MEDIANERAS ETNOGRAFIA SOBRE O LONGA METRAGEM ARGENTINO "MEDIANERAS", SOB AS ÓPTICAS DE SIMMEL, EZRA E FOOTE WHYTE
Carolina Sant'anna Sampaio Antropologia Urbana // Professora Julia Galli O'Donnell // IFCS // UFRJ
// SINOPSE // O sol nasce em Buenos Aires. A percepção de que a cidade cresce e acontece em meio ao caos é clara. Mas ainda mais claro é o reconhecimento de que ela é arquiteta de seu próprio caos. Em meio a tal caos, vive Martin, designer de websites que por dois anos não saiu de casa. O motivo? Ataques de pânico. Não só isso, claro; também há a falta de desejo, obesidade, insegurança, hipocondria, estresse, sedentarismo, excesso de canais a cabo, carência de comunicação, apatia, depressão, separação. Vive, é claro, em um apartamento "caixa de sapatos" de 40m2, que dá para uma janela que mal serve para nada. Por que uma janela tão pequena, com luz tão precária e com nenhuma vista? Tais são os reflexos de uma cidade que vira as costas para seu rio, vivenciada por quem a vive como estando somente de passagem; habitantes "inquilinos". Martin não usa nenhum meio de transportes; anda a pé. Tira fotos, um modo de ver a beleza onde talvez esta nem exista, e observa, experimentando a sensação de estar e não estar, ou estar de maneira diferente. Mariana vive em um apartamento nos mesmos padrões, o mesmo que deixou há 4 anos para mergulhar em um relacionamento que afundou - como se pode viver tanto tempo com alguém que reconheceu não conhecer de verdade? Formada em arquitetura, trabalha como vitrinista enquanto não consegue exercer sua profissão. Vive uma vida cercada de manequins, que mesmo que de forma sutil, são sua família. Tem uma grande paixão em sua vida: o livro "Onde está Wally?". Parece viver a realidade prevista em sua infância: nunca chegou a achar Wally na cidade. Tem fobia de elevadores, e o Planetário, seu edifício preferido em toda Buenos Aires, a faz lembrar de que é parte de um todo, infinito e eterno. Em meio a formas de fugir à rotina, as duas personagens flutuam sobre suas tentativas constantes de não serem sufocadas pela metrópole. Lutando contra limitações pessoais, vivenciam a cidade de forma individualizada, e apresentam reflexões sobre pequenas analogias de expressão de resistência: aberturas clandestinas nas empenas cegas (medianeiras) dos edifícios; plantas que crescem em meio ao concreto, onde não deveriam e não eram aceitas. Martin e Mariana buscam por um espaço para sua individualidade, e pessoas que possam compartilhar disso.
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// ANÁLISE // Se começarmos a analisar o longa através da óptica de Foote Whyte, veremos que qualquer sociedade pode ser considerada organizada - segundo os próprios padrões de organização - se observada em sua rotina, existindo como sistema social organizado. Buenos Aires pode ser caótica segundo uma óptica externa, mas não segundo quem a vive todos os dias. Podem-se estabelecer padrões de relacionamento entre pessoas, rotinas, padrões de mobilidade. O crescimento construtivo da cidade não necessariamente reflete a organização que seus habitantes definem, apesar das condições não favoráveis. Já pela óptica de Simmel, podemos dizer que as personagens resistem a ser niveladas e uniformizadas por um mecanismo sociotecnológico, como se fosse uma resistência do indivíduo perante a metrópole - uma resistência à Foote Whyte, como se sua lógica de organização social não abraçasse os personagens; ou eles não se sentissem incluídos. Simmel questiona em seu texto como que a personalidade se acomoda no ajustamento do indivíduo à metrópole e suas forças, e como a metrópole se dispõe entre seus conteúdos individual e superindividual. Simmel escreve ainda que em adaptação à vida metropolitana e ao contraste de seus fenômenos, o indivíduo minimiza os impactos ou transtornos interiores provenientes de estímulos externos e no caso de Mariana e Martin, os classificaria num primeiro momento como mentes conservadoras que se "adaptaram" ao ambiente da metrópole - nunca foi dito se vieram de Buenos Aires ou de outro lugar - através de transtornos gerados a partir de choques: no caso de Mariana, sua fobia de elevadores (não se sabe a origem do problema), no caso de Martin, as crises de pânico que o levaram a ficar 2 anos sem sair de casa, além de não utilizar nenhum tipo de meio de transporte e nem chegar perto de aviões (sabe-se que sua situação se agravou depois que sua namorada o abandonou para retornar aos EUA - mas já era um problema presente em sua vida, mesmo que minimizado). Em alguns dos coadjuvantes da narrativa, nota-se os mesmos transtornos resultantes de choques, mas não o mesmo sucesso (no sentido de criar mecanismos de defesa opostos ao padrão) em lidar com eles. Mariana e Martin criam seu "órgão" (Simmel) que os protege do iminente "desenraizamento", como o mecanismo de fotografias urbanas de Martin, ou a natação para Mariana. É para este "lugar" que eles transferem suas reações à cidade - lugar tal pode ser entendido como sua intelectualidade. Segundo Ezra, quando Martin se isolou por 2 anos poderia comprometer sua mobilidade e sua capacidade de abstração. O mesmo acontece com Mariana, que apesar de não ter passado por algum isolamento explícito, apresenta uma inclinação a apegar-se a lugares e objetos, como o
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Edifício de Corina, o Planetário e seus manequins. Portanto, com tal mobilidade comprometida, cada personagem, em seus termos, se torna mais ou menos manipulável, de acordo com suas causas psicológicas; são mais ou menos sujeitos a uma crise. Ezra ainda contesta tal percepção, de que o homem seria "vítima" do seu meio com a afirmação que a cidade é fruto dos hábitos; Tem origem nas bases da natureza humana, sendo portanto, uma expressão do homem. No entanto, mesmo não tento nascido como vítima, o homem se tornou vítima a partir do momento que a cidade se tornou um "fato externo bruto", e atende a interesses nela incorporados. As personagens não reagem às suas relações racionalmente, não sendo compatíveis com o perfil de relacionamento da economia monetária de Simmel; não automatizam as reações aos estímulos externos, sendo sensíveis a todas - ou quase todas - as individualidades. Nota-se tal fenômeno quando, no início da longa, um cachorro se joga de uma sacada, resultando em outros dois acidentes: uma mulher desmaiada e um homem atropelado por um carro por invadir o espaço dos automóveis, todos em reação à queda do cachorro. As duas personagens reagem imediatamente em socorro das vítimas - assim como outras pessoas na cena. Os momentos seguintes ainda mostram reflexões de Mariana sobre o ocorrido - o cachorro era a companhia de uma prostituta de 40 anos que o deixava trancado na sacada por que ele atacava seus clientes; "Não me admira que tenha se jogado. Sozinho, numa sacada tão pequena". Já Martin carrega ao longo de todo a filme reflexões sobre a esquizofrenia que uma metrópole representa, mas também como a vida parece aflorar apesar dela: "Brotam no cimento. Crescem onde não deveriam crescer. Com paciência e vontade exemplares, erguem-se com dignidade. Sem estirpe, selvagens, inclassificáveis para a Botânica. Uma estranha beleza cambaleante, absurda, que enfeita os cantos mais cinzentos. Elas não têm nada, e nada as detém. Uma metáfora de vida irrefreável que, paradoxalmente, me faz ver minha fraqueza." Um fator que mostra mais uma resistência é a adequação à cidade caótica através de métodos não ortodoxos: Mariana ainda segue o "horário" útil dos dias úteis, mas Martin trabalha de casa, e na hora que bem entende. Seria isso uma oposição à afirmação de Simmel que a metrópole entraria em colapso sem a "mais estrita pontualidade nos compromissos e serviços"? Está Buenos Aires em colapso, ou toda a vida urbana de uma maneira geral? De acordo com Foote Whyte, Buenos Aires não estaria em colapso, mas esta seria uma idéia absolutamente externa de alguém que não vivencia a cidade. Logo, seguindo a lógica proposta por
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Foote Whyte, Martin e Mariana seriam externos à própria cidade. Seria isso uma iniciativa deles ou uma exclusão da própria cidade aos indivíduos que não atendem a um perfil? Seguindo a óptica de Ezra, Martin e Mariana seriam dois de uma parcela considerável de indivíduos reprimidos por um sistema que os molda de acordo com um modelo comunitário aceito. Prova disso seriam suas expressões nas artes, jogos (lazer) e esportes. Quais são os efeitos das inibições e repressões que apesar de naturais do ser humano, tomam proporções estratosféricas no ambiente urbano? De certa forma podemos dialogar tais efeitos com as condições psicossociais de Martin e Mariana, e suas “seqüelas” adquiridas no espaço urbano e retratadas no longa-metragem. As personagens não são blasé, muito pelo contrário. A simples abertura de uma janela clandestina as faz reagir de outra forma à sua rotina. Apartamentos pequenos que antes eram deprimentes, senão degradantes, passam a ser lares. As personagens não interiorizam, portanto, a economia do dinheiro e seu modo frio de nunca priorizar um objeto sobre o outro. No entanto, Marina se percebe como é blasé em um reflexo na vitrine. Gosta de pensar vitrine como um espaço perdido que não está nem dentro e nem fora; coloca ali uma esperança de que se alguém se interessar pela vitrine, se interessa de alguma forma por ela. Numa manhã, percebe o reflexo no vidro da vitrine e se dá conta que é ela: imóvel silenciosa e fria, como um manequim. Seria um acordar de uma atitude blasé? As relações das personagens com os outros habitantes da cidade seria o que Ezra descreve como "uma relação casual e fortuita", não conhecendo muito bem as pessoas com as quais cruzam: Marina através da vitrine - que acaba por se sentir um manequim - e Martin, que tira fotos e age somente como observador, que se faz e não faz presente. Os mundos deles e das outras pessoas se tocam mas não se interpenetram, por conta da distância moral estabelecida pelos processos de segregação – e que também pode ser interpretado por conexão virtual e desconexão pessoal. O único problema disso é que nem Mariana nem Martin parecem ter facilidade em viver ao mesmo tempo nestes vários mundos diferentes, transformando suas tentativas em uma quase esquizofrenia. Tais reflexões respondem de certa forma à questão "Quais os efeitos sobre os diferentes tipos (mentais) do estímulo e da repressão, do isolamento e da mobilidade?" De volta ao primeiro Quadro, o skyline de Buenos Aires. O - primeiro - narrador, que se descobre ser Martin, fala sobre a hierarquia do sistema de moradias: de como Buenos Aires cresce desordenada e imperfeita, e como os apartamentos variam entre os mais espaçosos até os "caixas-desapatos". Tais apartamentos servem mais uma vez para categorizá-los uns dos outros, entre letras e
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números, e suas promessas de luz e vista raramente são cumpridas. Tal imagem se encaixa bem na definição de Simmel sobre o dinheiro, que ele "se torna o mais assustador dos niveladores", e que reduz "todas as diferenças qualitativas em termos de 'quanto?' ". Pouco importa ao dinheiro os males que tais condições de moradia possam criar. Podemos dizer que Martin e Mariana têm uma atitude de autopreservação e reserva perante aos outros metropolitanos, que segundo Simmel, é um reflexo à uma demanda de comportamento exigido pela cidade. Ao mesmo tempo em que a pessoa se sente extremamente solitária, a metrópole carrega uma cultura que ocupa todo o território da vida pessoal. No longa, isso acontece quando o vizinho de Mariana compra um piano, e isso passa a ser parte da vida dela quando é e quando não é conveniente. A brevidade e escassez dos contatos inter-humanos podem ser identificadas na vida de Mariana quando ela se vê como um manequim, ou simplesmente recorre aos manequins que ficam em sua casa como companhia, além de suas duas outras experiências de tentativa de contato afetivo terem sido frustradas, as duas por fuga de um dos "parceiros" - uma das vezes elas mesma. Já Martin afirma que a internet o aproximou do mundo e o afastou das pessoas. Ezra também fala sobre este fenômeno, em que os meios de transporte e comunicação possibilitam aos indivíduos "distribuir a atenção e viver ao mesmo tempo em vários mundos", mas que tende a enfraquecer e destruir a intimidade da vizinhança. Indivíduos de raças e vocações diferentes também tendem a se segregar, não sendo portanto somente um fenômeno conseqüente aos serviços citados acima. Podemos concluir através do pensamento de Simmel, que os indivíduos são conduzidos a ter um tipo de comportamento ou pensamento que os leva a não precisar mais seguir sua própria linha; os que se relutam a seguir tais padrões apelam para o exagero à particularização e à exclusividade, de modo a permanecer perceptível para si.
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// BIBLIOGRAFIA // MEDIANERAS. Direção Gustavo Taretto, Produção Natacha Cervi e Hernán Musaluppi. Argentina, 2011. 95min. PARK, Robert E. 1979. “A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano”. In: O. Velho (org.), O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar. SIMMEL, Georg. 1979. ‘A Metrópole e a Vida Mental”. In O. Velho (org.), O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar, pp. 11-26. WHYTE, William Foote. 2005. Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, pp. 19-24, 283-308.
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