Joseph Kosuth: Arte como ideia Caroline Rebeca Comin Silva – 14173 Artes Plásticas e Multimédia História da Arte Contemporânea
Em 1914, quando Marcel Duchamp encontra seu primeiro ready-made, um portagarrafas, o artista coloca em questão o próprio sentido da palavra arte. Pela tradição académica, da qual Duchamp queria se ver livre, bem como muitos dos artistas da modernidade, a arte era definida e desenvolvida sobre os princípios da mimese cuja premissa era a representação da realidade visível. Duchamp, ao propor um objeto quotidiano e que, segundo ele, não apresentava qualquer valor estético, concedia aos artistas do seu tempo e do porvir uma reflexão sobre a produção artística distante do sentido estético e, portanto, decorativo da arte, bem como repudiava qualquer sentido representativo que os objetos artísticos pudessem ter. Duchamp colocou em causa dois dos principais princípios mantidos durante séculos na produção artística. Primeiro o de obra de arte era aquela produzida pelas mãos do artista. Deste modo o artista era apenas alguém que dominava uma técnica, sem necessariamente ter de pensar sobre sua própria construção artística. O artista estava escusado de ser um intelectual, desde que dominasse muito bem a prática da pintura ou escultura, e conseguisse, dentro dos cânones das belas artes, o desenvolvimento de uma “boa” arte. Este juízo de “bom” ou “mau” definia-se a partir de determinadas características estéticas, sobre as quais toda uma filosofia foi desenvolvida (de Platão, Kant, Heguel a Greenberg). O segundo ataque de Duchamp era justamente contra esta associação entre arte e estética, tão defendidas e embasadas pela filosofia. Como resposta a estes princípios, que Duchamp considerava equivocados, seus ready-made sugeriam que um objeto artístico sequer precisaria ser tocado pelo artista, necessitando apenas de ser por ele denominados como tal, e apenas isso o elevaria ao status de obra de arte. Em segundo lugar a proposta de Duchamp liberava o objeto artístico do enfadonho encargo da beleza, propondo ao mesmo uma nobreza que viria da ideia que o fez surgir no contexto artístico. Para tal era necessário que o artista somasse ao seu papel de técnico o de intelectual, e que sua criação artística não se focasse mais no objeto em si, mas sim no conceito que o originou. As ideias de Duchamp na reinterpretação do conceito de arte e do papel do artista tornaram-se em grandes influências para a construção do que viria a ser conhecido como Arte
Conceptual em finais da década de 60 início da década de 70. Joseph Kosuth é um dos principais nomes deste movimento artístico, pois seu trabalho se propõe a continuar aquilo que Duchamp havia começado à algumas décadas atrás. Segundo Kosuth: “O evento que tornou concebível a percepção de que se podia “falar outra linguagem” e ainda assim fazer sentido na arte foi o primeiro readymade nãoassistido de Duchamp. Com o readymade não-assistido, a arte mudou o seu foco da forma da linguagem para o que estava sendo dito.”1 Semelhante a Duchamp, Kosuth era adepto da antiarte, pois não acreditava em uma produção artística baseada no ideal formal difundido em sua época principalmente pelos escritos de Clement Greenberg2, cujo objetivo era defender uma arte autónoma, que existe em e para si mesma, mas cuja avaliação dependeria de aspetos formais de construção da imagem. Greenberg, desta forma, libertava a produção artística dos temas, mas aprisionava-a aos requisitos estéticos e à avaliações de críticos alheios ao processo do trabalho artístico. Toda a ideia de Greenberg era, para Kosuth estranha e sem fundamento, já que acreditava em uma arte que não se findava no objeto artístico em si e, portanto, não estava aliada às questões estéticas.3 Seus trabalhos a partir da década de 60 refletem uma proximidade com a linguagem escrita, que para o artista funcionava como um material de trabalho pictórico. Neste aspeto existe uma proximidade com o grupo Art&Language, que apresentou primeiramente o texto escrito como arte, e ainda mais incisivamente acreditava que o trabalho teórico era tão artístico quanto o objeto dele decorrente. Kosuth, que partilhava desta ideia trabalhou tanto na apresentação de obras de arte quanto na produção teórica que defendia sua maneira de entender a própria arte e a sua produção. Em 1969 Kosuth apresenta sua tese Art after Philosophy onde se propõe a redefinir o lugar da arte como criadora de sentido, pois acredita que a “vida” da arte se mantém viva no momento em que alguém decide reformulá-la, buscando em artistas do passado o que pode ser “utilizado” hoje, criando uma nova significação para o exercer artístico. 4 Neste texto, para além de expressar seu descontentamento com a arte formalista e seu crítico mais próximo 1 KOSUTH, J. (1969). A arte depois da filosofia. In: FERREIRA, G., COTRIM, C. (org.). (2006). Escritos de Artistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 217. Disponível em: https://monoskop.org/images/2/2a/Kosuth_Joseph_1969_2006_A_arte_depois_da_filosofia.pdf. Consultado em 18 de novembro de 2016. 2 Critíco de arte norte americano ligado a produção artística modernista. Nascido em 7 de maio de 1994. 3 KOSUTH, J. (1969). A arte depois da filosofia. In: FERREIRA, G., COTRIM, C. (org.). (2006). Escritos de Artistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 215 - 216. Disponível em: https://monoskop.org/images/2/2a/Kosuth_Joseph_1969_2006_A_arte_depois_da_filosofia.pdf. Consultado em 18 de novembro de 2016. 4 Idem, p. 219.
Clement Greenberg, Kosuth aproxima a arte da linguagem, e assume o conceito de tautologia como primordial no processo de redefinição do papel da arte. Tautologia é, na linguagem, a repetição de uma mesma proposição, o que por si só constitui uma atitude considerada inútil. 5 Na arte, entretanto, esta repetição reforçava o fato de que a arte existia enquanto ideia, e sua representação (já uma repetição), reforçava a ideia da arte como ideia. “Um trabalho de arte é uma tautologia, na medida em que é uma apresentação da intenção do artista, ou seja, ele está dizendo que um trabalho de arte em particular é arte, o que significa: é uma definição de arte.” 6 Em 1965, uma série de obras de Kosuth reforçam a tautologia em arte: One and three chairs, One and five clocks, One and three plants, são alguns dos exemplos onde o artista posiciona uma fotografia do objeto, o objeto real, e a descrição do mesmo pelo dicionário. Em One and five clocks, a mudança ocorre quando Kosuth apresenta o significado das palavras tempo, maquinação e objeto. A repetição da proposição ocorre quando o artista apresenta um signo, seu referente e seu significado, refletindo sua intenção em aproximar a arte da linguagem. Isso era importante para Kosuth, porque a imagem não era um sistema autónomo de significação, ao contrário da linguagem, que lidava diretamente com o conceito. O texto escrito possui uma clareza que a imagem não possui. “Qualquer sistema semiológico, por mais que constitua um sistema de significação, repassa-se, necessariamente, de linguagem. Mesmo os objetos só alcançam um estatuto de sistema quando passam pela mediação da língua, que lhes dá o nome (significante) e função (significado). Sentido só existe onde há nomeação e o mundo dos significados é o mundo da linguagem.” 7 Mais tarde, em seu trabalho, Kosuth abandona o uso da fotografia e apresenta apenas textos, como é o caso de Titled (Art as Idea as Idea)` [Meaning], 1967, Titled (Art as Idea as Idea)` [water], 1966, Titled (Art as Idea as Idea)The word definition, 1966. A linguagem ganha o centro da produção artística de Kosuth para reforçar sua reflexão de que a arte existe enquanto ideia. O meio pelo qual ela se apresenta não importa, desde que cumpra com seu objetivo de pensar e ressignificar a arte. “Não há nada de errado em se usar objetos na arte – se eles, como ferramentas, podem arcar com o contínuo crescimento da complexidade dos debates em arte. E 5 “Tautologia” in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2016. Disponível em: https://www.priberam.pt/dlpo/tautologia. Consultado em 21 de novembro de 2016. 6 KOSUTH, J., Op. Cit., p. 220. 7 MEDINA, F. (2007). Joseph Kosuth: análise de uma teoria para a arte. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, p. 52. Disponível em http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/JSSS7U5NH9/disserta__o_completa.pdf?sequence=1. Consultado em 18 de novembro de 2016.
por essa razão, nesse momento, textos são o resultado necessário das atividades da Arte Conceitual. Quando objetos são usados – por mim ou por Bambridge ou Hurrel, por exemplo – eles são normalmente usados como um tipo de linguagem “formal”, necessária para um claro entendimento dos termos envolvidos.” 8 A arte como ideia, além de proporcionar um novo lugar para a própria arte, também reposicionava o artista dentro de sua produção, pois agregava ao seu papel a função do crítico de arte, que deveria analisar, pensar e conceitualizar seu próprio trabalho. O que está em jogo agora, não é a habilidade técnica do artista, mas sua capacidade de pensar seu próprio trabalho. Kosuth, como Duchamp, elevou o artista à intelectual e proporcionou-lhe uma libertação da crítica e do mercado de arte, ainda que utopicamente. A Arte Conceitual se desenvolvia neste ambiente de profunda rejeição às instituições artísticas e a sua forma de ver a obra como um objeto passível de receber avaliações comerciais. Precisamos lembrar que a época em que se desenvolvem estas novas ideias sobre arte e o artista estava repleta de indignação. Nos Estados Unidos haviam grandes protestos contra as medidas militares do governo no Vietname e o ideal hippie, reclamava para cada ser a autonomia de definir quem era, como e onde vivia, com quem se relacionava e como se desenvolvia estas relações. Nem o Estado, nem a Igreja, ou outra instituição qualquer deveria se envolver nas decisões pessoais de cada cidadão. Imersos nesta sociedade em transformação e completamente empoderada pelos conhecimentos sobre seus direitos, os artistas da Arte Conceitual, levaram seus protestos para a esfera da Arte e atacaram com veemência suas instituições de poder que teimavam em manter a arte em um lugar qualquer do passado. Em 1970 Kosuth, profundamente convicto da necessidade de uma criação artística mais próxima de sua cultura e tempo, ingressa no curso de antropologia na Graduate Faculty of The New School of Social Research. A partir deste momento, além de aproximar o artista da tarefa de analista, vai também propor uma aproximação deste com o campo das ciências sociais. Neste sentido, o artista deve dialogar com a própria cultura, sem neutralidade, mas completamente envolvido com ela. Em 1975 Kosuth apresenta outro texto intitulado The Artist as Anthropologist onde defende que o trabalho artístico era uma produção de sentido feita por homens e para homens que pertencem a uma determinada cultura. Retirar este sentido da arte era deixá-la em um completo vazio existencial, o que a tornaria completamente desnecessária. Sendo assim, a autonomia da arte só era verdadeira na medida que podia falar dela mesma, mas não era autónoma de seu tempo, nem do artista, nem do espectador. 8 KOSUTH, J. (1993). Art after Philosophy and after: collected Writings, 1996 – 1990. Cambridge: M.I.T. Press. In: MEDINA, F. (2007). Joseph Kosuth: análise de uma teoria para a arte. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, p. 52. Disponível em http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/JSSS7U5NH9/disserta__o_completa.pdf?sequence=1. Consultado em 18 de novembro de 2016.
“Quando Kosuth faz uma analogia entre o artista e o antropólogo ele, na verdade, propõe uma atividade artística envolvida com a realidade social. (…) Kosuth via a grande dificuldade que a sociedade do século XX tinha em fazer distinção de sentido, fora das relações de poder econômico. Ele chamava isso de crise de sentido (meaning crisis). Via a concepção científica da vida como uma das responsáveis por isso. A arte teria, segundo ele, essa missão de suprir uma sociedade carente de sentido.”9 O trabalho de Kosuth, pode-se dizer, é teórico mais do que prático, no sentido de que ele acreditava em uma arte intelectual onde o objeto em si não tem importância ou mesmo valor monetário. A reflexão por trás do objeto é que possui verdadeiro valor, mas esta não é passível de venda. A Arte Conceptual introduz este sentido de uma arte como ideia, onde o artista, mais do que uma pessoa cuja técnica é bem desenvolvida, torna-se em um analista e crítico de seu próprio fazer artístico, que por sua vez não existe com sentido estético, mas como produtor de sentido para a arte e a sociedade.
BIBLIOGRAFIA: FERREIRA, G., COTRIM, C. (org.). (2006). Escritos de Artistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 217. Disponível em: https://monoskop.org/images/2/2a/Kosuth_Joseph_1969_2006_A_arte_depois_da_filosofia.pdf. Consultado em 18 de novembro de 2016. MEDINA, F. (2007). Joseph Kosuth: análise de uma teoria para a arte. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, p. 52. Disponível em http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/JSSS7U5NH9/disserta__o_completa.pdf?sequence=1. Consultado em 18 de novembro de 2016. SPECTOR, N. Joseph Kosuth ‘Titled (Art as Idea as Idea)’ [Water]. Solomon R. Guggenheim Museum. Disponível em https://www.guggenheim.org/artwork/2362. Consultado em 22 de novembro de 2016. “Tautologia” in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa 2008-2016. Disponível em: https://www.priberam.pt/dlpo/tautologia. Consultado em 21 de novembro de 2016.
9 MEDINA, F. (2007). Joseph Kosuth: análise de uma teoria para a arte. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, p. 45. Disponível em http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/JSSS7U5NH9/disserta__o_completa.pdf?sequence=1. Consultado em 18 de novembro de 2016.