tom mais poético. Feito de relatos, problematizações conceituais e estéticas, poesias propriamente ditas, como também, há nele momentos apenas de descrição, quase como crônicas.
Na verdade, este livro é poética do fragmento
Mistura de Gonçalo Tavares, e sua ideia do fragmento como uma máquina de produzir inícios, com estética da dobra, de Josina Nunes Drumond:
As poéticas classicistas tendem à valorização do cânone, ao passo que as poéticas mais recentes, tais como as vanguardas do século XX valorizam a fuga à norma e ao dogma. A poética da produção e da recepção do fragmento rompe com o “inteiro” sem se preocupar com sua reconstrução. A preferência anticlassicista valoriza o pormenor, o fragmento, a quebra da continuidade e da integridade e, ao mesmo tempo, privilegia a fruição das partes autônomas da obra. Na totalidade de uma obra fragmentária revelam-se a irregularidade e a falta de sistematicidade. Surge uma nova estética da recepção. Não
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se busca mais o ponto de partida, nem o de chegada, e sim a fruição da caminhada (Drumond, 2008, p. 271).
Então,
Este livro...
É isso:
Livro-percurso, fruição de gestos. Fonte de resquício, rastro, poeira.
Que indica
“encontros de trajetórias até aqui”.
Por isso: gestos.
Gestos que revelam seu caráter de eventualidade (para citar a geógrafa Doreen Massey)
Por isso: é aberto e inacabado (estou ainda com Massey)
Por isso: entra-se nele por onde se queira:
- Sussurro:
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rizoma É uma estrutura de passagens disposta em uma tal confusão métrica que se torna obscuro qual elemento ou lugar do labirinto irá levar ao próximo. É um sistema de atalhos e desvios, mas jamais em vias diretas ou retas (...) Nenhum começo e nenhum fim. Nenhum fio de Ariadne, sem centro e sem periferia. (Joseph Vogl8)
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Entra-se por qualquer lado, nenhum vale mais do que outro, nenhuma entrada tem qualquer privilégio (...) Poder-se-á apenas procurar com que pontos se liga aquele pode onde se entrar (...) qual é o mapa do rizoma e como é que este, de repente, se modifica esse entrar por qualquer outro ponto. O princípio das entradas múltiplas só impede a entrada do inimigo, o Significante, e as tentativas para interpretar uma obra que, de facto, só propõe a experimentação (Gilles Deleuze e Félix Guattari9)
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https://www.youtube.com/watch?v=2k-wWziPk-g 2002, p. 19
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Porque É grafia feita de rabiscos, traços tortos. É grafia titubeante, duvidosa, hesitante É como um alento, um modo carinhoso de dizer “eu escuto a sua história”:
— Filho? — Sim, pai. — Lembra-se que eu lhe dizia para inventar histórias? Pois invente uma agora. —Não tenho força. — Tente. — Pior que não saber contar histórias, pai, …é não ter ninguém a quem as contar. — Eu escuto a sua história (Mia Couto, 2013)
Porque não tenho interesse nenhum com a escrita academicista, no sentido daquela que se veste de toga autoritária. Meu compromisso não é com a verdade, para fazer jus à poética manoelesca, referência à Manoel de Barros, poeta das coisas pequenas e dos horizontes esticados. Com ele aprendi a fazer da palavra um brinquedo feito pelas mãos cheias de terra, encravando devaneios pueris nas unhas daquela criança que ainda acredita na sua própria imaginação. Escrita feita de paixão e liberdade.
E isso basta.
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SABER, saberes
- Então, este livro tem, assumidamente, um quê larrosiano, porque acabou por se tornar, parafraseando o autor: cantos gestos, movimentos de experiência.
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Preciso dizer que as palavras aqui gestadas, em sua parte mais “importante”, consistem num conjunto de relatos de experiências vividas em Portugal e no Brasil, a partir do momento em que iniciei minha pesquisa de pósdoutoramento, precisamente, em janeiro de 2017. Elas são, portanto, fruto de um sujeito da experiência e de seu saber da experiência:
O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em que encarna. Não está como conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configuramos uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo, que é, por sua vez, uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo) (Larrosa, 2015, p. 32)
Dois destaques:
•
Importância:
Aqui é tida no mesmo sentido que cita o poeta Manoel de Barros: “que não se mede com fita métrica”. É, pois, da ordem do intensivo e “intransitivo”, para fazer referência à Bataille em diálogo com Larrosa sobre a experiência como um conceito.
•
Experiência:
Algo da ordem do “selvagem, autotélico e não regulado”:
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A experiência, diz Bataille, não nos faz melhores, ao menos no sentido da moral dogmática, não nos faz mais sábios, ao menos no sentido do saber científico e, sobretudo, não nos faz mais ricos, ao menos a partir desse enriquecimento que prometeria o atual mercado de experiências que entendo o sujeito como consumidor. (Larrosa, 2015, p. 14)
Então, este livro tem, assumidamente, um quê larrosiano, porque acabou por se tornar, parafraseando o autor: cantos gestos, movimentos de experiência.
Há cantos gestos, movimentos de experiência:
•
“apaixonados,
intensos,
prementes,
emocionados
e
emocionantes” •
“de protesto, de rebeldia, cantos de guerra ou de luta contra as formas dominantes de linguagem, de pensamento e de subjetividade (...)”
•
“de dor, lamento, cantos que expressam a queixa de uma vida subjugada, violentada, de uma potência de vida enjaulada, de uma possibilidade presa ou acorrentada”
Larrosa fez seus “cantos de experiência” tendo como tema a educação, a leitura, linguagem e a prática pedagógica. Já os meus, buscaram nas grafias do e pelo corpo um exercício perene de liberdade, portanto, de vida (pensamento, linguagem, afeto) efetivamente emancipada.
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PALAVRA, palavras
- Ocupar a casa, ocupar a vida, ocupar as palavras, mesmo que elas não sejam as nossas. Mas então, elas já não são de ninguém. Porque fazer ecoar é tornar indiscernível.
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Por vezes, quando não conseguimos dizer, ouvimos. Por vezes, quando ouvimos, aprendemos. Por vezes, quando aprendemos, falamos. E falar é o mesmo que se mexer. Pelo menos para Gonçalo Tavares. E por mais que este livro seja um exercício perene para fala “autêntica”, no sentido de autoral, ele não deixa de ser, também, reverberação de todas as vozes que tomei emprestado para conseguir fazer do silêncio, eco. E talvez seja isso que esteja em questão. Ocupar a casa, ocupar a vida, ocupar as palavras, mesmo que elas não sejam as nossas. Mas então, elas já não são de ninguém. Porque fazer ecoar é tornar indiscernível. É fazer da palavra, não um palavrório – eco larrosiano – mas sim, oferecer um sentido, ocupando-a. Pensei inicialmente em fazer desse momento uma indicação dos principais autores com os quais eu busco amparo e acolhimento para pensar. Sinto dúvida sobre isso. A verdade é que não acredito que seja algo necessário, principalmente se eu quiser manter certa coerência com a perspectiva com a qual estou lidando. Não quero incorrer no gesto de fechamento que os conceitos muitas vezes podem causar. Do mesmo modo, não estou aqui falando com as vozes de outros. O eco é algo bem diferente do ventriloquismo. Então, farei referências a esses autores como quem murmura no fundo da casa vazia. Quando os ouvir, eles serão, sobretudo, ressonâncias.
40
O rio que fazia uma volta atrรกs da nossa casa era a imagem de um vidro mole... Passou um homem e disse: Essa volta que o rio faz... se chama enseada... Nรฃo era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrรกs da casa. Era uma enseada. Acho que o nome empobreceu a imagem. (Manoel de Barros)
41
O resultado desse anuviado teórico-poético evidencia-se em alguns aspectos, a saber:
•
a escolha pelo corpo como “primeira geografia”;
•
a escolha pela dança como dispositivo que produz esse corpo experiencial;
•
a escolha pelo saber contingente, oriundo das narrativas de experiência citadinas,
em
detrimento
do
formalismo
das
generalizações
epistemológicas;
•
a escolha pela grafia que toma a sensibilidade, a imaginação e a poética como sua baliza;
•
a escolha pelo habitar a cidade como lugar dessa e para essa grafia;
•
a escolha pela grafia que diz:
por uma geografia bailarina Digo isso porque esse processo constituiu-se tanto do exercício de se pensar numa geograficidade constituída por aquilo que a dança promove, como também, a defesa de um modo específico de se colocar no mundo. Especificidade essa que se inicia na assertiva de que o termo “dança” aqui não opera um entendimento uníssono.
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A dança aqui, nesse sentido, não poderia ser outra coisa, senão, “dispositivo”, para usar palavras de Agamben quando faz considerações acerca do termo. Para além do entendimento foucaultiano, Agamben diz:
Generalizando posteriormente a já amplíssima classe dos dispositivos foucaultianos, chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc, cuja conexão com o poder e em um certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – porque não - a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata - provavelmente sem dar-se conta das consequências que se seguiriam - teve a inconsciência de se deixar capturar (Agamben, 2005, p. 13)10.
Nesse mesmo sentido, penso ser possível dizer que a dança é também um modo de agenciamento, em específico, agenciamento de um corpo produtor de narrativas de experiência. Estou, claramente, perfazendo articulações deleuzianas a larrosianas. Talvez por isso, preferi começar a pensar menos na dança – como uma generalidade e uma abstração, como um conceito
10
Cf.: https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/view/12576/11743
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no seu sentido restrito – e mais naquilo que acontece com/quando alguém que dança. Por isso decidi mudar o curso daquilo que me propus escrever. De uma geografia da dança, como havia pensado de antemão, veio uma geografia bailarina, afinal de contas, foi a partir da minha experiência como aprendiz de bailarino que nasceram os apontamentos aqui colocados. O termo “Bailarina” define aquilo que é resultado da experiência, no sentido larrosiano do termo, bem como, na perspectiva de Laurence Louppe quando enuncia que:
Ser bailarino É escolher o corpo E o movimento do corpo Como campo de relação com o mundo, Como instrumento de saber, De pensamento e de expressão. (Louppe, 2012, p. 69)
Corpo de experiência, essa que se dá num certo contexto, num certo tempo, num certo lugar. Corpo que desacostuma o sensível e faz do si mesmo uma cartografia a ser, simultaneamente, descoberta e inventada. Disso surgiu uma carto-corpo-coreo-grafia feita por essa Geografia Bailarina. Como incorreu-se em outros tantos “por” que a Geografia lançou mão, meu “por” não é manifesto. Ele não está aqui como algo que possa ser lido como “em defesa de”. Não pede chancela, nem quer servir de modelo analítico, seja ele conceitual ou metodológico. Senão vejamos:
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- “Por”, como preposição:
Palavra que estabelece uma ligação, que qualifica. É invariável. Como tal, é possível encontrar cerca de 28 definições para seu uso11. Como enuncia alguma dessas definições, “por uma geografia bailarina” pode sim ser compreendida como:
através de, sobre, em, ao longo de uma geografia bailarina perto de, ao lado de (lugar) uma geografia bailarina por causa de uma geografia bailarina na condição de, como uma geografia bailarina na dependência de uma geografia bailarina com a utilização de, mediante uma geografia bailarina durante o espaço de tempo de, no período de uma geografia bailarina em correspondência a uma geografia bailarina da maneira (tal) uma geografia bailarina como se fosse uma geografia bailarina na categoria de; como uma geografia bailarina com base em uma geografia bailarina em busca de uma geografia bailarina em favor de, em nome de uma geografia bailarina para, uma geografia bailarina em relação a uma geografia bailarina ao redor de, perto de uma geografia bailarina em nome de uma geografia bailarina no que toca a uma geografia bailarina
11
Origem ⊙ ETIM lat. tar. por < prep. lat. pro 'diante de, em frente etc.' pôr. Fonte: Dicionário Google.
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- “Por”, como verbo:
Há 42 modos diferentes que indicam ação, processo ou estado12. As que me apetecem:
fazer um relato, uma descrição de; detalhar, narrar uma geografia bailarina fazer figurar; incluir uma geografia bailarina fazer tocar uma geografia bailarina dar (nome) a; denominar uma geografia bailarina aceitar como hipótese; admitir, supor uma geografia bailarina empreender a construção de, edificar uma geografia bailarina adotar determinada postura ou estado de uma geografia bailarina
De fato, dentre tantas possibilidades, considero quase como um tipo de negligência ler “por uma geografia bailarina” de modo tão uníssono. Quero sim, “fazer tocar”. Porque minha Geografia é partilha poética, revelada na constituição da própria “respiração do mundo”. E eu, como eco, digo:
12
Origem ⊙ ETIM lat. pono, is, posŭi, posĭtum, pon ĕre 'pôr, colocar, postar, fixar etc.' Fonte: Dicionário Google.
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Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo Clarice Lispector (Paixão segundo G.H.)
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GRAFIA, grafias
- Falo a partir do corpo de alguém que dança, que vive intensivamente a dança. Falo a partir dessa experiência: a de ter sido tomado inteiramente por essa forma de arte.
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O mapa da cidade é o mapa do corpo. (Mário Quintana)
Inspiração nomeadamente marioquintanesca13, que me responde de certa forma a questão feita por Michel Agier no seu livro “Antropologia da Cidade”:
“o que faz a cidade?” Para mim, são as narrativas do corpo. Mas não qualquer corpo. Pelo menos não me interessa tal generalização. Falo a partir do corpo de alguém que dança, que vive intensivamente a dança. Falo a partir dessa experiência: a de ter sido tomado inteiramente por essa forma de arte. Porque o corpo que dança é, sobretudo, um corpo como poética.
Por isso, Por meio disso, Com isso,
Fazer da cidade uma leitura-poética-dança tem sido um grande desafio.
13
Referência ao poeta brasileiro Mário Quintana.
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Cidade-poesia Cidade-Sensibilidade Cidade-Palavra Cidade-Grafia Cidade-Linguagem Cidade-Gesto Cidade-Movimento Cidade-Danรงa Fazer-Cidade Sentir-Cidade Devir-Cidade Diver-Cidade
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- A cidade como sensibilidade
A questão posta aqui é, portanto, sobre os modos já consolidados e outros tantos possíveis do dizer e ver a cidade, que por sua vez, coloca-nos diante da complexa questão sobre como isso afeta a vida urbana contemporânea. Imaginação e Poética funcionam, assim, como balizas desse processo. O sentido de imaginação a que me refiro é exatamente aquele que entende o imaginar como um processo que provoca variações no automatismo da sensibilidade, da nossa capacidade de agir e de pensar. Dela, interessa produzir outras. A pergunta que cabe agora é: essa “outra” imaginação, seria feita de que? Entra em cena então a poética. Em espacial aquela de que trata Manoel de Barros. Ele nos ensina o que é matéria de poesia:
As coisas jogadas fora Têm grande importância - como um homem jogado fora. (Manoel de Barros, Matéria de Poesia)
Esse “homem jogado fora” é o que escreve com palavras tortas, é o próprio devir de um pensamento/imaginação tortos. Se para o poeta Manoel, a “poesia é a loucura das palavras”, o que se poderia dizer de uma Geografia Poética? Ou de uma poética da cidade? De uma imaginação espacial feita de corpo e poesia, ou melhor, feita de corpo como poesia? Se a loucura das palavras é a sensatez dos homens que não têm o compromisso com a gramática, a loucura dessa Geografia talvez esteja exatamente naquilo que ela (e outras tantas grafias de mundo) “jogou fora”.
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...antes uma anunciação Enunciados como que constantivos Manchas. Nódoas de imagens Festejos de linguagem (Manoel de Barros, O Livro de Pré-Coisas)
Se pensarmos a Geografia como uma imagem-fábrica, ou seja, aquela que é lugar da produção em série e do automatismo, e se pensarmos que a promoção de “atos estéticos como configuração da experiência, que ensejam novos modos de sentir e induzem a novas formas da subjetividade política” (Rancière, 2009, p. 11), então, o que estamos desejando, no fim das contas, é dar a essa “imagem” novos usos, novos sentidos, novas políticas, em resumo, novas capacidades de agir. Servindo para a imagem-fábrica, mas também, para a imagem-cidade, principalmente se considerarmos aquilo que fala Jorge Larrosa quando aponta para a necessidade de reconhecermos um contexto de mundo “caracterizado pelo caráter plural da verdade, pelo caráter construído da realidade e pelo caráter poético e político da linguagem” (Larrosa, 2010, p. 164). E nesse pensar a cidade, o que aconteceria com nossas imaginações se:
•
primeiro: se pensássemos a cidade como se ela fosse um texto, um
poema, uma música, uma obra de arte?
52
• o que imediatamente nos leva a uma segunda questão: qualquer texto,
poema, música ou obra de arte? (como se fossem arquétipos ou modelos solucionadores dessas questões). Notadamente, tenho real interesse por aqueles que atuam na tensão entre o “poder das constantes” e a “potência da variação” (Deleuze; Guattari, 1995, p. 50), entre a imaginação reativa e a criativa. É na intimidade da linguagem e no enviesamento da sensibilidade que surge uma “cidade como potência menor”, cidade intensiva, que faz proliferar a vida enquanto encontro de palavras, imagens e afetos, enquanto esperança e resistência. Uma cidadepersonagem, feita de encontros: cidade-texto, cidade-poesia, cidade-música, cidade-arte, todas misturadas, dobradas entre si, uma dizendo da outra, sendo todas, a mesma. Cidade inventada para não mais caber no gesto repetido de um modo único de dizer-cidade.
- sobre o dizer-cidade: experiência e sensibilidade
Um nordestino de nome Jesus Procurado noite e dia em São Paulo Turcos na Alemanha Um Palestino servindo café em Israel Afro-asiáticos nas ruas de Seatle E mesmo assim ainda é difícil Vê um beijo multiracial em Hollywood O mundo migra e dá de cara com fronteiras As chaves são as mesmas Samuel L. Jackson e Charton Haston
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Tem a mesma cor da violência Os dois acreditam em armas Os dois abrem portas com dólares e euros Um beijo na pátria amada Ao lado de uma bandeira queimada Braço, é braço, braço de terra negada Braços pulando os muros do mundo Do futuro por emprego, braços de refugiados Apesar de tudo, por um instante Pousam num estado de aleluia Sem religião desterro, ah, desterro Desterro (Marisa Monte, part. F.U.R.T.O)
A música da cantora brasileira Marisa Monte, dá melodia aos muitos clichês reducionistas que têm sido questionados diante de um dizer-cidade pautado pela contemporaneidade ou, se preferirmos, pela sobre-modernidade, que consagra, no seu escopo, “uma superabundância de causas que complica a análise dos efeitos” (Augé, 2010, p. 15). Em especial, o que intensifica esse desafio diz respeito a um conjunto irresoluto de paradoxos que se põem diante de nós. A própria música citada revela isto: ao mesmo tempo em que ocorre uma intensificação da circulação e do fluxo, verificado pela intensificação da multiplicidade e do hibridismo como potencialidade, há uma força diametralmente oposta gerando estigmatizações e estandardizações dessas mesmas relações, criando pontos de vista únicos e modos de ver e dizer sobre-determinados. Há, porém, assumidamente um esforço de tentar lidar com um cenário que reconhece, tal qual nos aponta o filósofo italiano Gianni Vattimo, a perspectiva de que estamos diante de um contexto de “pluralização irresistível,
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e que torna impossível conceber o mundo e a história segundo pontos de vista unitários” (Vattimo, 1992, p. 12). Num diálogo direto com o filósofo francês, Jean François Lyotard (1993), ele argumenta sobre a diluição do ponto de vista supremo e das grandes narrativas e enfatiza que:
Derrubada a ideia de uma realidade central da história, o mundo da comunicação generalizada explode como uma multiplicidade de racionalidades “locais” que tomam a palavra, finalmente já não silenciadas e reprimidas pela ideia de que só exista uma única forma de verdadeira humanidade. (Vattimo, 1992, p. 15)
Essa multiplicidade discursiva, essa comunicação generalizada, essa tomada de vozes antes silenciadas ou desconsideradas – a libertação das diferenças – constituíram uma sensação de que o mundo está em permanente mudança, ao mesmo tempo em que surgem forças conservadoras que buscam reconfigurá-lo a partir da “nostalgia de uma realidade sólida, unitária, estável” (Vattimo, 1992, p. 14). Nesse
embate,
a
chamada
“emancipação”
tem
tido
uma
denominação, que também não deixa de ser paradoxal: a de que estamos diante de um paradigma que advoga em prol de “um mundo onde podemos teoricamente tudo fazer sem deslocarmo-nos”, ou, nos termos de Zygmunt Bauman, em prol da “liberdade dos movimentos” (Bauman, 1999, p. 08). Ao mesmo tempo, esse mesmo mundo vê-se “cheio de ‘abcessos de fixação’, sejam eles “territoriais ou ideológicos” (Augé, 2010, p. 16). É em Bauman que vemos uma saída explicativa para esse contexto paradoxal. Ele argumenta que a mobilidade, sendo um valor “cobiçado”, uma
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“mercadoria sempre escassa e distribuída de forma desigual, logo se torna o principal fator estratificador de nossos tardios tempos modernos ou pósmodernos” (Bauman, 1999, p. 08). Isso nos faz pensar, portanto, em duas instâncias: na mobilidade como alegoria do pensamento/imaginação espacial, bem como, fenômeno agenciador da experiência citadina contemporânea. É, portanto, na relação desses dois aspectos que podemos pensar sobre um “dizercidade” e problematizar, efetivamente, o denominado “paradigma da mobilidade” (Urry, 2007) como algo efetivamente emancipador:
A mobilities paradigm is not just substantively different, in that it remedies the neglect and omissions of various movement of people, ideas and so on. But it is transformative of social science, authorizing an alternative theoretical and methodological landscape (Urry, 2007, p. 18).14
Quando a Geografia mudou o nome da disciplina de “Geografia da circulação e dos transportes” para “Geografia de Redes e Fluxos” e, posteriormente, para “Geografia da Mobilidade”, não foi apenas uma questão semântica. Houve, claramente, um entendimento epistemológico desse campo disciplinar de tentar acompanhar as mudanças e transformações que vêm ocorrendo no mundo, em suas diferentes escalas. Tanto Augé (2010), quanto Urry (2007) consideram um aspecto contextualmente novo na constituição desse horizonte que ora se configura: a profusão das informações e das imagens. Na cidade contemporânea estamos, a todo momento, sendo bombardeados por elas. Como consequência disso, 14
Tradução livre: “Um paradigma das mobilidades não é apenas substantivamente diferente, pois remedia a negligência e as omissões de vários movimentos de pessoas, ideias e assim por diante. Mas é transformador das ciências sociais, autorizando uma paisagem teórica e metodológica ao exterior”.
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podemos destacar duas questões fundamentais quando pensamos na emancipação a partir da perspectiva de Vattimo (1992) e Rancière (2014). Temos então dois processos sendo comprometidos:
a) a experiência:
A inundação dada pelas informações e imagens tem nos confundido, nos fazendo pensar que estar informado é ter conhecimento. Vattimo alerta que “a própria lógica do ‘mercado’ da informação exige uma contínua dilatação deste mercado, e exige consequentemente que ‘tudo’, de qualquer maneira, torne-se objecto de comunicação” (Vattimo, 1992, p. 12). Talvez por isso nos faça bastante sentido a incisiva afirmação feita por Larrosa, de que “A informação não é experiência” (Larrosa, 2015, p. 18). Atualmente, de forma equivocada, informação, conhecimento e aprendizagem tornaram-se sinônimos, “como se aprender não fosse outra coisa que não adquirir e processar informação”. (Larrosa, 2015, p. 19)
b) o sensível:
Já o comprometimento do sensível refere-se à perspectiva da “fabricação do sensível” e da “partilha do sensível”, do filósofo francês, Jacques Rancière. Ao refletir sobre as relações existentes entre estética e política, ele explica que “os atos estéticos configuram experiências” (Rancière, 2009) e, por isso, podemos, em face do comprometimento da experiência, reconhecer que estamos diante de uma “estilização da vida” (Pellejero, 2009, p. 15). Vivemos uma época na qual o automatismo, o individualismo, a impessoalidade, a pressa, a insegurança e a velocidade são as grandes marcas
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do viver citadino contemporâneo. A experiência do habitar urbano está perdendo a capacidade “negociar sentido” (Bauman, 1999, p. 08). Nesse contexto, qual seria o ideal de emancipação que nos resta? Vattimo defende a “oscilação, a pluralidade e, por fim, o próprio ‘princípio de realidade’” (Vattimo, 1992, p. 13) enquanto Rancière (2014) argumenta que é necessário compreender que “olhar é também uma ação que confirma ou transforma” aquilo que ele vai chamar de “a distribuição das posições”. Ele afirma que:
A emancipação, por sua vez, começa quando se questiona a oposição entre o olhar e agir, quando se compreende que as evidências que assim estruturam as relações do dizer, do ver e do fazer pertencem à estrutura da dominação e da sujeição. (Rancière, 2014, p. 17)
Retomo então a questão do que significaria pensar num dizer-cidade emancipatório. O antropólogo Massimo Canevacci propõe um modo de estar no mundo que se alinha às questões com as quais estamos lidando. Para ele, é necessário “estranhar toda a familiaridade possível com a cidade e, ao mesmo tempo, familiarizar-se com suas múltiplas diferenças” (Canevacci, 2004, p. 30), tornando-nos deste modo, estrangeiros no lugar, aventurando-nos a percorrer outros caminhos, a olhar por variados ângulos, destacando as multiplicidades e nos deixando contagiar pelas estranhezas que nos cercam, ou ainda, nas palavras do autor, “olhar obliquamente o superconhecido” (Canevacci, 2004, p. 31). Podemos também dialogar com outra perspectiva, apresentada pelo Antropólogo francês Michel Agier (2011), em seu livro Antropologia da Cidade.
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O autor propõe uma mudança na seguinte questão: ao invés de dizermos: “o que é a cidade?”, o que aconteceria se perguntássemos: “o que faz a cidade?”. Talvez assim possamos assumir uma orientação que tome a cidade não mais como “‘uma coisa’ que eu possa ver, nem ‘um objeto’ que eu possa apreender como totalidade” (Agier, 2011, p. 38), não mais como “uma abstração teórica, generalizadora” (Agier, 2011, p. 20) e sim, como algo relacional e situacional, pois, “o próprio ser da cidade surge, então, não como um dado, mas como um processo, humano e vivo, cuja complexidade é a própria matéria da observação, das interpretações e das práticas do ‘fazer a cidade’” (Agier, 2011, p. 39). Encontro reverberação das reflexões de Agier, quando lido com a ideia de “cidade polifônica”, de Massimo Canevacci. Nas palavras do autor, a polifonia:
Designa uma determinada escolha metodológica de “dar voz a muitas vozes”, experimentando assim um enfoque polifônico com o qual se pode representar o mesmo objeto – justamente a comunicação urbana. A polifonia está no objeto e no método. (Canevacci, 2004, p. 17-18)
Ao falar que a polifonia está no objeto e no método, Canevacci faz coro com Urry (2007) e nos aponta para a necessidade metodológica e conceitual de ver, no sentido de reconhecer, e de como dar a ver a uma multiplicidade que surge, tanto no plano material, quanto no plano discursivo; tanto no plano da experiência, como no plano do sensível, que são, por assim dizer, a “recitação de movimentos” (Tavares, 2013, p. 170) de um pensar e sentir a cidade e suas muitas grafias possíveis.
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Tavares fala dessa “recitação de movimentos, talvez da mesma maneira como nos referimos à recitação de poemas” (Tavares, 2013, p. 170). Podemos pensar, então, numa poética do habitar a cidade contemporânea, não como fato verificável, mas como uma potencialidade combativa diante de fluxo de passividade, automatismo e repetição, ou seja, contra a mera reprodução de uma experiência do viver metropolitano mecanizado, que toma de assalto os lugares e converte nossa relação com eles em um mero princípio mercadoriaconsumo. Poética do habitar é, por assim dizer, aquela em que existe porque abdicas de ser completamente individual. Decide entender-se com outros. (Tavares, 2013, p. 172) Em face disso, reconhecemos o quanto “somos, da cidade, parte indissociável. Somos vozes, olhos, bocas, palavras, desejos, pensamentos...” (Queiroz Filho; Damiani; Borges, 2013, p. 72). E, com isso, autorizo-me a fazer coro com aqueles que reivindicam um urbanismo lento, uma estética do caminhar, uma postura diante do mundo que se faz na observação minuciosa, na problematização daquilo que se põe diante de nós. Coloco-me à disposição de um “dizer-ver-cidade” como pluralidade e à um pensar a cidade, ver a cidade e sentir a cidade como um corpo pulsante.
- sobre o fazer-cidade: é possível?
Contra o ortodoxo, é como poderíamos intitular o livro “Morte e Vida de Grandes Cidades”, da escritora norte-americana, Jane Jacobs. Suas palavras, mais que apenas teoria científica, são alimento para um fazer-cidade na perspectiva de um “ataque aos fundamentos do planejamento urbano” (Jacobs, 2011, p. 01) e conclui seu raciocínio dizendo: “escreverei sobre o funcionamento das cidades na prática (Jacobs, 2011, p. 01).
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Ainda que essa prática seja, para Jacobs, uma forma de olhar para as cidades como um “grande laboratório”, lugar de “teste” onde se coloca à prova as teorias do planejamento urbano (Jacobs, 2011, p. 05) – o que podemos considerar como uma perspectiva utilitarista – ela faz reverberar a ideia de pensar o mundo a partir do contato direto com o fluxo da vida e, o que exige de nós, dentre tantas coisas, uma mudança de escala: olhar mais “de perto” e menos “de cima”. É possível? Quando li Massey (2008) afirmar que, para ela, “a teoria surge da vida”, aquilo me soou de uma forma, que poderia dizer, transformadora. Esse era uma espécie de “estado de espírito” que me acompanhava silenciosamente. Mesmo quando a escritora e poetiza Clarice Lispector (1998a, p. 64) já tendo dito: “Alimento-me delicadamente do cotidiano trivial”, foi com Doreen Massey que pude dar voz a uma perspectiva conceitual e metodológica de investigar o mundo – fazer cidade – a partir daquilo que muitos consideram banal, colocando-os sempre na condição de indigência investigativa, qualificando-os, muitas vezes, como indignos de se tornar objeto de preocupação científica. Contrariamente, isso é o que me interessa: sermos habitados pela “harmonia secreta da desarmonia”, ou aquilo que “não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz” (Lispector, 1998a, p. 12). É possível?
Como te explicar? Vou tentar. É que estou percebendo uma realidade enviesada. Vista por um corte oblíquo. Só agora pressenti o oblíquo da vida. Antes só via através de cortes retos e paralelos. (...) A vida oblíqua é muito íntima. (Lispector, 1998a, p. 62-63)
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Nessa perspectiva, a intimidade, ou seja, o caráter proximal da vida urbana tem me interessado de um modo peculiar e a “obliquidade” (Canevacci, 2004) tem se tornado um desafio perene, assim como foi instigante para Massimo Canevacci quando ele saiu de Roma e se deparou com a imensidão da cidade de São Paulo, a “Cidade patchwork” (Canevacci, 2004, p. 10). Partilho dessa “descoberta do olhar” em que olhar “obliquamente o superconhecido” é premissa quase que inalienável à captura da polifonia como uma possibilidade de fato. É possível? Tanto com o poeta Manoel de Barros, como com o escritor português Gonçalo M. Tavares, tenho aprendido a combater as formulações de um fazercidade pré-fabricado e a reconhecer como método, o “errar, circular, hesitar em redor do que não tem solução” (Tavares, 2013, p. 28), bem como, a “escovar as palavras” até elas virarem “desobjeto” (Barros, 2010). Eis então um fazer-cidade-poema. Ele diz respeito a uma não captura pela “palavra engavetada. Aquela que não pode mudar de lugar” (Barros, 2010, p. 43), nem serve de invólucro para as grandes teorias explicativas e suas “gavetas”, que são, nas palavras de Tavares, “organizadores verbais” (Tavares, 2013, p. 28):
Pensamos, de facto, por conceitos, mas as gavetas com comunicação múltipla entre si, com buracos, com declives, com passagens óbvias e outras mais secretas são divertidas; gavetas que segurem não materiais sólidos, mas líquidos, materiais cuja essência seja o movimento, materiais que não estão num sítio: circulam entre sítios (Tavares, 2013, p. 29).
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Do mesmo modo, como docemente nos diz Manoel de Barros: “O tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas” (Barros, 2010, p. 67). É possível? Canevacci ainda não tinha intimidade com São Paulo quando a viu pela primeira vez. Como pôde ele então se dispor à polifonia? Porque era ele. Ser privilegiado? Não. Ser oblíquo, entregue à disposição de se lançar ao desconhecido. Ele se permitiu perder-se. Em desapego, lançou-se ao “fluir das emoções” (Canevacci, 2004, p. 14).
Estou convencido de que é possível elaborar uma metodologia da comunicação urbana mais ou menos precisa, com a seguinte condição: a de querer perder-se¬, de
ter
prazer
nisso,
de
aceitar
ser
estrangeiro,
desenraizado e isolado... (Canevacci, 2004, p. 15)
Essa era a sua intimidade e a sua circularidade: sim, é possível.
- sobre o sentir-cidade: espaço-poema
Retomo o diálogo com Doreen Massey. Na verdade, quero fazer um paralelo entre a primeira parte de seu livro – Pelo Espaço (2008) e a bela obra de Ítalo Calvino, As Cidades Invisíveis (1990). Ambos tratam a cidade como imaginação espacial. Massey primeiro nos explica sobre o papel fundamental dos relatos nas “viagens de descoberta”. Nessa prática discursiva aparentemente inocente, alerta Massey ao analisar o caso dos Astecas, os habitantes a serem conquistados foram “desprovidos de história”, como se estivessem “imobilizados” aguardando a
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chegada de seus conquistadores. O resultado político de discursos como esse é o de perpetuar uma imaginação que toma o espaço como superfície. Fazendo isso: Tal espaço torna mais difícil ver, em nossa imaginação, as histórias que os astecas também estavam vivendo e produzindo. O que poderia significar reorientar essa imaginação, questionar o hábito de pensar o espaço como uma superfície? (Massey, 2008, p. 23) Para Calvino (1990), as cidades percorridas nas viagens de Marco Polo, a mando do Imperador Kublai Khan, não subsistiam a um discurso que se fundava num espaço como superfície – que seria o espaço-Zora – aquele “que tem a propriedade de permanecer na memória”, pelos simples motivo: todos a conheciam de cor, pois ela havia sido “obrigada a permanecer imóvel e imutável para facilitar a memorização” ou o espaço-Tamara, feito de “figuras de coisas que significam outras coisas”, como “o torquês que indica a casa do tiradentes”. Símbolos nos ensinando que o olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o discurso, e, enquanto você acredita estar visitando Tamara, não faz nada além de registrar os nomes com os quais ela define a si própria e todas as suas partes. Há, sem dúvida, outras formas de se imaginar o espaço, como reivindica Doreen Massey. Em Calvino, há o exemplo do espaço-Dorotéia, dito tanto
pela
descrição
detalhada
de
suas
formas,
objetos
e
dados
matematicamente calculados, quanto pelo mapa-memória do cameleiro que guiou Polo. O espaço-Zaíra, que comunica sua história pelos “ângulos das ruas”, “grades das janelas”, ou seja, “pela medida de seu espaço e os acontecimentos do passado”, a exemplo:
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dos rasgos nas redes de pesca e os três velhos remendando as redes que, sentados no molhe, contam pela milésima vez a história da canhoneira do usurpador, que dizem ser o filho ilegítimo da rainha, abanado de cueiro ali sobre o molhe. E o passado da imaginação e da poesia contida nessa história dos três velhos, e nas demais aqui referidas como outras formas de se imaginar o espaço, presentifica-se no instante em que palavra e imagem fundem-se numa memória, que se pode dizer, poeticamente, é uma “memória inventada” (Barros, 2010). Feita de desprezo, pedaços de madeira velha, alguns insetos rasteiros, terra molhada e um olhar ingenuamente curioso que coloca tudo aquilo numa caixa de inutilidades e os mistura. Depois disso, já não se pode mais distinguir o ver, dizer, fazer e sentir: tudo passa a ser.
- da fabricação do sensível: diver-cidade
Diferente da memória-inventada de Manoel de Barros, a imaginação pré-fabricada corresponderia ao termo “falso”, da expressão “tudo que não invento é falso”. É aquela que impede ou diminui potencialmente a nossa capacidade poético-criadora e se constitui como a experiência em si mesma. O urbanista americano Kevin Lynch chama atenção para o ato de olhar as cidades. Por mais corriqueira e repetida que possa ser nossa prática cotidiana, Lynch nos diz que “Nada é vivenciado em si mesmo, mas sempre em relação aos seus arredores, às sequências de elementos que a ele conduzem, à lembrança de experiências passadas” (Lynch, 2010, p. 01).
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As paisagens urbanas pré-fabricadas tiram-nos dessa possibilidade, múltipla e inventiva. Parafraseando Lynch (2010), não devemos levar em consideração as paisagens urbanas (as cidades) como coisas em si mesmas, mas o modo como elas são experienciadas e produzidas, afinal de contas, “Uma paisagem na qual cada pedra conta uma história pode dificultar a criação de novas histórias” (Lynch, 2010, p. 07). E há paisagem mais pré-fabricada que aquelas dos grandes condomínios de luxo? O urbanista e historiador americano Mike Davis (2009) os denomina de “lugares esterilizados”, de “domicílios verdejantes”, partícipes de uma lógica que, segundo o autor:
Evoca muito da evolução anterior das casas préfabricadas do Sul da Califórnia. Mas os empreendedores não estão somente reempacotando o mito (a boa vida nos subúrbios) para a próxima geração; estão também se aproveitando de um novo medo crescente da cidade. (Davis, 2009, p. 40)
A produção do medo também tem sua fórmula pronta, a exemplo da análise feita pelo referido Mike Davis no livro “A Cidade de Quartzo”, quando fala do modo como o “mito do santuário no deserto” foi desfeito por meio de uma série de atos de violência ocorridos a partir da virada do ano novo de 1990 (Davis, 2009). Mas há uma outra forma de pré-moldado que Davis trata muito bem: a imagem da cidade. Ele relata que:
Um de meus novos campañeros de Llano disse que LA já estava em toda parte. Eles assistiam todas as noites em
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San Salvador, em infinitas reprises dubladas de Eu amo Lucy e de Starky and Hutch, uma cidade onde todos eram jovens e ricos, dirigiam carros novos e se viam na televisão. (Davis, 2009, p. 47)
Tais imagens espetaculares de LA eram a grande imaginação espacial mobilizadora, não apenas dos sonhos de muitos que se dirigiam até lá, como os migrantes ilegais que se arriscavam na aventura de cruzar as fronteiras “superprotegidas” ou os astros do cinema hollywoodiano e suas ações de refúgio e auto-reclusão. Essa prática discursiva é o que legitimava uma condição de cidade feita imagem, produzida no intervalo entre existência e devir, que é o mesmo daquele entre da Clarice Lispector quando ela diz: “quero uma verdade inventada” (Lispector, 1998a, p. 13). E assim nascem as reflexões que assumem a poética como suas constituintes. Elas propõem-se pensar a cidade no contexto da mobilidade sobremoderna, para além da perspectiva funcionalista e mecanicista. As principais marcas do viver citadino contemporâneo e os principais paradoxos do paradigma da mobilidade passam a servir como “matéria de poesia”. Essa é a premissa da poesia de Manoel de Barros. Ela não tem o compromisso com a “verdade”, nem ao menos pretende explicar qualquer coisa. Como ele mesmo diz: a poesia serve para aumentar o mundo”. E não seria diferente com uma Geografia que vislumbra “aumentar o mundo”. Da experiência capturada pelas imagens clichês, esgarça-se a paisagem consolidada de forma instantânea e automática em nossas memórias. Aumentamos nossos horizontes imaginativos e assim provocamos a gramática da imagem a dizer de outro modo.
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Então, analisar a cidade contemporânea é também compreender o papel que as imagens e o corpo têm desenvolvido sobre a vida urbana atual, dado um contexto de mundo dominado pelas narrativas e discursos da visualidade. Nas palavras de Marc Augé, esse contexto corresponde ao que ele chama de “ideologia do sistema da globalização, uma ideologia da aparência, da evidência e do presente” (Augé, 2010, p. 16). Esse aspecto de produção e circulação das imagens tem modificado a própria forma em que diversas áreas do conhecimento têm buscado pensar a cidade como uma categoria que está para além dos aspectos materiais concretos. É o que ressalta John Urry quando diz que:
I thus seek to bring into vision how social life presupposes many issues of movement and non-movement, of forced movement and of chosen fixity, of people, images, ideas and objects. (Urry, 2007, p. 17 – grifos meus)15
Ao enfatizar imagens, corporalidades e ideias como partícipes fundamentais do contexto contemporâneo, toma-se como ponto de partida um cenário de mundo em que os mais variados meios, (cinema, televisão, fotografia, internet, etc.), participam, sem precedentes, do nosso modo de pensar-agir (Almeida, 1999; Oliveira Jr.., 2009):
A estética como artifício de fabricação da nossa sensibilidade se transformou numa mercadoria por excelência, objeto de produção, circulação e consumo, realizando de forma
15
Tradução livre: “Procuro, assim, vislumbrar como a vida social pressupõe muitas questões de movimento e não movimento, de movimento forçado e de fixidade escolhida, de pessoas, imagens, ideias e objetos”.
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fantástica o velho axioma: cria-se não apenas uma mercadoria para o sujeito, mas criam-se, também, sujeitos para a mercadoria. É este hoje o estatuto da imagem. (Novaes, 2005, p. 10)
Assumo, portanto, a compreensão do espaço inventado pelas câmeras fotográficas e pelas narrativas de tevê como parte necessária para um aprofundamento em questões que passam tanto pela “venda” de uma imaginação espacial pelos produtos, que se desdobra em práticas espaciais e discursivas cada vez mais atreladas à constituição de novos entendimentos na relação Cidade-Imagem como lugar-mercadoria / paisagem-produto de uma retórica de um capitalismo global.
Vende-se um estilo, um conceito, uma simbologia, uma forma de pensar e de agir no mundo, que está sempre ligado ao consumo de um determinado produto e que este consumo está ligado uma coletividade que é mundial. A funcionalidade perde foco e o que passa a contar, de fato, é o que ou quem o indivíduo se torna para o mundo ao consumir uma dada funcionalidade. (Queiroz Filho, 2010, p. 06)
Milton José de Almeida argumenta que os programas de tevê “expressam em imagens e palavras, valores e mensagens diversas e participam, de
diferentes maneiras,
da grande
construção mítica
da
sociedade
contemporânea” (Almeida, 1999, p. 04) e fazem isso promovendo aquilo que ele denomina de “catecismo visual”, dado o papel atribuído às imagens
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televisivas como sendo verdadeiras “celebrações visuais de modos de ver e estar no mundo” (Almeida, 1999, p. 05). Assim, ao olharmos para a produção e circulação de imagens como grandes paisagens e territórios narrativos, estamos na esteira do argumento de Oliveira Jr. quando fala de uma “paisagem única” que se dá, em grande medida, “pela lógica da mercadoria, tornando o mundo um amontoado de lugares a serem consumidos” (Oliveira Jr., 2008, p. 02). Estamos diante do desafio, portanto, de tentar compreender qual “paisagem única” está sendo construída e qual a lógica da imaginação espacial e seus desdobramentos na imaginação do político (Massey, 2008) sobre os índices do principal paradigma que têm pautado a produção da cidade contemporânea, a saber, a mobilidade sobremoderna. Esse imaginar espacial, nas palavras da própria Massey, não está descolado do imaginar político, “afeta o modo como entendemos a globalização, como abordamos as cidades e desenvolvemos e praticamos um sentido de lugar” (Massey, 2008, p. 15). O esforço de investigação que tenho empreendido diz respeito à tentativa de se buscar entender os desdobramentos dessas políticas da visualidade e da corporalidade, que ora se constituem naquilo que têm sido considerados como as “novas políticas da espacialidade” (Massey, 2008), o que implica, necessariamente, em novas configurações materiais e simbólicas para o próprio fazer geográfico. É como se estivéssemos diante de uma grande paisagem conceitual que tem se colocado em movimento ou, ainda, assumido o movimento como sua maior potência. Isso implica dizer, em grande medida, que sua força motriz, de maneira mais intensa, tem se colocado diante de outras miradas, outros pontos de vista. Isso seria, nos termos do poeta Manoel de Barros (2010b), fazer da Geografia Contemporânea um “esticador de horizontes”, portanto, uma
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Geografia que toma o mundo como uma potência criadora e criativa para suas – muitas – grafias.
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DANÇA, alguém dança
- Nomear aquilo que é resultado do viver a dança, resultado do processo de fazer do corpo um corpo que dança. Nomeação como gesto imersivo, transbordante, fruto da suspensão da opinião, do juízo e de qualquer outro tipo de “automatismo da ação”.
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Não há dança sem um sujeito que dança. Não há sujeito que dança sem corpo. Não há corpo que dança sem experiência. Assertivas alinhavadas num entendimento que me permite pensar na dança enquanto “fluxo de impressões sensíveis”, porque, como explica Gallina, a “Experiência é o conjunto daquilo que aparece e, enquanto tal, puro movimento, puro devir”. (2007, p. 129):
Ora, nesse sentido, as impressões não são mais propriedades exteriores àquele que as experimenta, mas também interiores, ou melhor, elas se constituem na relação, no intermédio, como algo do qual o sujeito que percebe, de alguma forma participa para o seu surgimento, ou, nas palavras de Deleuze, constrói, cria (Gallina, 2007, p. 130).
Dança é, portanto, construção, criação, algo da ordem da ação e também, do diálogo, aqui entendido como o processo do sujeito que “reflete e se reflete”, para continuar com Gallina. Ela explica que:
daquilo que o afeta em geral, ele extrai um poder independente do exercício atual, isto é, uma função pura, e ele ultrapassa sua parcialidade própria. Por isso tornam-se possíveis o artifício e a invenção. O sujeito inventa, ele é artificioso. É esta a dupla potência da subjetividade: crer e inventar (Gallina, 2007, p. 131);
É, pois, sobre essa égide, a do “sujeito que inventa”, que me apego toda vez que alguém questiona o modo como tenho me envolvido com a dança.
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É preciso explicitar que a importância de se nomear tais processos, esses mesmos recolhidos no mergulho intensivo da experiência de aprendiz de bailarino, consiste na premissa de que é isto que permite ao sujeito inventivo fazer de suas percepções um produto da imaginação. É o que diz Gallina quando explica que “A relação que existe entre duas percepções não depende das percepções, depende apenas da imaginação” (2007, p. 131). Nomear é, portanto, gesto de criação. Gesto esse que passa, muitas vezes, pelo sentar num canto da sala de aula e se por passivamente diante de tudo aquilo que estava “acontecendo”, para fazer jus ao sentido larrosiano de experiência. Gesto esse que é o da observação lenta e ativa. Esse é o sentido do intensivo que aqui coloco. Corpo intensivo. Disso fala Lourence Louppe no livro “poética da dança contemporânea”. Ela diz que:
Só compreendemos a arte do movimento se integrarmos os seus saberes e, geralmente, se nos envolvermos nessa atividade, nesse poiein em que os processos de elaboração já se encontram repletos de toda a complexidade artística que revelam (...) É, mais ou menos, o único caminho para alcançar o pensamento de uma arte: observar não somente o produto acabado, mas a produção em acção dentro da obra. Depois de Paul Valéry, Henri Meschonnic recorda que “só existe teoria na e pela prática”. (Louppe, 2012, p. 30-31).
É importante pontuar algo que trata do “saber da experiência” numa pesquisa sobre dança, realizada por alguém que não é um profissional da área. Em Braga, por exemplo, onde o bailarino é tido como um atleta, o adulto “não tem vez”. Lembro claramente da feição de espanto das mamães todas as vezes
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que eu saia da sala ao fim das muitas horas de aulas e ensaios. Certo dia cheguei inclusive a ouvi-las cochichando em tom especulativo sobre minha idade. Nesse mesmo dia, várias crianças vieram me perguntar quantos anos eu tinha. Respondi para uma delas, em tom de brincadeira, que tinha a idade de ser o pai dela. Gostaria de ter registrado em foto aquele semblante. Ela, demonstrando uma completa confusão, afirmou que era impossível eu ser seu pai, pois o mesmo jamais conseguiria fazer uma aula de ballet. E o fato de estar ali, junto com ela, colocava minha afirmação num lugar de confusão e absurdo. Confesso: fiquei feliz e triste ao mesmo tempo. Já no Brasil, vivenciei, inúmeras vezes, o outro extremo da situação. Perdi a conta de quantas vezes ouvi, em tom de deboche, que dançar é apenas um passatempo. Uma colega mesmo do ballet chegou a afirmar, nesse sentido, que um dia gostaria de ter “essa vida”, de passar o dia todo dançando, como se estivesse dizendo assim: gostaria de passar o dia todo sem fazer nada ou o dia todo realizando uma atividade de lazer. Como se, de algum modo, o único matiz sensível que um corpo mobilizasse ao dançar, fosse a de prazer no seu sentido mais abobalhado. Nem preciso entrar no mérito da questão daqueles que são profissionais da dança para problematizar como esse tipo de pensamento é equivocado. Mas quero sim enfatizar a importância do estudo teórico numa arte qualificada como efêmera. Refiro-me ao entendimento do “nomear” como algo que está longe de ser uma questão terminológica apenas, como ressalta Larrosa. Ele diz que:
As palavras com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos são mais do que simplesmente palavras. E, por isso, as
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lutas pelas palavras, pelo significado e pelo controle das palavras, pela imposição de certas palavras e pelo silenciamento ou desativação de outras são lutas em que se joga algo mais do que simplesmente palavras, algo mais que somente palavras (Larrosa, 2015, p. 18).
Jogo duplo, esse: nomear aquilo que é resultado do viver a dança, resultado do processo de fazer do corpo um corpo que dança. Nomeação como gesto imersivo, transbordante, fruto da suspensão da opinião, do juízo e de qualquer outro tipo de “automatismo da ação” (Larrosa, 2015). Uma geografia bailarina é, portanto, uma geografia da experiência, essa de que fala Larrosa. Nesse sentido, uma geografia que aprendeu a:
Parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes (...) cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (Larrosa, 2015, p. 25)
Por esse motivo, considero aquilo que escrevo como um mapa de afetos. Porque, se a experiência é uma paixão, como afirma Larrosa, meus relatos não poderiam indicar outras coisas, senão, deslocamentos, impasses, aberturas, fragmentos, pausas, espantos, gozos, silêncios. Eis uma cartografia, no sentido deleuziano do termo. Ela realiza, portanto, uma partilha daquilo que tem agenciado em mim, planos imanentes que alinhavam uma geografia bailarina, que se realiza, dentre muitas coisas, na potência das emoções:
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Uma emoção não seria uma e-moção, quer dizer, uma moção, um movimento que consiste em pôr para fora (e-, ex) de nós mesmos? Mas se a emoção é um movimento, ela é, portanto, uma ação: algo como um gesto ao mesmo tempo exterior e interior. (Didi-Huberman, 2016, p. 26)
Já faz certo tempo que as emoções deixaram de ser consideradas como um ato primitivo, pelo menos pelas ciências humanas. Posso afirmar, amparado em autores como Didi-Huberman e Jacques Rancière, que a sensibilidade é uma das formas de inteligência mais refinadas, exercendo, portanto, papel político fundamental em tempos de velocidade, aparência e instantaneidade. Didi-Huberman, por exemplo, explica como Hegel, Nietzsche, Merleau-Ponty e Gilles Deleuze argumentam sobre o papel das emoções como algo que passa longe de ser impassividade, subjugo, inferioridade ou qualquer coisa nesses termos. Todos eles, de algum modo, demonstram que a emoção “é um modo de conhecimento sensível e de transformação ativa de nosso mundo” (Didi-Huberman, 2016, p. 26) e, principalmente, que:
A emoção não diz “eu”: primeiro porque, em mim, o inconsciente é bem maior, bem mais profundo e mais transversal do que meu pobre e pequeno “eu”. Depois porque, ao meu redor, a sociedade, a comunidade dos homens, também é muito maior, mais profunda e mais transversal do que cada pequeno “eu” individual (Didi-Huberman, 2016, p. 30)
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Não interessa aqui, portanto, pautar o debate na perspectiva que antagoniza fisiologia e psicologia. Interessa pensar emoção como movimento e partilha, como tomada de posição, realização de significado, constituição de mundo. Tomo emprestado, para me assegurar dessa assertiva, aquilo que Jacques Rancière (1995) diz sobre o ato da escrita como um ato político. Para o autor: “escrever é uma maneira de ocupar o sensível e de dar sentido a essa ocupação” (p. 07) que, por sua vez, constitui “uma relação entre os modos de fazer, os modos de ser e os do dizer” (p. 08). Uma geografia de emoções, como uma escrita, contempla um modo de ocupação dos corpos que se põem a discutir o fazer geográfico no contexto de uma ciência menos sujeita de si, portanto, menos tautológica, uma ciência menos matter of fact, para citar Bruno Latour (in: Nunes; Roque, 2008) e mais articulada e propositiva:
Habituei-me a usar o termo proposições para descrever aquilo que é articulado. Este termo conjuga três elementos fundamentais: a) denota uma obstinação (posição), que b) não tem autoridade definida (é apenas uma pro-posição) e c) pode aceitar negociar-se a si própria para formar uma com-posição sem perder a solidez (Latour in: Nunes; Roque, 2008, p. 45).
Nesse sentido, assumo aqui o desejo de produzir uma Geografia que considera e defende a perspectiva de que ciência e arte estão no mesmo patamar, possuem a mesma “autoridade”, ou como melhor diz Deleuze e Guattari (2010), “são igualmente criadoras” (p. 11). Colocá-las à revelia uma da outra é uma recusa que faço, do mesmo modo como também faz o “nativo relativo” (2002) apresentado por Eduardo Viveiros de Castro.
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Nesse texto, o autor trata do modo como os discursos do antropólogo e do nativo transformam um ao outro reciprocamente. Isso porque toda transformação, nesses termos, implica no reconhecimento de uma constituição relacional, que não é de identidade, nem hierárquica, ressalta o autor. O que Viveiros de Castro propõe é uma “igualdade ativa” entre os discursos. Essa tomada de posição remete a uma proposição, referida na concepção de outrem. Assim, o autor explica que:
Outrem não é, portanto, um ponto de vista particular, relativo ao sujeito (o “ponto de vista do outro” em relação ao meu ponto de vista ou vice-versa), mas a possibilidade de que haja ponto de vista - ou seja, é o conceito de ponto de vista. Ele é o ponto de vista que permite que Eu e o Outro acedam a um ponto de vista (...) Outrem é a expressão de um mundo possível (Castro, 2002, p. 118)
Ciência e arte estabelecem, portanto, uma variação relacional que opera nas e pelas diferenças. O que fazer com elas é ponto interessante. Para Viveiros de Castro, a questão passa pelo fato de que, ao enunciar sobre o discurso do nativo, o antropólogo enuncia sobre si mesmo. Apresenta, portanto, sua esteira epistêmica. E se pensarmos o mesmo sobre ciência e arte? E se levarmos à última consequência, como aponta o autor, a ideia de internalizamos aquilo que é considerado disparidade entre esses dois mundos e potencializarmos os atravessamentos? O fato é que minhas verdadeiras preocupações de pesquisa, por ora, nem chegam nesse patamar de reflexão, mas de certo modo, elas são um pano de fundo necessário de ser reconhecido, principalmente se considerarmos uma
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“ciência” que assumiu para si, uma “arte” como sua fonte “epistêmica”. Sim, para que isso seja dito é necessário, de fato, muitas aspas. Viveiros de Castro está lá preocupado com sua Antropologia enquanto “confraefetuação de conceitos”16. Afirma ele em “metafísicas canibais” que:
Aceitar a oportunidade e a relevância desta tarefa de “penser autrement” (Foucault) o pensamento - de pensar “outramente”, pensar outra mente, pensar com outras mentes - é comprometer-se com o projeto de elaboração de uma teoria antropológica da imaginação conceitual, sensível à criatividade e a reflexividade inerentes à vida de todo coletivo, humano e nãohumano (Castro, 2015, p. 25).
Fazer juntar esses “outros” me fez lembrar Carlos Skliar ao comentar um trecho o livro "La expulsión de lo distinto” (a expulsão do diferente), do escritor sul-coreano Byung-Chul Han.
16
Eduardo Yuji Yamamoto explica que “Efetuar e Contraefetuar constituem duas atividades opostas, porém necessárias e complementares para a prática filosófica: produzir conceitos. Efetuar significa conceituar, delimitar a potência semântica das coisas, aprisionar (totalizar ou saturar semanticamente) o Ser. Contra- efetuar, ao contrário, significa liberar o Ser desta prisão ontológica (des-ontologizar), criar linhas de fuga (um sentido) para o devir. A contraefetuação, neste caso, libera o Ser para as forças em si, sem mediação das formas (como o fazem as filosofias abstratas e transcendentes). Conceituar, neste caso, constitui uma atividade incessante de aprisionamento e libertação do sentido” (YAMAMOTO, 2012, p. 116).
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Los tiempos em los que existía el otro se han ido. El otro como misterio, el otro como seducción, el otro como eros, el otro como deseo, el otro como infierno, el otro como dolor va desaparecendo.
Hoy, la negatividade del otro deja paso a la
positividad de lo igual. La proliferación de lo igual es lo que constituye las alteraciones patológicas de las que está aquejado el cuerpo social17 (Han, 2017, p. 09 – grifos meus)
Skliar conclui que “toda semelhança com a realidade é verdadeira coincidência”. É, pois, diante desse desafio que me vem outra questão, que versa sobre o que se quer dizer e como se quer fazer esse “juntar”. Minha escolha se dá, nesse sentido, na esteira daquilo explica Luciano Bedin da Costa no texto “O Ritornelo em Deleuze-Guattari e as três éticas possíveis”18. Segundo o autor, há em Deleuze e Guattari, uma ética da experimentação, com seus artefatos de risco e força; uma ética da prudência necessária, que trata da metamorfose e do escape como um jogo que se joga
pelo simples prazer de jogar; bem como, uma ética do improviso, algo da ordem do aberto e do transitório. Junção, portanto, pela ética-estética-política deleuze-guattariana, na esteira de sua filosofia das impressões sensíveis. Por isso me faz tanto sentido a proposição de “não explicar, nem interpretar: multiplicar, e experimentar” (Castro, 2002). Por isso tenho cada vez menos me preocupado em escrever num
17
Tradução livre: “Os tempos em que existia o outro foram-se. O outro como mistério, o outro como sedução, o outro como eros, o outro como desejo, o outro como o inferno, o outro como dor vai desaparecendo. Hoje, a negatividade do outro deixa passar para a positividade do mesmo. A proliferação da mesma forma é o que constitui as alterações patológicas de que o corpo social sofre”. 18 Cf.: http://coral.ufsm.br/gpforma/2senafe/PDF/005e2.pdf
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tom explicativo e tautológico e muito mais, lidar com a perspectiva da partilha das articulações que tenho tentado fazer. Por ora, é o corpo que dança em contato com a cidade-poesia meu cenário de interesse. Eu poderia dizer que realizar tais articulações tem se constituído como um desafio, mas não. Tem se constituído, de fato, como emoção, portanto, como movimento que realiza passagens, que realiza transformações, nos termos que argumenta Viveiros de Castro quando diz que:
O que toda experiência de uma outra cultura nos oferece é a ocasião para se fazer uma experiência sobre nossa própria cultura; muito mais que uma variação imaginária introdução de novas variáveis ou conteúdos em nossa imaginação - é a própria forma, melhor dizendo, a estrutura da nossa imaginação conceitual deve entrar em regime de variação, assumir-se como variante, versão, transformação (Castro, 2015, p. 21-22).
É o que estou buscando: fazer da geografia uma ciência que diz: “Que emoção! Que emoção?” (Didi-Huberman, 2016)19. E é nesse contexto que surge meu mapa de afetos. Ele partilha os gestos e movimentos que tenho tentado realizar nesse percurso que já chamei de Geografias da Dança e hoje prefiro dizer que ele é “por” um Geografia Bailarina. E foi na articulação entre o processo de constituição de um sujeito da experiência dada pela minha condição de aprendiz de bailarino que me coloquei a pensar sobre esse processo de aquisição de um corpo que dança, que seria,
19
Didi-Huberman (2016) explica que a exclamação indica a intensidade da experiência, já a interrogação, o esforço de reflexão.
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dentre outras coisas, a descoberta de si mesmo diante da realização de algo que faz de nós um dispositivo de reverberar afetos.
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AFETAR, ser afetado
- Se aprender a ter um corpo implica em aprender a ser afetado. Ser afetado, então, é marca definidora daquilo que nos constitui como “território de passagem”, corpo vibrátil, superfície sensível.
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O ensinar a dançar é, dentre tantas coisas, ensinar a ter um corpo, que seria, nos termos de Bruno Latour, “aquilo que deixa uma trajectória dinâmica através da qual aprendemos a registar e a ser sensíveis àquilo de que é feito o mundo”. Disso fala o autor no texto “Como falar do corpo”, onde o mesmo explica sobre o processo de aquisição de narizes, dado pela indústria de perfumes. Ele explica que:
pelo treino, aprendeu a ter um nariz que lhe permite habitar um mundo odorífico amplamente diferenciado. As partes do corpo, portanto, são adquiridas progressivamente ao mesmo tempo em que as “contrapartidas do mundo” vão sendo registadas
de
nova
forma. Adquirir um corpo é
um
empreendimento progressivo que produz simultaneamente um meio sensorial e um mundo sensível (Latour, In: Nunes; Roque, 2008, p. 40).
É com esse processo que me permito pensar a dança como uma experiência geográfica. Porque, se aprender a ter um corpo implica em aprender a ser afetado. Ser afetado, então, é marca definidora daquilo que nos constitui como “território de passagem”, corpo vibrátil, superfície sensível. Ao
adquirirmos
um
corpo
que
dança,
ocorre
uma
dupla
transformação. Do mesmo modo que o “olhar geográfico” se transforma num “corpo geográfico”, esse mesmo corpo, que diz respeito aquele que dança, passa a lidar e a produzir uma geografia outra, resultado desse processo de aquisição, não de novas formas de saber das coisas, para lembrar o que diz Larrosa sobre o saber da experiência, mas sim, de novas formas de sensibilidade, por conseguinte, de experienciar o mundo.
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Uma geografia bailarina, portanto, reivindica para si modos de ocupar o sensível e os reconfigura na medida mesma em que aprende a ter um corpo que dança. Então, posso afirmar, de início, que o principal gesto de uma geografia bailarina é a de se constituir como um “esticador de horizontes”, para lembrar do belo poema de Manoel de Barros. Geografia “bernardina”:
Bernardo é quase árvore. Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem de longe. E vêm pousar em seu ombro. Seu olho renova as tardes. Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho: 1 abridor de amanhecer 1 prego que farfalha 1 encolhedor de rios – e 1 esticador de horizontes. (Bernardo consegue esticar o horizonte usando três fios de teias de aranha. A coisa fica bem estendida.) Bernardo desregula a natureza: Seu olho aumenta o poente. (Pode um homem enriquecer a natureza com sua incompletude?) (Manoel de Barros, O livro das Ignorãnças)
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Portanto, uma geografia bailarina é, parafraseando Jacques Rancière, uma maneira de fazer que intervém “na distribuição geral das maneiras de fazer". Isso pode ser compreendido de diversas formas, mas foi a partir de uma série de registros fotográficos realizados na ocasião dos ensaios para o espetáculo de encerramento do ano de 2017 da Escola de Dança Mônica Tenore que fiz alguns apontamentos. É importante dizer que penso sempre nesse processo – da observação lenta e ativa, do ato fotográfico e do pensar sobre aquilo que foi fotografado – como algo que carrega em si as marcas da experiência daquele que a realiza. Portanto, não há, nesse gesto, intenção de escondê-las.
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O plano fechado mostra, detalhadamente, o suor cobrindo quase que completamente a pele da bailarina. Disso escrevi:
Pele que é mapa Porque tua Geografia é o corpo E disso sabem Aqueles que dançam O que me interessa pensar quando digo que pele é mapa e que Geografia é o corpo? A acepção mais óbvia seria aquela ligada a questão da escala, ou seja, aquela que problematiza a ideia do mapa como produto de uma visão privilegiada, portanto, como a linguagem geográfica por excelência, por que, por meio dela, se alcança, de fato, o real. Não pretendo adensar essa discussão. Não é a cartografia minha seara acadêmica. Prefiro fazer referência aos queridos professores Wencesláo Machado de Oliveira Jr, Gisele Girardi e Jörn Seemann. Quero sim, pensar noutra questão. Primeiro: não digo que pele “é” mapa e sim, pele “que é” mapa, portando, pele “tornada” mapa, pele “tida como” mapa. Pele que ocupa as funções de um mapa, pele em devir-mapa. Mas que pele é essa que está aí na imagem? Estou falando de qualquer pele? Não. Estou falando daquela pele. E ela fala de um corpo. O que me leva a perguntar: que corpo é esse? Não é um corpo bem posicionado, eloquente, digamos assim. Não é um corpo límpido, transparente, esterilizado. É um corpo suado, cansado, marcado pela repetição exaustiva de uma sequência de movimentos coreografados.
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Então, é esse corpo que está aí, desse jeito, que é mapa. É um corpo que dança, que é mapa. O que me leva a pensar junto com Deleuze em Crítica e Clínica:
O trajeto se confunde não só com a subjetividade dos que percorrem um meio, mas com a subjetividade do próprio meio, uma vez que este se reflete naqueles que o percorrem. O mapa exprime a identidade entre o percurso e o percorrido. Confunde-se com seu objeto quando o próprio objeto é movimento. (...) Não se trata da busca de uma origem, mas de uma avaliação dos deslocamentos. Cada mapa é uma redistribuição de impasses e aberturas, de limiares e clausuras. (Deleuze, 1997, p. 73-74)
Então, se é com esse sentido de mapa que estou lidando, posso concluir então que o corpo é isso mesmo, um mapa de distribuição de lugares, mas que está, a todo momento, sendo atravessado por subjetividades outras na medida em que vai sendo remapeado. Apesar de não se referir diretamente aos mapas, há nesse mesmo processo, o de “distribuição dos lugares”, um entendimento dado por Rancière que o nomeia como “política da ficção”. Ele explica (Rancière, 2009, P. 17):
•
FICÇÃO: “é, antes de tudo, uma questão de distribuição dos lugares”;
•
POLÍTICA: “ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e
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qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo”
É, portanto, com essa perspectiva, que me coloco para pensar nesse corpo que é mapa, por que é, senão, política da ficção. Isso me permite, de pronto, refletir sobre um conjunto de entendimentos para certo modo de arranjo desse corpo, a saber, aquele "fabricado" pela dança. Fabricação é um termo que Rancière cita para dizer sobre um determinado tipo de regime estético. Mais precisamente, ele fala de uma “fábrica do sensível”, que seria o lugar de produção de novos modos do sentir. A fabricação do corpo pela dança promove, por assim dizer, a possibilidade efetiva de se realizar uma outra cartografia do sensível. Isso porque o gesto do bailarino, como explica José Gil, é oriundo da intimidade que ele define como pauta da relação indiscernível entre habitar o próprio corpo e o espaço que surge com seu próprio movimento. Então, essa cartografia se faz outra exatamente porque ela se faz sempre na repetição do movimento daquele corpo que dança. Então, o corpo que dança gesta no seu próprio interior uma potência de variação que se dá, paradoxalmente, pela repetição incessante dos movimentos que se busca, por exemplo, coreografar e, com isso, ocorre, num certo sentido, a diferença, que seria, no limite, o gesto de autonomia desse mesmo corpo. Dito de outra forma, é como o verso de Manoel de Barros: “repetir, repetir, até ficar diferente”. Então, por que paradoxo? Porque é aquilo que indica quando algo é e não é ao mesmo tempo. Ou ainda, que indica os muitos “és” de algo:
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Um corpo que se abra e se fecha, que se conecta sem cessar com outros corpos e outros elementos, um corpo que pode ser desertado, esvaziado, roubado da sua alma e pode ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida. Um corpo humano porque pode devir animal, devir mineral, vegetal, devir atmosfera, buraco, oceano, devir puro movimento. Em suma, um corpo paradoxal (Gil, 2001, p. 68)
Paradoxal porque dançar não é conjugação, normativo, mas gagueira, para citar Deleuze. Ao se referir as palavras e a língua, me ponho a pensar o corpo que dança, por que ele é exatamente da ordem do dizer-fazer:
Quando dizer é fazer... É o que acontece quando a gagueira já não incide sobre palavras preexistentes, mas ela própria introduz as palavras que ela afeta; estas já não existem separadas da gagueira que as seleciona e as liga por conta própria. Não é mais o personagem que é gago de fala, é o escritor que se torna gago da língua: ele faz gaguejar a língua enquanto tal. Uma língua afetiva, intensiva, e não mais uma afecção daquele que fala (Deleuze, 1997, p. 122).
Por isso me chama tanta atenção o gesto. Porque ele é detalhe. Ele é, de algum modo, o traço mais autoral que consigo identificar. Então, é no pormenor do movimento que, no meu entendimento, ocorre a diferenciação daquilo que José Gil vai considerar como a diferença entre executar passos e, efetivamente, dançar. E foi assim que pude compreender quando o coreógrafo Maurice Béjart afirma que “Vocês viram Cescaya fazendo um arabesque, vocês viram
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Susanne Farrell fazendo um arabesque, vocês viram Barychnikov fazendo um arabesque. Mas um arabesque, não” (In: Gadelha, 2010). Pensar nisso me fez observar algumas das fotografias que ficam dispostas nas paredes da sala de aula. Elas, de certo modo, dizem desse momento em que o corpo que está sendo fabricado vislumbra um horizonte possível para o seu acontecer:
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Corpo como paisagem, mas não qualquer paisagem. É
horizonte possível Porque dançar não é verbo, é poesia. É, por assim dizer, “descomeço”, “o delírio do verbo”:
No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, Ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos — O verbo tem que pegar delírio. (Manoel de Barros)
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É horizonte possível, Porque dançar é rima inacabada, grafia do poeta. Disso escrevi:
O poeta sabe bem Colocar as palavras em desarranjo Cada coisa fora do lugar Simetria descompassada Que chega a desenhar horizontes calmos Na mais inquieta das gramáticas E que não me venha o verbo Querer cantar de galo Onde a prosa preguiçosa das reticências Faz acento e só Porque Consoante é o verso Não pela harmonia mentirosa Nem pela aridez de sua mordedura (!) Conta aquela vírgula-rateira Mas talvez Pela medida mesma De sua Inacabada rima
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Paisagem que revela, pelo gesto, um estado de alma
Faz do teu gesto uma paixão Porque Ês o corpo como estado de alma E tua dança Uma paisagem a ser contemplada
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Este é um exercício de posse e de abandono, não do texto em si, a exemplo daquele mesmo feito por Agamben acerca do termo “dispositivo” e sua acepção nietzschiana, mas de um certo sentido atribuído hegemonicamente à paisagem. Nas palavras de Agamben:
Quando interpretamos e desenvolvemos neste sentido o texto de um autor, chega o momento em que começamos a nos dar conta de não poder ir adiante sem transgredir as regras mais elementares da hermenêutica. Isto significa que o desenvolvimento do texto em questão alcançou um ponto de indecidibilidade no qual se torna impossível distinguir entre o autor e o interprete. Embora este seja para o interprete um momento particularmente feliz, ele sabe que é o momento de abandonar o texto que está analisando e de proceder por conta própria (Agamben, 2005, p. 13).
Na fotografia e no poema em questão, contempla-se o gesto, o pequeno gesto, nem tanto aquele do grande horizonte, identificação mais clichê do que seria paisagem. Portanto, sugere-se também outro sentido para o contemplar. Não mais como uma mirada passiva, aquela que garante acesso direto ao divino ou ao encontro consigo mesmo. Não é um contemplar para religar. Contempla-se, sim, um corpo como paixão, como estado de afecções, para citar Deleuze (2002), que se revela, sobretudo num corpo virado de costas e que dança, portanto, um corpo como vestígio. É uma contemplação ativa, portanto, como potência.
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“Conhecemos um corpo pela sombra que fazem sobre nós, e é por nossa sombra que nos conhecemos, a nós mesmos e a nosso corpo.” (Gilles Deleuze, Crítica e Clínica)
E ainda há muito o que se pode ser dito sobre esse corpo que dança, menos, a direção do seu movimento, portanto, sobre aquilo que captura sua mirada como código usualmente revelador de seu estado de alma. E é exatamente isso que me interessa nessa fotografia: a paisagem é um corpo que dança virado de costas. Isso me faz pensar na desorganização desse corpo acostumado a dizer sempre o mesmo, com o mesmo. Por isso, no limite, até posso afirmar que ainda há um rosto que diz, mas ele é a mão. Essa mesma, disposta num fragmento de tempo-espaço que é o da hesitação e, paradoxalmente, da excitação. Corpo metamorfoseado. Por isso, brinco:
Faz do teu gesto uma paisagem Porque és o corpo como uma paixão E tua alma Um estado de dança a ser contemplado
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Corpo de palavras que é, também, corpo como pensamento. Corpo como paisagem que é, senão, um constante afetar e ser afetado. Paisagem, portanto, que não quer mais ser “apenas o que é possível abarcar com a visão”20. É, pois, em face dessas questões que me pus a pensar esse “apenas que é possível abarcar com a visão”: como pensar a ideia de um sujeito que olha e de
um objeto que é olhado quando consideramos, por exemplo, a sonoridade como elemento constituinte da nossa percepção e experiência? E quando consideramos o deficiente visual, ele não teria direito à “paisagem”? Somente esses dois aspectos já tensionam o conceito como algo que é resultado de uma passividade, de uma contemplação, de um olhar que recebe uma exterioridade pronta. Milton Santos parecia estar lidando com uma concepção do olho como simples aparelho receptor, a exemplo do que explica Miranda:
Aprendemos (e, portanto, fomos educados) a pensar o olho como um órgão, como um aparelho. Tal percepção do olho legitima os aparelhos tecnológicos como extensão, aprimoramento, correção e ampliação do nosso sistema visual. Talvez, ao contrário do que fizemos inicialmente neste artigo, a forma como pensamos o olho (que, volto a dizer, nos é educada) não pode estar separada da forma como pensamos o olhar, pois a compreensão do corpo e de seus “movimentos” permite-nos compreender a alma e de seus movimentos, conforme nos ensinou Descartes. (Miranda, 2001, p. 30)
20
Explicada como “Sistema material, relativamente imutável”, como um “Conjunto de objetos materiais concretos”, “Conjunto de formas”, “distribuição de formas-objetos”, “história congelada”, “testemunha”, “a-dialético” e talvez, a mais conhecida das acepções, como “apenas o que é possível abarcar com a visão”. Esses são termos do ilustre e renomado geógrafo Milton Santos e estão no livro, A Natureza do Espaço (2004).
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Há uma questão fundamental que tem sido discutida, inclusive é essa mesma questão que nos faz considerar os dois aspectos citados anteriormente como sendo paisagens possíveis. Estou me referindo à própria ideia de visão. Diria ainda, do real como resultado da visão ou, dito de outro modo, o processo de “produção industrial das imagens”, que, em grande medida, tem sido o principal responsável pela intensa:
desvalorização dos sentidos na produção de conhecimento e re-valoriza o pensamento “cartesiano”, educando o olho a ver o homem e o mundo conforme as possibilidades e os limites destas formas de representação da realidade (Miranda, 2001, p. 28)
Gilles Deleuze, em suas reflexões sobre a pintura de Francis Bacon colocados no livro subtitulado lógica da sensação, encampa o projeto de escape/combate ao representacional. Ainda que inicialmente o autor coloque a paisagem como “correlata da figura” (Deleuze, 2007, p. 14), na sequência, ele nos permite pensar a constituição da paisagem como algo para além desse figural/representacional. Poderíamos dizer, inicialmente, de uma paisagem como linguagem. Isso posto nos termos do próprio Deleuze quando argumenta sobre “o que torna a linguagem possível”. Para o autor, linguagem é liberdade em exercício, liberdade da função expressiva dos corpos (Deleuze, 2011). Isso configura, portanto, uma paisagem desapegada do olhar normativo e identificador, produtor de consensos visuais, de passagens guiadas por um ir-e-vir experiencial único.
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Isso é, sem dúvida, o que tem me suscitado pensar o conceito e querer falar de outras paisagens. Elas me parecem um pouco mais interessantes quando pensadas como uma “experimentação”. Deleuze e Guattari (2002) propõem um “princípio das entradas múltiplas” – rizoma – ao se referirem a obra kafkaniana. Essa seria uma forma, segundo eles, de impedir a entrada do “inimigo” que, nas suas palavras, seria o “Significante”. Dito de outro modo, é a própria armadilha do representacional como constituinte de uma imaginação única: a de que existe uma interpretação correta a ser feita. Os autores afirmam: “Só acreditamos numa experimentação de Kafka, sem interpretação nem significância, mas apenas protocolos de experiência” (Deleuze; Guattari, 2002, p. 26). Também proponho uma experimentação, que passa, primeiramente, pela compreensão da paisagem como uma grafia do “estado de alma” (Pessoa, 2002, 2006; Tuan, 2005), ou nos termos deleuze-guattarianos, paisagem como “pura matéria sonora”, “corpo saturante”, “esboroamento da máquina”, enfim, como “desejo” (Deleuze; Guattari, 2002). O sentido da experimentação que proponho diz respeito ao contexto atual da produção das imagens e o modo como a paisagem-como-resultadodo-olhar se dá. Deleuze e Guattari (2002) falam que “o desejo não é forma, mas procedimento, processo” (p. 27). Talvez seja importante reconhecer o quão desafiador que é essa busca, principalmente, se pensarmos no contexto em que:
As paisagens tornaram-se um produto como qualquer outro e se empilham umas sobre as outras nos catálogos ou nos painéis das agências turísticas (...) A ideia da viagem está, ela mesma, arruinada, mas essa ruina, longe de evocar um tempo qualquer ‘puro’, nos reenvia à nossa história
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contemporânea, que não acredita mais no tempo. (nos tornamos consumidores de lugares e paisagens) Hoje não pode mais haver ruínas e nada do que morre deixará rastros, mas registros, imagens ou imitações (Augé, 2010, p. 70-71)
Amparado por Augé, pensei em algumas questões norteadoras:
• É possível pensar a paisagem para além do representacional? • É possível pensar numa experiência sensível com os lugares para
além do consumo? • É possível pensar numa paisagem para além do olhar capturado,
do pensamento repetido, do automatismo, do consumo bulímico dos lugares e uma sincronia dos corpos? Em 2010 abordei esse tema ao propor a ideia de que o turismo realiza uma "edição dos lugares", que consiste na produção de uma "memória" que é dada, em grande medida, pelas imagens (fotografias) que produzimos. Esse processo implica, dentre outras coisas, numa relação de empobrecimento da experiência:
As fotos que tiramos quando em viagem, servirão de comprovação de que realmente estivemos no lugar, justamente porque escolheremos tirar fotos de tudo aquilo que já nos foi mostrado antes por outras imagens, tornando quase impossível, realizar qualquer outro movimento visual e corpóreo diferente
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daquele já consolidado nos sites e encartes (Queiroz Filho, 2010, p. 37).
Não é por mero acaso que todos querem tirar "a mesma foto". O mosaico a seguir traz quatro imagens que configuram claramente as questões acima. Nas duas imagens de cima, observamos os turistas atestando sua viagem a partir da fotografia. Na imagem do canto inferior esquerdo, o indicativo de onde se deve fotografar. Por fim, a imagem de uma intervenção artística que critica essa postura diante dos lugares: a da experiência repetida. Essas são algumas questões inerentes ao contexto contemporâneo da cultura visual na qual estamos inseridos. Há uma outra, que eu poderia dizer que é uma consequência dessa primeira, que diz respeito ao mosaico que irei mostrar a seguir:
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Propositalmente, não identifiquei a figura, pois gostaria que o leitor tentasse imaginar de que lugar seriam as imagens do mosaico. A questão aqui não é a de adivinhar a “localização geográfica”, mas identificar/perceber a manutenção de um dado ponto de vista e uma dada estética que, por sua vez, partilham uma política e ética do ver (Sontag, 2004):
Embora o estacionamento seja tão grande quanto o parque e os ursos estejam fuçando entre embalagens do Mc Donald’s, ainda imaginamos Yosemite como Albert Bierstadt o pintou ou Carleton Watkins e Ansel Adams o fotografaram: sem
nenhum vestígio da presença humana (Schama, 1996, p. 17 – grifos meus).
Constatações de Simon Schama em Paisagem e Memória. Até aqui, já é possível notar o tamanho do desafio. Mas se pesquisarmos por quais imagens estão associadas ao termo “paisagem”, qual seria o resultado dessa busca? Vejamos:
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Dito de outro modo, esse é o resultado do processo de educação visual – cultural, estética e política que o mundo contemporâneo tem produzido. O que podemos constatar é o quanto nós aprendemos a “gramática visual” que nos tem sido ensinado. No livro “sobre fotografia”, de Susan Sontag, há um capitulo chamado “o mundo-imagem” onde a autora afirma que: as fotos fazem mais do que redefinir a natureza da experiência comum (gente, coisas, fatos, tudo o que vemos)... A realidade, como tal, é redefinida – como uma peça para exposição. (Sontag, 2004, p. 172-173) Confesso que esse contexto, exemplificado pelos mosaicos anteriormente apresentados, me causa certa angústia. A mesma sentida pelo próprio Simon Schama (1996) quando ele constata:
Seria difícil para mim, no entanto, partilhar a ominosa visão de que Marlow tinha do antigo Tâmisa, com procônsules de toga tremendo na terrível umidade, no próprio fim do mundo: ‘um dos lugares escuros da terra’. Eu estava por demais ocupado olhando os navios, que partiam resolutamente para o mar, para todos aqueles lugares que apareciam em corde-rosa no mapa pendurado na parede de nossa escola
(Schama, 1996, p. 15 – grifos meus).
Retornando com Sontag e dialogando com Schama, eu proponho uma brincadeira de troca de palavras. Sontag (2004) diz assim: “a única pergunta é se a função do mundo-imagem criado por câmeras poderia ser diferente do que é” (p. 194). Trocando por “paisagem”, ficaria:
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“a única pergunta é se a função da paisagem poderia ser diferente do que é” A substituição implica numa questão para pensarmos juntos: e se nós mudássemos o entendimento da ideia de paisagem, nós conseguiríamos mudar o mundo-imagem criado pela câmera? Duas pistas conceituais...
•
Eric Dardel em O Homem e a Terra:
Para o autor, a paisagem é “ponte”, é conexão, é conjunto, convergência, impressão, união de elementos, é momento vivido, é escape, movimento, impulso. É uma inscrição da própria concepção do homem: “a paisagem não é um círculo fechado, mas um desdobramento. Ela não é verdadeiramente geográfica a não ser pelo fundo, real ou imaginário, que o espaço abre além do olhar” (Dardel, 2011, p. 31). E finaliza nos apontando um entendimento sobre o que seria a realidade geográfica:
A realidade geográfica é para o homem o lugar onde ele está... mas essa realidade não toma forma senão em uma irrealidade que a ultrapassa e a simboliza. Sua ‘objetividade’ se estabelece em uma subjetividade, que não é pura fantasia. Que a denominemos sonho ou devoção, um elemento que impulsiona a realidade concreta do ambiente para além dele mesmo, para além do real, e, então, o saber se resigna sem culpa a um ‘não saber’, a um mistério. (p. 34)
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•
Jean-Marc Besse em Ver a Terra:
Que sistematiza reflexões realizadas por diversos autores, tais como Goethe, Petrarca, Humboldt, Vidal de La Blache, etc. Todos, a seu modo, compartilham de uma questão só: “Não são esses autores que colocam questões à paisagem, ao contrário, eles próprios são interrogados, postos em movimento, afetados pela paisagem” (Besse, 2006, p. VII). O que poderíamos
concluir é que, para esse autor, paisagem é experiência sensível e que suscita a grande questão resumida por Besse: “como é possível habitar o espaço”? (p. IX). A paisagem que me interessa é, portanto, uma identidade visual que nos dar a ver um algo, o que irei chamar aqui de um estado da alma, e como tal, impossível de ser traduzido, senão, na sua tensão, no limite entre o ser e o não ser. Paisagem que nos interessa é, portanto, um devir imaginativo, uma política visual, uma memória pretendida, uma “realidade” desejada. Sobre esse aspecto, trouxe dois autores que me dão palavras. O primeiro é o poeta Fernando Pessoa que na nota preliminar de O Cancioneiro diz o seguinte (grifos meus):
1 - Em todo o momento de atividade mental acontece em nós um duplo fenômeno de percepção: ao mesmo tempo que tempos consciência dum estado de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepção.
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2 - Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem.
Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. E - mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem - pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode
representar por uma paisagem. Se eu disser "Há sol nos meus pensamentos", ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes.
3 - Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, temos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetramse, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo - num dia de sol uma alma triste não pode estar
tão triste como num dia de chuva - e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma - é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que "na ausência da amada o sol não brilha", e outras coisas assim. De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior. Resulta que terá de tentar dar uma intersecção de duas paisagens. Tem de ser duas paisagens, mas pode ser - não se querendo admitir que um estado de alma é uma paisagem - que se queira simplesmente interseccionar um estado
de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem exterior. [...]
A floresta do Inferno de Dante Alighieri (1998) não era apenas um ambiente exterior, mas sua própria condição como ser. Como uma alegoria de um dado estado de alma, atravessar a floresta significava uma travessia de si mesmo (Queiroz Filho, 2009).
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Há outras obras, principalmente filmes, que realizam esse mesmo movimento. Em “A Vila” (2004), quando a personagem Ivy atravessa a floresta para salvar seu amor e, consequentemente, a condição de manutenção de um dado modo de vida (Queiroz Filho, 2011). Em “Apocalipse Now” (1979), em que a subida pelo Rio e o adentrar na floresta era também um mergulho no próprio ser. É o que nos aponta Oliveira Jr. Quando diz que:
O mergulho que fazemos no filme é total. Tempoespaço-homem. Tudo que é material se desmaterializa, se assim o quisermos. O rio pode ser estrada, a guerra pode ser angústia, a floresta pode ser treva... e podem ser também, e ao mesmo tempo, tão somente um rio, uma guerra, uma floresta... (Oliveira Jr., 2002, p. 04)
Podemos perceber que é até mais comum do que imaginamos o cinema utilizar lugares e paisagens inventadas e converter isso numa alegoria de nossas travessias e transformações. Mas esse modo de “entrada” no filme é potencializado quando compreendemos a paisagem, por exemplo, como aponta Yi-Fu Tuan, no seu livro sobre “Paisagens do Medo”. Categoricamente, ele afirma: “Paisagem é uma construção da mente, assim como uma entidade física mensurável. Diz respeito tanto aos estados psicológicos como ao meio ambiente real” (Tuan, 2005, p. 12). E é sobre essa diluição das oposições binárias que a paisagem como estado de alma tensiona. Talvez a Geografia, ao se olhar refletida, tal como Narciso (de Caravaggio), reconheça a potência da sensibilidade como “potência de criação” e se “libere” do seu sentido “reativo”.
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Sobre essa “potência de liberação”, trago os apontamentos feitos pelo filósofo Luiz Fuganti, da Escola Nômade de Filosofia:
“Então, a questão essencial para nossa época é encontrar exatamente esse foco aonde a gente se desfoca. E talvez isso seja encontrado no uso que a gente faz da linguagem e o uso que a gente faz da sensibilidade. Linguagem e sensibilidade são, digamos, fonte de fixação ou fonte de liberação. Elas não são, nem boas, nem más. Elas podem ser usadas num sentido ou noutro. Num sentido reativo ou num sentido ativo. Então, o essencial seria encontrar as razões pelas quais o homem investe no sentido reativo, que o separa da própria natureza e, além dessa captura, reencontrar a motivação essencial que o libera do medo das suas próprias forças e o liga novamente ao que ele pode”21
21
In: https://www.youtube.com/watch?v=_yjnGDIqcyY
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CORPO que sente,
- Então é isso que estou tentando compartilhar com vocês: o meu lugar de atuação, que é no plano do pensamento e da linguagem, que é onde tenho encontrado esperanças de, efetivamente, produzir, promover, agenciamentos criativos e emancipatórios.
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Tenho me preocupado, cada vez mais, com aquilo que pode se chamar de teoria do sentido. Em especial, nas premissas de que:
•
Modos de sentir são modos de saber;
•
Modos de saber são modos de dizer.
Dito de outro modo, tenho compreendido o dar sentido como algo que passa necessariamente por um fazer sentir. É no campo da sensibilidade e da poética que tenho encontrado abrigo conceitual e imaginativo para a dimensão espacial de nossas grafias de mundo contemporâneas. Esse é, portanto, o cenário que tem me capturado. Como em um filme, atuam nessa cena “atores” como Jacques Rancière e Gilles Deleuze. O primeiro, por lidar com estética e política como algo indissociável, e o segundo, essencialmente, por discutir a linguagem e o pensamento como potência criativa. Rancière está preocupado em tratar dos atos estéticos não como uma configuração do sublime ou do belo, à lá Kant. Ele preocupa-se sim, com os “efeitos sobre a sensibilidade” (o que estou chamando de “modos de sentir”). Em suas palavras, estética é: “um modo de articulação entre maneiras de fazer, formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos de pensabilidade de suas relações, implicando uma determinada ideia da efetividade do pensamento” (Rancière, 2009, p. 13), ou seja, modos de sentir, modos de saber. Há uma particularidade dita em Rancière e que me interessa em especial. Diz respeito às “formas de visibilidade” e aqui a ressalva importante a ser feita refere-se a uma armadilha muito comum de acontecer. Explico: em 2007, quando ainda estava no doutorado, escrevi um texto chamado
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“Saboreando o Espaço, Inventando Paisagens”. Na ocasião, propus-me a pensar duas questões:
1) o conhecimento de mundo como resultado de uma experiência de corpo inteiro;
2) e as imagens como um modo de olhar e sentir. O saborear, naquela ocasião, era um modo que eu havia encontrado para fazer uma provocação ao paradigma representacional, que, resumidamente:
•
toma a visualidade como o próprio real;
•
e toma o olhar como forma privilegiada de produzir esse real.
Retornando então: qual seria a armadilha que mencionei a pouco? A de se entender “as formas de visibilidade” apenas como uma expressão ou a forma visual do ato comunicativo. Sendo assim, colocando-nos diante da crítica ao representacional, estaríamos por dar à imagem um sentido contrário. Ela perderia a sua condição de mimese e passaria a ser atributo de uma espécie de subjetivismo espontâneo e absoluto, que seria também, quase como uma oposição à crítica feita pelo pós-estruturalismo à noção de metanarrativa ou narrativa única. Rancière então chama nossa atenção para o cuidado que temos que ter com isso quando ele não separa o modo de sentir do modo de saber. Ou seja, a questão não é apenas de comunicação ou de expressão da imagem (ou dos atos estéticos como ele mesmo se refere), mas daquilo que esses atos
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estéticos configuram, agenciam. Por isso falo de “estética-política” como uma coisa só, ou, como Rancière denomina, uma “partilha do sensível”. E aqui eu gostaria de fazer uma ressalva e uma aproximação. A ressalva é quando Rancière vai explicar sobre a partilha do sensível e fala de formas, a priori, que determinam o que se dá a sentir. Eu, particularmente, incomodo-me com essa ideia do a priori, porque isso implica em aceitar que existe uma essência ou uma verdade única e possível de ser alcançada. Então eu prefiro pensar na ideia de agenciamento deleuziana, a qual eu falarei mais adiante, que seria algo mais próximo da ideia de uma memória pretendida, de uma memória desejada. Há também reflexões extremamente importantes nessa ideia da memória pretendida dada, por exemplo, pela educação visual da memória. No livro “Paisagem e Memória”, do Simon Schama, é interessante pensar sobre sua angústia quando ele fala que não consegue ver o Tâmisa da literatura e só consegue ver o Tâmisa da cartografia que ele aprendeu na escola. Então, sem ressalvas, volto com Rancière, quando ele diz que a estética é um sistema de formas – tiramos o a priori – que determina o que se dá a sentir, que é:
•
Um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra
•
e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo
napolítica como forma de experiência. A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer (RACIÈRE, 2009, p. 17 – grifos meus).
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Então, agora já não estamos mais falando apenas de – modo de sentir, modo de saber – mas também, de modos de saber e modos de dizer. E é aí que chego na aproximação – uma aproximação conceitual - que fui instigado a fazer, que seria:
- a de pensar a política como a produção de uma memória pretendida, e que hoje é dada, especialmente, pelas formas de visualidade. E a isso eu estou chamando de política das imagens.
Para compreender melhor essa questão, vamos ver o que o filósofo italiano Giorgio Agamben fala sobre a “ideia da política”: ele nos explica que “segundo a teologia, o castigo em que pode incorrer uma criatura, aquele contra o qual não há mesmo mais nada a fazer, não é a cólera de Deus, mas o seu esquecimento” (2012, p. 68). Agamben nos propõe a pensar na seguinte questão: “como será possível pensar aquilo de que a própria onisciência divina já não sabe nada, aquilo que foi apagado para todo o sempre da memória de Deus?” (2012, p. 68), ou seja, “nem absolvido, nem condenado, note-se, mas perdido” (2012, p. 68). Logo, a partir dessa questão sobre o esquecimento, o exercício que proponho aqui para a aproximação conceitual que estou tentando fazer, é o mesmo que fiz na ressalva, ou seja, a retirada de um termo para deslocar o sentido daquele pensamento para outro lugar. Então ficaria assim:
- o que significa pensar a estética como uma política do esquecimento? Digo, a memória como uma edição, uma seleção intencional do que deve ser lembrado...
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É, nesse sentido, que podemos pensar a estética como uma memória, pois estamos lidando com a política como uma partilha do sensível, ou seja, como uma produção política do esquecimento, que passa, necessariamente, pelos modos de: dizer, sentir e fazer. O que me acalenta é que não estou sozinho nessa empreitada. Em 2010 escrevi um texto chamado “A Edição dos Lugares”, em que buscava discutir o rebatimento das imagens de um dado lugar turístico na experiência e, para isso, lancei mão da fotografia como ato estético e político que configura essa tal “edição”, isto é, pela fotografia, ocorre a seleção daquilo que Berdoulay (2009) chama de memória dos lugares e lugares da memória22, que resulta em um processo que ele denomina de “redução narrativa”. Além de Berdoulay e do já citado Simon Schama, cito também Susan Sontag (2004) com seus estudos sobre o ato fotográfico. É extremamente importante o deslocamento que ela nos convoca a fazer quando diz que,
Ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e ampliam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar. Constituem uma gramática e, mais importante ainda, uma ética do ver (Sontag, 2004, p.13).
E sobre isso, Rancière é muito claro quando analisa a escrita, o teatro, a pintura e até mesmo a oratória como “éticas do ver”, como formas de promover a “boa forma”, “a maneira correta” do que seria o bom orador, o bom escritor, o bom pintor, o bom ator, a boa escrita, a boa cena e nos termos do paradigma representacional, a boa mimese. 22
Sobre a problemática “memória e lugar”, ver mais em Nora (1993) e Le Goff (2003).
122
Rancière está lidando com a política como sendo um modo de subjetivação instituído e legitimado e que coreografa uma experiência normativa comum, espécie de princípio mimético-representativo que ele faz questão de diferenciar do regime “estético”. Assim, para ele, há esses dois regimes: o estético e o representativo. Enquanto o representativo lida com a mimese, o estético dá-se no plano de um “modo de ser sensível” que é, sobretudo, “estranho a si mesmo”. Rancière explica que:
Esse
sensível,
subtraído
de
suas
conexões
ordinárias, é habitado por uma potência heterogênea, a potência de um pensamento que se tornou ele próprio estranho a si mesmo: produto idêntico ao não-produto, saber transformado em não-saber, logos idêntico a um pathos, intenção do inintencional, etc. (Rancière, 2009, p. 32).
O cuidado que temos que ter aqui é de não tomar esse estranhamento como um opositor ao já estabelecido, já que Rancière fala, a todo o momento, da “coisa” e sua correspondente “não-coisa”. E atento a isso, remeto imediatamente às reflexões levantadas por Deleuze e Guattari no livro Kafka: para uma literatura menor. Foi com esse texto que compreendi melhor a questão do escritor, a questão do fazedor de dizeres, que de certa forma, é o que todos nós, de um modo ou de outro, somos: fazedores de dizeres. Compreendi também o modo de sentir e o modo de fazer como fuga e devir:
123
•
“fuga na intensidade”;
•
e devir como “captura, posse, mais-valia; nunca é reprodução ou
imitação”. (Deleuze e Guattari, 2002)
Dessa forma, o fazedor de dizeres é “um homem ser experimental” que promove “fluxos de desterritorialização”, “linhas de fuga”, as quais nos permitem escapar da submissão. E há muitas formas de submissão. Há muitas formas de captura. É, por demais sedutor, o valor mercantil da alienação. Basta lembrar da cena em que o Agente Smith oferece um jantar para o Cypher, no filme Matrix (1999). Ele, ao saborear um suculento bife, profere as seguintes palavras: “a ignorância é maravilhosa!”. Contudo a submissão que me interessa discutir aqui se refere ao esquecimento, que falei a pouco (que é resultado da edição, da seleção intencional). Dito em outras palavras, a submissão seria aceitar com naturalidade a constituição de uma Geografia Maior (estabelecida, normatizada, outorgada e que é também, normatizadora, outorgante). Uma Geografia Maior fazedora de sentidos que passam a ser reconhecidos como a “boa Geografia” ou, pior, como “A” Geografia. Então, ao pensar nessas questões, penso também nos modos de escapar dessa Geografia Maior, ou melhor dizendo, de sua captura. Voltemos assim em Deleuze e Guattari quando eles vão definir o que seria uma “Literatura Menor” e pensemos a Geografia nesses mesmos termos. Para os autores, uma literatura (e aqui vamos rasurar e colocar: geografia) menor é entendida da seguinte forma:
124
•
é afetada por um forte coeficiente de desterritorialização;
•
nelas tudo é político;
•
não há sujeito, só há agenciamentos coletivos de enunciação.
É, portanto, nesses campos – dos agenciamentos desterritorializantes em face das experimentações no/do sensível – que tenho tentado atuar. Experimentar o sentido, experimentar a linguagem. Desobedecer o sentido, “desobedecer a linguagem” (Skliar, 2014). É importante dizer que há também muitas formas de desobediência ao normativo. Deleuze fala do Devir-Louco. Eu, particularmente, prefiro o devir-poeta em devir-criança. Para mim, é no devir-criança que me encontro. É por meio dele que tomo a gramática – marcador de poder – como meu brinquedo. Manoel de Barros diz no seu livro, “Exercícios de ser criança” assim:
125
No aeroporto o menino perguntou: - E se o avião tropicar num passarinho? O pai ficou torto e não respondeu. O menino perguntou de novo: - E se o avião tropicar num passarinho triste? A mãe teve ternuras e pensou: Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia? Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia do que o bom senso? Ao sair do sufoco o pai refletiu: Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças. E ficou sendo. Manoel de Barros, Exercícios de Ser Criança (in: Poesia Completa, 2013, p. 453)
126
Logo, eu poderia dizer que a peraltice em face do sentido bem comportado tem me mobilizado mais. Ele me possibilita: “Escapar do mito informativo para avaliar o sistema hierárquico e imperativo da linguagem como transmissão de ordens, exercício do poder ou resistência a esse exercício” (Deleuze; Guattari, 2002, p. 50), implica em tornar a palavra alimento dela mesma, fazendo-a, assim, habitar outros sensíveis e, portanto, possibilitar o que Deleuze, a exemplo de Manoel, também chama de “absurdo” (Deleuze, 2011, p. 15), que não é nem verdadeiro, nem falso, nem causa e efeito, mas é o puro devir e o paradoxo:
1. o puro devir produz um certo tipo de sentido, que seria o,
“neutro”, indiferente por completo tanto ao particular como ao geral, ao singular como ao universal, ao pessoal e ao impessoal. Ele seria de uma outra natureza (Deleuze, 2011, p. 20 – Grifos Meus).
Essa outra natureza, tem sido para mim, a aposta que tenho feito nos modos de saborear a linguagem a partir dos encontros, agenciamentos dados no plano do devir-menor de que falam Deleuze e Guattari, que não se configura como uma abstração, um bloco coerente e sólido, mas que são, segundo eles, um modo que se constitui em:
a) Servir-se do polilinguismo na sua própria língua, fazer desta um uso menor ou intensivo, opor a característica oprimida desta língua à sua característica opressora, encontrar pontos de nãocultura e de subdesenvolvimento, zonas linguísticas de terceiro mundo por onde uma língua escapa, por onde um animal se enxerta, ou um agenciamento se conecta (...) Ter o sonho
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contrário: saber criar um devir-menor (Deleuze; Guattari, 2002, p. 56)
b) Eles explicam que:
A Literatura menor ou revolucionária começa por enunciar, não vê, e só concebe depois (“As palavras não a vejo, invento-a”). A expressão tem de quebrar as formas, tem de marcar as rupturas e as novas derivações. Uma forma quebrada tem de reconstruir o conteúdo que estará necessariamente em ruptura (Deleuze e Guattari, 2002, p. 57)
2. o paradoxo
– que é a afirmação de dois sentidos ao mesmo tempo, o jogo duplo
– que é a asfixia do limite, da sobre codificação e do próprio marcador de poder.
E a aposta no paradoxo como potência ocorre porque ele, como explica Deleuze, “é, em primeiro lugar, o que destrói o bom senso como sentido único, e, em seguida, o que destrói o senso comum como designação de identidades fixas” (2011, p. 03). É ele – o paradoxo – que nos retira da ilusão da profundidade e nos coloca diante da “exibição dos acontecimentos na superfície”, que é o “desdobramento da linguagem” (p. 09):
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O acontecimento é coextensivo ao devir e o devir, por sua vez, é coextensivo à linguagem; (...) Tudo se passa na fronteira entre as coisas e as proposições (...) o mais profundo é o imediato; por outro, o imediato está na linguagem (Deleuze, 2011, p. 09)
Estou entendendo esse “profundo” como essência, ou se preferirem, o dueto essência-aparência. Portanto, o que Deleuze está nos apontando é que não existe essência, apenas “superfície”, que para ele, seria a linguagem. Ele explica que “não há causas e efeitos entre os corpos: todos os corpos são causas, uns com relação aos outros, uns para os outros (2011, p. 05). Sem entrar no mérito da questão, que é por demais densa, e nem tenho essa pretensão, o que me interessa, nesse sentido, é lidar com essa instância dos efeitos dos corpos que, segundo Deleuze, “não são coisas ou estados de coisas, mas acontecimentos (...) não são agentes nem pacientes, mas resultados de ações e paixões” (2011, p. 05-06)
Paixões... Eu queria me demorar um pouco mais nesse termo, porque, quando Deleuze diz “com os adjetivos podemos fazer o que quiser, mas não com os verbos” (p. 26) e, ao mesmo tempo quando ele diz que “o atributo”, ou seja, o “resultado”, a expressão do verbo, nos dá a ver, não um ser, mas uma “maneira de ser”, então me vem a seguinte questão: o que significaria mudar a “maneira de ser” se mudássemos exatamente aquilo que opera, segundo Deleuze, como limite, ou seja, aquilo que não pode ser mudado? O que significaria, nesse
129
sentido, desobedecer a linguagem, desobedecer a gramática? E se mudássemos o verbo16? O fato é que eu jamais conseguiria pensar nessa questão se não fosse pela poesia de Manoel de Barros: Interessa ao poeta atuar nas “Nódoas de imagem”... Interessa a ele fazer “festejos de linguagem” (p. 183). Manoel acredita que “o poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina” (p. 235); e categoricamente, Manoel é um sujeito que “não gosta de palavra acostumada” (p. 323). Enfim, Manoel nos ensina um pensar, um fazer e um sentir bem assim:
O sentido normal das palavras não faz bem aos poemas Há que se dar um gosto incasto aos termos Haver com eles um relacionamento voluptuoso Talvez corrompê-los até quimera Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los Não existir mais rei nem regências Uma certa liberdade com a luxúria convém (p. 243)
***
Para voltar à infância, os poetas precisariam também Reaprender a errar a língua (p. 243)
16
Ver p. 187 e 188 (Deleuze, 2011)
130
O delírio do verbo está no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som Então a criança muda a função de um verbo, ele delira E pois Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos O verbo tem que pegar delírio (p. 276-277)
Então é isso que estou tentando compartilhar com vocês: o meu lugar de atuação, que é no plano do pensamento e da linguagem, que é onde tenho encontrado esperanças de, efetivamente, produzir, promover, agenciamentos criativos e emancipatórios17. Nesse sentido, quando Deleuze diz que “É próprio da linguagem, simultaneamente, estabelecer limites e ultrapassar os limites estabelecidos” (Deleuze, 2011, p. 09), talvez fique mais fácil compreender Manoel de Barros quando ele fala que prefere viajar mais pelas palavras que de trem (Barros, 2013, p. 332) e talvez, por isso, Deleuze, em Devir-Manoel, tenha falado de um “comer as palavras”, uma “comestibilidade das coisas” (p. 2627) como um desafio à linguagem, ao corpo-linguagem não como dualidade, mas como fronteira, como articulação da diferença, dos sentidos, e, principalmente, das paixões e do desejo.
17
“A emancipação, por sua vez, começa quando se questiona a oposição entre olhar e agir, quando se compreende que as evidências que assim estruturam as relações do dizer, do ver e do fazer pertencem à estrutura da dominação e da sujeição. Começa quando se compreende que olhar é também uma ação que confirma ou transforma essa distribuição das posições” (Rancière, 2014, p. 17).
131
- Modos de encontrar, modos de buscar
Começo esse meu segundo movimento explicando o sentido de desejo com o qual estou lidando. De modo geral, seria aquilo que opera:
1) a possibilidade do encontro;
2) a possibilidade como encontro.
Notem a sutileza na mudança dos termos. Encontro como processo e o processo como método. Por isso faz todo sentido o alerta de Deleuze e Guattari quando chamam atenção para o fato de que “O desejo não é forma, mas procedimento, processo” (Deleuze; Guattari, 2002, p. 27). Sobre essa questão lembro da cena do filme “Dirigido por Tarkovski” em que o, cineasta russo, diz a seguinte frase:
(Voz Off, 18”) À procura como processo, e não há outro modo de considerá-la, tem como obra completa a mesma relação que existe entre a procura de cogumelos na floresta e a cesta cheia depois que eles foram encontrados. Só depois que o cesto estiver cheio ele será considerado um trabalho de arte. O conteúdo é real e incontestável, ao passo que a busca na floresta continua sendo a experiência pessoal de alguém que gosta de caminhar e de ar fresco.
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Tarkovski está dizendo, de outro modo, que o desejo, ou seja, a procura, como processo, é constituído tanto pela experiência pessoal, quanto pelo produto dessa experiência. Então, o que significaria, portanto, pensar a potência do dizer como atributo do desejo? A resposta a essa questão já está praticamente dada se concordarmos com Tarkovski e com Deleuze e entendermos o dizer como uma busca processual, como experiência e como devir. O primeiro ato trata da possibilidade do encontro, portanto, refere-se ao processo, ao ato em si, à ação. É nesse sentido que Deleuze define o desejo. Diz ele:
Sabem como é simples, um desejo? Dormir é um desejo. Passear é um desejo. Ouvir música, ou fazer música, ou escrever, são desejos. Uma Primavera, um Inverno, são desejos. A velhice também é um desejo. Mesmo a morte (Deleuze e Parnet, 1998, p. 77)
A ação, portanto, é constitutiva, o que nos remete imediatamente à possibilidade como encontro (segundo ato), ou o que poderíamos chamar de método, que seria a predisposição a algo, a vivenciar, experienciar, e, com isso, suscitar novos agenciamentos. Porém não é qualquer ação que me interessa. Não é qualquer busca, nem qualquer processo, nem qualquer sono, passeio, música, escrita, enfim. Não é qualquer ato constitutivo que me interessa. É por isso que me faz bastante sentido quando Gonçalo Tavares, no seu livro Atlas do Corpo e da Imaginação, fala que existe o desejo fraco e o desejo forte. Novamente: entendendo desejo como potência do dizer, ficaria assim, parafraseando:
133
* E um desejo (dizer18) forte (é aquele) que não visa o prazer, mas sim a acção, o movimento, um certo fazer no mundo (Tavares, 2013, p. 154).
* O desejo (dizer) forte é o desejo que aumenta a capacidade de agir, nunca a diminui (Tavares, 2013, p. 157).
* Desejo (dizer), portanto, é capacidade de ligação19 (Tavares, 2013, p. 158-159)
E é essa capacidade que irá possibilitar a constituição de uma outra coisa, um outro sentido20. É por isso que Gonçalo Tavares fala do desejo e das palavras como movimento: “Eu sou autor dos meus movimentos porque em certo sentido não apenas os faço, como também os digo” (Tavares, 2013, p. 170). Eis aí, novamente, o ato narrativo como constitutivo de uma experiência, ou seja, o dizer como sentir e fazer. E é genial quando Tavares diz que “sim, as palavras pensam” (p. 174). E mais, quando afirma que as palavras “também fazem da experiência um sítio capaz de ser ocupado”21. E fico me perguntando:
- o que está faltando para ocuparmos nossa experiência com outras palavras, outros dizeres, outros desejos, outras paixões?
18
Que seria o “nomear”, o ato constitutivo que gera, que produz, que mobiliza a imaginação. “A ligação é uma força, não uma contemplação; qualquer ligação é um ir daqui para onde está o Outro, a outra coisa” (Tavares, 2013, p. 156). 20 Ver Tavares (2013, p. 160) 21 Ver Tavares (2013, p 175-178) 19
134
Talvez nós estejamos habitados ou habitando demais aquilo que Deleuze chama de “figuração”. No seu livro Francis Bacon: a lógica da sensação, ao analisar a pintura de Cézanne, ele explica a sensação como aquilo que escapa do lugar-comum, do clichê, mas também, do sensacional, do espetacular, do espontâneo, do automático. Deleuze fala ainda que a sensação não possui lados (sujeito-objeto): “Ela é as duas coisas indissoluvelmente, é serno-mundo, como dizem os fenomenólogos: ao mesmo tempo eu me torno na sensação e alguma coisa acontece pela sensação, um pelo outro, um no outro” (Deleuze, 2007, p.42). e, por esse motivo, argumenta que “a sensação é mestra de deformações, agente de deformações do corpo” (Deleuze, 2007, p.43). De igual modo, Gonçalo Tavares também faz uma dura crítica à linguagem comum22. Em que o referido autor alerta que “escolher palavras é escolher pontos de vista” (Tavares, 2013, p. 179), portanto, promover a linguagem comum é promover o lugar comum da experiência, promover, nos seus termos, “vivências medíocres e vulgares” (Tavares, 2013, p. 179). Ele conclui dizendo que: “Procurar outros caminhos é então procurar outros lugares – lugares insólitos, lugares raros, lugares individuais” (Tavares, 2013, p. 179). Bachelard, no livro A Terra e os Devaneios da Vontade (2013) considera que há um enorme desafio em pensar uma imaginação efetivamente criadora quando consideramos o contexto, que é exatamente o que estamos vivendo hoje, que ele vai chamar de “experiências estéticas” produtoras de “imaginações reprodutoras”. Ele aposta nas “pulsões inconscientes”, nas “forças oníricas”, no trabalho sutil e minucioso de tentar fazer da imagem uma
22
“escrita esta - a comum -, que quer comunicar de imediato, que quer ser de imediato entendida, e por isso, desleixa-se, simplifica-se até o ponto em que se transforma numa linha, interpretação. Frases que ganham multidões, mas perdem indivíduos (Tavares, 2013, p. 180).
135
aventura, aventura essa que se disponha diante da “função do irreal” como modo de “reanimar uma linguagem criando novas imagens”.
Então, retomando a primeira questão:
- o que significaria pensar o “dizer” sendo ele pautado pelas ligações que possibilitem o movimento, o fluxo dos afetos como potência ativa? Uma pista talvez esteja na questão desenvolvida por Deleuze e Parnet (1998) sobre Espinosa (p. 49): o que pode um corpo? Então eu incluí a essa questão outro elemento:
- o que pode um corpo em que o aroma está no tato?
É importante considerar:
1) a afetividade como fundamento do/para o corpo vivo, vide Tavares:
“A ligação primeira do corpo ao mundo é o alimento, é o primeiro afecto, e a primeira proteção que se recebe – o alimento que se come (p. 156)
2) quando escuto essa expressão – o aroma está no tato – eu não
consigo pensar de forma literal, mas sim, como uma provocação à nossa sensibilidade amesmada, que nos provoca a pensar e a vislumbrar um mundo que considere as experiências comprometidas com um corpo que se dispõe ao sabor e ao saborear como agenciamento do desejo.
136
Isso nos leva a outras duas questões: o que alimenta esse corpo – esse corpo que “confunde” sensações? E que afetos se dão nesse encontro – do aroma com o tato? Sobre os afetos, eu continuo com Gonçalo Tavares, quando ele diz que:
Os afectos não são sensações paradas, são sensações que se movem, aliás, são movimentos que sentem”, pois há os movimentos que não sentem, segundo Tavares, que seriam os “movimentos funcionais, técnicos (Tavares, 2013, p. 156-157).
E o escritor diz mais. Ele afirma que:
simplicidade ou complexidade de um ser vivo depende da capacidade do seu desejo, da potencia do seu desejo. Quantas coisas deseja? Quantas coisas pode desejar? (Tavares, 2013, p. 159).
E sobre o desejo, e para fechar essa segunda parte, eu quero compartilhar alguns “afetos” que encontrei na fala do filósofo Luis Fuganti, da Escola Nômade de Filosofia23. No seu curso sobre micropolítica e o uso dos afetos a partir do Mil Platôs24 ele diz o seguinte:
1) Desejo: em Lacan é o que Espinosa chama de “tirania de uma
paixão”, um estigma; Nietzsche chama de “ressentimento”, aquilo que não se
23 24
Cf.: http://escolanomade.com Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=xP3ERarnm_s
137
digere e nem se expele; isso é uma fixação afetiva, que inicia um desejo sedentário (6”), um desejo fraco, desejo sem movimento em Deleuze.
2) O mau uso dos afetos: é o princípio da estrutura. A estrutura
depende de um eixo, que é quando o desejo perde a superfície ou quando a potência perde um horizonte extremo, meio onde ela se atualiza (8”)
3) Desejo estruturalista (desejo como falta): lançado em um buraco
(perda da capacidade ativa de se atualizar, se atualiza de modo passivo, determinado de fora, então se fica à mercê do que se determina de fora, portanto, o caos. Passa-se a desejar, assim, situações estáveis, controláveis. Vou preferir o ser ao devir, a extensão à intensidade (9”)
4) Profundidade: não é a profundidade da duração, da espessura do
tempo, é uma profundidade de uma separação de si, do que pode. O muro como alegoria da opacidade, portanto, ausência de horizonte, que seria o campo das possibilidades (11”)
O que estou querendo aqui é exatamente pensar esse campo das possibilidades da imaginação e da linguagem a partir das experiências estéticas que temos tido atualmente. Me coloquei a pensar a relação corpo-movimentopensamento-sensibilidade numa tentativa, ainda bastante insegura e errática até, de compreender os interstícios oriundos da ponte linguagem-experiência.
138
A FABRICAÇÃO DO corpo-montagem,
- Como palavras, somos arranjados de modo a promover, pela conjugação de nós mesmos, poesia dançada. Para isso, ensaio, ensaio, ensaio. Para isso, repetição, repetição, repetição.
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E o que nosso corpo pode? Eis uma questão que está diretamente relacionada com outra etapa importante desse processo de aprendizagem do corpo: A montagem coreográfica. E, sinceramente, como é mágico o que os professores e professoras fazem com nossos corpos. Como palavras, somos arranjados de modo a promover, pela conjugação de nós mesmos, poesia dançada. Para isso, ensaio, ensaio, ensaio. Para isso, repetição, repetição, repetição.
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Chegado o dia da apresentação:
Marcação de palco, concentração, alongamento, aquecimento; Coxia;
- primeiro sinal... Abraço coletivo;
- segundo sinal... O corpo vibra;
- terceiro sinal... Blackout
- e... Eis a constituição máxima daquilo que se poderia dizer de um
Território, mais precisamente, um “território de espera”: verdadeira poética dos corpos. Nas palavras de Laurent Vidal, Alain Musset e Dominique Vidal (2011):
Deste ponto de vista, dar conta da espera, em outras palavras, do que acontece quando nada acontece (ou quando nada é suposto acontecer), é endossar uma atitude poética, dado que a poética ambiciona precisamente a compreensão global, conjunta e instantânea de uma situação.
Não cabe aqui, portanto, a ideia de território como dimensão jurídica, tampouco, como uma superfície material onde determinadas relações
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acontecem. Interessa-me, sim, o território como local de cruzamentos e passagens, como campo de forças. E quais seriam essas forças? Aquelas mesmas que, ao entrar em cena, fazem condensar três ou quatro meses em três ou quatro minutos. É, por assim dizer, o território da cena!
Findo, Vem a reverência, Seguida de aplausos. O corpo, novamente, vibra. A cortina fecha E a luz principal se apaga. Pelas frestas, Vê-se apenas uma pequena parte do linóleo25. Como um mapa antigo, Ele nos indica, apenas em traços, Vestígios dos corpos suados, Cabelos caídos E o silencioso eco Das inúmeras vezes que ouvimos a marcação do tempo:
Carto-corpo-coreo-grafia De mundo Disposta num pequeno pedaço De tempo-espaço.
25
Nome dado ao tipo de tapete que cobre o piso da sala de dança ou palco.
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O ato coreográfico é, maravilhosamente, uma cartografia de emoções. Descobri isso quando da minha primeira experiência como bailarino. Estava eu lá, observando atentamente, o imediato do processo criativo da coreógrafa responsável por fazer daquele monte de corpos, uma alquimia do gesto dançado. À frente, ela escrevia cada frase musical e, atrás, “copiávamos”. Até ali, todos os bailarinos diziam a mesma coisa. Uma das coreografias que dancei fazia alusão ao animal marinho “água viva”. Sem camisa e de saia. Não havia homem ou mulher, apenas corpos e cada um deles corria numa fruição de afetos para dizer daquele ser. Não estávamos imitando. Nem mesmo aquilo se constituía como uma espécie de posse da forma-objeto. O processo, necessário para a constituição daquele projeto de movimentação, compreendia numa captura de gestos. Era preciso fazer com que todos se tornassem uma extensão, pelo movimento, da matéria criativa que alimenta o corpo como lugar de ser afetado. Somente depois disso, aliás, com isso, as frases de movimento começam a ser reescritas. Do procedimento supostamente mimético, a dança como poesia foi, aos poucos, tomando forma. Plano de desejos passou a se confundir com o plano de imanências. Essa é a cartografia que me interessa. Aquela que produz agenciamentos a partir do corpo:
Ora,
o que é um gesto dançado senão um
agenciamento particular do corpo? Todo gesto é, por si, um agenciamento (...) Neste sentido, dançar é experimentar, trabalhar os agenciamentos possíveis do corpo. Dançar é portanto agenciar os agenciamentos do corpo (Gil, 2001, p. 71 grifos meus).
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Essa era a nossa “epistemologia política”, para usar dos termos de Bruno Latour. O que significa dizer que, pelo treino - laboratório de agenciamentos possíveis - aprendemos a ter braços, pernas, cabeça, respiração, pausas, olhares e um sem número de outras aquisições. Pelo treino - ensaios nosso corpo ia sendo constituído, a exemplo do que acontece com nariz quando treinado pela indústria de perfumes. Latour explica que
Antes do treino, os odores atingiam os alunos mas não os faziam agir, não os faziam falar, não os tornavam atentos, não os excitavam de forma precisas; qualquer grupo de odores produziam nos alunos o mesmo efeito ou afecto geral e indiferenciado (Latour, in: Nunes; Roque, 2008, p. 41).
Pelo treino, portanto, saímos de um estado de inarticulação e incorporalidade, para um estado de articulação e proposição: experimentações que geram fluxos de energia. Disso fala Gil:
Que é experimentar, “ensaiar”? É chegar a um ponto de
“coordenações
físicas”
tais
que
a
“energia”
passa
“naturalmente”. Trata-se de fluxos de movimento mais que de formas ou de figuras (como no ballet). Ensaiando a sequência de movimentos e verificando que a energia passa, o bailarino encontra-se diante de múltiplas possibilidades de outros movimentos. Ensaia de novo, e escolhe, e assim sucessivamente, criando um fluxo de energia (Gil, 2001, p. 83).
Surge um corpo como mediação:
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Quanto mais mediações melhor para adquirir um corpo, ou seja, para tornar-se sensível aos efeitos de mais entidades diferentes. Quanto mais controvérsias articulamos, mais vasto se torna o mundo (Latour, in: Nunes; Roque, 2008, p. 45).
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E foi exatamente isso que aconteceu. A cada nova frase de movimento aprendida, a cada novo compasso coreográfico adquirido, sentia como se um novo horizonte de possíveis fosse estabelecendo em mim um novo modo de habitar o mundo. Ele sendo outro, eu sendo outro, como num plano de composição. A dança quando, por exemplo, deserotiza o corpo, é porque conseguiu fazer dos seus movimentos e gestos agenciamento do desejo de imanência, portanto, desestruturação do corpo-organismo que se resume ao erótico (Gil, 2001): “Se a bailarina do ballet apagava todo o traço dos seus órgãos genitais, a nudez contemporânea não faz paradoxalmente mais que sublinhar a continuidade da superfície única da pele” (p. 79). Fruição e imanência que coloca meu corpo, portanto, horizonte de mundo, em variação contínua. Aumentar o mundo é proliferar multiplicidade. Por isso mesmo, ela – a dança – não me serve como síntese ou revelação de uma suposta corpografia. Ela me é mais como agenciamento do desejo, corpo nu, que é a pele tornada espaço intensivo, espaço de emoções. Essa é a grafia pelo corpo que me interessa. Lembro que, numa conversa com amigos sobre a experiência que tive com a dança em Portugal, alguém me perguntou se eu achava que em todo lugar lá era daquela forma. Logo expliquei que eu não tinha a pretensão, na verdade, não tinha a ingenuidade, de querer produzir uma definição do que seria Portugal ou, até mesmo, Braga, cidade em que residi por quase 5 meses. Mas sim, pensar nessa relação corpo-lugar a partir daquilo que vivi. Por isso, uma geografia bailarina é sempre contextual e, paradoxalmente, singular. Não porque trata de uma essência ou fundamento, mas porque é “finita, imanente, contingente” (Larrosa, 2015).
167
Quando encerra a luz Todos os corpos Que antes faziam balanço Misturam-se num só tom Eis a melodia cromática De que fala o poeta das flores É dela que nasce o gesto Como um modo particular de dizer - Sim, eu danço! Então… Dancemos! Para fazer desse ato repetido Nossa calma Dancemos! Para fazer desse ato criativo Nossa alma - Dancemos…
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CORPO-grafia,
- É como se meu corpo, caído no chão, estivesse sentindo dificuldade em fazer daquela superfície uma possibilidade para o movimento e para o gesto.
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Observação Ande de ônibus Olhe pela janela Olhe para dentro Olhe as pessoas no ponto em dia de chuva Qual cheiro te invade? Cigarro e roupas velhas? Na Itália era perfume de grife Há conversas? Sobre o que? És olhado? Por quem? Quanto tempo dura o olhar? Quem senta e quem levanta? Quem dorme e quem sonha? Quem viaja e quem chega? Quem sorri?
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Não descreva Escreva Faça as palavras dançarem Vá a uma padaria ou cafeteria pela manhã. Ponha-se a escutar Não ouvir, escutar Se puder, sente perto da porta ou do caixa Quem chega? O que dizem? Os estranhos iniciam algum tipo de conversa? Há televisão? Música? Jornais e revistas? Há "bom dia"? Há quem chegue de forma tão silenciosa que nem a percebemos? Há uma coreografia dos corpos apaixonados? Cidade-dança?
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Há uma geografia do corpo delineada pela geografia do lugar? Quando ou até que ponto essas grafias se misturam? Ao retornar para o Brasil, fiquei alguns longos dias em estado de pausa. Louppe explica que “Toda investigação sobre o corpo requer este silêncio meditativo e concentrado” (2012, p. 70). Precisei desse tempo para depurar aquilo que havia vivenciado e, por conseguinte, provocado em mim esse estado de suspensão. Se posso pensar a partir de algumas dessas experiências o faço como alegoria do meu processo de aprendizado na dança. É como se meu corpo, caído no chão, estivesse sentindo dificuldade em fazer daquela superfície uma possibilidade para o movimento e para o gesto. Dificuldade essa oriunda de uma paisagem corporal por demais atravessada pelas linhas duras que compuseram meus atravessamentos com esse lugar chamado Braga (Portugal). Sei o quão generalizante pode soar ao tentar dizer sobre o modo como as experiências vividas numa dada cidade configuram aquilo que define esse mesmo lugar. Na verdade, o exercício aqui é outro. Há, ressalto, uma legítima parcialidade e contextualidade naquilo que descrevo. Portanto, o que vem a seguir são escritos produzidos na esteira de um corpo que sente e transforma esse sentir em palavras-pensamentos-sensações. Um corpo que se pôs em cruzamentos com inúmeras trajetórias simultâneas:
Se o espaço é, sem dúvida, uma simultaneidade de estórias-até-então, lugares são, portanto, coleções dessas estórias, articulações dentro das mais amplas geometrias de poder do espaço. Seu caráter será um produto dessas intersecções, dentro desse cenário mais amplo, e aquilo que delas é feito. Mas também dos não encontros, das desconexões,
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das relações não estabelecidas, das exclusões. Tudo isso contribui para a especificidade do lugar (Massey, 2008, p. 190)
Utilizei, nesse sentido, meu corpo como um dispositivo imanente, que tinha por função realizar, nos termos de José Gil (2010), um “mapeamento das relações espácio-temporais do corpo com o mundo” (p. 50), portanto, um mapeamento que se faz por “intensidades” e por “localidade”, para fazer referência à socióloga holandesa Saskia Sassen:
Hoje, é mais importante que nunca, provavelmente, recuperar a importância da localidade. A importância das pessoas fazendo seu bairro, sua localidade dentro da cidade26
Esse processo resulta numa série de escritos e registros fotográficos, que no seu conjunto estou denominando de “narrativas poéticas”. Elas estão organizadas em duas grandes “localidades” e carregam em si, suas respectivas “intensidades”. Primeiro, as corpografias como construto de narrativas que tratam da experiência de um corpo reativo e seus normativos como algo que agenciam uma potência de agir ancorada na ética do que ele deve e não do que ele pode. A maior parte de minhas vivências em Portugal foram dessa ordem. Já no Brasil, as narrativas apontam para uma corpografia criativa, poética. Elas foram as que efetivamente provocaram em mim uma redescoberta do corpo pela dança.
26
Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=xWuZR0wcYOk
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Então, o que vem a seguir revela, não o caráter do lugar, como se isso fosse algo possível, mas sim, a de uma experiência com um lugar, num dado
momento e num dado contexto.
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HABITAR (de) um corpo triste,
- NĂŁo foi o frio, nem os longos dias chuvosos que enuviaram meu semblante. Disso os agasalhos, vinhos e chocolates deram conta tranquilamente.
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De início, pensei que poderia escrever algo que articulasse epistemologias e poéticas, numa tentativa ingênua de buscar fundamentos e teorizações para um fazer geográfico outro, que teria nos conceitos deleuzianos de diferença e minoridade seu principal artefato metodológico. No entanto, a vida, muitas vezes, nos provoca de modo nada sedutor. “A teoria surge da vida”, afirma a geógrafa inglesa Doreem Massey. E este livro não poderia ter sido escrito de outro modo, senão, como gesto marcado com toda a intensidade dessa tessitura. Ele é produto da vida de um ser-migrante que, em eco com Eleonora Duse, aprendeu, à duras penas, dizer: “onde não puderes amar, não te demores”. Foi o que me ocorreu logo nos primeiros meses em que estive como residente em Braga, pequena cidade no norte de Portugal. Precisamente, foram quase cinco meses de inquietações, daquelas que nos desassossegam por inteiro. Não foi o frio, nem os longos dias chuvosos que enuviaram meu semblante.
Disso
os
agasalhos,
vinhos
e
chocolates
deram
conta
tranquilamente. No fundo, talvez tenha esquecido de colocar na mala um pouco de Clarice Lispector. Tivesse feito, poderia não ter demorado tanto para perceber, como ela mesma, que tocar o mundo é, antes, tocar a si próprio. Sem rodeios, digo ainda em estado de reverberação, o quanto esse contexto provocou paralisia em minhas leituras, reflexões e escritos. Ressalto isso porque foi da experiência com Braga que saíram os apontamentos sobre corpo e cidade no seu sentido mais normativo e reativo. De lá saíram meus escritos de solidão. Eles são como mapas dessa experiência de habitar a cidade, fruto de um contexto específico: o do esvaziamento anímico, arruinamento de todo e qualquer significado que justificasse continuar morando naquele lugar.
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Com Braga, cheguei ao ponto de que a única coisa que ouvia era o sussurrado “apesar de”, como o que Ulisses disse para Lóri:
apesar de, se deve comer apesar de, se deve amar apesar de, se deve morrer. Inclusive, muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente27.
E assim, pouco a pouco meu corpo foi silenciando. É importante destacar que, ao dizer com Braga e não em Braga, quero reforçar o aspecto relacional da vivido. Portanto, ao não entender Experiência e Lugar como suporte, me refiro a eles como termos que se conjugam sempre no
com.
Ironicamente, foi justamente em Portugal que pude “comprovar”, se é que isso é possível, aquilo que Fernando Pessoa escreveu sobre paisagem como estado de alma. Porque era como se a conjunção de vogais e consoantes que constituem meu nome configurassem em mim um pouco do inverno parisiense de Lóri, especialmente quando ela diz:
“trevas geladas que são as minhas”.
27
Personagens do livro “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres” de Clarice Lispector (1998b).
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Fiquei pensando então e constatei que Braga teria sido facilmente pintada por Hopper. Apesar de já ter afirmado que sua pintura não se resumia a isso, é o cotidiano solitário que figura em suas telas. Por que digo “facilmente” então? Porque, como ele mesmo responde ao ser questionado sobre o fato de suas pinturas refletirem o isolamento da vida moderna: “acho que sou eu” (in: Laing, 2017, p. 23). E esse “eu sozinho” foi ganhando forma logo nos primeiros dias. Durante muito tempo me pus a perguntar:
- quando a morada não se faz casa? Nas páginas a seguir estão todos os poemas, relatos, apontamentos e registros fotográficos dessa corpografia bracarense. Eles são fruto daquilo que vivi nos meus trajetos pela cidade e nas minhas aulas de dança. Portanto, falam desse habitar o lugar que é, sobretudo, um habitar o corpo.
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Ora bem, será possível viver sem um lugar? Será possível habitar onde não existem lugares? O habitar não tem lugar lá onde se dorme e, por vezes, se come, onde se vê televisão e se diverte com o computador de casa; o lugar do habitar não é mero alojamento. Só uma cidade pode ser habitada; mas não é possível habitar a cidade se ela não se dispuser a ser habitada, ou seja, se não “der” lugares. O lugar é o sítio onde paramos: é pausa – é análogo ao silêncio de uma partitura. Não há música sem silêncio.
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- relatos e poesias (ou uma cartografia dos afetos)
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QUANDO A MORADA NÃO SE FAZ CASA?
Sobre o meu primeiro local de morada em Braga (Portugal)
De que serve ter o mapa Se o fim está traçado? De que serve a terra à vista Se o barco está parado? De que serve ter a chave Se a porta está aberta? E para que servem as palavras Se a casa está deserta? (Pedro Abrunhosa)
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•
Quando seu lugar de intimidade é a sala de estar ou a mala posta num canto qualquer.
•
Quando seu cheiro não consegue fazer abrigo no lençol que repousa sobre o sofá, porque nele há um cheiro mais forte, o de urina de cachorro.
•
Quando o cheiro de café e ovos mexidos se confunde com o cheiro de cigarro envelhecido vindo do quarto ou da varanda.
•
Quando a rotina de leituras e escritos é impedida de acontecer pela rotina da faxina da casa, que no fundo era uma faxina da alma. No entanto, era uma limpeza sempre esporádica e incompleta, como aquelas que assistimos em novelas ou filmes, onde se joga tudo no fundo do armário ou debaixo do tapete. Quando isso ocorre, não precisa de muito esforço para que toda a bagunça e sujeira reconfigure aquele cenário tão artificialmente limpo.
•
Quando o por do sol, o chocolate e o vinho, apesar de clichê, foram se tornando, pouco a pouco, minhas únicas fontes de prazer e, do mesmo modo, de entorpecimento. Corpo tonalizado pela tristeza vestida de cotidiano estrangeiro.
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TODOS OS DIAS
Sobre o meu segundo local de morada em Braga (Portugal)
Passado o primeiro mês, mudei de residência. Nova morada, novos ares, nova vizinhança. Novos odores, novas memórias. Um novo, nada novo. Mais do mesmo, que não era o mesmo. Repetido cotidiano, travestido de novidade. Todos os dias... Casarão antigo, feito de pedra e madeira. Num primeiro momento, cheguei a me sentir num cenário de filme antigo. Passando alguns dias, as particularidades começaram a configurar uma rotina de incômodo, como na hora do banho, que a água quente sempre esfriava e cortina grudava no meu corpo devido ao espaço ser minúsculo. Ou nas duas primeiras semanas sem a botija de gás para poder cozinhar ou ligar o aquecedor. Mas o pior foi quando “ganhei” de estimação a companhia desagradável de um tipo de bicho que não sabia inicialmente o que era. Foi que um dia a dona da casa me informou, na maior tranquilidade do mundo, que era uma centopeia. Fui pesquisar e descobri que seu nome científico era scorpaena scrofa, um tipo de artrópode de veneno leve, bastante comum em Portugal. Perdi as contas de quantas noites acordei com esses bichos caindo na cama ou na cortina do banheiro. Foram meses com essa sensação horrível. Todos os dias...
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COTIDIANO
Fora de casa, os caminhos eram outros. Por estar no mesmo bairro da universidade, a cidade agora se fazia essencialmente a pé. Cedo, depois de tomar café, ia para a biblioteca ou para uma pequena livraria que ficava dentro do campus. Depois, seguia para o restaurante universitário e, após almoçar, voltava para a biblioteca ou para umas mesas de estudos que ficavam nos blocos de aula. Gostava de experimentar sentar sempre em locais diferentes. Isso amenizava o incômodo gerado pela falta de interlocução e diálogo. Mais para o fim da tarde voltava em casa para fazer uma refeição leve e ir para o ginásio praticar exercícios de fortalecimento muscular. De lá seguia, de ônibus, para a dança.
Essa era minha rotina.
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O MOÇO DO RESTAURANTE
Lembro de um episódio curioso. Estava na fila do restaurante universitário quando observei um rapaz chegando de modo bastante sorridente. Estranhei. Aquele não era um hábito comum. Ele cutucou meu ombro e começou a conversar. Fiquei novamente espantado, mas dei continuidade a conversa. Quando fomos sentar, eu perguntei se ele gostaria de sentar comigo. Foi então que me veio a surpresa. Ele disse que gostava de almoçar sozinho. Colocou os fones de ouvido e foi embora. E nunca mais nos falamos.
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A MOร A DO RESTAURANTE
Certo dia, apรณs almoรงar num dos restaurantes que ficava nas proximidades da Universidade, deixei uma gorjeta para a pessoa que me atendeu. Sempre gostei de retribuir de alguma forma o bom atendimento. No dia seguinte, ao chegar para almoรงar, a mesma pessoa, que me viu ao chegar, passou o restante do tempo em que lรก estive evitando de, inclusive, me olhar.
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NOVO HORIZONTE
Por muito tempo, inclusive, tive receio de falar em voz alta, devido a questão do preconceito. Isso contribuiu mais ainda para meu isolamento social. Poucos foram os lugares em que senti que minha origem não era um possível problema. Inclusive, sempre fazia questão de deixar claro para as pessoas que minha passagem por Braga era rápida. Inclusive, geralmente esse era o tema da primeira pergunta que me faziam: o que eu estava fazendo ali. Minha resposta, quase como um gesto de defesa, era o de deixar claro que eu não estava ali como um migrante “desesperado” a procura de um novo horizonte.
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PEDAGOGIA DO GRITO Passado algum tempo, agora posso falar sobre uma das experiências mais intensivas que vivi nesses cinco meses de Portugal: o método de aula nas escolas de dança que participei. Penso que há um apego exagerado naquilo que é técnico e, por consequente, há, na mesma medida, o esquecimento de que o professor ou a professora ensina mais que isso. Somos medida de exemplo, principalmente para as crianças. Então, se eu uso da agressividade, da humilhação e do escracho como método, ocorre algo que jamais deveria acontecer no horizonte de formação de qualquer pessoa: elas passam a se acostumar com aquilo que inicialmente lhes era espantoso e passam a entender como "normal" esse tipo de postura, em virtude do êxito técnico alcançado. Em Braga, fiz aulas de ballet clássico, dança contemporânea, dança de salão, danças africanas e danças latino-americanas. Frequentei 3 escolas diferentes. Em todas elas, fui inicialmente muito bem acolhido. Seria injusto de minha parte não deixar isso claro. Mas o passar dos dias, ao entrar em contato de modo mais frequente com o “método” de ensino estabelecido pela escola, algo foi começando a me incomodar. Chegava cedo para minha aula de contemporâneo e ainda estava acontecendo a aula de hip-hop para crianças. Da entrada da escola ouviam-se os gritos que vinham da sala ao fundo. Aquilo causou-me, de início, espanto, para em seguida, passar a me causar agonia e repúdio. Passei a evitar chegar cedo, afim de não presenciar mais aquilo que considero, no meu entendimento, uma prática abusiva. Foi então que os gritos aconteceram comigo. Numa das aulas de flexibilidade, eu não estava conseguindo realizar o exercício de acordo como a professora estava mostrando. Não por desatenção
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ou qualquer coisa do gênero, mas por se tratar de um movimento bastante avançado para um iniciante digamos assim. Acontece que a professora gostava de repreender seus alunos com gritos como se eles, quando não conseguiam realizar determinada atividade, era por descaso, falta de compromisso ou algo assim. Talvez não passasse pela cabeça dela que todos possuem dificuldades e que os avanços precisam de tempo e dedicação. O fato é que receber aquele tipo de tratamento me fez procurar uma outra escola. Saí em silêncio, sem me explicar. Passado algum tempo, enviei um email para a professora explicando o motivo de minha saída. Pensei que talvez ela pudesse refletir um pouco sobre sua prática docente. Afinal de contas, ouvi de várias pessoas que eu não havia sido o primeiro e nem seria o último a sair de lá por esse motivo. Inclusive na nova escola havia uma ex-aluna dela que chegou a dizer que saiu de lá porque, com ela, havia perdido a alegria de dançar. Do email enviado nunca tive resposta.
Olá Profa., aproveito esse dia tão especial para, enfim, dizer algumas palavras após minha saída da escola sem ao menos dizer algo. Primeiro, quero agradecer pela acolhida que tive por você e toda sua equipe. Sou grato por isso. Então, o que me fez sair da escola que estava sendo, até então, minha segunda casa? Sendo bastante franco: os gritos. O modo rude como fui tratado. Sou professor universitário há muitos anos, já fui militar, já fui atleta de competição, portanto, sei como funciona a "pedagogia do grito". Mas também sei quando devemos ser professores e quando devemos ser "técnicos". Infelizmente, não estou na dança para competições e minha dedicação e paixão devem respeitar o limite de um corpo de quase 37 anos, inexperiente (pois comecei a
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realizar danças artísticas há menos de 1 ano) e que havia feito uma cirurgia há pouco tempo. Mesmo assim, eu estava ali todos os dias, treinando, tentando me superar a cada dia. Então dançar para mim é isso: uma paixão e uma superação. Mas também, é uma alegria. E os gritos não funcionam comigo no sentido de estímulo. Minha pedagogia é outra. É claro que reconheço e admiro a paixão que você demonstra ter pela dança e o seu esforço em tornar cada um de seus alunos, bailarinos de alto nível. Sei disso e seria infantil de minha parte não reconhecer. Eu apenas não consigo me sentir estimulado dessa forma. Não há o certo, nem o errado. Então quero que saiba que saí com muita tristeza. Adorava as aulas. Reencontrei algumas pessoas na aula aberta do ballet que teve na quinta e já bateu aquela saudade enorme. Hoje fui assisti-los e saí de lá com lágrimas nos olhos. Acho que, no fundo, a dança é para isso: nos emocionar!
- Eco:
Acho que, no fundo, a dança é para isso: nos emocionar!
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TOCA
Já na segunda escola onde fiz aulas, me senti em casa. Fui tratado com muito carinho e respeito por todos. O que me fez sair de lá foi o fato da escola ter um foco na dança social e eu sentia a necessidade mesmo de estar inserido noutro contexto. Lá não tinha aula de ballet (tinha apenas para crianças bem pequenas) e as aulas de contemporâneo ocorriam apenas uma vez por semana. Então, sobre minhas vivências nessa segunda escola tenho apenas dois poemas, escritos a partir de duas situações experienciadas nas aulas de danças latino-americanas. Ambos falam da questão do contato. O primeiro deles, “afago”, diz desse corpo que recebe o toque como ato poético, portanto, transformador e libertário. O segundo, “corpo que é”, fala exatamente do contrário disso, pois foi escrito a partir da repulsa do toque, dito por uma aluna com a mão firme travando meu ombro: “não encosta”.
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“Afago”
Meu corpo é pele E também é gesto que se desfaz Num abraço de palavras e sorrisos Eis que nasce a grafia dos sentidos primeiros Feita do contato entre nossas liberdades Onde cala o movimento Para fazer daquela pausa silenciosa Uma respiração feita de versos Porque 1, 2, 3... Toca!
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“Corpo que é”
Que nunca acabe a poesia Onde há de sobra, simetria Que nunca falte encantos Onde cala a boca, em prantos Que nunca seja tarde o prazer Onde faz sempre e mais, sem querer Que nunca volte mais cedo o pudor Onde goza a mentira, sem amor Porque meu corpo transborda Pele, afeto e suor. Nele A palavra não se cabe Ela vibra Nele O desejo não se sabe Ele é Apenas é
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UM POUCO DE POESIA Já na terceira escola, comecei a vivenciar a dança de modo mais intensivo e, com isso, comecei a perceber a importância desse movimento de mergulho e saturação do corpo. Saturar o corpo é fazê-lo vibrar de tal forma que ele começa a ganhar novas formas movimento e gesto, portanto, novas formas de aprender, apreender e dizer. Muitas e longas horas de aulas e ensaios. Preparação para o espetáculo. A admiração dos colegas de turma era crescente. Todos empenhados em realizar o sonho de serem bailarinos profissionais. Muitos, com tão pouca idade, já carregavam no peito um sem número de prêmios. Eram atletas da dança. Diferente de mim, que estava ali “apenas” como um aprendiz. O ápice desse estado de alegria ocorreu na ocasião de um curso de formação em dança contemporânea, ministrado por Daniel Cardoso, diretor do Quorum Ballet (Lisboa), cujo título era “improbabilidades criativas”. Durante dois dias tive a oportunidade de ter como parceira de aula uma das mais experientes bailarinas da escola. Da observação de seu modo de dançar e da forma como nossos exercícios suscitaram pensamentos poéticos em mim, escrevi uma série de 05 poemas, descritos a seguir:
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“Mexe-te Margarida”
Porque o corpo Nem começa Nem termina Nem mesmo "é" Apenas faz rizoma de afetos Brinquedo de poesia dançante Há, nele, os pés Que são o mesmo que uma fotografia velha Esquecida no fundo da gaveta de guardar tralhas Pés que são rastros Resquícios de uma memória grafada no mais profundo Que não é a alma, mas os ossos Há também um rosto pueril Contido por uma expressividade marcada pelo teu contexto Ele me diz, em confidência Teu nome e tuas dores E leio-te como uma criança Que ainda gagueja ao tentar juntar vogais e sonhos E há, por fim, o bailado secreto Que é revelado pela entrega do teu abraço Acolhimento de silêncio e pausa Escrita de Gesto Movimento E poesia... Seu principal verso, diz: "Mexe-te, Margarida, mexe-te".
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“Géstica”
Somos movidos por nossos afetos Então dançar é um pouco isso: Gestos apaixonados
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“Corpo Vibrátil”
Meu corpo fez eco Pura matéria sonora Que reverberou toda poesia Escondida no abraço trêmulo que recebia
Meu corpo fez eco Relicário imaginado Numa verdade dançada em sintonia Com os pedaços de chão que sentia
Meu corpo fez eco Verbo de sensações E conjugando movimento com alegria Fez de cada respiração, fantasia
Por isso que, ao dançar, existimos Porque criamos, com nossos gestos, um mundo de possíveis
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“Meia Ponta”
Com teus saltos e piruetas Meu desejo faz meia ponta e cai feito menino bobo Mas é com teu olhar e teu sorriso Que meu coração pede silêncio Desliza pelo chão E se esconde atrás da coxia Porque és, senão O grand jete de todo poeta E eu, que mal consigo bailar sem gaguejar as pernas Ficaria horas Apenas olhando o modo delicado com que escreves no ar Afinal Anjos não voam, dançam
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“Poesia para uma Bailarina”
Teu nome É nome de flor e de mulher É palavra Que tem cheiro E que faz molhar Relva menina Que faz o sol esquecer do seu cheiro É pétala com sabor de poema Caindo suavemente No horizonte colorido em delicadeza É, portanto Paisagem-bailarina Pas de deux de verso e sonho Que desenha no semblante de qualquer coração O sorriso encantado pela sua sincera beleza
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NÃO (ME) É NORMAL Mas a poesia foi interrompida. Novamente, a angústia veio fazer morada em mim. Quando começou a montagem da coreografia para o espetáculo, percebi uma outra face da professora que nos ensinava: arrogância e grosseria. Tentei lidar com aquilo da melhor forma possível. Então, certo dia, numa sequencia da coreografia, a pessoa que estava na minha frente deveria ter se movimentado numa dada contagem e não o fez. Naquele momento eu assumi a responsabilidade pelo ocorrido, mesmo sem ter, para evitar que o outro aluno – uma criança – ouvisse algum tipo de abuso por parte da professora. Foi então que, para meu espanto, ouvi um sonoro “cala-te”. Ela não era portuguesa. Falava um espanhol muito rápido. Na maioria das vezes não compreendia o que estava sendo dito. Ela, tampouco, se importava. Meu aprendizado ocorria, essencialmente, por imitação. Estava sempre em alerta, atento. Falava pouco, apenas para tirar dúvidas sobre movimento. Então, ela ter afirmado que eu ficava conversando durante as aulas e que, por isso, havia errado a coreografia, foi algo que me entristeceu profundamente. Depois disso, passei a tomar nota daquilo que via e ouvia em aula e que eu, ainda hoje, considero um absurdo. Quando um professor diz em sala de aula, em tom agressivo, que vai "jogar uma granada" em todo mundo porque ninguém está acertando a coreografia, instala-se aí uma política do medo e do terror. Que tipo de adulto será essa criança que cresce ouvindo tais palavreados e lidando com tais gestos? Não devemos nos acostumar. E foi isso que ouvi de alguns: nós nos acostumamos.
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Puxão pelo braço: não é normal. Humilhações e ironias: não é normal. Atender o telefone no ensaio e ficar de papo: não é normal. Não ensinar ou tirar duvida: não é normal. Não se esforçar para falar a língua e quando alguém fala que não entende a pessoa diz para outra dar um jeito de entender: não é normal. Reclamar dos alunos que perguntam e recriminar os que não entendem: não é normal. Quando o aluno erra, falar que vai matar, ridicularizar, ameaçar tirar da coreografia: não é normal. Dizer na frente de todos que não suporta a mãe de uma aluna: não é normal. A lista segue... infelizmente.
Por isso minhas lágrimas não vieram no fim do espetáculo que dancei, como um suspiro de desabafo. Elas vieram, por muitas vezes, nas longas caminhada voltando para casa após as aulas. Passos que eram medida de tempo e reflexão sobre uma angústia perenizada pelo equívoco: a destreza técnica jamais pode valer mais que a destreza humana, digamos assim. Dessa angústia perene escrevi “corpo cansado” e “cala-te”:
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“Corpo cansado”
Corpo cansado de ouvir Faz sintonia com o silêncio Daquela voz opaca Porque dela só há a pronúncia torta Eco de um soluço gago Intensidade mesma Descabida como forma Inconcebida como conteúdo Mostra tua dor, disse-me Num olhar despido Foi então que notei O detalhe como gesto E o movimento delicado daquele Que escolheu o som repetido Como sua verdadeira paisagem Por isso ela nunca lhe emoldurou o horizonte entristecido Ou seria entardecido? Fez-se.
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“Cala-te”
Há um calar que é imanente E há, paradoxalmente Um calar que é a mais pura forma de violência Este é o “Cala-te” Conjunto tônico que produz uma peculiar paisagem sonora Esta mesma que esquadrinha corporalidades numa ordem que é Ensimesmada Portanto, inconcebível Porque em todo “Cala-te” Há um vazio anímico Porque em todo “Cala-te” Há a morte da poesia como forma de vida ativa Então Por ora Calo-me Porque Em todo “Calo-me” Há um verso que espera Oportunamente Ser abrigo para aqueles que sonham com outros horizontes possíveis
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Após algum tempo, me peguei lendo Jorge Larrosa. Suas palavras me são como uma prece. Em Pedagogias Profanas ele diz:
"Talvez tenhamos que aprender a nos apresentar em sala de aula com uma cara mais humana, isto é, palpitante e expressiva, que não se endureça na autoridade. Talvez tenhamos que aprender a pronunciar na sala de aula uma palavra mais humana, isto é, insegura e balbuciante, que não solidifique na verdade. Talvez tenhamos que descobrir o segredo de uma relação pedagógica mais humana, isto é, frágil e atenta, que não passe pela propriedade". O debate sobre esse fato girou em torno de duas questões: a primeira delas, sobre o papel do professor como formador/educador. Para alguns (muitos?), não temos como responsabilidade educar as crianças para além do conteúdo curricular concernente à disciplina pela qual somos responsáveis. Quem tem responsabilidade por “educar” são os pais, dizem. Eis uma clara referência que não compreende que toda relação educa. Talvez seja ingênuo o professor que acha que apenas tem por função ser janela, porta, rodapé, telhado ou seja lá o que for do “conhecimento”. Ao lidar com essa perspectiva, ele agencia uma série de maquinações formativas correspondentes aos “valores” (utilitaristas) daquilo que pode configurar o “serprofessor”, assim mesmo, junto. Diferente do “ser professor”, separado. Mesmo não querendo, educamos. Mesmo quando achamos que nossa função é apenas técnica, estamos educando. A novela educa, o cinema educa, a literatura educa, a dança educa, a cidade educa, a família educa e, adivinhem só: o professor também. Então, o mínimo que posso desejar é que sejamos mais humanos nesse processo. Ensinar nunca fica apenas na esteira do conteúdo.
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VOYEUR
Rotineiramente, saia para observar e fotografar. E quando comecei a fazer isso, me pus a observar as pessoas nos ônibus, nas praças e nos cafés. Era uma experiência citadina apenas de observação, sem trocas, sem diálogo. Um voyeurismo urbano causado pela invisibilidade como regra. Disso foram escritos “indiferença sem pudor”, “todos os velhos são tarados?” e “roupas velhas”
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“Indiferença sem Pudor”
Que relações são essas que brincam com as formas e, ao mesmo tempo, alimentam gestos de recusa ao outro. Sociabilidade contestada sem pudor algum. Foi assim que, ao embarcar no comboio em direção à Lisboa, saindo do Porto, me veio à memória o curta “Tuileries”, do filme do “Paris, te amo” (2006). A cena nos apresenta de modo esplêndido exatamente aquilo que Marc Augé fala no seu livro sobre os paradigmas da mobilidade sobremoderna: superficialidade, que por vezes pode vir configurada como indiferença e individualismo. O inusitado fica por conta da cena apresentada no filme onde uma pessoa lê algum tipo de “manual turístico” enquanto aguarda o metrô. Paris, segundo o referido manual é um lugar definido como “cidade luz, cidade da cultura, da gastronomia e da arquitetura, dos amantes da arte, da história e dos amantes, do amor”, mas que se deve “evitar o contato visual com os demais”. O metro é “rápido, limpo e seguro”, mas “tome cuidado com os batedores de carteira”. O filme segue sua trama a partir disso. Não é à toa que foi exatamente no metrô de Paris que a figura icônica do sujeito indiferente àquilo que acontece ao seu redor também me veio à memória. Trata de uma intervenção artística promovida pelo Naturally 7, conhecidos mundialmente por serem um grupo de “vocal play”. Na ocasião, eles estão dentro de um dos vagões do metrô e começam a cantar à capela. Aos poucos os passageiros começam a se envolver com aquela intervenção a passam, inclusive, a cantar juntos. Há, no entanto, um sujeito que parece fazer questão de demonstrar indiferença àquilo tudo. Ele fica permanece de costas, com seus fones de ouvido ligados e, por uma ou duas vezes, dirige aquele olhar arrogante aos membros do Naturally 7.
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Há duas questões que me vêm à tona a partir dessas duas cenas e que gostaria de coloca-las antes de compartilhar a que presenciei no comboio Porto-Lisboa e que me fez lembrar exatamente dessas duas cenas: uma, sobre a questão da comunicação em transportes coletivos e outra, sobre a questão do lugar da arte. A questão que me chama atenção é exatamente o fato desse grupo também se apresentar em concertos em teatros famosos28. Já a outra questão que me veio é a seguinte: o que diria Janice Caiafa, estudiosa das etnografias e comunicações urbanas, ao presenciar a mesma cena que eu? Caiafa constata que no Rio de Janeiro as pessoas conversam em viagens de ônibus. Ela também pondera sobre o silêncio entre os desconhecidos como um modo de comunicação e afirma que, “para não se ter contato (...) é preciso ativamente evitá-lo” (Caiafa, 2005, 126). Pois bem, o que presenciei foi exatamente isso. As cadeiras do comboio são dispostas umas de frente para as outras. Ou seja, há ali uma configuração espacial que coloca as pessoas em contato, mesmo que apenas visual. E que tempos são esses em que vivemos que já não basta mais ficar calado nas viagens? Que tempos são esses que fazem com que uma pessoa que esteja sentada numa cadeira junte suas coisas sem nenhum tipo de constrangimento e faz questão de deixar claro que está saindo dali para sentar em outro lugar porque outra pessoa sentou à sua frente? Se, nas palavras de Caiafa, “a conversação é a mãe da polidez”, esse gesto seria o que então? Arrisco em dizer: a plena perda daquilo que Caiafa chama de “força da
28
Sobre essa segunda questão, houve um experimento realizado pelo Washington Post e que foi bastante divulgado na rede mundial de computadores. O renomado violinista Joshua Bell ficou por quase 1h tocando no metrô no mesmo dia em que iria se apresentar no principal teatro da cidade. O que ele arrecadou no metrô durante esse período foi quase 1/3 do valor equivalente a apenas um assento de seu show no teatro. Cf.: https://goo.gl/rDGvGp
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alteridade das cidades”, tendo em vista que ela mesma define o habitar a cidade como o ato de “experimentar de alguma forma a vizinhança de estranhos” (Caiafa, 2009, p. 91). Doreen Massey afirmou em seu livro "Pelo Espaço", que, ao avistarmos pela janela do trem alguém que está fora, para nós, é como se sua história começasse e terminasse naquele instante. Como uma cena de cinema que nos toma de relance. Mas todos sabemos que a tal pessoa vista, continua sua trajetória, a despeito da minha. É nesse sentido que Massey vai problematizar a categoria geográfica de lugar, propondo que lugar seja compreendido como eventualidade e encontro de trajetórias. Queria muito perguntar para Massey o que ela teria para dizer sobre esses mesmos "encontros" quando ocorrem dentro, por exemplo, do trem. Voltando de Porto para Braga me pus a observar e a pensar sobre isso. Talvez Massey me respondesse, a exemplo de Bauman, que nossa maior eventualidade seja o desencontro como marca de um corpo social cada vez mais delineado pelo avistamento da passagem do outro como outro. Passagem essa que é distante e fugaz. Então fiquei pensando: Se alguém senta ao nosso lado, o que posso levar dessa pessoa para que ela não se configure como a mulher da janela que Massey descreveu? Primeiro, penso ser importante dizer que esse outro não me é como um souvenir que o turista faz questão de levar para casa depois de suas "viagens". Sobre isso sugiro a leitura de Alain de Bottom, em especial, seu livro “A arte de viajar”. O fato é que componho um cenário que é tanto resultado de minha observação minuciosa, quanto daquilo que me escapa ou, melhor dizendo, me invade. Nesse sentido, os lugares me parecem ser, por exemplo, como o cheiro daqueles que cruzam nossos caminhos. Há o cheiro da roupa velha, do perfume de grife, do cigarro, do café. Então é isso: lugar é cheiro.
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“Todos os Velhos são Tarados”
Em Lisboa, no metrô, sou abordado por um senhor. O assunto: futebol. Odeio futebol. Fora que não entendia absolutamente nada do que ele falava. Sorri, acenei com a cabeça. Entramos no vagão. Vagou uma cadeira e eu ofereci para que ele se sentasse. Atrás de mim uma moça em pé, com seu namorado, trajando roupas curtas. O senhor, o mesmo do futebol, me pergunta algo do tipo: - sabes por que o verão é bom? Eu novamente sorrio. E ele comentou algo que não entendi muito bem e apontou para a moça semidesnuda. Então pensei: todo velho aqui é tarado? E quando ocorre de um senhor parar em frente a uma mulher e cercála com sua postura invasiva? Isso me diz que todo velho aqui é tarado? E quando um senhor sussurra algo para uma garota que passa por ele na calçada? Todo velho aqui é tarado? Não sei. Mas talvez esse tipo de situação possa explicar muitas coisas.
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“Roupas Velhas”
Hoje vi uma senhora vasculhando o lixo Ela sentia vergonha Tentava disfarçar Algumas pessoas, de longe, tornavam aquela cena um resquício de dignidade De quem? Dos que olham? Dos que são olhados? Hoje vi uma senhora vasculhando o lixo Era um lixo de roupas Serventia para quem não tinha Até que veio o ônibus Nele embarcaram: A senhora, os espectadores e a velha dignidade amassada E as roupas? Continuaram sem serventia Pois a vergonha despiu aquele corpo alheio Com toda violência que um gesto repetido pode conter.
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MORTE DE SI
Memรณrias surgidas na ocasiรฃo do falecimento de um ente querido de uma querida amiga portuguesa. De sua vovozinha, vieram as lembranรงas de meu pai. Do pranto solidรกrio e do abraรงo demorado como um dos gestos mais sinceros que podemos oferecer em momentos como esses, vieram as palavras que seguem:
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“Pele-Paisagem”
A pele que revela o gesto já não se importa mais. Fluxo de pura matéria sonora que, naquele instante, Resolveu silenciar minha voz incontida. Foram dias de luto. A matiz do teu sorriso, Emoldurando aquelas histórias de infância e glória, Já não delineiam o que poderia ser a viagem de dois distintos homens. Aos cinquenta e dois anos, seu coração, que já nem era seu, parou. Então, é isso. O que pode o corpo? - Morrer. Desfazer-se em mistura de terra e bichos. Folhas secas e um escurecer de janelas outras. Os que ficam, seguem com seus corpos em pleno funcionamento. Corpo máquina: todos os dias repete-se o protocolo de ser igual. (Engana-se o poeta). Talvez por acreditar Na métrica dos pássaros que ainda estão aprendendo a voar. Esquece-se, no entanto, Que é no bater de asas que as flores caem E o pólen vai florescer outras paisagens.
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ENCANTAMENTOS Foi na experiência de um “educar” sensível que escrevi sobre quatro momentos em que senti no dançar um gesto para além do normatismo da competição, do “atletismo afectivo”, para citar Gonçalo Tavares (2013) quando explica o modo como a relação corpo-sentimento é atravessado pela técnica, pelo treinamento, no seu sentido mais material, mais normativo, mais utilitarista. Do mesmo modo, foi dessas quatro experiências que também pude sentir um habitar a cidade como algo que reverbera um habitar o corpo. O fato é que sempre me interessei mais, para continuar com Gonçalo Tavares, pelas “anatomias afetivas”, pelos “movimentos emocionais”, e nesse caso, pelas dobras entre dança-corpo-cidade como manifestação de liberdade, de alegria e de autonomia:
•
Luis Claudio Miguel Pereira
Mais conhecido como Luizinho Astral, Luis Miguel é um brasileiro que vive na Espanha há mais de 20 anos. Inicialmente, não sabia que era um conterrâneo, pois o mesmo falava em espanhol. Mas foi num workshop de zouk ministrado por ele num congresso de danças afro-latinas ocorrido em Braga que o conheci. Ele identificou, através da minha corporalidade, que eu já possuía algum conhecido naquele ritmo. E ao conversar comigo e saber que eu era brasileiro, começou a falar com seu sotaque genuinamente carioca. Como um bom brasileiro, Luizinho logo abriu as portas de sua residência em Pontevedra (Espanha). Duas semanas depois estava na sua cidade. Com esse gesto, pude sentir, por alguns dias, como uma morada se faz casa. Dessa experiência,
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escrevi: “Bailados en Pontevedra”
A cidade habitada por corpos dançantes É uma cidade sem os pormenores de uma vida esterilizada Cidade viva Forjada pelo calor de corpos felizes Cidade plena Que faz questão de dizer: "Encantada" "Mi gusto mucho bailar contigo" Elogios ao corpo livre À vida livre Porque "Dançar é ser livre", disse o mestre Luizinho Em Pontevedra Pude novamente sentir O calor de uma vida alegre Ao receber No fim de cada bailado O gesto sincero contido Em cada sorriso Em cada abraço Encantados
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•
Maria Carpaneto e Cristina Novo Faro Teixeira
Por alguns dias pude vivenciar novamente momentos de acolhimento afetivo diante da minha inquietude em relação ao viver em Braga. Acompanhado de minha querida amiga de longa data, Marília Colares, junto com outros três colegas, viajamos para Milão por cinco dias. Nos preparativos, procurei pela internet algum local para que eu pudesse realizar alguma atividade com a dança. Inclusive, houve num dado momento a ideia de visitar algumas cidades da Europa e realizar o mesmo tipo de atividade. No entanto, desisti dessa empreitada. Pelo menos por agora. O fato é que minha busca me levou a conhecer Maria Carpaneto, diretora do Il Filo di Paglia, um centro de formação e produção em dança contemporânea, cinema e vídeo. Com ela, tive a oportunidade de ter uma longa conversa, bem como, realizar um masterclass sobre sua técnica em dança, intitulada PMD – Presenza Mobilità, Danza:
Una presenza per esserci, presenza come qualità indispensabile. Mobilità per essere più disponibili possibili verso lo spazio, la relazione, il contesto, il qui e ora e finalmente poter danzare: scoprire il próprio limite come unicità e potenza, non come difetto.
Já no Porto, tive a oportunidade de fazer um workshop sobre “movimento livre criativo”. Dessas duas experiências, escrevi:
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“Passos Descabidos”
Meu balé é feito de palavras caídas Daquelas que não servem mais ao compasso das formas perfeitas As piruetas são interrogações de um corpo insosso Destempero de terra seca E chão Esse que me abraça como ninguém Porque ele é objeto de destrezas outras Me afaga os pés carinhosamente Dele Eu quero tudo Inclusive A súbita leveza de ser o que é E é o quê?
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“Toda poesia”
Porque toda poesia É uma lágrima contida Um suspiro esquecido Uma alma calada Porque toda poesia É rio seco de afeto Maré alta que molha carência Meia vida batida nas coxas do incerto Porque toda poesia É bebida Copo quebrado Resto de desejo Por isso Todo poeta Morre Cada vez que ele dobra a esquina De uma vida que transborda vazios Porque toda poesia Nem é Mas um dia vai ser E disso Sabe-se bem
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PAISAGEM SONORA DE UM CORPO TRISTE Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue Como beber dessa bebida amarga Tragar a dor, engolir a labuta Mesmo calada a boca, resta o peito Silêncio na cidade não se escuta De que me vale ser filho da santa Melhor seria ser filho da outra Outra realidade menos morta Tanta mentira, tanta força bruta Como é difícil acordar calado Se na calada da noite eu me dano Quero lançar um grito desumano Que é uma maneira de ser escutado Esse silêncio todo me atordoa Atordoado eu permaneço atento Na arquibancada pra a qualquer momento Ver emergir o monstro da lagoa De muito gorda a porca já não anda De muito usada a faca já não corta Como é difícil, pai, abrir a porta Essa palavra presa na garganta Esse pileque homérico no mundo De que adianta ter boa vontade Mesmo calado o peito, resta a cuca Dos bêbados do centro da cidade
(Gilberto Gil/Chico Buarque)
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Estas foram minhas corpografias bracarenses.
Tristes, indiferentes, solitárias.
Isso não significa dizer, em absoluto, que estou qualificando o lugar em si. De fato, penso que isso não existe. Considero essas narrativas corpográficas importantes porque elas me são como um eco ao sentido de comum como qualidade de arte defendida por Warhol quando diz: “se todo mundo não é uma beleza, então ninguém é” (in: Laing, 2017, p. 63). Talvez por isso o verso “does she know that we bleed the same”29, da música “where is my love”30 foi, por quase todo o período que lá estive, a paisagem sonora de minha experiência. Em se tratando do pensar a cidade como esse lugar da indiferença ao invés do convívio efetivo da diferença, isso seria, por assim dizer, uma de nossas maiores “feiuras” como gesto humano. Talvez, por esse motivo, poderei por diversas vezes quando cheguei a conversar com amigos sobre minha infelicidade e os mesmos me sugeriam mudar de cidade. O fato é que eu não queria, a exemplo do que observei, ir para o Porto ou Lisboa, por exemplo, e fazer da minha experiência com aquele lugar uma experiência do gueto e não a do convívio efetivo com a diferença. Dito de outro modo, não queria ser um brasileiro no meio de brasileiros. Ter, por assim dizer, minha rotina ancorada no convívio com aquilo que me seria, mais provavelmente, semelhante.
29 30
Tradução livre: “ela sabe que nós sangramos o mesmo?”. Tradução livre: “Onde está o meu amor’.
219
Eu queria mesmo era a troca efetiva, a partilha, a interlocução igualitária. Infelizmente, na medida da intensidade eu gostaria e do tempo que tive, isso não foi possível. Sim, todos nós sangramos igual. Foi nesse sentido que a melodia de Syml31 me trouxe uma série de outras canções. Todas elas, de algum modo, me falavam desse sentimento que foi ficando cada vez mais forte: o de voltar para casa. Estou me referindo, por exemplo, à “Não existe amor em SP”, de Criolo, em especial quando a canção diz:
Devolva minha vida e morra Afogada em seu próprio mar de fel Aqui ninguém vai pro céu - Me dê um gole de vida Dela nasceu o poema “mais amor por favor” e “o amor é importante... Porra!”, onde descrevo a minha Braga, fruto das minhas andanças e observâncias:
31
De seu estúdio de gravação no porão na pequena cidade de Issaquah, WA, fora de Seattle, Brian Fennell escreveu e gravou uma coleção de músicas sob o nome Syml, o que significa simples em galês. Adotado e não sabendo sua história ou conexão com suas raízes galês, muitas dessas músicas foram influenciadas pelos sentimentos complexos que vêm de linhagem desconhecida”. Fonte: http://www.symlmusic.com
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“Mais amor, por favor”
Há um pouco de SP No bêbado sentado no banco da praça E ele chora. Há um pouco de SP Na cadeira vazia E no sujeito que fica em pé no busão Que nem está lotado. (Ninguém quer uma companhia na cadeira do lado) Há um pouco de SP Onde há pouco Menos ainda que o sorriso disfarçado Sozinhos perdemos tal capacidade “Mais amor”, diz o poeta (Em vão?) Há um pouco de SP No corpo extraviado Abandonado No chão e no palavrão Escondidos em cada perna entreaberta Há um pouco de SP No tom amargo da boca que não sente fome Porque saciados estão aqueles que vomitam ego Enquanto isso, eco:
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“O amor é importante... Porra!”
Em tempos de insensatez Indiferença Hipocrisia Em tempos de falsa nudez Tanto talvez Tanta apatia Que se faça agora O que já não é tarde - Devir Inesperada hora Sem muito alarde - Sentir Porque Em tempos como esses Tempos modais Tempos cabais Em tempos como esses Tempos dos quais Não se quer mais Grito aos que ainda aqui estão Faço do gesto Tua força e vontade E diga sem medo Do amor, que seja Nossa verdade
222
Eco também no verso “não quero passar agosto esperando setembro”, da música “Bandeira”, de Zeca Baleiro. Inspirações para a escrita do poema:
“cotidiano insosso”:
Tchau! Despedidas são necessárias Porque alguns ciclos são estéreis demais E não há nada mais eloquente Que o cotidiano acostumado Sabe aquele bom dia insosso? Aqui tem sim senhor! Sabe aquela prosa boa? De horas a fio? Sem nem o que é Pois então, o que me resta é o resto E disso estou farto O bucho já por acolá De tanto vazio sonoro que engoli Naquela conversa que nunca aconteceu Por quê? Aqui, se perguntar, vão te dizer: Porque sim! E mudo, escuto Baleiro:
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“Não quero medir a altura do tombo Nem passar agosto esperando setembro Se bem me lembro O melhor futuro, este hoje escuro O maior desejo da boca é o beijo Eu não quero ter o Tejo me escorrendo das mãos Quero a Guanabara, quero o rio Nilo, Quero tudo ter estrela, flor, estilo Tua língua em meu mamilo, água e sal Nada tenho, vez em quando tudo Tudo quero mais ou menos quanto Vida, vida noves fora zero Quero viver, quero ouvir, quero ver (se é assim, quero sim... acho que vim pra te ver)”
(Zeca Baleiro)
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- sĂŠrie fotogrĂĄfica a morada e a rua
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Quais seriam os desdobramentos dessas experimentações epistêmicopoéticas? Fiquei me perguntando se poderia mesmo chamar assim. Prefiro “relatos”, quiçá, “relatos poéticos”. Talvez... O fato é que, cada questão ou cada proposição contida nessa experiência de isolamento e observação silenciosa, como num grande espetáculo, entram em cena no ato de pensar a cidade. Isso, por sua vez, implica num exercício constante de experimentações conceituais e modos de observação outros que apontam para uma geografia atenta aos gestos dos corpos que habitam, portanto, fazem a cidade. Escala intensiva e híbrida. Aprendi que o gesto só existe no contato, na afetação, na relação outrem. A exemplo da antropologia da cidade, de Agier (2011), recuso qualquer tipo de constrangimento institucional que arbitre normatizações e homogeneizações colonizadoras de métodos e conceitos que convertem a cidade numa coisa exterior e universal. A cidade, proponho, é antes de tudo, devir. Uma cidade como devir implica, de pronto, escapar do binarismo e das relações de identificação:
Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimese),
mas
encontrar
uma
zona
de
vizinhança,
de
indiscernibilidade ou de indiferenciação tal que já não seja possível distinguir-se (...) o devir está sempre “entre” ou “no meio” (Deleuze, 2011, p. 11-12).
O que desejo instaurar como zona de vizinhança da cidade como devir? Agenciamentos de sua função fabuladora. Cidade como ficção de si mesma. Rascunho que nunca ganha papel de autoridade. O que aproximo? O
245
corpo, uma grafia pelo corpo, no corpo. Corpo-lugar, a exemplo do que questiona Ciacciari quando diz: “Se somos lugar, como podemos não buscar lugares” (2009, p. 45). Nesse sentido, gostaria de fazer um breve pas de deux32 com Paola Berenstein Jacques (2008). Ela propõe:
Através do estudo dos movimentos e gestos do corpo (padrões
corporais
de
ação)
poderíamos
decifrar
suas
corpografias e, a partir destas, a própria experiência urbana que as resultou. Neste sentido, a compreensão de corpografias pode servir
para
a
reflexão sobre
o
urbanismo,
através
do
desenvolvimento de outras formas, corporais ou incorporadas, de se apreender o espaço urbano para, posteriormente, se propor outras formas de intervenção nas cidades33.
Contrariamente do que afirma a autora quando busca delimitar aquilo que constitui a coreografia, a cartografia e a corpografia, penso na possibilidade, por exemplo, do que significaria aos estudos sobre a cidade pensarmos uma corpografia urbana como ato coreográfico. Essa proposição implica, necessariamente, numa reflexão sobre qual o sentido de corpo, de mapa e de dança que qualifica os atos estéticos em questão. A despeito do que diz Paola Berenstein Jacques sobre a corpografia como uma cartografia daquilo que revela o corpo como inscrição de uma experiência, vejo como potência exatamente o que ela tenta separar: aquilo que ocorre em qualquer projeto de movimentação corporal - coreografia - ou seja, a atualização do projeto pelo corpo do bailarino. Essa tomada de posse corporal
32
Termo do ballet clássico que, em francês significa "Passo de dois". É o trecho do ballet dançado por um bailarino e uma bailarina. 33 CF.: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.093/165
246
é exatamente a linha de fuga que encontro diante do experimentador científico, para novamente usar dos termos de Rancière. Um contraponto ao viés teleológico apontado por Jacques (2008):
Essas corpografias podem ser cartografadas, mapeadas, representadas ou ilustradas. Alguns artistas já fizeram esse tipo de representação mas são as próprias corpografias, já inscritas nos corpos como corporalidade, que nos interessam e estas não precisam ser representadas para se tornarem visíveis. Os gestos e movimentos do corpo que fez a experiência urbana já revelam suas corpografias34.
Prefiro pensar que corpografia jamais é síntese ou revelação. Isso porque não lido, por exemplo, com a concepção de mapa como algo que indica localizações, onde nós, de posse de tal mapa, podemos repetir o movimento de retorno às origens da experiência urbana que resultou tal corpo. Não adianta falar de corpos errantes e atravessá-los com uma perspectiva representacional do próprio ato cartográfico. Pas de trois35:
Os mapas, ao contrário, se superpõem de tal maneira que cada um encontra no seguinte um remanejamento, em vez de encontrar nos precedentes uma origem: de um mapa a outro não se trata da busca de uma origem, mas de uma avaliação dos deslocamentos. Cada mapa é uma redistribuição de impasses e aberturas, de limiares e clausuras (...) Os mapas não devem ser
34 35
CF.: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.093/165 Dança de ballet entre três pessoas.
247
compreendidos só em extensão, em relação a um espaço constituído por trajetos. Existem também mapas de intensidade, de densidade, que dizem respeito ao que preenchem o espaço, ao que subtende o projeto (Deleuze, 2011, p. 86-87)
Nem mesmo o corpo aceita ser síntese ou revelação, suporte ou organismo. Lido com uma concepção de corpo que é inteiro e desorganizado, no sentido que propõe Deleuze e Guattari (1996) ao tratar do “corpo sem órgãos” (CsO). É o que busquei problematizar no capítulo “O que pode uma geografia como corpo que dança”. De todo modo, se ter um corpo é aprender a ser afetado, esse corpo - superfície de afetos múltiplos - quando dança, tornase, nas palavras de Gonçalo Tavares, “a perfeita duração do espaço”, o que é, por sua vez, matéria prima para a constituição do ato coreográfico. Uma corpografia da cidade, portanto, me chega de modo muito mais instigante quando penso nos processos de investigação e de criação desprendidos pela coreógrafa alemã, Pina Bausch. Em especial, nas suas obras intituladas “Residências”, onde sua companhia se estabelecia por um ou dois anos numa determinada cidade para estudá-la e, ao fim, apresentar um espetáculo. O objetivo não é “representar”, explica Solange Pimentel Caldeira no seu texto sobre as construções poéticas da coreógrafa e seu olhar sobre as cidades, “mas sim, captar as sensações do lugar. Trata-se de sempre tentar ´ver´ de uma outra maneira, de outros ângulos, de contaminar-se por algo que está fora do habitat quotidiano” (Caldeira, 2009, p. 139). Conclui a autora que Pina realiza uma cartografia do imaginário, onde o corpo é sua matéria prima:
248
As obras residenciais de Pina Bausch nos presenteiam não com a comodidade das metáforas indicadoras de realidades familiares, mas com virtualidade de ações, narrativas incompletas, desassossegos produtores de mundos possíveis ou impossíveis, que têm o corpo da cidade como fundamento singular (Caldeira, 2009, P. 144).
Como um rizoma, suas obras realizam mapas intensivos de multiplicidade e experimentação. Elas nos oferecem, portanto, aquilo que Deleuze e Guattari chamam de “protocolos de experiência” (Deleuze; Guattari, 2002), que seria artifício de como se entra nos lugares e de como esse lugar “muda” dependendo exatamente dessa “entrada” (Queiroz Filho, 2012). Seria necessário escrever outro texto apenas para lidar com a perspectiva da Pina Bausch como “geógrafa”. Por ora, me contento em partilhar o sorriso que afagou minhas perenes inquietações ao encontrar mais uma possibilidade de interlocução. Antes de tratar do ato coreográfico, deixo aquilo que talvez seja para mim o gesto intensivo mais significativo da coreógrafa sobre o pensar a cidade. Ela diz: “Cidades são como pessoas, é preciso se apaixonar para descobri-las” (Bausch, in: Katz, 1997, p. 13) Diante de tudo isso, meu retorno ao Brasil teve como máxima uma assertiva definidora daquilo que meu corpo assumiu para si como afeto que lhe é constituinte: “onde não puderes amar, não te demores“. Com isso, enchi minha mala de livros, roupas sujas, alguns versos amarrotados e voltei. Porque foi pela poesia que consegui vislumbrar algum sentido naquela experiência, afinal de contas, é “a experiência, e não a verdade, é o que dá sentido”, afirmam Jorge Larrosa e Walter Kohan na apresentação do belo livro “Tremores: escritos sobre experiência”. E sem dúvida, minha geo-grafia é isso.
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Não quero ter A terrível limitação De quem vive apenas Do que é passível de fazer sentido. Eu não: Quero uma verdade inventada (Clarice Lispector)
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ESPAMOS de um corpo poético
- Dos relatos – palavras do corpo inteiro.
251
- Grafias de mundo, com “g” minúsculo e no plural: geografias - Verdade e Representação: duas palavras que mais têm sido evitadas por diversas áreas do conhecimento. As escrevi em maiúsculo, pois elas chegam neste texto como ponto de partida para as reflexões que desejo evidenciar. Durante muito tempo, foram as balizadoras daquilo que se considerava como Conhecimento, também em maiúsculo: grafia de autoridade, de autoafirmação, do nome que é próprio, grafia capital, que aspira poder, uma Grafia Maior.
- Na esteira das reflexões pós-estruturalistas, me ponho a sobre os encalços produzidos por essas grafias maiores, por essas hegemonias de pensamento, interpretações dominantes. Reguladoras de nossas práticas sociais e discursivas, esses modelos paradigmáticos fazem convergir todas as múltiplas narrativas, linguagens, discursos e intenções para um lugar na fila da nossa História Única, em maiúsculo. E “como é minúsculo o olhar de quem vive no escuro”, canta o músico capixaba Sergio Sampaio. É essa grafia, feita no escuro e em minúsculo que nos interessa.
- O que me interessa aqui é entender como esses procedimentos são possíveis para uma ciência que é fortemente assentada nos paradigmas da representação. Prima pobre das humanidades, a Geografia ainda insiste em realizar um movimento por demais empobrecedor: o da autoafirmação como ciência. É empobrecedor, pois ela toma como referência aquilo que definia o fazer científico no século da razão, o que a impede de sair desse divã egóico na qual ela está deitada até os dias de hoje.
252
- Se Édipo é valor mercantil da neurose, positivá-lo seria “desterritorializar Édipo no mundo”, no sentido de aumentá-lo, sair da submissão, abrir o impasse, desbloqueá-lo (Deleuze; Guattari, 2002, p. 30). Desterritorializar: tirar do lugar comum. Outra marca do pensamento menor. Como tirar (sair) a Geografia do seu lugar comum? [...] (uma saída não é “a liberdade”), a saída, pelo contrário, não consiste de maneira nenhuma em fugir. Todavia, por um lado, a fuga só é recusada como movimento inútil no espaço, movimento ilusório da liberdade; esta é, em contrapartida, afirmada como fuga no mesmo sítio, fuga em intensidade (Deleuze; Guattari, 2002, p. 35, grifo do autor).
- Em vez de querer representar o mundo, a geografia poderia devir o mundo. “O devir é captura, posse, mais valia; nunca é reprodução ou imitação” (Deleuze; Guattari, 2002, p. 35). E os devires geográficos certamente só são possíveis não pela negação e, sim, pela rasura daquilo que a própria Geografia desqualifica, deslegitima. Não para encontrar nelas uma Geografia atestada e verificada nas folhas e telas, mas para desterritorializar. Nesse sentido, não nos interessa a busca da fidelidade atribuída ao olho e continuada nos traços de um mapa ou imagem digitalizada; como uma reprodução de uma “cartilha visual”
253
(Queiroz Filho, 2010), daquilo que Susan Sontag (2004) chama de “gramática do ver”.
- Para Manoel de Barros, não interessa o olhar capturado pelo óbvio, assim como para Kafka, não interessava a música organizada – a forma musical ou a música “semioticamente formada”, “mas a pura matéria sonora intensa”, “som musical desterritorializado” (Deleuze; Guattari, 2002, p. 22-23). Para a geografia, com “g” minúsculo, não interessa, por exemplo, o mapa fiel do lugar – um mapa de ruas, de localização, de caminhos já percorridos a serem percorridos por outros. - Deleuze e Guattari perguntam: como entrar na obra de Kafka? E nos perguntamos: como “entrar” num lugar? E continuamos: como sair de um lugar? Deleuze e Guattari (2002, p. 19) comentam: “qual o mapa do rizoma, e como imediatamente ele se modificaria se entrássemos por um outro ponto [...]”. E nós: qual mapa [geografias] do lugar... Como entrar e sair de um lugar? Deleuze responde: por meio de protocolos de experiência, por meio da experimentação.
- Rasurar a ideia de relato como cópia, descrição, representação. Assumir a própria viagem como exploração e descoberta, antes e depois de sua produção, assim como são as crianças quando chegam ao parque de diversões. Quando olham para a roda-gigante. Corpos que se agitam no clique da trava. Começa a jornada.
254
- A criança explora... o desejo e, ao mesmo tempo, o medo do que será descoberto quando seus olhos chegarem ao topo. Viajamos como “o menino que carregava água na peneira” (Barros, 2010):
Tenho um livro sobre águas e meninos. Gostei mais de um menino que carregava água na peneira. [...] O menino era ligado em despropósitos. Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos. A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio. Falava que os vazios são maiores e até infinitos. [...] Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira. [...] O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens. Foi capaz de interromper o voo de um pássaro botando ponto-final na frase. Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela. O menino fazia prodígios. Até fez uma pedra dar flor! [...]
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- Relatos feitos de memórias, rastros, pegadas, derivas, numa geografia do corpo que percorreu por um determinado lugar e nele se intensificou: memória e corpo como constituintes das geografias que fazemos dos lugares. Essa intensidade é o que o relato, nessa perspectiva, busca dar visibilidade.
- Tomar a produção de relatos de viagem a partir da aproximação entre Geografia e Arte. Aproximar também os métodos de produção do conhecimento geográfico, suas respectivas “grafias”. Dobrar uma sobre a outra. - Reforçar a ideia de autoria com a qual lidamos nestas reflexões e em nossa atividade. Como não estávamos em busca da verdade sobre o lugar para o qual viajamos, verdade essa comumente vendida pelos encartes e sites turísticos, autoria diz respeito ao movimento realizado por aquele que produz qualquer obra na e pela linguagem, de dar a ver os traços de sua grafia, o peso de sua mão, os impulsos, os suspiros, as escolhas e intencionalidades que mediam todo e qualquer processo de produção de pensamento.
- Não quero a ocultação daquele que fala, como nos chama atenção Jorge Larrosa quando discute sobre o poder da verdade e a verdade do poder (Larrosa, 2010). O propósito não era o de reproduzir o “efeito-realidade” de que fala Larrosa, e sim de proporcionar aquilo que o autor qualifica como “pluralização da realidade” (Larrosa, 2010, p. 154).
- O que os relatos estão por fazer, no limite, é colocar em dúvida o poder da realidade representacional traduzida, por exemplo, pelas imagens fotográficas. Eles estão
256
evidenciando o “caráter plural da verdade, [...] o caráter construído da realidade, [...] o caráter poético e político da linguagem” (Larrosa, 2010, p. 164).
- Nos “perder”, no sentido benjaminiano do termo. Afinal de contas, não busco definir o lugar, mas, de alguma forma, compreendê-lo em sua polifonia e policromia de significados possíveis, como nos aponta o antropólogo italiano Massimo Canevacci. Para o autor, “compreender uma cidade significa colher fragmentos. E lançar entre eles estranhas pontes, por intermédio das quais seja possível encontrar uma pluralidade de significados” (Canevacci, 2004, p. 35).
- E assim fomos a busca dessa pluralidade, sendo plurais. - O intensivo e o extensivo se contaminaram. Dobrar um sobre o outro, produzir um novo território existencial, um novo lugar conceitual, um novo espaço sensível. Deixar de lado a linguagem geográfica representativa para “tender para os extremos ou limites” (Deleuze; Guattari, 2002, p. 49) dessa própria linguagem: desterritorializar o pensamento geográfico estabelecido.
- Dos relatos – palavras do corpo inteiro
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- Há paisagem num olhar entristecido? Há fronteira num sorriso contido? Há território num abraço apertado? Há lugar num suspiro de prazer? Qual seria a escala contida num corpo nu? Qual seria a escala para uma geografia que saboreia o mundo? Saborear o mundo significa reconhecer, em grande medida, que o espaço contém cheiros, gostos, sensações, esbarrões, piscadelas, náuseas, enfim. Experienciamos o mundo de corpo inteiro, com o estômago, com a boca, com as mãos, com o nariz, e também com os olhos (Queiroz Filho, 2007). Os dois relatos a seguir são assim, para saborear.
- Parafraseando Deleuze e Guattari: o mesmo será dizer que “menor” já não qualifica certas geografias, mas as condições revolucionárias de qualquer geografia no seio daquela que se chama grande. Por isso nossos relatos são menores: eles foram feitos de multiplicidades, de imagens que nos apontaram, ao mesmo tempo, para as hegemonias e intencionalidades já estabelecidas, mas também para possibilidades outras de produção de conhecimento e de (a)fetividade política. Relatos feitos com uma grafia constituída de aproximações e experimentações. Relatos feitos com uma grafia escrita com “g” minúsculo e no plural: geografias.
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Palavras, Desejos, E um pedaço de chão ... Um não: todos! Lugar-Ausência Que cabe numa mochila Daqueles que passam Mesmo estando Lugar-Silêncio Revestido pelo mar Que teima em anunciar suas ondas Numa sinto(cro)nia elegantemente repetida Lugar-Fronteira Comarca de forasteiros Onde o juízo é a ponta da faca Ou o barulho do pipoco. Lugar-Preguiça Assumido por alguns Entendido por poucos Lugar-Intensivo Remissivo Alusivo Lugar-Memória Grafado nos pés E no coração que cansou de bater Continuadas No Lugar-Geografias De cada um.
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REDESCOBERTA do corpo,
- Foi, no Brasil, que pude compreender o corpo como mapa intensivo. Mapa como marca, gesto, movimento. Mapear, portanto, como ato político-poético que utiliza como fonte aquilo que foi absorvido ou repelido, tal como um tecido vibrátil, que reverbera sensações e afetos dos mais diversos, afinal de contas, como enuncia Bruno Latour, “ter um corpo é aprender a ser afetado”.
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A partir das palavras de alguns amigos, onde as mesmas me puseram a fazer da solidão um exercício de criação com tudo aquilo tudo aquilo que via e sentia. Busquei, a partir disso, tornar-me um observador ativo. Foi assim que pude permitir que inspirações outras compusessem o sentido e o tom da minha escrita aqui disposta. E isso era algo que não poderia ser negligenciado por uma escrita feita na tessitura com o lugar, que é do corpo, mas que é também, da experiência, da memória, enfim, lugar da linguagem. Desse gesto, surgiu o reconhecimento da necessidade de um ajuste no processo de pesquisa e, portanto, na própria escrita deste livro. O fato é que Portugal me proporcionou, essencialmente, uma corpografia de afetos tristes e eu precisava falar de outras corpografias. Retornar, portanto, constitui-se não apenas como uma necessidade, mas como último gesto para fazer sobreviver o trabalho de pesquisa e de escrita a qual me propus a fazer. Foi, no Brasil, que pude compreender, efetivamente, como a redescoberta do corpo promove, por intensidade, uma captação mais afinada com o lugar e os diversos percursos diários que por ele fazemos. Foi, no Brasil, que pude compreender que “A cadeira é cadeira e o quadro é quadro porque te participam”, como versa a Conjugação do Ausente, de Vinicius de Moraes, escrito em 1954. Foi nesse tom que a rua passou a ser rua, a casa a ser casa, a cidade ser cidade e as pessoas serem pessoas. Foi, no Brasil, que pude compreender o corpo como mapa intensivo. Mapa como marca, gesto, movimento. Mapear, portanto, como ato políticopoético que utiliza como fonte aquilo que foi absorvido ou repelido, tal como um tecido vibrátil, que reverbera sensações e afetos dos mais diversos, afinal de contas, como enuncia Bruno Latour, “ter um corpo é aprender a ser afetado”. A partir desse momento que surgiu como percurso possível a ideia de fazer reverberar vivências do cotidiano a partir da perspectiva do corpo como
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mapa, criando assim, uma espécie de carto-corpo-grafia da experiência. E assim este livro foi escrito, como fluxo, trajetória, como “uma valsa que não faz pose”, a exemplo do que explica Maitê Bumachar, bailarina e professora de dança contemporânea quando diz que a trajetória do movimento é tão ou até mais importante quanto seu ponto de partida e de chegada. É preciso, em suas palavras, saber verdadeiramente usar os momentos de pausa, respiração e passagem. É, portanto, pelo agenciamento corpóreo que a sua dança contemporânea me oferece que vislumbro, efetivamente, o “esticar dos horizontes” de que fala Manoel de Barros. Talvez seja por isso que hoje compreendo a importância do “estica o pé”, “estica o joelho”, “meia ponta alta”, “linha do pé”, “tronco ereto”, dentre tantas outras “posturas” que são tão eloquentemente demandadas pelo ballet clássico. Essas “palavras de ordem”, bem como suas “desaprendizagens” não são apenas formas de colocar o corpo, são formas de se colocar no mundo. Ou seja, quando Gabriela Camargo, bailarina e professora de ballet clássico, nos diz que para dançar é preciso “ocupar o espaço da música”, hoje percebo como, de fato, isso quer dizer mais sobre um ocupar a si mesmo. Dito de outro modo, tanto as “palavras de ordem” do ballet clássico, como as “desaprendizagens” da dança contemporânea, são, nada mais, que um descortinar de novos possíveis, alinhavados por uma métrica que acolhe a criação de si mesmo como um devir do cotidiano. Engana-se, portanto, quem pensa que o agenciamento do ballet não é poético, afinal, Manoel de Barros está aí para nos lembrar a importância do “repetir, repetir, até ficar diferente”. Ficar diferente, penso, trata de uma aprendizagem que combate nossa indiferenciação em relação ao mundo. Ficar diferente é não ser indiferente em relação aos afetos que, de algum modo, nos atravessam.
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Ficar diferente é produzir um “sujeito articulado”, nos temos de Bruno Latour, que seria “Alguém que aprende a ser afectado pelos outros – não por si próprio”. Por isso, uma vida citadina que tem indiferença a marca de suas relações diminui consideravelmente a possibilidade de compreendermos a cidade como lugar de afetamentos, portanto, de diferença. Parafraseando Latour, a cidade ou a vida citadina por si próprio:
não tem nada de interessante, profundo ou válido. Este é o limite de uma definição de comum. Um sujeito (digo: a cidade ou a vida citadina) só se torna interessante, profundo e válido quando ressoa com os outros, quando é efectuado, influenciado, posto em movimento por novas entidades cujas diferenças são registadas de formas novas e inesperadas (Latour, in: Nunes; Roque, 2008, p. 43).
Talvez não tenha sido à toa que os registros fotográficos que fiz em Portugal foram quase que exclusivamente fotografias de rua, de paisagem e de arquitetura. Já no Brasil, a experiência do retrato36 em situação de aula de dança e de ensaios coreográficos foi o que pautou meus registros, que no seu conjunto intitulei de “Corporema”. Em ambos os casos, os registros tiveram essencialmente dois objetivos:
36
Gosto do entendimento do fotógrafo Ronaldo Carvalho sobre a ideia de “retrato”. Ele explica que retratos são fotografias em que a pessoa sabe que está sendo fotografada, independente do lugar. Cf.: https://goo.gl/dRHqsf
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• Observação atenta, minuciosa A realização desse exercício mesmo de observação, que está longe de ser algo passivo e sim, algo como a “escuta analítica ou poética” de que fala Louppe. Por isso, essas fotos são algo mais como uma “hermenêutica da dança”, no sentido que propõe Sally Gardner, citado por Louppe, a saber, como um diálogo que é:
Variável, flutuante e profundamente circunstancial, ligado a uma experiência dificilmente generalizável, passa por um tecido conjuntivo de relações sensoriais entre a dança e sua testemunha (Louppe, 2012, p. 32)
Quanto mais se aprende a ter um corpo pela dança, melhor se aprende a ouvir: “A escuta analítica ou poética não é radioscopia. Participa em todo o corpo” (Louppe, 2012, p. 31).
• Estímulo Sensível Servir de disparador daquilo que pode ser dito pelo que se é visto A fotografia como pretexto O que importa mesmo é que vai ser dito no “enquanto” Portanto, instante como duração Olhar como mapeamento silencioso De um corpo que é De um corpo que faz Corpo-palavra
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Olho-dizer Pés e pensamentos Corpo sem feição, sem identidade Eco: Corpo Que é poema, que é mapa Corpo-afeto Que conta uma história De quem viveu os lugares Como a si mesmo Por isso Corpo como primeira Geografia
Corpo-grafia Que é Sobretudo Vida Por isso Corporema
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- série fotográfica “corporema”
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- corpo como territรณrio (Descrever? Descrever!)
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Descrição pormenorizada Aproximar o movimento daquilo que é CHEIRO Movimento com aroma. Ser subtil no limite. Tornar indistintos, o lado esquerdo e o lado direito. O lado esquerdo do som. O lado esquerdo do Aroma. Intensificar o Aroma do lado direito. É 1 bailarino. Acrobata dos Aromas, dizes. Dança (isto é: cheira bonito do espaço). Consigo tocar o Aroma de cima com o de baixo. Assim. Flexibilidade do Invisível. Pobreza no Excesso. Transbordar de Mínimos. (Gonçalo Tavares, Livro da Dança)
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- corpo como paisagem (Estética? Estética!)
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Estética do átomo a estética do átomo. a arte do átomo. Que importa a beleza daquilo que se pode ser belo? Importante a beleza do Impossível. a ciência encontrou muito, não encontro nada, a ciência não encontrou nada. encontrou nomes. a estética do átomo. a arte do átomo. a deusa do interior foi mudar a cor do cabelo e cá fora os atentos elogiam a brusca mudança brusca mas acertada do cabelo da Mudança do cabelo, a deusa interior da anatomia exterior está de parabéns porque mudou a estética e a arte para azul claro, claro mas FUNDO. (Preocupações estéticas com o átomo Preocupar-se com a estética do átomo) (Gonçalo Tavares, Livro da Dança)
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- corpo como espacialidade (Metodologia? Metodologia!)
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Metodologia Tornar o chão Louco. a importância da ATMOSFERA é a Psicanálise perante o deitado (o chão). Tornar o chão Louco para que a ATMOSFERA possa dar conselhos. Depois, a seguir, tornar a atmosfera louca. (Gonçalo Tavares, Livro da Dança)
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“O CORPO é a nossa primeira geografia”,
- Provocações dessa natureza servem para criar inícios. Fazer mover pensamentos “a partir de”. Serve para instigar uma jornada.
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Tatuagem (Chico Buarque e Ruy Guerra)37 Quero ficar no teu corpo feito tatuagem Que é pra te dar coragem Pra seguir viagem Quando a noite vem E também pra me perpetuar em tua escrava Que você pega, esfrega, nega Mas não lava Quero brincar no teu corpo feito bailarina Que logo se alucina Salta e te ilumina Quando a noite vem E nos músculos exaustos do teu braço Repousar frouxa, murcha, farta Morta de cansaço Quero pesar feito cruz nas tuas costas Que te retalha em postas Mas no fundo gostas Quando a noite vem Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva Marcada a frio, a ferro e fogo Em carne viva Corações de mãe Arpões, sereias e serpentes Que te rabiscam o corpo todo Mas não sentes
37
1972 © Cara Nova Editora Musical Ltda.
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Foi numa das primeiras aulas da disciplina de Estudos Culturais (ICS/UMinho) que ouvi essa frase: “o corpo é a nossa primeira Geografia”. Na ocasião, a Profa. Ana Francisca de Azevedo, ao proferi-la, estava fazendo menção aos estudos do corpo realizados pela ciência geográfica e que configuraram o livro por ela organizado, intitulado Geografias do Corpo: ensaios de Geografia Cultural. Fiquei com aquela frase entranhada. Porque se “o corpo é a nossa primeira geografia”, sinto a necessidade de pensar para além da pergunta espinosana “o que pode o corpo?”. A questão que me abraça agora versa, em conjunto com essa primeira, sobre o sentido de corpo que estou lidando. Quando tatuei essa frase em meu braço e publiquei uma foto na minha rede social, foi engraçado ler alguns comentários que tentavam adjetivar, teorizar ou até mesmo definir o sentido da palavra corpo ou da palavra geografia grafada em mim. Destaco duas assertivas, pois quero me demorar um pouco nelas:
- “acredito no que você acredita, tanto que virou marca na pele” Corpo como registro, revelação de uma dada forma de acreditar? Duas questões: primeiro, a ideia do corpo como tela, como superfície, como “imagem”,
como
signo
representativo
(redundância?);
segundo:
a
superficialidade da palavra crença, que habita, penso, os mesmos lugares das opiniões. Apontamento claramente larrosiano. Jorge Larrosa, filósofo espanhol, trata de diferenciar aquilo que é da ordem da informação/opinião e aquilo que é da ordem do conhecimento/experiência. Meu corpo, meu gesto de grafia no meu corpo, é um ato lorrosiano, por assim dizer. Explico:
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As palavras produzem sentido, isso diz não apenas Larrosa. Ficamos assim. Portanto, dizer “acredito no que você acredita” não é a mesma coisa de dizer, por exemplo, “estou de acordo com o que você pensa”. Pensar aqui não pode ter seu sentido reduzido à crença ou opinião. Pensar é dar sentido, criar sentido, argumenta Larrosa:
As palavras com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos são mais que simplesmente palavras. E, por isso, a luta pelas palavras, pelo significado e pelo controle das palavras, pela imposição de certas palavras e pelo silenciamento ou desativação de outras palavras são lutas em que se joga algo mais do que simplesmente palavras, algo mais que somente palavras.
Então, quando digo “o corpo é nossa primeira geografia”, precisamos nos demorar um pouco mais nos detalhes do modo como isso é “dito”. No limite, está aí uma provocação conceitual. Na verdade, uma série delas. Provocações dessa natureza servem para criar inícios. Fazer mover pensamentos “a partir de”. Serve para instigar uma jornada. A crença, no entanto, é ponto de paragem, lugar de calmaria, por assim dizer. Abrigo e celeiro da quietude. Estou longe disso. O fato é que, para fazer pensar, é preciso lidar com esta frase de modo mais curioso. Como uma criança que interroga tudo aquilo que vê, pergunto: qual sentido de corpo? É físico? É superfície? É simbólico? Há algum outro sentido que eu desconheça e que pode transformar esse suposto sentido inicial que atribuí? Continuo: primeira geografia? Por que primeira e não
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segunda? Quando ocorre a primeira e quando vem a seguinte? Qual seria essa seguinte? E esse “g” minúsculo? Foi intencional? A grafia em minúsculo é uma marca das “passagens subterrâneas do pensamento”38.
Portanto,
uma
geografia
escrita
assim,
indica
um
atravessamento por diversas formas de inteligência, todas elas configurando-se “atalhos e desvios, mas jamais em vias diretas” (Joseph Vogl39). Por isso interessa mais estudar os modos como ocorrem os movimentos num sistema de passagens, uma “etologia” do movimento, explica Vogl. A isso estou chamando de geografias, com “g” minúsculo e no plural. E o corpo? Esse seria o próprio lugar dos encontros imprevistos, um rizoma:
Rizoma (lugar dos encontros imprevistos): 1) Nenhum começo, nenhum fim; 2) Nem centro, nem periferia; 3) Sistema de passagens
Sua condição primeira não é tanto de linearidade, nem sequencia, mas de “localidade”. Um mapa do rizoma é sempre primeiro, porque ele nunca é suficiente, no sentido de “inteiro”. Não há generalidade nessa cartografia do corpo, mas traços que indicam aproximações. Portanto, o “g” minúsculo é indicativo de uma forma de inteligência: a capacidade de encontrar começos cada superfície de contato, é um estudo dos “múltiplos processos de troca”: “qual é o mapa do rizoma e como é que 38 39
Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=2k-wWziPk-g Idem.
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este, de repente, se modifica se se entrar por qualquer outro ponto?” (Deleuze; Guattari, 2002, p. 19). Joseph Vogl trata do conceito de Entwendung para explicar o método de escrita filosófica em Deleuze e Guattari. Segundo o autor, eles cometiam, a todo instante, “furto sem aquisição”. Por isso, corpo como primeira geografia jamais será um ato de propriedade, mas um ato de “apropriação produtiva”, de “extração temporária de um contexto e inserção num outro a propósito de testar: assim ele ganhará nova capacidade criativa”. Portanto, a “marca na pele” não é um atestado, um carimbo, um selo de autenticidade, um protocolo jurídico. Ela é, sobretudo, uma experiência: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca” (Larrosa, 2015, p. 18). É, portanto, atemporal, do ponto de vista da cronologia, e temporal, do ponto de vista do instante. É aquilo que Rosa Gadelha, na sua tese intitulada “Corpografias em dança contemporânea”, define como uma “parada súbita entre dois movimentos” (Gadelha, 2010, p. 17). O que significaria então pensar nossa relação com os lugares nesses termos? O que significaria dizer “corpo geográfico” ao invés de “olhar geográfico”? Laurence Louppe fala da “invenção de um corpo singular irredutível” (Louppe, 2012) quando explica o modo pelo qual cada coreógrafo ou cada estilo cria um corpo-dançante diferente. Essa diferença, no entanto, ocorre não apenas por uma questão da forma ou do movimento em si, mas de seus agenciamentos, ou seja, de sua “captura de forças” (Deleuze, 1969, p. 57). Portanto, um “corpo geográfico” é feito disso: pele-experiência, mapa de mobilizações e de transgressões. Marca protocolos de experiências e experimentações (Deleuze; Guattari, 2002). Sugere uma atitude desviante,
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configuradas num constante exercício de ser criança, a exemplo do poeta Manoel de Barros, e suas “peraltagens com as palavras”.
Há paisagem num olhar entristecido? Há fronteira num sorriso contido? Há território num abraço apertado? Há lugar num suspiro de prazer? Qual seria a escala contida num corpo nu? Qual seria a escala para uma geografia que saboreia o mundo? (Queiroz Filho, 2012, 114). Saborear o mundo significa reconhecer, em grande medida, que o espaço contém cheiros, gostos, sensações, esbarrões, piscadelas, náuseas, enfim. Experienciamos o mundo de corpo inteiro, com o estômago, com a boca, com as mãos, com o nariz, e também com os olhos (Queiroz Filho, 2007, p. 02).
E essa criança, cansou de brincar na segurança de seu confortável quarto, imaginando castelos e estradas, epopeias e romances. Vai escondida para o terreno baldio. Ela deseja brincar “outramente”, que seria, noutras palavras, um gesto de desobediência. Tal atitude está longe de configurar uma teimosia, mas de resistência ao gesto amesmado, repetido. A repetição aqui está no sentido do automatismo e, nem tanto, na ideia do burilamento e aperfeiçoamento obtido pela constância de determinada atitude. Nesse sentido, não cabe alimentar também um certo sentido de que o gesto repetido que gera automatismo deve ser eliminado, por assim dizer. Deve-se traçar “linhas de fuga”, como apontam Deleuze (1997). Portanto, um corpo geográfico, nesses termos, não é aquele que tenta expelir de si aquilo que considera um ente estranho. Tenta, sim, criar
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“novas potências gramaticais ou sintáticas” (Deleuze, 1997, p. 09), ou seja, tenta não apenas criar novos gestos, mas configurar dizeres outros a partir de seus “sulcos costumeiros”. Parafraseando Deleuze, quando se cria um corpo no interior do corpo, seus gestos e movimentos tendem “para um limite ‘assintático’, ‘agramatical’, ou que se comunica com seu próprio fora” (Deleuze, 1997, p. 09). Eis que me deparo então com esse corpo geográfico que se põe experimental e delirante. E ele me fascina.
- “corpo como uma simbologia espelhada no/pelo espaço” Espelho semântico? Corpo que revela o quê? E esconde o quê? Absolutamente nada! Porque meu corpo não serve como simbologia, nem reflexo. Não há ritual de passagem, nem cerimônia de comemoração em face de exercícios de transmutação de algo que era e não é mais. Com algumas ressalvas, fiquei pensando sobre o “significante flutuante” em José Gil:
Ele designa sempre uma energia, uma força que é impossível ver significadas em códigos, visto que estes falam das coisas e das suas relações e não do que as torna possíveis, enquanto o significante flutuante é também, para o pensamento indígena, um princípio de explicação. Denota, além disso, as franjas de desordem semântica... (Gil, 1997, p. 19)
Gil explica que o Xamane, ao criar uma espécie de gramática que permite aquele que está doente, expressar sua dor e, com isso, se curar. Gil
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chama esse processo de “tradução”, onde ocorre a transição, em suas palavras, de um sistema de códigos para outro. Nessa perspectiva, o corpo é tido como um suporte, uma caixa vazia a ser preenchida, um “permutador de códigos” que “sozinho não significa, nada diz”. Minha aposta conceitual tende a ponderar esse entendimento. Na esteira dos estudos deleuze-guattarianos sobre o corpo, me sinto mais acolhido quando leio algo no sentido do “corpo sem órgãos”:
Como consistência, o Corpo sem Órgãos é o intensivo que vibra nas imantações passageiras de umas linhas pelas outras por ocasião de encontros; passageiras imantações, repito, mas o suficiente para que se possa determinar qual é a singularidade do CsO2 que está me pegando aqui e agora. Por isso é que eu posso até certo ponto interferir na criação de corpos sem órgãos para mim (Orlandi, 2004, p. 11).
Portanto, me interesso mais pelo debate sobre as potências do corpo, a exemplo do que faz Kátia Kasper no seu texto que fala sobre os processos de “desorganização do corpo” realizados Grupo de Pesquisa LUME (Unicamp), intitulado “Encontro para estudo e iniciação do clown pessoal”:
Não se trata de representar, mas de fazer; e aparece, na ação, se está ou não acontecendo. A esse jogo foram se juntando
outros,
oferecendo
mais
elementos
de
desorganização. Tratava-se de um trabalho muito intenso de produção de deslocamentos. Deslocamentos quanto à postura corporal, deslocamentos em relação às atitudes costumeiras, à percepção, às formas habituais de ação e reação, aos modos de
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sentir, de agir, etc. Uma aprendizagem também no sentido de abrir outras conexões possíveis entre cada participante e tudo o que estava em volta. Podemos pensar que encontramos aí experimentações que fazem do corpo uma potência que não se reduz ao organismo — um conjunto de funções — e do pensamento uma potência que não se reduz à consciência. (Kasper, 2009, p. 204).
A esse processo, a autora chama de “Gestos em fuga”. Que seria, penso, algo semelhante do que fala Gil sobre o “desbloqueamento dos sentidos”. O autor fala das circunstâncias pelas quais podem isso pode ocorrer, que seria pela “confusão levada ao extremo, dos códigos e línguas que tinha por emblema o corpo (...) irrupção progressiva do corpo” (Gil, 1997, p. 24). Então, se “para fazer um clown é preciso fazer um corpo”, do mesmo modo, para fazer uma geografia é preciso fazer um corpo, aquele disponível ao outro e ao mesmo: contágio, experimentação, metamorfose. Por vezes Gil fala desse processo como algo que decorre de um esvaziar para tornar-se novamente cheio. O “corpo novo”, como diz, o é porque foi, “de novo codificado”. Não é bem nesses termos que gostaria de tratar. Nem primitivo, nem transcendente. Aquilo que Gil aponta como uma “dificuldade”, quando afirma que o corpo por si só é apenas expressão (Gil, 2001), vejo como uma potencialidade, no sentido daquilo que pode o corpo. Ao dizer que “o corpo não fala, faz falar”, Gil está lidando com a concepção de linguagem na esteira da semiótica, que entende a língua como um sistema de signos. Disso resulta seu entendimento de que é extremamente difícil criar uma gramática do corpo que dança, ou seja, uma “língua específica”, e conclui dizendo que a dança não é uma linguagem).
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Por isso, “desorganizar o corpo” em Gil não é o mesmo que, por exemplo, em Deleuze. Corpo aqui é emaranhado, intensidade. Corpo aqui é rizoma, que escapa dos artifícios do plano representacional para compor, de fato, um plano de corpos:
Com efeito, o plano de representação fixa e organiza o corpo. Já o plano do corpo é um plano de consistência que ignora as diferenças de níveis. Ignora toda diferença entre artificial e natural. Ignora a distinção de conteúdos e de expressões. O plano dos corpos é imanente, é constituído de relações de movimento, repouso, rapidez, lentidão entre os elementos formados. É um plano não estruturado e organizado, supõe o próprio plano em devir, portanto um plano dançarino, um plano de proliferação, de povoamento, de contágio – onde se reencontram as multiplicidades intensivas que produzem essas mesmas relações de movimento/repouso, de rápido/lento... (Gadelha, 2010, p. 15-16)
Não há, nesse sentido, corpo puro, proliferador de signos. Não há, tampouco, função “natural” do corpo. Há composição, fluxos e intensidades. Desorganizar o corpo é, portanto, criar um “corpo sem órgãos”:
O corpo sem órgãos não é o testemunho de um nada original nem o resto de uma totalidade perdida. Mas sobretudo o que ele não é, de modo algum, é uma projecção: não tem nada a ver com o corpo de cada um nem com uma imagem do corpo. É o corpo sem imagem. (p. 13-14)
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Ao invés do corpo semiótico, há o corpo paranoico, esquizofrênico, discutido por Deleuze:
O esquizo dispõe de modos muito próprios de referência, pois dispõe de um código de registo particular que não coincide com o código social ou que só coincide com ele para o parodiar. O código delirante ou desejante apresenta uma fluidez extraordinária. Dir-se-ia que o esquizofrénico passa de um código a outro, que baralha todos os códigos, num deslizar veloz, conforme as questões que lhe são postas, não dando nunca duas vezes seguidas a mesma explicação, não invocando nunca a mesma genealogia, não registando nunca do mesmo modo o mesmo acontecimento, e aceitando até, quando lhe impõem e não está irritado, o banal código edipiano, pronto a re-entulhá-Io com todas as disjunções de cuja exclusão se encarrega esse código. (2004, p. 20)
No entanto, prefiro a poética oriunda do devir-criança. Precisamente, porque a “criança não para de dizer o que faz ou tenta fazer: explorar os meios, por trajetos dinâmicos, e traçar o mapa correspondente” (Deleuze, 1997, p. 73). Nesse sentido, o corpo que me interessa é esse: mapa intensivo. Nem instrumento, nem espelho, apenas “uma lista de afectos ou constelação” (Deleuze, 1997, p. 77). Corpo-linguagem, devir minoritário. Corpo-criança,
corpo-criança-brincante:
gesto
delicado
que
transforma lama em bolo de chocolate, enfeitado por uma flor. Criança que brinca de fazer paisagem com aquilo que dispõe no limiar de seus trajetos mais corriqueiros. Ela “flexiona”, pelos seus gestos, o modo como as coisas estão dispostas no mundo pelos adultos. É, pois, brincando, que a criança cria um
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corpo sem órgãos, “último resíduo de um socius desterritorializado” (Deleuze; Guattari, 2004, p. 36). Então posso dizer que essa mobilização de fluxos afetivos que a criança potencializa constitui aquilo que a cineasta Renata Meirelles intitula como “território do brincar”. Ao se sentir incomodada com a recorrente afirmação proferida por adultos de que “as crianças não brincam mais”, Renata passou dois anos viajando por diversos estados brasileiros, coletando cenas de crianças no seu contexto cotidiano. Em suas palavras, “nós estávamos querendo registrar o lado potente da infância (...) o nosso foco era olhar o gesto”40. O seu trabalho nos mostra como o gesto livre da criança brincante jamais imitação do adulto, porque ele é linguagem:
Se a linguagem imita os corpos, isso não é devido às onomatopeias mas à flexão. E se os corpos imitam a linguagem, não é pelos órgãos, mas pelas flexões. Há toda uma pantomima interior à linguagem, como há um discurso, uma narrativa interior aos corpos. Se os gestos falam é porque, antes de mais, as palavras mimam os gestos. (Deleuze, 2001, p. 20).
Mimar é dar à semente do Tucumã um feitio de brincadeira, que começa no embrenhar-se na mata e termina na devolução da forma-semente ao seu estado-floresta41. Gesto poético manoelesco, daqueles que figuram a não serventia das coisas pequeninas e, por isso mesmo, alimentam a poética como enunciação do corpo que pode. 40
Palestra proferida no TEDx São Paulo em 2016. Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=nWbcLVzmj7E 41 Idem.
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Ao recolher a semente-brinquedo do chão e tentar devolver à criança, Renata ouviu um sonoro “a brincadeira acabou” e concluiu que: “Para este menino o brinquedo só faz sentido quando a brincadeira está viva. Caçar semente, construir o pião, jogar, é tudo parte do mesmo ciclo. Depois, aquela semente volta a ser floresta”. Naquele instante, a cineasta compreendeu que brincar é agenciamento e o brinquedo é devir:
Devir não e atingir uma forma (identificação, imitação, Mimese), mas encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação tal que já não seja possível distinguir-se (...) 0 devir esta sempre "entre" ou "no meio" (Deleuze, 1997, p. 11)
E é como uma criança que brinca de dançar que me pego fascinado pelas corpografias que esse gesto agencia. Por isso que não existe movimento puro, como o símbolo que que reflete, desviando de si as impurezas do que é refletido. O corpo que dança, nesse sentido, não aceita ser símbolo de absolutamente nada. Em “Dancer” (2016), documentário sobre a vida daquele que se tornou o primeiro bailarino mais jovem de uma das principais Companhia de Ballet do mundo, a Royal Ballet, podemos observar algo nesse sentido. Sergei Polunin senta num canto, cabeça inclinada, a câmera enquadra sua perna. É como um diálogo de um corpo-mapa. Olho para o corpo-mapa do bailarino e vejo aquilo que talvez seja seu momento mais sublime. Ali, a dança me chega como poesia, como liberdade de fato. Do esquadrinhamento que arrebata o corpo para ser um modelo de perfeição e virtuosismo, há um suspiro silencioso, uma pausa poética, um desmonte da
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estrutura que agencia seu corpo para ser belo, leve, altivo. Há, portanto, no bailarino, fluxos de desterritorialização que são sempre em função de um dado território. O “novo horizonte” existe em função de disposições outras em face daquilo que é o mesmo. A dança é, sobretudo, agenciamento de fluxos e forças. Ela sempre será resultado das inúmeras negociações que se realiza na constituição do agenciamento. Pode ser “libertária”, se entendermos essa “liberdade” como uma resistência a sobrederteminação provocada pela dança clássica. Ela, portanto, desterritiorializa os normativos dessa forma de agenciamento e provoca outros. Essa libertação, portanto, é sempre em relação a algo, à um certo modo de fazer acontecer e funcionar.
322
O QUE PODE UMA GEOGRAFIA como corpo que dança?,
- Então, essa é a experiência que me interessa. Aquela que toma a palavra como corpo que dança, que faz dançar, que brinca com os ritmos e silêncios, que afeta e é afetado.
323
“O que pode uma Geografia como corpo que dança?” é, para além de uma pergunta, um convite, uma proposição: por uma Geografia bailarina.
- fragmento: nowhere – a escrita como gesto
“o fragmento é uma máquina de produzir inícios, uma máquina da linguagem, das formas de utilizar linguagem, que produz começos” (Gonçalo Tavares)
Entendo todo texto como um gesto. Na verdade, uma mistura deles. As palavras que aqui articulo são, se assim quiserem, como a apresentação feita por Dimitris Papaioannou, em homenagem à diretora e coreografa alemã, Pina Bausch42:
42
Intitulada “Nowhere”, foi realizada em 2009, na ocasião da reinauguração do Greek National Theatre. Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=aXDNoB5q9ik
324
NOWHERE explores the nature of the theatrical stage itself, a spatial mechanism continually transformed and redefined by the human presence to denote any place, and yet designed to be a non-place. 26 performers measure and mark out the space using their bodies, pitting themselves
against
its
dimensions
and
technical
capabilities in a site-specific performance that can be presented nowhere else.
Pensado em outros termos, tomo a escrita, portanto, como o palco de Dimitris: um lugar de não-lugares. Por ser assim, peço que o ocupem com suas desmedidas, que façam dele outra coisa, que usem seus corpos semânticos para dizê-lo em performance, em movimento, em nudez. Peço que dancem com minhas palavras. Façam delas seu abraço. Deixem-nas deslizarem lentamente por seus pensamentos duvidosos e permitam que o lugar de ser sensível conduza, em improviso, cada toque, como uma variação contínua do possível: e que ele possa ser outro. Antes de continuar, abro aqui dois breves parênteses: um para dizer sobre o sentido de não-lugar que estou me apropriando e outro para pontuar algumas coisas sobre que quero dizer com improviso.
• (Não-Lugar) Quando Marc Augé (1994) propôs este termo, ele o fez na perspectiva de tentar explicar “lugares” a-significantes. Para o autor:
325
O não-lugar é diametralmente oposto ao lar, à residência, ao espaço personalizado. É representado pelos espaços públicos de rápida circulação - como aeroportos, estações de metrô e pelas grandes cadeias de hotéis e supermercados. Só, mas junto com outros, o habitante do nãolugar mantém com este uma relação contratual representada por símbolos da supermodernidade; cartões de crédito, cartão telefônico, passaporte, carteira de motorista, enfim, por símbolos que permitem o acesso, comprovam a identidade, autorizam deslocamentos impessoais (Augé, 1994, s/p).
Os não-lugares seriam, portanto, aqueles que contemplassem adjetivações do tipo: lugares de passagem, de impessoalidade, de indiferença, de solidão, não relacional, a-histórico, dentro outros. Há, porém, dois autores que problematizam, não especificamente essa questão, mas aquilo que, de certa forma, me parece ser pano de fundo. Prefiro pensar, por exemplo, como Rogério Haesbaert, que amparado por Deleuze e Guattari, fala de um território constituído “no interior da própria mobilidade”, na “repetição do movimento” (Haesbaert, 2007, p. 236). Nesse sentido, um personagem tradicionalmente caracterizado como aquele que usufrui de fluxos impessoais, dada sua perene “mobilidade”, seria, nos termos de Augé, um sujeito que permanece mais tempo em contato com não-lugares. Porém, Haesbaert pondera e diz que:
A elite dos grandes businessmen que aparentemente circulam livremente pelos quatro cantos do planeta parece ser o exemplo mais evidente de que constante ou frequente mobilidade física
326
não implica, obrigatoriamente, desterritorialização, podendo representar
mesmo
uma
reterritorialização
através
da
mobilidade (Haesbaert, 2007, P. 253).
Também me soa de modo muito mais acolhedor a ideia do lugar como eventualidade espaço-temporal, de Doreen Massey. Ela diz que os lugares não são “como pontos ou áreas em mapas, mas como integrações de espaço e tempo” (Massey, 2008, p. 191). Nesse sentido, penso que o não-lugar de Dimitri está mais para esse lugar de encontros que ainda não ocorreram. Não-lugar como um aqui e agora, como um instante espaço-temporal que nos convida a ocupá-lo com nossos movimentos intensivos. Portanto, é algo que funciona mais como potência e devir, que fechamento e estase. Não-lugar como condição, como positivação do vir-a-ser.
• (Improviso) O que você entende quando digo que este texto é improviso? Para Marina Elias, improviso é um modo como o movimento acontece e que só pode ser definido na medida em que está acontecendo (Elias, 2011). Nesse sentido, minha escrita está muito próxima daquilo que a autora define como o “território de criação do improvisador”, que seria composto por cinco forças, a saber, pensamento, memória, imaginação, movimento e técnica. Escrita, portanto, como fluxo de forças que faz circular intensidades, na medida em que acontece.
***
327
Retorno com uma questão: o que implica um gesto como esse seroutro-da-escrita que mencionei antes? A resposta a essa pergunta pode ser a mesma que o filósofo José Gil dá quando indaga: “Como constrói o bailarino o seu gesto”? A escrita como dança e o escritor como bailarino passa, primeiramente, pela diferenciação do gesto comum. Gil explica que:
No gesto comum, o braço entra em movimento no espaço porque a acção impõe do exterior uma deslocação ao corpo; pelo contrário, no gesto dançado, o movimento, vindo do interior, leva consigo o braço (Gil, 2001, p. 14).
Essa é a escrita como gesto que me interessa. Como tal, ela tem início num “impulso interior” e se finda numa abertura ao infinito como possibilidade concreta (Gil, 2001). Então, escrever é como dançar. Por isso me apego ao que diz Marina Elias sobre o movimento improvisado na dança e no teatro:
O movimento espontâneo e improvisado acontece somente enquanto está acontecendo. E neste contexto, interessa menos o movimento, do que quem (ou o quê) motiva o movimento, menos a técnica mecânica do que a possibilidade de um movimento expressivo (Elias, 2011, p. 25-26).
Escrita expressiva que é, nesse sentido, um perene estado de latência, um não-lugar, nos termos apontados nos parênteses. Repouso e equilíbrio dos fluxos intensivos que criam, verdadeiramente, as condições de sua existência. Penso que seria algo mais próximo daquilo que Deleuze define
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como plano de imanência. Ao diferenciá-lo do plano de transcendência, ele afirma que: Um plano de imanência não dispõe de uma dimensão suplementar: o processo de composição deve ser captado por si mesmo, mediante aquilo que ele dá, naquilo que ele dá. É um plano de composição, e não de organização nem de desenvolvimento (...) Não há mais sujeito, mas apenas estados afetivos individuantes da força anônima (Deleuze, 2002, p. 132).
A escrita como composição é, portanto, o meio pelo qual eu habito com intimidade o mundo. Gesto expressivo e intensivo com o qual meu corpo desliza pelo mundo faz dessa experiência de contato e movimento uma dança, onde palavras são lugares e lugares são palavras. Talvez, por isso, Gil afirme que “o espaço do corpo é o corpo tornado espaço” (2001, p. 19): ambos são, por assim dizer, estados afetivos.
- fragmento: o que pode – formas de utilizar a linguagem
A palavra “pode”, flexão do verbo “poder”, está aqui não como forma imperativa do exercício de autoridade de algo/alguém sobre algo/alguém. Interesso-me mais pelo poder como potência, como capacidade. Na matemática, esse conceito foi criado por Arquimedes (3 a.C), que correspondia ao número de vezes que o número (base, diferente de zero) deve ser multiplicado por ele mesmo (exponenciação). Já na física, potência é a grandeza que mede a velocidade com que o trabalho é realizado ou uma
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energia é transformada. Portanto, em ambas, potência é capacidade de transformação. Então, se fizermos a pergunta: o que pode a linguagem enquanto experiência? A resposta estaria mais no sentido daquilo que a torna capaz, ou seja, estaria mais na capacidade de transformação, de ampliação, de proliferação dos afetos. “O que pode” encontra resposta quando compreende o encontro como potência, o que pressupõe, pelo menos, duas partes. Não há encontros no isolamento, diz Tavares (2013 p. 156). Porém, Tavares diz que sem linguagem, a experiência seria algo “impartilhável”, “puramente individual”, “fora do mundo” (Tavares, 2013, p. 174). Ao pensar numa condição inseparável entre linguagem e experiência, ele nos alerta para um certo tipo de perigo que podemos incorrer, que seria o de lidar com uma espécie de correspondência direta entre ambas. Seria um equívoco, por exemplo, pensar que “palavras raras” são a garantia de uma “experiência rara” ou, como se uma vida entediante não pudesse produzir pensamento excitante. Por esse motivo,
Quando um corpo “encontra” um corpo, uma idéia outra idéia, tanto acontece que as duas relações se compõem para formar um todo mais potente, quanto que um decompõe o outro e destrói a coesão de suas partes. Eis o que é prodigioso tanto no corpo como no espírito (Deleuze, 2002, p. 25)
Mas o que substantiva isso que está se chamando de experiência? Se para Jorge Larrosa a experiência é algo que nos acontece, para Fernando Savater, experiência “é a capacidade de recusar e escolher que se vai forjando em cada um, apesar das rotinas impostas” (In: Tavares, 2013, p. 174). No fim
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das contas, Tavares conclui que experiência é a capacidade que temos para dizer sim ou não e, poderíamos completar, capacidade de dizer sim ou não, em face daquilo que nos acontece. Por esse motivo, o que de fato importa é, nem tanto naquilo que nos acontece, que nos afeta, mas sim, na nossa capacidade, ou melhor, nossa “força ou potência de agir” ao invés de uma “potência de sofrer”, como explica Deleuze:
Chamamos de potência de sofrer o poder de ser afetado, enquanto estiver atualmente preenchido por afecções passivas. A potência de sofrer do corpo tem como equivalente na alma a potência de imaginar e experimentar sentimentos passivos (...) Se conseguirmos produzir afecções ativas, nossas afecções passivas diminuirão na mesma proporção. Enquanto permanecermos em afecções passivas, nossa potência de agir é “impedida” na mesma proporção (Deleuze, s/d, p. 150).
Dito de outro modo, o que de fato interessa é o que pode quando aquilo que nos acontece é “afecção ativa”: agir adequadamente.
Uma ideia adequada em nós seria definida formalmente como sendo uma ideia da qual seríamos causa; ela seria causa material e eficiente de um sentimento; nós seríamos causa adequada desse próprio sentimento; ora, um sentimento do qual somos causa adequada é uma ação (Deleuze, s/d, p. 150).
É por isso que sempre falamos a partir daquilo que nos afeta e daquilo que nos é afeto. A questão é: afetos ativos ou passivos? E eu não
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poderia falar a linguagem da experiência e a experiência da linguagem43 – de outro modo, senão a partir daquilo que tem configurado, em mim, uma afecção ativa: a dança.
- fragmento: movimento e afeto – a dança como encontro
Quando Tavares diz que “Experimentar palavras, experimentar frases é como experimentar correr a determinada velocidade, é como experimentar saltar”, quando ele diz que “falar e escrever são atos físicos” e que “a linguagem é uma experiência física”, então, finalmente, posso dizer que fui tirado para dançar. Nessa dança, Tavares me ensinou que a palavra tem peso e contrapeso, ritmo e musicalidade. Sim, fui seduzido por ele. Por isso, aprendi, por assim dizer, que a palavra é um corpo em movimento que provoca a experiência com e no mundo, com e no outro: experiência com e no contato. Dela surge a cena, o frame. Surge a matéria sonora, a musicalidade como uma maneira de vi-ver em ritmo: “Cada língua pode ser entendida como sendo determinada por um ritmo corporal, uma inteligência física. O som também faz pensar, promove associações, ligações, etc” (Tavares, 2013, p. 40).
Não é apenas uma questão de música, mas de maneira de viver: é pela velocidade e lentidão que a gente desliza entre as coisas, que a gente se conjuga com outra coisa: a gente nunca começa, nunca se recomeça tudo novamente, a
43
Título da mesa de abertura do I Seminário Rasuras – imagem, linguagem e sensibilidade no contexto contemporâneo. Cf.: http://seminariorasuras2016.weebly.com/
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gente desliza por entre, se introduz no meio, abraça-se ou se impõe ritmos (Deleuze, 2002, p. 128).
Então, essa é a experiência que me interessa. Aquela que toma a palavra como corpo que dança, que faz dançar, que brinca com os ritmos e silêncios, que afeta e é afetado. Por esse motivo, seja o corpo ou o corpus, deles exijo algo para além da execução de passos. Explicando: no corpo há duas formas de ligação: aquela que diminui a capacidade de agir; e aquela de que resulta em alegria – aumento da capacidade de agir (Tavares, 2013, p.157). Não me interessa, portanto, pensar num corpo como anatomia, por exemplo, mas sim, pensar no sentido da pergunta espinosana sobre corpo e que eu coloco nesse contexto:
- O que pode um corpo que dança?
Deleuze esclarece que “Cada leitor de Espinosa sabe que os corpos e as almas não são para ele nem substâncias nem sujeitos, mas modos” (Deleuze, 2002, p. 128-129). Ser um modo implica em fazer movimentar afetos. Isso porque “os corpos não se definem por seu gênero ou sua espécie, por seus órgãos e suas funções, mas por aquilo que podem, pelos afetos dos quais são capazes, tanto na paixão quanto na ação” (Deleuze; Parnet, 1998, p. 49). Um corpo que dança é, portanto, capaz, em paixão e em ação, de promover encontros criativos, de fluir na imanência, como aponta Gil (2001). Então, o que estamos tentando fazer encontrar, nesses termos, seria Linguagem e Experiência, produzindo assim, aquilo que Tavares (2013) chama de “energia criativa”. Ele explica que na Teoria dos Passos, de Balzac, a imaginação, a
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energia criativa, ou seja, algo da ordem do interno, “necessita ocupar espaço, necessita se exteriorizar” (p. 208). É exatamente sobre o sentido dessa ocupação, ou melhor, o modo como ela ocorre, que o movimento dançado convida a Geografia para ser seu par. Ao explicar sobre os processos de criação do coreógrafo norte americano Merce Cunningham, Gil (2011) aponta para aquilo que se denomina como o combate ao mimetismo dos gestos e das figuras, a saber, o espaço cênico como reprodução simbólica do espaço exterior e reprodução mimética das emoções, do seu espaço interior. Portanto, ocupar o espaço reverbera também em qual a concepção de espaço com a qual se está lidando:
Cunningham (in: Gil, 2001, p. 32) Ballet clássico Dança moderna americana
“mantinha a forma linear do espaço” “raízes no expressionismo alemão”; “quebrou o espaço em vários pedaços”; “divisão da cena, sem qualquer relação com o espaço mais vasto da área cénica”
O espaço cunningheano objetivava problematizar essas concepções tradicionais. Em face dessa teleologia representacional do corpo enquanto espaço, foi na introdução do acaso como método coreográfico que aconteceu a efetiva libertação dos códigos que operavam sobre as possibilidades de movimentação do corpo. Desconexão e desencaixe passam a compor novos gestos, que seriam a escrita de um corpo-espaço verdadeiramente livre: corpo de pensamento, corpo múltiplo, corpo virtual.
Resumamos: virtual, a unidade de movimento (“metrainfralinguística”) é o que resta como “movimento puro”
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quando se retiram do corpo as motivações emocionais, representativas e expressivas (...) permite também reognização dos movimentos corporais sem ter de recorrer a elementos exteriores: porque os movimentos actuais do corpo do bailarino têm a sua origem no plano virtual e nas tensões que aí nascem (...) O plano virtual do movimento é o plano de imanência (Gil, 2001, p. 49).
Eis então o processo de composição de uma Geografia que dança. Parafraseando Gil (2001), não é uma Geografia emotiva, nem perceptiva. Sendo o mundo um grande palco, ela é, por assim dizer, experimentação e agenciamento de possíveis. Esse plano de possíveis, ao ser pensado como plano de desejo, provoca uma abertura naquilo que Massey (2008) intitula como sendo nossas cosmologias estruturantes. Segundo ela, o pensamento espacial realiza uma espécie de “modulação” sobre nossos “entendimentos de mundo”, que seriam, por sua vez, “nossa política”, ou seja, nosso modo de pensar implica em nosso modo de agir. Ao argumentar sobre essa indissociabilidade, vi, tanto em Massey, quanto em Cunningham, concepções de espaço muito semelhantes. A perspectiva cunningheana sobre o acaso do movimento dançado pode ser lida em diálogo direto com a proposta de espaço de que fala Massey:
Imaginar o espaço como sempre em processo, nunca como um sistema fechado, implica insistência constante, cada vez maior dentro dos discursos políticos, sobre a genuína abertura do futuro. É uma insistência baseada em tentativa de escapar
da
inexorabilidade
que,
tão
freqüentemente,
caracteriza as grandes narrativas da modernidade (...) Apenas se
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o futuro for aberto haverá campo para uma política que possa fazer a diferença (Massey, 2008, p. 31-32).
Dito de outro modo, temos no termo plano de possíveis a ideia de uma efetiva abertura a outros entendimentos sobre a relação corpo-espaço. Azevedo (2009) afirma como a Geografia fez exatamente o contrário disso. Ela explica que o conhecimento geográfico escolhe se descorporizar na medida em que incorpora, ou seja, traz para dentro de seu corpus, um regime de verdade centrado em duas bases: primeiro, na ideia de um olho que tudo vê, que por sua vez, alimenta a ideologia do ver para crer. Um regime de verdade que produz um regime de poder:
Corpo do território, corpo do sujeito e corpo do conhecimento viram-se unidos por uma peculiar construção de espaço, a qual opera sob o efeito mediador de uma superfície de visualização disposta como modo de acender “com distância” à experiência de lugar” (Azevedo, 2009, p. 34).
Por esse motivo, a proposição de uma Geografia como um corpo que dança passa, necessariamente, pelo vislumbre de um corpo que é, ao mesmo tempo, inteiro e desorganizado. Dito de outro modo, inteiro, no sentido de reconhecer que a centralidade do olhar é uma produção político-ideológica que tem suas implicações diretas no modo como se constituem certas espacialidades contemporâneas, vide Azevedo (2009) e Massey (2008). Desorganizado, no sentido que propõe Deleuze e Guattari (1996) ao tratar do “corpo sem órgãos” (CsO):
336
Assim, o corpo sem órgãos nunca é o seu, o meu... É sempre um corpo. Ele não é mais projetivo do que regressivo. É uma involução, mas uma involução criativa e sempre contemporânea. Os órgãos se distribuem sobre o CsO; mas, justamente, eles se distribuem nele independentemente da forma do organismo; as formas tornam-se contingentes, os órgãos não são mais do que intensidades produzidas, fluxos, limiares e gradientes. "Um" ventre, "um" olho, "uma" boca: Ao artigo indefinido nada falta, ele não é indeterminado ou indiferenciado,
mas
exprime
a
pura
determinação
de
intensidade, a diferença intensiva. O artigo indefinido é o condutor do desejo. Não se trata absolutamente de um corpo despedaçado, esfacelado, ou de órgãos sem corpos (OsC). O CsO é exatamente o contrário. Não há órgãos despedaçados em relação a uma unidade perdida, nem retorno ao indiferenciado em relação a uma totalidade diferenciável. Existe, isto sim, distribuição das razões intensivas de órgãos, com seus artigos positivos indefinidos, no interior de um coletivo ou de uma multiplicidade, num agenciamento e segundo conexões maquínicas operando sobre um CsO. (Deleuze; Guattari, 1996, s/p).
Assumir isso é, imediatamente, lança-se à uma questão que passa por aquilo que talvez possamos chamar de ganho de autonomia e, também, de método.
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- O que fazer com os afetos de que somos capazes?
Existe uma diferença entre dançar e executar passos, como apontei anteriormente e talvez reconheçamos no movimento dançado aquilo que para Balzac considera é “a acção mais pura do ser humano” (p. 207), um “pensamento que age” (p. 209). Essa ideia de um pensamento que age também está no método desenvolvido por Pina Bausch. Tavares explica que Pina desenvolveu uma “géstica do pensamento”, ou seja, ao fazer uma pergunta aos seus bailarinos, a resposta deveria se dar com gestos diferentes. Portanto, “a criatividade da pergunta é avaliada pela criatividade das respostas”, conclui o autor. (Tavares, 2013, p. 277):
Ora, este método de composição joga com dois elementos essenciais (outros são-no também – a música, os cenários os adereções – que aqui não podemos analisar): a fala e o gesto (...) A “hipótese” só se tornará uma ideia (de movimento) quando se desenvolver em associações de sentido, quando se ligar a gestos, quando os gestos e o movimento se exprimirem desde o começo em emoções (Gil, 2001, p. 216217)
Portanto, estamos diante daquilo que nos acontece, não como passividade, mas como ação deliberadamente trabalhada por um método. É isso que irá garantir capacidade de decisão sobre o que fazer com os afetos de que somos capazes. Encontro “abraço” em Pina e em Balzac, em Azevedo, Massey e Cunnigham, em Gil e Deleuze. Eles convertem pensamento em afeto
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que se movimenta (movimento-afeto), que seria aquele, posso dizer, que escapa da “linguagem comum” e, portanto, do “lugar comum da experiência” (Tavares, 2013, p. 179) e promove a “ligação como força, como encontro”, como sensação (Tavares, 2013, 156): “Os afectos não são sensações paradas, são sensações que se movem, aliás, são movimentos que sentem; movimentos: isto é, alterações corporais, modificações do corpo no espaço” (Tavares, 2013, 156).
O termo afeto (affectus) exprime a transição (transitio) de um estado a outro, tanto no corpo afetado, como no corpo afetante. Essa transição pode ser benéfica ou maléfica para o corpo afetado, o que se define pelo aumento, no primeiro caso, ou diminuição, no segundo, da potência de agir do corpo (Marques, 2012, p. 15).
É importante dizer o quanto essas alterações corporais, essas transições de potência, passam longe de serem formalizações, normatizações. Elas estão mais para uma grafia de mundo que é “pura matéria sonora”, “corpo saturante” (Deleuze; Guattari, 2002), causa-efeito daquilo que Elias (2011) chama de “buscação”, que seria o processo rizomático de treinamento do improvisador. Em suas palavras, “treinar não é adestrar, e sim, potencializar” (p. 24). Do mesmo modo, Deleuze levanta uma questão importante ao pensar nas proposições de Espinosa sobre o corpo. Na verdade, ele faz um alerta sobre a necessidade de não ficarmos apenas no âmbito teórico da questão e propõe um corpo e pensamento como potência de afetar e ser afetado. Nesse sentido, faço coro com os gritos espinosanos: “Eis porque Espinosa lança verdadeiros gritos: não sabeis do que sois capazes, no bom
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como no mau, não sabeis antecipadamente o que pode um corpo ou alma, num encontro, num agenciamento, numa combinação” (Deleuze, 2002, p. 130). Sabemos, pois, em e no movimento. Por esse motivo, para além da teorização, compreendo a fala do filósofo Luiz Fuganti44 como um bom estímulo para nos ajudar a compreender que o decidir (géstica do pensamento) que falei a pouco, passa pelo reconhecimento do modo como um aqui e um agora tem se desenvolvido. Em suas palavras, Fuganti diz que:
Agora, porque:
- Fuganti: “A nossa realidade perde energia na medida em que o tempo passa. Na medida em que o tempo se move em nós, nós nos tornamos mais decadentes, mais impotentes, mais pesados”.
E como estava num evento de dança, disse:
- Fuganti: “nós perdemos o dançarino em nós”.
Aqui, porque:
- Fuganti: “Só dança quem tem pista ou quem tem superfície”
E qualifica isso quando continua:
44
Festival Contemporâneo de Dança (São Paulo, 2011). Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=lIwxWe_Tvo4
340
- Fuganti: “Quem desliza, quem tá em movimento, em devir, quem tá em fluxo, quem tá em acontecimento”
- fragmento: grafias de mundo – geografias em devir
Retomo à escrita como gesto. Precisamente, aquele que faz deslizar, faz movimentar fluxos e potências, faz variar, faz...
Uma palavra vem sempre rodeada de emoções nãodefinidas, de tecidos esfiapados de afectos, de esboços de movimentos corporais, de vibrações mudas de espaço. Formase uma atmosfera não verbal que rodeia toda a linguagem (Gil, 2001, p. 218).
De algum modo, a coreografia feita com a música Slip (Eliot Moss, 2013) provocou isso. Interpretada por Phillip Chbeeb (PacMan) e Renee Kester45, essa dança mobilizou em mim afetos como aqueles da “cartografia do improviso” (pensamento, imaginação, movimento, técnica). Slip quer dizer, dentre outras coisas, deslizar, escorregar. Foi isso que aconteceu com cada uma dessas forças/afetos. Elas escorregaram para uma “zona de indiscernibilidade”. Instauraram, umas com as outras, “zonas de vizinhança” e, com isso, grafaram (escreveram) em devir: “Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida (...) Escrever é um caso de devir, sempre inacabado”. (Deleuze, 2011, p. 11). Inacabado não por pertencer à um futuro
45
Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=qk00gbDwGqM
341
incerto, mas por ser “processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido” (Deleuze, 2011, p. 11). No vídeo, há o Homem, “ forma de expressão dominante que pretende impor-se a toda matéria” (Deleuze, 2011, p. 11) e há o devir-mulher, “componente de fuga que se furta à sua própria formalização” (Deleuze, 2011, p. 11). Há a força estabilizadora, que tenta a todo instante capturar, criar impedimento ou modular os movimentos intensivos e afetivos dos corpos que ali estão em movimento e contato. A cada passo, a cada pulsar, criam-se meios e modos de ser-outro, fluidos, diluídos, moventes: fluxo de estabilização que separa, e fluxo de derivação que mistura, que desfaz a forma, a identificação, a singularização.
342
Descrição do Vídeo46
Everyone will tell you it is hard to let go of pain... and it is. Since we are children we have been told to embrace the best of our experiences & disregard the worst... But what happens when the most beautiful memories from our past end up doing the most damage to our future?
46
Tradução Livre: “Todo mundo vai dizer que é difícil deixar a dor ir ... E é. Uma vez que somos crianças, temos dito para abraçar o melhor de nossas experiências e desconsiderar o pior. Mas o que acontece quando as mais belas memórias do nosso passado acabam fazendo o maior dano para o nosso futuro”?
343
Apesar da descrição do vídeo apontar para uma espécie de ressentimento, não é com essa perspectiva que eu me aproprio dele. O prefiro como “revelação da vida”, nos termos deleuzianos, em especial, quando diz que “escrever não é contar as próprias lembranças, suas viagens, seus amores, e lutos, sonhos e fantasmas” (Deleuze, 2011, p. 12) e quando argumenta que:
A língua tem de alcançar desvios femininos, animais, moleculares, e todo desvio é um devir mortal. Não há linha reta, nem nas coisas nem na linguagem. A sintaxe é o conjunto de desvios necessários criados a cada vez para revelar a vida nas coisas. (Deleuze, 2011, p. 12)
Portanto, aqui e agora são essa sintaxe, conjunto de desvios necessários, o frame matching47 perfeito para pensarmos na seguinte questão:
- Fuganti: “O uso que fazemos com aquilo que nos acontece pode ser um peso ou uma impulsão, uma fonte de criação”
- Fuganti: “Aqui se decide se investimos no poder ou na potencia, no eu (corpo organizado) ou na diferença/pensamento que cria e de um corpo que é um corpo de intensidade”.
Se preferirmos: é no aqui e no agora que decidimos se queremos ou não dançar, se queremos ou não – com nossas grafias, nossos gestos – realizar movimentos intensivos, imaginativos, desadestrados. E só poderemos 47
Teoria que pontua a relação de forças que conectam os dois parceiros de uma dança. Ela é definida pela relação entre “posture, tone, tension, energy, and the direction”. Ver mais em: http://www.joeandnelle.com/assets/frame_matching_and_pted_by_joe_demers.pdf
344
responder isso quando conseguirmos responder à outra pergunta fundamental. No aqui e no agora:
- Fuganti: “onde nosso desejo está”?
Incorporo essa questão no seio da geografia (grafia de mundo, gesto) que me proponho a fazer e penso: O que pode uma geografia como corpo que dança?
(Suspiro, Pausa, Respiração... Tempo) Um corpo pode ser qualquer coisa, pode ser um animal, pode ser um corpo sonoro, pode ser uma alma ou uma idéia, pode ser um corpus linguístico, pode ser um corpo social, uma coletividade (Deleuze, 2002, p. 132).
Corpo como acontecimento, como algo da ordem do indiscernível, como
cruzamento linguagem-experiência.
Corpo
que
dança.
Gestos
(Geografias) do imprevisível e do criativo. Que então se decida investir numa Geografia que é, também, corpo de intensidades. Onde meu desejo está?
345
Numa Geografia fabuladora, criadora de devires e potências Numa grafia (geografia) desviante Que hesita, que se lança ao chão E faz dele um novo começo Que se abre intensivamente ao infinito Geografia aberta e processual Aquela que faz do seu corpo (corpus) um movimento dançado Uma geografia bailarina, Que faz do impulso interior sua força vital
346
BRAGA, te amo
- Nรฃo hรก Geografia dos lugares sem a Geografia das pessoas.
347
Eis então que, ao reler tais apontamentos e anotações, me chega de mansinho outra canção. A partir dela, encontro a calma e a paz necessária para fazer do horizonte bracarense um lugar possível para minhas miradas poéticas e sensíveis. Com os versos de “Sampa”, de Caetano Veloso revivi, a exemplo de Braga, circunstâncias tão intensivamente tristes que tive em outros lugares que foram, por certo tempo, apenas morada. Foi assim quando saí de Fortaleza, região nordeste do Brasil, e fui morar a mais de 2 mil quilômetros de distância, em Campinas, região sudeste. Não muito diferente quando, de Campinas, mudei para Vitória, capital do Espírito Santo, um pequeno estado, ainda na região sudeste do Brasil. O que há de comum na minha experiência com esses 03 lugares? Talvez a compreensão de que não há Geografia dos lugares sem a Geografia das pessoas. Talvez a compreensão de que as relações e os entendimentos surgidos a partir do nosso contato com novos lugares, novas experiências, são sempre mediadas pelas circunstâncias e pela potência do instante. Por isso, relatos e narrativas interessam. Não porque eles podem ser considerados mais ou menos verdadeiros, mais ou menos legítimos. De fato, nada disso importa. Importa mesmo, é a condição de entrecruzamento e eventualidade revelada em tais relatos e narrativas:
Espaço e tempo, juntos, resultado desse múltiplo devir. Então, o “aqui” é nada mais (e nada menos) do que o nosso encontro e o que é feito dele. É, irremediavelmente, aqui e agora. Não será o mesmo “aqui” quando não for mais agora. (Doreen Massey, Pelo Espaço)
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Em todas essas memórias revisitadas encontrei a permanência de um modo específico de habitar que tonaliza essa relação corpo-lugar, a saber, esse corpo-migrante que busca sempre a travessia afetiva no contato verdadeiro com esse lugar-que-é-do-outro. E a verdade, nesse caso, é sem dúvida, da ordem do acolhimento da diferença. Por isso, meus relatos e narrativas ganham um novo tom. Finalizam este livro com um novo “aqui e agora”. Daquela corpografia triste, surge uma grafia do avesso, a exemplo do que relata Caetano Veloso em sua bela canção: Sampa.
Alguma coisa acontece no meu coração Que só quando cruza a Ipiranga e Av. São João É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi (...) Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu rosto Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto É que Narciso acha feio o que não é espelho E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho Nada do que não era antes quando não somos mutantes E foste um difícil começo Afasto o que não conheço E quem vem de outro sonho feliz de cidade Aprende depressa a chamar-te de realidade Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso” (Caetano Veloso)
E como um eco saudoso, escrevi “Braga, te amo” e “...Saudades!”:
349
“Braga, te amo”
Cidade festiva Feita de ruas e praças floridas Esquinas que apontam para um horizonte iluminado Destes senhores e senhoras, gajos e raparigas Que estão a nos oferecer, sempre Seus semblantes discretos e corteses Cortesia também presente no por do sol Que é dos mais bonitos E até quando há chuva (e muita há) Faz-se poesia Porque, de longe Avistam-se os montes que vigiam e protegem seus habitantes E assim, aos poucos e bem devagar Ama-se Braga Porque ela é, genuinamente Um bailado eloquente Que vai A cada dia Nos convencendo: - Não adianta ser reticente Importa mesmo Simpatia e um pouco de coragem Porque No fim das contas Sempre há tempo para que se diga Amo-te Ou melhor: Sempre há tempo para que se diga Braga, te amo!
350
“...Saudades!”
Saudade é como uma cartografia dos sentidos Tem cheiro Tem nome de rua Tem silêncio Tem lembrança Saudade é Como um bom vinho, Na companhia de chocolates e queijos E só Saudade faz eco: - “Ovos mexidos” (escute com sotaque) Saudade é a pausa para enxugar as lágrimas Que ainda se confundem com o barulho da chuva E como chove em Braga... Saudade é lugar de poesia rabiscada num papel amassado Daqueles que Incompletos Olhamos duas ou três vezes antes de jogarmos fora Por isso que o “apesar de” clariceano Já não importa Por isso que o “não te demores” Já não importa Porque o mapa dos afetos está em constante movimento E quando é a saudade que orienta nosso percurso Narciso deixa de achar feio o que não é espelho Por isso Com isso Digo: ... Saudades!
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NOTA FINAL48
Há muito o que poderia ser dito E não foi. (Silêncio) E o que se fez, Já está. (Eco)
48
Este livro é parte substancial dos resultados da pesquisa de pós-doutoramento realizada na Universidade do Minho (Portugal), 2017/2018. Alguns textos de minha autoria publicados anteriormente em periódicos, pelo fato de tratarem especificamente de aspectos importantes sobre o sentido de cidade, de linguagem, narrativa e de dança, foram incorporados parcialmente neste livro, mediante revisão e ajustes. Todas as fotografias que identificam o rosto da pessoa fotografada foram previamente autorizadas pelas mesmas.
352
PÓSFÁCIO, sobre a experiência desta leitura Um grande amigo ao ler meus textos e escritos sempre me disse: "você não vai poder estar ao lado de todo mundo que estiver lendo seu trabalho para explicar o que quis dizer em cada parte. Ela estará sozinha e o texto tem que ser o suficiente para ela entender suas ideias e argumentos". Pois bem, solidão foi uma das poucas sensações que não senti enquanto passeava entre as frases deste livro. Durante a leitura, aconteceu algo novo para mim, parecia que você estava ao meu lado, me contando sobre tudo isso. Com uma fala calma, sensível, delicada, poética, daquelas conversas que começamos, passam-se horas e horas e ela não cessa nem enjoa, não cansa, nem adormece. Me senti um ouvinte de alguém doido para conversar. Nesta
conversa
nada
ficava
solto,
não
precisava
esboçar
desentendimento, pois quem a estava contando foi minucioso para que tudo se encaixasse perfeitamente, num sincronismo delicioso de se deleitar. Hora parágrafos, hora poesias, hora poema, hora pausas (minhas para ir longe), hora fotos, hora desabafo, horas que se passaram. Vi o resultado de algo que por muito tempo foi amadurecendo, que ao longo do tempo foi se formando, que o tempo foi inscrevendo em você. Consegui ver o Queiroz extremamente estudioso que conheço, o Queiroz que escreve como ninguém, capaz de ziguezaguear por vários temas e assuntos, mas, tendo o fio condutor a sempre tão amada geografia. Vi o Queiroz menino pantaneiro, o poeta, o fotógrafo, o professor, o acadêmico, o Queiroz humano que chora, se alegra, que se apaixona, que se entristece, mas que utiliza tudo isso como matéria de poesia. Aliás, nesse livro
353
as emoções são passagens, nunca paradas ou fiéis companheiras ao longo de todo percurso. Um livro que eu facilmente seria acometido pela sensação de saber quem o escreveu, mesmo sem saber o autor. É nítido que esse livro foi você que escreveu, é fato que essa é a sua geografia e que por tanto tempo vem imaginando, mas que tínhamos apenas partes, artigos, pequenos escritos de tudo que se passava em seu corpo. Este livro de fato é uma reunião de fragmentos. Conseguimos perceber todos os seus artigos contidos ali, todos os Queiroz, todas as suas descobertas e alegrias de poder contar com os fiéis companheiros escritores que te acompanharam ao longo de todo esse tempo. Pude sentir todo o frio, angustia, incertezas, momentos de Portugal, assim como a felicidade e a certeza da volta. Este será um daqueles meus livros de cabeceira, sabe que você tanto fala, que devem ficar ali e sempre irmos e virmos dentro dele, termos o contato constante. Sabe aquela sensação ao final de um grande espetáculo assistido, ficamos extasiado na cadeira, palmas intermináveis, aquele sentimento de incredulidade sobre aquilo que acabamos de ver? assim "terminei" seu livro. Percebeu que não falei da dança em momento nenhum? isso por que ela esteve em tudo, no movimento e fluidez do texto, na sua caminhada, em cada palavra. A dança neste livro não é para ser dita e sim sentida, vivenciada, experienciada, a cada palavra, a cada frase, a cada página. Tiramos nossos pensamentos e imaginações para dançar, damos giros, saltos e piruetas. Parafraseando aquela frase do filme “Só 10% é mentira”: a dança é assim, se dançou, dançou, se não dançou, esquece. Do seu grande amigo, Rafael Fafá Borges
354
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elementos
para
uma
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361
ANEXOS
362
GEOGRAFIA E DANÇA sistematização da produção bibliográfica (1998 – 2016)
- SISTEMATIZAÇÃO QUANTITATIVA A primeira etapa da pesquisa consistiu em sistematizar todo tipo de produção bibliográfica disponível na rede mundial de computadores. Nesse sentido, foi utilizado o buscador Google como fonte de dado, cuja metodologia consistiu na busca pelas seguintes palavras-chave: - geografia, dança: para pesquisa em língua portuguesa; - geography, dance: para pesquisa em língua inglesa; - geographie, danse; para pesquisa em língua francesa; - geografia, danza: para pesquisa em língua espanhola; Como resultados iniciais, constatou-se que foram produzidos entre os anos de 1998 a 2016, cerca de 21 textos, tipificados em artigos e dossiês publicados em periódicos científicos, capítulos de livros, livros autorais e organizados, trabalhos de conclusão de curso de graduação e dissertações de mestrado, resumos e trabalhos completos em congressos acadêmicos, dentre outros, assim enumerados:
- Resumo em congresso acadêmico: 01 - Trabalho completo em congresso acadêmico: 03 - Trabalho de conclusão de curso de graduação: 02 - Dissertação de mestrado: 01 - Artigo publicado em periódico científico: 10 - Dossiê publicado em periódico científico: 01 - Livro: 02 - Capítulo de livro: 03 - Outro (entrevista): 01
363
Observa-se ainda, no aspecto do tipo de produção, a seguinte relação no quesito localidade/tipo de produção: -PT: Portugal -UK: Reino Unido -FR: França -US: Estados Unidos -CH: Chile -BR: Brasil
PT
50%
50%
RESUMO ARTIGO
UK
33% ARTIGO CAP LIVRO 67%
364
FR
20%
20%
DOSSIE ARTIGO CAP LIVRO
60%
US
33% LIVRO ARTIGO 67%
365
CH
ENTREVISTA
100%
BR
12% 25%
DISSERTAÇÃO ARTIGO TCC 38%
25%
366
TRABALHO COMPLETO
Nota-se que a produção bibliográfica em artigos é aquela que compõe a maior porcentagem nos seus respectivos lugares de produção. No entanto, quando analisamos do ponto de vista da distribuição, percebemos que a produção em livro é responsável pelo maior volume de conteúdo produzido. Para chegarmos a essa informação, foi utilizado a métrica da quantidade páginas como medida referência para mapear de forma equivalente a distribuição espacial e temporal das produções encontradas. Disso resultaram os seguintes gráficos:
PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA EM GEOGRAFIA E DANÇA CH 0%
PT 3%
FR 18% UK 5% BR US CH
US 54%
PT
BR 20%
FR UK
PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA EM GEOGRAFIA E DANÇA US 646
700 600 500 400
BR 233
300
FR 209
200 100
UK 55
PT 42
CH 4
0 BR
US
CH
PT PÁGINAS
367
FR
UK
LINHA DO TEMPO 332 300
152 100 8
21
4
FR
UK
CH
US
BR
18
29
14
12
31
UK
FR
US
FR
BR
US
1
17
13
11
41
3
41
18
16
PT
BR
BR
BR
BR
BR
PT
BR
UK
FR
1998 1999 2002 2003 2006 2007 2008 2008 2009 2013 2013 2014 2015 2015 2015 2015 2015 2015 2016 2016 2016
Um dado fundamental a ser identificado trata da questão do acesso à referida produção bibliográfica encontrada. Por esse motivo, produziu-se também um Mapa de Acesso, onde identificou-se que lugares partilham gratuitamente sua produção. Sendo assim, tem-se:
GARANTIA DE ACESSO DA PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA 8
4 0 BR
0
2
0
0
0
PT
2
1
UK LIVRE
0
1
2
US CONDICIONADO
368
0 FR
PAGO
1
1
0 CH
0
BR: 08 produções – 08 de acesso livre: 100% PT: 02 produções – 02 de acesso livre: 100% UK: 03 produções – 00 de acesso livre – acesso pago: 01 – acesso pago, mas garantido pela universidade: 02 US: 03 produções – 00 de acesso livre – acesso pago: 02 – acesso pago, mas garantido pela universidade: 01 FR: 05 produções – 04 de acesso livre – acesso pago: 01 CH: 01 produções – 01 de acesso livre: 100%
- SISTEMATIZAÇÃO QUALITATIVA Esta etapa da pesquisa consistiu no processo de análise por meio da tipificação, categorização e sistematização qualitativa dos principais temas, horizontes conceituais e metodológicos tratados na bibliografia coletada. O principal objetivo foi identificar o sentido de Geografia que está sendo tratado em cada texto, bem como, o modo como se dá a articulação com a dança, gerando uma tabela de categorização com base na matriz epistemológica ancorada na História do Pensamento Geográfico sistematizada por Correia (2007, 2011). Os textos analisados foram divididos em 4 tipos: língua portuguesa, língua inglesa, língua francesa e língua espanhola. #Textos em língua portuguesa Corpo Geográfico: reflexões sobre comunicação do corpo e dança afro peruana, de Joana Fernandez. Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG metodológicos Geografia Estudos culturais, Observação, Espaço físico, Fenomenologia, cotidiano,
identidade,
descrição;
superfície, localidade,
Geografia
Humanista
poética,
comunicação
espaço poético, casa,
Cultural,
Geografia.
(como
troca
Comunicação
Física
Tradicional
(clima,
vegetação,
relevo),
Geografia
de
informação), espaço, genética,
corpo,
entre
indivíduo e lugar;
espacialidade, símbolo,
Crítica (Milton Santos);
linguagem, dança;
369
O que pode uma Geografia como corpo que dança? Linguagem-experiência `gesto-movimento ` (fragmentos), de Antonio Carlos Queiroz Filho. Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG metodológicos Geografia Corpo, linguagem, Experimentação Gesto, linguagem, Nova Geografia experiência, gesto, devir, potência,
conceitual;
sensibilidade,
não-lugar,
improviso,
grafia
poética;
pós-
Cultural,
contemporânea, Geografia
estruturalismo, afeto;
Geografia criativa,
Doreen Massey;
Geografia Cultural: Música e Dança Folclórica Gaúcha, Construindo Identidades nos Departamentos Tradicionalistas Culturais Estudantis De Santa Maria – RS, de Deise Lorensi e Meri Bezzi. Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG metodológicos Geografia Identidade cultural, Conversas informais, Manifestação cultural, Fenomenologia, dança, folclore, cultura,
observação
patrimônio,
cotidiano, descrição;
cotidiano,
pertencimento,
música,
teatralidade,
gênero,
símbolo,
do
localidade;
Geografia Cultural tradicional;
percepção,
experiência;
Paisagem e Dança. Geografias de Coprodução, de Ana Francisca Azevedo. Temas e Conceitos
Aspectos metodológicos Análise do processo
Concepção de Geografia Conhecimento de
dança,
de criação de um
mundo;
experiência, corpo, lugar,
espetáculo de dança
afeto, paisagem, espaço
e
público, corporeidade;
apresentação;
Arte,
representação,
performance,
de
sua
370
Matriz HPG Geografia Cultural Contemporânea, Nova Geografia Cultural;
Eu-Corpo: Geografia, Dança, Lugar, de Carolina Pereira. Temas e Conceitos Aspectos Concepção de metodológicos Geografia Lugar, percepção, Explorações teórico- Espaço simbólico,
Geografia Humanista,
sensação,
Nova Geografia
movimento,
corpo, dança, imaginação;
práticas, diário de
mundo vivido;
bordo,
Matriz HPG
Cultural;
fenomenologia;
Espaço: entre a Dança e a Geografia, de Gimeny de Brito. Temas e Conceitos Aspectos Concepção de metodológicos Geografia Espaço, corpo, Relato de Superfície,
Geografia
movimento, arte, ciência,
experiência,
materialidade, espaço
(Milton
multicultural,
observação
(como
Geografia
participante,
totalidade física);
estudo
coreológico de Laban;
orientação,
Matriz HPG crítica Santos), Humanista
(Merleau-Ponty);
entrevistas;
Uma nova Geografia de Ideias: diversidade de ações comunicativas para a dança, de Giancarlo Martins. Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG metodológicos Geografia Corpomídia, Análise sistêmica de Localização, Geografia Cultural; evolucionismo,
estudos
culturais, política cultural;
dados,
entrevistas,
estudo de caso;
superfície, circulação, relações
de
poder,
ambiente sociocultural;
A Capoeira em uma perspectiva Geográfica, de Sergio Cezário et all. Temas e Conceitos Aspectos Concepção de metodológicos Geografia Identidade, resistência, Vivências; Localidade, cultura, capoeira;
Matriz HPG Geografia Cultural;
relações de poder;
Súcia: uma dança de manifestação cultural e religiosidade em Monte do Carmo – TO, de Marciléia Bispo. Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG metodológicos Geografia Festa, religiosidade, Entrevistas, Localidade, espaço Geografia cultural; cultura,
identidade,
cotidiano, tradição;
observação,
simbólico
narrativas;
371
#Textos em língua inglesa Using folk dance and geography to teach interdisciplinary, multicultural subject matter: a schoolbased study, de Inez Roveno e Madeleine Gregg. Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG metodológicos Geografia Educação, cultura, nativo Teoria de Cornelius Disciplina, localidade; Geografia cultural; americano,
índios,
cotidiano, pluralidade;
sobre
ensino
cultura,
de
pesquisa
qualitativa;
Geographies for Moving Bodies: Thinking, Dancing, Spaces, de Derek McCorkack. Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG metodológicos Geografia Corpo, movimento, Experimentação Disciplina, Nova Geografia espaço,
experiência,
conceitual;
Espacialidade;
afetividade;
cultural,
Geografia
Contemporânea;
The Cultural Geography of the Summer Dance Pavilions of Ostrobothnia, Finland, de Pentti Yli-Jokipii. Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG metodológicos Geografia Cultura, paisagem Pesquisa Localidade; Geografia cultural; cultural,
comunidade,
identidade,
etnográfica;
relações
sociais, migração, cultura popular;
Dance, de Derek McCorkack. Temas e Conceitos Corpo,
espaço,
media,
movimento, representação,
Aspectos metodológicos Estado da arte,
Concepção de Geografia Localidade, superfície,
Geografia Cultural,
revisão teórica;
pensamento;
Nova Geografia
não-
Cultural;
representacional, tecnologia,
Matriz HPG
imagem,
internet, performance;
372
#Textos em língua francesa Géographie exotique et imaginaire de la danse: la révélation de la danse espagnole dans 'De Paris à Cadix' d’Alexandre Dumas, de Bénédicte Jarrasse. Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG metodológicos Geografia Narrativa, viagem, dança, Revisão teórica, Localidade, superfície; Geografia cultural; imaginário,
estudo literário;
representação, antropologia,
estética,
signo;
Danse exotique, danse érotique. Perspectives géographiques sur la mise en scène du corps de l’Autre (XVIIIe-XXIe siècles), de Jean-François Staszak. Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG metodológicos Geografia Gênero, dança, pós- Estudo descritivo Localidade, superfície; Nova geografia colonial;
histórico, estudo de
cultural;
caso;
Espaces et lieux du tango: la geographie d'une danse, entre mythe et réalité, de Apprill C. e Dorier Apprill. Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG metodológicos Geografia Identidade, lugar; Estudo de caso; Localidade, superfície; Geografia cultural; estudo
descritivo
histórico;
Géographie de la danse et du bal, de Joëlle Dalègre, Maurice Garden et Pascal Dibie, Bénédicte Tratnjek. Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG metodológicos Geografia Paisagem, território; Estudo de caso; Localidade, superfície; Geografia cultural; estudo
descritivo
histórico;
373
Quand le corps donne chair à la géographie. Temas e Conceitos Aspectos metodológicos Corpo, espaço, fronteira. Fenomenologia,
Concepção de Geografia Pensamento,
Nova
geografia
Espaço público, gênero,
espacialidade,
cultural,
geografia
geograficidade;
humanista;
relações
sociais
experimentação;
e de
Matriz HPG
poder;
#Textos em língua espanhola Geografia de la danza y musica folklórica de Chile, de Fernando Schmidt. Temas e Conceitos Aspectos Concepção de metodológicos Geografia Folclore, Região, Religião, Descritivo; Localidade, superfície;
Matriz HPG Geografia cultural;
território, Cultura; Observações: Discurso do embaixador do Chile.
Também como resultado deste sistematização, gerou-se uma tabela de categorização com base na matriz epistemológica anteriormente referida:
374
PORTUGUÊS 8% 15%
Geografia Humanista Cultural
31%
Nova Geografia Cultural Geografia Cultural Geografia Crítica 31%
Geografia Física
15%
INGLÊS
40% Geografia Cultural Nova Geografia Cultural 60%
375
FRANCÃ&#x160;S 17% Geografia Cultural 50%
Nova Geografia Cultural Geografia Humanista Cultural
33%
ESPANHOL
Geografia Cultural
100%
376
Conforme os gráficos, nota-se que a maior parte desse material, condizia com estudos mais clássicos da Geografia Cultural, especialmente aqueles que lidam com pesquisas e estudos sobre localidade a partir da perspectiva da identidade territorial, da manifestação cultural e do espaço simbólico. No entanto, o foco da pesquisa estava mais centrado noutra esteira epistemológica. Por esse motivo, foi necessário realizar um ajuste no desenvolvimento da pesquisa. Da ideia inicial, que assumia como desafio a proposta de pensar em epistemologias e metodologias para um subcampo temático dentro da Geografia Cultural Contemporânea, buscou-se a partir da perspectiva dos estudos pós-estruturalista, realizar uma pesquisa que parte da de localidade como algo que se dá na relação do corpo com a experiência, produzindo, com isso, narrativas poéticas, cujo propósito não mais se assenta na ideia de “problematizar”, em seu sentido científico tradicional, mas sim, de “dar a ver” espaço, paisagem e o habitar urbano por meio de um horizonte investigativo de fundo criativo-sensível-poético;
377
SOBRE O AUTOR Antonio Carlos Queiroz Filho é professor efetivo da Universidade Federal do Espírito Santo-UFES (Brasil). Atua junto ao Departamento de Geografia e nos Programas de Pós-Graduação em Geografia (Mestrado e Doutorado) - PPGG e Arquitetura e Urbanismo – PPGAU. É líder do Grupo de Pesquisa RASURAS Geografias Marginais (Linguagem, Poética, Movimento) e do GRAFIAS Laboratório de Geografia Criativa. Desenvolve pesquisas em Epistemologia da Geografia Humana Contemporânea e da Nova Geografia Cultural, com ênfase nos estudos sobre a Geografia da Diferença (Estudos Deleuzianos e pósestruturalismo) e seus desdobramentos nos temas: Imaginação Espacial e Política das Imagens; Paisagem na relação linguagem-experiência-sensibilidade a partir do cinema, literatura e dança; Imagem da Cidade, Videografias, Geoetnografias e Corpografias Urbanas, onde aborda o papel do pensamento e do humanismo na produção das cidades e na compreensão de seus fluxos.
378