Inclui CD com arranjos originais de Pixinguinha
o gênio e o tempo
arranjador e regente, imprimiu na música brasileira, ainda na primeira metade
Escala 1:1 Atualizado em 17/05/2011 matérias-primas mais populares e tradicionais de nossa cultura – seu legítimo Não há regra para posicionamento na página do século XX, modernidade e invenção, construindo um ponte segura entre as
berço musical –, e a produção de um repertório sofisticado e moderno. Desse encontro, pontuado por uma personalidade carismática e por um sorriso que lhe espremia os olhos, Pixinguinha criou uma nova linguagem musical, um novo estilo, um novo patamar para a música brasileira. Obras como “Carinhoso” e “Rosa” são
PIXINGUINHA o gênio e o tempo
Selo para utilização nadaqueles quarta Pixinguinha é um casos de capa gênio incontestável: músico, compositor,
André Diniz
algumas das expressões mais latentes da genialidade desse mestre brasileiro.
mais forte e a caracterização mais bela da nossa raça, nos últimos dias do império e primeiros da República”. Mário de Andrade
Edição bilíngue
Patrocínio:
Realização:
Operador Nacional do Sistema Elétrico A energia que liga o país.
9 788577 342327 leya.com.br
www.casadapalavra.com.br
ISBN 978-85-7734-232-7
André Diniz
“Pixinguinha surgiu quando a música popular tornou-se violentamente a criação
PIXINGUINHA o gênio e o tempo
A pensão
do
choro
“O choro é uma coisa sacudida e gostosa” Pixinguinha
<R ua das Flores, no/in Catumbi. Rio de Janeiro, 1865. >A Familia Vianna: o menino Pixinguinha, à direita, em pé, tocando cavaquinho, 1908. The Vianna family: Pixinguinha, standing, at right playing the cavaquinho, 1908. >O pai de Pixinguinha/Pixinguinha’s father: Alfredo da Rocha Vianna. século XIX/19th century
O menino subia, a passos lentos, arrastados, os degraus da escada do casarão no Catumbi com o rosto entristecido. Às vezes
Quem comandava as rodas do casarão no Catumbi era seu pai, Alfredo da Rocha Vianna. O caçula levava o nome de batismo do pai e era o nono filho da família. Os outros, pela ordem, eram: Otá-
parava e olhava para a roda de músicos na ampla sala. Ao olhar do
vio, Henrique, Léo, Cristodolina, Hemengarda, Jandira, Hermínia
pai, voltava a caminhar em direção ao quarto. Os sons de cordas e so-
e Edith. E Raymunda Maria da Conceição, a mãe dessa numero-
pros, as falas, bebidas e comidas povoavam aquela cabecinha e não
sa prole, ainda tinha mais quatro filhos do primeiro casamento. Na casa dos Vianna, a música era presença certa entre os irmãos:
o deixavam dormir. Ele não se dava por vencido: já longe do olhar
Otávio, o China, tocava violão, cantava e declamava; Edith tocava
paterno, ficava escondido no quarto escuro, espiando pela fresta da
piano; Léo e Henrique se dedicavam ao violão e ao cavaquinho; e
porta a boemia interminável. Seu rosto retratava o feitiço causado pela algazarra e era um sinal de que o sono tardaria a chegar.
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Hemengarda só não teve uma vida de cantora profissional porque o pai a impediu. O ambiente familiar seria o primeiro voo de nosso personagem no meio chorístico carioca.
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Flautista amador, esforçado, funcionário da usina de eletricidade da repartição geral dos Correios e Telégrafos, Alfredo era a perfeita imagem do chorão de seu tempo. Transformou sua casa de oito quartos em pensão para músicos populares. Era a Pensão do Choro, onde o clima de festa alimentou durante séculos, entre nós, a criação musical. O choro nasceu no Rio de Janeiro nas últimas décadas do sé< Carroça Postal dos Correios, início do século XX. Post Office Cart, beginning of the 20th Century. < Carteiros, início do século XX. Postal Service Workers, beginning of the 20th Century. > Joaquim Callado, o “pai” do choro,
culo XIX, ligado a segmentos de classe média baixa do Segundo Reinado (1840-1889), formados por músicos amadores empregados dos Correios e Telégrafos, das bandas militares e de pequenos cargos públicos, que habitavam a Cidade Nova ou vilas que iam do Centro Antigo até o Estácio e Tijuca. A sonoridade do choro é uma fusão de ritmos afro, sobre-
século XIX.
tudo do lundu, com gêneros europeus que invadiam os salões
Joaquim Callado, the “father” of the
cariocas. Valsas, polcas, quadrilhas e schottisch passeavam
choro, 19th Century.
pelas flautas, cavaquinhos, violões, oficleides e clarinetas dos músicos que temperavam suas apresentações com um sabor mais local, criando, então, o mais rico gênero instrumental brasileiro. O choro é tanto o gênero quanto um jeito de interpretar as melodias. O músico considerado o “pai” do choro, Joaquim Callado, não frequentou a Pensão do Choro; morreu em 1880 e foi precursor de uma dinastia de flautistas que teria no filho caçula de seu Alfredo o principal instrumentista e compositor do gênero de todos os tempos. Seu legado foi promover as rodas pela cidade com seu grupo, o Choro Carioca ou Choro do Callado, composto por dois violões, cavaquinho e flauta. O chamado “quarteto ideal” seria a célula básica das apresentações dos chorões. Cena muito comum nessas rodas era ver o flautista desafiar, brincar e, às vezes, “fazer cair”, com suas “armadilhas” harmônicas, o cavaquinista e os violonistas. O calor das rodas, as malandragens nas execuções e a provocação dos instrumentistas solistas foram dando a tônica de liberdade e de improviso ao gênero. Assim como na Pensão do Choro, esses músicos populares tocavam mais por entretenimento do que por profissionalismo, eram
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amadores no sentido mais completo do termo. Apresentavam-se em batizados, aniversários, festas populares, casamentos e nos salões de parte da elite. No entanto, apesar de não receberem cachê, duas coisas eram imprescindíveis em suas audições: comida e bebida. Havia até um código para aferir se estavam garantidas a fartura etílica e a generosidade gastronômica por parte do anfitrião. Assim que chegavam ao local onde iriam se apresentar, um dos músicos, sorrateiramente, caminhava até a cozinha. Se percebesse que a recepção não estava a contento, a senha era dizer que “o gato dorme no forno” ou que “não tem pirão”. Era o que bastava para que os chorões saíssem às pressas. O menino encantado pelos sons do choro seria, mais à frente, em contexto histórico específico – com o adensamento da classe média, a conformação do mercado fonográfico e o surgimento do cinema e do rádio –, o grande responsável pela mudança definitiva deste cenário. Os chorões deixariam de bisbilhotar a cozinha e passariam a valorizar o cachê, o profissionalismo. Por enquanto, o pequeno chorão ia aprendendo a tocar cavaquinho com seus irmãos, Henrique e Léo. Como tinha muita facilidade para música e um ouvido privilegiado, o patriarca Alfredo Vianna pediu a um amigo dos Telégrafos, César Borges Leitão, que ensinasse música ao seu caçula. César tocava bombardino e morava bem pertinho da Pensão do Choro. O aluno pensou em aprender requinta, um clarinete mais agudo, mas era um instrumento muito caro. Ficou mesmo arranhando no cavaquinho e na flauta. Em pouco tempo, César avisou a Alfredo que não tinha mais nada a ensiná-lo. Havia transmitido tudo o que sabia. A casa do Catumbi era frequentada por chorões famosos. Quincas Laranjeiras, professor de música e violonista; o regente Paulino Sacramento, pistonista de grande técnica e produtor de partituras para o teatro de revista; o violonista de mão cheia João Pernambuco, coautor do clássico “Luar do sertão”; o compositor e instrumentista Juca Kalut, integrante do grupo Cavaquinho de Ouro; o pistonista Luís de Sousa, considerado um ás com seu instrumento, e o maestro Heitor Villa-Lobos, que levava seu violão
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> Grupo de chorões, no subúrbio de Jacarepaguá, reduto de seresteiros e chorões, na década de 1910. O compositor Sinhô aparece na segunda fileira, ao centro, com violão. Choro musicians, in Jacarepaguá, Popular with balladeers and chorões, in the decade of 1910s. The composer Sinhô is in the second rank, in the center, with a guitar.
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< João Pernambuco (segundo sentado da direita para esquerda/second sitting from left to right) e grupo de chorões/ and a group of chorões, 1914. > Os músicos do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, cujo regente era Anacleto de Medeiros (na primeira fila o segundo da esquerda para a direira), 1896–1906. Musicians of the Rio de Janeiro Corpo de Bombeiros (Firemen), under the baton of Anacleto de Medeiros (at the first row the second from left to right), 1896–1906.
para as rodas e, anos mais tarde, comporia seus choros dando
propriedade. Irineu de Almeida, ou Irineu Batina – conhecido assim por cobrir o corpo arredondado
grande prestígio ao gênero no meio intelectual.
com uma sobrecasaca comprida em pleno verão escaldante –, tocava oficleide, bombardino e trom-
Alguns chorões moravam na casa dos Vianna, como Irineu de
bone. Pertencia à banda do Corpo de Bombeiros do começo do século XX, o que não era pouca coisa.
Almeida e Bonfiglio de Oliveira. Paulista, o pistonista Bonfiglio
Fundada em 1896, pelo maestro Anacleto de Medeiros, um dos responsáveis pela consolidação
chegou ao Rio em 1910. Com seu grande talento despertou rapida-
do choro no gosto do carioca, a banda dos bombeiros músicos retirava dos instrumentos uma me-
mente a admiração dos músicos da cidade. A amizade que cons-
lodia leve e bem executada, apesar da “dureza” das bandas da época. Sob a liderança de Anacleto,
truiria com o filho mais novo dos Vianna seria fraternal, foram
a banda fazia apresentações cívicas, religiosas e concertos. Os bombeiros tocavam um repertório
parceiros nas rodas de choro, na apresentação de composições,
abrangente, com trechos de ópera adaptados, marchas, dobrados, polcas, valsas, mazurcas e xótis.
ora de um, ora de outro.
Com o tempo, Anacleto passou a requisitar chorões da cidade para fazer parte da banda: o próprio
Enquanto Bonfiglio seria o amigo das rodas, Irineu de Almeida
Irineu Batina, tocando oficleide, Luís de Sousa (cornetim, trompete e piston), Candinho do Trombo-
teria influência na inserção do jovem no incipiente mercado profis-
ne, Casemiro Rocha (piston), Lica (bombardão), Irineu Pianinho (flauta), Edmundo Otávio Ferreira
sional dos músicos cariocas. Percebendo o seu talento, ao tocar na
(requinta), Artur de Souza Nascimento, o Tute (bumbo e prato), João Ferreira de Almeida (bombardi-
sua flauta de folha, resolveu ensiná-lo a ler e escrever música com
no) e Albertino Pimentel (trompete).
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Formado nos cursos de harmonia, contraponto e fuga pelo Conservatório Imperial de Música– a única escola pública de música da época, onde Joaquim Callado foi professor e onde também o próprio Anacleto
<G rupo de Irineu de Almeida/Irineu de Almeida’s Group: Rogério Tómas, Gregório de Brito, Irineu de Almeida, Manuel Jacinto Graça, Manuel
de Medeiros concluiria seus estudos –, Irineu Batina transmitiu os seus
Guimarães Campos, José Monteiro de
conhecimentos com muita competência para seu aluno. Lição aprendida,
Catulo da Paixão Cearense, início
convidou-o a integrar seu grupo Choro Carioca, um dos mais destacados do começo do século XX. Em dúvida sobre qual instrumento tocar, o menino levava o cavaquinho e a flauta emprestada do pai para as festas que varavam as madrugadas regadas a choro. Aos poucos, a flauta passaria a ser o seu instrumento predileto. Alfredo Vianna não largava o filho em suas exibições pela cidade. O
Veiga e ao centro/and in the center do século XX/beginning of the 20th century. > ( prox. página /next page) Tradicionais chorões em Paquetá/ Traditional chorões in Paquetá: Horácio de Theberge (violão e canto/guitar and voice), Irineu de Almeida (oficleide/ opfcleide), Luis de Sousa (piston/
curioso é que, ao chegar aos choros com seus músicos, Alfredo porta-
horn), Jatahy (trombone), Luiz
va sempre um grosso caderno de composições. E só tocava quatro ou
dos Santos (clarinete) e Estulano
cinco músicas, impreterivelmente. Vale lembrar que a maior parte das
(violão/guitar), 1906.
Gonzaga da Hora (bombardão), João
criações dos chorões da época não foi lançada em partituras e muito menos chegava aos estúdios de gravação. Daí a importância dos copistas como João Jupyaçara Xavier e Frederico Olympio Augusto de Jesus, que, ao assimilarem as melodias pela tradição oral, escreviam-nas em cadernos pautados como os de Alfredo, garantindo assim a sobrevivência de obras primorosas que de outra forma se perderiam no tempo. Mas, mesmo incentivando o filho a tocar, Alfredo ficava preocupado com as suas noitadas. Tanto que mandava os irmãos mais velhos acompanhá-lo em suas apresentações pelas madrugadas – exigindo que não chegassem tarde. Queria que o caçula estudasse. No começo, colocou-o em um pequeno colégio particular, o do professor Bernardes, no Catumbi. O mestre não deixou saudades, pois a cada resposta errada o aluno era castigado com bolos de palmatória ou obrigado a ficar ajoelhado por um longo período. Alfredo, então, matriculou-o no Liceu Santa Teresa e depois no tradicional Mosteiro de São Bento. Mas a música já estava no sangue do menino. O Colégio de São Bento, de ensino rigoroso, considerado até hoje um dos melhores do Rio de Janeiro, entrou para a história da música popular pelos seus alunos “rebeldes”. Além do jovem Vianna, que saiu das suas salas de aula para tornar-se o maior músico brasileiro da primeira metade do século XX, outro compositor, anos depois, fugiria do
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mesmo colégio para circular por um Rio que ele descreveria como poucos poetas, consolidando por meio de sua obra o samba urbano carioca: Noel Rosa. Talvez já soubessem esses dois talentos precoces que a rua, esta sim, seria a verdadeira sala de aula. As andanças do jovem chorão pelo circuito musical do Rio continuavam com o grupo de Irineu Batina. Cada vez mais ele se firmava como músico conhecido. Um dia, voltando para casa de madrugada, teve inspiração para fazer a sua primeira composição numa cena bastante comum entre os chorões boêmios: os companheiros que bebiam o leite deixado em latões nas portas das casas para se desintoxicarem das doses pantagruélicas de álcool. Batata. Nascia, em 1911, a composição “Lata de leite”. Os títulos dos choros têm essa característica, nascem de um fato cotidiano, de uma homenagem, do espírito brincalhão, meio zombeteiro e, às vezes, ambíguo dos compositores. Já mais velho, o flautista jurou que nunca bebeu o leite deixado nas residências. Mas, se o leite não o cativava, o álcool passou a fazer parte das suas noites. Primeiro, como estranhamento, depois com o prazer que o acompanhou pela vida afora. Era o adeus à coalhadinha: “Naquele tempo não havia Juiz de Menores e eu já trabalhava. O sujeito para trabalhar em música, no meio dos músicos, tinha
< N oel Rosa com o amigo Fernando Lopes, vestido com uniforme do Colégio São Bento, 1928. Noel Rosa with his friend Fernando Lopes, in the school uniform of the Colégio São Bento, 1928. > Largo da Carioca com Leiteria ao fundo, início do século XX. Largo da Carioca with a dairy store in the background, beginning of the 20th Century.
de beber alguma coisa. Era para se inspirar melhor. Então, fui me habituando... Antes do trabalho, ia para a leiteria e tomava uma coalhadinha. Mas, depois, os amigos me chamando: ‘Vem! Prova isso que é bom, faz bem ao coração’. Aí, tomei. A primeira vez achei ruim. Depois, continuei, fui continuando, fui achando bom, gostoso. Aí, me tornei um profissional.”1 Com o Choro Carioca, o menino (e a flauta de prata presenteada pelo pai) estrearia nos rudimentares estúdios de gravação. Tudo começou quando, em 1902, o cantor Bahiano lançou o primeiro disco no Brasil com o lundu “Isto é bom” , de Xisto Bahia. Surgia assim, no Rio de Janeiro, a pioneira Casa Edison, comandada pelo empresário Fred Figner. Em seus primeiros anos de vida, a indústria fonográfica registrava muito mais as melodias de pequenos grupos instrumentais, como o de Irineu Batina, e de bandas de música do que as vozes que, na época, sofriam forte influência do bel canto italiano. A proporção era de aproximadamente 63,5% de música instrumental para 36,5% de canção2, números plenamente justificáveis por razões técnicas. Muito antes da tecnologia que fez surgir os microfones elétricos, em 1927, diante dos quais o intérprete poderia cantar como se estivesse conversando ou sussurrando, as gravações eram realizadas em um microfone antigo, “do tempo do onça”. Consistia em uma “boca” enorme de corneta
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que obrigava os técnicos de som a puxarem os cantores pelos ombros, nas notas graves, ou os empurrarem para longe, nas agudas. Os grupos instrumentais, para gravar, se amontoavam em frente
> Corso carnavalesco, 1911. Carnival parade, 1911.
à engenhoca. Para ser devidamente registrada no sistema mecânico, na cera, a música precisava de força sonora, esta foi a principal característica que fez prevalecer os registros sem voz nos primeiros anos da indústria fonográfica. No Choro Carioca de Irineu, havia mais dois Viannas: Otávio (o China), no violão, e Léo. As gravações do grupo, pela Favorite Record, em 1911, eram feitas de primeira, em conjunto, ainda não estava em prática a moderna possibilidade de separar os instrumentos e corrigir os erros. À época, cada chapa (equivalente ao disco) só continha uma música. Durante o ano, foram gravadas várias composições: a polca “Nhonhô em sarilho”, de Guilherme Cantalice, as polcas “Nininha” e “Daineia”, de Irineu de Almeida, “São João debaixo d’água”, de Pixinguinha, a polca “Isto não é vida”, de autor desconhecido, e “Salve”, um xótis de Irineu. Outro fato relevante era que o nome choro só apareceria nos rótulos das gravações, substituindo os gêneros estrangeiros, anos depois. Somente para pontuar: choro, no começo, era a festa, o encontro. “Vou ao choro!”; “vou à festa!”. Designava também o grupo musical. Já nos anos 1920, o termo choro já significava o próprio gênero. Irineu tocava oficleide nas gravações, instrumento que apresenta chaves e formato cônico, com a sonoridade muito semelhante à do saxofone tenor, bastante utilizado tanto no solo como no contraponto. É senso comum na literatura do choro que Irineu foi influência decisiva nas execuções dos contrapontos (melodia secundária que dialoga com a principal), que o nosso músico brilhantemente sopraria no saxofone, nos anos 1940, ao lado da flauta de Benedito Lacerda, gravando 34 faixas geniais na gravadora Victor. Na gravação do “balançado” grupo Choro Carioca, segundo o cavaquinista e pesquisador Henrique Cazes, é possível perceber os contrapontos do oficleide de Irineu, “com frases bem colocadas e de caráter improvisatório”, ao lado da flauta do menino, “com um som mais rítmico, sem vibrato, gerado com muito ar, em golpes enérgicos”.3 Era a semente que ficou na memória do pequeno músico e que chegaria à perfeição na parceria com Benedito Lacerda. Os contrapontos se tornaram uma primordial ferramenta de criação, funcionando como fator de identidade do gênero.
surgiria a pioneira escola Deixa Falar). Desfilavam na Praça Onze, reduto principal do carnaval do
Com a sua flauta de prata e ainda pelas mãos de Irineu Batina, diretor de harmonia do Rancho
Rio. A Praça ficava onde hoje é a avenida Presidente Vargas, entre as ruas de Santana e Marquês de
Carnavalesco Filhas da Jardineira, o mais jovem dos Vianna passou a integrar a orquestra da agremia-
Pombal, perto do Terreirão do Samba, na Cidade Nova. Local de fácil acesso para os moradores da
ção, fundada em 1905, com sede próxima à Central do Brasil e à Praça Onze. Nos festejos de carnaval,
cidade e que se transformava quase em residência fixa do nosso personagem nos dias de momo.
em 1911, seguia o menino pelas ruas com suas calças curtas, seu boné azul e solferino, as cores do
Folião de primeira hora, lembrou certa vez que, no carnaval, desfilou num rancho fantasiado de
rancho Filhas da Jardineira.
Luís XV. Noutra, recordou o tempo em que, na terça-feira de carnaval, encerrava a noite deitado nas
Os ranchos eram muito importantes para o carnaval carioca, sendo os precursores, em estrutura, das hoje midiáticas escolas de samba (só em 1928, no sopé do morro de São Carlos, no Estácio,
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escadarias da Escola Benjamim Constant, na Praça Onze, levantando-se no dia seguinte, acordado pelo sol forte do verão do Rio.4
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mais tarde o consagraria como o pioneiro na sua introdução no samba e no choro. Filho da Tia Amélia e do pedreiro Pedro Joaquim Maria, Donga é autor, ao lado de Mauro de Almeida, do primeiro samba gravado, “Pelo telefone”, em 1917, e integraria o histórico conjunto Oito Batutas. Seu primeiro instrumento foi o cavaquinho, mas ao longo de sua trajetória artística passaria a manusear um violão característico, com ponteados e frases sincopadas na região média do instrumento. O menino, João da Baiana e Donga permaneceriam ligados ao Rancho Carnavalesco Filhas da Jardineira por muitos anos. Sobre os dois amigos, declararia um ano antes de morrer: “Nós somos um poema”.
< Praça Onze, início do século XX. Praça Onze, beginning of the 20th Century.
O Rancho Carnavalesco Filhas da Jardineira era rival do famoso Ameno Resedá, que surgiu em 1907, quando um grupo de foliões participava de um piquenique na bucólica Ilha de Paquetá. O Ameno era bastante organizado, com enredos bem escolhidos e ótimos cantores para entoar as marchas,
> Crianças no bairro Cidade Nova, anos 1910. Children in the Cidade Nova neighborhood, 1910.
em desfiles impactantes pelo luxo e pela qualidade harmônica e melódica das músicas. A rivalidade era tão acirrada quanto seria mais tarde a das escolas de samba Mangueira e Portela. Os ranchos escondiam seus enredos uns dos outros até o carnaval, com medo de serem copiados, assim como as escolas de samba faziam até a década de 1950. As agremiações usavam o instrumental de choro, com flautas, clarinetes, cavaquinho e violões. Nosso músico conheceu, no Rancho Filhas da Jardineira, dois personagens importantes em sua trajetória. Aliás, dois músicos que são referência obrigatória em nossa bibliografia musical: o compositor e ritmista João da Baiana – mestre-sala do Filhas da Jardineira durante anos –, e o violonista e compositor Ernesto dos Santos, o Donga. Ambos eram filhos de “tias” baianas da Cidade Nova e formariam com o jovem Vianna um trio inseparável. João era filho da Tia Perciliana Maria Constança e o caçula de 12 irmãos, sendo o único nascido no Rio de Janeiro. Sua mãe promovia festas na Cidade Nova, onde aprendeu samba e candomblé até os 9 anos. Foi o primeiro músico a ser visto raspando a faca no prato, um instrumento de ritmo inusitado. Tia Perciliana também ensinou o filho a tocar pandeiro, instrumento que
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< Arcos da Lapa, 1906. > Pixinguinha no/at La Concha, “Concha da Lapa”. Da esquerda para direita/ From left to right: Bonfiglio de Oliveira, Pádua, Otaviano, Pixinguinha, 1911.
O primeiro emprego regular do flautista foi na choperia La Con-
deu ao violão de sete cordas o status de instrumento solista). Quem
cha, no bairro boêmio da Lapa. O convite fora feito pelo seu irmão
dirigia o sexteto era o pianista Pádua Carvalho. Dessa época, quando
Otávio. Trabalhando das oito horas da noite até meia-noite, tinha
ganhava 5 mil réis por dia, o menino dizia que ia “muitas vezes (para
como companheiros de grupo Bonfiglio de Oliveira, que tocava pis-
a choperia), com o fardamento do Colégio de São Bento.” 5
ton e contrabaixo; o violinista Otávio Silva; e Artur Nascimento, o
As casas de chope cantantes ou berrantes foram uma febre ao
Tute, ao violão (Tute entraria para a história do choro como o primei-
final do século XIX. A sua popularização, desgarrando da influência
ro violão de sete cordas, inaugurando uma dinastia que incluía Dino
europeia, criou as condições para que cantores de modinha e mú-
Sete Cordas, músico do lendário grupo Época de Ouro, responsável
sicos populares se apresentassem em seus praticáveis de madeira,
por consolidar a linguagem do instrumento, e Raphael Rabello, que
armados à guisa de palco.
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O cronista João do Rio, observador atento da vida cultural carioca do começo do século XX, descreve, com o aprumo que lhe
> Cafés-Cantantes ou Chopes-Berrantes, 1911. Beer Halls, 1911.
é peculiar, o momento dessas mudanças: “As primeiras casas [de chope] apareceram na Rua da Assembleia e na Rua da Carioca. Na primeira, sempre extremamente concorrida, predominava a nota popular e pândega. Houve logo a rivalidade entre os proprietários. No desespero da concorrência, os estabelecimentos inventaram chamarizes inéditos. A princípio apareceram num pequeno estrado ao fundo, acompanhados de piano, os imitadores de Pepa [a atriz Pepa Delgado] cantando em falsete a estação das flores, e alguns tenores gringos, de colarinho sujo e luva na mão. Depois surgiu o chope enorme, em forma de hall com orquestra, tocando trechos de óperas e valsas perturbadoras, depois o chope sugestivo, com sanduíches de caviar, acompanhados de árias italianas. Certa vez uma das casas apresentou uma harpista capenga mas formosa como as fidalgas florentinas das oleografias. No dia seguinte um empresário genial fez estrear um cantor de modinhas. Foi uma coisa louca. A modinha [e os músicos populares] absorveu o público.” 6 Em 1911, quando o sexteto se apresentava na Lapa, os chopes-berrantes e os cafés-cantantes estavam em franca decadência. O crescimento demográfico do Rio, com mais de um milhão de habitantes, fez surgir uma classe média ávida por entretenimento. As transformações urbanas, sobretudo no Centro, orquestradas pelo prefeito Pereira Passos, ao mandar derrubar cortiços e abrir avenidas, extinguiram antigos espaços de lazer, criando as condições para que os novos empreendimentos culturais se instalassem na cidade. Proliferam teatros e cinemas com áreas maiores para acolher a demanda crescente de público, estabelecendo na cidade um circuito de produção, difusão e consumo da música popular que envolvia diferentes camadas da população. O teatro de revista passou a ser uma das principais formas de entretenimento do carioca do início do século XX. Com origem na comédia francesa, destacava-se pela sátira dos costumes e pelas brincadeiras com política e fatos cotidianos, a partir de textos musicados. Surgidas em meados do século XIX, as revistas foram
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< Grupo de choronas, 1910. Group of choronas, 1910. > Cinematographo Rio Branco, início do século XX. Cinematograph (Cinema) Rio Branco, beginning of the 20th Century.
as primeiras manifestações de teatro popular no Brasil e cumpriram um papel na história da música que só seria superado com o surgimento do rádio, representando um mercado de trabalho para os artistas e um palco privilegiado de divulgação do nosso cancioneiro. A maestrina Chiquinha Gonzaga foi uma das destacadas compositoras dos teatros de revista da Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro. Mulher de personalidade forte, abolicionista e republicana, a pianista e chorona (termo que seria apropriado para designar as mulheres que tocam o choro) está entre os nomes formadores da musicalidade brasileira. O cinema, também de origem francesa, chegou ao Rio em 1896, na Rua do Ouvidor, sendo apresentado apenas para a imprensa. Primeiro chamado de cinematógrafos e depois de cines, esses espaços de entretenimento exibiam filmes mudos, em que se fazia necessária a contratação de músicos populares, geralmente chorões, para ajudar na construção de muitas cenas com ruídos de chuva, vento, explosão, ou mesmo criando um clima para os momentos românticos e de suspense. Uma pequena orquestra ficava dentro da sala de exibição e em pouco tempo se formaria outro agrupamento musical para se apresentar nos halls, entre uma sessão e outra. O cinema criou o fascínio pelos artistas,
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tanto pelos que apareciam na tela quanto pelos que tocavam nos intervalos. Foi no Cinematographo Rio Branco, um misto de cinema e teatro muito comum à época, que o flautista e chorão da família Vianna colocaria o pé pela primeira vez em um teatro. Em pouco
> Pixinguinha, João Pernambuco, personagem não identificado e / unidentified person and Donga. Petrópolis, Rio de Janeiro, 1913.
tempo, seria também no teatro que ele iniciaria sua carreira de arranjador, marcando a história da música brasileira. Tudo começou com o violonista Tute. Amigo da família Vianna, Tute trabalhava com o flautista na choperia La Concha. Sabia das qualidades do nosso protagonista como músico. Como era integrante da orquestra do Cinematographo Rio Branco, liderada pelo maestro Paulino Sacramento, soube que o flautista Antonio Maria Passos ficara doente e não poderia se apresentar. Comentou com o dono do cinema, seu Auler, que conhecia alguém para substituí-lo. Um belo dia, tocam a campainha na casa da família Vianna, em Piedade. Era um funcionário do seu Auler. – É aqui que mora o senhor...? As duas irmãs do caçula fizeram força para prender o riso. – Tem um senhor... que está bem ali, ó, soltando pipa! Depois de relutar um pouco ao convite, com medo de tocar em um lugar de prestígio no meio musical, o pequeno vestiu suas calças curtas, pegou sua flauta e apareceu no cinematógrafo. Mas por pouco esse não foi o emprego mais curto de sua vida. Seu Auler, quando viu o novo flautista apresentado por Tute, exclamou: “Mas é um fedelho!” E pensou em mandá-lo embora. Foi quando chegou
A cada uma de suas bossas na flauta, ouvia-se da plateia o grito “Dá-lhe, Carne Assada!”, pronun-
o maestro Paulino Sacramento chamando o “fedelho”, meio descon-
ciado por algum amigo ou parente, pois só eles sabiam do apelido que ganhou em uma das festas na
fiado, para ensaiar com a orquestra. Diante da reação de ambos, o
Pensão do Choro quando, desesperado de fome, rumou em direção à mesa de jantar e retirou o pano
menino ficou com muito medo de dar vexame, mas respirou fundo,
branco que cobria a carne assada. Ao meter a mão, um cunhado gritou: “Sai daí, Carne Assada!” Ficaram
se concentrou e foi em frente.
o apelido e gosto por carne assada, que, mais tarde, sua esposa, Beti, viria a fazer de forma tão suculen-
Ele já lia música muito bem. Bastava um pouco de calma para
ta com molho ferrugem.
liberar sua técnica. Quando a orquestra começou a tocar, o sopro
As apresentações na peça marcaram seu estilo de tocar, com variações que não respeitavam a
seguro, as bossas e variações que fazia na flauta puseram um pon-
partitura. O jornalista e pesquisador Sérgio Cabral relata um depoimento do músico sobre sua parti-
to final nas desconfianças. Suas participações na orquestra do
cipação na orquestra do cinematógrafo: “No Rio Branco passava um filme e, depois, era apresentada
espetáculo Morreu o Neves!, escrito por Raul Pederneiras e Luiz
a revista teatral em que eu trabalhava com a orquestra. Quando Antônio Maria Passos voltou, cedi
Peixoto, duraram todo o ano de 1911, tendo sempre a casa cheia.
o lugar pra ele. Na primeira apresentação, aconteceu o seguinte: havia uma valsa em que eu saía da
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partitura e fazia uma espécie de contraponto. Maria Passos era um grande flautista, mas não saía da partitura. Quando ele tocou a valsa, o pessoal da torrinha passou a fazer com a boca aquilo que eu fazia com a flauta. Paulino Sacramento também sentiu falta do contraponto e falou com ele. Resultado: Antonio Maria Passos saiu da orquestra e ficou chateado comigo.” 7 Apesar de Passos ficar amuado por ser desbancado por um flautista 17 anos mais novo, o menino faria tempos depois uma música em sua homenagem, o choro “Passinha”, demonstrando o carinho e a amizade que tinha pelo músico. A amizade e o bom convívio com seus pares sempre foi, aliás, uma de suas características principais. Adulto, casado com Beti, estava bebendo com os amigos em um bar quando pediu a conta para ir embora. “Mas você já vai tão cedo?”, perguntou um deles. “Prometi a minha mulher que iria à igreja com ela”, respondeu um compenetrado marido. “Como assim?”, comentou outro amigo, “Você não é da macumba?” “Sou, mas o Deus não é um só?”, indagou o músico com um sorriso aberto no rosto. Certo dia, voltava para casa com o cachê que recebeu de uma exibição quando foi abordado por três ladrões. “Passa o dinheiro e essa caixinha pra cá”, mandou um dos assaltantes. Quando perceberam quem era a vítima, pediram desculpas. Mas o inusitado encontro não ficou só nisso. Como a rua era escura e muito perigosa, resolveram escoltá-lo até em casa. No meio do caminho pararam para tomar um “negocinho” e brindar as novas amizades. Já alto, pelas doses de cachaça, o músico pega a sua flauta e inicia uma roda de choro e samba. Tudo pago à custa do cachê da noite. “O menino bom”, cantado em verso e prosa, chegou a receber o seguinte comentário do seu parceiro em “Lamento”, o poeta Vinicius de Moraes: “É o melhor ser humano que conheço. E olha que o que eu conheço de gente não é mole.” O pequeno negro, que a mando do pai subia as escadas da Pensão do Choro para dormir cedo, já era a essa altura um jovem de 14 anos pronto para registrar definitivamente seu nome na história da música brasileira. Nascido no dia 23 de abril de 1897, morador do Catumbi e de Piedade, deixara para trás o nome de batismo Alfredo da Rocha Vianna Filho. O Rio de Janeiro, e em breve o Brasil, só o conheceriam pelo sonoro apelido de PIXINGUINHA.
NOTAS 1 CABRAL, Sérgio. Pixinguinha: Vida e obra. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2007, p.28. 2 SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção e o tempo: 85 anos de músicas brasileiras – Vol. 1: 1901 – 1957. São Paulo: Editora 34, 1997, p. 60. 3
CAZES, Henrique. Choro: do quintal ao Municipal. São Paulo: Editora 34, 1998, p.54.
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CABRAL, Sérgio. p.72.
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Depoimento de Pixinguinha ao Museu da Imagem e do Som em 6 de outubro de 1966.
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BARRETO, Paulo (João do Rio). Cinematógrafo (Crônicas cariocas). Porto: Livraria Chardron (Lelo & Irmão), 1909, pp. 130-1.
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CABRAL, Sérgio. p. 33.
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