II ANTOLOGIA DE NOVOS AUTORES DE OLHÃO

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II ANTOLOGIA DE NOVOS AUTORES DE OLHテグ 2013



MUNICÍPIO DE OLHÃO | CASA DA JUVENTUDE DE OLHÃO

II ANTOLOGIA DE NOVOS AUTORES DE OLHÃO

Amadu Embaló | 18 Catarina Arraes | 18 Diogo Simão | 18 Domingos Cerejo | 54 Filomena Pires | 19 Gustavo Marcos | 29 Inocência Dias | 38 Jady Batista | 19 Mariana Ramos | 16 Mário Moreno | 70 Nídia Palma | 36 Pedro Saldanha | 34 Sandra Cristo | 39 Tiago Cravo | 22

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II ANTOLOGIA DE NOVOS AUTORES DE OLHÃO Amadu Embaló, Catarina Arraes, Diogo Simão, Domingos Cerejo, Filomena Pires, Gustavo Marcos, Inocência Dias, Jady Batista, Mariana Ramos, Mário Moreno, Nídia Palma, Pedro Saldanha, Sandra Cristo, Tiago Cravo. Coordenação / Edição / Paginação: Município de Olhão - Casa da Juventude de Olhão Maio 2013 Impressão: Gráfica Comercial - Arnaldo Matos Pereira, Lda. Publicação: Câmara Municipal de Olhão Largo Sebastião Martins Mestre, 8704-349 Olhão Telefone: 289 700 100 Email: geral@cm-olhao.pt Apoio à publicação:

1ª Edição /2013

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ÍNDICE

9 Notas de Abertura POESIA Sandra Cristo

13 Vendaval

Jady Batista

15 Alter Ego

Pedro Saldanha

16 A Ebriedade da Palavra 18 Intitulação 20 Imaginação

Amadú Embaló Domingos Cerejo

21 As Velhotas do Meu Prédio 22 Se algum dia… 23 Quisera eu viver em ti…

Nídia Palma Gustavo Marcos Diogo Simão

24 A Dor da Memória Impotente 25 Somos Quelfes 26 Bastardos

Filomena Pires

28 A Verdade é Uma Mentira

Mariana Ramos

31 Fahrenheit

PROSA 35 Socialização e Insonorização Nídia Palma

37 A Princesa do Nariz Torto 41 O Café Matemático 45 Sanya desde a Ilha do Farol até Olhão

Catarina Arraes Tiago Cravo Mário Moreno

49 Asas do Destino 53 Nos Caminhos de Kau! 55 O Bebé Drogado 57 O Moço Pobre e o Menino Rico 67 A Vida Vai Melhorar

Inocência Dias Julieta Lima

71 Bálburdia no Casamento 77 Carta a Um Homem do Mar TEXTO DRAMÁTICO

Mário Moreno Coletivo CJO

81 A Taberna do Baltazar 93 Princesa Procura-se BANDA DESENHADA

Carlos Rocha Inocência Dias

105 Doninha: O Aniversário 111 Só Resulta No Japão



NOTAS DE ABERTURA

Eng. Francisco Leal Presidente da Câmara Municipal de Olhão Voltamos a fazer história! A segunda edição da Antologia de Novos Autores de Olhão é uma realidade e prova que não falta capacidade criativa aos nossos olhanenses. O repto para a candidatura de novas obras lançado pela Casa da Juventude, depois do sucesso da primeira edição, apresentada no ano anterior, foi aceite por muitos escritores e poetas e o resultado está nesta obra. Com textos em prosa, verso e banda desenhada, mostramos ao Mundo os nossos artistas e a nossa aposta na cultura, neste caso através da edição impressa. Porque é nestes novos autores que está o futuro e o Município de Olhão não poderia ser alheio a essa fonte de cultura que vamos descobrindo todos os dias. Parabéns a estes novos autores. Queremos continuar a lê-los no futuro! Este é só o primeiro passo!

Dr. António Miguel Pina Vice-Presidente | Vereador com o Pelouro da Cultura Pelo segundo ano consecutivo, o Município de Olhão, publica uma antologia que promove a produção literária e os novos autores de Olhão. É para mim, para todos os autores e para os olhanenses um orgulho esta segunda edição, que vem reafirmar a criatividade e qualidade das gentes do nosso concelho. Mesmo com todas as dificuldades que atravessamos, é nossa obrigação continuar a dar voz, e também incentivar, todos aqueles que sentem e fazem cultura. Garantidamente é essa a minha visão para o futuro. Parabéns e continuem a acreditar nas vossas qualidades e no futuro.

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POESIA



POESIA

SANDRA CRISTO | 39

VENDAVAL Era um dia de fri, e tava bem enfegad, Tava o mar fêt num cão, Tava a onda em cachão, Tava o vent má junt c`areia e sardinha nem meia, Até o mê cão quera o vendaval, tava mal despost e com diarreia E eu pensei cá pra mim: Mê Deus, sair de barc assim? Má nist nem é ced, nem é tarde, atana é que se deu um milagre? O céu abriu-se dum instante e ficô má limp c`afarda do mê comandante. -Moss? Donde é que tá o vendaval que ainda agora tava aqui? Nisto respondeu o Chico Zéi: -Manel, o tê cão tá ali.

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JADY BATISTA | 19

POESIA

ALTER EGO Desperto Liberto as pálpebras Transponho-me Caracterizo-me Fito o ilícito Inquiro-me repetidamente És tu? Parto Percorro Corro Concluo Dispo-me Lágrimas coradas Estanco A fronte rubra Suplica Consegues? Calo-me Incrédula Questiona-me Quando? Replico Amanhã!

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POESIA

JADY BATISTA | 19

Como Bebo Ostento Riem Não! Omito Mas Porquê? Silêncio Conjeturo Indago Miro Cala-te! Silêncio Estou ali! És tu? Sim! Saciarás? Silêncio Apenas mais uma precisamente na mesma direção Silêncio

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PEDRO SALDANHA | 34

POESIA

A EBRIEDADE DA PALAVRA Longe de tudo, daqueles e de outros, um fumo denso deste que o faz e não se importa Abre-se uma porta! O desdém da vida, as fugas, o tédio de ser e não estar, a lembrança de estar e não o ser Fecham-se as janelas de um viver! Felicidade que não se encontra é a vontade do mundo em sintonia não vista E a nossa visão estilista…! Nossos dias de malditas imagens Consome-nos a aparência e não suplantamos nossas viragens Sou feliz e desdenho-me, somos malévolos e vangloriamo-nos É por míticos caminhos que assumo, que inalo e que assino Esse inabalável desejar por uma vida sem tino Melhor que a hipocrisia do mundo É o meu viver sem coerência de fundo Liberdade!? Qual liberdade? É por isso que fumo! É por isso que no álcool me volatilizo e na escuridão me ionizo Recuso a tudo o que me ignora! Renego aquele que me implora! Deus existe! Mas em mim muito mais creio Eu existo! É talvez a comodidade que a tudo me impele

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POESIA

PEDRO SALDANHA | 34

Mas é a angústia que me refere Penso e vagueio Na realidade crua procuro devaneio Ao largo de nossas vidas Espero viagens nunca antes tidas Em pálidas recordações e petrificadas tentações Interajo com o meu presente e afinco minha alma latente Que desgraça feliz! Que ânimo descontente! Que subtileza férvida! Toda a contradição que sinto É o reflexo do nosso evoluir extinto Não evoluímos, inventamos a evolução! Não progredimos, obrigamo-nos à progressão! Continuaremos sempre, diante de constantes dúvidas, embebidos na lava dos sentimentos e enfarpados na certeza do nosso fim orgânico…

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PEDRO SALDANHA | 34

POESIA

INTITULAÇÃO Temas e textos sentidos Sensações e gemidos Embarcando na fulgurante peça O fogo cruzado da existência A vida que me arremessa A busca cega com pertinência

O olhar da lua está lindo O amor ao Mundo é voraz Visto-me de social e vou rindo Serei eu capaz? Minha visão da lua também é linda Meu amor à Terra é imoral Já é noite e tudo me falta ainda Quero-me livre do mal Desta espécie que me corre no sangue E que minha alma não estanque E que minha alma não morra

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POESIA

PEDRO SALDANHA | 34

Afoguei-me em mim Não sei o que sou Sinto a vida com frenesim Adoro estar e nunca estou Adoro ser e apenas vou sendo E só a mim mesmo vou tendo Ah! Não me libertam as paixões Com que ódio penso Pertencer a estéticas ou políticas Consumir-me em divagações elípticas Tenho o coração tenso Liberdade, ah! Liberdade Com que soledade tenho essa ansiedade Com que prazer te imagino Com que angústia te adivinho

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PEDRO SALDANHA | 34

POESIA

IMAGINAÇÃO E os retalhos do tecido imaginário Onde estão? Vejo o todo que penso e é pouco Não encontro sequer os fragmentos Onde ficaram? Sei que vivo neles e que ressuscitam as minhas dúvidas Dúvidas que me provocam na alma dor Dúvidas da minha ousadia e análises dispersas Que sou eu? Que juízos poderei emitir num mundo de interiorizações íntimas Dói-me a dor de não doer concreto Sinto a morte já mais perto Que inquietação a que me assola, consciente de mim neste imediato momento que já é passado, o que estou a pensar já pensei e o que sinto acabei de sentir As interrogações que construo ao meu “eu”, são reenviadas para a minha consciência e aí se dissipam, nesse mar de convenções e consolos Nada responde a mim mesmo e questiono-me de tudo o que sou eu E os retalhos da minha imaginação? Só existirão eles em meu coração? E os fragmentos de tudo o que senti? Quero fazer um quadro das experiências que vivi! E entender aquilo que me dizem que já entendi Ah…! Imagem que reflicto de mim Vem até às entranhas do meu corpo Esconde-te aí! Esconde-te e não te mostres em sombra, luz ou cor Sou eu que sou aquele e não é aquele que sou eu

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POESIA

AMADU EMBALÓ | 18

AS VELHOTAS DO MEU PRÉDIO A minha amiga velhota Fala pelos cotovelos… a sério! Ah! Que chatice! Ter uma pedra no sapato… Fala o que não lhe pertence falar. Ouve o que não lhe pertence ouvir. Pergunta o que não se deve perguntar. A sério, digo eu… As minhas velhotas são assim, Falam como bonecas elétricas. Hum! Por que não me contam histórias antigas? Pare de ser barulhenta, a minha velha amiga. A sério…

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DOMINGOS CEREJO | 54

POESIA

SE ALGUM DIA… Se algum dia soube quem eu era Outros desvirtuaram o meu ser Dando-me qualificações que não possuía E armas que não aprendi a conhecer no Esquecimento da verdade, esta tornou-se Inócua e insípida, levando-me a rejeitar Os sabores porque com essa amante Possessiva, tudo era bom, mesmo aquilo Que coisa nenhuma tirava o sabor a nada A partir de nenhuma coisa, para nada Sentir numa pele insensível, consumindo-me Em mim em total esquecimento do meu ser.

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POESIA

DOMINGOS CEREJO | 54

QUISERA EU VIVER EM TI… Quisera eu viver em ti, amando-te Em todo o teu ser, que a tua boca Fosse o atear do fogo que me consumiria Beber-te em ti própria, como o mundo Que começa e em ti acaba, porque meus Lábios não se abrem ao teu olhar Morena até este momento impossível Por ti, por mim ou por coisa nenhuma Não consigo nem ver ter ou possuir Sei o que preciso mas não de que forma Porque motivo ou castigo, digo ao céu Espera-me que já volto. Quando? Essa é a Minha penitência, olhar para lado nenhum!

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NÍDIA PALMA | 35

POESIA

A DOR DA MEMÓRIA IMPOTENTE Em certo dia outonal, Uma bela árvore acena no cimo do monte. Imponente como o vento mantém-se enraizada. Irradia doçura na sua bravura E a folha outrora bem fixa num dos galhos, Desprende-se e cai. Cai em movimentos ondulantes Embatendo suavemente contra o chão. O chão encontra-se molhado, Fruto da chuva, é certo. Chuva chuvinha tão delicada Que naquela madrugada Resolveu fazer-se sentir Como a lágrima que sai de mim. Lágrima doce por não ter o meu amor. Amor que por mim espera, Numa espera longa e angustiante. Longa como o mar, No mar azul de beleza cintilante, Como aquela estrela que cintila lá no céu. No céu limpo embora inalcançável Onde não posso mais chegar… Em tempos percorri montanhas e céus Agora quedo-me imóvel em meu leito. Resta-me olhar pela janela fria e húmida. E o que vejo? Uma bela árvore! Que apesar das intempéries continua firme. Aquela árvore que um dia tinha uma folha…

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POESIA

GUSTAVO MARCOS | 29

SOMOS QUELFES Quando alguém diz Quelfes Pensamos em campo, ponte e freguesia Mas Quelfes é mais do que vinhedos, laranjais Ou lugar de travessia. Mais do que a alvorada de Marim Quelfes é a esperança e o sonho Bordados numa tapeçaria sem fim! Mais do que colinas que, do alto, olham o mar Somos a voz dos nossos antepassados Projetada num firmamento sem par! Porque mais que um poema, somos prosa Uma conversa, um povo, um lugar Abençoado pela Ria Formosa! Quelfes é uma mensagem de esperança Uma história, um predicado, uma razão Que erguendo o fogo da bonança Inspirará a mais brilhante geração! Pintada pelas cores dos quatro elementos Quelfes é porta-voz de mil lendas, realidades Um puzzle de origens, credos, sentimentos Um hino às Liberdades! Respiramos, lutamos e acreditamos poder dizer Que somos milhares, em uníssono crer Porque Quelfes é muito mais do que se diz ser É um novo amanhecer!

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DIOGO SIMÃO | 18

POESIA

BASTARDOS Gostava de ser um dia pintor: Se para isso tivesse algum poder de saber Que ir para o mar é conhecer Um mundo em tons de negro e amarelo estrelado. Sim, aquele amarelo que parece estar cravado na… Nossa primeira memória da… Infância que todos tivemos: tanto marginais como os… Que se autoproclamam salvadores e redentores E benfeitores de outrem: Sim, porque ninguém Nesta terra que cheira a cão molhade Se sente disposto a merrer entalade num calde Que cheire a choco frito e a pus de peixe. Não consigo deixar de pensar que um país com pé de atleta Saiba voar. Mas voar é apenas um pensamento impuro Porque não é de gente… Fina e de bem Contar a história do que se passou No dia em que o meu amor voou. É falacioso contar tais eventos medíocres de gente Moribunda, não acha meu caro? Mente Por todos os poros que sua epiderme deixa transparecer E ainda nos faz crer Que se trata de um demiurgo apaixonado.

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POESIA

DIOGO SIMÃO | 18

Meu amigo, não se sinta só por isto enganado, Porque a mentira não se restringe ao seu (…) Basta de falinhas mansas Conversas que me roem as cristas das ondas que cavalgo sem Que os panças e minhas mulheres cheirem o suor e nojo que envenena as vontades De quem sabe o que almeja! Não é apenas a conquilha no estôgamo e as verdades Assentes E quentes! Mas que as maldades dessas gentes fiquem a descoberte na praça pública! Porque se Eu, Vou para as nossas ruas chorar a morte do meu cão molhade Mais vale ir para onde nunca fui E esperar onde nunca esperei. Cuidade, Pois pode ter a certeza q’irei ! E de dentro da sua lareira onde céu e mar se tocam, À espera de um passado que toque o futuro (que parece não se apressar) Todos mancam e trotam, numa valsa eterna, que nos faz chegar A um lugar. Um quadro. Talvez por Deus pintado… Mas como diz o poeta “Jardim da Europa à beira mar plantado”, Está a ser afogado por um pateta: Não pelo pintor que eu queria ser, Mas por toda flor que não deixam crescer.

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FILOMENA PIRES | 19

POESIA

A VERDADE É UMA MENTIRA A constante Manipulação A gigante Azul Esfera Entrou numa nova Era De demasiada Confusão Hipocrisia constante Todos fingem, Todos mentem, E a Honestidade vai distante Em quem acreditar? Em quem confiar? Religiosos, Políticos, Cientistas Todos têm de Opinar Por que mundo decido? A doce Ilusão, Ou a Cruel razão? O meu universo dá-se por vencido. Tanta vontade Fria e Imunda Realidade Para mim um muro a derrubar A “Verdade”? Apenas no nosso interior a podemos encontrar. Casos desesperados Peças Perdidas Jogadas a Tristes Acasos Dispersas as Vidas Perdem vontade de Lutar De Gritar…

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PROSA

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PROSA

MARIANA RAMOS | 16

FAHRENHEIT Eu pessoalmente gosto de praia. Enfim, quando era ainda uma cria humana gostava mais, pois a minha pequena e raquítica estatura livravame de ter de carregar com chapéus de sol, geleiras, sacos e afins. Já que essa posição agora passou para a minha irmã, contribuo para a mudança temporária levando o meu saco de pêlo e cabedal a tiracolo e o guarda-sol embrulhado em plástico fosco no ombro. Quando, eventualmente, este começa a ficar vermelho e escorregadio, passo-o para debaixo do braço, mas isso é um pormenor. Mas nunca apreciei praia com vento. Aguento, e até não recuso, praia com algum frio, o ambiente é mais calmo, contando que seja um frio estático. Passear à beira-mar ou ler um livro enquanto lancho o meu próprio cabelo temperado com areia, não é propriamente agradável.

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MARIANA RAMOS | 16

PROSA

Então. Assim, quando anunciaram que a partir de hoje se levantaria uma onda de calor que cobriria as desbravadas terras turísticas algarvias, o bando de velhos doidos com quem partilho o acampamento cigano praieiro aos Domingos – vulgo os meus pais e os amigos – vibraram de tal forma que hoje, às oito e picos da manhã, arrancaram-me da cama com algo semelhante a um tableflip, sem qualquer preocupação em relação aos meus ociosos rituais despertinos. Apanhámos o barco, ainda eu com um ar de zombie mal encarado, que provavelmente fincaria os dentes no primeiro transeunte que lhe dirigisse a palavra, e chegámos à ilha. Durante a manhã e parte da tarde, a estrela central do nosso sistema cumpriu a macumbística previsão dos meteorologistas, fazendo-me até dar um ou dois mergulhos entre a leitura de um livro qualquer que requisitei na Biblioteca Municipal por falta de opções. Até aí, nada de extraordinário acerca da exasperante onda de temperaturas acima dos 40ºC que anunciavam. Era um dia de praia normal, à exceção de que o solo, tanto areia como a plataforma de cimento, se notava mais quente debaixo dos pés descalços. Mas todos nós, como bons olhanenses e descendentes de rijos mariscadores e pescadores, gente que bebia ondas de trinta metros e comia caranguejos vivos com areia-preta a 572 graus Fahrenheit ao pequeno-almoço, aguentámos o fritar da planta dos pés enquanto ainda troçávamos dos branquelos turistas que saltitavam em agonia ao pisar descalços o mesmo chão. No entanto, como que por alguma força da Natureza, assim que voltámos a solo continental abateu-se sobre mim uma fadiga agoniante. Era sempre assim, mas as temperaturas cada vez mais altas intensificavam a coisa. Filha de uma meretriz, pensei para mim, lembrando-me da presença dos meus progenitores mesmo a tempo de não o verbalizar, que ainda vou ter de apear até casa. Era a última coisa da qual eu precisava. Andar. Colocar mecanicamente um pé em frente do outro, aguentando o importunante sol sobre a cabeça e a magoar-me os olhos, numa distância que mais parecia a travessia do Deserto do Saara.

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PROSA

MARIANA RAMOS | 16

Sem forças sequer para me queixar, segui os meus amados parentes até à sombra, que tornou o trajeto um pouco mais aguentável, e caminhei atrás deles, a uma velocidade lamentável. Nem brinco, se isto fosse um desenho animado, passaria o icónico caracol e a criança de triciclo por mim a uma velocidade, comparativamente à minha, estonteante. A demanda pareceu interminável. O suor escorria-me por todos os poros da pele, encharcando-me o saco e colando a alça de cabedal à minha barriga desprotegida. Não havia sítio onde não apoiasse o plástico que envolvia o chapéu de sol em que este não deslizasse feito prancha de snowboard numa colina. Apesar de a sombra dos prédios me aliviar um pouco, o sol continuava a fazer-me enrugar a cara feita idosa camponesa para conseguir ter um vislumbre da minha trajetória sem sentir os olhos a pegar fogo. Até que a dona chefa, provavelmente carregando a mesma cruz que eu, anuncia que vamos parar um pouco no café a meio do caminho. Há um Deus, lacrimejei na altura, mais por culpa da luz do que por emoção, visto que sou uma indivídua sem sentimentos, e ele está do lado das parolas sem resistência física. Após a paragem, o caminho assemelhou-se mais curto, maioritariamente atravessando ruas estreitas e cobertas de sombra, autênticos canais de vento que ajudaram a secar o suor e a aligeirar o percurso. Ao chegar a casa, joguei o guarda-sol para um canto do corredor e subi as escadas freneticamente, prometendo a mim mesma que seria apenas um último esforço, só mais um pouco. Ao atravessar a porta do meu quarto, atirei também a mala, que na altura parecia exercer no meu ombro uns sete mil Newton de força. Abri o armário exasperada, vasculhando pela roupa mais pequena e leve – e consequentemente mais mendigal – que tinha. Quando me apercebi com horror que a roupa estava, quase na sua totalidade, dividida entre as máquinas de lavar e secar e o cesto da roupa para passar a ferro. Na prateleira das roupas de verão apenas jaziam umas blusas de ginástica de colarinho alto – coisa que nem ponderava usar, visto que usando uma blusa de cavas acima do umbigo já estava a entrar em estado de fusão -, blusas de alças de há éons geológicos atrás, que teria

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MARIANA RAMOS | 16

PROSA

sorte se me coubessem nas orelhas, e nada mais. Calções, cuja quota está reduzida a dois pares: eu usava um, e o outro estava para passar a ferro. Que se expluda, decidi eu, de qualquer maneira, só não ando aqui nua porque a cadeira arranha. Qualquer coisa serve. Assim, dirigi-me à cozinha, vasculhei com precisão forense o cesto até encontrar os calções amarrotados e dei meia volta para a casa de banho. Liguei o chuveiro no modo Hipotermia Instantânea e lá removi o salitre pegajoso do meu corpo enegrecido, quer pelo pó e sujidades na atmosfera litoral, quer pelos raios UV-B que conseguiram chegar à minha cútis. Arrastei-me depois para o quarto, decidida a retomar a ociosidade que deixara na pausa de manhã. E teria, se o quarto não estivesse demasiado quente. Tratei de escancarar as janelas, sem me ralar muito com os mosquitos, grilos, lagartixas e pterodáctilos que pudessem porventura entrar, e agora que o espaço se encontra em equilíbrio termodinâmico com o exterior, numa temperatura favorável à sobrevivência humana… … já não tenho vontade de dormir.

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PROSA

MARIANA RAMOS | 16

SOCIALIZAÇÃO E INSONORIZAÇÃO Há muita coisa neste mundo que eu nunca hei-de compreender. A técnica de fazer um ovo estrelado sem estourar a gema é uma das que mais me escapa, mas há outra, sobre a qual me irei ocupar hoje, e vossas hipotéticas excelências aturar-me-ão. Já agora, recuso desculpas para não me acompanharem nesta: começou já oficialmente a última semana de aulas que, como todos sabemos, é uma anarquia no sentido mais amplo que a palavra permite. Portanto, visto que supostamente não precisarão de estudar coisa alguma (excetuando o caso em que estejam a planear um torneio de tacada de borrachas para Matemática ou uma corrida de aviões de papel para Inglês, claro, isso são assuntos de extrema importância nos quais nem me atrevo a meter), convidados à frente, por favor. Por força das circunstâncias, os meus auscultadores são uns earplugs brancos. Sabem, aqueles pequeninos. Eu queria os pretos, que não contrastassem tanto com a roupa escura que insisto em vestir. Mas daquela marca só havia branco, e outras marcas eram mais caros. A remendada da vida aqui trouxe os brancos, que haviam de servir. Qualquer pessoa num raio de quinze quilómetros consegue ver que tenho fios pendurados nas orelhas, já que não adiro a essa treta de meter os fios dentro da roupa, mas arranja bem a coisa. Pois aí é que reside a coisa. Expliquem-me vocês aquilo que a mim me escapa: Porque trombones é que as pessoas vêm falar comigo, mesmo vendo que tenho claramente uns insonorizadores metidos pelos tímpanos que me obstruem a capacidade de ouvir o exterior? Isto é mistério da vida. Uma pessoa metida na sua, a ouvir a versão orquestral do Gangnam Style, enquanto aprecia as crassas vistas agradáveis que porventura passem, toma a decisão de virar a cabeça e lá está uma mula qualquer na sua frente, a mexer os lábios na sua direção, num insistente monólogo, sabe-se lá há quanto tempo.

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MARIANA RAMOS | 16

PROSA

O pior ainda nem é isso: é quando, educadamente, tiro os fones e desculpo-me de que não estava a ouvir, e a criatura ainda fica ofendida. Ofendida fico eu! Tive de interromper a minha, minuciosamente escolhida, seleção musical para, ainda por cima, ter de aturar caras de tacho? Na maioria das vezes não ficaram mesmo chateadas, é só manha, que depois se decidem a retomar a história do início. E aí é que fico mesmo carocha da vida, por me aperceber de que não fui só interrompida por uma criatura que anda a dever à visão desde que nasceu, mas ainda que a interrompi para ouvir uma minúcia qualquer da vida dela, como que comprou um casaco que estava rasgado, voltou á loja e fez um escândalo e acabaram por lhe dar um casaco novo e um vale de desconto e coisas assim. E sabem o que um dos indivíduos me disse, quando lhe perguntei se não tinha visto que estava de fones? "Ah, eu notei, mas pensei que não estavas a ouvir música." Ah, claro que não! Que disparate, pôr os fones para ouvir música. Eu só os pus porque tinha frio nos ouvidos, que idiotice essa de ouvir música pelos fones. Energúmenos. E depois mostram-se espantados quando lhes digo que conto os dias para sair daquele poço. Vou começar a levar para a escola os meus auscultadores grandes. Aqueles que tapam as orelhas todas. Pareço um extraterrestre recém chegado da Grande Nuvem de Magalhães, mas ao menos dá mais a entender que não estou a ouvir o (nem a dar importância ao) mundo exterior. É isso mesmo. Gostaria de me queixar mais das minhas próprias minúcias, mas tenho de ir. Fiquei encarregada de preparar o campeonato de arremesso de livros de Química de terça-feira e ainda nem arranjei quadro de pontuações. Espero que tenha, no entanto, atingido o nobre objetivo de vos fazer perder tempo de vida com nada em particular.

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PROSA

NÍDIA PALMA | 35

A PRINCESA DO NARIZ TORTO Em certo dia primaveril, a rainha entrou em trabalho de parto, sendo este complicado e demorado. A futura princesa teimava em nascer de pés e a rainha gritava loucamente como se fosse o último dia da sua existência. Tratava-se do primeiro filho, sendo que a inexperiência pesou na sua dor. O rei roeu as unhas das mãos enquanto gastava a sola de sapato no corredor de acesso ao quarto onde se encontrava todo aquele aparato. Não descortinou coragem para estar ao lado da sua amada esposa. Duas parteiras experientes, toalhas imbuídas em água tépida, três bacias, aias que já nem sabiam o que fazer… O ambiente era caótico a ponto de todos entrarem em completa desordem. A cada grito mais uma gota de suor a escorrer pelo rosto de todos os intervenientes. Descorada e sem energia, a rainha apagou-se aos poucos e foi no último “ai” que o choro da princesa tão desejada se fez ouvir. O rei petrificou os movimentos corporais inclusive o olhar durante uns longos segundos correndo, em seguida, de forma cambaleante. Entrou no quarto completamente esbaforido e deparou-se com todo aquele reboliço que lhe deu volta ao estômago, esforçando-se por não cair hirto no chão húmido. Primeiramente aproximou-se do rosto da rainha, beijando-a. Esta, entreabriu os olhos e balbuciou “a nossa princesa…” ele bloqueou quaisquer outras palavras com um único dedo e respondeu “descansa, agora está tudo bem”. Afagou os seus cabelos e dirigiu-se para o berço onde a princesa acabava de ser colocada devidamente embrulhada num tecido sedoso em tons pastel. Segurou-a com todo o cuidado encostando-a ao seu peito. Beijou-a na testa e professou “bem-vinda minha princesa”. Lentamente, os dias voltaram à normalidade. A princesa apresentava um comportamento ponderado apenas reclamando por comida, à qual a mãe a amamentava com todo o prazer.

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NÍDIA PALMA | 35

PROSA

Era um momento ternurento e digno de ser apreciado. A rainha garantiu todos os cuidados a ter para com a princesa não permitindo que ela fosse tratada pelas aias, assumindo deste modo, o seu novo papel, o de Mãe. Os reis eram portadores de uma idade juvenil sendo visível a paixão que os unia. Apesar do primeiro filho ser do sexo feminino, não causou qualquer tipo de repúdio à sociedade em que estavam inseridos. Os tempos mostravam que as mulheres eram portadoras de inúmeras facetas e imprescindíveis à boa harmonia familiar. A princesa foi crescendo nos longos corredores do palácio, onde brincava com os filhos dos aios apelidando-os de primos. Os jogos ao ar livre tornaram-se uma paragem obrigatória em todos os fins de tarde, na imensidão de jardim que circundava a habitação. A felicidade reinava nos rostos de crianças e de adultos, devendo-se à perfeita harmonia entre reis e criados, sendo uma preocupação constante que os reis tinham em não se tornar arrogantes perante aqueles que lhes eram fiéis. As diversas ausências dos reis e a dimensão do edifício obrigava a ter várias pessoas para o manter imaculado. Todos sabiam o seu respetivo lugar sem a necessidade de manter o distanciamento tão enraizado em gerações anteriores. Criticados, devido a essa permissividade, por outros cargos superiores da sociedade, mostravam-se exímios nesse compromisso assumido no ato do casamento, ao qual estavam dispostos a continuar a cumprir. Quando a princesa atingiu os 5 anos de idade, nasceu o seu irmão num parto dentro dos requisitos da normalidade e foi nessa altura que se começaram a aperceber de que o nariz da princesa apresentava uma curvatura para a esquerda. À medida que o tempo passava, a reverência do nariz tornava-se mais saliente. Exames médicos foram realizados, contudo nada foi detetado. Era apenas o formato do seu nariz. Talvez até fosse fruto do parto tão conturbado que teve. Uma luxação pode ter sido o causador de tamanho desnivelamento, no entanto estava fora de questão algum mal-estar físico, apenas a estética estava comprometida.

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Apesar da tenra idade, também ela se começou a aperceber de que algo estava estranho no seu rosto. Ao olhar-se ao espelho uma nuvem negra pairava sobre si e tentava tapar o nariz das mais variadas formas. Fosse com a mão, com um cachecol ou outro tipo de acessório que servisse para colocar ao pescoço, com a gola da blusa ou puxando o gorro do casaco o mais que podia. Pelo facto de ser uma princesa, os amigos não se pronunciavam, respeitavam-na, contudo, a princesa sentia-se feia ao olhar-se ao espelho e a perda de contacto, fora do seu círculo de amigos, foi inevitável. Nos eventos reais, ela alegava uma doença súbita permanecendo refugiada no quarto. Durante esse tempo a leitura era a companhia que mais lhe agradava. Sendo uma excelente desportista, praticante desde cedo, o corte de ténis existente na parte de trás do palácio onde morava era a sua grande paixão, assim, fundou um campeonato onde todos os moradores da localidade tinham a oportunidade de participar. Naqueles cinco dias a agitação dormia com ela. Tudo tinha que ficar sublime. Os detalhes eram vistos e revistos até ao ínfimo pormenor e desenhou um equipamento para os jogadores, alusiva às cores originais que existiam no pátio. Para que ela própria pudesse jogar ténis sem se preocupar com a sua aparência, adicionou uma máscara, que lhe cobria o nariz, alegando que deveria ter cuidado com os raios solares. O seu irmão também lhe seguiu os passos no desporto e tocava vários instrumentos musicais o que era uma grande festa ver aqueles dois nos seus espetáculos caseiros. Mas o príncipe não apresentava qualquer tipo de torção no nariz. Era um rapaz com excelente aparência e partilhava a simpatia e a inteligência da irmã, o que a constrangia quando ambos eram apresentados socialmente. A adolescência foi marcada pelo início de namoricos por parte das amigas, o que levou a que o grupinho se reestruturasse com os novos rapazes que agora também participavam nas festas mais íntimas.

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A princesa não se adaptou a essa alteração e aos poucos foi-se isolando. Nem mesmo quando o irmão a incentivava a saírem juntos, ela simplesmente alegava todos os tipos de desculpas para não ter que sair e mostrar o seu nariz, porque agora, as novas amizades troçavam com a sua aparência. Quase a entrar para a universidade, abordou os pais quanto à possibilidade de ir estudar para outro país. A reação foi de petrificação porque temiam de que num mundo exterior as dificuldades de integração fossem bastante mais visíveis. Perante a sua insistência e largas horas de pesquisa do local, oferta, cultura… resolveram aceitar. Seguiram-se meses de preparação e de ansiedade, até que por fim, o dia tão desejado chegou. A verdadeira reflexão foi feita durante a viagem dentro do avião. A angústia por deixar um verdadeiro mundo de sonho para trás contrastava com o sentimento de liberdade que lhe sufocava querendo bravar a sua nova vida. O cansaço mental abateu provocando o adormecimento. Chegada ao destino, procedeu como uma rapariga de 17 anos perfeitamente confiante e decidida. Não era mais a princesa de nariz torto, agora dava vida ao seu próprio nome, Corália. Corália foi viver numa localidade bastante humilde onde viu crescerem crianças sem roupa nem sapatos e que imploravam por um pedacinho de pão. Ela desconhecia essa realidade. No seu mundo a pobreza não tinha lugar. As vestes, os manjares, as vistas… era pura magia que ela julgava ser a realidade espalhada pelo mundo, contudo, o contacto com aqueles seres iluminados e tão carentes, alteraram o seu sonho inicial de voltar para o seu pelouro e desempenhar o papel de princesa. Ali, naquele local tão fértil em simplicidade, ela poderia fazer algo grandioso do qual se orgulharia. Com o passar dos anos, a rapariguinha delicada de nariz torto camuflouse e deu lugar a uma bela mulher, embora ainda de nariz torto.

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O CAFÉ MATEMÁTICO Em certo café, a reunião de matemáticos é ritual obrigatório, ou não se tratasse de um café perto de uma escola, em que os professores da disciplina de matemática resolveram adotar como paragem periódica para tagarelar sobre equações, parábolas, retas e afins. Um misto de temas é abordado aleatoriamente todas as manhãs no intervalo maior, numa aproximação de valor quase arredondado ao segundo entre as 10:15 e as 10:30.

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A caraterística que os une é a zona escolhida para o efeito e o facto de todos eles serem, efetivamente, professores de matemática. Ao entrarem num cubo, figura geométrica que define as instalações do tal citado café, segue-se uma curva apertada à esquerda onde a tangente é inevitável à barra que compromete a dimensão do perímetro da sala. Devidamente sentados nas cadeiras em forma oval e debruçados sobre a mesa de tampo quadrangular o Simétrico levanta a mão e profere em primeiro lugar – Berlinda, traz cinco cafés desiguais combinados com natas, dois palmieres paralelos, um bolo pirâmide e o outro semelhante, do qual não me lembro o nome. E ainda um sumo de laranja natural para a Aritmética, por favor. A altura do balcão é constante e elevada. Quando aparece o anel da Berlinda na diagonal e a avistam com uma face de expressão numérica notável, entendem que a rapariga tem razão para tal, pois o raio dos cafés desiguais não são tarefa fácil de se conseguir e a probabilidade de os obter é praticamente nula. Todos os dias repete-se esta situação linear. Após alguns momentos aparece a Berlinda com uma bandeja plana retangular a transportar o pedido dos matemáticos, é como os chama, enquanto pensa “mas que complexos que são”, tentando esboçar um sorriso em que os lábios ficam muito semelhantes ao algarismo zero. Numa sucessão de movimentos as bebidas e as comidas são meticulosamente separadas em centímetros de igual distância, num gesto que os “matemáticos” apreciam bastante. Uns minutos mais tarde aparece outro par, a Elipse e o Cilindro. Estando a Elipse constantemente na tendência da moda, apenas solicita um chá simples, com a menor adição de açúcar possível, é um fator que ela considera imprescindível, já o Cilindro não pode passar sem a tosta mista mostrando o menor interesse em manter-se na linha. - O teu primo Ábaco vem ao café? – perguntou certo dia a Aritmética ao Cilindro – preciso falar-lhe da real razão de ter surgido a interseção de funções na ficha avaliativa.

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- Ainda não o vi hoje, creio que foi a uma visita de estudo às escavações romanas. O espaço de convívio começa a tornar-se apertado com a chegada de mais colegas e a rotação inversa para a outra mesa é inevitável. A progressão do tema da conversa até pode ser variável, mas o produto tem constantemente a mesma base “matemática”. Seja racional ou irracional, as mentes encontram-se tão obtusas que nem num esforço se conseguem distanciar da profissão que os move. A Coordenada possui uma beleza ímpar sendo vítima de inúmeros piropos, por parte dos colegas, embora que positivos, passando ela todo o intervalo a dizer - piiiiiiiii e mais piiiiii parem com isso, já chega seus abusadores! – mas o Setor toma rapidamente o domínio da conversa tornando neutros os suplícios da pobre Coordenada que já não tem posição para estar sentada na cadeira. Olha constantemente para o relógio côncavo em forma de infinito pendurado na diagonal da parede até sentir uma redução nos piropos. É uma situação que a irrita, pois a sua identidade tende a ficar denegrida para quem não a conhece, considera ela. Contudo, a Aritmética e a Elipse ficam ruidinhas de ciúmes por não terem piropos equivalentes. O foco de atenção é sem dúvida na Coordenada, talvez por ser muito certinha, possuidora de umas belas sardas difundidas no cabelo ruivo. A frequência com que isso acontece torna-se desconcertante, e elas preferem morder o lábio a uma velocidade exponencial e esperar que se dê a substituição da Coordenada quando esta entrar em licença de parto. A média da percentagem de professores de matemática que frequentam o local é de tal forma elevada que o café passou a chamar-se “Café matemático” para contentamento de todos eles. Aqueles 15 minutos parecem não ter fim e à medida que surgem mais clientes, os cafés passam a ser múltiplos, deixando a Berlinda extenuada, ela só consegue distinguir “mais 3 unidades, não mais 5 unidades”, no meio de todo daquele alarido. O tirar os cafés conjugado com a pressa em voltarem novamente para a escola é normal, Berlinda entende isso, mas a excentricidade com que o pedem é demasiado para ela.

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O engraçado é que a Berlinda não se lembra que aquela excentricidade é recíproca. A própria Berlinda estudou minuciosamente a capacidade do volume do cubo colocando uma corda à sua volta, isto porque toda a decoração foi elaborada por si utilizando uma escala para que tudo ficasse perfeito, o teto possui um efeito estrelado e até os gelados em perfeitas esferas são colocados em cima de cones apenas num determinado eixo. As paredes estão devidamente decoradas com os mais variados dígitos, desde algarismos inteiros aos decimais, gráficos com barras de cor, fórmulas matemáticas… enfim até sólidos geométricos a 3D são visíveis. A porta de entrada é um gigantesco retângulo de ouro, bastante apelativo, sendo considerado o principal chamariz. E eis que o som do toque para a entrada se faz ouvir – Trimmm! – todos se apressam em finalizar o que ainda não foi ingerido e rapidamente o silêncio abafa o Café Matemático, esperando o tumulto do próximo dia.

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SANYA DESDE A ILHA DO FAROL ATÉ OLHÃO Que silêncio! Que calma! A brisa marinha é leve e refresca a pele que já pede um agasalho. Os pássaros sobrevoam a imensidão azul e fazem investidas ao seu interior a tentar encontrar alimento fresco que carregam no bico com elevada satisfação. A espuma morre ao chegar à beira mar e deixa um rasto de humidade que anuncia a descida da maré. Ao fundo, o avermelhado sol vai descendo e dá lugar ao brilho ofuscante da lua cheia que teima em fazer-se notar no seu pedestal. O verão está no fim. A azáfama dos veraneanos com os seus descendentes de tenra idade, a correr sem descanso e a gritar loucamente, estava com os dias contados. O barco já não fazia a travessia com os lugares lotados. Os sorrisos escondidos de saudade antes da partida definitiva eram evidentes. As recordações eram o bem mais precioso de todos os momentos bem vividos naquela ilha de sonho tão próxima a qualquer um. No meio da fila, ainda extensa, de espera pela chegada do último barco encontrava-se Sanya. Morena, de porte médio para uma europeia nascida e residente em Portugal, a iniciar a emoção da adolescência. Era naquela ilha, na ilha do Farol, tão famosa pela sua beleza que trazia ano após ano, milhares de turistas, emigrantes e residentes que faziam longos passeios sob a fina areia a sentir o escaldar nos ombros e no rosto e a mergulhar alegremente na água límpida, que Sanya se lembrava de passar as férias de verão com os pais e com o irmão. As amizades eram renovadas e mantidas através de postais, simples sms via telemóvel, que começava a ser acessível ou pelo chat no computador que iniciava proporções inimagináveis.

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A tecnologia abandonava, a passos largos, as folhas tão cuidadosamente ilustradas e bem cheirosas ao passar a ser lida uma escrita com abreviaturas em écrans, as canetas fluorescentes davam lugar ao teclado e até os pequenos autocolantes que mantinham a meninez viva por meio de temas partilhados com sabor juvenil, tinha deixado de fazer sentido. A emoção de correr até ao marco de correio, rasgar o envelope vislumbrando cuidadosamente o seu interior e ler atentamente todas as entrelinhas esgotando as novidades de barriga para baixo com a cabeça para os pés em cima da cama, já não se sentia. Apenas um click era o suficiente para afagar o coração destroçado de um namoro não correspondido, ou pedir um conselho para o dia seguinte ou apenas para sentir a alegria de que aquela amiga ou amigo se lembrou de escrever um simples “olá”. Os tempos estavam verdadeiramente a mudar! Sanya recordava todos os dias de férias com verdadeiro apreço embora sentisse um amargo na boca pela distância que a mantinha do próximo verão. Antes de a escola findar, já ela anunciava o início da viagem rumo à ilha. Durante o tempo de aulas, as viagens à ilha eram escassas e fugazes, apenas o tempo necessário para manter a casa airosa e preparada para o verão. Sanya e Ari sujeitavam-se à partilha das mesmas quatro paredes, separados por um estrado em madeira. O irmão dormia no colchão mais próximo do chão. Sanya, por ser três anos mais velha era portadora da última palavra e tinha decidido que ao dormir mais perto do teto manteria uma maior privacidade. Constança e Pérola, as amigas “transparentes” como se declaravam, acompanhavam a loucura dos preparativos para as grandes férias. Vizinhas e colegas de escola desde branda idade. Os encontros eram rotativos, cada dia em casa de uma delas, embora a casa de Sanya tivesse o seu toque especial, como diziam, ao qual não havia explicação plausível. Talvez pela subtil decoração ou apenas pela sintonia das cores que dançavam pelas paredes. Era um verdadeiro festival de harmonias frescas e alegres.

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A divisão que mais lhes agradava era o quarto de Sanya. Era um local acolhedor onde se sentiam verdadeiramente confortáveis em cima da cama larga cor de tijolo, ou simplesmente em cima do tapete circular de plumas amarelas. Chegavam a ficar tardes inteiras, ora deitadas ora sentadas em cima daquela paisagem refrescante que transpirava natureza e era ali que recordavam os olhares privados pelas dunas, o bronzeado mais cobiçado, o músculo mais desejado, a simples conversa de conveniência ou o agradável pôr-do-sol presenciado na ilha. No meio de risos ou até de choros, repartiam momentos guardados apenas para elas. A fila tornou-se maior. Pessoas conhecidas a carregar sacos e malas dos mais variados tamanhos e formas, o cansaço a fazer-se notar e o ar a ficar pesado com a ansiedade da chegada do último barco, como que num enorme receio de que pudessem não conseguir o transporte tão desejado. Encontrões e palavras soltas eram pronunciadas ao vento e Sanya sentia-se a sufocar. Os minutos a chegarem ao fim para os derradeiros mergulhos na água translúcida, as brincadeiras na areia fina, o descanso à sombra de um chapéu e ainda ter que esperar e inalar o suor desagradável, ver o resto de areia nos pés e ouvir sons incomodativos, bah, queria chegar a casa e depressa. Sanya reparou num jovem rapaz de cabelos compridos cor de banana que num mergulho definido desde o pontão, reapareceu erguendo um chinelo azul-escuro que tinha caído à ria – que corajoso – pensou, depois ouviu uma menina que aparentava ter uns quatro anos de idade, a puxar a saia da mãe a reclamar por comida e ainda uma gaivota que sobrevoou os cabelos revoltos do sol e do sal marinho de um velhote que a custo se arrastava na areia ainda molhada em direção à fila que não conhecia o fim aos seus olhos. Finalmente sentada na proa do grande barco cor de ferrugem a cortar as pequenas ondas na imensidão ternurenta da Ria Formosa, deixou-se invadir pelos bons momentos que viveu na ilha. Encostou a cabeça ao ferro cinzento e fechou os olhos.

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A inalação de uma boa quantidade de ranho de um puto sentado a seu lado despertou-a de sobressalto para o frio que já se sentia e a viagem ainda estava longe do cais de desembarque em Olhão. Tirou a toalha do saco azul enrolando-se em seguida e abriu o livro que a seguia. Uma senhora com o cabelo preso num carrapito em cima da cabeça alongada, fitou-a de cima a baixo à qual Sanya respondeu com um gesto mudo, fazendo a senhora desviar o olhar com um abano de cabeça. Peixes brilhantes saudavam com saltos fora de água, deliciando as crianças mais pequenas. A fauna afastava-se para logo se avistar um pássaro colorido. O entardecer era fabuloso, enchia o coração de alegria à medida que se escondia para lá dos prédios altos da cidade vizinha com o nome Faro. Os raios cor de fogo envergonhado encadeavam o olhar pintando de prateado na superfície da água tão rica em vida. Risos, choros, conversas convenientes, olhares deambulantes sobre os próprios ombros, os ponteiros dos relógios a passar lentamente, as peles bronzeadas e o estômago a pedir comida, era uma mistura de sentimentos e de vivências. Sanya acenou com a cabeça a um jovem que tinha aulas de clarinete na mesma escola de música que a amiga Constança e retomou os olhos nas frases ora expressivas, ora confusas quando a sua concentração se dispersava com um espirro ou ataque de tosse do senhor forte que estava sentado à sua frente. A leitura era um momento de distração, poder entrar no mundo de outra pessoa fascinava Sanya. Deixou-se invadir pela história do livro de capa vermelha onde ela foi protagonista num capítulo inteiro. Identificava-se com a personagem, embora invejasse a coragem que sabia que não possuía nem a determinação que a leitura descrevia. Retirou os olhos das linhas pretas quando se deu conta de que a viagem estava a chegar ao fim. Ao sentir a aproximação aos mercados típicos da localidade que a viu nascer, Sanya experienciou a sensação reconfortante de casa. Deitou um último olhar ao longo da ria até à ilha que tanto amava. Guardou a toalha e o livro e prontificou-se para sair do barco.

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CATARINA ARRAES | 18

ASAS DO DESTINO Lalo estava a regressar à base. Voava sem que nada o impedisse de o fazer. Era uma andorinha livre, nada mais importava. Assim ia ele, voando em bando por aquele mar fora, até encontrar terra algures onde o instinto o levasse. Nada, nem mesmo o vento ou as ondas gigantescas podiam fazerlhe sentir o medo que muitos outros inspiravam. Estava certo, mais que certo, que ia chegar ao seu destino. A única coisa que conseguia inspirar era esperança e, sobretudo, alegria. Já faltava pouco. Aquela linha fina de terra no horizonte era o lar que o viu nascer. Conseguia ouvir seu coração a palpitar muito mais depressa do que então se fazia sentir. O mar já não assustava ninguém, o vento de súbito acalmou e o sol parecia mais acolhedor. Depressa percorreu uma extensão de areia, com pequenas casas e pessoas a passearem muito tranquilamente, mais adiante, viam-se pessoas nos seus viveiros, a cavarem a sua sobrevivência com uma faca de amêijoa. Passaram a ria de águas esverdeadas e chegaram a uma cidade marisqueira. O bando ficou a sobrevoar a zona, exibindo um espectáculo de preto e branco no enorme azul do céu. Estavam em casa. A felicidade de Lalo era de tal forma que nem olhava para onde voava, só queria expressar-se! Voar todos os cantos, todas as praças, todas as ruas, todos os becos, todos os sinais de stop… espera… o quê? Pufff! Bateu num sinal de stop que não estava ali o ano passado e caiu no chão atordoado. Sem saber bem o que tinha acontecido, continuou deitado no chão a tentar recuperar. Olhou para os lados, não há perigos aparentes. Parecia que ninguém tinha notado, por isso deixou-se ficar na berma do passeio. Foi preciso um bom bocado para compor-se. Viu as outras andorinhas no céu, estava tão longe que estas nem viram o acidente. Decidiu que estava

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CATARINA ARRAES | 18

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pronto para retomar voo. Abriu as asas, deu um impulso e… caiu de cara no chão! Só depois deste fracasso é que notou que tinha a asa esquerda dormente, magoada, partida. Tentou voar mais vezes do que a própria dor permitia. Chegou a desistir, estafado, com medo que as suas amigas não o vissem. As pessoas passavam ao lado, era invisível. De repente… pareceu-lhe ouvir… um miado! Um miado de gato no seu modo de caça! Olhou, olhou… Não conseguia ver esse mestre do disfarce, mas sabia que o gato estava a vê-lo, bastante bem até. Por isso, começou a andar no sentido oposto, mas o gato também começou a andar. Decidiu andar mais depressa, até que tropeçou na própria asa partida e voltou a cair. O barulho aproximava-se cada vez mais, ainda que não visse a sua forma sabia que ele andava por perto. Olhou, olhou… e sentiu uma respiração atrás de si. Paralisado de medo, não tinha como fugir. Num movimento rápido o gato abocanhou-o pelas costas e caminhou para não sei onde. Lalo não sentia nada, a não ser que este seria o fim. Estava na boca de um gato, pronto a ser feito prisioneiro e refeição deste ninja. Olhou para o céu, viu as suas amigas a voarem, livres. Pediu uma oportunidade de sobreviver, pediu ao céu azul que pudesse voar uma última vez. Assim que fez o seu último desejo, reparou numa menina a brincar sozinha com uma bola, estava mesmo no final da rua onde o gato ia passar. Ela viu o gato e dirigiuse a ele: - Bichano, bichano! Anda cá! Deixa-me dar-te umas festinhas! O gato, desconfiado, continuou. Mas a menina não parava de se aproximar, chegou bem próxima dele. O gato parou por um segundo, sentiu-se encurralado e começou a correr, deixando cair Lalo quase aos pés da menina. A menina era ainda muito pequena, mas para Lalo parecia uma grande ameaça, num vestido de folhos amarelos. Ela, surpresa por não ter visto o pássaro na boca do gatinho, pôs-se de joelhos e vê que ele precisa de ajuda: - Não te preocupes! Eu não sou um gato mau, eu quero ajudar o teu dóidói.

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CATARINA ARRAES | 18

Tira o seu chapéu de abas florido e, muito devagarinho, pega em Lalo. Apesar do toque suave da criança, Lalo não deixa de pensar que está a ser caçado, e que ao menos a sua dor acabará em breve. É colocado no chapéu e sente-se a ser levado, mas não tem forças para o impedir, pede apenas ao céu que o deixe voar uma última vez e desmaia na esperança. Ao acordar vê o céu e pensa que finalmente morreu. No entanto as dores ainda o acompanham, olha para o lado e vê uma tampa de garrafa com água e outra com uma mistura de sementes minúsculas. Afinal ainda está vivo, olha para o outro lado e o céu que via está por detrás duma janela de vidro fechada. Viu uma andorinha passar junto à janela e tentou comunicarlhe, mas não ouviu. Quem ouviu foi a criança que da cozinha foi a correr para o seu quarto à procura do passarinho: - Piu Piu! Estás bem! Ainda bem, fiz uma caixinha de papel e pus aguinha aqui – apontou para a tampa da água – e alpista ali. – Apontou para a outra tampa. Lalo, com medo não tirava os olhos do chão e quando finalmente teve coragem de olhar para a sua salvadora, reparou que não tinha cabelo como as outras crianças. Era uma linda menina de olhos verdes e um grande sorriso, mas cujo cabelo tinha sumido. - Olha Piu Piu. Tens de comer se não o dói-dói não cura! A mamã diz que não precisas de remédios, só precisas de dormir e comer muito. Olhando para aquele lindíssimo sorriso, Lalo não teve dúvidas que este ser só lhe queria bem. Aproximou-se aos poucos da tampa de alpista e comeu uma semente, até era boa. Agora sentia algo, fome e curiosidade. Os dias passavam e Lalo ia ganhando as forças para voltar a voar de novo. Mas tinha um dilema. Não queria partir. Não pelo conforto que o abrigo lhe proporcionava ou por não ter saudades do seu bando, mas por lealdade a uma nova amizade. Não conseguia deixar aquela menina. Ela falava-lhe todos os dias, sobre a escola, os pais, os brinquedos, mas nunca sobre amigos. Nenhum menino ia ser amigo de uma menina careca. Pensar nisso entristecia-a.

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CATARINA ARRAES | 18

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Lalo animava-a nessas alturas, saltava para a sua mão e deixava-a dar-lhe festas. Algumas festas não eram muito suaves mas ele não se importava, faze-la feliz era o que mais queria. Um dia a menina chegou-se ao pé de Lalo e muito séria disse-lhe: - Hoje vou ter de ir Piu Piu. A mamã diz que daqui a uma semana já estou cá! Mas não posso levar-te. Por isso deixo muita muita alpista e muita muita aguinha. A mamã vê a tua caixinha todos os dias. Porta-te bem Piu Piu! Deu-lhe festas, um beijo na cabeça e despediu-se. Sabia que ela estava doente, sabia que era importante ela ir embora. Todas as noites a mãe falava-lhe sobre isso, sobre como tudo ia correr bem, mas Lalo via os olhos lacrimosos dela antes de sair pela porta do quarto. Só não suportava que não o pudessem levar. Quem iria anima-la quando mais precisasse? Os dias pareciam uma eternidade. Lalo perguntava-se se ela voltaria para si. Já não comia, já não bebia. A mãe da menina obrigava-lhe a beber água para não desidratar, até abriu a janela para que apanhasse ar. Ele, nem vontade de voar tinha. O céu azul parecia agora cinzento, e a sua esperança era uma menina de vestido de folhos amarelos. Certo dia os pais receberam um telefonema, começaram a chorar e a vestir-se à pressa. Algo estava errado. Lalo viu o carro deles a sair e sabia que não podia ficar ali. Tinha de vê-la. Saltou da caixa, passou entre a janela e espreitou a grande altitude que ia defrontar. Num suspiro, deixou-se cair, abriu as asas e planou até conseguir encontrar o carro. Aí voou nos céus cinzentos, contra fortes ventos e chuva. O carro parou num edifício grande e branco, sentiu um aperto no coração. Sobrevoando nos céus, Lalo vê a menina num quarto. O céu já não estava cinzento, o vento de súbito acalmou e o sol apareceu bem acolhedor. Usando as suas últimas forças aterrou no colo da criança. Estava tão fraca que mal conseguia falar, sua pele pálida, seus olhos verdes perderam a luz, mas aquele lindo sorriso saudou-lhe enquanto sua mão o acariciava. Lalo conseguia ouvir seu coração a palpitar muito mais depressa do que então se fizera sentir. Estava em casa. A menina, sorrindo feliz, fez-lhe festas até os dois adormecerem… eternamente.

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PROSA

TIAGO CRAVO | 22

NOS CAMINHOS DE KAU! No caminho não me julgava capaz de continuar a lutar, senti-me fraco e sem esperanças num caminho novo. Sozinho… estou sozinho neste mar, onde as luzes se afastam e se perdem de vista. Estou a perder de vista todos os meus sonhos e ambições que sempre quis alcançar, e sem ter alguém que me levante a cabeça, fecho os olhos e desisto de viver. Milagrosamente cruzei-me com um alguém numa dessas ruas escuras e que ninguém passa, onde um nevoeiro estranho paira no ar num dia frio de Dezembro. Vestia preto e caminhava lentamente no calçadão abandonado da vazia velha cidade de Mau. O seu sobretudo escuro tapava-lhe todo o seu corpo até aos pés, e usava também um cachecol de cor vermelha que chamava a atenção. Os seus olhos pareciam tristes, e quase sem vida, caminhava com a cabeça para baixo avistando-se já uma corcunda que o tornava ainda mais misterioso. Olhei-o nos olhos, e nos seus olhos li uma mensagem que jamais me esqueci em algumas das mais difíceis descidas que tive de descer. Parei como por instinto e por alguns momentos fiquei a observar aquela figura que deu alguns passos e também parou. Passaram-se alguns minutos até à sua primeira palavra. Neste momento todo o meu corpo ficou gelado e foi como se me parasse o coração. Não espera aquela reação. Corajosamente e estranhamente perguntei-lhe o seu nome, e o silêncio do outro lado não me surpreendeu. Não insisti, e logo ouvi uma voz fraca e grossa. - O que interessa? Disse. Fiquei um pouco receoso com aquela resposta, mas decidi responder.

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TIAGO CRAVO | 22

PROSA

- Apenas curiosidade velho homem. Respondi. A vida não me corre bem, e já tão novo percebo a verdadeira e fria tristeza do que é estarmos sós em momentos difíceis. Assim que o vi, meus pensamentos mudaram um pouco. Fui injusto e inocente no que disse pois vejo que posso até não ser o único em situações idênticas. Acrescentei. - Como te chamas puto parvo? - Robert, respondi um pouco indignado. - Robert, todos erram, e ninguém pode mudar isso. Ouvimos o que está certo mas fazemos o que é errado. Erramos e erramos sem saber, e por muitos anos ficamos cegos e perdidos na escuridão. Como se a dormir, tornamo-nos escravos dos nossos sonhos, e vivemo-los como se da realidade se tratasse. Sonhamos uma vida diferente, idealizamos um futuro brilhante, e finalmente acordamos de onde nunca queríamos ter saído. É possível que não queiramos abrir de novo a porta, mas esta permanece sempre aberta, até à sua última vez. Saímos do escuro. Água fria cai dos telhados do Mundo sobre pedras que sonham em mudar o mundo. Água que traz novas ideias e visões. Pedras que ganham vida e de repente acreditam em si. Do ponto mais abaixo crescem, e no ponto mais alto sonham estar. Demorei alguns segundos até conseguir interiorizar todas as suas palavras. E involuntariamente comecei a admirar aquela pessoa que fez chegar até mim aquilo que queria ter ouvido dos meus amigos. E logo depois de terminar de falar, olhou-me nos olhos muito intensamente e disse: - Até cairmos lutamos, sem força gritamos e no chão percebemos que ninguém vence os nossos sonhos. Vive por eles e para eles. Queremos quando não temos! Virou as costas e disse uma única palavra enquanto se afastava lentamente e debaixo de todo aquele nevoeiro enquanto eu fiquei como se a sonhar e sentado na calçada a pensar… - Chamo-me Somniator.

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O BÉBE DROGADO Ainda hoje as pessoas dizem! Como é possível aquele velho ainda ser tão chalado? Pois é, mas o que eles não sabem é o que homenzinho já passou! Então vejam bem! Nasci em Novembro, naquele tempo já chovia muito nesse mês. Se hoje as senhoras gostam muito de desovar nas piscinas, a parteira que ajudou à minha aparição não gostou muito de fazer um parto com os pés dentro de água da chuva. Então com a pressa agarrou no enxerto pela cabeça e aí vai disto. E como não havia cabelos, agarrou-me pelas orelhas. RESULTADO? Hoje quando o vento sopra um pouco forte, ou fico em casa, ou arrisco de andar um pouca à roda no meio da avenida, tudo por causa da dimensão das minhas orelhas. Depois segundo dizem os historiadores, eu tinha a mania de cantar alto de noite e isso incomodava muita gente. Foi então que uma vizinha fez uma grande descoberta. Disse ela, olhe vizinha o meu irmão que mora no campo e tem sete filhos nunca teve problemas com os moços. Diz que

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dentro das cearas de trigo nascem umas papoilas grandes e roxas, que depois de piladas fazem uma massa que misturada com açúcar faz umas dormideiras, que dão aos moços e eles dormem a noite inteira. A partir desse dia acabaram-se os serões com fados e o pequeno rouxinol passou a dormir dez ou doze horas por noite, pedrado com uma espécie de ópio caseiro. E penso que isso já é uma boa razão para ser um velho chalado. O mais engraçado é que no beco Pacheco e arredores as noites passaram a ser silenciosas e os dias pacatos e as mães tinham tempo para se sentarem ao sol a catar piolhos e falar mal das vizinhas ausentes. No inverno a vida era complicada, por vezes as mercearias já não davam fiado. Mas as pessoas não eram tristes porque no verão não podiam estar juntas e no inverno tinham muito tempo livre para conversar e não era a pobreza que lhes ia tirar esse prazer de estarem juntas várias horas por dia e aliviar o sofrimento de uma vida miserável. Ah… mas as dormideiras não são o suficiente para chegar aos sessenta e ficar chalado? Pois não! Então perguntem aqueles que andam pedrados o que acontece quando não têm dormideiras! E só comem uma vez por dia. Porque era isso que acontecia comigo. Se o bebé dormia não se ia acordar para dar de mamar. Então e a guerra também não conta para agravar a loucura, e a fuga para o estrangeiro e as bebedeiras mal curadas, e os trambolhões que o homem dá na vida. E depois isto são contas do meu rosário! Isto é um desabafo e não um conto de fadas, porque isto que eu estou a escrever só vai ser lido pelos meus amigos mais próximos. Portanto até posso dizer um nome feio que ninguém tem nada a ver com isso. E eu também gosto de ser como sou e aqueles que não são como eu também gostam de ser como são portanto, tudo bem! Cada chimpanzé no seu pneu.

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O MOÇO POBRE E O MENINO RICO Já tenho sete anos, para outubro vou para a escola! Como é que se sobrevive até aos sete anos em 1951? Boa pergunta! Aos quatro anos aprendi a nadar, caso contrário não saía de casa no inverno porque a casa estava sempre inundada com as chuvas. Aos cinco aprendi a pescar. Aos seis o desenrascanço. Comecemos pelo curso de natação. Uma noite estava eu a sonhar com uma boa refeição (coisa que eu sabia que existia na casa dos patrões do meu pai porque por vezes ele trazia as sobras, porque o cão já estava enjoado) e comecei a ouvir um barulho estranho como se fosse um relógio de parede a dar horas. Fiquei muito admirado pois isso só existia nas lojas para ricos, e na minha casa poucas vezes sobrava comida, mas muitas vezes sobrava fome. Foi então que com muito medo e pouca coragem decidi descer da cama para ver se realmente existia um relógio em casa, nunca se sabe pensei eu, se calhar o meu pai ganhou algum dinheiro com o 95. A cama de ferro era muito alta e tive que saltar para o chão. Mas que grande mergulho até parecia o Comandante Cousteau no filme o Mundo do Silêncio. Eu não ouvia nada mas via tubarões por todo lado e comecei a gritar agarrado aos pés da cama. MILAGRE! Na porta que dava para o corredor apareceu a Nossa Senhora da ASSUNÇÃO (era o nome da minha mãe) com um candeeiro a petróleo na mão. Que fazes aí meu menino? Ó mãe eu ouvi um barulho e pensava que era um relógio a dar horas. Ó filho então tu não vês que é o Penico a bater nos ferros da cama? A partir desse dia resolvi aprender a nadar. Aos poucos comecei a arriscar a vida. Ia dos pés da cama à cabeceira, depois arrisquei ir até ao corredor e por fim já mergulhava de cima da mesa-de-cabeceira.

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Quanto à pesca naquele tempo havia várias maneiras de pescar. Uma delas consistia em colocar uma canastra no tubo de descarga dos pios das fábricas de indústria de conserva de peixe. A água saia directamente para uma vala e dessa corria para o mar, esta maneira era muito rentável, pois ninguém na fábrica queria molhar os bigodes para ir buscar o peixe que ficava no fundo do pio junto com as escamas. Outra maneira era muito mais sofisticada. Tinha que haver muito equilíbrio, muita astúcia e ser muito rápido, tanto para pescar como para fugir. Arranjava-se uma cana grande, (pescar à cana) na ponta da cana com arame fazia uma engenhoca parecida com uma colher, depois subia-se a uma grade que servia de porta e deixava passar o ar para secar o peixe cozido antes de ser enlatado e que se encontrava numas grelhas a dois metros da porta. O pescador subia até ao ponto mais alto da grade e em equilíbrio metia-se a colher por baixo das sardinhas. Mas por vezes a coisa corria mal e caía lá para dentro. Então era a festa na Aldeia. Os homens queriam apanhar-me gritavam, apanhem esse márau, cerquem esse garnua. As mulheres gritavam, deixem o moço coitado só queria comer qualquer coisa, não vêem que tem cara de fome. Mas acabava sempre por escapar, porque as mulheres não deixavam, nem os homens me queriam apanhar porque eles sabiam o que era ser pobre naquele tempo, eles só queriam era divertir-se um pouco. Entre os seis e os sete, já sabia tudo o que dizia respeito ao desenrascanço. Já era capataz de um grupo de cinco garnuas. Controlávamos alguns hectares de figueiras, alguns pomares de laranjeiras e estávamos em negociações com a família dos GAZUAS, que nessa altura comandavam o grupo do Parlamento, como eles eram catorze irmãos a coisa estava muito mal encaminhada, eles queriam a colheita da primavera e deixavam-nos a colheita do inverno. Ora no inverno as peras da horta do Galinho estavam verdes. Então arranjamos um mediador experiente que morava na aldeia DO BATE CU, e que com seis anos já tinha passado cinco nas casas de correcção, chamava-se CORTÁ PIXA. E conseguimos um acorde de máraus.

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Nós ficávamos com a exploração da horta do Galinho, em contra partida tínhamos que resgatar um Charuto (barco) que já tinha sido deles e estava na posse do grupo da SAFOL e que tinha a protecção do grupo dos CHAFURDAS das Cabanitas Só com cinco operacionais a missão era quase impossível, mas como a inteligência por vezes ganha à força nós tínhamos a vantagem de ter um chefe muito inteligente (que era eu) que resolveu a situação com um golpe de mestre. Eu sabia como as coisas se passavam em todos os grupos pois todos agiam da mesma maneira. De manhã ocupávamos as rampas entre o mercado do peixe e o T, porque era ai que os barcos descarregavam o peixe. Na tarde íamos para o campo tratar das nossas explorações. Sendo assim as tropas inimigas de manhã não estavam no quartel. Mas havia outro problema, como atravessar a vila sem ser visto. Mais uma vez o grande chefe resolveu. Como? Perguntavam os subordinados. Simples, disse o chefe. Vamos pelo caminho-de-ferro até à estação, saímos pelo grande portão, vamos pela rua Majuca que já pertence ao nosso sector, continuamos pela rua do Caganas até à fábrica do Ramires e estamos no Parlamento. E foi assim que cumprimos a nossa parte do contrato. Nós os moços pobres éramos livres, corríamos a nossa terra todos os dias, brincávamos onde queríamos e quando queríamos, fazíamos viagens de exploração para futuros investimentos, arriscávamos a vida com brincadeiras perigosas, até os adultos dependiam muito de nós para os seus contrabandos. Fazíamos mandados, recados, entregávamos cartas de amor trocadas entre namorados, sabíamos a que horas o cornudo saía, e entrava o amante, recebíamos fortunas por esses serviços etc. Éramos os reis da nossa terra e mesmo sem sapatos éramos muito felizes. Naquele tempo tudo servia para arranjar qualquer coisa para que o estômago não parasse com falta de combustível. Então nós arranjávamos soluções. Uma delas consistia em chegar à costa para apanhar os restos de madeira e árvores secas que davam à costa nos dias de temporal.

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Para que isso fosse possível tínhamos que arranjar um barco para chegar à ilha, depois atravessa-la a pé. Como as finanças estavam em baixo por causa dos impostos, tínhamos que navegar com as naus (emprestadas) que estivessem mais à mão. Por vezes a aventura acabava antes de começar porque o dono do barco estava por perto e tínhamos que adiar a viagem. Mas o que é que fazíamos com a lenha? Ora o que devíamos fazer? Trocávamos por bolos. Ainda não perceberam? Então eu conto! Havia naquele tempo junto ao Senhor dos Aflitos, uma senhora que vendia umas fatias de bolo muito saborosas e grandes e precisava de lenha para aquecer o forno. E como ela tinha falta de lenha e nós tínhamos lenha e fome a mais fazíamos a troca. Bolos por lenha! Agora que já perceberam vamos esquecer um pouco a fome enquanto dura a barrigada de bolos. Uma coisa muito engraçada que existia naqueles anos eram as corridas de carroças e da qual os moços tiravam algum proveito. A Lota tinha mudado de sítio, deixou de ser no T e passou a ser na doca nova, mesmo em frente à fábrica do Ramires. Mas os carros que transportavam o peixe estavam estacionados um pouco longe do local de venda e portanto todos queriam saber em primeira mão qual a fabrica que tinha dado o CHUI «comprado o peixe» porque se fossem os primeiros a chegar á fábrica para carregar os cabazes podiam ter a chance de dar mais uma carrada. E era aí que o moço entrava, cada carreiro contratava um, e essa gazela ligeira corria do barco ao carro para dizer ao ouvido de quem o contratou qual era a fábrica que tinha comprado o peixe. E, aí, começava a grande corrida de carroças pelas ruas de Olhão. E era uma alegria ver os chicotes no ar os homens a gritar para que as bestas corressem mais depressa. No fim de um dia de trabalho ou éramos pagos com peixe roubado, ou esquecido porque os carreiros quando recebiam iam logo para a taberna e quando saíam de lá não estavam em condições de honrar os compromissos e pediam ao cavalo que os levasse a casa.

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Mas esse estava condenado porque durante algum tempo iria algumas vezes chegar em primeiro lugar a fábricas que não tinham comprado peixe. Nós éramos muito unidos e esta malandrice na maior parte das vezes resultava. Quanto aos meninos ricos, coitados, metiam pena. Ali estavam eles por detrás da janela do primeiro andar a riscar o vidro com o nariz de um lado para o outro, como nos jogos de ténis em que a assistência segue os movimentos da bola. Por vezes conseguiam fugir à vigilância da criada e serem felizes durante cinco minutos dando pontapés numa bola de trapos. Mas de repente aparecia a criada aos gritos «Menino João, venha para casa, não vê que pode ficar com piolhos ou apanhar alguma doença a brincar com esses moços sujos» Mas logo a seguir apanhava com o coro dos Maraus «Grande cabra, a puta da tó mãe e os cornos do té pai é que têm piolhos. Se calhar nasceste no chalé do João Luçe, mó». Os meninos ricos eram muito simpáticos com os moços pobres. Mas porque seria que morriam tão novos? Coitadinhos por volta dos dez anos quando sabiam qual a diferença entre ricos e pobres desapareciam, evaporavam-se para sempre. Só reencontrei um no Porto, cinquenta anos depois, e dei-lhe uma moedinha porque era um Sem Abrigo. Então e a escola e os sapatos novos? Áh ! Pois é! Um dia a minha mãe disse-me. Lava os pés porque vamos ao sapateiro tirar as medidas para os sapatos que hás-de levar para a escola. E lá fomos. O Mestre apareceu com um lápis atrás da orelha e um papel branco na mão. Começou por desenhar o calcanhar e quando chegou aos dedos, virou-se para a minha mãe e disse o melhor é cortar as unhas ao moço ou teremos que fazer os sapatos com três números acima do trinta e sete. De volta para casa perguntei à minha mãe se não podia entrar na escola logo como professor. E a minha mãe com toda a sua paciência lá me foi explicando, que primeiro tinha que aprender a ler e a escrever, e só depois

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é que poderia ser professor. O que ela não sabia é que eu já sabia escrever, porque fui eu que escrevi XOXA na parede da fábrica. Passados alguns dias voltei a casa do sapateiro para ver como ficavam nos pés. Mas o que é isto? Eu não vou poder andar com duas panelas nos pés. Mãe, eu não posso jogar à bola com isto. Pois é, meu menino! Estes sapatinhos são para levares para a escola, e quando chegares a casa descalças as panelas como tu dizes, e vais jogar à bola descalço. Disse a minha mãe. Até aí estava tudo bem. Mas os sapatos não tinham nada a ver com aqueles que eu tinha visto na montra da Ideal, esses eram pretos e brilhavam muito, estes eram cor de barro e sem brilho. Bem mas o pior ainda estava para vir. No dia de ir para a escola é que foram elas. Já viram um pato andar num lago gelado? Assim parecia eu. Os sapatos eram cardados e besuntados com sebo de Holanda quando levantava um pé, o outro escorregava logo para trás e tive de ir de reboque da minha mãe sem descolar os pés do chão, até à escola. Quando a chata da professora disse que a aula tinha acabado e podíamos ir para casa fiquei muito contente, e perguntei à professora se tinham falta de mim no outro dia, a senhora respondeu que tinha que vir todos os dias até à quarta classe. Não sabia o que isso queria dizer mas não devia ser nada de bom. A verdade é que a quarta classe só apareceu catorze anos depois, numa missão um pouco mais perigosa do que aquelas que eu inventava quando tinha sete anos. No caminho de casa a minha mãe perguntou. Então, brincaste muito, e fizeste muitos amigos? Sim mãe, fiz muitos amigos! Só o que ela não sabia era que no primeiro dia tinha feito mais inimigos que amigos. Passei o recreio sentado no paial e aqueles palermas mais velhos pensavam que eu era algum anjinho e sentaram-se a meu lado a gozar com as minhas pantufas. Só que eles não sabiam que a Cavalinha ficava na minha zona de acção e o pobre do Manecas ficou com o olho roxo e no outro dia fui eu o primeiro a estrear a régua.

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Não quero falar mais da escola. Tá Bem? Não gosto da escola, pronto acabou-se. E é por isso que não sei, se, é com esse ou com c de cedilha. Também não me importa já sou velho e já não quero aprender mais nada, quero é estar vivo, porque na vida aprendi muito mais do que aprenderia na escola e vejo por aí muitos doutores que até metem dó. Será que as pessoas não podem ser felizes por não saberem quem foi LUÍS VAZ DE CAMÕES? EÇA DE QUEIROS, ou quem foi o primeiro homem a ir à Lua? Ah, a cultura! Já estão todos a pensar, o Gajo é burro, então está a escrever e não sabe o que é cultura. Muito bem. Mas eu não sei o que é a cultura, pois eu não sou culto, nem sei o que isso é. Será cultura os governantes cá do nosso condado darem o nome de uma rua a UM ILUSTRE INDUSTRIAL DA NOSSA TERRA? O que é ser ilustre industrial? O que faziam os ilustres industriais da nossa terra quando aqueles que os enriqueceram morriam de fome no inverno e com água até ao pescoço? Isso, eu sei! Hibernavam nos seus palácios de vinte peças e no primeiro andar para a água não os incomodar. Voltemos aos moços senão algum ilustre ainda me manda prender. Hoje muitos dos moços desse tempo já não se lembram de quando andavam descalços, mas uma coisa que eu sei e que me deixa feliz é que muitos desses moços eram o sustento de muitas famílias no inverno. Durante o defeso em que os barcos não iam ao mar e as fábricas estavam paradas muitos moços por estarem habituados ao desenrascanço, arranjavam meios de trazer para casa alguma coisa que se comesse. Cem por cento dos auxiliares dos barcos de pesca das redes de emalhar eram moços que tinham entre dez e treze anos. Esses moços trabalhavam como homens, dormiam ao frio para guardar os bens dos patrões, mas eram tratados com carinho por aqueles homens rudes, que na sua maioria tinham vindo do norte e eram sensíveis á nossa situação Ainda me recordo do tio José Panas que todos os dias me perguntava como iam as coisas lá em casa e que depois acrescentava á minha parte dois ou três peixes dizendo:

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- Vai já para casa e não te demores no caminho. Esta era uma das maneiras de ajudar a família mas haviam muitas outras que seria longo enumerá-las. O que conta é a coragem desses esfomeados para que a vida fosse menos cruel e esquecer um pouco os ilustres que nos deixavam nesta situação. Nos anos cinquenta já havia muitos Galeões que tinham sido substituídos por traineiras com o mesmo nome, e em frente onde hoje fica o Jardim Pescador Olhanense, alguns deles foram acabar aí os seus dias. E como hoje todos esses barcos tinham um apoio em terra ao qual chamavam Armazém de redes porque era ai que se reparavam as redes. Na rua MAJUCA havia um desses armazéns e ficava perto da minha casa «Não sei porquê mas o barco tinha três nomes Cavalo madeira Chábi e Estrela do Sul» nas tardes em que havia pouco fazer os homens costumavam jogar ás cartas. Um dia cá o Xerife da rua Majuca viu a bicicleta do pai perto da porta do armazém e pensou. Calha mesmo bem, já tenho os meus assuntos todos tratados e como tenho algum tempo disponível vou fazer uma passeata porque estou a necessitar de aliviar o stress. Fui para o Terrafal respirar um pouco de ar puro e quando me preparava para depositar o objecto no seu lugar, de origem fui travado por um ogre que se agarrou ao volante da minha viatura aos gritos de ladrão por tua causa vou chegar tarde ao trabalho. Fiz uma aterragem com o nariz no chão e quando olhei para cima vi que não era meu pai mas o meu vizinho da porta número dois, só tive tempo de me jogar para dentro da doca nova. Ui... Que susto! Nadei para o outro lado fui descansando nos cabos das âncoras dos pequenos barcos e quando cheguei ao outro lado sentei-me para descansar. Ainda não ia no segundo enchimento de pulmões e já estava suspenso no ar nas mãos do gigante do número dois do beco Pacheco. E foi a partir desse dia soube que DEUS está em todo o lado, porque o nome do meu vizinho era JOÃO DE DEUS. Não vou contar o que se passou depois porque não sou de queixinhas. Mas a maneira que fui tratado não se faz a um chefe de grupo, a um futuro antigo combatente a um chefe de família, alguns dias por ano. O que sei é que durante algum tempo perdi o gosto pelas bicicletas.

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Um dia estava eu muito pensativo sentado numa pedra junto a um tanque onde as Corteireiras lavavam a roupa e onde o grupo fazia as suas assembleias. Procurava uma solução para resolver o problema do almoço… quando vi chegar o meu amigo Elidiu, filho de uma corteirera. Então pá, sozinho a esta hora? É verdade! Estamos perto do Natal e isto está a ficar mau não sei, onde ir comer uma bucha, porque na semana passada, esteve cá o meu mano que está na marinha e os meus pais fizeram um esforço para lhe agradar e esta semana estamos com dificuldades (gostava de salientar que os dias em que o meu irmão estava em casa para mim eram os melhores, porque ele era a pessoa que eu mais gostava depois da minha mãe) Queres ir almoçar comigo? Disse o Elidiu! Almoçar contigo, então os corteireros também almoçam? Diziam que as quarteireiras não comiam para levar para casa o dinheiro que tinham ganho durante o verão. Também diziam que essas senhoras tinham filhos sem ter maridos. O que era mentira pois nesse tempo era preciso fazer pela vida e os maridos não podiam abandonar a pesca para acompanharem as esposas! Então o meu amigo disse-me. Como é possível que tu estejas tão perto da manjedoura e não vejas a palha? Por detrás daquele portão está aquilo que tu procuras. Então subimos o muro, saltamos para o interior do quintal. Surpresa no centro do quintal, havia uma montanha de latas de conserva. Comecei logo por abrir as primeiras que estavam mais à mão. Mas por muito que me julgasse o mais esperto do grupo compreendi que não sabia tudo, pois aquilo era um lote de conservas opadas (impróprias para consumo) à espera de serem queimadas. Foi então que o Elidiu gritou essas não, temos que procurar onde os homens escondem as boas e no fim do dia as jogam para a horta do Carrasquinho, para depois as levarem para casa ou venderem. Não foi muito difícil descobrir onde estavam as boas, pois ali só havia um esconderijo possível, era debaixo de um monte de latas queimadas. E foi assim que saímos de lá com reservas para alguns dias. Caro que nesse dia como agradecimento fui eu que paguei o lanche. Lanchamos uma meia dúzia de peras, ainda pouco maduras, na horta do Galinho.

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Os moços pobres não gostavam das procissões. Aquilo era muito triste com aquela música chata e sempre igual, os pescadores carregavam com o andor e os ricos como eram mais espertos iam à sombra do toldo e ao lado do padre para se mostrarem, porque sendo amigos do padre eram amigos do SALAZAR. À frente ia outro esperto fazendo barulho com as matracas para as gaivotas não cagarem o toldo. Mas os meninos ricos iam lá! Todos pomposos com uma linda opa cor de camelo aborrecido e com as soquetes brancas dentro de uns sapatos brilhantes como aqueles que estavam na montra da Ideal. Logo a seguir ao andor iam as beatas ricas com uns véus muito compridos que tinham comprado em Ayamonte na semana Santa e no fim vinham as beatas pobres com um bocado de rede de traineira em cima da cabeça e como tinham mais pecados que as senhoras ricas vinham descalças e com uma vela de dois metros em cada mão. Então os moços nesses dias tiravam férias, refugiavam-se no Terrafal, para estar longe daquela tristeza. Porque os moços pobres são alegres. Senhores ILUSTRES DA NOSSA TERRA! Não haverá aí esquecida uma avenida, uma rua, um beco, uma travessa, ou mesmo um quintal, que ainda não tenha nome? É que os moços de Olhão e sobretudo os patas descalça, também deviam ser património de qualquer coisa. Esperem lá! Tive uma ideia… Para não incomodar a alma dos ilustres industriais e outros doutores que ninguém sabe o que eles fizeram, retiro o que disse de verdade sobre eles, e juro esquece-los para sempre. Sou um antigo combatente ferido em combate, e sei que a maior parte dos antigos combatentes nunca foram combatentes. Então vamos acabar com esse nome de rua, e substituir o mesmo pelo da RUA DOS MOÇOS DE OLHÃO. OBRIGADO!

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A VIDA VAI MELHORAR Por vezes dou por mim a pensar. Como é possível eu já ser velho? Eu que ainda há pouco era considerado o D. João do beco Pacheco! Há dias criei coragem e consegui olhar-me ao espelho. Primeiro não acreditei no que via e pensei que aquele espelho herdado pela avô do meu pai já devia ter perdido a garantia, mas pouco a pouco compreendi que quem já não tinha garantia era eu. E agora pergunto. O que é que eu fiz para que o tempo tenha passado tão depressa? E coisa interessante, lembro-me das coisas passadas há muito, muito tempo e não me lembro quando foi a última vez que fiz amor. Mas segundo dizem, todos os velhos são assim. Por vezes esquecem-se quando fizeram amor, outros esquecem-se de o fazer. Se calhar foi ontem? Já não me recordo. Mas, vejam lá. Como a memória dos velhos é complexa e até dizem que quando se chega a velho volta-se a ser criança. Pois no meu caso a coisa foi mais longe e ainda me lembro da minha primeira viagem em alta velocidade. Foi numa corrida de espermatozóides, o meu foi sempre à frente, era o mais rápido. Eram-mos 47, vinte e três filas de dois, mas a fila vinte e um tinha três em vez de dois. Vá lá saber porquê? Eu ia na fila vinte, e como éramos todos do mesmo ano, tínhamos todos o mesmo nome, mas números diferentes como na tropa. Soldado vinte e três … PRESENTE. Soldado vinte e um …PRESENTE. Ali era. Cromo some vinte e três … PRESENTE. Cromo some vinte e dois PRESENTE. Cromo some vinte e um? Cromo some vinte e um? Sim já ouvi! Presente. O vinte e um era muito engraçado estava sempre contente e ria muito, os outros chamavam-lhe o trissémio risotas.

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Às tantas o tempo começou a aquecer muito, e todos queriam estar perto da única saída, ultrapassei o vinte e um e o vinte e dois sem dificuldade mas o vinte e três nem a ferros queria sair da frente, foi à força que o dominei. Eu sempre fui o mais forte. E assim fui o primeiro a chegar. Mas já estou arrependido. Se soubesse o que me esperava tinha ficado no meu lugar. Não tinha nada de meter o nariz onde não era chamado. Logo que desci da nave fui logo projectado em grande velocidade para um lugar muito húmido e escuro. Perdi logo os sentidos, e não sei quanto tempo passei nesse lugar. Só sei que acordei num lindo oceano cor de rosa e ali passei muito tempo. Passados talvez uns trinta dias ouvi uma voz muito bonita dizer. OLHA MANUEL, nada! Depois ouvi uma voz grossa dizer. Deves estar enganada, tu nunca soubeste contar muito bem. Passado algum tempo a voz grossa disse. Então, já há novidades? Não, respondeu a voz bonita. Mas não te preocupes, homem… a vida vai melhorar. E um bebé é a coisa mais bonita que existe e vai ser parecido contigo. BEBÉ…Mas o que será isso? Eu nunca fui bebé. Moço sim! O moço esta noite não me deixou dormir. O moço já veio da escola. Pior ainda, rasta parta do moço já me roubou outra vez a bicicleta. Enfim voltemos ao tempo do aquário! Mas para mim a vida não melhorou. Pelo contrário. começaram as provocações e os maus tratos. Um dia andava eu a navegar em águas pouco profundas «e nunca dantes navegadas, eu fui o primeiro» olhei para baixo e vi uma greta por onde entrava um pouco de claridade como estava calor aproximei-me para refrescar um pouco, nem tive tempo de respirar apanhei logo um valente soco. Malvado, assassino os cornos do teu pai, gritei eu. O que me valeu é que o agressor tinha o braço muito curto. Passado algum tempo a voz grossa perguntou. Então já temos novidades? Não! Mas não fiques chateado, porque o tio Amílcar diz que leu no Borda D’água que este vai ser um ano de muita sardinha e que a vida vai melhorar. Temos que acabar com isto disse o lobo mau. E começou a bater no telhado do meu aquário.

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Que grande tempestade dei alguns trambolhões mas consegui escapar ao Tsunami vaginal. Logo a seguir o monstro disse, isto não tem pés nem cabeça! Aí compreendi que o meu nascimento estava em perigo. Malvado, tu logo vez quem é que não tem pés nem cabeça, a vingança vai ser terrível. Mas a voz bonita estava do meu lado e disse. A culpa é tua, porque tu não tens controlo e depois acontecem estas coisas, a cabeça não serve só para pôr o chapéu. A vingança chegou pouco depois. UM DIA ANDAVA EU A BRINCAR COM O SINTO DE SEGURANÇA, e ouvi a voz grossa dizer, queres ir brincar um pouco. E a festa começou. Às tantas a janela abriu-se e o da voz grossa vem espreitar, levou logo um grande pontapé. Ai… Ai, dizia a voz, já tenho o dia estragado. É bem feita, deus castigou-te pelo que disseste. Eu ria contente pela vingança e dizia não foi Deus, foi um anjinho. Mas eu não tinha voz activa. E ninguém me quis ouvir. Como eu nesse tempo já era muito inteligente, nem o bruxedo do Penalty, nem as mezinhas da velha Cabreira conseguiram acabar comigo. Ainda me lembro o dia em que o meu aquário foi invadido por uma água roxa que cheirava a arruda, vinho, alhos malagueta e outras merdas, que a velha tinha preparado na pia do burro. Só tive tempo de me refugiar debaixo de uma palmeira pulmonar onde o oxigénio abundava. Com o tempo as coisas começaram a melhorar e comecei a ouvir conversas mais simpáticas a meu respeito. Até que um dia com mágoa minha descobri que já tinham escolhido o nome que levaria para a cova, se fosse menino chamar-me-ia Mário, se fosse menina Maria. Bom, bom. A conversa já não me agradava nada. Querem lá ver que estes atrasados mentais vão mesmo querer que eu me chame Mário, comecei logo a gritar que não quero esse nome. Porque já há cá na terra muitos maricas com esse nome. Mas ainda tinham que consultar o bruxo para saberem a cor do enxoval que teriam que comprar. A partir de uma certa altura comecei a reparar que o aquário estava cada vez mais pequeno e eu estava a ficar sem espaço para brincar. Até que um dia fiquei de cabeça para baixo e já não consegui sair daquela posição.

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Talvez fosse por isso que a memória tenha sofrido um apagão. E quando se fez luz estava eu em cima da cama todo vestido cor-de-rosa com sapatinhos e touca da mesma cor. O bruxo enganou-a, e a minha mãe pensou que ia ter uma menina. Como não havia muito dinheiro pensou. Ficas mesmo assim e mais tarde logo te compro um fato-macaco azul, mas de boa ganga. E lá ficava eu o dia inteiro de pernas para o ar aborrecido e sem nada para fazer. Mas ao fim da tarde era uma alegria! O quarto enchia-se de senhoras feias que cheiravam a peixe e algumas até tinham bigode, e todas diziam a mesma coisa. Mas que linda menina! E come se chama ela? Perguntavam as fingidas. Não é menina, é menino e chama-se Mário! Olá Marinho, diziam as mal cheirosas. Marinho e roupa cor-de-rosa, as coisas começavam a ficar bem encaminhadas para que viesse mais tarde a pegar de empurrão. A minha sorte é que o meu segundo nome era MORENO. As matrafonas acharam graça e começaram a chamar-me CANTINFLAS. E foi assim que escapei ao destino que me estava destinado. Porque os nomes têm muita influência sobre o futuro das pessoas. Reparem, o rei só é rei quando lhe chamam rei porque antes era príncipe, o chato só é chato quando chateia, antes ninguém lhe chamava assim. BERÇO? O que é isso? Querias não era! A partir desse dia tive direito a estacionamento grátis e privado no chão, em cima de uma manta e com vista para o penico. Passado algum tempo ouvi a voz, que antigamente era muito grossa, dizer com um tom em ré menor: - Já faz muito tempo que o bebé nasceu penso que já podíamos brincar um pouco! - E foi então que a voz fina passou a voz grossa dizendo. - Tu não estas bom da cabeça! Como é que vamos sustentar mais filhos se a coisa correr mal? Então a antiga voz grossa disse: - OH MULHER, ONTEM FALEI C0M O TIO AMILCAR E ELE DIZ QUE LEU NO BORDA DE ÁGUA QUE ESTE ANO ERA UM ANO DE MUITA SARDINHA, E QUE A VIDA VAI MELHORAR!

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PROSA

INOCÊNCIA DIAS | 38

BALBÚRDIA NO CASAMENTO O meu nome é Sara e hoje vou contar-vos uma das mais tragicamente divertidas histórias de amor. Tudo começou na semana passada. Era um dia solarengo de primavera e o dia que a minha irmã mais velha ia se casar. Ela tinha sido comprometida à nascença com o filho único de uma das mais influentes e ricas famílias do país, os Mendes-Montoya. Eu estava revoltada com a situação. Sabia que a minha irmã estava apaixonada por um militar que estava no estrangeiro e de quem não se tinha notícias há mais de duas semanas. Eu comprometi-me, há quase um ano, a comparecer numa convenção de fãs do mais famoso feiticeiro do mundo como anfitriã. Como não me dava tempo de mudar de roupa depois do casamento, compareci vestida como uma das alunas da escola do livro. Junto a mim, estava a minha melhor amiga, Clara, de câmara de vídeo na mão e com roupas iguais às minhas. Claro que fui o centro das atenções ao aparecer com uma indumentária de colegial.

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INOCÊNCIA DIAS | 38

PROSA

Só eu sabia o que a noiva estava a sentir. Forçada a casar com aquele snobe e amando alguém que não pode estar presente. No entanto, o casamento estava a correr como previsto. O jardim estava coberto de rosas brancas, o altar era muito simples, coberto de flores, e os únicos símbolos religiosos eram uma cruz enorme, uma estátua da Nossa Senhora que pertencia ao jardim, e a Bíblia que o senhor Padre tinha consigo. Eu só desejava colocar as mãos naquelas deliciosas tartes de natas, frutas e caramelo que tinham colocado nas mesas do copo de água, à minha direita. O bolo era do pior gosto que já vi, todo dourado e preto e cheio de moedas de chocolate. Mas o destino que eu queria dar àquelas sobremesas era outro... Avancei para junto dos noivos, com as alianças na mão, e rezei para me controlar. Os pais do noivo falavam entre si, criticando a minha roupa e ausência de jóias da parte da minha família. Confesso que estava mais preocupada com os roubos do que com a minha indumentária. Além disso, estamos num jardim a celebrar um casamento e quase não há convidados. Por fim, o padre pronunciou a famosa frase: "Quem estiver contra este matrimónio fale agora ou cale-se para sempre!" Confesso que ia gritar contra, mas fui interrompida por uma estranha mulher de fato: "Parem o casamento!" Gritou ela. "Quem é esta?" Balbuciou a mãe do noivo. "Mas aqui só entra gente mal vestida?" "O meu nome é Lúcia, chefe da 3ª divisão da brigada de combate contra a fraude fiscal." Respondeu a mulher, mostrando a identificação. O pai do noivo mostrou-se incomodado:

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PROSA

INOCÊNCIA DIAS | 38

"E quem é a senhora para impedir o matrimónio?" A mulher avançou a passos largos, por entre as duas famílias e os cinco convidados (sim, porque estavam ali apenas dezanove pessoas, incluindo o padre e a mulher que tinha acabado de aparecer). "Com o devido respeito, o noivo é acusado de desviar dinheiro das empresas Montoya para jogar na Bolsa. Neste momento, a vossa família entrou em processo de falência." A minha mãe ficou furiosa e foi a correr para a mesa do copo de água a gritar: "Vocês enganaram-nos!" A Clara colocou-se junto ao carro, com a minha vassoura mágica importada de Inglaterra. A minha primeira reação foi pegar na mão da minha irmã e correr até ao carro. Foi mesmo a tempo. Quando viu que a minha mãe foi buscar uma tarte no meio de resmungos e pragas, a minha amiga continuou a filmar, entusiasmada, gritando: "Isto vai ser melhor do que a convenção!" "Plof!" Lá foi a tarte cor-de-rosa na cara do noivo. A agente colocou-se entre eles: "Acalmem-se senhores, deixem-me resolver isto por meios legais e pacíficos." "Ora, a família Mendes-Montoya é uma das mais prestigiadas do mundo!" Exclamou a mãe do noivo com aquela típica vozinha irritante e dirigindo-se também para a mesa dos comes e bebes, que não estava a mais do que três metros dali. "Ninguém fala mal da família e sai impune!" Tentou atingir na agente com uma tarte, mas a mulher, com aquele treino típico de uma polícia, desviou-se. A tarte, essa, atingiu na face da Nossa Senhora.

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INOCÊNCIA DIAS | 38

PROSA

"Santa Maria!" Gritou o padre, levando as mãos ao céu. "Blasfémia!" O padre, conhecido na terra como sendo pacífico e ordeiro, juntou-se à guerra de natas, doce e chantilly, que só não demorou mais porque os doces acabaram. "Eu não acredito que ficámos sem o nosso dinheiro e o deles." Queixou-se o pai do noivo. "Então era isso!" Gritou a minha mãe. "Como somos a família mais rica do país, vocês queriam a nossa fortuna." "Calma, vamos acalmar-nos e pensar em tomar um banho. Eu não vim aqui para prender ninguém, vim apenas levar o noivo para a esquadra." Interrompeu a agente. Todos se acalmaram e tentaram entrar em acordo. Nisto, aparece um jovem fardado e bem-parecido, que ao ver a minha irmã, exclamou: "Tu estás mesmo viva!" Algo iluminou o rosto da minha irmã: "Miguel? Mas tu não estavas..." Ele abraçou-a com prazer. A minha amiga soltou uma exclamação de inveja: "Esse é o teu namorado? Onde te alistaste? Eu quero ir lá conhecer os teus colegas!" "Sim, é o meu namorado desaparecido." Respondeu a minha irmã, sorrindo. "O Ricardo disse-me que ela tinha morrido... Por isso não te escrevi mais!" Explicou ele, atrapalhado.

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PROSA

INOCÊNCIA DIAS | 38

"Ah ele disse isso?" Foi logo a minha reação. Dirigi-me à minha amiga e tirei-lhe das mãos o último objeto que tencionava usar naquele sítio. "Sara, essa é a Nimbus 2000 que importaste de Inglaterra e que te custou uma fortuna!" Ripostou a Clara, ainda de câmara de vídeo na mão. "Não importa!" Respondi "Tenho outra em casa. Que se lixe a vassoura e a convenção! A felicidade da minha irmã é mais importante!" "Isso é que é falar!" Gritou a minha amiga, eufórica. Eu dirigi-me até ao noivo, e disse-lhe aquilo que ele queria e não queria ouvir. Foi tantas as coisas que lhe disse na cara que só me lembro de me ter voltado para a mãe dele e dizer-lhe "Não é nada contra si e contra a sua família, mas o seu filho merece é ser deserdado. O que ele fez não tem perdão!" Depois armei-me com a vassoura e fui a correr atrás dele, tentando atingi-lo com ela. Ele estava tão assustado que se escondeu na esquadra mais próxima atrás dos polícias que estavam à porta. Ele gritava: "Prendam essa loira! Ela está louca". O dia terminou na esquadra e tive de cancelar a apresentação. Não sou de fazer escândalo, mas confesso que me soube muito bem ter corrido atrás daquele patife os cem metros que distanciava o local da boda da esquadra. Bem, eu vou agora dizer como tudo acabou. O filho dos Mendes-Montoya foi preso por desvio de dinheiro e por danos morais. A família deserdou-o e fez as pazes com a minha. O dinheiro da indemnização pelos danos causados pelo filho irá servir para tentar salvar as fábricas e iniciar uma nova vida.

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INOCÊNCIA DIAS | 38

PROSA

A senhora Mendes-Montoya está grávida de gémeos e sente-se feliz. A minha mãe visita-lhe frequentemente. Os meus pais vão financiar o livro e as viagens que ela irá fazer para desaconselhar os casamentos por conveniência. Confesso que as duas amigas estão arrependidas. A partir de agora, ninguém irá tentar mandar na felicidade dos filhos. A minha irmã marcou a data do seu casamento com o apoio de todos. Agora está prestes a dar o passo mais importante da sua vida. Quanto a mim? Bem… A minha apresentação na convenção foi um sucesso, se bem com um dia de atraso. O vídeo, intitulado “Balbúrdia no casamento”, foi visto por um realizador famoso que me quer como guionista e protagonista da sua versão cinematográfica. Claro que vai ter a famosa mensagem: “Esta comédia romântica é baseada num caso verídico. A identidade dos envolvidos foi alterada para os proteger.” Se tudo correr bem, talvez consiga fazer carreira em Hollywood e nunca mais tenha que representar em convenções. O bolo horrível do casamento? Esse saiu intacto da confusão. Foi dado a uma instituição de caridade. Sabia melhor do que aparentava.

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PROSA

JULIETA LIMA | 63

CARTA A UM HOMEM DO MAR Quantas vezes vi eu a noite partir-se em estilhaços e a luz apagar-se na sombra das tuas idas. Era o veleiro que te arrastava de mim em correntes que nunca me pertenceram na magia do mar. Foi sempre o mar que te afastou, o mar que te pintou de azul os olhos sempre ausentes, o mesmo mar que te traz até ao poema e do poema me leva contigo em vagas vagas ondas carneiras sobre areais que nunca vi. Por mais que me rebele e queira correr-te da minha saudade, tu vives na linfa dos meus sonhos que de mim não te leva porque, na demência dos poetas, há ilhas onde os aventureiros decidem ficar p’ra sempre sem a hipocrisia de Penélopes.

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JULIETA LIMA | 63

PROSA

Tão louro o teu cabelo de sóis tropicais, cortada a tua pele de sal e vento e tu tão longe. Soube sempre que dentro dos meus abraços era a linha do horizonte que imaginavas no alto do grande mastro. Quantas vezes te vi partir carregado de silêncio, quantos sóis poentes não vivi contigo, quanta lágrima nunca soubeste, quanto ciúme não viste, quanta mágoa a envelhecer em versos viciados, insuportáveis, a querer-te sempre mais. Outro Ulisses e outro na mesma maré de um querer impossível velas novas, novo o veleiro Voador computadores a bordo satélites sondas e ao sabor das velhas ondas escrevias-me cartas nem sei de onde sem uma saudade ou um beijo. Só o mar e os teus braços ao leme. A paz de que falavas era a que sorvias na taça da tua solidão: cicuta minha vertida dessa comunhão com o abismo. Foram, vieram portos e mais portos. Tudo tão longe, um beijo ou outro e os afagos breves das tuas mãos como quem adormece uma criança à pressa p’ra sair devagar. Tanto te amei calada, tanto te quis. Por fim já nem as odiava: Calypsos, sereias ou nereidas… desde que voltasses… Nausicas de sebo. Que rebentassem sobre heróis em pedaços, deusas? Desde que voltasses… Rainhas, princesas: cabras inteiras ou despedaçadas … desde que voltasses na Primavera e eu te visse. Hoje, ao descobrir-te numa foto, chorei. Chorei a minha morte na esteira de um veleiro azul, gritei aos temporais aos nevoeiros, auroras boreais, ventos, brisas, tufões. Ninguém me ouviu, e tu não soubeste nunca do meu amor maior que as regatas em que foste o primeiro. Choro. É meu.

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TEXTO DRAMÁTICO



TEXTO DRAMÁTICO

MARIO MORENO | 70

A TABERNA DO BALTAZAR Uma taberna à antiga portuguesa. Um balcão, três mesas uma das quais ocupada por dois jogadores de dominó. Entra em cena um padre de fato preto, camisa preta só com uma parte do colarinho branco, sentase e pede uma água e um café. Pouco depois entra também um corcunda vestido de preto a correr de um lado para outro e esconde-se por de traz do balcão. Entra o guarda-florestal. Traz uma espingarda na mão.

Guarda: Alguém viu, por aqui, o Gentil? Padre: Não, já há muito que não o vejo! Aconteceu alguma coisa? Guarda: Tem acontecido muita coisa ultimamente nesta aldeia, até as pobres lebres andam sem saber onde esconder as orelhas com medo do corcunda. Mas um dia vou trincá-lo e depois – PUUUUUM - Faz um gesto com a espingarda. Era uma vez um marreco. O Guarda sai de cena. Gentil: O Gentil, que estava escondido, sai de trás do balcão, em pânico e corre para junto do padre. Diz a Senhor Padre, quero confessar-me. Quero fazer o meu testamento. Quero que me dê a extrema-unção. Quero que se ocupe da minha irmã e do Ulisses.

gaguejar

Padre: Tem calma homem! Até parece que o mundo vai acabar! Gentil: Para mim já pouco falta! Jogador 1: Bate com uma pedra na mesa e diz alto. Fecho a cenas e faço dominó com o carrão! Grita para o taberneiro. Baltazar mais dois copos. Padre: O que queres que eu te faça? A extrema-unção só se dá quando o doente está quase a morrer. Gentil: E eu não estou quase a entrar em coma ali estendido, atravessado na soleira da porta, o senhor não viu a cara do malvado com a mão no gatilho? Padre: Quanto a confessar-te, isso só se faz na casa de Deus e não aqui numa taberna. Gentil: Então Deus não está em todo o lado? Padre: Não meu filho. Deus não está em todo lado, mas Deus vê tudo e sabe tudo.

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MARIO MORENO | 70

TEXTO DRAMÁTICO

Gentil: Vê tudo e sabe tudo! E não viu que não fui eu quem apanhou a lebre na armadilha. E assim morre um inocente! É sempre assim, quando o pobre corcunda está em apuros Deus está ausente. Já foi assim quando nasci. Deus não devia ter deixado nascer um pára-quedista com o pára-quedas escondido debaixo do casaco porque isso é batota. Padre: Isso não é verdade. A verdade é que Deus por vezes está cansado. No mundo cada vez há mais gente, e como tal tem que haver mais anjos para ajudarem nalgumas tarefas. E por vezes descuida-se e encomenda demais. Quando assim é tem que parar o sistema e esses anjos ficam com as asas escondidas. E esse foi concerteza o teu caso. Gentil: Boa! Agora sou um anjinho (e começa a andar as voltas para ver se consegue ver as asas) Sabe senhor Dr. eu sempre fui anjinho nas mãos de certas pessoas. Só não sabia que tinha asas, agora que sei, vou bater as asinhas e vou pirar-me daqui para fora porque tenho uma família a cuidar Jogador2: A cuidar e vigiar, porque quem tem em casa uma gazela tão apetitosa como a tua mana, não se pode descuidar com os lobos que à noite andam a rondar o estábulo. Gentil: (dirige-se ao segundo jogador apontando o dedo) Olha quem fala. O senhor latoeiro, que há dez anos não faz um funil, que passa os dias na taberna a jogar ao dominó, enquanto a esposa os passa no rio a lavar a merda dos outros e de vez em quando, vai fazer uma “limpeza” ao viúvo da herdeira dos Vinhais, e é este senhor que quer desonerar uma criatura pura, honesta, e trabalhadora como a minha irmã Penélope. (o segundo jogador levanta-se da cadeira como quem quer pedir explicações, mas nesse instante entra o carteiro, põe o saco das cartas em cima do balcão e dá os bons dias em voz alta, todos olham para ele e o segundo jogador senta -se)

Baltazar: Bom dia senhor Trompete, que novidades temos hoje? Trompete As novidades estão no interior das cartas e elas não são transparentes. Baltazar: Sim! E as outras novidades que estão descartadas? Trompete: As outras! Isso é ali com o senhor Prior ele é que sabe aquilo que nós não sabemos, o que eu sei, é que quando vinha a caminho ouvi dois tiros e vi as pessoas a correr e a gritar que tinham morto o Ulisses.

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TEXTO DRAMÁTICO

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Gentil: Gentil que estava junto ao segundo jogador enterra o chapéu na cabeça arregaça as mangas e diz) Agora é que vai haver sangue, (grita para o taberneiro) Baltazar…um bagaço dos grandes! (bebe de uma só vez e sai) Jogador2: Mau, mau. Isto já esteve melhor. Jogador1: Então passas? Jogador2: Não, não! Quem se passou foi o Gentil. Padre: Trompete, vem cá! Trompete: Baltazar, serve-me um traçadinho ali na mesa do senhor Padre (Trompete senta-se junto ao Padre)

Padre: Então onde é que tens andado? Há muito tempo que não te vens confessar. Trompete: Sabe senhor padre, ultimamente tenho-me portado muito bem, e achei que não havia necessidade de me confessar. Padre: Muito bem, depois que começaram as obras da igreja toda a gente se porta bem (Agarra na orelha do carteiro e zangado diz) Eu não preciso de mais santos na igreja eu preciso é de ajuda para acabar as obras. Trompete: Senhor padre, mas eu tenho andado muito ocupado. Padre: A respeito das tuas ocupações falamos depois. Vá. Conta lá o que tu sabes que eu não sei. Trompete: Mas falar da vida alheia é pecado! Padre: Fica à vontade …Já estás perdoado. Trompete: Olhando em volta. Não sei se sabe, mas o alfaiate todas as semanas escreve uma carta à viúva do Major Lagarto e … perfumada! Ou muito me engano ou ele anda a crer pisar as flores do jardim da viúva. E por acaso hoje tenho uma para entregar. Padre: Mostra para ver que tipo de perfume é que a senhora gosta. Trompete: Senhor padre, mas isso é crime. Padre: Era. Se fosses tu a abri-la, mas como sou eu não é. Eu sou o seu confessor, sei tudo da vida dele, somos amigos desde as primeiras

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TEXTO DRAMÁTICO

alpercatas e andámos juntos na mesma escola. Olha cheira lá e diz-me lá que perfume é este. (E mete a carta na frente do nariz do carteiro) Trompete: Hoje estou um pouco constipado e não consigo odorar. Padre: Isto não cheira a nada, cabeça de burro (abre a carta e começa a ler) Estimada senhora é pela décima vez que me dirijo a Vossa Exa. a fim de marcar um encontro para clarificar a nossa situação (o carteiro sorri e faz um gesto como quem diz, é verdade aquilo que eu digo) pois depois do desaparecimento do meu querido amigo Lagarto que lhe escrevo regularmente e ainda não obtive uma resposta positiva da vossa parte. Sendo assim pela última vez lhe peço que me pague os seis meses de renda que estão em atraso ou serei obrigado a entregar o assunto ao meu advogado para dar seguimento em tribunal. Sem mais, os meus respeitosos cumprimentos. (Baltazar que vagueava por ali como quem não quer a coisa mas sempre com o ouvido em alerta leva uma palmada por ter mexido no livro do padre)

Padre: Bate duas vezes com a carta na cabeça do carteiro e diz – Palerma é assim que começam os boatos. Sai daqui, e como penitência tens que trabalhar uma semana nas obras da igreja (Trompete sai e o padre começa a ler um livro que tem junto a si em cima da mesa) (neste momento entra em cena um sujeito já com uns copos a borde dirige-se ao balcão e diz)

Sujeito: Baltazar um copo de três. Baltazar: Senhor alfaiate, mas você já esta um pouco carregado. Alfaiate: Não faz mal também os burros e os bois andam carregados e não se queixam. E o burro sou eu. Afinal todos sabiam só eu não sabia e agora como os bois carrego o peso dos cornos, tudo isto por ter confiado naquela matrafona. Todos sabiam! Os vizinhos sabiam, o homem do talho sabia, a minha mulher sabia e até o amante da minha mulher sabia. Só eu, é que não sabia. Vejam lá que até aquelas duas beatas fressureiras que andam lá na igreja a entesar os santos também sabiam. Padre: Vê lá se tens cuidado com a língua porque isso são calúnias muito graves. Alfaiate: O Alfaiate dá uma palmada no balcão e diz Porra! O corno aqui sou eu! E isto é uma taberna democrática e não uma igreja fascista. E contigo posso eu bem. Tu tens muitas contas a dar a Deus. Queres fazer as obras da igreja à

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conta dos parvalhões e depois pagas com pais-nossos e avés Marias. Devias era dar o exemplo, arregaçar as mangas dar um nó na batina e ajudar aqueles pobres diabos. Padre: Mas eu não sei nada de obras. Alfaiate: NÃO SABIAS? Olha! Podias puxar pela corda para içar o sino, mas cuidado não deixes escapar a corda que podes ficar ensinado…Há …Há…Há … Esta foi boa. (neste momento um dos jogadores de dominó levanta-se e diz ao outro jogador)

Jogador2: Olha desculpa mas tenho que ir, e já que perdi, pago as bebidas. (e dirige-se ao balcão para pagar)

Alfaiate: Podes também pagar a minha. Jogador: Pois é… Fizeste-me o fato de casamento que só o vesti uma vez e agora queres que te pague uma bebida. Alfaiate: Se calhar querias casar duas vezes com o mesmo fato?! Jogador2: Casar não. Mas vestir mais vezes. Alfaiate: Então porque não o fazes? Funerais e casamentos não faltam. Jogador2: Disseste-me que aquela era a melhor fazenda do mercado, foi a lavar e fiquei com um colete e uns calções. Alfaiate: Não te preocupes … quando acabares de pagar as prestações ele volta a crescer. (O jogador paga e sai)

Jogador2: Baltazar, traz-me um café e um copo de água. Tens o jornal de hoje? Baltazar: O de hoje não, os jornais só chegam no comboio das onze, já o de ontem chegou muito atrasado, por causa de umas cabras que andavam a passear na linha. Alfaiate: Há sempre uma cabra para charingar a vida às pessoas, não é verdade senhor padre? Padre: Hoje tiras-te o dia para os confrontos, não é? E o que é que eu tenho a ver com os comboios e as cabras? Antologia de Novos Autores de Olhão | Casa da Juventude de Olhão

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TEXTO DRAMÁTICO

Alfaiate: Então não foi uma cabra que te comeu o fio da antena de televisão? E agora tens que ir ver as notícias para casa da viúva. Para ti são os bolinhos de cacau e a amarguinha, para mim são os calotes. Mas se fosse a ti punha uma marca na garrafa, para saber se não há por aí outras antenas ruídas pelas cabras. (ouve-se o amola tesouras) Tenho que ir entregar as tesouras. Sai Gentil volta á taberna com chapéu na mão e a limpar o suor com um lenço, senta-se só e começa com movimentos com as mãos como quem está a falar só ou a tentar descobrir qualquer coisa.

Jogador2: Ó, Homem … O que foi que te aconteceu? Até pareces o velho Saraiva a falar com as estrelas. Gentil: Estou aqui a matutar quem será o mal-encarado e sem vergonha que anda a pôr no matinho perto do meu terreno os ossos das lebres. Come as lebres e joga os restos para junto da minha casa para me culpar. Jogador2: E o guarda fica contente com isso, e sabes porque? Gentil: Não! E tu sabes? Jogador2: Claro que sei! A ratoeira não foi montada por ti mas por ele, se ele conseguir culpar-te tu vais preso e ele fica livre para fazer as Serenatas à tua mana e sem apanhar com as pedras que tu atiras quando ele anda a rondar o teu albergue – Assim, come as lebres e depois come a tua mana e tu vais passar alguns meses de férias na casinha das pulgas. Gentil: Talvez tenhas razão. Mas eu não matei ninguém para ir preso, e nem vi a cor da lebre. Jogador2: Agora por morte já sabes quem matou o Ulisses? Gentil: Graças a Deus que o Ulisses não morreu. O Trompete anda sempre enfrascado (leva a mão à boca em forma de corneta) ouviu tiros e viu o jumento deitado e pensou logo que era vingança por causa da lebre. Jogador2: Então o que é que aconteceu? Gentil: Tu sabes que a minha hortinha fica junto à herdade do senhor Saramago… ora, ele tem uma égua muito bonita chamada Matilde. E também sabes que o Ulisses é muito atrevido, mas tem um problema. Jogador2: Qual é?

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Gentil: É ser burro. E como o senhor Saramago é um pouco racista, não quer misturas de raças. Mas a natureza é muito estranha. E vai daí o jumento ficou de beiço caído pela égua, e segundo me contaram Ulisses andava a cheirar os Anexos da Matilde, o Saramago não gostou da brincadeira deu dois tiros para o ar. Ora o Ulisses assustou-se e pensou que tinha morrido, desmaiou. Agora nem come. Não sei se foi do susto, ou se foi por ter perdido a companhia da Matilde. (Entra um pastor e dirige-se ao balcão)

Pastor: Bom dia pessoal. Todos respondem bom dia. Último jogador dirige-se ao balcão paga e sai.

Baltazar: Então foram as tuas meninas que atrasaram o comboio? Pastor: As minhas meninas não são cabras são ovelhas. E quem anda a perder ovelhas do rebanho é ali o meu colega padre. Corre por ai um boato que ele lhe passa a mão pelo lombo para as domesticar à hora do terço, mas aquilo é gado bravo, e tresmalha. Padre: Se não fosse teu amigo até podia queixar-me de ti porque isso são falsas calúnias e muito graves. Pastor: Tens razão. São calúnias. Mas as calúnias contadas pelas próprias vítimas, passam a ser calúnias verdadeiras. Padre: As calúnias verdadeiras são aquelas que as tuas ovelhas gostariam de contar se soubessem falar, e que tu já confessaste num dia em que bebeste demais e pensavas que ias morrer. Pastor: Está bem desculpa. Já não se pode brincar com um amigo de infância. Padre: E por acaso não tens uns diazinhos disponíveis para as obras da igreja? Pastor: Talvez se consiga alguma coisa se esqueceres as ofensas? Padre: OK. Amanhã há muito que fazer e conto contigo. Sai Entra em cena um homem bem vestido com ar sério. É o senhor Saramago.

Saramago: Boas tardes meus senhores!

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(Saramago dirige-se à mesa do corcunda, este levanta-se tira o chapéu e cumprimenta-o)

Saramago: Senhor Gentil…Temos um assunto muito importante a tratar. Gentil: Comigo, Senhor Saramago? Saramago: Exactamente. Senhor Gentil! Gentil: É uma honra para mim, senhor Saramago, tratar de assuntos com uma pessoa tão importante. Saramago: Não tenho por hábito tratar de assuntos nas tabernas mas infelizmente a pessoa com quem tenho que falar é mais fácil encontrá-la na taberna do que num lugar decente. (Gentil cruza os braços e abana a cabeça fica com ar de muito chateado, muda de tom e diz com ar de importância)

Gentil: Senhor Saramago. Nesta taberna o senhor seu pai que na altura trabalhava à jorna como a maioria aqui na aldeia depois de beber uns copos começava a preparar uma revolução que só durava o tempo da bebedeira. A revolução foi esquecida, mas as bebedeiras não. Acontece que a revolução fez-se sem eles. A miséria continuou e alguns filhos dessa revolução esquecida tiveram que ir servir de escravos nas herdades vizinhas e até ouve um que teve a sorte de casar com a herdeira da propriedade, aproveitando a doença da mesma e ficando viúvo e rico pouco tempo depois. Portanto, agradecia que fosse breve porque tenho uma agenda muito carregada. E… com pessoas muito importantes. Saramago: então aqui vai! A Matilde está prenha! Gentil: A Matilde está prenha? Espero bem que o felizardo seja um cavalo de boas famílias da mesma classe de Vossa Exa., um bom cavalo Lusitano descendente da égua de VIRIATO. Saramago: (Agressivo) NÃO! O felizardo é o Ulisses. Gentil: (distraído) Ah, o ULISSES! Ulisses?

(depois como quem acorda de repente)

Quem? O meu

Saramago: Sim! Esse casmurro essa besta manhosa que se fez de doente para se aproximar da Matilde.

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TEXTO DRAMÁTICO

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Gentil: Não posso acreditar, Ulisses fez uma coisa dessas. BRAVO… Que grande Ulisses, pai do filho da menina do senhor Saramago. E assim conseguiu entrar numa grande família. Saramago: Não, não. Não entrou nada. Gentil: Sim, sim. E com todo o direito. Saramago: Na minha herdade nunca entrarão mestiços! Gentil: Mas o mestiço já lá está. E já não há marcha-atrás possível. E daqui a um ano haverá mais um rebento na herdade! Saramago: Não. Rebentos de má qualidade, não…. Nem que eu tenha de me livrar da minha querida Matilde. Gentil: Senhor Saramago, olhando que sou dono do casmurro, à honra da vossa família, e à desonra da vossa égua estou disposto a fazer um acordo de cavalheiros. O senhor guarda a sua menina da vista dos humanos durante um ano, a partir dessa data Matilde fica limpa e como nova, e o próximo namorado não se vai aperceber de nada. Saramago: E então o que faço com o monstro? Gentil: O monstro não! O órfão. Desse trato eu por caridade. Isto é, apenas exijo uma pequena pensão alimentar e o segredo fica guardado para o resto das nossas vidas. Saramago: Aceito. Fico-lhe a dever um grande favor. Vamos brindar à nossa velha amizade. Gentil: Fazendo uma careta. Isso mesma à nossa velha amizade. Gentil e Saramago dirigem-se ao balcão e conversam amigavelmente e em voz baixa bebem, brindam, pagam e saem. Pouco depois entra um cigano dirige-se à mesa do padre põe um joelho por terra e diz.

Cigano: A sua bênção senhor Padre. Padre: Que Deus te abençoe meu filho. Mas tu cheiras muito a fumo, Tibério. Cigano: Ai … Senhor Dotori! Peço desculpa. Mas o senhor também cheira muito a fumo mas é de tabaco.

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TEXTO DRAMÁTICO

Padre: Pois é, tens razão – mas eu não me consigo livrar deste mau vício. Lá em casa a minha governanta anda sempre a ralhar porque encontra beatas por toda a casa. É em cima da secretária, é no canapé, e no outro dia pela manhã encontrou uma na cama que ainda deitava fumo. – Faz uma pausa e diz – Mas afinal o que traz por cá, foi o nascimento do teu décimo segundo filho, Ou roubaste outra vez as galinhas do Eusébio? Cigano: Ai … Senhor dotori … não ê, nada disso! Padre: Já sei! Foste tu que apanhas-te a lebre com a armadilha, e agora queres-te confessar. Cigano: Ai … mas que mal fiz eu a DEUS para ser acusado de tanta trapalhada? Senhor Padre, eu venho pedir que me ajude a resolver um assunto muito grave. Padre: Outra vez, só apareces para pedinchar, está bem mas diz lá. Cigano: O meu primo Lelo vei-se à minha mulher, que é irmã dele quase a chorar dizendo que o meu tio Tibúrcio, que é pai do meu cunhado, meu sogro e pai da minha mulher, dizendo que já havia cinco dias, que ninguém sabia dele. Quando cheguei do mercado … ai senhor, não se vende nada no mercado dos trapos…Acontarame logo o assucedido. Comi seis ovinhos estrelados bebi um litrinho para criar coragem e fui à barreca do meu tio. Quando lá cheguei chamei por varias vezes mas nem sinal de vida. Aí desconfiei que alguma coisa de mal se passava até porque de dentro saía um cheiro terrível. Abri a porta de plástico, Ai … SENHOR DOTORI que tristeza ele estava estendido no meio da barreca … Padre: Morto? Cigano: Não, vivo mas todo cágado! Padre: Bom, bom, esta conversa já não me cheira lá muito bem. Cigano: Senhor padre, esta é a verdade. Juro pelas alminhas dos ciganos mortos durante a guerra. Padre: E eram muitos? Cigano: Três! Dois na primeira, um na segunda. Balas perdidas. O homem estava mesmo todo cágado!

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Padre: Sim e depois queres que eu te ajude a comprar as fraldas. Cigano: Ai não, senhor dotori! Queria que ensinasse ao meu tio a rezar. Padre: Então tu não sabes rezar. Cigano: Sim, mas em espanhol! Padre: Então ensina-lhe em espanhol. Cigano: Ai senhor, e se Deus não sabe espanhol. Padre: Sabe…sabe! Cigano: Mas o meu tio apanhou um susto tão grande que agora tem medo de morrer e só pergunta pelo bom padre Inácio. Padre: Pobre Tibúrcio! Então fazemos assim, eu vou ensinar as orações ao teu tio, e tu e o teu primo vão trabalhar uns dias nas obras da igreja. (O cigano joga as mãos ás cruzes e diz)

Cigano: Ai, Ai, que dores meu Deus, ai as minhas costas. Senhor padre, eu não posso fazer isso, senão no outro dia estou pregado na cruz no lugar de Jesus, e de cabeça para baixo, porque isso era uma ofensa para a família cigana. Padre: Bom, vamos lá ver esse velhote. Baltazar guarda-me o meu saco e que ninguém lhe toque, ficas responsável! Baltazar: Vá descansado senhor Cura! O saco fica bem entregue! – o padre sai e pouco depois entra gentil

Gentil: Então a armadilha deu resultado? Baltazar: Isso vamos já saber! Pega no saco e coloca-o sobre a mesa, benzem-se os dois e Ora cá está o bicho! Mas que belo animal!

abrem o saco. Baltazar mete a mão dentro do saco e tira uma lebre morta

Gentil: E que belo sacana este saquinha de carvão! Depressa guarda o saco e não te esqueças do resto! Baltazar vai para o interior do balcão e Gentil pega num baralho de cartas e vai para uma mesa fazer uma paciência. Passado algum tempo o padre aparece na taberna.

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TEXTO DRAMÁTICO

Padre: Então não é que aquele malandro logo na primeira esquina desapareceu! Gentil: Talvez tenha perdido o cheiro do tio e perdeu o rumo. Padre: Baltazar … o meu saco se faz favor. Depois de receber o saco, abre um pouco o fecho e olha para dentro levanta a cabeça com ar de surpresa, acaba de abrir o saco mete a mão e retira um gato vivo. Fecha o saco e sai a correr. Baltazar e Gentil juntamse no meio da sala e riem às gargalhadas.

Gentil: Baltazar sai um fricassé de lebre para a mesa do senhor padre Olha Baltazar tu és testemunha.

(e

continuam a rir)

Guarda: Sem espingarda Eu também sou testemunha e quero ser convidado. Gentil: Ok, estás convidado. Gentil dirige-se ao público tentando convencer a plateia que aquilo Os senhores também são testemunhas, não é verdade? Pois também serão testemunhas do que aqui se passou, porque o que acabam de ver na taberna desta pequena aldeia não é ficção, é realidade, e como podem ver a vida continua. (E começam a entrar pessoas, umas ficam no balcão outras sentam – se nas cadeiras) O carteiro como sempre deve andar a distribuir cartas e boatos por toda a aldeia. O pobre alfaiate está concerteza a curtir a carraspana à sombra de uma árvore, e quando acordar já nem se lembra das ofensas feitas à santa da mulher. O cigano foi pago para desviar o padre da taberna. O Ulisses rebola-se com rir por ter enganado o senhor Saramago. Ah… e eu, vou-me lavar um pouco, vestir uma ganga lavada, pôr um pouco de água de colónia e vou ver as notícias para casa da viúva do major Lagarto, porque quem pisa as flores do jardim da senhora, quem bebe a amarguinha e come as bolachinhas de cacau sou eu, e não o senhor padre. que acabaram de ver não era teatro, mas sim uma cena real

Senhora: Entra uma bonita senhora e vai até junto do Gentil. GENTIL… Gentil: Sim, amorzinho! Senhora: ESTA NOITE NÃO PODES IR VER AS NOTICÍAS. Gentil: E PORQUÊ? Senhora: PORQUE AS CABRAS ROERAM O CABO DA ANTENA... Fecha o pano.

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PRINCESA PROCURA-SE Personagens: BN: Branca de Neve; C: Cinderela; BA: Bela Adormecida; PS: Pequena Sereia; B: Bela; J: Jasmine; SN: Sem Nome; P: Princesa À boca de cena, foco de luz. Ao fundo 8 cadeiras, alinhadas, onde as princesas se irão sentar na seguinte ordem - P – SN – J – B – PS – BA – C - BN. Entra BN seguida de C. Fazem (ou fingem) que não se conhecem. Jogo: uma olha discretamente, a outra vira a cara. Até que cruzam os olhos e são apanhadas.

BN: Cínica, a fazer-se de espantada Cinderela!? C: Cínica, a fazer-se de espantada Branca de Neve!? BN: Minha querida! Estás por cá? C: Sim! Tu também! Ainda não te tinha visto! Silêncio. Comprometidas.

BN: Pois é! C: Pois é! Silêncio. Comprometidas.

BN: Então, vieste ao casting para princesas? C: Pois foi! Estava em casa Corrige lá no palácio sem nada para fazer. E pronto, cá estou. BN: Olha, tal e qual como eu! Também estava lá no palácio… C: Provoca Palácio? Então já não vives naquela barraca, lá na floresta, com os anões? Antologia de Novos Autores de Olhão | Casa da Juventude de Olhão

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BN: Seca Não. Vivo num palácio. Sabes? Tipo castelo? Com anémonas e tudo! Até parece que não sabes! C: Cínica Ah! Não ligues! Eu não gosto de me meter muito na vida das outras pessoas! Por isso não estou a par das novidades! BN: Provoca Mas soubeste do casting! C: Com desprezo Soube por acaso. Vim por vir! Mas não dou muita importância a isto! BN: É como eu! Os anões é que insistiram. Ai, vai lá! É uma oportunidade! Vais ganhar de certeza! E depois o Rezingão não se calava! E o Dengoso… Sou um coração de manteiga, não lhes consegui resistir. Vim para lhes fazer a vontade. C: Ai achas que vais ganhar? BN: Sim. Não. Quer dizer, é o que dizem os anões! Mas o importante é participar. C: Foi o que me disse a abóbora. Entra a BA - Bela Adormecida.

BA: Bom dia. Cai na cadeira e adormece, em cima da C. BN / C: Em simultâneo. Espantadas e apreensivas Bom dia! Entra a PS - Pequena Sereia. Senta-se, em silêncio, contemplativa.

C: Aquela não é a Pequena Sereia? BN: Ui, que cheiro a peixe! É ela, é! C: Também veio para o casting? BN: Coitada está desesperada! Conheces a história dela? C: Então não conheço! BN: É que como ainda há bocado estavas a dizer que não gostavas de te meter na vida das outras pessoas, pensei! Silêncio

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BN: Nós duas tivemos sorte! Fomos as primeiras princesas a aparecer. Apanhámos os melhores príncipes. C: E as histórias mais originais! BN: E os melhores castelos! C: Goza Pois, pois! Com anémonas! BN: As que vieram a seguir, coitadas! Como esta pobre desgraçada. Que historiazinha mais triste a dela! C: Ai, eu gostava do caranguejo a cantar. Imita o caranguejo. Aqui no mar! Aqui no mar! Entra a B - Bela

BN: Esta não é aquela que andou metida com aquele muito feio? C: Ah! Sim foi um que era príncipe. Foi enfeitiçado e transformado em monstro. E foi o amor dela por ele que o salvou. Acho que se chama Bela. BN: Está um bocadinho acabada. C: O Monstro deve ter dado cabo dela. BN: Como é que esta gaja pode ser princesa? E essa história. É horrível? B: Bom dia! Vêm para o casting! BN: Sim! C: Não! BN: Não! C: Sim! BN/C: Sim e Não! BN: Quer dizer, sim, mas já ganhámos! Assim que nos virem nem vai haver casting! C: Para B. E tu? Vieste enganada? O Jardim Zoológico é em Lisboa! Gozam. B amua.

BN: Vai ao Badoca que é mais perto. Entram J – Jasmin, SN – Sem Nome e P – Princesa. C e BN param de rir

C: Estas não conheço! Quem são? Antologia de Novos Autores de Olhão | Casa da Juventude de Olhão

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BN: Não faço ideia! Já não são do meu tempo. Mas aquela com ar aciganado, acho que é conhecida. C: Devem ser destas princesas modernas que aparecem de manhã, à tarde são famosas e à noite já ninguém se lembra delas. J: Olá, o meu nome é Jasmine. Vêm para o casting? BN: Sim, estávamos a passar e entrámos. C: Só para ver como era! J: Pois, isto está um bocado mal temos que aproveitar todas as oportunidades! C: Ai nisso, vocês são bons. Silêncio

C: Nisso das novas oportunidades nos subsídios, fugir aos impostos! J: Vocês quem? BN: Vocês, da vossa raça! J: Os mouros? BN: Para C Mouros? C: Acho que está a falar de caracóis? BN: Ah sim, que eles costumam andar a apanhar caracóis! Ouve-se uma campainha. Levantam-se e correm para o foco ao centro. Empurram-se, para ver quem chega primeiro. Ficam alinhadas pela ordem de entrada. À medida que se vão apresentando, passam para o fim da fila. As restantes dão um passo em frente para que a primeira se posicione no foco.

BN: O meu nome é Layza, mas todos me conhecem por Branca de Neve. Mas podem chamar-me White. Snow White. Sai C: O meu nome é Cindy. Cinderela. Mas podem chamar-me Cindy! Sai BA: Eu sou a Aurora. Mas todos me conhecem por Bela Adormecida. Porque eu sou muito bela e porque tenho muito sono. Boceja e cai a dormir. BN e C vêm à frente, levantam BA e levam-na para o fim da fila. PS tenta explicar quem é, só com gestos. BN e C voltam à frente, ladeiam PS e explicam.

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BN: Nós ajudamos! Como já devem ter percebido esta é a Ariel, a Pequena Sereia. C: Como também já devem ter percebido ela não é nenhuma Sereia. BN: Mas já foi! Esta burra tinha uma vida maravilhosa. Vivia lá no mar, debaixo de água, comia marisco todos os dias. Até que se apaixonou por um pescador. E não sei quê, com aquela aflição do amor, fez um pacto com a Úrsula. Uma polva, invejosa, que a transformou em mulher, mas ficou-lhe com a voz. C: E ela agora é muda. Para PS E já agora deixa-me que te diga, essa tal de Úrsula enganou-te. Não sei que transformação foi essa que continuas a cheirar a peixe. BN: Ia, tipo, não se aguenta mesmo. BN e C voltam para o seu lugar na fila. PS fica a chorar e depois sai.

B: Olá, eu sou a Bela. É mesmo o meu nome - Bela. Da Bela e o Monstro, não sei se já ouviram falar? Sai J: Eu sou a Jasmine! Vocês devem conhecer é o meu marido! O Aladino? Sai SN: O meu nome é. Faz pose. O que vocês quiserem. Pisca o olho, faz grrr e sai. P: Com tom de mimada. O meu nome é Princesa. Sai Voltam a repetir a sequência. Mas desta vez, ao terminar a sequência cada princesa dirige-se ao seu lugar inicial, na cadeira.

BN: Eu fiz o meu primeiro filme em 1937. Fui a primeira princesa a sério, a aparecer no grande ecrã. Os cinemas encheram, só para me ver. Sou uma verdadeira princesa. Sou linda e bondosa. Uma heroína de bom coração. Todos me conhecem. Quem não conhece a princesa Branca de Neve? Sai C: Pensando bem, chamem-me Cinderela. Cindy é muito infantil. Eu já cá ando desde 1950. Também não sou nenhuma novata. Os cinemas também esgotaram comigo. Sou bonita, bondosa e pura de coração. BA: Por cima do ombro de C. Isto vai demorar muito? É que eu estou cheia de sono? Adormece em cima de C. C: Coitada está a dormir desde 1959! Sai e leva a BA.

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PS tenta gesticular quem é. Vê que não consegue. Desanima e sai.

B: Eu sou uma verdadeira heroína. Eu salvei um homem, um príncipe, que estava enfeitiçado. Foi transformado em monstro e vivia preso numa torre. Ao contrário destas tristes, não fiquei à espera de um príncipe, que me viesse salvar, com um beijo, só porque sou bonita. Se isso fosse assim coitadas das feias. Matavam-se ou morriam solteiras. Não! Eu emancipeime, em 1991. Essa coisa da coitadinha, bonitinha, burrinha, boazinha, que é prendada e boa dona de casa e que está à espera do príncipe que a salve? Esquece. Sai J: Eu sou a verdadeira princesa do povo. Ao contrário dessas interesseiras eu apaixonei-me por um homem pobre, o Aladino. Sai SN: Eu ainda não tenho nome. É o nome que vocês quiserem. A minha ideia é tipo ser a nova princesa do momento. O fenómeno da internet. Já pus lá umas fotografias nuas que me tirou o meu primo que é fotógrafo e meu agente. Já namorei com os gajos mais famosos da escola. As outras miúdas odeiam-me. Invejosas! Já fui a mais bela do Hi5, por 4 vezes. Tenho mais de 1000 fãs no Face. Quando atingi os 1000 coloquei uma foto, em tigreza que foi comentada 23 vezes. E teve 97 gostos! Faz o sinal de Gosto e sai. P: Voz mimada. Olá! Sou a Princesa, porque o meu pai me chama princesa. Principalmente desde que se divorciou da minha mãe. Faz-me as vontades todas. Sou a Princesinha dele. Fala para si. Voz mimada. Estas histórias aborrecemme. Tudo me aborrece! Preciso de algo diferente na minha vida. Acho que vou fazer uma tatuagem. Ou pôr um piercing. Sai. As princesas estão sentadas nas cadeiras. Tem início a prova de talento. Toca a campainha. À medida que as princesas prestam provas são interrompidas por uma buzina. Voltam para o seu lugar, irritadas. São provas muito rápidas de 10/15 segundos. BN – Prova de canto e dança. C – Prova de canto e dança. BA - Começa a cantar e adormece. Acorda com a buzina. PS - Tenta cantar uma ópera, mas sem som. B - Canta. J - Dança. SN – Desfila e faz poses sensuais. P – Canta uma música infantil. Ficam sentadas nos lugares à espera dos resultados.

BN: Não sei de que é que eles estão à espera para decidir. C: Eu acho que com esta prova de talento foi óbvio.

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Silêncio. BN cansa-se de esperar e dirige-se ao foco. As outras seguem-na pela ordem habitual. Voltam a repetir a sequência. No fim de cada fala são empurradas pela que se segue e voltam para o fim da fila.

BN: Eu não estou a gostar nada disto. Não sei qual é a vossa dúvida. Estão à espera de quê para me escolher. Eu sou uma mártir. Sou uma verdadeira vítima. Querem história mais dramática e exemplar que a minha? Fui expulsa do meu reino da minha própria casa pela minha madrasta. Uma bruxa. Tinha inveja de mim. Tive que fugir para a floresta, fiz… favores… ao guarda para o convencer a não me matar. Vivi em condições miseráveis. Tive que trabalhar para aqueles anões nojentos… Que abusavam de mim. E para cúmulo, o príncipe que me arranjaram era um totó que usava colants. Belo casamento. Se não fossem as visitas mensais aos anões levava uma vida triste. Se alguém merece uma nova oportunidade sou eu! Sai C: Desculpem lá! Espero bem que não vão atrás desta conversa da coitadinha. Se alguém teve uma vida desgraçada fui eu. Fui maltratada na minha própria casa. Fui um trapo nas mãos da minha madrasta mais as filhas dela. Nem direito a anões tive. A minha salvação foram meia dúzia de ratos e uma abóbora. Arranjaram-me uma fada, pequenina e gorda que me fez um feitiço com prazo de validade e ia partindo o pé a fugir do baile. Se alguém merece uma nova oportunidade sou eu. BA:

Boceja. Por cima do ombro de C

Então, já escolheram quem vai ser a princesa?

Começa a adormecer.

C: Enervada. contigo.

Fala para BA

E tu vê se acordas que eu estou farta de carregar

C sai seguida de BA PS tenta gesticular quem é. Vê que não consegue. Desanima e sai.

B: Para mim o que conta é o interior, por isso me apaixonei por aquela coisa feia. E fui eu que o salvei a ele. Por isso acho que me devem escolher a mim. Se quiserem uma verdadeira princesa, dos tempos modernos, uma mulher de pulso. Tipo Merkel, mas em bonito! Sai J: Aqui a Belinha estava com conversas, mas feio ou bonito, casou-se com um príncipe. Conheço o género. Deve pensar que é mais esperta que as outras. Ai o interior, o interior! O importante é o interior! O interior dos bolsos! Eu sou diferente. Eu desafiei o meu pai e a sociedade para lutar pelo

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meu amor, o Aladino. Um trabalhador. Como eu! Eu sou a princesa do povo. Sai

B: Sem sair da fila. Ah e tal! Desafiou o teu pai e a sociedade? Tu e qualquer adolescente revoltada. Se não fosses rica queria ver. Havias mesmo de escolher um pobre, para passar a vida no fogão, a lavar a roupa com água fria e a parir moços para debaixo do tanque. SN: Irritada por lhe estarem a roubar a vez. Mas isto é um casting para princesas ou para varinas? Recompõem-se. Eu sei que a fama é efémera e que, hoje em dia, é tudo muito rápido e somos substituídas assim. Estala os dedos Mas isso é porque ainda não descobriram a pessoa certa. Eu! A Hannah Montana, por exemplo, estava-se mesmo a ver que aquilo não ia durar muito. Aquela imagem de copinho de leite, muito fabricada. Já ninguém fala dela. Ou a Selena Gomez. Ficou famosa, só porque andou com o Justin Bieber. O puto é giro! Mas é muito puto! E esta agora, a Taylor Swift! O seu último namorado veio dizer que a rapariga é assexuada. Assexuada? Meus amigos, disso ninguém me vai acusar. Estou pronta para tudo. Faz pose. Polegar e sai P: Muito irritada. Imperativa. Espero bem ser escolhida, porque eu não estou habituada a ouvir um não. Mimada. E até trouxe aqui um atestado do médico a dizer que eu não posso ser contrariada. Sai Repete-se a sequência. Mas desta vez, quando uma princesa tenta falar, a outra impede, fazendo o seguinte jogo: a princesa da frente coloca os braços para trás e a que está atrás coloca os braços na frente da primeira, dando a ideia que os braços são dessa. À medida que a primeira fala, a de trás vai perturbando o discurso, ora enfiando o dedo no nariz, enfiando os dedos na boca e puxando as bochechas, tapando os olhos, mexendo nas mamas ou passando as mãos pelo corpo, como se ela se estivesse a oferecer, por exemplo. Esta é a última sequência. As princesas depois do foco saem de cena irritadas.

BN: Eu sou uma mártir. Sou uma verdadeira vítima. Eu não vou voltar para aqueles anões. Se alguém merece uma nova oportunidade sou eu! Vocês vão-se arrepender. Eu ainda tenho lá as maçãs. Sai C: Espero bem que não vão atrás desta conversa da coitadinha. Se alguém teve uma vida desgraçada fui eu. Eu não vou voltar a esfregar o chão. Eu sou uma princesa. Eu sou uma princesa. Sai. BA:

Boceja.

Então, já escolheram quem vai ser a princesa?

Sai a adormecer. Cai e

levanta-se. Sai

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PS tenta gesticular quem é. Vê que não consegue. Desanima e sai.

B: Acho que mereço uma oportunidade. Basta ver o que eu passei. Querem uma princesa Bela? Bela é o meu nome! Estão è espera de quê? Vá decidamse! Silêncio. Passa-se. Vocês vão arrepender-se. Não andei eu a aturar aquele animal para agora ser desprezada. Sai J: Bom, acho que a decisão está à vista. Acho que finalmente se vai fazer justiça. Podem anunciar o meu nome. Quero dizer que valeu a pena. Faria tudo outra vez. Desafiar o meu pai. A sociedade! Lutar pelo meu amor. Fiz tudo pelos outros, agora chega. É a minha vez. O Aladino é um bom homem mas já não aguento aquele cheiro a peixe. Silêncio. Eu sou a princesa do povo. Vocês não me podem fazer isso! Sai SN: Faz pose durante algum tempo. Silêncio. Eu não preciso de vocês para nada. Eu tenho os meus fãs. Não preciso destes castinguezinhos de caca. Vocês vão ouvir falar de mim. Sai P: Fica sozinha em cena. Faz pose. Começa a chorar e a fazer um telefonema. Tou, papá? Tens que me vir buscar. Ordem gritada. Já! Sai Escuro.

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BANDA DESENHADA















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