Devemos ser a mudança que queremos ver

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“DEVEMOS SER A MUDANÇA QUE QUEREMOS VER” TEXTO: Catarina Ferreira

Donderdag1. Amesterdão já conheceu dias mais luminosos, mas a cidade brilha por si própria. Nos edifícios nunca muito altos, de múltiplas cores, desenham-se enormes janelas de vidro. Nas paredes coloridas apoiam-se bicicletas, tantas vezes já ferrugentas para não atrair a mão dos ladrões e porque aqui o ritmo dos dias é marcado sobre duas rodas – sobre duas rodas se fazem entregas, se soltam sorrisos para quem passa e se vendem flores cuja vivacidade lembra a das pessoas que sobre duas rodas, ou sobre dois pés, cruzam as ruas. É através de uma das enormes janelas de vidro que, todos os dias, vejo a cidade acordar, no aconchego do acolhedor “Café Saudade”, propriedade de um casal simpático de emigrantes portugueses. Como eu, que há cinco anos que deixei o meu país em busca de um sonho que, ainda hoje, não sei bem qual é. Hoje sei apenas que os sonhos nem sempre são como os sonhámos. (À noite, Amesterdão transforma-se. Todas as noites troco a enorme janela de vidro do “Café Saudade” por uma enorme janela de vidro através da qual escapa um raio de luz vermelha igual a muitos outros que se estendem ao longo dos passeios e tornam este um dos bairros mais famosos da cidade. Multidões cruzam, como de dia, as ruas do Rossebuurt2 – como é conhecido pelos locais-, mas os sorrisos transformam-se, também eles, em olhares de soslaio recheados de indiscreta curiosidade.) Almofadas de um amarelo fraco forram confortavelmente o assento das cadeiras de madeira e bolos que transparecem frescura sorriem, pela vitrina do balcão, para os olhos de quem chega. Escolho sempre a mesma mesa, com vista privilegiada para o exterior, e, ao entrar, o “bom-dia, Anabela” da D. Esperança substitui o “goedemorgen”3 ouvido há cinco minutos na banca dos jornais, como acontece manhã após manhã. Aqui sinto-me mais perto de casa

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“Quinta-feira” em neerlandês. “Bairro da Luz Vermelha”. É uma zona de prostituição em Amesterdão, onde o sexo pago é legalizado. É conhecido por este nome devido às lâmpadas e néones de cor vermelha que iluminam as ruas. 3 “Bom-dia” em neerlandês. 2

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e,

enquanto

folheio

o

De

Telegraaf4

acabado

de

comprar,

espero

pacientemente pelo café expresso que há-de aquecer-me as mãos. (À noite, Amesterdão transforma-se e eu também. Aqui, sou sempre e somente Annabel. A atmosfera intensa que envolve o bairro também nos envolve e não nos deixa espaço para fugir. De repente, esqueço o vermelho da luz fixa sobre mim que atravessa as vidraças para me lembrar da saudade, palavra tão tipicamente portuguesa - como eu. Lembro-me dos sonhos, mas sei que não posso esquecer a realidade.) Todos os dias, invariavelmente, o "bom-dia, Anabela" me leva de volta ao momento em que, há tantos anos, a minha avó me disse, a sorrir, ao entrançarme os longos cabelos castanhos, que talvez o meu nome - nome de mulher com horizontes amplos e expectativas elevadas - fosse um impulso para chegar mais longe. A voz terna da D. Esperança quebra as linhas do meu pensamento, como todas as manhãs, com a mesma pergunta: - Então, Anabela? Estás triste? - Não, D. Esperança… – e suspiro – mas os sonhos nem sempre são como os sonhámos, e talvez eu sonhasse chegar mais longe. - Devemos ser a mudança que queremos ver, Anabela. Foi Gandhi quem o disse. E, num sorriso ténue de compreensão, assenta sobre a mesa, ao lado do De Telegraaf agora dobrado ao meio, o café expresso e uma fatia de bolo de chocolate e pistáchios, voltando, lentamente, para trás do balcão. (O rumor da rua afasta-me as lembranças. Há um homem bem parecido parado em frente à enorme janela de vidro, em frente a mim. Não terá mais de 25 anos. Observa-me. Não brilha nos seus olhos a curiosidade indiscreta que brilha nos dos outros, ou nos dos turistas que, de máquina fotográfica em punho, fotografam janelas ocupadas e enraivecem tantas outras iguais a mim. Mas algo brilha. Num impulso de timidez sinto-me ser, de novo, apenas a Anabela de amplos horizontes e longos cabelos castanhos e fixo os meus olhos no chão. Este não foi o sonho que eu sonhei.) Levanto-me e aperto os botões da gabardine castanha que me protege do frio da manhã. Apoio o cotovelo sobre a vitrina onde os bolos ainda sorriem. 4

É o maior jornal de circulação diária (matinal) dos Países Baixos, com uma média de aproximadamente 800.000 exemplares por dia. (Wikipedia)

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A D. Esperança sorri-me, igualmente, de dentro do balcão, na outra ponta do café, e aproxima-se. Deixo-lhe na mão a meia dúzia de moedas suficiente para pagar a conta do pequeno-almoço e, antes de sair, há tempo para escutar um “tot morgen, Annabel”. Depois de cá estar há mais de uma década, aprendeu a falar um neerlandês perfeito. Amesterdão é sempre assim pela manhã. - “Até amanhã, D. Esperança” – e, num aceno, a habitual e diária despedida. (O meu olhar perde-se uma vez mais através da janela na multidão indistinguível que enche a calçada, mas já não o vê. Quem seria aquele homem? Que brilho tão… português seria aquele? Uma nota estendida recorda-me, numa noite igual às outras, o preço pelo qual se destrói um sonho que nem sequer se sonhou. São três da manhã.) Vrijdag5. Amesterdão já conheceu dias mais luminosos. Se a escolha fosse minha, todos os dias seriam de sol – como em Portugal, onde nem no Inverno os raios que aclaram os fios dos meus cabelos quando saio da casa pela manhã se extinguem. Há escolhas que não estão ao nosso alcance e, enquanto caminho vagarosamente e respiro o cheiro a flores que, como é costume, inunda as ruas, eu pergunto-me se a mais importante estará ao meu. Após cruzar a esquina encontro o toldo branco em que um “Café Saudade” escrito a letras castanhas emerge e a expectativa de um “bom-dia, Anabela” antecede já, tal é o hábito, o meu pé esquerdo, que pisa agora os ladrilhos creme do chão. Contrariamente ao que esperava, uma voz masculina ecoa no café. De costas, encostado ao balcão e brincando com os pacotes de açúcar deitados dentro de uma pequena cesta de verga está um homem. Fala português. As palavras escapam-lhe apressadas da garganta, como se há muito tempo esperasse dizê-las, e há um sorriso encoberto no entusiasmo com que as diz. Solto um “bom-dia” baixo e ele volta-se, de súbito. Bem parecido. Não terá mais de 25 anos. Os meus olhos conhecem os dele, mas os dele aparentam não conhecer os meus porque à noite Amesterdão se transforma e eu também. Sento-me na mesa de sempre e folheio, desinteressadamente, o jornal.

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“Sexta-feira” em neerlandês.

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- “Foi o que se passou! Não lhe parece inacreditável, D. Esperança?! Mas não ter desistido foi a escolha certa!” – Conclui, assim, rapidamente, o raciocínio interrompido pela minha voz, antes de pegar na pasta preta pousada perto dos seus pés e sair porta fora em passos carregados de confiança, mesmo sem a resposta à pergunta que fizera. A D. Esperança acerca-se de mim com um tabuleiro e o meu “bom-dia”. Não me pergunta se estou triste. Sem que nada lhe diga pousa-o na mesa, acomoda-se na cadeira da frente e fala, descontraidamente, do diálogo de minutos antes, durante outros longos minutos, até que termina: - “… Enfim, Anabela, é a prova de que procurar o melhor é sempre um bom caminho.” Coloca levemente a mão sobre a minha e sorri. (A luz vermelha, as pessoas, a janela de vidro a separar-me da realidade e, ao mesmo tempo, a empurrar-me para ela. Os olhares de curiosidade indiscreta são os mesmos de tantas outras noites. Respiro fundo, fixo os olhos no chão e penso com muita força na mudança que quero ver. Talvez assim a seja, um dia.)

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