Ana Hatherly, experimental e política: a voz do rompimento Zero. De onde partimos e para onde vamos? Em 1977, ao propor “Alternativa Zero”, Ernesto de Sousa, ao mesmo tempo artista, crítico e curador, propõe também um marco, o marco Zero. Um Zero que parte do ideal modernista partilhado pelos de Orfeu, cuja maior necessidade era a de rutura com o passado tradicionalista. Em prospetiva, Ernesto de Sousa desejava a recuperação de uma consciência libertária, capaz de pensar a arte fora de seus paradigmas convencionais de produção, avaliação e fruição, e proporcionar aos artistas (operadores, para sermos fieis à Ernesto) um verdadeiro ambiente experimental. Em perspetiva, visava sempre as possibilidades que a arte portuguesa teria se permitissem o seu curso natural de questionar as suas próprias fronteiras. O painel “Começar” de Almada Negreiros simboliza, para Ernesto, este marco. Primeiro pelo próprio artista, representante de uma geração questionadora e revolucionária, segundo, pelo próprio viés experimental do projeto de Almada que representa de fato este “Começar” que Ernesto ansiava para a arte contemporânea nacional. Em um passado ainda muito presente figuravam os resquícios de um regime totalitário que durou mais de 40 anos em Portugal. Foram as propostas de uma “política do espírito”1 que se impuseram culturalmente, sem que houvessem oportunidades de questionamentos ou ruturas. “O Estado Novo, quer com a sua política cultural a nível institucional quer com a contestação que origina em relação a essa mesma política, acentua inexoravelmente um isolamento que impossibilita ou dificulta a continuidade das rupturas e do debate estético que a geração de “Orpheu” tinha inaugurado.”2. Neste momento de isolamento artístico nacional, foram principalmente as migrações para fora do país que possibilitaram a alguns artistas o contacto com os movimentos de vanguarda e a oportunidade de desenvolvimento de projetos de cunho experimentalista, sendo que, com o início das atividades da Fundação Calouste Gulbenkian na década de 1950 e a distribuição de bolsas de estudos fora do país, vieram a colaborar fortemente A “Política do Espírito”, fruto do intenso trabalho intelectual e político de António Ferro enquanto diretor do Secretariado de Propaganda Nacional do Estado Novo, constitui-se em uma série de ideologias e ações, cujo principal objetivo era a utilização da produção artística e cultural nacional como meio de propaganda política, bem como para a “educação” do povo português naquilo que se considerava ser essencial para o governo: manter a imagem de um país mítico, dos grandes navegadores, descobridores e intelectuais, centrado em seu nacionalismo teatral que enaltecia as “artes do povo e para o povo” e que abominava as práticas artísticas voltadas para o “materialismo”, ou seja, que centravam-se em críticas sociais ou em questões de experimentação formal nas quais se envolvia a arte moderna internacional. In: Santos, G. (2008). “Política do Espírito”: obrigatório para embelezar a realidade. Média e Jornalismo, 12, pp. 59-72. Recuperado de http://fabricadesites.fcsh.unl.pt/polocicdigital/wp-content/uploads/sites/8/2017/03/n12poltica-do-esprito-o-bom-gosto-obrigatorio-para-embeleza r -a-realidade.pdf. Acesso a 7 de janeiro de 2018. Mais sobre este assunto em Acciaiuoli, M. (2013). António Ferro a vertigem da palavra. Lisboa: Editorial Bizâncio. 2 Fernandes, J. (1997). Perspectiva: Alternativa Zero vinte anos depois. In: Perspectiva: Alternativa Zero. Fundação de Serralves, Porto, Portugal. Catálogo de Exposição, p. 16-17. 1
com a formação, projeção e promoção de artistas portugueses. Foram através de iniciativas no exterior ou de artistas que voltavam de suas estadias em Paris, Londres, Alemanha (entre outros), como o caso do grupo KWY, que possibilitaram à década de 1960 ser considerada hoje a década que retoma as ações de rutura do início do século.3 É neste momento que se fará notar o surgimento, em Portugal, de um grupo de artistas comprometidos com o experimentalismo e os ideias de rompimento, como por exemplo, Jorge Peixinho na música, Helena Almeida, Ângelo de Sousa, Ana Vieira (e muitos outros) nas artes plásticas, Melo e Castro, João Vieira, Ana Hatherly no movimento da Poesia Experimental. É neste ambiente que Ernesto propôs aos artistas portugueses da década de 70 uma alternativa (em contraponto à arte engessada que persistia como fruto de um regime totalitário não tão distante quanto se previa), a “Alternativa Zero”. A exposição que esteve patente na Galeria de Arte Moderna (situada em Belém e dirigida por João Vieira) entre os dias 28 de fevereiro e 31 de março de 1977, está em acordo com outras propostas internacionais como as exposições “When Attitudes Become Form” e “Documenta 5”, ambas comissariadas por Harald Szemann, respetivamente em Berna, 1969 e em Kassel, 1972. São dois dos principais acontecimentos que fortalecem os debates sobre a arte contemporânea na Europa, especialmente sobre questões como “a desmaterialização do objecto de arte, o fim de uma autonomia dos géneros artísticos e dos seus suportes, a crítica do conceito da originalidade, a relação arte-vida pesquisada pelo movimento Fluxus”4. Em suma, as décadas de 60 e 70 são marcadas artisticamente pela ideia de que o objeto de arte finalizado não possui uma importância tão fulcral quanto o gesto que o propiciou. A atitude do artista é parte intrínseca da sua obra, sem poder separar-se dela, o elemento de destaque das experiências estéticas que se desenvolvem fora e dentro de Portugal. Como coloca Ernesto de Sousa a propósito do que entende como vanguarda: “toda vanguarda é:… procura da obra de arte como processo… Valorização do efémero… Procura da globalização, descoberta de novas estruturas. Ideia de envolvimento e arte de sistemas… Artes da acção. Arte Colectiva… Provocação… Todos os materiais são materiais nobres… Primado da concepção, da invenção… O corpo do operador e o operador fazem parte da obra. O gesto do operador é um gesto para o mundo (como na estética barroca)”5 Ana Hatherly (Porto, 1929 – Lisboa, 2015), uma das poetas/artistas/críticas mais proeminentes desta geração, atua sobre estas questões a partir do seu trabalho com a poesia, que se transforma em trabalho visual mesmo antes de seu início na PO.EX (Movimento da POesia EXperimental). A Poesia Experimental trabalha a partir de noções estruturalistas da linguagem, da psicanálise e da antropologia, onde se questionam os modos como os indivíduos são capazes de conhecer e significar o mundo. Unidas as pesquisas de tecnologias da informação, onde 3
Ibidem, p. 17. Ibidem, p. 17. 5 Sousa, E. (1975). A ordem, o acaso e a festa. Vida Mundial, nº1582 (13/3/75). In: Fernandes, J., Op. Cit., p. 23. 4
também se equacionam as capacidades comunicacionais e os efeitos que os meios de comunicação provocam sobre os recetores (leitores/espectadores), a Poesia/Arte torna-se em um campo de experimentação formal e estrutural, transformando-se em um campo de profundas pesquisas científicas6. Neste sentido o que interessa de fato aos experimentalistas são as características formais do poema, e não o seu sentido semântico. Há uma recusa da “discursividade, um dos fundamentos da escrita literária”, como a própria Ana Hatherly entende, “as palavras eram ícones, tinham importância por si próprias, não precisavam de frases compridas e páginas inteiras… o concretismo propunha uma, duas, três palavras só, por exemplo ‘homem nasce e morre, nasce e morre, nasce e morre, nasce e morre’, é uma sumula de toda a cultura ocidental e oriental, o pensamento sobre a vida e a morte, pode-se dizer em duas palavras, não é preciso dizer mais nada”7. Como coloca Carlos Mendes de Sousa e Eunice Ribeiro em Antologia da Poesia Experimental Portuguesa: anos 60 – anos 80: “a sitemática focalização sobre as formas, sobre os materiais, explorados e manipulados enquanto possíveis suportes de novos sentidos, dá consciência da linguagem como corpo, como organismo, arrancando-a à inércia de uma existência ‘útil’ ou meramente instrumental… Adquirindo uma dimensão performativa, a escrita despe-se do mediatismo representativo, para ser fundamentalmente uma escrita que cria na exacta medida em que se faz, construindo a sua própria autoridade e fomentando essa espécie de artistless art, paradigma de muita arte moderna. Ao proporem objetos poéticos que não só descrevem ou representam como sobretudo exemplificam e se auto-apresentam”8. Enquanto movimento de vanguarda, é preciso referir que a Poesia Experimental portuguesa se desenvolvia sobre duas importantes atitudes: a primeira, profundamente experimental e, portanto, em completa abnegação de cânones e estruturas rígidas de produção poética (postura antifascista, como coloca Hatherly9); e segunda, um retorno ao passado, sobretudo à poesia barroca, na qual, segundo Hatherly, havia uma possibilidade de subversão ao sistema institucional que condenava criticamente os textos barrocos, havia o encontro com processos de criação cuja releitura poderia traduzir-se em novas formas e havia nessas obras algo que possibilitava o entendimento sobre as estruturas mentais e da sensibilidade artística contemporâneas10. Portanto, ainda que existisse um desejo pela novidade, este experimentalismo não se desenvolve por si, mas procura bases sólidas onde se ancorar, em uma profunda
Neves, M. F. (2015). Ana Hatherly ON/OFF – Três poemas experimentais: forma | corpo | desordem. Esc:ala – Revista electrónica de estudos e práticas itinerante (Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa- Faculdade de Letras UPorto). Recuperado de https://escalanarede.com/2015/10/06/ ana-hatherlyonoff-tres-poemas-experimentais-forma-corpo-desordem/. Acesso a 31 de janeiro de 2017. 7 Hatherly, A. (2003). Entrevista a Ana Hatherly. Entrevistada por Raquel Santos. RTP e Universidade Aberta, Programa Entre Nós. Recuperado de https://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/4969. Acesso a 1 de janeiro de 2018. 8 Sousa, C. M., & Ribeiro, E. (Org.). (2004). Antologia da Poesia Experimental Portuguesa. Coimbra: Angelus Novus Editora, p. 21. 9 Hatherly, A. (1995). A casa das musas. Lisboa: Editora Estampa, p. 179. 10 Ibidem, p. 9. 6
compreensão de que “não existe presente sem passado”11. Nesta postura subversiva, de revisitar o passado operando em prol de releituras que possibilitem novas criações, os experimentalistas desejavam “despertar a consciência” ao proporem o conflito velho/novo, tradição/inovação, continuação/rutura12. Ao partir do pressuposto de que a poesia, bem como a arte de uma forma geral são sistemas de comunicação, onde se evidenciam as relações entre indivíduos e a linguagem, Hatherly desenvolve um projeto de pesquisa que é ele mesmo sua obra artística. Na multifacetada utilização de suportes de comunicação, seja a escrita, o filme, o desenho ou a performance e todas as combinações que possam haver entre estes, Hatherly pesquisa, entre diversos assuntos, as características e efeitos da performance corporal que desenvolve a escrita (“a mão inteligente” que apreende uma determinada performance sobre o papel), o poeta/artista enquanto pesquisador e produtor de significados e o seu corpo enquanto objeto e meio de investigação, bem como a construção semântica dos comportamentos e discursos sociais13. Para Hatherly, se todo o processo de conhecimento do mundo e do próprio ser é desenvolvido a partir da linguagem, então deveria abordar como objeto de estudo o próprio sistema linguístico. Ora se os meus pensamentos tinham então o poder de determinar-me, de condicionar-me de uma maneira inelutável – uma vez que penso por intermédio de uma língua formada essencialmente de estruturas – era-me indispensável que, se quisesse compreender-me, conhecerme e através do meu próprio conhecimento, conhecer o mundo, deveria conhecer, antes de mais, o instrumento que me permitiria precisamente alcançar esse conhecimento.14 Dentro da vasta produção poética e visual de Ana Hatherly, selecionamos um conjunto de “obras” que colaboram com as suas pesquisas sobre a linguagem, e que possuem igualmente uma aproximação com o tema da Revolução do 25 de Abril, já que este é um marco histórico em Portugal cujo desenvolvimento ocupa um tempo e local nos quais o experimentalismo já se fazia presente. Iniciaremos por duas instalações da artista, ambas operacionadas em 1977 e conectadas pela atitude que Hatherly denomina “Destruir para construir” ou “Destruir Construindo”15. Em continuidade, abordaremos as colagens que compõem a série “As ruas de Lisboa”, para, por fim, apresentarmos o filme experimental intitulado “Revolução”. Em uma experiência a que entende por happening16, mas que envolve igualmente as estruturas de uma instalação artística, Ana Hatherly convida os espetadores a adentrarem o espaço 11
Hatherly, A. (2003). Entrevista à Ana Hatherly. Op. Cit. Hatherly, A. (1995). Op. Cit., p. 180. 13 Dias, S. G. (2017). Poesia e Corpo, em Ana Hatherly. Plural Pluriel, [S.I.], n. 16. Recuperado de http://www.pluralpluriel.org/index.php/revue/article/view/87. Acesso a 31 de dezembro de 2017. 14 Hatherly, A. (1981). Textos da Conferência-Objecto: Texto de A.H. In: Hatherly, A. & Melo e Castro, E. M. (Ed.). (1981).PO.EX: textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa. Lisboa: Moraes Editores, p. 83. In: Dias, S. G., Op. Cit. 15 Hatherly, A. (2007). Entrevista a Ana Hatherly. Entrevista e texto de Paula Brito Medori. Revista L+Arte, vol.43, nº43, p. 39. 16 Ibidem. 12
e tempo do Poema D’entro. Projetada especialmente para a mostra “Alternativa Zero”, Poema D’entro tem como tema central a ideia de que “o poema é uma situação luminosamente mutável” e é anagramático às sentenças “poema que está dentro”, “poema por dentro”, “poema em que entro”17. Em uma sala de 4x4x2 metros, iluminada por projetores cuja luz era intermitente sobre o ambiente de forma a ter-se uma semipenumbra, Hatherly fixou sobre as paredes cartazes em branco, os quais foram lacerados e parcialmente arrancados pela artista deixando pelo chão os resquícios desta ação18. As luzes, segundo a artista, projetavam sombras e relevos que agregavam “ao conjunto uma espécie de pulsação, um ritmo vibratório”19. Em uma analogia interessante, Hatherly expos o poema enquanto espaço, cujas características remetiam para dois outros lugares: as ruas da cidade de Lisboa, que viram em suas paredes o eclodir de discursos políticos e vozes de júbilo pela liberdade durante a revolução, mas que em 1977 eram apenas cartazes semidestruídos e graffitis desbotados, e o espaço “d’entro” dos cidadãos pós-revolução onde repercutia “ruptura e decadência juntamente”, como coloca Ana Hatherly. Poema D’entro, portanto, era um exímio reflexo das ruas e dos espíritos do pós 25 de Abril. Prova desta proximidade entre a arte, a poesia e a vida, foi a reação do público que visitou a exposição nos vários dias em que esta esteve patente. Ana Hatherly relembra que foi chamada por Ernesto de Sousa várias vezes para voltar à galeria e repor os cartazes em branco, visto que o público, alternando entre êxtase e fúria, continuava o processo iniciado pela artista de arrancar das paredes os cartazes. A sala escurecida, longe dos olhares punitivos, proporcionava um ambiente propício para que os espetadores, cientes de sua própria necessidade de liberdade (uma verdadeira liberdade), expressassem ali os seus sentimentos20. Essa reação colabora com o que a Poesia Experimental, bem como a arte experimental, intentava articular enquanto proposta inovadora, a saber a necessidade de entender que o público, longe de ser passivo na leitura que faz das obras de arte, possui um papel importante no processo artístico, e atua, juntamente com os outros elementos do sistema, na significação e no processo de produção das manifestações de arte. No texto em que Hatherly escreve para o catálogo da exposição, apresenta justamente as questões sobre a linguagem e a sua falha em atingir o seu propósito primordial, o de dar a conhecer o mundo que nos cerca através da significação do mesmo, já que, ao utilizar-se de conceitos, palavras inventadas, a linguagem não é capaz de penetrar e revelar o mundo físico, figurando apenas como uma capa, uma máscara de sentidos. A 17
Hatherly, A. (1992). Auto-biografia documental. In: Ana Hatherly Obra Visul (1960-1990). Lisboa: CAM – Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão. Catálogo de Exposição, p. 76. 18 É importante referir que esta não era a ideia primária para Poema D’entro. A descrição no catálogo da exposição refere que a ocupação da sala seria realizada por uma coluna de luz, que desceria do teto em direção ao chão, formando um círculo luminoso, sobre o qual se projetariam luzes coloridas intermitentes. A falta de recursos tornou-se em um impedimento para a instalação desta coluna, pelo que a artista precisou adaptar seus objetivos ao que lhe era proposto. 19 Hatherly, A. (1992). Op. Cit., p.76. 20 Ibidem, p. 77.
literatura tradicional ancorava-se sobre a ideia de que tanto escritores quanto leitores recebiam e interpretavam os códigos da linguagem da mesma forma. O estruturalismo, entretanto, colocou em causa esta questão, revelando que em termos de perceção cada individuo possui seus próprios mecanismos de interpretação e que a leitura da obra depende do contexto em que ela é recebida, o que revelava ainda mais profundamente o conflito da linguagem. É fundamentada neste ideário que Hatherly assume o poema enquanto lugar de uma tentativa de domínio da linguagem que seja capaz de expressar, por figuralidades e metáforas, o tema escolhido, de forma a fugir deste conflito, mas a poeta termina por entender que “nessa representação ficcional que é um texto”, “o conflito está mascarado, encenado” e, portanto, “’finge’ um domínio, um controle, uma conciliação (talvez impossível)”21. A situação luminosa que Hatherly propõem em Poema D’entro, liga-se justamente a este conflito interno do poema, que cintila entre um estado de equilíbrio fingido e a obscuridade real do seu sentido. Não obstante, a artista convoca o público a adentrar este espaço de figuralidade, onde seja possível compreender que existe uma luta interna entre o que realmente é e aquilo que se diz ser em cada ser humano. Uma luta que também existe socialmente, entre aquilo que o discurso político fixado pelas ruas prometia ser a revolução e o que de fato se constatou. Em um diálogo direto com Poema D’entro a artista também apresenta Rotura, outra instalação-performance, instalada na Galeria Quadrum, então dirigida por Dulce D’Agro, um mês depois de “Alternativa Zero”. Rotura consistiu em uma montagem de 13 painéis de papel cenário de 1,20 por 2,20 metros, dispostos em armações de alumínio e que formavam uma espécie de labirinto no espaço da galeria. A performance constituiu-se na ação da artista que, em cima de um escadote, dilacerava os painéis com algumas facas que trazia em um cesto, deixando novamente os resquícios desta ação pelo chão da galeria. Conta-nos a artista que o público, ao contrário do que se passou em “Alternativa Zero”, “presenciou a intervenção atentamente, mas sem reagir. Depois a exposição era visitada com certa perplexidade (segundo me informaram)”22. Em seu texto sobre a performance, Ana Hatherly revela que foi um verdadeiro ato de violência, “uma espécie de crueldade eufórica que se libertava nesse meu gesto de romper, de dilacerar, que talvez correspondesse a uma vontade coletiva de destruição purificadora”23. Assim como em Poema D’entro, explorava a reunião de vozes que se sucedeu ao 25 de Abril de 1974, nos muros da cidade, nos cartazes e panfletos que se espalhavam pelas ruas e se questionava
Hatherly, A. (1977). Poema D’entro. In: Alernativa Zero: Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea. Lisboa: Galeria Nacional de Arte Moderna. Catálogo de Exposição. 22 Hatherly, A. (1992). Op Cit., p. 77. 23 Ibidem. 21
sobre “uma ruptura que houve e a ruptura que não houve. Que talvez nem possa haver… dentro e fora da arte”24. Dentro da Arte, Raquel Henriques da Silva faz notar que os apontamentos de casos específicos de experimentalismo em Portugal pós-revolução, que decorriam desde a década de 60, não passaram exatamente disso, apontamentos, cujas tendências se intensificaram, mas sem que houvesse uma alteração significativa na história da arte portuguesa. Logo no ano de 1975, a Revolução que prometera liberdade, nada mais pretendia do que “instalar em Portugal modelos estalinistas da União Soviética”25. A falta de rutura a que Ana Hatherly se refere pode estar de acordo com esta falta de consciência revolucionária, que acabava por permitir uma certa continuidade artística sem uma reflexão verdadeiramente profunda sobre o estado da arte portuguesa e as possíveis propostas de futuro. Em entrevista a Paula Brito Medori, Hatherly refere que o século XX foi de tal maneira “explosivo” em sua experimentação artística que, chegando ao seu fim, “a arte como nós a entendíamos já não parece fazer sentido. Hoje criam-se peças enormes, a pensar nos leilões e grandes coleções… Até ao século XX penduram-se quadros nas paredes, agora investe-se em arte”26. Essa clara observação sobre as consequências da expansão do mercado de arte em Portugal, cujas origens remontam ao período marcelino do início da década de 197027 (e, ainda que após a Revolução tenha decaído devido à crise económica, mantém seus valores) serve também como panorama contextual para compreendermos o que a artista pretendia com suas performances. Segundo Hatherly “a performance é uma obra de arte efémera” e, portanto, “simboliza a destruição da arte comercial, torna impossível a compra e venda”28 . Outro importante rompimento é a “violação da sacralidade do ato criador”. Ao expor o que antes não podia ser visto pelo público, o processo de produção, a artista revela seu próprio “sacrifício”, “o seu calvário”29, o que também caracteriza esta fase da arte contemporânea que visa uma aproximação maior entre a arte, o artista e o público, bem como oferece o processo enquanto obra, em detrimento do objeto finalizado. Neste ponto podemos referir ainda outra questão que igualmente coloca em causa o tradicional modelo artístico, o fato de não conseguirmos definir exatamente o que é a obra de arte nestas propostas de Hatherly. Será o happening inicial da artista a arrancar os cartazes da parede ou sua performance de laceração dos cartazes? Será a instalação em si que permanece depois que a artista termina a sua ação? Será que a ação do público também conta enquanto ato criador? Existe neste sentido uma clara proposta de
24
Ibidem, p.78. Silva, R. H. da. (2009). Os anos 70 depois do 25 de Abril. In: Anos 70 Atravessar Fronteiras. Lisboa: CAM – Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão. Catálogo de Exposição, p. 28. 26 Hatherly, A. (2007). Op. Cit., p.40. 27 Macedo, R. (2009). 1968-74 Renovação na continuidade. In: Anos 70 Atravessar Fronteira. Lisboa: CAM – Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão. Catálogo de Exposição, p. 19-24. 28 Hatherly, A. (2007). Op. Cit., p.40. 29 Ibidem. 25
reflexão que passa por pontos já referidos acima, como a efemeridade da obra de arte, a desmaterialização do objeto e a clara rutura com o sistema que separa e ordena os diferentes tipos de arte, sobrevalorizando uns (a pintura, a escultura, o desenho) em detrimento de outros (a fotografia, o cinema, a performance). Politicamente, a performance está ligada a libertação corporal dos próprios discursos circundantes que tendem à organização e subjugação dos corpos de acordo com seus modelos comportamentais e que servem aos interesses do poder dominante. A mulher virtuosa, esposa e mãe dedicada, recatada, delicada e de bons modos unida a um homem, cavalheiro, sustentador da sua família, rígido e de pouca sensibilidade; homens e mulheres exemplares que, ao sustentarem a idealização familiar através do papel social que lhes é incutido, servem à Deus, à pátria e à família, a tríade sagrada. Na performance, como expõe René Berger, “o corpo, se não chega a se vingar, aspira ao menos escapar da sujeição do discurso”30. Jorge Glusberg entende que A performance e a body art não trabalham com o corpo e sim com o discurso do corpo. Porém, a codificação a que está submetido este discurso é oposta as convenções tradicionais; embora parta das linguagens tradicionais ela acaba por entrar em conflito com elas.31 Ana Hatherly, uma mulher na década de 1970, ciente dos discursos políticos que, independente de serem totalitários ou democráticos, mostram-se sempre imbuídos de um sentimento de egoísmo partidário que excede os interesses populares e que tendem ao domínio dos indivíduos através do domínio dos seus comportamentos; a partir do seu próprio corpo, da sua atitude, propõem-nos violência, atos de rebeldia que des-signifiquem os discursos vigentes, que arranquem das paredes os seus descontentamentos e rompam com as antigas estruturas socias, em um ato de pura libertação pessoal e social. Como nos seus trabalhos de desenho e pintura, onde a artista pretendia um esvaziar dos signos dos seus significados prévios, encarando o signo como um espaço vazio para o qual podemos oferecer os sentidos que desejarmos32, os gestos e comportamentos performáticos, são eles também um espaço vazio (os papéis em branco de Poema D’entro e Rotura também simbolizam este vazio), no qual se desconstroem os antigos significados e se propõem novas leituras. Essa era a Rotura que se esperava na pós-Revolução, a Rotura que fosse verdadeiramente revolucionária ao ponto de transformar os discursos. “As ruas de Lisboa” 33, como ficaram conhecidas uma série de nove colagens produzidas por Ana Hatherly com partes de cartazes que recolhia dos muros da cidade, também em 1977, estão igualmente em sintonia com a reflexão da artista sobre esta rutura pela qual tanto ansiava a artista. Para Hatherly este era um trabalho de “recolha histórica”34 a qual pretendia fixar de 30
René Berger como citado em Glusberg, J. (1987). A arte da performance. São Paulo: Editora Perspectiva, p.46. 31 Glusberg, J. Op. Cit., p. 56-57. 32 Hatherly, A. (2007). Op. Cit., p.40. 33 Série também intitulada pela autora de “Descolagens da Cidade” em Hatherly, A. (1992). Op. Cit., p. 78. 34 Hatherly, A. (1992). Op. Cit., p. 81.
maneira a prescrever o passado pouco distante do 25 de Abril, mas que já possuía ares de algo há muito ultrapassado. Helmutt Wohl, relembra o impacto que estas colagens tiveram sobre si: Pareceu-me na altura, e ainda hoje me parece, que esses trabalhos eram dos poucos, senão os únicos, realizados por um artista português, que abordaram o fenómeno revolucionário em termos que correspondiam ao seu impacte desestabilizador das estruturas da vida portuguesa… Nas colagens de 1977, Ana Hatherly encontrou o veículo capaz de reflectir a violência psicológica e emocional da revolução.35 Wohl levou três das colagens para a Royal Academy em Londres para as expor na mostra “Portuguese Art Since 1910”, realizada em 1978. No catálogo da exposição relembra os espetadores de como a cidade de Lisboa era imaculada antes do 25 de abril, quase como uma prova do seu silêncio subordinado, e de como a “explosão” de graffitis, cartazes e panfletos políticos simbolizavam a erupção destas vozes sedentas por expressividade. É também neste catálogo, que Wohl chama a atenção para o trabalho de Hatherly como um soar de alarmes para a sociedade portuguesa, que necessitava enfrentar a sua própria realidade e iniciar um processo de resolução de problemas políticos e socias que se acumulavam desde antes da revolução36. Estes cartazes, embora com ares de discursos enfraquecidos pela passagem do tempo, representavam o clima emocional que se viveu na Lisboa pós-Revolução. Vozes da República, das eleições, da democracia, unidas aos itinerantes espetáculos circenses, metáforas da ironia e da provocação, formam a matéria de uma “descolagem” - rutura, rasgo, desconexão e abandono daquilo que foi – e, posteriormente, de uma “recolagem” – reformulada, peças de um puzzle que se recombinam e formam outras imagens, outros sentidos, outras ideias, mais atuais e necessárias do que as anteriores – novamente, uma outra leitura possível. Como coloca João Pinharanda, “Ana Hatherly realiza uma simples e determinante ação: escolha e descontextualização, recontextualização e re-significação das imagens”37. O ato de descolar é ele próprio político, fruto desta necessidade de rotura que acompanha a artista desde as suas performances até ao filme “Revolução”. O filme, que está em diálogo com as performances e as colagens, apresenta as paredes de Lisboa, cobertas por graffitis e cartazes da Revolução de Abril, sonorizadas pelas canções e discursos que embalavam as esperanças sinceras da nação portuguesa no ano de 1974. Luis Alves de Matos nos relembra que foi justamente no ano de 1974, que Hatherly retorna de Londres, da London Film School, onde diplomou-se em estudos cinematográficos. Com mais uma ferramenta de comunicação no seu vasto campo de atuação artística, Hatherly sai às ruas de Lisboa para fazer o seu próprio documentário deste marco histórico. Diferentemente dos filmes desta época, seu Wohl, H. (1992). As “Ruas de Lisboa” de Ana Hatherly. In: Ana Hatherly Obra Visula (1960-1990). Lisboa: CAM – Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão. Catálogo de Exposição, p. 88. 36 Citação do Catálogo da Exposição “Portuguese Art Since 1910” In: Hatherly, A. (1992). Op. Cit., p. 78. 37 Pinharanda, J. L. (2003). Imagem-Acção. In: Hatherly, A. (2003). A Mão Inteligente. Lisboa: Quimera Editores, p. 13. 35
olhar não está focado em marchas militares, ou grupos de festejos, e por isso mesmo é um olhar subversivo, desviante da norma38. Hatherly concentra-se sobre as paredes e muros da cidade que faziam eclodir um sem número de manifestações visuais: eram as vozes oprimidas que naquele instante se faziam ouvir, fruto de uma recém-chegada liberdade de expressão. Estreado em 1976 na AR.CO (e, neste mesmo ano, apresentado na Bienal de Veneza39), foi filmado com uma câmara 8mm, a cores e com duração de 5 minutos. Hatherly usa uma linguagem dinâmica, cuja rapidez nem sempre permite ao espectador “decifrar” as escritas e imagens que a artista apresenta, mas que conduz a todos para o sentimento de libertação que se anunciava pelas ruas, libertação e euforia. “Revolução”, também caminha lado a lado com os estudos da artista sobre a linguagem, onde as inscrições sobre suportes públicos representavam o espaço vazio, sedento por novos discursos e onde era possível estudar os grafismos desta nova oratória, popular e liberta, mas que também vinha a se manifestar violenta. Com a mesma rapidez em que se fazem ouvir estes discursos, as esperanças de uma revolução verdadeira decaem, a final, as promessas de democracia logo se sistematizaram, em um formato de liberdade, mas em muitas atitudes de poder centralizado. São as ruturas que acontecem, e as que não acontecem de todo. Ana Hatherly, portanto, é autora desta voz de rutura. Tanto nas performances, quanto no filme e nas colagens de Hatherly, o som desta voz, por vezes encoberta, é indissociável do seu processo de trabalho. Na Quadrum, a própria artista revela ter se assustado com o romper violento do primeiro painel40, na sala da Alternativa Zero era o público quem deliciava-se com o ruído libertador dos papéis arrancados da parede41, em “Revolução” e “As Ruas de Lisboa”, o som oculto, mas presente, da descolagem. Era essa “a voz” pela qual se ansiava, a voz do verdadeiro rompimento: político, social e artístico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Acciaiuoli, M. (2013). António Ferro a vertigem da palavra. Lisboa: Editorial Bizâncio. de Matos, L. A. (2017). Vestígios do 25 de Abril nos filmes de Ana Hatherly. Plural Pluriel, [S.I.], n. 16. Recuperado de http://www.pluralpluriel.org/index.php/revue/article/view/86. Acesso a 30 de dezembro de 2017.
38
de Matos, L. A. (2017). Vestígios do 25 de Abril nos filmes de Ana Hatherly. Plural Pluriel, [S.I.], n. 16. Recuperado de http://www.pluralpluriel.org/index.php/revue/article/view/86. Acesso a 30 de dezembro de 2017. 39 Hatherly, A. (1992). Op. Cit., p. 79. 40 Hatherly, A. (2007). Op. Cit., p.40. 41 Hatherly, A. (1992). Op. Cit., p. 77.
Dias, S. G. (2017). Poesia e Corpo, em Ana Hatherly. Plural Pluriel, [S.I.], n. 16. Recuperado de http://www.pluralpluriel.org/index.php/revue/article/view/87. Acesso a 31 de dezembro de 2017. dos Santos, G. (2008). “Política do Espírito”: obrigatório para embelezar a realidade. Média e Jornalismo, 12, pp. 59-72. Recuperado de http://fabricadesites.fcsh.unl.pt/polocicdigital/wpcontent/uploads/sites/8/2017/03/n12-poltica-do-esprito-o-bom-gosto-obrigatorio-para-embeleza r -a-realidade.pdf. Acesso a 7 de janeiro de 2018. Fernandes, J. (1997). Perspectiva: Alternativa Zero vinte anos depois. In: Perspectiva: Alternativa Zero. Fundação de Serralves, Porto, Portugal. Catálogo de Exposição. Glusberg, J. (1987). A arte da performance. São Paulo: Editora Perspectiva. Hatherly, A. (1977). Poema D’entro. In: Alernativa Zero: Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea. Lisboa: Galeria Nacional de Arte Moderna. Catálogo de Exposição. Hatherly, A. (1992). Auto-biografia documental. In: Ana Hatherly Obra Visul (1960-1990). Lisboa: CAM – Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão. Catálogo de Exposição. Hatherly, A. (1995). A casa das musas. Lisboa: Editora Estampa. Hatherly, A. (2003). Entrevista a Ana Hatherly. Entrevistada por Raquel Santos. RTP e Universidade Aberta, Programa Entre Nós. Recuperado de https://repositorioaberto.uab.pt /handle/10400.2/4969. Acesso a 1 de janeiro de 2018. Hatherly, A. (2007). Entrevista a Ana Hatherly. Entrevista e texto de Paula Brito Medori. Revista L+Arte, vol.43, nº43, pp. 39-41. Macedo, R. (2009). 1968-74 Renovação na continuidade. In: Anos 70 Atravessar Fronteira. Lisboa: CAM – Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão. Catálogo de Exposição. Neves, M. F. (2015). Ana Hatherly ON/OFF – Três poemas experimentais: forma | corpo | desordem. Esc:ala – Revista electrónica de estudos e práticas itinerante (Instituto de Literatura Comparada
Margarida
Losa-
Faculdade
de
Letras
UPorto).
Recuperado
de
https://escalanarede.com/2015/10/06/ana-hatherly-onoff-tres-poemas-experimentais-formacorpo-desordem/. Acesso a 31 de janeiro de 2017. Pinharanda, J. L. (2003). Imagem-Acção. In: Hatherly, A. (2003). A Mão Inteligente. Lisboa: Quimera Editores. Silva, R. H. da. (2009). Os anos 70 depois do 25 de Abril. In: Anos 70 Atravessar Fronteiras. Lisboa: CAM – Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão. Catálogo de Exposição. Sousa, C. M., & Ribeiro, E. (Org.). (2004). Antologia da Poesia Experimental Portuguesa. Coimbra: Angelus Novus Editora.
Wohl, H. (1992). As “Ruas de Lisboa” de Ana Hatherly. In: Ana Hatherly Obra Visula (19601990). Lisboa: CAM – Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão. Catálogo de Exposição.