Anjos caídos 01 o amante

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Robin Schone O Amante

Disponibilização, Tradução e Revisão: Lica Antunes Revisão Final: Tessy Silva Formatação: Gisa PROJETO REVISORAS TRADUÇÕES

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Aos 36 anos, Anne Aimes é uma solteirona cuja única atração reside em sua enorme riqueza. Mas atrás de sua aparência se esconde uma mulher apaixonada que deseja sentir sobre sua pele as mais ardentes carícias. Michel de Anges é o sedutor do momento: todos elogiam sua capacidade para agradar suas amantes. E tudo o que vai custar a Anne são dez mil libras. Trespassado pela tragédia e impulsionado por sua ânsia de vingança, Michael procura esquecer de si mesmo satisfazendo uma mulher que a única coisa que lhe pede é prazer, que nem sequer suspeita quais são suas mais íntimas necessidades ou os motivos pelos quais aceitou sua proposta. Incapaz de resistir à maré de um desejo cada vez mais ardente, Michael enredará Anne em uma sórdida trama em que o preço do prazer será a vida dela…

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Capítulo 1 Morte. Desejo. Michael não sabia qual dos dois o havia trazido de volta a Londres. Sentou e esperou que ambos chegassem. As vozes subiam e desciam a seu redor. As pontas vermelhas dos charutos acesos pareciam olhos de ratos famintos. As chamas das velas tremiam, os cristais cintilavam, as jóias brilhavam. Mulheres vestidas com chamativos vestidos longos de seda e cavalheiros embelezados com jaquetas negras e coletes brancos se amontoavam em uma escada de carvalho coberta por um tapete vermelho que amortecia o som de seus passos. Não havia dúvidas sobre o que os havia trazido para aquele local exclusivo. Na Casa de Gabriel a bebida se cobrava por taças e os quartos se alugavam para o sexo. Uma risada feminina saiu de um canto escuro coberto por cortinas de veludo. Michael sabia perfeitamente o que os homens sussurravam ao redor das mesas iluminadas por candelabros enquanto esperavam sua vez ou recuperavam forças. Também era consciente do motivo pelo qual as prostitutas riam ao mesmo tempo em que bebiam champanha. Michel de Anges. Michael dos Anjos. Um homem a quem antes as mulheres pagavam para que lhes desse prazer, e que agora tinha que pagar para obter prazer delas. —Mon frére - Gabriel apareceu sem aviso junto a ele. Não tocou em Michael (não havia tocado ninguém em muito tempo)—. Ela está aqui. Lentamente, Michael virou a cabeça para olhar Gabriel. Seus olhos violetas se encontraram com os prateados. Gabriel manteve o olhar fixo no rosto de Michael, e ele tampouco pôde afastar seus olhos da beleza loira e etérea de Gabriel. Meus dois anjos, havia dito madame de maison de rendezvous quando vinte e sete anos antes os tinha salvado de morrer de fome nas ruas de Paris. O moreno para as mulheres. O loiro para os homens. Naquele tempo, naquele tempo eram rapazes de treze anos que escaparam de casa. Agora tinham se transformado em homens de quarenta anos. E ainda fugiam do passado. —Está sozinha? —perguntou Michael. —Sim. Os testículos de Michael se encolheram diante aquela expectativa. Como um sinal de ira frustrada. Ela não merecia isto, aquela mulher vinha para ele em busca de satisfação sexual. —Ainda não é muito tarde - murmurou Gabriel—. Posso lhe dizer que vá e acabou o problema. Cinco anos antes Michael teria estado de acordo. Cinco anos antes teria pensado que seu segredo estava a salvo. Muito tarde. Ambos estavam presos: a mulher por sua necessidade de prazer e ele por sua necessidade de vingança. Michael sorriu. Conhecia o efeito daquele sorriso, quando a pele escura se enrugava, provocando rejeição mais que atração. Era um sorriso desprovido de alegria. —Não se precipite mon vieux. Quando ela vir meu rosto, certamente pensará que foi extorquida. —Ela não vem aqui com os olhos enfaixados - Gabriel respondeu com acuidade de um chicote—. Seu procurador terá dito às deficiências que encontraria. 4


Como poderia alguém preparar uma mulher para o homem em que ele se transformou? Como poderia uma mulher desejá-lo, sabendo o que era? —Essa é a razão pela qual não se acovardasse, Gabriel? —foi à ácida resposta do Michael—. Porque sabia o que podia esperar? —Deixa assim. —Luzes e sombras dançavam sobre as feições perfeitas de Gabriel. Era impossível ler sua expressão—. Entre os dois encontraremos outro caminho. Mas não havia outro caminho, como tampouco houve outro caminho vinte e sete anos antes. Michael considerou desapaixonadamente as conseqüências de seu plano. E sabia que nada poderia parar o resultado deste encontro. A vida de uma mulher em nome da vingança. Já tinha matado seis pessoas. O que significava uma mais? —Leve-a a minha mesa. Certa calma se apoderou de Gabriel. —Está tão desesperado por uma mulher, Michael? Michael emitiu um grunhido de dor. Sim, estava. A madame de maison de rendezvous tinha outorgado o dom da redenção. Tinha aprendido a enterrar o horror de sua infância entre o cheiro e o sabor das mulheres. E através do prazer que as fazia sentir se encontrava ou não a paz, ao menos um consolo. Agora as prostitutas estremeciam quando ele as tocava. Já não podia resistir à vida que tinha sido obrigado a viver durante aqueles últimos cinco anos, preso em um corpo que o separava do único ato que tornava suportável sua existência. Teria preferido morrer, e arrastar consigo o homem que tinha sido o responsável por tudo: da vida que tinha feito dele um vegetal suscetível de ser vendido a qualquer mulher capaz de dar o luxo de pagar seu preço. Com um semblante totalmente inexpressivo, Michael devolveu o olhar que Gabriel lhe dirigiu. —E você, não está Gabriel? Pôde ter sido um vento que tinha feito tremer a chama da vela, ou a corrente de ar criada por um homem e uma prostituta ao levantar-se de uma mesa vizinha. Tinha-lhes chegado o turno. Agora era o de Michael. Gabriel se perdeu silenciosamente entre as sombras nas quais agora vivia. Minutos depois reapareceu na porta com seu cabelo loiro tão brilhante como uma auréola de prata. A mulher que o acompanhava vestia uma capa teatral de veludo cinza com a cabeça discretamente envolta em um capuz. Era elegante. Cara. Desenhada para ocultar mais que para revelar. Com toda segurança, não era o traje de uma prostituta. Ficou imóvel uns instantes sob o arco da porta, como se hesitasse em entrar naquele lugar, aonde todos seus desejos podiam ser satisfeitos. Prazer. Dor. Nada era proibido na Casa de Gabriel. A paixão ressurgiu no interior de Michael, queimando-o mais que qualquer chama. O fogo nem sempre matava. Não cometeria o mesmo engano. Espontaneamente, seu membro viril se endureceu como uma antecipação da noite que o esperava. Recordou a sensação que produzia deitar-se ao lado de uma mulher que o desejava. Imaginou como seria deitar-se ao lado daquela mulher essa noite. Estava disposto a fazer tudo o que fosse necessário para lhe proporcionar prazer. Usaria todos e cada um dos órgãos de seu corpo para levá-la ao orgasmo. Seus lábios. Sua língua. Seus dentes. Suas mãos. Seu sexo. Usaria-os a conscientizar para lhe dar cada vez mais.

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Beijos ardentes. Carícias atormentadoras. Dentadas capazes de pôr a prova os limites entre o prazer e a dor. Toques tão suave como um suspiro. Incursões profundas de seus dedos seguidas por arremetidas ainda mais profundas de seu pênis. Desejava a vingança, mas, que Deus o ajudasse, desejava ainda mais a paixão de uma mulher. Michael não se alterou quando ela parou junto a sua mesa. Suas feições apenas se distinguiam sob a sombra de seu capuz, mas o rosto era visível em sua totalidade. Podia sentir seu olhar, como havia sentido os olhares de todas as mulheres durante os últimos cinco anos. Michael não teve a mínima dúvida com respeito ao que ela estava olhando. Uma chama lambera sua face direita como se fosse à língua de um amante. Preparando-se para algo que não sabia o que era, esteve a ponto de soltar um grito de horror, de negação raivosa: aquele não era Michel de Anges. Aquele não era um homem a quem uma mulher pudesse pagar para ter sexo com ele. Lutando contra o impulso de afastar sua cabeça do olhar inquisitivo que estava dirigindo, permitiu-lhe ver o que conseguiria por dez mil libras esterlinas, a soma de dinheiro que seu notário tinha devotado a ele por um mês de serviço. Um zumbido enérgico se elevou por cima do atropelado murmúrio das risadas femininas e as especulações masculinas. Fizeram-se apostas, calcularam-se probabilidades. A têmpora esquerda de Michael palpitava no ritmo da piscada hipnotizantes das luzes e as sombras. As imagens mudavam dentro de sua mente como as imagens pintadas de uma lanterna mágica: uma moça jovem, sorridente; uma senhora de meia idade, ofegante. Os vermes agitandose. Os seios tremendo. Morte. Desejo. Ambos atraindo-se. Ambos esperando. —Monsieur De Anges. A espera terminou bruscamente. Sem se dar conta da espera que tinham provocado um exemplar do sexo feminino, claramente desejável, em companhia de Gabriel, o anjo intocável, e de Michael, o anjo temeroso, a mulher sentou em uma cadeira que Gabriel colocou para ela, fazendo ranger ligeiramente a madeira enquanto o veludo de seu vestido deslizava suavemente, produzindo um tênue sussurro. —Monsieur de Anges - saudou em voz baixa, culta, surpreendentemente sedutora—. Como está? A ondulante luz da vela deixou ver um queixo firme e maçãs do rosto arredondadas. Seu nervosismo, debaixo de sua distinguida calma exterior, era evidente. Vigorosamente, Michael aplacou a sexualidade intensa que lhe tinha feito ganhar uma fortuna em dois países. Seu notário havia dito que o contrato não lhe valeria até que ele passasse de maneira satisfatória na prova daquele primeiro encontro.Ainda podia arrepender-se. Se o fizesse, ele a perseguiria. Não queria tomá-la pela força. Queria que ela o desejasse. Precisava que ela o desejasse tão intensamente que o fizesse tremer. Michael falava tranqüila e suavemente, como se não tivessem transcorrido cinco anos desde que se sentou com uma mulher do outro lado da mesa. Como se não tivessem transcorrido cinco anos desde que uma mulher não sustentava o olhar sem piscar. —Deseja tomar uma taça de champanha, madame? —Não estou casada, monsieur, se essa for sua pergunta. Ele era plenamente consciente de seu estado civil. Chamava-se Anne Aimes. Tinha trinta e seis anos. Solteira empedernida, a cor de seus olhos se aproximava do azul pálido e seu cabelo, que parecia beijado pela prata, não era nem loiro nem castanho. Não havia ninguém que pusesse em dúvida sua condição. Não havia ninguém que pudesse errar. 6


Ninguém a desejava, salvo ele mesmo. —Não me importaria que você fosse casada - disse ele sinceramente. —Acredito que... Sim. Obrigado - respondeu ela ao se dar conta da suavidade de sua própria feminilidade, em comparação com a dureza da masculinidade de um homem—. Eu gostaria de tomar uma taça de champanha. Atrás dela, Gabriel levantou a mão para chamar um garçom antes de desaparecer de novo entre as sombras de sua vida. Imediatamente apareceu um homem embelezado com uma impecável jaqueta negra e um colete carmesim. Trazia uma bandeja com duas taças e uma garrafa de champanha em um recipiente de prata com gelo. —O serviço daqui é excelente - comentou ela com delicadeza e amabilidade. Michael se perguntou se ela saberia que o garçom, além de servir bebidas nas mesas, também oferecia seus favores sexuais. Perguntava se ela seria tão delicada e tão amável entre os lençóis de seda. Perguntava-se até onde chegaria àquela farsa antes que a repulsão a fizesse gritar em meio da noite. Um breve e amargo regozijo o fez levantar os olhos. —A Casa de Gabriel é conhecida pelos serviços que dispõem. Michael despachou ao garçom quando este estava a ponto de servir o champanha. Agarrando o magro pescoço da garrafa com a mão direita e uma taça de cristal com a esquerda, levantou de propósito ambas as mãos, de maneira clara e contundente, para que ela visse o que ele via todos os dias de sua vida. Se não suportasse a visão de suas mãos marcadas, das rugas tumefações dos cardeais vermelhos e brancos que iam da ponta de seus dedos até mais acima de seus braços —, não seria capaz de aceitar que ele a tocasse. Seguiu seus movimentos com o olhar, para frente e para trás, da ponta de seus dedos às cicatrizes brancas que apareciam por debaixo das mangas de sua jaqueta negra. Agora sairia correndo, como tinham feito todas as mulheres. Por compaixão. Por desgosto. Por desprezo. — Você se queimou. Seus dedos se fecharam na garrafa e na taça, absorvendo o frio e a força da areia que tinha sido transformada pelo fogo. As lembranças de seus derrotados gritos de agonia se misturaram com aqueles da mulher que tinha levado ao êxtase. —Queimei-me - disse ele em um tom desprovido de emoção. Estava ligeiramente surpreso pela firmeza de suas mãos ao servir o champanha. Com o peito tenso, ofereceu-lhe a taça do borbulhante vinho, esperando, esperando... Esperando que ela tomasse entre seus braços como ele tinha feito, infinita e incansavelmente. Uma sensação inconfundível percorreu suas costas. Quase deixou cair à taça ao contato sedoso de seus dedos enluvados. Fazia cinco anos que uma mulher não tocava suas mãos. As prostitutas preferiam colocar seu membro dentro delas antes de arriscar-se que suas carnes rasgadas as tocassem. Ela parecia não haver se dado conta do fenômeno que acabava de acontecer. Inclinando a cabeça, bebeu alguns sorvos do líquido dourado e espumoso antes de pôr a taça em cima da branca toalha da mesa. —Por que se chama Michel... De Anges? A pergunta o surpreendeu. Fazia tanto tempo que se fazia chamar Michel... Por que ela não o rejeitava? Fechou delicadamente suas grosas pestanas negras, um velho truque que Michel tinha aprendido —e aperfeiçoado— sob a tutela da proprietária da casa de programas. —Voir os Anges - murmurou cripticamente, perguntando-se até onde se arriscaria a ir, até que extremo chegaria sua audácia. A algumas mulheres gostavam da conversas sexuais diretas e francas. Outras preferiam os eufemismos sensuais. Ele não compreendia a aquela solteirona. Ela traduziu cuidadosamente suas palavras, como se não falasse francês desde sua época escolar: —Ver os anjos.

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—Ver anjos - corrigiu ele com suavidade, pendente de sua reação—. É uma expressão francesa para designar os orgasmos. —Fez-se chamar Michael de Anges por sua habilidade para ter orgasmos? Lentamente, ele serviu sua própria taça de champanha, enquanto ela esperava a resposta. Introduziu a garrafa no recipiente de gelo como se a garrafa fosse seu pênis e o cubo a vagina dela— e caiu na armadilha de seu olhar. —Faço-me chamar Michel de Anges, chérie, por minha habilidade para levar às mulheres ao orgasmo. A comoção abriu passo ao conhecimento resplandecente. De suas necessidades sensuais. Da habilidade dele para satisfazê-las. O sexo era um jogo excitante. Perigoso. Um jogo no qual até uma solteira antiquada como ela podia comprometer-se, sempre e quando pudesse permitir o luxo de pagar o que custava. Ela brincava com a arredondada base de sua taça. —Você esteve com muitas mulheres. Não era uma pergunta. —Sim. Primeiro na França, depois na Inglaterra. —Levou todas ao orgasmo? Os ecos de paixões desaparecidas faziam muito tempo, mas nunca esquecidas, ressoavam no interior de sua cabeça. Cada mulher emitia um som muito particular no momento de chegar à culminação. —A todas - disse Michael enquanto curvava seus dedos ao redor da taça, como se fosse um seio feminino—. Em todas às vezes. O líquido espumoso derramou sobre a mão dela, fazendo que uma mancha escura se estendesse pelo dorso de sua pálida luva de seda cinza. —Sou virgem. Céus! Ele não tinha esperado aquilo. Ela era uma perfeita solteirona, mas certamente tinha havido alguém em sua vida: um amigo de infância com quem experimentar, um rapaz mais interessado em explorar os mistérios da feminilidade que em cortejar à beleza local. Um homem qualquer, algum rapaz, alguém. Ele jamais se deitou com uma virgem. —Por quê? —perguntou Michael de agora, e não o Michel que nunca tinha dormido sozinho. Por que uma mulher entregaria sua virgindade a um homem com uma aparência como a sua? Ela jogou a cabeça para trás, rota a quimera da tensão sexual. —Como disse? Ele inclinou-se para ela com os olhos semicerrados e o rosto só uns centímetros da chama da vela que tão facilmente podia consumir-se fora de controle. —Por dez mil libras esterlinas, qualquer solteiro deste lugar se casaria com você. O porta-voz oficial da Câmara dos Comuns está sentado três mesas mais à frente. O barão Stinesburg se encontra atrás de você. Por que está fazendo isto? E entre todos os homens, por que comigo? A luz da vela se agitou, iluminando um nariz fino, revelando pálidos lábios apertados que não eram nem magros nem grossos. —É possível, monsieur De Anges, que tenha visto a morte muitas vezes para me deixar enganar por algumas cicatrizes. Talvez deseje ver anjos. A respiração de Michael quase parou em seu peito. Morte. Desejo. Tinham fechado o círculo. Ela não merecia isto. Mas tampouco as que tinha conhecido antes dela. Decididamente, colocou sua taça de champanhe em cima da mesa e estendeu suas mãos sobre a toalha de seda branca. 8


—Acariciarei-a com estas mãos. Penetrarei seu corpo com estes dedos. Pode dizer honestamente que não se arrependerá de haver me permitido isso? A chama da vela se sacudiu com um vento. Ela inclinou a cabeça. —Não posso responder senhor, já que nunca senti os dedos de ninguém dentro de meu corpo. Atreveria-me a dizer que tudo depende de quantos use para me penetrar. Michael não queria a inocência de uma mulher. —Sabe o que acontecerá quando a levar para cama? —Se não soubesse, não estaria aqui. Uma admiração ressentida o invadiu. Havia fortaleça em Anne Aimes, uma fortaleza nascida da ignorância. Não era possível que conhecesse o prazer que lhe exigiria nem o clímax que ele a levaria. —Não é muito tarde. Não soube de onde surgiam suas palavras. É possível que dentro dele ainda existisse uma mínima parte do homem que era antes. —Ainda pode mudar de opinião. Mas até aquele inesperado arranque de galanteria era mentira. Não teria permitido aquela noite, que se arrependesse. Ela tinha selado sua sorte quando enviou seu procurador que o tirasse daquela condenação de cinco anos de solidão em que tinha vivido até então. —Não desejo mudar de opinião - disse enquanto endireitava os ombros embaixo das dobras de seu traje de veludo cinza. Michael a imaginou nua, com os seios descobertos e as coxas ao ar, sem poder esconder-se atrás de tecidos refinados, e a ponto de gritar de prazer. A energia sexual que tinha controlado tão cuidadosamente se transbordou. Ela sentiu e respondeu. Aquela mulher que tinha vindo a ele em busca de prazer não era bonita, mas ele não precisava de beleza física. Anne Aimes o desejava. Apesar de suas cicatrizes. Isso era mais que suficiente. Ele não a desiludiria, e durante o tempo que estivesse com ela seria Michel, o homem que fazia que as mulheres vissem anjos, e não Michael, o homem que as levava a morte. —Um mês de prazer— disse, afastando a taça de champanha—. Farei tudo que você deseje, e tantas vezes como desejar. —Isso é o que estou comprando, monsieur De Anges - respondeu ela, umedecendo os lábios com um rápido movimento da língua. Um sorriso apareceu em sua boca. Anne Aimes tinha adquirido sua fortuna fazia relativamente pouco, e ainda não se deu conta de que não era o dinheiro o que controlava aos homens. Era o sexo. E a vingança. O dinheiro simplesmente permitia a realização destas duas necessidades tão díspares. —Asseguro-lhe, chérie, que não esquecerei o que você está comprando. Jogando para trás o assento, parou e lhe tendeu a mão. Ela hesitou um breve instante antes de aceitá-la. A euforia se apoderou dele, seguida de um arrebatamento de luxúria que por pouco o faz cair de joelhos. Michael a conduziu entre as mesas iluminadas pelas chamas das velas, atento para que o rosto dela permanecesse na sombra, enquanto ele mostrava com descaramento o seu diante dos homens com cujas esposas, filhas e amantes se deitou tantas vezes.

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À manhã seguinte, a notícia se propagaria até os cantos mais afastados da Inglaterra: Michel de Anges havia voltado e, embora desfigurado, uma mulher tinha comprado seus serviços. Anne Aimes parou quando compreendeu qual era seu destino. —Achei que na parte de acima há quartos onde podemos... Estar juntos. Sim, no piso superior havia quartos. Quartos opulentos, engalanados com espelhos biselados e toda espécie de artifícios aptos para procurar a satisfação sexual de homens e mulheres. Michael não queria que sua primeira vez fosse em um local noturno, e voltando-se para ela com destreza, recostou-a contra o marco da porta e tomou o rosto com as mãos. Ela não se opôs ao tato de sua pele rasgada pelas queimaduras. Friamente, calculadamente, aprisionou-a contra a parede e a pressionou com sua virilha. Seu corpo, debaixo do vestido, parecia procurar o amparo de sua armadura feminina. O espartilho de baleias não ocultava a ereção de seus mamilos, e suas anáguas não podiam mascarar a complacente as boas vindas que brindava seu ventre gentilmente arredondado.Suas faces eram suaves e lisas, como o veludo - mais suaves ainda que seu vestido—. O sangue se acumulou sob seus dedos. Medo. Despertar. Uma prostituta conhecia os perigos de ceder ante uma paixão desenfreada. Fora do bordel ou de um local noturno, uma mulher se encontrava indefesa. Podia ser escravizada. Violentada. Assassinada. Mas Anne não era uma prostituta ocasional; era uma virgem que ainda não tinha saboreado o prazer —ou a dor— que um homem podia lhe proporcionar. Não sabia que confiar em um estranho podia lhe ocasionar a morte. Ele inclinou a cabeça para frente, inalando os aromas combinados do sabão e a inocência e, por debaixo deles, o perfume sedutor de seu desejo. A fome da Anne Aimes não era tão voraz como a sua. Ainda. —Deve confiar em mim - sussurrou Michael ao ouvido—. Quando finalizar a noite, conhecerei cada milímetro de sua pele. Explorarei todas as frestas de seu corpo. Se não puder confiar em mim fora desta casa, tampouco o fará na hora de alcançar os abismos insondáveis do prazer. Se não puder contemplar a idéia de confiar-se em mim de maneira completa e incondicional, os termos de nosso contrato não poderão ser cumpridos. E me verei obrigado a dizer au revoir agora mesmo. Mais mentiras. Ele não era capaz de abandoná-la. Não essa noite. Tampouco amanhã. Beijou-a ligeiramente com seus lábios intactos pelo fogo que lhe tinha tirado tudo. Foi à esperança de um beijo, o sussurro de seu fôlego, o estalo de sua língua. Um prelúdio e uma promessa. A eletricidade fluiu entre eles. A necessidade dele. A necessidade dela. Ela desejava deitar-se com um homem. Ele desejava perder-se dentro de uma mulher. Seus corpos se inflamaram quase até alcançar a dor, conscientes de que, ao menos aquela noite, seus desejos ficariam satisfeitos. Ela ofegou com seu fôlego adoçado pelo champanha e pelo cáustico sabor, um pouco mais tênue, do creme dental. Ele sentiu uma estranha pontada no peito. Ela tinha lavado os dentes antes de seu encontro. Por medo de que ele pudesse sentir repulsão por ela.

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Aproximando-se furtivamente à dura ameaça de sua masculinidade, moveu os ombros por debaixo de seu traje de veludo. —Asseguro-lhe que os termos do contrato serão cumpridos, monsieur De Anges. Vamos? Michael deixou que fosse diante dele, abandonando a segurança da Casa de Gabriel, cheia de fumaça, e saindo ao ar fresco da primavera. Perguntava se ela, ao cabo de um mês, ainda o desejaria. Perguntava se ela, ao cabo de um mês, ainda estaria viva. Capítulo 2 Michel de Anges ocupava o cambaleante e cansativo carro de aluguel, roubando o oxigênio, usurpando o espaço. Seu corpo acendia o de Anne através do vestido, dos quadris até os ombros; a lembrança do roçar de sua boca queimava os lábios, por dentro e por fora, e o orgasmo era uma promessa viva e palpitante. Todas as mulheres, todas às vezes, pareciam chiar as rodas da carruagem. Dezoito anos antes tinha pensado que ele era o homem mais bonito que tinha visto em sua vida. Agora era dele. Tinha pagado por ele com o dinheiro que, se houvesse casado, teria sido seu dote. Anne queria gritar ao chofer que parasse. Ou talvez quisesse gritar que apressasse o passo, para que pudesse começar a noite. O homem que tinha a seu lado falava um inglês preciso, tão frio e abreviado como se fosse um cidadão britânico de nascimento. Não era o homem que ela recordava. Salvo por aqueles incríveis olhos violetas. Pareciam inflamados por uma selvagem sexualidade. —Disse que fará tudo o que eu quiser—declarou Anne diante da porta do cabriolé. O interior se iluminou brevemente através da imunda janela a suas costas, e o farol do sistema de iluminação público rompeu a inquietante escuridão, permitindo observar a trabalhada tapeçaria cor marrom que forrava os lados do veículo—. E disse que o faria tantas vezes quanto eu quisesse. O gretado couro que agora sentia sob suas nádegas deslizou e rangeu. Podia sentir os olhos de seu acompanhante sobre ela. —Para isso me paga. Mas ela não sabia o que pedir. Só sabia que o desejava. O contato com um homem. O corpo de um homem. Sua própria satisfação. —E o que acontece se... Se uma mulher não souber o que pedir? —perguntou Anne com uma voz surpreendentemente forte que se elevou sobre o monótono som dos cascos dos cavalos e das rodas da carruagem—. O que acontece se... Se não souber quantos dedos quer ter dentro dela? —Então os introduziria um por um - disse Michael com uma voz escura e áspera—, até que ela não agüentasse comodamente nenhum mais. Anne apertou as coxas ante a aguda pontada de desejo que suas explícitas palavras provocaram nela. Recordou suas mãos estendidas sobre a toalha branca de seda que cobria a mesa da Casa de Gabriel, e não viu as cicatrizes - imperfeições corriqueiras em comparação com as lesões produzidas pela artrite ou pelo câncer—, e sim o comprimento e a largura de seus dedos. —Quantos dedos requer normalmente uma mulher? —Três. Às vezes quatro. Seus dedos eram largos e muito mais grossos que os seus. —É quase certo que com quatro dedos não me sentiria cômoda. —O prazer sexual nem sempre é um assunto de comodidade. Asseguro-lhe que quando estiver adequadamente preparada, seu corpo se amoldará aos quatro dedos e suspirará por mais.

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—Como saberá que estou adequadamente preparada? —perguntou Anne tentando controlar sua respiração. —Quando seu corpo estiver quente e úmido - disse ele sem rodeios. Seu corpo já estava quente e úmido. —Quantas vezes pode... Levar a uma mulher ao orgasmo? Um suspiro fez que caísse o capuz que cobria a cabeça. Teve que lutar consigo mesma para manter suas mãos em cima de seu colo. O homem conhecido por sua habilidade para levar às mulheres até o paroxismo do orgasmo já não parecia formoso, mas era misterioso e perigosamente atraente. O único encanto dela era o dinheiro. Mas, com toda certeza, nem sequer aquilo podia cegar um homem de paixão frente aos fios de cabelo branco que marcavam seu celibato. —Tantos orgasmos quanto ela queira. Tantos orgasmos como você quiser, mon amour. Quando pronunciou aquelas sensuais palavras francesas, revelou com claridade sua procedência. Sua voz se fez mais profunda e se tornou melódica, sedutora, uma voz que prometia tudo o que ela sempre quis ato sexual que uma virgem nunca havia nem sequer imaginado. —Peço-lhe, por favor, que não me chame mon amour. Não sou seu amor; sou sua patroa. E se assustou. Pela força de seu desejo. Pelo homem que se achava sentado a seu lado. Por todas as coisas que poderia fazer; por todas as coisas que poderia não fazer. Meu Deus. O que estava fazendo? Seus pais, velhos e doentes, tinham morrido fazia menos de um ano. Entretanto, em vez de chorá-los, só se preocupava de suas próprias necessidades egoístas. Necessidades que uma mulher solteira não devia ter, e muito menos confessar. Um fôlego quente acariciou seus ouvidos. —Disse que sabia o que aconteceria quando te levasse para cama. Anne continuou sentada, imóvel e perfeitamente erguida, como tinha aprendido durante sua breve e desastrosa temporada de rica herdeira em meio da maré de homens e mulheres desprezíveis que a cortejavam pela frente e debochavam dela por trás. Não queria que este homem debochasse dela. —Não ignoro os aspectos mecânicos do sexo, monsieur. —De verdade? —comentou ele com voz cálida—. Descreva-me o que ocorrerá quando te levar à cama, mademoiselle. Anne lambeu os lábios, secos como pó de carvão. O que ouvia lhe queimava os ouvidos e a estremecia por dentro. —Unirá seu corpo ao meu. Como os animais. Mas os animais não se preocupavam com o fracasso nem a estupidez. A escuridão envolveu Anne, uma escuridão que, entretanto, não tinha nada que ver com as frágeis luzes de gás que se alinhavam aos lados da estreita rua londrina. Um calor úmido pegava a seu cabelo, e acariciava as faces, igual ao fôlego de Michael, que a obrigou a olhar, tampando a porta da carruagem, enquanto curvava seu corpo ao redor do dele. —Viu alguma vez a um homem nu, chérie? Anne teria que havê-lo repreendido por sua familiaridade. Estava lhe pagando para que desse prazer a seu corpo e não para que a enrolasse com carinhosas palavras francesas. Deu-se conta de que não podia fazê-lo. Ninguém a tinha chamado nunca carinho, querida ou coração, nem em inglês nem em francês. Seus pais a chamavam Anne; seus serventes, senhorita Anne, e todos outros, senhorita Aimes, e assim continuariam dirigindo-se a ela durante o resto de sua vida. Inalou o aroma acre da fumaça do tabaco, e debaixo dele, o sufocante perfume de uma limpa e saudável masculinidade: um custoso sabão com algum que outro toque de almíscar. —Não, jamais vi um homem nu. 12


Era só uma mentira parcial. O que tinha visto não era um homem. —Sabe com que profundidade vou possuir-te quando me introduzir dentro de seu corpo? —Se me perguntar se sei quão profundamente vai penetrar-me, a resposta é não - disse Anne sem desviar o olhar das cavidades negras que eram seus olhos. Não mentiu esta vez. —Mas quero saber, monsieur De Anges. Quero saber quão profundamente que vai penetrarme seus dedos e seu corpo. Se não quisesse sabê-lo, não estaria com você nesta carruagem. Pôde ter sido seu fôlego o que rompeu a escuridão. Ou pôde ter sido o dele. —Penetrar não é possuir, mademoiselle. Um fugaz raio de luz iluminou o lado direito de seu rosto, perfilando a rígida sucessão de cicatrizes que bordeava sua face, e depois, uma vez mais, seu rosto foi absorvido pela escuridão. —Temo que não entenda suas palavras. —A penetração física varia: de doze a vinte e cinco centímetros, dependendo do tamanho do pênis ereto do homem. Uma mulher pode receber um homem dentro de seu corpo e, mesmo assim, manter o controle sobre suas emoções. Mas quando ela jaz debaixo dele; quando ofega em busca de ar e compreende que só seu fôlego é capaz de sustentá-la; quando sente que só o corpo masculino a fará chegar até o orgasmo de que depende sua própria vida; nesse momento, chérie, e só nesse momento, um homem possui uma mulher. Anne respirou o ar de seu próprio fôlego. Imaginou que seu corpo a enchia - de doze a vinte e cinco centímetros— enquanto seu fôlego invadia seus pulmões. Completamente. Incondicionalmente. Um calafrio de temor percorreu sua coluna vertebral. —O que diz só ocorre quando uma mulher perde o controle de suas emoções. Mas este é um assunto de negócios, monsieur, não um caso de coeur. —Contratou-me para que te fizesse perder o controle, mademoiselle. Seu coração parou durante um instante e depois se recuperou. —Faz que pareça... Perigoso. Não como a questão de negócios que tinham acordado. —Contratei-o para que me desse prazer. Tal como faz um homem que contrata uma mulher para que dê prazer a ele. Nem mais, nem menos. —Há uma diferença entre o prazer dos homens e o prazer das mulheres. —Sim. Aos homens lhes outorgou liberdade para perseguir o seu, enquanto que as mulheres têm vetado esse direito. —Entretanto, há algo mais. O homem precisa do corpo da mulher, mas não precisa dela para chegar ao orgasmo. Seus próprios movimentos lhe fazem alcançá-lo. Um sentimento de raiva pôs nervosa a Anne. —Acredita que uma mulher precisa de um homem só por seu apêndice masculino, monsieur? —Se isso não fosse assim, mademoiselle, não estaria comigo nesta carruagem. Anne agarrou sua bolsa. —Não entendo o propósito desta conversa - disse. —Estou tentando te preparar para o resto da noite. —E acredita que prepara me dizendo que as mulheres precisam dos homens, mas não ao contrário? —perguntou com certa estridência na voz. —Nunca disse que os homens não precisam das mulheres; o que disse é que não precisam dos movimentos das mulheres para chegar ao orgasmo. Mas você me necessitará nas horas que se passam, mademoiselle. Suas necessidades lhe farão mais vulnerável que meu corpo. Não importa a profundidade com que me introduza em seu interior. Mas te asseguro chérie, que te penetrarei profundamente. Desejo. Medo. Raiva. A dor se sobrepôs ao amontoado de emoções que 13


provocaram nela suas palavras, e se deu conta de que ele não falava para feri-la e sim para dizer a verdade. Não estaria aqui se pensasse que qualquer homem poderia satisfazê-la. Suas necessidades a faziam vulnerável, especialmente quando as revelava a um homem que não as compartilhava. Por isso tinha escolhido Michel de Anges. —E a que profundidade me penetrará monsieur? —Vinte e cinco centímetros, mademoiselle. Vinte e cinco centímetros. Aquelas palavras ressoaram no interior da carruagem. —Este é um assunto de negócios, monsieur - repetiu, mais para ela mesma que para ele, enquanto um sinal de alarme percorria seu corpo. —Este é um encontro sexual, mademoiselle. Não é um interlúdio romântico nem é tampouco um mero assunto de negócios. Não me apresentarei diante de você com um buquê de flores na mão nem te pedirei que me conceda a honra de me dar um beijo. Tampouco me despedirei de você pela manhã deixando um cartão sobre o travesseiro. O que farei será te dar o prazer que nem sequer imaginou em suas fantasias mais selvagens, mas, por favor, não confunda as relações carnais com o amor ou os negócios. Suas palavras eram ásperas. Eróticas. O calor alagou seu interior, assim como a esperança de que fizesse sentir o prazer que se encontrava além de suas mais selvagens fantasias. Seus pais estiveram casados durante cinqüenta e nove anos, mas seu casamento estava destinado a acumular uma fortuna e não a unir seus corpos. Tinham compartilhado riquezas e enfermidades, mas nunca o amor ou o prazer. E depois tinham morrido. Tão solitários e miseráveis como tinham vivido. Anne não queria morrer pensando em tudo aquilo que perdeu na vida. —Estou a par da natureza deste encontro, monsieur - disse endireitando os ombros—, e asseguro que encherá minhas expectativas. Quero perder a virgindade, não que me dê de presente flores. Espero que me beije em vez de me oferecer a mão, mas não espero que me suplique nada, e muito menos as liberdades que estou pagando para que tome. E quanto a que me fará sentir prazer além de minhas mais selvagens fantasias, isso teremos que vê-lo ainda, não acha? A carruagem parou de forma brusca. Durante um segundo que estremeceu o coração, Anne pensou que tinha sido ela que tinha obrigado os cavalos a parar. Sem fazer nenhum comentário, Michel de Anges abriu a porta e desceu do veículo, lhe estendendo a mão. Suas cicatrizes vermelhas e brancas se iluminaram a luz da carruagem. O que sentiriam seus dedos largos e assustados quando estivessem dentro dela? Seriam três ou quatro os que a penetrariam? Como poderiam prepará-la para aceitar um pênis ereto de vinte e cinco centímetros? Ela aceitou sua mão, como o tinha feito na Casa de Gabriel. Sentiu que um calor abrasador atravessava suas finas luvas de seda. Seriam seus dedos, quando se introduziram nela, assim tão quentes? Seria assim seu membro ereto quando a penetrasse? Anne se sentiu de repente livre e respirou de novo. Procurou em sua bolsa algumas moedas para dar uma gorjeta ao chofer, mas quando levantou os olhos se deu conta de que a carruagem retornava sua marcha. Sentiu que o braço de um homem, como um chicote, agarrava-a pelas costas. Seu coração tamborilou um doloroso sinal de alarme contra os extremos de seu espartilho. Michel de Anges era quase vinte centímetros mais alto que ela. Poderia feri-la de uma maneira possivelmente desconhecida para ela, da mesma forma que ignorava que um homem pudesse utilizar seus dedos para penetrar a uma mulher. Podia matá-la. E ela não poderia fazer nada para impedi-lo. 14


Durante um segundo que paralisou seu coração, pensou em sair correndo atrás da carruagem. A verdade a mantinha imóvel. Anne podia, certamente, se casar com qualquer dos homens solteiros que tinha visto na Casa de Gabriel. Tinha reconhecido a um surpreendente número deles. Durante o dia reclamariam sua herança, e durante as noites iriam procurar prazer com seu dinheiro. Podia transformar-se em uma esposa - talvez até em uma mãe— e, entretanto, continuar vivendo sem saber absolutamente nada a respeito da satisfação que um homem é capaz de brindar a uma mulher. E ela queria mais, como quis durante tantos anos. Aquele homem era famoso por sua habilidade para satisfazer às mulheres. Dizia-se que era um garanhão. O garanhão mais caro da Inglaterra. Dez mil libras esterlinas seriam suas ao concluir o mês. Ele não se atreveria a fazer mal a sua “galinha dos ovos de ouro” particular, e muito menos quando o encontro tinha sido arrumado por seu notário. Com as costas completamente rígidas, permitiu que ele a guiasse para a escada que conduzia à porta de uma casa alta e estreita. Introduziu a chave na fechadura com facilidade, enquanto ela se perguntava se também seria assim, destro na hora de abrir o corpo de uma mulher. De maneira imprecisa, distinguiu um pequeno vestíbulo com painéis de carvalho. Em cima de uma mesa lateral havia um jacinto de matizadas pétalas azuis em plena floração. Uma bandeja de prata para o correio matutino brilhava entre as sombras. Ao fundo, uma escada de mármore com o corrimão de ferro delicadamente trabalhado subia para a escuridão. Aquela casa, aonde perderia sua virgindade, não tinha o aspecto de uma residência de má reputação. Parecia um lar. O ar estava perfumado pelas flores e a cera de abelhas. Sua casa em Dover cheirava a enfermidade e a ácido fénico, e a de Londres a pó e umidade. Ele apagou silenciosamente o abajur de gás. Sua mão ardente pressionou com suavidade a base das costas da Anne, convidando-a a subir pelo abismo escuro da escada, em cujo extremo aparecia uma fugidia luminosidade que mantinha em sombra o último degrau. Ela se agarrou ao corrimão, não podia ver só sentir, e com as pernas tremulas e a saia rangendo ao deslizar-se contra o chão, subiu as escadas até a pálida luz que a esperava. Um corredor adornado com pálidos tecidos de seda se estendia ao longo do primeiro andar. Seus sapatos produziam uma letanía sobre o chão de carvalho, brilhante e suave como um espelho: penetração, posse. Um candelabro de parede ao final do comprido e estreito corredor lutava em solitário contra a escuridão. As molduras cor creme e as portas fechadas determinavam seus passos: o andar inseguro de uma mulher resolvida a tomar o controle de sua sexualidade, e o crédulo caminhar de um homem capaz de suscitar orgasmos em qualquer mulher que fosse penetrada por ele, todas às vezes. Ele abriu a sólida porta de carvalho de um quarto e, em seu interior, apareceu uma ampla cama de bronze. Apagou a luz do candelabro e, gentil, mas implacavelmente, convidou-a a entrar. A intensa escuridão era pesada, doce, sufocante, e durante um momento de pânico, ela pensou que se encontrava em uma estufa. Ou em um velório. Sem fazer o menor ruído, ele se colocou diante dela. O áspero som de um fósforo rompeu o silêncio. Uma cálida luz saiu de uma quenquém, perfilando as bordas de uma mesinha de cabeceira de carvalho e um vaso de cristal cheio de rosas vermelhas. Ao lado esquerdo do abajur estava à cama de bronze. Os lençóis de seda branca, assim como a colcha de veludo verde, já tinham sido abertos. Enquanto jogava o fósforo em pequena terrina verde, Michel de Anges deu a volta: os traços de seu rosto eram visíveis, mas uma luz dourada iluminava seu cabelo negro. —Me dê sua capa - disse cortando a distância que os separava. Anne ficou olhando as sombras irregulares que sulcavam suas faces e estremeceu ao pensar que tinha lhe prometido explorar tudas suas dobras e orifícios. —Obrigado.

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Aquelas mãos cobertas de cicatrizes se aproximaram dela, lhe recordando que já não era o homem por quem as matronas e as debutantes suspiravam dezoito anos antes. Desabotoou os botões de sua capa um a um, desde seu pescoço até os seios. Uma sensação de calor se apoderou de seus mamilos. As coisas iam muito rápidas. —Não trouxe camisola - disse impulsivamente. Suas pestanas negras se levantaram muito devagar e Anne foi presa por seus olhos cor violeta. —Não precisará - murmurou. Retirou a bolsa de seus apertados dedos e o colocou atrás dela. Um suave golpe soou em meio da luz cambaleante, seguido pelo pesado roçar de sua capa de veludo. Anne se sentiu nua e extremamente simples com seu modesto vestido de seda cinza, como uma fêmea de pavão diante seu macho. Fechou os olhos, intuindo qual seria o próximo objeto que tiraria. Não queria que visse os seios, que pareciam muito pequenos, nem seus quadris muito largos. Mas ela queria vê-lo. Estava pagando uma soma muito considerável por poder fazê-lo. Por conseguir seu prazer. Anne abriu os olhos e recuou sobre suas pernas trêmulas. —Se dispa para mim, por favor—disse. Um fogo violeta se acendeu em seus olhos. —Quer me ver... Nu? Ela se endireitou antes de responder: —Sou virgem, monsieur, mas também sou mulher, uma mulher com os mesmos desejos que qualquer outra mulher. É obvio que quero te ver nu. A luz do abajur tremeu, fazendo que as sombras se agrupassem a seu redor. —Sabe como parece um homem, chérie? —perguntou-lhe. Ela inclinou a cabeça com um gesto desafiante. —Não vou desmaiar quando vir seu apêndice masculino, monsieur, se for isso que o preocupa. —Mas me ver nu te produzirá prazer? —Não o produz a outras mulheres? —É virgem, mademoiselle, e se nunca antes viu a um homem nu, é possível que... Que se sobressalte. —Isso saberei quando te vir —respondeu com os lábios apertados. Um brilho de frieza calculada apareceu nos olhos de Michael, seguido de um tom calidamente reflexivo: —E se assustar? —Asseguro que não penso incomodar outros inquilinos desta casa saindo correndo à rua e gritando. A luminosidade do abajur se fez ainda mais tênue. Habilmente e com lentidão, Michael tirou a jaqueta de seu traje negro e a deixou cair no chão com o roçar sedutor da seda. Sem afastar seu olhar do dela, abriu o botão superior de seu colete branco. Era evidente que muitas mulheres tinham pedido que se despisse para elas. Mulheres bonitas, mulheres experimentadas. Em vez de sustentar o olhar intenso, Anne se concentrou em suas mãos. —Doem? —perguntou de maneira um tanto brusca—. Suas mãos quero dizer. Precisa de ajuda? Os cicatrizados dedos de Michael se paralisaram.

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Anne mudou seu nervosismo por resolução, algo familiar para ela, e que sabia fazer perfeitamente. Durante toda sua vida tinha ajudado seus pais. No salão de desenho, na mesa do jantar e, ao final, na cabeceira do leito onde ambos tinham morrido. Adiantando-se, afastou os dedos de Michael das casas do colete e se dispôs a continuar a tarefa. Os pequenos botões nacarados, entretanto, não cediam com facilidade. Nunca havia se sentido tão inepta no quarto de um doente. Franzindo o cenho, tirou as luvas. Uns dedos tão duros como o aço a seguraram pelos braços, deixando a descoberto suas mãos despojadas das luvas. Alarmada, jogou a cabeça para trás. O rosto de Michael estava a escassos centímetros do seu. As cicatrizes de suas maçãs do rosto eram lívidas. —Não preciso de uma enfermeira, mademoiselle. Uma intuição se apoderou dela. Ele sim podia lhe fazer dano, e ninguém saberia até que já fosse muito tarde. Passou a língua pelos lábios e saboreou o fôlego quente e úmido de Michael. —Não tenho o mais mínimo desejo de ser sua enfermeira - disse. —Mas quando vínhamos na carruagem me confessou que não sabia o que queria. Ela manteve o olhar. Não tinha pretendido o interpretar mal. —Não - respondeu—. Na carruagem te perguntei o que aconteceria se uma mulher não soubesse o que queria, mas nunca te disse que esse era meu caso. Ele agachou a cabeça, colocando seus lábios a um beijo dos seus. —O que quer mademoiselle? —perguntou-lhe. Era uma provocação. Até onde quer chegar, solteirona? Era o que realmente queria perguntar. Até que ponto está preparada para receber os cuidados de um homem famoso por sua habilidade para levar às mulheres ao clímax? Anne respirou profundamente. Era isto o que teria em um mês inteiro de prazer? Não recuaria. Não recuaria diante dele nem diante seus estúpidos temores virginais. —O que quero é que me leve ao orgasmo. —Quantas vezes? —As vezes que meu corpo o permita. —E quantos dedos quer? —Os que meu corpo aceitar. —E a que profundidade quer que chegue? —Tão fundo quanto possa me penetrar. Seus olhos violetas se acenderam. —Algum homem alguma vez tocou seus seios? Que difícil era admitir a verdade. —Não. Muitos homens tinham cobiçado a fortuna de seus pais, mas nenhum tinha desejado jamais à mulher que havia dentro dela. —Algum homem te beijou alguma vez com a língua? Anne se tragou a repulsão que a lembrança envocou. —Uma vez. —E você gostou? Não, não tinha gostado. O jovem cavalheiro que tinha roubado o beijo havia dito a seus amigos que Anne estava desesperada por encontrar um galã que fosse capaz de cortejá-la, mas que, só um homem desesperado por casar-se com uma rica herdeira podia beijar a uma mulher como ela. Ficou olhando a delicadeza de suas pestanas, tão negras como a fuligem e tão longas que seus extremos se tocavam quando piscava. 17


—Debochou de mim - disse com um tom de severidade em sua voz—, e me magoou. —Não debocharei de você, chérie, nem tampouco te magoarei. O calor que lhe acendia o rosto e os braços, desapareceu de repente. Ele recuou se desprendeu do colete. O tirou de maneira tão repentina que Anne mal pôde ver o que fazia. Com os olhos ocultos atrás de suas pestanas negras, levou as mãos ao pescoço e começou a desatar o nó de sua gravata branca. Os lábios e a língua de Anne palpitaram. Ela queria que a beijasse, mas ele já devia sabê-lo. Uma descarada de temerária energia se apoderou dela. —O que fará então, monsieur? —Quando te beijar, sentirá que sugo sua língua - disse, deixando cair os braços e atirando a gravata ao chão, com os olhos entrecerrados—. Quando tirar seu vestido, sentirá que sugo seus seios - acrescentou enquanto abria o primeiro botão dourado de sua camisa de seda branca—, e quando estiver completamente nua, sentirá que sugo seus clitóris. A respiração da Anne se deteve na garganta. Aquele sentirá que sugo seus seios ressoou no frio ar noturno, seguido do sentirá que sugo seus clitóris. Abriu o segundo botão dourado de sua camisa. —Sabe onde está seu clitóris, mademoiselle? Ela teve que lutar por manter seu olhar fixo no rosto de Michael e não no pêlo negro que aparecia cada vez mais visível à medida que se abria a camisa. —Não sou tão ignorante, monsieur. Pouco tempo depois de ter retornado de Londres, dezoito anos atrás, havia conseguido através do médico de seus pais em, Dover um manual de medicina onde figurava o nome de cada uma das partes de seu corpo, mas onde nunca, em nenhuma de suas páginas, diziam-lhe o que podia esperar de um homem. Tampouco lhe contavam o que um homem podia esperar de uma mulher. Michael tirou o último botão dourado de sua camisa, e introduziu os três no bolso, atraindo o olhar da Anne para suas calças. —Sabe o que ocorrerá quando te acariciar os seios com minha língua e chupar seu sexo? Seus mamilos e seus clitóris palpitaram diante a imagem que provocaram suas palavras e não pôde desviar os olhos da protuberância que sobressaía por debaixo de suas calças negras. Não se sentiria sobressaltada por lhe mostrar suas necessidades. Anne endireitou os ombros. —Que experimentarei um orgasmo, sem dúvida. O primeiro espero, entre muitos. Não se supõe que é famoso por isso, monsieur? Por sua habilidade para lamber e chupar as mulheres? —Entre outras coisas - respondeu enigmaticamente antes de baixar os braços, agarrar as dobras da camisa e começar a tirar-la por cima da cabeça. O coração da Anne golpeou com força suas costelas. Suas faces e suas mãos mostravam cicatrizes, mas seu corpo era perfeito: pele morena, pêlo negro e encaracolado, músculos esculturais. Sem prévio aviso, sua cabeça reapareceu atrás da camisa, que atirou no chão de madeira de carvalho onde se amontoavam os outros objetos de vestir. Ele sabia qual era o efeito que estava produzindo nela, o mesmo efeito que produzia nas demais mulheres que compravam seus serviços. Ela não queria ser a única excitada e surpreendida naquela noite. —Está completamente ereto, monsieur? —Sim - respondeu ele, ao parecer impávido diante a provocação—. Estou completamente ereto. Anne sentiu uma cálida umidade entre suas coxas. —Quando está com uma mulher, sempre consegue uma ereção? —Sim - disse de maneira contundente. 18


—Eu gostaria de vê-la. —Então tire minhas calças, mademoiselle. Seus olhos violetas a desafiaram a tocá-lo, e a ver exatamente o que era que tinha comprado. Vinte e cinco centímetros. —Está bem, monsieur - disse com a voz tranqüila, dando um passo adiante. O calor irradiava de seu corpo. Anne lutou contra a lembrança de um homem doente e moribundo, e depois contra os botões forrados de seda que fechavam sua braguilha. Seus dedos se mostravam torpes, tão torpes como quando tinha tentado liberar os botões do colete, mas agora não podia culpar de sua imperícia às luvas. O desejo se concentrou nos seios e o sob ventre. Cada botão que desabrochava revelava cada vez mais o encaracolado pêlo negro que descia de seu peito e formava redemoinhos ao redor de seu estômago. Podia sentir seu pênis debaixo das finas calças de seda. Era longo, grosso e duro, e palpitava com vida própria. Contendo a respiração, tirou-lhe as calças e no ato apareceram seus quadris e suas coxas. E envolto em um calor abrasador, o ligeiro perfume do sabão e do almíscar que impregna o sexo dos homens. Os músculos de sua vagina se contraíram. Em sinal de desejo. Em sinal de temor. Ele tinha razão quando lhe disse que não estava preparada para a realidade de um homem tão vital. Seu olhar tratou de encontrar-se com o dele. Seus olhos violetas a estavam esperando. —Disse que conseguia que todas as mulheres chegassem ao orgasmo. —Assim é - murmurou com voz sedosa. —Inclusive as mulheres virgens? —Nunca fiz amor com uma virgem. Ele nunca tinha feito amor com uma virgem. Ela nunca tinha feito amor com um homem. Se aceitasse que ele entrasse nela, nunca voltaria a ser a mesma. Anne lutou para que o pânico não se notasse no tom da voz. —E se nunca vez fez amor com uma virgem, como sabe que será capaz de me dar o prazer que estou procurando? Tranqüila e metodicamente, Michael voltou a subir as calças, caminhou até a cama, sentou-se e começou a tirar os sapatos e as meias três quartos. Seus pés nus eram largos, tão compridos como suas mãos e da mesma cor morena que o resto de seu corpo. Com exceção de seu membro viril. Através da abertura de suas calças vislumbrou seu grosso e carnudo pênis, veteado de veias azuis, e sua ponta cor púrpura, enérgica e pesada como uma ameixa amadurecida. O pêlo negro salpicava seu testículo, tolhido também de veias azuis. —Como sabe? —repetiu com a voz trêmula. Levantando-se da cama, Michael tirou as calças e se aproximou dela: alto, peludo, de músculos vigorosos. Seu membro viril se balançava a medida que se aproximava. Aproximou-se tanto que a coroa bulbosa de sua ereção aguilhoou sua saia de seda e, por debaixo dela, a parte mais sensível de seu ventre. Ele estremeceu. Ela estremeceu. O ar mesmo estremeceu. —Te darei o prazer que busca, chérie - disse ao derramar seu fôlego sobre o rosto de Anne—. Deve confiar em mim. Como podiam os homens fazer aquilo, como podiam obter prazer das mulheres que lhes eram estranhas? —Se me emprestar um robe, me despirei no vestidor - disse com certo nervosismo—. Você pode apagar a luz e me esperar na cama. 19


Uma mão morena e marcada pelas cicatrizes se elevou, examinou cuidadosamente o apertado coque em que ela recolheu o cabelo e encontrou uma presilha. —Não acredito chérie - murmurou Michael, abrasando com seu fôlego as faces dela. A forquilha caiu no chão de carvalho com um som metálico que superou os batimentos de seu coração. Ela não sabia o que fazer, nem como atuar. Ficou quieta, como tinha aprendido a comportarse quando estava rodeada por aqueles que confundiam sua estupidez com ignorância. A raiva foi em sua ajuda. —Trata-se de meu dinheiro, monsieur, e as coisas se farão como eu quero. Outra presilha caiu ao chão. —Está me pagando para que te dê prazer. —Sim. E não acessar meus desejos não proporciona prazer. Outra presilha foi parar o chão, afrouxando seu coque. — Lhe dará isso, chérie. Ela agarrou as mãos, que continuavam tratando de desfazer o penteado. —Não faça isso, por favor. Ele não parou, usando ambas as mãos para soltar seu cabelo. —Não há nenhum prazer em ser um agulheiro. O duro arremesso de seu pênis roçou contra seu estômago como uma carícia excitante, aterradora em suas proporções, em sua crua masculinidade. O cabelo da Anne deslizou sobre suas costas. Nenhum homem a tinha visto com o cabelo solto. Lutando desesperadamente por manter o controle - não era a tola moça de dezoito anos de quem debochavam seus amigos—, Anne permitiu que suas mãos posassem sobre o peito de Michel, tão duro e musculoso como parecia com simples vista. —Nunca estive nua diante de um homem. E com exceção de sua babá, nunca tinha estado nua diante de ninguém. Ele colocou seus dedos entre o labirinto de seu cabelo, acariciando o couro cabeludo com suas cicatrizes. —Asseguro-te que não tem nada que não tenha visto antes - ele disse. Mas nunca antes, em efeito, tinha visto uma mulher como ela. Nunca antes tinha visto uma virgem de trinta e seis anos... Não como esta. —Não sou jovem. Ele a obrigou a levantar a cabeça. A escuridão escurecia sua cara. Só seus olhos pareciam vivos. —Eu tampouco. As lágrimas apareceram em suas pálpebras. —Não sou bonita. Seus dedos agarraram seu cabelo. —Eu tampouco. —Seus olhos o são. Queimam-me. Excitam-me. Algo um pouco parecido a uma dor iluminou o rosto escuro e tenso de Michael. —Assim como os teus me queimam e me excitam chérie. Inclinou sua cabeça e sem deixar que ela fugisse lambeu delicadamente seus lábios, pulverizando com sua língua o sedoso sabor do fogo líquido. Os dedos da Anne se afundaram no peito dele. Seus músculos eram duros, firmes. —Não sei como... Receber um homem dentro de mim. —É como um beijo - murmurou ele, mordiscando os lábios – primeiro vou te degustar, acariciar e lamber e depois vou penetra-la. O controle que ela tentava exercer sobre si mesmo cedia, cedia. —Com sua língua?

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Ele deixou de acariciar o cabelo. Tomou sua mão direita, deslizou-a pelo estreito espaço que havia entre os dois corpos e fechou seus dedos ao redor da parte de carne palpitante, dura e suave ao mesmo tempo, flexível e, entretanto, rígida. —Com isto. Capítulo 3 Uma sensação incontrolável de luxúria se estendeu por todo o corpo de Anne. Não podia mover-se; só podia sentir. E maravilhar do milagre que era a ereção de um homem. Nada em sua vida podia compararse com Michel de Anges: nem seus sonhos eróticos, nem suas fantasias sexuais, muito menos as longas e quase intermináveis horas que tinha passado assistindo a seu pai como enfermeira. Seu pênis era mais suave que a seda, mais duro que o aço, mais comprido que a palma de sua mão, mais grosso que o círculo de seus dedos. Pulsava ao mesmo ritmo que seu coração. Anne respirou profundamente. —Apague a luz, por favor. —Não posso fazê-lo. Ela quis protestar - era, a final, seu dinheiro que pagava o encontro—, mas foi silenciada por um calor incandescente. Ele a beijava. Lambia-a. Penetrava-a com a língua. Uma espécie de relâmpago acendeu o corpo da Anne. Acariciava-a com sua língua chegando até o paladar... Muito. Uma sensação tão afiada como uma faca atravessou os seios, e o pedaço de carne palpitante que continuava pulsando dentro de seu punho parecia romper seus dedos. Doíam-lhe os pulmões pela falta de oxigênio. Ele subministrou todo o ar que precisava, mas só para aspirá-lo depois, junto com sua língua, até encher de novo a boca. Michel de Anges a sugava. Tal como tinha prometido. Primeiro sua língua, depois seus seios e depois seus clitóris. Seus clitóris, seus seios e sua língua palpitavam ao ritmo do suave membro que tinha na palma da mão. A insuportável opressão que sentia ao redor de seus seios cessou quando Michel desatou o vestido ao redor da cintura. Um som vibrou dentro de sua boca. —Levanta os braços. Apertando suas pálpebras fechadas, Anne soltou o grosso apêndice masculino que palpitava ao ritmo de seu coração e elevou os braços. Seu vestido serpenteou sobre seu torso e saiu voando por cima de sua cabeça. Podia sentir como ele a contemplava. —Me diga seu nome, mademoiselle. Suas pálpebras se abriram. —Anne. Anne Aimes. Imediatamente recordou que o notário tinha advertido que devia permanecer no anonimato naquela aventura, uma estúpida advertência. O que podia ser mais perigoso que esta ansiedade que despojava a uma mulher de tudo o que não fossem suas necessidades animais mais primários? Uns dedos peritos retiraram as cintas de suas anquinhas. —Pode me chamar Anne - acrescentou, arrependendo-se de havê-lo dito, mas incapaz de impedir que as palavras saíssem de sua boca—. Posso te chamar... Michel? Com um sussurro audível, as anquinhas caíram ao chão.

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—Vamos estar muito perto um do outro, Anne Aimes - disse Michel, desatando a cinta de suas primeiras anáguas—. Tão perto como duas pessoas podem estar. E pode me chamar como quer. As anáguas caíram com um suave rangido. Anne apertou as mãos para não ter que lutar por reter o que ficava de sua roupa. Concentrou-se desesperadamente em sua voz. Vamos estar muito perto um do outro... Tão perto como duas pessoas podem estar. —Disse que não íamos ter um interlúdio romântico. —Assim é. —E as segundas anáguas se uniram as primeiras, criando um montículo de lã—. Na luxúria não há nada de romântico. Michel acariciou suas nádegas, seus dedos perigosamente perto da abertura de seus calções de lã. —A luxúria é terrestre. De repente, suas mãos calosas e marcadas pelas cicatrizes se deslizaram entre seus calções. —A luxúria é primitiva. Um dedo áspero riscou a rota do vale que havia entre suas pernas. —Suaremos. Gemeremos. Suas mãos agarraram a suave redondas nádegas, as pressionando contra sua virilha para que sentisse a dureza de sua masculinidade. —Lutaremos um contra o outro em busca do prazer. E quando chegarmos ao clímax seremos um só corpo, unido por nosso sexo. Seus olhos violetas se encontraram com os seus. —Isso ocorrerá quando te levar à cama, mademoiselle. A coluna vertebral de Anne parecia tão quebradiça que sentiu como se fosse romper-se. Desesperadamente, tentou ordenar seus pensamentos. —Sempre acompanha a uma mulher no clímax? —Ao seu devido tempo - respondeu ele enquanto seus dedos exploravam suas nádegas, por debaixo de seus calções, e chegavam às cintas que seguravam o espartilho, que procedeu a desatar. As baleias se renderam, como um acordeão sem ar. O espartilho caiu ao chão de carvalho, e sua perda, mais que ajudá-la a respirar, fez a tarefa mais difícil. —E como sabe qual é o devido tempo? —Quando os gritos de uma mulher ressoam em minha cabeça. Seu fôlego arranhou suas faces. Sustentando-lhe o olhar, suas mãos passaram com delicadeza por cima de seus seios, detendo-se por um segundo em seus mamilos dolorosamente eretos. —E ela está tão exausta que acredita que não pode alcançar outro orgasmo. Levanta os braços - ordenou bruscamente, e a despojou do último objeto que cobria seu seio, sem que Anne tivesse mais remedio que lhe obedecer. Ar frio. Pele quente. Suas mãos sopesaram e moldaram seus seios. A sensação era muito intensa, dolorosamente intensa. Ela nunca teria imaginado que era possível desejar um homem tão intensamente. Tinha-o desejado com essa mesma intensidade fazia dezoito anos, quando o tinha visto dançar com a condessa Raleigh, uma mulher formosa e rica, quinze anos mais velha que Anne. Ela era então uma das herdeiras mais ricas da Inglaterra, mas ele nem sequer se dignou olhá-la. Fechou os olhos, tentando atenuar a verdade. Ele não estaria com ela se não pudesse pagar. —Abre os olhos, Anne. Ela obedeceu com certa reticência. —E não os feche de novo. Não há nada do que esconder-se, chérie. Sei o que sente. Sei o que precisa. 22


Como podia aquele homem - aquele homem perfeito que não babava quando beijava e que não tremia de paixão quando se despia diante dela— saber quais eram as necessidades de uma virgem? Anne lutava por falar, por racionalizar em vez de palpitar como um frágil molho de nervos ao que ele a tinha reduzido. Não queria parecer assim de vulnerável. —Como sabe o que sinto? —exclamou, e suas palavras rasgaram a garganta—. Como pode saber você, entre todas as pessoas que há neste mundo, o que sente uma mulher que quer ser acariciada por um homem e que sabe que tem que pagar por isso? Emoções que ela nem sequer tinha começado a explorar escureceram seus olhos. —Todos temos necessidades, Anne. —Tem-nas você? —perguntou com aspereza. —Sim - respondeu ele sem afastar o olhar. —Alguma vez teve que pagar para que alguém te toque? A cicatriz que marcava a face direita ficou tensa. —Sim. —Por quê? —gritou com a voz rouca que ressonou em seus ouvidos. A escuridão de seus olhos se fez mais profunda e, ao mesmo tempo, o fogo se intensificou. —Por isso, chérie. —E roçou com seus dedos na ponta de seus seios. O ar voltou para os pulmões de Anne, mas escapou em um ofego quando ele se agachou e lhe lambeu os endurecidos mamilos. Uma espécie de fogo derretido envolveu os seios e desceu por suas costas. Suas mãos... O que devia fazer com suas mãos? Deixava-as quietas a seu lado? Ou as usar para lhe acariciar o cabelo, como ele tinha feito com ela? Devia as usar para pressionar sua cabeça contra seus seios e fazer que sua boca se afundasse ainda mais profundamente neles, como ela queria? Seus caóticos pensamentos foram interrompidos pela invasão de uns dedos calosos e sulcados por cicatrizes que romperam a abertura de seus calções e depois os lábios inferiores que só ela, alguma vez, havia tocado. Seu coração pulsava tão forte que todo seu corpo se estremecia: tal era sua força. Penetraria-a? Tocá-la-ia onde ela ansiava desesperadamente que ele a tocasse? Suas pernas se abriram por instinto, lhe dando a liberdade de escolher. Ele, simplesmente, durante vários segundos, ficou ali, com seus dedos alojados entre seus inflamados lábios inferiores enquanto beijava e lambia seus mamilos. Uma sacudida elétrica a fez arquear o corpo, dos seios até a vagina, da vagina até os seios. Tensa, esperou a que algo acontecesse... Algo. E, então, aconteceu, o toque que precisava: o deslizamento escorregadio de um dedo duro, úmido, caloso. Anne se agarrou compulsivamente a seu cabelo enquanto dobrava a cabeça para trás com seu grito silencioso de prazer. Um estranho som rompeu a satisfação concentrada de seu orgasmo. Associou-o vagamente com o fato de que ele tinha soltado o mamilo. O comichão do ar primaveril era quase dolorosamente frio depois do inferno de sua boca. Uma morna corrente de ar afogou o som de sua própria respiração entrecortada. Abriu os olhos... Desafiando o olhar de Michel. —Não gritou. —Não - respondeu Anne, tentando recuperar o fôlego—. Não é algo... Muito digno. Especialmente em uma virgem. —Já lhe disse isso, chérie. Isto é luxúria, não romance. Em minha cama não há lugar para a dignidade. E embora o houvesse, não o permitiria. Veio para mim em busca de sexo, de sexo

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quente, de sexo úmido, do sexo que não encontrará na cama matrimonial, onde a única preocupação de um homem é engendrar um herdeiro ou satisfazer suas próprias necessidades. Seu dedo penetrou ainda mais profundamente em sua vagina, de modo que tanto ele como ela podiam sentir a membrana de sua virgindade. —Quando tirar - disse isso ele—, quero que grite. Quero saber quando te dói. E depois quero que grite novamente. Faça-me saber que te agrado. Suas palavras eram alarmantes e, entretanto, incrivelmente excitantes. Sua mãe tinha tido a Anne, sua primeira e única filha, aos quarenta anos. Tinha sido sempre uma mulher doente, e a pouca saúde que ficava sucumbiu diante da gravidez e o nascimento. Seu pai era dez anos mas velho que sua mãe. Não precisavam de um filho; o que precisavam era uma enfermeira. E Anne cumpriu perfeitamente esse papel. Ela nunca gritava e nunca ria a gargalhadas, por medo a perturbar seu descanso. Suas alegrias infantis, suas ansiedades de adolescente, suas necessidades de mulher adulta as tinha agüentado em silêncio. —Não sei se poderei fazê-lo - murmurou. — Te farei gritar, chérie. Suas palavras soaram graves, como uma promessa de prazeres —ou dores— inimagináveis. —Antes que termine a noite, te farei gritar uma e outra vez. Anne ficou tensa; ele se inflamou diante a porta, intacta ainda, de sua feminilidade. — Vais me penetrar com o dedo? —Quer que o faça? —Sim - assentiu com o queixo. Ela queria tudo: sua língua, seus dedos, sua masculinidade. Tudo o que ele pudesse dar a uma mulher. Tudo o que estava pagando para que lhe desse. De repente, a excitante ameaça de sua mão se foi. Anne se encontrava sozinha, vestida unicamente com os calções, vivendo as repercussões de um orgasmo que ela não procurou com seus próprios dedos. E como todos os que havia sentido antes, não era suficiente. —Trouxe uma caixa de preservativos - disse, lutando contra ela mesma para não cobrir seios com as mãos—. Estão em minha bolsa. Uns dedos curtidos pela prática encontraram os botões da cinta de seus calções de lã. Suas pestanas grosas e negras tampavam os olhos. —Tenho os meus - respondeu, e começou a desabotoar os botões com uma habilidade que contrastava com a estupidez que ela tinha demonstrado ao tentar abrir os seus. Ela não dependeria daquele homem nem seria possuída por ele. Demonstraria que estava diante de uma mulher capaz de controlar suas emoções. —Preferiria que usássemos os que eu comprei. —Mas eu não, chérie. Ela pôs rígidas suas costas. Seus mamilos eretos roçaram o pêlo cacheado que cobria o peito do Michel. Um calor picante alagou seu ventre. —Por que não? Anne o olhou enquanto ele observava como seus calções de lã cor creme deslizavam por suas pernas, sabendo o que ele via: uns quadris muito generosos... Um estômago pálido e redondo... Uma mancha de pêlo púbico castanho. Um escuro enrubescimento desenhou sobre as maçãs do rosto dele. As cicatrizes brancas de sua face e sua têmpora direitas ressaltavam nitidamente. Os saltos de seus sapatos pareciam ter crescido vários centímetros. Sua pélvis se sobressaía da maneira mais indecorosa, exibindo-a... Tudo. Seu corpo nu. 24


Suas necessidades nuas. Ele levantou suas negras e grosas pestanas e ela encontrou com seu olhar violeta. —É questão de tamanho, chérie. Minhas camisinhas estão especialmente fabricadas para mim. Seus dedos se contraíram em um punho. —Quero pôr-lo - Michel tendeu a mão, com a palma para cima, mostrando as cicatrizes na frente e por detrás. —Tout c que seu veux. Tudo o que quiser. E as vezes que quiser. Tomando-o pelos dedos que logo a penetrariam, ela se desfez com dificuldade de seus calções e apartou o montão de roupa que havia a seu redor no chão. Os cabelos caíam até a cintura. A liga que sustentava suas meias de algodão incomodava na parte superior das pernas. Com a pélvis inclinada para diante, por causa dos saltos de seus sapatos, suas coxas se juntaram, criando uma fricção insinuante. Nunca tinha sido mais consciente de sua feminilidade e das potenciais conseqüências de seus atos. A seu lado, a cama com os lençóis abertos parecia enormemente grande. O doce e penetrante perfume das rosas era embriagador. Soltando sua mão, ele abriu a gaveta superior da mesinha de noite e tirou uma caixa gravada com um retrato do primeiro-ministro Gladstone. Tirou-lhe a tampa, lhe mostrando seu austero conteúdo. Sem saber muito bem por que, ela recordou que sua caixa tinha um retrato impresso da rainha Vitória, e que a expressão da rainha não era menos severa que a de Gladstone. Anne escolheu a provas um pedaço de borracha fortemente enrolada. Fechando de novo a tampa como se fosse normal que um homem oferecesse a uma mulher a camisinha que ia usar com ela—, Michel voltou a colocar a caixa em cima da mesinha de noite, junto ao floreiro com rosas. Anne abaixou a cabeça; seu cabelo deslizou sobre seus ombros, emoldurando seu rosto. Suas necessidades carnais lutavam contra sua modéstia virginal, e por cima de ambas sentia a urgência de impressioná-lo com suas habilidades, para provar que valia tanto como as outras mulheres que tinham passado por seus braços. Com um atrevimento sublime, Michel colocou seu membro diante dela. A carne mais profunda que havia dentro de sua vagina pulsou quando lhe ofereceu a coroa palpitante de cor púrpura. Uma gota clara de umidade brilhou a luz do abajur. O manual de medicina que tinha consultado não dizia em nenhuma parte que os homens segregam umidade quando se excitam. Ela o tocou delicadamente, dubitativamente. —Está úmido. —Você também, mademoiselle. Ignorando o brilho de vergonha que sua observação tinha provocado - era muito tarde para envergonhar-se—, Anne tentou colocar o preservativo. A cabeça de seu pênis era muito grande. Tentou-o com força, mas não houve forma de ajustá-lo. Anne se tranqüilizou. As lágrimas apareceram em seus olhos, empanando a imagem do pênis ereto que palpitava entre seus dedos, e embora se sentisse humilhada, ainda o desejava. Um fôlego quente e fatigante envolveu seu cabelo. Seus olhos não podiam desprender do movimento da mão direita de Michel entre suas pernas. Um dedo comprido e endurecido pelas cicatrizes explorou seus lábios inferiores. Moveu-o com gentileza, lhe fazendo sentir à umidade de sua excitação, e quando o tirou de novo, achava-se impregnado de sua essência feminina. —Precisa de lubrificação, chérie. Michael usou seu dedo, já bastante escorregadio, para lubrificar a clara gota de sua própria essência ao redor da coroa de seu pênis. —Toma a ponta da camisinha - instruiu—, e deixa lugar para o esperma. Agora o enrole. Devagar, cuidadosamente, sem atrever-se nem sequer a respirar, Anne enrolou o preservativo ao redor da cabeça de seu pênis. A camisinha não dissimulava o palpitar que sentia debaixo de sua pele nem o aroma da ereção masculina: almíscar misturado com a doce acidez das rosas. Seus dedos tocaram os seus. 25


Ele, instantaneamente, retirou-os, deixando entrever seu membro ereto. Sentindo-se estranhamente desconsolada, Anne enrolou os centímetros restantes de sua masculinidade no preservativo e alcançou a tocar o cacheado pêlo negro que havia na base de seu pênis, comparável em sua cor e sua textura ao que lhe nascia no peito e descia até seu estômago. —Terminei - anunciou temerosa de olhar e encontrar o sorriso zombador que, certamente, ocultava-se em seus olhos. Uns dedos quentes juntaram as mechas de seu cabelo solto, limpando seu rosto, e obrigandoa, deste modo, a levantar a cabeça. Um fogo violeta brilhava em seus olhos. O fogo do desejo sexual, e não o da risada zombadora ante a inépcia de uma solteirona. —Não, chérie, ainda não terminou. Terminará quando se sentir exausta pelos sucessivos orgasmos que lhe esperam. Mas te farei chegar de novo. Embora me rogue que pare. Ela não piscou ante a intensidade de seu olhar. —Não te rogarei que pare, monsieur. Não importa quantos orgasmos me faça alcançar. Quando retornasse a Dover, o faria sabendo que tinha desfrutado de sua feminilidade em toda sua amplitude. A boca de Michel esboçou um torcido sorriso. Tinha uns lábios bonitos. O de acima era delicadamente proeminente, o de abaixo suave e, entretanto, firme. —Está segura, chérie? Devagar e gentilmente, puxou seu cabelo até pô-lo em sintonia com seu corpo. A luz iluminou a cara de Anne, ao tempo que bordeava as cicatrizes da maçã do rosto direito do Michel. O coração da Anne acelerou seu ritmo. —Estou preparada para suportar certo grau de dor, monsieur. Acariciando-lhe para trás o cabelo, suas mãos descansaram em cima de seus ombros nus, transmitindo um calor que a aplacou por dentro. —Mas está preparada para o prazer? Fechou suas pernas para impedir que se dobrassem. —Sim. OH, sim. Ele agachou a cabeça, tocando seus lábios com seu fôlego. —Como pode estar preparada para o prazer, mademoiselle, se não saber o que me pedir? —Sim sei o que te pedir - sussurrou. Queria que ele a agradasse com todos os atos sexuais com os que sempre tinha sonhado mas que só aquela noite tinha sabido que existiam. Seus joelhos se dobraram. Sentiu que caía, agarrada a uma âncora, mas deslizando-se vertiginosamente. A cama pareceu elevar-se para receber o peso de suas nádegas. Michel se ajoelhou diante dela, sobre o chão de madeira. Seus antebraços ficaram aprisionados debaixo de seus dedos. O pêlo negro que nascia em sua pele escura era espinhosamente suave. A borracha quente roçou seus joelhos. —Peça- me - disse em tom áspero—. Peça-Me isso com palavras, chérie. Atreva-se a ser uma mulher. Diga-me o que é o que quer... E depois aceita seu prazer. Seu coração martelava no peito, nos seios, nas coxas. —Quero que me prove. —Abre as pernas. Ela se agarrou aos tensos músculos de seus braços e sentiu a textura da seda em uma mão e a do veludo na outra. —Não deveríamos nos colocar entre os lençóis? —Não - disse levantando as coxas até a cinta branca da liga—. Você me viu. Agora quero ver você. —Mas viu outras mulheres.

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—Vi a muitas mulheres, mas nunca vi à mulher que há em Anne Aimes - acrescentou olhando-a de perto, mais perto do que qualquer homem tinha estado da mulher que havia em seu interior. Ela abriu as pernas. Ficando de joelhos, tomou pelos joelhos e as afastou ainda mais, mais, ainda mais, até que seus músculos gritaram em protesto silencioso pelo ar gelado que invadia suas zonas mais íntimas. Os batimentos de seu coração pareciam golpear as costelas. Não havia nada que ele não pudesse ver naquela postura. Ela estava aberta, vulnerável. Completamente. Incondicionalmente. —Te aproxime para frente... E mantém as pernas abertas. Seu cabelo negro e sedoso roçou a parte superior de suas coxas, ali onde sua pele não estava protegida pelas meias de algodão. Uns lábios tão suaves como uma pétala se encontraram com outros lábios igualmente delicados: o sussurro de um contato. Anne ofegou de assombro. Uma sensação agonizante se deslizou por seu estômago, alojando-se em seus seios. —Já te provei - disse, jogando seu fôlego sobre as membranas carnudas de sua vagina—. Que mais quer, mademoiselle? Sua atenção se concentrou no pêlo negro que se movia entre suas pernas e na boca de Michel, que estava só a um milímetro do esquecimento. —Quero que me lamba. Um calor abrasador a alagou ao sentir que um homem a lambia, e que a lambia delicadamente, como lambem os gatos uma nata deliciosa. Lambeu o vale úmido e escorregadio que havia entre os lábios palpitantes de sua vagina, e só parou na borda do casulo de seus clitóris. Ela fechou os olhos, estirando-se para baixo... —Que mais, chérie? Diga-me que mais quer? —Quero que me penetre com a língua - respondeu sem reconhecer aquela voz que era a sua nem à mulher que, sem pudor algum, estirava-se em busca do orgasmo. Um calor estimulante. Uma pressão insuportável. Ele empurrou a abertura de sua vagina - um prelúdio que a queimava por dentro—, como se desejasse roubar a virgindade com a língua. Lambeu-a e a provou. Lambeu e provou à pequena e tensa membrana que a protegia, até que Anne já não soube se sentia dor ou prazer. Nunca tinha imaginado que um homem pudesse fazer aquilo: saboreá-la, lambê-la, provar a virgindade com a língua.Uma dor aguda substituiu a pressão que a queimava: Tinha-a mordido! Abrindo os olhos com atitude surpreendida, Anne se agarrou à cabeça de Michel, cujos lábios, durante um segundo em que quase paralisava seu coração, fecharam-se ao redor de seus clitóris, afundando os dentes em seu casulo ao tempo que a sugava. A dor aguda se transformou em violento prazer quando sua língua começou a mover-se ao redor, ali, onde era mais sensível. Jamais tinha acreditado que um homem pudesse sugar seus clitóris como se tratasse de um bebê faminto e com dentes, chupando em busca de alimento... Ele se endireitou de repente, com seus lábios ainda úmidos por... Por ela. Os quadris masculinos se pegaram tanto a suas coxas que o cacheado pêlo púbico dele se misturou com o seu, mantendo as pernas abertas, enquanto que seu pênis, envolvido pela elástica camisinha, acariciava os lábios inferiores que ele tinha chupado e mordiscado antes. Tomando sua bochecha direita com a mão esquerda, inclinou-se para ela. Sua boca, quente e escorregadia, estava impregnada de seu sabor feminino. De seu sexo úmido e quente. —Está tudo bem que chore Anne. Ela se tragou seu fôlego. Algo comprido, redondo e abrasadoramente quente separou os lábios de sua feminilidade, empurrando a entrada de sua vagina. Lembrou-se das famosas 27


ameixas da senhora Kildairn. «As maiores de Dover» gabava-se a viúva. Tinham um diâmetro de dez centímetros, o mesmo tamanho que a cabeça em forma de ameixa que adornava o pênis de Michel. Anne levantou os ombros. Tinha pensado que perderia sua virgindade em posição horizontal, deitada sobre as costas, como tinha imaginado tantas vezes na segurança de sua cama vazia e solitária, tal como ele havia dito na carruagem. —Posso perdê-la... Assim? —Claro - disseram os lábios de Michel movendo-se contra os seus, deslizando suavemnete e tão enganosos como a serpente que tinha seduzido a Eva—. Se isso for o que quer. Ela queria tudo o que ele fizesse. —Sim - disse ofegante. Sua mão esquerda descendeu por sua bochecha em uma lenta carícia, passou por seus mamilos, parou em sua cintura, roçou-lhe a parte baixa das costas e terminou na redondez de suas nádegas, pressionando sua virgindade para fora. —Relaxe, chérie. É como um beijo. Primeiro te provei. Sua boca abriu a sua, úmida e quente, aumentando a pressão entre suas coxas. —Depois te lambi. Um calor escorregadio deslizou por seus lábios. A bulbosa cabeça de sua masculinidade arremeteu contra sua abertura tensamente estirada. —Depois te penetrei com a língua. Provou o sabor de sua boca e de seus dentes, a ponto de entrar nela. —E agora te penetrarei com o pênis. Sua língua a perfurou ao mesmo tempo em que a pressão entre suas pernas avançava para diante como uma faca. Anne esqueceu a dignidade. Esqueceu o controle. E gritou. Ela, que nunca tinha gritado antes. O grito foi amortecido pela boca de Michel, que sorveu seu fôlego para logo devolvê-lo a seus pulmões. Anne tentou involuntariamente afastar-se dele, de escapar da dor, de recuperar o autocontrole. Agarrou-lhe a cintura com sua mão direita enquanto que sua mão esquerda rastreava por debaixo de suas nádegas. —Fica aquieta. Ela se sentiu expulsa, insuportavelmente rasgada e vulnerável, como se seu corpo já não fosse só dela. Aquilo não era o que estava pagando, uma invasão que a deixava indefesa. Os bebês ficavam indefesos. Os inválidos ficavam indefesos. Ela não queria ficar indefesa. Seus dentes chiaram. As lágrimas ardiam os olhos. —Dói. —Me olhe. Inclina seus quadris para baixo. Sente o que estou fazendo. Tomou a mão e a guiou entre seus corpos. —Ainda não cheguei aonde quero chegar. A dor passará chérie. Quero que me sinta enganchado em seus lábios... Aí. Santo Deus! Ele estava enganchado em seus lábios. Quentes, úmidos e escorregadios, rodeavam seu sólido membro em um abraço sexual. —Não feche os olhos, Anne. Quero que me olhe. Quero ver sua paixão. Ela via lívidas, as cicatrizes que sulcavam suas maçãs do rosto. —Teve a coragem de me dizer o que queria. Agora me deixe ver até onde quer chegar. Anne respirou profundamente, liberando o único pensamento coerente que podia expressar: 28


—O preservativo. Sinto muito... Como se fosse de borracha. —É de borracha. —Eu não... Sabia. —Sinto-me... Como uma estranha dentro de meu próprio corpo. —Perdoe. Perdoe por ter gritado. Uma sombra cruzou o rosto de Michael. —Não me peça que te perdoe... Não a mim. Nunca. Quero que grite, que gema, que ofegue. Quero que se perca no que te faço. Quero que me deseje. Durante um segundo intenso, ela foi jogada fora de seu corpo. —Não acha que uma mulher virgem quer ser desejada? É possível que eu queira que seja você que gema e ofegue para mim e ouvir como grita. Ele pressionou sua testa contra a dela. Sua pele, quente e pegajosa pelo suor, aderiu-se a dela. Ou talvez fosse a dela a que estava quente e pegajosa pelo suor. —Então me faça gritar - murmurou com a voz rouca—. Inclina os quadris. Monta sobre a haste de meu pênis com seus clitóris. Deixe-me te dar prazer, chérie. Deixe-me te fazer chegar ao orgasmo. E quando o fizer aperte meu falo até que grite contigo. Ela mordeu os lábios, a carne palpitante de seus lábios. Por dentro. Por fora. Sua boca. Sua vagina. Sua testa. —Seu falo? Refere a seu pênis? —Meu pênis, meu falo, MA bitte - repetiu enquanto seus dedos perfuravam suas nádegas—. Inclina os quadris... Mais. Um prazer abrasador a sacudiu do clitóris, chispando ao longo dos lábios de sua feminilidade, que se enrolavam a seu redor, brotando de sua vagina dolorosamente tensa. Nunca tinha imaginado uma intimidade parecida, a intimidade de um homem e uma mulher unidos pelo sexo. Mas aquele homem tão famoso por sua habilidade para levar às mulheres ao êxtase já sabia. —E agora o que? Sua expressão se endureceu, fazendo que sua pele se enrugasse e seus lábios se transformasse em uma linha fina. —Agora se deixe levar pelo prazer. Os músculos de sua vagina cederam. Michael a penetrou com seu pênis outro centímetro e depois o tirou. Voltou a penetrar. Outro centímetro. A que profundidade poderia ela recebê-lo? Voltou a tirar o pênis. Estava criando um ritmo abrasador ao que ela respondia instintivamente: balançando-se, deslizando-se, escorregando ao longo de seu falo enquanto olhava aqueles olhos incrivelmente violetas. —Há tanta paixão dentro de você, chérie... Suas pestanas descenderam, cobrindo o fogo de seu olhar enquanto seu corpo entrava e saía, entrava e saía... —Sei que quer chegar já. Inclinando-se para frente, roçou sua boca, enquanto a atraía ainda mais para ele —Me deu seu grito de dor - disse penetrando-a um pouco mais—. Agora me dê seu grito de prazer. Sem aviso prévio, Anne explodiu... E gritou com o violento prazer que se abriu passo dentro de seu corpo. A cama explodiu com ela. Com um grunhido, Michel ficou de pé, segurando suas nádegas com a mão esquerda para que ficasse firmemente trespassada. Um sapato caiu de um de seus pés inertes, seguido imediatamente por seu companheiro. Ele se deixou cair na borda da cama, de modo que Anne ficasse escarranchada sobre sua cintura. Sua cabeça se inclinou para trás, ofegando em um prazer agonizante. Todo ele estava dentro dela. Vinte e cinco centímetros. Um mormaço abrasava sua garganta e seus seios. Ele se agarrou a seu mamilo, sugando-o enquanto a oprimia contra sua pélvis, movendo-se de um lado para o outro para que sua vagina e seus clitóris se acoplassem à pressão 29


de seu membro. Ela arqueou as costas, sem saber se era dor ou prazer o que sentia; imediatamente sua mão estava aí, dura e áspera, para sustentar a coluna vertebral enquanto continuava sugandoa, enquanto a penetrava cada vez mais profundamente. Era impossível que pudesse chegar mais longe, mas o fez, e ela gritou de novo em meio de um prazer incontrolável. Só para gritar uma vez mais quando o quarto começou a dar voltas em torno dela e uma banda de seda fria lhe enredou no pescoço e nos ombros, ao tempo que suas costas descansava sobre um veludo igualmente frio. Sua cabeleira, apanhada entre seu corpo e a colcha, mantinha-a imóvel. Os músculos de sua vagina se agitavam depois de um orgasmo, preparando-se já para o seguinte.Michel se inclinou sobre ela, com seus quadris firmemente implantados entre suas coxas e sua masculinidade profundamente alojada no interior de sua vagina. Era como um manto de calor metálico e agudo: seu peito apertava seus seios, seu estômago moldava seu ventre.Uma sufocante sensação a estremeceu. Anne procurou desesperadamente o ar, mas só a respiração dele podia sustentá-la, da mesma forma que unicamente seu corpo podia lhe proporcionar o orgasmo que nascia uma vez mais dentro dela. —Agora, chérie. —E seus olhos violetas brilharam—. Agora te mostrarei os anjos. Capítulo 4 Um pequeno gemido despertou Michael no momento em que o amanhecer rosado começava a projetar-se no teto quarto. Vinha de uma mulher. Quando progressivamente foi consciente da presença da mulher, lhe afastou os braços e se sentou na cama. O cabelo comprido e sedoso lhe ocultava as costas, um escudo de cor castanha pálida que brilhava com matizes de ouro e de prata à luz plúmbea de um abajur de oleo. Bruscamente, o suor seco aderido a seu corpo e o perfume das rosas e do sexo terminaram de despertá-lo. Sentiu uma pulsação ensurdecedora em seus ouvidos: os batimentos de seu próprio coração. —O que foi? —murmurou com o corpo ainda tenso, conhecendo de antemão a resposta. Anne Aimes tinha tido sua noite de prazer e agora queria ir para casa. Mas não podia fazê-lo. Ele a tinha levado a orgasmo oito vezes, drogando deliberadamente seu corpo e sua mente com excessos carnais. Não deveria estar acordada. Ao virar-se, os olhos de Anne o afligiram. Eram pálidos, desfocados, rodeados de sombras do azul da lavanda. —Dormi muito. Devo me levantar. Eles precisam de mim. Tenho que levar a medicação... Seus pais tinham morrido fazia dez meses. A mãe tinha seguido o pai com dois dias de diferença. Helen e Henry Aimes eram já velhos quando morreram, e não tinham parentes. Também eram velhos quando conceberam Anne, sua única filha. E, agora, aquela solteirona que já não era virgem, estava sozinha. E ele estava sozinho. Uma dor aguda retorceu o peito do Michael. —Não dormiu muito, chérie. Delicadamente e com cuidado, atraiu-a de novo para a curva de seu corpo, envolvendo-a com seus braços e com o arbusto sedoso de seu cabelo. —Shhh. Não se preocupe. Ela permaneceu rígida entre seus braços, decidida a velar por uma família que já não existia. —E a medicação? Michael retirou uma mecha de cabelo que cobria a testa e o sustentou entre seus dedos ásperos, cheios de cicatrizes. Beijou suas têmporas com suavidade, saboreando o aroma de seu suor misturado e de sua saciedade sexual, e por debaixo, a fragrância do sabão, do xampu e de seu próprio e único perfume, uma doçura que era diferente em cada mulher. —Não se preocupe chérie. Não tem que se levantar. Não se preocupe... Ninguém te necessita esta noite. Volta a dormir. A resistência da Anne se evaporou em um suspiro. 30


—Morreram- disse com os olhos fechados e a respiração entrecortada—. Estava tão cansada... Michael pensou por um momento em sacudi-la para terminar de despertá-la e jogar a de sua casa e de sua vida. Mas, de repente, deu-se conta do que tinha perturbado o sono. O pomo da porta do balcão fez um ruído. Alguém estava tentando entrar em seu quarto. É muito cedo, pensou em um rapto de violência. A mulher que se aconchegava contra ele era muito provocadora. Precisava de mais tempo. Um golpe metálico soou de novo. Quantos homens estavam esperando para levar-lo? Um? Dois? Três? A energia que sentia por dentro chegou a seu ponto máximo, e durante um momento, que por pouco o para o coração, não soube se estava preparado para brigar ou para fugir. Uma ardente vergonha deixou passo a uma raiva abrasadora. Não sairia correndo, nunca mais. Afastou delicadamente a um lado o cabelo de Anne, e retirou sua cabeça, que repousava sobre seu ombro. Saiu da cama, e baixou a luz do abajur até que o reconfortante brilho amarelo se transformou em uma língua vermelha de fogo. Uma sombra escura passou por trás das cortinas. Só uma pessoa tinha vindo para levá-lo desta vez. Ao abrir a gaveta da mesinha de noite, o deslizamento da madeira agitou o ar frio. Preparou-se para a Anne com uma caixa de preservativos, mas também estava prevenido contra o intruso. O punho de marfim da faca se balançou na palma de sua mão, acostumado a segurá-la, como havia segurado as camisinhas. Estes últimos para foder; aquela para matar. Não importava. Não iria antes de estar preparado para que o levassem. Ficando de cócoras sobre o frio chão de madeira, afrouxou o trinco com a faca, disposto a atacar. —Ou a usa ou a deixa de um lado, Michael - ouviu que alguém dizia com um sussurro que mal foi um suspiro de ar. Gabriel. Instintivamente olhou para a cama para assegurar-se de que Anne não tinha despertado. Estava tal como a tinha deixado, deitada sobre suas costas. Ele tinha se esquecido de agasalhá-la com as mantas. Seus seios brilhavam a luz tênue do abajur, como se fossem de alabastro, e seu braço direito, com a palma da mão para cima, repousava sobre os lençóis de seda branca. Michael não estava preparado para o torvelinho de emoções que surgiu dentro de seu corpo. Tinha servido às mulheres desde que tinha treze anos de idade, mas não tinha direito a sentir-se orgulhoso de ter sido o primeiro homem de Anne Aimes. Tinha pertencido a qualquer mulher que pudesse pagar seu preço, mas não tinha direito de sentir possessivo com aquela virgem. E, entretanto se sentia. Não queria que Gabriel a visse nua, como ele a tinha visto. —Espera. A ordem de Michael foi como um suspiro. Recolheu seu vestido de veludo - o mesmo que ele tinha atirado sobre o divã do quarto—, e cobriu com ele seu corpo nu. Saiu ao balcão, apoiando a ponta dos dedos de seus pés sobre a madeira úmida e gelada, e fechou com suavidade as portas de vidro. O amanhecer rosado se elevava no céu, emoldurado pela fumaça negra dos fornos que preparavam o café da manhã para cinco milhões de londrinos. Um pássaro cantava estridentemente no jardim abaixo. Michael e Gabriel ficaram um frente a outro. —Poderia ter te matado, Gabriel. Seus fôlegos se misturaram em uma nuvem de bafo cinza. —Ao menos não teria importado. 31


A raiva que Michael sentia em seu interior foi se apaziguando pouco a pouco. —A mim sim. —E não acha que eu também lamentaria sua morte, Michael? Você salvou minha vida. É possível que queira te devolver o favor. Gabriel não tinha considerado um favor o fato de que Michael o tivesse encontrado encadeado no apartamento de cobertura da casa de um de seus clientes ricos. Ele tinha lutado para morrer inclusive enquanto Michael lutava para salvá-lo. —Por que não entrou pela porta principal? —perguntou Michael com amabilidade, dando um passo para trás, fora da nuvem úmida que formava seu fôlego misturado—. Tem uma chave. —Talvez porque queria ver se está preparado para enfrentar os homens que virão atrás de você. Estas portas envidraçadas não protegem. Por que não colocou grades nas janelas? —Acha que se o fizer não vão me pegar? —raciocinou Michael em voz baixa. —E se não vierem a por você e sim pela mulher? Michael recordou o que tinha sentido ao penetrar na virgindade de Anne. Ela tinha gritado. Primeiro de dor, depois de prazer, tal como ele tinha prometido. Tentou que aquela lembrança sumisse de maneira implacável —Se alguém vier buscá-la —, é possível que morra. Também é possível que não. Em todo caso, matarei o que se atreva. Ou ao menos morrerei tentando. —Cheira a ela. —Estou com sua capa. —Cheira a seu sexo, Michael. A seu prazer. E ao teu. Ela não veio a você como um chamariz. Deixará que ele faça com ela o que fez com Diane? Michael fechou os olhos, tentando não ouvir as palavras de Gabriel. Durante um instante fugaz reviveu a experiência de Diane, uma mulher que tinha deixado seu nobre marido para estar com ele, um homem a quem ela considerava simplesmente um prostituto francês. Recordou sua risada fácil e desinibida, sua paixão sem restrições, sua luxúria natural pela vida. Quando o homem a levou, ela morreu em dois meses. Só com a morte tinha recuperado a paz. Maldito Gabriel. Michael tinha amado Diane. E seu assassino estava livre. Abriu os olhos. —Sim. Sim, deixarei que leve Anne Aimes. Olharam-se o um ao outro como dois anjos caidos que tinham desejado muito, que tinham se arriscado muito e que tinham pagado o preço. Gabriel deu um passo atrás. Um gesto de compreensão repentino apareceu em seu amável e formoso rosto. —Ele já sabe. Michael não mentiu. —Sim. Durante os últimos cinco anos sabia que tinham introduzido um espião em sua casa. Também era consciente de que enquanto permanecesse submerso em seu próprio inferno privado, estava a salvo. Mas então tinha aparecido o procurador diante de sua porta. Michael tinha seguido o espião, que por sua vez tinha seguido o procurador. O procurador os tinha levado ambos a Anne Aimes. Era indubitável que o homem sabia quem tinha procurado os serviços de Michael, da mesma forma que ele sabia que ela era uma solteirona solitária, que ninguém sentiria falta dela até que fosse muito tarde. —E quando a matar, Michael, como viverá consigo mesmo, sabendo o preço que pagará outra mulher? Nos lábios de Michael apareceu um sorriso irônico e fugaz. —É possível que não a mate, e também é possível que ele me mate. 32


—Deixe que a leve embora daqui. Ele sabe que você já não se contenta fazendo o papel de camponês. Engana a si mesmo se pensar que as mulheres não te desejam. Haverá outras, agora que voltou. Não precisa de Anne Aimes. A recriminação é contra sua sexualidade, não desta mulher. A raiva ameaçou destruir o sangue-frio de Michael. Explodiu, querendo fazer mal e sabendo que instrumento usar para isso. —Não julgue os gostos de uma mulher pelos seus, mon frère. Suas palavras ácidas ficaram flutuando entre os dois. Ambos sabiam que se tratava de mentiras. Nenhum dos dois tinha escolhido a vida que levavam. Os olhos de Gabriel se entrecerraram, brilhando como a prata no novo amanhecer. Nem sequer se incomodou em negar o que era, claramente, falso. —É um idiota, Michael. Busca um espelho e se olhe de perto. Ele não te condenou ao inferno; você o fez. Michael apertou os lábios. —Se afaste Gabriel. Desta vez não vou perder. —Teme que lhe faça mal? —Zombou. Não havia rastro do moço de treze anos que Gabriel tinha sido alguma vez, nenhum vestígio de sua risada e de suas lágrimas. Michael não tinha que procurar nenhum espelho; estava se olhando em um. O frio que lhe intumescia os pés mudou para a boca de seu estômago. —Sim, Gabriel, tenho medo. —E se a por de sobre aviso? Michael se voltou sem fazer mais comentários, abriu as portas envidraçadas e entrou no quarto. A escuridão o envolveu. Havia muita morte. Quase tinha matado seu único amigo, e ia matar à única mulher que procurava prazer em suas carícias. Movendo-se suavemente, fez crescer a chama do abajur. Precisava da luz para manter a raia o passado. Anne tinha lhe pedido que apagasse a luz quando a estava despindo. Se ele tivesse sido outro homem, teria respeitado seu sentimento de pudor daquela vez, sua primeira vez. Mas ele não era outro homem. Só havia uma coisa que o atemorizava mais que o fogo, e era a escuridão. Michael observou em silencio à mulher que estava em sua cama. Dormia placidamente, sem consciência do homem que a olhava, nem do destino que a esperava. Sem dar-se conta do frio que a cobriria. Um cabelo negro e cacheado repousava sobre a carne branca de seus seios: um cabelo de seu peito. Debaixo dele, seu mamilo estava escuro e inchado, como um morango machucado. Era uma mulher muito sensível, até o ponto de que quase chegou ao orgasmo quando ele a sugava. Seus finos dedos estavam desprovidos de jóias, e suas unhas curtas pintadas de rosa. Nas costas e nos ombros ainda notavam as marcas das unhas que ela tinha cravado. Não parecia a mulher lânguida e desapaixonada que tinha entrado na Casa de Gabriel, nem tampouco parecia uma mulher destinada a morrer. Recordou seus ofegos quando alcançou o orgasmo. Na carruagem havia dito que nunca tinha visto um homem nu, e, entretanto não se comportou com a modéstia e o acanhamento que a sociedade esperava de uma virgem bem educada. 33


Várias mulheres casadas tinham ido a ele, ignorando inclusive o nome de seus órgãos sexuais. Como tinha adquirido seus conhecimentos aquela solteirona? Que espécie de vida tinha levado para pensar que não podia gritar de prazer... Ou de dor? Michael respirou um ar doce e pesado. O perfume das rosas não conseguia ocultar o fedor da decadência. Sentiu raiva na boca do estômago. Doíam-lhe os músculos pela tarefa de ter satisfeito uma mulher em vez de trabalhar sua terra em Yorkshire. Este último deixava exausto seu corpo, mas não sua mente. Anne, pelo contrário, tinha ocupado ambos: seu corpo e sua mente. Maldição o homem que usa o único meio que garante sua própria destruição. Com fúria se perguntou durante um instante se Anne tinha sido contratada para fazê-lo retornar a Londres. O homem era capaz de semelhante montagem. Conhecia as fraquezas de Michael. Mas a fúria desapareceu imediatamente, deixando atrás só a necessidade. Nenhuma quantidade de dinheiro podia comprar a paixão que tinha visto nos olhos de Anne. O tremor começou no mais profundo de seu interior, familiar, mas nunca bem-vindo. Só havia uma maneira de detê-lo. Afastando o objeto de veludo que a cobria, tirou uma camisinha da caixa e com perícia a enrolou em seu ereto membro. Recordou a ignorância de Anne, na noite anterior, ao tentar lhe colocar o preservativo. Diante ele, nua e tremendo de desejo, tinha sentido medo de perder o controle, disposta a exercer um poder que não tinha. Michael deslizou sob as mantas. Os lençóis permaneciam quentes e incitantes, igual ao perfume de seu sexo. Fazia cinco anos que uma mulher não esquentava sua cama. Fazia cinco intermináveis anos que uma mulher não lhe dava de presente seu êxtase. Aconchegou-se a seu lado e a tocou, enquanto seu coração acelerava. Os pálidos olhos azuis de Anne estavam abertos. Olhavam-no espectadores, não empanados pelo sonho nem pelos pesadelos do passado. Estava acordada quando ele parou em frente a ela? Percebeu que tinha saído ao balcão? Tinha escutado sua conversa com o Gabriel? —Os pássaros já despertaram - disse sem mover-se, porque não queria alarmá-la. —Sim. É tarde - respondeu ela com um tom distante, sereno, muito diferente à voz com a que tinha gritado de paixão—. Tenho que partir. Michael já não quis fingir mais. Ele queria. Ela queria. Isso não era suficiente? Ele já não era Michel, e não se importava até que ponto o desejava. O homem que tinha sido cinco anos antes tinha desaparecido. Todas as pessoas que ele tinha amado tinham morrido. Tomou o rosto de Anne entre suas mãos: nas mãos de Michael, não do Michel, umas mãos que em vez de atrair repeliam. Mas não pareceu sentir repulsa. Inclusive agora, com sua expressão fria e recatada, recebeu-as com decisão. Gabriel estava enganado. Nenhuma mulher o aceitaria como Anne Aimes o tinha aceitado. Ela tinha sido francamente honesta a respeito de seus desejos e, portanto, merecia que ele a tratasse com honestidade. —Na carruagem não te disse uma coisa - sussurrou—, algo que talvez devesse ter dito. Um brilho de incerteza iluminou os olhos de Anne, uns olhos claros e pálidos, dolorosamente expressivos, que falavam de solidão e de sofrimentos e de sua urgente necessidade de ser tocada, abraçada, aceita. A linguagem de Michael, não do Michel.

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—O que? —sussurrou ela, com o fôlego quente e doce por causa do champanha, o pó dental e sua própria satisfação. —Não te disse que, quando um homem está dentro de uma mulher - acrescentou enquanto lhe acariciava com os dedos polegares suas sedosas bochechas e suas orelhas—, é o fôlego dela o que sustenta o dele... E o fôlego dele que sustenta o dela. Não te disse tampouco que precisava de você, Anne Aimes. Necessito que me toque, e estou disposto a pagar por isso. Ela ficou rígida. Não estava preparada para o Michael, o inglês. Sem dar-se conta de que tinha sido ele que lhe tinha tirado a virgindade, e não Michel, o courailleur francês. —Não é necessário que me trate com condescendência, monsieur. Sou consciente de que um homem como você não precisa de uma mulher como eu. Michael passou a lhe acariciar o cabelo e o couro cabeludo, tão frágil como uma casca de ovo. —Acha que porque um homem tem cicatrizes nas mãos e na cara não precisa ser tocado? Ela ficou completamente quieta, como tinha ocorrido na Casa de Gabriel, rodeada de galanteadores e de prostitutas; como tinha ocorrido na carruagem, pressionada contra o homem que tinha contratado para que lhe tirasse a virgindade; como tinha ocorrido entre seus braços quando ele a despia, aterrorizada pelo medo e o desejo. —Não disse isso. Ele virou seu rosto de maneira que ficasse frente à sua, quase roçando seus lábios. —Acha então que porque sou um prostituto não preciso ser tocado? Ela se aproximou ligeiramente, tentando se soltar da pressão que ele fazia em sua nuca, e lhe oprimiu o antebraço. —Tampouco disse isso. O pânico e a vergonha se adivinhavam nos olhos da solteirona. E fazia bem em temer já que, ao contrário de Michel, Michael a possuiria até que ela já não tivesse nada mais a lhe oferecer. Ele não a seduziria usando sua vergonha e sua modéstia virginal, como Michel fizesse. Não tinha muito tempo. Seus dedos a mantinham imóvel e seu olhar se concentrava no seu. —Então, o que quis dizer, Anne Aimes? —Quis dizer que... Que você tem a sua disposição muitas mulheres. Mulheres lindas. Mulheres jovens - respondeu com seu fôlego lhe acariciando os lábios. Como podia ser assim tão ingênua? Precisava de óculos? Não podia ver o que ele era? —Faz cinco anos que não tenho uma patroa - disse com secura, dando perfeita conta de que seu pênis aumentava que sua confissão ia mudar tudo. Os olhos dela se abriram com incredulidade, e a frenética tensão de seus dedos se afrouxou. —Por quê? —Houve um incêndio... —respondeu ele duramente, temeroso de suscitar mais compaixão que repulsão. —Não desejava estar com mulheres por que... Porque tinha sofrido queimaduras? Como era possível que a dor de Michel - um homem morto, fazia cinco anos— fosse ainda tão intensa? —As mulheres não queriam estar comigo pelas cicatrizes de minhas queimaduras. —Isso é algo que acho difícil de acreditar, monsieur. —Por quê? —perguntou oprimindo os dedos contra o couro cabeludo, não com dureza, exatamente, mas tampouco com suavidade—. Por que acha difícil de acreditar que uma mulher não queira ir para cama com um homem marcado pelas cicatrizes? —Porque ainda é o homem mais bonito que vi em toda minha vida. -Michael ficou petrificado. O pássaro que cantava debaixo do balcão subiu o volume de seus gorjeios e, ao longe, no centro de Londres, o Big Ben dava à hora: um distante bong, dois, três, quatro, cinco. —Tinha me visto antes? —Uma vez. Faz dezoito anos. Em um baile. 35


—Não me lembro de você. —Não. É natural que não se lembre. Por que teria que fazê-lo? Não deveria importar que ela o tivesse visto antes do incêndio. Mas importava. —Não sou o mesmo homem. —Não tenho nenhuma queixa. Uma sensação parecida com uma luminosidade atravessou Michael. Por que o aceitava aquela solteirona quando todas as demais mulheres o tinham desprezado? Afrouxou a pressão de seus dedos e os passou pelo cabelo dela, um cabelo quente e vivo, mais quente e vivo que ele mesmo. —Antes de te tirar a virgindade, perguntei o que queria. —E eu lhe disse. —Não - afirmou Michael enquanto massageava o couro cabeludo, aliviando a dor de ambos, a dela... E a sua—. Repetiu as palavras que eu tinha expressado. As coisas que eu havia dito que te faria. —Mas era o que eu queria que me fizesse - assinalou ela com rapidez e firmeza, de uma maneira enternecedoramente previsível. —Entretanto, não sabia que um homem podia beijar o clitóris de uma mulher - insistiu ele de forma desumana—. Que podia saboreá-la, lambê-la, penetrá-la com a língua. Até ontem à noite, não é verdade? Uma pálida faísca de desejo apareceu nos olhos de Anne. Gostava das palavras que acabava de ouvir. As palavras explícitas. As palavras sexuais. As frases carnais que criavam um diálogo íntimo entre um homem e uma mulher. Finalmente, a contra gosto, ela admitiu: —Está certo. Michael aspirou seu aroma, o aroma de seu sexo, a doçura de sua pele sem perfumar e a paixão de sua luxúria feminina. —Se não houvesse te dito quais eram as coisas que faria o que teria me pedido? Ela odiava confessar sua ignorância, mas sua própria honestidade não permitia mentir. —Não sei. Nunca pensei que me perguntaria - disse isso, fechando os olhos em um intento de ocultar sua vulnerabilidade—. Não sabia o que pedir. Nem sequer agora sabia. —Mas sabia que os homens tocavam às mulheres. Sabia que os homens se deitavam com as mulheres. Diga-me o que pensou que eu faria - murmurou ele com suavidade. —Pensei... Pensei que me beijaria... Que me beijaria na boca. —Sabia que um homem podia sugar os seios de uma mulher? —Não. —Imaginou alguma vez que um homem podia sugar seus seios? —Sim - respondeu com certo desconforto refletido nos lábios. Ele acariciou suas pestanas delicadamente com as unhas de seus dedos polegares, e ela abriu os olhos ao sentir aquele roçar. —Me conte - sussurrou Michael ao ouvido, querendo compartilhar seus desejos e querendo esquecer, embora fosse brevemente, o mal que os homens faziam a outros homens, mulheres e crianças. —Vi como as mães alimentam seus filhos pequenos, e pensei que... Pensei que seria muito bom... Que um homem sugasse meus seios. Pensei que criaria entre os dois uma proximidade muito especial. A respiração de Michael se acelerou, sentindo que seus próprios desejos se avivavam ante a inocente sensualidade dela. —Tocava-se nos seios quando tinha esses pensamentos? O colchão se moveu debaixo de seus corpos. 36


—Não - disse Michael, forçando a voltar-se para enfrentar à realidade de sua paixão—. Não se afaste de mim. Só tinham um ao outro. E, talvez, aquela seria a última vez que tocariam alguém. Abraços. Amor. Ela aproximou seus mamilos de seu peito, e ele roçou com seu membro a abertura de suas coxas. —Tem os pés frios - murmurou ela sem fôlego, mas sem desprender-se dele; podia sentir os batimentos de seu coração como se estivessem dentro de seu próprio corpo, e o pulso palpitante de suas têmporas. —Não respondeu a minha pergunta. —Não entendo o que espera de mim. —A verdade, Anne Aimes. Pode me perguntar tudo o que quiser e te asseguro que não mentirei. Nem na cama, nem sobre questões de sexo. Perguntou-me se alguma vez tinha estado disposto a pagar para que alguém me tocasse, e a resposta é sim. Durante os últimos cinco anos paguei para obter prazer, e até sabendo que as prostitutas me achavam repulsivo, recorri a seus serviços. Queria tocá-las. E queria que elas me tocassem. Algumas vezes, quando o sexo tinha terminado e me encontrava acordado em minha cama, tocava a mim mesmo, me perguntando por que não era suficiente que me deitasse com uma mulher que não me desejava. Fechava os olhos e imaginava que em alguma parte existia uma mulher que podia querer estar comigo a cima da repulsa que lhe causavam minhas cicatrizes... E então me via dentro de minha própria mão. Um amontoado de sentimentos contraditórios formou redemoinhos nos olhos de Anne, como as nuvens que cruzam um nítido céu azul. Impressionava-a o fato de que um homem falasse abertamente de seus desejos para as mulheres, e compreendia que se masturbasse em busca de prazer, em busca do mesmo prazer que ela, sem lugar a dúvidas, também desejava. —Desejo-te, Anne. Quero ser algo mais que o homem a quem pagou para te agradar. Quero ser seu amante - acrescentou roçando os lábios com os seus, e invadindo sua boca com seu fôlego—. Fica comigo. Agora. Amanhã. Fica comigo durante todo o mês. Te ensinarei a me pedir o que quiser, a me pedir o que toda mulher tem direito a exigir. Que a toquem. Que a beijem. Que a lambam. Coisas que nunca imaginou. Atos sexuais que não realizei em cinco anos. - Um brilho de dor apareceu nos olhos de Anne. —Mas não gritou... Não gritou quando chegou ao orgasmo. Naquele momento de clímax, efetivamente, não tinha sido capaz de gritar. Michel teria gritado. Michael não. —É isso o que quer? Você é a que está pagando, e como tal está em seu direito de exigir o que desejar. E se o que deseja é que um prostituto como eu grite, assim será - murmurou implacavelmente—. Tenha ou não chegado ao orgasmo. —Você não é um prostituto - protestou ela. Michael sorriu com indulgência, reconhecendo que era uma mentira. —Mas fui. Um prostituto. Um courailleur. Um garanhão. Um macqueral. Um mantido pelas anáguas das mulheres. Os nomes que podiam ajustar-se a homens como ele eram intermináveis, tanto em inglês como em francês. —O que é agora? O que era agora? Que termo podia descrever melhor um homem que se aproveitava das necessidades sexuais das mulheres para depois encher seu desejo de ser desejado? Não havia desculpa que justificasse o que estava a ponto de fazer. Se ele não a prendesse, ela morreria. E se a prendesse, outros a levariam. Só os idiotas acreditavam que não havia nada pior que a morte. 37


Michel não tinha sido um idiota - só um tolo—, mas Michael não era nenhuma das duas coisas, e talvez por isso sentisse que a tampa do caixão caía sobre ambos quando pronunciou as palavras que a atariam a ele para sempre. —Sou um homem —expressou com dureza— que quer que o tempo pare durante um mês. Um homem que quer ouvir como grita de paixão a mulher que desfruta de sua masculinidade e saber que o grito não é fingido. Quero me sentir como o homem que era há cinco anos. Completo. Desejável. Como ontem à noite, quando chegou ao clímax por mim, e depois dormiu entre meus braços. Quero compartilhar meu corpo contigo, Anne, mas não poderei fazê-lo enquanto me paga, como tampouco poderei me transformar em seu amante se só me conceder umas poucas horas de vez em quando. Seus desejos encontraram eco nos olhos de Anne Aimes, que também desejava ser atraente, desejada, experimentar a cercania especial do sexo. —Não posso ficar - murmurou—. Tenho que ir. Mas ele não podia permitir que ela se fora. —Quando despertou... Faz um momento... Disse que era tarde - assinalou ele lambendo os lábios, absorvendo seu sabor e seu aroma e imprimindo nela, deliberadamente, os seus—. Disse que tinha se esquecido de sua “medicação”. É que cuida ou atende a alguém? Um sentimento de culpa escureceu seu rosto, mas antes que desaparecesse se encerrou de novo em sua concha virginal. —Não. Não mais. Ele não queria lhe fazer dano. —Então não tem ninguém que precise de você -sussurrou ele ao ouvido—. Não tem ninguém que a espere em casa. Michael se acendeu com o brilho de seu olhar. —Não. Não há ninguém. —Eu perdi a minha família aos onze anos. - surpreendeu-se de havê-lo admitido, mas ela não pareceu se importar que o homem que tinha contratado para que lhe desse prazer lhe falasse de seus assuntos familiares. —Como morreram seus pais? —Cólera - mentiu. —E não gosta de ficar sozinho? —Sim - replicou, sabendo que havia muitas coisas sobre a quais não teria que lhe mentir. —E o que faria se... Se ficasse? O comichão que Michael sentiu na virilha deslizou por seu corpo, alojando-se no peito. Colocou sua mão esquerda sob sua cabeça, como se fosse seu travesseiro, e com sua mão direita acariciou os ombros de Anne, memorizando o ressaltar de seus ossos, o ondulação de sua cintura, a suave e deliciosa curva de seus quadris. —Quer ficar comigo... Agora? Um delicado rubor rosado acendeu suas bochechas. —Sim. O calor úmido de sua vagina endureceu sua masculinidade. Ela estava aberta, desprotegida. Uma vítima involuntária. À força, tentou apagar a lembrança do que o homem tinha feito ele, Diane e do que ele estava a ponto de fazer a Anne. —E me mentirá? —perguntou necessitado de sua vontade, de sua franqueza, de sua paixão nua. —Por que teria que mentir? —respondeu Anne, o tocando fugazmente o ombro, temerosa de que ele a rejeitasse. Agarrando-se firmemente a suas coxas, Michael roçou sua boca palpitante com a sua e retirou sua mão esquerda, a que lhe servia de travesseiro, da parte de atrás de sua cabeça.

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—Há ocasiões em que a mentira é o único que nos protege – disse pondo a mão entre suas cálidas e palpitantes nádegas, onde sua pele era mais suave que a de seu rosto e seus seios—. Mas não há necessidade de mentir. Não para mim - acrescentou procurando a greta de suas nádegas antes de abrir-se passo até suas partes mais íntimas—. Ambos queremos... E ambos precisamos... Disto. Sua vagina estava úmida e acesa. Anne recuou diante da intromissão de seus dedos. —Não sei se poderei te possuir agora mesmo. Estou um pouco... Quente. Michael não podia lhe prometer que não a machucaria. A final, ambos terminariam feridos. Ou mortos. Ocultando a verdade atrás de suas pestanas, acariciou seus lábios com os seus. —Confia em mim? —Se não confiasse em você, não estaria contigo em sua cama. Um punho invisível o golpeou nas vísceras. Deveria entregar-la Gabriel. Michael retirou os dedos de trás, deslizando-os lentamente entre suas nádegas. Anne ficou tensa, sentindo-se freneticamente agitada, aprisionada por seus braços e por seu cabelo. —O que está fazendo? —exclamou. —Na Casa de Gabriel te disse que no final da noite conheceria todas suas aberturas, todos seus orifícios. Céus! Seus dedos estavam envoltos em um calor abrasador, tão abrasador como o fogo que o tinha queimado muitos anos antes. Procurou absorver seus ofegos, mas ela retirou sua boca e tentou escapar daquela invasão inesperada. Não havia, entretanto, fuga possível. —Me coloque dentro de você, Anne. —Mas disse... —À maneira francesa. Relaxe. Tome. A princípio parecerão estranhas muitas coisas. Não toquei uma mulher como você em cinco anos. Há um lugar especial dentro de você que quero acariciar. Deixe-me te dar prazer, Anne. —Não quero... Mas sim queria. —O que? —interrompeu-a ele sem misericórdia—. Não quer explorar as fronteiras de sua paixão? Você não gostaria, embora fosse uma só vez, experimentar todas as coisas... Todas as carícias... Todos os prazeres que um homem e uma mulher podem experimentar juntos? Anne mordeu os lábios, apanhada entre seu pudor e sua curiosidade. —Sim. Por isso te escolhi. Não mentia. —Então tome. Coloque-me dentro de você. Michael a ajudou, usando sua mão direita para guiar seus dedos trêmulos até que sua masculinidade se sentiu apanhada em um calor diferente ao que sentia no dedo do meio de sua mão esquerda. Ela se agarrou convulsivamente a sua cintura com as coxas, fazendo que ele a penetrasse ainda mais profundamente. —OH, Meu deus. Michael beijou as pálpebras fechadas de Anne, incapaz de agüentar a resolvida emoção de seu olhar. A machucaria, entretanto, ela confiava em que a levaria a sentir prazer. —Se mova comigo. As pestanas da Anne roçaram seus lábios e ele, cuidadosamente, começou a efetuar o balanço que os levaria a sentirem-se completos. 39


—Se deixe levar pelo prazer. Faça-me esquecer... O corpo dela respondeu involuntariamente ao estímulo, como tinha acontecido na noite anterior, quando tinha tirado sua virgindade. Michael olhou seu rosto e não pensou no homem que o estava esperando. Só pensava em Anne Aimes. Enquanto se concentrava na busca do prazer, ela franziu ligeiramente o cenho. Suas sobrancelhas eram de uma cor castanha ainda mais escura que suas pestanas, o mesmo que seu pêlo púbico. Ele podia sentir o orgasmo que nascia dentro dela, podia sentir o pulso de seu próprio desejo através da membrana que separava seu dedo de sua masculinidade. A expressão dizia tudo: onde tocá-la; quando devia fazer que seu roçar fosse mais suave; quando devia acelerar o ritmo; até que profundidade penetrá-la; em que ângulo; quando ser lento; quando ser rude... Anne levantou as pálpebras. Seus pálidos olhos azuis brilhavam de paixão. Por ele. Com ele. —Quero... —ofegou Anne, arqueando instintivamente as costas enquanto ele a penetrava. Ele também queria. Tantas coisas. Seus músculos se estreitaram ao redor de Michael, que tinha que esforçar-se para manter o ritmo, chiando os dentes e sentindo o suor que caía da testa. —Quando chegar ao orgasmo - disse ela com a respiração entrecortada—, quero que grite... Quero que grite como você me fez gritar ontem à noite. Ele não tinha gritado quando o homem o tinha prendido. Isso teria ajudado? Teria ajudado Diane? Ajudaria Anne? Os traços de um rosto se refletiram nas dilatadas pupilas dela, um rosto nu, ofegante, curiosamente vulnerável em seu propósito, com a boca aberta e o nariz farejando as ferroadas do desejo. Impactado e surpreso, Michael reconheceu a si mesmo. Não queria que ela o visse assim. —Vêem comigo! —apressou-a, dobrando com perícia os braços ao mesmo tempo em que flexionava a pélvis—. Agora. A surpresa emoldurou o rosto aceso de Anne, que jogou a cabeça para trás e gritou de satisfação. Michael afundou seu rosto na curva úmida e quente de seu pescoço. Os músculos dela se fecharam sobre sua masculinidade, oprimindo-a como um apertado punho, fundindo suas carnes em uma só. Durante um segundo breve ele foi Anne Aimes, perdido no prazer da inocência. Um gemido agonizante vibrou em seu peito, em seus lábios, em sua garganta. Logo sua semente saiu dele e se derramou dentro da camisinha de borracha: um banho quente de esperma. A razão retornou com a satisfação. Roubar a inocência a uma mulher não devolveria a sua. Inalou o perfume das rosas, do sexo, do suor, imerso no cabelo da mulher e nas quebras de onda de seu orgasmo, e se perguntou quantas pequenas mortes mais teriam antes de chegar à morte final. Capítulo 5 Anne despertou com um sol alto e o perfume das rosas. A primeira coisa que viu foi um teto pintado com esmalte branco, bordeado por uma moldura de folhas douradas. As paredes estavam cobertas por uma pálida seda verde. O bronze da cama brilhava. Deixou cair sua mão sobre o lençol suave, frio e escorregadio e tocou um quadril. Um quadril nu. 40


Seu quadril. —Bom dia. Uma vibrante evocação se estendeu por seu corpo e se alojou na redondeza de suas coxas. O aroma picante do sexo e do suor superou repentinamente à doçura das rosas. Anne virou a cabeça sobre a capa de seda do travesseiro. A madeira esmaltada de branco e o vidro resplandecente das altas portas envidraçadas se materializaram a luz segadora do sol. A escura cabeleira de um homem apareceu atrás das trêmulas bolinhas de pó. Michel de Anges. Uma confusão abrasadora alagou sua cara. Havia-lhe dito que a faria gritar. E o tinha feito. Anne se agarrou aos lisos lençóis de seda para frear seu impulso de atirar no chão as mantas e sair correndo tão rápido como suas pernas o permitissem. O manual de medicina não tinha ensinado nada sobre as repercussões do coito. Não havia nele nenhuma referência às fissuras emocionais que se produziam por causa de um orgasmo compartilhado. Nenhuma menção a sussurrada troca de confidências que tiravam a luz a solidão e que incitavam à luxúria. Não estava preparada para isto. Para a penetração, sim; para a posse, talvez; mas não para isto: para despertar na cama de um homem que a tinha despojado de todas suas inibições e que tinha tirado a luz à mulher sedenta de amor que era ela. —Bom dia - Saudou de uma maneira um tanto afetada, consciente de que não lavou o rosto, nem penteou o cabelo, nem escovou os dentes. Michel deixou de um lado o jornal, dobrando-o cuidadosamente, e se levantou de uma cadeira forrada de seda amarela. Seu cabelo negro estava úmido, e se encrespava a altura do pescoço de sua camisa branca. A noite anterior também estava úmido. De suor. Do dele e do dela. As lembranças se amontoaram em sua mente, dele aproximando-se nu e com o pênis em pleno vigor, balançando-se de um lado a outro. A que profundidade vai me penetrar, monsieur? Vinte e cinco centímetros, mademoiselle. Ela olhou instintivamente para sua pélvis enquanto ele se aproximava. Suas calças cinza de lã, à altura de seu membro viril, estavam tensas. Quando está com uma mulher... Sempre consegue uma ereção? Sim. Elevou imediatamente o olhar. Ele se recostou na cama. Pareceu-lhe mais alto que a noite anterior, e também maior. Com exceção de seu pênis, que ela recordava grosso e comprido. As cicatrizes que tinha em sua face direita se fizeram mais visíveis. —Um banho quente aliviará a dor. Anne obrigou a si mesma a não retirar o olhar daqueles olhos violetas, uns olhos que tinham visto sua nudez e sua necessidade de desejar e ser desejada. —Obrigado. Tomarei um banho quando chegar em casa. Um músculo palpitou na comissura de seus lábios. —Não te agradei? Ela aspirou uma profunda e reconfortante baforada de ar: se podia solicitar um encontro sexual na escuridão da noite, também podia enfrentar às conseqüências de seus atos à luz do dia. —É obvio que o fez. —Mas não tanto para que me aceite como amante. Durante um instante, seu coração paralisou dentro do peito. Já não era a mesma mulher que tinha pedido ser saboreada e lambida e que logo tinha chegado ao máximo prazer. Tampouco ele era o mesmo homem que tinha confessado sua 41


necessidade de ser acariciado e que depois a tinha penetrado até onde nenhuma outra mulher teria sido penetrada. Com a luz do sol perfilando claramente as finas rugas ao redor de seus olhos e as mechas prateadas de seu cabelo, Anne se sentiu, uma vez mais, como uma virgem que devia pagar por obter prazer, enquanto ele se assemelhava a uma formosa estátua marcada, remota e separada de todos os prazeres da carne. Como Lúcifer depois de ter caído em desgraça. Era impossível que ele quisesse ser seu amante. —É...? Não, ele havia dito que durante cinco anos nenhuma mulher tinha solicitado seus serviços. —Era... Era normal que as mulheres que solicitavam seus serviços ficassem com você? — perguntou com frieza, ocultando cuidadosamente seu desconcerto. —Se as convidasse a ficar, sim. Um arrebatamento de prazer acendeu suas bochechas, seguido imediatamente pela fria bofetada da realidade. Toda mulher disposta a pagar dez mil libras esterlinas seria bem-vinda. —Não quero te causar aborrecimentos - disse ela com dureza. —Não me causa nenhum. Minha casa e meus serventes estão a sua disposição. —É o dono? É o dono... Desta casa? As molduras esculpidas à mão, com suas folhas modeladas uma a uma, que emolduravam a pálida seda verde que cobria as paredes, e o teto esmaltado de branco eram autênticas obras de arte, como também o era a escada de mármore, com o corrimão de ferro forjado, pela qual tinha subido ao chegar à casa a noite anterior. —Também sou proprietário de um imóvel no condado de Yorkshire - disse, como se tivesse adivinhado para onde se dirigiam os pensamentos da Anne. Então, isso significaria... —Se for o dono desta casa... E de uma propriedade no Yorkshire... —alcançou a insinuar antes de fechar a boca. Mas que estúpida tinha sido ao supor que sabia algo a respeito daquele homem. Michel de Anges tinha, sem dúvida, uma fortuna. Sua habilidade era uma espécie de herança ganha graças à quantidade de mulheres que tinha servido ao longo dos anos. O jogo tinha despojado de sua riqueza a mais de um homem. —Entendi - disse ela. Suas largas pestanas negras ocultavam seus olhos. —O que entendeu Anne Aimes? —Vejo que está passando tempos difíceis. —Pensa que por isso te fiz amor ontem à noite? —perguntou suavemente. Não havia nada suave em seu rosto. Parecia encerrar um sério desafio. E o conhecimento irresistível de seus desejos mais secretos. Ela tinha gritado —pareciam dizer seus olhos violetas— diante da necessidade de ser satisfeita, diante da necessidade de ser jovem, bonita, querida e desejada por um homem. Por ele. Um homem que foi capaz de fazer perder o controle uma mulher e de encher suas fantasias mais selvagens. E ele tinha feito. Por um preço. Anne se escondeu atrás de um muro de indiferença. —Me deixe, por favor. Tenho que me vestir. Michel estava sentado na cama a seu lado, afundando o colchão e enrugando os lençóis de seda e a colcha de veludo. Ela agarrou a ponta do lençol, cobriu os seios e tentou levantar-se pouco a pouco. 42


Sentiu uma aguda sensação de dor. Demorou um segundo em diferenciar a aguda irritação entre suas coxas da que puxava seu couro cabeludo. Tranqüilizou-se ao sentir que seu cabelo se enganchou. Por que tinha soltado o coque? Já não seria capaz de desenredar o cabelo. Devia parecer ridícula com o cabelo solto, como se fosse uma moça. Uma mão forte a ajudou, retirando da face esquerda umas finas mechas. —Não me abandone agora, Anne. O sangue palpitava sob as pontas quentes e duras de seus dedos; seus quadris vibravam ao lado dos seus, provocando uma profunda cadência dentro dela, ali onde ele a tinha esmigalhado, penetrado, empurrado e provado até que a dor se transformou em um prazer tão intenso que tinha queimado a alma. Sua garganta se fechou, onde ele tinha tentado afogar seus ansiosos gemidos de satisfação. —Não sei a que se refere. Ele continuou alisando o cabelo da face dela, forjando um vínculo tremulo de lembranças compartilhadas: o fôlego dele enchendo os pulmões dela; o fôlego dela enchendo os pulmões dele; seus corpos fundidos em um, unidos pelo sexo. —Tem medo. Anne estava tensa, lutando contra suas carícias e contra umas lágrimas incontidas. —Sim. —De mim? Sim —Eu não sou... —disse ela concentrando-se no pêlo grosso e escuro que saía da base de sua garganta, recordando sua textura - frisada e forte—, e como tinha absorvido sua respiração como se fosse um manto ondulante de calor—. Eu não sou... Assim. —Mas é assim. Os dedos dele queimavam; seus quadris queimavam; a carne entre as coxas dela queimava. Mas aquilo não era capaz de transformar a realidade. —Não. Uma solteirona de trinta e seis anos, cuja única utilidade tinha sido servir de enfermeira, não gritava nem chorava. —Quer que te diga o que foi que mais me atraiu em você na Casa de Gabriel? O olhar de Anne voou até ficar preso por seus olhos violetas. Ele havia dito que não mentiria. Mas ela não queria ouvir a verdade. —Não é necessário. O sol iluminou o lado esquerdo de seu rosto; a luz se filtrou pela borda de suas pestanas. Pôde ver pequenas rugas esfumadas estender-se nos extremos de seus olhos. —Mas é necessário. —Não quero. —Ambos queremos - interrompeu imediatamente—. Por isso mandou me chamar. E por isso eu estava ali, te esperando. Não era a ela quem esperava. Ele não a conhecia. Nem sequer a recordava. Anne ficou tensa e furiosa, sentindo-se doída pelo engano. —Disse que não mentiria, monsieur De Anges. Nosso encontro se deve unicamente a um simples assunto de negócios. Esperava-me porque ganharia dez mil libras esterlinas. É meu dinheiro o que acha atraente. Nada mais. Nada menos. Os dedos dele pararam. Uma sombra obscureceu o quarto, como uma funesta nuvem no horizonte. Entretanto, sua pele acesa palpitava. 43


Contra sua bochecha. Dentro de seus seios. Seu ventre. Cada polegada de seu corpo recordava suas carícias e respondia a elas. —As coisas nunca são tão simples - disse Michel, aspirando profundamente—. Nem a luxúria, nem a vida. Deixou se levar pela morte. Deveria saber. O coração da Anne golpeou contra suas costelas, como se fosse desbocar por cima de seus temores. Como poderia saber? Sentiu uma repentina secura na boca. —Como sabe que me deixei levar pela morte? —Porque você me disse isso. Desesperadamente procurou em seus pensamentos, tentando recordar... O toque úmido de sua língua; o calor abrasador; seus seios oprimidos contra seu peito; sua masculinidade abrindo passo para sua feminilidade. Despertou... Faz um momento... E disse que estava tarde. Que tinha esquecido sua “medicação”. É que atende ou cuida de alguém? Não. Não mais. —Disse que não mentiria, Anne Aimes - disse ele, enquanto as marcas em suas bochechas pareciam ficar maiores—. E não o farei. Ontem à noite te esperei com a ilusão de que a mulher que solicitava meus serviços veria minhas cicatrizes e, apesar delas, me desejaria. E ela o tinha desejado. Um tremulo raio de sol sublinhou sua afirmação silenciosa. —Não estaria ali se não fosse pelo dinheiro - insistiu ela, concentrando-se com força na natureza de sua relação e não nas palpitações estremecedoras e excitantes que prometiam mais. Mais paixão. Mais prazer. Suas pupilas negras pareceram absorver a cor violeta de seus olhos. —Se não tivesse sido por sua oferta - se mostrou de acordo—, não teria estado ali. Esperando-a. A verdade não deveria feri-la. —Um homem se atrai mais a beleza de uma mulher que sua paixão - disse ela com tom desafiante. De onde tinha tirado semelhante coisa? —Não - disse ele com a voz áspera—. Só os idiotas valorizam a beleza a cima da paixão. —E, entretanto, há dezoito anos nem sequer me viu - assinalou mordendo os lábios para deter suas palavras, mas já era muito tarde: sua dor encontrava eco entre as folhas douradas das molduras do teto. Um dedo áspero e cheio de cicatrizes deslizou por suas faces, detendo-se em seus lábios apertados. —Mas está aqui. Os lábios da Anne estremeceram. —Lembra... —E recordava à mulher que tinha dançado e rido com ele—. Não parece mais fácil emprestar seus serviços a uma mulher... Bonita? —Toda mulher tem sua própria e única beleza. Sabe como se fabrica o veludo? Estava cada vez mais difícil afirmar qual dos dois pulsos palpitava com maior intensidade. —Tece-se... Com diferentes fios. —Há um veludo que se extrai da seda. O veludo de seda. —Sim. Era muito caro. —Na Casa de Gabriel te contemplei quando se sentava e meu lado e te desejei porque você me desejava. Mas no vestíbulo toquei sua face - seus dedos lhe acariciaram o queixo— e pensei... Anne ficou esperando, contendo a respiração. 44


—... Pensei que nunca havia tocado nada tão suave... Como o veludo... Até que toquei suas nádegas. A pele de suas nádegas é como o veludo de seda. Ela não se sentiria defraudada. —Um homem não julga a beleza de uma mulher pela suavidade de seu... De seu traseiro. Um fogo violeta se acendeu no negrume de suas pupilas. —Asseguro-te que o traseiro de uma mulher pode atrair muito um homem. Os músculos de Anne se esticaram. Em honra as suas lembranças. Em honra a seus desejos. Ela umedeceu os lábios, roçando com a língua seu dedo de textura tosca e salgada. —O que pode me oferecer como amante que já não me tenha dado? A escuridão a envolveu. Michel se inclinou para ela, bloqueando a luz do sol. —Intimidade - murmurou em um sussurro que cheirava a café. Beijou-a delicadamente. Quando ela fechou os olhos e abriu a boca, ele a beijou profundamente, tocando lugares dentro dela que não tinham nada que ver com seus lábios ou com sua língua. Uma respiração abrasadora invadiu seus pulmões. —Amizade. Anne nunca tinha tido um amigo. Uma instrutora se encarregou de sua educação, protegendo-a dos meninos da aldeia que só estavam interessados nela pelo dinheiro de seus pais. Fechou as pálpebras e sentiu que o sabor do café se estendia dentro de sua boca. Estava misturado com o sabor da paixão. A dela... Ou a dele? —A amizade não se pode comprar - protestou ela. —Tudo se pode comprar neste mundo. Michel mordiscou seu lábio inferior, beliscando-o com seus dentes para tirar a diminuta dor antes de sugá-lo com faminta avidez. Como tinha sugado sua língua, seus mamilos, seus clitóris. Sua língua, seus mamilos e seus clitóris palpitavam ao ritmo de suas veias no lábio inferior. Ela não tinha a ninguém que a esperasse em casa, só os serventes que o procurador tinha contratado para sua aventura amorosa em Londres. Como seria, perguntou, a vida com um homem, com este homem, embora fosse durante um mês? O que sentiria ao explorar as fronteiras da paixão e experimentar tudo - cada carícia, cada prazer— o que um homem e uma mulher podiam fazer juntos? Coisas que ela alguma vez teria podido imaginar? Atos sexuais que ele não tinha realizado em cinco anos? Afastando-se de sua boca, que estava absorvendo sua própria vontade, repetiu desesperadamente as palavras que havia dito na carruagem: —Este é um encontro sexual. Michel lhe agarrou o queixo, impedindo que ela se virasse em busca do ar que lhe negava. —Ofereço mais. Intimidade. Sexo. Amizade. Luxúria. Anne engoliu seco. —Não sabe o que me está pedindo. Um encontro de uma noite podia manter-se em segredo, mas se ela vivesse com ele, embora fosse durante um mês, os serventes falariam. Os rumores se estenderiam por Londres e não demorariam em chegar a Dover. Ela perderia todo vestígio de respeitabilidade, da mesma forma que tinha perdido todo rastro de virgindade. —Sim sei o que estou pedindo - disse com palavras ardentes que umedeceram seus lábios—. Estou te pedindo que me dê o que eu estou disposto a te dar. Um acesso sem restrições a meu corpo... Em troca de um acesso sem restrições ao teu. 45


O acesso sem restrições ressonou dentro de sua boca, estrelando-se contra sua língua. —As mulheres que convidava a ficar com você... Aceitavam a oferta? Ele esfregou os lábios, umedecendo sua boca com a saliva que tinha extraído dela. —Nunca ofereci a uma mulher o que estou oferecendo a você agora. Anne sentiu que se afogava. Em seu calor. Em seu perfume. Em seu fôlego. Em seu sabor. O dia se transformou em noite e a manhã se transformou em dia, misturando os prazeres passados e pressente. Ela se agarrou à realidade do diálogo. —Nunca experimentou o sexo íntimo... Ou a amizade... Com outra mulher? Um ar frio substituiu os lábios e o corpo de Michel. Anne levantou o olhar para ele e ficou imóvel diante sua brusca retirada. —Peço que me perdoe. Não tinha direito a te perguntar. —Já te disse que pode me perguntar o que quiser - afirmou, relaxando os cantos de sua boca—. Uma vez tive uma relação assim. Faz muito tempo. Um pequeno dardo de ciúmes impactou no coração dela. —E o que aconteceu? —Ela morreu - respondeu com a voz neutra, desprovida de emoções. E ele a tinha amado. —Sinto muito. A curiosidade brilhou em seus olhos, como se não estivesse acostumado a que uma mulher se comovesse com sua dor. —De verdade? —Sim. Tinha que ter sido uma mulher incrível para haver ganho o amor de um homem como ele. —Você se incomoda que tenha amado outra mulher? —Não. É obvio que não. Por que deveria me incomodar? —Amou alguma vez outro homem? Anne enfrentou seu olhar com tranqüilidade, ouvindo como seu coração pulsava em seus seios, em seu ventre, em seus olhos. —Uma vez. Faz também muito, muito tempo - respondeu. Um arrependimento passageiro obscureceu seu rosto. —E o que aconteceu com ele? —Não sei. Ela não sabia o que tinha ocorrido a Michel de Anges durante os últimos dezoito anos. O procurador não tinha lhe falado de suas cicatrizes. Nem tinha lhe contado que era dono de uma casa em Londres e de uma propriedade em Yorkshire. Tampouco havia dito que aquele homem, conhecido por sua habilidade para agradar às mulheres, não tinha tido uma mulher nos últimos cinco anos. Antes que pudesse adivinhar as intenções de Michel, ele tinha retirado as mantas. Um instinto natural se apoderou dela. Anne tinha se abafado com a colcha de veludo e com os lençóis de seda, e tinha sido despojada de ambas as coisas. Ficou rigidamente quieta, negando-se a ceder diante a confusão... Ou diante a indignidade de tentar se esconder com suas mãos o que fisicamente era impossível de esconder. Suas unhas se cravaram nas palmas de suas mãos. Ele não tinha nenhum direito de olhar à luz devoradora dos raios do sol. Com as negras pestanas ocultando seus olhos, Michel examinou sua nudez. Espontaneamente, o olhar de Anne seguiu o de Michel. Seus mamilos estavam escuros e acesos; em comparação, seus seios apareciam assombrosamente brancos. Não pareciam pertencer a uma virgem já com mais de trinta anos, e sim a uma mulher que tinha conhecido a paixão de um homem. 46


—Um homem goza com os seios de uma mulher. Alcançando-os, tocou sua suave carne com uma carícia dolorosamente doce, como se ela fosse frágil. Preciosa. Uma mulher que teria que entesourar e não uma cliente a qual teria que agradar. Seu coração pulsou com força com o peso de sua mão. Podia ver suas cicatrizes - uma massa de duras e enrugadas estrias— e as sentir. Feridas individuais estavam duras e quentes. O mamilo ereto com o contato de seus dedos estava igualmente duro e quente. Sua mão e seu mamilo se acenderam rapidamente, com a mesma cadência que sua respiração: uma carne, uma parte de um tudo. —Desfruta com sua suavidade - acrescentou tocando o mamilo com a ponta do dedo e pressionando o montículo do seio—. Com sua dureza. Um prazer doloroso atravessou o seio de Anne. Michael retirou bruscamente o dedo para que o mamilo surgisse ainda mais duro e maior que antes, palpitante até o ponto de explodir. O olhar da Anne se elevou para o teto, longe do sinal evidente de sua excitação. O rosto de Michel estava escuro e atento, com suas largas e grosas pestanas tocando a pele suave que bordeaba a parte inferior de seus olhos. Um cabelo tão negro como a tinta ocultava as cicatrizes que tinha na têmpora e acariciava as que tinha na maçã do rosto; brilhos azuis dançavam ao redor do cabelo escuro que emoldurava o lado esquerdo de sua face. —Viu como os meninos recém-nascidos sugam os seios de sua mãe, e terá imaginado alguma vez um homem sugando seus seios com doçura - disse em um tom que pareceu muito longínquo—. A ligação que se cria entre dois seres... Uma mão invisível apertou seu seio. Ele parecia tão absolutamente sozinho... Como um homem que tem que carregar o peso dos sofrimentos de um menino de onze anos. Como um homem que quer sentir-se completo e desejável. —Os homens também desejam essa proximidade, e por isso sugam os seios das mulheres. Michel levantou muito lentamente suas pestanas, revelando uma ansiedade desconcertante, como se ele também tivesse sido transbordado por emoções que estavam além de seu controle. —Você está sentido os batimentos do meu coração. Contra seus seios. Dentro da palma de sua mão. O calor vibrou na palma de sua mão, ali onde a noite anterior havia sentido sua masculinidade palpitar contra sua pele como se tivesse vida própria. —E agora sou eu que sinto os batimentos do seu coração - acrescentou sem afastar seu olhar do seu—. Esta manhã os senti contra meu peito, contra meus lábios, contra minha língua, contra o dedo que tinha fundo dentro de você. A lembrança daquelas sensações a estremeceu: seus intentos pouco profundos de penetração, suas fundas arremetidas alternas. —Disse coisas a você que nunca antes havia dito a uma mulher - continuou falando, a luz do sol cintilando no olho esquerdo, enquanto o direito permanecia na sombra, escuro e plano—. Confessei minha necessidade de tocar. De ser tocado. Delicadamente começou a rodar o dedo indicador sobre a ponta de seu mamilo. —Admiti também meu desejo de ser amado. Apesar de minhas cicatrizes. Desejos e necessidades que nunca compartilhei com outra mulher. Suas palavras ressoavam dentro do corpo de Anne, simples e intensas, envolvendo-a em um fio invisível que se estreitava cada vez mais com cada círculo que descrevia seu dedo. —Eu sou um prostituto. Por negócio. Você é uma mulher solteira. Por seu estado civil. Se não fôssemos o que somos, não estaríamos aqui. Mas eu quero mais. Quero que durante o tempo que passemos juntos sejamos, simplesmente, um homem e uma mulher. Amantes. Amantes que vivem juntos. Que compartilham o sexo. O sonho. A risada. 47


Anne não podia respirar, nem para liberar o ar que bloqueava seus pulmões nem para tomar o oxigênio que precisava. —Não pedirei isso de novo, Anne Aimes. Fica comigo. Fica comigo ou ambos nos arrependeremos até o final de nossos dias. Arrependimento. Que palavra tão horrível. Uma emoção que ela tinha jurado não voltar a experimentar nunca. —Não estou acostumado a rir... Com freqüência—alcançou a expressar. —Tampouco eu. —Nunca quis ser solteira. Seu dedo, que continuava movendo-se em círculos, parou. Uma dor violeta iluminou seus olhos. —Não quero ser seu prostituto. —Alguma vez desejou uma mulher até o ponto de tocar a si mesmo? —perguntou de maneira insegura. —Claro - respondeu, puxando suavemente mamilo—. Muitas vezes. Uma sensação erótica que não era de prazer nem de dor fluiu entre sua vagina e seu mamilo. Prometendo mais... Se ela se atrevia. —Alguma vez tocou seus seios? Sua íris violetas mostrou a desolação de suas pupilas. —Um homem tem as mesmas necessidades que uma mulher. De tocar. De ser tocado. De ser desejado. Apesar de seu passado. Apesar de suas imperfeições físicas. Anne olhou fixamente o dedo sulcado de cicatrizes que acariciava o seio ao redor de seu túrgido mamilo. Imaginou que tocava a ele como ele tocava a ela. Que o saboreava. Que o beijava. Que o sugava. Sentindo o pulso de seu coração contra seus lábios. Contra sua língua. —Como amantes... Posso fazer o que... O que desejar? —O que quiser. Tudo. Pareceu-lhe trabalhoso respirar; os insistentes palpitar que golpeavam seus seios e o interior de seu ventre foi aumentando. —Os franceses fazem realmente... O que fez esta manhã? Sua mão e seu indicador foram substituídos de repente pelo ar frio. Com seu olhar sentiu um calor abrasador no montículo de seu púbis, seguido pela densa calidez de seus dedos. Instintivamente, Anne lhe deu acesso. Abriu suas pernas a uma corrente de ar frio. Sua mão se cavou sobre seu pêlo púbico, enquanto uma dolorosa palpitação ganhos vida, muito profundamente, no interior de Anne, onde tinha sido penetrada anteriormente. Contraiu-se. Aonde ele agora a penetrava. Doce e insistentemente, ele se introduziu dentro dela antes de sair de novo muito devagar. Seu dedo do meio estava úmido e escorregadio; um fio vermelho se misturava com a umidade cremosa de sua essência. De repente sentiu seu olhar fixo em seu rosto, observando como ela estudava a evidência da dor que tinha causado na noite anterior e do desejo renovado que nascia em suas vísceras. —Os franceses são muito práticos no referente a seus prazeres - disse com a voz baixa e rouca—. Não são tão afetados como os ingleses. Sem advertência prévia, a cama se moveu sob suas nádegas. Entre um batimento de seu coração e o seguinte, Michel agarrou a perna direita e, ao mesmo tempo, inclinou seu torso até ficar entre suas coxas, muito perto de sua feminilidade exposta. A mortificação rivalizava com a excitação. 48


Anne tentou involuntariamente fechar as pernas. Seus dedos aprofundaram na suavidade de suas coxas. —Não. Pode me ver. —Te vi ontem à noite. —Mas não... À luz do dia. A luz do dia não era amável com uma mulher solteira de trinta e seis anos. Michel separou ainda mais suas coxas. —O pudor entre amantes é desnecessário. Não há lugar para o pudor. Não há lugar para a dignidade. Ela suspirou de ansiedade. De paixão renovada. De dor persistente. —Tenho que... Tenho que tomar um banho. —O sexo comigo não te manchou. Ele se agachou entre suas coxas, perto, tão perto. Uma cálida umidade saiu de sua vagina palpitante. A excitação se sobrepunha rapidamente à mortificação. —Eu... Sangrou. —Não tentará... —Não tentarei o que? —perguntou com o fôlego acariciando o lábio inferior—. Saborear-te? Lamber-te? Penetrar-te com a língua? Estava segura de que ele não o faria: não à luz do dia. Estava segura de que ele não o faria: não antes que ela se banhasse. Mas ela queria que o fizesse. Queria que a beijasse, exatamente como a tinha beijado a noite anterior. E ele sabia. —Tentarei te saborear. Lamber-te. Penetrar-te com a língua - falou com seus olhos violetas, que pareciam poços sem fundo de sensualidade insondável—. Um francês, diferente de um inglês, não hesita em fazer que uma mulher se esqueça da dor que lhe causa. Sabe que ela sangra por sua culpa. Baixando a cabeça, ele lambeu sua carne exposta e vulnerável. Primeiro de sua vulva - uma rápida emulsão de saliva—, separando os lábios. Devagar, profundamente, sua língua se agitou na entrada de sua vagina e se afundou dentro dela, atravessando seu coração. Afundou-se até que a delicada ternura desapareceu e o prazer ocupou seu lugar de uma forma igualmente invasora, rasgando suas defesas e fazendo desejar mais, mais! Freneticamente, Anne tentou tocar sua cabeça, mas só conseguiu agarrar umas mechas de seu cabelo. Era um cabelo tão suave e quente como o calor abrasador que diferenciava Michel de Anges. Ele levantou a cabeça, com os lábios brilhantes pelo despertar de Anne. A emoção cresceu dentro dela como uma dentada de admiração, percepção e excitação sexual. —Há algo que não faria? —Nada - respondeu ele com a voz rouca—, sempre e quando te produzir prazer. Com as mãos trêmulas - ou talvez fosse à cama que tremia—, acariciou sua cabeça e sentiu que o roçar de suas orelhas queimava a palma das mãos. Ela não queria que ele fosse seu prostituto, gritando, beijando-a e fazendo-a alcançar o prazer porque isso era o que ela desejava. —Mas você sente prazer fazendo estas coisas? —Sim. A verdade havia dito ele. —Eu também. Michel beijou a palpitante mata de pêlo púbico de cor castanha clara. 49


—Sei que você também - murmurou suavemente, incitando com seu fôlego e brincando com suas carnes excitadas, que reclamavam sua atenção—. É uma mulher apaixonada. E para um homem, essa é a verdadeira medida da beleza. Anne quase acreditou. Vendo como seus dedos largos e magros se dobravam ao redor de suas coxas e como suas unhas masculinas, curtas e cuidadas - com exceção da unha de seu dedo polegar, que era mais larga— se cravavam neles, era possível acreditar em tudo. Como, sem dúvida alguma, tinham acreditado muitas outras mulheres antes dela. —Não posso imaginar que uma mulher não o deseje - suspirou. Sua pele escura e marcada se inundou entre sua carne suave. Atrevendo-se a provocar sua rejeição - e a rejeição da maldita sociedade—, Anne o olhou diretamente nos olhos. —Quero que seja meu amante - disse—. Quero experimentar a intimidade da qual fala. Quero que vivamos juntos. Como um homem e uma mulher. Durante um mês. Se isso for o que deseja. Uma explosão de energia provocou a quebra de onda de sua excitação sexual. Emanava de Michel. De seus olhos, que brilhavam com uma intensidade capaz de deter o coração de qualquer mulher. De seus ombros, tensos como uma rocha entre suas coxas. Agachando a cabeça, ele roçou seus clitóris com um beijo suave e sedoso. —Plus que a mort elle-méme - murmurou. Antes que ela pudesse traduzir suas palavras - nem sequer estava segura de que as tivesse ouvido corretamente, por cima dos batimentos de seu coração—, ele a lambeu até levá-la ao vórtice do prazer, onde o passado, que só tinha significado para ela enfermidade, morte e desolação, deixava de existir e o futuro se transformava em sua boca, sua língua... E o orgasmo que despontava no horizonte. Capítulo 6 Cada golpe das rodas da carruagem refrescava sua memória. O grito de Michel, rouco e tenso. O pênis de Michel, duro e ereto. O dedo de Michel, comprido e com cicatrizes, manchado com seu sangue virginal. Uma e outra vez, na mente da Anne ressoava as palavras que ele tinha murmurado antes de tomá-la com a boca. Plus que a mort elle-méme. Talvez não tinha traduzido seu francês corretamente ou, o melhor, não o tinha escutado claramente. Não era possível que um homem quisesse algo mais que a própria morte. A carruagem girou em uma curva. Olhou através da pequena janela quadrada, em que tinham ficado impressas os rastros dos dedos de um menino. A casa de tijolo parecia diferente. Mais antiga. Mais conservadora. Anne se sentia diferente. Mais jovem. Com menos confiança em si mesma. A noite anterior tinha pensado que comprando os prazeres de Michel de Anges podia transformar-se em uma mulher completa, mas nunca, nunca tinha pensado que ele pudesse lhe dar acesso a seu corpo. A sua vida. 50


Tropeçou ao sair do veículo. Tola solteirona. Notou suas mãos pegajosas dentro de suas luvas. Pegajosas de medo. De desejo. A noite anterior tinha mudado seu corpo. Viver com Michel mudaria sua vida. Nunca mais poderia ocupar o lugar que antes ocupava entre as pessoas respeitáveis que tinham conhecido seus pais. Anne deu ao chofer, um homem de cara severa, uma moeda de seis peniques. Quanto teria dado Michel ao chofer a noite anterior? Perguntava-se bobamente. Mais do que tinha dado? A porta da casa se abriu quando Anne estava aproximando-se. —Senhorita Aimes - a saudou o mordomo, um cinqüentão atraente, de escasso cabelo avermelhado, enquanto se retirava para deixar ela passar. Anne tentou imaginar ele fazendo a uma mulher o que Michel tinha feito a ela. Não pôde. Com sua rígida jaqueta negra e sua gravata, o mordomo era a imagem perfeita da retidão moral inglesa. Não se mostrou nem surpreso nem zangado pelo fato de que Anne tivesse retornado a casa depois de um encontro de doze horas. Os traços de sua cara se acomodavam perfeitamente à expressão que adotam todos os serventes quando tentam mascarar suas emoções para não desagradar a seus patrões. —Dá-me sua capa, senhorita Aimes? Seus serventes de Dover, muitos dos quais tinham estado ao serviço de seus pais desde antes que ela nascesse, dizia-lhe sempre “senhorita Anne” e quase nunca usavam o impessoal “senhorita Aimes”. Seus rostos eram igualmente impassíveis. Sentiu uma onda de solidão, seguida de outra de vergonha. Nunca antes se perguntou sobre as práticas sexuais de seus serventes. —Não, obrigado - disse Anne endireitando as costas—. Por favor, diga a minha criada que venha a meu quarto. O mordomo se inclinou de novo. —Muito bem, senhorita Aimes. Um cheiro de mofo velho seguiu Anne pela antiquada escada de madeira. Era um cheiro familiar, seguro. Assaltou-a uma dúvida, um cabo solto, que chegou através de um resplendor entorpecido de sua saciedade sexual. E se Michel houvesse dito tudo aquilo - que precisava que uma mulher o desejasse— porque era isso o que ela queria ouvir? E se ele queria que ficasse só para lhe tirar mais dinheiro? O vestíbulo de sua casa estava revestido de mogno, enquanto que as paredes em casa de Michel estavam estofas com pálida seda azul. As portas de sua casa eram de madeira escura; em casa do Michel estavam pintadas de branco. A vida que ela tinha escolhido era exemplar; a que Michel tinha escolhido era descaradamente imoral. E, entretanto, aqui estavam... Jogou sua capa e sua bolsa em cima da cama de madeira com dossel, e cruzou o tapete de cor marrom até colocar-se frente de um espelho de corpo inteiro bastante antiquado.

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O espartilho oprimia a redondez de seus seios e os calções de lã abrasavam suas tenras regiões inferiores, o que demonstrava que já não era a mesma mulher que doze horas antes se vestiu diante daquele mesmo espelho, embora não pudesse refletir as mudanças que se operaram em seu interior. Foi como uma solteira entrada em anos; tinha retornado como uma solteira entrada em anos. Por que teria que querer um homem que uma mulher como ela se transformasse em sua amante? Para dormir com ela? Para despertar com ela? Para tomar o café da manhã com ela? Um suave golpe na porta interrompeu suas reflexões. —Entre. Anne continuou olhando-se no espelho, procurando, procurando... Quando a porta do quarto abriu, uma cinqüentona rígida e enxuta entrou em seu quarto perfumado de umidade. Anne pensou que Michel não tinha um espelho em seu quarto. —O que posso fazer por você, senhorita Aimes? Olhou a sombra que se refletia no espelho. O traje negro da faxineira se fundia com o mogno escuro da porta que se fechava a suas costas. —Eu gostaria de tomar um banho, por favor. Os ocos cavernosos dos olhos de sua donzela devolveram o olhar. —Isso é tudo, senhorita? A mulher do espelho que se parecia exteriormente a Anne estava pálida e tranqüila, mas a mulher interior, que não se refletia na imagem, tremia ante a transcendência de sua decisão. —Não. Faça minhas malas, por favor. Vou ausentar-me durante um mês. Para que um homem ao que tinha pagado dez mil libras pudesse transformar-se em seu amante e não em seu prostituto. Não, não seu prostituto, já que ela jamais tinha considerado Michel um prostituto. —Muito bem - repôs a criada, fazendo uma reverência, e se dirigiu ao banheiro. —Jane... —Senhorita? —Pareço diferente? —Não, senhorita - respondeu Jane de maneira seca e desprovida de curiosidade—. Algo mais? —Não - disse Anne, sentindo-se meio ridícula diante de uma faxineira que a conhecia fazia muito pouco tempo e que, portanto, não saberia reconhecer a diferença—. Obrigado. Resistiu à tentação de voltar-se para olhar no espelho para descobrir as mudanças que Michel tinha provocado dentro de seu corpo. Porque ela tinha mudado. Tinha pago a um homem para perder a virgindade. Tinha reunido a coragem necessária para dizer o que queria. Enfrentou seus desejos à luz do dia. O surdo chiado das tubárias se misturou misteriosamente com o tic-tac do relógio francês situado sobre o suporte de mogno da lareira. Não importava a razão pela qual Michel queria ser seu amante, decidiu com rebeldia. Ela queria passar um mês com ele. Um mês de sonhos, de despertar e de cafés da manhã compartilhados. De intimidade. De amizade. De prazeres que nunca experimentaria com um marido. O sussurro de um traje sobre o chão a advertiu que já não se encontrava sozinha. Jane estava parada diante da porta que comunicava o banheiro com o quarto, e quando Anne a olhou, a donzela baixou os olhos. —Deseja que a ajude a despir-se, senhorita? —Sim, por favor. 52


A donzela desabotoou os botões que fechavam pelas costas o vestido de Anne. Michel —recordou com um sopro de calor— era igualmente hábil para vestir e despir uma mulher. Devagar, metodicamente, Anne foi despojada de seu vestido, de seu sutiã, de seu espartilho, de suas anáguas. O relógio de mármore deu a hora. Tinha passado um quarto de hora, o tempo exato que se requeria para que a água estivesse quente. Um relógio interno começou a soar dentro do corpo de Anne, marcando os minutos, contando os perigos. Jane deu a volta com um rangido de lã negra e desapareceu do banheiro, onde o jorro de água que caía em cascata enchia o vazio. A banheira estaria cheia em cinco minutos. —Direi a um criado que baixe sua bagagem, senhorita Aimes—disse Jane. A integridade entristecedora de sua decisão a fez sentir-se bem. —Muito bem - disse, lutando para não sair correndo atrás da faxineira. Uma umidade abafadiça enchia o pequeno banheiro, que cheirava a gás. O aquecedor, pintado para que se parecesse com o mármore verde e decorado com reluzentes tubos de latão e as armas reais, continuava emanando vapor. Lavou rapidamente os dentes, enxaguou a boca e cuspiu na taça amarelada de porcelana. O inodoro, tão antiquado como tudo o que havia na casa, borbulhou quando ela puxou uma correntede cobre que pendurava do tanque de água embutida no teto. Afastou os calções de lã que caíram a seus pés e contemplou o rastro de um dedo em sua coxa. Era vermelha. Os músculos de sua vagina se contraíram. Tocou delicadamente aquele rastro. A ponta de seu dedo era muito menor que a de Michel, e a turbadora vibração que sentia dentro de seu ventre era o testemunho de que todo o ele, na realidade, era muitíssimo maior. Apoiando-se no estreito assento de madeira, que incomodava na parte posterior das coxas, inclinou-se para frente, tirando a liga e desenrolando suas meias. Michel as tinha tirado... E voltado a pôr. O primeiro depois de haver mostrado os anjos, e o segundo fazia uma escassa hora e meia. Ficando de pé, tirou a regata por cima da cabeça. A água quente ardeu. Sentou-se muito lentamente na banheira até que a água morna lambeu seus quadris. Como Michel tinha feito com os lábios de sua vagina. Embora não havia nada morno em sua língua, abrasadoramente quente. Inundou uma toalhinha na água, esfregou-a com uma pastilha de sabão e contemplou como crescia a espuma. Cremosa. Como a essência misturada de um homem e uma mulher. Não havia nenhum aquecedor no banheiro de Michel. Nenhuma instalação de gás iluminava seu quarto. Queimou-se em uma das numerosas explosões de gás que tinham tirado a vida de tantos cidadãos ingleses em muitas cidades? A toalhinha roçou seus tenros mamilos. Era áspera e, entretanto, delicada. Igual aos dedos que a tinham alagado de prazer. Como seria banhar-se com um homem? Perguntou-se. O banheiro de Michel era grande, e em sua banheira caberiam facilmente duas pessoas. Soltou a toalhinha ensaboada e acariciou seus seios, imaginando que suas mãos eram as de Michel, que seus mamilos roçavam as palmas dele e não as suas. Imaginando... Que ele estava dentro dela... Mais comprido que seu dedo... Penetrando mais profundamente que sua língua... Ao tempo que a água corria entre os dois. —Senhorita? Anne retirou as mãos de seus seios e cruzou os braços sobre o peito; o calor líquido que alagava seu corpo não tinha nada que invejar ao da água. -Sim? Jane se aproximou do tubo de cobre evitando olhar à nudez da Anne. Trazia uma caixa. —Pensei que gostaria de jogar sal do Epsom na água. São muito relaxantes quando a gente está cansada. Ou dolorida. 53


Anne ficou rígida. Como sabia a faxineira...? Obrigou a si mesmo a relaxar. Como podia não saber? Ela tinha estado ausente durante toda a noite e a metade da manhã. A donzela a tinha ajudado a despir-se. Sua pele cheirava a suor, o dela e o de Michel. Não se deixaria arrastar pela confusão diante de uma faxineira. Logo toda Londres saberia. —Obrigado, Jane, mas já quase terminei. Fez já minha bagagem? —Falta-me pouco, senhorita. Como quer vestir-se para a viagem? Como se vestia uma mulher para encontrar-se com seu amante? —Me prepare o traje de lã cinza com o pescoço de veludo negro. E minha capa cor de romã. —Muito bem, senhorita. A faxineira recolheu a roupa interior que Anne tinha deixado no chão e se retirou. Durante um segundo irrefletido, Anne pensou em chamar de novo a sua criada para lhe perguntar se estava “bem” que uma mulher solteira coabitasse com um homem sem haver-se casado com ele. A resposta que suscitaria semelhante pergunta produziu uma borbulha de risada na garganta. Mas dar-se conta de que a faxineira podia responder que sim, que estava “bem, muito bem”, fez que enchessem seus olhos de lágrimas. Anne se esfregou vigorosamente com a toalhinha. O que estava acontecendo? Tinha perdido sua virgindade, um acontecimento que tinha planejado e executado cuidadosamente. Nada mais e nada menos. Não se arrependeria de sua decisão. Havia outras muitas questões das quais deveria arrepender-se. De escolhas que não tinha feito. De responsabilidades que se negou a cumprir. A desgraça alimentava o arrependimento. Não o prazer. Levantou-se da água, deixando que as gotas que umedeciam seu corpo caíssem na banheira antes de envolver-se em uma toalha seca. No quarto colocou silenciosamente as meias, os calções e a regata atrás da escuridão de um biombo de madeira. Jane veio a seu encontro com o espartilho aberto; Anne fez uma careta: seus seios ainda estavam inchados e tenros. Meteu-se no círculo das anáguas que a criada segurava para ela. Rapidamente, de maneira impessoal, a faxineira atou as anquinhas, cheia de crina de cavalo, e colocou o vestido por cima da cabeça. Michel era um excelente ajudante para uma dama, pensou, sentindo-se ligeiramente enjoada. Muito melhor que Jane e que sua criada de Dover. Ao melhor os homens, e não as mulheres estavam mais capacitados para serem ajudantes de câmara. Sentou-se cautelosamente em um banco que havia na frente da penteadeira. Michel a tinha liberado da dor mas não da ternura. —Estará de volta... No fim de mês, senhorita Aimes? Os pálidos olhos azuis que olhavam Anne no espelho se abriram ainda mais, refletindo sua surpresa. Era a primeira vez que uma faxineira demonstrava curiosidade por suas idas e vindas. —Sim. É obvio. Estarei de volta no fim do mês. A criada soltou seus cabelos, fazendo que uma corrente de eletricidade descesse por suas costas. Recordou as peritas mãos de Michel quando tinha feito o mesmo. —E deixará um endereço, senhorita? Ela franziu o cenho. O interesse da faxineira teria sido bem-vindo na noite anterior, mas agora o achava incômodo. Arrependeu-se imediatamente. Sua criada não tinha culpa de que sua senhora estivesse envolta em um caso clandestino. 54


—Deixarei o endereço com meu procurador. Umas cerdas duras morderam o couro cabeludo de Anne e golpearam ao longo das costas. —E se ele não estiver disponível? Anne afastou o olhar do brilho de prata que penteava seu pálido cabelo castanho. Quanto tempo faltava para que acontecesse o contrário? Quanto tempo faltava para que já não reconhecesse a si mesma no espelho? —É altamente improvável que isso aconteça, e, em qualquer caso, sua governanta tem acesso a seus arquivos. Se apresentar-se alguma emergência, ela poderá me localizar. A donzela a penteou rapidamente; podia ver no espelho como seus dedos escuros e magros se moviam com habilidade. —Avisarei o mordomo para que preparem o carro. O calor subiu às faces de Anne; um rubor se estendeu sobre o pálido rosto da mulher do espelho. O chofer era o único servente de Dover que a tinha acompanhado a Londres. Não queria que o velho entremetesse no novo. Não ainda. —Não irei muito longe. Com uma carruagem de aluguel será suficiente. Uma última presilha se introduziu no apertado coque em que a criada tinha recolhido seus cabelos, arranhando-a ligeiramente. A donzela recuou, e seus olhos negros se encontraram com os pálidos olhos azuis dela no espelho. —Almoçará antes de ir, senhorita Aimes? Recordou que, por causa de seus nervos, não tinha jantado na noite anterior. Tampouco tinha aceitado o lanche que tinha preparado Michel, já que seu apetite tinha sido ultrapassado por sua saciedade sexual e por seu acanhamento tardio. —Sim, obrigado. —Muito bem, senhorita. Anne apertou os dentes. —Pode deixar com mordomo as luvas negras de seda, a bolsa negra de miçangas e o chapéu negro. E pode se retirar. Já não preciso de seus serviços. Na sala de jantar tomou algumas batatas guisadas, pudim de Yorkshire e um estranho pedaço de roast beef que, ao cortá-lo, sangrou sobre o prato. Sangraria ela uma vez mais quando Michel a penetrasse? Dolorida e inflamada como estava, seria capaz de recebê-lo de novo? Não seria melhor esperar? Esperar outra noite? Outra oportunidade? Afastou o prato. Um criado vestido de negro o retirou silenciosamente da mesa e, quando ela ficou de pé, outro criado a ajudou com o assento. Deu-se conta de que todo mundo estava vestido de preto. Uma cor respeitável para gente respeitável. Uma cor que a forçava a recordar que, em vez de chorar a morte de seus pais, estava divertindo-se com um homem que tinha feito uma fortuna dando prazer às mulheres ricas. Um homem que afirmava que não se vendeu em cinco anos. Mas ela o desejava. Não parecia que suas cicatrizes fossem repulsivas. Haveria outras mulheres como ela? No vestíbulo, um criado de cabelo negro e com lebrie conversava com o mordomo junto à bagagem. Viraram-se para ela quando a viram aproximar-se. —A carruagem de aluguel está esperando, senhorita. Carregue a bagagem, James. James obedeceu, levando o baú sobre seus ombros. Era incrivelmente forte e grosseiramente atraente, apesar de que se notava que alguma vez tinham quebrado seu nariz. Uma prova adicional da descida de Anne à decadência. 55


Antes jamais se fixou no físico de um de seus criados, e, é obvio nunca tinha se perguntado pelos hábitos sexuais de seus serventes. O mordomo abriu a porta, deixando passar o único raio de sol que entrava no deprimente interior da casa. —Tem algumas instruções que me dar senhorita? Tenho entendido que se ausentará durante um mês. Deixará um endereço onde possamos encontrá-la? Sua fria cortesia lhe crispava os nervos. A fazia sentir-se estranha dentro de sua própria casa. Quando Michel a tocava, a fazia sentir-se estranha dentro de seu próprio corpo. —Meu procurador, o senhor Little, terá o endereço - respondeu em tom cortante—, e passará por aqui periodicamente. Se precisar de algo, ele se encarregará de tudo. O mordomo segurou sua capa negra com um gesto impessoal. Anne deslizou os braços pelas mangas. Em silêncio, alcançou as luvas, a bolsa negra e um chapéu também negro que não era o que ela tinha ordenado que preparassem. Jane tinha entendido mal suas instruções? Colocando-se a contra gosto o chapéu na cabeça, atou a correia da bolsa a seu braço e colocou as luvas. O mordomo, entretanto, não a deixava passar. —O endereço, senhorita, se for tão amável. O coração da Anne deu um tombo dentro de seu peito. —Como disse? Um raio de sol se refletiu em um olho de mármore vidrado, acrescentando um ar macabro à coruja dissecada que pendurava em cima de uma mesa lateral. —O endereço, se for tão amável, senhorita Aimes - disse o mordomo enquanto alcançava um alfinete para o chapéu de uns doze centímetros de comprimento, letalmente bicudo—. Para poder dar ao chofer. Anne ficou olhando o alfinete. Pela primeira vez em sua vida se deu conta de quão frágil era a pele humana, estendida sobre músculos e ossos. Do quão facilmente podia ser perfurada. Pela carne. Pelo aço. Uns dedos gelados golpearam suas vértebras. Era ridículo, é obvio, mas Anne, de repente, sentiu medo diante aquele servente inglês de cabelo avermelhado que parecia nunca haver tocado o corpo nu de uma mulher. Sacudiu-se mentalmente. Seu procurador o tinha contratado, e não o teria feito sem ter excelentes referências deles. Anne afastou o olhar do agudo alfinete de seu chapéu. —Irei ver meu procurador - disse, e, com reticência, indicou o endereço ao chofer. O mordomo se inclinou. —O alfinete do chapéu, senhorita Aimes. —Obrigado. Com os dedos ainda trêmulos, Anne tomou o alfinete e, antes de sair à luz do dia, cravou-o cuidadosamente no chapéu. O mordomo avançou atrás dela e abriu a porta da carruagem, como o teria feito qualquer outro mordomo. Então, por que não podia acalmar os batimentos de seu coração? O interior do carro de cavalos cheirava a feno úmido e a couro desgastado - aromas inócuos—, e quando se inundou na corrente do tráfico, não soube se o nó que tinha no estômago era de alívio ou de agitação. Cada obstáculo que superavam as rodas da carruagem recordava a dor persistente que sentia em sua região pélvica. Pressionando seu rosto contra a janela, concentrou-se no passar das ruas e das outras carruagens que circulavam por elas. Anne nunca tinha estado no escritório de seu procurador. O edifício de tijolo, de dois andares, era antigo e sem grandes pretensões, igual à pessoa que administrava seus negócios, e estava rodeado a cada lado por outros edifícios de tijolo ainda mais descuidados. Um letreiro escrito em grosas letras negras adornava o vidro brilhante da janela dianteira —“Senhor Little,

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procurador”—, e uma persiana veneziana branca protegia o interior dos olhares curiosos. Respirando profundamente, desceu da carruagem. —Por favor, espere - ordenou ao chofer—. Este não é meu destino. Tenho que atender durante um momento um assunto de negócios. O chofer, com a cara sulcada pelo aborrecimento e o excesso de trabalho, tocou silenciosamente seu desgastado chapéu em sinal de assentimento. Uma campainha soou ao abrir a sólida porta de madeira. O aroma de pão recém assado e o perfume das lilás a golpearam na cara. —Posso ajudar? Os olhos da Anne demoraram um segundo em acostumar-se à penumbra do interior. A madeira polida se elevava pela nua parede branca como se fosse uma balaustrada. Ao pé da escada havia uma pequena mesa de escritório que mal suportava o peso de uma maciça máquina de escrever metálica. Uma mulher com uma touca branca de encaixe estava sentada diante dele. Anne calculou que teria uns sessenta anos. —Senhora Huttchinson? —perguntou surpreendida. O procurador havia dito que tinha um empregado em seu escritório, mas nunca contou que era uma mulher. —O senhor Little sem dúvida comunicou que sou sua governanta - disse sorrindo a mulher; as linhas marcadas em suas bochechas e ao redor de seus olhos conferiam caráter a um rosto que ainda era atraente—. E por isso devo lhe advertir que não está neste momento. Posso fazer algo por você? Anne se agarrou a sua bolsa. —Sou a senhorita Anne Aimes. A que hora espera você que o senhor Little volte? Os olhos castanhos da senhora Huttchinson se suavizaram. —Como está você, senhorita Aimes? O senhor Little saiu cedo esta manhã. Teve que tomar o trem ao Lincolnshire para visitar um cliente. —Entendo - disse Anne, embora não entendia absolutamente nada. O senhor Little tinha insistido várias vezes em que devia ficar em contato com ele depois de seu primeiro encontro com o Michel de Anges, para assegurar-se de que o acordo tinha sido satisfatório. Suspeitou que a razão pela qual tivesse insistido tanto era porque queria verificar se ela tinha retornado sã e salva de sua aventura da noite anterior. —E não disse quando voltaria? —perguntou Anne. —Infelizmente, não. Temo que saiu antes de que eu despertasse. Deixou um recado dizendo que se foi, mas nada mais. O procurador a tinha visitado em Dover quando seus pais morreram, e tinham empregado vários dias em reunir todos os papéis necessários. Dois meses depois, tinha ido a sua casa uma vez mais, atendendo à chamada dela. Tinha passado a noite em sua casa, e tinha retornado em pouco tempo com a assinatura de Michel no contrato. Anne não era sua única cliente. Logo retornaria. —Poderia deixar um recado ao senhor Little, por favor? A senhora Huttchinson se levantou graciosamente de seu assento, envolta em uma quebra de onda de perfume de lilás. —Certamente, senhorita Aimes. Tenha a amabilidade de me seguir, por favor. Sua figura se via elegante debaixo de seu engomado avental branco, e tinha a mesma estatura da Anne, que recordou um pouco incongruentemente, que ela e o senhor Little também tinham a mesma estatura, de modo que a cliente, o procurador e a governanta mediam um metro sessenta aproximadamente. Os passos da senhora Huttchinson eram amortecidos por um groso tapete de lã verde. O revestimento de nogueira das paredes parecia absorver a luz no estreito corredor.

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O escritório do senhor Little - e de fato toda a planta baixa do edifício— era surpreendentemente grande e confortável. As estantes que a rodeavam estavam lotadas de velhos livros encadernados em couro e o tapete verde se notava groso e luxuoso sob os pés. Duas poltronas de couro marrom se situavam frente a uma ampla mesa de escritório coberta por um vidro. Um curioso cheiro de carne queimada impregnava a sala. As cinzas brancas se amontoavam na lareira de ferro forjado, e uma brilhante língua de fogo ainda me sobressaía no ralo. —Por favor, sente-se, senhorita Aimes —disse a senhora Huttchinson, assinalando para o escritório. Sentada na borda de uma das duas poltronas de couro, Anne tirou energicamente a luva direita e estirou a mão para alcançar os utensílios de escritura necessários. De repente, parou, com a pluma de bronze entre os dedos. Um grande baú de couro negro estava apoiado contra a parede atrás do escritório. O procurador tinha viajado com um baú similar quando a tinha visitado em Dover. —Suponho que o senhor Little não ficará fora muito tempo, não é verdade? A senhora Huttchinson seguiu o olhar da Anne. —Ah - disse—. O senhor Little deve ter levado outro baú menor, embora talvez não. No recado que deixou antes de ir me indica que este devo enviar a seu colega em Londres. Anne inundou a pluma no tinteiro e ficou olhando o branco papel. Como podia assegurar ao procurador que estava bem se nem sequer sabia o que sentia e muito menos como se sentia? Uma gota de tinta deslizou pela ponta da pluma e caiu sobre o papel branco como se fosse uma mancha de sangue. Negra em vez de vermelha. Recordava a dor que Michel tinha causado, assim como o prazer inimaginável. Rabiscou rapidamente uma direta nota, esperou que o papel se secasse e depois o dobrou e o meteu em um envelope. —Deixe-o em cima da mesa, senhorita Aimes. Ninguém o tocará. Será o primeiro que o senhor Little verá quando retornar. Ele é muito meticuloso com estas coisas. —Obrigado. Anne se perguntou se aquela dama era casada na realidade ou se só tinha adotado o título de “senhora” para conseguir um emprego respeitável, como faziam muitas mulheres. Ofereceu-lhe um sorriso. —O senhor Little fala muito bem de você. Uma espécie de brilho perverso cintilou nos olhos quentes da senhora Huttchinson. —O senhor Little também fala muito bem de você, senhorita Aimes. Diz que é você uma jovem muito valente. Anne piscou. Não acreditava que o procurador tivesse falado à senhora Huttchinson de Michel de Anges. Descartou imediatamente aquele pensamento. A senhora Huttchinson, uma mulher claramente respeitável, não se mostraria tão cordial se conhecesse aquele contrato ilícito. Com exceção de Michel, Anne e o procurador, ninguém sabia nada a respeito. Voltou a colocar a luva na mão direita e seguiu à senhora Huttchinson até a parte dianteira do edifício. A mulher abriu a porta, com soma cortesia, deixando entrar uma corrente de ar frio e o brilho de um sol deslumbrante. Deteve-se na soleira, precisando de repente aprovação, sabendo que nunca a receberia. Como podia pedir a outra mulher que a perdoasse por seus atos? —Por favor, presente os meus respeitos ao senhor Little. —Pode estar completamente segura de que assim o farei senhorita Aimes - respondeu a senhora Huttchinson, sorrindo com amabilidade. Anne avançou para a rua, sentindo como se atrás dela se fechasse a porta com decisão. O chofer, com a cara inexpressiva e despreocupada, baixou o olhar ante ela. O chapéu caía sobre os olhos. —Aonde, senhorita? 58


De repente, o chapéu do chofer se transformou para ela no vestido negro de sua criada refletido no espelho de sua penteadeira. E se por alguma razão seu procurador não estivesse disponível? Ao outro lado da rua, um cavalo, assustado por um mensageiro que passava deixando faturas e recibos por debaixo das portas, levantou as patas traseiras golpeando o ar. Um homem se encontrava perto, recostado contra uma luz. Seu cabelo era tão negro que brilhava com um reflexo azul. Anne sentiu uma repentina secura na boca. O cabelo de Michel era daquela mesma cor. Como se tivesse se dado conta de que ela o olhava, o homem de cabelo negro se voltou, afastandose. Um engraxate bloqueou seu caminho. Anne piscou e o homem deixou de ser Michel para transformar-se em outro londrino qualquer que punha seu pé sobre a caixa do engraxate e se encurvava sobre o moço ajoelhado diante dele, para observar como tirava de suas botas a sujeira e o esterco que sujavam as ruas pavimentadas. Anne se deu conta de que Michel, nascido e criado na França, depois de tirar a virgindade só tinha falado com ela em francês uma vez. Rose Huttchinson olhou através das persianas venezianas e notou que Anne Aimes hesitava antes de subir na carruagem, como se não estivesse segura de seu destino. Doía-lhe a sorte daquela solteirona e a escolha que tinha feito. John Little tinha falado com freqüência dela. Primeiro de sua dedicação; depois de sua solidão, e, finalmente, de sua incrível decisão. Rose se perguntou o que diria a senhorita Aimes se contasse que ela também, uma vez, enfrentou uma encruzilhada similar. Quando seu marido, empregado em um despacho de advogados, tinha morrido, ela tinha ficado necessitada e sem filhos. John tinha devotado um trabalho em sua casa, e depois tinha devotado um lugar em sua cama. Tinham sido um casal unido pela solidão, suficientemente jovem para desejar, mas muito velha para sonhar com novos começos. Ele tinha se dedicado a seu trabalho, e ela não queria perder outro homem. Estes fatos tinham acontecido fazia dez anos. John Little tinha agora sessenta e cinco, e ela cinqüenta e nove. Como se tivesse chegado repentinamente a uma decisão, Anne Aimes subiu à carruagem e fechou a porta. Rose nunca se arrependeu de ter procurado consolo na cama do procurador, e esperava que a senhorita Aimes não se arrependesse de fazê-lo nos braços de Michel de Anges. Havia ocasiões em que as mulheres tinham que agarrar-se à felicidade e deixar que o futuro cuidasse de si mesmo. Um ônibus rebolava rua abaixo, tampando A vista de Rose do carro que levava Anne. Franziu o cenho. John tinha se queixado ultimamente de dores no peito. Não era normal que se fosse sem lhe dizer nada, pensou com preocupação. Trabalhava muito. Não deveria ter trabalhado toda a noite, nesse testamento, para logo sair sem despedir-se. Um homem de sessenta e cinco anos de idade já estava muito velho para viajar assim, sem mais, segundo os caprichos de seus clientes. Quem lhe ia esquentar os pés durante a viagem? E quem ia esquentar os pés dela? Um sorriso sonhador apareceu nos lábios de Rose. Em várias ocasiões, John tinha falado das vantagens legais do casamento no transcurso dos últimos meses. E era possível, que ele reunia a coragem suficiente para propor-lhe que ela reconsiderasse sua decisão de continuar sendo uma mulher independente. Era possível que ela fizesse dele um homem honesto. Isso, certamente, ensinaria a não ir-se de viagem deixando-a sozinha. Rindo entre dentes, retornou ao escritório e à maciça máquina de escrever que era o orgulho e a alegria do John Little. Havia muitas coisas que fazer. Tinha que redigir um testamento, limpar as cinzas da lareira do escritório de John e abrir as janelas para que o ar entrasse na sala. O que era o que ele tinha queimado na lareira? Perguntou um tanto irritada. O cheiro ainda impregnava toda a casa. Colocou o papel no pau de macarrão da máquina de escrever e deu um olhar aos dossiês cuidadosamente amontoados que John tinha rabiscado de seu próprio punho e letra. Na nota tinha deixado instruções para que enviasse o baú a um colega dele. Estranho, pensou para si mesma. Nunca antes tinha ouvido o nome daquele colega. 59


John sempre a mantinha informada a respeito de seus sócios legais. Uma sombra obscureceu a emaranhada caligrafia. Rose parou. O sino da porta principal não tinha tocado. Só havia outra entrada, na parte de atrás, que dava acesso a casa, mas John e Rose eram os únicos que tinham a chave. A sombra era longa, muito mais que aquela que pertencia ao homem frágil que tinha chegado a conhecer e amar. Tocando o peito em um intento de acalmar os batimentos do coração, levantou a cabeça e... Ficou olhando para cima, como hipnotizada. —Posso fazer algo por você? O homem sorria, desarmando-a. O coração de Rose se acelerou. Era realmente um homem de aparência agradável. Recordou a primeira vez que tinha visto seu marido, um dia primaveril cegadoramente claro. Um grupo de moças alegres caminhava pelo parque, pretendendo ignorar coquetemente os moços que estudavam e almoçavam ali. Esse foi seu último pensamento. Capítulo 7 Michael, imóvel, olhava da janela do salão do segundo andar. A fina cortina de seda azul pendurava até a altura da ponta de seus dedos. O cabelo de Anne Aimes também tinha pendurado da ponta de seus dedos e era muito mais delicado que a cortina de seda. A solteirona desceu da carruagem. Vestia uma capa escura e um chapéu negro e redondo adornado com uma pluma branca de garça que dançava a luz do sol. Raoul, seu moreno e enxuto mordomo, gesticulava aparatosamente enquanto dava ordens a dois criados que descarregavam sua bagagem. O coração de Michael golpeava contra suas costelas em uma espécie de reação retardada. Ante o afã por chegar a sua casa antes que a carruagem. Tinha sido descuidado. Anne o tinha visto nas cercanias do escritório do procurador. O que teria feito ela se o tivesse reconhecido? Teria ido para ele, embora soubesse que a seguia? Recordou a luz do sol aquela manhã e a Anne deitada em sua cama, descansando. Dormia tranqüila e discretamente, tal e como vivia. Exceto quando se aproximava do orgasmo. Não havia nada tranqüilo nem discreto em seu prazer desinibido. Anne e Raoul desapareceram sob o arco da entrada. A noite anterior tinha provado sua inocência, e pela manhã tinha provado à mulher em que ele a tinha transformado: a salubridade de seu suor, a doçura de sua paixão, o sabor a cobre de seu sangue virginal. Era a primeira vez que Michael fazia uma mulher sangrar. Devia sentir remorso? Não sentia. Durante o tempo que ficasse, ela seria dele. A mulher de um prostituto. A mulher de um assassino. Os dois criados, com bastante estupidez, desceram da carruagem o baú de couro marrom. Sem dúvida estava cheio de roupa triste e descolorida, própria de uma solteirona igualmente triste e descolorida. Carregando o baú entre os dois, os criados se perderam sob o arco da entrada onde Anne e seu mordomo tinham desaparecido pouco antes. Michael contemplou a cortina de seda que agora acariciava com suas mãos: era de um azul pálido e transparente que recordava os olhos da Anne. Imaginou-a vestida com roupas bonitas, sugestivas, que deixassem ver sua inata sensualidade e não sua condição de solteira. Teve a sensação de que, dentro de seu peito, alguém lhe dava um murro. A identidade do homem por quem ela se apaixonou fazia muito, muito tempo tinha sido tão dolorosamente 60


óbvio... O bonito e presunçoso Michel de Anges. Um courailleur francês que, ao parecer, tinha escapado da ameaça da guerra franco-prussiana só para vir proporcionar às damas inglesas o orgasmo de suas vidas. Ele estava tão seguro de que nunca seria identificado... E que poderia terminar o que o moço que tinha sido alguma vez não tinha podido...Michael invejava amargamente o homem por quem Anne Aimes se apaixonou - o homem que tinha morrido entre as chamas do inferno—, enquanto que ela não invejava o mais mínimo à mulher que atormentava seu passado. Não estava acostumado à generosidade. Nem à amabilidade. E Anne lhe tinha dado ambas as coisas com grande esplendidez. Ouviu uns passos distantes na escada de mármore, que foram se aproximando progressivamente pelo corredor para o salão onde Michael esperava Anne. Sua solteirona era uma lutadora. Diane tinha sido uma mulher muito linda, cuja paixão desenfreada só era comparável à sua. Tinham compartilhado a risada, o champanha e o sexo. Todo o resto lhes parecia supérfluo. E quando o homem destruiu a paixão de Diane, ela ficou sem nada perdurável que pudesse sustentá-la. Anne era tão forte como apaixonada. Inteligente. Familiarizada com a morte e com o sofrimento. Poderia sobreviver. Se o fizesse, precisaria de mais confiança nela mesma, e ele podia ajudála nesse aspecto. O ar a costas de Michael se moveu. Podia notar a presença de seu mordomo, Raoul, mas podia sentir a Anne em cada gota de sangue que corria por suas veias. Sua ereção foi instantânea. —Mademoiselle Aimes, monsieur. Michael soltou a cortina e se voltou para a única mulher viva que não podia imaginar que outras mulheres não o desejassem. Seus pálidos olhos azuis estavam na defensiva, seus ombros retos. Não tinha permitido que Raoul recolhesse sua capa. Sua força de vontade era o único que lhe impedia de virar-se e sair correndo, longe do impulso de seus desejos. A paixão de Anne era seu inimigo, como tinha sido a de Diane. Faria sentir-se inquieta e nervosa. Tinha que evitar seus pensamentos antes que eles os conduzissem por um caminho que nenhum dos dois percorreria felizmente. Michael sorriu, e atrás de seu estudado charme, começou a maquinar. —Veio. —Como pode comprovar. Mas ele não podia comprovar... Até onde chegaria para dominá-la. Não podia saber até onde se aventuraria ela naquela odisséia sexual para a qual tinham sido catapultados por suas necessidades. Nem quanto tempo passaria antes que ela compreendesse aquele modelo de engano e sedução, antes que sua paixão se transformasse em ódio. Jogou deliberadamente com sua amabilidade, como tinha feito antes com sua sensualidade. —Deixará que te vejam comigo fora destas paredes, Anne Aimes? A pergunta causou uma enorme surpresa, como tinha suposto. Sua expressão também desconcertou a Michael, incapaz de compreender o por que da dor que isso tinha causado. Inclusive ela duvidava que pudessem vê-la abertamente com um homem que arrastava consigo as cicatrizes de seu passado. Anne inclinou o queixo, tentado negar o pânico que tinha aparecido em seu rosto, assim como negava seus encantos femininos. Mas estes últimos existiam: tanto a atração física que inspirava como a repugnância que suscitava nela. —Sim. Certamente. O acompanharei fora desta casa. Michael subtraiu importância à dor que a reação dela tinha provocado em seu interior. O que ele poderia fazer a Anne faria muito mais mal que o que ela pudesse ocasionar a ele. —Então quero te mostrar algo. Bastante extraordinário. Se te atrever - a desafiou. Anne tocou o veludo de cor azul cobalto com seus dedos enluvados e se amaldiçoou silenciosamente a si mesmo e a Michel. Se tivesse sabido que a levaria a visitar uma costureira não teria se permitido acompanha-lo. 61


Sentia-se ferida. E usada. Ele a tinha enganado e, o que era ainda pior, sentia-se envergonhado dela. Deixou a um lado o objeto que acariciava com seus dedos enluvados. —Preferiria algo mais discreto, por favor. Talvez um azul marinho. Michel e madame René, uma mulher mais velha, baixa e de forte caráter, com um surpreendente cabelo vermelho e um colar de pérolas digno de uma rainha ao redor do pescoço, trocaram um olhar. Anne interpretou corretamente sua silenciosa comunicação. Seus olhares pareciam dizer que ela era uma mulher tola e pouco sofisticada, e que não sabia absolutamente nada sobre aquilo que estava de moda. E era certo. Mas conhecia a severidade com que o mundo julgava às mulheres não casadas. Sabia que vestir um objeto de cor azul cobalto não a transformaria em uma mulher menos solteirona. Não faria dela uma mulher mais jovem. Nem mais atraente. Que estúpida tinha sido ao aceitar permanecer com um homem que não sabia absolutamente nada mais que ter um corpo perfeito e conhecia com exatidão como fazer que uma mulher se esquecesse de que não tinha sido abençoada com os mesmos atributos. —Vamos tomar suas medidas, mademoiselle, e depois decidiremos oui? A costureira levantou uma mão pequena e magra. Um grande diamante resplandecia em seu índice direito. —Claudette, toma a bolsa da senhorita; Angelique, suas luvas; Babette, sua capa. Ah! E não se preocupe mademoiselle, monsieur Michel cuidará de suas coisas. A não ser que montasse um escândalo, pouco podia fazer Anne para deter o assalto daquela espécie de exército feminino de madame René. Na ordem indicada foi despojada de sua bolsa, de suas luvas e de sua capa. —Voilà - exclamou a costureira energicamente—. Faria o favor de me seguir, s`il vous plaìt? Anne foi conduzida depois de uma cortina de veludo cor marrom, dentro de um vestidor austero e claustrofobicamente pequeno. O gás de um candelabro de cristal vaiava no teto. —Não há necessidade de que tome medidas, madame René. As posso dizer. A costureira, vários centímetros mais baixa que Anne, levantou a mão e beliscou seu mamilo esquerdo. O ar se congelou nos pulmões da Anne, para depois sair em um estalo de indignação. —Como se atreve? —Non, non, mademoiselle, este objeto... Este objeto não fica bem ici, aqui, dá-se conta? A lã... A lã se infla por cima de seu seio. Claudette! Ah, aí está, MA chère. Traga-me o novo espartilho, o francês, que chegou ontem. E agora, mademoiselle tirará o vestido. Anne se afastou das ativas e pequenas mãos da costureira antes que tomasse liberdades ainda mais vergonhosas. Ao tropeçar com a parede, parou imediatamente. —-Lhe enviarei minhas medidas, madame. Monsieur e eu temos um compromisso prévio e já vamos um pouco atrasados. Peço que me deixe passar. Madame René não se afastou. A costureira sacudiu a cabeça. Seus luminosos olhos de cor âmbar tinham um brilho cúmplice. —É por monsieur Michel, oui? —sussurrou—. O noto muito mudado. Você se veste muito discretamente quando está com ele, não? Para não chamar a atenção. Nenhuma mulher quer chamar a atenção quando está com um homem como ele, oui? Anne inclinou a cabeça para trás. —Está enganada, madame. —Non, não acredito mademoiselle. Se estivesse enganada, você quereria agradá-lo, ser belle para ele. Desejaria que todos os homens a olhassem quando vai a seu lado e dissessem: quelle une

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femme incroyable, que mulher tão incrível! Tem que ser muito homem para possuir a uma mulher como ela! —Monsieur De Anges é um homem muito atraente - disse Anne com frieza. Apesar de suas cicatrizes—. E é capaz de conservar a compostura em companhia de qualquer pessoa. —Se você o diz, mademoiselle... Os rumores que é todo um étalon, um garanhão acrescentou com a boca torcida em uma careta de desgosto—. Mas essas cicatrizes... A frieza do sangue da Anne se derreteu, transformando-se em um calor que a inflamava por dentro. —Não me sinto envergonhada de monsieur De Anges - insistiu, ocultando sua mortificação atrás da arrogância. A costureira encolheu os ombros. Seu gesto foi mais eloqüente que suas palavras. Era óbvio que não acreditava. —Sei que não sou madame René... —e Anne forçou as palavras dolorosas, hirientes, verdadeiras— ... Sei que não sou uma mulher atraente. Um sorriso de satisfação apareceu nos lábios da costureira. —Será depois de passar por minhas mãos, pelas talentosas mãos de madame René. Quando tiver terminado com você, mademoiselle verá três magnifique! Anne levantou as sobrancelhas com um gesto de ironia. —E quanto me cobrará por essa transformação tão milagrosa? —Uma fortuna, senhorita. Mas se você não a tivesse, não andaria com monsieur Michel, non? Anne respirou lenta e profundamente. Não permitiria que a mortificassem. A costureira havia dito na cara o que outros diriam muito em breve a suas costas. Ela era a proprietária, em efeito, de uma fortuna, e se não fosse por seu dinheiro, não estaria com o homem que se tornou famoso por sua habilidade para levar às mulheres ao orgasmo. Tudo pode ser comprado, havia dito Michel. A satisfação sexual. A intimidade. A amizade. Por que não a ilusão da beleza? —Muito bem, madame René. A costureira não se contentou tirando o vestido. —Tout, mademoiselle. Tout. Tirou-lhe tudo: as anquinhas, as anáguas, o espartilho, a camisa, os calções. Não parecia compreender o sentido do pudor dos ingleses, o que teria sido de muita utilidade para uma mulher que trabalhava no negócio da moda, pensou Anne com mordacidade. O mesmo era muito útil para um homem que trabalhava em um negócio como o de Michel. Um calafrio sacudiu todo seu corpo. Tremia, vestida só com um chapéu, umas meias e uma bandagem que apertava o ar em seus pulmões. Seus objetos femininos já não podiam ocultar a ternura de seus seios crescidos. Os saltos de suas botas de cano longo a obrigavam a estirar a pélvis para diante, tal como tinha ocorrido com os saltos de seus sapatos quando Michel a tinha despido. Mas havia um abismo entre ser despida por um homem ou por uma mulher. Com Michel tinha sido excitante, arrebatador, enquanto que madame René a inspecionava como se estivesse examinando a um cavalo: primeiro na frente, depois por trás. Sentia-se como um cavalo grande e tolo... E com uma pluma no chapéu. Uma fita métrica ziguezagueou ao redor de seu pescoço, fazendo cócegas, e depois se estendeu por seus ombros. —Levante os braços, mademoiselle. A fita foi pressionada contra sua axila —sentiu a mistura do quente contato dos dedos com a frieza da fita metálica— antes de estender-se até seis braços. Fazia muitos anos que não passava pela humilhação de ser medida. Ridiculamente, encontrou a si mesma esperando —como tinha esperado quando tomaram medidas para seu guarda-roupa de Londres, dezoito anos atrás— que a costureira encontrasse perfeições que seu espelho não mostrava. Olhou resignadamente por cima da cabeça de madame René quando ela se inclinou sobre seus seios nus. O barulho do gás do candelabro do teto soava discordante. Não teve que olhar para baixo para ver o que via a 63


costureira: a evidência física de sua noite de paixão, quando seus seios tinham sido avidamente chupados pelo homem que a esperava ao outro lado da cortina. A fita de medir rodeou seu torso e, ao estender-se, beliscou-lhe os mamilos machucados e inchados. —Peito pequeno - disse a costureira enquanto rabiscava rapidamente a medida em uma caderneta que depois colocou entre o bolso de seu avental, antes de ficar de joelhos para colocar a fita ao redor da cintura—. Estamos engordando aqui, mademoiselle. Talvez devessemos prescindir das sobremesas. Anne apertou os dentes. Ali terminavam suas perfeições ocultas. A fita circundou seus quadris. A cabeça de madame René se aproximou perigosamente a suas partes íntimas, às que nenhuma mulher devia aproximar-se tanto, e especialmente quando aquelas - tenras e inchadas pelos cuidados de um homem— se sobressaíam lascivamente. —Quadris um pouquinho largos. A pressão ao redor de seu pé esquerdo cessou quando madame René desatou com grande facilidade sua bota de cano longo. —Levante o pé, mademoiselle. Anne obedeceu com dificuldade e ao fazê-lo, para não perder o equilíbrio quando tirou o pé do sapato, apoiou-se no cabelo extraordinariamente vermelho e perfeitamente penteado da Madame. —Maintenant. O droit. Agora o direito - disse,dando uns golpezinhos no tornozelo—. Acima! Com as meias ainda postas, Anne colocou os dedos de seus pés sobre o tapete de lã e se concentrou na cortina marrom em vez de fixar-se na pequena mão que a pressionava no mesmo lugar onde Michel a tinha acariciado com a língua. O toque íntimo subiu em espiral até sua virilha, deixando-a sem respiração, dolorosamente consciente da palpitação que sentia entre suas coxas e do homem que esperava pacientemente detrás da cortina de veludo. A costureira escreveu em sua caderneta mais medidas antes de levantar-se com a agilidade de um menino. —Claudette! Anne se precaveu da presença de uma mulher baixa e nervosa que a examinava da mesma maneira em que o fazia madame René e que envolveu um objeto de cetim negro no peito. —Claudette, ate o espartilho à mademoiselle. Ah, teremos que preenchê-lo um pouco aqui, ici. Anne permaneceu quieta enquanto a costureira colocava a mão entre o espartilho, afundando os nódulos em seu seio direito. —E reforça-o com as baleias - adicionou—, de maneira que empurre o busto para cima e para fora, oui? —Oui, Madame. —Vá, temos que acrescentar uma peça de malha fina. Angelique me traga o velours azul cobalto. A cortina correu para um lado, permitindo que Anne olhasse de esguelha para Michel. E ele a ela. Um étalon havia dito madame René. Um garanhão. Há algo que não seja capaz de fazer? Nada, sempre e quando produzir prazer. A cor violeta de seus olhos brilhou, e depois se interpôs entre os dois uma mulher alta e ossuda, que atravessou a soleira com uma peça de veludo azul cobalto, como se viesse em missão de salvamento. A cortina marrom se fechou atrás dela. O calor do olhar de Michel, entretanto, permaneceu. Madame René tomou a peça de tecido em suas mãos e envolveu com ela o quadril e as pernas da Anne. —Devemos ressaltar suas pernas, que não estão nada mal, não é? O tecido deve ficar ajustado, mais ajustado, com o sobre o recolhimento para os lados, assim. E a roube du jour, ao

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vestido de dia, costuraremos umas dobras aqui, sim, para que possa mover-se sem dificuldades. Oui? Um sonoro coro de ouis respondeu. Havia muitas pessoas no vestidor, e a atenção que emprestavam a Anne era muito entristecedora. O perfume francês e o aroma de gás do candelabro do teto se formavam redemoinhos dentro de sua cabeça. Que mais podia fazer Michel por ela, que não tivesse feito? Perguntou com uma leve sensação de enjôo. Do que falaria ela nas próximas horas, dias e semanas? Ele era, realmente, uma pessoa estranha: um homem sofisticado que combinava as maneiras desinibidas de seus antepassados franceses com a fria cortesia dos ingleses. E o que aconteceria se seu dinheiro não conseguisse manter sua atenção? De repente, o espartilho e a peça de veludo desapareceram. —Não tema, mademoiselle. Já verá como fica todo estupendamente. Monsieur Michel e eu a esperamos quando estiver preparada. Madame René afastou a cortina e se retirou do vestidor enquanto suas duas ajudantes terminavam de vesti-la. Fria e metodicamente. Como se ela fosse um manequim e não a mulher que pela primeira vez em sua vida zombava da sociedade e de tudo o que esta representava. De repente, Anne se deu conta de que tinha as mãos tão frias como o gelo. Estava assustada. E não gostava dessa sensação. Sentia-se como se tivesse dezoito anos e não trinta e seis. Quando se reuniu com Michel e a costureira, encontrou-os sentados um junto ao outro. Estavam rodeados de grande quantidade de peças de tecidos finos e brilhantes, de vivas cores, que caíam sobre o dourado brocado do divã, chegando ao chão coberto com um tapete Aubusson. Havia alguns tons que não tinha visto jamais, enquanto que outros os tinham admirado, mas nunca se atreveu a usálos. Suas cabeças se encontravam muito perto. A luz do entardecer iluminava o cabelo de ambos. O de Michel ainda não estava salpicado pelas cãs, e o dela era de um vermelho tingido que era muito ostentoso. Comentavam uma série de desenhos. Como se ela não existisse. Como se depois de ter proporcionado o dinheiro necessário, sua opinião já não contasse para nada. O medo e a excitação que a tinham afligido quando decidiu ficar com o Michel encontravam seu epicentro. Não seria ele a se vestir com aquelas exóticas cores que representavam todos os matize do arco íris. E, é obvio, tampouco ia pagar por eles. —Acredito que deveria consultar a mim, madame —disse Anne com frieza. A costureira a olhou como se fosse uma menina que falava fora de hora. A fúria da Anne cresceu de maneira desproporcionada. —Levarei um vestido de sarja azul marinho, mas eu gostaria de ver o primeiro desenho, se não se incomodar. A costureira ficou rígida, como as galinhas antes de ser degoladas. O colar de pérolas que rodeava seu pescoço brilhou. —Sou uma couturière, mademoiselle. Uma artista. Está pondo em dúvida meu talento? Michel interveio com suavidade. —Mademoiselle só estava perguntando quando você poderia lhe entregar suas obras, madame. Estou seguro de que gostaria de luzir seu vestido amanhã. —Impossível. O acento francês da costureira desapareceu imediatamente. —Nada é impossível, madame —assegurou Michel com a mesma suavidade. A cobiça substituiu à teimosa implacabilidade de seus olhos castanhos e brilhantes. —Está disposto a pagar o preço, monsieur Michel? O olhar violeta de Michel se dirigiu para Anne. Todas as palavras que tinham trocado, todas suas carícias e intimidades, refletiam-se em seus olhos. Na impactante insinuação de seu dedo. Na desinibida umidade de sua língua. Acesso completo... Agitada a cidade de Londres pareceu invadir de repente a pequena e elegante loja. Os moços que repartiam o correio faziam soar seus sinos. Os vendedores ofereciam seus artigos a gritos. As rodas das carruagens chiavam. Um assobio se elevou por cima do ruído: um varredor chamava um carro com a esperança de ganhar uns peniques extras. 65


—Sim, madame. —A voz de Michel soou dura e implacável—. Estou disposto a pagar o preço que seja necessário. —Então, pode dá-lo por feito. Madame René se levantou do sofá com as costas retas e elevando a cabeça com orgulho. —Foi um prazer, mademoiselle. E da próxima vez, monsieur, não tarde tanto em voltar. Claudette! Angelique! Babette! Tragam os cilindros de tecido! Acabam de entrar outros clientes que esperam nossos serviços. - Clientes que provavelmente não serão tão desagradáveis como a solteirona mademoiselle Aimes. O feminino exército francês de madame René reuniu rapidamente os cilindros de muito finas malhas e seguiu os passos da proprietária. A bolsa de Anne, adornado com miçangas, descansava sobre uma mesa lateral de uso Luis XVI, junto a suas luvas de seda negra, que brilhavam sobre a madeira dourada. Sua capa cor de romã pendurava de um cabide de bronze. A fortificação de Michel, com punho de ouro, estava apoiada contra a parede. O salãozinho privado pareceu encolher-se até que já não houve mais espaço para auto enganar-se. Ela não pertencia a aquele ambiente francês. Era muito óbvio que Michel sim. Sentou-se ali, naquela mesma loja, e talvez no mesmo divã... Muitas vezes. Examinando a muitas mulheres diferentes. Anne endireitou os ombros. —Por que me trouxe aqui? Os olhos violetas de Michel pareciam impenetráveis. —Madame René é, na realidade, a comtesse de l'Aguille. Seus avôs fugiram para Londres durante a revolução. Perderam tudo: suas propriedades, suas riquezas, suas jóias. De uma maneira um tanto estúpida, criaram a sua única filha fazendo acreditar que se casaria com um aristocrata inglês digno de sua posição. A filha sucumbiu ante os encantos de um homem de vida dissoluta que não tinha intenções de contrair matrimônio, e logo morreu ao dar a luz a uma menina. Os avós concentraram todos seus cuidados na neta, uma formosa moça de cabelo avermelhado, que, com o tempo, atrairia muitos homens de fortuna e com títulos mobiliários. Anne o olhou intrigada. —Mas a moça tinha uma grande ambição. Estava decidida a tornar-se uma cortesã e não aspirava ter um, e sim muitos aristocratas ingleses. E quando seus atrativos maturaram, abriu este estabelecimento. Primeiro dominou os homens, e agora domina suas mulheres. Uma mulher que não tenha um traje desenhado por madame René não está na moda. Anne continuou olhando-o em silêncio. Não queria sentir pena por madame René. Durante todos aqueles anos, fez à idéia de ser uma mulher solteira e virgem. Ou assim o tinha pensado. Entretanto, com uma só prova, a costureira tinha mostrado o pouco que se diferenciava da moça de dezoito anos que alguma vez tinha fracassado no intento de integrar-se na magnífica e elegante elite de Londres. —Ela não vê qualquer mulher, Anne - disse Michel gentilmente—. Nem sequer pelos preços exorbitantes que as belezas da alta sociedade estão dispostas a pagar. —E você... Você aceita qualquer mulher que esteja disposta a te pagar? —perguntou Anne com frieza, consciente de que aquela pergunta era inadequada, mas incapaz de detê-la. —A princípio, sim - respondeu ele em tom categórico. —E depois? —Depois só quis admitir aquelas que se ajustavam a meus critérios. Como madame René. —E além da riqueza, quais são os critérios de madame René? —Os mesmos meus. —E quais são? —Ambos valorizamos, por exemplo, a paixão de uma mulher. Durante um instante em que quase parou seu coração, Anne acreditou que ele a achava atraente. Queria acreditar. Embora se não fosse por seu dinheiro, pensou Michel não a teria aceitado igual à costureira. O comichão entre suas pernas se intensificou. 66


—Me disse que não mentiria. —Não menti. —Se eu quisesse que você... Faria? Uma porta longínqua se fechou sobre a ruidosa vida londrina que tinha invadido a loja. Uma expressão parecida a uma dor cruzou o rosto de Michel. Ou talvez fosse pesar. Ou simples aborrecimento ante sua falta de sofisticação. —Não, não mentirei. Anne sentiu que as lágrimas apareciam em seus olhos. —Por que não? —perguntou com certa severidade. —Porque eu gosto de você Anne Aimes. Ninguém nunca havia dito que ela podia ser querida, desejada, necessitada. Tentou ocultar o quente rubor de prazer que acendeu suas bochechas. —Então, mentiu a outras mulheres... —Sim - disse ele com franqueza. —Você não gostava delas? —Algumas eu gostava, mas não todas. O gosto tem pouco que ver com a luxúria. —E alguma vez mentiu para uma mulher que você gostava? —Sim - respondeu de forma inexorável e sem indício de arrependimento. —E então por que não teria que mentir para mim? —perguntou ao sentir que o roast beef que tinha comido à hora do almoço pesava no estômago—. Por que não? Por que não teria que dizer que era bonita? Não acreditaria. Compreenderia que o dinheiro era à base da atração que ele sentia por ela e saberia como agir, o que esperar e como comportar-se. Saberia o que ele queria dela. Michel se levantou do divã de brocado dourado, roçando-a de propósito. O áspero contato de seus dedos fez que seu corpo se desbocasse. Seus seios. Seus clitóris. Suas nádegas. —Porque você não quer que eu minta - disse ele tomando seu rosto entre as mãos para que pudesse sentir seu fôlego, tão sensual como uma carícia. Ela ficou olhando a gravata negra que tinha atada ao redor do pescoço; o calor de seus dedos atravessava sua carne. Seus dentes. Seus ossos. —E como sabe? —Porque te conheço, Anne. Ele não podia conhecê-la. Podia conhecer seus desejos, sim, mas era impossível que soubesse o que sentia aquela mulher que, por não correr o risco a ser ridicularizada, tinha dedicado sua vida aos cuidados de seus pais idosos. Não podia conhecer a mulher que por fraqueza e covardia tinha prolongado com crueldade a dor e o sofrimento. Anne o olhou fixamente nos olhos. —É possível que, mais que gostar de mim, prefira que me deseje com luxúria. O rosto de Michel se iluminou com um sorriso que deixou ver seus brancos dentes. —Desejo-te com luxúria, Anne. E isso não é sinônimo de que eu goste, mas as duas coisas não são incompatíveis. Ela tocou com determinação a parte dianteira de suas calças de pano. Queria provar a validez de sua afirmação. O calor queimou sua mão. Estava duro. Preparado. Sentiu um palpitar na palma de sua mão. Dele... Ou dela? —Trouxe-me aqui porque se envergonha minha aparência? As palavras saíram de sua boca antes que pudesse as deter. Afrouxou sua mão, horrorizada. Não queria saber. Já tinha ouvido suficientes verdades aquele dia. —Trago-te aqui porque queria que conhecesse madame René - assinalou Michel sem piscar—. É uma mulher maravilhosa e valente que floresceu ali onde outras mulheres nas mesmas

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circunstâncias murcharam. Você me lembra isso. Sim, ambas tinham passado já o melhor de suas vidas. —Alguma vez foi seu amante? Anne se acovardou ante a pergunta, já que madame René devia ter uns setenta anos. —Não. Mas teria sido - respondeu Michel, olhando-a com intensidade, desafiando-a, a dama que o tinha contratado, que o julgasse a ele, o homem que atendia às mulheres como ela, tão necessitadas de prazer—. Se tivesse me pedido isso. E se tivesse estado disposta a pagar seu preço. Anne se concentrou na curva de seu lábio inferior, sentindo-se incrivelmente ingênua naquele incômodo mundo de beleza exótica e de sensualidade descarada. —Madame René disse que meus seios eram muito pequenos. —Sua voz soava débil, quase tanto como ela se sentia—. Que estava engordando na cintura, que minhas pernas eram passáveis e que não devia me preocupar, já que ela se encarregaria de tudo. Ele inclinou seu queixo para que ela não tivesse outra alternativa que olhar seus olhos violetas. —Isso não foi o que me disse - murmurou com suavidade. Nem em sua voz nem em seu rosto se notava uma atitude de recriminação. —Não? —perguntou com a respiração acelerada—. Nunca pensei que para ela fosse divertido ferir a sensibilidade de uma mulher. A risada iluminou os olhos de Michel, como a luz do sol sobre a superfície de um lago. Brilhante. Cegadora. —Me disse que seus seios eram altos e firmes, como os de uma moça. Que sua cintura era sutil, e que suas pernas se pareciam com as patas dos cavalos de corridas. Anne recordou... O sopro frio do ar, e o fogo violeta... —Viu-me - disse ela sem fôlego—, quando madame René estava tomando medidas. E quando ela estava no vestidor, nua, com as meias ao redor de suas coxas e o chapéu com essa ridícula pluma que a fazia sentir como um cavalo grande e torpe. —Vi. À luz do abajur. À luz do dia. Suas pernas - e seus lábios femininos— se abriram. —Não posso pôr os desenhos de madame René. —Por que não? —perguntou ele, enquanto seus lábios se foram fazendo mais finos, mais sensuais, mais sedutores. —Porque ainda estou de luto - respondeu ela, com um nó atravessado na garganta, ao recordar a dor que não cessava e o cansaço que sempre a esperava—. Meus pais morreram faz apenas dez meses. A tensão que contraía o rosto de Michel desapareceu, embora fosse possível que nunca tivesse estado ali. Era impossível entender aquele homem tão complexo que afirmava que a desejava tanto como ela o desejava . —Por isso veio para mim? —inquiriu lhe acariciando as bochechas com a cicatriz de seu índice, enquanto seus outros dedos lhe queimavam as orelhas—. Para esquecer sua dor? —Não. Subitamente, foi consciente de sua situação. Do sangue que pulsava na ponta de seus dedos, do sangue que fluía pelas veias de suas têmporas. —Vim a ti por medo a me transformar algum dia em uma mulher tão solitária e infeliz quanto eles. Ele estudou seus lábios, acariciando-a com o olhar. —E, entretanto, cuidou-os até o final. —Não tinham a ninguém mais. E ela tampouco.

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—Não quis sair comigo hoje - comentou levantando as sobrancelhas, seu olhar fixo no dela— . Te envergonhas de mim? Tinha escutado a couturière? Incomodava-lhe que as pessoas o olhassem? Que falassem? Como podia uma mulher não achá-lo atraente? —As mulheres não pagam aos homens dez mil libras esterlinas se sentisse vergonha deles, monsieur Dê Anges - disse com firmeza. Seus olhos violetas a olhavam implacáveis. —E então por que te encolheu de espanto quando te perguntei se te deixaria ver comigo? Ele não permitiria sua dignidade. Nem seu pudor. Nem seu orgulho. O que lhe havia dito? Que há ocasiões em que as mentiras são o único que nos protege. Mas não há necessidade de mentir. Ambos desejamos... Ambos necessitamos. Anne endireitou suas costas. —Por que... Porque todo mundo dirá que não estaria comigo se não fosse pelo fato de que... De que te pago por isso. —Seus lábios suaves e sedosos se crisparam—. E porque sei que a sociedade é menos tolerante que você e que madame René no relacionado com as necessidades físicas das mulheres. Haverá intrigas e rumores, e os poucos convites que ainda recebo ocasionalmente, deixarão de me chegar. Uma sonora gargalhada cortou o ruído amortecido da cidade. No estabelecimento havia uma nova cliente, a quem as assistentes de madame René acompanharam muito amavelmente até o salão privado. Não podia descartar a possibilidade de que alguma vez tivesse sido também, cliente de Michel, mas, imediatamente, tratou de afastar aquele pensamento de sua cabeça. Não permitiria que suas inseguranças arruinassem o pouco tempo que fossem passar juntos. Tinha chegado a hora de assumir responsabilidades e, por que não? De tomar à iniciativa. Anne colocou as mãos sobre as dele; as cicatrizes de sua pele, quentes e ásperas, acariciavam sua face. —Mas também estou disposta a pagar esse preço - concluiu. —Portanto, porá os vestidos de madame René - perguntou Michel baixando a cabeça, perto, mas não o suficiente— durante o tempo que passemos juntos? —Sim—disse, umedecendo instintivamente os lábios, como à espera de um beijo. —E depois, quando já não tiver que guardar luto pela morte de seus pais? —Também. Os vestidos, envoltos em papel de seda, seriam guardados e enviados a sua casa para unir-se ao que ficava de sua roupa da adolescência. A boca de Michel roçou a sua. —Vamos para casa. A sua casa, perfumada pelas flores e não pelo mofo, pela paixão e não pela dor. A respiração da Anne se transformou em um suspiro. —Não posso... Tão cedo, é que... Ainda estou um pouco dolorida. Seus lábios voltaram a roçar os seus, e seus olhos violetas olharam devolvendo o olhar. —Há outras maneiras de te agradar. A umidade que crescia entre suas pernas a levou a rememorar o prazer, a relaxação de seus músculos, a dor em aumento. —Quer dizer - e engoliu seco ao formular a pergunta— que me agradará como fez... Antes? Com os lábios. Com a língua. Com os dentes. —Quero dizer - e seus lábios acariciaram de novo os seus— que tirarei a pluma do seu chapéu e te farei cócegas no clitóris até que rogue a gritos que pare. Mas não pararei.

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Anne deixou de respirar durante um segundo: a imagem da pluma branca do chapéu entre seus dedos largos e calosos, colocados nas profundidades de suas coxas, o impedia. Os músculos de seu ventre se contraíram. Seus dedos se agarraram compulsivamente os dele para conter a punhalada do desejo. Mas queria algo mais que sua satisfação solitária. Queria compartilhar as pulsações de seu coração, a mistura de seus fôlegos, a união de seus sexos. —Prefiro que... Que você sinta prazer comigo - disse devagar, como procurando as palavras. E quando pensou que explodiria pela intensidade de seu olhar, de suas carícias, da promessa de seus beijos, suas grosas e negras pestanas se fecharam. Mordeu delicadamente os lábios, como se a arranhasse com fogo líquido, e o calor abrasador de suas mãos afundou entre suas pernas. —Vou te mostrar que um homem e uma mulher podem obter satisfação de muitas maneiras - sussurrou—. Juntos. As fronteiras inexploradas da paixão. Do desejo. Do prazer. Anne umedeceu os lábios, saboreando sua saliva, seu fôlego. Sua incerteza. —Pode uma mulher aceitar um homem... Onde me penetrou com seus dedos? As pestanas de Michel se levantaram lentamente. Um calor indescritível se apoderou de todo o corpo de Anne. Não sabia se procedia da vergonha que tinha produzido a ousadia de sua pergunta, ou das chamas de paixão que ardiam nos olhos de seu acompanhante. —Uma mulher pode receber um homem em todos seus orifícios - disse com a voz rouca, apertando de novo suas faces, abrasando os lábios com seu fôlego. A pressão podia doer, pensou ela vagamente, mas não o fazia. Só o que importava eram seus olhos violetas. O magnetismo de seu roçar. E a imagem de seu membro penetrando-a ali onde antes tinha feito com seus dedos. A lembrança de uma sensação a estremeceu. —Disse que toda mulher tem direito a exigir, mas o que podem exigir os homens? —Como podia ela devolver o prazer que lhe dava?— Que espera de uma mulher, Michel? Ele a soltou, deixando suas bochechas em contato com o ar frio. —Espero tudo de você, Anne. Ela piscou diante sua retirada inesperada. Michel se voltou, afastando-se. Ela permaneceu rígida, tentando recuperar o controle de sua respiração. De seu corpo. Até que sentiu —mais que ouviu— que ele se aproximava por trás. —Levanta o braço direito. Com certa dificuldade, Anne introduziu seus braços nas mangas de sua capa. O movimento fez que seu seio direito se inclinasse para frente... E que o esquerdo roçasse, como em uma áspera carícia, sua camisa de linho. Sentiu o peso da capa sobre seus ombros, pressionando-a até o ponto de que quase não podia respirar. O que havia dito para que ele se afastasse? De repente ele parou de frente a ela, com suas luvas de seda negra e sua bolsa nas mãos. Esquivando-se de seu olhar, ela tentou alcançá-los, mas ele os deixou cair até a altura de sua virilha. A braguilha de suas calças de lã cinza se inchou entre os complementos femininos. Seus olhares se encontraram. —Isto é para você, Anne - disse, mantendo seu rosto inescrutável, enquanto pressionava suas luvas e sua bolsa contra suas mãos, seus dedos roçando sua pele suave e obrigando aos dela a fechar-se sobre a escorregadia seda e as miçangas de azeviche—. O dinheiro pode comprar prazer, mas não faz com que o pênis de um homem se endureça. Quando sairmos à rua e as pessoas pararem para nos olhar, o que verão é minha ereção. Não uma transação comercial. Anne procurou a verdade em seus olhos. —Não se incomoda que outros possam ver você... Seu desejo? —Por que teria que me incomodar? 70


Em efeito, por quê? Durante toda sua vida tinha escondido suas necessidades, que se negava a manifestar por medo do que os outros pudessem pensar dela. Michel ofereceu seu braço. Sob a jaqueta de lã estava a musculosa realidade de sua carne masculina. As ruas se achavam lotadas de pessoas que entravam e saíam pressurosas de suas casas e das lojas próximas, no meio do bulício dos vendedores ambulantes que tratavam de tentá-las com suas mercadorias. Nem se fixaram em Anne Aimes, nem no homem que se gabava descaradamente de ter uma ereção por ela. Os olhos escuros de um homem que se aproximava, jovem e, claramente, rico, posaram-se brevemente na braguilha de Michel e depois olharam a ela com um tom de especulação aberta. Não havia brincadeira nem censura neles. Só reconhecimento masculino. O ar de Londres, poluído pela fumaça, os esgotos e os restos dos animais, ficou de repente limpo e puro. Anne imaginou a pluma de seu chapéu lhe acariciando as coxas. E no membro de Michel, duro e ereto. E em suas observações, audazes e diretas. Seus passos soavam em uníssono sobre os paralelepípedos da calçada. O “todos os orifícios” retumbava em seus ouvidos. Uma carruagem se aproximou um instante depois de que Michel levantasse a mão. As pupilas de Anne se dilataram ao entrar. O assento rangeu sob seu peso e, depois, sob o peso dele. Michel fechou a porta do carro. Ela retirou a capa para deixar lugar a seus ombros, a seus quadris, a suas pernas... E aos seus próprios pulmões. —Tudo parece indicar que atrai os choferes, monsieur De Anges. Uma onda de pura energia invadiu os estreitos limites da carruagem. A mão esquerda de Michel se agarrou ao bracelete da porta, como se quisesse abri-la de um puxão, e a mão direita apertou o punho dourado da bengala com tanta força, que as cicatrizes avermelhadas ficaram brancas. Quando a carruagem começou a se mover, Anne compreendeu, embora muito tarde, a causa de semelhante reação. Capítulo 8 Michael não tinha considerado a possibilidade de ser surpreendido em plena luz do dia em uma rua movimentada, e muito menos por um chofer. Pedestres indiferentes caminhavam pela calçada; os vendedores ofereciam seus produtos à voz em grito, e seu pênis se erguia e inchava como se tivesse vida própria, insensível à ameaça do perigo. Suas vísceras se encolheram ante o tardio entendimento: quando chegasse o momento, não importaria se estivesse preparado. Agarrou-se ainda mais forte ao bracelete da porta, mas a carruagem não parou. O aroma asfixiante de perfume, fumaça de tabaco rançoso e feno molhado subiram à cabeça com um baque de energia que o deixou desorientado. Debaixo do fedor deixado por inumeráveis clientes anônimos, que nunca conheceriam o destino de uma mulher solitária e do homem a qual tinha contratado para perder sua virgindade, ocultava-se o aroma do sabão e a benzina e, mais à frente, o da própria doçura da Anne. —Por favor, me perdoe. —A voz baixa e educada da Anne soou como um rugido; o ombro esquerdo pressionava ritmicamente o braço direito, roçando os músculos contraídos pela tensão— . Não quis dizer que você... Sua aparência... Atraíra uma atenção incorreta. O carro tinha dois destinos possíveis, e Michael tinha duas opções. Podia agarrar a Anne pela mão, abrir a porta e saltar, ou podia esperar e ver aonde os levava o chofer. À morte. Ou a sua casa. Se saltassem, ela corria o risco de ferir-se ou de matar-se. Só uns minutos antes seus pensamentos estavam concentrados nas inumeráveis maneiras em que um homem e uma mulher podem desfrutar um do outro, e nos orifícios através dos quais podem obter satisfação mútua. Deveria ser ele quem rogasse a ela que o perdoasse. —Ontem à noite lhe disse isso... Sua respiração empanava o vidro da janela. Edifícios familiares apareciam depois da neblina. Desapareciam. Voltavam a aparecer. Morte. Desejo. Morte. Desejo. Pauta ineludibles. —Não precisa me pedir desculpas. Nunca.

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O sol se refletiu na cristaleira de uma loja, e uma luz brilhante o cegou durante um instante. Sua mão esquerda seguia obstinada ao bracelete metálico da porta, e sua mão direita continuava apertando o punho da bengala de ouro suave e quente, como o corpo de Anne. Uma terceira opção. A bengala, como a faca e as camisinhas de sua mesinha de noite, eram feitos a medida, e com um pequeno giro do punho dourado, abria-se para transformar-se em uma espada curta. Seria mais amável de sua parte matá-la ele mesmo. Rapidamente. Antes de ser obrigado a ver como ela rogava para que a matassem. Como tinha feito Diane. —Sei o que significa ser objeto de curiosidade. A compaixão de Anne o deixava nervoso. Michael girou a cabeça para olhá-la. Seu rosto resplandecia no lúgubre interior da carruagem, e seus olhos pálidos pareciam duas faíscas de luz. A ela nunca tinha ocorrido que os choferes fossem capazes de seqüestrar - e de matar—, e tampouco imaginava que os homens contratados para agradar às mulheres pudessem fazê-lo. Uma veia inchou em sua têmpora. O sangue palpitava dentro de seu membro viril. Ela, uma virgem inexperiente que ainda tinha que aprender e que quis tocá-lo. Tinha posto suas mãos suaves e imaculadas sobre as suas, e não as tinha retirado ao sentir as ásperas cicatrizes. Tinha permitido, além disso, que ele a tocasse.E ele a havia trazido até ali. —O que sabe você a respeito de ser um objeto de curiosidade? —perguntou bruscamente. O que ela sabia a respeito de mentir, de extorquir e de matar? —Às mulheres solteiras as considera uma raridade. —Uma sombra obscureceu o brilho dos pálidos olhos de Anne; a pluma branca que coroava seu chapéu negro dançava ao ritmo dos tropicões das rodas da carruagem—. E especialmente em um país onde as pessoas não parecem ter nada melhor que fazer que criticar seus vizinhos. E, entretanto, ela tinha concordado em ficar com ele, a ser vista com ele, sendo consciente de que sua companhia arruinaria sua reputação.Uma estrondosa música invadiu o veículo. Uma rajada de cor e movimento surgiu depois da janela da Anne: soaram os tambores, brilharam os instrumentos de vento. Em um abrir e fechar de olhos, tudo tinha desaparecido: a andrajosa banda de ruas, a música, a prova mesma de que alguma vez tinham existido. Michael nunca havia dito como se chamava o homem. Nem a Gabriel, nem a madame que tinha instruído a seus dois anjos. Se o levassem, simplesmente deixaria de existir para um mundo que já o acreditava morto. E se quebraria o ciclo de morte e de desejo. Não haveria mais medo. Não voltaria a sentir essa avidez carnal que carcomia a alma e o corpo. Não haveria ninguém que pudesse ajudar a Anne. Como podia permitir que o homem a levasse? A carruagem girou em uma esquina, inclinando-se para a esquerda com um estranho ranger da estrutura. Anne se agarrou ao couro do assento, mas já era muito tarde. Chocou-se contra ele. A capa, o traje e o espartilho não lhe impediram de sentir o impacto de seus seios redondos e firmes. Amaldiçoou o seu pênis, que se elevava como resposta incontrolável. Amaldiçoou o homem pelo medo que inspirava um medo que aumentava a acuidade do desejo. Amaldiçoou as lembranças que explodiram dentro de sua mente como foguetes em um dia de festa. Não se iludia sobre o que aconteceria a ele e a Anne se os levassem juntos. Nenhum dos dois sobreviveria. A urgência instintiva de brigar, de escapar, transformou-se na necessidade primária de procriar. Michael e o homem eram os últimos descendentes de sua linhagem. Quando morressem, não haveria ninguém mais para seguir levando o nome da família. Anne era também a última representante de sua linhagem. Durante um segundo interminável pensou em fecundá-la com sua semente e tirá-la daquele carro, com a esperança de que sobrevivesse grávida de seu filho. Seria uma mãe amorosa. Seu filho, ou sua filha, mamariam de seus seios, como tinha feito ele, e se alimentaria de sua inata bondade, ignorante dos pecados de seu pai. E através de seu descendente ele permaneceria... Como o faria o sangue do homem. Esforçou-se por controlar o impulso de luxúria que o conduzia a criar vida a partir da destruição interminável e sem sentido, mas não podia esquecer-se do roçar abrasador de seus seios.

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—Não foi seu celibato que provocou os falatórios das pessoas - disse sem alterar-se. As mulheres —e os homens— desprezavam com freqüência o que mais querem. E querem o que mais desprezavam. —Foi sua riqueza. —É realmente importante saber qual foi à causa das fofocas? —perguntou ela tranqüilamente. O gretado assento de couro saltava e vibrava debaixo deles, estimulando de maneira quase dolorosa sua ereção. —De todas as formas são dolorosos. A roda traseira do lado esquerdo da carruagem pisou em um buraco, fazendo que se afundasse até o eixo antes de seguir adiante. Ele não podia dizer que as palavras não faziam mal. Sim faziam. Não podia mentir prometendo que algum dia se acostumaria à dor. Se o chofer os levava onde estava o homem, não haveria para ela tempo de crescer, de amar e de rir. Uma fileira de casas de tijolo apareceu atrás da janela, lhe dando alguma esperança, já que significava que o carro não se desviou ainda da direção em que estava sua casa. Mas também sentiu crescer a ira em seu interior, porque aquilo significava que o homem, como um gato, estava jogando com ele. E não havia nada que pudesse fazer a respeito. Exceto olhar. E esperar. E desejar a liberdade. —Toquei em mim mesma. O olhar tenso de Michael se virou para o rosto de Anne, cuja face direita ressaltava diante o aspecto impreciso dos edifícios que se distinguiam através do guichê. Uma mão invisível lhe oprimiu o coração. Estava fazendo uma confidência, tentando diminuir a dor que pensava que tinha causado. —Esta manhã me perguntou se alguma vez havia tocado os seios ao imaginar um homem sugando uma mulher. Sim, toquei. Apertou sua bolsa, cujas miçangas brilhavam como diamantes negros. —Pelas noites estava acostumada me deitar na cama a imaginar que você beijava meus seios - disse com o olhar fixo, em guarda, incerta, sem saber como ia responder seu acompanhante diante a confissão de seus desejos secretos—. E tocava a mim mesma. Era ridículo que tivesse ciúme de um homem morto, mas Michael estava. Uma onda negra de fúria o atravessou. Anne Aimes imaginou que Michel lhe sugava os seios. Não Michael. Nenhuma mulher tinha gritado seu nome, nunca, no momento do orgasmo. Sempre tinha sido o de Michel. Nunca o de Michael. E jamais seria Michael. —Não preferiria ter homem que fui no passado? —perguntou brutalmente, querendo feri-la, querendo prepará-la, querendo protegê-la—. Ou pretende ignorar minhas cicatrizes? Suas duras palavras se ouviram por cima do incessante chiar das rodas da carruagem. —Não, não pretendo isso - respondeu sem desviar seu olhar. —Não pretende isso? —exclamou com crueldade—. Procura esquecer de minhas cicatrizes ou fazer que não importem? O olhar de Anne era muito evidente. Muito ignorante de seu destino. —E não, não desejaria que fosse o homem que foi no passado. Durante um momento, Michael desejou ser ainda Michel. Por ela. Desejou ignorar o preço que ela pagaria. Por ele. Desejou não saber o que esperava a Anne. Dentro de uma hora. Um dia. Um mês. O homem viria. —Por quê? —perguntou com brutalidade. Com crueldade. Depois de todos estes anos ainda não sabia o porquê. —Porque me faz sentir desejada.

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E dezoito anos antes Michel a tinha ignorado. Tinha-a ferido inclusive antes de conhecê-la. Seus músculos tensos se estremeceram: de pesar, pelo inferno no qual ele a tinha submerso; de desejo, por isso poderia ter sido em outras circunstâncias. Respostas que, pelo bem de ambos, seria melhor ignorar. Embora fosse impossível. —Você é desejável, Anne. Pude ver como te olhava o homem com quem cruzamos na rua. Desejava-a. E eu também. A luz em seus pálidos olhos azul tremia, e sua confusão diante do fato de que ele se desse conta de que o olhar de um homem desconhecido a fazia sentir deliciosamente feminina, transformou-se em vulnerabilidade. Queria acreditar que era desejável. Embora ainda não pudesse. Queria confiar nele, emocional e fisicamente. Embora tampouco se atrevesse. —Desde que me tirou a virgindade, só uma vez me falou em francês - disse baixando o queixo, negando sua confusão, sua vulnerabilidade, ao tempo que o carro se precipitava para frente, com um destino fixo, e sem que ele pudesse fazer nada para detê-lo—. Por quê? Ela já tinha começado a reunir as peças do quebra-cabeça. Michael apertou os dentes. Porque queria a ela mais que à morte mesma. Mas aquela não era a resposta que ela esperava. Nem sequer a pergunta que tinha feito. A noite anterior o tinha corrigido quando a chamou mon amour. Meu amor. Mas não quando a chamou chérie. Anne queria ouvir as habituais palavras carinhosas francesas que ele dirigia a suas amantes e que tinha prodigalizado a ela antes de dar-se conta de que era inútil tentar ser uma pessoa que já tinha desaparecido. Obrigou a si mesmo a pronunciar as palavras que ela esperava. —Preferiria que te falasse em francês com mais freqüência? Seria a morte a mãos de Michel menos dolorosa? —Eu gostaria que me ensinasse a falar francês. A cabeça de Michael se inclinou para trás enquanto seu coração pulsava com força e a carruagem se balançava de um lado para outro. Ele não podia ser Michel. Embora soubesse que esse era o último desejo de Anne. —Já o fala. A toda mulher bem educada ensinavam a gramática francesa. —Mas não como... —Baixou decididamente o olhar—. Melhor dizendo, queria aprender outras palavras. Palavras que não procedam dos manuais de medicina. Os acadêmicos definem o orgasmo como o meio através do qual o esperma é depositado dentro de uma mulher com o propósito de deixá-la grávida. Descrevem o clitóris como uma projeção parecida com o pênis que, devido ao gênero da mulher, não amadurecida até transformar-se no órgão que traz prestígio e honra aos homens. Queria aprender palavras que pudessem expressar não só a fisiologia da união sexual, mas também sua beleza. Michael queria saber como era possível que uma virgem tão bem educada se transformou em uma perita em terminologia sexual. Clitóris. Pênis. Eram termos que a alta sociedade escondia de suas mulheres por temor que poluíssem sua alma. Agora desejava ardentemente não sabê-lo. Ela tinha extraído seus conhecimentos dos manuais de medicina nos que as palavras estavam impregnadas de morte e de enfermidade. —Há palavras inglesas que não procedem da medicina - disse para provocá-la. —Sim, mas o inglês pode ser duro. Eu não sinto o que fez... O que fizemos... Como algo vil. A palavra coito soa grosseira, primitiva, e nunca me senti tão perto de alguém como quando estava dentro de mim. O francês é uma língua muito bonita - acrescentou, tentando dar um tom alegre a sua voz, mas não pôde, já que nunca tinham permitido tomar a vida com alegria—. Adapta-se melhor à intimidade que o inglês, não acha? Ele tinha acreditado... Faz tempo, mas agora não podia pensar em outra coisa que não fosse no percurso da carruagem e o calor abrasador do ombro, o quadril e a perna de Anne, que roçava a seu com cada buraco do caminho. Dois ritmos separados, dois relógios que marcavam destinos separados. 74


Vinte e sete anos antes o sexo tinha impedido que Michael caísse no abismo da loucura, e através do francês tinha sido capaz de expressar sua necessidade de bem-estar, de prazer, sua necessidade de deixar-se acariciar pela alegria da sexualidade. Graças a aquela beleza, Michel tinha nascido de novo. Anne não desejava que fosse o homem de antigamente. Só estava pedindo que fizesse sua vida mais suportável. —Que palavras você gostaria de aprender? —disse com voz rouca. —Ontem à noite me beijou - respondeu com determinação. —Os franceses têm muitas palavras para dizer beijo - a interrompeu, tentando determinar se os golpes dos cascos do cavalo indicavam uma redução ou um incremento da velocidade—. Tudo depende da pessoa que nos beije, e em que lugar. —Beijou-me entre as coxas. Os seios de Anne se inflamaram rapidamente debaixo de sua blusa negra. —E no clitóris. O eco dos cascos do cavalo se misturou com os batimentos de seu coração, que a tinham levado muito longe desde que tinha subido à carruagem com um homem que não conhecia, e ao que ainda não tinha chegado a conhecer. —O clitóris de uma mulher chama bouton d'amour, botão de amor - disse com a boca cheia do sabor dela, do sabor de sua paixão doce, sedosa e salgada ao mesmo tempo—. E ao beijo que te dei ali se chama broute-minou. Anne afastou o olhar do seu. Concentrou-se no couro desgastado do interior da carruagem; o chapéu negro e a pluma branca de garça impediam que ele a visse. Depois dirigiu o olhar para a janela e ao reflexo do pálido perfil dela no vidro, quase tão perfeito como o de um camafeu, sobreposto aos sinais fugazes de Londres. Estavam tão perto de sua casa... Só a umas quadras. Não podia evitar o nervosismo que provocou certa esperança, embora soubesse que ainda era muito cedo para dizer... Para saber se conseguiria materializar-se. Apesar de que estava convencido de que era melhor que o homem os levasse agora, antes que a mulher se unisse mais a ele... E ele a ela. —Referiu a você... A seu pênis... Como MA bitte. Há outras palavras para designá-lo? Do outro lado da janela pôde ver fugazmente um parque, uma mancha de árvores verdes e frondosas, de sombrinhas girando, de meninos correndo atrás de um aro. Alguma vez tinha sido jovem. Feliz. Despreocupado. Tinha-o sido Anne? —Há muitas palavras para designar um homem. O ranger do couro o alertou; Anne se virou no assento. Seu olhar se encontrou com o dele. Seus olhos revelavam curiosidade. —Como quais? O sangue palpitava em suas veias; a carruagem avançava sobre as ruas pavimentadas. Não havia volta possível. —Bequille. Muleta. Outil. Instrumento. Bout. Fim. Ele tinha usado o sexo, em muitas ocasiões, como uma muleta e como um instrumento. Como um meio para chegar a um fim que se aproximava rapidamente... Anne franziu o cenho, traduzindo as palavras francesas ao inglês, mas para ela não tinham nenhum significado. Ele nunca a tinha ouvido rir. Diane não riu quando o homem a levou. Mas o tinha feito antes. Anne nunca havia sentido a alegria, não havia sentido nunca o prazer. Toda sua vida tinha estado dedicada a consolar a outros. Enquanto houvesse tempo, Michael queria lhe daria a alegria da risada. —O pênis de um homem também se chama andouille À couve roule - disse com um alívio calculado que negava as palpitações de seu peito e de seu falo e a pressão dura e crua que subia pelas costas em busca de uma saída. Ela ficou olhando-o, incrédula. —Os franceses comparam o pênis de um homem... Com um colar enrolado ao redor de uma salsicha? 75


Olhou-a atentamente, calculando sua resposta. —É uma comparação bastante apropriada, não te parece? Não havia rejeição em seus olhos, só curiosidade. —E o que outras palavras há? Aquela mulher que tinha confessado que não ria com freqüência... Estava tão séria, tão decidida a explorar os sutis matizes da intimidade... Havia muitas palavras sexuais que, uma vez traduzidas ao inglês, tornavam-se extremamente ridículas. Escolheu um termo que ela pudesse entender com facilidade. —Cigare À moustache. Um charuto com bigode. A imagem era irresistível. Uma clara e sonora gargalhada explodiu na escuridão do interior da carruagem e revolveu suas vísceras. Seus pálidos olhos azuis brilhavam. —E você qual prefere? Seu membro inchado aumentou de tamanho, endureceu-se, estirou-se: os vinte e cinco centímetros se ampliaram. Sentiu que, se não se desafogasse logo, ia explodir dentro de sua própria pele, como uma uva muito amadurecida. —Bitte—pigarreou. Todo rastro da risada dela desapareceu imediatamente. Seu olhar surpreendido refletia a lembrança evocadora de seus clitóris inchado no momento de abraçar sua masculinidade envolta em uma camisinha. Meu pênis. Meu falo. MA bitte. De repente, tiveram a sensação de que só existiam eles dois: uma solteirona com seu primeiro amante. Não havia lugar para a morte. —Por que a palavra bitte... Leva um pronome feminino... Em vez de masculino? —Porque bitte é uma palavra feminina. Anne dirigiu os olhos para sua ereção. Ele não precisou seguir aquele olhar para saber que uma mancha úmida, aparecia em suas calças de lã cinza, evidenciava ainda mais sua ereção. A noite anterior tinha usado aquela umidade junto com a própria essência feminina para lubrificar sua masculinidade antes de introduzi-la dentro da camisinha. Seus olhares se encontraram. Ela também recordava... Uma casa grande, de dourados tijolos georgianos, apareceu atrás da cabeça de Anne, a primeira de uma série que assinalava a rua onde vivia. Os músculos de Michael se preparavam para a ação. Agora. O carro pararia... Ou seguiria adiante. Ele ficaria com Anne... Ou o homem a levaria. O chiar das rodas da carruagem ocupou sua mente, seu corpo, seu sexo. Todo seu ser se concentrou naquele som, esperando, esperando... O veículo diminuiu a velocidade, preparando-se para parar. A nenhum dos dois tinha chegado ainda a hora de morrer. A energia que se viu obrigado a manter em suspense se transformou em uma força nua. Procurando os olhos de Anne, sua voz se endureceu com um desejo selvagem. —Porque o pênis, em outras palavras, está feito para agradar às mulheres. Pensou em levantar a saia e em fazê-la sua ali mesmo, no interior da carruagem. Ela não se oporia. Não havia nada que não lhe permitisse fazer. Michael abriu a porta e saltou para fora, como impulsionado por uma mola. O ar frio da primavera o envolveu. Mas não pôde apaziguar a enervante agitação de seu desejo sexual. Um estalo soou a suas costas. Voltou-se com rapidez, olhando hipnotizado. Tirando a cabeça a pluma branca do chapéu dançava ao ritmo da fria brisa—, Anne tentava apoiar um de suas botas de cano longo no estribo do veículo. Sua imagem no provador de madame René, semi-desnuda, usando só o chapéu, as meias e as botas, cruzou fugazmente por sua mente. Ela teria que vestir-se com as sedas e veludos mais finos e não com objetos de lã, pensou grosseiramente. Dirigindo-se a ela, Michael a agarrou pela cintura para ajudá-la a saltar do carro. O punho dourado de sua fortificação se afundou na cintura dela, protegida pelo espartilho, mas só se tratava de uma bengala. O acessório de um 76


cavalheiro; não o instrumento de um assassino. Desta vez. Com a cabeça levantada e os olhos surpreendidos, Anne se agarrou a seus ombros. Era óbvio que não era habitual que a ajudassem a descer de uma carruagem. E também era evidente que não estava acostumada a ser tratada com cortesia. A ser desejada. Mas ele a desejava. Ela nunca poderia imaginar até que ponto a desejava. Deliberadamente, atraiu-a para ele, até que seus seios se afundaram em seu peito e oprimiu sua pélvis contra seu pênis. Seus mamilos estavam duros. Ele estava duro. —Como se chama o esperma de um homem... —perguntou Anne com sua voz culta e rouca, que banhava seus lábios com seu fôlego—... Em francês? O desejo atendeu os testículos de Michael. Sabia aonde o conduziria. Sabia que devia detê-la. Mas não podia. —Came - disse, afrouxando a pressão sobre seu corpo, saboreando o peso de seus seios e o contato com seu ventre, fazendo sentir sua dureza... Sua disposição... —. Salgueiro. Blanc. —Blanc... —repetiu ela, saboreando a palavra, sua curiosidade feminina a flor de pele—. É seu esperma... Branco? —E quente e espesso - ele respondeu. O chofer clareou sua garganta. A vergonha apareceu nos olhos de Anne. Tinha permitido que um homem tomasse certas liberdades em público, dizia sua expressão, algo que jamais teria mimado uma mulher respeitável. Retirou-se dos braços de Michael, tentando recuperar o autocontrole que, na aparência, parecia possuir. Mas ele a conhecia bem. Ela tinha se mostrado de acordo em outorgar acesso completo, e ele estava disposto a aproveitá-lo. Não havia um só centímetro de seu corpo que ele não houvesse tocado, e que não fosse a tocar de novo uma e outra vez. Michael a soltou durante o tempo necessário para jogar uma moeda ao chofer, e antes que Anne recuperasse a compostura e se afastasse de sua sensualidade natural, apressou-a para que caminhasse a seu lado. Colocou a palma da mão no final de suas costas, no mesmo lugar onde a noite anterior a havia sustentado quando ela, escarranchada sobre ele, superada por suas dimensões e seu orgasmo, gritava de prazer. Aquela evocação estava tão firmemente gravada na mente de Anne como na dele, que podia sentir o batimento do coração de sua lembrança através de seu vestido. A aldaba de bronze brilhava a luz do sol. Não havia nenhum nome na entrada que pudesse indicar que Michael —ou Michel— era o ocupante da casa. A porta esmaltada de branco não estava fechada com chave. Abriu-se sobre suas dobradiças engorduradas. O doce perfume dos jacintos lhes deu as boas vindas A morte também possuía um cheiro doce, que se escondia sob o fedor a podridão, enganando os incautos. Mas não havia nada formoso em morrer. Nem em matar. Anne deu um passo para frente, afastando-se um pouco dele, quando Michael fechou a porta atrás deles. O ar frio envolveu seus dedos onde só uns minutos antes havia sentido o calor abrasador de umas costas feminina. Fechou a porta com chave - uma precaução inútil, já que nem as fechaduras nem os ferrolhos deteriam o homem— antes de voltar-se para ela. Suas costas estavam rigidamente erguida. Sua pálida pele brilhava entre o pescoço engomado de sua blusa e o cabelo de cor castanha clara, que desaparecia debaixo de seu chapéu negro. Como seria com dezoito anos? Como podia ter passado despercebida entre a multidão de estúpidas debutantes e de damas muito perfumadas? Agachando a cabeça, separou de seu rosto as desordenadas mechas de um cabelo tão fino como o de um bebê, procurando o perfume de suas partes íntimas sob o aroma da benzina e o sabão. Ela ficou tensa. Michael sentiu uma espécie de dor que subia em espiral por seu interior. Era a dor do caçador rejeitado por sua presa. Fechou brevemente os olhos, sintonizando seus cinco sentidos com o pulso que pulsava no corpo dela. —Disse que não se envergonhava de mim. —E é certo - murmurou, como se os muros da casa tivessem capazes ouvidos de escutar sua falta de decoro. E, talvez, tivessem-nos. 77


—Então se envergonha de me tocar - disse de maneira categórica, dando um passo atrás, no papel do amante desprezado—. De me desejar. Uma suave corrente de ar atravessou a escura quietude do vestíbulo. —Não. Mas não era certo. —Se não se envergonhasse, estaria me olhando. Estaria me abraçando. Abertamente. Sem reservas. Ela se voltou para ele. Em seus pálidos olhos azuis, o acanhamento competia com a excitação, à honestidade com uma espécie de auto-proteção. —Se referia a isso quando me disse que esperava tudo de mim? Ele não voltaria a pensar no homem. Não agora. Não até que chegasse a noite. —Sim. —E se uma mulher quer beijar a bitte de um homem, qual seria a expressão mais adequada em francês? —perguntou com fria determinação. Michael tinha esperado aquela pergunta na carruagem, mas agora o confundiu. Ficou paralisado diante a imagem explícita que evocavam aquelas palavras. Diante o desejo de Anne de saborear os prazeres de um prostituto marcado pelas cicatrizes. Fazia cinco anos que uma mulher não o tomava com sua boca. Durante um segundo pensou que ia molhar as calças, como tinha feito quando sua mentora o tinha acariciado pela primeira vez, sendo ainda um moço. —Boa tarde, monsieur. Uns passos rápidos se aproximaram —Boa tarde, mademoiselle. O rosto da Anne se transformou, adquirindo de novo os traços de uma dama bem educada. E ele não queria permitir que isso ocorresse, já que tinham muito pouco tempo... Michael olhou atentamente a Anne quando entregou a Raoul sua bolsa. Podia ler seus pensamentos como se os estivesse pronunciando em voz alta. Notou que tinha a mesma expressão de umas horas antes, quando tinha apresentado madame René. O mordomo devia saber que ela tinha contratado os serviços do Michel, pensou. Baixou a vista até a mancha de umidade que obscurecia as calças de Michael. Uma onda carmesim cobriu sua pálida pele, mas esta vez não se tratava do fluxo envolvente da excitação sexual. Raoul tomou a bengala de Michael e ao fazê-lo roçou as cicatrizes com suas luvas brancas. —Jantaram em casa esta noite, monsieur? Anne levantou a cabeça. Acabava de recordar a tradução literal de salgueiro, a palavra francesa que segundo Michael significava esperma. E sim, é comestível, dizia-lhe seu olhar violeta. —Sim—disse o patrão em forma seca—. Mademoiselle e eu jantaremos em casa esta noite. Anne umedeceu os lábios com a língua. O corpo do Michael relaxou. —Pode me dar seu chapéu, mademoiselle? Automaticamente, tratou de elevar suas mãos até o alfinete que sustentava o chapéu, mas parou na metade de caminho, apanhada pelo olhar de Michael. As manchas avermelhadas de suas faces se fizeram maiores até transformar-se em um brilho de cor carmesim. Seus lábios tremeram tão sensíveis, tão delicados diante da pressão, as suaves dentadas, as carícias de sua língua, seus beijos. Seriam igualmente sensíveis diante as carícias de uma pluma. Diante o beijo de seu pênis. Baixou os braços devagar. —Não, obrigado. Ficarei com ele. Michael respirou profundamente. Era impossível, mas seu membro se endureceu ainda mais. —Trés bem - repôs o mordomo, e estendeu, impassível, a mão para recolher as luvas de seda de Anne—. A mademoiselle gostaria de examinar o menu? —Não, obrigado - respondeu ela, afastando seu olhar de Michael e concentrando-o na gravata-borboleta negra de Raoul, que contrastava com as paredes cor de clara que havia atrás dele, uma cor muita parecida ao de seus olhos. Raoul olhava seu chapéu com certo desconcerto e

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ela, atrapalhada, começou a desabotoar a capa—. Estou segura de que o que prepararam estará bem. —Trés bem - disse Raoul ao recolher seu casaco—. E merci. —Jantaremos as oito, Raoul - interveio Michael friamente, sem deixar de olhar a Anne. —Direi à cozinheira, monsieur. Michael estendeu a mão, convidando Anne que a tocasse. Abertamente. Publicamente. À luz do dia. Sem vergonha alguma. Com a cara obscurecida pela asa do chapéu, ela olhou suas cicatrizes durante um instante. Observou aqueles dedos que a tinham acariciado e que tinham penetrado nas profundidades de seu corpo. Endireitando os ombros, ela se aproximou e tomou sua mão. O contato o eletrizou. Amigos. Amantes. A união era completa. Ela não voltaria a abandonálo. E ele... Ele a protegeria. De algum jeito. Satisfeito - e receptivo aos sentimentos dela agora que sabia que não seria rejeitado—, soltou sua mão e com firmeza a deslizou até o arco de suas costas, convidando-a a subir a escada, com os batimentos do coração contando os degraus. —Esqueci de dizer que chegou uma carta, monsieur. —A voz de Raoul soou atrás deles, do piso de abaixo—. A deixei em seu estúdio. Michael não parou. —Obrigado. Mais tarde verei do que se trata. Muito mais tarde. A morte estava muito perto, e ele precisava daquela mulher para mantê-lo a raia.Embora só fosse por um dia... Anne agachou à cabeça, fazendo que a pluma de seu chapéu dançasse, e se agarrou ao corrimão de ferro forjado. Cinco anos atrás aquele corrimão tinha sido de madeira. Diane tinha deslizado por ele até cair nos braços —e no pênis— de Michel. Anne olhou furtivamente o vulto que sobressaía das calças de Michael. Perguntando-se... O que? O que saberia? Como o acomodaria dentro de sua boca? O que sentiria quando ele a acariciasse suavemente com a pluma? A tensão dentro dele se tornou insuportável. Nada podia interferir agora com aqueles prazeres. Anne daria o que ele precisava: umas poucas horas de pausa antes que chegasse a noite. E ele daria o que ela precisava: as lembranças que a sustentariam no futuro. —Monsieur! —Uma vez mais ouviu o maldito Raoul, que os seguia a escassa distância—. A pessoa que trouxe a carta insistiu em que era urgente que a lesse. Disse que era de um homem a quem você tinha conhecido recentemente, mas que já não está conosco. O eco daquela última frase pareceu subir com celeridade a escada de mármore. O doce cheiro dos jacintos ficou bloqueado na garganta de Michael. A frieza corria por suas veias. Quantos mais teriam que morrer antes que tudo terminasse? O calor que chegava através do vestido de lã da Anne lhe abrasava os dedos, testemunho vivo da seguinte vítima do homem. Michael retirou a mão das costas dela e deu a volta. Raoul o alcançou com a bandeja de prata com o correio. Não havia nada de sinistro naquele gesto. Só a realidade cotidiana do mordomo cumprindo com seu trabalho. Com a cara inexpressiva, Michael recolheu o envelope selado e o abriu. Uma chave caiu na palma de sua mão. Havia outro envelope dentro do primeiro, com o endereço escrito em traços muito simples. A caligrafia era pequena, nítida, feminina. Uma nota tinha sido rabiscada debaixo do nome de um advogado. Não era nem pequena, nem nítida, nem feminina. A mensagem era cortante: de um procurador para outro. Pontos negros dançavam diante de seus olhos. —Não se sinta obrigado a te ocupar de mim, por favor - ouviu Anne dizer. Sua voz soava como se saísse de um túnel comprido e escuro—. Entendo perfeitamente que tenha assuntos pessoais que atender.

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Assuntos pessoais. Sim, a morte era muito pessoal. A escritura parecia imprecisa. Tudo seria muito mais simples se não gostasse de Anne Aimes. Tinha gostado das mulheres do passado que mantinham seus pesadelos a raia? Tinha gostado de Diane? —Obrigado. Levantando a cabeça, sorriu. Os pálidos olhos azuis de Anne refletiram dois rostos sorridentes, o de Michael e o de Michel, fundidos, sem diferenciar-se em sua aparência. —Só demorarei uns minutos. Raoul leve a mademoiselle Aimes à biblioteca. Não havia tapetes para amortecer seus passos, nem ali nem em sua casa de Yorkshire, que pudessem arder em um incêndio devastador. Na casa do homem tampouco havia tapetes. Vinte e nove anos antes não sabia o que podia encontrar quando ia ao estúdio do homem, e ser consciente de que agora ia entrar nele não aliviava nem seu temor nem sua angústia. Emoções impotentes. Mas ao contrário do homem, Michael não era impotente. Seu pênis continuava inchado e palpitante. Dentro de seu estúdio, junto ao escritório de tampa de mármore, encontrou um baú negro. Não se surpreendeu seu conteúdo, nem tampouco o da carta que havia no segundo envelope: “Estimado senhor Little: Meu encontro com Michel de Anges foi bastante satisfatório. Sei que você estava preocupado por minha segurança, mas, por favor, pode estar tranqüilo. Estou bem e, sobre tudo, mais feliz que nunca. Segundo os termos do contrato, pode você depositar no banco a quarta parte dos honorários de monsieur De Anges. Poderá me encontrar no endereço que anexo, e como decidi permanecer ali durante o mês estipulado no contrato, em vez de viajar constantemente de minha residência a de monsieur De Anges, agradeceria-lhe que, de vez em quando, visitasse minha casa, para assegurar-se de que tudo está em ordem. Sinceramente, Anne Aimes” Michael ficou olhando seu endereço, claramente escrito na parte de baixo do papel. E, soltando a carta, pôde ver os olhos grandes e assustados do senhor Little. Não haveria depósito bancário. O contrato tinha sido anulado. Seus restos carbonizados se sobressaíam dos lábios enegrecidos e chamuscados do Sr. Little. A morte não havia trazido paz ao procurador. Não sabia por que tinha tido que morrer, e tampouco saberia Anne. Michael olhou fixamente aquele homem pequeno e velho de cuja morte era responsável. E não pôde sentir nada. Nenhuma pena. Nenhum remorso. Só a palpitação de sua ereção, que permanecia rígida e dura, enquanto o sangue que corria por suas veias ficava gelado. Diminutas imagens tremiam nas pupilas fixas de Little: plumas de garça que coroavam um chapéu negro de feltro; pálidos olhos radiantes de consciência sensual; mamilos escuros e acesos; seios brancos e sedosos; pêlo púbico de cor dourada; o brilho atormentado de uns lábios vermelhos e grossos; as meias cor carne; as botas negras, curtas e bicudas. A humanidade de Michael tinha permanecido intacta ao longo dos anos que tinham jogado em cima, um fantasma que podia diluir-se facilmente no buraco negro que era seu passado. O assassinato de Little reafirmava claramente as intenções do homem. Não descansaria até que Anne o olhasse com os mesmos olhos horrorizados. Até que sua carne se endurecesse com o rigor da morte. Até que fosse seu corpo o que esperasse para ser enterrado. O homem tinha liberado Diane. Michael tinha esperado fazer o mesmo com a Anne. Mas não podia. Sua intenção não era deixar que Anne vivesse. Um golpe suave rompeu o silêncio. Não do homem. Os nódulos de suas mãos não podiam tocar assim. Michael fechou a tampa do baú e, depois de assegurá-la com a chave, depositou esta em seu bolso. —Entre. 80


A cabeça cinza escuro de Raoul atravessou a soleira da porta. Seu nariz se enrugava fastidiosamente. —Queimou algo, monsieur? Dois procuradores tinham sido queimados. O advogado estava morto. O prostituto ainda estava vivo. Estava? —A mercadoria que havia dentro do baú se queimou durante um fogo prévio - disse Michael sem alterar-se—. O que quer Raoul? —Seu jantar, monsieur. Preparamos o usual? Carne. Carne morta para os vivos. Vermes vivos para os mortos. —Tomarei o mesmo que preparem a mademoiselle Aimes. —Très bem, monsieur. O mordomo se retirou. —Raoul. O servente reapareceu imediatamente. —Senhor? Ele tinha comprado a casa vitoriana dezoito anos antes. Raoul tinha sido o mordomo do antigo proprietário. Michael tinha permitido casar-se com a governanta, e, em sinal de agradecimento, Raoul e Marie cumpriam com seus deveres silenciosa e diligentemente. Não faziam perguntas. Não difundiam rumores. E quando a casa se incendiou e as chamas tinham consumido Diane, tinham fiscalizado as reparações e ficaram como guardiães. Michael se deu conta do pouco que sabia a respeito de seus dois principais serventes. —Envie uma mensagem a Gabriel. Diga-lhe que preciso vê-lo urgentemente. Esta noite. E Raoul - acrescentou—, não acredito que precise te dizer que não quero nenhuma outra interrupção. Depois de fazer uma pequena reverência, Raoul se retirou discretamente. Michael ficou olhando a porta fechada. Não podia permitir que o homem levasse Anne Aimes. Quando ela morresse, seus últimos pensamentos seriam de prazer. Michael seria a última pessoa que ela veria. Não o homem. Capítulo 9 Anne examinou atentamente as filas de livros encadernados em couro que enchiam as prateleiras das paredes da biblioteca. Beowulf. Os contos de Canterbury. A morte de Artur, o relato sobre o rei Artur e o homem e a mulher que o traíram. A voz do mordomo continuava ressoando em seus ouvidos: já não está conosco. Um eufemismo da morte, como se os defuntos mudassem de lugar e descuidadamente se esquecessem de empacotar seus corpos. Passou seus dedos, com delicadeza, sobre umas letras esculpidas em ouro. Shakespeare... Charles Dickens. Cúpulas borrascosas de Emily Brontë, cuja capa de couro se notava gasto pelo uso. Anne não podia imaginar Michael lendo uma novela. Não podia imaginar que um homem famoso por sua habilidade para satisfazer às mulheres fosse vulnerável. Vulnerável às palavras de uma solteirona. Ao corpo de uma solteirona. Às necessidades de uma solteirona. À morte. O aroma de couro fino e a lilás recém cortadas a invadiu. A morte não tinha lugar em uma casa cheia de flores e de prazeres. Anne deu voltas ao redor da biblioteca, tratando de evitar o passado, o presente. A morte era uma realidade inexorável. O brilho do sol da tarde se deslizava pelo gentil chão de carvalho. Os divãs dourados e estofados com seda azul escura projetavam sólidas sombras; os veladores de bronze destacavam ao lado de cada divã, como desafiantes reminiscências de outra época, de outra cultura. Os abajures de porcelana branca e translúcida, com telas de seda azul escuro com douradas flores de lis, brilhavam com uma luz tênue. Abrindo os olhos, parou; suas anquinhas se movia de um lado a outro debaixo do vestido. Michel estava recostado contra a porta, com os olhos entreabertos, olhando-a. Esqueceu de respirar.

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Não parecia o homem que tinha confessado sua necessidade de possuir uma mulher, o mesmo que tinha empurrado para a escada com uma intenção inequívoca. Seus olhos violetas a olhavam com indiferença. Morte. Como os olhos de mármore da coruja dissecada que decorava o vestíbulo da casa de seus pais. Parecia um homem que nunca tinha desfrutado dos prazeres mais íntimos. Recordou o mordomo que o procurador tinha contratado. Mortal. Perigoso. —Não tirou o chapéu. A observação de Michel era dura e discordante. Anne recordou de repente que tinha uma pluma branca no chapéu e pensou em como interpretaria ele o fato de que ainda não o tivesse tirado. —Não. —Os homens não esperam que as mulheres os beijem. Ela girou a cabeça surpreendida. —Como disse? —Queria saber o que espero de uma mulher. —E não espera que uma mulher te beije? —perguntou cuidadosamente. —Não - disse ele cortante. —Entendi - respondeu Anne, engolindo seco. A eletricidade impregnava o ar, como uma tormenta que se movia. —Não quer saber o que espero de uma mulher, mademoiselle Aimes? Anne sentiu que seu coração se encolhia diante aquela forma impessoal, tipicamente francesa, em que foi formulada a pergunta. —Sim—disse endireitando as costas—. Quero saber. Se não quisesse saber, não teria perguntado. —Espero que uma mulher me lamba, me acaricie, me morda —disse com essa voz curiosamente áspera e ao mesmo tempo distante—. O mesmo que te fiz ontem à noite, e de novo esta manhã, quando chegou ao orgasmo. Era uma provocação direta. Ontem à noite a tinha acariciado com os lábios, com a língua e com os dentes, e pela manhã a tinha satisfeito da mesma forma. Ele sabia o que fazer a uma mulher, como agradá-la melhor, enquanto que ela não sabia nada, nem podia oferecer uma contrapartida. Lutou por reconciliar o homem que tinha diante com o que tinha suplicado que o aceitasse como amante. Não pôde. Na carruagem tinha sido brusco; mostrou-se furioso diante circunstâncias sobre as quais não tinha controle e que, entretanto, tinham alterado sua vida. Emoções com as quais ela podia lidar. Não sabia como responder ao homem que estava parado na frente dela. Suas unhas curtas se afundaram nas palmas das mãos, recordando que a noite anterior tinha pressionado com elas as costas de Michel. Teria deixado alguma marca? —Alguém que conhece... Já não está conosco? —perguntou muito rígida, odiando a utilização do eufemismo, mas incapaz de conjugar o verbo morrer. —Sim. —Peço que aceite minhas condolências, e quero que saiba que entenderia perfeitamente se preferir ficar sozinho... Michel continuou olhando-a durante um longo momento, até que os batimentos do coração dela se desbocaram. —Não foi algo inesperado - disse ele finalmente. Afastando-se da porta, caminhou com as pernas rígidas até a lareira de mármore branco e se agachou. Anne recordou as cinzas brancas na lareira do senhor Little. Nunca tinha imaginado que seu procurador fosse o tipo de homem que se permitia a extravagância de acender o fogo em abril. Nunca tinha pensado que a biblioteca de um francês estivesse cheia de livros ingleses. E, entretanto, a de Michel estava. O áspero estalo de um fósforo rasgou o palpitante silêncio. Um quase imperceptível sopro de sulfureto se misturou com o cheiro do couro e das lilás. Levantando-se apressadamente, Michel se fez a um lado antes de dar as costas ao trêmulo fogo amarelo que lambia os carvões negros. Durante um segundo fugaz, sua vida se refletiu claramente 82


sobre seu rosto: a dor que tinha sofrido cinco anos atrás, quando as chamas o tinham queimado. O medo que ainda experimentava, forçado todos os dias a manipular a substância que tinha causado um sofrimento inimaginável. A perda de alguém que era algo mais que um simples conhecido. Anne tinha convivido com a morte muitos anos antes que esta levasse seus pais. E quando finalmente chegou, deixando-a sem as únicas duas pessoas que amava, havia-se sentido traída. Era óbvio, não obstante, que ele não estava preparado. Michel a tinha obrigado a aceitar sua solidão, e, em troca, tinha-lhe dado generosamente alívio: com palavras, com prazer. Tinha-a feito rir. Não merecia chorar sozinho. Anne ofereceu o único consolo que suspeitou que ele aceitaria. —Como faz uma mulher para perguntar a um homem se pode o lamber... Chupar... Morder? —Os homens não são tímidos - disse ele, friamente provocador, agindo como o garanhão de quem madame René tinha falado—. Se uma mulher deseja um homem, tudo o que tem que fazer é dizer - Te desejo Michel. Seu coração se acelerou. —Desejo-te, Michel. Um rescaldo explodiu na lareira. Michel recuou como se estivesse preparando a si mesmo para a dor. Baixou os olhos e ficou olhando a braguilha de suas calças. —E como me deseja Anne? —Junto à janela - replicou ela, sem se alterar. Debaixo de seu vestido, seus joelhos tremiam diante a idéia de proporcionar prazer a um homem cujos serviços tinha contratado para satisfazerse a si mesma—. A plena luz do dia. Para que possa vê-lo. —Tomar o pênis de um homem dentro da boca não é como tomar sua língua. O sabor do sexo pode não gostar. —Sua dureza interior era mais forte que a crueldade de sua voz, uma evocação de tristes lembranças—. Nem todas as mulheres gostam. —Mas você gosta de beijar as genitálias de uma mulher - disse com uma serenidade que estava longe de sentir. —Sim. Certamente. —Por quê? —Por que sei que às mulheres gostam. O sexo é o sabor do prazer. Não teve que dizer que fazia cinco anos que uma mulher não se importava em.....Agradá-lo. De saboreá-lo. Seus decididos olhos violetas davam a entender. —Quero te saborear, Michel. Quero sentir os batimentos de seu coração contra meus lábios, contra minha língua. Também eu quero me perder no prazer de outra pessoa. Michel guardou silêncio um bom momento. A tensa quietude só se via perturbada pelo crepitar das chamas da lareira, as palpitações de seu coração e a lembrança de sua voz, uma voz que o fazia sentir sua masculinidade entre os lábios, acariciada por sua língua. Anne começava já a pensar que a ia rejeitar quando, de repente, silenciosamente, sem pronunciar uma só palavra, Michel se encaminhou para a janela, para a luz do entardecer. Sobre uma mesa redonda com incrustações douradas havia um grande vaso da dinastia Ming cheio de lilás. Parou uns quantos passos da mesa, com o perfil direito para ela e o corpo alagado pela luz dourada. Com o coração em suspense e sapateando com suavidade no chão brilhante pela luz do sol, Anne cortou a distância que os separava, interpondo-se entre ele e a janela. Um sopro quente acariciou sua nuca nua. A tensão pareceu acrescentar volume às bolinhas de pó. —Não quero que se arrependa do tempo que passamos juntos - disse Michel. As cicatrizes de sua bochecha direita pareciam ainda mais ásperas à luz. Anne as ignorou. —Não me arrependo de minha decisão. Ele começou a desabotoar as calças. Ela experimentou uma curiosa sensação de déjà vu. 83


—Não - protestou impulsivamente. Ele parou, elevou as pestanas e procurou seu olhar. —Não?—perguntou com suavidade. Ele a tinha desafiado a que desabotoasse as calças na noite anterior, quando era apenas uma virgem que não sabia o que esperar. Agora já sabia. —Por favor. Permita-me. Queria enterrar, de uma vez e para sempre, as lembranças da morte e da enfermidade. Desta vez, Anne não agiu com estupidez, como tinha acontecido à noite anterior. A dureza que se escondia atrás do grosso tecido era incitante, familiar. Era para ela, havia dito ele. E não porque estivesse pagando, mas sim porque a desejava. Ajoelhando-se sobre o colchão que formavam seu vestido e suas anáguas, abriu a braguilha de seu amante e se encontrou com o pêlo encaracolado, a úmida calidez... E a inequívoca ereção de um homem. Um tênue aroma de algo queimado fez cócegas em seu nariz. Mas se dissipou imediatamente para dar passo ao limpo e almiscarado perfume da carne masculina e à doçura penetrante dos lilás. A luz do sol dançava ao longo de seu pênis ereto, revelando cada veia, cada gradação de cor, cada cacho de seu pêlo negro, cada fragmento de sua pele obscurecida, que maturava até transformar-se em uma ameixa banhada pelo toque. Tomou delicadamente em suas mãos, envolvendo com elas os primeiros centímetros. Um tênue fio prateado provocado por sua excitação reluzia na cabeça púrpura e torcida que sobressaía entre seus dedos. Não parecia uma salsicha. Não parecia um charuto. Não parecia aquela massa de carne consumida e seca que tinha sido seu pai. Michel era o que ela recordaria nos anos futuros. Anne seguiu o rastro da umidade; a coroa em forma de ameixa era deslizantemente suave. Um pulsar leve palpitava sob sua pele. A umidade de seus lábios secou diante da repentina apreensão de que o ia tomar, a lamber e a chupar em sua boca. Seus dedos se apertaram; estudou o diminuto buraco da ponta, que parecia um olho, um olho que chorava uma lágrima solitária. —É necessário que o ponha inteiro dentro de minha boca? —Não. Ela podia sentir seu olhar; sua voz soava cansada, ainda áspera, mas já não tão remota. —Só os primeiros centímetros. Devagar, cuidadosamente, roçou a glande palpitante com seus lábios. Sua carne deu uma sacudida. Anne o acariciou com a língua. Os punhos de Michel se fecharam. Reclinou para trás a cabeça. Notava tensos os músculos de sua garganta, como se estivessem ao bordo de uma suprema agonia, de um êxtase profundo. Inclinando-se para diante, Anne o lambeu como ele tinha feito com ela, aspirando seu perfume como ele tinha aspirado ao seu. Não era um cheiro desagradável. Fechou os olhos, saboreando-o ali onde sua carne palpitava com cada pulsar de seu coração. Tinha o gosto de... Limpo. Ligeiramente salgado. Com uma certa indecisão, Anne tomou entre seus lábios a ponta do grosso glande em forma de ameixa, abrindo cada vez mais a boca até abranger a circunferência completa. Era embaraçoso, mas não desagradável. Ele se moveu dentro do círculo de seus dedos, em sinal de aprovação. Um murmúrio de surpreso prazer saiu da garganta de Anne. Umas mãos grandes e cobertas de cicatrizes acariciaram sua nuca. Anne retirou sua boca do pênis e olhou para cima. Michel continuava acariciando-a. Suas pálpebras pareciam pesadas, como uma punhalada de negras pestanas. Debaixo delas, suas pupilas eram uma espetada de escuridão que se tragava a luz; seus olhos violetas brilhavam. —Você gosta? —Sim - disse com toda honestidade. —Sabe o que acontecerá se continuar? Ela ficou olhando a coroa púrpura da glande que inchava, palpitava e chorava as lágrimas que ele não tinha chorado. —Que ejaculará. 84


—Dentro de sua boca. O pensamento podia ser repulsivo.... Mas não era. Inclinando-se para frente, beijou a ponta aveludada de seu bitte, uma bela palavra francesa para um belo francês, e depois encheu com ele, até onde se sentiu cômoda, em sua boca. A mão separou de sua nuca e um segundo depois pressionou seu chapéu, tirando o alfinete. Um estremecimento de alarme descendeu por suas costas. Retirou a cabeça e a levantou. Michel tinha o alfinete na mão. A luz se refletia no afiado aço, serpenteando ao longo da umidade de seu pênis. Confia em mim, havia dito. Mas ela não confiava. Era muito difícil confiar quando durante toda sua vida tinham advertido que não devia fazê-lo. Anne respirou profundamente. —me diga o que tenho que fazer, e como. O alfinete metálico do chapéu cintilou. As faces de Michel se afundaram, fazendo mais profundas as cicatrizes que marcavam suas maçãs do rosto e suas têmporas. —Tome dentro de sua boca. —Diga-me isso em francês - se ouviu dizer por cima do forte palpitar de seu coração—. FaleMe como às outras...Às outras mulheres: bonitas, alegres, frívolas. Justamente o contrário do que ela era. Durante um longo segundo tudo pareceu parar, até as rítmicas palpitações que sentia entre suas mãos. A luz do sol ia diminuindo pouco a pouco, os envolvendo, definindo sua pele resplandecente, a lã cinza, o linho branco e o metal brilhante. Do outro lado da biblioteca, o fogo da lareira deixou de chispar. E então... —Prends-moi dans lha bouche. Tome em sua boca. Fechando os olhos, ela obedeceu. O alfinete continuava brilhando em sua mente. —L'jogue-moi. Lamba-me. Ela o lambeu. —Mords-moi. Morda-me. Ela o mordiscou suavemente. —Suce-moi. Chupe-me. Ela o chupou. —Plus profond. Mais profundo. Ela tomou mais profundo, com os lábios apoiados contra o círculo de seus dedos. —Plus Fort. Mais forte. Ela sugou ainda mais forte a carne dura e sedosa de seu pênis, da mesma forma que ele tinha sugado seus seios. Uma mulher nutrindo-se de um homem. Sentia ele a mesma ligação quando sugava uma mulher? Perguntou. Havia sentido quando o tinha feito nela? Seus ásperos dedos se afundaram em seu cabelo. —Plus vete. Mais rápido. Anne sentiu a fragilidade de sua nuca, a fortaleza masculina de sua mão, o poder feminino de suas carícias. Foi mais rápido, tremendo a borda do descobrimento, completamente absorta no sabor e a textura de Michel de Anges. Seu membro inchou e endureceu. Algo estava acontecendo. Algo incrível. Parecia como se ele fosse a explodir dentro de sua boca. Ouviu ao seu lado o som metálico que fez o alfinete ao cair no chão de madeira. Ao mesmo tempo, as duas mãos do Michel envolveram sua nuca, enquanto ele gritava com a voz rouca: —N'arréte ps! Céus! Não pare! Um líquido se derramou no fundo de sua garganta. Era quente. Espesso. Excitante. Vigoroso. Era a essência do prazer de Michel. Anne tragou instintivamente. E sim, gostou. Salgueiro. Blanc. Came. As palavras francesas vibraram em sua língua. O chapéu caiu de sua cabeça e, de repente, encontrou-se imóvel, piscando de surpresa. Uns dedos fortes se enredaram em seu cabelo e tiraram as fpresilhas que prendiam o coque. A cabeleira caiu sobre seus ombros. O rosto de Michel estava avermelhado; seus olhos despediam um estranho fulgor violeta. 85


—Não quero te machucar - murmurou confuso. —Não me machucou - assegurou ela em tom vacilante, tão encantada pela maravilha de seu orgasmo como por sua capacidade para provocá-lo—. Eu... Michel inclinou seu rosto escuro sobre ela, roubando as palavras de sua boca, roubando o fôlego, apertando seus lábios contra os seus, sua língua entre seus dentes. Ela paralisou pelo ardor inusitado de seu beijo, embora também fosse possível que o medo fosse o culpado de sua imobilidade. Isto compreendeu com certo alarme, era a diferença entre um amante e um homem contratado para dar satisfação de uma mulher. Estava diante de um homem fora de controle. Diante da paixão de um homem. —Não quero te machucar - repetiu de maneira discordante dentro de sua boca, contra seus lábios. Sua cabeleira deslizou por suas costas como se fosse uma cascata, e o som de uma tênue chuva de presilhas e alfinetes ricocheteando contra o chão se impôs sobre a cadência dos batimentos de seu coração—. Prometo isso. Aconteça o que acontecer não te farei mal. Beije-me. Beije-me de novo. Chupe-me a língua como me chupou a bitte. Anne levantou a cabeça e o beijou de novo, sugando sua língua como tinha feito com sua glande. Quando Michel começou a retirar com delicadeza seu vestido e seu espartilho, ela tentou cobrir com os braços sua iminente nudez. —Os serventes... A mão se Michel pressionou suas costas, puxando-a para ele. —Não virão. Sua fina regata de algodão não a protegia do calor que emanava de sua pele, e sentia uma bola de fogo dentro do estômago. Era ridículo, é obvio, mas imaginou que podia sentir seu esperma dentro dela, um esperma tão quente como a pressão da mão que moldava as costas, como seu fôlego contra suas faces, como sua língua enchendo sua boca, como sua carne masculina brocando o abdômen. Anne imaginou que esse mesmo calor se derramava dentro de sua vagina, estendendo-se até seu útero como o tinha feito por sua garganta. Tentando consegui oxigênio, ela retirou sua boca daquele forno abrasador que era a sua. —Alguma vez ejaculou dentro da vagina de uma mulher sem preservativo? As palavras saíram de sua boca antes que pudesse impedi-las. Michel se tranqüilizou, observou-a atentamente com seus olhos violetas, com intensidade, como se tivesse recuperado o controle de sua paixão. —Sim. O coração da Anne se agitou. Com que rapidez se recuperava de seu êxtase! Ela endureceu sua expressão. —Então, há outros meios de proteção que podem ser usados para evitar a gravidez? Seus olhos deixavam transluzir à luz do sol, como cristais de cores. Suas pupilas pareciam contas de azeviche. —Sim. —Quais? —Há coisas que pode usar. Dispositivos que se ajustam dentro de você. —Doem? —Não. —Diminuem o prazer de uma mulher? —Tenho entendido que não. —E onde se podem conseguir? —Através de um médico. —Não através de um farmacêutico? —perguntou franzindo o cenho. —Os anticoncepcionais verdadeiramente efetivos requerem um exame médico que determine o tamanho apropriado para poder ser prescritos.

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Anne não precisou perguntar que parte da anatomia feminina devia examinar o médico para poder receitar o misterioso dispositivo. Era impossível pensar nos médicos e na dor que causariam enquanto estava tão perto de seu corpo. Baixou o olhar. O sangue corria desbocada por suas veias. —Obrigado. —Por quê? —Por sua franqueza. O sangue acelerou ainda mais. Notou que os músculos da garganta de Michel se contraíam, preparando-se para falar, mas de repente já não quis ouvi-lo. —E por compartilhar seu prazer - acrescentou com uma voz que queimava a garganta, como se tivesse tomada água salgada—. Foi muito instrutivo. E redentor. Nunca voltaria a pensar que o esperma de um homem estava destinado unicamente a deixar uma mulher grávida. —Ainda não terminei que compartilhar meu prazer com você - murmurou com a voz rouca, enquanto seus dedos pressionavam suas costas e sem que suas anquinhas pudesse deter o passo de suas sensações eróticas—. Ainda não finalizou sua instrução. Sentia seu cabelo pesado e quente. A luz do crepúsculo iluminava cada um de seus fios chapeados. —Não se sinta obrigado a corresponder a meus cuidados, por favor. Estou mais que satisfeita. —Mas me sinto obrigado - disse passando a mão por seu ventre duro—. Disse-te o que faria, e não estarei contente até tê-lo feito. Tinha prometido que acariciaria o clitóris com uma pluma até que rogasse a gritos que parasse... E ele não o faria. O céu era testemunha de que ela não queria que ele parasse. Nem agora nem nunca. Mas esse era o preço que teria que pagar por um encontro erótico que não duraria para sempre. —E depois? —perguntou, enquanto continuava olhando a veia palpitante que se inchava ao passar por sua mandíbula—. Me ensinará como te aceitar em meu outro orifício? —Hoje não. Surpreendida, ela levantou suas pestanas. —por que não? —Há outras coisas que quero fazer. Outros caminhos que quero explorar - respondeu devolvendo o olhar. Anne sentiu que se derretia. —Acredito que o divã desta biblioteca poderia ser uma variante interessante de uma cama. —Mas não quero te possuir no sofá. Ela afundou as unhas em seus ombros, querendo tocar sua carne nua, querendo que ele tocasse a sua, querendo dar o que ele quisesse. —Então o que quer Michel? —Quero que se sente em uma poltrona. Nua. Aqui. Frente à luz do sol. Com uma perna em cima de cada braço da poltrona, completamente aberta, para que possa te acariciar com a pluma. Por dentro... E por fora. Um... Dois... Michael esperava no balcão, olhando as luzes do pálido sistema de iluminação de gás que iluminava a cidade de Londres, e contando seus brilhos distantes. A sua mente acudiu a imagem de Anne dormindo em sua cama, com a mão apoiada contra sua face. E uma vez mais sentiu o vibrante murmúrio de prazer que ela tinha emitido enquanto chupava seu pênis. Atrás dele, pôde ouvir um ligeiro movimento, seguido do golpe de uma porta ao fechar-se. —Drogou-a.

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Gabriel ia diretamente ao ponto. Michael não se voltou. Nem respondeu, embora, no fundo, não era uma pergunta. Não tinha tido outra alternativa. Não tinha quis arriscar que Anne estivesse acordada quando Gabriel chegasse, de modo que tinha acrescentado uma gota de láudano à taça de vinho que tinha tomado depois do jantar. Depois tinha tomado o resto da garrafa de vinho e a tinha amado até que ela dormiu. —Vejo que usou sua chave - disse em troca, tentando controlar uma explosão de ira possessiva diante do fato de que Gabriel tivesse entrado em seu quarto e visto Anne sumida no inconfundível peso do torpor produzido pelo láudano. Talvez ela sonhasse com o prazer que tinha dado a ela, e com o que tinha dado a ele. Michael/Michel. Michel/Michael. Durante um breve instante, Anne os tinha unido. —Não me pediu para que usasse - disse isso Gabriel, tão cauteloso como um gato. Michael calculou mentalmente à distância que estava por sua voz—. Ou sim? Já era muito tarde para enviar a Anne. Magras nuvens brancas cobriram a meia lua que iluminava o céu sem estrelas. —Tenho te feito vir para que se desfaça do corpo do procurador - disse sem rodeios. —Matou-o? —Precisa perguntar? —respondeu com a voz neutra. Gabriel se aproximou do corrimão do balcão que Michael se agarrava com ambas as mãos. —Por que não o faz você mesmo? —Não posso deixar Anne. —Por que não? —quis saber Gabriel. A lua, radiante, reapareceu. O alfinete do chapéu da Anne também tinha brilhado sob a luz do sol, e a alegria que sentiu ao agradá-lo tinha iluminado seu rosto com um resplendor interno não menos radiante que a lua. Sua boca tinha saboreado seu esperma. E o gozo de agradar a um prostituto cheio de cicatrizes. Ele não se deixou saborear por uma mulher durante cinco anos. Imaginou a salinidade de seu esperma misturada com a doçura de sua excitação, e lutou contra o impulso de voltar para o quarto a compartilhar com ela o perfume embriagador da mútua satisfação de um homem e uma mulher. —Porque ele a matará - disse finalmente, desolado—. Eu não posso. Uns latidos agudos e furiosos romperam a quietude da noite. Escutou como brigavam os cães guias de ruas - pela comida, pelo território, por uma fêmea?— e soube que ele não se diferenciava muito deles. Michael tinha passado os últimos vinte e sete anos de sua vida procurando um lar. Uma mulher. Procurando uma comida que não revolvesse o estômago. Tinha amado a risada e a paixão de Diane. Diane tinha amado sua experiência e seu vigor. Ele nunca tinha esperado que ela o agradecesse, e ela nunca o tinha feito. Um grunhido queixoso marcou o final da luta. —Vá à polícia - disse Gabriel tranqüilamente. Michael conteve um gemido. Virou a cabeça e ficou olhando Gabriel. —O senhor Little está metido dentro de um baú em meu estúdio. Acha que a polícia acreditará que foi enviado por acidente? Os olhos de Gabriel brilhavam à luz da lua, pálidos, como os de Anne, embora sem sua suavidade, sem sua franqueza. —O que quer Michael? O que é o que quer Michel? A verdade o atormentava. Ontem tivesse respondido de forma diferente. Mas hoje tudo tinha mudado. E era possível que o manhã não chegasse nunca. —Quero Anne - respondeu, aspirando um ar frio, carregado de rocio e da fumaça acre do carvão—. Quero mais tempo para estar com ela. —Isso é tudo? —perguntou Gabriel com ironia. —Não. Quero contratar a alguns de seus homens. Preciso de um chofer. Um moço de estabolo. Guardas que vigiem a casa. 88


—Poderiam ser assassinados. Mais mortes se amontoavam a seus pés. —Todo mundo tem um preço. Ofereça a cada um mil libras esterlinas. —Por essa quantidade de dinheiro matariam você. —E lhes diga que se Anne for assassinada, ou seqüestrada, não só não receberão nem um centavo - concluiu Michael implacavelmente—, mas os matarei eu mesmo. —E o que acontece se matarem você? Uma faísca de rebelião se acendeu brevemente, apagando-se imediatamente. Não havia futuro para um homem como ele. Era muito tarde para querer viver. —Se Anne estiver a salvo, toma os recursos de minha conta e lhes pague. Tudo o que tenho está em seu nome. Um profundo suspiro atravessou o ar da noite. —Às vezes acredito que deveria te matar eu mesmo, Michael. Michael sorriu com ironia. —Não pode matar um homem que já está morto. —Alguma vez matou alguém, mon vieux? Homens, mulheres e meninos tinham morrido por sua culpa. —Sim. —Não, Michael. Quero dizer matar de verdade. Tirar-lhe a vida deliberadamente. Ouvir que sua respiração se afoga em sua garganta. Sentir que seu sangue quente e escorregadio te mancha. Como o sexo. E saber que, para bem ou para mau, essa pessoa está morta. Por sua culpa. Tudo o que podia ver de Gabriel era a luminosidade de seu cabelo, de sua pele pálida e perfeita, de seu nariz aristocrático. E a escuridão resplandecente de seus olhos, que não tinham nada que invejar de noite. Uma passagem aprendida durante sua infância, quando se esforçava por entrar em Eton, passou por sua mente. E vôos de anjos cantem seu repouso. Shakespeare. Hamlet. Quinto ato, segunda cena. Recordou ao autor e o título da obra, mas não pôde lembrar-se da cara de seu tutor, nem da de seus pais, nem da de suas irmãs. O homem o tinha despojado de suas lembranças. —Se não querer arriscar seus homens, Gabriel, contratarei a outros. —Não pode ter ambas as coisas, Michael. Michael ficou rígido e, dando a volta, olhou para Gabriel cara a cara. —O que quer dizer com isso, mon frère? —Que morrer não salvará Anne Aimes. O ar frio e úmido da noite se meteu em seus ossos. —Como sabe? —Sou Gabriel - disse, e Michael não teve que ver os traços de sua cara para reconhecer um sorriso sarcástico—. O mensageiro de Deus. Capítulo 10 Pouco a pouco, Anne se liberou da escuridão sufocante que oprimia seu peito e segurava suas coxas. Um calor pegajoso rodeava sua nuca, exposta ao ar quente e úmido. Pôde ouvir na distância o som de uma campainha de mão. As lembranças revoavam em sua mente pesada pela droga, vívidas manchas de cor que se sobrepunham à luz cinzenta que perfurava suas pálpebras. Sangue vermelho. Veludo azul cobalto. Carne obscuramente vetada, a ponta em forma de ameixa. Uma pluma branca e úmida. Porcelana com bordas douradas. Veio vermelho da Borgonha. Começou a sentir vagos pulsar dentro de suas têmporas. Imagens nebulosas, como surtas de sonho, ocultavam-se baixo aquela surda dor. Michel a tinha acariciado com o vinho... Não. Tinha-a acariciado com a garrafa de vinho. Um vidro frio que se deslizava, escorregava, penetrava. Enchendo a de líquido. Tinha sido frio em vez de quente. Mais diluído que espesso. Ele tinha bebido de seu corpo como se ela fosse a mais fina das taças. De repente, Anne se deu conta de 89


quão pegajosos tinha as coxas. E soube que não tinha sido um sonho. Sentia ainda o sabor do vinho da Borgonha em sua língua: pesado, doce e, por debaixo, ligeiramente amargo. Abriu suas pálpebras. Um braço a oprimia ao redor do peito e, ao mesmo tempo, uma perna pressionava a parte baixa do abdômen. Deu-se conta, então, de que era Michel e não o sonho o que a mantinha imobilizada, e de que não a tinha despertado o som da campainha de mão de sua mãe a não ser a necessidade de liberar do peso do homem que dormia a seu lado. Um sentimento de ternura atravessou seu peito, junto com um estalo de lembranças claras como a água, de visões e sons não poluídos pelo vinho ou pelo sonho. Anne tinha saboreado o homem que tinha a seu lado. Tinha-o tocado. Tinha-o feito chegar ao orgasmo. Ela, cuja única habilidade na vida tinha sido fazer de enfermeira. Agora ele dormia junto a ela. Em cima dela. E nem sequer podia permitir o luxo de gozar de uma experiência extraordinariamente íntima. Sentindo-se sutilmente enganada e ligeiramente desorientada, como se sua mente e seu corpo estivessem desconectados, tirou de cima o peso de seu braço e de sua perna e deslizou entre os lençóis de seda. Tinha o cabelo solto, e pensou que se sentia incrivelmente jovem ao não levá-lo recolhido em um coque ou em uma trança. Liberada em fim, e um pouco desconcertada pela perda do calor abrasador em que tinha dormido até então, olhou para Michel. Seu ombro parecia misteriosamente masculino contra os lençóis de seda cor de creme e a colcha de veludo verde. O lado esquerdo de seu rosto estava afundado no travesseiro; uma incipiente barba escurecia sua bochecha direita. Suas pálpebras continuavam fechadas pelo sonho, e suas sedosas pestanas negras pareciam leques. Parecia... Vulnerável. Sedutor. Tudo o que uma mulher podia desejar. E durante os próximos vinte e seis dias, era todo dela. O amante com quem sempre tinha sonhado. Contendo a respiração, para não despertá-lo, acariciou sua face. Era áspera. Encantadoramente masculina. Moveu o dedo para cima, roçando delicadamente as enrugadas cicatrizes de sua maçã do rosto direito. Michel pestanejou. Com certa frouxidão, Anne retirou a mão. Não queria despertá-lo. Havia outras coisas que fazer. Outros caminhos que explorar. Outros temores que, sem Michel, jamais teria conseguido superar. Saiu da cama. Michael agarrou o enrugado lençol de seda para não virar-se e abraçar Anne. Era a primeira vez que despertava em seus braços. A noite anterior, depois de convencê-la para que ficasse ele tinha se retirado do quarto, com algum pretexto, para que ela pudesse ocuparse de seus assuntos pessoais. Era nova no manejo de sua intimidade, e ainda precisava contar com certa privacidade. Ele sabia, embora não por isso tinha que gostar. Sua face ardia ali onde ela o tinha acariciado: em sua barba incipiente, em suas cicatrizes. Obrigando a si mesmo a não mover do lugar da cama onde ela o tinha deixado, ouviu como seus suaves passos se deslizavam pelo chão; a porta do banheiro se abriu e voltou a fechar-se. Poucos minutos depois escutou o fluxo da água no vaso e, depois, no lavabo, em cujas borda de porcelana soou o golpe de uma escova de dente. Sons matinais. Tinha escutado aqueles sons milhares de vezes, deitado na cama enquanto uma mulher se asseava no banheiro. Diane cantava enquanto o fazia. De forma pulcra e eficiente, Anne se preocupava de suas necessidades, como tinha se preocupado das dele a noite anterior. Sentia-se incomodada, à luz do dia, pelos métodos pouco convencionais de fazer o amor que tinha ensinado? Recordaria todos os detalhes, igual a ele? Quanto tempo passaria antes que se notasse a ausência de Little? Anne sentiria falta de seu procurador? A porta do banheiro se abriu com um som revelador. Michael ficou perfeitamente quieto, com todos os nervos de seu corpo a flor de pele, esperando seu seguinte passo. Anne cruzou o quarto até o divã. Sua roupa rangeu: os calções de lã, a regata de linho, as anáguas, tudo o que tinha tirado antes de ensinar como se bebia um bom vinho. O desejo se agitou em seu interior. Seu espartilho não era daqueles que uma mulher pode botar sozinha, e, além disso, o vestido que usava no dia anterior se abotoava por detrás, o que queria dizer que ela precisaria despertá-lo para que ajudasse a vestir-se totalmente. A porta do armário chiou. Mais rangidos de tecidos. Mais passos sobre o chão. Um sussurro suave, como se sentasse sobre uma almofada. Imaginou Anne no divã de seda amarela, com sua saia afetada e pouco 90


elegante recolhimento até a cintura, pálida, colocando-se, com suas finas mãos, as meias cor carne, subindo até a liga branca e depois as ajustando a suas coxas. Seu pênis semi-ereto se endureceu. Mentalmente seguiu seus movimentos na penteadeira. Não tinha lhe perguntado nada sobre a ausência de espelhos na casa. Não tinha se queixado de nenhum desconforto. Talvez comprasse um espelho para ela. Descartou a idéia imediatamente. Ela não precisava de um espelho. Ele seria sua ajudante de quarto. Seu espelho. Tudo o que ela precisasse. A Michael assaltou uma dúvida repentinamente. Ela tinha encontrado a escova de dente que Marie a governanta, tinha tirado de sua bagagem. Mas na penteadeira só havia uma escova para o cabelo. A sua. Queria que ela sustentasse a escultura manga de âmbar em sua mão e que afundasse as cerdas em seu cabelo. Assim recordaria que tinha escovado o cabelo no dia anterior. E que voltaria a fazê-lo quando ela retornasse à cama a compartilhar com ele os prazeres da manhã. Não soube em que momento levantou a escova; só quando o voltou a deixar em seu lugar, ao golpear fracamente o âmbar contra a madeira. Um roçar suave encheu o silêncio que seguiu: ela lutava por ajustar uma presilha escorregadia no cabelo. Em seus lábios se desenhou um sorriso. Estava se penteando sem a ajuda de um espelho, o que demonstrava sua auto-suficiência. Permitiu que saísse do quarto e que se dirigisse para o corredor. Era melhor que tomasse o café da manhã sozinha. Com sua mente livre dos efeitos nebulosos da saciedade sexual e do vinho, poderia ser mais curiosa. Michael relaxou, sentindo que sua ereção era bastante prazerosa. Os homens de Gabriel - e seus próprios criados— a cuidariam até que ele se reunisse com ela. Deu meia volta na cama, retirando os lençóis. O movimento recordou que sua ereção não era exatamente o resultado do desejo. O espartilho da Anne estava em cima do divã. Uma faísca divertida acendeu seus olhos. Sua séria solteirona se transformou em uma mulher liberada. Escuras sombras enchiam o banheiro. A tampa do vaso, de nogueira francesa, apresentava uma cor marrom esvaída à pálida luz. Estava ali, plaina em cima da taça de porcelana grafite de marfim e de turquesa, como um sinal evidente de que havia uma mulher na casa. Inclinou-se para levantar a tampa, e disse a si mesmo que teria que baixá-la de novo para comodidade de Anne. Puxou a corrente de latão antes de dirigir-se ao lavabo. Uma lata de fósforos repousava junto a uma caixa de lenços. Apertando os dentes, acendeu um fósforo e levantou o globo de cristal da lamparina de bronze que pendurava em cima do lavabo. Aproximou com rapidez a chama amarela à mecha antes de voltar a colocar o globo, repetindo a operação com a lamparina do lado esquerdo. No dia anterior, Anne tinha notado seu medo quando tinha acendido o fogo na lareira da biblioteca. Tinha-lhe dado seu consolo, mas não podia imaginar o perigo que a espreitava. Apagou o fósforo e a jogou no inodoro. Colocou no lavabo um plugue de borracha segura por uma corrente de latão prateado, e abriu os grifos de marfim até que a água saiu a fervuras e o vapor quente de elevou para o teto. De uma gaveta lateral do móvel de carvalho francês que havia debaixo do lavabo, tirou uma terrina de sabão, a broxa e a navalha de barbear. Empapou a broxa na água quente antes de colocá-la na terrina, esfregando-a para obter espuma. Depositou o recipiente sobre o suporte de mármore com nervuras douradas, fechou os grifos e se lavou a cara e o pescoço antes de estender a espuma sobre sua pele. Michael não contratava ajuda de camareiro. Não queria que outro homem o olhasse se podia evitar, enquanto se dedicava a seu asseio pessoal. Ou talvez fosse porque não confiava em ninguém, enquanto sua garganta estivesse exposta. Abriu a navalha e começou a barbear o pescoço cuidadosamente. Imaginou cortando a garganta de um homem. Pensou em seu sangue. Quente e escorregadio, mas não como o sexo. O prazer formava parte da vida, não da morte. Barbeou a face esquerda e depois a direita, com cinco hábeis raspados em cada lado. Apertando os lábios, barbeou o queixo e, depois, a parte superior dos lábios... A boca queimada de Little apareceu entre o torvelinho de vapor. Filho de puta! Cortou-se. Sentiu como o sangue brotava da ferida. De repente, entrou um enorme desejo de reunir-se com Anne. Com rapidez, lavou o pescoço e a face e voltou a colocar os utensílios de 91


barbear em seu lugar. A pequena ferida ardia, como se fosse quase uma evocação do fogo que tinha consumido sua carne e matado Little. Do destino que esperava a Anne se ele não conseguisse protegê-la. Ao fechar a gaveta do móvel ficou um pouco aturdido, sentindo uma inesperada opressão no peito, ao ver a escova de dente de Anne, ainda úmida, junto à dele. Lavou rapidamente os dentes, deixou a escova na gaveta, apagou as duas lamparinas e saiu do banho. Amaldiçoou-se por haver se esquecido de uma coisa. Voltou para baixar a tampa do assento do vaso. Uns cabelos castanhos estavam enredados em sua escova, sobre uma única mecha de cabelo negro. Sentiu de repente que golpeava um sentimento de puro domínio masculino. O chapéu de Anne tinha desaparecido. A noite anterior, ele mesmo tinha tirado o alfinete que o segurava e as presilhas de seu coque. Mas também tinham desaparecido. Teria saído Anne de casa? Raoul não sabia que uma carruagem e um chofer esperavam Michael em umas cavalariças das proximidades. Certamente ela mandaria chamar uma carruagem. E não haveria ninguém que a protegesse. Agarrou a roupa que tinha atirado no chão, ao lado da cama, depois de que Gabriel se fora. O tempo que demorou em vestir contou através dos batimentos de seu coração. Colocou o sapato direito. Maldição! Não podia desatar os cordões do sapato esquerdo. Imaginou a Anne metida em um baú, mas sabia que o homem não usaria algo semelhante. Pôde ao fim desfazer os nós. Colocou o pé dentro do sapato, amaldiçoando de novo o tempo que empregou atando-os cordões, e saiu da quarto ao corredor escuro. A razão indicava que Anne poderia encontrar-se na sala do café da manhã, já que ainda não tinha posto o espartilho. E as mulheres como ela não saíam de casa sem espartilho. Os últimos vinte e sete anos tinham ensinado a Michael que a razão tinha pouco que ver com a realidade. Atravessou o corredor a grandes pernadas. Escorregando no maldito mármore!, agarrou-se aos corrimões de ferro forjado para recuperar o equilíbrio. Não havia nenhum servente no vestíbulo, nem em nenhuma das portas adjacentes. A pequena sala do café da manhã, ao final da casa, estava vazia. Michael abriu a porta da biblioteca. Marie deixou cair o espanador com um gesto de surpresa. —MA foi! Monsieur, que susto me deu! Só demorarei um momento. Se você... —Onde está Anne? —interrompeu-a bruscamente. Um brilho de desaprovação apareceu nos olhos da governanta, embora rapidamente fosse substituído por um gesto impassível. —Mademoiselle Anne não está aqui, monsieur. Ou Marie não aprovava o fato de que Michael tivesse reatado sua antiga profissão, ou não aceitava a Anne. Ou talvez nunca tivesse gostado de Michael. O antigo dono tinha sido um homem com títulos nobiliário e muito respeitável. Todo homem tem um preço. Mesmo toda mulher. O suor escorregava por sua frente. —Aonde foi? Marie recolheu o espanador, recuperando a compostura e sem indício de emoção em seu rosto. —Je NE sais ps, monsieur. Ele soltou outra maldição. —Falou com ela? —Non. —E Raoul? —Je NE sais ps. Não sei. Michael não sabia se ela mentia ou dizia a verdade. As palavras que Gabriel tinha pronunciado aquela manhã cedo pareciam zombar dele: não pode ter ambas as coisas, Michael. Deu a volta com brutalidade para sair de novo ao corredor, marcando seus passos com os batimentos do coração. Onde diabos estava Raoul? —Raoul! —gritou pela estreita escada que conduzia à cozinha.

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O mordomo apareceu ao pé dos degraus com um pano de linho em uma mão e uma bandeja de prata na outra. Em outros tempos, Michael tivesse parecido divertido o assombro do Raoul. O suave e sofisticado Michel de Anges nunca teria levantado a voz a um servente. Raoul subiu a escada com um gesto de preocupação na cara. —Pardonnez-moi, monsieur, mas os criados e eu estávamos limpando a prata... Michael deteve em seco suas desculpas. —Onde está mademoiselle Aimes? —Saiu monsieur. Raoul tinha sido subornado? —Aonde? —perguntou tentando se controlar. —Não me disse isso. Só me ordenou que pedisse uma carruagem... Michael abriu a porta principal da casa. Ninguém caminhava pela calçada. Não havia nenhum homem vestido de varredor, nem de vendedor. Ninguém vigiava a casa. Seu primeiro pensamento foi que os homens do Gabriel tinham sido assassinados. Rezou para que assim fosse, embora soubesse que não era certo. Compreendeu muito tarde o significado do provocador comentário de Gabriel quando lhe disse que era o mensageiro de Deus. Mas não tinha sido Deus quem o tinha enviado. Gabriel não tinha mandado seus homens para que vigiassem a casa nem a Anne. Todo homem tem um preço, havia- dito Michael ao Gabriel. Perguntou-se qual teria sido o de seu velho amigo. Capítulo 11 Anne olhou o círculo de luz que se refletia no teto e fez tudo o possível para não pensar que os dedos que a tocavam não eram os de Michel. Um abajur de gás vaiava no meio do silêncio, esquentando locais de seu corpo que nunca pensou que poderiam estar assim tão expostas. Jurou a si mesma que nunca visitaria um médico, nem permitiria que um doutor a cravasse ou fizesse mal como tinha acontecido com seus pobres pais. Entretanto, ali estava recostada sobre uma maca de couro acolchoado, coberta por um volumoso robe branco, com os pés apoiados sobre uns estribos de metal, sendo examinada e, embora não estivesse sofrendo nenhum dano exatamente, estava bastante incômoda. —Vou introduzir um especulo em sua vagina, senhorita Jones. Sentirá uma leve espetada. Por favor, tente relaxar. Só demorarei um momento mais. Anne fez uma careta de dor - sim, incomodava, enquanto se perguntava se a sua governanta em Dover se importaria que ela tivesse usurpado seu nome. As unhas de suas mãos se afundaram no couro insensível. O especulo era mais duro que o vidro. Mais frio. Não pertencia ao interior de uma mulher solteira. Sentiu o forte tamborilar de seu coração contra suas costelas, incitando-a a correr, a gritar, a escapar da indignidade em que estava vivendo. A imagem de Michel veio em sua mente. O que teria pensado quando despertou e se deu conta de que ela não estava? Pensou no antigo médico londrino de seus pais, que a tinha censurado de forma categórica quando tinha pedido que instalasse um dispositivo para evitar a gravidez. Enquanto a acompanhava ao sair do consultório, sua enfermeira tinha sussurrado ao ouvido o nome e o endereço de um ginecologista, uma nova espécie de médicos que se especializavam na saúde íntima das mulheres. O doutor Joseph Atwood. O que Michel tinha chamado “dispositivo”, era para o ginecologista um diafragma. O antigo médico de seus pais sustentava que os profiláticos significavam a ruína da feminilidade em particular e da sociedade em geral. O doutor Atwood tinha agido como se fosse o mais natural do mundo que uma mulher quisesse colocar um dispositivo para evitar engravidar. E melhor. Se ela, uma mulher solteira, simples e pouco elegante procurava uma maneira de proteger-se, quantas mulheres mais o fariam? —Já pode levantar-se, senhorita Jones.

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Anne retirou seus pés dos estribos metálicos e se sentou. O ginecologista se inclinou sobre o mostrador metálico que havia ao lado da maca; seu terno de tweed se enrugava ao redor de seus ombros. Ouviu-se um som metálico ao depositar o instrumental. A água corrente salpicou. Com movimentos precisos agarrou uma toalha branca dobrada e secou as mãos. Depois a jogou em uma cesta de lona, voltou-se e sorriu. Seus olhos de cor avelã eram amáveis. Não a julgavam. Como se não tivesse notado que não usava anel de casamento. —Direi à enfermeira que a ajude a se vestir. Não precisava ajuda porque não usava o espartilho. —Não é necessário - disse, agarrando-se a borda da mesa. —Muito bem. Então, espero-a em meu escritório logo que esteja preparada. Saiu da pequena sala onde tinha realizado o exame. Ouviu seus passos, afastando-se, como se fosse um abandono decidido. Vestiu rapidamente a roupa interior. Parecia que tivessem passado dias, em vez de horas, desde que tinha vestido no quarto de Michel enquanto ele dormia, ignorando suas intenções. Gostaria de sua iniciativa? Perguntou-se. Com certa pressa se abotoou o sutiã de lã negra. Seus dedos tremiam. Seu corpo inteiro tremia. Sentia-se vitoriosa por ter podido sobrepor-se ao medo. Ou talvez tremesse de humilhação, por ter mostrado seu corpo a um homem que não era Michel. Ou talvez se estremecia, simplesmente, diante a idéia de que muito em breve teria em seu interior, e seu membro já não estaria separado dela por uma camisinha de borracha. Um espelho pendurava da porta. O rubor tingiu as faces de Anne. Achou-se quase bonita, pensou. Pequenas mechas de cabelo caíam sobre o rosto, suavizando sua expressão. Com destreza se colocou o chapéu negro - esta vez sem pluma, e o assegurou com o alfinete. Caminhou com mais duvida que decisão, golpeando o chão de madeira ligeiramente com seus saltos. Recolheu as luvas negras e a bolsa de miçangas do mostrador metálico e, respirando profundamente, abriu a porta. O doutor Atwood se encontrava sentado atrás de uma mesa de escritório maciço, coberta por uma tampa de mármore negro, com sua cabeça calva inclinada para diante. Um abajur de gás vaiava sobre ele. Atrás do escritório, uma janela deixava entrever o céu cinza. Ia chover. O fraco e monótono ruído das rodas das carruagens subia da rua, salpicado pelos gritos dos vendedores ambulantes e pelo roçar que a pluma de metal produzia sobre o papel ao escrever. Uma pequena caixa de latão, de cor rosada, repousava em cima do escritório, junto ao cotovelo do ginecologista, e a seu lado havia um modelo de cera cor carne que lhe recordou uma gravura que tinha visto no manual de medicina. Parecia... Um calor abrasador queimou suas faces. Era um modelo dos órgãos internos de uma mulher. O médico levantou a vista ao notar que ela se aproximava. —Sente-se, por favor, senhorita Jones. Anne se acomodou na borda de uma poltrona de couro negro, evitando olhar à escultura de cera. O ginecologista segurava em sua mão esquerda uma peça circular de borracha. —Isto é um diafragma - disse, tocando o modelo de cera com sua mão direita—. E isto é o pescoço do útero de uma mulher. O diafragma se ajusta ao pescoço do útero aqui e aqui, como se fosse um chapéu. Para evitar a gravidez deve ser colocado antes do ato sexual, e deve permanecer em seu lugar até seis horas depois, no mínimo. Ela apertou a bolsa. Os médicos de seus pais nunca tinham falado com tanta franqueza. —Sim. Entendo. —A vagina de uma mulher se estreita quando levanta as pernas - acrescentou, enquanto colocava a peça circular de borracha, que estava frente a ela, em cima da mesa—. Um diafragma se coloca com maior facilidade estando de cócoras ou, se preferir, parando diante de um assento ou de um banco, dobrando o joelho e apoiando o pé em cima. Anne levantou a cabeça. Suas instruções eram claras e precisas, mas... —Com que meios introduz uma mulher o diafragma dentro... Dentro de sua pessoa? —Com a ajuda de seus dedos, senhorita Jones. Pôde ter sido a cintilação de seus olhos de cor avelã ou, talvez, sua própria confusão, que coloriu sua visão. 94


—Sei. O doutor Atwood alcançou a caixa de latão de cor rosada. —Dentro está o diafragma. Você tem alguma outra pergunta? Anne agarrou a caixa e a meteu em sua bolsa. Chocou-se contra algo metálico. O metal da caixa dos preservativos. Levantou-se com um ligeiro rangido de suas anáguas e sua saia de lã. —Não, obrigado. Foi muito amável. O médico lhe estendeu a folha de papel sobre a qual tinha estado escrevendo. —Pode pagar a minha secretária. Na sala de espera do consultório havia quatro mulheres: três pacientes e uma secretária. Todas eram mais jovens que ela, e se notava que duas das três pacientes estavam grávidas. Anne tentou imaginá-las com seus ombros erguidos, suas costas retas e suas mãos dobradas em cima de suas bolsas — pedindo ao doutor um diafragma. Não pôde. Tentou de imaginá-las desfrutando do abraço sexual de um homem. Tampouco pôde. A secretária, uma mulher de cabelo castanho, sorriu. —Até logo, senhorita Jones. Anne tentou afastar uma pontada de culpa. Não gostava de mentir. Sob nenhuma circunstância. Assentindo com a cabeça, recolheu sua capa, pendurada no cabide, e lhe chamou a atenção que houvesse seis guarda-chuvas no cabide. Ao final do corredor mal iluminado, junto à escada, abriram-se as portas do elevador. Saíram duas mulheres que, com as cabeças muito juntas, falavam em voz baixa quando passaram junto à Anne. Sentindo-se de repente muito atrevida e moderna, entrou no elevador e saudou o homem de jaqueta vermelha que acionava o aparelho. A descida cortou a respiração. Fazia muitos anos que não subia em elevador, e a cada segundo que passava parecia mais ligeiro. Sorriu. Sentia-se sublime. Eufórica. E não como uma solteirona de trinta e seis anos. Como se todos os anos de enfermidade e de morte tivessem sido apagados com aquela peça circular de borracha que levava em sua bolsa. No exterior do edifício, a umidade se percebia no ar. Carruagens de todos os tamanhos e modelos percorriam a rua. Homens e mulheres caminhavam pela calçada, passando uns junto aos outros sem reconhecer-se. Ao contrário dela, levavam guarda-chuva. Pregados. Com a ponta olhando para baixo. Preparados para o tempo inclemente. Da mesma forma que Anne estava preparada para o homem que era seu amante de palavra, embora não o fosse de fato. Compreendeu, com uma súbita pontada de dor, que as palavras que tinha escrito ao procurador, dizendo que não se preocupasse, eram certas: nunca em sua vida havia se sentido tão feliz. Assaltou-a, de repente, o desejo irresistível de ver Michel, de ser tocada por ele e não pelo ginecologista. Se apressasse, podia encontrar uma carruagem antes que começasse a chover. Descendo a escada com os seios movendo-se de uma maneira não muito apropriada para uma mulher solteira e decente, começou a caminhar ao redor de um grupo de homens sobriamente vestidos: estudantes de medicina, talvez, já que o hospital se encontrava a menos de uma quadra. Um calor abrasador pareceu estalar entre seus ombros. O ar saiu de seus pulmões com um assobio audível, enquanto saía empurrada para a rua, agitando os braços para não perder o equilíbrio. O som e o movimento a rodearam. O chofer de uma das carruagens gritou da boléia: “se afaste do caminho, vaca estúpida!”, e, ao longe, pôde ouvir as badaladas do Big Ben. A imagem do chofer furioso a sobressaltou. Seu chapéu negro caiu , como se tivesse sido abatido por uma mão invisível, e imediatamente um horripilante relincho atraiu sua atenção. Anne viu uns olhos negros aterrorizados. O cavalo que puxava a carruagem se deu conta do iminente choque, mas era incapaz de parar. Tampouco Anne podia fazer nada. Ia ser pisoteada por seus cascos, pensou, enquanto a percepção daquela realidade a paralisava. O horror da morte iminente foi substituído por uma incerteza que a adormecia. Simplesmente, não podia morrer naquele momento. Não estava usando o espartilho. Não tinha colocado o diafragma. Diversas imagens passaram por sua cabeça, como um resumo de sua vida. Viu o antigo médico de seus pais, com sua cara avermelhada pela ira: você um insulto para seu sexo, senhorita Aimes, e me insulta com sua presença. Viu Michel, com seu rosto iluminado pela luz do sol da manhã: fica comigo, ou ambos nos arrependeremos durante o resto de nossas vidas. 95


Viu sua mãe, que estendia uma mão deformada pela artrite. Chamando. Suplicando. Capítulo 12 Entre uma e outra piscada dos escuros olhos do cavalo injetados em sangue, Anne foi arrastada para trás. O cavalo saltou ao passar a seu lado, e o golpe da carruagem por pouco não lhe arranca a capa. Uma cara fantasmagórica se apoiava contra a janela do veículo, olhando-a com olhos surpreendidos. Tudo aconteceu em um instante. De repente, o céu se abriu, a carruagem tinha desaparecido e uma garoa carregada de fuligem turvou sua visão. O Big Ben continuava marcando as horas. Como se estivesse anunciando a morte. Os sinos do povoado também tinham dobrado durante o funeral de seus pais. Também então, como agora, chovia. Um chapéu negro cogumelo estava atirado na metade da rua, esmagado pela roda de alguma carruagem. Imaginou que seria do chofer. Anne se deu a volta, com o coração pulsando rapidamente e contendo a respiração; alguém a tinha empurrado. Ficou olhando de frente para um homem despenteado, de idade indefinida, cujo cabelo castanho e gordurento se sobressaía por debaixo de um maltratado chapéu. Finas gotas de água caíam sobre seu sujo rosto. —Essa não é maneira de chamar uma carruagem, senhorita - disse em tom severo—. Pode se matar no meio da rua. Sentia a parte posterior dos ombros queimada e torcida, o que lhe tirava oxigênio. Não parou, entretanto, a de calor que a invadia como um fogo avivado com querosene. Tinha faltado pouco para se matar. E aquele —aquele homem miserável— pensava que ela se jogou deliberadamente no caminho da carruagem? Anne abriu a boca para gritar ela, que nunca antes tinha gritado de ira, mas recordou que ele tinha salvado sua vida. Tratou de se tranqüilizar. As badaladas do Big Ben deixaram de soar bruscamente. O ar entrou em seus pulmões desprovidos de oxigênio. O monótono ressonar das rodas das carruagens enchia os ouvidos, e uma vez mais recuperou o controle de suas emoções, atenta como sempre tinha estado. Diante da possibilidade de que um estranho fizesse mal. Diante da possibilidade de que a sociedade se aproveitasse de sua estupidez. Os pedestres se afastavam rapidamente do espetáculo tão pouco digno que apresentavam um indigente e uma solteirona solitária e desalinhada. Protegiam-se com os guarda-chuva negros que antes do golpe que a tinha catapultado para a rua se desdobraram à espera... Do que? Da chuva, ou de um espectador inocente? Afastavam-se para escapar da garoa fria, ou do espetáculo de um choque que podia ter resultado fatal? Só uma pessoa sabia com certeza. A prata brilhou sob a chuva cinza. Seu gasto salvador agarrou com destreza a moeda. —Pode partir - disse atrás dela uma voz fria, dura, cortante, a voz de um homem acostumado a dar ordens—. A dama está a salvo. O indigente, que, na realidade, era um varredor, sorriu com uma estranha careta, e depois de levantar uma vassoura desmantelada que estava atirada sobre a calçada, deu meia volta e se afastou. Anne se precaveu de que o inchaço que sentia em suas costas podia ter sido causado, facilmente, pelo pau de uma vassoura ou pela ponta de um guarda-chuva. Ela tratou de detê-lo. —Espere um momento. —Já lhe disse que está a salvo. O desalinhado varredor desapareceu entre uma multidão de trajes escuros e guarda-chuva negro. Anne se voltou no meio do rangido da capa, a lã e as anquinhas enrugado. O desconhecido parecia não entender o fato de que ela tinha sido empurrada diante da carruagem, e de que alguém era o responsável. Talvez o varredor - a quem ele tinha recompensado—, mas não podia descartar que o responsável fosse o homem que tinha diante dela. As palavras se congelaram em sua garganta. Era um homem alto e assombrosamente lindo. A chuva cobria o negro chapéu cogumelo, à última moda, e caia por seu rosto. Sua jaqueta de lã cinza cruzada apresentava um corte impecável, mas não foi a cinzelada perfeição de seus traços, nem a elegância de seu traje, o 96


que acelerou os batimentos do coração de Anne e impediu de articular palavra. Uns olhos cinza prateados a olhavam sem assombro. —Você dizia? —perguntou com muita educação. A chuva fria empanou suas faces acesas. Uma escuridão brumosa e crepuscular tinha formado um halo ao redor de sua cabeça loira e tinha apagado seus olhos cinza, mas não havia lugar a dúvidas: possuía traços lindos. Era o homem que a tinha recebido à entrada da Casa do Gabriel, que a tinha acompanhado até a mesa de Michel. Seu coração continuava pulsando atropeladamente. Teria os seguido? Teria seguido-a? Levava uma bengala com punho de prata e suas mãos estavam cobertas por umas luvas negras. Tinha sido ele que a tinha empurrado? —Você é afortunada. O sujeito poderia ter levado sua bolsa. Anne recordou que o diafragma se achava dentro. A bolsa estava segura a seu braço, o que tinha impedido que corresse a mesma sorte que o chapéu negro do chofer. Esmagado pelas rodas das carruagens. Apertou-o contra seu peito. —Perdão, dizia-me você? —Dizia que o varredor poderia ter roubado a bolsa - acrescentou sem alterar-se. Durante um segundo, Anne não soube se era a chuva ou o medo o que se deslizava por suas costas. Deu um passo atrás. —Você o viu? —perguntou, engolindo com força o resto da frase: - e não fez nada a respeito? Ele deu um passo para diante. —Trata-se de uma prática muito comum entre as pessoas que vivem na rua. Alguém empurra uma mulher, ou um cavalheiro mais velho, e depois o ajuda a levantar-se troca de uma moeda. Ninguém sai ferido. Com a moeda compram pão e genebra, e assim sobrevivem até o dia seguinte. Mas tinha faltado pouco para morrer. Recordou o brilho do medo nos olhos do cavalo. E o terror que tinha sentido ante a iminência da morte. E sem ter provado o diafragma. Anne lutou para continuar sendo a mulher racional e tranqüila que acreditava ter sido sempre. Antes de embarcar naquela aventura com Michel de Anges. —Compreendo - disse ela. O homem falava como se não houvesse nada de extraordinário no fato de que um cavalheiro, claramente bem acomodado, olhasse como alguém atacava uma mulher e não fizesse nada a respeito. E possivelmente em Londres, efetivamente, era sim. —Peço que me desculpe - disse Anne com a voz quebrada—, mas devo seguir meu caminho. — Você sofreu uma grande comoção, senhorita. Há uma confeitaria à volta da esquina. Permita convidá-la a uma taça de chá. Ela deu de novo um passo atrás. —Obrigado, mas não é necessário. O formoso e elegante cavalheiro a seguiu. —Insisto em convidá-la, senhorita. Já não tinha dúvidas de que o frio que deslizava por suas costas não era chuva, a não ser puro e simples medo. —Repito que não é necessário, senhor. —Sou amigo de Michel, mademoiselle, e não acredito que ele gostasse que eu não me preocupasse com seu bem-estar. Mademoiselle. Aquele homem não parecia francês. Até que falou. Michel não parecia francês. Até que falou. Duas mulheres e um homem esperavam um ônibus na esquina da rua. Evitando o olhar de Anne, voltaram-lhe as costas e desapareceram atrás de seu guarda-chuva compartilhado. Ela recuou uma vez mais, endireitando os ombros. Não era covarde. —Direi a monsieur De Anges que você se comportou como um autêntico cavalheiro. O homem de cabelo loiro se aproximou. Seu fôlego parecia uma pluma chapeada de vapor. —E não deseja saber alguma coisa mais sobre Michel, mademoiselle? Ela não pôde evitar afastar-se. —Os amigos não mexericam uns dos outros, monsieur. O homem parou. 97


—Eu também o amo, mademoiselle. A nebulosa garoa se transformou em aguaceiro. Não houve nenhum trovão que anunciasse a mudança. Nenhum raio. Só um estremecimento elétrico na consciência. Com os olhos abertos, Anne o olhou fixamente. Era a primeira vez em sua vida que ouvia alguém confessar seu amor por outra pessoa. Nem por parte de um marido para sua esposa, nem de uma mãe para seu filho. A água fria empapava a face. —Eu não amo a monsieur De Anges - ela respondeu. A chuva deslizava pelo formoso rosto do homem loiro. —Todas as mulheres que estiveram com Michel, mademoiselle, amaram-no. Mas Michel não as tinha amado, não precisava acrescentar. Michel só tinha amado a uma mulher. E estava morta. A água caía pelas bordas de seu redondo chapéu de feltro negro, agora sem pluma. O que tinha feito Michel com a pluma depois de satisfazê-la com ela? Perguntou-se inutilmente. —Você esteve me seguindo? Também o chapéu cogumelo do estranho estava empapado. —Sim. OH, Deus! Nunca imaginou que os mamilos de uma mulher podiam endurecer-se com o medo. Mas assim era. Cada inalação, cada exalação, abrasava-lhe os seios sem espartilho. Anne lutou por regular sua respiração. —Por quê? —Não quero que façam mal a Michel. Seus olhos piscaram até tirar de cima uma cegadora gota de chuva. O perigoso encontro estava se tornando um pouco cada vez mais grotesco. Tinha ouvido bem o que dizia o cavalheiro? —Você pensa que vou fazer mal a monsieur De Anges? —perguntou com incredulidade. —Michel não teve uma amante desde o incêndio que cobriu seu corpo de cicatrizes - disse, olhando-a com olhos frios, neutros, desprovidos de emoção. Sua pele brilhava como alabastro úmido—. É mais vulnerável do que você pensa. Anne recordou o quente jogo dos raios do sol sobre a virilidade do Michel. O brilho prateado do alfinete de seu chapéu. Sua paixão desatada: não te farei mal. Sua memória registrou depois o tato impessoal do ginecologista que a examinava com o gélido instrumento metálico. Os médicos tinham escutado o coração de sua mãe através da coberta protetora de uma camisola, mas ela nunca tinha tido que submeter-se ao minucioso e humilhante exame pelo qual Anne tinha passado. Fez um nó na garganta. Era mais vulnerável do que tinha suposto. Antes de Michel, nunca tinha mostrado seu corpo a ninguém, e muito menos a um médico. —Seria para mim um prazer contar com sua presença em... —Se ele a tinha seguido, então sabia onde estava residindo—... Na casa de monsieur De Anges. Poderemos assim lhe fazer participar de nossa conversa. Os olhos cinzentos do estranho permaneciam inescrutáveis; além do frio e da chuva, eram gelo prateado em contraste com o fogo violeta do Michel. —Tem medo de mim, mademoiselle? —Não, claro que não - mentiu ela. —Então, envergonha-se de ser vista com amigos de Michel? O rosto do estranho era hermético, inexpressivo: esperava a rejeição. Da mesma forma que Michel tinha sido preparado para a rejeição quando a acusou de estar envergonhada de tocá-lo, de desejá-lo. De repente, sentiu-se ridícula, de pé sob a chuva, sem um guarda-chuva sob o que proteger-se. O cabelo molhado caía pelas costas. O que a tinha deixado tão assustada? Nenhum homem se aproximaria com más intenções de uma mulher com sua idade, e muito menos se estava tão despenteada e desalinhada como se encontrava ela naquele momento. O desconhecido não poderia fazer nada em público.

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Não mais do que já te fez o varredor, ouviu que dizia uma voz interna. Anne endireitou suas costas. Sentia frio. Estava ensopada. Queria ouvir o que o estranho ia contar a respeito de Michel. —Muito bem, monsieur. Será um prazer aceitar essa taça de chá. —Obrigado - respondeu sem lhe oferecer o braço—. A confeitaria é nessa direção. Era tão alto como Michel. Talvez um pouco mais, pensou Anne enquanto se adaptava a seu passo. Os dois homens se moviam com uma graça deliciosa que, ao parecer, não custasse para eles nenhum esforço. Havia cada vez menos pessoas na rua. O gás do sistema de iluminação público iluminava as vitrines das lojas. A clientela se protegia da chuva em seu interior, com as caras distorcidas pelas gotas de água que escorriam pelos vidros, e ignoravam de onde vinha —e aonde ia— Anne Aimes. A chuva molhava seu rosto e seu pescoço. Sua determinação foi substituída pelo pânico. Algumas pessoas poderiam pensar que uma mulher que andava sem espartilho e que, além disso, guardava em sua bolsa um diafragma e uma caixa de preservativos, merecia tudo o que pudesse acontecerr, e pensou que, possivelmente, tinham razão. Era indubitável que muitos homens conheciam o Michel. E não eram precisamente seus amigos. Talvez aquele homem de olhos prateados a tivesse seguido desde que tinha ido a sua casa a fazer a bagagem e, posteriormente, quando foi visitar o procurador. Pode que soubesse quem era ela. Talvez já tivesse escrito ao senhor Little exigindo dinheiro por seu resgate. Sem advertência prévia, o estranho parou. A água escorria por sua pálida pele de alabastro. —Deveria estar assustada, mademoiselle. Uma mulher só nunca deveria acompanhar um desconhecido. A respiração de Anne ficou detida em seus pulmões. Fazendo um pequeno giro, o homem abriu uma pesada porta de madeira. O aroma dos bolos recém feitos e do café golpeou seu rosto. No interior, os abajures de gás cobertos com telas de cristal branco iluminavam um restaurante lotado de comensais. Um bebê chorava. As mulheres riam. Os homens falavam com gritos. Ela não fez o menor movimento para entrar. —Aqui você está a salvo, mademoiselle - disse examinando-a com curiosidade em seus olhos prateados—. Meu único desejo é uma taça de chá, e presumo que a você também cairá bem. A raiva fez avermelhar suas bochechas, mas entrou. Garçons com aventais brancos iam e vinham entre as mesas de ferro forjado cobertas de toalhas brancas. Oficiais, empregados de escritório, funcionários e trabalhadores se sentavam uns junto a outros. As mulheres riam com facilidade enquanto tomavam suas bebidas ou davam de comer a seus bebês. Dois meninos corriam ao redor de uma mesa. Suas mães esperavam a que descampasse tomando uma reconfortante taça de chá. Anne relaxou ligeiramente. A confeitaria era mais confortável que elegante. Ninguém a reconheceria. O estranho não esperou que oferecessem assento, mas sim fez um gesto a Anne para que se dirigisse para uma mesa vazia ao fundo do local. Se atreveria, desafiaram-na seus olhos silenciosamente. Quando chegaram a seu destino, ele retirou uma cadeira. —Por favor... —Obrigado. Anne se sentou na borda do duro assento metálico, levantando com dificuldade para permitir a ele que o empurrasse para diante. Afundou seu traseiro nas anquinhas. A gritaria incessante dos meninos a enervava. Mordeu o lábio inferior, perfeitamente consciente da água gelada que continuava umedecendo o rosto e a nuca. Mechas de seu cabelo empapado estavam soltos. O estranho tirou seu chapéu e se sentou no lado oposto da mesa. Brilhos prateados apareceram na parte de sua cabeça que tinha estado protegida da chuva. Silenciosamente, alcançou seu lenço. Anne o aceitou automaticamente se secou o nariz e as bochechas antes de devolver-lo - Haré que lo laven y que se lo envíen. Ele não o recolheu. Ela retirou a mão. —Farei que o lavem e que o enviem. —Tenho muitos lenços, mademoiselle. Asseguro-lhe que posso me permitir o luxo de perder um. 99


Não parecia irritado pelo bulício que os rodeava, nem incômodo em meio da classe média baixa londrina. Tirou as luvas negras de pele, muito devagar, descobrindo uns dedos largos, pálidos e magros. Mãos perfeitas que se ajustavam a um rosto perfeito e, sem dúvida, a um corpo igualmente perfeito. Anne apertou o lenço de algodão úmido que apenas cabia no punho, notando que sua luva de seda estava igualmente ensopada. —Você tem a mesma profissão que monsieur De Anges? —perguntou sem mais preâmbulos, um tanto surpreendida por sua audácia. —Ambos desfrutamos das mulheres - respondeu enquanto punha as luvas em cima do chapéu—, e me disseram que sou tão bom como ele em todos os sentidos. Gostaria de me pôr à prova? O sangue quente que queimava os ouvidos se estendeu até os dedos de seus pés. Anne jogou para trás seu assento, fazendo que o metal arranhasse os ladrilhos. —Está me insultando, senhor. —Estou fazendo uma pergunta honesta, mademoiselle - disse o homem de cabelo loiro, perfeitamente tranqüilo, modulando sua voz com cuidado—. Você procurou Michel. Por que não a mim? Aquela frase se impôs sobre o bulício das vozes, das risadas e dos gritos dos meninos. Anne se sentiu momentaneamente comovida diante o tom de dor que acreditou perceber na voz do estranho. Era a voz de um homem formoso e perfeito, mas ferido. Como Michel, ferido pelo fogo. Como Anne, um alhelí que nunca tinha florescido. Era inconcebível que os três fossem vítimas de uma mesma necessidade: o simples desejo de ser desejados. O chão pareceu tremer sob seu assento quando pensou, vertiginosamente, que ele podia ser dela. Por um preço. Se ela o desejasse. Tranqüilizou-se ao compreender que seus mamilos se ergueram por causa do frio, não da tentação. —Conheci Michel quando fui apresentada na sociedade em Londres - comentou com calma. Ficou esperando sua resposta, disposta ainda a fugir. —Se tivesse me conhecido primeiro, a qual dos dois teria escolhido? Havia na voz do estranho uma intensidade profunda. Uma pergunta honesta, havia dito. Merecia uma resposta honesta. —A Michel - respondeu, sustentando o olhar. —Por quê? —Por seus olhos - acrescentou sinceramente—. Brilham de paixão. Os olhos que naquele momento a olhavam resplandeciam com um fogo prateado, mas não com paixão. Michel havia dito que se sentia atraído pelas necessidades sexuais de uma mulher, e ela nem sequer podia imaginar o que podia atrair aquele homem. —Que deseja mademoiselle? —perguntou com amabilidade. Ante a pergunta, ela inclinou a cabeça para trás. —Já disse monsieur. —Mas não disse ao garçom. Anne se precaveu de que um garçom jovem e de cabelo rapado estava parado a vários passos da mesa. Parecia temeroso de aproximar-se. E seu temor era contagioso. Michel tinha devotado amizade e intimidade. Se falasse dele com um estranho, traía-o, mas se não o fizesse ficaria sem saber... Muitas coisas. —Uma taça de chá, por favor. —Muito bem, senhorita. Os olhos do estranho brilhavam como se fossem de prata pura. —Para mim o mesmo, por favor... O mesmo que pediu a senhorita. O garçom se afastou como se os cães do inferno estivessem pisando nos calcanhares. —E você também é famoso por sua habilidade para fazer com que as mulheres vejam anjos? —perguntou ousada, querendo olhar atrás da máscara do homem que pretendia ser amigo de Michel e, entretanto, era muito diferente dele.

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—Não - disse, esboçando um sorriso zombador—. Só há um homem famoso por sua habilidade para satisfazer às mulheres. Anne não pôde deter o fluxo de sangue quente que invadia suas faces. —Mas você dizia que suas habilidades eram igualmente notáveis. Qual é seu nome, se não incomodar que pergunte? O sorriso desapareceu. —Sou Gabriel, mademoiselle. —O proprietário da Casa de Gabriel? —Sim. Sentiu-se mortificada. —Então você... Quero dizer... Então você não solicita clientes? —Não, não mais - murmurou de maneira bastante provocadora—. Embora talvez, como Michel, se alguém me propuser isso... Gostaria de saber qual é meu preço, mademoiselle? Tentava deliberadamente de desconcertá-la. Ou de desprezá-la. Porque era uma mulher vulgar, embora tivesse as mesmas necessidades daqueles dois homens belos. —Por que me chama mademoiselle? —perguntou com acuidade—. Eu não falei que meu estado civil. —As mulheres casadas vêm a minha casa todas as noites porque estão insatisfeitas com seus maridos. Entretanto, quando a vi você, não tinha cara de mulher insatisfeita. O orgulho não permitiu desviar seu olhar dos olhos do homem loiro. —Qual era minha cara, monsieur? —De virgem. Sob nenhum conceito lhe daria a satisfação de saber que tinha acertado. —E agora? —Sua pele brilha de satisfação. Tem cara de ser uma mulher que se deleita com sua sexualidade. Quer saber como Michel se tornou um prostituto? O calor abrasou todo seu corpo. Sim, queria saber, mas não queria admitir sua curiosidade diante do homem que se fazia chamar Gabriel. —Quanto tempo faz que monsieur De Anges vive na Inglaterra? —perguntou sem mostrar muita emoção na voz. —Dezoito anos. Anne ficou estupefata: Michel tinha sido apresentado diante a sociedade inglesa ao mesmo tempo em que ela. Voltou rapidamente para a carga. —E quanto tempo faz que você o conhece? —Vinte e sete anos. —Conheceu-o na França? —Conhecemo-nos na França - reiterou com amabilidade, sem tirar os olhos de cima. Anne levantou o queixo, resistindo a fazer a pergunta que ele sabia que faria cedo ou tarde. —Michel é o equivalente francês do Michael. Você diz que se chama Gabriel. Ambos têm nomes de arcanjos. São seus verdadeiros nomes? —Michel é o equivalente francês do Michael - repetiu com calma, esperando... —. E meu nome é Gabriel. Anne sopesou a verdade desta afirmação. Era altamente improvável que dois franceses, dois amigos, conhecidos ambos por vender seus favores às mulheres, tivessem nomes de arcanjos. —Qual é seu sobrenome? —Não preciso de um sobrenome, mademoiselle - respondeu com certo desprezo na voz—. Sou Gabriel. Pergunte a qualquer cavalheiro - e a uma surpreendente quantidade de damas— e eles me conhecerão. Anne sentiu a pele arrepiar-se. —Você não parece gostar dos homens e das mulheres que freqüentam seu estabelecimento. 101


—O pecado é como as baratas. Sai de noite. —É possível que a pessoa que recorre a você não considere que suas necessidades são um pecado. Ele se inclinou sobre a pequena mesa redonda. —E você, o que pensa mademoiselle? —Que não deveriam ser um pecado - respondeu. Uma expressão familiar escureceu seu rosto. Tinha visto aquela mesma expressão no rosto de Michel. Uma mistura de dor e remorso. De implacabilidade. —Faça a pergunta, mademoiselle. —Se você diz que monsieur De Anges é seu amigo, por que tenta falar dele as suas costas? —Porque quero que você entenda. Entender o que? Ela notou de repente que o pranto do bebê se acalmou. Uma corrente de ar frio varreu o salão da confeitaria. Um cliente tinha saído. Ou tinha entrado. —Muito bem. Como é que você e monsieur De Anges começaram a dedicar-se a sua profissão anterior? —Conhecemo-nos no caminho para Paris. Éramos fugitivos. Nenhum dos dois tinha dinheiro ou comida. Uma senhora - a proprietária de um bordel, para ser franco— nos recolheu. Alimentou-nos, vestiu-nos e nos ensinou a maneira de devolver o que tinha investido em nós. Fugitivos. —Que idade tinham? Ele tinha umas pestanas longas, grosas e escuras, que não se moveram ante sua pergunta. —Treze anos. Ela empalideceu. —Por Deus! Eram quase uns meninos. Seus lábios se curvaram em um sorriso de brincadeira, um sorriso que ela já tinha visto nos lábios de Michel. —Mas Michel adorava mademoiselle. Adorava as mulheres, os excessos sexuais. Não vá pensar que foi obrigado. Anne estava em condições de acreditar que, efetivamente, Michel gostava. —E você não? De repente apareceu o garçom. Os pratos foram depositados com certo estrépito sobre a mesa, igual aos talheres. Sem ocultar seu nervosismo, o jovem colocou as taças brancas com seu pires frente à Anne e Gabriel. Era uma baixela de cerâmica, não de porcelana, e tampouco era bonita. Em seu desenho havia primado à utilidade e não a beleza. O moço colocou o resto do serviço. Uma rodela de limão sobre um pequeno recipiente branco, os guardanapos de linho...Anne se afastou um pouco para trás com o propósito de que o garçom tivesse o espaço necessário para enrolar e alinhar um guardanapo de linho ao lado da taça. Gabriel, ao contrário, não se moveu. As mãos do garçom tremeram visivelmente ao colocar o serviço de Gabriel. Tratava-se de um jovem de aspecto bastante efeminado que, sem lhes perguntar, agarrou a bule de porcelana branca e começou a servir. Parte do líquido fervente de cor castanha se derramou sobre do pires da Anne. —Eu servirei - indicou de maneira peremptória—. Pode retirar-se. O bule foi colocado em cima da tampa metálica da mesa. —Muito bem, senhorita. Sentindo-se tão nervosa quanto o garçom, Anne agarrou a asa curvada do bule enquanto Gabriel, com delicada educação, elevava seu pires e sua xícara. Como se não tivesse admitido que tivesse vivido na rua, igual a qualquer varredor. Como se não tivesse admitido que tinha sido forçado a prostituir-se aos treze anos. Perguntou-se confusamente por que se sentia tão incomodada. A idade de consentimento para uma moça inglesa eram os treze anos. A essa idade 102


podia vender seus favores, e aqueles que os compravam eram considerados cidadãos respeitosos com as leis. Por que os homens, igual às mulheres, não podiam ser castigados pela sociedade? O vapor quente empanava o ar; encheu a xícara de Gabriel antes de servir-se, e depois depositou o pesado bule de cerâmica ao bordo da mesa. O olhar de Anne se separou do seu. Não parecia um homem de quarenta anos; tampouco Michel. Entretanto, tinham conhecido vinte e sete anos antes, quando os dois tinham treze, essa era sua idade na atualidade. — Quer um pouco de creme, monsieur? —Não, obrigado. —Açúcar? —Três torrões, por favor. Obrigado. Por favor. Eram tremendamente educados. Ela deixou cair três torrões de açúcar em sua xícara e depois acrescentou dois à sua. Ele não esperou que lhe oferecesse o limão, mas sim tomou uma rodela com seus dedos largos, fortes e elegantes. —Nem quero nem preciso sua compaixão, mademoiselle. —Nem eu a estou oferecendo, monsieur - respondeu Anne ao tempo que desenrolava o guardanapo e a colocava sobre o colo. —Não acredito que você seja uma dessas mulheres que fogem da verdade. Anne se deu conta de que ainda tinha seu lenço na mão e de que ainda não tinha tirado as luvas. Tomar o chá com as luvas postas era o cúmulo da má educação. Depois de guardar o lenço em sua bolsa, despojou-se das luvas e as colocou debaixo do guardanapo. —Não me compadeço, monsieur—disse, procurando de novo seu olhar—. O admiro. —Admira-me, mademoiselle? —perguntou com delicadeza, enquanto sua xícara ficava suspensa entre o pires e sua boca belamente esculpida. Um calafrio desceu pela coluna vertebral de Anne, enquanto o homem levantava delicadamente a xícara com a mão esquerda. —Admiro-o—repetiu com firmeza—. Muitas pessoas em suas circunstâncias não teriam seguido adiante com tanto êxito. Agora você é o dono de seu próprio negócio, e estou segura de que é muito próspero. Os olhos prateados de Gabriel adquiriram o tom cinzento do chumbo. Voltou a colocar sua xícara sobre o pires. —E você pensa que devo me sentir orgulhoso de meu estabelecimento? Anne mexeu o chá de sua xícara com um rápido gesto de braço. —Eu estou muito agradecida de que existam estabelecimentos como o seu - acrescentou, colocando cuidadosamente a colher em cima do pires—. Supõe-se que os homens e as mulheres não devem requerer os serviços que você dispõe, mas é óbvio o fazem. Se não fosse assim, você não estaria no negócio no qual está. Mas então, monsieur, seria uma pena. Gabriel continuava perfeitamente imóvel. —Sabe por que estava tão nervoso o garçom, mademoiselle? —Não, não sei. —Porque freqüenta a Casa de Gabriel. —Pensei que seus preços eram muito altos para um garçom. —Ele não deve comprar os serviços de uma mulher. Anne tentou conter sua surpresa. Forçou a si mesmo para não virar-se e olhar o jovem que os tinha atendido na mesa e que não passava de um moço. —As mulheres compram seus serviços? Gabriel se inclinou para ela, lançando um olhar agudo. Seus olhos prateados se transformaram em duas partes de gelo. —Os homens compram seus serviços. Passaram vários segundos antes que ela pudesse captar o verdadeiro significado de suas palavras, às que resistia instintivamente. O olhar de Gabriel, entretanto, não permitia resistir.

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Queria impactá-la. Queria que sentisse rejeição. Tragando-a comoção e a repulsão, conseguiu perguntar: —E ele gosta? —Talvez. Alguns o fazem. Anne estava acostumada à delicada porcelana. Os grossos objetos de cerâmica era pouco familiares. O líquido quente fez que brotassem lágrimas em seus olhos. Resolutamente, voltou a colocar a xícara no pires. —E se não gosta, por que o faz? —Sabe qual é o preço de um pedaço de pão? Seu silêncio foi uma eloqüente resposta. —Um pedaço de pão de quatro libras vale sete peni. E sabe quanto vale o aluguel de um quarto? Anne apertou os lábios. Sabia que o aluguel de uma carruagem custava seis peni cada milha, e que por um par de meias de seda se pagavam cinco xelins. Mas não sabia quanto custava o simples feito de sobreviver. —O que faria você, mademoiselle, se tivesse que escolher entre morrer de fome na rua ou dormir toda a noite em uma cama com o estômago cheio? Em sua mente viu refletido ao gasto varredor que a tinha empurrado diante das rodas da carruagem por um xelim de prata, embora também fosse possível que não tivesse recebido mais que um peni de cobre. Ela nunca tinha tido que preocupar-se com a comida, nem pela roupa, nem por uma cama, nem por sua segurança. —Mas o garçom tem um trabalho - protestou. —Um trabalho pelo que lhe pagam doze xelins à semana, quando há homens ricos que pagariam uma fortuna por obter os favores de certos homens jovens. Uma compreensão repentina se apoderou dela. —Jovens e bonitos - acrescentou. —Sim. Homens como Gabriel. Se condenasse o moço, teria que condenar a si mesmo. Amaldiçoou Michel. E amaldiçoou o homem que estava sentado frente a ela. Não podia comportar-se como uma hipócrita. Em sua bolsa guardava o diafragma e a caixa de preservativos, testemunhas mudas de sua falta de respeitabilidade. Endireitou as costas e pensou que seus seios eretos eram uma prova adicional de sua moral relaxada. —Espero que o garçom possa reunir algum dia dinheiro o suficiente para não ter que comprometer-se em atividades que lhe são desagradáveis. E espero que algum dia encontre alguém que lhe dê prazer e que o recompense por tudo o que viveu. A fria pele de alabastro que cobria o rosto de Gabriel empalideceu. Jogou seu assento para trás e se levantou. —É hora de ir, mademoiselle. Já nos atrasamos muito. Capítulo 13 Gabriel não estava em seu estabelecimento. Ninguém o tinha visto ali depois da meia noite. Michael abriu a porta de sua casa, envolto pela chuva. Raoul deu um salto, surpreso, com umas tesouras pequenas na mão direita e um casulo murcho de cor púrpura na mão esquerda. Sua cara morena empalideceu. —Monsieur. Michael passou a seu lado e se dirigiu para a escada de mármore. Não se incomodou em fechar a porta detrás dele, já que logo voltaria a sair. Ouviu os passos do Raoul a suas costas. —Monsieur! A água! Monsieur! O barro!

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Os apuros do mordomo não preocuparam nem o mais mínimo. Naquele momento podia prescindir de tudo: da casa, de Raoul, de Anne. —Monsieur, Gabriel está na biblioteca. Michael parou. Gabriel. Na biblioteca. A fúria fria que o queimava por dentro encontrou uma saída. Sem fazer o menor ruído, girou sobre si mesmo. O servente se apressou a lhe abrir a porta da biblioteca. O ouro brilhava na luz cinza. Os livros encadernados em couro não tinham sido danificados pelas chamas nem pela fumaça. Só eles continuavam sendo familiares. A porta da biblioteca se fechou atrás dele com um suave rangido seguido pelo golpe do metal. Um movimento cintilante dançava ao fundo da sala: o fogo. Michael se sentiu invadido por uma onda de pura energia. Gabriel estava diante da lareira. Seu cabelo loiro parecia adornado por um halo de prata que brilhava tenuemente ante o resplendor daquele jogo de luzes e sombras. Um homem menos perceptivo não se deu conta da ligeira rigidez de suas costas. Um homem menos perceptivo teria vivido o inferno em sua carne assim como em seu espírito. —Onde está Anne? A voz de Michael soou suave, invadindo os quatro cantos da biblioteca. Gabriel se virou lentamente, os traços de sua face muito serenos. O mensageiro de Deus. Em uma mão segurava a bengala de punho chapeado. Tinha sido feito pelo mesmo artesão que tinha fabricado o de Michael. Olharam-se silenciosamente o um ao outro enquanto a chuva repicava e os carvões acesos se fechavam a seu redor. De cima abaixo. Desde abaixo acima. Não havia onde esconder-se. Não havia para onde correr. O Dia do Julgamento tinha chegado. —Está lá em cima, trocando as roupas molhadas - disse Gabriel finalmente. Sua voz era igualmente suave. Enchia, do mesmo modo, a biblioteca. Michael não quis enganar-se. —Nenhum de seus homens a esteve vigiando. As chamas, de uma cor azulada e laranja, perfilaram as pernas de Gabriel. Perigosas. Imprevisíveis. —Não. —Mas você sim a vigiava, não é? —Sim. —Esperou-a. —Sim. Ele a tinha esperado. Tinha-a vigiado. Tinha-a seguido. Uma sensação de agonia se apoderou de Michael. Maldição! Gabriel era seu único amigo. E o tinha traído. Não o homem, e sim a sua mulher. —Por quê? Gabriel não tentou dissimular dizendo que tinha entendido mal. —Queria conhecer a mulher pela qual estava disposto a morrer. Michael pôde sentir como aumentava sua indignação. A lembrança da luz da lua e dos cães passou por sua mente: cães de ruas que lutavam por um osso, por um território. Por uma mulher. — Estava tão seguro de que eu a deixaria afastar-se de meu lado? —perguntou com certo sarcasmo. —Não pode vigiá-la o tempo todo - respondeu Gabriel sem cair na provocação de seu amigo, - isso tem que reconhecer. Se não fosse assim, não teria pedido que meus homens a protegessem. Sim, Gabriel tinha esperado até esse momento, pensou Michael grosseiramente. Interminavelmente. Incansavelmente. Até que Anne tinha saído desprotegida da casa. E o tinha feito. Apertou seus punhos. Sabia que não podia protegê-la o tempo todo, mas não queria reconhecê-lo. Queria pensar que podia protegê-la. Precisava acreditar que podia fazê-lo. Tinha que haver em sua vida ao menos um fator que ele pudesse controlar. —Aonde se dirigiu? —Ao centro de Londres - respondeu Gabriel encolhendo-se de ombros. As compras? 105


—Como a persuadiu de que voltasse com você? —Um mendigo a empurrou diante das rodas de uma carruagem. E a salvou em troca de uma recompensa. Mas os mendigos não eram sempre suficientemente rápidos para salvar a suas vítimas. Durante um segundo não pôde respirar. Anne podia ter morrido, e ele não teria sido capaz de impedir. Nem sequer teria sido informado, e se assim fosse, teria sido muito tarde. Já era muito tarde. Fez chiar seus dentes. —O que lhe disse? —Perguntei se gostaria de provar minhas habilidades na cama. Um carvão explodiu na chaminé. —Filho de puta. Durante os anos que tinham passado juntos, Michael havia sentido muitas coisas por Gabriel, mas nunca ódio. Até agora. Odiava seus jogos. Odiava sua pele perfeita, sem manchas nem cicatrizes. Gabriel fechou os dedos ao redor do punho da bengala que, com um simples giro, transformaria-se em uma espada. —Não quer saber o que ela respondeu, Michael? Anne estava trocando de roupa... Ou fazendo a bagagem para partir? —O que?—perguntou secamente. —Disse-me que te viu a primeira vez quando foi apresentada para a sociedade. Aquela vez. Dezoito anos antes. Em um baile. A vívida imagem de Olivia Hendall-Grayson, condessa de Raleigh e primeira cliente inglesa de Michael, passou por diante de seus olhos. Gostava dos homens jovens e bonitos, igual a seu marido. As mesmas lembranças se refletiram nos olhos de Gabriel. Diferentes mulheres. Diferentes homens. Anos de prazer. Anos de dor. Um sorriso se desenhou nos lábios de Gabriel. —Não quer saber o que perguntei depois? Michael também tinha aprendido a arte da paciência. —O que lhe perguntou Gabriel? —Perguntei a qual dos dois teria preferido se tivesse me visto primeiro. A raiva e a dor se assentaram no peito de Michael. Nos vinte e sete anos que tinham passado juntos, Gabriel nunca tinha falado a respeito das escolhas que tinham feito, nem das escolhas de que tinham sido vítimas. —E qual foi sua resposta? —perguntou com suavidade. —A ti, Michael. Respondeu-me que teria escolhido você. Por seus olhos. Uma amarga ironia brilhou nos lábios de Michael. Tinha flertado com a sociedade inglesa durante treze anos e ninguém tinha reconhecido seus olhos. —Contei-lhe também como se tornou um prostituto. -Atrás de Gabriel chisparam os carvões da lareira. Atrás de Michael soava o ruído da chuva que abatia o batente da janela. —E contou o quanto gostei? Nos olhos de Gabriel não houve vacilação. —Sim. —Contou o que é Gabriel? —Ela sabe. Michael soltou um forte suspiro. —Trouxe-a para casa de novo. Por quê? —Ela pensa que eu deveria me sentir orgulhoso de meu negócio - disse Gabriel com a cara obscurecida pelas sombras—. Que os homens e as mulheres precisam de meus serviços. Michael guardou silêncio e lutou por reprimir uma onda negra de ciúmes. Aquela era uma faceta de Anne que ele não tinha visto, e que talvez nunca veria. —Por que disse isso? —perguntou desapaixonadamente. —Levei-a para tomar um chá na confeitaria onde trabalha Timothy. 106


Timothy, igual a Gabriel, tinha crescido sem lar. Era inglês e não francês. Um bastardo sem nome em qualquer língua. Gabriel tinha lhe conseguido trabalho, porque queria que aprendesse um ofício diferente da prostituição. Anne havia se surpreendido? Enojado? Sua própria vida a tinha deixado sem opções. Entenderia que havia outros que tampouco podiam escolher? Quando chegasse à hora, qual das duas necessidades recordaria? A necessidade do sexo? Ou a necessidade da vingança? —Não ia trazê-la de volta, Michael. Ele não esperava que o fizesse. —Sei. —Sabe qual foi a última coisa que me disse? Michael já não sabia o que esperar. —Que desejava que Timothy encontrasse algum dia a alguém que lhe desse prazer, que compensasse tudo o que ele tinha vivido. A emoção se enredou nas vísceras de Michael. Arrependimento, pelas cicatrizes internas que não encontravam cura. Alívio, pelo fato de que Anne tivesse visto quão pior Gabriel podia oferecer. E ao compreender que Anne tinha aceitado o mundo ferido de dois prostitutos decadentes. —Tudo terminou Gabriel - disse Michael com tranqüilidade—. Sei que mataste e a quem. E também sei por que. —Como sabe quem matei? A voz de Gabriel só deixava transparecer um educado interesse. O ar entre eles se encheu de tensão. —Sei por que vi o que fez. Se você não o tivesse feito, eu mesmo o teria matado com minhas próprias mãos - disse Michael tranqüilamente—. Vende a casa. Comece uma nova vida. —Está sugerindo que embarquemos em um ménage À trois, mon frère? —burlou-se seu amigo. Michael não precisou responder. Deixou cair o véu da simulação e, durante um instante, permitiu a si mesmo o luxo de mostrar-se abertamente como o homem que era. Desejava-a. Necessitava-a. Não a compartilharia com ninguém. Nem sequer com Gabriel. —Vá com ela, Michael. A brincadeira abandonou os olhos de Gabriel, quem, de repente, parecia cansado, com a pele cansada. —Ninguém lhe fará mal esta noite. —E sabe isso por que é... O mensageiro de Deus? —perguntou Michael, diminuindo os olhos, como se quisesse acreditar que era certo. Gabriel era para ele como o irmão que nunca tinha tido. Não havia nada que o homem pudesse lhe dar que não tivesse já. Ou sim? —Sei por que sou seu amigo. Não havia calor nos olhos prateados de Gabriel. Nenhum sinal de amizade. As palavras eram suficientes. Tinham que ser. Ele não tinha sido capaz de matar a Anne, sua amante. E não sabia se seria capaz de matar a Gabriel, seu amigo. Michael virou sobre seus passos e abriu a porta da biblioteca. Raoul estava no vestíbulo, arrumando o floreiro dos jacintos. Uma criada com touca e avental branco ajustado a um vestido negro esfregava energicamente o chão. Anne se encontrava em cima... Fazendo o que? Algo frio e úmido se deslizou por sua face. Ficou olhando o chão de carvalho, tão brilhante como um espelho, e se deu conta de que ele estava sujo pelo barro e a chuva. Tinha o cabelo preso à cabeça, assim como a camisa, que lhe ajustava ao corpo debaixo da jaqueta aberta. Anne tinha aceitado Gabriel. Ele queria que ela aceitasse a ele, e que gritasse o nome que Diane se negou a pronunciar: Michael. Queria tocá-la, assegurar-se de que estivesse a salvo. Durante uma noite mais. Anne não estava em seu quarto. O doce perfume das flores sobre a mesinha de noite fazia que o ar ficasse pesado. As caixas estampadas com pétalas de rosas estavam amontoadas em cima do divã de seda amarela. Aqueles desenhos eram a marca de fábrica de madame René, um 107


símbolo da juventude passada e da virtude desaparecida. Os primeiros vestidos novos da Anne tinham chegado enquanto eles estavam fora. Havia tantas coisas que queria fazer por ela, que queria fazer a ela. Onde estava? O vapor saía por debaixo da porta de banho. Michael a abriu. A respiração parou em seus pulmões diante a visão de Anne, e inclusive quando se deu conta, com toda claridade, de que estava nua, com o pé esquerdo apoiado na tampa do vaso, a cabeça agachada, as costas dobrada e a mão direita entre suas coxas abertas, resistiu a acreditar no que via. Anne se endireitou rapidamente e se voltou alarmada. Uma consciência repentina iluminou seus olhos, seguida de um penoso enrubescimento que cobriu a cara e o pescoço. Era evidente que não esperava ser interrompida. O borbulhar da água na banheira enchia o silêncio. Excitou-se diante a beleza de Gabriel? Perguntou-se, esperando que a dor o golpeasse inclusive enquanto seu corpo se preparava para satisfazê-la. —Eu... —disse umedecendo os lábios com a língua, uma língua rosada em comparação com o rubor que cobria as bochechas—... Estava colocando o diafragma. Recordou as perguntas que tinha feito enquanto beijava seu membro, sobre se ele tinha ejaculado alguma vez dentro da vagina de uma mulher sem a proteção de um preservativo, e se havia outros meios para prevenir a gravidez. A dor o sacudiu com a força de um cavalo desgovernado. Não tinha ido às compras; tinha visitado um médico. —Quer receber meu esperma dentro de seu corpo? —perguntou com a voz rouca. —Sim. O coração de Michael se acelerou. Ela poderia ter morrido, e tudo por poder sentir em seu interior o membro nu de um prostituto. A semente de um prostituto. —Precisa que te ajude? A lembrança de seus sucessivos fracassos ao tratar de enrolar a camisinha ao redor de seu pênis lhe cobriu a cara. Apertou os lábios com resolução. —Não, obrigado. Ela esperou que ele saísse do banheiro, e que lhe concedesse a privacidade que requeria com o objetivo de preparar-se para receber o homem que acreditava era seu amante. As últimas fervuras da água soaram nos tubos. Ele não se moveu. A incerteza brilhou nos pálidos olhos dela. —Nunca antes tinha feito algo assim. Michael não podia dizer o mesmo, já que em alguma ocasião tinha visto como uma mulher se preparava para ele: Diane. Mas não pensava nela quando olhava a Anne. Passaram vários segundos. Ela lutou sem palavras contra seu sentido de decoro, tentando decidir se comportava como a mulher desinibida que aspirava a ser ou se escondia-se atrás da segurança que brindava sua noção do pudor. Michael decidiu por ela. —Termina. Agora. Ou eu o farei por você - disse com suavidade. —Gosta de ver uma mulher introduzir dentro de seu corpo um objeto estranho, monsieur? —perguntou à defensiva. Em outra época teria sorrido ante sua ingenuidade. Agora não. —Sim, é obvio - disse deliberadamente—. Você não desfruta enquanto eu olho? Ela não respondeu. Não precisava responder. Todos eles precisavam ser desejados: Anne, Michael. Gabriel. O acanhamento saía por todos seus poros, mas Anne voltou a concentrar-se na colocação do diafragma. Gostaria de advertir de que os preservativos eram muito mais que simples dispositivos anticoncepcionais, e que se ele fosse outro homem, ela podia terminar em uma condição muito pior que a da gravidez. Sabia que não o faria. Oferecia-lhe uma intimidade que ele não tinha esperado experimentar de novo. Despojando-se de sua jaqueta molhada, deu um passo para frente para olhar mais de perto como Anne lutava para colocar o diafragma no pescoço do útero. Estava decidida a triunfar naquela batalha entre a borracha e a carne. Ficou olhando o jogo diminuto dos músculos de suas costas, o cabelo escurecido pela água que caía sobre sua pele e suas nádegas redondas, úmidas ainda e rosadas pelo banho. Inclinada para frente e sem meios para defender-se, ficava incrivelmente vulnerável - e incrivelmente formosa—, enquanto se preparava para receber seu 108


esperma. Incapaz de resistir à tentação que ela representava, passou delicadamente um dedo pela greta escura de suas nádegas e deslizou sua mão sobre a pele sensível até a base de suas costas. Anne se arqueou instintivamente. Ele sorriu com uma careta sexual de satisfação masculina. —Menti - disse. A respeito de tantas coisas—. Nunca senti nada tão suave como sua pele. O veludo de seda não respira, não palpita de desejo. Você, pelo contrário, sim. Cada vez que te toco sinto sua paixão. Diga-me o que está sentindo, Anne. Disse-me que tinha imaginado que eu te chupava, e que ao fazê-lo tocava os seios. Imaginou alguma vez que me teria dentro de você? Tocava-te com os dedos quando te perguntava o que sentiria ao te deitar comigo? Em sinal silencioso de protesto, ela ficou rígida. Com seu polegar, Michael acariciou delicadamente a pele suave entre a greta escura de suas nádegas. —Os amantes, Anne, podem compartilhar tudo - murmurou. Exceto a verdade—. Fazia? —Não - respondeu com a voz apagada. —Queria fazê-lo? —Sim. Sentia uma vertiginosa palpitação contra seu polegar, contra a palma de sua mão, dentro de seu pênis. —Por que não o fazia? —Tinha medo... Medo de comprometer minha virgindade. Começando na base de suas costas e continuando muito devagar para cima, massageou-lhe as vértebras, uma por uma, e se lembrou do tenso círculo de carne que tinha massageado — perfurado— menos de quarenta e oito horas antes. —Quando nossa relação tiver terminado se tocará com os dedos quando se lembrar de mim? —Não sei. Não sabia... Inseriria seus dedos dentro de seu corpo para aliviar a dor da solidão? Perguntou-se. Ou não sabia se ao fazê-lo recordaria dele, um prostituto com a pele marcada pelas cicatrizes que tinha traído sua confiança? —Se deitará com outro homem? —pressionou-a. —Não - negou ela imediatamente. Michael não pôde sufocar a explosão de selvagem satisfação que produziu sua resposta. Não queria que outro homem fizesse as coisas que ele próprio tinha feito as coisas que tinha feito com ele... Uma sombra de cor púrpura obscureceu a pele pálida e suave que havia entre os ombros de Anne. Tocou-a com gentileza. —Tem um machucado. Ela estremeceu. Pela dor? Pela lembrança? —Um varredor me empurrou. Um varredor...As palpitações que sentia dentro de seu pênis se expandiram por seu corpo e se alojaram em suas têmporas. Uma voluta de vapor envolvia a cabeça agachada de Anne. A pele sob seus dedos continuava contraindo-se e estirando-se. A contusão tinha sido causada por um objeto contundente. Gabriel havia dito que um mendigo a tinha empurrado. Não havia razão para que um varredor recorresse à violência para receber uns poucos peni, nem para que a golpeasse com o pau da vassoura quando podia empurrá-la, simplesmente, com a mão. Uma noite mais, tinha prometido Gabriel. O mensageiro, mas não o mensageiro de Deus...Uma dor aguda revolveu os intestinos. Gabriel, igual a Michael, tinha sido incapaz de matar a Anne Aimes, uma solteirona cujo único crime era seu desejo de ser desejada? Inclinando-se para ela, beijou a contusão, lambendo-a ligeiramente, pedindo perdão em silencio pela ferida que dois anjos caídos lhe tinham feito. E continuariam fazendo. O arrependimento não era dissuasivo. Endireitando-se, desabotoou as calças. Seus dedos acariciaram a suavidade aveludada e cheia de suas nádegas. —Me avise quando tiver terminado...

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—O que está fazendo? —perguntou com a voz rouca. Debaixo de seu desejo se escondia a inquietação. —Me preparando para você - respondeu com aspereza, libertando seu pênis ereto. Anne se endireitou, golpeando seu peito com suas costas. O linho gelado e empapado de sua camisa se aderiu a sua pele quente. Uma mão de Michael deslizou até sua perna esquerda antes que pudesse baixar a da tampa do vaso. —Não. Não se afaste de mim. Sua perna tremeu. —Estas frio. E molhado. Mas não se afastou. As necessidades de uma solteirona... As necessidades de um prostituto. Tinha uma noite mais para satisfazê-las. Apertando os dentes, dobrou seus joelhos. Ela estava quente. Úmida. Os lábios sedosamente suaves de sua vagina lhe deram a boas vindas. Anne ficou sem respiração. —O médico me disse que a vagina de uma mulher se estreita nesta posição. —Sim. Aproximou seu sexo, com gentileza, do dela. O calor líquido de seu corpo inflamou as costas. Anne contraiu seus músculos. —Relaxe - lhe sussurrou. —Estou relaxada—respondeu rapidamente. Estava assustada. E em efeito, ele também estava. —Não quero te machucar, Anne. Ajude-me. Ajude-me a resistir uma noite mais. —Como? —Se toque - disse enquanto esfregava a cabeça de seu pênis contra o tenso anel de sua vagina. Carne contra carne. Essências misturadas. Masculina. Feminina. Prostituto. Solteirona—. Mostre-me como se toca quando pensa em mim. Ela ficou rígida ante o impacto. —Não posso. —Sim pode - assegurou agarrando sua mão direita e colocando-a sobre seus seios. Fechou seus dedos em sinal de rejeição. —Vou penetrar-te - disse de maneira discordante—, e quando o fizer quero que se toque. No futuro, quero que lembre. Que recorde a suavidade aqui - acrescentou pressionando as mãos contra seus seios ao tempo que começava a atravessar sua tensa vagina. Anne ofegou, abrindo involuntariamente os dedos para deter a dor—. E que recorde a dureza que há dentro de você. Como Michael a lembraria. Naquele momento. Naquele dia. O homem tinha lhe arrebatado tudo... Tudo menos aquela noite. Moldou a mão de Anne, obrigando-a a adaptar-se a seus seios, e a penetrou um pouco mais. Ela se agarrou a seu redor, mais apertada que um punho. Uma solteirona que tinha saboreado os prazeres da carne, mas que ainda devia experimentar a dor de sua traição. Sete mortes, e duas mais que chegariam… —Seus mamilos estão duros, Anne? Diga-me . Dites moi. O francês saiu de sua boca naturalmente, como se fosse uma reminiscência do homem que estava acostumado a ser. Sua vagina se estreitou sobre seu membro invasor. —Sim. —Se soltar sua coxa, permanecerá aberta para mim? Os músculos de sua perna se esticaram sob seus dedos. —Sim. —E me receberá por completo? Se lhe desse a oportunidade de escolher, escolheria ao Michael tanto quanto Michel? —Tentarei. Gabriel tinha tentado? Soltou-lhe lentamente a coxa. Anne deixou sua perna na posição em que estava. Ondas de prazer diminutas contraíam sua vagina. Agarrou com a mão o ventre, 110


sentindo sua suavidade, seu calor, suas contrações internas. Não o suficiente. Com a virilha curvando-se sobre suas nádegas, penetrou-a outro centímetro. —Espera - disse ela jogando a cabeça para trás, com todo seu corpo estremecido. Michael parou, sacudindo-se no exterior. O interior. Mordiscou-lhe a orelha, tentando afugentar o medo. Seu medo. —O que houve? —O diafragma... Ficou quieto, lutando contra uma punhalada de esperança, de querer sobreviver. Embora fosse através de uma criança. —Está colocado? —Não. Sim. Não recordo de ter me sentido assim. Michael recordava... A risada dos olhos prateados e de Gabriel olhando a um moço inglês, torpe e meio morto de fome, que roubava um pedaço de pão francês. Michael recordava...O suor irritante que o cegava enquanto trabalhava em excesso sobre madame, aprendendo a agradar a uma mulher. Michael recordava... As horas intermináveis que tinha passado esperando que o dia terminasse e a que caísse a noite, com sua cabeça muito perto da de Gabriel, em uma sala fechada, enquanto ensinavam aos moços franceses a ler e a escrever. A ser o cavalheiro que nenhum dos dois estava destinado a ser. Voltou para a realidade, enterrando suas lembranças. Os músculos de Anne lutavam por adaptar-se à penetração total, sugando-o como uma boca faminta. O céu. O inferno. As revelações. A verdade revelada. Michael roçou a cabeça dela com seus lábios. —Shhhh. Tudo vai bem. Mais mentiras. —Eu... Sinto-te diferente. Enquanto ela ia adquirindo confiança, transformava-se no único vínculo dele com a prudência em um mundo que se tornou totalmente louco. —Este sou eu - murmurou com crueldade—. Minha carne. Não uma simples borracha. Retirou-se devagar, criando nela um vazio. —Sente-o? —disse ela com palavras entrecortadas. Ele o sentia. O prazer dela. Abraçando-o. A dor que crescia em seu interior. Esperando liberar-se. Ele sentia tudo. Michael a penetrou profundamente, lhe fazendo sentir tudo. A dor. O prazer. O que tinha dado o homem a Gabriel que Michael não pudesse dar? Anne procurou seus lábios, seu corpo, seu pênis, recebendo-o inteiro. Todo o seu. —Quero saber... —disse com voz ofegante. Ele ficou olhando o perfil de seu rosto. A umidade cobria suas pestanas. Seu cabelo molhado se aderia às cicatrizes de suas bochechas. —O que? —sussurrou-lhe ao ouvido—. O que quer saber? —Quero saber o que sente um homem quando está dentro de uma mulher. Como agora. Ele se retirou devagar, deslizando sua carne ardente entre seu pêlo púbico, elástico e úmido, para depois acariciar seus clitóris inchado com seus dedos indicadores e polegar. Era suave e sedoso por fora, mas em seu interior era tão duro como seu pênis. Ela estremeceu entre seus dedos. —Quer saber o que sinto Anne Aimes? —Sim - disse, respirando profundamente; as mãos ao redor de seus seios subiam e baixavam em uníssono—. Quero saber. —Sinto - murmurou—. Que me aperta. Que palpita ao redor de mim. Que se expande com cada pulsar de seu coração. Suave e ritmicamente, pressionou contra ela seu membro ereto, lhe mostrando o que sentia. Perguntando-se durante quanto tempo Gabriel tinha mentido. Dias? Semanas? Anos? Anne sentiria a mesma sensação de traição?

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—Segue meu ritmo - disse introduzindo-se dentro dela, duro, como se quisesse chegar até o mais profundo de seu ser, como se não existisse nenhum homem, nem Gabriel. Só eles, Anne e Michael—. Quando pressionar seus clitóris, me aperte a bitte. Agora. Estou saindo. Aperte-me. Ele apertou a ela, sentindo os batimentos do coração da vida entre seus dedos, uma vida que podia extinguir-se facilmente. —Michel... —suspirou Anne. —Shhhh... Relaxe. Tem que me segurar, como eu estou te segurando... Queria saber o que sinto quando estou dentro de você. Isto é o que sinto. Que me agarra. Forte. Mais forte. Assim... Sim. Agora relaxe. Aperte-me, me libere como os batimentos de seu coração. Sim, Deus, sim! Assim. C'est bon —cantarolou, afundando-se no ritmo, entrando, saindo, com os dedos relaxados, contraídos, para cima, para baixo, dentro, fora, os dois encadeados em um só corpo, em um só sexo—. Sente o bem que me faz sentir, Anne...Procurando a calidez de seu pescoço, esfregou-o com sua face direita, para frente e para trás, para trás e para frente, inalando seu perfume, absorvendo sua suavidade, sua paixão. A essência de Anne Aimes. Mas durante quanto tempo? A respiração entrecortada harmonizava com a cadência de seus corpos. O dela. O dele. Ele podia sentir sua umidade, podia ouvir a dureza que a penetrava. Uma gota cristalina de água caiu sobre seu seio esquerdo. Chuva? Suor? Lágrimas? Ele tinha chorado quando o homem o prendeu. Aquela vez. O homem riu. Michael não tinha chorado depois. Agasalhando-a com seu braço e colocando uma mão em cima do seio, atraiu as costas de Anne para seu peito até que a resistência dela se misturou com sua camisa e não houve no mundo nada mais que o impulso de seu pênis em sua vagina e o palpitar de seus clitóris entre seus dedos: sem passado, sem futuro...O tempo se desintegrou. Sentiu-o em sua masculinidade; em seus dedos. Sentiu-o contra seus lábios e contra sua língua quando a voz dela começou a gritar: —Michel! OH, Deus! Michel! -gritava - Michel, Michel, Michel! Ele afundou seus dentes no pescoço de Anne para deter suas palavras, que eram também suas palavras: meu nome é Michael. Diane esperava nos sonhos de Michael, com seu corpo escurecido pelo calor e o cabelo transformado em um labirinto de chamas. Como a tinha visto a última vez. —Amo você, Michel. —Não faça isso, Diane. Por favor. Me deixe te ajudar. Eu posso te ajudar, maldição. Dê-me uma oportunidade. —Não pode me ajudar, mon amour, mas pode se unir a mim. A todos nós. Michael se afastou da pressão de seus dedos, mas não pôde escapar de seu contato, não pôde separar suas mãos das dela. Sua carne o destruía, da mesma forma que seu passado destruíra a ela. Uma fumaça espessa subia por seu nariz: o fôlego de Diane. —Estamos te esperando, Michel. Little apareceu atrás dela, com seus lábios carbonizados, olhando através de seus olhos frágeis e acusadores. Uns braços rodearam Michael: seus joelhos, sua cintura, seus ombros, seu pescoço. Menino, adulto, mulher, homem, todos os que ele amava o abraçavam. E todos estavam mortos. O fogo lambeu sua face: a língua de Diane. —Sabe o que ele nos fez, Michel? Michael queria gritar. Queria vomitar. Queria negar a verdade. Mas no final não pôde fazê-lo. —Sim. Sei o que te fez. Sabia o que o homem tinha feito a todos eles. E sabia, especialmente, o que tinha feito a Diane. Michael era só um menino quando o homem o prendeu. Diane era uma mulher, com um corpo de mulher e as necessidades de uma mulher. O homem tinha arrebatado tudo. Como tinha arrebatado a infância de Michael. De repente era Gabriel, e não Diane, quem o retinha. A pele de Gabriel se obscureceu e seu cabelo loiro se cobriu de chamas azuis e laranjas. Inclinou sua cara acesa contra a de Michael. 112


—Sabe o te fiz Michael? Capítulo 14 O ódio o tinha dominado durante toda a vida, palpitando dentro de seu peito como o coração de um animal enjaulado. Era o que o mantinha vivo durante os últimos vinte e nove anos. Era a única razão pela qual agora vivia no inferno. Habilmente, tirou o freio metálico da cadeira de rodas. O homem sentado nela não fez o menor ruído. Tinha as costas direita, ao contrário que suas pernas. O final da escada estava só três metros atrás deles. Seria tão simples dar a volta na cadeira... O suor escorria em sua testa. A imagem de derrubar a cadeira de rodas se representou tão vívida em sua mente que quase pôde ouvir o estalo continuado e a exclamação surpreendida do homem: o que acha que está fazendo? Vou matá-lo, senhor. Sua imaginação parou nesse ponto. As palavras não produziriam o medo que tinha imaginado tão intensamente: só provocariam risada. O homem sabia que ele não tinha a coragem de enfrentar às conseqüências de seus atos: nem passadas nem pressente. —Faz um pouco de frio para esta época do ano. Não acha, velho amigo? Apertou os dentes diante da voz familiar e zombadora. O homem sabia o que estava pensando. Olhando ao gentil chão de mogno e não à nuca do homem, coberta de grossos cabelos cinza, respondeu educadamente: —Sim, senhor. Com a cara inexpressiva, tentou evitar que notasse o ódio tentando afastar aqueles pensamentos, empurrando a cadeira pelo corredor em penumbra, longe da tentação insuportável. As portas fechadas de mogno com o passar do corredor foram testemunhas de seus firmes passos. Candelabros de cristal e de bronze, pendurados nas paredes, alinhavam-se a ambos os lados do corredor ricamente revestido de painéis de madeira. Uma violenta luz elétrica iluminava pinturas muito caras emolduradas em dourados, uma mesa Chippendale e uma poltrona rococó estofada em seda de damasco rosa. O homem gostava de afirmar que tinha pertencido a Napoleão I, outro senhor de homens. Pararam diante a entrada da penúltima porta. Colocou com precaução o freio à cadeira de rodas, antes de virar-se para abrir a porta do quarto. Pesadas cortinas marrom, que cobriam as janelas de ambos os lados da lareira de mogno, estavam fechadas. A roupa de cama tinha sido aberta, e o fino linho branco contrastava com o grosso veludo marrom. Um livro repousava em cima da mesinha de noite, junto a um abajur. Suas páginas gravadas em ouro brilhavam a luz. A alta tela desenhava sombras na parede. Tudo estava em perfeita ordem. O homem, sentado onde ele o tinha deixado, não movia sua cabeça de cabelo cinza. Em silêncio e com solenidade, ele tirou o freio à cadeira e a empurrou através da soleira. —Sentarei ao lado do fogo. Aí pode me dar o banho. —Muito bem, senhor. Não sabia qual das duas opções era mais repulsiva: se banhar o homem na banheira ou lhe dar um banho com a esponja. —Mas primeiro necessito do urinol. Ele ficou rígido. O asco arrepiou a pele. Era um trabalho desnecessário, posto que o homem era capaz de fazê-lo por si mesmo. Estava castigando-o por seus pensamentos caprichosos. Apertou as mãos. Deus todopoderoso. Havia ocasiões nas quais não se importava se o enforcassem. Mas morrer não era o que o mais atemorizava, mais sim aquilo que vinha depois da morte. Retirou o urinol metálico do banheiro, e depois se ajoelhou diante do fogo, ao pé da cadeira de rodas. Podia sentir os olhos do homem sobre ele, e sua carne flácida debaixo de suas roupas de lã. Atrás dele, o fogo esquentava as costas. Contendo a respiração, tirou o pênis do homem da abertura de sua cueca e suas calças e inclinou o urinol. O relógio de mármore que havia em cima do suporte da lareira marcava ruidosamente os segundos. E então... Uma destilação de líquido amarelo começou a derramar-se sobre o frio metal. 113


—Me limpe. É um bom moço. A voz do homem era insolente. Invadiu-o um ligeiro enjôo. O bastardo. Jogava com ele como os gatos com os coelhos feridos. Com crueldade. Deliberadamente. Com o pleno convencimento de que o animal não pode escapar. Com as mãos trêmulas, tirou de seu bolso uma toalha e com ela limpou a cabeça do pênis do homem. —Depois de tudo, acredito que não preciso de um banho. Eu gostaria de descansar. Respirando com dificuldade, arrumou a roupa do homem e ficou de pé, com o urinol na mão. O homem jogou a cabeça para trás. —Não deseja me agradecer por haver te liberado de um dever tão desagradável? Durante um segundo interminável pensou em dizer ao homem o que desejava exatamente. Sua morte. Seu enterro. E que sua carne se apodrecesse, consumida pelos vermes. —Obrigado, senhor—disse com voz inexpressiva. No banheiro branco, de aparência asséptica, esvaziou o conteúdo do urinol no vaso. Deixou que sua testa descansasse brevemente contra o espelho do lavabo enquanto jogava água no recipiente metálico. Em ocasiões se perguntava se a dor e a paralisia tinham desenquadrado o homem, mas então olhava seus pálidos olhos violetas e via a verdade. Os últimos vinte e nove anos tinham ensinado que Deus não existia, embora ainda acreditasse em Satanás. O homem destilava maldade por todos seus poros. Um estremecimento atravessou seu corpo. Não permitiria que o destruísse. Tudo o que tinha que fazer era resistir uns minutos mais. Quando o homem estivesse na cama, ele poderia procurar consolo. Preparou o aleijado em silêncio: despiu-o, vestiu-o com uma camisa de dormir de flanela, acomodou-o no colchão de plumas de ganso, ajustou os travesseiros sob sua cabeça e lhe cobriu as pernas murchas com as mantas. O homem estava contente, com seus pensamentos ocupados em sua última presa. Se obrigou a concentrar-se nos rituais noturnos que tinha executado durante vinte e nove anos, em vez de dar rédea solta a seu desejo entristecedor de afogá-lo com o travesseiro ou as mantas até que sua cara enrugada passasse desta para a melhor e ele ficasse livre. O cabelo da nuca se arrepiou e, levantando a vista, ficou petrificado ante o olhar glacial de seu amo. —Fez os acertos necessários para que os serventes saiam de férias amanhã pela manhã? —Sim. —Os caixões estão preparados? Endireitou-se devagar, tentando ocultar seu medo e sua repugnância. —Estão preparados. —E está contente de voltar para Dover depois de sua estadia em Londres? —Sim, senhor. Obrigou a si mesmo mostrar-se complacente, quando tudo o que queria era matar o homem e sair. Tinha matado a tantos homens... Por que não podia decidir-se? Mas sabia o porquê. O medo o obrigava a ser obediente, como os cães que cuidavam a propriedade. —Precisa de algo mais, senhor? Nos lábios murchos do homem se desenhou um sorriso zombador. —A senhora Ghetty despertou sua consciência? Sentia como se suas vértebras fossem de chumbo. Como as do homem. Fazia pouco tempo que seus encontros com a cozinheira viúva tinham sido descobertos. Sem dúvida, um dos muitos serventes, animado pelos generosos salários, havia se sentido obrigado a difundir a notícia de que o ajudante de câmara do pobre amo paralítico fazia incursões à cozinha com mais freqüência do que se costumava. A senhora Ghetty tinha dado afeto, talvez inclusive amor, mas não tinha despertado sua consciência. Se o tivesse feito, não estaria levando a cabo os planos do homem. Mas podia realizá-los, e, de uma vez, rezar para que seu instigador morresse, logo, por causas naturais. As rodas se puseram em movimento, e nada poderia as deter agora. —Tudo se tem feito de acordo com suas instruções - disse com uma voz neutra. A satisfação do homem se podia sentir no ar. 114


—Excelente. Agora pode ir foder com minha cozinheira. Deu a volta, parando, com a mão no pomo da porta. A pergunta saiu do mais profundo de sua alma: —por quê? Não havia nenhuma razão lógica que pudesse explicar a sucessão dos acontecimentos, nem passados nem pressente. Elevando a mão, o homem alcançou o livro de couro. Despedindo-o. Ignorando sua pergunta. Ignorando seu valor como ser humano. Não esperava uma resposta. Nem a teria recebido. Tudo o que podia fazer era seguir as instruções do homem e confiar em não ceder ante a raiva. Capítulo 15 Uma sombra caiu sobre suas pálpebras, acompanhada pelo som de uma respiração. A morte espreitava. Michael despertou de repente. Olhou para cima e viu a cara de Raoul. O sonho sumiu, sendo substituído por um certo alarme. Os perfumes terrestres do sexo, do suor e das rosas alagavam a estadia. Um amanhecer pálido se filtrava através das finas cortinas de seda amarela. Igual à chuva, a noite tinha passado. A cara do mordomo era preocupada, e seus traços imprecisos a fraca luz do abajur de azeite. Um gorro de noite, tecido em lã branca, adornava sua cabeça, em contraste com sua pele escura. Estava vestido com um robe escoces. Não dava a impressão de ser um homem com a missão de assassinar a alguém. Uma olhada superficial revelou que Raoul não levava nenhuma pistola nem uma faca, ao menos à vista. —O que aconteceu? —perguntou Michael em voz baixa e neutra. A cabeça da Anne descansava sobre seu braço esquerdo; suas suaves nádegas lhe pressionavam o quadril. Sua respiração era profunda; dormia o sono do esgotamento, seu corpo satisfeito, cheio de sua semente. Não queria despertá-la se não fosse necessário. Se fosse necessário... Michael tentaria chegar à mesinha de noite, rapidamente, para salvá-la. Devagar e com delicadeza, afastou a cabeça de seu braço, intumescido pela falta de circulação. —O que houve? —perguntou de novo em um tom que não passava de um sussurro. —Trata-se de monsieur Gabriel. Raoul também falava em voz baixa, para não despertar à mulher que dormia. Michel se levantou. —O que aconteceu com ele? —Um moço trouxe uma mensagem de monsieur Gastón. Reconheceu o nome; Gastón era o administrador da Casa de Gabriel. —E? —O moço disse que se produziu um incêndio na casa de monsieur Gabriel, e que está ferido, monsieur. A cama cambaleou sob Michael. Gabriel. Em um incêndio. Gabriel. Queimado. Gabriel. A oitava vítima. Anne sonhou que ouvia vozes, e que Michael a agasalhava com as mantas - como se fosse a menina que nunca tinha sido—, beijando-a castamente na face com um suspiro em seus lábios sedosos e quente fôlego. Depois apagou a lamparina e partiu. Não tinha sido um sonho. Os lençóis estavam frios. Úmidos. A carne entre suas coxas estava quente. Úmida. Michael, efetivamente, tinha substituído o tato do ginecologista pelo seu próprio. Sentia que cada centímetro de seu corpo ardia por causa do contato de sua pele, enquanto que seu corpo parecia vazio. Notava como se ele se introduziu até o mais profundo de seu ser. Estava muito tranqüila, tentando sentir o diafragma. Não podia. A luz aquosa do sol atravessava as delicadas cortinas de seda amarela. Michael tinha ejaculado três vezes dentro dela, compartilhando a essência de seu prazer. Um aroma almiscarado, que não era de suor,

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sobrepunha-se à doçura das rosas. Levantou-se rapidamente da cama, lutando por liberar-se dos lençóis de seda e de seu cabelo emaranhado. Os lençóis também cheiravam a almíscar. Apoiou seus pés sobre o frio chão de madeira. Um fluido quente se deslizava pelas coxas. Michel. Anne tocou o líquido viscoso e olhou o dedo à luz pálida que entrava no quarto. Estava coberto por uma substância branca e densa. Came. Blanc. Salgueiro. O esperma de um homem. Era a fonte desse aroma almiscarado que impregnava os lençóis e perfumava seu corpo. Tocou o estômago, recordando os jorros quentes de sua ejaculação, e de repente se sentiu vorazmente faminta. Faminta de diversão. De excitação. De amor. De todas essas coisas que lhe tinham negado. Até agora. Atuando por puro impulso, retirou as mantas da cama e inspecionou os lençóis. Círculos úmidos assinalavam a evidência de sua paixão. Michel tinha saboreado a mistura de seus prazeres e depois a tinha beijado, compartilhando com ela o perfume de seu êxtase mútuo. Uma solteirona suscetível teria sentido repulsão. Mas ela já não se sentia uma solteirona, e sim uma mulher que tinha experimentado as fantasias femininas. Delicadamente limpou seu dedo contra os lençóis de seda, deixando atrás dela uma prova mais. Fixou-se nas caixas que se amontoavam sobre o divã de seda amarela. Estavam estampadas com pétalas de rosas, uma marca muito pouco masculina. Com curiosidade, desatou a fita da primeira delas. Continha uma jaqueta cruzada, de seda azul cinzenta mesclada com lã, com um pescoço alto, de estilo militar, e grandes botões prateados. Examinou o conteúdo da caixa que havia debaixo. Descobriu seis pares de calções de seda adornados com encaixes. Era Natal em abril. Madame René tinha incluído regatas e sutiãs de seda, um espartilho de cetim negro, várias meias de seda e um anquinhas ridiculamente frívola e sem fios, com cinco fileiras de dobras. Bolsas. Chapéus. Sapatos. Roupas que estupendamente bem em uma mulher atraente, e não em uma solteirona empedernida. A última caixa, maior que as demais, continha uma saia de seda azul misturada com lã. Estava bordada com um volante de pequenas dobras e, por diante, tinha sete fileiras de fitas prateadas. Madame René era uma professora na arte de misturar a elegância com a simplicidade, e seus objetos valiam a pequena fortuna que tinha cobrado. Anne decidiu que colocaria as criações da couturière depois de tomar um banho. Entrou no closet sem espelhos. Uma estranha pontada lhe golpeou o peito. Michel tinha colocado sobre uma estante as presilhas que ela usava para segurar o cabelo. Quantos anos levou para aquele moço de treze anos transformar-se no homem sexualmente perito que era agora? Escovou devagar o enredado cabelo antes de assegurá-lo com as presilhas para cima. As lamparinas de parede do banheiro, com suas pequenas chamas, iluminavam ambos os lados do lavabo de mármore. Outra cortesia. Havia muitas coisas que teria gostado de perguntar ao amigo de Michel, aquele amigo de cabelo loiro e olhos prateados, pensou enquanto subia a luz das lamparinas. Os quartos únicos da elegante casa de Michel que não estavam adornados com acertos florais como eram o banheiro de acima e o de baixo. Por que se rodeava um homem de flores? Por que dormia com o abajur aceso ao lado da cama um homem que tinha pânico ao fogo? Gabriel havia se sentido muito cômodo na confeitaria. Anne não podia imaginar Michel em um entorno similar, tomando chá em uma taça de cerâmica. Como era possível que dois homens tão opostos tivessem sido amigos durante vinte e sete anos? Inclinando-se sobre a banheira de porcelana, abriu o grifo de marfim e se assombrou de novo ante o vapor de água quente que saía. Quando retornasse a Dover, o primeiro que faria seria renovar as torneiras dos banheiros. Pareceu mais fácil tirar o diafragma que colocar e depois de lavá-lo, voltou a colocar o círculo de borracha na pequena caixa de cor rosada que tinha deixado em cima do suporte do lavabo. A água do banho fez arder à pele agradavelmente. Contemplou o vaso de cor marfim e turquesa, perguntando-se se alguma vez poderia voltar a entrar em um banheiro sem lembrar-se da noite anterior. Tinha gostado que ele a observasse. Levantando as mãos, acariciou-se a curva do pescoço, ali onde ele a tinha mordido no momento culminante do clímax. Tinha gostado inclusive daquilo. Banhou-se e se secou com rapidez. Certamente, Michel estaria lá em baixo. Era possível 116


que depois do café da manhã permitisse voltar a colocar o diafragma. Em seus lábios apareceu um sorriso que não era, decididamente, o de uma solteirona. Durante um breve instante pensou em chamar uma criada para que a ajudasse a vestir-se, mas não o fez. O único objeto que requeria algum tipo de assistência era o espartilho de cetim negro. E embora este último não deixasse de parecer atraente, era mais refrescante que seus seios e seus pulmões não estivessem oprimidos pelas baleias. A liberdade, decidiu, era tão embriagadora quanto à satisfação sexual. Pensou, com uma leve sensação de vertigem, que, melhor, eram os espartilhos que mantinham as mulheres subjugadas. Abriu a porta do banheiro e se lembrou da caixa que tinha deixado em cima do suporte do lavabo. O diafragma era leve como uma pluma. O que aconteceria se a criada, ao fazer a limpeza, pensasse que a caixa estava vazia e a atirasse no lixo? E se a abrisse e reconhecesse o pequeno círculo de borracha? Recuou para recolher a caixa de cor rosada. Depois, abriu a gaveta da mesinha de noite, junto à cama, e a depositou ao lado dos preservativos de Michel. O afiado metal brilhou junto à caixa decorada com o rosto severo do Gladstone. Anne recordou o maligno brilho de luz que dançava na ponta do alfinete de seu chapéu. Aquilo era muito mais mortífero. Um calafrio que não tinha nada que ver com o tempo desceu por suas costas. Seu pai tinha tido uma arma em sua mesinha de noite. Para proteger-se, dizia. Por orgulho masculino, tinha suspeitado Anne. Por que um homem guardava uma faca junto a sua cama? Por que lhe tremiam os joelhos? Deslizou seus dedos dentro da gaveta, tropeçando com algo duro. Pesado. Uma pistola. Era mais compacta do que a que possuía seu pai. Mais contundente. Mais letal. O metal era suave e liso, como se o tivessem tocado recentemente. Michel era tão aficionado às armas como aos corpos das mulheres...Aquela idéia já não a abandonaria. Todas as advertências que sua instituição tinha feito, passaram por sua mente. Que os meninos fariam mal por inveja. Que os homens a seqüestrariam para ficar com sua fortuna. Depositou a caixa de cor rosada no interior da gaveta, e o fechou com tanta força que o abajur cambaleou, enquanto uma chuva de pétalas de rosa caía sobre a mesinha. Muitos homens eram hábeis com as armas. Havia mais ladrões em Londres que nos subúrbios solitárias de Dover. Michel não lhe faria mal. Havia dito que não o faria. Depois de jogar no chão o alfinete de seu chapéu. Abriu a porta do quarto que tinha sido testemunha de seu voluptuoso abandono, e ali encontrou cara a cara com um homem de cabelos dourados. Um homem muito arrumado. Seus olhos eram de cor azul celeste. Ela afogou um grito. Ele vestia uma librié negra. Era um criado. Não um assaltante. O criado de cabelos dourados recuou, fazendo uma reverência. —Peço que me perdoe senhorita, mas me pareceu ouvir um ruído. Quer tomar agora seu café da manhã? —Sim, obrigado - respondeu de maneira educada, tentando controlar seus nervos para sufocar um protesto que a uma dama não estava permitida—. Poderia me acompanhar aonde se encontre monsieur De Anges, por favor? —Monsieur saiu. Que escuro parecia o corredor. Que estúpidos tinham sido seus temores anteriores. Que magras eram as paredes. Se o criado tinha ouvido o golpe com que tinha fechado a gaveta da mesinha de noite, era indubitável que tinha ouvido, igual aos outros criados, seus gritos da noite anterior. —Então me leve a salão do café da manhã - disse inclinando o queixo, o desafiando a que pensasse o que quisesse. O criado se afastou. Seus olhos azuis pareciam inescrutáveis. —Certamente, senhorita. Por aqui... O mordomo a esperava no primeiro piso, junto à escada. A prata brilhava: em seu cabelo, em suas luvas brancas. —Mademoiselle Aimes. A tensão fez que seu estômago se contraísse. O mordomo aproximou a bandeja prateada do correio. O criado de cabelos dourados esperava junto ao corrimão da escada como uma 117


testemunha silenciosa. De uma forma similar, dois dias antes, Raoul tinha alcançado a bandeja a Michel, enquanto ela esperava em silêncio. E a carta não havia trazido boas notícias. Ela se agarrou ao corrimão de ferro. —Sim? —Esta carta chegou para ser entregue imediatamente, mademoiselle - anunciou com os olhos em branco—. Está dirigida a você. Anne suspirou de alívio, pensando que o senhor Little tinha retornado do Lincolnshire. Fazendo uma inclinação, Raoul lhe tendeu a bandeja de prata. —Obrigado - disse ela, tomando a carta. Desceu o último degrau, deu a volta ao envelope branco e leu seu nome. Não era a letra laboriosa do senhor Little e, além disso, a carta tinha sido enviada ao endereço de sua casa. Anne franziu o cenho. O envelope estava selado, mas não tinha sido enviado por correio em Londres nem tinha o endereço do remetente. —Senhorita... Ela levantou o olhar para o criado de cabelos dourados. —A sala do café da manhã é por aqui... —Obrigado. Anne não precisava que a guiassem. O delicioso aroma do presunto e do toucinho se estendia por todo o corredor. O criado abriu a porta de uma pequena e acolhedora salinha. A luz do sol cintilava sobre a madeira e a prata polidas. As portas envidraçadas se abriam a um jardim retangular. As roseiras, ainda sem flores, alinhavam-se junto à parede de tijolo. Outro criado - moreno e de olhos ambarinos retirou o assento da mesa de carvalho redonda. Sobre um aparador, também de carvalho, havia uma grande variedade de pratos de prata. —O que gostaria de tomar, mademoiselle? O criado falava com um pronunciado acento francês, arrastando os res. O rubor cobriu as bochechas de Anne. Todos os franceses conjugavam tão cavalheirescamente o verbo gostar? —Ovos com toucinho e torradas, por favor. —Très ben. Inglês. Francês. Os serventes de Michel não eram muito diferentes dos seus. Mais arrumados, talvez, mas igualmente impessoais. Era ridículo atemorizar-se ante a opinião dos serventes. Era indubitável que valorizavam muito mais um salário decente que a moral de seus senhores. Esteve a ponto de perguntar quanto tempo estava na Inglaterra. Um ano? Cinco? O mordomo também falava com um acento muito pronunciado. Em que momento perdia um francês seu acento? O criado se retirou antes que ela pudesse formular a pergunta. Ela abriu cuidadosamente o envelope selado. Estava datado três dias antes. Querida senhorita Aimes: Certamente você não se lembrará de mim, mas eu era um amigo muito querido de seus pais. Visitavam-me com freqüência antes que sua saúde os deixasse incapacitados. Aceite por favor, minhas condolências, embora seja com um pouco de atraso. Minha própria saúde é precária. Impede-me de viajar; se não fosse assim, teria dado meus pêsames em pessoa. Teria gostado que esta carta não fosse necessária. O superintendente de polícia, informado de sua estadia em Londres e conhecedor de minha antiga amizade com sua família, pediu-me conselho. Informo-lhe, com um profundo pesar, de que a tumba de sua mãe foi profanada da maneira mais monstruosa. Não quero importuná-la com os detalhes, mas devo lhe dizer que foi um ato realizado por autênticos vândalos. Esperaremos suas instruções. Envie-me sua resposta, por favor, e farei os acertos necessários para que sua bendita mãe possa descansar de novo em paz. W. Sturges Bourne Anne ficou olhando a assinatura, escrita com uma pluma de ponta larga. 118


William Sturges Bourne era o conde de Granville. Ela não o conhecia pessoalmente, mas seus pais falavam dele com a piedade que as pessoas de precária saúde reservam para aqueles que, no melhor de sua vida, foram golpeados pela desgraça. Na época em que Anne alcançou a idade necessária para ser apresentada em sociedade, sua mãe já estava prostrada na cama e as visitas de seus pais ao conde se interromperam. Um prato se deslizou sobre a mesa frente a ela. O aroma do toucinho e dos ovos ficou entupido em sua garganta. Sentiu repugnância diante a idéia de que a tumba de sua mãe tivesse sido profanada. Quais eram os detalhes com os que o conde não queria importuná-la? Que acertos eram necessários fazer para que sua mãe voltasse a descansar em paz? Seu primeiro impulso foi contatar com o procurador. Não precisava ouvir suas palavras para saber o que aconselharia. —Café ou chá, senhorita? Ela levantou a cabeça. O arrumado criado moreno estava a seu lado, esperando pacientemente. Anne se deu conta de que algo mais que repugnância revolvia o estômago. Não queria retornar. Para ficar imersa uma vez mais na morte e na miséria que impregnavam os próprios alicerces de sua casa em Dover. Seus pais tinham morrido fazia dez meses. Quando terminariam seus sofrimentos? —Peço que me desculpe, mas, o que disse? —perguntou com a boca seca. —Perguntei se mademoiselle quer chá ou café. Seus olhos ambarinos pareciam dizer outra coisa completamente diferente. O dever... Ou o desejo? Pareciam perguntar. O prazer egoísta... Ou a responsabilidade filial? Mas ao final não havia escolha. Uma vez tinha falhado com sua mãe. Não o faria de novo. —Diga a Raoul que venha aqui, por favor. Antes de sair da sala, o criado se inclinou. —Como desejar, senhorita. Como ela desejava. O metal soou atrás dela. A luz do sol esquentava seu rosto. Anne voltou a ler a carta. Seu estilo estava passado de moda. Abertamente dramático. Uma carta escrita por um homem ancião que, sem dúvida alguma, tinha transformado as travessuras de uns escolares em um crime nefando. Não havia necessidade de alarmar-se. Certamente, ao chegar, encontraria que a tumba tinha sido coberta de pintura ou algo assim. A dor e o sofrimento de sua mãe tinham acabado. Como os da Anne. A tensão que sentia em seus ombros relaxou. Tinha tido a coragem de solicitar favores sexuais. E depois tinha reunido a coragem suficiente para passar pelo exame de um ginecologista. Tinha chegado a hora de retornar e fazer as pazes com sua mãe. De perdoar a seus progenitores. Terei que respeitar o contrato com o Michel, mas não era necessário escolher entre o dever e o desejo. Havia tempo suficiente para ambos. —Mandou me chamar, mademoiselle? O mordomo estava parado diante da porta aberta, com as mãos atrás das costas. Anne dobrou a carta e endireitou os ombros. —Quando retornará monsieur De Anges? —Não sei. Anne sabia o tempo que levaria viajar até o Dover em uma carruagem. Muito. —Queria um bilhete para tomar o trem a Dover, por favor. —Très bien. Enviarei a um criado à estação. —Nunca subi em um trem. Ela inclinou o queixo, esquecendo a etiqueta, que proibia qualquer espécie de trocas pessoais entre um servente e a nobreza. Desafiando à sociedade, que proibia a união entre um homem famoso por sua habilidade para agradar às mulheres e uma solteirona desesperadamente ansiosa por experimentar prazer. —É seguro, para uma mulher sem acompanhante, viajar de trem?

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—É, mademoiselle. Entre Londres e Dover só há cem quilômetros. Uma distância relativamente curta. Muitos trens têm compartimentos especiais, só para as mulheres. Farei que você viaje com toda segurança, e não estaria de mais que um chofer, ou um cavalariço, estivesse esperando-a na estação de Dover. Anne se tragou ainda mais seu orgulho. —Minha visita a Dover é imprevista. Você acha que haverá uma carruagem disponível na estação? Raoul ficou olhando um ponto fixo sobre sua cabeça. —Se me permite dizê-lo, mademoiselle, o melhor seria que dispuséramos de um transporte seguro antes de subir no trem aqui em Londres. Não é conveniente que uma mulher perambule sozinha por uma estação. Dover era um porto muito ativo e buliçoso. Se não havia carruagens na estação, o mais provável era que os houvesse nas proximidades. —Então terei que correr o risco. —Poderia você pôr um telegrama, mademoiselle, para que alguém vá procurar uma. Eu poderia me encarregar de enviá-lo depois de que suba no trem. Que solução tão simples. Sua casa ficava nos subúrbios de Dover. Um cavalariço, em uma calesa, poderia estar esperando. E que protegida tinha estado. Não só ignorava algo sobre a economia básica dos preços do pão, mas também sua própria vida dependia de seus serventes. Não mais. —Sim. Obrigado. Que sugestão tão esplêndida—disse sorrindo calidamente—. Poderia me facilitar utensílios de escritura, por favor? Se Michel não retornasse antes que ela fosse, deixaria uma carta explicando que tinha tido que sair de Londres durante um par de dias. O calor avermelhou as bochechas. Não podia retornar a Dover sem espartilho. Inclinou de novo o queixo, sabendo que toda a casa se inteiraria muito em breve de sua falta de trajes apropriados, da mesma forma que a alta sociedade se inteiraria muito em breve de sua relação com Michel dê Anges. —E necessitarei que uma criada me ajude a me trocar. Raoul, com a cara oculta de sua vista, fez-lhe uma pequena reverência. —Très bien. Capítulo 16 A fumaça e o vapor subiam em espiral das ruínas alagadas do quarto. Michael olhou para baixo, para o corpo consumido e carbonizado que estava sobre a cama convertida em cinzas e molas enroscadas. Estava irreconhecível. Seu cabelo tinha desaparecido. E aqueles olhos de prata que lançavam olhadas burlonas. O crânio e a cara estavam esmagados. Michael tinha lutado, ao lado da brigada de bombeiros, para extinguir o fogo. E logo tinha tentado resgatar seu amigo de entre os restos fumegantes da Casa de Gabriel. Muito tarde. Gabriel tinha morrido antes que se iniciasse o incêndio. Tinha passado o amanhecer e também o meio-dia. A batalha tinha terminado. Michael tremia. E não entendia por que se sentia tão frio, se as paredes continuavam fumegando pelo calor. —Retire-se, senhor. Este lugar não é seguro. Pode cair sobre nós em qualquer momento. Venha. Alguém o agarrou pela jaqueta. —Não há nada mais que fazer aqui. A emoção que tinha sido incapaz de sentir, segundos antes, surgiu dentro dele como uma onda de raiva, de dor e de pesar. Afastou seu braço do homem que o aferrava. —Tire suas malditas mãos de cima de mim. —Repito que este lugar não é seguro, senhor. Não há nada mais que possa fazer por seu amigo. Sim, havia algo que podia fazer. Não tinha sido capaz de salvar Gabriel do homem. Mas podia impedir que a casa caísse sobre ele. Inclinando-se, Michael levantou o corpo do Gabriel em 120


seus braços. O calor queimava suas mãos, seu casaco, seu peito. Não sentiu a dor. Diane tinha parecido ser mais pesada quando a tirou do inferno ardente em que se transformou seu quarto. Mas ela não tinha sido reduzida a uma massa de ossos que se mantinham unidas graças à pele e aos tendões carbonizados. Devagar, tentando não mover muito os restos de Gabriel, tirou-o da casa que não havia trazido nenhum prazer e que agora nunca o traria. Michael piscou. A luz do sol atravessava a ameaçadora nuvem de fumaça. Os bombeiros se dispersaram. Uma multidão se formou na rua: olhando, assinalando, falando, rindo. Um carrinho de mão estava estacionado perto da barreira protetora. Peni de cobre e cervejas de gengibre trocavam freneticamente de mãos. —Deixe tudo em nossas mãos, senhor. Você precisa descansar. Dois homens sustentavam uma maca. Michael estreitava aqueles restos em seus braços, protegendo-os, mas não lhe pertenciam. Imagens caleidoscópicas cintilaram diante de seus olhos. Diane. Seu corpo queimado obstinado a seu peito. Homens que a levavam. Homens que levavam Gabriel. Uma história que se repetia. Já era hora de deixar que tudo passasse. Michael colocou Gabriel sobre a maca. Os homens o levaram. —Monsieur - disse Gastón, aproximando-se dele com sua camisa de noite entre as calças de lã, seus pés descalços e retorcendo as mãos—. Não puderam salvá-lo. Tentamos, mas foi impossível. Michael era o único que teria podido salvá-lo. O sangue palpitava em suas têmporas. Seus pulmões lhe doíam. Seus olhos estavam inflamados. O homem conhecia tudo sobre Gabriel. Por que o tinha matado agora? —Quantos morreram? —perguntou laconicamente. —Só monsieur Gabriel. Ninguém mais. O fogo... O fogo começou em seu chambre. Tentamos salvá-lo, senhor. Michael não tinha tomado precauções para proteger seu único amigo. —Fale com os empregados e diga que pagará no transcurso do mês. A palavra mês ressonou em seus ouvidos. Tudo o que ele tinha querido era um mês. Uma mulher. O que queria Gabriel? Tinha sabido quando o homem o golpeou? Havia sentido a explosão da dor e se perguntou por quê? —Tudo desapareceu —disse Gastón precipitadamente —. Não temos nada. Não temos dinheiro... —Já disse que pagará a todos - exclamou Michael em um arranque de fúria. Não estava preparado para perder Gabriel. A cara de Gastón, debaixo da fuligem e da fumaça, avermelhou. —Não temos aonde ir, senhor - disse com tranqüila dignidade. Michael controlou sua fúria. Gabriel tinha cuidado deles, imigrantes franceses sem lar. Sempre, de algum jeito, tinha-lhes conseguido trabalho e um lugar para viver: através de Michael, através de seus clientes. Mas agora Gabriel estava morto. Quem cuidaria às pessoas de Gabriel quando Michael morresse? —Vão ao Hotel du Piedmonts. Eu me encarregarei dos pagamentos. Digam ao porteiro que lhes dê a roupa que necessitem. Ele o arrumará tudo. —Merci, senhor - disse Gastón, endireitando os ombros—. Deseja que me encarregue de monsieur Gabriel? No caso de sua própria morte, Michael tinha deixado instruções precisas em seu testamento. Gabriel fazia o mesmo? E se não era assim, importava? Os funerais não devolviam a vida aos mortos. —Não. Eu mesmo me encarregarei de tudo. Mas não agora. Agora tinha que preocupar-se com os vivos. Michael já não sabia quem golpearia o homem. Nem quando. Se esconderia o assassino de Gabriel entre a multidão, bebendo cerveja de gengibre? Planejava outra visita esta noite? Tentaria levar a Anne, ou tentaria matá-la? Michael se negou a entrar nas duas primeiras carruagens que fez gestos. Os altissonantes 121


palavrões dos choferes provavam sua honestidade. Subiu no terceiro carro. O aroma de carne queimada se misturou com o aroma do couro velho e do feno úmido. Nem sequer as rosas poderiam fazer desaparecer aquela pestilência. Dirigiu-se em silencio a sua casa. Queria tomar um banho. Queria Anne. E que aquele pesadelo terminasse. John, o criado de cabelos dourados, baixou a escada de mármore, interpondo-se em seu caminho. Michael parou. Tinha ordenado a John que vigiasse Anne, mas quando olhou os olhos azuis do criado, uns olhos que tinham visto muita pobreza e muitas perversões, soube que Anne se fora. Tranqüilamente, o servente colocou a mão no bolso interior de sua jaqueta negra e entregou um envelope a Michael. —Disseram-me para entregar esta carta, senhor. Michael ficou tenso. Maldição! Não a perderia. —Onde está? —grunhiu, sabendo de antemão a resposta. O homem tinha levado tudo. —A carta, senhor - disse John com o envelope ainda na mão—. Ordenaram-me que a entregasse. Michael não queria ler a maldita carta. Queria a Anne. Queria saber quem pensava que uma moeda valia tantas vidas. —Onde está Raoul? —Na carta está tudo o que precisa saber senhor. A violência não serviria de nada. John não temia à morte. Nem à dor. Parecia-se muito com Gabriel. Com uma exceção. Retirou-se do negócio antes que este levasse sua alma. Arrancou o envelope das mãos do criado. A caligrafia era masculina. Familiar. Sentiu que o sangue subia à cabeça. Rasgou a carta. Não havia dúvidas no referente à caligrafia. Um zumbido agudo soou dentro de seus ouvidos. Recordou o corpo de Gabriel. Do pouco que pesava. Recordou o formoso rosto do Gabriel, desfigurado até fazê-lo irreconhecível. Deu-se conta de que tanto ele como Anne tinham sido manipulados de maneira muito inteligente. Pela luxúria. Pelo amor. Michael tinha caído na armadilha do homem com a mesma facilidade com que agora Anne caía nela. Levantou o olhar. A cara do John estava impassível. —Quanto faz que chegou esta carta? —Três horas. Enquanto Michael estava longe, tentando salvar a vida de seu amigo. —Quem a trouxe? John não soube responder. Quando terminaria o jogo? —Quanto tempo faz que Anne se foi? —Faz três horas. —Acompanhou-a o mensageiro? —Não, senhor. Raoul a acompanhou à estação de trem. Anne chegaria em Dover na hora do chá. O homem ofereceria uma taça, e ela a beberia. E não havia nada que Michael pudesse fazer a respeito. —A senhorita Aimes escreveu uma carta, senhor. —Onde está? —Acredito que no cesto de papéis, senhor. Raoul saberá. Raoul. Mordomo. Vigilante. Peão. Todo homem tem um preço. Perguntou-se que mentira inventaria o mordomo para explicar a ausência da Anne. Quanto tempo tinha tentado atrasá-lo? Agachando a cabeça, Michael dobrou cuidadosamente a carta e a voltou a meter no envelope. Abriu a jaqueta, guardou-a entre o linho sedoso de um bolso interno. Os pensamentos corriam por sua mente. As idéias se foram formando. Levantou a cabeça devagar. —Raoul já retornou da estação? —perguntou com a voz acalmada, atravessando ao criado com seu olhar. 122


—Está na cozinha - respondeu John, imperturbável, parando a um lado. Michael não podia permitir o luxo de esperar. Mas o fazia. Durante um segundo interminável esperou que a amizade fosse mais forte que o ciúme, que a cobiça, que o ódio. —Ele te disse que me informasse sobre meu mordomo, John? O criado olhou para diante. —Não, senhor. Eu estava cuidando da dama. Ou mentia... Ou dizia a verdade. Michael acreditou. Ninguém mostrava uma total lealdade, e a carta era uma prova disso. No primeiro andar, o cheiro da carne assada impregnava o ar; carne de gado vacino em vez de carne humana. A senhora Banting, sua cozinheira, Marie e Raoul, estavam sentados ao redor de uma mesa retangular de madeira de arce. A cozinheira, uma mulher pequena e gordinha que sempre tinha recordado Michael a figura de uma fada anciã que alguma vez tinha visto retratada em um livro de histórias para meninos, cortava uma batata. Marie, com seus óculos metálicos sobre o nariz, escrevia em um caderno. Um copo e uma garrafa de genebra repousavam frente de Raoul. Ambos os recipientes estavam meio vazios. Embora muito possivelmente, Raoul os via meio cheios. A cozinheira foi a primeira que viu Michael. Saltou de seu assento, fazendo uma complicada reverência, com a batata em uma mão e a faca na outra. —Senhor. Marie levantou o olhar e sua expressão congelou. A ponta de sua pluma de aço parou. Só Raoul pareceu indiferente à presença do Michael. Agarrou a garrafa e se serviu mais genebra. Um sorriso malicioso se desenhou nos lábios de Michael. A mão do mordomo tremia visivelmente, desmentindo sua despreocupação. Devia estar assustado. —Senhora Banting, me consiga uma caixa de fósforos, por favor - ordenou com amabilidade. —Sim, senhor. Agora mesmo, senhor. Você está bem, senhor? Ouvi algo sobre o incêndio. O senhor Gabriel está bem, senhor? A genebra derramou sobre a mesa de madeira de arce. Marie retirou a garrafa da mão de Raoul e a colocou em seu lugar. Suas mãos também tremiam. Michael se perguntou qual dos dois - o mordomo ou a governanta— o tinha traído. —Os fósforos, senhora Banting. Estou esperando. A cozinheira deixou a faca e a batata em um recipiente de alumínio cheio de exumações. Secando as mãos no avental, atravessou com rapidez a cozinha e procurou no suporte que havia perto dos fogões. Retornou com uma caixa de fósforos, encolhendo os dedos quando ele a tirou da mão. —Obrigado - disse Michael com gentileza—. Agora pode se retirar. Suas sobrancelhas cinza e peludas se elevaram sobre sua frente enrugada. —Mas, senhor, a comida... —Esta fazendo, sei senhora Banting - disse Michael, olhando Raoul e a Marie—. Não demorarei muito. Tenho várias garrafas de um excelente xerez de 1872. Traga-me uma do porão, por favor. Estou certo que achará muito mais agradável que a genebra. —Já vejo - protestou à senhora Banting com um acento que revelava suas origens suburbanas. Era outra das pessoas desamparadas que Gabriel tinha recolhido—. Só tomarei uns sorvos, para ver se espanto este frio que me impregna os ossos. Michael não importava que se banhasse em genebra todas as noites, sempre contanto que cumprisse com suas obrigações. Dirigiu-lhe um olhar. Suas faces, normalmente avermelhadas, estavam pálidas, ressaltando a rede de veias rotas, origem de seu permanente brilho rosáceo. —Vá, senhora Banting. A cozinheira saiu. Marie fechou o caderno e tirou seus óculos. Raoul ainda não tinha levantado os olhos. Michael abriu a caixa, tirou um fósforo, acendeu-o e, aproximando-se da mesa, jogou-a no copo de genebra. Uma chama azul se elevou no ar. Marie boquiaberta, levantou-se de um salto. O sorriso de Michael se fez mais amplo. —Poderia te fazer beber esse fósforo, Raoul. —Não fez nada de errado! —gritou Marie. 123


Pelo bem do mordomo, Michael esperava que assim fosse. —O que fez Raoul? Raoul levantou o olhar. Seus olhos estavam frágeis pelo álcool. —Acompanhei a mademoiselle Aimes até a estação de trem. Para protegê-la. Michael acendeu outro fósforo. Pela primeira vez em cinco anos se deixou deslumbrar pela língua de fogo amarela que comia a madeira, o papel, a pele. —Olhou dentro do baú que me trouxe com tanta impaciência para que visse os resultados de um homem consumido pelo fogo? Não é uma visão agradável. —Não sei do que está falando. Não abri nenhum baú. Talvez não. Tinha sido fechado com cadeado. Durante quanto tempo tinha planejado o homem este momento? Quantos homens tinham sido necessários para que se acontecesse? Um, dois, três, quatro? O fogo ardia de maneira constante. —Há cinco anos. Como soube ele que lady Wenterton viajava em Brighton? —Mandei-lhe um telegrama. Michael recordou a cara sorridente de Diane. Tinha-lhe jogado beijos ao ar da janela do trem. Tinha sido a última vez que a tinha visto rir. O calor lambeu os dedos de Michael. —Sabia o que faria a ela? O olhar de Raoul não vacilou diante o olhar de Michael. —Non. —Mas enviou mademoiselle Aimes. Sabendo que lady Wenterton se suicidou por causa do que lhe fez. —Oui. —C'est um mensonge — assobiou Marie— Ela se suicidou porque era uma prostituta. Nenhuma mulher pode viver com ela mesma se entregar seus filhos. Michael a ignorou. O homem não o tivesse feito. —Por que o fez, Raoul? O mordomo deixou de olhar para Michael. Passou a mão por cima do copo e agarrou a garrafa de genebra. —L'argent, monsieur. O dinheiro. Nem todos podem fazer uma fortuna vendendo seus corpos. O copo explodiu. Um fogo azul invadiu o ar, estendendo-se por cima da mesa de arce como um lençol de calor ardente. Raoul deu um salto para trás, atirando no chão o assento de madeira. Sentiu-se alarmado, já que sua própria vida estava em perigo. Bateu freneticamente a manga da camisa em chamas. Michael deixou cair o fósforo em cima da mesa. —Tudo tem um preço, Raoul. Lembre-se a próxima vez que fechar os olhos antes de dormir. Deu a volta e partiu. Nenhum deles viveria o suficiente para desfrutar do dinheiro. O homem se encarregaria disso. Capítulo 17 Anne tinha ouvido que a casa do conde estava mais vigiada que o palácio do Buckingham e, entretanto, o porteiro tinha facilitado a entrada sem fazer perguntas, e o mordomo era mais fraco que um junco. Subiu as amplas escadas de mogno atrás do servente. Não havia nenhum tapete que suavizasse seus passos. Seus calções de seda, sua regata, seu sutiã e suas meias sussurravam contra sua pele, um presente que se fez a ela mesma, como uma evocação do prazer que tinha experimentado na noite anterior. A lã negra rangia ao redor de seus pés, uma concessão a sua mãe, como uma lembrança do luto que ainda levava. A casa do conde era um palácio, um mausoléu de madeiras nobres, pinturas de preço incalculável e um elegante mobiliário antigo. Teria que ter a um verdadeiro exército de serventes pensou com certa irritação: cavalariços, jardineiros, criados, criadas, camareiras. 124


Onde estavam? Um elevador esperava no final da escada, com a porta fechada. Abajures de bronze e de cristal adornavam as paredes do corredor, emitindo uma deslumbrante luz elétrica que não aliviava a escuridão do chão e as paredes revestidas de mogno. O eco de seus passos ressonava no comprido e interminável corredor. Teria que ter ido diretamente ao cemitério, pareciam dizer, para ver com seus próprios olhos os rastros do vandalismo, antes de visitar conde. Muito tarde, responderam os passos do mordomo: o conde tinha aceitado recebê-la. Uma cadeira rococó, forrada de damasco rosado, chamou sua atenção no final do corredor. O mordomo abriu a porta que havia ao lado da cadeira. —A senhorita Aimes, milord - anunciou antes de afastar para lhe permitir a entrada. Anne se agarrou a sua bolsa de miçangas negra. Um homem de cabelo grisalho se encontrava de costas para porta. Estava sentado em uma cadeira de rodas diante de uma maciça lareira de mogno em que chispavam as chamas amarelas e laranjas. Sobre sua cabeça, no suporte da lareira, havia dois vasos do Sèvres flanqueando um relógio esculpido em mármore branco. Duas janelas a ambos os lados da lareira deixavam passar a pálida luz do crepúsculo. Entre o conde e uma poltrona Chippendale, estava uma mesinha para o chá. Seu instinto advertia que não entrasse no quarto, mas seu sentido comum ridicularizava suas preocupações. O quarto de uma pessoa doente não lhe era estranho. O conde de Granville estava velho e aleijado. Não podia machucá-la. Era um antigo amigo de seus pais, e não havia razão alguma para que quisesse machucá-la. Ignorando um formigamento de advertência que subia e descia por suas costas, Anne entrou no quarto e sentiu que a porta se fechava suavemente atrás dela. —Bem-vinda a minha casa, senhorita Aimes. Espero que não se incomode visitar um homem velho em suas habitações privadas - disse o conde sem virar a cabeça. Sua voz, afável e culta, ouvia-se claramente em todo o quarto —. Sente-se aqui a meu lado, por favor. Anne não queria se sentar. Queria escapar a um ar que não estivesse poluído pelo cheiro de desinfetante. Imediatamente se sentiu envergonhada de seus pensamentos. O conde não tinha pedido para ser um inválido. Ele também tinha sofrido por causa de circunstâncias que se encontravam fora de seu controle. —Obrigado, lorde Granville. Foi muito amável ao me receber. Seus sapatos ressoaram de forma oca com o passar do amplo chão de madeira. O eco metálico de seus passos recordou quão isolada estava à propriedade do conde e o longe que estava ela da vida que tinha vivido antes de aventurar-se a Londres. Nos últimos dias tinha acompanhado três vezes homens estranhos: Michel, Gabriel e o homem que a esperava na estação, um novo cavalariço contratado em sua ausência por seu administrador. Um sorriso superficial apareceu em seus lábios. E agora estava aqui, visitando outro homem estranho em seu quarto. Aproximou-se da poltrona Chippendale; o calor murchou o sorriso de seus lábios. Sentou-se cautelosamente na borda do assento estofado em veludo marrom. A cara do conde estava desfigurada pela dor e enrugada pela idade. Calculou que teria pouco mais de setenta anos. Parecia um homem que tinha tido poucos prazeres em sua vida - ou que os tivesse querido—. Seus olhos - murchos e pálidos, cuja cor era indistinguível à luz cinzenta do quarto — a olhavam com perspicácia, como sopesando sua reação diante sua enfermidade. —Perdoe que não me levante. Anne desviou seu olhar. —Não é necessário que se desculpe milord. Duas xícaras, com seus respectivos pires de borda douradas, repousavam sobre a mesa de chá. Havia uma bandeja de prata entre os recipientes da creme e o açúcar. Via-se menos pesada sob o pequeno montão de guardanapos brancos de linho, devidamente dobrados. As rodelas de limão estavam amontoadas em uma pequena terrina de prata. O vapor se elevava do bule, também de prata, como se o chá estivesse recém feito. Como se o conde a estivesse esperando. Anne tentou afastar uma nova onda de mal-estar. Um ligeiro e rítmico estalo ressoava por cima do monótono tictac do relógio do suporte. Seu olhar posou indevidamente na mão direita do conde, 125


que descansava sobre o magro braço de madeira da cadeira de rodas. Enrolava algo entre seus dedos. Algo que brilhava como prata... Pôde entrever duas bolas metálicas. Eram um pouco maiores que os gudes com as quais tinha visto jogar os meninos da aldeia. Uma lenha caiu na lareira; as faíscas e as chamas amarelas saíram voando. Dirigiu de novo o olhar ao conde, umedecendo-os lábios que muito em breve voltou a sentir ressecado. —Quero agradecer sua carta, milord. Foi muito amável ao haver se incomodado em me comunicar o vandalismo cometido na tumba de minha mãe. —Faltaria mais, senhorita Aimes. —Clique. Clique. Clique—. Seus pais eram para mim uns amigos muito especiais. Passamos muitas tardes jogando Piquet. Sorriu. Havia algo vagamente familiar em seu sorriso. —Gostaria de tomar uma xícara de chá, querida? —Não desejo abusar de sua hospitalidade, milord. É óbvio que você está esperando um convidado. Só lhe roubarei uns minutos de seu tempo. —Tolices. Você não está abusando de minha hospitalidade, e meu convidado se atrasou replicou cordialmente—. Peço que me faça à honra, por favor, de servir o chá. Você não tem idéia de quanto esperei sua visita desde que lhe escrevi essa carta desafortunada. Agora já quase não saio, e as pessoas velhas e doentes como eu levamos uma vida solitária. Mas você já sabe, não é certo, querida? Sim, ela sabia. A maior parte das pessoas que tinham assistido ao funeral de seus pais não os tinha visitado durante anos. —Obrigado - disse tirando as luvas e alcançando um guardanapo—. Eu adoraria tomar uma xícara de chá. Enquanto Anne o servia, lembrou-se de outro bule, de cerâmica em vez de prata. De outro homem, de cabelo loiro em vez de cinza. De uns olhos que a olhavam, que a perfuravam, que a vigiavam. Sentiu um picar na nuca, enquanto colocava cuidadosamente o bule em cima da bandeja de prata, e ao levantar a cabeça se encontrou com seu olhar. —Quer um pouco de açúcar, lorde Granville? creme? Limão? Uma nuvem de vapor revoava entre eles. Ele sorriu com cordialidade. —Tomarei o mesmo que você, querida. Ela, involuntariamente, apertou os lábios. Gabriel havia dito o mesmo quando o garçom da confeitaria tinha perguntado o que desejavam tomar. O amigo de Michel, de cabelo loiro e olhos prateados, tinha seguido-a. Por que tinha de repente a impressão de que o conde também a tinha estado vigiando? Anne pôs dois torrões de açúcar em cada uma das xícaras. O conde, entretanto, não tocou a sua. Ela desejou ter seguido seu exemplo. O líquido era, como se em vez de açúcar tivesse posto gotas amargas. Apressadamente, deixou a delicada xícara de porcelana em cima do pires. —Você disse que a tumba de minha mãe tinha sido profanada de uma maneira monstruosa. Qual foi exatamente a natureza desse vandalismo, lorde Granville? Seus dedos pararam. O tictac do relógio de mármore, por cima do crepitar do fogo, soava extraordinariamente forte. —Não gosta do chá, senhorita Aimes? Perdoe-me você, mas os serventes se aproveitam às vezes de um homem velho e doente. Tocarei o sino para que tragam outro recém feito... —Não, não, assim está bem, de verdade - repôs Anne enquanto levantava a xícara e bebia outro gole—. O superintendente de polícia... —Você deve sentir muito a falta de sua mãe, querida - a interrompeu, reatando o rítmico tamborilar das bolas de prata—. Ela morreu dois dias depois de seu pai, se não estou mal informado. Foi muito trágico. Muito desafortunado. Anne voltou a pôr a xícara sobre o pires. E mentiu: —Efetivamente, foi. Seu pai e sua mãe tinham padecido dores horríveis. Sua morte tinha sido uma bênção. —Sente-se a gosto em Londres, senhorita Aimes?

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Clique. Clique. Clique. Sua testa cobriu de pequenas gotinhas de suor. O conde não parecia afetar o calor do fogo que ardia a uns poucos metros deles. —Sim, estupendamente, obrigado. —Deve ter sido muito difícil separar-se de seus amigos. Londres é uma cidade muito alegre, muito afastada da formalidade rural daqui. Uma imagem da Casa de Gabriel passou por sua mente. De mulheres de má reputação e de cavalheiros de grandes fortunas. Uma luz se acendeu nos olhos murchos do conde, como se tivesse adivinhado seus pensamentos, como se soubesse exatamente como tinha ocupado seu tempo em Londres. Os rumores se difundiram tão rapidamente? —O vandalismo, lorde Granville - disse com firmeza. —Me perdoe senhorita, mas há ocasiões em que a mente de um homem velho e doente começa a divagar. Tome seu chá; seja uma boa moça. Não queremos que se esfrie. Está certa de que não quer que mande trazer outro bule? Anne recordou a solidão de seus pais e quanto ansiavam a companhia que poucas vezes chegava a visitá-los. Levantou outra vez a xícara. O aroma do chá não melhorou com o terceiro gole. —Esteve alguma vez apaixonada, senhorita Aimes? —Você esteve, milord? —respondeu educadamente. —Sim, senhorita Aimes. Lorde Granville era a segunda pessoa que confessava ter amado alguma vez. A um homem. A uma mulher. Aos amigos. Aos amantes. Ou talvez o conde amasse um homem. Como amante. Ela tomou, com determinação, outro gole de chá. —Então você é afortunado - disse ela enquanto voltava a pôr a xícara em seu lugar—. Não acredito que o amor seja uma mercadoria muito apreciada em nossa sociedade. —Isso é porque as pessoas têm medo. O dinheiro é mais material. Mas você não o teme, não é certo, querida? Sim. Anne tinha medo a muitas coisas. À solidão. De ficar velha. De morrer... Sozinha. Mas não tinha vindo visitar conde para discutir seus temores. O incessante clique, clique, clique estava começando a lhe dar nos nervos. —Você falou do superintendente de polícia, milord. Ele tem alguma idéia de quem é o culpado? —Vejo que se sente incômoda falando do amor, senhorita. Em seus olhos brilhava a curiosidade, e um pouco mais escuro, algo que não era capaz de discernir. —Por quê? O suor deslizava pelas têmporas e a umidade se acumulava debaixo de seus seios. —Não acredito que esteja qualificada para discutir o assunto, lorde Granville - disse morta de calor—. Talvez em outra ocasião... —Há um poema sobre o qual reflito freqüentemente - a interrompeu em tom mordaz—. É de Andrew Marvell, e nele um homem tenta convencer a sua dama apaixonada para que prove os prazeres da cama matrimonial. “A tumba é um lugar bom e particular, / mas ninguém, que eu saiba, acredito, abraça-se ali”, diz a ela. É bastante profético. Já o leu alguma vez? O calor que alagava o corpo de Anne não tinha nada de diferente do fogo que ardia frente a ela. Discutir sobre o amor sexual com um homem que dizia ser amigo de Michel era uma coisa, mas analisar o assunto com lorde Granville era outra bem diferente. Limpou os lábios com o guardanapo e a colocou em cima da mesa do chá, junto a sua xícara. —Não, não o li. Perdoe, disse a meu cavalariço que só me atrasaria uns minutos. O cavalo deve estar inquieto. Se me desculpar... —A primavera é uma estação imprevisível, não é certo? —cortou-a com suavidade, olhandoa candidamente com seus olhos opacos —. Confesso-lhe que nunca consigo sentir calor suficiente.

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Meu ajudante de câmara aproveitou sua visita para poder dedicar uns minutos a atender seus assuntos pessoais. Importaria-se de trazer uma manta da cômoda? A cortesia a obrigava a velar por seu bem-estar antes de ir. —Não, certamente que não. Acomodando suas luvas e sua bolsa entre a almofada e o braço da poltrona, levantou-se e ficou olhando o quarto do ancião, grande e retangular. As paredes estavam revestidas com a mesma madeira de mogno que tinha visto no corredor. O fogo e a luz que as paredes não absorviam, o fazia a escura cama com dossel. —A cômoda está do outro lado da cama, querida - a instruiu afavelmente, como se não se desse conta da rabugice social que tinha cometido e do afã que ela tinha por escapar—. Na parede de trás. A manta se encontra na gaveta superior. Anne caminhou entre a sombra felizmente fria. Um retrato de corpo inteiro pendurada na parede ao lado do móvel com gavetas: um homem jovem recostado contra um cavalo, com a vara na mão e os lábios esboçando um ligeiro sorriso zombador. Ela tinha visto antes aquele sorriso. O homem jovem tinha o cabelo negro, penteado na moda dos primeiros anos da década de 1830. Sob a faca luz do quarto, parecia quase azul. Agarrou a manta sem poder desviar seu olhar do retrato. Quase podia adivinhar a cor dos olhos daquele homem jovem. Quase podia recordar de tê-lo visto. Dançando. Rindo. Abrindo caminho através de uma multidão de vestidos longos de brilhantes cores, e de severos e masculinos trajes negros, enquanto subia o volume da música. —Eu era de aparência bastante agradável em meus dias juvenis, não lhe parece, senhorita Aimes? Sentindo-se culpada, Anne se afastou do retrato. Lorde Granville, com aceitável destreza, tinha dirigido sua cadeira de rodas até a cama e estava acendendo o abajur que havia sobre a mesinha de noite. —Algumas pessoas dizem que meu sobrinho é meu vivo retrato. O que você pensa? Ela pensava que sua mente delirava. Seu sobrinho tinha morrido dois anos depois do acidente que tinha deixado o conde inválido e que tinha acabado com a vida de seu irmão, sua cunhada e suas três sobrinhas. A luz elétrica o rodeou, deixando ver um ancião cavalheiro, muito bem vestido com uma engomada camisa branca, gravata negra, calças de lã e um escuro batina de veludo da Borgonha com lapelas de seda negra. Fazendo-lhe um sinal com a mão, olhou-a de frente. Sorrindo. Esperando que Anne pusesse a manta ao redor das pernas. Ela, um tanto receosa foi. De repente, não pareceu tão necessitado. Tão inofensivo. Suas pernas, que apenas se insinuavam sob a manta verde escuro e as calças de lã, eram mais osso que carne. Os dedos de sua mão direita continuavam movendo-se ritmicamente, com o mesmo som de sempre, as bolas metálicas. Levantando o olhar, encontrou-se com o dele. Os olhos do conde, à luz do abajur, eram translúcidos, como um cristal colorido de violeta, e suas pupilas contraídas, negras como as miçangas de azeviche. De repente se deu conta da quem se parecia com o conde quando sorria. E a quem se parecia o homem do retrato. Anne endireitou os ombros, sentindo que seu coração se acelerava. —Foi imperdoável da minha parte ter vindo o visitar sem prévio aviso, lorde Granville. Peço que me desculpe se lhe causei algum aborrecimento. Já encontrarei o caminho de saída... Um sorriso satisfeito floresceu na cara do ancião. —Sinto-me adulado, senhorita Aimes. Vejo que você notou a semelhança. Suas pernas, como se fossem de borracha, deram um passo para trás. —Não sei do que está falando, milord. —Claro que sabe senhorita - disse enquanto continuava sorrindo e movendo as bolas prateadas com seus dedos longos e afiados. Clique. Clique. Clique. Seus dedos tinham o mesmo tamanho e a mesma forma que os dedos cobertos de cicatrizes que tinham acariciado os seios, que tinham massageado o clitóris, que tinham penetrado em sua vagina—. Vê-se que você notou

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imediatamente a indubitável semelhança que há entre este servidor e meu sobrinho, o homem quem você acaba de pagar dez mil libras esterlinas para que a fodesse. Ela sentiu que explodia contra a mesa de madeira, duro, e que o choque tinha feito cambalear as porcelanas. Ele a olhava com certa curiosidade, como se não acabasse de reconhecer que o mais famoso de todos os prostitutos da Inglaterra era parente dele, como se não acabasse de afirmar que ela tinha pagado dez mil libras esterlinas para que seu sobrinho a fodesse. Entretanto, ele não tinha nenhum sobrinho legítimo. O rapaz tinha morrido vinte e sete anos antes. Os rumores sobre suas relações sexuais teriam que chegar cedo ou tarde a Dover, mas não seus acordos monetários. O senhor Little não tinha traído a confiança de uma cliente dele, e o conde só teria podido obter a informação de uma fonte. Michel de Anges sabia todo o tempo quem era ela. Mentiras. Tudo o que havia dito eram mentiras. Seu desejo de amizade. De intimidade. O prazer que derivava de agradar a uma solteirona. Só havia uma razão pela qual tinha sido obrigada a voltar para Dover. —A tumba de minha mãe não foi profanada... —disse Anne, mantendo o olhar, enquanto afogava a dor que sentia dentro de seu peito—. Não é, lorde Granville? —Não foi? —respondeu com fingida educação. —Embora você deveria ser gabado por reconhecer que um bastardo é seu sobrinho, temo que cometeu um lamentável engano —disse, agarrando-se a mesinha de chá, tentando conservar sua dignidade enquanto virava sua face para o conde, outro homem que estava passando por tempos difíceis—. Pode pôr em circulação qualquer difamação que deseje, mas nem e você nem Michel de Anges conseguirão com as nota promissória nem um centavo mais das dez mil libras esterlinas que acordamos. Os lábios do ancião se torceram em um estranho sorriso, que produziu um calafrio nas costas. —Nunca esperei que o fizesse senhorita Aimes. Mais mentiras. —Então esqueceremos deste dia - disse ela, sabendo que também estava mentindo. Nunca esqueceria esse dia. Esse momento. Agora se explicava por que não tinha sido capaz de entender as palavras do homem que havia dito que queria ser seu amante no lugar de Michel em uma confeitaria. Seu sangue era mais azul que o dela, embora não tão respeitável. Era isso o que Gabriel tinha querido que ela entendesse? Que seu amante era o sobrinho bastardo de um conde? Suas luvas... Ah, ali estavam; deslizou-se entre o braço e a almofada da poltrona. Agarrou sua bolsa e, tropeçando, caminhou para a porta. Mortificada por sua estupidez, suas faces se acenderam. Entretanto, rapidamente recuperou a compostura, decidida a demonstrar que podia sair ilesa do intento do conde e de seu sobrinho de enganá-la para conseguir dinheiro de uma solteirona necessitada de amor. —Que tenha um bom dia, senhor. —Não acredito que o seja, senhorita Aimes. Anne ignorou o conde. O chão de mogno que havia entre ela e a porta pareceu abrir-se. As lembranças fizeram que suas pernas parecessem de chumbo: as imagens do sexo de Michel entre sua boca; Michel acariciando suas costas e suas nádegas enquanto ela apoiava a perna na tampa do vaso e se introduzia dentro de sua vagina. Tinha sido feliz. Três dias e três noites tinham proporcionado mais alegria que a que tinha conhecido durante toda sua vida. Anne sempre soube que nenhum homem - e em especial um homem como Michel de Anges— queria uma solteirona de trinta e seis anos por algo mais que seu dinheiro. Por que doía tanto a verdade? Por favor, Meu deus, rezou só me deixe chegar até a porta. Não permita que me ponha a chorar diante deste homem. Deus pareceu responder a sua prece. Agradecida, conseguiu abrir a porta. Um homem vestido de negro, com uma incipiente calva em seus cabelos avermelhados, bloqueou-lhe a saída. Anne o reconheceu imediatamente.

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Era o mordomo que o procurador tinha contratado para administrar sua casa de Londres. Todo um retrato da retidão moral inglesa. —Fecha a porta, Frank! A senhorita Aimes ainda não está preparada para você. Com a cara desprovida de expressão, o homem de cabelo avermelhado fechou obedientemente à porta. Seus traços pálidos brilhavam a luz que refletia o revestimento de mogno polido. O pior temor de seus pais começava a fazer-se realidade: tinha sido seqüestrada, e seus captores exigiam um resgate. Com o coração golpeando as costelas, Anne se voltou, e o quarto começou a dar voltas com ela. —Você não pode me reter contra minha vontade. Meu cavalariço..... Fechou as mandíbulas. A voz de Gabriel zombava dela. Uma mulher solitária não deveria acompanhar um estranho. Os murchos olhos violetas do conde brilhavam com malícia. —É você muito ardilosa senhorita Aimes. Sim, o homem que a trouxe até aqui foi contratado por mim. Ou, talvez, deveria dizer que foi contratado pelo Frank. Frank é muito consciencioso nestes assuntos. —Meus serventes estão me esperando, lorde Granville. Se não chegar logo a minha casa, chamarão à polícia. —Por favor, senhorita Aimes - a repreendeu em tom zombador—. Você já se deu conta de que ninguém a está esperando. Raoul me mandou o telegrama, não a seus criados. De que outra maneira acredita que eu estaria preparado para sua visita? Quantas pessoas eram necessárias para seqüestrar uma mulher? Perguntou-se em um acesso de horror. Um amante. Um conde. Um mordomo de cabelo avermelhado que não era mordomo. Jane era uma criada ou uma cúmplice? Raoul era ele um servente? Gabriel era um amigo de seu amante, ou simplesmente um homem formoso contratado para segui-la, para assegurar-se de que não se perdesse ou fizesse mal antes de poder chegar a seu dinheiro? Recordou o homem de cabelo negro azulado que estava parado frente ao escritório do procurador. E soube que era Michel. Endireitou os ombros. —Meu procurador irá a Scotland Yard. —Seu procurador está morto. Seu corpo foi enviado a meu sobrinho. O senhor Little. Morto. O coração da Anne deixou de pulsar. O relógio continuou marcando as horas. —Escrevi uma nota com uma saudação especial para acompanhar o envio - pavoneou o conde—: “De um procurador a outro”. Embora haja, certamente, termos muito mais depreciativos para meu sobrinho. O de prostituto é um deles. Mesmo assim, pensei que era um jogo bastante inteligente com títulos profissionais, não lhe parece? A sua memória acudiu, de novo, o baú negro que havia no escritório do senhor Little e o cheiro da carne queimada. E soube exatamente quando tinha sido realizado aquele envio. Tinha consolado Michel - não, não, Gabriel tinha confirmado que Michel era Michael em francês, não que esse fosse seu nome. Meu deus, ela nem sequer sabia o nome do homem cujo membro tinha recebido em seu corpo e em sua boca— pela morte de algum de seus conhecidos. Pela morte do senhor Little. Seu coração pulsava acelerado dentro de seu peito, tentando alcançar o ritmo do tictac do relógio. De forma totalmente incoerente, deu-se conta de que não tinha sido o medo o que tinha endurecido os mamilos quando Gabriel se apresentou sob a chuva; tinha sido o frio. Isto era medo, o gelo que circulava por suas veias. Não tinha mamilos, nem membros, nem dedos. Todo seu corpo tinha sido convertido em um terror palpitante e vivente. —Gritarei! —disse, mordendo-a parte interior das bochechas para não fazê-lo ainda—. Algum servente virá em minha ajuda. Você não pode reter uma mulher contra sua vontade. —Lamento contradizê-la, senhorita Aimes, mas até agora a pude reter contra sua vontade, e continuarei fazendo. Meus serventes não poderão ouvi-la, e a aqueles que tivessem podido sentir alguma simpatia por você lhes dei férias durante os próximos dias. Quando retornarem, nenhum deles descobrirá nada. 130


—Darei-lhe dinheiro - insistiu desesperadamente—. Todo o dinheiro que quizer. —Não preciso de seu dinheiro. Não precisava de seu dinheiro? Então o que? Respirou profundamente, procurando controlar o pânico. —Então o que quer de mim? —Quero que entenda. Anne se encolheu ante suas palavras. —Entender o que? —Quero que entenda que não poderá evitar as conseqüências de ter assassinado sua mãe. Ela apertou os dentes. —Eu não... Assassinei... A minha mãe. Não tinha tido a coragem de fazê-lo. Sua mãe tinha rogado que a liberasse da dor, e ela não tinha feito nada. —Sejamos francos, senhorita Aimes. Você cuidava de sua mãe. Era sua enfermeira. Dormia no quarto do lado, para poder atendê-la em caso de necessidade. Ela foi encontrada no chão, fria e rígida. Não ouviu sua queda? Não ouviu seus gritos pedindo ajuda? A dor se sobrepôs ao medo que sentia em todo o corpo. Já tinha ouvido aquelas fofocas de aldeia que circulavam a suas costas e que, em algumas ocasiões, deliberadamente, difundiam-se para que chegassem a ela. Michel tinha rido a suas costas quando contou que sabia o que era ser objeto de curiosidade? Não era sua condição de solteirona a que inspirava os rumores, havia-lhe dito ele. Era sua fortuna. Por que não tinha ouvido o que havia e sim o que ela queria ouvir? —Eu... Não assassinei... A minha mãe - repetiu de maneira ainda mais estridente. —Claro que o fez querida. E será castigada por isso. Mas há outras coisas que deve entender primeiro. A escuridão empanou a visão de Anne. Sentindo-se enjoada, agarrou-se ao pomo da porta para não cair. Suas luvas e sua bolsa deslizaram de seus dedos e foram para o chão. Teve-se que recostar contra a porta para não cair. Uma sensação de horror atendeu sua garganta. —Pôs algo no chá... —Não se preocupe senhorita Aimes. Com destreza, o conde manobrou com sua cadeira de rodas até a mesa de chá e tirou os guardanapos que havia em cima da bandeja de prata. Depois levantou cuidadosamente a bandeja, como se temesse derramar algo que estivesse nela. —A paralisia será temporária. Colocou a bandeja sobre seu colo, avançando com sua cadeira até ela. O rastro das rodas sobre o tapete fez chiar sua coluna vertebral. —Não poderá mover-se nem pensar, mas será capaz de ouvir, de pensar, de recordar. A cadeira parou escassos centímetros dela. Seus olhos intensos e pálidos a olharam de abaixo. —OH, sim, senhorita Aimes. Definitivamente, será capaz de pensar e de recordar. —Você está louco - murmurou ela. Aquela situação era uma loucura. Se não queriam seu dinheiro, por que o conde e seu sobrinho ilegítimo faziam isto? O conde a olhou pensativo. —Isso de que estou louco, querida, é o que sempre dizem os que não têm poder aos que o têm. Alguém fica filósofo à força de estar confinado a uma cadeira de rodas. E vou lhe dar um exemplo: todos possuímos uma qualidade que nos distingue, uma qualidade que nos pode trazer grandes alegrias ou incomensuráveis sofrimentos. Faz vinte e nove anos meu sobrinho era um rapaz adorável. Ao contrário do que nos ensinaram os gregos, a culpa, e não o ódio é a outra cara do amor. Imagine a dor que deve sentir um menino de onze anos ao saber que era o responsável pela morte de sua família. Sabia o que o conde estava fazendo, mas ela não permitiria que a fizessem sentir culpada. O acidente que tinha tirado a vida do rapaz tinha sido só isso: um 131


acidente. A morte de sua mãe tinha sido um acidente. Anne tinha ido dormir. Ela tinha morrido. Enquanto Anne dormia. —Sim, já vejo que imagina como deve sentir-se meu sobrinho. A culpa é um sentimento maravilhosamente corrosivo. Não levou muito tempo dar-se conta de quão egoísta era, desfrutando da vida quando eu enfrentava à realidade da morte. O conde tocou brevemente a bandeja de prata; sua cara se enrugava diante a lembrança do prazer. —Agora imagine lady Wenterton, uma mulher bela e malcriada que possuía um voraz apetite sexual. Há mecanismos, senhorita Aimes, que podem criar intoleráveis desejos em uma mulher. É indubitável que meu sobrinho, se eu tivesse concedido mais tempo, teria dado a conhecer aquelas terríveis delícias. Ele sempre foi um moço travesso. O último o disse em um tom de indulgente recriminação. Anne sentiu que se deslizava... Uma gargalhada subiu à garganta. Lady Wenterton... Quem era? Desejos luxuriosos... Moços travessos envoltos em um assassinato. A saia, as anquinhas e o sutiã da Anne lhe oprimiam a base das costas. A necessidade de rir desapareceu bruscamente. Sentou-se no chão, perdendo o controle de suas pernas cobertas com meias de seda. Paralisada. Tentou desesperadamente lutar contra a droga. De ter mais tempo. De entender o que era totalmente incompreensível. O conde e seus pais eram amigos. Por que estava fazendo isto? Seus lábios estavam rígidos, mas obteve que as palavras saíssem com dificuldade. —E seu sobrinho por que foi tão travesso lorde Granville? —Porque não quis assassiná-la. A morte a olhou de acima. As lembranças dançavam na borda da consciência da Anne como a luz no alfinete de seu chapéu. Michel recostado com seus olhos neutros e violetas contra a porta da biblioteca. Morto. Michel frente a ela com sua masculinidade ereta úmida de saliva e o alfinete do chapéu caindo ao chão. Os dedos de Michel apertando a nuca enquanto ela o lambia, mordia-o e o chupava. A paixão de Michel: não te farei mal. Prometo isso. Aconteça o que acontecer não te farei mal. O conde se inclinou sobre ela e a observou com curiosidade, como se fosse um inseto. O pecado e as baratas... —Meu sobrinho sabe que você está aqui, senhorita Aimes. Não se engane a respeito. Não pode ajudá-la, embora muito em breve se reunirá com você. Mas estou me afastando do tema. Imagine, por favor, essa lady Wenterton que mencionei. Gostava de muito meu sobrinho. Recorde que falei de seu voraz apetite sexual. Pois bem: imagine-a consumida por seus desejos luxuriosos e, entretanto, fisicamente impedida e sem meios para satisfazê-los. Imagine o que isso significava para uma mulher com semelhante apetite. Anne podia ouvir, em efeito. E pensar. E recordar. Lady Wenterton... Uma mulher de apetências. Nunca experimentou a intimidade sexual... Ou a amizade... Com outra mulher? Alguma vez conheci uma relação assim. Faz muito, muito tempo. E o que aconteceu? Morreu. Clique. Morreu. Clique. Morreu. Clique. Anne olhou com horror a mão direita do conde e as bolas de metal prateado que giravam entre seus dedos. —E agora, senhorita Aimes, quero que imagine o apuro de uma mulher em sua situação. Você é uma mistura de meu sobrinho e de lady Wenterton. Uma filha adorável que também possui um voraz apetite sexual. Eu posso imaginar o enorme sentimento de culpa que a atormenta depois de ter assassinado sua mãe, e assim obter a liberdade para satisfazer suas paixões. Você me deu uma oportunidade única. Anne tentou gritar, de discutir a lógica implícita em acusar a uma filha “adorável” de ter assassinado a sua mãe. Não pôde abrir a boca. —Está muito cansada, senhorita Aimes - disse o conde com uma malignidade que não procedia de sua enfermidade—. Pergunto-me se gostaria de voltar a escutar a Marvell antes de retirar-se. Como lhe disse, seu poema é bastante profético. Estou certo de que você quer saber o que planejei para castigá-la. Anne tentou agarrar a cadeira de rodas. Para derrubá-la e deter aquela loucura. Não podia mover-se; não podia falar. E não sabia por que. 132


—Isso. Comporte-se como uma boa moça. Não se esforce muito. Entenderá tudo ao seu devido tempo - assinalou o conde, sabendo o que ela estava pensando, mas sem ocultar seu regozijo—. E agora me escute. Está bastante claro: “Mas a minhas costas sempre ouço / que o carro alado do tempo se aproxima a toda pressa, /e ao longe, diante de todos nós, estendem-se desertos de uma vasta eternidade. / Sua beleza já não existirá mais; / nem tampouco, em sua abóbada de mármore, soará /o eco de minha canção; e então, os vermes provarão / essa virgindade durante tanto tempo preservada”. Vermes. Abóbadas. Não deveria existir uma emoção maior que o terror, e, entretanto havia. O conde riu com uma mescla de agrado e compaixão. —Você já não é uma virgem, é obvio, mas estou certo de que os vermes não importará. Gostaria de reunir-se com sua mãe agora? Ela a está esperando. Aquilo não podia estar acontecendo! Sua mãe estava enterrada. Ela mesma tinha jogado os primeiros punhados de terra em cima do caixão. Ele não podia enterrá-la viva. Lágrimas de impotência brotaram de seus olhos. O conde se inclinou para vê-la mais de perto. —Sim, acredito que já está preparada. Mas deve você entender: sua luxúria foi o que a trouxe até aqui. Se você tivesse controlado seus apetites sexuais e ficasse em Dover, hoje estaria a salvo. Se meu sobrinho tivesse controlado sua luxúria e ficado em Yorkshire, hoje estaria a salvo. E para terminar, senhorita Aimes, e me olhe quando falo! Quero que compreenda que meu sobrinho não é nenhum bastardo. A malevolência brilhou nos olhos murchos. —Como se sentiu ao ser fodida por um homem morto? Anne, finalmente, compreendeu. Capítulo 18 Um presente. Michael se agarrou a aquela idéia. A carta era um presente. Gabriel havia dito que fosse à polícia. Até então ele não tinha tido evidências que não o tivessem incriminado pessoalmente. Agora tinha a prova real de que William Sturges Bourne, o conde do Granville, não era o aleijado benévolo e inofensivo que todo mundo acreditava. Por que não fazia nada ao respeito o superintendente de polícia? As luzes e as sombras se estendiam a seu redor, refletindo-se na tampa de cristal do escritório, e cada segundo que passava era tempo perdido. Com seu gorro de noite de lã cinza inclinado sobre a cabeça, o superintendente de polícia devolveu a carta a Michael e levantou seus óculos com a mão esquerda. —Não vejo a urgência de sua visita, senhor. Aproxime-se da delegacia de polícia amanhã pela manhã. Não havia necessidade de que despertasse em metade da noite. Michael agarrou a carta e contou até três. —A tumba da senhora Aimes foi profanada? —Que eu saiba, não. —Você disse ao conde de Granville que tinha sido? —Não, não o disse, mas continuo sem entender... —Ele está com Anne Aimes! —Olhe meu prezado senhor, lorde Granville é um cavalheiro respeitável e, além disso, inválido. Não pretenderá que ache que anda por aí seqüestrando mulheres. A senhorita Aimes deve estar dormindo tranqüilamente em sua cama, quão mesmo a estas horas deveriam estar fazendo todas as pessoas decentes... —Não, não está dormindo em sua cama - o interrompeu bruscamente Michael, e mentiu uma vez mais para convencê-lo da urgente necessidade de ir visitar conde—. Telegrafou a seus serventes para dizer em que trem chegaria. Um cavalariço a foi procurar na estação e a levou até a casa do conde. Disse-lhe que voltasse a recolhê-la em uma hora. Quando retornou não o permitiram a entrada na propriedade, e após não se sabe nada nem dela nem do conde. —A casa da senhorita Aimes está a uma distância considerável da de lorde Granville - disse o superintendente, passando a mão com irritação sobre suas abundantes costeletas cinzas—. É 133


provável que ficasse passando a noite. Vá visitar você o conde amanhã pela manhã e o verá com seus próprios olhos. —Amanhã será muito tarde - disse Michael de forma contundente. O homem o olhou com suspicacia. —Se estava dirigida à senhorita Aimes, por que tem você essa carta em seu poder? O superintendente não acreditaria se lhe contava a verdade: que uma solteirona solitária tinha tentado comprar um pouco de felicidade e tinha terminado imersa em um pesadelo que durava vinte e nove anos. —A senhorita Aimes estava se hospedando na casa de uns amigos comuns em Londres mentiu Michael de novo—, e ao sair deixou a carta em seu quarto. Nossos amigos, depois de lê-la, acharam-na estranha e entraram em contato comigo. Tudo o que estou pedindo, senhor superintendente Drake, é que você e alguns de seus homens acompanhem ao imóvel de lorde Granville. Se a senhorita Aimes estiver a salvo, terá a satisfação de saber o que fez todo o possível para velar por sua segurança. —Isto não é Londres, senhor. Nossos nobres não incomodam às damas. Sai daqui, ou eu mesmo me ocuparei de que pessoas como você não possam sair à rua - grunhiu Drake. A carta não importava. A verdade tampouco. Michael dobrou a carta e a guardou no interior de sua jaqueta, mas ao fazê-lo tirou de seu bolso exterior uma arma, que parecia um argumento indiscutível. —Talvez isto o convença superintendente Drake. Drake ficou boquiaberto à vista da pistola. —Espere senhor... Michael tinha esperado muito, maldição. O conde estava triunfando. Outra vez. —Você virá comigo agora - disse martelando a arma. A cara deDrake empalideceu ainda mais que seu cabelo cinza. Um tremor sacudiu suas costeletas. —Quem acredita que é para irromper em minha casa desta maneira? —Um homem morto - respondeu Michael com absoluta sinceridade. —Minha mulher está acima. —Razão de mais para colaborar. —Estou esperando que nasça meu primeiro bisneto. —Então não o privemos de seu bisavô. Michael viu que o homem olhava para a gaveta superior de seu escritório. —Não quero machucá-lo, superintendente Drake. Nem a você nem a sua esposa. Tudo o que quero é me assegurar de que a senhorita Aimes está bem. Dando a volta ao redor do escritório, Michael abriu a gaveta e retirou o revólver que havia dentro. Drake afastou o olhar das cicatrizes de Michael. Colocou o revólver do superintendente em seu bolso esquerdo; o metal se chocou contra outro metal, um instrumento de morte contra uma caixa de latão aonde se encontrava a salvação de um prostituto e de uma solteirona. —Chame o servente que me abriu a porta - o ameaçou Michael, enquanto tirava a mão do bolso—, e diga que lhe traga sua roupa. Que tem você um assunto urgente que atender. —Por que não vai você sozinho a casa do conde e confirma com seus próprios olhos se a senhorita Aimes estiver a salvo? —vociferou Drake. Porque Anne não sobreviveria se Michael caísse nas mãos do homem. E isso era, precisamente, o que planejava lorde Granville. A vida de uma solteirona para capturar um prostituto. —Não sou um homem paciente - disse Michael, bramindo a arma na mão—. Sugiro que se apresse. Drake era perfeitamente consciente de que não podia enfrentar um homem vinte anos mais jovem que ele. Michael também. A contra gosto, o homem se levantou. Michael recuou para deixar passo. 134


—Sem surpresas, por favor, superintendente Drake. Você tem muito que perder. Bem mais que eu. O superintendente apressou o passo quando Michael lhe afundou o cano da pistola no flanco esquerdo. Ao chegar à porta, afastou-se um pouco. —Lembre o que disse. Ninguém precisa sair ferido. Não abra a porta de todo. Drake obedeceu. —Maynard! O jovem criado que tinha aberto a porta a Michael respondeu rapidamente. Tinha olhando pelo olho da fechadura? —Sim, senhor? —Há problemas na delegacia de polícia, Maynard. Tenha a amabilidade de me trazer um pouco de roupa. —Mas senhor... —disse o criado, surpreso ante aquele pedido—. Não prefere que chame seu ajudante de câmara? —Não, não, apresse-se, homem, não há tempo - respondeu Drake, dando amostras de que a agitação podia transformar-se em irritabilidade—. Tenho muito que fazer. —Muito bem, senhor. —Maynard... Michael ficou tenso. —Sim, senhor? Podia sentir a indecisão do superintendente: o homem das cicatrizes o mataria, ou sairia correndo? À superintendente de polícia não gostava de apostar. —Tome cuidado para não despertar à senhora Drake - disse bruscamente. —Bem, senhor. Drake fechou a porta. Estava pálido, mas tinha recuperado a compostura. —E agora o que vai fazer? —Reuniremos a alguns de seus homens e visitaremos conde - replicou Michael sem alterarse. —Não é necessário que envolvamos ninguém mais neste desagradável assunto. —É absolutamente necessário. —Por quê? —Porque duvido que o conde tenha por um superintendente de polícia em maior respeito que um por um procurador. Drake se encolerizou. —O conde de Granville é um cidadão respeitável com as leis, senhor, coisa que não posso dizer de você. —Se for um cidadão que respeita as leis, nos perdoará por ter entrado em sua propriedade adicionou Michael com secura. —Você não é deste lugar - assinalou Drake, esgotando os olhos debaixo de suas povoadas sobrancelhas grisalhas—. Lembraria-me de suas cicatrizes. Michael não se incomodou em corrigi-lo. —Quando seu servente bater na porta, você só a abrirá o suficiente para recolher a roupa. Depois ordenará para retirar-se e me entregará a roupa. Os débeis ecos de um relógio Westminster marcaram a hora. Era o único som que se ouvia na casa. Drake se sobressaltou quando o criado bateu na porta, o primeiro sinal de nervosismo que tinha mostrado até o momento. Aproximou-se e a abriu pela metade. —Obrigado, Maynard. Agora pode ir para a cama, E diga à senhora Drake, quando despertar, que não sei a que hora retornarei. —Como você ordenou senhor.

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Michael sacudiu a roupa para assegurar-se de que não tivesse armas ocultas e, por objetos que poderia ser usados como arma, a devolveu ao superintendente: cueca e camiseta de lã cinza, camisa branca de algodão engomado, calças de lã marrom, igual as meias três - quartos; jaqueta escocesa, lenço com seu monograma e sapatos negros. O homem lhe deu as costas e colocou a cueca e as calças antes de tirar o robe e a camisa de dormir. Michael concedeu ao superintendente um pouco de privacidade, ficando oculto nas sombras. Quando Drake se virou de novo, já completamente vestido, Michael alcançou o casaco de lã marrom. Os passos de Drake eram mais pesados que os do Michael; atravessaram juntos o vestíbulo. Umas grandes quantidades de fotografias com o molduras de prata enchiam as paredes cobertas de papel rosado e se apertavam nas estreitas mesinhas cobertas por toalhas de encaixe. Michael manteve o cano da pistola contra as costas de Drake, tampando com seu próprio corpo a arma no caso de que Maynard fosse mais curioso que obediente. Uma carruagem Clarence estava estacionada frente à modesta casa de tijolo do superintendente. Michael já tinha direcionado o chofer a respeito do que tinha que fazer. Em silêncio, e vigiando que Drake não escapasse pela outra porta, subiu atrás do superintendente, preparando-se para aquela viagem que tinha começado com o desejo de uma solteirona solitária. As luzes de gás do sistema de iluminação público faziam que no interior da carruagem se alternassem as luzes e as sombras. O rítmico tamborilar dos cascos do cavalo soava na escuridão da noite. Dover era mais tranqüila que Londres, e o ar mais puro. Sua casa. Fazia vinte e sete anos que Michael não pisava na propriedade do conde. Fazia vinte e sete anos que tinha feito o juramento. —O vi antes, em algum lugar - trovejou na escuridão a voz de Drake. Michael não respondeu. —Tem você os olhos dos Sturges Bourne. —Isso é impossível, superintendente Drake - respondeu Michael distante—. O conde é o último representante de sua linhagem. —Os homens nem sempre engendram os seus filhos no casamento - disse o superintendente em um momento em que a luz rompeu a escuridão, olhando fixamente a Michael —. Você é um bastardo que quer causar problemas? A carruagem deixou atrás outra luz do sistema de iluminação público. O cinza se transformou em negro. Os corpos em sombra. Sim, era um bastardo, mas não por linhagem de sangue. As costeletas grisalhas de Drake brilhavam na escuridão. —Quem é você? —voltou a perguntar. A luz invadiu de novo o interior do veículo, revelando as cicatrizes de Michael, seus olhos, suas feições. —Já disse superintendente. Sou um homem morto. Drake se tornou para trás. —Isso não é possível. Michael deixou que o silêncio falasse por ele. Que a escuridão se encarregasse da verdade. —Michael Sturges Bourne está morto. A carruagem sofreu uma sacudida. —Está enterrado com sua família - insistiu Drake. Um veículo que viajava de direção contrária cruzou com eles; o som dos cascos alternou com a luz e a escuridão antes de desaparecer na noite. —Mas por que haveria ele de enterrá-lo se você não está morto? Michael viu a tumba de mármore no cemitério da família. Seu nome estava gravado nela. A data de seu nascimento. A data de sua morte. O epitáfio ficou gravado para sempre em sua mente, da mesma forma que suas cicatrizes estavam gravadas para sempre em sua carne. Filho, irmão e sobrinho querido. Perguntou-se se havia algum corpo em sua tumba, ou se estava vazia, esperando-o. 136


—Por que voltou agora, depois de todos estes anos? Drake não se calaria até que obtivera respostas, e Michael, ao menos, podia responder a aquela pergunta. —Voltei para matar meu tio. O rangido da roupa e o chiado das molas do assento o alertaram. Drake estava preparandose para abrir a porta da carruagem e saltar. Michael apertou o cano de sua pistola contra o flanco do superintendente. —Mas essa é uma questão entre meu tio e eu. Agora, só o que me importa é Anne Aimes. —Por que está tão seguro de que o conde quer lhe fazer mal? —Porque tem feito mal a outras mulheres. Os faróis de gás iluminavam a entrada da delegacia de polícia. A carruagem parou. —Quais eram essas outras mulheres? O que lhes aconteceu? E se ele lhes fez mal, por que não informaram às autoridades? Em efeito, por quê? —Estão mortas, superintendente Drake. —Se você não informar às autoridades sobre essas mortes pode ser acusado de cumplicidade, senhor - gritou o superintendente. Michael sorriu sem vontade. Ninguém tinha acreditado nele quando era menino. E agora como adulto. A família de Diane estava muito ansiosa por ocultar qualquer escândalo e não se mostrou interessada em conhecer a verdade. Drake tamborilou com os dedos em cima de seus joelhos, recordando, talvez, que ninguém tinha visto o corpo de Michael Sturges Bourne. Ou talvez estava pensando em que as pessoas eram poucas vezes o que parecia ser. Embora se tratasse de cidadãos respeitáveis e notáveis. —Se o conde tiver feito o que você afirma o que lhe faz pensar que não se desfez ainda do corpo da senhorita Aimes? —perguntou bruscamente. —Porque sei. Sabia exatamente o que o homem tinha feito. —A senhorita Aimes cuidou de seus pais. Só um monstro sádico poderia enganá-la com o chamariz de escrever uma carta dizendo que a tumba de sua mãe foi profanada. Michael não respondeu, nem o deteve quando abriu a porta da carruagem e pôs os pés sobre a rua pavimentada. Deu-se conta de que a coação só podia chegar até alí. Tinha obrigado ao superintendente a ir até a delegacia de polícia, mas não poderia obrigá-lo que o ajudasse. A que ajudasse a Anne. Levantou o olhar ao céu, para a lua luminosa. Tinha mudado. Duas noites antes, quando a tinha contemplado do balcão de sua casa de Londres, só havia meia lua. O que faria Drake mudar de opinião? O orgulho de um prostituto? Suplicaria ele por Anne? Tinha suplicado ela ao homem? Abriu a porta da carruagem e atirou um florín ao chofer. Michael piscou diante da luz brilhante que havia dentro da delegacia de polícia, onde todos os ruídos cessaram quando ele entrou. Três policiais jovens e mau vestidos se encontravam ao redor do superintendente, com as insígnias de seus cascos brilhantes e os olhos inchados pelo sono. Drake olhou para Michael. —E bem? —perguntou com ácido humor inglês—. Serão suficientes estes três moços, ou devo despertar a toda a delegacia de polícia? Michael guardou silêncio. A carta que levava no bolso queimava o peito. Esperança. — Me arrumarei com eles - disse tranqüilamente. Dois policiais viajavam como escoltas; outro conduzia a carruagem da delegacia de polícia. Michael e Drake sentaram no interior, cujo maltratado assento de couro era bastante duro. Restos de feno fresco cobriam o chão. Em silêncio ofereceu a pistola ao superintendente. Este a aceitou, também sem pronunciar palavra. Saíram a uma estrada sem iluminação. Michael não teve que olhar pela janela para ver os escarpados que se aproximavam. Cada segundo, cada sacudida da carruagem o aproximava de 137


seu destino. Dominou sua necessidade de matar o homem e se concentrou em Anne. Ela o necessitava. Não lhe falharia. —Eu estava de serviço quando sua família teve o acidente - disse o superintendente com uma voz que rompeu a escuridão—. Foi horrível vê-los morrer dessa maneira. —Sim. Michael pensaria em sua família mais tarde. —Foi um acidente - disse Drake com uma certa rouquidão—. Eu mesmo permiti que meus netos conduzissem o carro quando saímos de passeio. Não foi culpa sua que a carruagem caísse pelo escarpado. —Não, não foi minha culpa - esteve de acordo Michael, recostando-se contra o respaldo do assento. A ascensão tinha começado. Os escarpados brancos de Dover se elevavam a uma altura de novecentos metros. Tinha ficado pouco da carruagem de seus pais ao cair, e ainda menos de seus corpos. O superintendente permaneceu em silencio durante o resto da viagem. Pelo latido dos cães, Michael soube que se aproximavam da propriedade. Apertou os dentes. Vinte e sete anos antes, os cães não vigiavam o jardim da casa, nem havia, rodeando-o, pontas agudas de ferro forjado em cima das taipas de tijolo de vários metros de altura. Perguntou-se quando o conde havia sentido a necessidade de proteger-se, ou dito em outras palavras, desde quando tinha começado a temer possíveis represálias. Desde que Michael tinha completado quinze anos? Dezessete? Dezenove? A carruagem parou ao terminar o caminho de cascalho. —Ei! Você! —gritou um dos policiais—. Pode nos abrir o portão? —Não vou abrir o portão a ninguém a estas horas da noite. Michael não reconheceu a voz do porteiro. Quanto tempo fazia que tinha sido contratado pelo conde? Um dia? Dois dias? Em que buraco do inferno o tinha encontrado? —Nos deixe entrar, Por Deus! Os cães ladravam e grunhiam diante o tom ameaçador da voz do policial. —Ate aos cães e abre o maldito portão! —Já te darei uma boa surra - gritou o porteiro. —Somos policiais, idiota! —acrescentou o segundo da escolta—. Ou nos abre o portão ou irás parar na prisão! —Policiais? A surpresa na voz do porteiro não era fingida. Tampouco seu medo. Ninguém tinha previsto a intervenção da polícia. Nem sequer o homem. —Temos alguns assuntos que tratar com o conde de Granville - disse o segundo escolta—. Abra! Michael esperou com os músculos tensos e a respiração em suspense. Um cavalo soprou, arranhando o cascalho com as patas. O carro se sacudiu e depois ficou imóvel, esperando com paciência o resultado da ordem. Um cão grunhiu e depois choramingou submisso. O chiado do metal anunciou que o porteiro tinha aberto. Michael tinha aberto uma brecha na segurança do homem, e tudo o que tinha requerido era o sacrifício de uma solteirona. Com o coração palpitando com força, esperou com infinita impaciência a que o carro percorresse a curta distância do jardim. Cada segundo era uma hora para Anne, cada minuto que passava outra razão para terminar o que tinha que fazer de uma vez por todas. As rodas rangeram e pararam. Michael abriu a porta da carruagem e saltou dele antes que os dois policiais desmontassem. Depois de subir a escada golpeou a aldaba da porta que o tinha mantido prisioneiro durante dois anos. Podia sentir movimento atrás dele, e a vigorosa presença dos três policiais. —Que diabos está acontecendo? Deixe de golpear a aldaba, que vai despertar aos mortos! A luz se acendeu ao outro lado da porta. Era algo novo: o homem tinha instalado a eletricidade. A porta se abriu. —Que diabos...? 138


Michael não reconheceu ao homem alto e gasto que estava diante dele, mas seu semblante lhe pareceu familiar. Criaturas como ele saíam periodicamente dos antros de ópio quando acabava o dinheiro para manter seu vício, e enquanto lhes pagassem em moedas contantes e soantes não se importavam o trabalho que tivessem que realizar ou o crime que tivessem que cometer. Era óbvio que o servente tinha reconhecido Michael. Suas cicatrizes o transformava em um branco facilmente identificável. A pouca cor que tinha o homem alto e gasto desapareceu por completo. O plano deu errado. Michael atravessou o amplo vestíbulo e subiu de três em três os degraus da escada de mogno. —Você, Jemmy! —trovejou a voz de Drake—. Segue-o, idiota! O corredor no final da escada era um abismo negro e sem fundo. Não precisava de luz para guiar-se. Sabia exatamente onde Anne estava, e sabia exatamente quantos passos o separavam dela. Os passos de um homem. Não os de um menino. O corredor era tão interminável como então. Atrás dele soava os passos das botas dos policiais sobre o nu chão de madeira. —Senhor? Michael se aproximava de Anne. A sua risada, que só tinha ouvido uma vez. A sua paixão, com a que apenas se deleitou brevemente. Estava viva. Podia sentir. Uma luz se acendeu por debaixo de uma porta. O som de uma campainha atravessou a madeira, seguido por uma voz ameaçadora: —Frank! Michael não parou. A última porta se encontrava fechada, como ele supunha. Jogou seu corpo contra ela. Uma. Duas vezes... Uma luz atravessou a escuridão, como se fosse um farol em miniatura. A lanterna do policial iluminou a madeira de mogno, enfocando a Michael. Maldição estava esgotando o tempo. A porta se abriu com um ruidoso estrépito. Acendeu um fósforo. O interruptor da luz elétrica estava junto ao marco interior da porta. Uma luz brilhante o cegou durante alguns segundos. Uma fraca, mas inconfundível pestilência ressaltava o aroma de sulfureto queimado e flutuava para a estreita escada do sótão. Sentiu que seu estômago se revolvia. Tentou lutar contra o temor que inspirava aquela fedor tão familiar e contra a tentação de incendiar a casa até seus próprios alicerces. Apagou o fósforo, deixou cair no chão e subiu os degraus correndo. A porta de acima estava fechada. Um dos policiais se uniu a ele. A madeira se rachou; a porta do sótão se abriu. O cheiro da morte o deixou sem respiração. Um raio de luz atravessou uma caixa de madeira, dançou para trás e para diante na escuridão e depois captou os contornos de uma segunda caixa antes de desaparecer por completo. A luz elétrica estalou de repente sobre sua cabeça, delineando claramente dois caixões. Michael sabia em qual estava Anne. Podia sentir os batimentos de seu coração, podia saborear seu medo. A tampa tinha sido pregada. Agarrou o martelo que descansava sobre o segundo caixão. Passaram minutos intermináveis enquanto arrancava os pregos com a fenda do martelo. Dentro do caixão não se ouvia nada. Não estava morta. À madeira tinham alguns orifícios, para permitir que entrasse oxigênio, mas havia coisas muito piores que a morte. Umas mãos com luvas brancas se uniram a suas mãos cobertas de cicatrizes, o ajudando a ampliar os espaços entre os pregos soltos antes de arrancar, finalmente, a tampa do caixão. Anne estava em seu interior, com os olhos fechados e as bochechas úmidas pelas lágrimas. Chorava em silêncio. Reluzentes corpos escuros se deslizavam pelas dobras de sua roupa e de seu cabelo. —Meu Deus! Durante um segundo, Michael pensou que era ele que falava em voz alta, mas depois sentiu o calor de um corpo ao lado dele. Era o policial, Jemmy, que tinha soltado aquela exclamação. 139


—Os vermes se arrastam sobre ela - disse com um nó na garganta. Soava como o homem jovem que era e não como o representante da lei. Michael ignorou o horror do policial. Tinha experimentado os seus próprios vermes vinte e nove anos antes, e agora tinha que ajudar a Anne. —Anne! Inclinando-se sobre ela, agarrou-a por debaixo dos ombros e as pernas e a levantou do caixão. Tinha as costas molhada. Não se importou, mas sabia que a ela importaria. —Anne! Fale-me! Abre os olhos! Esta tudo bem! Abre os olhos, Anne! Ela abriu os olhos. Suas pupilas estavam dilatadas pelo terror. As lágrimas continuavam deslizando-se por suas bochechas. —Me deixe no chão. Tinha a voz rouca de tanto gritar, de tanto implorar, de tanto soluçar. Não há lugar para o orgulho dentro de um caixão. Michael a baixou. Um verme deslizava por seu pescoço. Gritou. Sua solteirona, que sempre se sentira orgulhosa de seu autocontrole, agora não tinha nenhum. Michael queria chorar. —Esta tudo bem, Anne - exclamou tirando os vermes de cima—. Já não podem te machucar. Tudo terminou. Não, não chore. Não deixe que ele te faça isto. Mas ela não podia deixar de chorar, e Michael sabia por que. —Retirem-se - disse em tom áspero. O jovem policial estava muito ansioso de escapar daquele fedor e daquele horror. —Não chore Anne. Tudo bem, e eu me encarregarei de que tudo seja melhor. Passou seu braço esquerdo ao redor dela e pressionou a cara contra seu ombro, sabendo que ela resistiria, sabendo que podia feri-la, sabendo que não havia outra solução. Subindo a saia de lã, deslizou sua mão entre suas coxas. Seda. Usava as meias de seda que madame René lhe tinha enviado. Estavam úmidas; nem toda a umidade provinha do desejo. Anne resistiu como ele tinha esperado que o fizesse. —Me solte. O que está fazendo? —Ele colocou algo dentro de você, Anne. —Vermes! Meu Deus estão em todas as partes! —gritou afastando-se de seu lado com uma força que ele nunca tivesse pensado que tinha—. Solte-me! Não me toque! Posso senti-los, OH, Deus! Estão dentro de mim! —Não - exclamou ele, segurando-a com firmeza ao tempo que as lágrimas queimavam seus olhos—. Escute-me, Anne. Não são vermes o que há dentro de você. Juro-lhe isso. São duas bolas de prata. Duas bolas de prata que criam excitação sexual dentro de uma mulher. Não me despreze, por favor. Me deixe tirar isso. Ela se soltou de seus braços. Michael assistiu um milagre. A beira da histeria, ela encontrou a força necessária para recuperar o controle. —Por favor. Eu posso... Vire-se. Ele o concederia. Por agora. Mas não permitiria que seu tio destruísse sua paixão ou sufocasse o despertar de sua sensualidade. Já tinha tirado muito de ambos. Michael lhe deu as costas. Capítulo 19 Anne se concentrou em duas coisas: em não gritar e no banho que tomaria ao chegar a sua casa de Dover. Debaixo dela, a carruagem se movia e dava sacudidas. A seu lado, Michel - ainda não sabia seu verdadeiro nome, e nem sequer se lembrava de que soubesse vinte e sete anos antes, quando se supunha que tinha morrido— ardia e palpitava. Não, era o corpo dela o que ardia e palpitava, agitava-se e se retorcia envolto em roupas que tinham sido manchadas por seu próprio medo. Por sua própria vulnerabilidade. Manteve a boca fechada para controlar a histeria crescente. A náusea se agitava em seu estômago. 140


—Não é necessário que me acompanhe até minha casa, monsieur... Tinha a garganta vermelho vivo; sua voz soava grave. A dor não impediu que brotassem as palavras. —Como devo chamá-lo? Monsieur De Anges, ou honorável senhor Sturges Bourne? É o sobrinho de um conde, e em nossa sociedade é importante respeitar às regras do protocolo. Quero me dirigir a você com seu próprio título. —Sofreu uma comoção - foi a simples resposta. Estava se desafogando, mas não se sentia comocionada. Todos os nervos de seu corpo formigavam. Os pensamentos revoavam em sua mente como mariposas de cristal. Frank tinha lhe tirado o chapéu, que permanecia no quarto de lorde Granville, assim como suas luvas e sua bolsa. O conde ainda possuía uma parte dela. Pressionando sua boca com a mão, olhou pela janela. A escuridão a rodeava. Como em um caixão. Se deu conta de por que o homem que estava sentado junto a ela não dormia na escuridão. Tragou a bílis. —O que havia no outro caixão? —perguntou, enquanto seus lábios tremiam de maneira incontrolável e as lembranças a enrolavam—. Ele disse que era minha mãe. —Era um gato negro. Ou um cão. Ou um rato. —Tem que saber. —Sim, tenho que saber. Ela cruzou os braços sobre o peito, sentindo em seus dedos a aspereza do tecido de sua capa. Vermes invisíveis continuavam arrastando-se sobre sua pele. Como tinham arrastado sobre a pele de sua mãe. De seu pai. Profundamente enterrados na escuridão. Anne se sentiu enjoada. —Inclina a cabeça sobre os joelhos. —Estou bem - insistiu ela, apertando os dentes—. Peço que não se preocupe comigo. — Se sentira melhor depois de um banho. Ela rezou por que assim fosse. Temia que não fosse se sentir melhor nunca mais. E que os vermes se arrastariam sobre sua pele durante toda a eternidade. Reconheceu um sabor amargo na boca. O chá. Seu terror, deitada na escuridão. O perfume da morte e o aroma mofado dos vermes... Não, se continuasse assim, começaria a gritar de novo. Anne Aimes. Uma mulher que gritava de paixão. Uma mulher que gritava de terror. Parecia impossível que doze horas antes tivesse desfrutado do confortável anonimato de uma viagem num trem, e que só algumas horas antes da viagem tivesse gritado de prazer ao sentir em seu corpo a paixão de um homem. —A segunda noite que estive com você - disse de forma brusca e com a voz rouca—, pôs algo em minha taça de vinho. —Sim. —Por quê? —Precisava de tempo para dispor algumas coisas necessárias para sua segurança. —Não minta! —disse em tom de ameaça—. Você sabia... —Não pôde continuar a frase—. Lady Wenterton... Ela é a mulher a quem tanto amava e com quem teve grande intimidade sexual... Além de uma íntima amizade. A carruagem avançava em meio da escuridão. —Sim. —Ele fez o mesmo que a mim? —Sim. —Amava-a? —Sim. —E não foi capaz de impedir que ele a torturasse! —concluiu sem ocultar sua repulsão—. Como pôde falhar dessa maneira? 141


—Não sabia que ela estava em seu poder - respondeu com a voz distante—. Pensei que tinha ido visitar sua irmã. Recebia telegramas. Não sabia. —Mas você sabia... —disse Anne respirando mais calmadamente—... O que me faria. —Sim. —O que esperava conseguir por meio de seu engano? —Vingança. Por que a carruagem não ia mais rápido? Por que não cessava aquela dor? Seus dentes começaram a bater. Pelo frio. Pela traição. Pela repugnância e o terror intermináveis. —Quanto tempo lady Wenterton esteve em seu poder? —Dois meses. Arme fechou os olhos. Tentou imaginar se podia suportar estar presa dentro de um caixão durante dois meses, consumida por desejos luxuriosos. Não pôde. Anne abriu os olhos e ficou olhando as linhas imprecisas de sua cara. —Como morreu? —Diane tapou com roupa a porta de seu quarto e acendeu o gás de seu abajur. Houve uma explosão, causada muito provavelmente pelas brasas acesas da lareira. Queria morrer. E o fez. Não havia nada mais que dizer. Lady Wenterton tinha escolhido a morte e não a vida. Anne não podia reprovar-la. Tola, tola, tola e velha solteirona. Recostou-se contra um canto da carruagem e se concentrou no duro e maltratado assento de couro, no feno fresco que havia sob seus pés, no chiar das rodas, em algo que não fossem a escuridão e o calor pegajoso que continuavam revolvendo seu interior. Ele não disse nada. Como se esperasse... O que? No momento em que o estalo continuado e as sacudidas do veículo pararam, Anne abriu a porta e desceu. Tropeçou e caiu no chão. Tola, tola, tola e velha solteirona. Umas mãos fortes, cobertas de cicatrizes, foram em sua ajuda imediatamente. Anne se agarrou a elas e se levantou. Tinha tido três noites de paixão. Se arrependeria durante o resto de sua vida. Sua casa de Dover estava escura. Silenciosa. Um enorme caixão a esperava. Anne fechou com força a porta da carruagem, esquecendo-se da dignidade, lhes dando boas vindas à dor e ao ruído, tentando escapar das lembranças e do homem que estava atrás dela. Por que não ia embora? Seu mordomo abriu a porta da casa. Levava uma vela acesa em sua mão nodosa. Enrugava a cara envelhecida com uma irritação pouco acostumada. Ficou boquiaberto. —Senhorita Aimes! Era já muito velho para o trabalho que desempenhava, pensou Anne de maneira irracional. No dia seguinte o retiraria do cargo. Poria sua propriedade à venda e se despediria de todos seus serventes. Mas isso seria no dia seguinte. No momento, teria que sobreviver o resto da noite. Correu escada acima, enquanto suas pernas se enredavam nas anáguas de seda e a saia de lã. —Senhorita Anne! Ouviu aquele eco que a perseguia. Um murmúrio masculino respondeu, subindo a escada e atravessando seu corpo. Não deixou de correr. O cheiro de madeira úmida, a ar mofado e a desinfetante impregnava a madeira que revestia as paredes do corredor e o tapete de lã verde sob seus pés. Não diminuía, entretanto, a fragrância da morte que se pegou a sua roupa, a seu cabelo, a sua pele. Agora compreendia tantas coisas... A abundância de flores na casa de Michel. A proclamação de sua paixão por ela. Não tinha desejado uma mulher. Tinha desejado vingar-se. Anne abriu a porta de seu quarto e remexeu a gaveta de sua mesinha de noite em busca de fósforos. Deixou sair o gás do abajur - e durante um segundo interminável pensou em lady Wenterton —. Acendeu um fósforo a toda pressa, levantou o globo de cristal e prendeu a mecha do abajur. As sombras se projetaram nas paredes. Anne tirou o sutiã. Um botão caiu no chão, desaparecendo sem deixar rastro no desbotado tapete verde. Não importava. Nada importava, exceto despojar-se de sua roupa. As anquinhas ridiculamente frívolas e sem arames caiu no chão com um rangido surdo; as anáguas com um vaio sibilante. Tinha medo de olhar, medo de encontrar entre seus objetos mais 142


vermes. O espartilho. Não podia desatar o espartilho. Sua criada estava dormindo, e não queria que uma de suas faxineiras a visse em semelhante estado. Debaixo do espartilho, sua pele formigava. A histeria a empurrava e a arranhava por dentro, como um ser vivo que procurava a maneira de expressar-se. Não permitiria que o conde fizesse isto. Tesouras... Anne procurou freneticamente em sua cômoda a cesta de costura, que não tinha visto a luz do dia em dez meses. Sua mãe tinha ensinado que uma dama devia ocupar-se ela mesma da agulha e dos fios. Anne zombava carinhosamente dela quando se sentava ao bordo de sua cama a remendar lenços que nunca ninguém usaria. As pequenas tesouras eram feitas para cortar fio, mas ela as utilizou para despedaçar o tecido de cetim negro, fibra a fibra. Atirou o espartilho e as tesouras às sombras que não paravam de retorcer-se nas paredes. O nó que sentia dentro dela, não obstante, não desapareceu. Tirando a úmida e pegajosa regata de seda por cima da cabeça - OH, Deus, ele havia sentido e visto sua falta de controle—, desatou os calções e os pisoteou no chão. Ligeiramente surpreendida ante seu comportamento violento, arrancou-se a liga e as meias de seda. Em meio do desespero se desfez das presilhas que segurava seu penteado, inclinou-se para frente e sacudiu a cabeleira uma e outra vez, desenredando-a com os dedos. Não havia tempo para esquentar a água no aquecedor. Com as mãos trêmulas, Anne acendeu as lamparinas de parede que havia a ambos os lados do lavabo. Uma solteirona suja e desalinhada se olhou no espelho e viu que um brilho de prata esclarecia seu pálido cabelo castanho. Estava muito reconhecível. O conde tinha mostrado exatamente quais eram as qualidades que a distinguiam. Abriu o grifo da banheira. A água com a cor do óxido saiu em cascata do conduto. Incapaz de esperar a que enchesse a estreita banheira de porcelana meteu-se dentro dela e se colocou debaixo do jorro. Um dilúvio gelado lhe cobriu a cabeça e as costas. A água estava tão fria que a deixou sem respiração. Endireitou os ombros e alcançou uma pastilha de sabão e uma toalhinha de asseio. Esfregou a pele e o couro cabeludo até irritá-los tanto como sua garganta. Quando a banheira se encheu, fechou a torneira e continuou esfregando-se. Os vermes continuavam deslizando sobre seu corpo. Por dentro. Por fora. Afundou sua cabeça na água e sentiu que seu cabelo flutuava a seu redor. Vivo. Tirou-a de novo, procurando oxigênio. Ele estava junto à banheira: sem casaco, sem chapéu, sem luvas. Michel de Anges, o honorável senhor Sturges Bourne. O pêlo negro se encrespava através do pescoço aberto de sua camisa branca. Uma barba incipiente obscurecia seu rosto. As cicatrizes ao lado de suas faces eram completamente brancas. Com a água caindo sobre a cara, Anne cruzou seus braços sobre o peito, dando perfeita conta da ridícula que devia parecer. Michel tinha visto muito mais que seus seios. —Saia daqui imediatamente! Meu procurador...Estava morto. O que tinha feito ele com o corpo do senhor Little? —Farei os acertos necessários para que o banco deposite em sua conta o resto do dinheiro. —Não quero seu dinheiro, Anne. O arrependimento que brilhava em seus olhos desapareceu instantaneamente. —Nunca quis seu dinheiro. Nunca quis seu dinheiro. Sua paixão. —Entretanto... —disse ela com a voz entrecortada, depois de engoli seco—. Entretanto, isso é o que estipula o contrato. Respeitarei seus termos. Vá, por favor. Os serventes começarão a murmurar. Anne se encolheu diante sua hipocrisia. Era muito tarde para preocupar-se com o que dissessem os serventes. Já não importava. Já nunca se importaria o que pudessem dizer dela. Os rumores e as intrigas não paralisavam nem encarceravam. Não faziam com que alguém gritasse até que queimasse a garganta e tivesse que fechar a boca. Não faziam... —Se levante. 143


Anne viu a claridade em meio da escuridão profunda. —Como disse? —Que se levante - respondeu alcançando uma toalha da prateleira que havia ao lado da banheira—. Esta ficando azul. —Monsieur De Anges... —Meu nome é Michael. Michel é Michael em francês. E meu nome é Gabriel. Cabelo negro. Cabelo prateado. Cabelo grisalho. —Não me importa qual seja seu nome. Saia de minha casa! Pelo amor de Deus, já não fez o suficiente? Durante um segundo ficou olhando-o, e no segundo seguinte o tinha a seu lado. Com um suave movimento, ele a levantou da banheira e envolveu a toalha ao redor de seus ombros. —Vai escutar-me - disse isso—, você goste ou você não goste. —Para que possa entender? —gritou ela, fechando a boca imediatamente, irritada por ter perdido o controle. Estava quieta, com a toalha ao redor dos ombros. A garganta ardia. Tremia. Odiava sua fraqueza, sua vulnerabilidade. Odiava o fato de que ainda o desejava. Enquanto sua mãe estava morta: alimento para os vermes. —Você pensa que nunca vai se recuperar - acrescentou com seu quente fôlego acariciando a face—. Mas pode fazer. E fará. Eu te ajudarei. Ela tragou a repulsão que sentia e ajustou a toalha ao redor dos seios, tirando-lhe das mãos. —Não quero sua ajuda. Ele se aproximou. Alto, moreno, de aparência agradável, tudo o que ela tinha desejado sempre em um homem. —Isso é lamentável, mademoiselle Aimes, porque de qualquer maneira penso em te ajudar. —Não me fale em francês! —exclamou ela, insensível à dor que irritava a garganta. A água deslizava pelo pescoço, pelos ombros, pelos braços, pelas pernas, —. Você não é francês! Mentiu para mim! Você me disse que desejava minha paixão, mas não era certo! Usou-me! —Mas desejo sua paixão, Anne - confessou ele com uma dura expressão; o brilho violeta de seus olhos era inconfundível—. E vai me dar. O medo se sobrepôs à razão. Ele bloqueava a porta do banheiro, e as suas costas só tinha a banheira. Não havia um lugar seguro. Não havia onde esconder-se da verdade. —Se não se afastar... —O que, Anne? —perguntou de modo provocador—. Se não me afastar, o que fará? O que podia fazer uma mulher para deter um homem? Não tinha sido capaz de deter o conde. Não tinha sido capaz de deter o varredor que a tinha empurrado para as rodas de uma carruagem que vinha pela rua. Não tinha sido capaz de controlar seu próprio corpo. O tremor cresceu dentro dela. —Vai me matar. A lembrança do alfinete de seu chapéu e de seu pênis úmido de saliva brilhou em seus olhos violetas. —Disse que nunca te faria mal. Mas tinha feito mal. —Ele disse que você tinha assassinado a sua família. —E a você do que te acusou Anne? Ela não queria dizer. As palavras obstruíam na garganta. —De ter assassinado a minha mãe. —E o fez? Anne lhe deu uma bofetada. Ela, que nunca em sua vida tinha levantado uma mão contra ninguém e contra nada. O golpe ressoou no pequeno banheiro e seu único objetivo era fazer mal. Porque ela podia fazê-lo. Horrorizada, levou as mãos à boca. Em seus dedos sentia um formigamento como se centenas de finas agulhas os tivessem atravessado. Quatro dedos deixaram 144


seu rastro sobre sua bochecha esquerda, sob a incipiente barba. Os olhos violetas não deixaram de olhá-la. —Íamos passar um dia no campo junto ao mar - disse—: minha mãe, meu pai, minhas três irmãs menores e eu. Eu tinha onze anos e estava preparando meus exames para entrar em Eton. Meu pai brincava dizendo que já era um homenzinho e, portanto, em um dado momento, entregou-me as rédeas da carruagem. As rédeas, entretanto, estavam soltas, cortadas. Os cavalos desgovernaram. Correram pelo caminho, atravessaram um campo e se dirigiram até a borda do escarpado. Meu tio apareceu do nada, montado em seu próprio alazão, mas nem sequer tentou deter nossos cavalos. Minha mãe me agarrou e me jogou nos braços de meu tio. Seu cavalo se elevou sobre as patas traseiras e ambos caímos no chão. Ele foi pisoteado. Eu fiquei atirado ali, vendo como minha família caía pelo escarpado. Ele me tirou tudo o que eu queria na vida, Anne, e agora não vou permitir que destrua você também. Anne baixou as mãos lentamente. As rédeas não se romperam. —Ele os matou. —Matou? —respondeu Michael cinicamente—. Ou foram as mãos inexperientes de um menino que perderam o controle da carruagem e fizeram que sua família caísse por um escarpado? A culpa. A outra cara do amor. —As rédeas tinham sido cortadas - disse ela com ênfase. —Em tal caso, onde estão as rédeas? Não há provas. Ele era um conde. Meu pai era seu irmão menor. Por que ia matá-lo? Anne não hesitou nem um momento de que o conde tivesse matado a seu irmão. —Está louco. Ele sorriu. Sem humor. Sem calor. —Meu tio é muitas coisas, mas não um louco. Nunca te menti, salvo pelo fato de que sabia quem era antes de te conhecer. Na Casa de Gabriel, enquanto te esperava, esperei também que a mulher que tinha solicitado meus serviços visse minhas cicatrizes e mesmo assim me desejasse. Você foi à mulher que estava esperando. Você foi à mulher que eu esperava que me desejasse. Queria me vingar, Anne, mas queria sua paixão ainda mais. Queria te segurar entre meus braços, te agradar. Você tinha me solicitado. Tinha solicitado meu corpo. Importava-se? Importavam meus desejos? Minhas necessidades? E agora me diga Anne Aimes: quem usou a quem? Anne respirou profundamente, indignada diante aquela injusta acusação. —Eu não pus sua vida em perigo. —Pôs em perigo sua vida no momento em que saiu da Casa de Gabriel com um estranho. Há homens que desfrutam fazendo mal às mulheres. Há homens que desfrutam matando. Homens como o conde. Durante alguns momentos tinha esquecido o horror que tinha vivido. A angustiosa necessidade que crescia dentro de seu corpo. Sua resposta trouxe tudo de novo à memória. O horror. A fome. Vorazes apetites sexuais, havia dito o conde. Terríveis delícias... Sua luxúria a trouxe até aqui. Se tivesse controlado seus apetites sexuais e se ficasse em Dover, hoje estaria a salvo. Se meu sobrinho tivesse controlado sua luxúria e se ficasse em Yorkshire, hoje estaria a salvo. Mas ela não ficou em Dover. Nem Michael Sturges Bourne, em Yorkshire. E ali estavam agora. Ele se afastou. Ela se apressou em deixá-lo atrás. Não seria castigada por suas necessidades. Anne parou na soleira da porta. A roupa que tinha dispersado pelo chão do quarto tinha desaparecido. Um lençol branco cobria o colchão, e os dois almofadões, envoltos em brancas capas bordadas, tinham sido preenchidos. As mantas se encontravam dobradas aos pés da cama. Chamas amarelas ardiam na lareira. Uma bandeja de prata descansava sobre a mesinha de noite ao lado do abajur de gás. Ela piscou em sinal de confusão. A doçura aromática do chocolate impregnava o ar. Um tecido de grosso algodão passou pelas bochechas; sua ondulante cabeleira molhada foi recolhida para trás e esfregada delicadamente com uma toalha. Anne se afastou e virou a face. Ele segurava uma toalha úmida na mão. Seus olhos violetas a olhavam espectadores. Alertas. De predadores. 145


Uma sombra azul obscurecia seu cabelo e sua face. Ela tinha acariciado sua barba incipiente enquanto ele dormia. Tinha beijado aquela boca perfeita. E não sabia a quem tinha acariciado e beijado. Michel? Michael? Seu coração pulsava violentamente dentro de seu peito, dentro de sua vagina. —Não te desejo. Ele começou a brincar provocadoramente com a ponta da toalha que ela segurou ao redor dos seios. —E agora quem está mentindo? Seus dedos, maltratados pelas cicatrizes, eram duros. Anne podia fugir. Ou podia enfrentar ele. O poder de uma mulher. —Se te desejar é por culpa das bolas de prata. —Sei. A toalha escorregou de seu corpo e foi para seus pés. Ela apertou as mãos, rendendo-se, combatendo a humilhação, combatendo a excitação. Ele acariciava com o olhar suas panturrilhas, suas coxas, a úmida mancha de pêlo entre suas coxas, seu estômago, seus seios. Todos os lugares de seu corpo que havia tocado. Seus mamilos se endureceram. Não podia enganar a si mesma pensando que era pelo frio. Ele sempre soube até que ponto ela o desejava. —Te paguei - disse ela com aspereza. Seus olhos enfrentaram aos seus, onde uma chama violeta brilhava nas profundidades. —Sei. —Não é você que desejo - disse ela com crueldade deliberada, odiando a si mesma, odiando a ele, odiando o conde por ter destruído a única beleza que tinha conhecido em sua vida—. Qualquer homem serviria. A luz em seus olhos se apagou, e umas mãos duras agarraram sua face. —Sei. Ela abriu a boca para retirar suas palavras. Sua boca se fechou sobre a sua. Seus lábios eram tão suaves como as pétalas das rosas, e sua barba incipiente abrasou a pele do queixo. Isto era o que ela era rodeada pela morte, tinha desejado. Seus beijos. Seus abraços. Tinha rezado a Deus para que fosse ele quem a salvasse. Jogou a cabeça para trás. Desprezando-o. Desprezando a si mesma. Ele sustentou seu rosto frente ao seu, roçando os lábios com seu fôlego. —Se opuser resistência, Anne, terei que te amarrar na cama. Não me obrigue a usar a força. Deixe-me te ajudar. Deixe-me te mostrar... Anne ficou rígida. Não podia deter aquela onda de sentimentos contraditórios. —Como mostrou a lady Wenterton? Ajudou-a amarrando-a na cama? Seus dedos se estreitaram ao redor de sua cabeça, e lhe oprimiram o couro cabeludo. —Não, mas como gostaria de ter feito. Talvez, então, estaria viva. Mas ela não queria que eu a tocasse. Eu respeitei seus desejos. Pensei que o tempo a curaria. E agora está morta. Arrancou dele, como sua família. A água descia por suas costas, deslizando-se entre as nádegas. O calor de seu corpo acendia os lábios, a cara, os seios, a pélvis. —Eu não estou em perigo de tirar minha vida. —Há muitas maneiras de morrer, Anne. —Eu não pedi que me acontecesse isto. —Eu tampouco. —Eu gritei! —O calor de seu corpo não tirou o frio que sentia por dentro—. Não pude deixar de gritar! Ele acariciou os lábios com os seus. Lenta, suave, sedutoramente. —Agora já deixou de gritar. Mas ela queria fazê-lo. Queria abrir a boca, gritar até ficar exausta e expulsar tudo o que tinha em seu interior. Não mais medo. Não mais desejo. Anne não fechou os olhos. Ficou olhando a si mesma nas pupilas dele: uma mulher simples, de cara pálida, presa dentro de suas próprias 146


paixões. Com um suspiro, ele fechou os olhos, acariciando suas faces com suas longas, negras e sedosas pestanas. Sua língua se introduziu em sua boca, e o impacto chegou até o mais profundo de seu ser. Anne fechou os olhos, abrindo involuntariamente a boca. Sentiu a escuridão atrás de suas pálpebras. De repente, foi arrastada e levada pelos ares. Abriu os olhos. Estava deitada na cama. O linho branco caiu ao chão, revelando um arbusto de pêlo negro, dois mamilos pequenos e eretos e uns músculos torneados. O peito de Michel. O peito de Michael. Tentou sentar, de rebater o fragor de seu corpo. O cabelo tinha enredado e impedia de mover-se, roubando a pouca dignidade que ainda possuía. —Não serei forçada. O colchão se afundou; ele se sentou a seu lado: todo músculos e masculina tentação. —Não tenho nenhuma intenção de te forçar. —Não acha que atar uma mulher à cama é forçá-la? Sua voz se quebrou, tentando chegar a um grau de histeria que não pôde alcançar. Flexionando seus músculos tensos e produzindo um penetrante som metálico, ele estendeu a mão e levantou a tampa redonda da bandeja de prata. Ela recordou a bandeja sobre o colo do conde. Recordou os vermes que se arrastavam sobre ela. Liberou seu cabelo e se sentou na cama, só para ficar surpreendida diante a imagem de um prato aonde havia um recipiente de prata e uma banana. Ele colocou a tampa no chão, fazendo que o colchão chiasse com seu movimento, e depois colocou um dedo no recipiente de prata. Saiu coberto de chocolate. —Meu tio era meu tutor legal - disse enquanto examinava o chocolate com uma mistura de curiosidade e desprezo na cara—. Ninguém acreditou quando eu disse que as rédeas da carruagem tinham sido cortadas. O conde tinha sido pisoteado pelo cavalo ao tentar nos salvar, responderam-me. Por que ia querer fazer mal a seus únicos parentes? Sem prévio aviso aproximou a mão e esfregou seu dedo contra o mamilo esquerdo de Anne. O chocolate era suave e sedoso, mas a pele que havia debaixo era áspera. O chocolate estava quente. Queimava. Ela recuou, sobressaltada pela dor. Seus olhos violetas a apanharam. —Fica aquieta Anne - advertiu. O chocolate se esfriou e se endureceu imediatamente. Seu mamilo palpitou. —O que está fazendo? —sussurrou. Ele não a desejava. Além de seu dinheiro, ninguém desejava uma solteirona de trinta e seis anos. Mas ele nem sequer queria seu dinheiro. O abajur de gás chiou. Uma sombra passou roçando suas feições. —Eu gostava de chocolate quando era menino - disse desapaixonadamente. Uma brasa explodiu na lareira. Anne estava desconcertada. Não era ela quem seus olhos violetas olhavam. —Davam-me chocolate no café da manhã - disse, recordando o menino que alguma vez tinha sido—.Na hora do almoço. Antes de ir dormir. Meu tutor aprendeu rapidamente que a promessa de um pedaço de chocolate me motivava a ler o Shakespeare, a conjugar os verbos latinos e gregos e a memorizar inclusive a tabela de multiplicar. Eu escondia meus prêmios e comia de noite na cama para não ter que compartilhá-los com minhas três irmãs menores. Estava acostumado a sonhar com o dia em que crescesse e pudesse ter todo o chocolate que desejasse. Anne esteve a ponto de sorrir diante a imagem daquele homem tão arrumado, apesar de sua barba e suas cicatrizes, sendo subornado com chocolate para que estudasse. O vivo desejo de sorrir se diluiu diante o pensamento de suas três irmãs menores, mortas por culpa do conde. Ela também poderia estar morta. Ele voltou a colocar o dedo no recipiente. —Meu tio esteve doente durante vários meses - disse lubrificando de novo chocolate ao redor do mamilo: um calor que se solidificava em uma crosta fria. Uma onda de prazer contraiu seu ventre; os músculos de sua vagina, ambiciosos, contraíam-se, relaxavam-se, esticavam-se—. O cavalo tinha quebrado as pernas e prejudicado a coluna vertebral. Não queria que eu estivesse

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perto. Levantou os olhos e dirigiu um olhar inesperadamente brilhante, um olhar dirigido a ela e não ao passado. —Se deite Anne. De repente, ela não queria ouvir o que ele ia dizer. Não queria saber nada a respeito dos horrores que ele tinha padecido durante o tempo que viveu com seu tio. Não queria estar deitada nunca mais e recordar o que sentia ao contemplar a escuridão, incapaz de deter o medo e o desejo. Não queria perdoar a aquele homem o que era imperdoável. Ele tinha traído sua confiança. Sua paixão. —Lorde Granville ia me deixar morrer - acusou com a voz rouca. E ela não poderia fazer nada por evitar. —Sim. —Por você! Os olhos violetas cintilaram. —Mentiu para mim, Anne? Seus seios se moviam compassados com sua respiração. Diminutas gretas se desenhavam sobre a endurecida capa de chocolate que cobria seu mamilo. —Eu nunca menti para você. —Disse que queria saber o que eu sentia. —Sim. Ela lutou contra a lembrança de sua masculinidade dentro dela, de seus dedos pressionando ritmicamente seus clitóris enquanto seu pênis entrava e saía de seu corpo. —Deixou-me ver o que sentia. —Sou algo mais que um pênis, Anne. Enquanto que ela era exatamente o que parecia: uma simples solteirona. —Suponho que agora vai dizer que o que fizemos foi algo mais que foder! Anne quase se afoga diante daquela vulgaridade. Da mesma forma que o tinha feito diante o sacrilégio do conde quando chamou “foder” ao que tinha ocorrido entre um prostituto marcado pelas cicatrizes e uma solteirona. Ela nunca tinha considerado que o que tinham feito fosse “foder”, como tampouco tinha considerado que Michel de Anges fosse um prostituto. Seu olhar não se separou do seu. —Deite para trás. Ela cravou as unhas nas palmas das mãos. —O que quer de mim? —Quero que me escute. Quero que conheça o homem que há atrás do pênis. Anne não podia respirar diante do olhar de seus olhos violetas, uns olhos que não pertenciam nem a Michel, famoso por sua habilidade para satisfazer às mulheres, nem a Michael, o herdeiro de um condado. Tudo o que pôde fazer foi... Recostar-se. Com seus longos dedos, ele afastou sua cabeleira úmida de seus ombros e de seus seios e a estendeu sobre os travesseiros; parecia insensível aos fios grisalhos que adornavam seu cabelo. Estendendo a mão, colocou outra vez o dedo no recipiente de prata. Anne estava tensa, em expectativa. —Quando minha família morreu, procurei consolo no chocolate - disse, passando o polegar pelo mamilo direito: um rápido calor ardente—. E com meu tio doente, os serventes me davam tudo o que eu queria. Anne se concentrou em seus olhos, que olhavam impassivelmente seus seios, mas não viam a luxúria que a estremecia por dentro. —Foi assim como me encontrou na noite que veio inesperadamente me visitar - disse esfregando o mamilo direito—. Na cama e com a cara melada de chocolate. Anne olhou para baixo e viu o mesmo ele: seus seios cobertos de chocolate. Como sua cara quando era um menino de onze anos. Mas não havia nada de infantil —nem de inocente— nas manchas que cobriam seus seios brancos. Ela levantou a vista. O conde havia dito que seu sobrinho era um moço encantador. 148


Entretanto, agora não havia amor em seu rosto. —Meu tio me olhou e me fez uma pergunta - continuou dizendo em tom plácido e monótono. O mamilo dela esfriou, abandonado, e ele colocou os cinco dedos de sua mão na terrina de prata—: “O quanto você gosta de chocolate?”. Lenta e metodicamente, estendeu a doce substância sobre todo seu seio direito. A respiração de Anne se acelerou: pela inquietação, pelo desejo. Uma excitação líquida começava a umedecer a vagina. Esticou os músculos para deter o fluxo. Não pensava que fosse assim. —Na noite seguinte, Frank levou meu tio, em sua cadeira de rodas, até meu quarto acrescentou, inspecionando o trabalho que tinha feito com suas mãos—. Trouxe-me uma barra de chocolate. Estava cheia de vermes. Anne estremeceu diante a sensação involuntária que se estendia no espaço que havia entre seu ventre e seus seios - e diante a imagem que suas palavras provocavam—.Ele estendeu o chocolate sobre seu seio esquerdo: calor suave e dedos ásperos. —Perguntou-me se eu sabia o que estava comendo minha mãe, enterrada clandestinamente em um escuro caixão. Vermes, disse-me. Disse-me que se não comesse a barra de chocolate Frank me enterraria junto e minha mãe. Eu comi. —Michel... Seu nome foi pronunciado espontaneamente. —Já lhe disse. Meu nome não é Michel - insistiu, elevando as pestanas. A cor violeta de seus olhos parecia ter sido tragada pelo negrume de suas pupilas—. É Michael. O honorável Michael Sturges Bourne. Mas não havia nada de honorável em permitir que uma mulher solicitasse seus serviços. Conhecendo o preço que ela teria que pagar. —O que ele fez a você não justifica o que você me fez. —Te amei, Anne - disse, estendendo a mão para o recipiente de prata e não para o chocolate que havia dentro—, o melhor que pude. A palavra amei soou mais forte que o ranger das lenhas da lareira e que os próprios batimentos de seu coração, —Seu amigo Gabriel conhecia conde. —Gabriel sabia de tudo - repetiu com tom pausado, e continuou derramando chocolate entre seus seios, em seu estômago, ao redor de seu umbigo. Todo mundo sabia, pensou, exceto ela. Voltou a sentir-se invadida pela raiva. Inclusive o mordomo sabia. Talvez até a criada que tinha ajudado a colocar o espartilho de cetim negro no estabelecimento de madame René. —Não se mova Anne. Sua voz era perigosamente suave, como se estivesse equilibrando-se na beira de um precipício. —E o que vai fazer de agora em diante? —perguntou ela, desafiante, negando-se a reconhecer o medo... E o desejo. —Lembrar - murmurou. —Eu já tenho lembranças! De morte. De desejo. Seu olhar enfrentou o seu, refletindo sua dor. Sua necessidade. Suas lembranças. De morte. De desejo. O chocolate derretido e o movimento dos dedos ásperos alisaram seu estômago com um choque de calor que se tornou rapidamente frio. —Começou a fazer suas refeições comigo. Café da manhã. Almoço. Jantar. Suas pestanas se inclinaram. Sombras irregulares cavavam suas bochechas. Anne levantou a cabeça e olhou como seus dedos trabalhavam, lentamente, arrepiando sua pele com um amontoado de sensações. —Se ele notava que eu gostava de uma comida em particular, me levava um prato na cama. Para tomar o café da manhã, eu gostava do kedgeree, um prato das Índias Orientais feito a base de

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arroz, manteiga e ovos cozidos - acrescentou, afundando o dedo no umbigo—, e uma manhã me trouxe um recipiente de arroz repleto de larvas vivas. Anne deixou escapar um suspiro. —Eu gostava de massa—continuou lhe lubrificando chocolate na parte baixa do estômago e logo ainda mais abaixo, até chegar ao limite de seu pêlo púbico... —. Um dia me trouxe um recipiente cheio de macarrão que serpenteavam no molho. E sempre me recordava que os vermes comeram a minha mãe e que se ela estava morta era por culpa de meu descuido e de minha negligência. Ameaçava-me fazer comer isso à força, me dizendo que se não lhe obedecesse me reuniria com minha mãe para que os vermes me comessem vivo. Lentamente iriam se arrastando por meu cabelo e se introduziriam em meu nariz e em meus ouvidos, e eu preferia comer os vermes em vez de permitir que os vermes me comessem. Anne se recuou mentalmente. —Abre as pernas, Anne. Ela olhou seus olhos vazios e sem vida. —Não mudará nada. —Não, mas amanhã não se lembrará dos vermes. Abriu as pernas... E fechou os olhos quando ele deixou cair à primeira gota de chocolate sobre seus clitóris. Calor ardente. Pele áspera. Lubrificou de chocolate o clitóris, os lábios da vagina e novamente o clitóris. Ela se arqueou ao contato de seus dedos, perdendo perigosamente o controle, e uma vez mais se recostou quando ele se levantou da cama e a deixou. Quente. Úmida. Desejando algo mais que chocolate. Algo mais que seus dedos. Sua cabeça caiu sobre o colchão. Abriu as pálpebras. Ele estava junto à cama, com um travesseiro na mão. Podia matá-la com a mesma facilidade com que o conde teria feito. Agachando-se sobre ela e tampando com seu corpo a luz, agarrou o travesseiro que estava do outro lado da cama. Endireitou-se. A luz voltou a cair sobre ela. —Levanta os quadris. —Por quê?—perguntou trêmula. Temerosa de morrer. Temerosa de viver. Sim, lorde Granville, estou assustada, pensou. —Para que possa levantar à pélvis. E para que pudesse abrir-se, expor-se, sem meios para ocultar de seu corpo e as necessidades carnais de uma solteirona. —E quando me tiver levantado à pélvis... O que fará? —perguntou provocadoramente, tentando controlar sua respiração. Seu desejo. —Contratou-me por minha habilidade para satisfazer às mulheres - disse. Seu peito subia e descia ao ritmo de sua respiração—. Levanta os quadris e te garanto que te farei sentir prazer. Se desejar acabar com nosso contrato, ao que não vejo inconveniente, o fará amanhã, mas esta noite me necessita, Anne, assim como eu necessito de você. Ela levantou os quadris. Uma rede de finas gretas se estendeu através de seu estômago e de seus seios. O ar frio envolveu as nádegas, que foi substituído pelo contato ainda mais frio do algodão. Ao levantar a pélvis se sentiu empurrada para diante, como se caminhasse sobre os calcanhares. Nua. Suas coxas se abriram em um convite lascivo. Nunca tinha sido tão vulnerável. Nem a primeira noite que ele a tinha despido, nem quando o conde a tinha drogado. Ele levantou o recipiente de prata e derramou o chocolate sobre suas pernas até chegar aos dedos dos pés. Anne se sentia como uma múmia, coberta dos seios aos dedos dos pés por aquela estranha massa comestível. Com os olhos muito abertos viu como ele colocava a terrina na bandeja e pegava a banana. Luzes e sombras acariciavam seus braços nus, de pele tão suave como o crepúsculo; suas mãos estavam enrugadas pelas cicatrizes. Cortou parcialmente a banana antes de lubrificar sua pele externa de chocolate. 150


Não havia suficiente oxigênio para encher seus pulmões. —Não tentará... Sua voz se desvaneceu. Uma vivida imagem brilhou diante de seus olhos. A imagem dela, nua. A imagem dele, deitado entre suas pernas abertas, envolto em uma camisa de linho branco e umas calças, seus dedos afundando-se em suas coxas. Ela tinha querido que ele a saboreasse chupasse-a, lambesse-a. E ele tinha feito. A carne palpitante de sua vagina assegurava que desta vez também o faria. E ela queria que assim fosse. —Você gostava também de bananas? —perguntou incapaz de reprimir um toque de ironia. —Sim. E o conde tinha destruído inclusive isso. Sentando-se a beira da cama, abriu delicadamente os lábios vaginais. Ela sentiu que o coração saía pela garganta. Uma fria dureza, que não era nem de carne nem de borracha, rodeava-a, preparava-a, penetrava-a. Instintivamente seus músculos se esticaram, rejeitando o que o conde tinha feito a ele. A ela. Rejeitando sua própria natureza perversa, que a tinha levado a isto, enquanto que Michel —Michael— não tinha tido a culpa de tornar-se um menino órfão. Levantou suas pestanas escuras. —Toma-o, Anne. Sei que arde por dentro. Posso sentir seu calor. Está úmida de desejo. Sua necessidade de ser cheia é natural; assim é o corpo feminino. Deixe-me te encher. Deixe-me te dar lembranças. Lembranças de plenitude. De prazer. De maneira suave, mas firme, ele introduziu a banana dentro dela, sustentando seu olhar, ultrapassando sua resistência interna até alojá-lo em suas profundidades e obter que seus músculos famintos se contraíssem, sustentando-o em seu lugar. Ela não pôde conter um comprido suspiro. De plenitude. De prazer. Olhou-o em silêncio, penetrada até o mais profundo de seu ser. Por fim tinha entendido a diferença entre penetração e posse. Baixando as pestanas e ocultando os olhos, ele acariciou delicadamente as escorregadias bordas externas de sua vagina. Teve que relaxar para acomodar a fruta, tremendo, guardando como ele o equilíbrio, esperando o resultado... —Por volta do final daquele primeiro ano, havia poucos mantimentos que eu poderia suportar no estômago. Pão. Vegetais crus. Maçãs. Pêras. Frutas que não fossem polpudas ou moles. Estava quase morrendo de fome. Ele me queria vivo, entretanto, para me subornar com aqueles mantimentos que ainda podia suportar. Pensei que tinha chegado ao pior, mas estava enganado. Uma noite veio com o Frank ao meu quarto e me disse que tinha uma surpresa para mim no sótão. Não tinha necessidade de dizer qual tinha sido aquela surpresa. —Pensei que se tratava de minha mãe no caixão, como você pensou que se tratava da sua. Sei o que sentiu quando estava naquela caixa, Anne, porque eu mesmo o senti. Frank sempre me tirava na manhã seguinte, antes que os serventes despertassem, e eu tinha que passar o dia como se nada tivesse acontecido, lendo os livros que meu tio considerava necessários para minha educação. Como se meu tio fosse um homem santo que sofria porque tinha me salvado e que agora me alimentava, vestia-me e me educava. Como se não tivesse nada que temer, quando a cada momento tremia de medo. Gentil e ritmicamente, ele colocava e tirava a banana, enchendo o vazio que sentia por dentro, alimentado a fome. —Ao princípio tentei falar com os serventes, mas nenhum acreditou. E quando meu tio descobriu, não voltei a falar com ninguém. Acredito que perdi a razão, e talvez por isso uma noite reuni as forças necessárias para me levantar da cama, me atirar pela janela de meu quarto, escalar o muro do jardim, que então não tinha os pontas agudas de ferro protetores que tem agora, e fugir em um navio de carga para Calais. Anne respirou profundamente, recordando o muro de pedra que rodeava a propriedade do conde, muito alto, com ou sem pontas agudas, para que um menino pudesse escalá-lo. Sentiu o rítmico impulso da banana, que perfurava cada fibra de seu corpo, e absorveu a luta das emoções de Michael, que ferviam debaixo da máscara de seu rosto. —Em Calais só podia pensar nas noites que tinha passado dentro do caixão. Não podia dormir. Não tinha nada que comer. Agarraram-me roubando um pedaço de pão. Gabriel 151


derrubou a mesa das bolachas para distrair o padeiro, e depois viajamos a Paris, onde madame nos encontrou e nos instruiu. O desejo da Anne aumentou. —O prazer sexual era a única coisa em minha vida que não tinha sido manchada por meu tio. O sexo me permitiu viver e esquecer. Gabriel perdeu sua alma, mas eu encontrei os restos da minha. Aprendi tudo o que a senhora tinha que me ensinar e sempre me esforcei por seguir aprendendo de todas as mulheres com as que estive. Você também me ensinou Anne. Anne se deu conta de que isto era o que Gabriel tinha tentado contar. Michael amava as mulheres, certamente, mas não pelo dinheiro, nem sequer pelo prazer sexual que podiam proporcionar, mas sim porque era só que ficava na vida para amar. —O que aprendeu de mim? —murmurou ela, temerosa de mover-se, e de romper o encanto de suas confidências, de perder o controle e de que não ficasse nada da solteirona que tinha sido. Ele a olhou com os olhos violetas nus. —De você aprendi que já é hora de continuar vivendo minha vida, começando neste momento. Vou lamber cada polegada de seu corpo. Por fora. Por dentro. Não se lembrará dos vermes, nem tampouco eu. Cada vez que ver um chocolate, pensarei em você. Na fragrância de sua pele. No prazer que compartilhou comigo. Algo úmido e quente se deslizou pelas têmporas de Anne. Nenhum homem devia passar pela dor a qual ele tinha sobrevivido. —Como tentava... —E mordeu o lábio para deter a pergunta, sabendo que, de todas as maneiras, tinha que fazê-la—. Como pensava se vingar ao aceitar minha oferta? —Sabia que te seqüestraria. A você ou a mim. E em qualquer dos dois casos, poderia entrar em sua casa. Para assassinar. Ou ser assassinado. Mas ele não tinha assassinado seu tio. Ela tinha ouvido a voz do conde através da porta enquanto caminhava pelo corredor. Em vez de assassiná-lo, Michael tinha ajudado a ela. Anne exalou um inseguro suspiro. —Como conseguiu que minha cozinheira te preparasse o chocolate? Seus olhos violetas brilharam de repente à luz do abajur. —Disse que você e eu queríamos desfrutar de um lanche ao ar livre. Chocolate. Bananas. As fronteiras inexploradas da paixão. Três dias antes, Anne teria se sentido envergonhada até os tutanos. —Michael... Ele ficou quieto, esperando. O ar mesmo parecia esperar. —Como vai comer a banana? Um sorriso apareceu em seus lábios. Fez-se mais amplo até que seus perfeitos dentes brancos brilharam, dando a oportunidade de imaginar como era ele vinte e nove anos, quando não passava de um menino que ainda não tinha aprendido a conviver com a culpa que podia causar o amor. —Mordendo-a pouco a pouco, Anne. Michael começou com os dedos de seus pés. Colocou seu dedo gordo dentro de sua boca e o lambeu com a língua. Era mais erótico que uma pluma. Mais íntimo que um beijo. Uma sensação elétrica percorreu todos os nervos de seu corpo. Ele acariciou com sua língua a sensível pele que havia entre seus dedos. Ela se agarrou no lençol para manter-se na cama e não sair voando para o teto. O pé direito. O pé esquerdo. Quando pensava que de tanto chupar os dedos dos pés ia levála a um orgasmo, ele deslizou para cima e começou a beijá-la entre as pernas abertas com uns lábios mais suaves que a seda. A banana se movia dentro dela. Anne conteve a respiração. Seu mundo inteiro se reduzia à fruta que a enchia e aos lábios de Michael que a beijavam. Ele a lambia persistentemente, tentando chegar à carne que se encontrava dentro do envoltório. Os quadris da Anne se elevaram. Não pôde controlar o orgasmo que a estremecia. Estendeu a mão para agarrar sua cabeça, seu cabelo, a algo que o mantivera onde estava que o aproximasse ainda mais. Mas Michael escorreu como um peixe na água e, sedutoramente, provou sua perna direita. Anne deixou de pensar em caixões. Ele a lambeu arás do joelho. Ela saltou ante o raio de luz que viu 152


passar diante de seus olhos, mas Michael começou a lamber a entre as pernas e a beijar deliciosamente o clitóris com uma língua que parecia um chicote ardente. Beijou-a até que ela já não pôde conter seus quadris, que se elevaram por vontade própria. Michael deslizou a língua até seus lábios vaginais e mordeu. Mordeu sua carne, e a banana. Ela gritou ao alcançar um novo orgasmo. Ele continuou acariciando-a no estômago e nos seios, roçando os mamilos com os dentes OH, Meu deus!— e explorando o umbigo com a língua. De repente se levantou para beijá-la na boca, que se encheu da mesma forma que a fruta enchia sua feminilidade. Tinha sabor de chocolate. Tinha sabor de banana. Sabor dela. —Quero que diga meu nome -murmurou ao ouvido. Anne engoliu seco. —Michael. Abriu-lhe ainda mais as coxas e se acomodou entre elas. —Agora quero que o grite. Alternativamente, continuou lambendo o clitóris e mordiscando a banana, cada vez mais pequena, até que ela gritou seu nome, uma e outra vez, até que a fruta desapareceu e ele começou a lamber o chocolate de sua palpitante vagina, não o suficientemente profundo, não o suficientemente espesso, ela precisava de mais... Imediatamente estava ajoelhado entre suas pernas. Em algum momento - entre os beijos, as dentadas apaixonadas e as lambidas eróticas— tirou as calças. Tinha o rosto, o peito e o estômago lubrificados de chocolate. Sua masculinidade saltou de seu ninho de pêlo negro com as veias azuis palpitantes e a coroa púrpura torcida. —No que está pensando agora, Anne? —disse com a voz áspera. —Em você - respondeu ela com uma voz tão áspera como a sua. —O que quer que faça? —Quero que venha dentro de mim, Por favor. —Diga-o em francês. —Não sei... —respondeu dúbia, sem recordar, naquele momento, nenhuma palavra francesa—. Não encontro as palavras... —Eu as direi. Repete... j'ai envie de toi. Desejo-te. Anne olhou seus bonitos olhos violetas. Ele tinha que saber que seu francês não era tão pobre. —J'ai envie de toi - repetiu com um nó na garganta. O doce chocolate brilhava sobre sua pele escura. —J'ai besoin de toi. Necessito-te. As lágrimas queimaram os olhos da Anne. —J'ai besoin de toi - repetiu. —Je voudrais faire l'amour avec toi. —Isso o que significa? —Quero fazer amor com você. Fazer amor. A fealdade com que o conde havia descrito seus encontros desapareceu. Seu sentido comum de solteirona a conteve. —Meu diafragma. —Confia em mim. Ela tinha confiado nele, e ele a havia... —Je voudrais faire l'amour avec toi. Michael introduziu os dedos dentro de sua vagina. Muito profundamente. Ela ficou quieta diante da brusca invasão. Ele estava... Acomodando o diafragma no pescoço do útero. E depois entrou dentro dela, OH! mais profundamente que a banana e que seus dedos. Entrou em seu interior mais profundamente que a fruta e seus dedos juntos: carne nua que palpitava e 153


estremecia. De as boas vindas ao peso de seu corpo, ao escorregadio deslizamento da pele, o suor e o chocolate. A sua corrente de prazer. A sua própria satisfação. Michael afundou a cabeça na curva de seu pescoço, fazendo cócegas com a barba. Seu membro dentro dela foi diminuindo. —Nunca soube por que. Anne recordou tantas coisas, agora que seus pensamentos estavam livres de drogas, de angústias e de repulsão. “Esteve alguma vez apaixonada, senhorita Aimes? Você esteve senhor? Sim, senhorita Aimes, eu estive apaixonado.” O caixão. Os vermes. Todos estavam relacionados com o poema que ele tinha lido. —Ele amava a sua mãe. As feições de Michael se endureceram. —Ele assassinou a minha mãe. Nada é simples, havia dito Michael uma vez. Nem a luxúria, nem a vida. Nem o amor. Anne fechou os olhos, passando seus dedos pelo cabelo de Michael, que se enroscou ao redor de seu corpo, quente e vital. —Em algumas ocasiões cheguei a querer que minha mãe morresse... Para poder dormir. Só uma noite. Sem que ninguém me interrompesse. —Mas você não a matou. —Não. Nem sequer quando pediu que fizesse o que ela mesma não se atreveu a fazer. Anne esperou que a invadisse o sentimento de culpa, mas não foi assim. Michael ficou entre seus braços durante longos minutos. Os batimentos de seu coração, que palpitava ao lado de seu seio direito, diminuíram até fazer-se imperceptíveis. Finalmente se moveu; lentamente, seu corpo se desprendeu do dela. —Ordenarei que nos preparem um banho. O pavor retorceu o estômago da Anne. —E o que vai fazer depois? —Vou matar meu tio. Capítulo 20 O portão estava aberto, e não havia nem rastro do porteiro. Quando a polícia se implica, os criminosos poucas vezes ficam perto. Os cães tinham sido presos; uivavam na distância, como se soubessem o que viria com o amanhecer. O alazão que montava procurava ar: seus pulmões assobiavam seus flancos pesavam, sua respiração produzia pálidas nuvens de bafo. Sacudiu a cabeça, em sinal de protesto, ao atravessar o portão. Igual ao cavalo, Michael queria dar a volta e retornar para casa, ao lado de Anne. Afundou seus calcanhares nos flancos do animal. Um amanhecer rosa pálido permitia ver os contornos da mansão do conde de Granville. Como olhos malévolos, as luzes brilhavam através de suas janelas. Sorriu com uma careta macabra. O homem o estava esperando. Não se deixaria surpreender de novo. Não havia sinais de que a polícia tivesse vindo, ou tivesse ido. Michael não tinha a menor duvida de que o superintendente lavaria as mãos e daria graças a Deus por seus filhos, seus netos e seus desejados bisnetos. Que mais podia fazer? O homem tinha seqüestrado uma mulher. Tinha enterrado um menino. A final, não eram crimes que constituíram uma ameaça para a sociedade. Que magistrado condenaria um velho conde de setenta anos cuja riqueza e propriedades eram um dos pilares de Dover? Desceu do cavalo que tinha tirado dos estábulos de Anne e atou as rédeas a uns matagais. Distraidamente, precaveu-se do nível irregular do cascalho sob seus pés, da dor de suas coxas e do som das reveste de suas botas ao subir a escada de pedra. A porta principal não estava fechada com chave e nenhum homem alto e gasto, que atuasse como mordomo, esperava-o atrás dela. 154


Um formigamento de inquietação percorreu suas costas. Não havia porteiro, nem cães, nem vigilantes, nem serventes. Mas alguém o esperava. Podia sentir sua presença, e os caixões vazios no sótão. Um era para a Anne, mas o segundo era para ele. As pinturas de molduras douradas, com figuras severas e ameaçadoras, olhavam-no das paredes cavernosas do vestíbulo. As samambaias ornamentais ladeavam a grande escada de mogno. Não encobriam um assassino, mas um o esperava. Pensou em Anne, deitada em sua cama antiquada, dormindo. Dormia realmente? Não tinha feito nenhum ruído quando afastou sua cabeça de seus ombros e conseguiu liberar-se de sua enredada cabeleira úmida. Sua solteirona tinha chorado lágrimas silenciosas quando tinha contado sua infância. Ele tinha chorado a sua maneira, derramando suor e esperma. Ela tinha pronunciado seu nome: Michael. O sabor do chocolate tinha sido doce em sua língua, mas Anne tinha sido ainda mais doce. Deu-se conta, com algum atraso, de que não queria morrer. Queria a sua solteirona. Queria lhe ensinar tudo o que ele tinha aprendido. Queria conhecer tudo o que ela desejava. Uma premonição fria sacudiu seu corpo. Os homens poucas vezes conseguiam o que queriam. A pistola pesava no bolso. Os sons de seus passos ressoavam nas paredes cavernosas do corredor, como se zombando dele. Morte. Desejo. Morte. Desejo. Com os músculos tensos, deixou atrás a escada, passou pela porta do elevador, que estava aberta, e caminhou pelo comprido e quase interminável corredor até o estúdio. Uma fila de luzes elétricas guiava seus passos. Não havia sombras onde esconder-se e, entretanto, alguém o vigiava. Michael podia sentir seus olhos fixos nele. Três pessoas caminhavam com ele pelo corredor para o passado: o menino que deveria estar morto, o homem que tinha feito gritar de prazer uma solteirona e o que vigiava Michael Sturges Bourne. O menino que havia dentro dele recordava o medo como se não tivessem transcorrido vinte e nove anos. O homem no qual se transformou se perguntava quando tinham instalado a luz elétrica. Antes ou depois de que o conde seqüestrou Diane? A idéia de morrer queimado em um incêndio produzido por um escapamento de gás tinha atemorizado o conde? Temia arder no inferno? Seu tio tinha amado a sua mãe? Uma luz brilhante penetrava por debaixo da porta do estúdio. Michael parou. Ninguém o seguia, mas a terceira pessoa estava ali. As paredes do corredor respiravam quando seu vigilante respirava. A madeira palpitava quando o coração do vigilante palpitava. Michael rezou para que o amor fosse mais forte que o ódio, e que o prazer compartilhado fosse mais forte que a dor. Girou o pomo da porta de mogno, abrindo-a com suavidade. Um abajur de cristal brilhava no teto. O homem esperava atrás de seu escritório. Seu servente estava parado atrás dele, servilmente embelezado com uma librea negra e branca e com a cara impassível. Uma lareira de mármore branco emoldurava os dois homens; chamas azuis e amarelas perfilando seus corpos. O olhar de Michael se dirigiu ao mais alto. A cabeça avermelhada do guardião estava ficando calva, mas, pelo resto, era o mesmo homem que Michael recordava. Nunca tinha visto mostrar alguma emoção. Tinha podido observar a crueldade na cara do homem, sua satisfação sádica quando Michael fazia das tripas coração e se empenhava em liberar uma batalha perdida de antemão, mas o rosto daquele homem sempre tinha sido imperturbável. —Bom dia, Frank - saudou com gentileza. Frank não respondeu. Mas seu tio sim. —Michael. O conde não parecia irritado pelo fato de que seus jogos macabros tivessem sido interrompidos pelo superintendente de polícia. As lapelas acetinadas de sua jaqueta de veludo brilhavam como sangue negro. —Está mais velho do que esperava. Quanto? Vinte e nove anos? Cinco anos? Cinco horas? Michael estudou desapaixonadamente a cara do homem. A luz elétrica não o favorecia. Tinha envelhecido até tornar-se irreconhecível. 155


Tinha o cabelo completamente cinza. O conde era um homem de setenta anos cuja impotência se refletia com claridade em seus olhos murchos. —Amava minha mãe? —perguntou Michael, curiosamente insensível agora que tinha chegado o momento. Um sorriso satisfeito crispou a cara do ancião. Não tinha mudado. Michael tinha dormido com aquele sorriso durante todas as noites nos últimos vinte e nove anos, e tinha despertado com ele todas as manhãs. Sentiu uma pontada de arrependimento ao pensar que o ódio que o tinha mantido vivo durante todos esses anos tinha morrido nas últimas cinco horas. —A senhorita Aimes - sorriu o conde entre dentes, respirando com dificuldade e agitando suas negras lapelas acetinadas— é uma moça muito ardilosa. Surpreende-me que tenha te solicitado, Michael. De verdade. E sim, eu amava a sua mãe. A verdade Michael viu claramente agora o que não tinha sido capaz de ver fazia vinte e nove anos. Não importava. O homem morreria pelo que tinha feito a Little. A Diane. A Anne. Ao menino que Michael tinha sido alguma vez. Mas primeiro... —A que menino enterrou em meu lugar? —Não o conhecia, Michael. Tratava-se só de um pobre menino de cabelo negro que vendeu sua vida pela promessa de um prato de comida. A raiva voltou a lhe golpear. Outra vida... Quantas eram? Oito? Nove? —Tem uma doentia inclinação pelos meninos e as mulheres jovens. Acredito que é um covarde, tio. O sorriso do conde desapareceu. —Fiz o que tinha que fazer para me assegurar de que não herdaria o título. —Mas sentiu prazer, não é certo? —perguntou Michael com virulência. —Sim, Michael, senti prazer. Mas nunca desfrutei tanto como com você. Com que mulher gozou mais? Lady Wenterton ou a senhorita Aimes? A qual das duas tivesse preferido não arrastar com você? A sua solteirona. —De que tem medo, tio William? —perguntou Michael sem alterar-se. —De nada, Michael. Nada é pior que o que você me fez: reduzir-me ao inferno de uma cadeira de rodas - respondeu inclinando a cabeça estranhamente—. Veio me matar, querido moço? —Sim, tio William, vim te matar. —Assim pensei - disse o homem com certa compaixão—. E, entretanto, estou vivo. Nunca acreditei que trouxesse a polícia. Teve oportunidade de me matar antes, Michael, e não o fez. Por quê? Michael não falou. Não tinha que fazê-lo. Ambos sabiam que seu desejo pela solteirona era mais forte que seu ódio pelo homem, e também sabiam que ela nunca estaria a salvo enquanto o homem vivesse. Um sorriso de compreensão apareceu na cara do conde. —Não é um assassino, Michael, e, entretanto se sente obrigado a me matar. Todos estes anos que passou procurando testemunhas devem ter sido bastante frustrantes para você. Esperava me ver condenado à forca? Michael tentou perdoar a ignorância de Michel e os anos que tinha desperdiçado na tarefa de encontrar evidências que permitissem acusar o conde. Entretanto, não tinha nenhuma desculpa possível para justificar os cinco anos durante os quais lambeu as feridas e chorou Diane. Ele tinha que matar o homem. Não a lei. Nem a idade. —Por que não me matou a vinte e nove anos, tio William? —perguntou desinteressadamente—. Esperava que encontrasse a maneira de acabar com sua vida miserável? —Vê-lo ao longo de todos estes anos significou para mim um grande alívio. Nunca quis que morresse querido jovem. O que queria era que sofresse, e percorri longas distâncias para que assim fosse. 156


Michael tirou seu revólver e apontou para cabeça do homem. Lorde Granville sorriu triunfalmente. Michael sentiu em sua têmpora esquerda um metal frio: o cano de uma pistola. Ele não se moveu. —Quanto dinheiro precisa para te satisfazer, Gabriel? —Não Mato por dinheiro - murmurou Gabriel com a voz neutra. Michael sentiu que algo se transformava em seu interior: a esperança dava lugar à realidade. O homem o olhava com uma curiosidade maliciosa. A cara de Frank continuava impassível. Ele sabia que a cara de Gabriel apresentaria a mesma inexpressividade. —Quanto valem vinte e sete anos de amizade? Um fôlego quente soprou em seu ouvido. —Compensação. —Compensação do que? —Prazer. Dor. O prazer de Michael. A dor de Gabriel. Podia sentir que seu sangue palpitava contra o metal, dentro de sua têmpora, entre seus dedos. —Está com ciúmes. —Sim, Michael, estou com ciúmes. Tenho ciúmes desde a primeira vez que vi que seus olhos famintos olhavam as prateleiras da padaria. Se tivesse pedido ao padeiro, ele daria o pão. Mas nunca o fez. Nunca me pediu que te ajudasse. Nem a madame. Nunca pediu às mulheres que escolhiam a você em vez da mim. Nunca teve que pedir, e nós lutávamos por te dar tudo o que queria. A dor de um anjo caído. Já era hora de finalizar. —Prometeu que vigiaria Anne. —Prometi. Gabriel nunca tinha quebrado uma promessa. —Aí está então sua compensação. Em algum lugar profundo de seu interior, Michael sentiu satisfação. O homem já não sorria. Sabia que ia morrer. O tempo deixou de existir. Havia remorso na morte, mas também liberdade. Devagar, Michael tirou o percussor da pistola. Um sonoro clique retumbou em seus ouvidos. A morte espreitava nos arredores. Lorde Granville, inesperadamente, curvou seus lábios com uma careta divertida. —Não vai me matar, Michael. Ou sim? Vai matar o homem que te deu a vida? Vai matar seu pai, Michael? Sua mãe... E seu tio? Michael parou. A vida tinha ensinado que tudo era possível. Sua mãe tinha sido loira. Formosa. Vivaz. Cheia de alegria. Como Diane. Era possível que sua mãe tivesse amado a aquele homem. Mais que a seu marido. Mais que seus filhos. Talvez no inferno encontraria a resposta. Michael começou a contar mentalmente. Um... —Não o faça, Michael! —interrompeu a inesperada voz de Frank. O guarda costas tinha tirado a mão por detrás da cadeira de rodas e apontava a Michael com uma pistola. Michael não olhou à arma; estava certo de que seria muito parecida com a sua. Similar também a que oprimia com o cano a têmpora esquerda. Ambas estavam equipadas com 157


seguros dobre: podiam-se montar automaticamente, para um disparo rápido, ou manualmente, para um disparo preciso. Qualquer das duas opções o mataria com a mesma eficácia, mas em vez de preocupar-se por isso, ficou olhando o rosto de Frank. Não era inexpressivo; pelo contrário, estava cheio de medo. O suor caía por sua testa. Céus! Será que o vigilante sentia afeto por seu amo? Um humor feroz surgiu do interior do Michael. —Eu só posso morrer uma vez, Frank. Vejamos qual das balas sairá primeiro. A sua, a de Gabriel ou a minha? Voltou seus olhos para o conde. Dois... —Ele não matou a sua família... —disse Frank sem que a cara de lorde Granville se surpreendesse por sua interrupção—. Eu o fiz! Michael tinha açoitado e interrogado a todos e cada um de quais serventes tinham trabalhado alguma vez na mansão do homem que ele acreditava que tinha sido seu pai, mas nenhum tinha mencionado o Frank. Michael estudava friamente o conde. —Por que os matou, Frank? —Sim, diga-lhe Frank - acrescentou o ancião sem poder conter o regozijo que sentia ao destruir a vida de outra pessoa. —Eu cortei as rédeas - confessou Frank. A verdade ao fim. Michael recordou o retumbar dos cascos dos cavalos. O terror que tinha golpeado seu peito enquanto seu pai tirava as rédeas das mãos. Os grito estridentes de suas irmãs. O pranto de sua mãe. O repentino silêncio depois de que a carruagem caía pelo escarpado. —Por quê? —perguntou com a voz rouca. —Eu era um pobre vagabundo - contou Frank a tropicões—. Seu pai contratou, mas no dia seguinte me encontrou bêbado e me despediu. Eu sabia que ia sair de passeio no carro. E cortei as rédeas. Não era a arma a que pesava no braço de Michael. Ficou olhando o homem, sentindo a emoção que o impulsionou a não tornar-se o em cima. Ao longo de todos os anos transcorridos sempre tinha acreditado que ele ou o conde — algum dos dois— tinha matado a sua família. Lorde Granville transbordava de satisfação. —Você sabia - disse Michael—. Durante todos estes anos soube que Frank tinha sido o responsável e, entretanto, culpou-me. —Porque você a matou! —gritou o conde—. Não devia sair com vocês de passeio. Tinha que inventar a desculpa de alguma pequena indisposição para me esperar, mas, em vez de fazê-lo, acompanhou meu irmão, um sujeito suave e sem caráter, você e a suas três irmãs choronas. Quando cheguei à casa de seus pais, Frank estava despertando de sua bebedeira e se sentiu culpado. Soluçando me contou toda a história e me rogou que saísse para lhes buscar. Se sua mãe não tivesse estado na carruagem, nem sequer teria me incomodado. E a tive a meu alcance! Poderia salvá-la, mas ela decidiu te jogar em meus braços. Sim, eu amei a sua mãe, e ela escolheu você em vez da mim. Você a matou, Michael, e eu tenho que viver todos os dias com sua morte. Michael pensou que já nada poderia surpreendê-lo. Enganou-se. Tantas pessoas tinham morrido... Pelo amor de uma mãe. O conde se inclinou sobre sua cadeira de rodas. —Você nunca matou um homem, Michael, e eu já tinha matado a vários antes que você nascesse. Alguns a chamam expansionismo e outros a chamam supremacia de Deus, mas a guerra não é, na realidade, mais que um dos muitos esportes que deve praticar um cavalheiro. Eu teria te eliminado muito facilmente; entretanto, queria que soubesse o que se sente quando a mulher que ama te rejeita e te abandona. De modo que esperei... 158


“Esperei e vi que foi todo umgaranhão, não é certo, sobrinho? O que sentiu quando lady Wenterton te rejeitou e te abandonou? Deixou queimar por seu desejo de fugir contigo, e eu desfrutei com sua dor. Com seu sofrimento. Ao fim sabia o que é ter uma mulher que te rejeira e te abandona que morre enquanto você não pode fazer nada para evitar. Mas eu sabia Michael, que algum dia se recuperaria de suas queimaduras. Sabia que, como bom prostituto que é, desejaria outra mulher. Imagine o deleite que senti quando a senhorita Aimes, apesar de suas cicatrizes, solicitou seus serviços. O que sentiu ao saber que teria que escolher entre a senhorita Aimes e eu? Sim, sei exatamente quanta vontade tem de me matar. Sentira prazer, Michael, assim aponta o gatilho e morre sabendo que não é muito diferente de mim”. A conta tinha terminado. Três... Michael sentiu um suspiro no ar, algo assim como o sussurro de um beijo. Gabriel, que não havia tocado ninguém em tanto tempo, deu-lhe um beijo na bochecha coberta de cicatrizes. O beijo da morte de um mensageiro. —Por você, Michael - murmurou. Um estalo ensurdecedor ressoou em seus ouvidos. A cabeça do conde explodiu, pulverizando sangue e matéria cinza pelo ar. A bala não tinha saído da pistola de Michael. Frank ficou petrificado. Michael viu como também ele parecia que lhe escapava a vida. Só um peão mais. Manchas avermelhadas se estenderam por sua cara, branca como o papel, e um resto de matéria cinza deslizavam por seu grosso casaco negro. Vinte e nove anos de inferno tinham terminado. Frank deixou cair o braço. Michael baixou sua pistola. Gabriel deu um passo atrás: o mensageiro de Deus, não do homem. —Estava morrendo - disse Frank, baixando seu olhar por volta do ancião que tinha regido suas vidas durante tanto tempo—. De qualquer forma, em poucos meses teria morrido, e então tudo teria terminado. Michael quase sentiu pena pelo guarda costas. Frank levantou a cabeça e o olhou. Não havia pesar em sua cara, nem remorso pelas vidas que se levou. —Ele não era seu pai - disse lentamente. Michael acreditou. —Sua mãe não o amava, e por isso não pôde te perdoar. Talvez Anne tivesse razão, e o ancião estivesse louco. Os agentes de polícia realizariam as investigações do caso. O que Frank ia dizer? O que Michael ia dizer? Deu a volta para sair. —A cozinheira — a voz de Frank o parou quando avançava para a porta onde Gabriel o esperava, seu cabelo adornado com um halo de prata—. A senhora Ghetty. Esse é seu nome. Há uma carta debaixo do colchão de minha cama. O conde enviou aos serventes de férias para que...Para que Michael e a mulher que tinha dado prazer pudessem ser assassinados sem testemunhas. —Quando a senhora Ghetty retornar - continuou falando Frank—, lhe digam onde está a carta. Digam que é para ela e que, de agora em diante, já não terá do que preocupar-se. — Diga você mesmo - respondeu Michael, que continuava avançando para a porta. —O testamento de lorde Granville tem em seu poder um envelope selado. Nele há uma confissão assinada por mim em que admito ter cortado as rédeas da carruagem, causando a morte de sua família. O testamento tem instruções precisas de abri-lo em caso de que milord morra prematuramente, e não me cabe dúvida de que no envelope há outras cartas que detalham os crimes que cometi enquanto estive a serviço do conde. Eu, entretanto, não penso em ir para a prisão.

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De modo que ele também morreria. O olhar de Michael encontrou com o de Gabriel. Os dois homens saíram do estúdio. Um disparou rompeu a tranqüilidade do amanhecer, e o eco os seguiram com o passar do corredor. O eco da justiça. O som oco de seus passos era enérgico. Um homem os esperava junto à porta principal. Suas costas estava tão erguida como podiam permitir seus oitenta e cinco anos e sua artrite. —Milord. Devo chamar à polícia? O velho mordomo era muito digno para não receber uma resposta igualmente digna. Denby —esse era seu nome— tinha conhecido o pai de Michael. Tinha-o visto crescer e transformar-se em homem ao mesmo tempo em que seu irmão mais velho se transformava em monstro. Tinha sabido o que o conde tinha feito a Michael? —Não há nenhum outro servente na casa, Denby? —Estão de férias, senhor. Salvo o ajudante de cozinha, a quem não deixei ir porque está se recuperando de um terrível sarampo. Embora já se encontre bem. Denby se tinha dado conta do que o conde tinha feito a Anne? —Não te pareceu estranho, Denby, que a senhorita Aimes visitasse conde, mas não saísse alguma vez da casa? —Não me dava conta de que o conde tinha uma visita, milord - respondeu com toda dignidade—. Melhor dizendo: não soube nada até que ouvi o revôo provocado por você e a polícia. O conde contratou outro mordomo temporário para que eu pudesse cuidar de moço do sarampo e descansar um pouco. Meus ossos me causaram problemas ultimamente. Ninguém teria feito pergunta sobre a morte de um servente de oitenta e cinco anos e de um humilde moço do serviço doméstico, e os segredos do conde ficariam a salvo. —O moço foi procurar à polícia, Denby? —O que devo lhe dizer quando vier, milord? —Lhe diga a verdade. Diga-lhe que o conde está morto e que Frank se matou com um tiro na cabeça. Denby piscou. —Retornará, milord? —Não, não retornarei. —Mas é você o último de sua linhagem. Michael pensou em Anne, coberta de chocolate. —Não, Denby, sou o primeiro representante de minha linhagem. —E o que acontecerá com a propriedade, milord? —Estou seguro de que o conde deixou alguma disposição em seu testamento com respeito a você, Denby. E se não o fez, contate comigo através da senhorita Aimes. Ela saberá onde me encontrar. Se ela ainda quiser encontrar. Denby insistiu. —Você é um conde, senhor. Esta propriedade agora é sua. Têm responsabilidades. —Está enganado, Denby - disse Michael com gentileza—. Eu não sou um conde. Michael Sturges Bourne está morto. Não esqueça nunca. E se o superintendente de polícia lhe pergunta isso, diga que a linhagem desta família se extinguiu. Denby piscou de novo. —O nome Sturges Bourne é um nome muito antigo, senhor. E muito honorável. Está você cometendo um engano. Não seria o primeiro engano que Michael cometia. —Quando a senhora Ghetty retornar, diga-lhe que Frank deixou uma carta debaixo do colchão de sua cama. Diga-lhe que ele a amava. Fará isso por mim, Denby? —É obvio senhor - respondeu com lágrimas nos olhos—. Adeus, senhor. 160


Denby fechou a porta atrás de Michael e de Gabriel. O rosado pálido do céu foi fazendo-se cada vez mais intenso sobre a linha do horizonte. O fôlego de Michael se transformou em bafo no ar frio da manhã. Ser testemunha de um novo amanhecer o fazia sentir uma estranha sensação. —O que te ofereceu o homem? —perguntou, com a garganta tensa de repente. —O segundo homem. Gabriel não tinha que explicar sua resposta. Dois homens o tinham violentado; não um como Michael tinha acreditado. O ar frio lhe raspava os pulmões. —Nunca me pediu ajuda, Gabriel. Seu amigo jogou a cabeça para trás e ficou olhando o céu, como se procurasse algo. —Talvez pensasse que não merecia sua ajuda, Michael. —Quem era o homem que morreu no incêndio? —Achou que era eu? —perguntou. Seu fôlego era como uma nuvem de prata. —Sim. Gabriel baixou de novo a cabeça e olhou seu companheiro. —E sofreu com minha morte? —Sim. —E, entretanto, pensou que ia te matar. —Sim - concluiu Michael depois de meditá-lo um momento—. No final pensei que sim... —Frank veio a minha casa faz uma semana - acrescentou Gabriel em tom neutro—, e me pediu que fizesse chegar uma carta à senhorita Aimes. Se ela não fosse visitar conde voluntariamente, eu devia usar os meios necessários para que assim fosse e, ao mesmo tempo, inventar alguma mutreta para que você se atrasasse. E depois, é obvio, devia matar Michael. —Copiou a carta que tinha escrito a Anne. —Se não tivesse sido capaz de convencer à polícia para que te ajudasse, nenhum dos dois estaria vivo. Ele tinha previsto todas as eventualidades possíveis. Menos uma. O homem não tinha tido em conta o valor da amizade entre aqueles dois homens. —Eu era quem devia tê-lo matado, Gabriel. —Sabe uma coisa, Michael? Em vinte e sete anos não mudou. Ainda tem fome. Matar te tira inclusive à vontade de comer. Hoje acho extraordinário o fato de que ao menos um dos dois ainda pode sentir. Pode me odiar pelo que fiz, mas odiar é melhor que não sentir nada. —Você não sente nada, mon vieux? —perguntou Michael. A resposta de Gabriel foi simples, direta, inequívoca. —Não. Michael não discutiu: há ocasiões em que a mentira é só o que nos protege. —O que fará agora que sua casa já não existe? —Construir outra. —Pensa que o segundo homem virá te buscar? —Sei que o fará. Michael desceu a escada de pedra. O cavalo, que brilhava a luz rosada do amanhecer, comeu o melhor do matagal. Agarrou as rédeas, o obrigando a levantar a cabeça, e o deixou sem terminar seu café da manhã. —Michael. Levantou o olhar. Gabriel estava imóvel na parte superior da escada. Seu cabelo parecia uma auréola de prata à luz do amanhecer. —Eu não empurrei Anne contra as rodas da carruagem aquela tarde, nem tampouco matei um homem para colocar em meu lugar no incêndio. Era um mendigo. Tinha-o encontrado morto

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nos subúrbios. Não pensei que você passaria todo o dia revolvendo entre as cinzas. Se não tivesse sido tão asquerosamente sentimental, teria alcançado a Anne antes. Michael colocou um pé no estribo e subiu ao cavalo. Sentia-se enjoado. Sua bochecha direita ardia. O beijo de um anjo. —Menti Gabriel. —Surpreende-me, mon frère. Gabriel tinha voltado para seu inferno. —Disse que o homem tinha matado tudo o que eu amava. Enganei-me. Você esta aí. Esporeou o cavalo e se afastou a galope. Gabriel encontraria a maneira de chegar a Londres, mas o que aconteceria com Anne? Havia dito que à manhã seguinte podia cancelar seu contrato e que não poria objeções por sua parte. Michael Sturges Bourne não se oporia, certamente, mas fazia muito tempo que tinha renunciado a ser um cavalheiro. O portão estava aberto, tal como ele o tinha deixado. Um simples carro de quatro portas esperava ao lado da escada da casa. O chofer estava sentado na boléia e olhava à frente. Um cavalariço estava parado junto ao cavalo plúmbeo, que agitava a cabeça e chutava com as crinas ao vento. Reconheceu o cavalo e o cavalariço. Seu coração pulsava mais rápido que o fluxo de seus pensamentos. Sua solteirona acreditava que ele a tinha usado. E ele o tinha feito. Acreditava que ele tinha matado o conde. E ele o tivesse feito. —A senhorita Aimes me ordenou que enganchasse seu cavalo, senhor - disse o cavalariço olhando-o nos olhos. Entregando-lhe as rédeas, Michael desmontou e abriu a porta da carruagem. Anne estava sentada em seu interior, com os pés muito juntos. Vestia uma capa de lã negra e uma boina escocesa, e em seu colo descansava uma cesta de lanche campestre. Não havia sinais de condenação em seus olhos. —Está morto? Ele esticou os joelhos para impedir que se dobrassem. —Sim. —Pensei que necessitaria um veículo para ir a Londres - disse com a voz mais rouca que de costume, embora tão amável e educada como tinha sido na Casa de Gabriel—. Este não será muito bom, mas é bastante confortável. —Vai acompanhar-me? —Sim—respondeu inclinando o queixo, como se temesse uma objeção por parte do Michael—. Ainda temos um contrato. Ele não a queria pelo maldito contrato. Ele aceitaria o que pudesse obter. E antes que ela mudasse de idéia, saltou ao interior da carruagem e fechou a porta com um golpe seco. O carro se balançou, movendo-se para trás e para diante, e depois deu a volta, lentamente, em um círculo cheio. Michael ficou olhando o couro escuro que forrava o interior do carro de quatro portas. Os quadris de Anne pressionavam os seus. Não mentiria de novo. —Não o matei. —Disse que estava morto. —Gabriel o fez. Ele podia sentir como em sua mente Anne começava a pôr ordem na seqüência dos acontecimentos. —Foi ele quem me empurrou na rua? —Não. —Ele te ama. 162


—Sei - disse Michael. Cálidas lágrimas alagaram seus olhos, e procurando algo que dizer, perguntou com inocência: —O que há na cesta? —Barras de chocolate e bananas - disse ela de maneira afetada—. Espera-nos uma comprida viajem. Pensei que poderia estar faminto. Sentiu uma emoção profunda dentro de seu peito. Risadas. Lágrimas. Queria rir como o jovem de onze anos que alguma vez tinha sido. Queria chorar as lágrimas que tinha sido incapaz de chorar durante os últimos vinte e nove anos. Tudo, verdadeiramente, tinha terminado. O homem estava morto e Michael estava vivo. Um repentino palpitar em sua virilha o recordou quão vivo estava. Levantou Anne de seu assento e a acomodou sobre suas pernas. A cesta saiu voando. Rodeou-a com seus braços e afundou o rosto em seu pescoço. Debaixo do áspero benzeno que impregnava sua roupa, sua pele cheirava ligeiramente a chocolate, a sua paixão, à paixão dele. —Tem razão - disse—. Chegou a hora do café da manhã. Fim

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