CARTA AO LEITOR Muito mais que um pedaço de pão Segundo o último levantamento realizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), em 2008, a cidade de Natal possuía 223 pessoas identificadas como moradores de rua. Todavia, o fator mais preocupante é que, desse número, somente 70 são atendidos pela Secretária de Trabalho e Assistência Social do Município de Natal. É sempre assim: entra governo, sai governo, e a situação dos moradores de rua permanece. Na verdade, nunca houve um trabalho que buscasse uma reintegração eficaz dos semteto na sociedade natalense. Na maioria das vezes, convencer um morador de rua a participar dos programas sociais é muito difícil, pois a grande parte deles está sujeita as oportunidades que a rua dispõe. Elas vão desde um trabalho de flanelinha, até as facilidades do mundo das drogas, que, na maioria dos casos, garante um retorno financeiro maior que aquele oferecido pelos trabalhos sociais. Porém, essa resistência não é motivo para a prestação de um serviço de má qualidade. Hoje, na capital potiguar, os programas voltados para os moradores de rua estão reduzidos a mapeamentos, identificação dos casos, reinserção familiar, vagas em albergues e cadastramento em programas sociais, como o Bolsa Família. Isto é puro exemplo do assistencialismo barato. As pessoas que estão à margem da sociedade estão cadastradas nos programas, e mesmo assim continuam a morar nas ruas e avenidas de Natal. Não há um trabalho voltado para a reinserção dessas pessoas para um convívio digno dentro de um ambiente coletivo. Este Jornal procura deixar bem claro que pratica a pluralidade e o apartidarismo editorial. Não estamos aqui para julgar Governo de partido x ou y. Pretendemos apenas reafirmar que é preciso maior seriedade nos projetos desenvolvidos com os moradores de rua: eles precisam bem mais que um alimento ou uma cama para dormir. É preciso que dêem a eles um pouco de dignidade, e essa característica não é doada, como um pedaço de pão, ou dinheiro. Ela é conquistada. Existem inúmeras formas, de fazer com que um projeto social seja atrativo e, ao mesmo tempo, eficiente. Só está faltando uma única coisa: vontade pública de mudar essa situação. Por isso, é necessário que os órgãos competentes prestem mais atenção nos moradores de rua e ofereçam oportunidades reais para que possam melhorar tanto sua qualidade de vida, quanto a de seus familiares. Precisamos, de uma vez por todas, nos ver livre dessa chaga intrínseca em nossa sociedade.
Foto: divulgação
O SANTO DOS ANIMAIS
G
iovanni di Pietro di Bernadone, mais conhecido como São Francisco de Assis, nasceu em 1182 na cidade de Assis, Itália. De família abastada e pai comerciante, o menino foi criado em meio a muitas festas, boa música e com bastante dinheiro para usufruir de toda aquela vida. Como profissão inicial, optou pelo comércio. Todavia, diferente do pai, o garoto não possuía os dotes necessários para a prática de troca e venda de mercadorias. Com o intuito de conquistar o status que sua posição exigia, tentou alcançar as glórias militares e ingressou na cavalaria europeia. Em 1201, partiu para uma guerra na cidade de Perúsia, encorajado pelo pai e pelo desejo de obter fama e mais capital. Porém, a guerra não saiu como o planejado. O jovem foi tomado como prisioneiro e permaneceu assim por meses, até conseguir sua libertação. Ao voltar para casa, Francisco foi acometido pela fraqueza. Foi a partir desse momento que o jovem passou a agir e ver o mundo com outros olhos. Resolveu vender todas as suas mercadorias, rejeitou a fortuna de seu pai e beijou o rosto de um portador de hanseníase, como símbolo de amizade ao que antes lhe causava repúdio. Francisco passou, então, a andar sem destino e maltrapilho, como forma de afronta ao contexto social da sociedade burguesa daquele tempo. Entregou-se totalmente a um estilo de vida fundado na pobreza, na simplicidade de vida e no amor total a todas as criaturas. Com alguns amigos e seguidores, deu início ao que ficaria conhecido mais tarde como a Ordem dos Frades Menores ou Franciscanos. Com Santa Clara, fundou a Ordem das Damas Pobres ou Clarissas. Em 1221, sob inspiração desse novo modo de vida, nasceu a Ordem Terceira para os Leigos Consagrados. Após anos de pregação e devoção, em 1224, Francisco manifestou em seu corpo estigmas semelhantes às de Jesus Cristo. Dois anos depois ele faleceria. O “santo dos animais”, como ficou popularmente conhecido, teve suas graças reconhecidas pela Igreja Católica Apostólica Romana em 1228, ao ser canonizado pelo papa Gregório.
"Como quereis que eu fique triste, sabendo que grandes coisas me esperam? O mundo inteiro ainda falará sobre mim." São Francisco de Assis
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REVISTA/PAUTA POTIGUAR
REVISTA/PAUTA POTIGUAR
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ESPECIAL Fotos: divulgação
Fundada em Campinas (SP), a Instituição Toca de Assis conquistou seguidores por todo o Brasil realizando trabalhos com moradores de rua
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C
om um sol de quase quarenta graus, às doze horas de um dia qualquer, eis que podemos nos deparar com a seguinte cena: jovens vestidos da cabeça aos pés, com hábitos simples na coloração mar-
rom, sandálias franciscanas e pedindo - como mendigos - num sinal ou casa. Para muitos, a sensação é de estranheza e curiosidade. Quem seriam essas pessoas? O que estariam fazendo com aquelas vestes naquele sol tipicamente natalense? Os toqueiros, como são chamadas as pessoas pertencentes à Fraternidade de Aliança Toca de Assis, são religiosos que - mesmo em meio à vida moderna e tecnológica - deixaram suas casas e famílias e passaram a se inspirar no exemplo de vida adotado por Francisco de Assis, religioso medieval considerado santo pela Igreja Católica. Com uma vida de peregrinação e pregação, o grupo tem sedes espalhadas por todo o país e conta hoje com 45 casas no Brasil e duas no Equador . REVISTA/PAUTA POTIGUAR
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ESPECIAL
A
Toca de Assis foi fundada em
bonito de todos: oferecem o próprio lar. O traba-
1994, em Campinas (SP), pelo
lho realizado com os irmãos de rua tem como
Padre José Roberto Lettieri e
único objetivo a formação do toqueiro. Não e-
tem como carisma a Adoração
xiste a tentativa da conversão dos moradores de
ao Santíssimo Sacramento e os cuidados aos
rua ao catolicismo, apesar de haver alguns casos
“irmãos de rua”, como são chamados, por eles,
em que moradores de rua se transformaram em
os sem-teto. O fundador diz que a semente da
toqueiros.
Toca estava no seu coração desde os tempos em
A Toca de Assis teve um crescimento
que era torcedor do Corinthians. Nos dias em
vertiginoso nessa primeira década dos anos
que havia jogo, ele e mais alguns torcedores da
2000. No ano de 2008, o grupo foi considerado
Gaviões da Fiel, uma das torcidas organizadas
pela revista Veja como o grupo religioso católi-
do Clube, roubavam pastéis em uma pastelaria
co de maior crescimento no Brasil. Cerca de 350
próxima ao Morumbi e distribuíam o alimento
integrantes, em 2000, passou para 1.510 no ano
aos pobres. Somente no segundo ano do curso
de 2007, a frente até mesmo da Canção Nova
de Teologia, junto aos outros “irmãos”, que
(de 200 para 1.110) e da Opus Dei (de 450 para
também trabalhavam com os pobres, foi funda-
754). A maioria desses novos participantes da
da a Toca de Assis. Atualmente, o irmão Gabri-
Toca de Assis são jovens entre 18 e 25 anos. Pa-
el está à frente das atividades realizadas pelo
ra o Padre Roberto Lettieri, a razão pela qual
grupo, já que o fundador, Roberto Lattieri, se
muitos jovens se encantam pela Toca está na
encontra em um retiro sabático (período de a-
experiência da radicalização do Evangelho de
fastamento para reflexão da vida), em Israel.
Jesus Cristo. Eles apreciam a adoração ao Se-
É através da Toca que eles realizam o
nhor e os cuidados com os pobres. Entretanto,
trabalho de assistência aos moradores de rua.
há estudiosos que criticam essa radicalização da
Os toqueiros oferecem comida, banho, cortam o
Toca de Assis, já que além de viver como men-
cabelo, fazem a barba, e, talvez, o gesto mais
digos, seus integrantes são proibidos de estudar.
Sem-teto x Morador de rua Vale frisar que nem todo “sem-teto” é necessariamente um morador de rua. O sem-teto semanticamente significa pessoa não dotada de moradia fixa. Enquanto que morador de rua é, exclusivamente, o termo que denomina os indivíduos que se abrigam em pontes, calçadas de lojas, edifícios, etc. 8
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Fotos: divulgação
Todo o aprendizado do toqueiro na instituição é obtido através das orações e do convívio com os menos favorecidos. Assim como outras instituições cristãs, para existir, a Toca de Assis possui um sistema próprio de hierarquização. No topo está o Ministro Geral, que atualmente, é o irmão Gabriel. Ele é auxiliado por um Conselho, que tomam todas as decisões relativas ao grupo. Após o Ministro Geral,
Acima: Padre José Roberto Lettieri
está o Ministro Regional, seguido pelos Guardiões, que são acompanhados pelos Conselhos Econômico e Religioso. Os Guardiões são os responsáveis diretos das casas. Por último, estão os membros da casa. Apesar da hierarquização, todos possuem as mesmas obrigações dentro do lar. Grande também é o percurso para se tornar religioso da Toca. São seis estágios, desde a entrada, até a profissão dos votos perpétuos. O primeiro deles é o vocacionado, onde o religioso é observado para descobrir a vocação. Se aceito, ele segue pelos demais estágios: Aspirantado, Postulantado I, Postulantado II, Noviciado e Profissão dos Votos. Como a Toca é uma instituição missionária, todas essas fases são vivenciadas em cidades diferentes daquela em que o toqueiro mora.
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ESPECIAL
Saiba mais so
Outra característica peculiar, e interessante do estilo de vida dos toqueiros, são as vestes, que são confeccionadas com pano de saco, e mudam à medida que o religioso passa por cada estágio. A primeira delas é uma calça e uma espécie de “camisão” marrom, sandálias franciscanas, cabelos curtos e um crucifixo simples, de madeira. Durante aspirantado eles recebem uma túnica da mesma cor e a usam por cima da peça anterior. Na fase do postulantado, é usado um capuz, também de cor marrom, que permanece com eles até a Profissão dos Votos. Quando os toqueiros fazem a Profissão dos Votos Perpétuos, eles recebem um hábito marrom, outro crucifixo, que agora possui desenhado o símbolo da Toca de Assis, usam um cordão branco na cintura amarrado com três nós (que representam obediência, pobreza e castidade, respectivamente), e mudam o corte de cabelo: os homens usam um modelo que reproduz a coroa de espinhos de Jesus Cristo, enquanto as mulheres usam um véu.
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Fotos: cedidas
obre a TOCA
TOCA EM NATAL O Grupo Fraternidade Aliança Toca de Assis existe em Natal desde 2002. Aqui, ainda há duas casas: a dos Filhos da Pobreza do Santíssimo Sacramento, localizada no bairro da Cidade da
Institutos de vida consagrada
Esperança, e a das Filhas da Pobreza do Santíssimo Sacramento, que fica no Pitimbu - Conjunto Cidade Satélite. Recentemente,
- Filhos da Pobreza do Santíssimo Sacramento
suas portas foram fechadas devido à falta de toqueiros para cuidar
- Filhas da Pobreza do Santíssimo Sacramento
da casa e dos moradores de rua. Até então, não há uma data certa
- Sacerdotes
para sua reabertura, mas duas guardiãs estão sendo esperadas, até
- Leigos: acompanham o trabalho realizado
o fim do ano, para reabrir o lar das irmãs. Enquanto as casas não
e colaboram de forma voluntária
são reabertas, quem faz o trabalho com os moradores de rua é um
- Irmãos de rua: parte fundamental da Toca
grupo de pastoral, os leigos, que entregam alimentos e roupas para os sem-teto. Geralmente, são membros da família dos toqueiros ou apenas pessoas que querem, de alguma forma, contribuir com o trabalho realizado pela Toca.
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O missionário Jonas Periarde é um ex-integrante da Toca de Assis. Passou quatro, dos seus 22 anos, na tarefa de evangelizar. Abandonou a vida que tinha e se dedicou inteiramente a ajudar os pobres. Morou nos estados do Ceará, Pará e São Paulo. Hoje, mesmo desligado da Toca há seis meses, continua realizando trabalhos voluntários relacionados à Igreja.
Como foi que você tomou conhecimento da
ro de Cidade Satélite ser São Francisco de Assis, fui
Toca de Assis?
motivado através da vivência da espiritualidade. Foi
Conheci a Toca através dos meus pais. Eles estavam
aí que eu comecei a dar meus primeiros passos pela
andando pela rua e encontraram duas irmãs. Nesse
Toca, no ano de 2002.
primeiro encontro, eles pegaram o endereço delas. A gente já tinha certa ideia pela TV Canção Nova, mas
Como foi a sua experiência como missioná-
contato pessoalmente foi a partir dos meus pais. Um
rio?
dia, eu decidi fazer a visita. Foi um momento total-
Tive uma experiência de quatro anos de vida religio-
mente encantador para o resto da minha vida.
sa na Toca de Assis. Nesse tempo, morei em cinco cidades: Crato, Eusébio e Fortaleza, no Ceará, Be-
Por qual motivo decidiu fazer parte da Toca?
lém, no Pará, e Ribeirão Preto, em São Paulo. Todas
Desde os sete anos de idade que eu sou católico. Já
elas foram bastante diversificadas. No Crato e em
tinha trabalhado com adolescentes e alcoólatras,
Eusébio, morei em um sitio com irmãos que tinham
mas, até então, não tinha tido nenhuma experiência
mais condições de trabalhar. Em Fortaleza, a casa
com moradores de rua. Devido ao padroeiro do bair-
cuidava mais de idosos. Eram ex-moradores de rua
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Fotos: Silvia Correia
que tinham certas condições de cuidar da casa, mas
Você chegou a morar na Toca em Natal? Co-
não tanto quanto a realidade do sítio. Em Fortaleza,
mo foi a sua experiência aqui?
também me transferiram para outra casa de irmãos.
Em Natal, eu fiz de 50 a 60 dias de experiência, que
Esses eram dependentes para tudo: não se sentavam
é a fase inicial para poder ser transferido. Geralmen-
na cama, tínhamos que dar banho, comida na boca,
te, os religiosos não moram na mesma cidade em
trocávamos a fralda. Em Belém, estive na casa do
que a sua família mora. Pelo fato de serem missio-
Bom Samaritano. Atualmente só existe uma no Bra-
nários, eles precisam partir para outra cidade. Temos
sil, que é em Brasília. A casa fazia o serviço de tria-
que abandonar tudo. Aqui, eu cuidei dos pobres den-
gem. Em alguns dias na semana distribuíamos comi-
tro da casa. Foi uma experiência semelhante da que
da e roupa, dávamos a casa pra eles tomarem banho.
tive em Fortaleza. Fiz trabalho de pastoral de rua e
Esse tipo de lar é, geralmente, para cidades em que
passei por todas as vivências de um religioso.
os moradores de rua não desejam se internar e nenhum convívio familiar. É para aqueles que insistem
Quem escolhe as cidades para onde os to-
em morar na rua.
queiros vão? Vocês podem escolhê-las? A gente não decide nada. No máximo, somos con-
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sultados. Se houver algum empecilho, apresenta-
Como era o seu relacionamento com eles?
mos. Quando eu fui para Fortaleza, na verdade tinha
Tínhamos uma relação totalmente pessoal e humana.
sido indicado pra ir pra Teresina, no Piauí. Devidos
Éramos como uma família. Havia a nossa religião,
a problemas de saúde em decorrência do clima
mas eles não eram obrigados a viver essa vida religi-
quente de lá, conversei com o Ministro e disse que
osa. Tem casos de irmãos que eram moradores de
não tinha condições de ir. Aí fui enviado para Forta-
rua e se tornaram toqueiros, mas não é essa a mis-
leza. No caso da transferência de Belém para Forta-
são. A missão é eles saberem que são amados por
leza, foi algo muito particular. Fizemos sete dias de
Deus. Se no contato eles decidissem que não queri-
peregrinação, a pé de Belém até Fortaleza porque
am ir para a nossa casa, a gente respeitava.
não tínhamos dinheiro. Dormíamos em qualquer lugar, pegávamos carona com qualquer pessoa. Só
Em algum momento você teve que lidar com
Deus sabe quando íamos chegar.
a violência das ruas? Não. Éramos muito protegidos pelos moradores de
Você chegou a viver na rua com os outros
rua. Em Belém, a gente tinha muita confusa no por-
moradores?
tão. Como era uma casa movimentada, onde sempre
Tive sim esse contato mais próximo com eles na
entrava e saia gente, desaparecia muitas coisas, co-
rua. Em todas as missões, tive a experiência como
mo máquinas de cortar cabelo, panelas, pratos.
morador de rua. O meu dia era na casa, cuidado dos
Quando isso acontecia, a gente fechava a casa por
pobres. A noite e pela madrugada, eu geralmente ia
alguns dias como um castigo pra eles. E eles faziam
para as ruas, trocar com eles. Na verdade, o toqueiro
questão de procurar quem fez isso: ou para reparar o
não tem cama para trocar. Nós vamos às ruas e leva-
dano, ou pra castigar mesmo. Eles não admitiam
mos eles para nossa casa para dormir conosco. O
fizessem algum mal contra nós, que somos tão bon-
toqueiro dorme no chão na casa também. A ideia
dosos. Se alguém nos ameaçasse, eles partiam para
das pessoas é que é uma casa nossa, que só mora
cima. Havia um sistema de gratidão muito grande no
religiosos. Mas não é, é a casa do pobre, onde o to-
coração deles. Nós andávamos com uma tranquilida-
queiro apenas serve nela.
de imensa nas ruas.
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Foto: Divulgação
Você desistiu da Toca? Na verdade, eu não desisti. Faz cinco, seis meses que eu saí
“Na verdade, o
da toca. Foi Justamente por essa experiência de amor que eu
toqueiro não tem
vim dar esse novo passo aqui. Eu posso voltar para a Toca de Assis, mas, nesse momento, por questões pessoais, eu
cama para trocar.
preciso estar em Natal. Então, não se tratou em desistir, se
Nós vamos às
tratou em dar mais um novo passo de amor.
Então, você pensa em voltar? No momento, eu preciso estar aqui.
ruas e levamos eles para nossa casa para dormir
Como foi a sua readaptação em Natal, após quatro
conosco. O
anos longe da família e da vida que tinha?
toqueiro dorme no
O novo é sempre algo que nos causa apreensão, ansiedade, tremor. Mas, ter esperança naquilo que o Senhor me prome-
chão na casa
te sempre me traz grande tranquilidade diante das novida-
também”
des. Vim com muita sede daquilo que Deus preparava pra mim, que é algo particular. Vim com muita esperança, e é isso tranquiliza o coração nessas reações naturais do homem sobre o novo.
Mesmo afastado da Toca, você continua realizando trabalhos religiosos? Por enquanto, estou me dedicando ao trabalho aqui na Paróquia de Cidade Satélite, o que me afastou precisamente do trabalho direto e constante com a Toca de Assis. Estou cuidando de grupos de jovens e adolescentes, grupos de alcoólatras. Mas eu sei que a experiência da Toca nunca se acaba.
Foto: Silvia Correia
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RELATO DO REPÓRTER
Foto: divulgação
E
ram nove horas da noite quando chegamos até a casa onde seria organizada a pastoral daquela sexta-feira, 16. O local contaria com a presença dos
“leigos” da Toca de Assis que, de quinze em quinze dias, costumam se reunir e levar alimentos aos desabrigados nas mais variadas localidades natalenses. O contato com o grupo havia sido indicação do nosso entrevistado Jonas Periarde. Seus pais, Dona Salete e Seu Jonas, sempre ajudam e se mantém participativos quando podem. Rua calma, casa silenciosa. Não parecia que estava tendo uma mobilização de pessoas ali. Batemos no portão, mas sem resposta. Somente um gato, que mais parecia uma estátua de mármore, mantinha-se na penumbra da janela e esboçava um sinal de vida dentro da casa de luzes apagadas. A primeira tentativa de ligação para Dona Ivamara, nosso contato do grupo, foi em vão. Esperamos mais uns quinze minutos. Ligamos de novo. Nenhum sinal. Não desistimos e resolvemos sair à procura do grupo pela cidade. Ou, quem sabe, com um pouco de sorte, conseguiríamos encontrar algum morador de rua que nos recebesse bem pelo caminho. Assim que adentramos no carro, conseguimos entrar em contato com o pessoal da pastoral. Eles nos avisaram que Foto: Silvia Correia
estariam próximos ao supermercado Nordestão, no bairro do Alecrim. Mudamos a rota e seguimos para lá. Ao chegarmos, parecia que era uma repetição do começo da noite: não encontramos ninguém por perto. Novamente, ligamos. Esperamos. Ligamos e nada. Pensamos em desistir. Todavia, não poderíamos sair dali de mãos abanando. Talvez por sorte, acaso, ou destino, isso não tenha acontecido. Na rua ao nosso lado, ia passando um moçoilo de boné que, julgando pela altura, seria uma criança. Mas se fôssemos julgar pela expressão facial que ele apresentava, era claro: aquele se tratava de um garoto que já havia vivido muita coisa nessa vida. Ficamos receosas em falar com ele. Não sabíamos ao certo como abordá-lo, nem qual seria sua reação ao nos receber. Tivemos um breve debate sobre o que faríamos, já que o grupo da pastoral não nos dava sinal e precisávamos da entrevista. Resolvemos, então, vencer aquele medo que, no fundo, não passava do preconceito disseminado pela grande maioria das pessoas em relação ao morador de rua e fomos falar com
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ele. Foi aí que nos deparamos com a história de Leonardo.
A história de Leo, um morador das ruas de Natal Leonardo, conhecido apenas
alguém para carregar suas compras.
las calçadas serve de ducha. Ao in-
como “Leo”, tem quatorze anos e ne-
Ele as ajuda, em troca de dinheiro.
vés de salão de beleza, o corte de
nhum documento. Nascido em Monta-
Com umas moedas aqui e outras ali,
cabelo é feito por eles mesmos. Cor-
nhas, interior do Rio Grande do Norte,
consegue juntar entre quinze a vinte
ta aqui, apara ali. De “estaqueada”
passou mais da metade da vida moran-
reais por dia. Grupos de igrejas, como
em
do nas ruas de Natal, mesmo com a
o da Toca de Assis, também sempre
“modelito”. Quanto à TV, é só ter
pouca idade que tem. Há oito anos,
costumam dar um pouco de amparo a
um tempo livre e passar em frente a
veio para capital. Há seis, não sabe o
essas pessoas. “Eles me dão roupa,
um restaurante para ficar por dentro
que é ser criança. Brincar? Essa ativi-
sabonete, comida. Tratam a gente
das notícias.
dade já não faz parte de seu dia-a-dia
como se não fosse de rua”, disse emo-
Quanto ao futuro? Bem, o futuro a
há muito tempo.
cionado.
Deus pertence. Se continuar do jeito
Com o sonho de uma reali-
Durante os meses de inverno ou quan-
que está, não haverá nada de bom.
dade melhor, Leo - abandonado pelo
do chove, Leo conta que eles não têm
Porém, se conseguir mudar de vida,
pai logo cedo - deixou para trás o inte-
onde dormir. Muitos comerciantes não
o garoto pretende correr atrás de seu
rior e, assim como milhares de brasi-
permitem que os moradores de rua se
maior desejo, que é trabalhar de
leiros, veio tentar a vida na cidade
alojem em frente as suas lojas e jogam
carteira assinada para poder comprar
grande. No sertão, ficaram também
água para expulsá-los. “Só de tocar a
um terreno para sua mãe que mora
seu trabalho na roça, uma mãe e qua-
água na pele, chega dói”, relembra
interior.
tro irmãos. A viagem para Natal den-
com angústia o menino. O relento da
Com um sorriso estampado
tro do maleiro de um ônibus qualquer
noite também oferece outros perigos.
no rosto, Leo se despede com um
não foi tão terrível quanto a realidade
“A noite é longa, tem muitos drogados
sonho: “quem sabe a gente ainda
encontrada em sua parada final. “Vim
por aqui. Já quiseram tocar fogo em
não se encontra nas salas de aula da
morar aqui porque lá era difícil. Mas
mim, tive sorte porque acordei bem na
universidade”. E segue seu destino
aqui foi mais”, refletiu o garoto.
hora. Foi Deus quem me fez acordar”,
com a incerteza cotidiana das ruas
A escola na Avenida 3, che-
narrou. Ele também já viu outros so-
na busca de um teto e um pouco de
gou a frequentar até a oitava série.
frerem esse tipo de violência: um me-
dignidade.
Precisou deixar os estudos quando sua
nino que ele conhecia teve os pés en-
irmã – a quem considera mãe - veio do
voltos em um saco plástico que foi
interior com dois filhos pequenos, um
queimado logo em seguida. Até a pró-
de seis e outro de quatro anos. “É peri-
pria polícia também contribui com a
goso morar na rua. Quero voltar pra
violência: “Sempre passa a polícia por
escola para ser alguém na vida e fazer
aqui batendo na gente. Só nunca fize-
faculdade”, revelou Leo. Sem estudar,
ram algo comigo porque sempre me
trocou a lavoura pelos automóveis:
mantenho afastado”, contou Leo.
quando não é flanelinha, lava carros.
E quanto à vida de morador
Hoje, o seu teto é a Eletrolux do Ale-
de rua? Como fazer para tomar ba-
crim, onde dorme com outros quatorze
nho? Cortar o cabelo? Assistir televi-
sem-teto. Pelo supermercado Nordes-
são? O garoto apenas riu. Contou que
tão, encontra pessoas que precisam de
a primeira mangueira encontrada pe-
“estaqueada”
está
feito
o
“
A noite é longa, tem muitos drogados por aqui. Já quiseram tocar fogo em mim, tive sorte porque acordei bem na hora. Foi Deus quem me fez
”
acordar
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Padre JosĂŠ Zilmar Conversa sobre a Igreja e seu posicionamento acerca do projeto de vida da Toca de Assis
Foto: Silvia Correia
Foto: Silvia Correia
Paróquia São Francisco de Assis
S
ão muitas as ramificações e ordens presentes na Igreja Católica ao redor de todo o mundo. Somente em Natal, segundo a Arquidiocese da cidade, são dezenove congregações, no total, presentes nas mais variadas regiões da grande Natal. Dentre elas, estão: Carmelitas, Salesianas, Filhas do Amor Divino, e a Toca de Assis. Apesar de não possuir mais uma sede fixa na capital potiguar, a Toca esteve, durante muito tempo, presente e atuante na capital potiguar. Mesmo não sendo uma Instituição ligada diretamente a Igreja católica, tem o seu trabalho respeitado e reconhecido pelos padres e outros religiosos. O Padre José Zilmar de Andrade, 74 anos, é formado em Filosofia e em Teologia e trabalhou em diversas regiões do estado. Há 51 anos exerce as suas funções eclesiásticas e, atualmente, está à frente da Igreja Matriz 22
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de São Francisco de Assis, no conjunto Cidade Satélite, Zona Sul de Natal. Para José Zilmar, a Toca de Assis é um movimento novo, que cresceu muito ao longo dos anos e que, recentemente, sofreu uma queda em seu número de participantes. Segundo o padre, apesar dessa diminuição na quantidade de pessoas, o esforço dos toqueiros e a assistência que eles prestam aos moradores de rua é reconhecida. A Toca, que prega a iniciativa de viver radicalmente o estilo de vida de São Francisco de Assis, é vista com bons olhos pela Igreja Católica, e tem o apoio da instituição. “Se as pessoas quiserem levar uma vida segundo o evangelho, a Igreja não vai ser contra. Se eles querem realmente fazer isso de boa vontade. Porém, a partir do momento que houver excessos, a Igreja vai estar pronta a rejeitar”, afirma o pároco.
Foto: Silvia Correia
“Se as pessoas quiserem levar uma vida segundo o evangelho, a Igreja não vai ser contra. A partir do momento que houver excessos é que a Instituição estará pronta a rejeitar”
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