MARGEM DA PALAVRA BEATRIZ CARRASCO CAROLINA CUNHA
Pontifícia Universidade de São Paulo Curso de Jornalismo
Projeto Experimental (TCC) Margem da Palavra Autoras Beatriz Carrasco Carolina Cunha Fotografia Beatriz Carrasco Orientação Editorial Hamilton Octavio de Souza Orientação Gráfica Valdir Mengardo Colaboração Andreia Martins (apoio) Leandro Lourenço (diagramação) Natalia Martins (transcrições) Regina Carrasco Moreno (revisão)
Faculdade de Comunicação e Filosofia – Comfil Rua Monte Alegre 984 – Perdizes – Fone 3670-8217 CEP 05.014-901 – São Paulo – SP Novembro de 2008
Agradeço aos meus pais, Murilo e Inácia, pela grande batalha, sabedoria, respeito e apoio irrestrito em todas as minhas escolhas. Não existem distâncias para o amor. Aos avós, Irene, Dona Santa e Reis, pelo pão de todos os meus ancestrais. Ao chão de Brasília, cerrado seco, terra adorada. A São Paulo, babel, morada de mim. Aos meus irmãos Bruno e Anna Lúcia, pelas lições aprendidas, inspiração e capacidade de acreditar que outro mundo é possível. A Beatriz Carrasco, talentosa companheira de contação de histórias nessa empreitada boa. Aos companheiros de muitas caminhadas e risadas, Beatriz, Elvis, Charlene, Juliana, Natasha, Rafael,Fernanda, Karina, Patrícia e Priscila, e todos os amigos que sabem que são importantes. Ao Fernando, menino arretado, por um dia me dar uma bronca e falar: você precisa escrever. A Andreia, pela capacidade de trançar sonhos e projetos coletivos, pela paciência, apoio e ensinamentos. Aos colegas de trabalho das ONG´s em que atuei, pela capacidade de acreditar em pessoas. Aos livros que li e me inspiraram em momentos de silêncio e assombro, grandes sertões de histórias, sagas na vereda da vida. Ao professor Hamilton, pela gentileza em orientar caminhos e ritmos acadêmicos. Aos professores da PUC Urbano, Serginho, Rita, Raquel e Faro, grandes pensadores, que abriram meus olhos para os labirintos da sociedade e o mundo polifônico em que vivemos. A Eleílson e Adriano, da Ação Educativa, que me guiaram quando precisei de um ponto de partida para este trabalho. À generosidade dos poetas, artesãos da palavra, professores da vida, gente que faz, dispostos a dar entrevista até em dia de feriado. Ao mantra de 2009, “agradecer e abraçar”, de preferência com flores no mar.
O horizonte é sempre maior. E mesmo nas descobertas mais intensas, sei que nunca estarei sozinha. Por isso agradeço primeiro àqueles que todos os dias me dão o pão da vida, da sabedoria e da tolerância: minha família. Agradeço à minha mãe, Maria Imaculada, por me ensinar a amar sem limites e a entender as diferenças das pessoas. Um simples olhar me abre caminhos e me faz ter forças para seguir em frente. Ao meu pai, que mesmo sem estar mais entre nós, continua de algum modo dentro de mim. À minha irmã Bárbara, que tem apenas 14 anos, mas muito a ensinar. Laços de sangue são eternos e incondicionais. Às minhas tias Isabel, Lurdes e Regina, que mesmo em meio a tantas atividades, encontraram tempo para me guiar quando tudo estava escuro. Ao meu tio Roberto e meus primos Rodrigo, Fábio e Maurício. Homens da minha vida que nunca medem esforços. Ao Alex, que esteve presente mesmo enquanto eu estava perdida. Para o amor não existem fronteiras. À Andréia, jornalista e nova amiga que dividiu conhecimentos e nos orientou quando estávamos sem rumo. Aos meus amigos queridos, em especial Natasha, Érika, Ana, Luiza, Aliny e Liliane, que me apoiaram sem julgar a minha falta de tempo. Aos poetas e agitadores culturais, que contribuíram com o trabalho e me despertaram um novo olhar para a arte e a vida. À Carolina Cunha, pessoa incrível que esteve ao meu lado nessa descoberta. A conexão de pensamentos foi grande, e a poesia que nos alimentou fez surgir uma amizade ainda maior. À literatura, que me inspira sempre a continuar.
Carolina Cunha carolglic@gmail.com
Beatriz Carrasco b.carrasco@hotmail.com
APRESENTAÇÃO ... página 11 PARTE 1 - SARAU, A CENA Dos salões aos bares, praças e a Geração Mimeógrafo ... página 13 Saraus e coletivos dão forma à literatura periférica ... página 18 Sacolinha: O homem-bomba da palavra ... página 29 Alessandro Buzo: O busão da cultura ... página 35 PARTE 2 - SARAU EM CENA Margem Sul: Cooperifa ... página 42 Margem Oeste: Elo da Corrente ... página 88 Margem Norte: Poesia na Brasa ... página 128 Margem Leste: Tenda Literária ... página 166 PONTO FINAL ... página 196 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... página 197
isso de querer ser exatamente aquilo que a gente ĂŠ ainda vai nos levar alĂŠm Paulo Leminski
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Apresentação
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um que tenha sede de experimentar a viagem da leitura.
Os muros que separam a literatura da periferia são cada vez mais
“Assim quando falham as palavras quando queremos exprimir qualquer pensamento / Assim faltam os pensamentos quando queremos pensar qualquer realidade” Fernando Pessoa /Alberto Caeiro
frágeis. Se antes a atividade literária era relegada a pequenos círculos, agora ela quer circular. As leituras burocráticas, silenciosas e didáticas
de outros tempos dão espaço para o microfone aberto, a quem quiser se aventurar. Nesses saraus não existe uma perícia literária, vigilantes
da forma. Surge então um momento coletivo, palavra que é para todos, palavra que é comunitária. Não sabemos se a literatura será um
Onde tudo começa Um convite de um amigo para tomar uma cerveja e ouvir poesia
em uma vila distante, que não sabíamos o nome. Mas não era apenas um sarau. Eram vários e aconteciam todas as semanas. Sentíamos que
havia algo novo no ar, uma cena cultural diferente, que pulsava bem
longe dos nossos olhos. Que literatura é essa que arrasta tanta gente para dentro de bares em bairros tão afastados de nós? Com palavras na
cabeça e a voz como arma, a literatura invade a periferia de São Paulo
e nela se instala. Os saraus forjam o espaço de encontro com a palavra. Em vez da pressa, uma pausa. São os minutos de silêncio reservados para ouvir poesia.
Nosso desafio é narrar a cultura que brota em lugares inusitados,
pelas beiradas. Acreditamos que o gosto pela literatura surge através
de experiências e não como uma mera técnica de leitura. Hoje é hora de pedir à literatura que vá para as ruas,se infiltre nos becos e ocupe as
vielas. Que se torne viva na boca de porteiros, donas de casa e qualquer
antídoto para a transformação social, mas sabemos que ela deve ser tanto quanto possível, livre.
Nosso universo também é palavra. E nosso maior interesse neste
livro é pelas pessoas que se apoderam dela. Sob o manto protetor do
papel de jornalistas, nos aventuramos nos saraus de periferia para investigar histórias e conhecer universos. Munidas de um gravador e máquina fotográfica, desarmarmos nossos preconceitos e deixamos os
olhos e ouvidos abertos. Nas leituras, uma luz se acendeu. O poeta lia
no palco e a gente tentava ler o poeta. Nas idas à periferia, descobrimos uma São Paulo até então desconhecida para nós. As margens da
metrópole cinzenta ficam mais bonitas com a poesia. Ao cair da
noite, cruzando o trânsito no horário de pico, com os vidros do carro
fechados, os grandes edifícios passam e dão espaços a pequenas casas, lajes vazadas, paisagens ainda urbanas e cada vez mais longe do nosso ponto de partida.
A viagem pelas quebradas revela surpresas no caminho.
Vielas sem saída, ruas sem nome, mapas que se tornam inúteis
e olhares de estranhamento com a nossa presença. A volta para
o centro é perturbadora. O processo é de desapego às nossas referências. Na cabeça, os versos e conversas dos saraus ecoam
por dias a fio e desestabilizam nossa zona de conforto. No final
da nossa viagem, algo se rompeu dentro da gente. Somos nós, leitores e ouvintes, que ganhamos o presente de redescobrir redutos de humanidade, não apenas na cidade, mas aqueles
Foto : Amauri Junior
escondidos dentro de nós. Mas isso é uma outra história.
SARAU A CENA
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Dos salões aos bares, praças e a Geração Mimeógrafo Houve um tempo, lá pelo final do século 19 e o início do século 20, em que o sarau era o evento mais elegante da sociedade brasileira. Realizado nos salões das fazendas e belas mansões da alta sociedade, era fruto da herança deixada pela Família Real que, ao chegar ao Brasil em 1808, trouxe consigo alguns hábitos e costumes do continente europeu. Os saraus são, por definição, um local de encontro literário ou apenas social, para conversar e dançar com os amigos. Mas naquela época, a poesia, ou melhor, a palavra, era colocada em segundo plano. O evento era para ver e ser visto, as noites reuniam bebidas importadas, quitutes, piano de cauda, belas damas e, é claro, poetas e músicos que, ali, tinham apenas a função de animar a noite. No Rio de Janeiro, os encontros logo ganharam fama. Alguns autores do século 19 retratam em seus livros cenas de saraus, como Machado de Assis e Joaquim Manuel Macedo, autor de A Moreninha. Depois foi a vez de São Paulo, quando os barões do café tomaram gosto pela novidade. Um sarau, em especial, ganhou fama nacional: o Villa Kyrial, criado pelo senador gaúcho Freitas Valle, na Vila Mariana, região sul da capital paulistana. Inspirado nos salões parisienses, era palco
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para as artes e a política, com direito a convidados ilustres como Mário de Andrade, Heitor Villa-Lobos, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira. Mas a partir dos anos 1940, os saraus foram saindo de moda e perdendo o seu charme na alta sociedade. Passaram a ser passatempo de estudantes em bares, porões, praças e ambientes mais alternativos que os amplos salões da elite nacional. Com a Ditadura Militar, enfrentaram dias difíceis, assim como a maioria das manifestações artísticas. Renasceram por volta dos anos 1970, com a Geração Mimeógrafo e para os chamados “poetas do sufoco”. Entre eles estavam nomes como Ana Cristina César, Charles, Chacal e Cacaso, que, usando uma tática manual e rasteira, driblaram o vazio cultural no auge da repressão. Literatura marginal movida a manivela Em 1970, o milagre econômico prometia um país melhor, tanto no âmbito social quando econômico. Paralelo a isso, cresciam as corrupções, prisões, assassinatos, desaparecimentos, perseguições e censura. É nesse contexto que um grupo de escritores, a maioria do Rio de Janeiro, decide lançar seus próprios poemas. Impedidos pela censura de publicar seus livros em grandes
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editoras, a alternativa foi a produção independente: com baixo custo e ajuda dos mimeógrafos, antigas e precárias máquinas de xérox movidas a manivela. Os primeiros versos marginais apareceram nos folhetos mimeografados Travessa Bertalha, de Charles Peixoto, e Muito Prazer, de Chacal (ambos em 1971). Nas publicações Me Segura Qu’eu Vou Dar um Troço, de Waly Salomão, tidas como um marco da poesia experimental no Brasil, e também na edição póstuma de Últimos Dias de Paupéria, de Torquato Neto (1972). Além desses autores, na linha de frente estavam Cacaso, Francisco Alvim, Bernardo Vilhena, Adauto de Souza Santos, Luiz Gleiser, Eudoro Augusto, Ana Cristina César, Ronaldo Santos, Geraldo Carneiro e Leila Miccholis. Apesar de o fenômeno ser mais forte no Rio de Janeiro, havia autores se destacando em outros estados, como Paulo Leminski e Alice Ruiz em Curitiba, Jomard Muniz de Brito em Recife, Nicolas Behr em Brasília, Roberto Piva em São Paulo, entre outros. “Eles imprimiam os livros da maneira que dava e vendiam na rua um produto artesanal. Hoje são peças valiosíssimas. É a história da literatura que consagrou todos eles, na época jovens. Era al e carregada de ironia, gírias e histórias do cotidiano da classe média e alta. Distribuídos de mão em mão pelos próprios poetas, os livros circulavam
em bares, cinemas, universidades e outros espaços públicos. Devido à técnica utilizada, a geração ficou conhecida como Geração do Mimeógrafo. Sua produção foi apelidada de “literatura marginal”. O termo foi cunhado pela professora e ensaísta Heloísa Buarque de Hollanda em seu livro 26 Poetas Hoje, uma coletânea lançada em 1976, onde ela reuniu os expoentes da poesia marginal. No ensaio Poesia Marginal, ela escreve que “o termo marginal (ou magistral, como dizia o poeta Chacal), ambíguo desde o início, oscilou numa gama inesgotável de sentidos: marginais da vida política do país, marginais do mercado editorial e, sobretudo, marginais do cânone literário. Foi uma poesia que surgiu com perfil despretensioso e aparentemente superficial, mas que colocava em pauta uma questão tão grave quanto relevante: o ethos de uma geração traumatizada pelo cerceamento de suas possibilidades de expressão pelo crivo violento da censura e da repressão militar. Em cada poema-piada, em cada improviso, em cada rima quebrada, além das marcas de estilo da poesia marginal, pode-se entrever uma aguda sensibilidade para registrar – com maior ou menor lucidez, com maior ou menor destreza literária – o dia a dia do momento político em que viviam os 1 poetas da chamada geração AI5” . 1
Trecho extraído do texto A Poesia Marginal, disponível em http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br.
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Em entrevista a Zuenir Ventura no livro 1968 – O que Fizemos de Nós?, Heloísa lembra que no ano do lançamento de 26 Poetas Hoje, a antologia teve “uma repercussão inexplicável”: “fui convidada para conferências, seminários, entrevistas. O pequeno volume foi resenhado e escrutinado em um sem-número de jornais e revistas. Os jornalistas se entusiasmavam com uma ‘novidade’ para os espaços melancolicamente vazios de seus cadernos de cultura. Os professores e críticos dividiam-se perante uma possível 2 ‘agressão’ à instituição literária” . Uma das críticas à coletânea foi feita por colocar 26 escritores sob o mesmo chapéu: o de marginais. Fato que simulou a ideia de que, por trás daquela produção, havia um movimento. O que não era bem verdade, visto que a literatura marginal dos anos 1970 nunca foi reconhecida como um movimento, pois não havia uma política em comum, organização de resistência ou unidade necessária para tal fim. Os poetas marginais não apresentaram projetos literários ou políticos, mostrando-se avessos a qualquer tipo de engajamento formal. Estavam ocupados em viver a poesia e, por meio do uso irreverente da linguagem, sinalizavam 2
VENTURA, Zuenir. 1968: O que fizemos de nós?. São Paulo. Editora Planeta do Brasil,
2008. p.121-122.
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em sua textualidade e atitudes uma aproximação radical entre arte e vida, cotidiano e versos. Ainda assim, o livro foi fundamental para que a geração de mimeógrafos tivesse sua produção reconhecida e legitimada. E também para que a poesia marginal ganhasse espaço no meio acadêmico. Em certos aspectos, o espírito inovador dessa geração lembrava a ousadia dos autores da Semana de Arte Moderna de 1922. Com seus versos acrescidos de um toque humorístico e linguagem coloquial, os modernistas retratavam situações cotidianas e estavam despreocupados com a métrica ou com a rima. Para eles, não importava a forma, e sim o viver de poesia. Como dizia Cacaso: “a vida não está aí para ser escrita, mas a poesia sim está aí para ser vivida…”. Passados mais de 30 anos, hoje essa literatura é reconhecida como a expressão, por excelência, da poesia dos anos 70 no Brasil. Uma poética voltada às dificuldades urbanas, conflitos sociais e centrada na atitude, como diz o texto de Nicolas Behr, publicado em novembro de 1979 e intitulado Geração Mimeógrafo: “A geração mimeógrafo surgiu como uma opção, dentro dos 3 grandes blocos de poesias de vanguarda no início dos anos 70; a geração mimeógrafo surgiu como os “não-alinhados”, só escrever não basta. Escrever é a ponta do iceberg, ‘um poeta não se faz com versos’ dizia Torquato Neto. A atitude do poeta como parte
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do poema, atitude ética X atitude estética. Pinta aí uma ligação afetiva muito grande, o poeta imprime e monta seu livrinho, um pedaço dele tá dentro de cada livrinho, a presença fisíca do poeta é exigida para que o seu livrinho circula. Essa é prova de fogo de nossa geração. É a nossa fase heróica. Pode pertencer à geração mimeógrafo um poeta que sempre imprimiu seus livrinhos em off-set, xerox, fotocópia. Geração mimeógrafo é antes de mais nada, uma atitude. Fazemos parte da geração do atalho, vamos pelo desvio e burlamos todo o esquema editorial montado em cima do livro. Quando se edita um livro em mimeógrafo o autor tem condições de manter seu trabalho vivo, pois pode modificar seu livro a cada edição. Um livro sempre aberto, sempre inacabado. Quando o poeta vende seus livrinhos por aí, encurta-se para zero a distância entre poeta e público, entre a poesia e a vida. Existe um certo preconceito contra o mimeógrafo. Livro mimeografado não tem ‘staus’ de livro. Os poetas da geração mimeógrafo ao assumirem a produção gráfica do seu trabalho estão também levando o ato de fazer poesia às últimas consequências. Esse tempo em que o poeta vende seus livrinhos em bares, portas de teatro, como já disse, é a sua fase heróica, em que o poeta leva muita saudade, mas que deixa 3 saudades, podes crer”. Nicolas Behr, 1979 3 Texto publicado em novembro de 1979, no segundo exemplar do Navégus, jornal alternativo publicado nos anos 70. Disponível em: http://www.nicolasbehr.com.br.
Saraus e coletivos dão forma à literatura periférica Após frequentar os salões dos barões de café e os ambientes alternativos com estudantes e poetas da Geração Mimeógrafo, os saraus ganharam fôlego e estão de volta. Mas agora em um novo palco e sob um contexto diferente: a periferia de São Paulo. Com diversas histórias, linguagens ou rimas, há poetas despretensiosos, poetas por uma noite, poetas por acaso ou por vocação. O importante é comungar a palavra. Em cena desde meados dos anos 1990, esses escritores reapareceram para colocar no papel as dificuldades urbanas, sociais e seus questionamentos internos. Hoje, o cotidiano e a realidade abordados não são mais os da classe média ou do país como um todo, e sim os das comunidades periféricas. Os saraus de periferia misturam dois ingredientes principais: celebração e crítica social. Se na década de 1970 o pólo da poesia marginal era o Rio de Janeiro, agora a cena concentra sua maior produção em São Paulo, em encontros promovidos nos quatro cantos da capital. Ao todo, são 32, segundo mapeamento feito pela Poiesis (Organização Social de Cultura que administra a Casa das Rosas), o Museu da Língua Portuguesa, a Casa Guilherme de Almeida e o SPEL (São Paulo, um Estado de
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Leitores), em São Paulo. “A ideia básica foi circular para detectar o que está acontecendo nesses diferentes saraus. Você tem diferentes vivências, diferentes apresentações, conhece pessoas diferentes. O tema muda, e isso é muito rico. São diversas manifestações que refletem cada comunidade”, diz Rui Mascarenhas, coordenador do mapeamento que resultou em um folheto, o Pontos de Poesia, com todos os endereços dos 32 saraus que ocorrem na cidade. Mas esses dados são apenas oficiais, pois, segundo Rui, estima-se que a cidade chega a ser palco de 60 saraus. A maioria está localizada na região central ou espalhada nas periferias, em bairros como Cidade Tiradentes, Itaim Paulista, São Miguel Paulista, Vila Brasilândia, entre outros. O mapa ainda inclui cidades vizinhas como Suzano, Guarulhos, Carapicuíba, Embu, Pedreira, Diadema e Santo André. “É o que há de mais novo e instigante na cena cultural da periferia. É celebrativo, se assemelha, às vezes, a um culto. Às vezes é saborosamente anárquico. O que mais me encanta é que o sarau na periferia é a afirmação do improvável. Veja... A Cooperifa fica no distrito do Jardim São Luiz que, junto com o distrito do Jardim Ângela, forma a subprefeitura do M’Boi Mirim. Nessa região moram mais de 400 mil pessoas, e lá não tem uma biblioteca pública sequer. De repente, num
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bar, uns malucos há oito anos recitam poesias e fazem chover livros literalmente. Como diz o poeta Chacal: o impossível acontece; o possível se repete”, afirma Eleílson Leite, coordenador do programa de Cultura da Ação Educativa4, que acompanha e apóia o movimento cultural da periferia há anos5. Nas andanças, Rui descobriu o sarau mais antigo da cidade: o Casa do Poeta Lampião de Gás de São Paulo, no bairro da Liberdade, região central. Só ali, são mais de 60 anos de poesia, desde 1948. O sarau segue uma estrutura tradicional da leitura em público e das pessoas sendo chamadas para declamar, mas sem misturar outras manifestações artísticas. “É um grupo de poetas, na sua maioria pessoas idosas. Eu diria que é um sarau bem tradicional, no modelo antigo. Você chega lá, participa como era feito há muitos anos atrás. Quando você vai, de repente, no Sopa de Letrinhas, em Pinheiros, você vê o cara tocando violão, recitando poesias na brincadeira, uma coisa mais lúdica”, revela Rui que, ao falar em lúdico, refere-se ao fato de os saraus de hoje não serem mais tão presos a formatos. Alguns mantêm apenas a poesia como elemento principal, outros apostam na união 4 A ONG Ação Educativa foi fundada em 1994, com a missão de promover os direitos educativos e da juventude.
5 Disponível em: http://www.acaoeducativa.org.br.
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das artes. Existem ainda formatos mais inovadores, como o ZAP Slam (Zona Autônoma da Palavra), uma espécie de competição baseada no Spoken Word - Palavra Falada, prática muito comum nos Estados Unidos e na Europa. O palco fica aberto para competidores realizarem sua performance poética, e o vencedor que resistir à peneira, ganha livros como prêmio. A pontuação leva em conta quesitos como o conteúdo e a interpretação do poeta. Esse novo circuito tem atraído fãs que frequentam regularmente os eventos. “Vou a todo tipo de sarau, mas não faço parte de nenhum. Gosto de compartilhar poesia, como se compartilha um pão”, conta o poeta Dandy, que já chegou a visitar uma média de três saraus por semana. O circuito cultural tem virado atração até para pessoas de outros estados. “Em São Paulo tem sarau segunda, terça, quarta, quinta e sexta”, conta o cearense Ítalo Rovere, 42 anos, que viajou de Fortaleza a São Paulo para fazer um turismo cultural focado nos saraus. A poesia praticada nesses encontros tem sua base na oralidade, para comungar a palavra. Como alguns são analfabetos ou têm dificuldade para ler, a leitura é feita pelo “ouvido”, através da fala. É assim que são transmitidas as experiências, opiniões, sentimentos e visão dos fatos, como narradores presentes. Para Rui, esse momento de efervescência literária – ou
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poética – que está acontecendo nas regiões periféricas de São Paulo não é nenhuma surpresa. “Talvez seja uma novidade porque nós sacralizamos o livro e utilizamos a informação como meio de dominação, e aí você vê a periferia reagindo, não apenas querendo mais comida, não apenas querendo mais roupa, mas querendo também conhecimento, reflexão”, observa, e completa: “de repente ele [morador da periferia] é dono da palavra, consegue trabalhar o pensamento, e o pensamento na palavra é o único momento em que nós estamos livres. Então ele começa a buscar, a se refletir a partir dessa condição social. Aí temos uma poesia política, meio”. Nesse formato livre e descontraído, os saraus estão revivendo com a força da periferia. É permitido declamar o que quiser, sem forma pré-concebida. É democrático e, acima de tudo, a voz da própria comunidade. Seja na periferia ou no centro, a regra parece ser apenas uma: fazer dos saraus o palco para todo tipo de arte e artista. Os autores e a estética da periferia Um dos primeiros nomes, se não o primeiro, a se destacar entre os autores dessa nova geração da literatura foi Férrez. Seu livro Capão Pecado (2000) é considerado um best-seller e já foi lançado até na Europa. Na obra, ele retrata o cotidiano do bairro Capão Redondo, onde mora, usando
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uma linguagem coloquial, com textos carregados de gírias e expressões locais. Além dele, outros nomes se destacam nesse cenário: Jocenir, autor de Diário de um Detento, André Du Rap, autor de Sobrevivente Andre Du Rap (sobre o Massacre do Carandiru), Marcelino Freire, Sérgio Vaz (criador do Sarau da Cooperifa), Sacolinha, Allan da Rosa (criador do selo Edições Toró), Michel da Silva (do Sarau Elo da Corrente), Alessandro Buzo (que também apresenta o programa Manos e Minas na TV Cultura, edita o Boletim do Kaos e ainda é escritor), entre outros. Os autores dessa literatura periférica - como muitos intitulam - usam uma linguagem coloquial, repleta de recursos da linguagem oral, com gírias e expressões próprias de cada comunidade. Com as suas próprias regras de criação, eles propõem uma ruptura total com o padrão estético. Como temas comuns, destacam-se as narrativas do cotidiano, o resgate da cultura negra e a valorização da identidade de periferia. Ao invés de mimeógrafos, para publicarem seus livros recorrem ao apoio da comunidade, de Políticas Públicas e de incentivo cultural, como o VAI (Valorização de Iniciativas Culturais), programa da prefeitura de São Paulo que, em cinco anos, apoiou 407 projetos aos quais foram repassados R$ 6,5 milhões entre os anos de 2004 e 2008.
Além disso, nota-se uma forte coletividade na literatura produzida na periferia, diferente dos marginais setentistas, que eram mais reféns de sua individualidade. Como dizia Chacal, “a poesia marginal é um saco de gatos”, ou seja, cada um por si, mas todos produzindo ao mesmo tempo. E mais: por trás de toda essa produção, está um desejo de mudar o local, e não o global. A intenção desses autores e coletivos é mudar a periferia, e não mudar da periferia. Se antes tinham que se deslocar até o centro para consumir arte, agora a arte brota ali mesmo, em forma de movimento, contra a exclusão social e cultural. “Eles querem que a periferia seja melhor”, diz Rita, e completa: “começam a aparecer lideranças jovens. Eles assumem a vida na periferia, a identidade de jovem na periferia e começam a produzir música, filmes, documentários, uma série de oficinas com a prefeitura, ONG’s (Organizações Não Governamentais), entre outras. Esse fenômeno da literatura periférica é interessantíssimo e é inimaginável há 15, 20 anos”. O motivo? A incompreensão da academia, do poder público e de outros órgãos sobre o gosto do jovem da periferia. “A gente pensou que o jovem da periferia só gostasse de grafite, hip hop e que a literatura seria uma coisa da esfera culta. E não é. Eles realmente se apropriaram e praticamente disseram: isso aqui também é nosso, nós também podemos produzir”, destaca a antropóloga.
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Ao dar voz à comunidade e suas histórias, a poesia acaba sendo semelhante ao hip hop. “O hip hop foi uma espécie de chave, o vírus da literatura”, comenta Rita. Esse pode ser o primeiro e fundamental passo para o que está acontecendo hoje no campo da literatura. Para Michel da Silva, criador do sarau Elo da Corrente, o hip hop e o rap contribuíram muito para a poesia na periferia, com sua métrica, rima e letras que fazem do rimador uma espécie de cronista. Rita ainda acrescenta: “Outra característica da literatura periférica é a denúncia e a narrativa autobiográfica, o ‘aconteceu comigo, eu vi, a minha vida é assim’. A denúncia e a exposição de onde você vive, da sua quebrada, do seu bairro. Está muito presente o lugar de moradia, de onde passou a infância”. Em texto publicado em 2008 no site da revista Caros Amigos, Ferréz justifica porque é um escritor marginal. “(...) E temos muito a proteger e a mostrar, temos nosso próprio vocabulário que é muito precioso, principalmente num país colonizado até os dias de hoje, onde a maioria não tem representatividade cultural e social.” Rita ainda afirma que “é um pouco do que o Alessandro Buzo escreve no livro dele. Ele começou fazendo poesia e escreveu um texto sobre o subúrbio, no ônibus, no trem, que ele tomava para a zona leste. Ele escreveu um texto de saco cheio daquele trem, da situação de ser tratado como galo, tirou xérox no trabalho dele e deu para todo mundo
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no vagão. Aí aquela reação positiva, todo mundo ‘ah, que legal! Faz mais!’, e ele começou. Esse mesmo impulso, de simplesmente ser lido, do fazer o seu poema chegar às mãos das pessoas, isso é literatura marginal”. Alguns autores se incomodam com essa denominação de literatura marginal, outros são indiferentes. “Me sinto bem com esses títulos, rótulos. Não me incomodam. Mas o que fazemos é apenas literatura”, observa Alessandro Buzo. O termo também não incomoda ao poeta Allan da Rosa: “eu faço parte do movimento de literatura marginal, primeiro porque a literatura está à margem das cidades. Eu ando nas beiradas, nas margens, na porta. Cada um pode ter a sua forma de entender. Eu nunca defini nada. Não quero colocar fim, quero colocar começo. É literatura marginal por isso. Também está à margem de um sistema editorial. É muito complexo publicar por uma editora graúda. Tem ganhos e perdas para os dois lados. Só que a gente tem missão, a minha missão, o que me dá força”. Por meio da poesia e dos saraus, esses escritores buscam também formar um pensamento crítico, por isso investem na atuação cultural, promovendo diversas atividades, encontros e projetos de incentivo à leitura, arte e cultura. Assim, essa nova literatura marginal se constrói atrelada a uma linha de ativismo cultural, sendo que uma não existe sem a outra. São exemplos dessas ações a Agenda Cultural da
Periferia, organizada pela ONG Ação Educativa, a Mostra da Cooperifa (criada em 2008), o Favela Toma Conta, o jornal Boletim do Kaos, o Samba da Vela, Coletivo de Graffiti 5 Zonas, o Selo Povo, a Edições Toró, criada por Allan da Rosa, entre tantas outras que têm como palco e público a periferia de São Paulo. Existe um contato intenso entre os projetos, o que ajuda a fortalecer a ideia de um movimento e a atuação em rede de ativistas culturais. “Na periferia, há escassez de acesso à arte por parte da população. Não tem museu, galeria, cinema. O que não quer dizer que não tenha cultura. E o que queremos é criar um circuito cultural da periferia, para que toda a população de São Paulo, e não só a periférica, possa usufruir. Existe um barato na periferia que é legal de curtir”, diz Eleílson Leite. Periferia conectada Se por um lado há falta de recursos e estrutura, por outro há criatividade e determinação, que não impediram a periferia de explodir na internet. Fundamental para essa nova onda de poetas, que criaram uma ampla rede de informação, a principal ferramenta dos coletivos e escritores tem sido os blogs. “O nosso blog é a melhor ferramenta que a gente tem. A internet tem uma rede muito forte, a gente consegue se
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alinhar, fazer contato com Diadema, Minas Gerais, através dessa rede”, diz Israel Neto, educador, MC e integrante do Coletivo Literatura Suburbana. O educador realiza oficinas sobre criação de blogs para escolas e coletivos de jovens da periferia. Para ele, a internet é o pulo do gato para a divulgação de seu trabalho para além das fronteiras do bairro. Também é uma importante ferramenta para promover cultura e integração social, especialmente entre os jovens, que já estão conectados nas redes de relacionamento e só precisam de um empurrãozinho para conhecer outra literatura e, quem sabe, até escrever seu próprio livro. “Às vezes falam, ‘pô, tem que fazer um livro, trabalhar em PDF, photoshop’. Você pode fazer um livro em qualquer programa. A gente tenta deixar isso fácil para ele, falando ‘você pode fazer, mesmo nas suas limitações’. Porque tudo parece tão distante! A gente evita deixar as coisas muito aéreas porque sempre foi passado que a gente não ia conseguir, que não tínhamos acesso e tudo mais”. Os blogs estão aí para mostrar que a periferia está cada vez mais conectada e querendo uma visibilidade urgente, já que na mídia tradicional há pouco espaço. Para isso, nas comunidades periféricas cada um conta com a ajuda do outro. “A lan house existe em todas as favelas, em uma
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quantidade surpreendente, porque não é só lan house que existe: quem tem computador em comunidades de baixa renda faz um negociozinho em casa alugando por hora o seu equipamento. Então há um acesso à sociabilidade e ao conhecimento nunca visto. Eu trabalho muito na área de literatura, e a literatura marginal paulista, principalmente, não usa o blog e a internet como os escritores do centro de classe média. Os setores do centro a usam para criar, colocam os textos na rede que vão virar livros. A periferia, como precisa de uma visibilidade urgente, usa o blog para uma divulgação intensiva e bem feitérrima. Eu sou capaz te dizer o que está fazendo agora de manhã o Ferrez, o Sacolinha, porque os blogs são diários. Tudo o que eles estão fazendo e pensando está lá. É muito bonito. E realmente é um ataque, uma guerrilha de visibilidade. E está sendo usado com muita força. O que é fantástico, porque eles não tinham acesso. É uma oportunidade única, é difícil o contato da periferia com a cultura central“, diz Heloísa Buarque de Hollanda em entrevista para um blog. Para Allan da Rosa, a internet é um meio importante da comunicação independente. “A Edições Toró não é só publicar os livros. É educação e arte. O meio importa, não como uma barreira, mas como um canal que traz outras diferenças”. Ou seja, é claro que o que é feito em um livro não será igual na internet, nem ao vivo. O que importa é que
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os meios se complementem. E o mais importante, como diz Alessandro Buzo, “se a mídia não cobre, hoje a gente mesmo cobre”. Coletivos: Um nó, cheio de nós A organização social por meio de coletivos culturais é uma característica forte da literatura periférica e da nova safra de saraus. Neste tipo de formato, um grupo de pessoas se une para realizar um projeto comum, envolvendo a produção e a circulação de um produto cultural. Não existe uma institucionalização como pessoa jurídica: as decisões são compartilhadas por todos. Segundo a antropóloga Rita Alves, o conceito de coletivo tomou força a partir dos anos 2000, principalmente entre os grupos juvenis. “São grupamentos de jovens que se unem para fazer uma coisa, não se unem apenas em torno de um estilo de vida, um tipo de música. Não são tribos urbanas. Eles se unem para fazer alguma coisa e viabilizar projetos”, explica. No início, o formato era mais comum entre os jovens de centros urbanos, principalmente entre artistas da classe média, como designers, cineastas e artistas plásticos, que dividiam ideias e espaços para concretizar projetos independentes. Os coletivos formados na periferia de São Paulo possuem
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um objetivo que ultrapassa o projeto artístico e ganha as dimensões de um projeto social. “É pra levar pra fora. É pra comunidade, é pro bairro, pra poesia, pra região. É arte, mas o objetivo não é a arte, não é aquela arte, é a arte para alguma coisa. Muito o esquema dos anos 1960, 1970 inclusive, que é quando a arte estava próxima da política”, completa Rita. Um dos efeitos mais marcantes da organização em coletivos literários são os projetos apoiados pelo VAI (Valorização de Iniciativas Culturais). No campo da literatura, o programa já patrocinou a publicação de livros, a criação de selos editoriais, eventos literários e bibliotecas comunitárias. Outros saraus, como o da Cooperifa (zona sul de São Paulo), organizam-se como uma cooperativa e possuem uma vasta rede de interações e parcerias com grupos artísticos e organizações, como a Ação Educativa, Instituto Itaú Cultural, Poiesis, entre outros. A pedra fundamental Mesmo com toda essa articulação, a movimentação na periferia só foi reconhecida como “movimento” quando estampou a capa de uma revista, a exemplo do efeito causado com o lançamento da antologia 26 Poetas Hoje, nos anos 1970. Em três edições especiais intituladas Literatura Marginal, a revista Caros Amigos foi a primeira publicação a mostrar
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a literatura que estava sendo produzida nos extremos da cidade. O primeiro especial foi lançado em 2001, a partir de então que se enxergou uma cena, pegando de surpresa aqueles acostumados a verem a periferia nas manchetes e noticiários como cenário de violência e desigualdade. As edições seguintes vieram nos anos de 2002 e 2004. O responsável pelas três edições especiais foi o escritor Ferréz. Segundo ele, a ideia de montar uma coletânea de textos produzidos por escritores da periferia surgiu no rastro da boa aceitação ao seu romance e à obra de Paulo Lins, Cidade de Deus. Foi uma possibilidade de desmistificar as imagens de ambos como “exceções” surgidas de contextos sociais ligados à violência e pobreza. “A revista abriu algumas portas, os intelectuais e universitários descobriram que a gente escrevia. Pensavam antes que não sabíamos nem ler”, diz o escritor Alessandro Buzo. Para Allan da Rosa, “elas nos deram uma cara, deram espelhos pra gente”, e acrescenta que um ponto importante da publicação foi promover a interação entre os autores e as regiões: “eu, na zona sul, descobri que tinha gente na zona leste escrevendo sobre temas muitos parecidos com os que eu queria tratar. Até então era meio que sonhar no deserto, estava sozinho”. Por meio do seu selo, a Edições Toró, criado por “necessidade”, nas palavras do próprio Allan, já foram
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vendidos cerca de 8 mil livros de 16 autores da periferia, que dificilmente conseguiriam espaço em grandes editoras. A Editora Global também vestiu a camisa e ajudou a colocar esses poetas marginais ao alcance de mais leitores ao lançar a coleção Literatura Periférica, coordenada por Eleílson Leite. “Da cena cultural periférica, sem dúvida a literatura é a expressão mais instigante do ponto de vista criativo. Talvez seja por meio da análise da produção literária que a gente possa conceituar com rigor o que vem a ser a própria cultura de periferia que tanto defendemos”, diz o coordenador. O primeiro livro da coleção foi lançado em 2007: Colecionador de Pedras, de Sérgio Vaz, o nome por trás da Cooperifa. Depois veio Alessandro Buzo com o romance Guerreira, Sacolinha com o livro de contos 85 Letras e um Disparo, Allan da Rosa, que é mais conhecido como poeta, com a dramaturgia Da Cabula, e Dinha, com seu livro de poemas De Passagem, mas Não a Passeio. “Todos esses livros já tinham edições independentes bancadas pelos autores. Agora, aproveitando o jargão, estão nas melhores livrarias do Brasil”, brinca Eleílson.
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“No seu interior havia dois sentimentos únicos. Um era o sentimento bomba e o outro era o sentimento doce. Mas acionaram o sentimento errado, acenderam o rastilho, e agora segura que o pacífico homem bomba explodiu” Trecho do conto Pacífico Homem Bomba (Sacolinha)
O homem-bomba da palavra Um escritor que sente fome e tenta vender seu livro na Avenida Paulista. Uma prostituta que acha que Proust1 batizou sua categoria e tenta convencer o leitor a arrumar um nome mais digno para ela. Um anarquista tão convicto de suas crenças que virou mendigo por opção. Tem gente que nasce com jeito para escrever histórias. Os cadernos do escritor Sacolinha transbordam personagens curiosos que tentam sobreviver nas franjas das cidades. Sacolinha é o apelido de Ademiro Alves, jovem escritor de 26 anos que já publicou contos, poesias e dois livros. Filho de mãe feirante e pai ausente, cresceu na margem leste de São Paulo, em Itaquera e Suzano, onde trabalhou dos 9 aos 21 anos como cobrador de lotação. Como muitos garotos de periferia, brincava na rua, gostava de jogar bolinha de gude e deixar a pipa no ar. Os livros nunca foram seus amigos. Sua história com as letras
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começa mesmo em 2002: “graças à CPTM e a polícia militar”, lembra o escritor. Aos 19 anos, quando tirou sua primeira carteira de trabalho, descobriu no Poupatempo2 que seu RG estava danificado. Deixou o documento para trás e levou apenas a carteira profissional na mão. Na volta para casa, pegou o trem para Suzano, uma viagem de 50 minutos. Para passar o tempo, ia se distraindo com as páginas da carteira de trabalho. Ao chegar na estação, quis economizar o dinheiro da condução e andar a pé até sua casa, no Jardim Revista. Foi parado por um policial militar desconfiado, que o questionou sobre o seu RG: “pensei, e agora? Então lembrei que a carteira de trabalho servia como documento”, conta o escritor. O guarda ficou em dúvida, voltou à viatura, ligou para a base e, pelo rádio, confirmou que a carteira dava a ele o status de cidadão. ”A partir desse dia comecei a entender que a informação salva. Decidi que ao invés de ficar com ódio, iria cobrar meus direitos.” Se a informação salva, seria nos livros que ele encontraria o conhecimento que desejava. Começou a ler todos os dias no trem. Aos poucos, percebeu que quando chegava à estação, desejava ter tempo para ler pelo menos mais uma página. Sacolinha havia tomado gosto pela leitura, mas não 1 2
Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust foi um escritor francês. O Poupatempo é um projeto criado e implantado pelo Governo do Estado de São Paulo. Oferece ao
cidadão, em um mesmo local, diversos serviços de natureza pública.
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Foto : Kelly Ramos
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tinha dinheiro para comprar livros. Decidiu roubá-los. Os livros começaram a sumir da casa de seu tio, de livrarias e até da Bienal de São Paulo. Só as bibliotecas escapavam. Se conseguir o livro era uma aventura, ler exigia um esforço ainda maior. Morando em uma casa que não tinha energia elétrica, quando lia à noite, era necessário vencer a escuridão acendendo velas. Leu tantas vezes com pouca luz que hoje usa óculos por causa da vista cansada. Mas ele nunca se cansa de ler. Já leu mais de 300 livros, começando por autores como Sérgio Vaz, Ferréz e Paulo Lins. Os clássicos entraram em sua vida logo depois, quando devorou Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade e Jorge Amado. Apesar da dificuldade em apontar um livro preferido, possui apreço especial por uma obra que marcaria sua experiência com a literatura. “O livro da Carolina de Jesus me fez ser o que sou hoje”, conta o escritor. Publicado em 1960, o livro Quarto de Despejo, Diário de uma Favelada, de Carolina Maria de Jesus, é uma compilação do seu diário, onde ela narra sua dura realidade - a vida de uma mulher negra e semianalfabeta na favela do Canindé, em São Paulo, nos anos 50, que sobrevivia catando papel e sucata nas ruas - e de outros moradores da favela, em luta diária contra um inimigo em comum: a fome. “Peguei esse livro em uma biblioteca e o li em duas
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horas. No dia seguinte, fui a um show de rap. No caminho, a pé com meus camaradas, fui relendo o livro, e no trem, na volta, eu li de novo. Aí pensei: é isso que eu quero ser!”. Ele sentia que algo em Carolina também era um pouco dele. “Uma favelada que não tinha estudo, mas tinha um livro. Me identifiquei com o seu desabafo.” Acendendo o pavio Sacolinha, então com 19 anos, decidiu escrever tudo que via no seu cotidiano. Nesta época seu padrasto havia abandonado a família e ele virou o chefe da casa, o único que tinha emprego. A vida estava ficando amarga. Sentia raiva e descontava tudo no papel, em letras de rap e textos literários. Até que um dia, destes papéis, nasceu seu próprio livro. Sua primeira obra foi Graduado em Marginalidade, romance lançado em agosto de 2005. Ele bateu na porta de muitas editoras, mas não teve sucesso. Decidiu produzir tudo de forma independente. “Eu fui o escritor, o cara que arrumou o dinheiro, o modelo da capa e o vendedor”, lembra, destacando que fez uma tiragem de 500 volumes e começou a circular com o livro na mão em saraus, eventos culturais e bares de São Paulo. “Pra mim não importa o que eu estou dizendo, mas como eu estou dizendo. O livro fala da violência extrema,
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mas é uma forma diferente de dizer, tem uma forma poética”, conta. O romance foi bem recebido no meio literário e, em 2006, foi indicado para o Prêmio Jabuti. O segundo livro, 85 Letras e 1 Disparo, foi lançado em 2006, também de forma independente, com tiragem de 1.000 exemplares. É um livro de contos que narra uma realidade crua, nas palavras do autor, “tem muita tristeza, mas você ri, chega a ser cômico”. Sacolinha se incomoda com o rótulo de “escritor de periferia”, pois devido a ele, precisa falar sempre sobre violência ou da realidade social. Mesmo assim, defende o seu estilo e o de outros autores. “Uma das coisas que sempre criticam é que não falamos de outro tema. Isso não depende da gente, é um tema que seca a gente. O Fernando Pessoa diz que o escritor tem que falar da sua aldeia, a minha aldeia é isso. Claro que não falo de violência o tempo todo... eu não escrevo sobre violência, eu escrevo sob violência”. Sua produção literária segue. Em 2008 concluiu o curso de letras em Mogi da Cruzes, interior de São Paulo, e está escrevendo outros livros com temas variados: infanto-juvenil, meio-ambiente e política. Além de escrever, Sacolinha é fundador da Associação Cultural Literatura no Brasil e coordenador literário na Secretaria Municipal de Cultura de Suzano, onde promove três saraus. Longe do escritório, sua rotina é intensa: divide
seu tempo entre criar parcerias para incentivar a leitura e realizar palestras em presídios, escolas públicas e eventos literários. Sua vida se confunde com a vida que os livros conseguem lhe dar. “Se não fosse pela literatura, eu estaria a sete palmos debaixo da terra”, acredita o escritor.
Fotos : Claus Lehmman
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s do todos são fruto e as u Q . ra u it centivo à le A explosão nte. s projetos de in so er iv lioteca ambula d ib m b e te , d lo el au ap P p o ão a tana de S ando fazi seus gião metropoli oucos anos, qu p re e a n 0 2 a d s a gerenciando za ao rt li o ra p ca u lo it em le o, a a n n rt za o e u p S ad comunid e batia de A cidade de a envolver sua ra o escritor, qu u b o m eç le m , c” co et e , u q sa olinha, noutra ca trabalho de Sac ava outro livro eg p itores. o, vr li m u eixava lgar novos escr d u , iv m d u e e d ra u sa it le ca ntivar a “Passava na porta 2002 para ince em a h n li o e Jeová, bate de ac d S a r h o n p u s. a o em ad ad st d st n te ONG fu faz igual livros empre o Brasil é uma zano. “A gente u n S ra e u d at s autores locais. ia er it e ár d L it s l n o u ra xt u m lt te co u s m C ca co ra Nossa, 3 ara bibliote A Associação irou a nzine Literatu recadar livros p fa ar o é a it ão ed aç ooperifa o insp e ci C s so a re d as to a a d id au d to re ce je b u a bem-s debates so O maior pro ra. A experiênci u mbém promove it ta fe re ão p aç a ci d so io uma noite. as ca. A nta com o apo 00 pessoas em co 1 e ir n 5 em porta”, brin u 0 0 re 2 a e a d eg es gueira, é realizado d . O evento ch da o Sarau Fo ca ra n si u ai ú lt u m E C e o. a ça d sm an io ti d o tema er capoeira, O sarau Pav te que poesia, cordel, contos sobre o e m s co ia s, es o o esia. “Tem gen p ad o , b p es sá a s it lm u ao fi m u m ra m co sa co rmina trimestral montar um e não literatura que te Erótico, sarau re b io so av P a rs sejam leitores o ve u es n io el co cr e a u q m ém u b er a u m it q ta A gente gueira, é fe Sacolinha rro que queria. dor de uma fo ca re o ao r ra e, p u q m co em e oca, consegu Literatura e Pip í ele vê que não A o. vr li m co anhar dinheiro acha que vai g 3 Fanzine é uma abreviação de “fanatic magazine”. Trata-se de uma publicação mais informal, que . s” re o engloba diversos tipos de temas. it cr es
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“(...) gueto, periferia, favela, é tudo isso que vejo olhando da minha janela. Lugar melhor que lá não existe, é lá que escrevo meus livros, é lá que cresce meus filhos, gosto tanto do lugar que costumam me chamar de Suburbano Convicto.” Alessandro Buzo
O buzão da cultura Corpo robusto, calça larga, tênis e boné. Com figurino rapper e muita simpatia, Alessandro Buzo sempre marca presença em diversos saraus na periferia. Famoso nos extremos da cidade, muitas vezes é parado nas ruas como uma celebridade. Mas apesar da fama, é um sujeito simples e acessível. Nos saraus chega de fininho, cumprimenta a todos, pede uma cerveja gelada e escuta as poesias. Quando seu nome é anunciado ao microfone, recita um poema e dá um recado sobre a sua agenda, repleta de compromissos relacionados à cultura de periferia. Aos 37 anos, Buzo se define como “um cara que virou escritor e que se mete hoje a ser ainda cineasta e circula pela TV”. Ele é do tipo que nunca fica parado e se aventura em vários projetos ao mesmo tempo. Quando perguntam sua profissão, responde que, além de escritor, também atua como empresário, produtor cultural e comunicador. Mas apesar de tantas atividades, todas têm algo em comum: o conceito
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Suburbano Convicto. “Ser um Suburbano Convicto é querer o melhor da quebrada, levar ela às paginas culturais e não policiais. É acreditar antes de todo mundo e fazer acontecer”, afirma. Envolvido com a cultura hip hop desde os anos 90, o escritor se identifica com o quinto elemento da cultura¹: o conhecimento, que encara como uma missão que se materializa em diferentes ações, que levam a marca Suburbano Convicto. O nome batiza as ações empreendedoras do escritor, principalmente no bairro onde foi criado, o Itaim Paulista. Lá, ele montou a loja Suburbano Convicto, que vende artigos de hip hop, mas o forte mesmo são os livros. Buzo define sua loja como “uma livraria especializada em Literatura Marginal”, a única livraria do bairro, que tem 350 mil habitantes. São quase 50 títulos disponíveis, com autores consagrados como Ferréz, Paulo Lins e Marcelino Freire. Os livros independentes também têm seu espaço, como exemplares da Toró Edições e Elo da Corrente Edições. Buzo observa que há dificuldade da produção literária de periferia em alcançar uma grande escala de distribuição. Mas acredita que existe um mercado e que os obstáculos podem
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Os cinco elementos da cultura hip-hop são: o DJ, o B.BOY, o GRAFITE, o MC
e o CONHECIMENTO.
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O programa Turma do Gueto foi uma sĂŠrie do Canal Record, criada em 2002 pelo cantor Netinho de
Paula, que pretendia narrar o cotidiano de uma escola da periferia de SĂŁo Paulo.
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ser driblados com um pouco de criatividade. “Conseguimos furar o sistema vendendo de mão em mão, de mano em mano”. Pensando em quem não pode comprar os livros, Buzo criou a Biblioteca Comunitária Suburbano Convicto, na escola de samba Unidos de Santa Bárbara, no Itaim Paulista, com o objetivo de ampliar o acesso à leitura na comunidade. A biblioteca foi montada com doações e possui um acervo com mais de 1.000 títulos. Existe ainda a Suburbano Convicto Produções, uma empresa que realiza desde 2004 o evento Favela Toma Conta, projeto que promove shows de rap gratuitos nas ruas do Itaim Paulista e o “Suburbano no Centro”, a mesma fórmula, só que no centro de São Paulo. Todas as iniciativas de Buzo são divulgadas na internet, onde ele alimenta o conteúdo de cinco blogs. “No meu caso a mídia não cobre, então hoje a gente mesmo cobre”, diz. Buzo também está na televisão. Desde 2008 produz e apresenta o quadro Buzão da Periferia, do programa Manos e Minas, na TV Cultura. Em cada quadro, que possui quatro minutos, o espectador é guiado por Buzo em um passeio por alguma periferia brasileira, sempre na companhia de um convidado da região. Mas para ele o espaço ainda é pouco: “a mídia está longe de dar o espaço que a gente merece. Só o Manos e Minas é muito pouco, tinha que ter pelo menos um
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programa em cada canal aberto, mas eles não sabem fazer. Veja a Turma do Gueto da Recordc, começa bem, depois vira só tiro”. O contato com a tv rendeu um novo trabalho para Buzo na produtora DGT Filmes, que o fez apostar em uma nova empreitada: o cinema. Ele é roteirista e diretor do Profissão MC, filme sobre a vida de um cantor de rap que tem que escolher entre o caminho das drogas e a música. Sem orçamento e filmado em apenas sete dias, a produção contou com o apoio de vários amigos e de sua esposa Marilda Borges, que também atua. Buzo ainda escreve para o Boletim do Kaos, jornal criado em 2009 , que aborda a literatura e a cultura da periferia. “Hoje vivo só de coisas que gosto. Mas pra conseguir, faço mais de uma, faço um milhão de coisas ao mesmo tempo, mas sem perder o controle de qualidade Suburbano Convicto”, conta o escritor. O despertar de um escritor Alessandro Buzo cresceu no Itaim Paulista, bairro de periferia do extremo leste de São Paulo. Seu gosto pela leitura começou na infância, com os livros e histórias em quadrinhos que a mãe comprava para ele. Sua mãe era faxineira e criou 2
O programa Turma do Gueto foi uma série do Canal Record, criada em 2002 pelo cantor Netinho de Paula, que pretendia narrar o cotidiano de uma escola da periferia de São Paulo.
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os dois filhos sozinha. Para ajudar em casa, aos 13 anos de idade virou office-boy. Desde então, já foi de tudo: auxiliar de escritório, vendedor de alimentos, apontador de obras e operador de telemarketing. Ninguém imaginava que um dia Buzo viraria escritor. “Eu, um maloqueiro, palmereinse e sonhador”, brinca. Durante sua adolescência, suas principais diversões eram o futebol e as baladas. Palmeirense de carteirinha, chegou a ser presidente da Torcida Leste AlviVerde e colaborou para uma coluna sobre futebol de várzea em um jornal do bairro, o Página 1. Foi sua primeira experiência como comunicador. Mais tarde ele escreveria para os fanzines Mutante e o Boletim do Kaos, e para a revista Rap Brasil. Ainda no Página 1, por volta dos anos 2000, Buzo quis cobrir outros temas para o jornal, então sugeriu uma pauta com o escritor Ferréz, que ainda não conhecia pessoalmente. A entrevista rendeu uma amizade que dura até hoje. Um ano depois, em 2001, Ferréz o convidou para participar da coletânea da revista Caros Amigos – Literatura Marginal, com o conto “Toda a brisa tem o seu dia de ventania”. Em seu livro Favela Toma Conta, Buzo diz que a participação na revista rendeu a ele um status maior. “Afinal, eram os dez mais da literatura marginal, e eu estava entre eles”, comenta. Mas o início de sua vida como escritor começou mesmo por causa de um trem. Por muito tempo, Buzo trabalhou na
região central de São Paulo e pegava todos os dias o trem da CPTM. Cansado do descaso público com a superlotação e o sucateamento dos vagões, em 1998 escreveu seu primeiro texto de protesto, o Ferrovia Nua e Crua, onde mostrava as dificuldades dos usuários do transporte público. Ele queria compartilhar o seu desabafo e tirou uma dezena de cópias para distribuir na estação. O texto teve uma grande repercussão. “Muitos se sentiram representados pela palavra”, lembra o escritor. “Os caras ficaram falando: por que você não escreve um livro do trem?”. E foi assim que Buzo se inspirou para escrever o seu primeiro livro, O Trem - Baseado em Fatos Reais, onde conta histórias da vida que passa dentro da linha F, e fatos reais, como um episódio em que o trem foi queimado por alguns passageiros. Mas Buzo também narra o outro lado do transporte: o lado humano, o encontro das turmas, a cerveja gelada vendida pelos ambulantes e os jogos de sueca. Sem recurso para publicar o livro, ele organizou um show de rap que seria o embrião do projeto Favela Toma Conta. O ano de 1998 também marcou a vida pessoal do escritor. Casou-se com Marilda Borges, parou de usar cocaína e abraçou uma vida familiar. Agora seu lema de vida seria “Nada como um dia, após o outro dia”, inspirado no nome do álbum do grupo de rap Racionais MC´s. Buzo já lançou cinco livros: O Trem – Baseado em Fatos
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Reais (2000); Suburbano Convicto – O Cotidiano do Itaim Paulista (2004); O Trem – Contestando a Versão Oficial (2005); Guerreira – Independente (2006), relançado pela Global Editora em 2007; Favela Toma Conta (Aeroplano Editora 2008) e as coletâneas Suburbano Convicto – Pelas Periferias do Brasil (2007) e Pelas Periferias do Brasil – VOL II (2008).
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BOLETIM DO KAOS O Boletim do Kaos é um jornal mensal e gratuito, com tiragem de 10 mil exemplares. Lançado em abril de 2009, é mantido com a receita de anunciantes e conta com o apoio do Itaú Cultural, que patrocina as impressões. Criado por Alessandro Buzo e Alexandre de Maio, o Boletim do Kaos tem a missão de levar conteúdo de qualidade sobre literatura e cultura para a periferia de São Paulo, que não se vê nos jornais tradicionais. “O jornal é sobre quem faz acontecer e não sai na Folha e nem no Estado”, comenta Buzo. As principais pautas são a produção literária, especialmente a periférica, mas o cinema e a música também têm seu espaço. Cada edição do jornal destaca um sarau e entrevista um poeta. Há ainda resenhas de livros, dicas culturais e matérias especiais sobre escritores. A distribuição é feita nas periferias e no centro de São Paulo, em locais como lojas, bares e espaços culturais. Grande parte do jornal é distribuída nos saraus, onde também são feitos os lançamentos de cada edição. “Locais que formam leitores e novos poetas”, afirma. O Boletim do Kaos começou como um fanzine semanal que Buzo criou com seu primo Magu, que chegou a atingir 150 números. O nome kaos, com k, foi influência de uma entrevista que Buzo havia assistido na televisão, onde Jorge Mautner³ explicava sua mitologia do Kaos (Kriativos Autônomos Organizados Socialmente). Para Jorge Mautner, a cultura e a criatividade tem um papel fundamental para a mudança de comportamento, formando uma verdadeira ferramenta revolucionária. Buzo parece tentar seguir esse pensamento, com pílulas de poesia e cultura, moldadas no caos da periferia.
³ Nascido em 1941, Jorge Mautner é um cantor, escritor e compositor brasileiro. Sua música mais conhecida é a Maracatu atômico.
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SARAU EM CENA
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Da ponte pra lá Zona sul de São Paulo. O trânsito está pesado na pista expressa da Marginal Pinheiros. Através da janela é possível observar uma grande linha no horizonte, formada por prédios comerciais. Entre as Pontes João Dias e Cidade Jardim estão os edifícios mais modernos do Brasil, a maioria equipados com heliportos. Ali existe uma concentração de hotéis, conjuntos de escritórios e lojas que fazem parte de um dos metros quadrados mais caros da cidade, como a Daslu e o shopping Cidade Jardim, que vendem produtos de luxo. Na sequência, surgem bairros de classe A e seus condomínios de alto padrão cercados por muros altos. Atravessando a ponte João Dias, há uma verdadeira trincheira social que divide a zona sul. De um lado a abundância, do outro, a condição periférica. No romance Capão Redondo, o escritor Ferréz apresenta a zona sul aos seus leitores: “... Bem-vindos ao fundo do mundo”. A margem sul do lado de lá é grande e repleta de loteamentos irregulares, córregos sem canalização, casas inacabadas e grandes áreas onde a presença do Estado se mostra apenas nos postes de luz e asfalto. A próxima saída é para a Estrada M’boi Mirim, principal acesso à região, que ostenta o terceiro lugar em número de atropelamentos na cidade. O destino final é o
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bairro Chácara Santana, localizado no subdistrito do Jardim São Luís. Seguindo na mesma via, é possível chegar aos bairros Capão Redondo e Jardim Ângela. Subindo por ruas, às favelas Paraisópolis, Real Parque, Jardim Santo Antônio, Jardim Monte Azul e, mais distante, a favela do Jaguaré. Nesta imensa zona sul surgem projetos sociais de destaque como a Casa do Zezinho e gente que faz arte, nadando contra a corrente da falta de lazer cultural. Destacam-se o Cine Becos, que exibe filmes com entrada franca, as artes do corpo da Cia Sansacroma, e seu espaço de dança contemporânea perto do Capão Redondo, a quadra da Casa de Cultura M´boi Mirim e seu tradicional Panelafro, festa que tem samba de roda e muita percussão. A zona sul também tem a Cooperifa, uma cooperativa que leva literatura e poesia ao Bar do Zé Batidão. No fundo do mundo, o maior sarau de poesias do Brasil vai começar.
COOPERIFA
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O silêncio é uma prece... ... que quebra fronteiras Ruas estreitas, campinhos de futebol de várzea, bolas e quadras imaginárias. Pessoas percorrem o asfalto esburacado, dançando uma música silenciosa, ritmada pelo cansaço de mais uma quarta-feira que chega ao fim. É a imagem de décadas que ficaram para trás no centro da cidade. - Você pode me informar onde fica a Rua Bartolomeu dos Santos? - Não sei não, moça... - Rua Bartolomeu dos Santos? - Olha, eu acho que fica pra lá... - Não lembro dessa rua, não... A pergunta era a mesma, e as respostas também, mas com palavras diferentes. Até que, após cerca de meia hora perdidas entre ladeiras e vielas, surge a brilhante idéia: - Sabe onde fica o Bar do Zé Batidão? - Sei sim... Você pega aquela ladeira até o fim e vira à direita. Daí vai passar a curva e já tá lá! O caminho entre as ruas mal iluminadas leva a um bar de esquina, em frente a uma praça. Lá tem luz. E muita. É o Bar do Zé Batidão, que abriga o Sarau da Cooperifa. O relógio marca 19 horas e já tem gente no local.A cada minuto chegam mais pessoas. Idosos, jovens, negros e
brancos. O vai e vem anuncia que, em breve, todas as cadeiras serão ocupadas. Bolsas são colocadas nas mesas para guardar o lugar de quem chega mais tarde. Mas ainda há cadeiras disponíveis para dividir as mesas com desconhecidos, tudo de forma coletiva. No canto esquerdo, logo na entrada, uma escada que leva para a laje também vira cadeira. É a visão privilegiada do bar e do microfone, mas tem que chegar cedo porque o espaço é concorrido. Em uma biblioteca improvisada próxima ao balcão, livros de Machado de Assis misturam-se a manuais de física e fitas cassetes. Na última prateleira, troféus, porta-retratos e miniaturas formam uma espécie de quadro dadaísta. Tudo tem a sua própria lógica. Uma harmonia inusitada que sempre encontra o olhar curioso de alguém que espera a próxima cerveja. O cheiro de comida vai ficando cada vez mais forte (o escondidinho de carne-seca é especialidade da casa). E quem está do lado de dentro do balcão vai aumentando os passos para atender ao público que ocupa o local. A sinfonia de pratos batendo, as risadas descontraídas, o petisco que acaba de sair da cozinha. Ali todos os sentidos se encontram e compõem o cenário da poesia do cotidiano. O músico Brau Mendonça sobe ao palco para esquentar a platéia com clássicos da MPB. Quando o violão começa a espalhar suas notas afiadas pelo salão, todos sabem que o
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início do sarau está próximo. Então os cadernos ou pedaços de papéis improvisados são segurados com mais força. E os olhos percorrem as letras escritas à caneta. Porque o que importa é o conteúdo, que é lido repetidas vezes, para que a palavra seja comungada com maestria. Ao fim da apresentação do músico, o silêncio começa a ser evocado por membros da Cooperifa. Então colocamos uma cerveja e um cotovelo no balcão para ficar mais a vontade. E o clima de expectativa cresce, junto à espera para ver quem será o primeiro poeta. - Boa noite, boa noite, boa noite aí no fundo! -, ressoa uma voz forte, que interrompe até mesmo as rodas de conversa mais distantes do palco improvisado. É Sérgio Vaz, aquele que deu forma e força ao quilombo cultural que se tornou a Cooperifa. Vozes em coro retribuem à saudação. E ele abre mais uma noite de poesia, direto da margem sul de São Paulo. Lugar onde muitos acreditavam que não existia nem um verso. Nem uma estrofe. - Sejam todos bem-vindos ao Sarau da Cooperifa, movimento cultural de periferia para a periferia, que acontece todas as quartas à noite aqui no Bar do Zé Batidão. Saibam que todos são bem-vindos, todos, todos, todos. De todas as cores, de todas as dores, todos os lugares. Aqui nós não reproduzimos preconceitos. Mas saibam que tem uma regra:
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aqui o silêncio é uma prece. Ele fala com firmeza e alegria por estar abrindo mais essa noite de poesia. E seus olhos, que brilham a todo o momento, contagiam a todos no salão. - E é uma prece mesmo! São duas horas de poesia, é muito chato, eu não recomendo pra ninguém. Uma boa hora pra ir embora é agora, não é balada, não é pra fazer barulho. É chato. As pessoas quando vêm aqui a primeira vez reclamam pra caramba. Em compensação, quem ficar vai ter uma noite mágica de poesia no extremo sul de São Paulo, na periferia, para que a gente possa comungar a palavra e exercer a cidadania através da literatura. Após avisar aos desavisados e passar os informativos da semana, Sérgio puxa o grito de guerra, que é retribuído com empolgação por todos: “povo lindo! Povo inteligente...”. Mas interrompe: - Tá fraco, tá fraco... Tá parecendo festa de rico isso aqui. Vamos de novo: Povo lindo!!! - Povo inteligente!!! -, responde o público em coro. - É tudo nossoooooooooooo!!! Gritos, aplausos e assovios embalam o início da noite: “uh Cooperifa! Uh Cooperifa! Uh Cooperifa!”. O palco está oficialmente aberto para os poetas. O sarau começou. Então Sérgio aproveita o microfone e chama Dona Edith. Cabelos, cores e tamanhos se misturam e se apertam
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para enxergar de onde virá a primeira voz a ressoar pelo salão. São crianças, adultos, idosos e até cães. Até que, das mesas mais à frente, surge uma senhora negra de idade avançada e cabelos brancos, com um pouco de dificuldade para se locomover. Ela é cega. E com a ajuda e aplausos de todos, assume a vez, abre os braços e emociona: Vem desde o tempo da senzala do batuque e da cabala o som que a todo povo embala e quanto mais forte o chicote estala e o povo se encurrala o som mais forte se propala.
O atabaque de caboclo, o agogô de afoxé é a curimba do batucajé é a capoeira e o candomblé é a festa do Brasil mestiço, santuário da fé. E aos sons, a palavra do poeta se juntou e nasceram as canções e os mais belos poemas de amor os cantos de guerra e os lamentos de dor. E pro povo não desesperar nós não deixaremos de cantar pois esse é o único alento do trabalhador.
A voz trêmula e sábia que os anos lhe concederam, dá vida às palavras que ficaram famosas na boca de Clara Dona Edith deixa o palco sob muitos aplausos. Então o Nunes. E sem poder contar com os olhos, os versos vêm da próximo poeta é anunciado: o radialista José Neto. memória. Sem hesitar. “Boa noite, Cooperifa”, saúda a todos.“Imagina um rapaz apaixonado que arranjou a primeira namorada. Seu corpo E é o Samba, é o ponto de Umbanda queimando de desejo, sozinho olhando o céu de madrugada. é o tambor de Luanda, é o Maculelê e o Lundu Quem sou eu, sou eu aqui pensando em minha amada”, diz é o Jongo e o Caxambú a voz grossa, com pausas bem pontuadas. “Imagina um velho é o Cateretê, é o Coco, é o Maracatu. fazendeiro depois de mais um dia de jornada, ao pôr do sol sentado na varanda, olhando a terra fértil. Assim sou eu, sou eu pensando em minha amada”.
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E assim a noite vai avançando, com o palco aberto a todos que quiserem comungar a palavra. Versos sarcásticos, engajados, com ritmo ou românticos são recitados pelos guerreiros e guerreiras. Ali o espaço não é limitado. Sem preconceitos, sem regras. Apenas o silêncio, que é uma prece. E realmente é. “Shhh...”, alguém resmunga de um canto. Porque as vozes se calam e olhares de repressão são lançados para quem insiste em interromper a oração que é a poesia naquele bar. “E agora com vocês, uma voz feminina. Vamos bater palmas de verdade... Luciana, uma salva de palmas”, anuncia um dos guerreiros da Cooperifa. E a moça assume o microfone, com voz calma e sensível. “Sou uma incógnita. Acho que nem eu mesma me conheço”, diz, cheia de sentimento e esperança de ser compreendida. “Fico irritada, brigo, grito, e no final é tudo TPM”, ao término, pergunta, onde estará a sua alma gêmea? Jorge Esteves é chamado. Um senhor nordestino que espalha palavras sobre os tempos do sertão e a dor de estar longe de sua terra. “A gente na poeira vermelha do chão, grudadim com a cabocla”, e prossegue, sob o ritmo de suas raízes: “duas mulés, cavaquinho e violão”. Ele recita com as mãos livres e o coração solto, fazendo sentir o universo que revela em cada verso. “Rose Dorea, a musa da Cooperifa”, é anunciada. Ela
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está presente em todas as atividades do grupo e sempre ajuda a botar ordem no local. Até mesmo se o barulho vem da rua, de um carro com o som alto que atrapalha a concentração dos poetas e ouvintes. Com voz imponente e postura que intimida, ela lança a poesia escolhida para a noite: “poeta ou poetiza? Masculino ou feminino? Sei lá... O que interessa são as palavras, o sentido, o reflexo”, e continua, conquistando a atenção da platéia. “Obrigado”, finaliza. E deixa o palco. Professor Luciano e sua filha, Luiza, seguem juntos para o microfone. Ela segura o caderno e ele fica ao seu lado, para que o desafio seja vencido. Então ela começa, com voz fina e pausada: “a amizade é uma prova de carinho”, diz seu poema cheio de inocência. E segue: “sem briguinha nem fofoca. Sem inveja nem maldade. Porque a amizade é uma simplicidade. Não precisa ser rico nem pobre. O que importa é a felicidade”. Quem disse que a juventude à margem do centro não é capaz, é porque não conhece o quilombo cultural chamado Cooperifa. Então seu pai, o professor Luciano, solta as palavras. Chegou a sua vez, que ele usa para homenagear sua filha. “Luiza, nessa noite a lua brilhou, o céu clareou e você chegou. Linda como a lua, alegre como o sol. Você, como a lua, chorando e me olhando”, diz, olhando para ela. “Alegria e magia, o brilho e o amor, paixão e ilusão, que desperta o coração na mais linda união”. E a platéia se emociona com a demonstração de carinho entre pai e filha.
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Criança ali tem seu lugar, e assim como Luiza, Giovana segue para o palco. Segurando um caderno à frente do rosto com as pequenas mãos, tenta disfarçar a timidez de menina. Mas quando abre a boca, suas palavras revelam conexão e lógica, mostrando como a inteligência está ali presente desde cedo..“Estou aqui para recitar uma poesia que eu fiz que se chama ‘Medo’”, diz de modo desenrolado, sem gaguejar. “Por isso, não deixe toda a sua vida cair pelo ralo. Não seja mais uma vítima do medo”, finaliza. E sai debaixo de muitos aplausos. Entre uma apresentação e outra,artistas,músicos e grupos de teatro anunciam peças e projetos. A Cooperifa também é um espaço para manter a comunidade informada sobre as iniciativas culturais na região. Depois dos comunicados, Rose Dorea vai ao microfone e chama o próximo poeta: “agora, com vocês, mulheres, tremei-vos: Seu Lourival!”. As mulheres suspiram e gritam “lindo!”, brincando. Um dos poetas mais conhecidos da Cooperifa, Seu Lourival é um vigia aposentado de 70 anos que faz poesias de amor e dedica a todas as mulheres do sarau. Gentil e de sorriso estampado no rosto, suas palavras retratam as mulheres com um romantismo simples e cheio de brincadeira. “Nóis tava lá na praia, na onda do mar. E vocês falavam, venha comigo brincar. Jogando areia em mim, querendo me amar”. Suas poesias já renderam o posto de “o homem mais bonito
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do sarau”. Um aviso rápido de Sérgio Vaz, só pra lembrar que é preciso que o sarau acabe às 23 horas: “é um acordo com a comunidade”, compromisso da Cooperifa com a vizinhança. Então Jairo, do grupo de rap Periafricania, é anunciado sob gritos e aplausos. Ele comunica sobre um evento de música na periferia: “para quem quiser fazer um rap, é só chegar”. E canta os versos ritmados da música feita especialmente para a Cooperifa: Úh! Cooperifa meu quilombo cultural! Éh! Poesia literatura marginal! No sarau não é por mal o silêncio é uma prece Loco, mais que lindo as palmas que aquece, Se o elo fortalece demorô é nóis que tá Tudo nosso, tudo nosso da ponte pra cá Tem que sabê chegá respeitando a quebrada, Só os verdadeiro faz jus na caminhada Sem faiá, mancada se liga óh meu Não é evento é movimento se pá se entendeu Julieta, Romeu extravasando sentimentos Artista cidadão expressando pensamentos Hey é o momento a hora é agora, No traço da escrita no rastilho da pólvora No verso na prosa que vem do coração
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Respeito e união sem vaidade irmão Etnia, religião tua raça sua cor Cada um na sua, todos tem o seu valor Pela paz pelo amor pro bem prevalecer Junto, lado a lado é assim que tem que ser Pode crê! Esperei a semana inteira Hey finalmente hoje é quarta-feira Vou subindo a ladeira, vou no passo a passo No swing do balanço ritmando no compasso A platéia é contagiada pela música sem o apoio de instrumentos, batendo palmas para acompanhar a rima. A palavra tem força. E ele continua. Úh! Cooperifa meu quilombo cultural! Éh! Poesia literatura marginal! Úh! Cooperifa no risco da caneta! Éh! Periferia academia das letras! Úh! Cooperifa meu quilombo cultural Éh! Poesia literatura marginal Clarices e Quintanas da periferia Guerreiros e guerreiras comungando poesia Só na sintonia, mano é muita treta Úh! Cooperifa academia das letras No risco da caneta contemplando o luar
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Chegando inspiração de todo lugar Num balão pelo ar flutuando ele vai Pro infinito azul elegante Haicai Vai que vai registrando emoções Marcando história encantando geracões Milhões de corações numa só canção No Rap no Samba um atabaque um violão No estrondo do trovão só quem vai segui Num posso fazê nada se num guenta vai caí Da licença aqui, é nóis que ta de novo Que mesmo no veneno num abandona posto Leal até o osso sem tempo pra errá De cabeça erguida que o sol irá brilhá Tem que acreditá e não fugí da luta Chega, cola que a causa é justa Truta, escuta óh é de cór Lê é poder, faz enxergá melhó! Poesia e ritmo é rap. Jairo agradece e sai do palco. Em um intervalo entre os poetas, Rose Dorea lembra: “só um aviso para os desavisados... o silêncio é uma prece”. Então entra Dugueto Shabazz, com seus olhos verdes e a voz sem microfone, para lembrar Palmares¹ e a resistência negra. O rapper inicia a sua performance em silêncio, cruzando as cadeiras e caminhando entre o público.
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“Mesmo que eu tenha que cruzar terras e mares Eu vou pra Palmares, eu vou pra Palmares! Mesmo que no caminho me sangrem os calcanhares Eu vou pra Palmares, eu vou pra Palmares! Mesmo que os inimigos contra nós sejam milhares Eu vou pra Palmares, eu vou pra Palmares! Enfrento os Borba Gato e os Raposo Tavares Eu vou pra Palmares, eu vou pra Palmares... Olhos acesos, punhos fechados, músculos do rosto tensos. Encarnando o papel de um escravo que se rebela e foge de uma fazenda, a perfomance de Shabazz é visceral. A cada frase disparada, um olhar profundo atravessa a platéia, que o acompanha em coro, sempre que grita “eu vou pra Palmares!”. Ele lança um chamado a todos para seguirem juntos rumo à liberdade. Rumo a Palmares. Sérgio volta ao palco e lembra que o tempo está acabando, então convoca os guerreiros a recitarem poesias mais curtas. O espaço tem que render para o maior número de vozes possíveis. A essa altura, pessoas já se amontoam no portão de entrada para enxergar ou apenas ouvir os poetas que continuam entrando e comovendo. Há quem recite 1
O Quilombo dos Palmares localizava-se na Serra da Barriga, região que hoje pertencente ao estado de Alagoas. Foi o mais emblemático dos quilombos formados no período colonial, tendo resistido por mais de um século. O seu mito transformou-se no símbolo da resistência do africano à escravatura.
lendo, quem evoque apenas a memória ou também aqueles que façam música improvisada. O importante é que ali, na Cooperifa, o espaço é para todos. Raças, sexos, idades e histórias. Uma intensidade que não se encontra em qualquer lugar, porque ali a arte vem do cotidiano e do suor. Por isso é levada a sério, sem barreiras. Arte que toca vidas e redefine rumos. Para fechar a noite, Sérgio brinca, dizendo que acabaram de receber uma ligação da Rede Globo reclamando que não tiveram audiência na novela. A poesia revoluciona. “Tirar o r da palavra revolução: evoluir”, diz o poeta Vaz. Ele se desculpa por ter que pedir silêncio o tempo todo: “mas é isso aí... Uh Cooperifa! Uh Cooperifa!”, sob gritos, aplausos e assovios. Termina mais uma noite poética direto da margem sul da cidade de São Paulo. Onde a visão do centro não chega, mas existe. E evoluciona. É tudo deles.
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Cooperifa: a periferia nunca mais foi a mesma “Todos são bem-vindos! Todos, todos, todos! De todas as cores, de todas as dores, todos os lugares. Aqui nós não reproduzimos preconceitos”. A voz de Sérgio Vaz abre a noite e ecoa com energia. A platéia grita de felicidade. Vai começar mais uma noite de poesia. É quarta-feira e o relógio aponta 21 horas. Hoje é dia de sarau na Cooperativa Cultural da Periferia, a Cooperifa. O palco é o Bar do Zé Batidão, na rua Bartolomeu dos Santos, na Chácara Santana. E o espaço fica pequeno quando os poetas e ouvintes ocupam o local. É a comunidade da Chácara Santana e arredores, na periferia da Zona Sul de São Paulo, mostrando como também sabem ler, escrever e fazer sua própria arte. Apesar de sua forte identidade, a jornada da Cooperifa para conquistar seu espaço foi longa. À margem do centro, sem teatro, sem cinema e sem estrutura voltada para a cultura, Sérgio Vaz começou cedo a desenvolver projetos para estimular a produção criativa na sua quebrada. E ele não imaginava as proporções que isso tomaria, já que influenciou (e influencia) o surgimento de outros saraus e iniciativas em periferias de toda a cidade. Em 2001, “nessas correrias do dia a dia, por acaso encontrei um amigo que era candidato a vereador e estava
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estampando suas próprias camisetas num determinado lugar. Ele me convidou para ir até o local onde estava locado, uma fábrica desocupada na BR-116, em Taboão da Serra”, conta Sérgio. Quando entrou na fábrica, descobriu que o lugar era grande, com vários espaços e uma boa estrutura. O terreno, com frente para a BR-116, possuía um enorme portão, e para chegar até o galpão era preciso andar quase cem metros por uma rua de paralelepípedo cercada de árvores. “Saí de lá diferente de quando tinha entrado, mas o mais estranho era que eu ainda não sabia o porquê dessa reação, só sabia que era uma energia positiva”, lembra. E realmente era. À noite, ao encontrar com os amigos Brói, Big Richards e Gigio, comentou sobre o ocorrido e disse que poderiam fazer um grande evento cultural: “tínhamos um tremendo lugar para divulgar os trabalhos de artistas da periferia em nossas mãos e nenhum tostão em nossos bolsos. Não ia ser nada fácil”. Após muita discussão, ficou decidido que o evento seria em um domingo, com programações de poesia, música, dança, capoeira, teatro, exposições, lançamento de livros e até desfile de cabelos afros. “Por conta principalmente do hip hop, já estavam acontecendo vários eventos na periferia. A gente só queria fazer um que reunisse todo mundo”, lembra Sérgio.
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Tirando o dinheiro do próprio bolso, o grupo de amigos conseguiu duas faixas, mas nenhum folheto ou cartaz para distribuir. Mas isso não os impediria. Só precisavam de um nome: “lembro que estava conversando com o Big sobre isso, a importância de um nome bem legal e que marcasse para sempre esse dia”, conta o poeta. Big, carioca que sempre se referia à periferia como ‘perifa’, e Sérgio, que sempre falava sobre a importância de um artista cooperar com o outro, só precisaram unir as duas idéias: - Cooperifa! – gritou Sérgio. E assim foi iniciada a trajetória do projeto que mudou a cena cultural das margens de São Paulo. Com pouca divulgação, tinha mais gente se apresentando do que assistindo. Passaram por ali cerca de mil pessoas, mas para o pessoal “ficou a impressão de um milhão”, lembra Sérgio. Ainda ocorreram mais duas edições do evento. A segunda, também na fábrica, foi encerrada com o rapper GOG, de Brasília. E a terceira foi em um estacionamento no centro da cidade: “no dia caiu uma tremenda chuva, e pôs um fim, por ora, nos nossos sonhos”, lembra o poeta sobre o sonho que, pelo contrário, cresceu ainda mais. “Na fábrica onde nasceu a Cooperifa e eu também renasci, descobri uma outra coisa muito importante na minha vida: que se a gente quisesse realmente alguma coisa, era só pegar, porque tudo era nosso”, relata Sérgio. E isso tudo era só o começo.
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Quintas malditas Em entrevista para uma rádio comunitária de Taboão da Serra, Sérgio conheceu o poeta Marco Pezão, que era assistente e fazia a leitura de poemas. “Lembro de ter ficado impressionado com a sua voz firme e bem postada, o que fazia com que os poemas ficassem muito melhores do que pareciam ser”, conta. A partir daí, os dois, junto a mais amigos envolvidos com poesia e teatro, começaram a se reunir sem pretensão, às quintas-feiras, no bar do Portuga, também em Taboão: “entre uma cerveja e outra não sei quem teve a idéia de pedir que alguém recitasse uma poesia, e depois outro e depois mais outro, e acabou virando um hábito a gente se reunir às quintas pra beber e recitar”. Com o tempo, a quinta maldita acabou se apagando,“mas lançou a certeza de que era necessário um novo espaço para a poesia”, afirma Sérgio. E assim, após acionar seus contatos, Pezão conseguiu um local para promover os encontros: o Bar do Garajão, no Jardim Maria Rosa, também em Taboão da Serra. Ficou decidido que a reunião seria quinzenal e às quartas-feiras, já que o dia “era morto na semana e só iria quem realmente estivesse interessado em poesia”, explica Sérgio. Enquanto discutiam sobre o assunto, surgiu a palavra
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sarau, e ninguém sabia o porquê. A palavra que até então era usada pela elite, ultrapassou a fronteira e encontrou os becos e vielas. E assim, em uma fria noite de outubro de 2001, Sérgio Vaz e Marco Pezão criaram a Cooperifa, “movimento que, anos mais tarde, iria se tornar um dos maiores e mais respeitados quilombos culturais deste país”, relata o poeta. Um sarau com poesia em uma quarta-feira. No início essa idéia não atraiu muito a comunidade, por isso só apareceram os amigos mais próximos. “Não tinha quase ninguém, nem para ouvir e nem para falar. Lembro que cada poeta leu mais de dez poesias”, lembra Sérgio sobre o sarau que começou às 20h e sobreviveu com coragem até cerca de 21h30. Só pra contrariar, depois desse dia ficou decidido que o encontro aconteceria toda semana. Pezão divulgando nos jornais da região e Sérgio Vaz e seus amigos intimidando quem conhecia a comparecer. Assim a divulgação foi aumentando e a cada nova quartafeira surgiam rostos diferentes: “o sarau foi se firmando como movimento na quebrada, e sem que a gente exigisse, as poesias românticas foram aos poucos sendo substituídas pelos poemas com a temática social”. Munição não faltava para a poesia brotar das periferias paulistanas. No Garajão, as palavras “guerreiros” e “guerreiras” ganharam força, e o nome da Cooperifa começou a ficar conhecido, recebendo nomes do rap como Mano Brown (do
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Racionais Mc’s), GOG, Afro-X e Gaspar, do Záfrica Brasil. A palavra estava conquistando a quebrada, e o quilombo cultural ganhando força. “O sarau foi se transformando no movimento dos sem-palco, e todo aquele ou aquela que se sentia injustiçado pelo pão da literatura, nos procuravam”, conta Sérgio, comentando que todos eram bem-vindos, “principalmente as pessoas simples, a nossa gente”. Após as várias noites de poesia em Taboão, o bar do Garajão foi vendido, e o novo dono não queria saber de sarau. A decepção foi grande, mas os guerreiros cooperiféricos não desistiram: “como de dor a gente entende, antes mesmo que o cadáver apodrecesse, enterramos nossas lágrimas, juntamos nossas memórias com as nossas roupas de batalha e encarnamos num outro corpo, o bar do Zé Batidão”, relata Sérgio. De volta ao Zé Batidão Quando jovem, Sérgio trabalhou dos 12 aos 22 anos atrás do balcão do bar de seu pai, em Piraporinha, na Zona Sul. Anos depois, o local foi vendido, transformando-se no Zé Batidão. E foi pra lá mesmo que o sarau da Cooperifa seguiu e instalou-se. Sendo assim até hoje. “Chegamos no Zé por volta de março de 2003 e fomos acolhidos por pouca gente, mas principalmente pela família Retrão, uma das primeiras a
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chegar na região do Jardim Guarujá”, lembra Sérgio. Assim, as quartas poéticas passaram a ter um novo endereço. Já contando com a ajuda dos guerreiros e guerreiras do Garajão, como Pezão, Márcio Batista, Kennya, Helber Ladislau, Samatha, Pilar, Allan da Rosa, Rose Dorea, Binho, Preto Jota, Vilma (Nega Drama), Isaac (2hO), Tavinho e Pedro Lucas, a implantação do sarau foi mais fácil. “O funcionamento do sarau é muito simples: começa pontualmente às 21h e também acaba pontualmente às 23h, porque o bar fica na pracinha do Guarujá e tem muitas casas em volta. Procuramos colaborar com a vizinhança”, explica Sérgio, comentando que a média de público é de cerca de 200 a 250 pessoas, “mas em saraus especiais já tivemos mais de 500 pessoas”. Durante o sarau, são evitados instrumentos musicais porque, segundo Sérgio, é um movimento estritamente literário: “no passado tivemos problemas com as pessoas que chegavam de violão em punho querendo cantar. A gente também sabe que se a poesia concorrer com a música, com certeza vai tomar de goleada”. Sem qualquer tipo de censura prévia, as poesias podem ser próprias ou de autores consagrados. Só é recomendado que os poemas tenham, no máximo, duas laudas. E também nada de usar o microfone como palanque para discurso.
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No rastilho da pólvora O sarau havia conquistado seu espaço. Mas eles queriam ir além. Por isso, após conversas entre Sérgio, Pezão e Márcio, chegou-se à conclusão de que estava na hora de editar uma antologia com os poetas da Cooperifa. Só havia um problema: dinheiro. Onde conseguir? “Um dia o Claudiney Ferreira, do Itaú Cultural, me convidou para participar da 50ª Feira do Livro de Porto Alegre, que justamente caía numa quarta e um pouco antes do sarau aqui em São Paulo. Acho que foi a primeira vez que faltei na Cooperifa”, conta Sérgio. Mas foi necessário, porque de lá surgiu o apoio financeiro para o livro. O nome, escolhido por Pezão, foi Rastilho da Pólvora: “ele dizia que o nosso movimento estava se alastrando pela cidade”, lembra Sérgio. E realmente estava. Com a iniciativa da Cooperifa, muitas comunidades da periferia inspiraramse para fazer seus próprios saraus. Após muita conversa, foram reunidos 43 autores e um livro com 61 poemas “extraídos dos becos, vielas e ruas que formam o sarau da Cooperifa”, afirma o poeta. Assim, no dia 22 de dezembro de 2004, foi lançada a antologia poética “que iria ajudar a construir um novo momento da literatura brasileira e fazer coro com uma nova literatura que surgia da periferia”.
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Povo
Divido meu sorriso, meu pranto, É tanto e tão pouco. Eu posso. Sou possível. Começo tudo de novo. Sou pele. Sou raça. Sou povo.
José Neto 1
Eu posso. Sou possível. Rasgo o verbo, Vivo a vida no improviso. Eu posso. Sou possível. Sou um pedaço da história Que já foi lido. Uma corrente quebrada Cunhada no grito. Eu posso. Eu sou possível. Assumo o rumo sem rumo. Sem terra, sem lar... Do tempo, nenhuma lágrima... De tudo só tenho a ganhar, A luta mal começa E já vem outra batalha pra ganhar... Eu posso. Eu sou possível.
Ação poética Além do sarau todas as quartas, a Cooperifa também promove edições especiais em locais como a Fundação Casa3 e estações de metrô. Sem contar com o Cinema na Laje, que acontece quinzenalmente, às segundas-feiras, em telão na laje do bar do Zé Batidão. São documentários e filmes alternativos de todas as partes do Brasil e do mundo, exibidos gratuitamente para a comunidade. Muitos dos que frequentam a laje, nunca pisaram em uma sala de cinema. “Também criado principalmente para dar luz ao cinema produzido pelos jovens da região, e levar cidadania através da sétima arte”, explica Sérgio. O projeto ainda conta com um lanterninha vestido a caráter, “para dar um charme especial 3
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O poema Povo faz parte da antologia Rastilho da Pólvora. A autoria é de José Neto, poeta nascido em Lins, interior de São Paulo, que começou como letrista em festivais de música na região e frequenta a Cooperifa.
A Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Casa) é uma instituição ligada à Secretaria de Estado da Justiça e da Defesa da Cidadania de São Paulo. São promovidos estudos e planejamento de soluções direcionadas ao atendimento de adolescentes autores de atos infracionais, na faixa de 12 a 21 anos.
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no projeto. A entrada é franca. A pipoca é grátis. E a lua sincera”, acrescenta o poeta. Em datas comemorativas há distribuição de livros que chegam como doação ou como presentes para a Cooperifa. No bar do Zé Batidão ainda há uma biblioteca com diversos títulos. “Mas como eu estava falando sobre o apego à leitura, os lançamentos de livros também foram nossa grande arma para atingir esses objetivos: leitura e criação poética”, comenta Sérgio. “Falei com o Pezão que deveríamos criar um prêmio, principalmente para os poetas, mas que a gente se estendesse para pessoas da comunidade e para todos aqueles que direta ou indiretamente ajudassem a periferia a se tornar um lugar melhor para viver”, relata Sérgio. E assim foi criado o prêmio da Cooperifa que, desde 2005, presenteia pessoas que contribuem com os projetos da comunidade. “O sarau é um movimento que não pode parar”, diz Sérgio. E as pessoas envolvidas nunca deixaram que parasse. Assim, em 2006, novamente com o apoio do Itaú Cultural, foi lançado o primeiro CD de áudio que reuniu 26 poemas dos poetas cooperiféricos. Com literatura e oralidade unidas, ficou registrada mais uma conquista da comunidade. Ultrapassando os muros do Zé Batidão, o sarau também foi para as escolas locais: “se os professores e alunos não podiam frequentar o sarau, nós iríamos até eles”, diz
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Sérgio. E assim, em 2007, eles fizeram. “Nesse curto período de sarau nas escolas nós falamos poesia para mais ou menos umas 4.000 pessoas de várias comunidades, e boa parte delas viraram frequentadores dos saraus”, comenta, destacando que o maior marco dos encontros foi a alegria dos professores. Entre as invenções de Sérgio também está o Poesia no Ar. O primeiro, que ocorreu em abril de 2007, contou com 300 bexigas com poemas lançadas ao céu de São Paulo. “O evento foi tão bonito que não podíamos deixar de realizar, então passou a fazer parte da agenda da Cooperifa”, conta Sérgio. Segundo o poeta, vários quintais foram visitados, inclusive de bairros distantes de Chácara Santana. E a Cooperifa não poderia parar. Tanto que, em 20 de agosto de 2008, foi lançado o livro Cooperifa – Antropofagia Periférica, da Coleção Tramas Urbanas (Editora Aeroplano do Rio de Janeiro). Nessa obra, Sérgio Vaz conta a sua história e a da Cooperifa, que se unem a todo instante, sem esquecer de citar os nomes de várias pessoas que participaram da história do sarau. A Chuva de Livros é outra iniciativa da Cooperifa que chegou para abalar as estruturas da periferia. A primeira edição ocorreu em 2006 e, neste ano, a data escolhida foi 12 de agosto, “os livros encharcaram nossos corações, que não eram poucos, nem os livros, quase 600, nem os corações, quase 500 pessoas, e como num romance fantástico de
Garcia Marquez, a periferia do extremo sul de São Paulo, transformou-se em Macondo, e todos os seus habitantes, alquimistas por precisão, transformaram sonhos em livros”, emociona-se Sérgio, e brinca: “usamos a mesma tática do tráfico de drogas, damos os primeiros livros de graça, depois que a comunidade se viciar, cada um que dê um jeito de sustentar o seu vício, apesar que tem uma biblioteca no Zé Batidão para emergências. Não deve ser fácil cheirar um livro de 400 páginas. A Cooperifa é a boca de livro da quebrada”, escreve Sérgio em seu blog, o Colecionador de Pedras4. Outro momento especial é o “Ajoelhaço”, realizado no mês do Dia da Mulher, quando os homens se ajoelham no bar para pedir perdão pelas injustiças cometidas contra a mulher ao longo da história. Um gesto irreverente contra a violência doméstica e o machismo que frequentou (e frequenta) muitas casas brasileiras. O evento fez tanto sucesso que passou a fazer parte da agenda dos cooperiféricos. Além de livros e áudio, a comunidade também alcançou o seu lugar nas telas. Lançado em 1 de setembro de 2008 no Cinesesc, o filme “Povo Lindo, Povo Inteligente – O Sarau da Cooperifa”, foi dirigido por Sergio Gagliardi e Maurício Falcão, em produção da DGT Filmes. O documentário aborda o sarau a partir do cotidiano de alguns frequentadores 4
www.colecionadordepedras1.blogspot.com
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e registra a emoção de declamar na frente de um público foram promovidas oficinas de artes plásticas e exposição atento e sedento por poesia. coletiva com artistas da periferia. Na terça-feira, no CEU (Centro de Educação Unificado) Campo Limpo, a tarde A outra Semana de Arte Moderna foi destinada a mostra de vídeos, mesa de debates, oficina de dança e intervenção de poetas da Cooperifa. A noite foi Os escritores, membros da elite que promoveram a recheada de dança e intervenções. Semana da Arte Moderna de 1922, não imaginavam que, Na quarta-feira, um debate mediado por Sérgio Vaz, décadas depois, um novo movimento surgiria, desta vez às com Alessandro Buzo, Sacolinha, Elizandra Souza e Eleilson margens da cidade. “A arte sempre foi o pão do privilégio. Leite, todos relacionados com a cultura de periferia, agitou Agora é servida no café da manhã da periferia. Com menos a tarde na Casa de Cultura M’Boi Mirim. À noite, para não manteiga, talvez, mas arte. Nossa literatura tem menos esses, perder o costume, o bar do Zé Batidão recebeu mais um menos crases, mas é literatura. Agora que escrevemos sobre sarau dos cooperiféricos. nós, o que os intelectuais vão fazer? Que comam brioches!”, Quinta-feira foi dia de cinema. Com a exibição de diz Sérgio. E foi criada a primeira Semana da Arte Moderna diversos filmes e documentários no CEU Casa Blanca, no da Periferia. Jardim Casa Blanca, a noite foi fechada com uma conversa “Ficou acertado que começaria num domingo, com uma entre os convidados e o público. Na sexta-feira, um café da grande caminhada cultural que sairia da ponte do Socorro manhã abriu o dia destinado ao teatro. Com exibição de (ponte que separa a gente dos bairros mais centrais). E viria peças e performances no Centro Cultural Monte Azul, no pela estrada do M’Boi Mirim, que é uma avenida importante Jardim Monte Azul, participaram grupos como a Companhia para os bairros da região da Zona Sul, uma espécie de Avenida Diarte Teatral e a Brava Companhia. Paulista para nós”, conta Sérgio. Para continuar a Semana, o sábado foi só para a música, Assim foi aberta a Semana que, de 4 a 10 de novembro que não poderia faltar. A Casa de Cultura M’Boi Mirim de 2008, lançou uma nova reflexão sobre a arte na periferia. recebeu nomes como Trio Porão, Chapinha do Samba da Após a caminhada de abertura que ocorreu no domingo, na Vela, Pagode da 27, Wesley Nóog, B Valente, Os Mamelucos, segunda-feira, no Sacolão das Artes (Parque Santo Antonio), Banda A, Periafricania, Preto Soul e Versão Popular. “E
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como ninguém é de ferro, no domingo encerramos com um enorme churrasco com os participantes, no bar do Zé Batidão”, diverte-se Sérgio. A Semana de Arte Moderna da Periferia contou com a participação de centenas de artistas e foi assistida por milhares de pessoas, tanto do centro quanto das margens. “Foi pensada e produzida pelo povo simples, por artistas marginalizados pela falta de espaço para a reprodução cultural: uma semana inteira de atividades que se realizaram de baixo pra cima”, enfatiza Sérgio. Televisão, jornais e revistas de grande circulação ignoraram o evento: “saiu apenas no Le Monde Brasil e revista Época, em matéria da jornalista e escritora Eliane Brum”. Em manifesto escrito para a Semana, Sérgio se inspirou em Oswald da Andrade2, mas levando as idéias para a sua realidade. Ninguém soube do evento, mas aconteceu. E com certeza mudou os rumos da periferia, que firmou ainda mais a sua própria arte.
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José Oswald de Sousa de Andrade nasceu em São Paulo e foi um escritor, ensaísta e dramaturgo. Um dos promotores da Semana de Arte Moderna que ocorreu 1922, na capital paulista, tornou-se um dos grandes nomes do modernismo literário brasileiro.
Manifesto da Antropofagia Periférica
Sérgio Vaz
A periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros. A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade. Agogôs e tamborins acompanhados de violinos, só depois da aula. Contra a arte patrocinada pelos que corrompem a liberdade de opção. Contra a arte fabricada para destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade que nasce da múltipla escolha. A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza. A favor do batuque da cozinha que nasce na cozinha e sinhá não quer. Da poesia periférica que brota na porta do bar. Do teatro que não vem do “ter ou não ter...”. Do cinema real que transmite ilusão. Das Artes Plásticas, que, de concreto, quer substituir os barracos de madeiras. Da Dança que desafoga no lago dos cisnes. Da Música que não embala os adormecidos. Da Literatura das ruas despertando nas calçadas.
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Para outubro de 2009 já está agendada a próxima A Periferia unida, no centro de todas as coisas. Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais das Semana, desta vez com o nome de 2ª Mostra Cultural da quais a arte vigente não fala. Cooperifa. “Ao percorrer as quebradas e à boca pequena Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala. dizia-se que havia um lugar onde qualquer um podia chegar É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista- para ouvir e falar poesia e que só tinha apenas uma regra: o cidadão. Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas silêncio é uma prece!”, diz Sérgio. A poesia tinha ganhado as também não compactua com a mediocridade que imbeciliza ruas e nunca mais seria a mesma. um povo desprovido de oportunidades. Um artista a serviço da comunidade, do país. Que armado da verdade, por si só exercita Conexões periféricas a revolução. Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e nos Uma ação gera a outra. E a Cooperifa foi mesmo a hipnotiza no colo da poltrona. Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, inspiração para o surgimento de outros saraus na periferia. museus, teatros e espaços para o acesso à produção cultural. A força da poesia dos cooperiféricos rompeu as fronteiras Contra reis e rainhas do castelo globalizado e quadril do bar do Zé Batidão e alcançou outras margens da cidade. avantajado. Assim o Sarau da Ademar foi criado, em 14 de setembro de Contra o capital que ignora o interior a favor do exterior. 2008, no bairro de Cidade Ademar. Realizado no bar Nakasa, Miami pra eles? “Me ame pra nós!”. poetas e poetisas lançam suas palavras para mais um extremo Contra os carrascos e as vítimas do sistema. da Zona Sul. “O Sarau da Ademar foi criado para colocar Contra os covardes e eruditos de aquário. Contra o artista serviçal escravo da vaidade. o sujeito no mundo da interpretação e interação”, comenta Contra os vampiros das verbas públicas e arte privada. Lidiane Ramos, a Lid’s, presente desde a primeira edição. A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza. Criado com o intuito de “abrir a mente da comunidade, Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela o sarau começou entre amigos que frequentavam a Cooperifa e quiseram levar algo tão bom quanto pra sua quebrada”, cor. explica Lid’s. Segundo Paulo Eduardo Serra, o Paulinho, que É TUDO NOSSO! também participa desde a criação do sarau, o espaço é como
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qualquer outro, a diferença é que o coletivo é formado por amigos que já se conheciam há muito tempo, o que facilita o entendimento: “o nosso objetivo é fortalecer e valorizar a identidade periférica, reconhecendo os artistas da região e cedendo o microfone para comungar a palavra. Voz para o povo”, enfatiza. “Filho legítimo da Cooperifa”, segundo Lid’s, há grande incentivo por parte de Sérgio Vaz para a realização do Sarau da Ademar. E assim também pensa Paulinho: “a Cooperifa é a nossa nave-mãe. É de lá que veio a idéia da nossa galera para fazer o sarau, a relação com eles é de irmandade”. Por isso, para Lid’s e Paulinho, não há competição entre os saraus, é uma soma de forças e valores que busca levar a informação à periferia. “Somos um só quilombo”, enfatiza Paulinho que, junto a Lid’s, concorda que é “tudo junto e misturado”. Ambos também comentam sobre a visão do “centro” sobre a periferia. Para Lid’s, “a mídia, em sua maioria, e o dito ‘centro’ não nos vêem como arte, uma vez que o sistema impõe um padrão burguês, e quem não vive nele (a periferia), não os entende. E assim distorcem, como se na periferia só existissem coisas ruins”, diz, ao destacar que os saraus estão provando o contrário. Ela também acrescenta que “muitas pessoas da mídia que se aproximam é para sugar. Poucas são as que se interessam em participar, em somar... Na sua maioria vêm, pegam o que querem e pronto. Nada daquilo
importa porque não condiz com a sua realidade, é como se fosse mera ficção”. Para Paulinho, a impressão é de que a mídia “não está tão por dentro do que vem acontecendo dentro das periferias, a não ser de alguns poucos movimentos que estão em evidência, como a Cooperifa”. Mas mesmo que as visões do dito “centro” ou da mídia não revelem a real importância dos saraus, o fato é que eles estão mudando (e muito) a consciência de quem mora nos extremos da cidade. Segundo Lid’s, com essas iniciativas é possível mostrar como existem verdadeiros artistas na região, e também inspirar outras comunidades a levar o projeto para seus bairros. Paulinho comenta que “algumas pessoas não tinham a noção do que era um sarau, e logo depois que tiveram a oportunidade de participar, seu senso crítico ficou mais apurado”. Outro ponto de encontro cercado de poesia, e muito conhecido na zona sul, é o Sarau do Binho. Localizado no bairro do Campo Limpo, o local é frequentado por membros da cena cultural da periferia, como atores, escritores e poetas. Além de dono do bar, Binho também é um agitador cultural que, em sua trajetória, promoveu diversas iniciativas inusitadas. Carismático e sorridente, carrega muito idealismo em suas criações. Sempre com uma atividade instigante, agita a região. E vai mais além. A Expedición Donde Miras -
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Caminhada Cultural pela América Latina é um dos projetos. Para quebrar as fronteiras territoriais e interagir com outras culturas, ele sai em caminhada com outros poetas (ou quem mais se interessar), rumo a diferentes destinos. Em um percurso realizado à pé, o grupo faz paradas nas cidades em que passam para realizar saraus em praças públicas e misturarem-se aos artistas locais. A primeira rota foi em 2008, até Curitiba, no Paraná, quando mais de 1000 km foram percorridos, passando por quilombos e aldeias indígenas. Na segunda edição foi a vez das aldeias indígenas do litoral paulista, com destino final em Cananéia. Na rota caipira, a terceira edição, os viajantes chegaram até Botucatu, interior paulista. Outra das invenções de Binho foi a Bicicloteca: No Meio do Caminho Tem um Livro. Contemplado pelo VAI, o Campo Limpo passou a ter duas bibliotecas sobre rodas, com livros que podem ser emprestados mesmo para os moradores das áreas de difícil acesso. Ritmo e poesia “O Sarau da Cooperifa foi ao longo dos anos se tornando um grande refúgio de poetas, e a poesia da periferia que sofreu tanta influência do rap, agora via seu quartel general tomado por pessoas ligas ao hip hop”, diz Sérgio Vaz em sua obra Cooperifa – Antropofagia Periférica, que destina diversos
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parágrafos para abordar a ligação do rap e do hip-hop com o movimento da literatura periférica. O significado de rap em inglês é rhythm and poetry, ou seja, ritmo e poesia. E assim foram cruzados os destinos da música e da literatura. Diversos grupos de rap apóiam a Cooperifa, sendo um deles o Periafricania, formado por quatro integrantes: Claudinha (backing vocal), Mario Bibiano (dj), Montanha Mc e Jairo (vocais). “Com o objetivo de informar, protestar e expressar nossas idéias, formamos o grupo há seis anos”, conta Jairo. O nome surgiu de uma poesia escrita por Gaspar, do grupo Záfrica Brasil: “achamos muito interessante essa junção de Peri (periferia), África e Nia (cidadania)”, acrescenta. Jairo Rodrigues nasceu na capital de São Paulo, e “desde pivete até hoje moro no mesmo bairro, numa quebrada da Zona Sul”, conta. O interesse pelo rap começou assim que passou a prestar atenção nas poesias do grupo Racionais Mc’s: “tudo que eles diziam era o mesmo que vivíamos e pensávamos”, lembra. Segundo Jairo, participar da Cooperifa estimula a criatividade do grupo: “fazendo parte desse movimento, sempre surgem idéias, e ler e escrever é o que mais curtimos fazer. Por esse motivo temos várias letras”. Ao se definir como “um ser absolutamente normal, com defeitos e qualidades”, ele comenta sobre os projetos em que está envolvido:
“atualmente, além de taxista e membro da Cooperifa, trabalho na Fundação Casa pela ONG Ação Educativa como arteeducador, fazendo o que amo, que é o rap”. Sobre o trabalho desenvolvido, ele explica que dá aulas com a duração de 1 hora e 30 minutos para quatro turmas de adolescentes, em quatro dias da semana. “É bem proveitoso, porque além de passar um pouco do meu conhecimento, também aprendo muito, já que tenho que estudar, pesquisar e sempre estar passando e mostrando coisas novas”, diz, comentando que a abordagem acaba não sendo apenas sobre o rap, mas também sobre poesia e literatura, que são fundamentais. Jairo observa que cada um dos jovens da Fundação Casa possui sua história, “mas geralmente percebo que têm relação com algum tipo de falta: falta da presença dos pais, faltas devido a esse país capitalista em que a televisão prega praticamente o impossível”, comenta, acrescentando que “são adolescentes na flor da idade fervilhando adrenalina, dispostos a tudo para ter poder e ter seus objetos de desejo, seus sonhos de consumo”. Além do rap, na área cultural são promovidas outras atividades, como capoeira, fanzines, artes plásticas, dança de rua, literatura e grafite: “pelo que pude perceber, eles
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simplesmente amam as oficinas ligadas a arte e cultura pelo fato de poderem expressar seus sentimentos de todas as formas”, observa Jairo, contando que vários jovens, após saírem da Fundação, ligaram para ele com o desejo de conhecer a Cooperifa, sendo que alguns até chegaram a ir ao sarau. Jairo ainda comenta que uma das passagens especiais na Fundação Casa foi um grande festival de hip hop onde se inscreveram cerca de 100 grupos de todo o Estado de São Paulo. O tema era direitos humanos e diretos iguais, que foi dividido por etapas. A primeira foi de letras, em que uma comissão lia e observava se a conexão com o tema abordado. Para a segunda etapa passaram 40 grupos, que desta vez seriam julgados em quesitos como performance de cantoria e presença de palco. “Na última fase seria julgado tudo isso e ainda mais. Foram 15 grupos pra final, que cantariam numa grande festa no Memorial da América Latina6, com a presença de jornalistas, imprensa e grandes nomes do rap, tanto no júri como no palco”, lembra Jairo, destacando que havia uma cláusula na competição que dizia que quem saísse da LA (Liberdade Assistida), seria eliminado do concurso. “Havia 6
O Memorial da América Latina é um complexo arquitetônico de 84.480m² de área construída, projetado por Oscar Niemeyer. Localiza-se no bairro da Barra Funda, na cidade de São Paulo, e foi inaugurado em 18 de março de 1989, com o conceito e o projeto cultural desenvolvidos pelo antropólogo Darcy Ribeiro.
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uma dupla que, infelizmente ou felizmente, um deles saiu de LA, e assim automaticamente seria desclassificado. Mas conseguimos colocá-lo pra dentro do teatro, só que ele não poderia cantar”, comenta. “Na nossa penúltima música, fizemos questão de convidá-lo ao palco para homenageá-lo”, diz Jairo, lembrando que o jovem foi ovacionado pela platéia. “Demos presentes e nos comprometemos a ajudá-lo. Falamos palavras de incentivo e tal, mas no outro dia, quando volto pra dar aula, fiquei sabendo que ele havia sido preso novamente, só que como já era maior de idade, foi pra um CDP”, emociona-se: “chorei”. Segundo Jairo, o rap pode ajudar na educação das crianças e adolescentes, já que promove o pensamento: “explico que, pra que se escreva uma boa letra, temos que ler, então cito outras letras de rappers já consagrados que mencionam líderes como Zumbi dos Palmares, Ghandi, Jesus, Dimas etc... Quem foram eles?”, diz, ressaltando que é necessário que eles aprendam a buscar a poesia nas coisas simples. “Um simples copo de água tem histórias pra contar... e por ai vai”, observa. Porque o rap, unindo ritmo e poesia, transforma palavras em arte.
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Zé Batidão: de escravo a dono de quilombo
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- Onde é o Sarau da Cooperifa? - Lá no Zé Batidão... - E o próximo Cinema na Laje? - Lá no Zé Batidão também! Quando se fala em Cooperifa, sempre surge o nome “Zé Batidão”. Palco dos saraus das quartas-feiras, do Cinema na Laje e de outras iniciativas que fazem parte da agenda dos cooperiféricos, o bar recebe poetas, boêmios, artistas e a comunidade. Mas Zé Batidão não é apenas o nome do local, mas uma pessoa que, assim como a Cooperifa, também tem muita história pra contar. José Cláudio Rosa nasceu em 3 de junho de 1948, em uma fazenda na cidade mineira de Piranga. Seus pais eram trabalhadores rurais que não recebiam salário e viviam endividados com os donos da fazenda, assim como ele, quando completou idade suficiente para trabalhar. Zé não tinha salário e comia as sobras de seus senhores. “Eles peneiravam o feijão e o que sobrava davam pra gente”, lembra. No fim de todos os anos, era calculada a cota que sua família deveria receber. Descontada a moradia precária, as sobras de comida e o dinheiro emprestado para sobreviver, o resultado do cálculo era sempre o mesmo: não recebiam nada, e ainda ficavam devendo. O salário imaginário era um bom
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pretexto de seus chefes para tirar o peso da palavra escravo. Aos 17 anos, Zé decidiu mudar. Foi chamado de crápula e ouviu que nunca mais poderia atravessar a porteira da fazenda. Mas ainda assim ele seguiu para São Paulo, onde chegou em 1976. “Só voltei lá pra visitar meu pai e a minha madrasta. Minha mãe morreu quando eu tinha 9 anos”, conta. O destino final foi o bairro Parada Inglesa, zona norte da capital paulista. Logo que chegou, conseguiu emprego como pedreiro em uma padaria em construção. Mas mesmo em liberdade, continuou sendo escravo: os primeiros dias foram marcados pela fome e a falta de lugar para dormir. “Fiquei três dias sem comer e dormi na beira da calçada de uma casa”, recorda. Seu novo chefe perguntou se ele não comia, e ele respondeu “comer o quê? Não tenho nada”. E assim começou a história de amizade entre ele e o dono da padaria. Finalizada a obra, Zé trabalhou como padeiro ali mesmo. “Eles me davam comida, cama, pão e roupa lavada”, conta o mineiro que, mesmo fora da fazenda, continuou sem receber um salário: “eu não tinha ordenado, achei que tava em Minas ainda”. Após trabalhar quatro anos no local, ele pediu as contas e recebeu tudo que deveria por todo o tempo de trabalho. “Ganhei um dinheirão”, ri. Então ele seguiu seu rumo.Trabalhou em um restaurante na Avenida Brigadeiro Luis Antonio, o Lanches Poli Poli,
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local onde fez muitas amizades e recebeu um convite para trabalhar na lanchonete do Colégio Objetivo. Depois ainda passou pelo restaurante Fasano, onde atendia diversos jogadores de futebol. Na mesma época, fez um curso de garçom no Senai. Mas Zé, que era analfabeto, lavava pratos para os colegas em troca de ajuda nas atividades escritas. “Eu falava assim: você escreve pra mim que eu lavo a louça”, lembra o mineiro, ressaltando que é muito bom em matemática. Após tantas andanças, Zé finalmente foi parar no bar do pai de Sérgio Vaz, em Piraporinha. O bar que um dia seria seu. “O Sérgio sempre foi um bom menino, sempre lendo livros e gostava de ficar na boemia com os amigos. Ele não era muito chegado em trabalhar, não”, diverte-se ao lembrar do cooperiférico que muitos não conheceram. Os anos passaram e, após trabalhar como garçom no bar, finalmente conseguiu comprar o local. No começo, decidiu que o bar seria especializado em batidas. “Mandei fazer uma faixa e o cara escreveu ‘Zé Batidão’ ao invés de ‘Zé do Batidão’, daí eu gostei e ficou assim mesmo”, ri Zé, ao explicar o motivo do nome que hoje está estampado em jornais e revistas. Em 1988, o mineiro ofereceu um almoço para festejar o lançamento do primeiro livro de Sérgio Vaz, “Subindo a ladeira mora a morte”, com direito a salada de maionese
com o nome da obra escrito no meio. Anos depois, o Sarau da Cooperifa, até então realizado no Taboão da Serra, foi parar no Bar do Zé Batidão. E assim começou a duradoura parceria entre ambos. Em seu bar, Zé já recebeu figuras como o cantor Lobão e o jornalista Chico Pinheiro. Sempre atrás do balcão, ele serve com delicadeza e atenção, sem deixar suas raízes de lado. Até criou uma biblioteca para a comunidade. Sobre a estante ainda ficam os troféus de seu time, o Sete Velas Caveirão, junto a fotografias e lembranças. Apesar de as batidas não serem mais a principal atração da casa, a Gostosinha, feita com pinga, vodka e mel puro, vindo direto de Minas Gerais, continua no cardápio. Ele oferece uma como cortesia e conta que possui um livro de sua autoria, o Pedra sobre Pedra, em que narra suas memórias. Ainda analfabeto, ele ditou sua história para a sua filha, que escreveu a obra. Seu bar cresceu junto à Cooperifa, passando por diversas reformas para atender ao público que aumentou com o passar dos anos. Com brilho nos olhos, ele comenta que Sérgio poderia cobrar dele uma cota por hospedar o grande quilombo cultural, que recebe centenas de visitantes e impulsiona o sucesso do bar: “mas em todos esses anos ele nunca cobrou nada de mim”. Com muita educação, ele pede licença para atender ao
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público que começa a ocupar o local. A simplicidade não se deixou perder com o passar dos anos. E com um sorriso no rosto ele atende aos clientes e conversa com as garçonetes. O sotaque mineiro e os movimentos calmos continuam, mas Zé Batidão agora é senhor. E sabe bem como fazer isso com a humildade que permaneceu desde os tempos difíceis que se passaram.
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O empinador de poesias em dias sem vento “Enquanto eles capitalizam a realidade Eu socializo meus sonhos”. Sérgio Vaz Dona Edith está recitando uma poesia de Castro Alves no palco da Cooperifa. Encostado na parede, perto da entrada do bar, está Sérgio Vaz. Enquanto escuta os versos, fecha os olhos. Assim que a senhora termina a sua apresentação, ele deixa um sorriso se abrir. Cabelos escuros, altura mediana, lá está o homem que idealizou a Cooperifa. Depois dele, a cultura na periferia nunca mais foi a mesma. Essa frase poderia fechar a história deste poeta, mas não. Ela é apenas o começo, pois ele está sempre em movimento. Com o sorriso aberto e a voz firme para esconder a timidez que o acompanha desde menino, Sérgio mudou o rumo da cultura nos extremos da capital paulista. O seu sonho inspirou muita gente a também buscar a democracia por meio da palavra, fazendo com que a literatura surgisse das mais escondidas e inusitadas vielas.. Mineiro nascido em 26 de junho de 1964, Sérgio é casado com Sônia e pai de Mariana. Idealizador da Cooperifa, muitos caminhos foram percorridos até que seu trabalho fosse reconhecido. Sua voz, repleta de alegria e paixão pelo
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que faz, ecoa com uma inacreditável força na abertura dos saraus, contagiando a todos com o seu profundo sentimento de coletividade. Para os mais próximos, ele é o Serjão, amigo para todas as horas, um sujeito simples, generoso e bom de conversa. Para outros, é o capitão e coração do movimento cultural Cooperifa. Sérgio é um líder nato, apesar de não gostar de ser chamado assim. Sua caminhada sempre esbarrou em obstáculos que ele fez questão de superar. Cresceu no bairro de Piraporinha, zona sul da São Paulo, a 30 km do centro da cidade. Como todo menino da periferia, também queria ser jogador de futebol. “Sou de uma época em que quando se fazia a 4ª série primária, tínhamos que ir para outros bairros, mais ao centro de Santo Amaro, para fazer o ginásio. O colégio só chegou quase nos anos 1980”, conta Sérgio. Seus pais se separaram quando ele e seus irmãos ainda eram pequenos. Durante a infância, lembra que uma rara diversão era a chegada do circo a Piraporinha.“Mas a molecada só tinha duas maneiras de ir ver o palhaço: ou furando a lona, ou vendendo chocolate”, lembra. Sérgio acabava vendendo chocolate para os que entravam pela porta da frente. Ele achava divertido trabalhar sob a risada alheia. Ainda jovem, ganhou o primeiro livro do pai: Ali Babá e os Quarenta Ladrões. Essa primeira leitura seria o ponto inicial de uma paixão eterna: a leitura, que modificou a sua vida e a
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de muitos. A adolescência chegou ao som do soul de James Brown, Betty Wright e Marvin Gaye. “Tudo se resumia aos bailes”, observa. O futebol era uma das atividades preferidas na comunidade. Entre os campos de várzea, existiam vários times nos bairros. Mas apesar de gostar do futebol de campo, sua praia era o de salão. Quando tinha 12 anos, seu pai comprou o Bar e Empório Guarujá, uma espécie de mercadinho da época. Esse foi o lugar em que passou toda a adolescência trabalhando, mas nem desconfiava que a sua senzala durante mais de dez anos abrigaria o Sarau da Cooperifa. O velho empório se transformou no que hoje é o Bar do Zé Batidão. Atrás do balcão, ele via a vida passar. Sua rotina se resumia em trabalhar no bar e ir à escola. E ele odiava os dois. Com pouco tempo para ficar na rua, passou a visitar o mundo através dos livros. Lia de tudo, principalmente os clássicos, mas também gostava de jornais e revistas. Entre suas primeiras leituras estavam nomes como O Cortiço, de Aluísio Azevedo, Os Miseráveis, de Victor Hugo, A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera, e autores como Drummond, Ferreira Gullar e Pablo Neruda. Quando terminou o ginásio, foi estudar Processamento de Dados no Colégio Radial, em Santo Amaro. “Foi duro admitir que existiam outros lugares além das ruas do Jardim Guarujá e Chácara Santana”, conta, lembrando que depois
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ainda prestou o serviço militar durante um ano, como soldado no CPOR (Centro de Preparação de Oficinas de Reserva), no bairro de Santana, zona norte. “Os soldados eram, na maioria, jovens da periferia de São Paulo, enquanto a maioria dos alunos era de classe média alta e saíam de lá como aspirantes a tenentes”, afirma. Esse período foi marcado pela solidão, já que a timidez fez com que demorasse a fazer amizades. Trabalhando como cozinheiro, “ou pé-de-banha, como dizia a gíria dos praças”, ele conta que o tempo foi passando, até que, em um final de semana, descobriu que vivia mesmo em uma ditadura militar. Enquanto ouvia “Pra não dizer que não falei das flores”, do Vandré¹, um sargento entrou aos gritos, perguntando o que ele estava ouvindo. Sérgio respondeu a verdade, cheio de inocência, e o oficial replicou: “Seu mocorongo, não pode ouvir essa porra dentro do quartel. Está querendo me foder?”, e desligou o rádio. Sem reação, o jovem ouviu um sermão sobre músicas subversivas, artistas traidores da pátria e porta-vozes do comunismo. Ao fim da repreensão, o sargento notou a cara de espanto de Sérgio e foi embora, pedindo apenas que não ouvisse mais. Mas depois desse discurso, ele passou a ouvir ainda mais atentamente às letras. Foi aí que substituiu de vez ¹ Geraldo Vandré é cantor e compositor nascido na Paraíba. Ficou conhecido pela resistência de suas composições diante da ditadura militar.
a black music pelas letras de protesto. De tanto gostar de música, Sérgio também decidiu ser músico. Mas, segundo ele, “não sabia nem tocar campainha”. Junto aos amigos Ceará, Márcio, Cleone e José Neto, montou um grupo de MPB por volta de 1984. Juntando verba para comprar fita cassete e pegar gravador emprestado, inscreviam-se em concursos. O único problema era que, apesar de gostarem da mesma música, cada um possuía um estilo diferente. E por discordar do método de compor em que cada um criava uma estrofe, Sérgio fez a sua primeira letra sozinho. “Vida”, que os levou à participação em um festival no Teatro Paulo Eiró, em Santo Amaro. Vida Quero tempo pra pensar No homem que vai para o espaço E que não aprendeu com os pássaros O segredo livre de voar Não quero olhos para ver A decadência que trazem consigo E o que não podem mais deter O encontro com seu inimigo (...)
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Depois disso, o grupo ainda participou de outros pequenos festivais, mas nunca ganhou nada. “Para a sorte de todos que gostam de música popular brasileira”, divertese. Mas a letra ficou. A primeira letra, o primeiro poema registrado. E o desejo de se tornar um poeta. Sem saber o que fazer, Sérgio decidiu começar um curso de teatro no centro da cidade. “Não sabia se queria ser ator, mas sabia que queria escrever peças”, conta. Durante o curso, escreveu Amanhã Talvez, e montou um grupo de alunos para apresentá-la, o Angélica 387. Como não gostava de atuar, dirigiu a sua própria criação. Muitas amizades foram feitas nessa época, mas uma amiga em especial o ajudou a iniciar a carreira poética: Adrianne Mucciolo. Escrevendo em parceria com ela, dividiram a autoria de poemas e ainda juntaram alguns que já possuíam. Assim, em 10 de dezembro de 1988 lançou o seu primeiro livro: Subindo a Ladeira Mora a Noite. O contato com Adrianne perdeu-se com o tempo. Mas o livro ficou. O primeiro de muitos que mudariam a sua vida. Depois do lançamento, feito em uma galeria em Pinheiros, na zona oeste, foi lançá-lo também na comunidade. “Como ninguém sabia muito bem como era o lançamento de um livro na periferia, o Zé Batidão fez frango frito, com uma forma cheia de salada de maionese, em que no meio estava
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escrito o nome do livro, para servir os amigos”, lembra. Mas a experiência do primeiro livro não foi só alegria. Aos poucos, Sérgio descobriu a dificuldade de ser poeta no Brasil. Como a música de protesto pela qual tinha se apaixonado estava chegando ao fim junto à ditadura, ele encontrou um novo estilo com que se identificava: o rap. Uma parceria que iria durar muito. “A minha poesia, conforme alguns, tinha ficado fora de moda, pois ninguém lutava mais contra o sistema. A palavra tesão era a grande moda do momento. Poesia engajada era coisa do passado”, conta. Mesmo assim ele insistia em escrever. Em 1991, quando trabalhava como auxiliar de cobrança em um escritório , já estava com material para seu segundo livro: A Margem do Vento, com tom mais poético do que engajado. Sem dinheiro para editar a obra, Sérgio decidiu pedir apoio ao presidente da empresa. “Disse a ele que era poeta, queria editar mil livros e precisava do apoio da empresa. Um dia, quando menos esperava, ele mandou me chamar e disse que, como estava perto do fim do ano, queria que o livro fosse uma espécie de presente de natal, mas que só aceitaria fazer se fossem editar 2 mil livros e doar mil à empresa”, lembra. Sérgio aceitou. E mais uma obra foi lançada. Com livros e sonhos, poucos meses depois pediu para que o presidente o mandasse embora, pois queria viver só de poesia. Em 1991,
vestido de mendigo cultural, Sérgio ainda participou da Bienal do Livro. Sem ser convidado, em trapos e com livros dentro de uma bolsa de saco de estopa, levava uma placa escrita “mendigo culturall”, com os dois eles da era Collor. Distribuiu marcadores de páginas com as suas poesias e conheceu figuras como Milton Nascimento e Luiz Inácio Lula da Silva. Já fora da empresa, montou, junto aos amigos Branco e Edson Franco, o Etílicos Bar, no bairro do Guarapiranga. Mas essa não foi uma boa fase, já que saiu de lá “sem dinheiro e sem rumo”. No entanto, nessa época conheceu outro de “seus anjos”: Marisa Zambrani. Foi ela que, nos momentos mais duros de sua caminhada, conseguiu patrocínio para a segunda edição do livro A Margem do Vento e para outro que, logo em seguida, iria lançar: Pensamentos Vadios, em abril de 1994. Por volta de 1995, viveu uma época turbulenta em sua vida pessoal, por isso foi morar em Taboão da Serra, na grande São Paulo, onde sua vida fez sentido novamente. E onde tudo iria recomeçar. Desempregado e sem rumo, foi morar em um quartinho em que cabiam apenas “uma estante com meus livros, uma cama e uma garrafa PET de guaraná vazia, onde eu urinava. Reli quase todos os livros que tinha, que não eram poucos, enquanto a solidão me consumia como ferrugem”, relata.
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Com o vento contra, fazia apenas alguns bicos em uma rádio comunitária no Jardim Brasil, na zona norte, como locutor do programa Ressaca Brasileira. Também trabalhava como vendedor de livros. Após alguns anos, ele e o amigo Márcio Batista ganharam o próprio programa de MPB na Atividade, rádio comunitária em Taboão da Serra. “Enquanto a vida me maltratava sem dó nem piedade, quase que por acidente consegui um emprego de vendedor de vídeo-game na empresa Tectoy, na Lapa. “Como trabalhar de vendedor precisava de terno e gravata, coisa que eu nunca tive, pedi emprestado para um amigo, Cláudio Argentoni, que além de sapatos também me emprestou uma maleta. Grande amigo”, conta sobre a nova fase em que entrava. Para Sérgio, ser vendedor de porta em porta foi uma das melhores experiências de sua vida: “primeiro porque eu só andava de ônibus, metrô e trem, o que me permitia continuar lendo os meus livros à vontade. E segundo porque tive a oportunidade de conhecer quase todas as quebradas de São Paulo durante esse um ano e meio em que estive lá”. Mas esse emprego ainda não era o que estava procurando. “Minha mãe, Maria Mineira, como era conhecida aqui no Pirajussara, era muito conhecida de alguns políticos da cidade, e um dia me apresentou a um que iria se candidatar e precisava muito de ajuda”, conta, comentando que acabou fazendo a campanha do candidato. “Por sorte, ele se elegeu
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como vereador e eu fui trabalhar de assessor de gabinete na Câmara Municipal de Taboão da Serra, o que fez com que eu conhecesse profundamente a cidade, e que me apaixonasse incondicionalmente por ela”. Nessa época, Carlão, um amigo de Sérgio, disse que conseguiria alguns outdoors de presente para que ele divulgasse a sua poesia. E o poeta foi presenteado com cinco deles, espalhados pela cidade. “Na época, os cartazes foram produzidos pelo Brói, artista plástico que fazia free-lancers publicitários para alguns vereadores e que, mais tarde, também seria muito importante para a minha caminhada cultural”, afirma. Para aproveitar a oportunidade, Sérgio ainda sugeriu uma proposta ao chefe de seu amigo Carlão, para que patrocinasse a segunda edição de seu livro Pensamentos Vadios. E assim, em 23 de novembro de 1999, foi lançado o livro. “Sempre achei que a poesia tem que ganhar as ruas, as praças, os bares, as escolas, e nunca aceitei que o livro é o único abrigo do poema. Outra coisa que também me incomodava era essa coisa de poeta estar sempre no casulo à espera dos poucos que gostam de poesia”. Pensando assim, em maio de 1999, Sérgio lançou diversos cartões postais com fragmentos do livro Pensamento Vadios. A arte foi criada pelo amigo Brói, e a divulgação foi gratuita, “para quem quisesse receber”. Durante cerca de dois anos, foram produzidos
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cerca de 100 mil cartões postais, “e na esteira no sucesso dos cartões também fiz marcadores de páginas. Só na primeira remessa fiz 72 mil marcadores”, destaca. Entre 1998 e 1999, ainda trabalhando na Câmara Municipal, Sérgio também começou a percorrer escolas públicas da periferia com o projeto Poesia Contra a Violência. “Era simples: eu chegava em uma escola, geralmente onde eu conhecia os professores ou diretores, e me oferecia para falar e recitar poesia, além de oferecer cartões e marcadores de presente para os alunos, e sorteio de livros. Tudo gratuitamente”, conta, ressaltando que às vezes também iam outros convidados, “mas os alunos piravam mesmo é nos repentes improvisados do Jhay e nas letras fortes do Preto Jota. Por muitas vezes passei despercebido com os meus poemas”. “Daí fui percebendo a força dos artistas da comunidade no fortalecimento da cidadania da periferia, e que a gente precisava mudar a, e não mudar da periferia”. E Sérgio não deixou que essa força fosse desperdiçada, por isso começou a chamar ainda mais representantes culturais para os encontros nas salas de aula. “Mas as escolas estavam pequenas para a minha poesia”. Ele queria mais. “Como já distribuía cartões postais em shows de rap, não custava nada eles me deixarem subir aos palcos para recitar as minhas poesias”, conta, lembrando que chegava aos shows, falava
com os organizadores e pedia para recitar seus poemas nos intervalos. “No começo, alguns estranhavam essa coisa de poesia sem ritmo no show, mas a gentileza deles sempre imperava e acabavam deixando”, diz ao comentar que o público achava estranho, mas que, mesmo assim, peregrinou por diversos shows nas periferias do Brasil. “O tiozinho da poesia está aí, deixa ele falar uma poesia”, acrescenta sobre o modo como se referiam a ele. Após assistir a uma entrevista sobre a rádio Rocinha, no Rio de Janeiro, Sérgio entrou em contato com eles para falar sobre o seu trabalho, e que também queria conhecê-los. Jocelino, dono da rádio, aceitou a proposta, e o poeta, junto aos amigos Edu Toledo e João do Said, partiu para a maior favela do país. “Levei uns 2 mil cartões e marcadores, mais 50 camisetas com a minha poesia para presentear os amigos do morro. Ficamos amigos de várias pessoas e prometi que voltaria para lançar um livro”. E assim foi feito. Logo em seguida, após lançar o livro “Pensamentos Vadios” em Taboão da Serra e em São Paulo, ele foi à Rocinha cumprir a palavra. “Dessa vez fui só. Chegando lá, eu e o Jocelino armamos uma mesa com o livros e estendemos umas camisetas ao lado de uma banca de jornal, bem no meio do morro, e ficamos ali distribuindo cartões e oferecendo poesia”. Sua amiga e
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editora da revista Raça, Amélia Nascimento, mandou uma repórter para cobrir o evento. Na matéria saiu o título “Poeta da periferia”. O tiozinho da poesia também havia ficado pra trás. Nessa época, Sérgio ainda idealizou a primeira edição da Cooperifa em um galpão na BR-116, unindo diversos artistas da periferia. E essa foi só a primeira de muitas que viriam. Em 15 de julho de 2004, o poeta lançou mais um livro: A Poesia dos Deuses Inferiores, que ele considerou uma biografia básica da periferia. “Na verdade o livro era pra ser uma revista sobre história de pessoas que cruzaram o meu caminho ao longo dessa vida. História de gente simples da periferia. Uma revista poética com ilustrações e letra bem grande pra facilitar a leitura da molecada”, comenta sobre a idéia sugerida pelos jovens que conheceu nas escolas públicas durante o projeto Poesia Contra a Violência. O livro foi uma retomada de sua poesia de protesto. “Era muito mais agressiva e bem alinhada com o rap, com quem, há muito tempo, vivia flertando. Também era um livro de homenagens às pessoas em quem eu sempre acreditei”, observa. Em dezembro de 2006, quando lançou seu quarto livro, o Colecionador de Pedras, Sérgio já havia firmado a Cooperifa como o grande quilombo cultural da periferia. Em 2008 também foi lançado Cooperifa – Antropofagia Periférica, em
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que ele conta a sua história e a do sarau, que se misturam a todo o momento. E assim, tocando a vida das mais diversas pessoas que cruzaram seu caminho, ele influenciou a todos com o seu ideal de uma periferia criativa, que escreve histórias e faz sua própria mudança, quando quer e sem pedir licença. Afinal, como diz o poeta Vaz “ler faz enxergar melhor”.
Antiga fachada do Bar do Zé Batidão
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A musa da Cooperifa “Sou branca Sou negra Sou guerreira Sou mulher brasileira.” Rose Dorea “Aquariana com ascendente em libra e lua em escorpião”. Ainda é filha de Iansã¹, e uma “filha da puta”, como diz em um de seus poemas. Cheia de gingado e com a voz forte que lembra as grandes cantoras do soul, ela é Rose Dorea, a musa da Cooperifa. Mas o título não é só pela beleza, porque, além disso, ela tem atitude. E muita. É negra guerreira, que esbanja vitalidade. Filha e neta de baianos, Rose é paulistana, nascida em 25 de janeiro, dia do aniversário de São Paulo: “a cidade parou para eu nascer”, brinca. Da infância a idade adulta, a forte ligação com o pai sempre foi uma marca. Tanto que, na primeira série do Ensino Fundamental, foi estudar em um internato por querer cuidar dele, que passava por um período difícil devido ao alcoolismo. “Eu tinha muita dificuldade em estudar nessa época, porque ele passava mal e eu queria ficar ¹ Figura presente em religiões africanas, Iansã é conhecida como a Senhora da Tarde, dos Raios e das Tempestades, além de ser considerada a Dona dos Espíritos.
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com ele”, lembra. Sua vida profissional começou cedo, aos 13 anos, por isso conheceu diversos ramos. De manicura a recepcionista, também foi vendedora e administradora. Hoje, gostaria de fazer Direito e ser promotora. Advogada nem pensar. Defender culpado é algo impossível para ela. “Acho que todo mundo merece defesa, mas eu não conseguiria defender uma pessoa que estuprou uma menina ou matou um pai de família”. Rose impõe presença, é do tipo que “chega chegando”. Na Cooperifa, ajuda a colocar ordem na casa e é uma das grandes conselheiras de Sérgio Vaz. “A nossa história é muito maluca. Eu fazia produção de sons num bar, no Parque Pirajussara. Aí o Sérgio veio morar perto da casa de um grande amigo meu, o Rubinho. Eles acabaram se conhecendo e o Rubinho começou a levar o Sérgio no bar”, explica. Amiga do fundador da Cooperifa desde 1997, a história da amizade entre os dois começou mesmo em uma viagem. “Ele ficou muito ruim, com um problema na coluna. Então ficamos eu, a minha irmã e outra amiga tomando conta dele. E fomos pegando amizade”, lembra, relatando que, na mesma época, ficou desempregada e sua mãe faleceu. “Ele me deu a maior força. A minha mãe faleceu aqui em São Paulo, e ele cuidou de tudo, do cemitério, de tudo”, emociona-se. Daí para frente, a amizade foi criando raízes. Ao lado
de Sérgio, que trabalhava com campanhas políticas em Taboão da Serra, Rose arrumou uns bicos e ganhou muito lanche graças ao fã-clube do amigo. “Eu conheci todas as namoradas dele e comi muito de graça”, diverte-se ao contar que as moças costumavam sair com ela só para se aproximarem do poeta. A musa também foi uma das participantes das Quintas Malditas, noites poéticas sem compromisso, mas que serviram de inspiração para a criação da Cooperifa. “A gente sentava para beber, daí chegava um, chegava outro... Um dia o Sérgio disse: vamos fazer uma poesia. Uns faziam teatro, outros cantavam, mas eu só assistia. Nunca tinha feito teatro ou poesia”, conta. Seu primeiro poema foi escrito após uma morte. Ao conversar com um amigo, o Wagnão, sentiu inspiração, chegou em casa e escreveu. Sem hesitar. Intensidade Além do que devia SONHEI Além do que devia BUSQUEI Além do que devia SOFRI
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Além do que devia SENTI Além do que devia PENSEI Além do que devia FALEI Além do que devia GRITEI Além do que devia FRAQUEJEI Além do que devia FIZ Além do que devia AMEI Além do que devia A criação veio de dentro e define muitos aspectos da personalidade da musa. “Eu acho que tem muito a ver comigo. Sou muito intensa. Não sei ser amiga pela metade, mulher pela metade, não sei trabalhar pela metade, sempre fui muito agitada. Eu escrevi isso, não sei nem explicar como... Sei que tem a ver com a morte, com o Wagnão e comigo. É a minha cara”, diz.
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Nova vida, novo sonho Participar da Cooperifa deu um novo gás a Rose, que voltou a estudar e terminou o colegial. Para não perder os saraus, conseguia dispensa das aulas às quartas-feiras. “A professora começou a me liberar, e minha irmã ficava indignada, porque estudávamos na mesma sala”, observa. Junto aos cooperiféricos desde o início, a musa sente-se cada vez mais parte do quilombo cultural. “E não adianta falar que eu sou mais uma na Cooperifa, porque eu não sou. Eu sou da linha de frente, eu me reporto ao Sérgio e ele a mim, muita gente espera que eu resolva os problemas”, destaca. Mas apesar de ser dura quando precisa, revela que é muito mãezona. “O Sérgio já pegou no meu pé com isso. Eu confundi um pouco as coisas, achando que tinha que ajudar a vida dos outros. Mas aprendi que não tenho que tomar conta de outros problemas. Isso é mal de aquariano!”, brinca. Seu jeito muitas vezes intimida. E ela ainda garante que é difícil deixá-la com medo: “eu sempre tive vontade de homem”, revela, ao comentar que já quis fazer boxe e até ser policial. Pra fazer jus à fama de durona, conta que já bateu até em homem: “o único que me dá umas é o Sérgio. Só. Eu tenho a personalidade forte, então é difícil alguém me deixar com medo, acuada ou inibida”. Mas por trás da figura que impõe, há uma Rose tímida
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e muito sensível. Quando quebrada a primeira impressão, surge a companheira para todas as horas, sempre pronta para ajudar. Para desmanchá-la, basta falar em relacionamento mal resolvido, crianças ou idosos. Família é outra história, já que sua noção sobre o assunto é diferente: “Eu tinha uma diferença com a minha mãe, mas normal. Mas meu pai era minha vida”. E ao falar do pai, ela finalmente mostra toda a sensibilidade. Com os olhos cheios de lágrimas, conta que ele faleceu aos 70 anos. Fã de Cecília Meireles e Arnaldo Antunes – “aquele que me dizem que não é poeta” -, Rose prefere escrever a ler. E mesmo com dificuldade para a leitura em público, ela não deixa de assumir o microfone em dias de sarau. Para isso, usa a memória, decorando os textos. Mas ainda assim carrega o livro junto: “ele me dá segurança. Sem ele eu não consigo”. Mesmo com a identidade afro exposta nos cabelos, roupas e adereços, a musa não quer saber de rótulos que envolvam etnia. Quando o assunto é preconceito racial, ela defende sua opinião com unhas e dentes. “Lembro que antes eu era muito chamada para debates de negritude, mas não gosto. Primeiro que adoro brancos... Meu pai era branco! Então não vem falar pra mim que eu não posso namorar branco, como cheguei a ouvir lá”. E assim surgiu seu poema “Sou branca. Sou negra. Sou guerreira. Sou mulher brasileira”.
Para ela, não existe cor, mas o caráter como um todo. “O que interessa pra mim é o ser humano... Então a cor pode ser branca, preta, azul, vermelha, roxa, lilás... Tanto faz”, diz convicta, destacando que o negro precisa se impor, mesmo já tendo sido vítima do preconceito. E ela sabe muito bem o que é sofrer racismo. Com cerca de 17 anos, à pedido da agência em que trabalhava, Rose foi levar um pagamento a uma empresa. Ao chegar lá, o segurança a impediu de entrar dizendo que ali negro não entrava. Ela então revelou que trazia a remuneração dos funcionários, botou ordem e disse que, se não entrasse, eles ficariam sem dinheiro. O constrangimento foi total. “Me arrependo até hoje de não ter processado aquela empresa, mas eu era muito nova”, observa. Mesmo assim, uma coisa ficou clara: atitude de musa, ela já tinha desde cedo. Rose ainda assume ser contra as cotas raciais em faculdades. Ela acredita que a iniciativa é uma simples forma de retratação pelo fato de os negros não terem o mesmo acesso à educação. E destaca que essa é uma maneira de dizerem que não são capazes de estudar como os brancos. Polêmicas à parte, ela prefere guardar algumas de suas opiniões para si, pois está ciente do barulho que causam. Hoje, Rose diz que seu maior sonho é poder trabalhar só na Cooperifa. Grávida, não está gostando muito da ideia de se afastar dos saraus quando o bebê nascer. “Já estou
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providenciando comprar um carro, para levar a neném. Fora que eu vou, mas não vou poder ficar até mais tarde. A gente fica bebendo, conversando, e é diferente quando tem uma criança”, comenta. Cheia de atitude, opinião e sentimentos, a musa sempre deixa transparecer a admiração que sente pelo amigo Sérgio. Ao comentar sobre o trabalho desenvolvido pelo cooperiférico, comenta que não sabe como ele conseguiu contagiar a tantas pessoas com o seu sonho. “Acho que a forma como o Sérgio conduz as coisas é o maior referencial da Cooperifa. Tem hora que eu olho pra ele e fico pensando... Sabe que ele não acredita em Deus, né? Ele me põe nessa dúvida, se Deus existe. Por que um cara que não acredita em Deus conseguiu fazer com que 70 pessoas sonhem o sonho dele, e ainda conseguir mudar a vida de algumas pessoas. Tem que ter alguma coisa, não é?”, diz, deixando revelar que acredita em alguma ligação do companheiro com um plano transcendental. Ao comentar sobre como Sérgio mudou a cara da periferia, também acrescenta que ele a fez melhorar em muitos sentidos. Com novas visões e “um pouco menos folgada”, ela mostra como a cumplicidade entre os dois é forte. Por isso Rose também se deixou levar pela causa que conduz a vida do amigo. E apesar de aprender o significado da palavra tolerância, revela: “sou abusada mesmo”. Mas ela pode, afinal é a musa da Cooperifa.
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MARGEM OESTE
Aos pés do Pico do Jaraguá Em meio à Marginal Tietê, a entrada para a Rodovia Anhanguera é sinalizada. O caminho está há tanto tempo em obras que ninguém se lembra ao certo. O destino é o extremo oeste de São Paulo e, bem nas encostas, quase beirando a zona norte, ergue-se o distrito de Pirituba. Com 74 bairros onde vivem cerca de 160 mil pessoas¹, o distrito guarda uma diversidade de sotaques e classes sociais. A zona oeste esconde muitas histórias. De qualquer lugar do distrito pode-se enxergar o Pico do Jaraguá e suas antenas de TV. É o ponto mais alto da capital paulistana. Aos pés do Pico, encontram-se duas aldeias indígenas, a Tekoa Ytu e a Tekoa Pyau, com cerca de 450 guaranis. É possível ver os índios circulando pelas feiras livres locais, pedindo doações de alimentos ou vendendo artesanato. Também se fala que existiu um quilombo na Vila Mangalot, o primeiro da cidade de São Paulo, herança de escravos fugitivos das antigas fazendas da região. As pesquisas para comprovar sua existência estão sendo conduzidas pela Prefeitura de São Paulo. Quilombolas ou não, a presença negra é forte em Pirituba, tanto que o samba corre solto na quadra da Escola de Samba Prova de Fogo e no bloco de ¹ IBGE 2000
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carnaval Vovó Bolão. Outros filhos de Pirituba preferem o rap, como o pessoal do grupo RZO², famoso na região. Entre os morros e vielas, o bairro também guarda poetas e um sarau. A chuva inunda os buracos da Anhanguera, mas não impede que o caminho desemboque no objetivo: Jardim Monte Alegre. Ao desviar de uma dezena de caminhões, surge a Estrada Turística do Jaraguá. Com suas curvas serpenteantes, chega-se a um ponto que parece ser mais distante do que o objetivo. Mas logo é avistado um bar e um rapaz à frente, com a informação de que o destino já havia ficado pra trás. Uma manobra arriscada e finalmente a rua é encontrada. - Já passou, faz a volta. - É ali. Chegamos.
² RZO (Rapaziada da Zona Oeste) é um famoso grupo de rap que surgiu em 1985.
ELO DA CORRENTE
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A união dos elos da corrente Percorrendo a Rua Jurubim, veem-se casinhas de tijolos vermelhos sem reboco, com vista para um córrego e uma pequena ponte. No número 788, um boteco passa quase despercebido. Mas não é um bar qualquer. É ali que se encontra o reduto da poesia em Pirituba. O Bar do Santista tem cerca de 30m², onde um pequeno balcão divide espaço com algumas mesinhas encostadas na parede. A recepção é calorosa e logo são oferecidos uma cerveja e um sorriso. “Pode ficar à vontade”, diz o radialista Santista, dono do local. As paredes de madeira ostentam um mosaico de informações. Camisetas de futebol, um pôster do time do Santos e uma foto do poeta Patativa do Assaré dividem espaço com cartazes sobre eventos culturais, calendários e imagens de santos. Atrás do balcão fica uma chapa de lanches, salgadinhos pendurados, garrafas, troféus e um oratório reservado a Nossa Senhora Aparecida. No lado esquerdo do balcão, há uma estante recheada de livros que podem ser manuseados à vontade. É a biblioteca comunitária do sarau, criada com doações do coletivo Elo da Corrente. Em frente ao caminho que leva ao banheiro, um microfone é montado para ser palco das intervenções poéticas. Atrás dele, uma faixa dá o recado aos desavisados:
“silêncio, respeite o nosso poeta do sarau”. Mais pessoas chegam ao bar,sempre se cumprimentando. O pequeno espaço favorece o clima entre amigos. Uma cerveja é aberta e quando o relógio marca 20 horas, um grupo canta a música que inicia mais um sarau do Elo da Corrente. “Tambor, tambor, vai buscar quem mora longe. Vai buscar todos os poetas pra falar no meu sarau”, diz a letra, sem instrumentos, mas com palmas que dão o ritmo. Michel da Silva, um dos fundadores do sarau, assume o microfone, saúda os ouvintes da rádio Urbanos FM, que transmite o sarau ao vivo, e agradece aos poetas da noite. “A gente aqui representa nadar contra a maré. Num ambiente como esse, a gente poderia estar em casa. Está chovendo, mas a gente se propõe a vir aqui para ouvir e ser respeitado. Praticar a humildade. A luta é vir aqui todo dia, colocar a leitura no bar”, diz para abrir a noite. O discurso é aplaudido e, com entusiasmo, ele chama o primeiro poeta: José Corrêa, um senhor de 71 anos que cresceu na Bahia. Ele começa a cantar um cordel em voz baixa: “São Paulo é muito bom. Não tem o que falar. Mas deixei a minha terra. Vim aqui pra trabalhar. Agora morro de saudades, por isso quero voltar”. O próximo a entrar é Vagner Sampaio. O representante do Sarau da Brasa anuncia o evento de lançamento do livro Coletivo 8542, coletânea de poesias do grupo. Então puxa de
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memória uma criação de Manuel Filó, enquanto caminha pelo estreito corredor do bar. “A prisão é sinistra, amarga e fria. Do velório tem pouca diferença, não conheço quem vai pedir licença, para entrar no portão de uma cadeia”. Sua voz é grave e a performance tem energia, fazendo com que os olhares se voltem para o rapaz. No canto direito do balcão, Azulão, cliente antigo do bar e senhor de poucas palavras, observa a movimentação. Sempre nos saraus, ele degusta uma dose de pinga, em silêncio. Vez ou outra, solta algumas risadas. “O Azulão é um cara simbólico aqui. Todo sarau tem uma figura. É o cara que sempre está ali”, comenta Santista. Após a entrada de Vagner, Osmar Proença é chamado. Capoeirista, o jovem entra com um berimbau, começa a tocar o instrumento e puxa uma cantiga de capoeira: “vou para a Bahia, ôoo Bahia. O senhor do Bonfim já mandou me chamar, ôo Bahia. Berimbau ta tocando, é a roda chamando, ôo Bahia”. Todos acompanham com palmas. Sidnei das Neves, também do Sarau da Brasa, anuncia uma ação do projeto Espremedor que propõe uma intervenção com 25 grafiteiros nos becos da Brasilândia, zona norte da capital paulista. E logo manda uma poesia de Marcelino Freire. Em seguida, Lydis, representante do Sarau da Ademar, cumprimenta a audiência no microfone: “axé!”. Com tom de voz sério, declama suas palavras inquietas:
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E você, o que faz? É tudo tão etéreo, errante e veloz. E você, o que faz? Perde-se em meio ao sistema, ou assume o que é? A polícia trabalha com a lógica de que ela vive uma guerra, tendo que abater. Quando a polícia brasileira foi criada, a sua principal função era bater ajuntamentos, quilombos escravos. O que esperar de um país que mata a sua população na idade mais ativa? E o que eu tenho a ver com isso? O que você, você e você têm a ver com isso? Quem lucra com essas mortes, a indústria de fardas? A indústria de armas, os cemitérios, as funerárias? Quem policia a polícia? Onde estão os negros na história? Onde está a história? Quem policia a polícia?” Paulinho, também do Sarau da Ademar, agradece as boas-vindas: “que vida dura, marmita sem mistura, pegar busão lotado, cheguei encoxado, cheguei atrasado... Por que tudo deu errado?” diz, e pergunta ao final “mostre-me uma solução!”. Paulinho veio da Cidade Ademar, zona sul, de
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ônibus, num trajeto que chega a durar duas horas. Mas o esforço compensa: “não tem distância que paga isso aqui”, enfatiza. Michel entra e lê a poesia de um aluno de suas oficinas na Fundação Casa. “Saudades. Uma palavra que verdadeiramente tem um significado muito forte. Que machuca profundamente o mais íntimo do coração. Às vezes todo esse sentimento, esse sofrimento, nos faz expressar em lágrimas, em lágrimas. E nem sempre as lágrimas saem dos olhos e escorrem pelo rosto. Tem vezes que ela sai do coração e escorre pela alma”. O texto provoca silêncio. Mas Michel consola a platéia e avisa que o aluno já saiu da antiga Febem. Inspirado no poema Trem Sujo da Leopoldina, do poeta Solano Trindade, Michel ainda faz sua adaptação do texto. Com um ritmo de fala que lembra os movimentos e apitos de uma locomotiva, deixa soar pelo bar: Trem sujo de Pirituba correndo, correndo, parece dizer: tem gente com fome, tem gente com fome, tem gente com fome. Tantas caras tristes, querendo chegar a algum destino, em algum lugar. Trem sujo de Pirituba correndo, correndo parece dizer: tem gente com fome, tem gente com fome, tem gente com fome. Só quando vai chegando às estações, lentamente parece
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dizer: tem gente com fome, dá de comer, tem gente com fome, dá de comer. Mas o freio de aço, o freio de aço, todo autoritário, manda o trem calar: shhhhhhhhhhhhhhh. Boa viagem. Santista sai do balcão e assume o microfone para dar um recado aos poetas: “amigo locutor, muito cuidado na palavra, certos dizeres ofendem a nossa ética”, referindo-se ao uso de palavrões em alguns poemas, que poderiam incomodar aos ouvintes. Então recita um texto que criou em homenagem ao CEU. O ator Divino entra para refletir sobre um episódio da semana anterior que deixou todos chateados. Uma grande emissora de TV havia filmado o sarau, entrevistado pessoas e, no final das contas, mudou a pauta para mostrar um outro sarau, no centro, muito longe das questões sociais abordadas pelo Elo da Corrente. “A gente não tem problema aqui, a gente não tem necessidades, certo? Aqui não há conflito... Então, pra mim, essa experiência foi uma forma da gente se fortalecer. Eu acho que a gente ganhou, por isso vou ler dois textos que têm a ver com isso. Neste espaço da democratização da palavra, onde a gente se encontra, pra fortalecer nossa identidade”, e recita palavras de Soninha M.A.Z.O, poetisa local.
Quem é você, descendente de alemão? De que lado você ta? Segura a peteca meu irmão. Quem somos, de onde viemos? Descendente de negro. Estamos do lado de cá. Lado a lado. Pra não deixar tudo como está. Quem sou eu? Pernambucano, nordestino, paulista e brasileiro. Filho de paulistano, descendente de mineira, estamos juntos do mesmo lado. Logo depois puxa “Quilombo” de Raquel Almeida: “aqui minhas forças se renovam. É aqui que eu quero ficar. Quilombola eu sou, oiá, oiá... Em teu ventre fui gerada! Quilombo... Terra de pretos e pretas, griôs. Terra do povo que da África desembarcou. Agora é um quilombo moderno. Lugar onde seus filhos trazem caneta e caderno. Pra escrever nossa história. De um ponto de vista diferente. Somos crias dos quilombos. E aqui lutamos bravamente.”. Seu Oswaldo, outra figura registrada do sarau, vai até a frente com sua bengala e o balanço de negro experiente. Um pedaço de papel dá vida a palavras escritas à mão: “a vida do
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pobre é metáfora da morte. O seu salário é como se dizia, é uma esmola. O seu patrão é metáfora de carrasco. A polícia é metáfora de bandido. O político é metáfora de ladrão. O governo é metáfora de desmando. O ensino é metáfora de prejudicial à pedagogia. A assistência médica é metáfora de afronta à saúde. O Brasil é metáfora da metáfora.”. Seu Edson, amigo de Seu Oswaldo e viajante de primeira no sarau, agradece as boas-vindas: “esse tipo de iniciativa eu entendo que é genial. Vocês estão de parabéns, realmente é um trabalho fantástico. Essa mobilização é extremamente positiva”, diz o professor do SENAC, destacando a felicidade de ver um de seus antigos alunos declamar naquela mesma noite. Raquel vai ao palco de modo incisivo: “eu quero que todo mundo mantenha silêncio. Tem que respeitar os poetas que vêm recitar. Lembrei dessa poesia do Michel, por vários motivos”, e fala Sentimento, de modo emotivo. No improviso, ela junta o poema com a música “Canto das três raças”, de Clara Nunes: “E de lá cantou. Negro entoou. Um canto de revolta pelos ares. Do Quilombo dos Palmares. Onde se refugiou”. Um pandeiro surge de um canto para acompanhar, e Seu Oswaldo logo começa a exibir passos de dança. Todos cantam juntos, em coro. Então Raquel emenda outra poesia de Solano Trindade, criando uma atmosfera coletiva de
identificação: “sou negro. Meus avós foram queimados. Pelo sol da África. Minh’alma recebeu o batismo dos tambores atabaques, gonguês e agogôs. Contaram-me que meus avós vieram de Luanda. Como mercadoria de baixo preço, plantaram cana pro senhor do engenho novo e fundaram o primeiro maracatu”. Douglas Alves, estudante de Ciências Sociais, assume o microfone e canta a letra “Se Zé Limeira sambasse maracatu”, da banda recifense Mestre Ambrósio. Ele encarna um sotaque nordestino e dança, com o gingado que lembra um brincante de roda. “Vi Zé Limeira descendo do firmamento. Vi Zé Limeira descendo do firmamento. Um batalhão de jumento. Vinha tocando corneta. Mais de cem anjo perneta. Celebrando um casamento”. Ao parar de cantar, emenda: “tu tem toda a malícia... E eu devia estar doente quando me apaixonei por ti. Sai de mim, por favor, que eu, eu não quero o seu amor”. Ensaia um passinho romântico e todos riem. É a vez de Élcio de Souza, que começa explicando o motivo pelo qual ainda não terminou o poema que irá declamar: “nunca digo nada do que faço, porque parece que nunca está pronto. Que bom que não está pronto, porque eu também não estou pronto. Eu estou acontecendo ainda”. E emenda: “curvas, curvas douradas brancas. Solares, curvas azuis, suingue de blues. Curvas leves, lúdicas, sinuosas, sutis, deliciosas, letais. Curvas rasas, óbvias, pérolas belas, cariocas
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Niemeyer”. Os ruídos de conversa aumentam quando Michel posiciona-se no microfone. Segurando sua filha nos braços, fica parado, estático e em silêncio. Alguns segundos depois, o grupo finalmente se cala. Enquanto os poetas se revezam no palco, o cheiro de pipoca exala da cozinha. Logo um balde com pacotinhos do quitute é distribuído a todos, como cortesia da casa. O sambista Carlão é convidado para cantar. “Opa, dá licença, dá licença rapaziada”, diz cheio de graça, com timbre de voz inconfundível. Então pede a Santista para anunciar a mensagem que gostaria de transmitir a todos. O radialista, com voz de locutor, lê o pedaço de papel com um convite para a final da escolha do samba-enredo do Grêmio Recreativo Prova de Fogo: “hoje a nossa escritora do sarau, Alice Rodrigues, defende o samba enredo Carnaval Caipira com muita garra!”, finaliza sob aplausos. A poetisa e cabeleireira Alice Rodrigues despertou o gosto pela palavra no sarau, e agora também exerce seus textos em composições musicais. Então Carlão, veterano do samba em Pirituba e boêmio convicto, improvisa o batuque e puxa uma música, com voz de bamba profissional: “Amélia não tinha a menor vaidade, aquilo é que era mulher de verdade.” Osmar pega o berimbau para acompanhar. É a vez do rapper Mano Merenda, e todos pedem
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silêncio. Então ele manda um rap, um dos muitos que já escreveu no auge dos seus 20 e poucos anos. “Viver da alegria, faz parte da minha história. Sou a lei da poesia, o grito que estoura. Merenda, zona oeste, sangue bom a toda prova. O rap é o som, periferia é a força. Ladrão, polícia, maldita vida loca. Aqui tudo faz parte, quem é cliente acesse o site: www. peitoarmadonocombate”. Divino volta para encerrar a noite. Fecha os olhos e declama um texto do dramaturgo Zebba de Farra, que fez parte de um espetáculo teatral do Grupo dos Sete. Suas mãos se abrem como uma reza, para recitar a sua oração. Ave-maria, cheia de graxa, o senhor é fumaça, bendito shopping center, sabão em pó, detergente. Carro, ponte, prédio, cruz. Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora. Ághora. No chão da cidade, ruas escondem almas, almas da raça humana batem palmas. Ave-maria, cheia de grana, o senhor é fama, bendita miséria, caridade, servidão, preto pobre jesus. Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora. Ághora. Dindindin dinheiro, dinheiro, dinheiro, granaa, raça humana quer grana.
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Debaixo dos automóveis se escondem rios, rio do sono, maçambu, rio bonito, rio azul. Rio da galera, peixe de couro, Anhangabaú, rios desesperados calam. Beco sem saída, beco sem saída. São quase 23 horas e algumas pessoas se apressam para pegar o ônibus. O sarau então se encerra. Na porta, despedidas: - Eu tenho enfisema e não podia estar aqui a essa hora -, diz Élcio de Souza entre conversas sobre fotografia e filosofia. Ao entrar em contato com a câmera digital profissional, um talento adormecido é revelado: - A foto sai no tempo do clique. Esse que era o problema... Aquelas câmeras normais demoram, daí eu desanimei. Agora posso voltar a fotografar! Na rua ainda há ônibus lotados, cultos de igrejas evangélicas e estudantes apressados para chegar em casa. “Têm pessoas que atravessam a cidade para vir aqui ao sarau. Querem sentir e comungar a palavra com a gente. Há anos atrás, tinham medo de vir aqui, mas a gente criou uma referência diferente”, conta Michel. A despedida é calorosa, e mais parece um “seja bemvindo”. E é mesmo. Porque na comunidade tem espaço para todas as cores e histórias.
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Poesia piritubana Nas paredes, um lençol branco é pendurado de uma ponta a outra. Nas texturas do tecido, imagens do cantor Fela Kuti¹ são exibidas por meio de um retroprojetor, improvisado em cima de uma mesa de bar. A cena pode não se repetir, pois cada sarau é diferente. Lugar de poesia, mas também de debates, música, teatro e exibição de filmes, desde 2007, todas as quintas-feiras, o encontro abre suas portas para o público, reunindo de 20 a 40 pessoas por noite. Promovido pelo coletivo de nome homônimo, formado por 10 pessoas (entre eles Soninha M.A.Z.O, João do Nascimento, Alice Rodrigues e Divino Silva), o encontro só não acontece na última quinta do mês ou em dia de feriado. O sarau é mais um dos reflexos do envolvimento de seus fundadores, o casal Michel da Silva e Raquel Almeida, com a cultura na periferia e o desejo de fazer a diferença em sua comunidade. Tudo começou em 2006, época em que os dois comandavam o programa Voz da Periferia, na rádio comunitária Urbanos FM, em que falavam sobre música, cultura, meio ambiente e política.
¹ Fela Anikulapo Ransome Kuti foi um músico e compositor nigeriano. Pioneiro da música afrobeat, destacou-se também como ativista político e dos direitos humanos.
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“Nesses encontros, a gente tinha um anseio maior para que esses debates não ficassem apenas na rádio, que fossem de alguma forma pra fora dali. Começamos a pensar em como fazer isso”, conta Raquel. Então decidiram que era o momento de conhecer algumas experiências bem sucedidas. Após visitarem a Cooperifa e os projetos do escritor Alessandro Buzo, inspiraram-se para fazer algo parecido em Pirutuba, com o objetivo de valorizar a comunidade, difundir a literatura, o respeito e a autoestima. O pontapé inicial foi dado em 2007, quando Michel quis fazer uma festa de lançamento do seu primeiro livro, Desencontros, e Santista, dono do bar em que os saraus são realizados, topou ceder o espaço para o evento. A divulgação foi feita na Urbanos FM, que funciona no andar de cima do estabelecimento. Naquele ano, na noite de 14 de junho, acontecia o primeiro sarau Elo da Corrente, com o casal à frente do microfone. Raquel conta que ficou apreensiva, com medo de que não aparecesse ninguém. Mas, aos poucos, chegaram um, dois, três, dez poetas. Entre eles, os amigos rappers do Alerta ao Sistema e as poetisas Soninha M.A.Z.O e Alice Rodrigues. “A sensação foi de alívio e de superação, sabe? Até porque parece que a gente começa um negócio e duvida da nossa capacidade”, revela Raquel. No encerramento, um anúncio surpresa: na próxima quinta-feira outra edição iria
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acontecer. No início, as pessoas estranharam o formato do sarau, mas aos poucos foram se apropriando da palavra. “Sarau é uma palavra que não é do nosso convívio. São Paulo tem uma tradição de sarau, mas onde? Em outros espaços... Na periferia em si, o que tava mais ligado a essa oralidade da poesia eram as rodas de samba, os shows de rap, alguma coisa nesse sentido, mas nada que pudesse dar visibilidade exclusiva para a poesia falada”, explica Michel. As primeiras edições do Elo da Corrente não alcançaram repercussão imediata. Até o evento se firmar e ganhar público, o casal passou muitas noites recitando um para o outro. A transmissão ao vivo pela Urbanos FM aconteceu seis meses depois, sendo necessário apenas um cabo para a transmissão por ondas de rádio. Logo apareceram caras novas no Bar do Santista. Depois do sarau, outros projetos vieram. “A gente começou a conhecer as pessoas que escreviam, e as que passaram a escrever ali”, conta Raquel. Os textos autorais dos poetas apareciam cada vez mais. A partir da experiência do selo Toró Edições, decidiram montar um projeto para acessar os recursos do VAI. O projeto foi aprovado e o selo editorial Elo da Corrente Edições foi criado. Em 2008, seis livros foram lançados: Sarau Elo da Corrente – Prosa e Poesia Periférica (antologia), Caminhos e
Emoções, de Alice Rodrigues, Cordéis e Poesias para Cantar, de João do Nascimento Santos, Fragmentos Noturnos, de Claudeni dos Santos, Duas Gerações - Sobrevivendo no Gueto, de Raquel Almeida e Soninha M.A.Z.O, e Prosas de Buteco, de Cláudio Santista e Paulinho Bispo. A Biblioteca Comunitária Elo da Corrente foi o próximo passo. No início era abrigada num espaço inusitado, o Só Cabelos, salão de beleza onde a poetisa e cabeleireira Soninha M.A.Z.O trabalhava. Quando ela trocou de emprego, a biblioteca foi transferida para o Bar do Santista. Atualmente o acervo conta com mais de 500 livros, entre publicações didáticas, fanzines, livros clássicos e de literatura periférica. As obras são catalogadas e emprestadas gratuitamente. O coletivo também promove palestras, oficinas, saraus em escolas e festas na comunidade, como a Festa dos Ibejês, realizada no Dia das Crianças, em que, numa praça ao ar livre, o grupo distribui doces e conta histórias para os pequenos. Apesar do pouco tempo de vida do projeto, Michel já consegue enxergar algumas mudanças nas pessoas que frequentam regularmente o sarau. “As pessoas se reconhecem e valorizam mais o seu jeito de falar, a sua forma de lidar com a sua natureza. Pensar que hoje as pessoas falam de periferia, não mais exaltando a miséria, falam: a gente é daqui da periferia e é da hora por causa das pessoas, mas não pra ver esgoto a céu aberto...”, comenta. Mais do que um evento,
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Santista
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o sarau Elo da Corrente está registrando a história de sua própria comunidade. “A história já está escrita, pelos nossos próprios punhos”, encerra Michel. Profissão de fé Uma atriz nua, pintada com tinta branca. Ao som de cantos indígenas, as pessoas são convidadas a pintar em seu corpo uma palavra que defina a comunidade com que sonham. A atriz representa um totem indígena, um espaço sagrado onde a esperança coletiva é depositada. Essa cena faz parte da performance Jaraguá “Senhora das Utopias”, realizada no sarau Elo da Corrente pelo grupo de teatro Parabelo. Tendo como cenário o Bar do Santista, a cena foi a que mais marcou Cláudio Ciríaco, 54 anos, o dono do local que leva seu apelido e que também abriga o sarau. Santista é tio de Michel da Silva, um dos idealizadores das noites poéticas, e não hesitou quando, há dois anos, seu sobrinho lhe pediu para que a iniciativa fosse realizada ali. “Ele é o sobrinho que todo mundo gostaria de ter”, rasga em elogios. Desde que o evento começou em seu estabelecimento, ele acredita que o lugar ficou mais conhecido. “Tem quem venha de longe para estar aqui. E o pessoal do bairro já acostumou, tem gente que passa só para perguntar se vai ter sarau hoje”, conta.
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O Bar do Santista é um boteco simples e a maioria dos seus clientes são senhores do bairro, que cumprimentam o dono pelo nome. Em noite de sarau, o lugar dá espaço a poetas, músicos, vizinhos ou amigos que, numa pausa para tomar uma cerveja e ouvir poesia, aparecem para socializar. “Ser dono de bar é um estresse concentrado. Aqui entra do sábio ao não-sábio. Mas o tratamento é o mesmo, pois todo mundo é bem-vindo”, diz. Por trás do balcão, Santista já viu todo tipo de gente, por isso acredita que o mais importante para um dono de bar é entender de psicologia. Seu segredo é ter paciência e prestar um bom atendimento. Mas também sabe ser bravo quando necessário, principalmente com aqueles que se excedem no álcool. Além de cuidar dos clientes tradicionais, ele também faz o papel de bibliotecário da Biblioteca Comunitária do Elo da Corrente, que fica instalada no próprio bar. Responsável pelo atendimento ao público, ele explica que “aqui tem um caderno para anotar quem pega o empréstimo, o prazo pode ser de uma semana a 15 dias”. Quando o prazo vence, muitas vezes Santista busca o livro na casa da pessoa. O público que retira os livros varia de adultos a crianças, e os títulos mais procurados pela comunidade são os de poesia e literatura espírita. Às vezes, Santista se surpreende com os pedidos. “Tem uma freguesa, de apenas nove anos de idade, que veio e disse: tio, você tem alguma coisa sobre o sol? Não
sabia, mas fucei vários livros e achei um. A gente está aqui para contribuir”, enfatiza. Alô, ouvintes! Sem tempo ruim, o sol parece brilhar na vida de Santista, um sujeito calmo, bem humorado e carismático. Além da esposa e os dois filhos, ele tem outras duas paixões: o time de futebol do Santos e a rádio comunitária Urbanos FM. A sede da rádio fica no segundo andar do bar, o que facilita na hora de exercer suas duas profissões ao mesmo tempo, sem conflitos. “A rádio pra mim é uma grande glória”, conta o radialista sobre a sua menina dos olhos. Locutor e responsável pela programação, ele faz um programa ao vivo, todas as tardes, com transmissão de notícias locais e um variado cardápio musical, com preferência para o sertanejo e o pagode. O espaço comunitário começou sem grandes pretensões: “surgiu de uma brincadeira, não tinha nenhuma rádio pirata no bairro e aí a gente decidiu fazer”. O ano era 1995 e Santista, junto ao seu irmão Milton Ciriaco, decidiram criar a rádio Blue Star FM, que anos depois se tornaria a Urbanos. Como a maioria das rádios comunitárias, a Urbanos tem compromisso com a informação de interesse social e útil para a comunidade, abordando temas como cultura, saúde e direitos. Por isso ele também busca conteúdo produzido
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por parceiros como a USP (Universidade de São Paulo) e a ONG Oboré. Atualmente a rádio funciona sob uma licença judicial da ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações). Envolvido há mais de dez anos em rádios comunitárias, Santista já foi alvo de muitas denúncias. A polícia aparecia, mas não fechava por causa da documentação em dia. “A Urbanos não atrapalha ninguém, não passa avião, não interfere em outras ondas, são apenas 10 km de alcance”, diz o radialista, que ressalta a importância da comunicação para a comunidade local. Sobre a audiência antenada no Elo da Corrente, que é transmitido ao vivo todas as quintas-feiras, Santista revela que a sua maior preocupação é com o conteúdo que irão receber. “Uma vez um rapaz falou uma palavra de baixo calão, e me chamaram a atenção. Tem que ter cuidado com o que fala”, frisa. Mas o retorno da audiência, segundo ele, serve para melhorar o sarau e fazer com que a comunidade se veja cada vez mais no espaço.
através do selo Elo da Corrente Edições, publicou o livro Prosas de Buteco: “senti um orgulho muito grande”, lembra. Paulistano de Pirituba, quando jovem, Santista terminou o colegial e foi estudar em um seminário na cidade de Aparecida do Norte, interior de São Paulo. Sem muita vocação para padre, encarou o período como um aprendizado, e começou a ler como passatempo. Mas são as poesias que fazem a cabeça do radialista, principalmente as de amor. Decorado com várias imagens de santos, seu bar revela que é um homem religioso. Devoto de Nossa Senhora Aparecida, ele encerra a entrevista com um convite: fazer uma peregrinação a pé, na estrada que liga a cidade de Bragança Paulista a Aparecida do Norte, em um trajeto que demora seis dias. Há sete anos ele faz esse percurso com um grupo de amigos que, além de praticar a fé, vão renovar as esperanças de ver a sua comunidade melhor. Assim como no totem indígena, que um dia ele viu aparecer em seu bar.
Do balcão ao palco Em todos os saraus, um pouco antes das 20 horas, Santista checa a conexão do microfone com o equipamento da rádio. Mas não é só nos bastidores que ele atua. Foi no Elo da Corrente que começou a ler suas poesias. Em 2008,
Um se chama João. O outro, José. João é porteiro. José é motorista aposentado. Em comum, esses dois senhores moram em Pirituba e são filhos de Chorrochó, cidadezinha localizada no norte da Bahia. Da mesma terra natal, foram se conhecer num lugar bem distante de lá: o sarau Elo da
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Corrente. João do Nascimento, 58 anos, e José Corrêa, 71, são as vozes da poesia de cordel no sarau de Pirituba. O encontro inusitado foi ali mesmo e rendeu uma grande amizade. “Foi uma emoção, lembro que cheguei a conhecer alguns familiares mais velhos dele lá”, conta José, que foi parar no sarau por causa do primeiro livro de João, comprado por sua sobrinha. Os dois até que poderiam formar uma dupla de repentistas, se não fosse pela falta de jeito com o improviso de versos e instrumentos. “Teve uns tempos que minha voz não era tão ruim, mas ninguém conseguia me acompanhar. Eu não tenho compasso. Só toco pé no toco e fico nervoso”, brinca José. João diz que, no seu caso, não consegue lembrar versos de cabeça e muito menos improvisar como os grandes cantadores do nordeste fazem. Além de fãs de poetas consagrados como Patativa de Assaré, guardam em comum também a extrema modéstia. Mas um não esconde a admiração que tem pelo outro. “Eu acho que o João é profissional, eu não sou. Eu sou amador”, diz José sobre o amigo. João acredita que seu trabalho nunca poderá ser comparado a grandes cordelistas, pois se vê como “um pé de poeira”. Mas quando fala do amigo, demonstra respeito. “Zé é cordelista de mão cheia, ele escreve outra linhagem, em
Seu Zé Corrêa
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sétima, são sete versos na estrofe. É preciso ter muito nome No mesmo ano em que José nasceu, em 1938, o pra você fazer aquilo”. lendário cangaceiro Lampião havia sido morto. “Meu pai correu muito por causa de Lampião”, revela. Seu pai era um Nos tempos de Chorrochó agricultor que vivia encurralado entre o medo do cangaço e Chorrochó fica a 20 km das margens do Rio São a força dos policiais do governo. Chegou a se mudar de uma Francisco. Conhecida por abrigar uma igreja fundada por fazenda por causa da violência. “A guarda-volante vinha e Antônio Conselheiro, o lugar é seco, mas quando chove, judiava para descobrir onde tava Lampião. Quando chegava chove de dar gosto. Nas estradas margeadas pela caatinga, o à fazenda, perguntavam: Lampião chegou aqui? Se dissesse aguaceiro revela a bonita vegetação local. “É uma coisa que que sim, era um problema. Se dissesse que não sabia, era eu amo, aquele chão repleto de folhas de craibeira¹. Quando outro problema”, conta. dá uma chuva e flora tudo”, lembra João. Como muitos jovens da zona rural, José não frequentou Quando eram meninos, os dois cordelistas frequentavam a escola e aprendeu a ler em casa, com o pai. Os cordéis eram as feiras da cidade, e se lembram dos vendedores de cordéis, a única lembrança de leitura daqueles tempos. Na fazenda violeiros e cantadores viajantes que passavam por lá. Os Vaso Comprido, ele ajudava na criação de cabras. Quando folhetos de cordéis, produzidos por poetas populares, eram trabalhava sozinho, na vasta paisagem silenciosa, cantava muitos e ficavam expostos em linhas penduradas por estacas versos de folhetos de cordéis. Se não lembrasse a letra, ou nas malas de poetas andarilhos. inventava uma rima com as suas próprias palavras. Em 1963, José subiu na boléia de um caminhão e, Cantador acanhado de carona, rumou para a cidade de São Paulo em busca de Zé Corrêa é um senhor de cabelos brancos com timidez oportunidade de trabalho. Foi morar em Pirituba e logo aguçada e fala mansa. “Eu era muito acanhado, não era de arrumou um emprego de ajudante de caminhão. Mais tarde, falar no meio do povo. Só vim declamar agora, depois que casou-se, teve filhos e tornou-se motorista de ônibus, sua conheci o sarau”, conta. profissão até se aposentar. Com baixa escolaridade, voltou a estudar há dois anos, num curso voltado para a educação de jovens e adultos. O ¹ Craibeira é uma árvore típica da paisagem da caatinga. Destaca-se por suas grandes folhas amarelas.
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cordelista acredita que o sarau fez com que ele tomasse gosto pela leitura. “Eu não lia não, agora que eu to lendo mais, me deu mais enriquecimento. Sempre que me dá ideia eu escrevo, a imaginação vem de qualquer coisa da vida”, diz. Em 2008, através do selo Elo da Corrente Edições, lançou os livretos O Destino de Muitos e Senhor Caximbo e os Efeitos do Vício. Sua produção poética continua alta. No momento, ele escreve um livro sobre Lampião, onde contará as histórias que escutava dos antigos. O porteiro e o poeta Quem visita a empresa onde João do Nascimento trabalha, nem desconfia que por trás daquele porteiro existe um poeta. Nos saraus, vez ou outra se apresenta com seu chapéu de couro, do tipo sertanejo, que chama a atenção. “A maioria dos homens que vai pro mato tem chapéu de couro. Nunca fui usador de chapéu, mas ele representa força. Quero usar mais”. Nascido na fazenda Rebolão, ele conta que a vida de muitas famílias era sofrida devido à escassez da chuva. Criado pela avó, João nunca passou fome pois, na época, a matriarca tinha um certo poder aquisitivo e conseguia estocar comida para enfrentar as estações mais duras. Filho de pai repentista, quando garoto divertia outras crianças cantando versos com um pandeiro feito de lata de
goiabada. “A gente fazia uma roda de ciranda, cantava coisas como o Rosário da Vó e Carimbó”, lembra. Com cerca de oito anos de idade ele entrou na escola rural, mas não conseguia se interessar pelas aulas: ia um dia na escola e só voltava um mês depois. O que ele gostava mesmo de ler eram os gibis e os cordéis. De verso ele entendia. Com 10 anos começou a escrever de forma autodidata. Em 1987, João foi morar em São Paulo. Pouco tempo depois, foi transferido pela empresa para a cidade de Juazeiro. A vida pessoal estava ficando difícil, com crise no casamento, muita boêmia e um longo período sem escrever. “Dos anos 80 pra cá eu deixei de escrever, até parece que tinha esquecido. Quando voltei para São Paulo, em 96, fiz muitos amigos. Aí minha memória voltou, do tempo de menino. E fui escrever cordel”. A partir de 2001, já tinha poesias musicadas e, em 2004, escreveu o roteiro da peça teatral Nossa Terra, Nossa Gente. Também participou com textos em antologias da Gráfica Cordelar e na revista Não Funciona. Em 2008 contaram para ele que havia um rapaz em Pirituba que escrevia histórias e tinha um sarau no Jardim Monte Alegre. João leu o livro do rapaz e foi tentar conhecêlo. “Tive aquela fé que era o cara que ia me ajudar, ver meu trabalho, e aí a gente ia pra frente, eu ia recitar poesia mais ele. Pensei que, do jeito que tem gente boa nesses barracos aqui, se ele criou o sarau, vai conhecer muita coisa. Então fui
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procurar o Michel”. Logo que chegou ao sarau, o cordelista mostrou seus cadernos a Michel da Silva e, no mesmo dia, foi chamado para recitar no microfone. Desde então, nunca arredou o pé de lá. Pelo Elo da Corrente Edições, João do Nascimento lançou o livro Saudade do Meu Sertão e Cordéis e Poesias para Cantar. Certo de que o sarau só lhe trouxe coisas boas, como ler mais e voltar a escrever regularmente, o que mais valoriza são as amizades conquistadas. “O pessoal me trata com carinho, vejo nos olhos deles que me respeitam. Não tem nada melhor do que você ser respeitado. Se você entrar num lugar e é respeitado, sinta-se feliz”. Uma geração sobrevivendo no gueto Sábado à tarde, numa loja no Jardim Monte Alegre, Raquel e Michel vêm ao nosso encontro com a filha Yakini nos braços. Enquanto Raquel conta a sua história, sentada no meio-fio do local que dá para a Rua Jurubim, Michel aconchega o bebê, que solta risadas para o pai coruja. Com apenas cinco meses, a pequena Yakini é o primeiro fruto do casal, e a integrante mais jovem do Elo da Corrente. Batizada com um nome de origem africana, que significa “verdade”, está sempre ao lado dos pais. Presente em todos
Raquel Almeida
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os saraus, já está acostumada com a poesia e os tambores da Brasa¹ e do Elo da Corrente. “Eu tinha duas opções: ou ia ou ficava em casa com ela. Mas ficar em casa não é o meu papel”, conta Raquel. Durante a gestação, só deixou de frequentar os saraus na fase do resguardo. A voz calma de Raquel pontua a conversa, dividindo espaço com o som que vem da rua. Sem pressa, ela começa a compartilhar um pouco de si. Filha de pais que saíram do recôncavo baiano para tentar a vida em São Paulo nos anos 80, nasceu e foi criada num sobrado da favela de Santa Teresinha, em Pirituba, localizada aos pés do Pico do Jaraguá. Era uma menina que gostava de conhecer o porquê das coisas. Criada em família evangélica, queria entender sobre Deus e por que alguns tinham alimento e outros não. Sua mãe gostava que a menina lesse os livros, mesmo que não fosse a Bíblia. Na quinta série, estudando em escola pública, aprendeu sobre o preconceito. Foi assim, em uma aula de história. Um professor falava da comunidade, o lugar onde ela nasceu, viveu sua infância e conheceu grandes amigos. Lá, onde ela chamava os vizinhos pelo nome. A lição foi aprendida na prática. “Esse professor estava falando da nossa comunidade, ¹ Uma das marcas do Sarau da Brasa, no bairro da Brasilândia, zona norte de São Paulo, é a abertura
dos encontros com uma música com tambores e percussão. A tradição acabou sendo levada também ao sarau do Elo da Corrente.
sem muito conhecimento. E aí ele virou pra mim e falou assim: ‘você, daqui a cinco anos ou menos, vai ficar grávida! Vai ser mãe solteira, porque é a realidade do povo que você vive’”. Seu bairro, era “essa gente”, como alguns professores se referiam. Raquel fez um breve silêncio e, segundos depois, olhou nos olhos do professor e disse: “você, como educador, está muito equivocado, não pode chegar pra gente e falar uma coisa dessas. Por que você não fala de vestibular pra gente?” A resposta foi engolida a seco. “É que vocês não vão passar mesmo”, respondeu o professor. Este momento marcaria para sempre a vida de Raquel Almeida, hoje com 22 anos. Caneta na mão e expressão no corpo Raquel começou a escrever nos tempos que frequentava a igreja, mas aos poucos percebeu que faltava espaço para se expressar livremente. “Eu tinha muito embate com o pastor da igreja. Até que fui convidada a me retirar de lá”, brinca. Para passar o tempo, começou a se reunir com dois amigos e falar sobre poesia. Arriscou os primeiros versos e os amigos gostaram. Aos poucos, a caneta de Raquel começava a escrever sobre o mundo que via.
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“Mãe, pardo não existe, qual é minha cor? É a cor que você quiser, filha”, escreve no conto “Minha cor”². Ela escolheu a cor negra. “Por que não pode falar que é preto? Porque foi colocado pra gente que preto é ruim. É importante discutir a violência que fazem com a gente diariamente”, conta, relatando que se incomoda com o modelo de beleza em que as meninas se espelham na periferia. “Ali naquela viela existe uma princesinha triste ela está chorando porque estão chamando seu cabelo de palha de aço”³ É assim que Raquel inicia um de seus poemas, escrito para suas sobrinhas, crianças negras, como um dia ela foi. Ela sonha em trabalhar a autoestima das mulheres negras. Quer contar como podem ser bonitos os black powers, as tranças e os fios cacheados. Por isso ela montou com algumas amigas, em 2009, o Coletivo de Mulheres Negras Esperança Garcia,
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O conto faz parte do livro “Duas Gerações Sobrevivendo no Gueto”, de Raquel Almeida e Soninha M.A.Z.O, editado pelo Elo da Corrente Edições em 2008.
³ Trecho extraído do poema “Menina Princesa”, do livro “Duas Gerações Sobrevivendo no Gueto”.
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que pretende dialogar sobre identidade racial e gênero com as mulheres do bairro. O nome do grupo é uma homenagem a uma escrava do Piauí que, em 1770, escreveu uma carta ao governador do estado denunciando os maus-tratos que sofria na fazenda. Rap e ação Raquel também participou da cena rap de Pirituba. Em 2004, entrou como backing vocal no Alerta ao Sistema, grupo criado em 1998. As letras falavam sobre violência, juventude e consumo. Coisas que preocupavam Raquel e sua prima, que também fazia parte do grupo. Mas eles não lidavam bem com a presença das duas mulheres. Quando a banda se reunia para tomar decisões, muitas vezes os meninos não queriam que elas participassem. Raquel queria ter voz ativa e costumava falar: “ué, a gente não é de vidro, a gente não vai quebrar. A gente também faz parte do grupo, temos também a nossa problemática”. A ruptura com a banda foi inevitável e a deixou triste. Fã de rap e música brasileira, ela até pensa em voltar a cantar, mas avisa que não topa entrar no esquema “muito showzinho, muito discurso e pouca ação”. Se o rap não lhe deu espaço, foi o programa de rádio Voz da Periferia que a acolheu para dar vazão aos seus pensamentos. Raquel e Michel apresentavam o programa
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na rádio comunitária Urbanos FM. “Comecei a ir porque no primeiro eles falavam de mulher, e eu falei pro Michel que, pra falar de mulher, os homens tinham que ter uma ali falando. Então tomei a iniciativa”. Depois veio o Elo da Corrente, os primeiros livros e as atividades comunitárias. No auge dos seus 22 anos, com um sarau criado, textos publicados em coletâneas e voluntária de contação de histórias, Raquel diz que já chegou onde queria. “Na minha comunidade mesmo. Mas não cheguei ainda da forma que queria. Apresentar um livro pra pessoa ainda é muito difícil. Quebrar aquela barreira de que literatura é ruim, é chato. Mas já estou conseguindo.” Ela não revela seus sonhos para o futuro. Mas sabe que em 2010 vai prestar vestibular para entrar na faculdade. E sabe que sente orgulho de ser quem é: “quando vejo o meu livro, assim que consigo passar pra mão de uma menininha preta, pra mim, eu já ganhei tudo”.
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Professor da oralidade “Ontem litros, hoje livros.” Michel da Silva Marcada a conversa com Michel, ele chega adiantado e em passos calmos. Em um dos ombros, segura a bolsa colorida de sua filha, Yakini, e ao seu lado está a sua esposa Raquel, segurando o bebê. A união dos dois é um traço forte. Com olhar e movimentos serenos, ele cumprimenta a todos com um sorriso discreto. Sua voz é firme e as frases saem espontâneas. Ele fala para fazer entender, com palavras bem articuladas. A barba rala encontra os cabelos encaracolados e o ar de seriedade é completado com os óculos que repousam sobre o nariz, deixando os olhos um pouco à mostra. Escritor e ativista cultural, logo no início da conversa ele desabafa sobre as experiências com pesquisadores que visitaram o sarau e depois sumiram, sem dar retorno dos trabalhos desenvolvidos com a sua história. Ele fala, sempre com bons argumentos e conhecimento e, aos poucos, vai se soltando. A testa enrugada dá lugar a uma expressão mais relaxada. A conversa começa e o tema “artista na periferia” vem à tona. “A gente é artista, mas não queremos ser celebridades. A
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gente é artista porque fazemos arte”, diz, pontuando que sua arte não termina em si, mas tenta alcançar as pessoas. “Você olha moradia, esgoto a céu aberto, e pensa: onde será que a gente mora? E o sarau está ligado definitivamente a isso”. Ele sabe que não irá salvar o bairro, mas mesmo assim não deixa que o comodismo o impeça de contribuir de alguma forma. “Moramos nele, então quem tem que cuidar dele é a gente”, acrescenta. Michel da Silva nasceu em 1981, ali mesmo em Pirituba. “Meu avô foi um dos primeiros a chegar no bairro”, diz. Fruto da mistura entre pernambucanos e mineiros, tem a garra dos nordestinos e a calma dos ancestrais de Minas Gerais. Como todo garoto, seu sonho era ser jogador de futebol: “a partir do momento que esse sonho não deu mais certo, por causa da idade, aí você vai ver o que tem de possibilidade pra atuar dentro do seu bairro”, comenta, ressaltando que a escola na periferia não é convidativa, muito menos incentiva os alunos a investirem na área acadêmica. Sem futebol e sem escola, a sedução do bairro muitas vezes levava às drogas. Mas Michel não quis seguir esse caminho. Então deixou-se seduzir por outro movimento: o das rádios comunitárias, que crescia em São Paulo. “Quando a rádio comunitária começou a surgir, eu também me tornei ator do lance”, conta ao destacar a rádio Elite FM, que o pai, Milton Ciriaco, tinha fundado com seu tio Cláudio
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Santista. Em 2003, ainda no colegial, juntou-se a um amigo skatista para levar a paixão pelo rap a um programa na Elite FM. “A rádio funcionava com um equipamento alugado, na sede dos moradores, que hoje está desmoronada. A gente começou a fazer programas em que reuníamos os amigos e todo mundo falava um pouco”. Entre músicas e debates, um novo mundo se abriu para Michel. “Comecei a perceber que a rádio comunitária envolvia uma série de outras questões. Comecei a gostar e, quando você gosta, acaba procurando coisas sobre o assunto”, conta, lembrando que passou a reconhecer a importância da informação para uma comunidade. Questões que sofriam opressão e precisavam criar seu foco de resistência. Na rádio, ele descobriu que podia ser um bom orador. “O pessoal acha que orador é nato, mas não é assim... Tem que exercitar!”, afirma. E ele tomou gosto pela coisa. Tempos depois, da Elite nasceu a Urbanos, e Santista tornou-se um forte aliado. “O Santista era o locutor. Ele é um cara que ama esse lance de rádio, ama mesmo”, comenta sobre a criação da nova rádio, que ainda o inspirou a organizar eventos nas ruas, com grupos de estilos musicais como rap, samba e rock. Após a experiência, Michel ingressou em 2005 na Universidade Federal do Paraná, onde estudou Ciências Sociais durante dois anos: “eu tinha poucas condições de
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estudar e trabalhar lá”. Um dos primeiros de sua família a entrar em uma universidade, trabalhava como operador de telemarketing e participava de um grupo de estudos para manter a bolsa: “se eu não fosse ao grupo, que era à tarde, eu perdia minha bolsa, que era a minha ajuda de custo ”. Durante o tempo que passou em Curitiba, Michel se manteve como pôde, até que começou a entrar em conflito com professores. “No segundo ano tive embates seríssimos com os professores. Estava iniciando o meu processo de monografia pra ir até o quarto ano, apresentei uma proposta, mas eles não gostaram muito”, conta sobre o projeto que estava relacionado com questões sociais de Pirituba. Desanimado da faculdade, Michel acabou voltando a São Paulo antes de se formar. A aproximação com a rádio foi ainda maior. E com Raquel também. “Durante o curso, voltava várias vezes pro bairro... Ia em congressos, encontros do movimento estudantil, e passava em casa pra ver como estavam as coisas. Nesse tempo eu e a Raquel nos conhecemos”, conta, sobre a esposa que na época pertencia a um grupo de rap de amigos em comum. Em 2006, deixou a universidade e voltou de vez para São Paulo. Desde então suas atividades com a comunidade nunca mais pararam. Inspirados por outras experiências que viam na cidade, Michel e Raquel iniciaram um sarau que uniu vários membros da comunidade: “o Elo da Corrente passou a
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ser também fortalecido por outros movimentos que estão atuando há mais tempo. Movimentos de literatura periférica ou marginal, como você achar melhor denominar”, conta Michel, sobre a importância do contato regular com outros projetos de escritores de periferia. Envolvido em diversas ações sociais, Michel realiza oficinas de literatura em escolas públicas e na Fundação Casa. “Muitas vezes eu trabalho a questão da literatura, mostrando essa cena da periferia, e junto isso também com a questão racial”, explica sobre o trabalho desenvolvido, que conta com elementos criativos para estimular a produção dos jovens. Junto a Raquel, ele forma um coletivo que busca levar uma nova forma de ensinar literatura nas escolas. Nós vamos aos lugares, fazemos a roda, deixamos os livros e falamos as nossas poesias. Nós mostramos como essa poesia que parece só ter um jeito de fazer, na verdade tem várias maneiras. Ela é arte, e arte não tem regras ou limites”, observa sobre os projetos que, quando são realizados em horários mais flexíveis, ainda conseguem reunir outros escritores. Michel acredita que as crianças têm cada vez mais repulsa de ir à escola devido ao sistema de ensino precário. É por isso que ele tenta levar a sua visão sobre literatura, para atrair e estimula a criação, driblando problemas de aprendizagens. Porque a arte pode vir das ruas e fazer parte da realidade, basta apurar o olhar para perceber. “Quando
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você vai apresentar a literatura, é muito difícil pro menino conseguir ter um conhecimento e uma instiga. E a literatura tem que instigar e dar uma curiosidade”, afirma. Apesar da desconfiança no início, os meninos logo se identificam com ele. “Quando eu vou lá e eles percebem que eu sou um cara que, não por mérito maior que o deles, poderia estar naquela situação, eles se identificam e veem que não estou lá num pedestal como o de um professor ou para julgar”. Quando Raquel e Michel estão nas escolas, misturamse de corpo e alma aos alunos, em uma profunda relação de troca. Tanto em linguagens quanto em conhecimento. “Quando você vai à escola tirar foto, não dá pra saber quem são os alunos e quem é a gente”, diverte-se sobre a paixão que é estar em meio às novas cabeças pensantes. Quando muitos professores percebem essa relação estreita, ele afirma que se sentem deslegitimados em suas posições: “eu sou jovem, mas os professores não pensam que também tenho uma formação, que a gente não vai lá de oba-oba”, comenta, sobre o cuidado que tem com a pedagogia e as técnicas utilizadas. No trabalho desenvolvido, Michel afirma que há uma forte proximidade com outras oficinas da Fundação Casa, que incluem muita literatura, artes plásticas e rap: “na literatura eles privilegiaram chamar as pessoas que estão no movimento, aí fui convidado”, conta. Por isso ele leva aos
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meninos da Fundação um espaço de comunhão da palavra, onde todos falam e escutam, assim como ocorre nos saraus: “em meus planejamentos de aula pretendo levar essa literatura lá e tentar incentivar, no mínimo, uma leitura. Mostrar como isso foi transformador aqui nos espaços e como é possível que eles reconheçam os bairros onde moram”, comenta. Sobre a responsabilidade de lidar com os jovens da Fundação, Michel comenta que “mesmo que hoje não aconteçam tantos abusos, o que também é questionável e depende muito de cada unidade, é preciso pensar que está lidando com meninos que estão privados da liberdade, o que, pra eles, já é uma situação complicada”, observa, ressaltando que com a diminuição do número de jovens, o controle fica mais fácil. Mas Michel não se contenta em achar normal a condição dos jovens infratores. Ao comentar sobre a triste realidade que leva os jovens a cometerem delitos e irem parar na Fundação, ele deixa transparecer sua noção de justiça e busca pela igualdade de direitos. E ele tem argumentos. Sempre tem. “Uma empregada doméstica é menos importante que um médico? Existe uma desvalorização muito grande. Como a sociedade se dividiu em classes, um dos efeitos foi a Fundação Casa”, afirma, ao observar que a construção de locais para deter os jovens é um modo de ofuscar a falta de investimento na educação e medidas que ofereçam igualdade
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de oportunidades. Michel não se importa em saber qual delito foi cometido para o jovem estar ali. Ele só quer ajudar as palavras a ultrapassarem o muro: “há os mitos que criam... Que lá você vai dar aulas pra monstros, lidar com criminosos. Acho que aí existe muito preconceito. Os caras são seres humanos, Então se eu ficar pensando muito no delito, não vou vê-lo como humano, que pensa, raciocina, vivencia e não tem só reações de raiva”. E ele ainda acrescenta que, assim como no sarau, seu projeto na Fundação Casa não é messiânico, mas de pura reflexão e abertura de novas portas para o conhecimento. Em suas oficinas, ele tenta mostrar como o estudo pode fugir dos padrões da escola e se aproximar da realidade dos extremos da cidade. “Se você chega lá pra trabalhar literatura, seu ponto de partida é a literatura da periferia. Aí ele já percebe que, no mínimo, pode ler. Se ele não lê, se tem esse problema com a leitura, ele consegue entender pela oralidade. Eu já começo a mostrar que a literatura pode ser oral, coisa que a escola também não propõe”. E assim as palavras, que pareciam tão distantes da realidade dos meninos, ultrapassam os muros altos da Fundação e propõem um caminho possível entre a imaginação e a reflexão. A conversa sobre as oficinas é finalizada. Michel falou muito, mas ainda poderia falar mais. Sua visão de mundo é grande, apesar dos 28 anos. Ele faz uma pausa e pega Yakini,
segurando-a como se fosse um diamante. Com movimentos lentos para não agredir o corpo frágil do bebê, ele começa a contar sobre o seu envolvimento com a literatura, que começou com gibis. “É bem relativo isso daí, porque posso calcular desde que era adolescente, quando tinha amigos que me pediam pra escrever cartas pras suas namoradas. Isso também é uma forma de escrita, de conhecimento de texto”, afirma. Tempos depois, já com 18 anos, Michel tomou gosto de vez pela escrita, e começou a tratar de temas engajados, com reflexões críticas. “Depois que eu comecei a me apropriar mais da escrita, comecei a me envolver com a arte, sendo uma relação mais intencional mesmo. Então um amigo comentou: ah, já que você gosta de escrever, escreve!”. Então Michel escreveu. E, segundo ele, a faculdade contribuiu para a base de textos teóricos, ao mesmo tempo que foram surgindo as poesias. Um ônibus que passa na rua faz com que ele aumente o tom de voz. Então olha pra fora, fica em silêncio por alguns segundos, e comenta sobre a sua relação com Raquel. “Você vê, nossa caminhada nos levou a outras poesias”, sorri, levantando Yakini sutilmente. Juntos desde o início dos saraus, ele afirma que grande parte de suas atividades é junto à esposa. “somos família e parceiros de atividades. São coisas distintas, que às vezes se misturam, às vezes ajudam
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e às vezes atrapalham também”, comenta, ressaltando que essa relação proporcionou crescimento para os dois. “O sarau trabalha com a questão humana, então nós exercitamos como ser mais humano com as pessoas. Praticar mais a humildade, a tolerância, mas também, quando necessário, a braveza”, comenta. Além de um dos organizadores do Sarau Elo da Corrente, Michel também é colunista do site Literatura Periférica1 e editor do blog Elo da Corrente – Cultura Periférica2 . Possui um livro de contos de sua autoria, o Desencontros, lançado em 2007, e ainda participou das antologias Suburbano Convicto – Pelas Periferias do Brasil (Suburbano Convicto Produções), Cadernos Negros – Volume 30 (Quilomboje) e revista Grap (Unika Produções). Em 2008, Michel ingressou no curso de Letras na USP, como forma de adquirir mais conhecimento para suas oficinas e expandir as oportunidades em sua vida. Sobre os temas abordados em seus textos, ele comenta que costuma ler diversos autores: “hoje eu escrevo por várias motivos. Acredito que não preciso escrever só sobre temas sociais pra ter um impresso de literatura de periferia”, afirma. Para ele, é possível tratar de qualquer assunto: “posso escrever sobre qualquer coisa, mas eu tenho um estilo, certo? Agora minha ação como ativista, sim. Essas são voltadas pras questões sociais e periféricas. A minha escrita não, a minha escrita é livre”.
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E realmente é livre, pois transmite liberdade nas palavras escolhidas em cada verso. E cativa quem as ouve. Tanto que, nos saraus, é comum que alguma voz lance um de seus poemas, o Sentimentos. E todos repetem a letra, em coro... “Eu acho que esse poema reflete bem o movimento, o que buscamos e temos como embate com o conhecimento formal. Acho que é uma das poesias que pegou bastante”. Porque “por ai muito sinhô, esses chamados de dotôr” dizem que a poesia deles é um horror. Mas a visão sobre a literatura muda e faz mudar. E Michel acredita nisso: na identidade expressiva de cada região. Para que não haja fronteiras de território, conhecimento ou palavras.
¹ www.literaturaperiferica.blogger.com.br ² www.elo-da-corrente.blogspot.com
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O piritubano das mil histórias Atravessando a feira do Jardim Monte Alegre, muito conhecida na região, o destino é a conversa com Seu Oswaldo Lucas, figura registrada de Pirituba. Centenas de verduras, frutas e temperos aguçam os sentidos. Entre cores, texturas e gritos, o caminho é estreito, e em cada trecho o universo de sons é transformado: - Escolhe um limão aqui. - Uma verdurinha pra manter a forma? - Vai um alho aí? Na outra ponta, próxima à barraca do pastel, um homem que vende filmes piratas exibe passos de forró e um olhar conquistador para as mulheres que passam por ali. Escondido atrás dos toldos, o ponto de encontro é avistado: o bar do Santista, local onde ocorre o sarau Elo da Corrente. À luz do dia o local é diferente, mas muitas figuras conhecidas já estão ali. Santista recepciona com um aperto de mão e um sorriso aberto. Carlão, sambista conhecido no bairro, também dá as boas-vindas: - Xiii, o seu Oswaldo? Pode esperar que ele é ‘atrazildo’! São 11 horas da manhã e a Urbanos FM, rádio comunitária de Pirituba que fica em cima do bar, toca modas de viola que contagiam discretamente o balanço dos pés de
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quem está no local. A feira continua rolando do lado de fora, e finalmente ele chega, desviando dos restos de frutas e verduras na calçada. De calça branca, camisa estampada, paletó, chapéu e bengala, Oswaldo Lucas (porque é assim que ele gosta de ser chamado) é um senhor de fina estampa. E o sorriso para completar, que logo vem. Após o cumprimento caloroso, ele mostra a rua ao lado e conta que a conversa será na casa de sua irmã. Subindo a ladeira, saúda grande parte dos que cruzam seu caminho. “Olha aí, esse é o Oswaldo, a gente tem um clube de amigos aqui, o Clube dos Oswaldos!”, divertese. Aos outros que passam, ele chama todos pelo nome, exibindo os dentes brancos e bem alinhados. Na Rua Doutor Paulo Duarte, ele aponta o pequeno portão de entrada e convida para entrar. Sentados em bancos na garagem, com vista para a rua, segura firme a bengala e começa a contar as tantas histórias que fazem parte da sua. - Quem é seu Oswaldo Lucas? - Sou piritubano – responde sem hesitar. Nascido em 26 de abril de 1957, em Pirituba mesmo, Oswaldo Lucas Moreira também é Omar Mamede. E esse nome não é à toa. Bisneto de escravos vindos da África, sua raízes estão ligadas à nação bantu1 : “é um povo pacífico, de 1
Os bantu (ou banto) constituem um grupo etnolinguistico localizado principalmente na África subsaariana (região localizada mais ao sul do continente).
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grande calor humano”. Apesar de não ser muçulmano, ele explica que a escolha do nome está ligada a tradições vindas dos negros que seguem a religião: “todo sobrenome traz um significado espiritual. No meu caso, se você traduzir Mamede do árabe para o português, é ‘o filho escolhido por Deus’”. Cristão assumido, ele conta como possui acesso à comunidade muçulmana local, mas não gosta de seguir doutrinas ou religiões. “Prefiro ficar do jeito que estou, porque se eu me converter, vou ter que mudar inúmeros hábitos e amizades, e isso não me interessa. De mais a mais, o Deus é um só”, enfatiza, ressaltando que não pode deixar o samba de lado. Pai de cinco filhos, já namorou “negras, brancas e japonesas”, conta rindo, com ar de quem recorda. Em sua adolescência rodou toda a cidade, já que muitos amigos e namoradas moravam fora do bairro. Mas nunca deixou de ser piritubano. Quando completou 18 anos, seguiu para Buenos Aires e Bariloche, na Argentina, e depois nunca mais parou de viajar. “Daqui só não fui ao Equador. De resto, conheço vários lugares”, conta, citando locais como Chile, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela e Suriname. Muitas de suas viagens foram possíveis graças ao seu trabalho, em uma empresa de engenharia, que o mandava para participar de projetos fora do Brasil. E as andanças não
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foram só pela América. Durante dois anos que morou no Cabo Verde, na África, conheceu a região e ainda reencontrou suas raízes. “Por causa da escravidão que aconteceu aqui no Brasil, as pessoas não conhecem a sua origem. Mas o meu pai sempre passou informações, então depois eu fui à procura. Eu vasculhei até a quinta geração antes de mim”, conta, lembrando que foi procurar suas raízes em cidades de Minas Gerais e Bahia, onde seus antepassados desembarcaram vindos da África. Em sua passagem por Cabo Verde, país onde viveu por dois anos, ele comenta sobre as diferenças que encontrou: “apesar de ser um país de língua portuguesa, a diferença cultural é grande. Mesmo porque, por ser um arquipélago lindíssimo, tem gente do mundo inteiro lá”. Ao responder sobre sua posição política, ele diz sem hesitar: “sou socialista”. Seu engajamento político começou ainda no colégio, quando se envolveu com o movimento estudantil de sua escola. “Foi lá que eu tomei conhecimento de que estávamos vivendo em uma ditadura”, conta Oswaldo 2 Lucas, comentando que quando o AI-5 foi decretado, apesar dos seus 11 anos de idade, ele já possuía consciência sobre a
importância do fato. Anos depois, participou de diversas mobilizações 3 com o MR8 . “Na época eu tinha um emprego muito bom ligado a setores do governo, e quando descobriram meu envolvimento político, eles me mandaram embora”, lembra, destacando o poder feminino na luta contra a ditadura: “você pensa que elas não iam fazer manifestação? O exército e a polícia vinham, mas elas faziam mesmo assim. As mulheres sempre estavam à frente das nossas lutas”. Literatura e cotidiano Em uma vida tão cheia de histórias, a literatura não poderia faltar para dar um ar ainda mais poético às suas experiências. Por isso a vontade de ler veio sozinha, sem depender do estímulo dos pais: “meu pai era um cara inteligente, mas eu nunca o vi devorando um livro”. Assim, ao percorrer bibliotecas e receber elogios das professoras desde cedo, o gosto chegou e ficou: “eu não gosto de vídeo, eu gosto de leitura”, diz, acrescentando que só assiste televisão “se for uma coisa importantíssima”. Entre livros de Clarice Lispector, Drummond, Mário
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O Ato Institucional Nº5 (ou AI-5) foi o quinto de uma série de decretos emitidos pelo regime militar brasileiro nos anos seguintes ao golpe militar de 1964. Sobrepondo-se à Constituição de 24 de janeiro de 1967, bem como às constituições estaduais, dava poderes extraordinários ao Presidente da República e suspendia várias garantias constitucionais.
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O Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8) é uma organização brasileira de esquerda que participou do combate armado contra o regime militar.
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Quintana e Tristão de Ataíde, o russo Alexander Soljenitsin ganha destaque: “ele tem uma história de vida baseada em vontades políticas e no amor, tudo ao mesmo tempo. O autor era um apaixonado e envolvido com o socialismo”, relata, comentando que devorou o romance ‘Agosto, 1914’ em apenas uma noite. Hoje, com problemas de saúde após um acidente que sofreu em Cabo Verde, os livros continuam em sua rotina, que é menos intensa. “As sequelas ainda me judiam muito, ainda mais com essas mudanças de tempo. Tenho sofrido barbaridades”, conta, mas admite que não aguenta ficar recluso por muito tempo. “Ficar dentro de casa? Só se eu estiver muito ruim, do contrário eu sumo. Quando acordo, não consigo mais ficar na cama. Se eu não tiver nada pra fazer, eu saio por aí... eu me mando!”, diverte-se com um sorriso estampado. Apesar de não trabalhar por restrições físicas, Oswaldo Lucas tem muitas atividades. “Eu tenho contato diário com pelo menos 30 pessoas”, comenta, ao destacar também seu trabalho voluntário em escolas da região e no CEU Vila Atlântica4, próximo à sua casa. “O CEU promoveu uma mudança, porque as crianças já não são mais peraltas como
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eram. Eles têm muito tempo livre, então ficam ali, estudam e curtem lá dentro mesmo”. Mas essa iniciativa ainda não é o suficiente. Segundo Oswaldo Lucas, o apoio do município para a área cultural da periferia melhorou, mas ainda é precária. “Queremos desenvolver algum projeto para as crianças ou algum evento na escola, mas o governo não manda material, negam verba pra tudo”, afirma. Convicto de que a cultura é capaz de transformar a sociedade, seus olhos brilham ao falar sobre o assunto. “A partir do momento que uma pessoa começa a frequentar saraus, escrever e ler, há uma mudança de comportamento. E eu acredito nisso”, diz, ressaltando que é necessário que haja investimento do governo com iniciativas como teatros a preço popular e museus de fácil acesso à população. Sobre sua participação no sarau Elo da Corrente, ele conta que esteve presente desde os primeiros, e que iniciativas como essa são essenciais para a difusão da leitura na comunidade. Futuro candidato a Deputado Estadual, seu Oswaldo Lucas quer investir na área cultural, mas sua plataforma política tem grande enfoque na questão do idoso e do meio ambiente. Percorrendo as ruas do Jardim Monte Alegre, ele visita doentes e dá atenção a muitos que passam despercebidos pelas calçadas. Sempre cumprimentando pelo nome e com bom trato. “Eu gosto de parar na esquina e conversar com
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alguém. Às vezes uma vírgula que você coloca resolve o problema das pessoas. Se todo mundo fizesse isso, a vida seria bem melhor, viu?”, observa com um sorriso cordial. E entre tantas visitas, conversas e rostos, sua maior criação literária vai surgindo. É um romance em que narra todas as suas histórias e contato com pessoas que cruzaram seu caminho. E não foram poucas. “Muitas coisas que narrei, peguei de gente da rua. Escrever esse livro me faz bem porque me ajuda a continuar vivendo. É gostoso, porque vou lembrando e encaixando os fatos”, conta. E assim sua vida boêmia e cheia de aventuras vai sendo delineada no papel. A conversa é interrompida por um caminhão com alto falante que passa na rua vendendo produtos de limpeza. Ele põe o chapéu na cabeça e revela: “é meu chapéu da sorte”, e o palavreado formal se desmancha. Então acende um cigarro pra ficar mais a vontade, cumprimenta um homem que passa na rua e conta que prefere carne de segunda mesmo. A hora do almoço chegou.
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Foto : Sonia Bischain
Ao norte, uma muralha Começo do século 20. O paulistano Brasílio Simões tinha um terreno que foi vendido para que um novo bairro surgisse na região norte. Antiga área de sítios e chácaras, a Vila Brasilândia começou como um loteamento nos anos 1940, formado por moradores expulsos do centro quando a Avenida São Jõao foi expandida. Desde lá, o bairro cresceu com gente de todo o país. O Brasil da Brasilândia é periférico. De longe, a paisagem do bairro do extremo norte de São Paulo parece uma coisa só. Com a retina distante e sem foco, veem-se centenas de casinhas modestas, todas grudadas, como uma pequena cidade medieval. A sensação é de um território hostil e misterioso. Uma visão de quem é do centro, que fica a apenas a 15 km da região. Quando o olhar começa a se aproximar, os detalhes aparecem. De dentro do bairro, o centro parece mais distante. Basta um olhar apurado para a paisagem tornar-se mais nítida e revelar um cotidiano cheio de vida, composto por um ritmo próprio. Estabelecimentos comerciais, fuscas estacionados nas calçadas, feiras livres e residências com quintais. Não existem muitos prédios, mas as casas sobem os grandes morros. São arremedos de sobrados com puxadinhos e lajes, que oferecem lazer para os moradores e uma vista privilegiada
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Foto : Sonia Bischain
para o centro da cidade e seus prédios de concreto. cenário para se fazer um filme, como afirmou Tatá Amaral Com 247 mil habitantes e 41 subdistritos, por muito sobre o seu filme Antônia, que trás o bairro como cenário de tempo a região carregou a fama de ser um lugar violento. Nas histórias de dores e amores. décadas de 1980 e 1990, os nomes de suas ruas e avenidas frequentavam as páginas policiais, com altos índices de criminalidade. Esta imagem fez com seus moradores fossem estigmatizados e sentissem vergonha de revelar o endereço residencial. A juventude ainda é o público mais exposto à violência e ao tráfico de drogas. Os ares da região são carregados de pipas e uma sensação de exclusão. Ali, existe muita falta. Falta espaço para a cultura, parque público, transporte, creche, escola, agência bancária e saneamento básico. O poder público é visto com distância. Apesar da má fama, na Brasilândia nada é o que parece ser à primeira vista. O senso de comunidade é muito forte. Muitas ruas lembram uma bucólica cidade do interior, onde as pessoas deixam o portão aberto e conhecem os vizinhos. Há famílias de classe C, que virou classe média, mas que não querem sair de lá, e também famílias cinquentenárias, que se orgulham das várias gerações que continuam a morar por ali. Tem sambista antigo que sente saudade da Rosas de Ouro, premiada escola de samba que saiu do bairro e foi para outra freguesia. Tem Negra Li, cantora de rap que ficou famosa. E tem cineasta que diz que o lugar é o melhor
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A poesia do tambor “Mas agora é diferente, a periferia se arma de outra forma. Agora o armamento é o conhecimento, a munição é o livro e os disparos vêm das letras.” (Trecho do manifesto do Sarau Poesia na Brasa) As curvas da Estrada do Sabão conduzem ao interior da Vila Brasilândia. Entre terrenos, pequenos comércios e casa humildes, a esquina da Rua Professor Viveiros Raposo é avistada. Bem em frente à Escola João Solimeo, um bar se destaca. - Aqui é o Bar do Carlita? - É aqui mesmo. Podem entrar e ficar à vontade -, diz um senhor encostado no portão de entrada. O local é amplo, com espaços interno e externo. Na parte de dentro, fica o balcão, uma mesa de sinuca e paredes cheias de recados, principalmente para os clientes que pedem fiado. Próximo ao caixa, um objeto chama a atenção: é um autêntico serrote, com o aviso “aqui você não é bem-vindo”. “É pra evitar aquele cara que fila, fila e não paga”, explica Carlita, 58 anos, um senhor negro com cabelos brancos, dono do há 16 anos. Completam o visual os pôsteres do time do Corinthians, cartazes com as bebidas oferecidas na casa e pacotes de amendoins
Na parte de fora, coberta por um teto de telhas cinzas, há várias mesas e cadeiras. No canto esquerdo, uma churrasqueira protegida por uma bancada é decorada com diversos vasos de plantas, com um apreço especial pela a espada de São Jorge e o vaso das sete ervas, para espantar mal olhado. São 17 horas e ainda há luz do dia. Apesar de ser sábado, o único cliente é um senhor que conversa com Carlita e observa o movimento na rua. Mas uma agitação logo se inicia. Jovens chegam com caixas de livros e começam a montar a biblioteca improvisada, em cima da mesa de sinuca. São os membros do coletivo que organiza o Sarau Poesia na Brasa. Leko, Diego, Sidnei, Samanta, Amauri... Em pouco tempo o grupo vai ficando completo, trazendo consigo livros, cartazes e equipamento de som. E o que antes era o cenário típico de um boteco da periferia, em poucos minutos transforma-se em um quilombo cultural. Próximo às mesas de fora, o palco com o microfone é montado. Com um caderno nas mãos, Samanta Biotti vai perguntando a todos quem irá recitar na noite. Um senhor encostado na divisória entre o espaço interno e externo lê alguns papéis escritos à mão. É Seu Antonio, um dos poetas da comunidade. Para completar o palco, uma grande faixa é fixada atrás do microfone. “Um bom lugar”, diz as letras em cima de um
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grafite desenhado com tinta preta. São 20h45 e tudo já está pronto. Um samba ecoa através das caixas de som espalhadas pelo bar, e as pessoas aguardam o início do sarau. “Há um ano e meio atrás, grande parte da comunidade nem tinha noção do que é sarau”, comenta Amauri Junior (o Miudinho), membro do Coletivo Cultural Poesia na Brasa. Quando o relógio aponta 21 horas, todos do coletivo se unem à frente para fazer a abertura de mais uma noite poética no coração da Brasilândia. “Tambor, tambor, vai buscar quem mora longe”, diz a música, embalada por instrumentos percussivos como a alfaia e o atabaque, que contagia o ambiente. E ele vai buscar mesmo, porque logo o Bar do Carlita começa a encher. O ritmo lembra os cantos umbandistas, religião de Miudinho que, junto a Vagner, puxa a percussão. Tambor, tambor vai buscar que mora longe Tambor, tambor vai buscar que mora longe Ô meu tambor, que é feito de couro e pau Vai buscar todos poetas pra falar no meu sarau Vai buscar todos poetas pra falar no meu sarau Ouvindo o som do meu tambor e também do berimbau Vêm chegando os poetas pra falar no meu sarau
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Vêm chegando os poetas pra falar no meu sarau O sarau é coisa boa Com amigos é mais legal Vêm chegando os poetas pra falar no meu sarau Vêm chegando os poetas pra falar no meu sarau¹ Ao término da música, o passo seguinte é a leitura do manifesto, que é feita com emoção por Taís Lopes. Sua voz firme relata uma letra repleta de reflexão social. E as pessoas interagem, repetindo as frases em coro. A Elite Treme A elite encontra-se nos grandes centros comerciais, rodeada pelas periferias que ela própria inventou. A periferia se arma e apavora a elite central. Nas guerras das armas, os ricos reprimem os favelados com a força do Estado através da polícia. Mas agora é diferente, a periferia se arma de outra forma. Agora o armamento é o conhecimento, a munição é o livro e os disparos vêm das letras. Então agente quebra as muralhas do acesso, e parte para o ataque. Invadimos as bibliotecas, as universidades, todos os espaços que conseguimos arrumar munição (informação). Os irmãos que foram se armar, já estão de volta preparando a transformação. ¹ Composição de Amauri Junior.
Mas não queremos falar para os acadêmicos, mas sim para a dona Maria e o seu José, pois eles querem se informar. E a periferia dispara. Um, dois, três, quatro livros publicados. A elite treme. Agora favelado escreve livro, conta a história e a realidade da favela que a elite nunca soube, ou nunca quis contar direito. Os exércitos de sedentos por conhecimento estão espalhados dentro dos centros culturais e bibliotecas da periferia. A elite treme. Agora não vai mais poder falar o que quiser no jornal ou na novela, porque os periféricos vão questionar. O conhecimento trouxe a reflexão e a reflexão trouxe a ação, e agora a revolta está preparada, e a elite treme. Não queremos mais seu tênis, seus celulares. Não queremos mais ser mão de obra barata, e nem consumidores que não questionam a propaganda. Queremos conhecimento e transformações nas relações sociais. A elite treme. Agora não mais enquadramos madames no farol, e sim queremos ter os mesmos direitos das madames. E é por isso que a elite TEME.²
² O Manifesto do Sarau Poesia na Brasa foi escrito por Vagner Sampaio.
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Samanta agradece a presença de todos e dá os recados da noite. “Vou chamar aqui Alessandro Buzo, chega mais”. Com a presença registrada em diversos saraus na periferia, ele agradece a recepção e fala sobre alguns lançamentos de livros da literatura periférica. Comenta também sobre a última edição do Boletim do Kaos e manda um de seus poemas. Em seguida é chamado Caco Pontes, do Coletivo Poesia Maloqueirista³. “Bom, a gente ainda não tem condição de fazer turnê pela Europa, então a gente vai fazer turnê pelos guetos”. Ele faz alguns avisos sobre a última edição da revista Não Funciona, editada por seu coletivo, e em seguida emenda Nu Olhar, com voz calma e pausada: A gente vê gente pelas ruas da cidade. A gente vai passando e fica só olhando gente fora das janelas peixes sem aquário. ³ O Coletivo Poesia Maloqueirista surgiu há 6 anos, com os poetas Berimba de Jesus, Caco Pontes e Pedro Tostes. São responsáveis por intervenções poéticas, experimentações com outras linguagens, performances em espaços públicos e saraus. Também editam a Revista Não Funciona, com textos e poesias.
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A gente vê besta certeza guardada nu olhar a gente quer ir antes que chegue a hora as vezes e vê gente que diz assim: - aí bicho, isso daí não tá cum nada! Rabisca, amassa, chuta e tenta outra vez. A gente vê mas no fim da parada não enxerga quase nada. “Valeu, Sarau da Brasa, é nóis”, e sai sob aplausos. Andréia é a próxima poetisa. Já faz tempo que não vai ao sarau, mas pega o microfone e lê um poema de amor. “Eu te usei na minha carência, e você me usou na sua indecência”, encerra. “Uhuu”, alguém grita. Ela sorri e sai do palco. Uma pausa para lembrar que no próximo sarau será lançado o livro Coletivo 8542. A obra leva o nome do ônibus que atravessa a Brasilândia de norte a sul. Muito conhecido na região, é o meio de transporte que grande
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parte da comunidade utiliza para se locomover até o centro da cidade. “Boa noite a todos. É um prazer estar aqui”, diz Bimba, também do Poesia Maloqueirista, e adverte: Recomendações: evite namorar psicopatas. Evite mandar assassinar terapeutas. Evite suicidar-se nos trilhos do metrô. Não confunda cocaína com kundalini³. Não compartilhe seringas. Não trepe sem camisinha. Conserve seu medo. Incentive a coleta seletiva de lixo. Não rasgue cartas com juras de amor. Tenha uma dieta balanceada e compre iogurte especial para conseguir cagar religiosamente no mesmo horário todas as manhãs. Seja socialmente (in) útil. Vire o canudo. Dirija bêbado, mas não esqueça de andar com o suborno do policial. Não dê esmolas, faça doações a entidades de sua confiança e que já tenham experiência em administrar o caixa 2. Procure no google fotos das flores que nasceram no rio Tietê. Respire. Sinta o ar entrando suavemente pelos pulmões. Sinta uma energia de cor púrpura regenerando cada célula do seu corpo. Acredite na diversidade como base para a construção de uma cultura de paz. Redes de supermercados e lojas de (in)conveniências 4
Kundalini é um alegado poder espiritual primordial, ou energia cósmica. É o centro de força situado próximo à base à coluna e aos órgãos genitais.
são iguais em qualquer não-lugar do mundo. Abra os olhos e, antes de tentar acordar sonâmbulos e romper cortinas de silêncio, compre uma máscara de oxigênio. Isaac é chamado. Com voz tímida, ele anuncia: “meu nome é Isaac, vim aqui mandar um verso”, e logo emenda versos que falam sobre a negritude e a saudade. Ao término, antes que os aplausos cessem, Soraia vai ao palco para recitar versos recheados de religiosidade. Porque do umbandista ao evangélico, a convivência no quilombo é em harmonia. Direto do Sarau do Elo da Corrente, em Pirituba, aparece Seu João do Nascimento. Ele recita um de seus cordéis carregado com o sotaque que trouxe do sertão baiano: “...desta cidade muita gente está gostando. Nossa cidade virou canteiro de obra. O prefeito faz escola à revelia, enquanto o governador vai construindo rodovia”. Cheio de entusiasmo, ele mostra um engajamento político repleto de simplicidade. É a vez de Seu Antonio, um senhor de cabelos grisalhos que fala devagar, de modo claro. Ao comentar sobre suas escritas mais antigas, lembra que acreditava que “só interessa tornar público aquilo que tem sentido pra alguém além da gente”. Após um discurso sobre a sua nova visão, deixa ressoar um dos versos intimistas que por muitos anos ficaram guardados na gaveta. E sai sob gritos e aplausos. “Vou chamar aqui um cara que é ligado no 220W.
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Ele acorda de manhã já pensando na arte que vai praticar”, anuncia Samanta: “chega mais, Divino”. O membro do Elo da Corrente dá um sorriso discreto e inicia uma de suas intervenções. Com os braços abertos, lança um texto que parece uma oração, mas leva um rumo diferente: “Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora. Ághora. No chão da cidade, ruas escondem almas, almas da raça humana batem palmas. Ave-maria, cheia de grana, o senhor é fama, bendita miséria, caridade, servidão, preto pobre Jesus”. Após um breve silencia, a platéia vibra, e ele dá lugar a Dimas. O som do tambor de Amauri faz a abertura e, andando em meio ao público, o jovem ator exibe a sua voz de menino, repleta de reflexão: “meu peito se angustia, meu coração se retorce. Porque eu passo pela rua e só vejo sombras”. E ele se diz impotente, sem ter o que fazer: “eu não sei se eu passo em silêncio, ou se eu passo e grito. Eu não sei se eu vou passar vivo”. E finaliza: “porque se a gente se manifesta, se a gente grita, é porrada na cara, é borracha nas costas”. Lid’s, do Sarau da Ademar, na zona sul, assume a vez. Ela marca presença em diversos saraus da periferia. Passa um informe sobre as novidades da sua região e, em meio aos versos sobre padrões estéticos e alienantes, pergunta: “Será que você está condicionado desde sempre, aprisionado. Onde é que fica a essência, a elegância por excelência. Me diz qual
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é a sua natureza, pois ao homem resta a alma...”. Leko de Moraes, membro do coletivo, saúda a todos e faz um poema de amor: “o amor encontra a sua dignidade na vergonha. Envergonhar-se de um amor é ter orgulho dele. Choro por amor, despedaço-me por amor, fragmento-me por amor. Faço chantagem, digo o que não devo, estrago uma festa”. E fecha: “Quem ama não guarda o dinheiro na carteira, deixa avulso e amassado no bolso. É sintomático. Estará cantando Amado Batista sem querer. E se espantará que conhece a letra, egressa de alguma estação da infância. Só pode ser do radinho materno, ao lado do fogão. Sua mãe colocou aquelas canções em sua comida”. Samanta é chamada e, ao invés de recitar, prefere cantar uma de suas músicas. Com um pandeiro na mão, solta a voz fina e doce, ao ritmo que lembra um bom e velho samba. Para continuar o clima musical, entra Marcelo com uma viola caipira. Com chapéu de palha e blusa xadrez, o rapaz afina o instrumento e deixa as notas ressoarem pelo salão. “Vou no improviso, mas mesmo assim vou mandar brasa aí”, brinca. Antes de começar, narra o universo de sua letra: o ano de 2040, em que houve um furacão no sertão. “Foi um furacão que bateu aqui no sertão. Foi um furacão que bateu aqui no sertão. Mas isso não pode, não”, diz o refrão da composição que faz crítica ao descaso ambiental e suas consequências na natureza.
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Os poetas seguem recitando. A noite é longa e o público ocupa o Bar do Carlita. Mesmo com o frio, a calçada se enche de pessoas, que conversam ao ar livre. Alguns sentamse no chão, outros ficam em pé. Alguns param a conversa para observar, através das grades do portão, a movimentação que vem de dentro. - Pessoal, vamos dar um passo pra trás aí, para o pessoal que ta lá fora conseguir entrar -, brinca Sidnei, imitando a fala dos cobradores de transporte público. Mas lá a catraca é livre. A passagem e a palavra também. Há também quem chegue de mansinho e se aproxime da biblioteca. “Fica à vontade, pode ver e, se quiser algum livro, é só me dar um toque”, diz Chellmí, membro do coletivo. O espaço é preservado com cuidado. “Desculpa, eu tava dando uma ajeitada na biblioteca”, revela Elaine para justificar a demora para chegar ao palco. Ela também faz parte do coletivo, e divide com todos o seu poema “Versos sem Pecado”, que faz parte do Império Lampinho, livro com poesias de quatro mulheres. Eu faço versos sem pecado Aqui sou livre Para criticar as novas prisões As favelas são quilombos urbanos Onde as pessoas se refugiam para tentar fugir
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da margem da sociedade Nossas salas de estar são celas onde somos escravos Escravos mudos diante da tela Onde não há mais espaço para o diálogo Nossas salas de aula são lugares próprios para deformar (ao invés de formar) Aprendemos tudo, menos para pensar Questionar, analisar e votar As religiões ensinam a guerra Onde se discrimina e se mata em nome de um Deus que só pregou o amor O sistema de empurra, te engole, te esmaga e te digere Mãos de ferro invisíveis Acorde ou se ferre. Pessoas sentadas no chão dão espaço para quem circula. Um cachorro pastor alemão aguarda que alguém deixe cair um pedaço de carne no chão. E os poetas continuam a recitar. Agora é Sonia, figura importante do coletivo. Com voz baixa e discreta, lê um texto que escreveu em homenagem à morte de uma cantora chilena. Para fechar o sarau, todos os membros do coletivo se unem de novo no palco. Eles batucam, dão ritmo e cantam a versão de fechamento da música dos tambores. Desta vez as pessoas se levantam e dançam, comemorando mais uma noite de resistência poética no bairro que antes era manchado de sangue.
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Brasa acesa Do coração da Vila Brasilândia surge uma imagem diferente daquela conhecida das manchetes policiais. Hoje , entre os morros e vielas, existe arte e poesia.É uma brasa que virou chama e incendeia. Incendeia, revelando novos poetas e escritores da comunidade. É o Sarau Poesia na Brasa ou, como muitos apelidaram, “um bom lugar”, local onde é possível entrar, criar e se libertar. Criado em 5 de julho de 2008, o sarau tem como objetivo produzir e divulgar a arte da periferia. “Um, dois, três, quatro livros publicados. A elite treme. Agora favelado escreve livro, conta a história e a realidade da favela que a elite nunca soube, ou nunca quis contar direito”, diz o manifesto do Coletivo Cultural Poesia na Brasa, declamado em todos os saraus. O grupo é formado por pessoas que vieram de diferentes experiências com a arte, até se juntarem por um interesses em comum. Uma deles é o professor de história Diego Arias, 25 anos, que desde 2003 vinha tentando realizar algum projeto voltado para a comunidade. Na época, ele e um grupo de amigos criaram um fanzine com temática social e política. O primeiro exemplar foi divulgado de uma maneira curiosa. “Havia uma febre daquela galera que vendia bala no busão. Então a ideia era entrar, ir lá na frente e distribuir
um folhetinho”, conta Diego. O projeto não deu certo, mas ficou o desejo de fazer algo. Nos anos seguintes, o grupo acabou se desmembrando, já que alguns foram cursar faculdade em outras cidades. Em 2007, de volta à Brasilândia, decidiram se organizar. Frequentando os saraus que tomavam força nas periferias, inspiraram-se para montar o seu . “Antes de fazer qualquer coisa, resolvemos ver o que tava pegando. Não surgiu logo a ideia de fazer um sarau”, conta Diego. Uma grande fonte de inspiração foi o sarau da Cooperifa, na zona sul, onde iam todas as quartas-feiras. Lá conheceram poetas anônimos como a Dona Edith, deficiente visual que recita todos os textos de cabeça. “Não tem como não ficar inspirado quando ela está recitando”, completa Entre essas e outras referências, logo nasceu o Sarau Poesia na Brasa, no início realizado no Bar do Cardoso, na Rua Parapuã, uma das mais importantes da Brasilândia. A partir de março de 2009, as noites poéticas ganharam um novo lugar: o Bar do Carlita,mais distante do centro, porém, com um amplo espaço. . “A ideia é sempre assim: ir mais pra dentro do bairro, nunca sentido centro, sempre periferia”, completa o jovem. Para firmar o sarau na região, o coletivo contou com apoio do Sarau Elo da Corrente, direto da zona oeste da capital. “A princípio, o Michel [da Silva] e a Raquel [Almeida]
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deram uma força muito boa. A própria presença já é uma coisa fantástica”, conta Diego sobre a amizade. Apesar de os bairros serem vizinhos, não há transporte direto. “Você pode chegar ao cúmulo de pegar três ônibus pra ir aqui do lado. É horrível”, observa. Mas mesmo assim, ambos os coletivos se apóiam, participando de diversas iniciativas em comum. Nas primeiras experiências, ainda no Bar do Cardoso, o sarau reuniu cerca de 50 pessoas, da região e também de outros lugares. A iniciativa fez com que o bairro fosse visto de um modo menos preconceituoso. “Tinha uma mágoa muito grande dos moradores por causa da fama de violência aqui. Tanto que, há alguns anos, a gente nem podia apresentar o local de moradia como Brasilândia”, observa. Brasilândia: lar, doce lar Apesar da discriminação que os moradores sofrem, a paixão pelo bairro continua. “Qual é a visão que a gente tem da nossa casa? Sempre um local que teve problemas, mas que temos um carinho. A gente é responsável pelas coisas boas e ruins que acontecem”, observa Diego. Quanto aos órgãos oficiais que promovem a cultura, é nítido o descaso em relação ao bairro. “Em época de eleição, os caras montam um palanque, pagam um showzinho da banda de pagode mais conhecida do momento e já era. Essa
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é a cultura”, enfatiza, comentando que até as pistas de skate foram fechadas e os jovens tiveram que apelar para a quadra da escola. “O pessoal andava de skate no sábado e domingo jogava bola”. Mesmo sem apoio cultural, o coletivo se organizou e, através do VAI, conseguiu lançar livros dos poetas da comunidade. Entre os títulos estão Poemas e Prosa de Um Eu e Rua de Trás (livro duplo, com duas capas, e textos de Bárbara Lopes e Sonia Bischain), Antologia Poesia na Brasa (que reúne 47 escritores), Império Lampinho (coletânea só de mulheres, com ilustrações de Carolzinha Teixeira e poesias de Elaine Pessotti, Luciane Matos, Soraia Lima e Vanessa Rodrigues) e Coletivo 8542, com textos de Amauri Junior, Diego Arias, Chelmi da Silva, Felipe Augusto, Leko Moraes, Sidnei das Neves, Samanta Biotti e Vagner Sampaio. Todas as publicações foram organizadas entre os membros da comunidade, seja a ilustração, organização ou revisão dos textos. Com a tiragem de 500 exemplares (exceto a Antologia, com 800), grande parte dos livros é distribuída para a própria comunidade, principalmente no dia dos lançamentos. “O esquema é esse... A nossa porcentagem não é pra ficar com a gente, é pra doar”, observa Diego.
Tambor de poeta “Tambor, tambor, vai buscar quem mora longe, ô meu tambor, que é feito de couro e pau, vai levar todos poetas que falaram no sarau, ouvindo o som do meu tambor e também do berimbau, o sarau é coisa boa, com amigos é mais legal...” Em todos os saraus, a percussão abre o caminho para a poesia. Na última edição de cada mês, ainda tem o samba do Grupo Quilombrasa para aquecer o início da noite. “É um sinal de respeito, de estar abrindo aquilo pra você poder falar”, observa Diego sobre a letra, destacando que o intuito é mesmo convidar a todos para participar do sarau. Seja do teatro, da literatura, da fotografia ou até da religião umbandista, a diversidade aparece não só na comunidade, mas dentro do próprio coletivo. Tem gente envolvida com a percussão, o samba e o rap, esse representado po Chellmi, que se apresenta como “um jovem escritor paulista”. É ele quem organiza a biblioteca Carlos Assumpção, montada em todos os saraus, numa mesa de sinuca. O nome foi escolhido para homenagear o escritor, importante voz do movimento negro. E o coletivo até entrou em contato com o autor para lançar sua coletânea de poemas. intitulada “Tambores da noite”. É um resgate de um importante poeta que há tempos estava esquecido na memória brasileira.
Direto dos morros O sarau na Brasilândia fez com que os poetas adormecidos ressurgissem na região, desenterrando escritas guardadas há tempos. Uma das que ressurgiu para mostrar a sua poesia foi Sonia Bischain, que acabou sendo convidada para participar do Coletivo Cultural Poesia na Brasa. “Ela tem uns textos guardados na gaveta há um bom tempo. Há uns 15 anos ela não falava em público um poema seu. E ela quebrou isso no nosso sarau”, Sidnei das Neves, que também faz parte do coletivo. Já Francyelle Soares, de 14 anos, encontrou nos saraus um novo estímulo para os estudos. “Ela tem uns problemas de audição, não gostava de ler e não quer saber de nada. No sarau ela começou a se interessar, passou a ler, escreveu um versinho”, comenta Samanta Biotti sobre a garota que hoje é voz ativa nos encontros. E assim muitas vidas foram sendo tocadas. Mesmo admitindo que não pretende mudar o mundo, o grupo investe no espaço para dar novas oportunidades e visões à comunidade. “A literatura já existe aqui, o pessoal já escreve, já se expressa no teatro, na música, isso já tem aqui. Então só faltava abrir o espaço”, observa Sidnei. Por isso que um novo rosto entrando no sarau, prestando atenção ou folheando um livro da biblioteca já é motivo de felicidade
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para o coletivo. “Uma menina me falou: nossa, nunca li um livro, vou ler esse. Era o primeiro livro que ela ia ler e nós que estávamos lançando”, emociona-se Diego. Com a linguagem dos novos autores que se aproxima da realidade vivida no bairro, o coletivo acredita que é mais fácil alcançar o interesse das pessoas. “Você pega um poema que fala assim: o negócio aconteceu, mas o barato foi louco. Isso é muito mais compreensível”, destaca Diego, e acrescenta: “você não precisa de dicionário pra ler Sérgio Vaz. Da mesma forma você lê a poesia do cara e se emociona”. Para concretizar os projetos, a articulação entre diferentes coletivos surge como um ponto importante. Por isso sempre buscam contato com outros movimentos da periferia, para unir as margens. “Uma vez a gente foi em Taboão da Serra ver a peça Hospital da Gente [do grupo Clariô],num espaço muito louco lá. Conversando com o diretor da peça, ele falou: a gente tem que unir as bordas dessa pista. São Paulo é uma pista, se você pegar assim, vamos unir essas bordas, porque o negócio tá acontecendo nessas bordas, nas periferias, a gente precisa entrar em contato”, lembra Diego. Mesmo quando parece não existir território para disseminar ideais coletivos, sempre se encontra uma saída. São sonhos que se materializam, como observa o ator Dimas
Reis, frequentador do Sarau Poesia na Brasa e de outros da periferia. “Sonhos que podem ser materializados são aqueles que podem ser construídos coletivamente, sonhos coletivos”, reflete, ressaltando que deve haver uma organização por parte da comunidade, que vença o comodismo e enxergue como as mudanças são possíveis. Para o Coletivo Cultural Poesia na Brasa, os sonhos são muitos. E os caminhos já estão traçados e materializados. Poesia que une gerações Quando Antônio era jovem, ele gostava da arte das ruas, que burlava a censura da Ditadura Militar e alcançava as calçadas dos bairros mais distantes, como a Brasilândia. Mas a poesia daquela época não conseguiu ultrapassar as pressões da vigilância. Hoje, décadas depois, ele vê nascer em outros jovens uma nova forma de expressão artística. Aos 54 anos, Antonio Borges, frequentador do Sarau Poesia na Brasa, revela-se um apaixonado por cultura. Sempre à procura de sua identidade, a busca é em seu próprio bairro, a Brasilândia, local onde nasceu e cresceu. Seu primeiro poema surgiu sem querer, quando ainda estava na quarta série do Ensino Fundamental. “Pediram pra escrever uma redação e de repente eu escrevi uma poesia sobre os quatro continentes”, lembra, relatando que não
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acha isso importante, mas sim os versos apaixonados que escrevia em sua adolescência, impulso real para o seu gosto pela literatura. “Na minha adolescência, escrevi uma infinidade de poemas apaixonados, que combinam muito com canções de amor de Bossa Nova”, conta, e acrescenta: “esses poemas faziam sentido pra mim, mas não pro mundo”. Já nos anos 1970, participou de um movimento que unia jovens para fazer arte nas ruas, com muito desenho, poesia e protesto. “A gente tinha uma série de problemas, e cada um também foi cuidar da sua vida”, lembra. Passados os anos de chumbo, Antonio descobre que jovens estavam se reunindo em seu bairro para fazer poesia. Era o Sarau Poesia na Brasa. “Eu tava andando e vi essa molecada fazendo esse trabalho. Vim e virei assíduo participante... Relembro coisas daqueles tempos, como trabalhos meus e de meus colegas”, emociona-se. Para Antonio, o sarau é importante não apenas para a Brasilândia, mas para o mundo. “O nascimento disso prova que na periferia existe gente viva, que tem cultura, que tem o que dizer, e diz com força”, afirma. Então a comunidade se une: gente com estudo ou sem, com gostos e linguagens diversas. Mas unidas, acima de tudo. “É uma coisa muito rica que resgata a Brasilândia. Não é mais só o assassinato que aconteceu lá na esquina, mas essas pessoas que dizem
Seu Antonio, ao fundo
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o que tá pegando, cada um do seu jeito... Com rap, música, desenho ou fotografia”, observa. Ele fica doido e apaixonado de ver, segundo suas próprias palavras. É a cultura local se revelando. Porque, para ele, a cultura sempre esteve ali. Após estudar Física e Ciências Sociais na USP, sem concluir, participar de movimentos sociais e ver o PT (Partido dos Trabalhadores) nascer, hoje Antonio quer vivenciar a arte. “Cultura existe em qualquer lugar, de qualquer jeito. O ser humano não vive sem cultura, sem produzir ou criar, mesmo que a favor ou contra algo. O ser humano é cultura. Ele não é uma máquina de cultura, mas ele não funciona sem ela, mesmo que não tenha consciência disso”, enfatiza. Antonio ainda acredita que o movimento de literatura na periferia contribui para a aceitação e valorização da linguagem local, sem estereótipos ou padrões formais. “A cultura que não tem lugar naquela dita oficial fica fragilizada e se intimida”, observa, acrescentando que os saraus desmistificaram o fazer poesia, o que incentivou a comunidade a se aventurar no mundo das palavras. Das suas próprias palavras. E não importa onde a vida o leve, Antonio quer continuar indo aos novos quilombos: “independente do meu caminho, eu vou frequentar e incentivar pessoas a virem ao sarau, como eu já fiz e venho fazendo”. E a arte segue. Unindo e modificando vidas.
Bom humor até na solidão No microfone é anunciada uma poetisa que nunca leu suas poesias, mas que sempre esteve presente nos saraus. Então, de trás do balcão onde é servido o churrasquinho, surge Rose. Com avental e touca para proteger os cabelos, ela segue em passos tímidos rumo ao palco improvisado. Sorri, dá boa noite a todos e revela estar muito nervosa. Aponta para o caderno em uma das mãos e conta que o mantém desde 1987, quando tinha 12 anos de idade. Escolhe um de seus poemas mais antigos e divide os versos de amor com a comunidade. Entre uma parada e outra por nervosismo, termina e é aplaudida. Segundo Rose, essa é a primeira de muitas vezes que pretende dividir sua poesia. De volta à churrasqueira, ela confessa que é romântica e sente-se sozinha. “Já perdi três maridos”, conta a viúva. Enquanto isso, sua irmã, ao seu lado, ri de seus poemas e brinca, dizendo para tomar cuidado com ela. Mas Rose nem liga e continua mostrando o caderno com orgulho. “Às vezes tinha algum versinho que eu achava e gostava, daí guardava... Olha só isso, tem até receita de bolo”, diverte-se ao mostrar o caderno antigo, já com as páginas amareladas. Filha de pai baiano e mãe mineira, Rose guarda uma nostalgia recheada de romantismo. “Eu acho que sou muito solitária. Em meus pensamentos, na minha vida...”, conta,
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Rose
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sempre mostrando o caderno que, com cuidado, coloca a data e o horário em todas as citações anotadas à mão. Seus poemas sempre falam de amor e saudade. Mas apesar de sentir-se só, ela é bem humorada e faz piadas a todos os momentos. “Posso fazer uma brincadeira com você? Ah, eu adoro brincar!”, e mostra um papel antigo, cheio de frases irreverentes, escrito ainda em máquina de escrever. Segundo Rose, o nervosismo de recitar foi igual à primeira vez que cantou no karaokê. “Eu tô tremendo até agora, você não tem noção”, revela, comentando que uma amiga duvidou que ela fosse ao microfone. Para ela, a poesia que ouviu de um rapaz , a ajudou a tomar coragem. “Teve um moço que veio recitar e ofereceu pra mãe dele. Quando ele começou a falar, eu comecei a chorar”, conta, mostrando a sua grande sensibilidade. “Eu imaginei como se estivesse dizendo tudo aquilo pra minha mãe, porque ela morreu quando eu tinha 5 anos”. Ao fim da conversa, Rose pergunta: “eu fui bem, era o que vocês queriam?”. Um dos membros do coletivo passa e entrega o livro lançado naquela noite, o Coletivo 8542. Rose abre em uma página qualquer e vê um poema que fala de saudade. “Olha aí, é o destino”. Então anota o dia e o horário. Mais um poema para a sua coleção.
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Memórias da rua de trás “Diante de olhares incrédulos, contamos, enfim, o nosso lado da história. A história do lado de cá do Tietê, da área de risco, da rua de trás.” Sonia Regina Bischain O alto do bairro Freguesia do Ó oferece uma das melhores vistas de São Paulo. Ali, no Largo da Matriz, encontramos Sonia Bischain, membro do Coletivo Cultural Poesia na Brasa, que nos espera em frente à Casa de Cultura. Com estatura baixa e cabelos castanhos, seu rosto exibe algumas marcas do tempo, mas não esconde uma beleza serena. De expressões calmas e gestos contidos, quando fala, muitas vezes seus olhos fitam outro ponto, em busca de alguma fuga. Sua timidez é vencida após alguns minutos de conversa, e aos poucos ela se revela uma mulher cheia de ideais, que esconde um passado de luta por sua comunidade e resistência contra a Ditadura Militar. “Acho que eu sou como um vulcão, por fora quieto, parado, por dentro em constante ebulição. Quando a pressão é muito forte, revelo o que há por dentro”, revela Sonia sobre a sua personalidade. Enquanto folheia seu livro de poemas Rua de Trás 1, suas memórias tornam-se vivas nas palavras. “O lado de cá do rio, não é a Rua de Trás. A gente está do lado de lá, por isso a gente está na rua de trás. A diferença é uma cidade com prédios e oportunidades, e o lado de cá, é o lado abandonado”, explica. Fotógrafa e designer, ela foi a responsável pela capa do livro, que trás uma fotomontagem com prédios do centro de São Paulo,
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O livro Rua de Trás foi lançado em julho de 2009 pelo Coletivo Cultural Poesia na Brasa.
contrastando com um córrego a céu aberto na Brasilândia. No passado, o córrego era um rio, e hoje foi pavimentado para dar espaço a uma grande avenida. “Uma avenida que volta a ser rio quando tem chuva”, denuncia. Mãe, poetisa de mão cheia, amiga e companheira de luta. É assim que alguns veem Sonia, sempre com muito respeito e admiração. Antes do sarau, ela era conhecida pelos jovens do Coletivo Poesia na Brasa como a mãe dos amigos Fernando, Flávia e Yan. Uma mãe diferente, daquelas que conversam sobre tudo. Depois que leu uma poesia em sua primeira visita ao sarau, todos se surpreenderam. “Acho que eles nem sabiam que eu escrevia. Pouco tempo depois eu estava fazendo parte do coletivo”, lembra Sonia que, após a experiência, abriu as gavetas de casa, desenterrando poesias e fotos antigas.
A Brasa de ontem A Brasilândia que Sonia conheceu na infância pouco lembra a aura de um lugar violento e empobrecido, imagem que hoje marca o bairro. Naquela época, o lugar mais parecia uma bucólica cidade de interior, com pouca infraestrutura, mas com uma boa qualidade de vida. Filha de mãe mineira e pai paulista, a fotógrafa nasceu em 1957 e cresceu na Vila Penteado, um dos loteamentos pioneiros da Vila Brasilândia. Seus pais se mudaram para lá em 1971, levando os quatro filhos. Naquele tempo, a vila era um lugar afastado, com poucas casas e uma bela vista para o verde da Serra da Cantareira. O chão era de terra batida, e não havia energia elétrica nem água encanada. As lembranças da década de 1960 são muitas. As brincadeiras no quintal, onde comia fruta no pé, os banhos de rio e pescarias, os vagalumes, os vizinhos que se conheciam pelo nome e que, em dias de calor, colocavam suas cadeiras na frente das casas para observar o céu estrelado. Apesar do clima pacato, a presença de alguns carros estranhos
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despertava a curiosidade de muitos moradores. Mais tarde, Sonia e de um jornal comunitário. descobriu que aqueles homens faziam parte de uma milícia a serviço Mas a vida política de Sonia não se limitava aos movimentos da ditadura. Por se encontrar nas bordas da cidade, seu bairro foi sociais e culturais da Brasilândia. Ela também mergulhou no ativismo escolhido como um ponto de “desova” de presos políticos. político que acontecia na “rua de lá”, depois do Rio Tietê. “Participei da campanha pela Anistia, contra a censura e pelas Diretas Já”, lembra Uma vida entre a arte e a política ela, que também ajudou a fundar o PT no distrito. Política, música e arte. Esses são os temas que despertam a paixão de Sonia pela vida. O ativismo político começou cedo e a acompanhou durante muitos anos, nos quais lutou em movimentos comunitários e pela democracia no Brasil. Aos 12 anos de idade, ela já esboçava os primeiros poemas, criava desenhos e pinturas, e logo começou a participar de festivais de música nas escolas. Com 16 anos, integrou as comissões de moradores que batalhavam por melhorias locais. “As dificuldades sempre foram grandes, as pessoas tinham que ter muita boa vontade e garra, pois muita coisa dependia dos órgãos públicos, e tudo sempre foi muito lento”, explica. Naquela época, não existia posto de saúde, creche, hospital ou rede de esgoto nas comunidades vizinhas. Por quase dez anos, Sonia se juntou a lideranças comunitárias da Brasilândia para exigir ações concretas do poder público. Muitas reuniões e ações foram incentivadas por padres que seguiam a Teologia da Libertação. As vitórias foram árduas, mas aos poucos elas apareceram. Em 1980, a comunidade conseguiu uma creche e um posto de saúde na Vila Penteado, o Pronto Socorro 21 de Junho. Em 1976, ela participou da fundação da Ação Comunitária Todos Irmãos, entidade que desenvolvia atividades com crianças. Em 1988, mais uma conquista: a criação do Hospital de Vila Penteado, construído após muita pressão do movimento de mulheres do bairro. No começo dos anos 70, com um grupo de amigos, Sonia ocupava praças públicas em seu bairro para levar atividades de artes plásticas e teatro dentro do projeto “Arte na Praça”. “Levávamos cartolinas, lápis, tintas e fazíamos uns varais onde qualquer criança podia pintar o sete”, lembra. Mais tarde, ela participaria da criação de uma revista, A Aldeia,
Polícia à espreita A participação política de Sonia começou a chamar atenção. Aos poucos, ela percebeu que estava sendo seguida por dois policiais à paisana. Aonde ia, enxergava o rosto daqueles homens. Mas aquela menina baixinha e invocada, como alguns amigos se referiam a ela, não tinha medo. “O pau comia solto, mas eu era corajosa”, revela, contando que teve sorte, porque nunca sofreu tortura: “no máximo alguns pontapés em manifestações de rua”. Por muito tempo Sonia trabalhou em gráficas e tinha contato em primeira mão com os exemplares de jornais e revistas que iam para as bancas, antes de serem barrados pela censura. Ela tinha o costume de guardar os exemplares em casa, com destaque para as edições do jornal Pasquim. Em um certo dia, no ano de 1978, quando chegou em casa, sua mãe estava queimando seu arquivo de revistas, poesias, letras de música, jornais alternativos e todo tipo de material que poderia ser classificado como subversivo. “Levaram meu pai a uma delegacia e fizeram uma série de ameaças a meu respeito, eu estava em horário de trabalho. Quando cheguei em casa, minha mãe, com medo da repressão, havia juntado muitos papéis que eu guardava, e fez uma imensa fogueira no quintal. Então, quase tudo anterior a 1978 foi queimado”, relata, sem esconder uma ponta de tristeza.
Música engajada Fã de Chico Buarque, Bob Dylan e Mercedes Sosa, Sonia gosta
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de músicas que provocam reflexão sobre as injustiças sociais, com letras de protesto. E ela tem muitas histórias para contar sobre os shows dos anos de chumbo. A conversa inicial é sobre a cantora chilena Mercedes Sosa, cuja morte, em 2009, rendeu um bonito poema. Mercedes Sonia Bischain Mercedes, pessoa especial e rara, não ficou presa em seu próprio mundo, abriu a porta deixando por ela entrar povos de muitas outras terras. Cantou com Inti-Illimani: “Si somos americanos, Tenemos las mismas manos, Brancos, índios, mestiços e negros”. Mercedes, La Negra de Tucumã herança indígena, força e magia, encanto da América, “Canto Livre” da voz assassinada de Victor. mãos que se unem “a todas las manos”. ,elodiosa canção dos pássaros da Terra de Atahualpa. Tirou das sombras as flores feridas Desta América saqueada. em quatro de outubro nos deixou, dia no nascimento de Violeta.
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O Chile entra em pauta e ela logo lembra do cantor Victor Jara que, no regime do ditador Pinochet, ficou preso em um estádio e foi torturado até a morte. Quando Sonia imita Jará, fazendo gestos com as mãos, como se estivesse tocando violão, ela faz uma pausa e seus olhos começam a marejar. Apesar de não ter estado lá, Sonia sente uma profunda dor. “Era um cantor de oposição ao regime. Dizem que ele foi tocar violão e os policiais espancaram as suas mãos. Mesmo assim, sangrando muito, ele não parou de tocar”, conta emocionada. Outra passagem marcante foi nos anos 1980. A cantora americana Joan Baez se preparava para se apresentar no palco do TUCA (Teatro da Universidade Católica de São Paulo). O local estava lotado e, horas antes do show começar, a polícia proibiu o concerto, afirmando que as canções não tinham sido encaminhadas previamente para a censura. “A ordem era para a cantora não subir no palco, senão ela seria presa”, lembra Sonia, que estava na plateia e não esconde um brilho nos olhos ao lembrar do episódio. Mesmo assim, Baez pegou o violão e juntou-se ao público. De mãos dadas em uma grande corrente, o público cantou junto a música Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré.
Poesia que acende Aos 52 anos, Sonia sente saudades da energia política que pulsava nas pessoas. Sobre o assunto, ela ainda faz uma mea-culpa. “Acho que um dia acabei entrando na rotina, tive filhos e fiquei um bom tempo longe da luta, mas mesmo sem tempo não deixei de procurar informação”. Hoje ela continua trabalhando em gráfica, faz fotos, revisões de textos e diagramação de livros. Mora com o marido e o filho caçula. “Os outros dois estudam fora”, conta, sem esconder a saudade. Em movimentos políticos, prefere não participar de nenhum. “Depois do PT virar governo, fiquei um pouco decepcionada”, revela. Sem exercitar a militância política, é na poesia que ela reflete sua indignação e sensibilidade. “Observo a vida, as pessoas, me sensibilizo com seus problemas e dificuldades, algumas situações me doem, escrevo para aliviar a dor e um pouco para cutucar as pessoas e fazê-las reagir”,
comenta. Através do Sarau da Brasa, Sonia já lançou o livro Rua de Trás e participou de uma antologia de poesias. Para ela, o Sarau da Brasa reacendeu uma força que estava apagada na Brasilândia. “Acho que é a chama da juventude, a disposição, esse querer mudar o mundo, revolucionar, é um fogo que contagia pessoas de todas as idades”.
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Pedagogia de um jovem rapper No alto do bairro Vila Nova Cachoeirinha desponta um prédio imponente. O Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso, conhecido como CCJ, é o espaço público cultural de maior destaque na zona norte. É domingo e alguns jovens punks sentam-se em círculos na entrada, à espera de um show de rock. Dentro do edifício, meninos ensaiam passos de break num grande salão, sem atrapalhar os que leem na biblioteca. O prédio de 8 mil metros quadrados é uma grande babel da juventude e ponto de encontro de diversas tribos que utilizam a moderna infraestrutura do espaço para consumir e produzir cultura. Lá tem biblioteca, ilhas de edição de vídeo e áudio, galeria para exposições, sala de projetos e oficinas, anfiteatro, teatro de arena, internet livre, laboratórios de idiomas e pesquisas, estúdio para gravações, ateliê de artes plásticas, além de uma ampla área de convivência. “Aqui eu gravei meu cd e toquei para algumas pessoas”, conta o rapper Réu sobre o carinho que tem pelo espaço em que escolheu ser entrevistado. Apelido de Israel Neto, Réu é um educador e MC que, armado de cultura e pedagogia, faz a sua revolução pessoal repleta de ideais. Aos 22 anos, este jovem negro, magro e simpático, personifica como poucos a capacidade de transformação.
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Morador da Brasilândia desde que nasceu, já fez de tudo um pouco. Após entrar em uma escola pela primeira vez como oficineiro, descobriu sua vocação. Então tomou a decisão: viver do que gosta, como educador e agitador cultural. Com formação do nível médio, se preparou fazendo cursos livres na área de direitos humanos e educação popular utilizando a pedagogia de Paulo Freire. Deu certo. Hoje Réu acumula diversas responsabilidades: monitora oficinas, participa do coletivo Literatura Suburbana, é educador do Instituto Sou da Paz, criou o projeto Escola da África, a Oficina Produção Suburbana e o Espaço Cultural do Morro em escolas públicas, além de cuidar de atividades no CCJ e em sua comunidade. No meio de tudo isso, ele ainda encontra tempo para realizar shows e participar de saraus. Tanto o gosto pela música quanto pela literatura foram influências de casa. Fã de rap – é MC há dez anos -, o primeiro disco que fez sua cabeça foi o da banda brasiliense Câmbio Negro e o hit Sub-raça. A identificação com os ritmos negros começou nos bailes black da zona norte que sua mãe frequentava. Em casa, James Brown e Barry White não saíam da vitrola. Além da música, a mãe de Réu sempre o incentivou a ler, presenteando-o com diversos livros. “O primeiro livro é igual à primeira namorada: a gente não esquece”, brinca ao se referir a Anjos da Morte, de Pedro
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Bandeira, o primeiro livro que leu. A música e o rap foram fundamentais para que Réu mudasse o rumo de sua vida. “O hip hop me aproximou de outras coisas. Senão eu estaria concentrado num mundinho alienado que talvez uma boa porcentagem dos jovens esteja hoje”, diz. Africanidade em sala de aula Quando garoto, Réu ouvia de colegas comentários sobre seu nariz largo, sua cor e seu cabelo. Na época ele achava que a vida era assim mesmo. Poucos anos depois, foi entender que o preconceito estava tão arraigado na sociedade brasileira que algo deveria ser feito. Primeiro veio o hip hop e a banda Literatura Suburbana. Depois a vontade de trabalhar a cultura negra com as crianças. Então criou um projeto chamado Escola da África, um curso para ensinar cultura africana nas escolas da periferia da zona norte. Com o objetivo de inserir elementos da cultura afro-brasileira na educação, o programa inclui o resgate da música, personagens históricos, jogos e ritos. São assuntos como a língua bantu, o jogo de Mancala, a personagem Dandara, os búzios africanos e os rituais religiosos. Pode-se dizer que esse projeto foi o embrião do coletivo. Réu já havia iniciado algumas oficinas de hip hop, até o dia
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em que descobriu que uma lei¹ iria obrigar o ensino da cultura afro-brasileira nas escolas. Foi o ponto de partida para levar o assunto para o ensino público, por meio de palestras. “A gente começou em 2005, 2006 a fazer palestras. Fomos a 17 escolas da região. Tinha escola que a gente fazia três palestras por dia sobre a lei, trocava idéia sobre a escravidão, cantava e tudo mais”, comenta. Na prática, a lei acabou não sendo implementada, o que valorizou ainda mais a iniciativa da Escola da África que, de palestra em palestra, ganhou corpo e virou curso com metodologia própria. “Eu falo que é o melhor projeto que a gente tem porque é o que tem maior retorno. Você vê a mudança nas crianças, até no tratamento com elas mesmas.”, conta Réu, e destaca: “é um projeto que vale muito a pena, a gente fala que é a nossa menina dos olhos”. Coletivo Suburbano, na trilha da literatura No início, o Literatura Suburbana era apenas Réu e Guinho. “Esse projeto deu outros frutos e resolvemos nos organizar como coletivo, para talvez fazer ações como essas e outras que a gente sempre pensou em fazer, mas nunca teve 1
A Lei nº 10.639 foi promulgada no dia 9 de janeiro de 2003 e torna obrigatório o ensino da história e da cultura africana nas escolas de Ensino Fundamental e Médio. A lei evoluiria para a Lei 11645/2008 , que também inclui a temática Indígena nos currículos.
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organização”, lembra. A partir daí, o coletivo ganhou novos integrantes como Anderson Silva, Dimas Reis, Avelino e Elton Ramos, além de colaboradores que atuam em outras áreas, apoiando as ações do grupo. Foi Anderson quem trouxe a literatura para o coletivo. “Ele já escrevia poesia. Todos nós escrevíamos, mas não considerávamos como poesia. Uma vez ele pirou. Queria fazer um livro e a gente falou ‘não tem dinheiro pra isso’. Aí começamos a fazer os informativos e já estamos na edição número 31, à la fanzine” conta Réu. Daí em diante, começaram a produzir livretos de forma independente, com papel comum mesmo. “A gente começou um esquema legal porque na região não tinha esse lance da literatura periférica, tinha só o rap e ainda hoje ainda é bem fraco, porque não tem uma mobilização para que o negócio aconteça”, diz. Pensando em aproximar os jovens da literatura e da poesia, o coletivo apostou no lançamento de livretos e de textos que desmistificavam aquela impressão de que o poeta é um cara que está morto, é velho, não fala na gíria e não possui textos mais malandreados. O primeiro foi o livro de Anderson, Reflexões de um Homem Preto, em 2007. “Eram só poesias dele. E aí o negócio começou a virar. Disso viriam outros poetas que já escreviam aqui e não tinham oportunidade de lançar. Metade era distribuído, metade era
vendida”, conta Réu. No esquema informativo (livreto) e palestras, ele acredita que o grupo conseguiu divulgar bem seu trabalho. Com essas ações, os poetas da região começaram a sair do armário, trazendo seus versos e textos, às vezes escritos há anos, mas para os quais não havia perspectiva de publicação. A variedade de autores contribui para uma diversidade de temas, fator que permitiu que diferentes públicos fossem alcançados. “No começo, cada livreto era de um poeta. Depois, o terceiro filho foi o Coração Denunciador, do Bruno Pastore. Ele tem um lado mais lírico. Esse pessoal vem agregando muito para o coletivo, até pela bagagem”, observa. Com isso, as palestras do coletivo começaram a virar saraus, unindo cada vez mais música e poesia. O próximo passo foi preparar a coletânea Poetas Suburbanos, com seis poesias de jovens poetas. Com o valor de R$1, os livretos venderam que nem água. Literatura na Brasa Por conta das diversas atividades, Réu e sua turma criaram laços com outros coletivos e grupos culturais. O primeiro foi com o pessoal do Sarau Poesia na Brasa. “Pra gente que não realiza tantos saraus, é bacana porque eles têm
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o espaço e a gente pode ir lá comungar, conhecer gente e tudo mais. Com aquela estrutura que a gente via na Cooperifa e no centro, agora a gente vê na nossa região”, comenta Réu, que hoje tem uma extensa rede pessoal e soma forças com diversos projetos como o Projeto LixoArte, Tenda Literária, Elo da Corrente, Sarau Poesia na Brasa, Unibeijaflor, o Grupo Bolinho de Taipas, CCJ, Ação Educativa, Favela Atitude, entre outros. Mas Réu é crítico em relação aos espaços dos bares, onde a maioria dos saraus acontece. Como faz um trabalho mais voltado aos adolescentes, ele acha difícil que haja uma integração entre esse público e o ambiente. “Eu brinco dizendo que a revolução não pode ser regada a álcool. É uma reflexão que eu faço: 80% dos saraus periféricos são em bares. Eu fico imaginando, um cara que está dando oficina e o adolescente vem pra cá, começa a beber. Os heróis dele estão ali, recitando as poesias dele. Acho que a gente tem que criar novos espaços sadios para promover essa literatura”, defende. À procura da identidade e de novos heróis
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dos projetos mais importantes para Réu. “Quando um negro conhece a sua história, ele sente autoestima. Quando um menino branco conhece a história dele e do outro, ele valoriza. Lá dentro do curso tem um texto da Raquel Almeida, do Elo da Corrente, chamado O meu Cabelo. Eu sempre gosto de trabalhar com esse texto, e as meninas gostam muito, se identificavam. Tem uma frase do Mandela que diz que ninguém nasce racista e preconceituoso. Que isso se cria”. Para Réu, essa falta de aceitação é refletida cedo entre os jovens negros. Uns têm vergonha dos traços e características físicas, outros alisam o cabelo, tentando se distanciar cada vez mais da sua identidade. “A questão racial é muito forte, esse lance de afirmação e reafirmação. Gosto de fazer esse contraste com crianças, adolescentes, jovens. Acho que hip hop e a poesia têm que respirar outros ares, a gente não pode ser intelectual demais, tem que fazer esse meio termo”, acrescenta. Uma das letras de Réu, Sonho de Moleque, fala desse reconhecimento do negro. É uma crítica aos comentários constantes de que eles pregam um racismo ao inverso ao defenderem que o negro tem que se reconhecer:
Permitir o reconhecimento, para os adolescentes, do “Mesmo sofrendo sonho contigo a todo momento, me vejo em seu valor como negro e descendente da cultura afro. Esse é cada africano brasileiro. No contexto histórico me vejo faz tempo, um dos motivos que faz com que a Escola da África seja um a minha história não começou em um navio. Você viu o que falei
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pra você na outra letra, a decadência está em não conhecer a nossa descendência. Continue lendo a revistaVeja e pensando que todo africano é um poço de desgosto. No olhar de cada um vejo minha antiga família, a cantiga que soava no ouvido da minha bisa. Ah! Tenha dó negão, o que você está falando, tá afirmando que meu sangue é influência banto? Sou quase branco, está todo mundo miscigenado. Só vocês querem bancar de auto afirmado. Racismo ao contrário é o que vocês estão pregando, dividindo o povo nessa de ficar se declarando, políticas públicas pros pretos do Brasil, educação étnica racial, cota social, feriado nacional, porque pro boy é melhor ver a gente excluído. Limpando panelinha com um sorriso...” A questão racial é levada a sério por Réu, que carrega inúmeros questionamentos consigo. “A cultura africana sempre pregou a união, a começar pelos quilombos, que tinham índios, negros e brancos. A gente continua nessa, falando que o movimento negro é aberto, pode vir, e os movimentos de outras etnias continuam reafirmando que não. Por exemplo, não existe um negro participando de um templo budista, não como líderes, mas eu posso te falar pelo menos dois babalorixás japoneses. Qual é o esporte que mais tem negro, futebol. Quantos dirigentes negros têm? Sabe, então a gente continua sendo mão-de-obra.”, reflete. Réu quer levar essa reflexão à frente, para que haja
mudança e integração: “e ver a posição do negro até nos próprios movimentos, pois muitas vezes a gente fica de segunda”, diz. Em seu caso, a seriedade com que encara o tema da identidade negra pode ser mais uma herança de família, que vem desde os seus antepassados. A bisavó, com quem ele lamenta ter tido apenas uma única oportunidade para conversar antes que falecesse, chegou a vivenciar o período pós-escravidão. Os avós paternos são de Pernambuco, de uma região um pouco acima de Palmares. Já os avós maternos são de Minas Gerais e do Espírito Santo, de onde ele ouviu histórias contadas sobre um forte quilombo de lá, o quilombo do negro Lucas, considerado herói. “Precisamos conhecer nossos heróis. Tem um texto meu que fala, ‘os nossos heróis vão morrer novamente de overdose?’ Nossos heróis são os atores culturais, mas eles têm que ser palpáveis. Se na Escola da África eu trabalhar Luther King, Steve Biko, vai ficar distante para eles. Tem que trabalhar Zumbi dos Palmares, José do Patrocínio, Dandara, Anastácia, algo próximo, mas que ainda fica no passado. Hoje, a gente houve que no passado os jovens lutavam mais. De fato, a gente precisa de heróis novos e vivos. Mas esses próprios heróis vivem se contradizendo”, completa.
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Um jovem brasileiro O trabalho desenvolvido por ele parece ter um propósito maior do que possibilitar o acesso à cultura aos jovens da zona norte. Ele quer dar as ferramentas necessárias para que cada um tenha a coragem de fazer o que gosta, e se reconheça como negro. É uma briga benéfica entre o “querer e poder” versus o “ter e dever”. “Eu sou bem chato, eu acho que a gente não pode se rebaixar. Nem falo por mim, falo também pelos meninos. Eu falo: você gosta de fazer o que? Então vai viver do que você gosta de fazer’”, diz sem desmerecer as profissões, apenas manifestando a preocupação de que os jovens passem a vida presos, desperdiçando talentos e oportunidades. “Mas são as portas que se abrem para o jovem trabalhar hoje. Eles acham que é legal ganhar um vale-refeição, um transporte e trabalhar seis horas por dia”, diz. Ao final da conversa, na pausa para fotos, Réu lembra uma informação que faltava: “esqueci! Este ano eu ganhei o Prêmio Jovem Brasileiro”. Réu foi o vencedor na categoria Social/Cultural, que contemplou o seu trabalho com o coletivo Literatura Suburbana. Sua caminhada só está no início.
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No fim da linha 24 de dezembro de 1948. Na véspera de Natal, nascia oficialmente o bairro de Guaianases, com cerca de 10 mil habitantes, no extremo leste da capital paulista. Conhecida como bairro-dormitório, a região era ligada ao centro da cidade apenas por uma linha de trem, o que começou a mudar no final da década de 1950. A baixa remuneração fez brotar um bairro com residências muitas vezes construídas em áreas de risco, como próximas a mananciais ou sujeitas a enchentes. Hoje, pouca coisa mudou. Os 25 km que separam o bairro de Guaianases do centro já não precisam ser percorridos apenas de trem, pois agora contam com linhas de ônibus. Mas não espere encontrar centros culturais, teatros, espaços para lazer ou algo do gênero. Nesse aspecto, a região nasceu e continua carente. Uma pesquisa de 2003 do Centro de Estudos da Metrópole da USP (Universidade de São Paulo) apontou Guaianases como uma das áreas mais vulneráveis da capital, seguida de bairros como Jardim Ângela, Grajaú, Pedreira, Campo Limpo, Jardim São Luiz e Jardim Helena. O mapeamento considerou o acesso – ou a falta dele – da população a saúde, educação, qualidade das moradias, segurança, cultura e lazer.
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Em Guaianases há apenas duas bibliotecas municipais, quatro Centros Desportivos Municipais (CDMs) e o CEU Jambeiro, que reúne quadras, piscinas e mais uma biblioteca. Aos finais de semana, o CEU chega a reunir quase mil pessoas. As praças são poucas, e os campos de futebol estão em condições precárias de uso. Aos domingos, os moradores podem aproveitar as “ruas de lazer”, vias fechadas que permitem um momento de recreação. Existe ainda a Casa de Cultura de Guaianases, inaugurada em 2009, o espaço é uma antiga reinvidicação dos moradores e conta com programação voltada para oficinas e apresentações culturais. Enquanto novas oportunidades de acesso à cultura e lazer não são criadas, tem gente que decidiu colocar a mão na massa e aproximar a literatura da população. Uma dessas iniciativas é o projeto Tenda Literária, onde um coletivo de jovens da zona leste decidiu ocupar uma praça pública com eventos de literatura.
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TENDA LITERรกRIA
Próxima estação: poesia Percorrendo a linha E da CPTM, no trecho que liga a estação Luz a Guaianases, cada espaço no vagão é disputado. Isso porque é sábado e o relógio marca 13 horas. Entre uma parada e outra, o caminho é longo, e aos poucos a paisagem muda. Prédios dão lugar a casas amontoadas e rios canalizados são substituídos por córregos a céu aberto. - Olha lá, o rio ta “alargando” -, comenta um rapaz com o amigo, que observa a paisagem do lado de fora. - Vixi, mano, será que vai rolar de ir pra festa à noite? - É rezar pra parar de chover, senão “alarga” tudo, vixi vai “alargá” tudo. Uma voz anuncia a chegada à estação Guaianases. A forte chuva desde o dia anterior faz com que inunde o córrego localizado em frente aos trilhos. São Paulo é a terra da garoa. E a chuva castiga quem fica às margens. Se de um lado da avenida as águas correm em alta velocidade, do outro, os muros altos, de cor cinza, compõe um cenário suburbano castigado pela pobreza e falta de arborização. Nas ruas alagadas, pessoas amontoam-se embaixo dos toldos de comércios e aguardam até que o nível do rio abaixe. Um grupo de evangélicas pisa cuidadosamente na calçada. Ao levantarem as saias, seguem em frente, atraindo o olhar de dois rapazes em uma loja.
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Em frente ao Mercado Municipal Leonor Quadros, o conhecido Mercadão de Guaianases, há um espaço protegido da chuva. É um espaço amplo, embaixo de um viaduto, em que acontece uma feira de artesanato. Nas barracas, mulheres vendem bonecas de crochê, panos e bijuterias. No canto, tecidos coloridos formam uma tenda. Mesmo após a tempestade, a Tenda Literária está armada, com um toldo e muitas palavras. No chão, há boletins e livros espalhados para quem quiser passar, parar e olhar. A variedade é muita, mas a maioria são títulos de literatura periférica. Bancos de plástico são espalhados pelo espaço, com pranchetas e canetas para quem quiser participar. O espaço é aberto e o ambiente é convidativo, já que os organizadores recebem a todos com um sorriso caloroso de boas-vindas. Na 4ª edição da Tenda Literária, o tema é Oficina de Editoração e Confecção de Livros Artesanais, sob o comando do Coletivo Literatura Suburbana. Antes da atividade, o convidado Rodrigo Ciríaco, “professor de história e estórias”, como ele mesmo se define, fala sobre a sua trajetória profissional e seus projetos com alunos da rede pública de ensino. Ele conta como é levar uma outra visão sobre literatura aos alunos. E introduz a poesia onde todos achavam que não havia espaço. Com o apoio de um telão, ele faz uma apresentação
interativa, mostrando muitas fotos. Todos ficam atentos, e quem passa por perto acaba parando pra ver o que acontece. Em silêncio, as pessoas ouvem as palavras do professor de história apaixonado por literatura que, ao mostrar tanto amor pelo que faz, contagia ao público. Alguns chegam, aproximam-se e olham com desconfiança. Mas ele cativa com o sorriso e o jeito descontraído. “Tem um barato que é contraditório. A literatura periférica não gosta de ser chamada de marginal, mas ela é marginalizada”, diz ao abrir a palestra e comentar sobre o ensino dito oficial, reconhecido pelo Estado, que é utilizado nas escolas. “A literatura periférica, por ser da periferia, e por ser marginalizada, ela não tem um espaço garantido dentro da escola. Há um preconceito muito forte por parte dos professores, principalmente os de Português”, observa. Sem lugar garantido nas escolas, a literatura periférica encontrou Rodrigo como um forte aliado para levar a informação aos alunos. Ao longo dos quatro anos em que exerce o cargo, o professor de História desenvolveu projetos para incentivo da leitura. Sem visar nota, com atividades dentro e fora da sala de aula, ele buscou levar uma nova visão do livro. “Participava quem queria e quem gostava. A primeira coisa que eu fiz para tentar dividir essa paixão pela literatura com os alunos, foi através dos saraus”, conta. Munido com obras da literatura periférica e também
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clássicos pois, segundo ele, não se deve direcionar a leitura, mas apresentar diversas opções para que o próprio jovem se identifique, chegou à sala de aula e propôs um sarau. “Na sala de aula, uma vez por mês ou uma vez a cada dois meses, eu virava pra galera e falava: vamos fazer um sarau! Aí eu explicava que sarau é uma atividade cultural em que a gente pode contar histórias, pode declamar poemas, pode cantar, pode fazer qualquer coisa”, explica. As regras eram apenas três: apresentação, silêncio e palmas. “Pode vaiar?”, perguntavam vários alunos nas primeiras vezes, e Rodrigo respondia: “Não, não pode. Se não gostou, fica quieto, vem aqui na frente e faz melhor. Daí o pessoal gritava: ehhhhhh”, brinca, deixando mostrar o modo natural com que trata seu alunos, em sua maioria adolescentes da 5ª a 8ª série do Ensino Fundamental. “O pessoal torcia o nariz... Literatura, poesia? Literatura é uma palavra dura, lembra amargura, ditadura, rapadura... Alguns falavam: ah, professor, poesia é coisa de viado! Aí eu falava: posso começar o sarau, então? Posso ler um poema? Daí eu gostava sempre de abrir os primeiros saraus com um poema do Gaspar do Zafrica Brasil”, lembra. A letra sempre causava impacto e identificação: “os alunos costumavam indagar, falando que isso era rap, e não poesia. E eu respondia: rap quer dizer ritmo e poesia. E então eles se envolviam com a ideia”. Rodrigo ainda comenta sobre
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a qualidade dos livros nas escolas públicas: muitos são bons, mas ficam trancados, intactos, sem acesso direto aos alunos. “Os professores mostram com orgulhos as capas dos livros sem marcas, e eu pensava: que merda, o que adianta o livro estar lá na estante morto? Um livro bonito, nunca mexido, é um livro morto”, enfatiza. Ao mostrar diversas fotos de seus alunos lendo, o professor ironiza: “isso é porque as pessoas acham que a molecada não gosta de ler... Olha aí. Isso que eu não obrigo ninguém a ler. Eles têm total liberdade de participar ou não”. Apesar de fazer parte da Cooperifa, sua paixão pelos livros veio antes de conhecer o quilombo cultural. Ao encontrar com uma amiga que passava por uma fase difícil na vida, descobriu que ela estava transformando as experiências em versos. E assim surgiu sua forte identificação com o movimento literário. Com o intuito de também passar uma experiência desse tipo, Rodrigo teve a idéia de levar escritores periféricos a sua escola. Assim nasceu o Encontro com o Autor., atividade que faz parte do projeto Literatura é Possível. O primeiro convidado foi Sérgio Vaz, em 2006. Outros nomes de peso participaram, como Sacolinha, Alessandro Buzo, Marcelino Freire e Allan da Rosa. “Tenho que agradecer a todos os escritores que passaram, pois a maior parte deles foi na raça, sem cobrar nada. Muitos
levaram livros e doaram”, conta o professor, que nunca teve apoio das escolas ou de alguma ONG. “Sempre quem bancou o projeto fui eu”. Rodrigo ainda faz uma brincadeira em uma foto em que aparece a lousa: “ vocês veem que minha lousa é de primeira qualidade”, diz, mostrando o quadro todo esburacado, quase sem o espaço verde para escrever. “O Marcelino ia escrever, mas onde já estava escrito com giz de cera, não pegava”, comenta sobre a situação precária nas escolas públicas. Além de levar os escritores aos alunos, Rodrigo também conseguiu apoio cultural para levar os jovens a locais como o Museu da Língua Portuguesa. “400 alunos foram ao museu de graça. Não pagaram entrada. Não pagaram transporte. Não pagaram nada”, conta. Ao mostrar as fotos dos alunos no passeio, ele brinca “eu acho que eles tão felizes, né? E ainda falam que literatura é uma coisa chata”. Ao comentar sobre os projetos desenvolvidos, é incisivo: “qual é a literatura que é possível pra nós? É a literatura periférica, em que o moleque se enxerga, se reconhece, fala sobre as suas dores e sobre os seus amores. Pra mim essa é a porta de entrada para o universo da literatura. Quando ele se identifica com o texto, ele vai pra qualquer outro... Vai pra Machado de Assis, Drummond e qualquer cristo que seja”. Para finalizar a apresentação, Rodrigo mostra uma seleção com fotos de todos os projetos realizados em 4 anos
do projeto. Foram passeios culturais, encenação de textos, encontros com autores e saraus. “Toma cuidado com esse moleque, ele está fortemente armado. Elemento de alta periculosidade”, brinca Rodrigo ao mostrar a foto de um menino com um livro na mão. “Essa é a literatura dentro da escola de uma maneira lúdica, prazerosa e, acima de tudo, com a nossa cara”, e encerra: “eu não posso mudar o mundo, mas se eu mudar a minha escola fico muito feliz”. O espaço é aberto para uma conversa com o professor, para tirar as dúvidas. Ao sair, Rodrigo é aplaudido e se junta à platéia. Alessandro Buzo é chamado ao microfone. Faz o aviso sobre um filme que será exibido no Jabaquara e comenta que, por isso, vai vazar logo depois de recitar. “Daqui pra lá tem que pegar condução, trem, metrô, pra variar, né?”. Com o Boletim do Kaos nas mãos, uma de suas maiores armas, ele comenta sobre o jornal e o conteúdo da última edição. Presente em diversos saraus, Buzo é suburbano convicto e apóia as iniciativas culturais realizadas em diversas periferias. Para animar a tarde, ele manda um de seus poemas. O sol reaparece e a rua começa a encher. As mulheres da feirinha ao lado abrem um sorriso e papeiam, sempre observando a movimentação na Tenda. O calor toma conta do local e as cores dos artigos artesanais ficam mais intensas. Rodrigo Ciríaco pega o microfone novamente e mostra seu livro Te Pego Lá Fora. Ele brinca e pergunta qual é o
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poema que apresenta para despertar o gosto pela poesia. Só pra ver se todos prestaram atenção, assim como faz com seus alunos. Quem acertar, ganha um livro. Um rapaz de boné e olhos espertos grita e responde com um sorriso de satisfação. Após outras perguntas, o rapaz acerta mais uma vez. “Assim num dá!” diverte-se Rodrigo. Ele abre um sorriso e volta ao público, para participar da oficina que irá começar em seguida. A voz é passada para Israel, do coletivo Literatura Suburbana. Sob o comando da oficina, o rapaz de apenas 22 anos dá um show de paciência e atenção. Explica que a atividade será a confecção de um livro, com folhas xerocadas e capa de papelão. E avisa que qualquer um pode fazer uma obra com as próprias mãos. Para isso, entrega um bloco de folhas com alguns poemas do coletivo para compor o meio da obra. Um grupo de jovens se aproxima, observando de fora. “Chega ae, mano”, grita um dos organizadores da Tenda. Mas ainda assim eles apenas observam, com olhos atentos. Finalmente resolvem sentar e participar da oficina. Israel explica de modo claro como será a atividade, e pede para que todos fiquem em roda. Para confeccionar as capas, todos dividem os materiais dentro de uma caixa.. São canetinhas coloridas, revistas, jornais, gizes de cera, cola, tesouras, entre outros. Uns ficam
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sentados nas cadeiras, uns se acomodam no chão, e outros preferem ficar do lado de fora da Tenda, pra ter mais espaço. Aos poucos, a criação toma forma. Um garoto exibe um desenho bem elaborado. “Sou grafiteiro”, explica. “Pessoal, a tenda ta voando... É tenda voadora!”, divertese um dos meninos. O tempo fecha de novo. Ao som do rap do grupo Racionais MC´s, todos se inspiram. E criam. Um morador de rua se aproxima, escolhe um informativo sobre uma exposição do poeta Paulo Leminski disposto no chão e pede para que tire uma foto sua. E também um trocado para tomar uma cachaça. Com o bigode de Leminski ao lado do rosto, a pose é feita. - Você me dá o negativo dessa foto? - Não dá, é digital! Você tem e-mail? - O que é isso? Não tenho não... Após um beijo no rosto, ele pede licença e vai embora. Mas continua a olhar o evento em outro canto. Entre os participantes, a concentração é grande e os olhares pouco se desviam dos objetos de criação. Ao término da atividade, é feita uma rápida exposição com todas as obras. Depois é aberto um pequeno sarau para fechar mais uma edição da Tenda. Um morador de rua assume o microfone. “Meu apartamento é bem ali”, diz, apontando para um canto do espaço abaixo do viaduto. Ele faz um poema, pois diz estar
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tocado com a atividade. “Eu divido minha comida com um cachorro”, comenta ao final. E continua, com um discurso sobre desigualdade social. Ele mostra como, apesar de estar nas ruas, possui consciência política, criticando o governo e a falta de oportunidade. “Eles comem caviar e a gente come o quê? Pão azedo... A gente não trabalha porque não quer, mas porque não temos condições”, revela. No final dá o recado: “eu amo vocês!”. Adultos, crianças, jovens e idosos. Todos dividem o espaço e o conhecimento que brota daquela praça abaixo do viaduto. Israel mostra como criar um livro pode ser prazeroso. E fácil. Para ser artista, basta querer. As portas do conhecimento foram abertas em mais uma margem da cidade de São Paulo.
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Tem livro na praça Guaianases, zona leste. O último distrito da cidade de São Paulo, fronteira com o município de Ferraz de Vasconcelos. Nossa missão era encontrar um sarau sólido, com periodicidade fixa, mas não havia notícias de um encontro nesse formato, parecido com os outros visitados (como a Cooperifa, o Elo da Corrente, o Sarau da Brasa, entre outros). Seguindo a indicação de uma amiga, fomos conhecer a Tenda Literária1, projeto cultural que promove oficinas e encontros mensais com oficinas e palestrantes. O projeto precisa de pouco para acontecer: uma praça – como a Presidente Vargas, bem ao lado do mercado municipal, ponto agitado de Guaianases -, uma tenda e gente interessada em literatura. Quem organiza a Tenda é um grupo formado por 10 jovens vinculados ao IPJ (Instituto Paulista de Juventude), e que integram o chamado GT de Cultura, uma espécie de coletivo que atua em atividades culturais. No caso do Instituto, são promovidas ações políticas e projetos voltados à promoção da cidadania por meio da atuação juvenil. O GT de Cultura foi formado em 2008, e sua primeira ação foi criar o Cine Diálogos, que exibia filmes independentes seguidos de um bate-papo sobre o tema. “Começamos com a ideia do Cine Diálogos, onde passamos filmes brasileiros como Cama de Gato e Estamira, filmes que não passam ¹ O projeto Tenda Literária aconteceu de maio de 2009 a dezembro de 2009, e era realizado sempre aos sábados. Mais uma iniciativa apoiada pelo VAI.
por aí e as pessoas não têm acesso, para trazer discussões e reflexões”, conta Ana Paula Gama, do GT. Nessa época, o GT já havia entrado em contato com outros grupos da zona leste, como o Coletivo Griots, que realiza saraus trimestrais desde 2007 no bairro do Itaim Paulista, e o Cine Campinho, projeto que exibe filmes gratuitos em um campo de várzea em Guaianases. Com a rede de contatos crescendo, o GT começou a pensar em um projeto maior: um sarau. Como a maioria do grupo gostava de literatura, logo se organizaram para colocar a ideia em ação. Escolheram começar com dois saraus temáticos: um sobre ecologia e o outro sobre educação. Para a estreia, o local escolhido foi uma praça no bairro do Tatuapé, próxima à sede do IPJ. Apesar da infraestrutura improvisada e o equipamento emprestado, o encontro foi um sucesso, reunindo música, apresentações teatrais e poesias. E a iniciativa surpreendeu aos organizadores. “A gente viu que o negócio estava bom, que era gostoso e que dava muito resultado, a gente se aproximava muito mais das pessoas”, comenta Camila Freitas, também do GT. No segundo sarau temático, o grupo conheceu o escritor e professor Rodrigo Ciríaco, que havia levado uma grande coleção de livros de literatura periférica ao grupo. Até então, eles não imaginavam a força que a produção literária da periferia estava ganhando em São Paulo. Tudo isso foi dando a forma ao que mais tarde seria a Tenda Literária. “A gente sentia necessidade de andar com as próprias pernas”, conta Camila.
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Tenda armada Dois membros do GT atuavam também como educadores no projeto Jovens Urbanos, realizado por uma ONG na região de Lageado, em Guaianases. Por já conhecerem o lugar, escolheram o bairro para montar a Tenda. Para amadurecer a ideia, o GT de Cultura promoveu uma roda de conversa com escritores da zona leste, como o poeta Akins Kinte e o escritor Rodrigo Ciríaco. No encontro, algumas perguntas foram colocadas em pauta: quem lê os escritores da periferia? É a periferia? Por que a zona leste não tem um espaço para os grupos que fazem cultura na região? Em conversa com os autores, o grupo descobriu que a maior parte da produção da periferia é vendida fora da dela. “Temos que pensar o quanto a gente ainda precisa caminhar para que a periferia compre livros e leia seus próprios autores”, destaca Camila. A falta de informações e atividades também incomodou ao grupo. “A gente sentia que o movimento de literatura marginal dentro de São Paulo ainda está distante da zona leste. Eu sentia essa necessidade de fazer a coisa chegar aqui, mostrar que existem escritores inclusive nos nossos bairros”, reflete Camila, que reconhece algumas iniciativas e ressalta que a zona leste está repleta de pessoas que possuem uma produção literária. Um terceiro sarau aconteceu em março de 2009, e foi mais uma espécie de preparação para a Tenda Literária. Tendo como tema a Linguagem Periférica, o evento contou com poesia, música e a participação de grafiteiros e b-boys2. ² B-boys são dançarinos de break e dança de rua.
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Quando o projeto foi concretizado, a criatividade das oficinas se destacou. Sempre com temas e atividades pré-definidas, os encontros contam com um sarau de encerramento. Em cada edição, participam diferentes convidados. Já passaram por lá Sacolinha, Alessandro Buzo, Rodrigo Ciríaco, o Coletivo Literatura Suburbana e o cordelista Costa Senna. Entre os assuntos abordados nas rodas de discussão, destacam-se a identidade negra, a literatura periférica nas escolas e a literatura de cordel como poesia marginal. Também foram feitas oficinas em que os participantes desenvolveram uma produção artística, como a técnica das xilogravuras3 e a confecção de capas de livros. O grupo de jovens que realiza a Tenda Literária promete não parar por aí. “Já estamos pensando na Tenda 2. O nome do evento ganhou uma projeção muito grande e já estamos recebendo convites de outros grupos para futuras ações”, conta Camila, que pretende continuar com ações de incentivo à leitura no ano de 2010. “A gente quer que Guaianases seja um ponto de referência na cultura da zona leste”. Guainases se movimenta A zona leste conta com inúmeros grupos de jovens que realizam atividades culturais, muitos apoiados pelo VAI, e outros independentes. Para fazer frente a essa movimentação, alguns grupos se organizaram e criaram, em janeiro de 2009, o Movimento Cultural dos Guaianás, com o objetivo de ³ A xilogravura é um processo de gravação em relevo que utiliza a madeira como matriz, e possibilita a reprodução da imagem gravada sobre papel ou outro suporte adequado.
fortalecer as ações culturais do bairro. O nome é uma homenagem aos índios que antigamente habitavam aquela terra, e a primeira iniciativa foi revitalizar a Casa de Cultura de Guaianases, com a realização de atividades artísticas. A segunda iniciativa foi a criação do evento Semana de Arte Maloqueira, que ocorreu no início de novembro de 2009. Entre rodas de discussão sobre cultura, literatura, cinema, teatro e dança, o debate sobre a falta de políticas públicas para a cultura local ganhou destaque no evento. Sobre os coletivos, Camila acredita que a novidade não é o ativismo cultural, mas a forma como ele é realizado: com organização e em grupos. “A gente é só o reflexo de tudo que foi feito até hoje no bairro, muita gente já discutia a cultura lá nos idos dos anos 70, então a gente tem diversas pessoas aqui que produzem cultura”, diz Camila. E o principal: “que querem uma mudança”.
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O vanguardista do cordel Cabelos longos e amarrados, com um chapéu pra completar. Fala mansa e carregada com o sotaque nordestino. Barba bem feita, olhar calmo e um sorriso aberto de boasvindas. Ele é Costa Senna, o cordelista cearense que se apaixonou pela cidade de São Paulo. Mas antes de chegar à capital paulista, viveu com intensidade a rotina no campo, sua grande fonte de inspiração para a poesia. Filho de Joaquim e Raimunda, Costa Senna nasceu em Fortaleza, em 30 de novembro de 1955. Ainda menino, foi morar com os avós em Quixadá, no sertão cearense. Lá, aprendeu a caçar, pescar, buscar água no açude e fazer cordel. Mas antes de contar mais sobre a sua caminhada, ele mostra uma de suas obras mais recentes, o livreto Lampião e seu Escudo Invisível¹, que conta a história do ícone do cangaço. “Sabia que o Lampião não puxou pro pai dele? A mãe dele que era valente!”, diverte-se ao falar sobre o homem que inspirou medo e curiosidade por muitos anos. “Lá [Quixadá], era bem diferente do que você imagina. Na época em que era menino não tinha rádio, não tinha televisão, não tinha dinheiro”, lembra, e comenta que o comércio era muito realizado por meio da troca de produtos. Quando ficou mais velho, quase na fase adolescente, Costa Senna assumiu uma nova função na família: buscar água potável no açude. Mas o longo caminho, feito sempre no escuro, despertava assombro. “Não era medo de ladrão, ¹ O livro Lampião e seu Escudo Invisível faz parte da Coleção Luzeiro de Literatura de Cordel (Editora Luzeiro, 2009).
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eu tinha medo de coisas do outro mundo. Lá, eles falavam muito nisso”, conta. E foi da simplicidade das pessoas com quem conviveu, muitos cordelistas e cancioneiros, que nasceu a paixão pela poesia: “tinha muita leitura de cordel, foi aí que eu comecei a aprender a ler”. A inspiração para os versos surgiam nas atividades do dia a dia, como na debulha² do feijão, no manuseio da mandioca, nas casas de farinha e no canto das lavadeiras. Outra característica que muitos não conhecem é a consciência ecológica, muito forte na região. “É interessante que essas pessoas tinham muita consciência, mesmo sem saber. As mulheres que lavavam roupa cavavam um buraco bem distante do açude pra jogar a água suja”, explica. Em uma pausa na conversa, surge um velho amigo que passa pela galeria no centro da cidade, local de encontro para a entrevista. É um senhor de idade avançada, com calça social, colete e chapéu cor de palha. Com cordialidade, ele sorri e cumprimenta. “Ele fez cinema comigo”, apresenta Costa Senna. “Não se avexe, não”, diz o senhor quando o cordelista oferece uma cadeira para ele sentar. Ele troca algumas palavras sobre as novidades no cinema, e conta algumas de suas histórias da época em que também morava no nordeste, sua terra natal. De volta à conversa, a prosa sobre a sua juventude no Ceará é retomada. Com brilho nos olhos, ele conta que foi lá que aprendeu a ser poeta, já que a prática começa desde criança, em encontros da comunidade para recitar cordéis. ² A debulha do feijão consiste em separar o grão da vagem.
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“Tinha uma pessoa que sabia ler e lia poesia pra todo mundo. Aí apareciam aqueles meninos que se destacavam e começavam a brincar de cantoria com o outro, fazendo rimas e puxando perguntas para o parceiro em forma de cantoria”, conta. Quando ficam bons, esses jovens formam uma dupla de cantadores ou repentistas, prática muito comum entre os sertanejos.Com uma viola nas mãos que,segundo Costa Senna, “nem sei como aprendem a afinar”, divertem a comunidade com suas poesias ritmadas. “Aqui na cidade grande a gente vai à escola e eles ensinam a mexer no instrumento. Lá, eles aprendem sozinhos, é muito interessante isso”, observa. De volta à cidade grande Costa Senna não chegou a ser repentista, mas tomou gosto pela poesia de cordel. Quando voltou a Fortaleza, com cerca de 14 anos, conheceu a Jovem Guarda e a Bossa Nova. Seus irmãos, considerados intelectuais comparados a ele, “mangavam” de seus poemas: “tudo que eu falava ou cantava em forma de literatura de cordel, eles mangavam de mim”. Mangar quer dizer zombar, ele explica ao revelar que, por isso, acabou sufocando a sua poesia por algum tempo. Até conhecer a música do cantor Raul Seixas. “O cordel naquela época era mais encontrado na área rural, em Fortaleza não tinha. E o que me despertou novamente foi quando o Raul Seixas apareceu”, conta ao afirmar que, para quem possui a essência do cordel, há grande identificação com o cantor. “Quando ele apareceu cantando aquelas músicas, me lembrou muito o repentista. As obras
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dele são muito impregnadas de literatura”, completa. E assim ele percebeu como também poderia levar a sua obra para a MPB. Apesar de saber ler, o cordelista nem se lembra como foi o aprendizado. Para ele, foi natural. Aos 18 anos, começou a se envolver em movimentos sociais e a conhecer escritores e pessoas ligadas ao teatro. Na década de 1980, ingressou de vez no mundo artístico. Entre suas primeiras encenações está A Noite Seca. “Eu nunca fiz cursos, mas aprendi a ser ator fazendo os trabalhos”, conta, citando outras peças em que trabalhou, como Deus lhe Pague, Cigania e Luzidia e Barrela. Apesar de atuar mais no teatro, participou de filmes como As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thoth (curta metragem de Jairo Ferreira) e Urubuzão Humano (longa metragem de Diomédio Morais). Após algumas decepções, Costa Senna pensou na possibilidade de mudar para São Paulo. “Eu vim pra cá com a peça A Noite Seca. A polícia quebrou o nosso cenário duas vezes, porque falava sobre a reforma agrária”, diz ao destacar que gostou muito da cidade. A paixão foi tanta que, em 12 de março de 1990, chegou à capital paulista para ficar. De casa nova, Costa Senna decidiu fazer uma poesia em homenagem ao seu novo lar. “Eu tinha andado em vários lugares de São Paulo, mas te juro, não vi ninguém declamar um cordel para São Paulo. Aí eu fiz várias viagens”, conta sobre as descobertas, que incluiu a informação de que Raul Seixas era querido na cidade. “Acabei escrevendo algumas poesias para Raul”, conta o cordelista que até dedicou obras ao cantor, como Raul Seixas
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entre Deus e o Diabo e Raul Seixas Não Morreu. Rumo à babilônia O amor pelo cordel se uniu à identificação com a nova cidade de modo tão intenso, que Costa Senna começou a chamar atenção. O escritor, cantor e compositor utiliza elementos rurais e urbanos, e afirma ter como influência os cantores Luiz Gonzaga, Raul Seixas, Belchior e Alceu Valença, além do rap e do repente dos grandes cantadores nordestinos. Entre suas obras escritas estão Paulo Freire – Uma Viagem na História, O Doido, Lobisomem da Avenida São João, São Paulo Sem Fumaça, Jesus, A Maldita Ilusão, Como Nascem os Provérbios, Nas Asas da Leitura, Os Atropelos do Português, o Milagre dos Números, Caminhos Diversos - Sob os Signos do Cordel, entre outras. Na área musical, fazem parte os CDs Moço das Estrelas, Costa Senna em Cena e Fábrica de Unir Versos. Ao comentar sobre as suas produções, afirma que, antes de adotar de vez a literatura de cordel, se aventurou em linguagens mais voltadas para a prosa. “Mas a poesia em prosa não me levava ao mercado. Tentei escrever várias vezes, fiz vários poemas, mostrei a minha rebeldia, que desapareceu 70% já, porque ela não te leva, ela é muito parada, ela só é feita para aqueles que acreditam muito mesmo”, explica. E foi mesmo com o cordel que ele conseguiu estabelecer a sua vida profissional. “A literatura de cordel vem com uma poesia queimada, metrificada. Tem uma vitalidade muito presente, quando sai da boca de um declamador ela seduz, atrai, busca as pessoas para perto. Foi aí que eu me encontrei
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com a poesia”, conta o autor que escreveu obras que brincam com a gramática e a matemática, tudo em poemas. “Escrevi um trabalho sobre violência, ética, cidadania... Aí, por fim, acabei escrevendo a matemática. Esse trabalho foi me levando para as escolas, e acho que eu sou um pioneiro em levar a literatura de cordel direcionada à educação no Estado de São Paulo, talvez no Brasil”, afirma. Em suas “palestras-show”, como ele intitula, Costa Senna vai a locais como escolas, universidades, bibliotecas e casas de cultura. Sempre munido de muito cordel, música e versos. O trabalho já era desenvolvido desde que morava em Fortaleza, mas foi em São Paulo que aprendeu a tocar violão, se aperfeiçoou e foi reconhecido. “Eu canto, toco, canto uns arroios, falo sobre a presença da literatura de cordel na música de Raul”, explica sobre as palestras que, realizadas desde 1983, já rodaram diversos Estados. “Chegou a um ponto aí que eu contei 400 e tantas escolas, quase 500, que eu tinha passado em São Paulo, além de São José dos Campos, Campinas, Ribeirão Preto... Aí eu parei de contar. Mas eu, Costa Senna, cheguei a passar por mais ou menos um milhão de estudantes, pegando de Fortaleza pra cá”, afirma, destacando que já teve um cordel sobre Raul Seixas traduzido até para outros idiomas. Após morar durante muito tempo na região central da cidade, foi sorteado e recebeu um apartamento em Guaianases, na zona leste. “O apartamento é maravilhoso, mas de qualquer lugar onde estou, primeiro preciso ir para o centro, pra depois voltar pra casa. Quando eu estou em casa, tenho preguiça de sair”, revela ao comentar sobre a distância do bairro em que
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mora. Entre apresentações e viagens, o cordelista foi parar na Tenda Literária. Convidado pelos organizadores da iniciativa, em 12 de setembro de 2009 falou sobre o tema A Literatura de Cordel como Literatura Marginal. “O pessoal lá faz a coisa mover, faz realmente existir um pouco de cultura. A cultura lá é escassa, tem pouco apoio dos políticos, e acaba não acontecendo, aí o que salva regiões como essa é ter pessoas que fazem isso”, observa. Por ser um dos poetas pioneiros em utilizar temas ligados à educação na literatura de cordel, recebeu o título de Cidadão Paulistano, em 2008. A indicação foi feita pela Câmara Municipal de São Paulo e, segundo Costa Senna, foi devido ao destaque de seu trabalho realizado nas escolas. “Apesar de a cidade ter feito muita coisa por mim, eu tenho certeza que também fiz por ela. Eu deixei de fazer minhas loucuras, de viver adoidado, para poder praticar mais a arte. Estou morando na cidade que me deu dignidade, prestígio”, revela. Mesmo em suas andanças pela capital paulista, Costa Senna não deixou de carregar a identidade nordestina. Por isso apóia diversas iniciativas ligadas à literatura de cordel e os migrantes da região Nordeste. “A minha cabeça é muito universal. O mundo livre e místico que eu vivi. Eu vejo que, hoje, aquele cordelista conservador, sem uma visão dinâmica, que tem não tem uma diversidade, acaba deixando a desejar”, finaliza, já que sobre releituras, adaptações e criatividade ele entende muito bem.
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O professor de história e estórias Logo depois de se formar em História, Rodrigo Ciríaco realizou o sonho de ser professor ao passar num concurso para a rede de ensino público de São Paulo. Na primeira semana, entrou em uma turma da 5ª série do Ensino Fundamental e teve um choque: “vários alunos não sabiam ler e eu não sabia o que fazer. Eu não fui preparado para aquilo. Não tinha que ensinar o aluno a ler!”. A infraestrutura também não ajudava. O prédio da escola estava com infiltração, problemas na rede elétrica e as lousas desgastadas. “Você ia usar uma tomada, não tinha. Acender a luz, não acendia. Chovia e alagava as salas, não era uma goteira, eram goteiras em vários pontos”, lembra Rodrigo. De 18 salas, nove tiveram que ser interditadas. Não havia o que fazer, avisaram os outros professores. Sob a força da indignação com a situação da escola e dos alunos, Rodrigo jogou a raiva e a incompreensão em seu primeiro poema, intitulado Notícias Populares, com palavras sem rima, no formato de uma notícia de jornal. Mas a poesia não mudava o dia a dia do professor. Ele tinha duas opções: ou mudava de escola, ou ficava por lá e enfrentava o problema. “Resolvi comprar essa briga. Eu gosto do conflito, é a partir do conflito que a gente cresce. Senão vai ser sempre o mesmo caminho. Mas não é brigar por brigar, eu acho que se tem alguma coisa que pode melhorar, vamos brigar por isso”, afirma.
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Da infância à idade adulta Rodrigo Ciríaco, 28 anos, cresceu na zona leste, na Vila Rui Barbosa. Filho caçula de uma família de classe média baixa, sua infância foi tranquila, brincava na rua e desde pequeno era aficionado por gibis. Também gostava da banda Legião Urbana e arranhava no violão. Com 18 anos, leu poemas de Bertold Brecht, um marco para ele. Vez ou outra escrevia alguns poemas, mas nunca levou o hábito a sério. Rodrigo sempre trabalhou muito. Desde os 12 anos ajudava os pais na lanchonete da família. Mais tarde, trabalhou como office-boy, auxiliar de escritório, operador de telemarketing e vendedor. Quando terminou o colegial, fez um cursinho popular e conseguiu entrar na USP. O estudante estava indeciso para a escolha do curso, mas as aulas de história reforçaram a sua decisão, às vésperas das inscrições para o vestibular. No início, a família ficou decepcionada com a sua escolha. Queriam que ele fosse médico ou advogado. Mas o receio não superou a admiração, afinal o filho caçula era o primeiro da família a entrar na universidade. O novo ambiente, cercado de conhecimento e pessoas com diferentes experiências, mostrou um novo mundo para Rodrigo. Mas a adaptação não foi fácil: “às vezes eu me sentia muito atrasado em relação aos outros, eu tive que correr muito, me esforçar muito mais que os outros. Até hoje ainda estou correndo atrás”, conta. Na USP, ele tomou gosto por Chico Buarque, Caetano Veloso e Paulo Freire, foi para as ruas com outros estudantes pedir mais professores e, em 2003, participou de um projeto
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que marcou a sua vida: um trabalho acadêmico sobre a Revista Ocas. Foi aí que ele descobriu o desejo de fazer mais pelas causas sociais. “Eu tinha uma preocupação que era dar um retorno, ajudar mais, eu tinha essa ânsia, aí decidi ser voluntário”, explica. Durante três anos, Rodrigo trabalhou voluntariamente para a revista. Toda semana ia ao escritório e fazia de tudo um pouco: limpava o chão, cozinhava, visitava albergues e atendia ao público. “Foi uma experiência muito boa, foi onde eu comecei a me encaixar. Comecei a colocar em prática aquilo que eu estava discutindo na faculdade”, lembra. Em 2004, após a chacina de moradores de rua em São Paulo, ele começou a atuar no Fórum Movimento Vivo, espaço de atuação política que unia vários grupos em torno das questões da população que circulava no centro da capital. Quanto à próxima travessia, Rodrigo já tinha destino certo. Rumo à Cooperifa Em 2005, o professor se encolveu em um novo projeto: um estágio como educador social no Projeto Travessia, que trabalha com crianças e adolescentes de rua. O estágio durou oito meses e rendeu novas experiências e amizades. Uma delas foi Dinha, escritora e educadora social que, na época, frequentava a Cooperifa e editava o Poezines, fanzine literário com poesias autorais. A empatia foi imediata. Um dia, quando os dois iam para as suas casas, na zona leste, Rodrigo leu um poema da nova amiga e se surpreendeu. “Eu lembro que ela estava vivendo um problema pessoal e trouxe um livrinho, com um poema dela falando daquilo.
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Li o poema e identifiquei a situação. Parece óbvio, mas eu achava que poema tinha que inventar coisa. Eu falei: ué, a gente pode pegar coisas da nossa vida e somar isso como poesia?”, conta. Um dia, decidiu comemorar seu aniversário com um sarau em sua casa, e convidou alguns amigos. Na ocasião, lançou seu fanzine Efeito Colateral, recheado de contos e poemas, além de ser inspirado nos Poezines de Dinha. Não demorou muito para Rodrigo conhecer a Cooperifa, que na época já acontecia no bar do Zé Batidão. E os poetas acolheram o historiador de braços abertos. “A Cooperifa mudou minha vida. Eu me achei. Sempre fui deslocado, meio perdido, essa coisa de ser independente, de ter um desconforto com o mundo e não saber de onde é...”, revela Rodrigo, que foi criado na periferia, mas nunca passou necessidades como alguns de seus vizinhos. Ao mesmo tempo, na USP, era visto como um “maloqueiro”. “Essa coisa de você ser a ponte é meio complicado. Porque você está em cima do muro, você não está nem do lado de lá, nem do lado de cá”, conta, lembrando que no sarau de Piraporinha ninguém o julgou. Nem para mais e nem para menos. Desde então, Rodrigo não se importa em atravessar 50 km todas as quartas-feiras para chegar à zona sul. Para ele, o lugar tem muitos significados. “É onde recarrego as energias, minha casa, a família que eu escolhi, é o lugar onde eu me fortifico para as batalhas da escola pública, porque você faz parte lá, não é só escrever poema. Quando você faz parte, você carrega responsabilidade”, diz. A Cooperifa também estimulou o professor a refletir
sobre sua missão como educador. E ele chega até a dizer que, se não fossem os cooperiféricos, não sabe se hoje ainda daria aulas em escolas públicas. “Ela me dá uma força muito grande pro meu dia a dia com os alunos, com as batalhas que eu tenho que enfrentar”, explica. Literatura periférica na sala de aula O gosto de Rodrigo pela literatura periférica crescia cada vez mais. Ao mesmo tempo em que ele se aperfeiçoava nas técnicas de redação e escrita, fazendo cursos de literatura e escrevendo novos poemas. Tanto que não demorou muito para que ele pensasse em levar a energia dos saraus para a escola. E assim foi criado o projeto “Literatura é Possível”. “A primeira coisa que eu quis fazer para compartilhar a paixão pelos livros com os alunos foi através dos saraus. Eu gostava de literatura, a minha referência era uma coisa mais na pegada da oralidade. Peguei alguns livros que tinha em casa, do Sacolinha, Ferréz, Dughetto, outros da biblioteca escolar do Vinicius de Moraes, Carlos Drummond, Mário de Andrade. Tem que dar a oportunidade do moleque pegar um livro na mão, se ele gostar, ótimo”, conta. O professor acredita que a literatura periférica pode ser uma porta de entrada para despertar o gosto dos alunos pela leitura. “Para mim a literatura periférica é a literatura que o moleque se enxerga, se reconhece, fala sobre suas dores, seus amores, fala sobre sua vida, e que pra mim é a porta de entrada pro universo da literatura”, acredita. Mas as propostas curriculares das escolas ainda não dão espaço para a literatura periférica. “Dizem que os textos
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têm muito palavrão... Então o texto literário não pode ter palavrão? Eu acho isso uma puta bobagem, eu acho que isso só serve para você garantir aquela coisa que literatura é um barato chato, uma coisa pra poucos. Literatura é uma coisa que a molecada do campinho, dos becos e vielas iriam curtir”, diz. Uma vez a cada dois meses, ele anunciava aos alunos o sarau. Da primeira vez, ninguém sabia muito bem o que era isso. Aí ele explicava, “sarau é uma festa, uma atividade cultural que a gente pode contar histórias, declamar poemas, pode cantar, aprender até uma esquete, pode fazer qualquer coisa! O sarau só tem três regras: primeiro a pessoa vem aqui e se apresenta, segundo é o silêncio, ninguém pode falar, e no fim a gente aplaude. Apresentação, silêncio e palmas”. Para despertar o interesse dos jovens, o professor gostava de sempre abrir os saraus com uma letra do Gaspar, do Zafrica Brasil. “Antigamente quilombos, hoje periferia Origens africania, somos filhos de uma terra sagrada Qualquer periferia, qualquer quebrada Záfrica clã Brasil cabra da peste o sol é rap A explosão do povo com esse grande eldorado negro O mar guiou a mata abraçou A senzala do passado se perdeu na escuridão, com ela a dor Extermínio” Os alunos reconheceram o texto como uma música de rap, foi só então que perceberam que gostavam de poesia. “Eu não obrigo ninguém a ler e não cobro nada deles. Eles têm
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liberdade total. Uma coisa que eu acho que mata a literatura dentro da escola é a questão da obrigatoriedade. Não existe esse papo de ‘não gosto de livro’. De repente você ainda não se achou!”, conclui. Em quatro anos, foram realizados mais de 50 saraus, com turmas de 5ª a 8ª série, e mais de 100 livros distribuídos gratuitamente. “Eu compro o livro e distribuo entre a molecada”, diz ele, que gosta de frisar que todas essas iniciativas não são um projeto da escola, e sim na escola. Ainda ressalta que todas as ações não contaram com o apoio de nenhuma organização, exceto as excursões ao Museu da Língua Portuguesa. Os saraus ainda contavam com escritores, no projeto que criou chamado “Encontro com o Autor”. Entre os convidados especiais, nomes como Marcelino Freire, Sérgio Vaz, Sacolinha e Dinha. Se por um lado os alunos gostavam cada vez mais de ler, por outro a repercussão dentro da escola não foi das melhores. “Os professores de português ficam bronqueados. Mas eu gosto de livros, e quero dividir uma paixão que tenho. Ninguém chega para trabalhar junto. O medo deles é que a literatura periférica entre nas escolas, porque se entrar, vai dominar”, acredita. No final de 2008, seus alunos decidiram fazer um esquete teatral. Ensaiaram sozinhos e apresentaram ao professor. Não teve jeito. Rodrigo, que já havia feito teatro amador, topou ministrar oficinas de teatro para alguns alunos, com textos de literatura periférica, e não de dramaturgia. Estava criado
o grupo Os Mesquiteiros, em homenagem aos mosqueteiros e ao nome da escola. O lado escritor O historiador já teve seus trabalhos publicados nas antologias poéticas do Sarau da Cooperifa e em uma de contos, a Moscas, organizada por Marcelino Freire e publicadas pela Edições Dulcinéia Catadora. Lançou também o livro Te Pego lá Fora, pela Toró Edições, em 2008, com contos sobre a vida em uma escola. Com todos esses projetos, para alguns Rodrigo é um lutador. Para outros, apenas um professor querendo despertar o gosto pela leitura em seus alunos. Mas poucos sabem que por trás desse jovem educador que compra brigas por uma educação melhor, existe um cara inseguro, cheio de medos e receios. “Dar aula é tranquilo. Às vezes o meu maior inimigo sou eu mesmo. Minhas inseguranças, meus medos e receios de achar que não vou dar conta, de que eu não estou bem preparado. E quando chega lá é aquela coisa, entra em campo e vai embora”.
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Ponto final O que faz uma pessoa subir a um palco e declamar uma poesia? Que força é essa que faz com que alguém necessite escrever, nem que seja para si? Depois de um poema, vem outro. Um ciclo sem fim. Porque a palavra tem poder e seduz. Os saraus na periferia da cidade de São Paulo são a ponta do iceberg de um movimento maior, que utiliza a literatura como linguagem para narrar as suas próprias histórias. De exclusão e resistência. Mas a periferia falando de si não é uma novidade. Há indícios desde os anos 1950, quando os cadernos da escritora Carolina de Jesus, moradora da favela do Canindé, foram encontrados por um jornalista. É a escrita que já se mostrava como um território frequentado por figuras inusitadas. Ao ultrapassar as fronteiras territoriais e pular o muro que limitava a literatura às rodas de intelectuais e à elite cultural, eles mostram a essência da poesia: a simples expressão de um ser humano que tenta entender o mundo onde vive, num discurso muitas vezes embrutecido por uma realidade dura. Nos saraus, as vozes se multiplicam, a literatura vira movimento, e a palavra transformação, moldada por reflexões. E ações. Desde os anos 2000, há uma novidade: a organização de pessoas em coletivos e grupos. Eles promovem uma produção cultural local, frente a uma ausência de políticas públicas eficientes que promovam a inclusão social. Sem bibliotecas, cinemas, teatros ou espaços voltados para a cultura, a alternativa foi a organização independente. O resultado foi o nascimento de uma nova literatura, voltada para as questões sociais, a negritude, ou mesmo as lembranças do migrante nordestino. E os saraus foram peças fundamentais para a conexão e o diálogo entre os grupos. Porque nóis é ponte e atravessa qualquer rio. Por mais turbulento que seja.
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