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Folha de rosto falsa TITULO SOZINHO
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Folha de rosto Titulo autores editore, no caso curso e disciplina
Autoras: Lizânia Castro, Júlia Carvalho, Lanne Hadassa e Carla Lorena Edição de texto: As autoras Diagramação: Júlia Carvalho Edição final: Júlia Carvalho Orientador: Prof. Dr. Fábio D’Abadia de Sousa Trabalho de avaliação final para disciplina de Narrativas Jornalísticas 2021/1 4
O amor pelo seu crespo É coroa pra reinar Imponente a aparência Negritude a ensinar A beleza escurecida De orgulho fortalecida Feita para acalentar. Quem tem crespo é rainha - Jarid Arraes
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Sumário Palavras que dão rosto ................................................................................................................................... 10 ‘’Sim, meu cabelo é minha coroa... resistência é a palavra que mais define.’’............................................. 11 “Me sinto livre para ser quem sou!” ............................................................................................................. 13 ‘’Odiava meu cabelo antes, agora eu o amo’’ ............................................................................................... 14 ‘’Eu não entendia como meu cabelo funcionava, então alisei’’ .................................................................... 16 Dos fios ás histórias de luta ............................................................................................................................. 17 O lado de fora da caixinha ............................................................................................................................. 18 Lutando por si e por aqueles que ama .......................................................................................................... 20 O sonho de L .................................................................................................................................................. 21 ARMY e o rolê aleatório de uma peruca ....................................................................................................... 22 Realidades intersecciondas ............................................................................................................................ 24 Os caminhos que não foram contados .......................................................................................................... 25 Sobre escolher a própria identidade ............................................................................................................. 27 Importância da junção entre representatividade e cabelo ................................................................................ 30 O livro ‘’Americanah’’ .................................................................................................................................... 31 Representação ............................................................................................................................................... 32 A reprodução de falsos estereótipos na música ‘Nega do Cabelo Duro’ ...................................................... 33 O filme ‘’Felicidade por um fio’’ .................................................................................................................... 35 Todas as vozes e ouvidos como aliados ........................................................................................................... 37 Soberania Capilar........................................................................................................................................... 38 Diversidade no Brasil ..................................................................................................................................... 40 Cabelos cacheados e crespos: mais do que estética, autoconhecimento .................................................... 42 A guerra continuará viva e atuante ............................................................................................................... 45 Referências ................................................................................................................................................... 47
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Prefácio Caro leitor(a), este livro é a soma de visões, vivências, observações, lutas pessoais, inspirações e, acima de tudo, esperanças de viver em um mundo no qual os fios crespos e cacheados estejam 100% nos holofotes, sejam estrelas e a personificação do que é belo. Afinal de contas, esse é o verdadeiro pódio que merecem. É claro que todos os gêneros enfrentam os preconceitos da ditadura capilar, mas aqui a ênfase vai para as mulheres, que carregam esse fardo multiplicado por dois. Embora a narrativa que cerca esses cabelos seja, majoritariamente, de opressão e racismo, nossa intenção é mostrar que eles não podem simplesmente serem reduzidos à piedade. Eles são identidade, beleza, resistência, coroa e sim, fazem parte de uma luta que jamais deve ser ignorada.
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Muito além de um estigma As discussões sobre o racismo que envolvem os cabelos crespos e cacheados felizmente têm ganhado palco. No entanto, pouco se fala na história, nos cuidados e nos significados que os rodeiam, e é preciso ter em mente que eles não podem ser reduzidos a meras narrativas de opressão. Para Pierre Jean-Louis por exemplo, são arte pura, ele recria retratos de mulheres negras transformando seus cachos em obras-primas. É exatamente essa a essência que deve ser difundida. Em primeiro lugar, é válido compreender que os fios são compostos por diferentes tipos de curvaturas, que vão do número 1 ao 4, e cada uma delas ainda possui três categorias. As de número 1 e 2 são representadas pelos cabelos lisos e ondulados; aqui a prioridade vai ser a de número 3, que tem o formato em ‘’S’’ definido, e a 4 com a forma espiralada mais próxima de ‘’Z’’, sem muita definição, caracterizando os cacheados e crespos, respectivamente. Embora haja esse arranjo, é necessário desmistificar a ideia de que os mesmos devem ser alinhados e homogêneos, na realidade eles podem ter mais de uma curvatura ao mesmo tempo. Essa ideia criou a tentativa errônea de encaixar todos os tipos de cabelos no molde do liso, ignorando as particularidades de cada mecha. Assim, a beleza que existe no crespo e nos cachos foi e ainda é negligenciada, e em contrapartida, nas comunidades da África Ocidental esse padrão estético demonstrava força, status, abundância, uma simbologia com conotação positiva e poderosa. Convém questionar se o que estaria por trás da Foto: Gabi Carneiro
diferença entre essas realidades seria nada
menos do que racismo e preconceito estruturais. A ancestralidade e a versatilidade também acompanham essa imponência. Na escravidão, havia as tranças nagôs — tranças enraizadas que fazem desenhos no couro cabeludo —, elas mostravam mapas com rotas de fugas para os quilombos, e apesar de muitos relatos, essa situação só tem registros 8
concretos na Colômbia. Ainda assim, fica claro que os cabelos crespos e cacheados guardam dos seus ancestrais resistência e liberdade. Além disso, a aderência desse tipo de fio permite a possibilidade de fazer penteados que vão desde às tranças, dreadlocks, box braids, rastafari e black power, até o uso de turbantes e lenços. Dessa forma, tirar os fios crespos e cacheados da posição de inferiores e entender a diversidade, empoderamento e formosura que os contemplam, é essencial para a ressignificação de sua trajetória. Em um mundo com alicerces racistas, reafirmar essa conjuntura é fundamental para transformar a identidade dos pretos, que é vista sempre como subalterna, e continuar indo rumo ao afrofuturismo.
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Palavras que dão rosto
Descrição de trajetórias femininas na ditadura do cabelo liso 10
Por Júlia Carvalho
‘’Sim, meu cabelo é minha coroa... resistência é a palavra que mais define.’’ Érika Navas completará 19 anos em menos de um mês, reside em São Raimundo das Mangabeiras – MA, mas é naturalmente paulista, de São José do Rio Preto. Embora entre o que a descreva poderíamos citar a graduação ainda em andamento em Zootecnia no Instituto Federal do Maranhão, e o trabalho da empresa de sua família, segundo ela, é impossível não mencionar seu cabelo cacheado, ‘’é uma marca minha.’’. É inegável a existência do estigma e racismo em volta dos cabelos crespos e cacheados, mas em meio a essa onda de preconceitos, Érika jamais fez alguma mudança nas suas madeixas, ''Acho o cabelo liso lindo, mas sabe aquela história do Sansão? De que se ele cortar o cabelo perde sua força? Pois bem, a relação com meu cabelo é assim, se eu acabar com meus cachos eu perco esse meu poder, meu impacto.’’. Ela conta que deve esse pensamento principalmente à sua criação, desde menina a mãe não permitia qualquer tipo de química ou alisamentos, na infância sempre teve um cuidado maternal nesse sentido, hidratações e penteados. Érika enfatiza o papel de seus pais, que sempre estimularam o uso do seu cabelo natural. Mas, infelizmente, tudo está longe de ser só flores ‘’A minha mãe é negra e o meu pai é branco, então eu tenho alguns traços, o meu nariz é fininho, meu rosto também é afinado e eu escuto comentários, 'seu rosto e nariz são tão finos, se alisasse o cabelo iria ficar mais bonita!'.’’. No entanto, para Érika, a sua beleza não se restringe somente ao seu tipo de cabelo, as pessoas chegaram até a falar do tamanho dos seus cachos, sempre questionando-a o motivo de tanto volume. ‘’Porque eu quero, porque eu gosto e me sinto bonita assim, a sociedade coloca uma pressão e reforça estereótipos de que o volume chama muita atenção e o ideal é ser discreto com pouco volume, mas eu trabalho muito isso em mim pra não me deixar abater’’. Apesar de sempre ter encontrado apoio com seus pais, ela diz que há sim as falas inconvenientes e racistas, as piadinhas e olhares, e leva em conta o quanto isso é doloroso, especialmente para aqueles que não contam nem com a família. Hoje, essa questão capilar está cada vez mais evidente e ela concorda, mas deixa claro a ressalva de que assumir o cabelo crespo e os cachos virou de certa forma ‘’moda’’, e encara isso positivamente, porém, para ela a moda é oscilante, vem e vai, por essa razão defende que isso permaneça, que não acabe e que mais pessoas continuem assumindo o seu cabelo natural sem se deixarem levar para o padrão eurocentrista de que o liso é o mais bonito.
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A jovem também afirmou que nas cidades maiores e grandes centros urbanos já existem salões de beleza voltados para mechas afro, contudo, não é essa a realidade em sua cidade no interior do sul do Maranhão. ‘’Moro em cidade pequena, aqui não tem salão de beleza pra mim, cuido do meu cabelo sozinha, não há tratamentos para cabelos cacheados, o corte é diferente, produtos...’’. Dentro desse assunto, representatividade é algo muito importante para ela ‘’... a gente não nasce odiando uma coisa, a sociedade constrói esse ódio dentro da gente, em comentários de coleguinhas na escola, comentários que adultos fazem, é não se ver ao redor, não achar representação na boneca que você brinca…depois que cresce, a transição capilar fica mais difícil, talvez se fôssemos ensinadas a nos amar desde pequenas e se aceitar, não teríamos tantas mulheres hoje passando por transição.’’. Érika é, acima de tudo, uma mulher forte, negra e feminista, e que tem uma causa, uma luta para honrar seus ancestrais e para garantir o seu espaço e o espaço dos seus. Faz parte do Núcleo de estudos e pesquisas afro-brasileiras do IFMA e já escreveu artigos com temáticas relacionadas ao feminismo negro, se inspirando em mulheres como Djamila Ribeiro e Vilma Piedade. Talvez uma boa palavra para definir essa jovem de apenas 18 anos seja exemplo, para o presente e sobretudo para o futuro. ‘’...já passei por muita coisa e tenho apenas 18 anos, mas graças ao meu caminho consegui ser forte, toda criança deveria ter isso.’’. E boa parte dessa força, empoderamento e identidade, Érika encontrou no seu cabelo, esteja ele em cachos, tranças, turbantes ou até colorido. Suas madeixas são muito mais que mera estética, é onde ela enxerga a representação de si mesma e de dores singulares às mulheres negras. ‘’Sim, meu cabelo é minha coroa… resistência é a palavra que mais define. Você ter voz à frente de uma sociedade tão racista, se amar é resistência.’’.
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Por Carla Lorena
“Me sinto livre para ser quem sou!” Iolanda Gloria Cortes, de 24 anos, moradora de Palmas - TO, uma jovem muito confiante de si mesma, mas que durante sua pré-adolescência passou a sofrer com toda uma pressão estética, começando o processo de alisamento já muito nova, com apenas 14 anos de idade. Realizava primeiro somente com chapinha ou secador, provocando o alisamento térmico, porém com 16 anos iniciou o alisamento químico, sendo esse bem mais agressivo e constante. “O porquê de ter passado esses nove anos me submetendo a isso, simplesmente foi por acreditar que o liso era mais bonito, mais bem visto, melhor aceito, tanto que elogiavam meu cabelo enquanto liso, alguns chegavam a achar que aquele liso era natural, e eu queria ser aceita, estar no famoso padrão de beleza!”. Com a falta de representatividade na época, a pressão estética era muito forte em sua vida, no seu meio familiar também, devido a ausência de apoio, pois afirma ela que “o preconceito em relação ao cabelo crespo e cacheado já estava enraizado na minha família, sempre foi uma geração de mulheres que nunca aceitaram suas origens e seus cabelos”. Em 2020, com o começo da disseminação do Covid-19 e as quarentenas pela qual ela teve que passar, Iolanda decidiu tomar a iniciativa, junto com sua irmã e algumas colegas, de começar o processo de transição capilar. “Tentei me autoconhecer na pandemia e através desse 'conhecer' comecei me aceitando tanto espiritualmente quanto fisicamente”. Como mulher negra, essa transição capilar significa para Iolanda a liberdade, liberdade para se expressar, para ser quem é de verdade, “Me sinto livre pra me expressar com meu cabelo, livre até mesmo financeiramente devido a não gastar mais dinheiro com alisamentos caros que só alimentam a indústria que nos ensinava odiar nossos verdadeiros traços. Em geral, me sinto livre pra ser quem sou!”. Com todo esse processo de aceitação e liberdade, veio também as dificuldades que o englobam, e para chegar a uma sensatez, ela passou por inseguranças, medos e frustrações. “O primeiro olhar no espelho foi estranho, me achei feia, parecia que o meu próprio cabelo não combinava comigo, não fazia parte de mim... Ainda tinha os comentários que diziam que me preferiam lisa, comentários desagradáveis de pessoas próximas”. Após essa caminhada de conhecimento próprio e descoberta, Iolanda passou a se sentir segura, e feliz consigo mesma, segundo ela, “Tenho mais tempo para outras coisas já que não preciso mais ficar horas de frente ao espelho ou em salões alisando o cabelo. Sou livre!".
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Por Lanne Hadassa
‘’Odiava meu cabelo antes, agora eu o amo’’ Foto: Emanuela Rocha
Emanuela Rocha sempre teve o hábito de prender os cabelos crespos, envergonhada daqueles
dos
fios
considerados
diferentes bonitos
e
perfeitos para a sociedade. Com 18 anos e
o
ensino
médio
completado
recentemente, ela conta que ver mais mulheres
mostrando
seus
cabelos
crespos e volumosos na televisão e nas redes sociais, a fez querer isso também, adorar seus cabelos de forma natural e sem vergonha alguma. Os alisamentos que fazia antes, não fez mais, e tomou posse dos belos volumes crespos que se tornam cada dia mais bonitos. "Odiava meu cabelo antes, agora eu o amo", conta bastante empolgada. "Eu fazia alisamento sim, mas depois de um tempo fui deixando natural. Também sempre usei ele preso, era realmente raro eu usar ele solto, mas hoje fico com ele solto sem medo algum.". É excitante presenciar a forma que Manu — como prefere ser chamada — fala sobre seus fios, feliz e animada, abraçando suas raízes de uma maneira tão linda que é satisfatório de olhar. A menina alta e dona de uma pele escura tão uniforme e formosa, abre um sorriso encantador ao poder expressar-se a 14
respeito de cacheadas e crespas. "Acho que o cacheado tem a raiz do cabelo um pouco lisa e tem cachos ao longo do fio e o crespo não", fala sua opinião sobre a diferença entre os dois. Pesquisar sobre cuidados com esse tipo de cabelo é algo muito comum entre meninas e mulheres, e o amplo leque de zelos apenas se estende e alcança mais pessoas, com mais exposição de celebridades pretas e empoderadas. O que mais uma vez prova que a mídia detém um poder avassalador sobre a sociedade, quem tem exposição pode se tornar padrão ou simplesmente abrir novas formas de ver o que é bonito, ou de finalmente levar em conta que a beleza é relativa, mas nunca feia. "Fui vendo mulheres com o cabelo parecido com o meu e eu queria o meu daquele jeito também", Manu desabafa como se estivesse neste momento relembrando do seu momento decisivo. Quanto mais cacheadas e crespas exibindo sua naturalidade, mais e mais meninas como Manu sentem-se livres para sair da prisão de alisamentos químicos e viver a sua própria transição capilar. Embora possa ser um caminho complexo, no final vale muito a pena, e apesar da pandemia do Covid19 ser um momento difícil ao qual infelizmente estamos fadados a viver, muitas dessas garotas receberam coragem para dar início à transição nesse período de isolamento social. Emanuela encontrou nos cabelos crespos uma estrada para a autoestima, onde antes não havia foto sua nos perfis de redes sociais, hoje lá se pode encontrar uma bela fotografia de uma moça sorridente, de olhos pequenos e brilhantes, orgulhosos, mostrando os fios graciosos e cheios de encanto. "É como a liberdade! É muito bom ter representatividade, vejo mulheres com o cabelo bem volumoso e acho tão lindo! Isso que forma nossa opinião, sabe? Nós crescemos acostumados a ver só cabelo liso, gente branca e aquilo vira padrão de beleza, e nós, pretas e com o cabelo crespo ou cacheado, seguimos sendo colocadas de escanteio. Mas quanto mais se mostra, mais nós ficamos livres para sermos como somos.".
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Por Lizânia Castro
‘’Eu não entendia como meu cabelo funcionava, então alisei’’ Isadora de Faria Cavalcante é uma estudante de 20 anos da cidade de São Raimundo das Mangabeiras, no interior do sul do Maranhão. Ela afirma que já alisou o cabelo, e, o motivo que a levou a tomar essa decisão foi o fato de ela não saber como cuidar dele e para se sentir “melhor”. Ela permaneceu com ele alisado por cerca de seis anos. A estudante diz ainda que nunca sofreu com crise de identidade ou pressão da sociedade antes de alisá-lo, devido ao fato dela ter nascido com o cabelo já liso, e permaneceu liso até sua puberdade. E, depois disso, conta que ele começou a mudar. Como ela não entendia o que estava acontecendo decidiu alisá-lo. Contou que ele começou a mudar. Não conhecer suas próprias madeixas também influenciou nesse processo. “Eu não entendia como o meu cabelo funcionava, então alisei”, afirma ela. As coisas começaram a mudar quando, em 2019, a jovem decidiu dar uma chance ao seu cabelo natural, com a ajuda e o incentivo de amigos. Isadora concorda que o cenário pandêmico atual que o Brasil está passando contribui mais para que as pessoas aceitem o desafio de passar pelo processo de transição capilar, porque, como elas estão há mais tempo dentro de casa e, consequentemente, não estão convivendo com pessoas diferentes, elas se sentem mais à vontade para passarem por esse sistema. Além disso, Isadora ainda fala que os maiores problemas relacionados à tomada dessa decisão, de transição capilar, são as críticas do tipo: “você fica mais bonita de cabelo liso” ou “de cabelo liso você já acorda pronta”, que faz com que as pessoas, muitas vezes, não se sintam confortáveis o suficiente para assumirem seus cabelos. Para reverter esse cenário, ela sugere que é necessário ter mais representatividades negras na mídia e em livros didáticos. Admite que, a parte mais difícil desse regime, foi cortar e aprender a cuidar do próprio cabelo desde o começo. Mas, apesar de todos os empecilhos enfrentados no caminho, valeu muito a pena e alega que não se arrepende de nada, pois gosta bastante dele do jeito que está: natural. O apoio que sua mãe, amigos e professores deram para ela foi de extrema importância para que assumisse sua verdadeira identidade.
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Dos fios ás histórias de luta
A transformação de vivências e inspirações em crônicas
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Por Júlia Carvalho
O lado de fora da caixinha Foto: Gabi Carneiro
Suzana estava parada em frente ao espelho de seu quarto, que por tanto tempo refletiu uma pessoa que já não estava mais ali.
Quinze
minutos
se
passaram, ela pensava se tinha feito a escolha certa. Havia muitas dúvidas pairando em seus
pensamentos,
estava
diferente do que era acostumada a ver desde menina. Demorou bastante colocasse
para
que
naquele
ela
se
lugar,
lembrou de tudo que passou até aquele exato momento. O processo foi árduo, ela admite, ouviu comentários racistas e inconvenientes e esteve em situações que a encorajaram. Finalmente conseguiu coragem para mudar o cabelo de vez e estava na frente de uma imagem que definitivamente não era familiar. Era um misto de sentimentos, Suzana não soube distinguir logo de cara, jamais achou que chegaria a esse ponto. Mais alguns minutos, ela jogava as mechas de um lado, depois para o outro, sentia a textura dos fios. Uau, como estava diferente. Pensou nos penteados que poderia fazer agora, nas possibilidades que a aguardavam... "Será que fiz mesmo a coisa certa?" ecoava em sua cabeça. Até que ela pegou seu celular e entrou na galeria de fotos, se deparou com uma fotografia um tanto antiga, era ela. Na formatura do colégio. O foco do seu olhar voltou-se para seu cabelo e instantaneamente lembrou de como estava se sentindo na hora do retrato. Foi então que percebeu, o reflexo que ela encarava continuava diferente, mas agora ela sabia que era um diferente bonito, o lugar que ela se colocou foi em um pedestal, pois nunca se achara tão linda. O ponto que ela chegou, foi o de plena liberdade e aceitação de si mesma, como nasceu, e com os atributos que herdou de seus ancestrais.
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A sua imagem agora parecia mais familiar do que nunca, ela estava se reconhecendo verdadeiramente, a mistura de emoções continha, de fato, alegria e orgulho. A foto que ela tinha acabado de olhar a fez recordar da caixinha que o alisamento a colocou. Abriu a câmera, tirou outra foto, quando olhasse, se lembraria de como havia se sentido após tomar sua melhor decisão, a de terminar a transição capilar.
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Por Carla Lorena
Lutando por si e por aqueles que ama Após ver no noticiário que uma jovem foi ridicularizada pelo seu penteado black power em uma universidade, Beatriz se sentiu bastante incrédula que em pleno século XXI, pessoas negras continuam sendo alvo de piadas, mas pela sua própria vivência, em que já passou por momentos parecidos na infância e adolescência, constatou que nada havia realmente melhorado desde sua época. E vivendo em um país tão lindo, mas extremamente preconceituoso, ela não teve outra escolha, teve que lutar por si mesma, pelas pessoas que ama e tudo pelo que acredita. A sua cor e seus cachos, sendo eles em tranças ou black power, são lindos e símbolos de uma luta muito importante. Com a motivação certa e seu pente garfo afiado, decidiu enfrentar todos que não acreditavam em seu potencial e banalizaram sua existência. Como mulher preta, forte e determinada, Beatriz começou a lutar com unhas e dentes para mostrar para seus irmãos e irmãs que sim, eles podem brilhar, são fortes e que merecem um lugar no mundo, com respeito. Porém, em uma sociedade racista que os fere, ridiculariza e mata, essa tarefa acaba se tornando deveras complicada, mas basta. “Eles têm que nos aceitar, de uma forma ou de outra nós vamos perseverar.”. E com esse tanto de motivação e sangue nos olhos, Beatriz se juntou a outros da mesma causa, participando assim de protestos e marchas ativistas que exigem o respeito que está sendo tomado deles, o direito de viver e existir, e que juntos são mais fortes e com perseverança e bastante irmandade, irão conseguir, para que essa batalha contra o preconceito e intolerância seja vencida.
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Por Lizânia Castro
O sonho de L Acho que eram duas, não… três, não... acho que eram cinco da manhã. Isso, cinco da manhã! Estava inquieta e não conseguia dormir de forma alguma. Aquele pensamento ecoava na minha cabeça o tempo inteiro, ora vinha, ora retornava, mas estava sempre ali. Aliso ou deixo cacheado? Nunca fui corajosa o suficiente para mexer no meu cabelo. Mudar algo que essencialmente está atrelado a mim, desde os meus primeiros segundos de vida, era realmente uma questão que demandava bastante reflexão. Pelo menos era o que eu pensava na época. Fiquei com isso na mente por bastante tempo, não só naquela noite. Acredito que pensava nisso todos os dias, de forma inconsciente, pela baixa autoestima que em mim habitava. Mesmo os elogios, eu sentia, bem no fundo, mas não tão fundo assim, que aquilo não era verdade. Que faziam comentários para me agradar, para que não fossem taxados de preconceituosos ou mesmo racistas. Acho que de tanto isso acontecer, passei a ter essa concepção. Cresci vendo as pessoas ao meu redor alisarem seus cabelos porque a sociedade não permitia que elas fossem elas próprias. Como competir contra isso? Como competir contra todo um sistema? Foi aí que percebi que eu era muito corajosa por nunca ter mexido no meu cabelo. Corrigindo… ainda sou muito corajosa por nunca ter me deixado vencer pela maioria e não ter abaixado a cabeça diante disso. Sofri muito? Claro que sofri, me arrisco a dizer que grandes escolhas demandam grandes sacrifícios, mas não me deixei abater. Claro que houve noites, e também dias, que aquilo me deixava para baixo, embora sempre com um sorriso no rosto e uma ideologia em mente, havia momentos em que isso não era o suficiente. No entanto, cá estou eu ainda com cachos e de forma alguma infeliz. Não condeno quem quer ter cabelo liso, e muito menos condeno quem não acha cachos lindos, só penso que as pessoas deveriam ter muito mais conhecimento sobre a história de seu povo e que entendessem que cabelo não deveria ser fator de segregação ou qualquer outro aspecto de caráter estético. Sonho em um dia poder me sentir livre de verdade, como nunca antes, a ponto de ir a qualquer lugar e nunca ter que me sentir desconfortável. Sonho ou ilusão? Claro que a opinião não é singular e que onde quer que eu vá haverá pessoas que não gostarão de mim simplesmente por esse fator, ou pela cor da minha pele, pelo meu sotaque ou meu jeito de ser, afinal de contas, não podemos agradar a todos. No entanto, almejo fielmente que o mundo mude e possa se tornar um lugar mais acolhedor. Espero não estar sonhando demais.
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Por Lanne Hadassa
ARMY e o rolê aleatório de uma peruca A manhã estava quente como qualquer outra das várias manhãs infernais em Palmas, capital do Tocantins. Mas o calor do resto do dia não poderia representar a todos que participaram de um rolê tão aleatório quanto necessário, desde que ele foi on-line, especificamente, no Twitter. Então, enquanto eu acordava com um tempo quente e céu aberto, as pessoas logo abaixo de mim no mapa levantavam com um frio esplendoroso em pleno inverno brasileiro. E naquele momento a temperatura foi o de menos para os membros do maior fandom da atualidade, o ARMY. O ARMY é mundial, enorme e super ativo, reconhecido como o mais engajado nas redes sociais, capaz de bater recordes impressionantes apenas para deixar seus ídolos felizes. E quem são os ídolos do ARMY? O BTS, um grupo de sucesso global, com sete membros super talentosos e gentis. E eu sou parte do ARMY, uma grande, e talvez um pouco obcecada, fã do Bangtan Sonyeondan — nome pelo qual o BTS é chamado em seu país de origem, a Coreia do Sul. Mas apesar do fandom de classe mundial, quero falar sobre o lado brasileiro. Na manhã do dia 21 de junho, o BTS liberou em seu canal do YouTube um vídeo engraçado do grupo curtindo sua música mais recente numa espécie de karaokê. É comum que em karaokês tenham brinquedos e fantasias, para as pessoas se divertirem enquanto cantam. Não foi diferente com o Bangtan, eles tinham disponíveis perucas, bichinhos de pelúcia, chapéus de personagens de desenho animado e óculos cômicos. Mas o alvoroço que ocorreu nos fãs do Brasil se deu por causa de uma peruca de palhaço que aparentemente lembra um black power. A maioria de nós assistiu o vídeo normalmente, se divertindo junto com os garotos, rindo do quão engraçados eles conseguem ser. Porém alguns notaram um detalhe a mais nas cenas. A peruca e seu possível significado. A parte brasileira do fandom se tornou um campo de guerra, pois muitos afirmavam ser algo errado e queriam falar com a agência do BTS, para alertar que aquilo era racismo. Outros não viam nada de mais, era apenas uma peruca, também existem perucas cômicas de cabelo liso, não existem? Então, enquanto um lado acreditava fielmente que deveria ser sensato e educar seus ídolos para não errar mais, o outro lado não conseguia enxergar como aquilo poderia ser um erro. Era apenas os meninos se divertindo ao som de Butter — pesquise Butter no YouTube, é um hit de verão muito bom! Ao longo do dia, vários tweets emblemáticos, cheios de opinião e enraivecidos, tomaram posse da timeline do ARMY do Brasil. Mesmo que você quisesse muito, não conseguiria fugir do assunto. As falas de defesa gritavam "É apenas uma peruca de palhaço!", e os atacantes argumentavam com "E de onde você acha que veio a figura de um palhaço? Observe as características dos pretos neles, os cabelos crespos, os lábios grandes!".
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E, realmente, começou de modo aleatório e depois se tornou um debate necessário. Afinal, a peruca de palhaço colorida é ou não um ato de racismo? A resposta nunca chegou, pois ambos os lados apresentavam argumentos bastante concretos. A diferença é que quem iniciou o problema foram, aparentemente, pessoas brancas, o que deixou os ARMYs pretos cheios de raiva por terem brancos querendo falar por eles, com discursos de anti-racistas, mas sendo racistas. O preto dizia "não me senti ofendido!". E o branco falava "cale a boca, eu te defendo!" O ARMY preto, emputecido, iniciou uma trend mais tarde, postando fotos de si próprios mostrando seus fios volumosos e crespos com a legenda "Isso parece uma peruca feia e sem textura pra você?". Por fim, o lado de defesa explicou que há diferença entre o palhaço cômico e o palhaço blackface. Nas palavras do usuário @Golden_sunnys, uma preta, as perucas coloridas são remetidas ao descaso com a aparência e ao desastre, a pessoas que não se cuidam, essa é a graça da fantasia, por isso ele é um palhaço que faz bobagens; já o palhaço black-face é remetido ao teor cômico de se assemelhar a uma pessoa negra, zombando de suas características. Segundo essa explicação, a peruca colorida é de um palhaço cômico, apenas, o que defende os meninos do BTS de terem sido racistas. E os ARMYs pretos que postaram as fotos estavam de fato mais incomodados pelas pessoas brancas comparando seus cabelos crespos com a peruca feia e sem textura, do que com ela ser ou não uma representação preconceituosa. Eu, no meu canto assistindo a todo esse rolê, fiquei calada, mesmo sendo preta eu não sabia o que dizer ou o que fazer, então permaneci lendo todos os tweets. Quando assisti ao vídeo pela manhã, não vi nada de ruim, é verdade, porém depois enfiei-me em tantos pensamentos e reflexões. E até agora não tenho uma resposta em definitivo, precisamos algum dia debater este assunto com mais respeito e menos xingamentos. De toda forma, o ARMY continua sendo o maior fandom da atualidade, engajados não só na web, como em causas sociais, tendo ajudado e apoiado dezenas de projetos lindos, inclusive levantando mais de 1 milhão de dólares para a campanha Vidas Negras Importam em apenas 24 horas. Por ser extenso, estamos cheios de pessoas diferentes não só em etnia, como em idade e gênero. E assim conseguimos aprender a aceitar as diferenças, mesmo que com um pouco de raiva às vezes, afinal toda família briga, certo?
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R
Entrevistas que mostram a união de dois lados de uma moeda pelos mesmos princípios
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Os caminhos que não foram contados Alexandra dos Santos Barbosa já trabalhou como babá, doméstica e manicure. Hoje, tem 36 anos e é dona de casa em sua cidade natal, Estreito do Maranhão. E como a maioria das mulheres, Alexandra também sofreu com os opressivos padrões de beleza femininos e a ditadura do cabelo liso. Ela é um dos exemplos que mostram que nunca é tarde para encontrar sua identidade nos fios naturais.
Em uma conversa, nos contou um pouco sobre o processo:
Você já alisou o cabelo, certo? Por que fez isso? Sim, por questão de autoestima.
Quanto tempo permaneceu com ele alisado? Foram 8 anos.
A questão da "autoestima", pressão externa ou crise de identidade, foram fatores que influenciaram na sua decisão de alisar? Sim, principalmente em relação à autoestima.
Na época em que alisou o cabelo, o tempo era diferente do que vivemos hoje? Quer dizer, era muito mais difícil ter cabelo cacheado antigamente? Sim, o tempo era diferente. Sobre ter cabelo cacheado naquela época, se tornava mais difícil por conta de apelidos como "cabelo de bucha de bombril", "cabelo duro", e hoje em dia não se ouve mais isso, agora é ao contrário, "em terra chapinha, quem tem cachos é rainha!"
Quando você decidiu que seria a hora de dar uma chance ao seu cabelo natural? Quando ele começou a ficar destruído, um dos exemplos é que ele caia bastante, quebrava com facilidade, estava muito frágil.
Sobre o cenário pandêmico atual em que vivemos, na sua opinião, ele contribuiu para que mais pessoas passassem pela transição capilar, por quê? Sim, porque muitos queriam um visual novo, outros por falta de dinheiro... dentre vários motivos.
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Com base na sua experiência, quais os maiores problemas relacionados à transição capilar, que faz as pessoas, muitas vezes, não se sentirem confortáveis a assumir seus cabelos? Como poderíamos mudar isso? Seria o momento da transição em que o cabelo fica metade liso e a outra metade cacheado, isso deixa a pessoa sem autoestima. Uma das formas de passar por isso é tendo foco, firmeza e força.
Qual foi a etapa mais difícil para você? Diria que valeu a pena? Ter que cortar o cabelo praticamente todo. E sim, valeu a pena.
Alguém te motivou a tomar essa decisão, te apoiaram, criticaram...? Não, o incentivo partiu de mim. Eu mesma me dei apoio e persisti focada no meu objetivo.
Na sua opinião, por que é tão difícil assumir o crespo e o cacheado no Brasil? Na minha opinião, porque os valores dos produtos para cabelos cacheados são abusivos, e a hidratação em salão também é muito cara.
Qual conselho você daria para as suas filhas, que também têm cabelo cacheado, sobre o alisamento? Jamais alisar os cabelos, pois os cachos funcionam como uma identidade própria.
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Sobre escolher a própria identidade Kauanny Gondim tem apenas 20 anos, mas já é formada em Genótipos e Pigmentocracia, Etnias e África Cultural, Egito Antigo Cultural e Propriedades Culturais e Apropriação Cultural, todos na Escola Cultural Africana, no interior de São Paulo. Nova, mas cheia de palavras e formas de entender a comunidade preta, sua ancestralidade e discussões. Com os cabelos volumosos e bonitos, os olhos afiados e um sorriso aconchegante, Kauanny é atenciosa e muito carinhosa ao responder nossas perguntas, explicando de maneira muito simples e didática tudo o que é questionado. Ela foi uma das centenas de garotas que passou pela transição, teve um caminho difícil, mas finalmente pode se assumir, revelando seus cachos e crespos — sim, seu cabelo possui as duas formas, é lindo e ao olhar através de uma foto, parece uma obra de arte.
Mesmo em uma conversa privada pelo Twitter, podemos nos sentir confortáveis enquanto conversamos e compartilhamos histórias pessoais, sentimentos que temos e são compreendidos uma pela outra. Kauanny fala sobre o Colorismo, o termo light skin, sobre a transição, sobre sofrer racismo pelos seus traços negros e também a respeito de marcas baratas de produtos de cabelo. Foto: Kauanny Gondim
A seguir, confira na íntegra nossa conversa:
Como você define o cabelo crespo e o cabelo cacheado, e o que pensa sobre ele? O cabelo crespo e o cabelo cacheado é algo cultural e de extrema importância na comunidade preta, desde muitos anos é a identidade e a luta de muitos pretos na sociedade racista em que vivemos.
Você já passou pela transição capilar? 27
Sim, demorei dois anos completos para ter meu cabelo natural, sem química alguma.
Teve algum apoio ou influência para ter passado por esse período, e quais foram? Sim o apoio que eu tive foi da minha mãe, uma mulher preta, e além do apoio e da influência dela pra assumir meu cabelo natural, me inspirei muito na Viola Davis.
No contexto da pandemia, e em como muitas mulheres se sentiram mais confortáveis em passar pela transição nesse período de isolamento, qual a sua opinião a respeito? A pandemia, apesar de ser ruim, com o isolamento abriu muitas portas para as pessoas que socialmente não se sentiam confortáveis em fazer certas coisas, uma delas é apreciar seu cabelo natural, e é incrível como as pessoas estão se sentindo bem em se apreciar independentemente da opinião alheia.
Como você vê esse constante crescimento das mulheres pretas, assumindo seus crespos ou cacheados, você se sente bem ao ouvirem chamar de "moda"? Eu amo ver as mulheres pretas se sentindo confortáveis, amando a si mesmas e finalmente assumindo seus afros e cachos. Mas realmente não gosto de ouvir que a aceitação do cabelo afro/cacheado seja definida como moda, já que essa aceitação é algo bem mais cultural e engloba toda uma luta social contra o preconceito e o racismo.
Quando você ver mais personalidades pretas na mídia atualmente, você se sente representada? Sim, me sinto representada, apesar de ainda ter um longo caminho pela frente, é bom ver que a sociedade está caminhando para fazer com que as pessoas pretas se sintam representadas nos filmes, programas de TV, esportes, e etc.!
Agora partindo para um outro ponto além dos cabelos, nas suas palavras, o que é Colorismo? O Colorismo pode ter duas formas diferentes, que é o preconceito com pessoas retintas e o desrespeito pelo fato dos mesmos serem mais escuros, e o apagamento da parte mais clara da comunidade preta, os light skin. E há muitas coisas que englobam o Colorismo, como o colorismo social no Brasil e o termo "pardo", que só existe aqui e tem toda uma história onde pardo é uma palavra usada para tentar diminuir a quantidade de pessoa pretas no Brasil, o apagamento da raça e das variações de cor das peles pretas. A maioria das pessoas pardas são de fato pretas e esse termo é mais usado dentro da comunidade, por exemplo, para pessoas que não são pretas e sim têm descendência indígena ou asiática marrom. Na comunidade você é preto retinto — pele escura —, ou light skin — preto de pele 28
clara. A cada pouco a comunidade está mudando o termo para que assim possam acabar com o racismo estrutural que vivemos e o povo preto comece a ter voz sem o preconceito colorístico, e é claro que ainda há um grande caminho pela frente, já que o racismo estrutural está tão normalizado que até mesmo pessoas pretas o reproduzem, por isso é uma luta constante que não vai ser fácil.
Ainda sobre o conceito de Colorismo, qual sua opinião sobre os pretos não retintos, como eles se veem na sociedade? Tem muitas pessoas que nem sequer conhecem seu tom de pele, e nem mesmo sabem que são pretos light skin. E é exatamente por todo o racismo estrutural e o apagamento da cor na sociedade que é muito enraizado. Acho que há muitas pessoas não retintas que se sentem desligadas e deslocadas por não saberem exatamente quem são, e novamente falo que finalmente isso é algo que está mudando na comunidade e finalmente as pessoas pretas de pele clara estão se encontrando e tendo seu lugar na cultura que lhe pertence por direito.
Você participa de um movimento, pode falar um pouco a respeito e como ele mudou a sua percepção? Eu participo do movimento da libertação dos cachos, e desde então mudou completamente a minha visão de como as mulheres e homens continuam tendo receio de se assumir por conta do preconceito, e me deu uma grande percepção de como o racismo está muito enraizado na nossa sociedade.
A indústria dos cosméticos tem atendido as demandas para os cabelos crespos e cacheados? Há qualidade e preço acessível? Antes era muito difícil ver produtos para cabelos cacheados, mas hoje em dia já se nota a diferença e como a indústria do cosmético capilar está incluindo os cabelos afros e cacheados e com um preço acessível.
Você pode nos deixar uma frase motivacional para mulheres pretas que estão neste momento passando ou pensando em passar pela transição capilar? O nosso cabelo é a nossa identidade, é a nossa luta e força. Assumi-los é a melhor coisa que você pode fazer por você mesmo.
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Importância da junção entre representatividade e cabelo
Reflexões sobre produtos culturais e midiáticos 30
Por Júlia Carvalho
O livro ‘’Americanah’’ O livro Americanah, da autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, publicado em 2013, conta essencialmente a história da jovem Ifemelu, em tom quase bibliográfico, e sua trajetória tanto na Nigéria quanto nos Estados Unidos. A narrativa envolve uma série de assuntos importantes, dentre eles está a transição capilar. A protagonista sempre teve os cabelos naturais, crespos, mas quando se mudou para estudar nos EUA, viu-se pela primeira vez como uma pessoa negra, tendo que redescobrir sua identidade, e é claro que nesse contexto, os fios são fundamentais. Em uma das partes do romance, Ifemelu decide alisar os cabelos depois que Curtis, seu namorado, consegue uma entrevista de emprego para ela. Foi um processo doloroso, e com o alisamento, Ifemelu não se reconhecia mais. A química dos produtos devastou seu cabelo, ele logo começou a cair, sem contar com as queimaduras da chapinha que deixaram seu couro cabelo em carne viva. Após essa etapa angustiante, Ifemelu decide recuperar o crespo, mas passa pelas fases difíceis da transição, como o corte das mechas alisadas. Outros momentos do livro também mostram as dificuldades e preconceitos que os cabelos crespos e cacheados sofrem. A tia Uju, por exemplo, precisou tirar suas tranças para trabalhar em um hospital, caso contrário, não teria pacientes. Os salões voltados para as madeixas afro ficavam muito longe dos centros urbanos, às margens das cidades. E, no blog de Ifemelu, ela questiona se o expresidente Barack Obama teria de fato sido eleito se sua esposa, Michelle, usasse os fios naturais em coletivas de imprensa, discursos e eventos. Americanah mostra as etapas que vão desde a coerção social e racista até o alisamento, e a caminhada árdua da transição capilar até a aceitação. Mostra a perspectiva de Ifemelu, uma mulher, negra, africana e de cabelo crespo. Sem sombra de dúvidas, trata-se de uma narrativa cativante e necessária. A obra ainda fala sobre imigração e relações inter-raciais, é um antro de representatividade negra
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Por Carla Lorena
Representação O curta-metragem Hair Love, ganhador do Oscar na categoria “melhor curta animado”, é inspirado em um livro do escritor Matthew Cherry, e mostra um pai, Stephen, tendo que aprender a arrumar o cabelo da filha pequena, Zuri, pela primeira vez, devido à ausência de sua mulher, Angela. Começando o curta, pode-se notar que os protagonistas são uma menina e seu pai, que são negros, e entram em uma batalha para arrumar os cabelos da pequena Zuri. No filme, é mostrada com toda uma delicadeza, a importância de uma representatividade forte para as crianças, tanto as meninas quanto os meninos, que não estão acostumados a ver nas telas sobre cabelos crespos e o quão bonitos eles são. Ao começo da produção, a menina Zuri acorda e vai se arrumar diante do espelho. Quando solta o cabelo, a tela se enche com seus fios afros, então ela passa a buscar pelo YouTube formas de arrumar o cabelo, tendo uma certa dificuldade no processo, um retrato de uma atividade passada por milhares de pessoas que possuem o cabelo crespo ou cacheado, e em como isso impacta em suas vidas, desde pequenos, não tendo tantas referências. Um filme muito emocionante, onde pessoas que passam pelo mesmo se sentem entendidas e abraçadas por conseguirem se ver nos personagens, e se relacionarem com todo o processo que a pequena Zuri e seu pai passam ao decorrer do curta. A sociedade em que vivemos coloca essa pressão nas mulheres negras, uma pressão estética, em que agride suas raízes, onde elas são pressionadas a alisar os cabelos, à aplicação de produtos químicos, para tentarem se encaixar nessa sociedade eurocêntrica. Mas com a vinda de gerações mais jovens, que estão conseguindo quebrar preconceitos e estereótipos racistas ligados à aparência e ao comportamento, assim como a personagem Zuri e sua família, vem crescendo cada vez mais a produção de filmes e séries com persongens negros e fortes que servem de apoio e uma imagem representacional de importância para milhares de pessoas. Em conclusão, notamos que essa produção Hair Love não fala de cabelo somente, mas de aceitação, e em como é importante uma representação desde a infância para as crianças que possuem os cabelos crespos se amarem e entenderem que são belas e que não há nada de errado ou com seus cabelos ou com sua cor, como a sociedade quer impor.
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Por Lizânia Castro
A reprodução de falsos estereótipos na música ‘Nega do Cabelo Duro’ Desde os tempos mais remotos, a música se mostra como uma forte ferramenta que permite a liberdade para expressar-se. Dessa forma, a arte de se expressar através dela é muito apreciada pelas mais variadas parcelas da sociedade. Ainda, permite que o autor tenha maior facilidade em atingir demasiadamente um grande público. Assim, a partir desse fenômeno, esse objeto de expressão tornase também um objeto de representação artística. No entanto, ao utilizar esse meio para ditar e propagar falsos estereótipos acaba condenando e ridicularizando as vítimas dessa ação no contexto social. Nos anos 1980, um novo hit estava na “boca do povão”. A música Nega do Cabelo Duro, do baiano Luiz Caldas, marcou uma geração e ainda hoje é lembrada por aqueles que viveram, e até mesmo os que não, como recordação de um tempo que não volta mais. No entanto, ela é predominantemente racista e ridiculariza o cabelo afro-brasileiro. Por possuir um ritmo contagiante, escondia a explicitude da fala preconceituosa e, por esse fator, parte da comunidade negra deixou passar batido esse evento. Com um Brasil, que usa da estética eurocêntrica para medir seus padrões de beleza, a permanência de obras como essa só menospreza ainda mais aqueles que nasceram com uma beleza totalmente oposta, que nada puderam fazer a não ser submeterem-se a vigência de caráter branco. Ao usar essa ferramenta de expressão para falar sobre as madeixas da comunidade negra, é possível perceber que até mesmo músicas, de pessoas que também são negras, contribuem para a perpetuação de uma visão banalizada a respeito de si próprios. Isso, por si só, é uma chave de engajamento que fomenta a vontade de passar por procedimentos capilares, a fim de não mais sofrer com ideias equivocadas e enviesadas, como as apresentadas na canção. Logo, o país vem, desde muito tempo, tentando usar desses procedimentos com o objetivo de “domesticar” os padrões de beleza de uma parcela da sociedade ao adotar como sendo “duro” o cabelo crespo. Canções desse tipo, só reforçam uma ideia antiquada, torta e sem nexo, que a comunidade branca do país tem sobre a negra. E, torna ainda mais forte o sentimento de distanciamento entre o negro de cabelo liso e o negro de cabelo crespo e/ou cacheado, sendo o primeiro isento de receber a denominação a respeito de seu cabelo em relação ao segundo. Já existe muita segregação entre pessoas de diferentes cores, e essa música só fortalece a segregação dentro de um mesmo grupo: o negro. Se o mundo para eles já é tão complicado, seria ainda pior se houvesse tamanho distanciamento entre membros do mesmo time. Por isso, manifestações como essas devem ser refutadas e questionadas para 33
que não mais haja apartação e sim união, sentimento de pertencimento e de identificação. Ao utilizar esse meio tão importante de expressão, que seja para esse fim e não o adverso.
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Por Lanne Hadassa
O filme ‘’Felicidade por um fio’’ O filme Felicidade Por Um Fio (2018), é uma comédia dramática romântica, embora o romance esteja em segundo plano no roteiro. O mais importante é a aceitação da protagonista consigo mesma e seus cabelos.Violet Jones (Sanaa Lathan) é uma publicitária bem sucedida, é metódica e planeja detalhadamente tudo o que faz para que seja sempre a mulher perfeita. Quando adentramos mais no filme, entendemos de onde vem essa característica, da mãe de Violet. E se algo pode significar ainda mais a luta pela perfeição da protagonista, nós podemos dizer que o cabelo dela representa tudo isso. É o trauma de Violet, o seu cabelo crespo e diferente, que na infância lhe causou problemas de confiança. Sua mãe sempre o alisava, mas a água era uma inimiga. Todos os dias Violet se submetia ao pente quente, ao relaxamento, e quando adulta, à chapinha, às químicas. O filme retrata tudo isso de maneira implícita, o que deixa o espectador com aquele sentimento de busca, de tentar entender o personagem sem que as palavras saiam dele. Depois de uma desilusão amorosa, a perfeita Violet se vê completamente bêbada em frente ao espelho, os cabelos estão crespos devido a uma chuva que danificou a chapinha. Penso que naquele momento a máquina de cortar foi um grito de liberdade. O cabelo dela era uma espécie de prisão, todos os dias cuidava, alisava, entrava num padrão estético que não era dela. Então, enquanto a máquina raspava os fios, a bêbada Violet sorria. O espectador nessa parte já consegue sentir automaticamente, sem precisar pensar muito, que aquilo representava um novo começo para a nossa protagonista. Ao acordar, sóbria, ela tem um susto. Não acreditava que tinha feito aquilo, estava careca! E quando a mãe chega em sua casa para uma visita, ao invés de se tornar um porto seguro para a filha, é ela quem desmaia, completamente chocada porque Violet não é mais aquela bonequinha de cabelo liso e perfeito que ela criou. Isso já é um ponto importantíssimo. O filme retrata, de maneira bem sistemática, todas as fases de transição capilar que Violet teve, inclusive aparece na tela qual parte estamos assistindo. É uma forma interessante de contar uma história assim. Enquanto vamos passando por alisada, peruca, careca, crescimento e crespo, nós vamos não só vendo a evolução dos fios de Violet, mas também dela com outras questões, como o machismo. Um ponto negativo do filme é que um de seus gêneros é romance, mas não se vê muito disso na trama, fica bem em segundo plano, não é trabalhado de forma completa. O foco é muito mais o amor próprio cultivado por Violet Jones, abandonando seus traumas de criança, adotando seu eu
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verdadeiro, se tornando não mais uma mulher perfeita, mas sim uma mulher empoderada e dona de suas raízes. Ela cresce para si, para se amar, para ser a crespa reprimida por tantos anos, mas que agora quer viver, e a forma como ela é livre fica totalmente explícita no rosto muito mais feliz e honesto que Violet assume. Com um toque de comédia bem leve, Felicidade Por Um Fio é uma tentativa bem sucedida de contar uma história que representa a de várias mulheres crespas e cacheadas que tentam a todo o custo se adaptar aos padrões eurocêntricos que não as acolhem de maneira alguma. E assim como Violet Jones, acredito que o filme tem um poder inspirador para trazer as verdadeiras raízes de outras meninas e mulheres que foram espectadoras da obra. Em suma, Felicidade Por Um Fio é sinceramente positivo.
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Todas as vozes e ouvidos como aliados
Por um mundo livre para cabelos cacheados e crespos 37
Por Júlia Carvalho
Soberania Capilar Darcy Ribeiro afirma em sua obra O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil, que o racismo construiu seus alicerces no país no momento em que a colonização europeia impôs seus os hábitos culturais, religiosos, sociais, políticos, entre outros. Essa dinâmica também opera no que diz respeito aos padrões de beleza, embora já sejam invasivos e opressores o suficiente, são alicerçados em concepções exclusivamente eurocêntricas. Esse padrão, é claro, privilegia a aparência caucasiana, marginalizando qualquer outro que não se encaixe. É daí que surgem as associações negativas aos cabelos crespos e cacheados, são comumente chamados de “cabelo duro”, “cabelo ruim”, “cabelo de fuá”, “cabelo de bicho”. Esses termos depreciativos acompanharam a infância de muitas crianças que não reconheciam a si próprias, novamente consequência da nossa estrutura social que cresceu em um solo preconceituoso e que contribuiu para que as mães, por exemplo, alisassem as madeixas das filhas e sempre raspasse a cabeça dos filhos, a fim de evitar futuros sofrimentos. Longe de culpabilizar as mães, também vítimas, é preciso voltar o olhar para a representatividade que nos rodeia. E o fato é que a representatividade dos cabelos crespos e cacheados é nula, parcialmente nula, se levarmos em conta as proporções que essas questões já tomaram nos dias atuais, mas aqui não convém ‘’amenizar’’ o racismo, que dita o que é belo ou não. O mais indignante talvez seja provar isso de forma simples, basta pesquisar no Google uma das linhas mais famosas e excludentes de bonecas e bonecos, a Barbie. Instantaneamente, a pesquisa nas imagens nos mostra magreza, branquitude, olhos claros e cabelos lisos. Então, como explicar para um garotinho negro que sua textura capilar não é errada, muito menos feia? Segundo o Relatório de Igualdade Capilar de 2019 — enfatizo aqui a atualidade do estudo — realizado pela organização World Afro Day, 41% das crianças com mechas afros já quiseram alisá-las e o principal motivo era não sentir pertencimento no ambiente escolar. Se sentir representado, sem dúvidas, é fundamental. Sem contar que, a discussão fica ainda mais complexa tratando-se das mulheres negras. Além de lidarem com as imposições do machismo e sexismo, se submetem aos métodos cosméticos, como o alisamento químico, com o objetivo de se aproximar da estética branca, o que por si só já escancara grande parte do que há de errado na sociedade. Se essa concepção não fosse internalizada desde meninas, não teríamos hoje tantas mulheres passando pela transição capilar. No entanto, essa realidade traz esperança para a exaltação do que por tanto tempo foi reduzido ao subalterno. O questionamento acerca da própria imagem é o primeiro passo para ir contra uma imposição hegemônica, quando negros se apoderam do seu cabelo e o assumem natural, essa ação
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felizmente torna-se um ato político e de resistência. Mais do que isso, aceitar o cabelo faz parte de aceitar e ter orgulho da sua identidade. Dessa forma, Nilma Gomes esclarece bem na obra Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural?, dizendo ‘’No Brasil, esse padrão ideal é branco, mas o real é negro e mestiço... A consciência ou o encobrimento desse conflito, vivido na estética do corpo negro, marca a vida e a trajetória dos sujeitos. Por isso, para o negro, a intervenção no cabelo e no corpo é mais do que uma questão de vaidade ou de tratamento estético. É identitária.”.
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Por Carla Lorena
Diversidade no Brasil O Brasil é o país com a maior diversidade de pessoas do mundo, e essas variações acontecem, também, a partir dos vários tipos de cabelos existentes. Dentre eles os cacheados e crespos, que como publicado em uma pesquisa produzida pela Kantar WorldPanel, representam 51,4% da população total e, em outra pesquisa realizada pelo Instituto Beleza Natural em parceria com a Universidade de Brasília (UnB), mais recente, este índice alcançou 70%. Esses dados deixam bastante evidente que são muitas pessoas que possuem este tipo de cabelo, mas que por conta dos estigmas de uma sociedade racista, promovem alterações para se encaixarem dentro dos padrões. As questões inclinadas à existência do corpo negro no Brasil baseiam-se em uma série de fenômenos sociais, que historicamente se modificam em passos lentos. Sabe-se que após o fim da escravidão, opressões aos corpos de mulheres e homens pretos continuam e as anulações hoje em dia acontecem de formas diferentes, entretanto, muito evidentes, pois se trata de uma situação estrutural, que está enraizada na cultura brasileira. Partindo deste princípio, percebemos em um determinado momento, pessoas negras usando o cabelo para a construção da identidade do seu corpo, e quando elas começam a protagonizar espaços em que sua identidade é reconhecida a partir da sua verdadeira imagem, este ato se transforma em empoderamento e posicionamento político. No que diz respeito à imagem da mulher, essa ressignificação de suas identidades como mulheres negras, se inicia muitas vezes com um processo chamado de transição capilar, que se baseia em parar de usar química nos fios para que estes fiquem alisados e aceitar seus cabelos naturais. Sobretudo, reconhecer em seus volumes crespos toda a história que carrega sua ancestralidade preta, o que acaba por se tornar um processo de libertação dessas articulações dos padrões europeus de beleza que priorizam mulheres com cabelos lisos. Sendo assim, podemos analisar o cabelo como parte de um corpo social, ou seja, este pode ser utilizado para melhor compreensão das relações entre o corpo negro e a sociedade, como exemplo, a representação simbólica e importante dos fios crespos e cacheados, teve uma função marcante em diversos momentos históricos, sendo um dos maiores e principais deles tendo ocorrido na década de 60. Como forma de resistência, foi o movimento Black Power, que em linhas de seu discurso levantou questionamentos relativos à imposição da alteração na estrutura do cabelo de pessoas negras, para adequação em padrões euro centralizados. E podemos perceber claramente que essas tentativas de adequar-se a uma sociedade, que na verdade deveria adequar-se ela própria à existência do povo preto, é ainda muito forte nos dias de hoje.
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Portanto, estes fatos só ressaltam o que Fanon (2008, p. 186) outrora definia em seus estudos sobre a alienação psíquica do corpo negro, onde ele enfatiza que “o negro, mesmo sendo sincero, é escravo do passado”, ou seja, após décadas do fim da escravidão, ainda percebemos muita coisa a se mudar, muitas pessoas pretas tendo que ressignificar suas identidades para que, mesmo que em meio a gritos, tenham um mínimo de visibilidade e protagonismo em espaços que lhes pertencem por direito. Mas acredito que em determinado momento esses atos políticos de luta e resistência resultarão em uma mudança radical nos padrões impostos pela postura dominante da branquitude.
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Por Lizânia Castro
Cabelos cacheados e crespos: mais do que estética, autoconhecimento Nos últimos anos, a quantidade de mulheres que decidiram assumir seus cabelos crespos e cacheados subiu consideravelmente. No entanto, a luta pela busca de uma identidade brasileira não pode parar. Em um país como o Brasil, com mais de 50% da população assumida como sendo parda ou negra, a luta para atingir o ideal eurocêntrico de beleza ainda é um empecilho enfrentado pela população. Mas que, cada vez mais, vem sendo deixada de lado pela autoaceitação étnico-racial dessa parcela na sociedade. O Brasil passou muito tempo sendo submisso a uma ilusão eurocêntrica que foi imposta sobre ele. Fadado a acreditar num ideal que não lhe pertencia, essa visão levou milhares de brasileiros a se submeterem a procedimentos e transformações não só relacionados à estética, mas também ao próprio eu. O cabelo é, de fato, uma das características mais visíveis que podem ser observadas numa pessoa. Deixar de seguir uma visão europeia, majoritariamente branca, em um país racista como Brasil, é considerado um ato não só de coragem, como também de resistência.
Assumir a negritude e negar-se à ditadura branca não é um processo simples. Ainda assim, a busca por uma sociedade mais assumida historicamente está dando cada vez mais empoderamento, coragem e determinação para as pessoas descobrirem mais cedo quem elas deveriam ser desde o princípio. Isso demonstra como o cabelo é um fator importantíssimo de (re)conhecimento do que é ser ou não uma pessoa negra no país. Um dos maiores motivos que faz as mulheres, especialmente, se sujeitarem a um ideal branco de cabelo liso, é o fato de que elas são duramente criticadas desde a infância, tanto na escola quanto no próprio corpo familiar. E esse racismo, disfarçado de crítica, levam-nas a crer que há algo errado com seus cabelos, o que acarreta a procura de procedimentos químicos para mudar a textura dos mesmos. Tomando como base o mesmo contexto, os comentários como “cabelo de miojo”, “cabelo de bombril”, ou ainda, comentários do tipo “você ficaria muito melhor de cabelo liso”, que expressam explicitamente a ideia de aversão ao cacheado ou crespo, são tão frequentes quanto perpassados. Essas pautas, por si só autoexplicativas, nos dão uma visão mais clara de como essa agressão é contínua e como ela sustenta todo um sistema de racismo, o que dá, ainda mais, condições para a perpetuidade desse fatorial. Muito mais que uma questão de estética, uma questão de autorreconhecimento.
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Segundo uma matéria do G1, publicada em abril de 2021, as mulheres se sentiram bem mais à vontade para passarem pela transição capilar durante a pandemia da Covid-19. Além disso, evidencia ainda duas das maiores engrenagens que as levou a tomarem essa decisão: a) o fechamento dos salões de beleza, e b) o próprio isolamento social. Ambos os fatores fizeram com que as mulheres tivessem mais tempo para se conhecerem melhor e encararem o procedimento. A transição capilar consiste em uma interrupção dos procedimentos químicos capilares, para dar lugar à naturalidade dos fios. Por esse motivo, a volta ao natural assusta muitas pessoas. Apesar disso, muitas figuras públicas, como a atriz Taís Araújo, a apresentadora Maísa Silva e a cantora brasileira Iza, por exemplo, estão surgindo na mídia e encorajando esse movimento. Vale ressaltar ainda, que o cabelo crespo e/ou cacheado é sim importante para a representação étnica de um grupo, mas não podemos delimitar a sua identidade a apenas isso. Essa afirmação, ou melhor, essa aceitação, é um dos passos que devem ser tomados para a desconstrução da beleza europeia e a formação de uma beleza propriamente brasileira. Logo, cabelo é apenas um dos fatores que ajudam na superação do racismo, ele não consegue carregar por si só todo o peso dessa busca pela identidade étnica no país, longe disso, é apenas um dos fatores que a compõem. Por isso a mídia é importante. Precisamos de mais pessoas dispostas a falar sobre os cabelos cacheados e crespos e que haja uma explicação que atinja as diversas parcelas da população, a fim de alcançar uma proporção tão gigantesca que as crianças não mais precisem ter vergonha de serem quem são, dentro de casa ou fora dela. Friso ainda, não é uma caminhada curta, pelo contrário. Manifestações como essa precisam de muito tempo para se estabilizarem e se concretizarem. Dessa forma, é muito importante que as pessoas desconstruam esse ideal de beleza europeia que ainda é vigente no Brasil. Além disso, é importante também que elas continuem incentivando essa manifestação e que possam ter mais empatia pelo próximo. Pois, muitas vezes, é a opinião que elas dão que levam outras pessoas a se submeterem a esses procedimentos. Ainda, o cenário pandêmico que vivemos agora está longe de ser um panorama que nos agrade, mas se teve um lado bom de tudo isso foi a liberdade que ele trouxe às pessoas de conhecerem a si mesmas, a fim de deixarem os cabelos naturais prevalecerem novamente, contribuindo para a sua personalidade. E, mesmo que o cabelo seja um fator que contribua para a construção da visão de si próprio, ele por si só não forma essa identidade étnica, apenas complementa um todo, como um dos tijolos na construção de um muro. Por isso, a representação de figuras públicas nesse processo é importante. Elas podem atingir e inspirar milhares de pessoas simultaneamente, encorajando-as para que se assumam. A fim de evitar que as crianças tenham que passar por algum tipo de constrangimento 43
racista nos primeiros anos de sua vida, ações que afirmam a própria identidade são extremamente necessárias nesse processo. E, para isso, é preciso que as pessoas despertem essa vontade coletiva de mudança, a fim de alcançarmos melhores resultados sobre essa temática num futuro próximo.
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Por Lanne Hadassa
A guerra continuará viva e atuante Os cabelos crespos e cacheados são maioria no Brasil, segundo uma pesquisa da Unilever, realizada pela Kantan WordPanel, em 2012. Até então, os cachos representavam 51,4% das mulheres brasileiras, enquanto uma outra pesquisa do Instituto Beleza Natural em parceria com a Universidade de Brasília (UnB) chegou a um índice de 70% em 2011, após dois anos de estudo. O que nos leva ao questionamento: por que por tanto tempo o padrão de beleza brasileiro não incluiu cachos e crespos em seu "sistema"? Ao longo dos anos, o tipo de cabelo que a maior parte do país possui foi visto como inadequado, e não surpreende porque isso é uma herança africana, herança preta, povo que é ridicularizado e humilhado todos os dias em nosso cotidiano. Outras pesquisas apontam que os negros são maioria também, mas os fios crespos e cacheados não se retêm apenas a eles, devido à miscigenação. Ainda assim, o que a sociedade considera atraente é o padrão branco europeu, que não por acaso é formado por pessoas que detém a maior parte do poder econômico. A mídia, tentando provar-se um espelho da sociedade racista em que vivemos, desde a sua ascensão é a maior disseminadora de padrões, sempre mostrando em suas novelas, em seus telejornais, em seus programas e em suas propagandas, a famigerada família tradicional brasileira, que não passa de pessoas brancas e heteronormativas. As pessoas pretas, enclausuradas nessa situação, aprendem a viver sob esta norma, por vezes odiando as próprias raízes, escondendo-as e mesmo sem querer, aplaudindo a régua branca com a qual foram medidos à força. No contexto de cabelos crespos e cacheados, ainda dentro da pesquisa da Unilever em 2012, 30% das mulheres conservam seus cachos, enquanto 15,9% fazem alisamentos químicos, e outros 5,5% relaxam seus fios. Grande parte das que não mantém os cabelos naturais, o fazem por causa do mercado de trabalho ou simplesmente para se sentirem mais bonitas, já que cresceram ouvindo e vendo que os fios volumosos são indignos. Agora devo inserir mais um questionamento: o cabelo crespo ou cacheado realmente é feio? E a resposta é não. Mesmo que na opinião de alguns indivíduos seja um cabelo "ruim", a beleza sempre será relativa, não deveria existir padrões para ela, mas sim um conjunto de diferenças que compartilham da mesma aceitação. Opiniões que ferem sentimentos deveriam ser caladas e guardadas, ainda mais sendo uma que claramente foi moldada através da discriminação racial implícita, às vezes escancarada, no nosso país. Uma vez que o racismo for vencido, todas as formas do que é belo serão amplamente atraentes. E o racismo tem sido enfrentado, lutas estão cada vez mais presentes, e uma dessas formas de luta é exibir o poder do cabelo crespo e cacheado, mostrar a formosura das origens pretas, os belos volumes que resplandecem a ancestralidade africana. E felizmente, ainda que pouco, temos conseguido espaço na mídia e em outras áreas, meninas e mulheres têm se inspirado em celebridades que deixaram o seu natural vir à tona, tomando posse do que é de seu direito. Não diferente, homens pretos também têm seus fios admirados, e além disso, seus costumes, seus penteados, seus jeitos de criar e recriar o cabelo, exibindo o poder de uma cultura que por muito tempo foi negado. 45
Não podemos esconder os avanços dos últimos anos, mas também não devemos nos conformar apenas com isso. A luta continua, e ela terá vida até que todos nós possamos desfrutar dos mesmos privilégios, até que ninguém condene o cabelo crespo por ser crespo, ou julgue o caráter pela cor da pele. Até este dia, a guerra continuará viva e atuante.
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Referências Fanon, Frantz. Black skin, white masks. Grove press, 2008. Gomes, Nilma Lino. "Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural?." Revista brasileira de Educação , 2002. Ribeiro, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. Global Editora e Distribuidora Ltda, 2015.
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CONTRA CAPA
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