A Moda Veste Burca

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Carolina Belleze


Trabalho de Conclusão de Curso de Comunicação Social – Jornalismo na PUC-SP com orientação do Prof. Dr. Fabio Cypriano realizado em 2016 pela aluna Carolina Belleze. Diagramação: Gabriela Barreira Ilustrações: Victor Buzilani Revisão: Carolina Belleze e Fabio Cypriano


Agradeço aos meus pais pela oportunidade, ao meu orientador pela dedicação, e aos meus amigos que me me apoiaram quando eu achava que não iria conseguir.



“Não siga tendências. Não deixe a moda te dominar, mas decida quem você é e o que você quer expressar pela forma como você se veste”. Gianni Versace



Sumário Introdução, 9 As mulheres muçulmanas, 13 Islamismo no mundo, 18 O véu muçulmano, 20 FeminIslam, 30 Fé x Moda, 33 Melanie Elturk, 40 Haute Hijab, 42 Mercado de moda e o interesse pelas muçulmanas, 44 “Sou embaixadora da minha fé quando uso o Hijab”, 45 Mariam Chami, 50 Batalha dos Cozinheiros, 51 A moda muçulmana no Brasil, 53 “Para mim, o Hijab é mais do que um véu, é uma atitude”, 56 Mag Halat, 60 Primeira blogueira muçulmana do Brasil, 61 Rede Globo, 63 “O Hijab me faz lembrar da minha fé”, 65 Andrea Brito, 68 Estudar moda depois do Islam, 70 O preconceito no Brasil, 72 “O Hijab me deixa mais consciente das minhas escolhas”, 76 Bibliografia, 79



Introdução Em 2014, tive a grande oportunidade de visitar três lugares muito diferente de todos os que já havia visitado: a Turquia e dois dos Emirados Árabes, Dubai e Abu Dhabi. Lá, além de conhecer os cartões postais das cidades e fazer passeios incríveis, também convivi com uma cultura completamente diferente da minha: a muçulmana. Por conta do que vemos na mídia, é muito fácil ter uma visão preestabelecida daquilo que iria encontrar. Entretanto, me vi surpreendida com as pessoas com as quais cruzei durante duas semanas que fiquei por lá. Calorosos, simpáticos e “abrasileirados”, os turcos e árabes dominam a arte da hospitalidade em seus países. Estar lá me fez lembrar de dois momentos marcantes nos quais já havia visto a cultura muçulmana ser tratava: no segundo filme da franquia Sex and the City e no vídeo “Moda” do Porta dos Fundos. No longa americano, lançado em 2010, Carrie, Samantha, Miranda e Charlotte ganham uma viagem para conhecer Abu Dhabi e, no fim do filme, são “salvas” por algumas muçulmanas após uma confusão no Souk. Nesta passagem, as mulheres mostram o que há por baixo de suas vestimentas culturais e deixam o grupo de amigas chocada, já que elas estão repletas de joias e artigos de grifes famosas. Já na sketch do Youtube, a situação é um pouco diferente. Duas amigas estão em uma loja de Burcas e estão decidindo qual modelo da peça iriam levar para casa. Entretanto, como uma forma de brincadeira, elas aparecem com peças sempre iguais e em um diálogo que poderia facilmente ser visto em qualquer uma loja de roupas, mas com elementos islâmicos, como a poli9


gamia, e outros que parecem fazer parte do Islam, mas não são, como o apedrejamento. Em conjunto com as minhas descobertas a respeito da cultura muçulmana, o meu interesse pela moda também foi crescendo. Depois de estar presente em algumas Semanas de Moda de São Paulo e conhecer um pouco mais sobre este universo, percebi que poderia unir as duas paixões em uma só quando me questionaram qual o tema que gostaria de tratar no meu Trabalho de Conclusão de Curso. Neste livro, tentei mostrar da melhor maneira como as muçulmanas podem – e conseguem – unir as obrigações religiosas e as vestimentas a admiração pela moda. Além de uma pesquisa teórica que explica o papel da mulher no Islam, o projeto também apresenta Melanie Elturk, Mariam Chami, Mag Halat e Andrea Brito. Seja através de um blog, marca de roupas, designs próprios para muçulmanas ou participando de programas em TV abertas, todas estas mulheres descobriram uma forma na qual puderam expressar a moda por baixo e apesar do véu. Boa leitura!

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As mulheres muçulmanas A temática da mulher islâmica é algo muito polêmico, já que ela representa uma forma de opressão aos olhos da sociedade ocidental, em um momento histórico em que o empoderamento feminino se fortalece cada vez mais. Entretanto, observar o papel da mulher na cultura islâmica relacionando-o apenas com a noção ocidental sobre ele pode não permitir que se entenda o que realmente acontece com as muçulmanas na segunda maior religião do mundo, de acordo com dados da Pew Ressearch Center11. Mesmo ocupando a segunda posição, o estudo prevê que o Islamismo pode se igualar ao Cristianismo em número de praticantes em 2070 e superá-lo em 1% até 2100. Com a possibilidade de se tornar a maior religião do mundo ainda neste século, o Islamismo lança um desafio para aqueles que entendem a religião por meio de generalizações: conhecer um pouco mais sobre o Islam e, principalmente, sobre a mulher islâmica. Nas páginas do Alcorão, é possível encontrar duas passagens que falam diretamente sobre as muçulmanas. Elas fundamentam duas visões muito diferentes em relação a como as mulheres devem se relacionar com os homens. Na sura2 4:31 encontra-se a seguinte frase: “Os homens têm autoridade sobre as mulheres porque Deus os fez superiores a elas”, enquanto na sura 2:228, a interpretação já se torna diferente, dizendo que “as mulheres devem, por justiça, terem direitos semelhantes àqueles exercidos contra elas”.3 1. O Pew Research Center é uma organização apartidária que informa o público sobre tendências na América e no mundo. Ele é conduzido por enquetes da opinião pública, pesquisas demográficas, análise de conteúdo midiático e outras pesquisas empíricas sobre ciências sociais. 2. Sura, surata ou surat é o nome dado aos capítulos do Alcorão. 3. Trecho retirado do livro O Livro das Religiões (2001) de Victor Hellern, Henry Notaker e Jostein Gaarder, na página 133

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A equiparação entre homens e mulheres também acontece em outros momentos no Livro Sagrado. Uma das questões mais importantes que é reforçada por Maomé durante toda a obra, é a de que não existem distinções diretas entre os sexos aos olhos de Deus. “Quanto aos muçulmanos e às muçulmanas, aos fiéis e às fiéis, aos consagrados e às consagradas, aos verazes e às verazes, aos perseverantes e às perseverantes, aos humildes e às humildes, aos caritativos e às caritativas, aos jejuadores e às jejuadoras, aos recatados e às recatadas, aos que se recordam muito de Deus e às que se recordam d’Ele, saibam que Deus lhes tem destinado a indulgência e uma magnífica recompensa”. (Sura 33:35) A obrigação religiosa dos muçulmanos não depende do sexo, mas sim de realizar ações que cumpram a vontade de Deus. No entanto, existem cinco atos de adoração a Ele, chamados de pilares do islam, que formam a estrutura básica e espiritual dos seguidores da fé islâmica: declaração de fé, oração, jejum, caridade e peregrinação. Shahada (declaração de fé): repetição da frase “Não existe Deus senão Allah e Maomé é o seu mensageiro” durante as orações diárias; Salat (oração): cinco vezes ao dia, todos devem voltar-se a Meca para fazerem sua oração; Swam (jejum): durante o mês do Ramadã, todos devem se abster de alimentos e de relações sexuais entre o nascer e o pôr-do-sol; Zakat (caridade): todos que tem condições devem doar parte de sua riqueza para pessoas com necessidade; Hajj (peregrinação): pelo menos uma vez, todos devem fazer a peregrinação em direção a Meca.

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Embora sejam vistos da mesma forma aos olhos de Deus e terem obrigações a cumprir, isto não implica que homens e mulheres têm os mesmos direitos e deveres em todas as áreas sociais. “Dentro do Alcorão você tem revelações e obrigações femininas e masculinas”, explicou a antropóloga e professora da USP Francirosy Campos Barbosa em uma entrevista por telefone. “As mulheres são vistas como complemento da família e elas têm suas obrigações como os homens têm as deles”. Na da sociedade muçulmana, a mulher, por exemplo, não é responsável por manter a casa financeiramente, mas tem o dever de cuidar da educação dos filhos. O Profeta Maomé transmite essa importância no Alcorão afirmando que a mulher, além de educar, também fica responsável pela transmissão da religião, algo extremamente importante para a formação social da criança. Em um outro momento, ele também reforça a necessidade de escutar a sua mãe dizendo que o pai só deve ser consultado para esclarecer um problema em quarta ou quinta instância. Já na questão do casamento, os dois sexos são tratados de formas bem diferentes, apesar de ambos terem seus direitos dentro do matrimônio. Enquanto o homem deve pagar um dote que fica sob posse da mulher que poderá ser usado com a permissão dela, ele é o único que tem o poder de pedir o divórcio sem o consentimento da outra parte. Apesar da possibilidade, existe uma série de impedimentos para que “a atividade legal menos preferida por Deus”, como Maomé classifica a separação, seja consumada.4 No Alcorão, existem passagens que pedem para que o divórcio seja evitado e só seja feito caso não exista mais meios de salvar a união. Entre uma das obrigações do homem ao decidir 4. Trecho retirado do livro O Livro das Religiões (2001) de Victor Hellen, Henry Notaker e Jostein Gaarder, na página 134.

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prosseguir com a separação está a de não pedir de volta nenhum presente de casamento entregue à esposa – nem mesmo o dote, ainda que o valor dele seja altíssimo. “A esposa recebe isso [o dote] justamente para que ela, em situações como essa, tenha como sobreviver e esteja garantida judicialmente”, explica Barbosa. “Mas, se vos decidirdes tomar outra esposa no lugar da primeira, mesmo que vós tenhais dado à primeira o maior tesouro como dote, não o diminua em um pedaço. Tomá-lo-íeis de volta, com uma falsa imputação de erro de manifesto?” (sura 4:20) “Não é lícito para vós (homens) tomar de volta quaisquer dos presentes, exceto quando ambas as partes temerem não ser capazes de manter os limites ordenados por Allah. Não há culpa para qualquer um de vós se ela der alguma coisa por liberdade. Tais são os limites ordenados por Allah, assim não os transgridam”. (sura 2:229) A devolução do dote, entretanto, não é impossível. Mas só acontece em duas situações: quando ela escolhe, por livre e espontânea vontade, entregar de volta o presente ao homem, ou na Khula. Esta última é o direito da mulher de pedir o divórcio de seu marido em troca de uma compensação monetária que, geralmente, consiste em fazer o retorno do dote de forma integral. Uma das maiores referências e que exemplificam o Khula até hoje é a história de Jamilah, a esposa de Thabit ibn Qays, um dos primeiros muçulmanos da história que foi convertido pelo próprio Maomé. Nela, a esposa procura o Profeta para pedir a dissolução de seu casamento puramente por não gostar mais de 16


seu marido e por acreditar não conseguir manter o matrimônio por mais tempo. Para que ele concedesse a Khula, o Profeta perguntou se ela estaria disposta a devolver o quintal que ela havia recebido no dia do casamento como dote e, quando ouviu a resposta positiva, Maomé aconselhou Qays a aceitar o divórcio e retomar suas terras. Existem alguns preceitos para que a Khula possa acontecer: ambos precisam estar de acordo com a separação, a mulher precisa de um número definido de testemunhas, além de cuidar e educar os filhos até os sete anos e passar pelo período de espera, o Iddah, que consiste em um ciclo menstrual ou um mês caso a mulher já esteja menstruada para garantir que não há gravidez. Apesar de ter seus direitos garantidos dentro do Alcorão, o não cumprimento destas regras na sociedade atual está ligado a manipulação da regra do islam pelos homens. “Da mesma forma que acontece com os direitos ocidentais, a justiça é muito importante, mas nem sempre contribui, porque quem equaciona isso são os homens e os homens nem sempre são justos”, explicou Barbosa. Além do quesito da separação, existe outro ponto no casamento em que os direitos de homens e mulheres diferem. O contraste aparece novamente quando um homem pode ter até quatro esposas, que podem ser de qualquer religião monoteísta, enquanto, em contrapartida, uma mulher poderá ter apenas um marido que seja obrigatoriamente muçulmano. Embora seja legal dentro do Islamismo, a poligamia entra com um porém dentro da religião: o número de esposas condiz com a capacidade do homem de sustentá-las e dar à todas uma vida digna. Entre os pontos positivos que a poligamia trouxe à sociedade muçulmana antigamente, hoje em dia, a prática é proibida na Turquia e Tunísia.5 5. Trecho retirado do livro O Livro das Religiões (2001) de Victor Hellen, Henry Notaker e Jostein Gaarder, na página 133.

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Islamismo no mundo Mesmo que a equiparação dos sexos esteja clara para os praticantes do Islamismo, um dos principais motivos pelo qual as muçulmanas ainda são vistas de forma polêmica pela sociedade ocidental é o fato de que a religião está distribuída em diversas culturas e acaba sendo confundida com costumes anteriores à ela como, por exemplo, a mutilação genital.6 Quando a modelo Somali Waris Dirie escreveu o livro Flor do Deserto para contar a sua história de mutilação genital, a imprensa de todo o mundo classificou Somali como uma nigeriana que, por ser muçulmana, teve que passar pelo procedimento sem anestesia quando tinha apenas dez anos. No entanto, a informação foi divulgada de forma distorcida, já que a situação da modelo era invertida: ela passou por este processo traumático por viver em uma cultura que prega a mutilação genital, e não por conta da religião. “[No Islam] a circuncisão masculina é obrigatória, mas a feminina era feita por povos antigos por uma questão estética, mas nunca com essa violência que a gente vê atualmente”, explicou Barbosa, também classificando o ato como uma técnica muito anterior ao Islamismo em si. A comoção com o caso de Dirie gerou tantas mobilizações ao redor do mundo que o presidente da Nigéria na época, Jonathan Goodluck, aprovou uma lei contra a mutilação genital no país durante a última semana de seu mandato, cinco anos após o caso da modelo ter vindo à tona com a transformação do livro em um documentário, que levou o mesmo nome da publicação, e ter alcançado um número ainda maior de pessoas. 6. A mutilação genital feminina conhecida também, por circuncisão feminina, consiste na remoção ritualista de parte ou de todos os órgãos sexuais externos femininos.

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Além da mutilação, outra questão que também provoca alguns questionamentos sobre os muçulmanos é o casamento arranjado. Contudo, antes de falar sobre ele, é necessário fazer a distinção entre os termos arranjado e forçado. O casamento arranjado, que é comum no Islam, é aquele em que parentes de ambos os lados – tanto da mulher quanto do homem – apresentam os possíveis noivos, acreditando que eles poderiam formar um bom casal, mas deixam a decisão de levar o matrimônio à frente completamente na mão de ambos, sem a pressão familiar. Já o casamento forçado trata-se de coagir o homem e a mulher a se casarem de acordo com a vontade única dos pais, o que não acontece na religião. “No Islam você não pode obrigar ninguém a casar, existem várias situações em que a mulher rejeita esse pretendente”, explicou Barbosa reforçando que as leis Alcorão incentivam o matrimônio por amor, desde que os noivos não deixem os prazeres mundanos tomarem suas cabeças e os permitam fazer loucuras de amor que são reprováveis dentro da religião. Dentro do casamento e da vida cotidiana existe um outro quesito a ser discutido quanto ao direito da mulher: os homens podem bater nas mulheres? Existe uma passagem dentro do Alcorão que explica qual deve ser a conduta masculina caso a mulher não seja fiel à ele. “Quando àquelas, de quem suspeitais deslealdade, admoestai-as (na primeira vez), abandonai os seus leitos (na segunda vez) e castigai-as (na terceira vez); porém, se vos obedecerem, não procureis meios contra elas. Sabei que Deus é Excelso, Magnânimo”. (sura 4:34) Apesar de ser extremamente dúbia, a conduta do homem deve seguir os três passos apontados por Maomé e só chegar até 19


a terceira instância, caso as duas primeiras não surtam resultados. Mas, diferentemente do que as palavras podem parecer dizer, o castigo não deve e nem pode ser feito de maneira agressiva. Para consumar a conduta, o homem deve dar tapas leves no ombro da esposa usando um pedaço de madeira, chamado de misswak, em árabe, que tenha o tamanho de uma escova de dentes. O gesto é estritamente representativo para que ele demonstre que, caso a situação não seja resolvida, o próximo passo será a dissolução do casamento. A violência bruta é extremamente reprovada e Maomé já disse aos seus seguidores: “Não é dos nossos aquele que bate em sua esposa”.

O véu muçulmano Atualmente, a questão do véu das mulheres muçulmanas é um dos assuntos mais discutidos sobre o Islamismo pela sociedade ocidental. Geralmente chamado de Burca ou Hijab7, as vestimentas típicas da religião são um costume antigo, com diversas variações culturais e estão longe de poderem ser consideradas como opressão, como se verá no próximo capítulo, quando as mulheres contam os motivos que as fizeram optar pelo uso de seus véus. A tradição, além de ser uma prescrição religiosa, surgiu em um período da história no qual os conflitos no Oriente Médio e na Arábia eram tão intensos que diversas mulheres eram atacadas pelas ruas. O véu aparece como uma forma de proteção, além de ajudar a definir quem eram as muçulmanas duran7. Apesar de a palavra Hijab ser usada como o nome dado a um dos tipos de vestimentas, o termo em árabe quer dizer “cobertura” e aparece diversas vezes em frases como “respeite o Hijab” para lembrar sobre as leis de cobertura do corpo feminino no islam. 8. Hadith é uma palavra árabe que pode ser traduzida para “ditos do profeta”.

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te a peregrinação islâmica feita por Maomé. Mas, afinal de contas, o uso do véu é obrigatório? Para chegar a uma resposta a esta pergunta, é preciso entender que a decisão parte de dois pontos de suma importânica: a obrigação religiosa e o livre-arbítrio feminino. No primeiro, fica claro nos hadiths8 que toda muçulmana – seja ela americana, brasileira ou de qualquer outra nacionalidade – sabe que deve usar o Hijab, porque é prescrição do Islamismo, e deve ser consumada após a menarca, ou seja, a primeira menstruação. Mas, muito antes de seguir aquilo que está escrito, a mulher deve ter a liberdade de escolher se vai ou não usar o véu e não pode sofrer pressão familiar para tomar esta decisão. “Nenhum pai, nenhum irmão, nenhum marido pode obrigar uma mulher a usar a vestimenta, porque essa é algo que precisa partir do coração dela”, explica Barbosa. Caso ela escolha usar o véu, o tipo de vestimenta está completamente atrelada a questão cultural. São sete variações: a Burca, o Niqab, o Chador, a Abaya, a Al-Amira, o Hijab e a Shayla, incluindo posteriormente aquela em que as mulheres se abstêm do uso da vestimenta, deixando o cabelo à mostra.

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Burca: A Burca surgiu dentro de um grupo paquistanês em um lugarejo onde a grande maioria era de homens. Intimidadas pela presença masculina massiva, e as mulheres solteiras que moravam lá inventaram a Burca para esconderem seus corpos. Ela acabou migrando para o Afeganistão e se consolidando em regiões próximas. A forma mais comum de se encontrar Burcas é em um tecido retangular preto ou azul que cobre todo o corpo, com uma telinha na região dos olhos.

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Niqab: O Niqab aparece em outras regiões justamente por ser a vestimenta usada pelas mulheres do Profeta. É muito comum encontrar o seu uso na Arábia Saudita, assim como algumas mulheres na Síria. O Niqab aparece como uma vestimenta que cobre todo o corpo das mulheres, deixando apenas os olhos à mostra.

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Chador: O Chador nasceu no século XVIII e tem ligação com povos xiitas e persas, tendo seu uso proibido em 1936 após um processo forçado da implementação da cultura ocidental no Irã. Mais tarde, em 1979, com a revolução iraniana, o uso voltou a ser obrigatório. O Chador precisa ser um véu preto, com variações mais alegres com cores e estampas em momentos dentro de casa ou comemorações em mesquitas, e com uma tela preta semi-circular na região dos olhos.

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Abaya: A Abaya é uma vestimenta mais moderna que surge na região do Golfo Pérsico e contempla mulheres de classes sociais mais altas. A diferença entre este tipo de véu e o Chador está na cor da dela usada na tela da região dos olhos que, neste caso, é branca.

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Al-Amira: A Al-Amira é uma vestimenta relativamente nova na religião, que surgiu na década de 1970 após movimentos feministas impulsionarem algumas mulheres a abandonarem o uso do Niqab. Com isto, elas adotaram este novo véu que também já é um dos mais usados ao redor do mundo. A Al-Amira é formada por duas partes, a touca e o lenço, e pode ser combinado com peças de roupa que cobrem o corpo.

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Hijab: O Hijab, além de ser o termo popularmente usado para falar sobre o véu islâmico, também se tornou uma designação para o lenço que cobre o cabelo e o pescoço, deixando apenas o rosto à mostra. A cores e estampas dos Hijabs variam de acordo com o gosto das mulheres e tendências do mundo da moda.

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Shayla: A Shayla surge em um contexto muito parecido com o da Al-Amira e se tornou uma opção para mulheres que não se sentiam confortáveis com o cabelo à mostra. Além de ser um tipo de vestimenta muito usado pelas muçulmanas, ela também tem a função de cobrir os fios das mulheres para entrarem em mesquitas, já que esta é uma regra dos templos muçulmanos. A Shayla é longa e retangular e é posicionada ao redor da cabeça e dos ombros, podendo deixar parte do cabelo e do pescoço sem cobertura.

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Apesar de o véu estar se tornando cada vez mais comum para as pessoas de diversas culturas, ainda existem parcelas que não aceitam a vestimenta muçulmana. Um dos maiores símbolos da intolerância atualmente foi a lei de proibição de uso de véus integrais (Burca e Niqab) em espaços públicos, promulgada em 2011 na França. O projeto de lei foi criado um ano antes pelo deputado Christian Vanneste e teve apoio quase unânime da Assembleia Nacional Francesa — 335 votos favoráveis e 1 contrário — após alguns ajustes. Artigo 1 Ninguém pode, no espaço público, usar um véu destinado a esconder sua face. Artigo 2 I. – Para a aplicação do primeiro artigo, o espaço público é constituído de vias públicas assim como lugares abertos ao público ou afetados por um serviço público. II. – A interdição prevê que o Artigo 1 não será aplicado se a pessoa tiver uma prescrição ou autorização por disposições legislativas ou regulamentares, se o uso for justificável por razões de saúde ou de motivos pessoais, ou se ela estiver em uma quadra de práticas esportivas, de festas ou manifestações artísticas e tradicionais.9 A punição para aqueles que infringirem a lei usando o véu é uma multa de 150 euros e de 30 mil euros e um ano de prisão para aqueles que obrigarem outras pessoas a usarem a vestimenta. Atualmente, mais de 6 milhões de muçulmanos vivem na França e muitas das mulheres usam véus integrais. “Os france9. A lei completa pode ser encontrada no site <https://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do;jsessionid=FB%200797A1E74F5E429DFDF5BC5D13A59A.tpdjo16v_1&dateT%20exte=?cidTexte=JORFTEXT000022911670&categorieLien=c>

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ses vêm repudiando e agindo de forma desrespeitosa em relação aos muçulmanos”, opina Barbosa. “Talvez porque hoje em dia os islâmicos são nascidos lá e não são migrantes mais, e isso incomoda um grupo de extrema direita”. Justificando que a lei tinha o objetivo de implantar a igualdade de gêneros, laicidade do Estado francês e segurança pública, a lei não foi a primeira — e nem a última — que interrompeu o direito das mulheres muçulmanas de usarem suas vestimentas culturais. Em 2004, foi promulgada uma lei que proibia o uso de símbolos religiosos ostensivos em instituições públicas de ensino. Apesar de servir para todos os tipos de fé, garotas muçulmanas sofreram um impacto muito maior por conta dos véus serem símbolos muito visíveis. O caso voltou a acontecer quando, recentemente, as islâmicas foram proibidas de usar o burqini, versão aquática dos véus integrais, nas praias de Nice, na França. A decisão tomada em julho deste ano surgiu com a justificativa de garantir a segurança da cidade da Côte D’Azur após o atentado no Dia da Bastilha (14 de julho). A grande comoção que o caso ganhou nas redes sociais e na mídia foi o suficiente para que a justiça francesa suspendesse a proibição, alegando que os ataques não eram o suficiente para retirar o direito destas mulheres.

FeminIslam Relacionar feminismo ao Islamismo pode parecer impossível, uma vez que a luta de empoderamento das mulheres muitas vezes classifica a religião como opressora. Entretanto, como o assunto está cada vez mais pautado na sociedade, grupos feministas muçulmanos estão ganhando força ao redor do mundo e a fala que busca o direito das mulheres está cada vez mais comum no Islam. No mundo, muitos coletivos que lutam por estas con30


quistas femininas na religião estão ganhando destaque e algumas conquistas já foram alcançadas. Um exemplo é a história de Tahrir Hammad, a primeira juíza mulher da Palestina a ser autorizada a celebrar casamentos muçulmanos no país. Contudo, a atitude não foi vista positivamente por todos, principalmente o grupo masculino, já que a Hammad recebeu críticas de Hussam el-Deen Mousa Afana, um de seus ex-professores, por meio de uma publicação no Facebook, dizendo que essa foi a “abertura da porta para a metástase do mal”. Já no Brasil, movimentos feministas islâmicos ainda não são tão fortes, mas isso não quer dizer que não existem. Em 2014, a brasileira muçulmana Pollyanna Meira criou o blog Feminismo Islâmico, que trata sobre a questão das mulheres dentro da religião. O projeto de Meira cresceu ainda mais quando, em 2016, ela ganhou o apoio Ana Lucia Meschke e Helena Moyses e juntas criaram o movimento Luísa Mahin10. Entre as principais lutas do feminismo muçulmano estão: a igualdade entre os gêneros em todos os setores (liderança em orações, no ensino e no aprendizado), a valorização e resgate do conhecimento de muçulmanas estudiosas e feministas e a desconstrução de todas as estruturas patriarcais que são vistas como parte do Islam, mas, na verdade, estão infiltradas na religião. Embora existam todas estas lutas, a principal no Feminismo Islâmico é a conscientização de que o Livro Sagrado é único princípio no Islam. “O Alcorão é a única fonte da religião e não os hadiths fabricados 200 anos após a morte do Profeta Maomé”, explica Moy10. Luísa Mahin foi uma ex-escrava africana radicada no Brasil. Por praticar o Islam, ela ficou conhecida como malê, denominação usada para falar sobre os negros islamizados, e foi responsável por participar grandes movimentos da Província da Bahia, tais como a Revolta dos Malês (1835) e a Sabinada (1837-1838).

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ses, uma das criadoras do movimento Luísa Mahin, durante uma troca de mensagens. “Eles [os hadiths] se transformaram numa espécie de telefone sem fio e base para justificar todos os atos de violência e de barbárie que vemos hoje no Islam”. Além do apedrejamento por adultério, a morte por apostasia e casamento infantil, um outro ato que aparece apenas no hadith, segundo Moyses, é o uso do hijab. “Não há tal obrigação no Alcorão, não existe nenhum verso que determina que as mulheres devem cobrir os cabelos, esta é uma grande mentira que vem sendo espalhada, não apenas no Oriente, mas também no Ocidente, e defendida pela maioria das muçulmanas”, esclarece. O Feminismo Islâmico também usa o termo “cultura do hijab” – equiparando-o à “cultura do estupro” – para mostrar que o véu é uma forma de culpabilizar a vítima pela atitude do agressor. Mesmo com o esforço do coletivo para ganhar um espaço dentro da discussão da religião, Moyses admite sentir falta do apoio das muçulmanas e de outros grupos feministas brasileiros. “As conquistas foram poucas e um dos motivos é justamente esse temor dos islâmicos de serem identificados como um de nós e de serem excluídos pela maioria”, explicou ao relatar casos em que alguns praticantes do Islam, tanto homens quanto mulheres, entraram em contato com elas para parabeniza-las pela luta, mas dizer não ter coragem de se expressar abertamente. “Temos a consciência de que a caminhada é longa, os conceitos estão muito enraizados, as mentiras vêm se solidificando há centenas de anos, sabemos que não é fácil desconstruir esse quadro, mas não vamos desistir”, finaliza.

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Fé X Moda Assim como a questão do feminismo muçulmano, a relação das mulheres com a moda ainda é recheada de questões inexploradas para pessoas que não compartilham desta cultura. Como imaginar que alguém que usa um véu da cabeça aos pés possa se importar nem que fosse por um segundo com aquilo que é tendência no resto do mundo? Apesar de parecer inexistente, há, sim, um interesse crescente das mulheres islâmicas em participarem desse universo. Um dado que mostra isso é a análise feita pleo State of Global Islamic Economic Report11 de 2015-16, o presença dos muçulmanos no mercado de roupas é muito maior que o comércio do Reino Unido (107 bilhões de dólares), Alemanha (99 bilhões de dólares) e Índia (96 bilhões de dólares) combinados, já que chegou a margem de 230 milhões de dólares no período analisado. Também foi possível concluir que o valor tende a subir quase 1 bilhão – se aproximando de 327 bilhões de dólares – até 2019. Mesmo que os dados revelados pela análise não conversem diretamente com o interesse das muçulmanas por moda, não é difícil conseguir relacionar os valores à crescente relação que estas mulheres vêm desenvolvendo com o mercado. Apesar de as Semanas de Moda terem como foco o jeito de se vestir da cultura ocidental, a última Semana de Moda de Nova York que mostrou as tendências de Primavera-Verão 2017, conseguiu trazer elementos islâmicos para as passarelas do que qualquer outra.

11. O State State of the Global Islamic Economic Report é o maior fórum sobre a economia islâmica que age por meio de economistas e ponta para analisar regiões geográficas e barreiras culturais para mostrar os grandes desafios e oportunidades na economia muçulmana.

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Anniesa Hasibuan, uma estilista indonésia e muçulmana, quebrou barreiras ao combinar todas as roupas desfiladas com hijabs [foto]. As peças desenhadas por ela tinham um tom alegre e se aproximavam da tendência do metalizado que esteve nas mais importantes passarelas da Semana de Moda, mostrando como é possível para as islâmicas adaptarem as tendências vistas em grandes eventos como esse a suas vestimentas religiosas.

Além do interesse muçulmano por esse mercado, e o caminho contrário também parece estar se solidificando, já que é possível ver como a moda está cada vez mais de olho em expandir seus horizontes para englobar as mulheres islâmicas como suas consumidoras. A grife Dolce & Gabbana, por exemplo, lançou em 2015 uma coleção capsula de Abayas [foto], que repercutiu positivamente na mídia. Entretanto, muitas mulheres não partilham desta mesma ideia.

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Melanie Elturk, CEO e fundadora da marca Haute Hijab, personagem do próximo capítulo, não vê a iniciativa da marca italiana como um olhar mais profundo na cultura muçulmanas, mas, sim, em um pote de ouro no Golfo Arábico, apesar de entender as consequências positivas que a nova linha pode acabar criando na cultura ocidental. “Eu acho que a jogada foi puramente comercial e lucrativa”, explica a empresaria. “Tenho certeza que eles sabem como o mercado funciona e é por isso que eles fizeram as abayas, porque é algo que só as mulheres do Golfo vestem, então foram feitas exatamente para elas e não para que as mulheres muçulmanas de todo mundo usassem, já que é lá [no Golfo] que a fortuna está”. A iniciativa, entretanto, não partiu apenas da grife, mas também da fast fashion japonesa Uniqlo, que criou uma linha de Hijabs [foto]. Além da democratização com a escolha do véu como peça-chave da coleção, todo o processo também contou com a colaboração da blogueira britânica muçulmana Hana Tajima, o que fez com que o projeto da marca fosse muito mais bem visto pela comunidade islâmica.

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Muçulmana, advogada e CEO da Haute Hijab, uma grife americana especializada em moda muçulmana. “Uso o Hijab para me tornar uma pessoa melhor” 39


Melanie Elturk Foi aos 13 anos que Melanie Elturk começou a vestir um dos grandes símbolos da religião com a qual esteve em contato desde que nasceu: o Hijab. Diferentemente do que a cultura ocidental crê, o uso do véu não foi uma imposição da família ou partiu da pressão da sociedade islâmica, mas uma atitude livre de uma jovem com vontade de abraçar ideais que acredita. Para ela, ter a oportunidade de começar a usar o Hijab não foi difícil – foi diferente, mas nunca um peso que ela carregou em cima dos ombros. “Com esta idade, você não sabe realmente como se sente sobre o véu”, explicou durante uma entrevista por telefone. “Eu tinha uma amiga que estudava comigo que usava e se sentia bem sobre isso, mas eu não amava ou odiava, era apenas algo que era parte da nossa cultura e da nossa fé”. A decisão tornou-se algo natural quando ela atingiu a adolescência e ajudou com que ela enfrentasse a Faculdade de Direito sem se importar com os olhares de reprovação e curiosidade de seus colegas. Estudante da Universidade Wayne State e americana, Elturk conviveu com a cultura ocidental desde a infância, o que não a impediu de seguir exatamente aquilo em que acreditava, mas ela admite que a estar com outras meninas que também usavam o Hijab tornou sua experiência dentro da faculdade (e na vida) muito mais saudável e tranquila. Mesmo escolhendo estudar Direito, a moda começou a se tornar um interesse dela quando começou a perceber como este mercado ainda não valorizava o público muçulmano. Elturk relembra que durante toda a sua infância e adolescência, o uso o hijab esteve sempre atrelado a roupas pouco modernas e, como jovem, ela sentiu a necessidade de dar a estas mulheres que optaram por usar o véu – e a si mesma – a oportunidade de 40


usar peças que condiziam com suas idades e gostos, sem deixar de lado as crenças da religião. Enquanto estava no colégio, Elturk aprendeu a costurar e fazer estampas, o que a ajudou a criar roupas que combinavam com o Hijab. A sensualidade da moda ocidental sempre a atrapalhou na hora de encontrar modelos que tinham estilo e, ao mesmo tempo, eram confortáveis e comportados. “Eu comecei a fazer minhas roupas durante o colégio, porque era algo que eu precisava no momento em que eu comecei a usar o véu. Era muito difícil achar peças que combinavam comigo, então, resolvi fazer roupas para mim mesma”, contou. Uma das primeiras peças confeccionadas por Melanie foi uma saia longa, porque ela tinha muita dificuldade de encontrar um modelo sem fendas no mercado. A necessidade de ajudar garotas como ela que, tão novas, assumiram um compromisso com a religião, foi uma de suas maiores inspirações para criar, em 2010, a Haute Hijab, uma grife de moda muçulmana que comercializa Hijabs e roupas com recortes mais compostos.

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Haute Hijab “Nossa comunidade consiste em lindas mulheres empoderando umas às outras a partir de histórias inspiradoras, estilo e o comprometimento com a fé”: este é o lema da Haute Hijab, marca que, há seis anos, oferece opções de roupa diferentes para mulheres que optaram pelo uso do Hijab. Lenços, truques de amarração e peças de roupas são algumas das opções encontradas pelas clientes da grife. Para desenvolver coleções e criações, Elturk tem um conceito muito bem definido e simples: se ela não usaria, você não encontrará em sua loja. “Eu tenho uma coisa muito pessoal com os meus designs, então, se eu não sairia com aquilo na rua, simplesmente não produzo. Sempre tenho minha cliente em mente: eu sei quem ela é, o que ela veste, o que ela faz... Desta forma, fica mais fácil para decidir o que funciona para elas e o que não funcionaria”, explica. As divergências entre a moda muçulmana e a ocidental, entretanto, nunca impediram que Elturk se inspirasse nas Semanas de Moda de todo o mundo. Para ela, ser americana e ver vitrines ditadas pela cultura ocidental sempre a inspirou e a ajudou a encontrar formas de unir tendências da passarela ao que ela estava acostumada a vestir. Apesar da contemporaneidade estar presente em suas criações, ela não nega que uma de suas grandes paixões relacionadas a moda se concentram nos anos 1940 e 1950. “A moda ocidental é provavelmente a maior inspiração para mim, porque, como uma mulher americana, são as roupas que eu uso e vejo nas vitrines. Entretanto, sou muito mais influenciada pela moda vintage, porque particularmente elas têm uma conexão comigo”, explica. “As roupas [de antigamente] tinham uma silhueta mais longa e não eram tão reveladoras quanto as que temos hoje em dia. Por isso eu sou muito ligada a essa época, além de terem sido tempos muito clássicos que transbordavam classe e beleza, e 42


eu amo isso”. Mesmo com o sucesso da HH, Elturk não tem vontade de expandir sua marca para englobar outros tipos de vestimentas muçulmanas. Para ela, a ideia de inserir em seu trabalho algo que não faz parte de seu dia a dia e nem de sua comunidade não é interessante, principalmente porque Burcas e Niqabs são elementos culturais muito fortes em regiões da Arábia Saudita e do Paquistão. “Se eu tivesse nascido em algum lugar em que esta era a norma cultural, eu poderia me sentir diferente sobre isso, mas como uma mulher americana que usa roupas da cultura ocidental, não é algo que eu estou acostumada ou interessada”, afirma. Sua decisão parte de uma vontade de respeitar culturas e de se manter afastada daquilo que não se encaixa em sua realidade, algo que Elturk reprova em grandes corporações, principalmente se levado em conta o mercado da moda que está cada vez mais interessado nas consumidoras muçulmanas. “Existe um mercado grande, principalmente no oriente médio e no Golfo, para as grifes de luxo. É como se eles fossem a nova China em termos de vendas”, afirma.

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Mercado de moda e o interesse pelas muçulmanas A Dolce & Gabbana, conhecida por suas criações sensuais e nada minimalistas, lançou sua primeira linha focada nas mulheres muçulmanas [foto]. Apesar de a iniciativa da grife de Stefano e Domenico ter sido vista por muitas pessoas como um passo na direção certa em relação aos muçculmanos, a estilista discorda dessa visão e afirma seu descontentamento com a escolha de Abayas.

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Mesmo com essa visão, Elturk não deixa de concordar que a coleção da D&G ajudou a as muçulmanas de forma indireta. “[Com a coleção] a vestimenta muçulmana passa a ser uma realidade na vida de outras pessoas e no senso comum. Isso é uma coisa que me agrada muito, porque faz com que nós [muçulmanas] não nos sintamos tão diferentes e alienadas da sociedade”. Além da grife italiana, outra marca também se interessou pela moda feminina islâmica. Desta vez, longe do mercado da alta costura, quem realizou uma coleção para as muçulmanas foi fast fashion japonesa Uniqlo que lançou uma linha de Hijabs e roupas em pareceria com Hana Tajima, uma blogueira muçulmana britânica. A iniciativa da marca, diferentemente da anterior, agradou Melanie por parecer mais “pura e autêntica”, principalmente pela escolha da vestimenta na hora da criação, já que o Hijab está espalhado em mais regiões e culturas.

“Sou embaixadora da minha fé quando uso o Hijab” Convivendo diariamente com de seu Hijab desde os 13 anos, o véu acabou se tornando muito mais do que um símbolo religioso na vida de Elturk há muito tempo. Hoje em dia, ele é parte dela. Por conta de sua identificação com o véu, escutar de outras pessoas que o Hijab é uma forma de opressão é uma afirmação muito infeliz para ela. Mas a convivência em uma cultura ocidental desde jovem a deixou a calejada. “Eu entendo o porquê da nossa cultura ganhar uma fama ruim na cultura ocidental, já que existe uma diferença enorme entre ambas. Mas se as pessoas realmente entendessem o verdadeiro significado do Hijab e sobre o que o Islam tem a dizer sobre as mulheres, eles 45


entenderiam que não existe opressão”, explica. Mesmo estando acostumada com estes comentários sobre o jeito que escolheu se vestir, não quer dizer que ela os aceita. A estilista luta diariamente contra a ideia de as muçulmanas são submissas à religião e que não têm um opinião sobre como devem e querem se vestir e como se vestir. Para ela, generalização de que muçulmanas são forçadas a usar seus véus “é irresponsável”. “Eu não vou cair nas normas sociais que me dizem que eu preciso me vestir de uma certa forma para conseguir me encaixar na sociedade”, explica. “Para mim, me afastar dessa noção é algo muito libertador. E isso é o oposto de opressão! Porque eu não tive que me conformar com aquilo que a sociedade me manda fazer, seja para eu vestir menos roupas ou me comportar de uma certa maneira”. Afastada do preconceito e da visão ocidental sobre o Hijab, Elturk confirma que o véu tem um papel essencial em seu dia a dia e que ele funciona como uma forma de a manter próxima de sua fé e de lembrar de ser melhor todos os dias. “O Hijab é uma lembrança da minha devoção a Deus, de que eu estou vivendo a minha vida seguindo suas palavras e usando-o para me tornar uma pessoa melhor”, diz. “Ele me torna uma espécie de embaixadora da minha fé e tenho que ter sempre certeza de que estou falando a coisa certa mesmo quando eu estou brava, eu tenho que ficar calma e me recompor. As pessoas que me veem na rua sabem que essa é a aparência, pensamento e fala de uma muçulmana”, finaliza.

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Muçulmana, nutricionista e admiradora da moda. “Usar o Hijab também é uma atitude de modéstia” 49


Mariam Chami Desde que nasceu, Mariam Chami conviveu com os costumes do Islamismo. A sua vontade de ser uma muçulmana que seguia com os preceitos da religião sempre falou muito alto em sua vida. Portanto, aos 13 anos, quando teve a sua primeira menstruação, ela decidiu que, como uma mulher islâmica, ela precisaria começar a usar o véu naquele momento. Chami lembra que foi uma atitude que partiu de si mesma, mas não no primeiro instante. “É um fato até engraçado, porque, na época, eu tinha um vizinho muçulmano e ele tocou a campainha naquele mesmo dia e eu pensei: ‘atendo a porta com lenço ou sem lenço?’”, explicou durante uma entrevista por telefone. “Fiquei pensando que se eu atendesse com o véu ele saberia que eu havia ficado menstruada e acabei indo sem”. Apesar da decisão de não vestir o lenço naquele momento, ela lembra não ter se sentido confortável depois. A partir e então, ela não se lembra de ter passado um só dia sem o Hijab. Decisão esta que, infelizmente, a levou a enfrentar algumas situações de preconceito em sua vida adulta, principalmente após se formar como nutricionista. Arrumar um emprego, segundo ela, é uma das tarefas mais difíceis na sua profissão por dois simples motivos: ser muçulmana e ter optado pelo uso do véu. “Quando eu chegava em qualquer emprego, as pessoas costumavam falar que não daria certo e até diziam que eu era muito séria para o cargo mesmo sem me conhecer”, relembra. Mesmo com as dificuldades no âmbito profissional, Chami não afirma não ter sofrido preconceito em sua vida pessoal ao longo dos anos. Porque por mais que tivesse passado por momentos desagradáveis no dia a dia com “piadinhas e brinca50


deiras sem graça”, não há do que reclamar porque sempre foi “muito respeitada” e as pessoas sempre foram “muito educadas, até um pouco fora do normal”. A prova de fogo em sua vida para ver como as pessoas reagem ao diferente foi participar da Batalha dos Cozinheiros, programa da Rede Record, apresentado pelo mestre confeiteiro Buddy Valastro, também conhecido como Cake Boss.

Batalha dos Cozinheiros Ao lado de sua dupla, a também muçulmana Samia Jarouche Khatib, Chami não tirou o véu para participar de Batalha dos Confeiteiros, mesmo ele sendo um programa veiculado em rede nacional. As duas enfrentaram o público e, para a nutricionista, a recepção não poderia ter sido mais positiva. “Nós víamos a resposta pelo Twitter as pessoas gostaram bastante da gente”, conta. “Fomos a dupla que mais mexeu com todos na hora da saúda, porque todo mundo chorou”. Segundo ela, o grande sucesso das duas vai muito além dos pratos que elas criaram juntas no programa. A oportunidade de mostrar para o público com o Islam é diferente do que é noticiado na mídia, também foi essencial. “Eu e a Sami mostramos como a mulher muçulmana não é nada disso que as pessoas pensam e que nós podemos fazer o que quisermos e nos divertir”, explica, mas sempre lembrando que a, assim como em qualquer âmbito da vida, é preciso levar em conta as suas liberdades e limites. Para ela, esta foi uma forma de fazer com que as pessoas parassem de enxergar o Islam como um sinônimo do Estado Islâmico. “A única coisa que [o Estado Islâmico] tem 51


em comum com a religião é o nome, mas fora isso, não tem nada igual”, explica. Chami acredita que eles usam o nome da religião para justificar seus crimes, mas sabe que esta não é a conduta vista no Alcorão. Além disso, ela também acredita que teve a possibilidade de poder mostrar como as muçulmanas são muito mais do que seus Hijabs, mas para mostrar como a comunidade islâmica é maior e muito mais complexa do que as pessoas acreditam ser.

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A moda muçulmana no Brasil Embora usar o Hijab tenha colocado alguns desafios na vida da nutricionista por viver em uma sociedade com uma cultura completamente diferente da sua, isso nunca impediu Chami de encarar a religião como um estilo de vida e de usá-la ao seu favor na hora de se vestir. “Comecei a gostar de moda e me vestir bem há pouco tempo”, explica. Em seu Instagram, ela compartilha looks, maquiagens e dia a dia, e recebe muitos elogios sobre como admiram seu estilo que anda de mãos dadas com a religião. Apesar de suas redes sociais serem repletas de inspirações de looks, Chami não nega que é bem difícil ter vontade de usar roupas mais modernas por ser muçulmana. Segundo ela, o mercado brasileiro ainda não se adaptou aos costumes muçulmanos e até peças básicas, como uma camisa branca, por exemplo, podem ser impossíveis de encontrar. “Temos que usar roupas mais discretas, que não mostram muitas partes do corpo... Camisas brancas são uma das coisas mais difíceis de achar, porque a maioria é bem transparente”, conta. Mesmo com a dificuldade, a nutricionista encontrou uma forma de poder reproduzir tudo aquilo que via nas lojas para se encaixar em seu estilo: levar suas inspirações para costureiras. Desde jovem, ela conta com a ajuda de mulheres que a ajudam a não se limitar com peças mais antiquadas e poder usar aquilo que está na moda sem precisar fugir da religião. A única regra para Chami na hora de escolher as suas roupas é: não se ficar presa àquilo que está em blogs ou nas passarelas. “Eu gosto de criar minha própria moda”, diz. “Prefiro ficar com a cabeça mais aberta e fugir um pouco dessa imposição”. 53


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Quanto a encontrar lenços que ela possa usar como Hijab, a nutricionista admite nunca ter encontrado muita dificuldade, principalmente pelo véu ter as dimensões de uma echarpe comum. Embora o Brasil ainda não tenha se “familiarizado” com relação as muçulmanas, a nutricionista entende que outras partes do mundo estão amadurecendo nesse sentido. “Lá fora já existem até estilistas que fazem desfiles para a moda muçulmana!”, conta. “Com o tempo, acho que isso vai crescer, por que é uma tendência, afinal tem muitas blogueiras muçulmanas atualmente, uma delas [Mariah Idrissi] já fez propaganda para uma marca de roupas [H&M]” [foto]. A evolução do mundo em relação as muçulmanas, entretanto, ainda não está completa – nem na moda, e nem no dia a dia – e isso pode ser um pouco exaustivo para quem escolhe usar véu. “Claro que às vezes dá vontade de colocar uma camiseta e uma calça jeans e sair, sabe?”, brinca.

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“Pra mim, o Hijab é mais que um véu, é uma atitude” Há tantos anos convivendo com seu véu, Chami não pode se enxergar sem ele. Sair sem o Hijab é como deixar a casa sem as calças, por exemplo. “É uma questão de proteção”, explica. A nutricionista exemplifica sua relação com o lenço como uma forma de esconder sua joia mais preciosa: si mesma. Contudo, mesmo partilhando desta ideia, ela não condena quem tem uma cultura diferente que não precise se cobrir. Para ela, cada um tem o direito de se vestir – e se despir – da forma que quiser, mas sempre respeitando aquilo que o outro acredita. A situação na França, tanto com a proibição dos

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véus integrais, quanto a proibição temporária dos burqinis, é uma questão de falta de direitos iguais e de compreensão do que as muçulmanas querem “dizer” com suas vestimentas. “Nós não queremos impor ou mostrar nada, só estamos seguindo a nossa religião”, explica. Mesmo com a discriminação, Chami não abre mão: usa o Hijab e enfrenta o preconceito para vestir seu véu. “Eu não consigo me imaginar sem ele”, diz. “Usar o Hijab, além de colocar o pano na cabeça e se vestir mais discretamente, é também ter uma atitude de modéstia, ser uma pessoa educada, respeitosa, se dar o respeito. E isso, para mim, é mais do que apenas o véu, é uma atitude”.

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Muçulmana, blogueira, empresária e futura arquiteta. “O Hijab me faz lembrar da minha fé” 59


Mag Halat Usar o Hijab sempre foi uma vontade da blogueira e estudante de arquitetura Mag Halat. Entretanto, o medo de precisar enfrentar situações de preconceito, por fazer parte de uma sociedade ocidentalizada, sempre foi uma preocupação sua e de sua família. A coragem para finalmente assumir o véu surgiu quando ela tinha 21 anos. E, apesar de sua escolha, a blogueira lembra ter sido difícil fazer seus familiares entenderem a importância que usar o Hijab tinha em sua vida. “De início, eles não queriam que eu colocasse por temer que eu sofresse de alguma forma, mas depois que comecei a usar, eles entenderam minha decisão e aceitaram bem”, conta. Mesmo tendo sido difícil encarar os parentes na hora de assumir o véu, enfrentar as pessoas na rua foi muito mais difícil. “Eu nunca fui agredida, nem nada muito sério, mas você nota comentários das pessoas”, conta. Dona de um blog, canal no Youtube e uma conta no Instagram com muita visibilidade, ela conta que a maioria dos ataques partem da internet. “É lá [na internet] onde eu mais me exponho, no Youtube principalmente, e recebo tem xingamentos, comentários raivosos, bem preconceituosos, e coisas até muito pesadas que eu acabo até apagando alguns”, relata. Apesar de já ter pensado em denunciar estes ataques, Halat não acredita que isso vá resolver, tanto pela impunidade que o computador oferece, quanto por como pelo preconceito ainda ser muito forte. Embora tenha que lidar com comentários negativos, Halat não desiste de mostrar ao mundo como ela sabe relacionar o Hijab com a sua vontade de seguir a carreira de blogueira e ser bem sucedida nesse caminho. 60


Ser blogueira e muçulmana A ideia de criar o Blog da Mag surgiu da inspiração no trabalho de outras blogueiras muçulmanas – como Ascia Akf, Ruba Azai e Dalal Aldoub [na foto], quem ela classificou como “a Thassia Naves12 muçulmana” – que tentam expressar a sua paixão por moda e beleza sem ultrapassar os limites da religião. Contudo, foi necessário mais de um ano para que o projeto finalmente saísse do papel.

12. Thassia Naves é uma blogueira de moda brasileira.

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Boa parte da demora de seu site e canal no Youtube estava atrelada ao medo de não agradar o público e não ter sucesso em seu trabalho. O que não aconteceu e ela foi surpreendida positivamente com a reação das pessoas. Atualmente, ela recebe inúmeras visitas no seu blog, já tem mais de 14 mil inscritos no canal no site de hospedagem de vídeos – e quase 300 mil visualizações em todos as suas filmagens – além de sua página no Instagram, que tem atualmente 13 mil seguidores. O êxito de seu trabalho na internet não está só ligado ao fato de que ela foi a primeira blogueira muçulmana brasileira, mas também a dedicação que ela coloca em seu blog. “Quando eu tomei coragem e acabei criando [o blog], percebi que iria adorar tudo aquilo e gosto e me dedico muito até hoje”, conta. Quem a acompanha Halat pode encontrar não apenas vídeos que falam de sua relação com a religião, como no qual ela explica o que é o Ramadan13 ou de sua história com o Hijab, mas também aqueles em que ela mostra seus produtos de maquiagem preferidos e convida seus seguidores a verem sua rotina em vlogs. Uma das maiores surpresas de Halat em relação ao seu blog foi no grande alcance de um público que, no início, não era o seu alvo. “Por incrível que pareça, a maior parte das pessoas que me acompanham não são muçulmanas”, explica. O que a deixa muito feliz, já que permite com que elas possam ver como as mulheres islâmicas realmente são e fugir de estereótipos. Apesar do crescimento de seu trabalho, Halat sente que ainda falta muito na questão do mercado de moda no Brasil para muçulmanas. Segundo ela, é muito difícil encontrar roupas que não tenham decotes ou transparência e, quando consegue achar 13. Ramadan é o nono mês do calendário islâmico e é período no qual os muçulmanos devem praticar o jejum, um dos cinco pilares do Islam.

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uma peça mais “comportada”, tem sempre a impressão de que comprando “roupas de senhora”. “Quando vou às compras é uma verdadeira caçada”, conta. “É difícil achar roupas compridas que não tenham decote, nem transparência. Roupa de festa, então, é impossível! Eu sempre tenho que mandar fazer”, revela a blogueira que segue a mesma solução que Chami. Fazer compras pode até ser complicado, mas Halat percebeu que todo o seu esforço está valendo a pena quando teve seu trabalho reconhecido e foi convidada para participar algumas vezes do programa matinal da Rede Globo, É de Casa.

Rede Globo A proposta de participar do programa surgiu como uma surpresa para Halat, mas nada foi mais surpreendente do que a resposta do público sobre a sua aparição em alguns episódios da atração matinal. “Em poucos meses o programa descobriu meu blog e gostaram bastante, daí surgiu o convite para participar”, contou. Além da oportunidade de mostrar como as muçulmanas têm liberdade, ela também conseguiu divulgar seu trabalho em rede nacional como blogueira e acredita que muito do sucesso e do crescimento de seu público por ter participado algumas vezes do programa. Na emissora, Halat também teve a oportunidade de ir ao Encontro com Fátima Bernardes e conversar com a apresentadora sobre os estereótipos aos quais os muçulmanos são lembrados.

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“O Hijab me faz lembrar da minha fé” Embora Halat tenha demorado para finalmente decidir que usaria o Hijab, atualmente, ele é uma demonstração de que ela está cada vez mais ligada a sua fé e a Deus e ela não pode mais se imaginar sem estar com o seu véu todos os dias. “O Hijab me faz lembrar da minha fé, mostra a minha submissão à vontade de Deus”, conta. E, mesmo que ela tenha passado por algumas situações de preconceito ela internet, ela entende que as demonstrações de admiração e quebra da percepção preconceituosa com seus vídeos, tem tornado mais fácil de encarar os comentários ruins. “Me deixa muito feliz que as coisas positivas sejam bem maiores que as negativas”, comemora. “As pessoas começam a perceber que sou uma pessoa normal, como qualquer outra. E que, sim, eu posso ser muçulmana, ser blogueira e gostar de me maquiar. Tem vários comentários nesse sentido também, nos quais o público diz ‘achei que você não podia fazer nada’, ‘achava que você era oprimida’, e me deixa feliz ver que isso está mudando e sou parte desta transformação”.

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Muçulmana, designer de moda e blogueira. “Sair de casa com o Hijab foi o teste final para saber se eu era muçulmana ou não” 67


Andrea Brito Andrea Brito não nasceu muçulmana. Antes de se converter ao Islamismo, em 2013, ela era católica. Entretanto, mesmo seguindo outra religião, isso não impediu que a designer de moda estudasse e tentasse compreender o Islam. Foi nesta época em que ela se dedicou a conhecer melhor a religião que, mais para a frente, se tornaria a sua. Embora cogitasse se converter muçulmana um dia, a ideia de usar o véu nunca passou pela sua cabeça. Brito admite que até tinha “fobia” ao pensar em precisar usar os lenços. “Antes de me interessar pelo Islam, eu não tinha isso, é engraçado”, explicou durante a entrevista. “Eu achava bonito, diferente, mas não tinha receio. Acho que por não fazer parte da minha vida [naquele momento], não teria com o que me preocupar”. O medo em usar o Hijab era, majoritariamente, fruto do receio de sofrer algum tipo de preconceito e até de sentir-se sufocada com ele na cabeça. Descobrir que a decisão do uso era arbitrária e dependia somente das mulheres foi um alívio. “Esse pensamento [de que não era obrigatório] foi me deixando mais relaxada e pude me aprofundar e conhecer outros aspectos da religião”, conta. Ao longo dos anos, Brito descobriu blogueiras muçulmanas – como Amena Khan, Dina Torkyo [foto] e Chelsey Love – e estas mulheres a ajudaram a encontrar a “beleza do Hijab”. Mais um menos um ano após conhecer o trabalho delas, a designer de moda decidiu afirmar a sua fé e se converter. “Eu estava fazendo intercâmbio em Londres e lá tem muitos muçulmanos e mesquitas, principalmente no bairro em que eu morava. Isso foi me deixando cada vez mais confortável ao redor deles e ver as mulheres de Hijab foi criando em mim uma vontade enorme de experimentar”, contou, relembrando que 68


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usar o véu fora de casa foi o primeiro passo que ela tomou em direção ao Islamismo e, duas semanas depois, foi a uma mesquita londrina para completar a transição. Apesar de parecer espontânea, a escolha de usar sua experiência em Londres como o estopim da sua vontade foi pensada. Brito revelou o principal motivo: estar longe dos familiares e amigos que poderiam julgar a sua decisão. Segundo ela, abrir mão do catolicismo para abraçar o Islam foi algo muito difícil para a sua mãe, que é católica, aceitar. “Meu pai nunca falou nada contra, porque ele tem uma mente mais aberta e lê bastante. Mas com a minha mãe foi mais complicado, porque ela é mais fechada”, lembra. “Até hoje ela não aceita 100%, mas pelo menos respeita e convivemos bem”. Mesmo com a dificuldade com a sua mãe, Brito acredita que a recepção dos pais com a notícia foi muito positiva, já que conhece casos de garotas que foram expulsas de casa ao se converterem ao Islamismo.

O preconceito no Brasil Natural do Recife, além de precisar lidar com a intolerância inicial dentro de casa, ela também sofreu nas ruas com o preconceito, uma vez que o número de muçulmanos no estado nordestino brasileiro é muito baixo. Mas mesmo assim Brito não se lembra de ter passado por situações constrangedoras ou perigosas, mas relata uma grande diferença de tratamento entre as classes sociais. “Noto que as pessoas olham muito na rua, principalmente em lugares mais pobres, como se fosse um ET, me chamam de mulher bomba, dizem que sou da terra do Bin Laden. Vejo muita curiosidade e piadinhas”, conta. “Já em bairros mais 70


nobres há mais preconceito, por exemplo, quando entro em restaurantes e as pessoas ficam me olhando feio, me encarando, até com olhar de ódio”. Embora sua experiência como muçulmana no Brasil não esteja sendo traumática, a designer de moda evita sair de casa quando acontece algo tipo de ataque terrorista. Ou, se precisa ir a algum lugar, busca usar o Hijab em forma de turbante para não chamar tanto a atenção e estar sempre acompanhada.

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Estudar moda depois do Islam Durante seu intercâmbio em Londres, quando decidiu se converter muçulmana, Brito havia trancado o curso de moda na Faculdade Boa Viagem e DeVry. Voltar a estudar o assunto no Brasil que sempre foi sua paixão não foi fácil. “Quando voltei, continuei estudando, mas demorei um pouco a ver que poderia continuar na moda como profissão e não apenas para terminar o curso que já tinha começado”, relembra. Uma das maiores dificuldades para ela era conseguir criar a sua identidade como muçulmana sem perder a personalidade anterior. Ao longo do curso, Brito descobriu uma forma de relacionar as duas coisas: projetos voltados para as islâmicas e, inclusive, fez seu Trabalho de Conclusão de Curso sobre o tema, chamado de “Projeto de Coleção de Vestuário para Jovens Muçulmanas Ocidentais com Inspiração na Estética Minimalista”, no qual ela desenvolveu uma linha de roupas sóbrias para mulheres que seguem a sua religião. O que ela não esperava era que a faculdade pudesse ensinar ainda mais sobre as vestimentas islâmicas. Lá, Brito desconstruiu preconceitos que ela mesma tinha sobre ser muçulmana. “O interessante é que [a faculdade] me ajudou a conhecer muito mais sobre as vestimentas, o que contribuiu para que eu não fosse tão restrita em relação a isso e tivesse uma visão mais aberta em relação à modéstia”, explicou. “Quando eu comecei a usar o Hijab eu achava que só quem usava era uma boa muçulmana, hoje eu não vejo assim. O véu inclui todo o comportamento de uma pessoa também e não apenas a vestimenta ou o lenço na cabeça”.

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Entretanto, ela não deixa de enxergar a precariedade do mercado de moda islâmica brasileiro. A designer explica que encontrar roupas no Brasil ainda é difícil e, muitas vezes, só consegue ver artigos que seguem o seu estilo em fast fashions, mas não nega que “as marcas estão começando a perceber que [as muçulmanas] são uma fatia importante do mercado”. Atualmente, Brito exerce a profissão e consegue adequar seus trabalhos ao que considera plausível dentro da religião. Por exemplo, ela evita aceitar editoriais que envolvam bebidas ou biquínis e opta por aqueles que a permitem se vestir de maneira mais composta. Outra forma da designer se expressar por meio de seu trabalho foi o blog Simplicity in Vogue, criado por ela em setembro de 2016. Ela, que já teve outras páginas na internet anteriormente, acredita que seu projeto recente possa realmente dar certo, já que amadureceu muito nos últimos anos por conta da sua mudança de religião. 73


“Por causa do Islam e alguns outros momentos da minha vida, comecei a me apaixonar por um estilo de vida mais simples, e por roupas de estilo mais minimalista também”, contou. “Algumas pessoas acham que não dá para se vestir deste jeito e estar na moda ou que não dá para ser muçulmana e gostar de moda, e eu quero mostrar que dá para ter uma harmonia entre essas coisas sim”. Além de falar sobre moda e religião, Brito quer se comunicar com vários públicos e também pretende escrever para “garotas que gostam de se vestir de forma mais conservadora, falar sobre o estilo minimalista, compras de maneira inteligente e em marcas que são ecologicamente corretas”, além de abordar temas mais complexos como autoestima, confiança e ansiedade.

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“O Hijab me deixa mais consciente das minhas escolhas” Embora a relação de Brito e do véu não tenha começado da melhor maneira, ele representou uma grande parte na sua conversão. “Sair de casa com o Hijab foi o teste final para saber se que queria ser muçulmana mesmo, então, comprei alguns lenços duas semanas antes ir à mesquita de lá me converter oficialmente”, relembra. Atualmente, apesar de admitir que a sua relação com o véu “não é perfeita”, ela não se imagina sem ele e sente que algo está faltando quando precisa sair sem estar usando – Brito contou que evita colocar o Hijab em aeroportos para não ter problemas com preconceito. Entender que, em alguns ambientes, o véu não é bem aceito por diversos motivos não é uma problema para ela. A única coisa que a deixa brava e a faz se sentir impotente é ver todo o julgamento que há em relação um elemento religioso. “O preconceito que existe em relação a um simples véu reforça minha vontade e propósito de continuar usando o Hijab”, disse firme. Além de ajudar na sua luta, o lenço também é uma forma de mantê-la conectada a Deus, medir suas atitudes e reforçar a modéstia, que é tão importante na religião. “Espiritualmente falando, ele também me ajuda a ficar mais próxima a Deus, porque a partir do momento que saio às ruas, só o fato de estar com o Hijab, eu sei que estou representando uma religião, então estou ainda mais consciente da forma de falar com os outros, de me comportar, dos lugares que eu frequento e os tipos de amizades”, finaliza.

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Bibliografia GULEN, M. F. Perguntas e Respostas Sobre a Fé Islâmica Vol. 1. Istambul: Tughra Books. 2009. GULEN, M. F. Os Fundamentos da Fé Islâmica. Istambul: Tughra Books. 2009. HELLERN, V.; NOTAKER, H.; GAARDER, J. O Livro das Religiões. São Paulo: Companhia das Letras. 2001. OLIVEIRA, P. E. Para Compreender o Islã e os Muçulmanos. Rio de Janeiro: Heresis. 2001.

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