Texto André Carvalho Fotos Divulgação
Crianças do Projeto Guri e Naná Vasconcelos protagonizam o espetáculo Quando os navios negreiros cruzaram o mar, carregaram poetas, artesãos, escritores e reis. Carregaram uma matriz cultural rica, concebida no continente africano, e a levaram para além-mar, florescendo uma nova nação. A travessia penosa dilacerava sonhos, esperanças e vidas. Afligia a recordação da Mãe África e a perspectiva de um futuro sombrio. Quem sobreviveu, no entanto, em uma nova terra, embora fadado a uma vida de infortúnio, ajudou a construir um dos mais ricos caldeirões culturais de todo o mundo. A simbologia do mar, “calungá” em dialeto banto, é emblemática para esta identidade cultural brasileira de origem africana. Ao mesmo tempo em que separa os negros de sua terra, possibilita o retorno pela memória e pela herança cultural que carregamos. Celebra a fusão de dois continentes. Pela memória, há o retorno, a nova travessia. É o que ocorre com “Calungá - O mar que separa é o mar que une”, espetáculo cênico-musical que traz 39 crianças e adolescentes do Projeto Guri e o mestre do ritmo Nana Vasconcelos para uma apresentação no Auditório do Ibirapuera, no dia 13 de julho.
O Canto dos Escravos Concebido e dirigido pelo percussionista Chico Santana, “Calungá” é baseado no disco “Canto dos Escravos”, lançado em 1982. O álbum registrou Clementina de Jesus, Geraldo Filme e Tia Doca interpretando 14 cantos de trabalho (ou vissungos) de negros benguelas mineradores da região de Diamantina, Minas Gerais, recolhidos no fim dos anos 20 pelo filólogo Aires da Mata Machado Filho. “Gosto muito do disco ‘O Canto dos Escravos’ e sempre tive vontade de fazer algum trabalho com esse repertório. Aí quando a Alessandra (Costa, diretora executiva do Projeto Guri) sugeriu de fazer um espetáculo cênico-musical, sugeri que utilizássemos esse repertório e convidamos o Naná Vasconcelos”, conta Chico Santana. Crianças e adolescentes do Centro de Referência de Sorocaba, local que reúne jovens de alto índice de desenvolvimento musical dos polos do Projeto Guri daquela região, foram escolhidas para participar do espetáculo.
“Era um grupo de coro e percussão. Já escolhemos pensando no repertório do disco, que também é assim”, afirma Santana, que ressalta a qualidade dos “guris”: “Eles são muito bons já têm uma desenvoltura, uma técnica musical boa”.
Imersão na africanidade Oficinas de jongo e de cantos de trabalho foram realizadas, bem como visitas ao Museu Afro Brasil. Outra experiência, para alguns, foi ainda mais marcante. “A gente levou os meninos para a praia. Porque o tema é o mar e tinha gente que nunca tinha visto o mar. Passamos um fim de semana em uma praia de pescadores, paradisíaca, chamada Picinguaba e levamos quase todos, só uns três que não foram. Fizemos um ensaio na beira do mar, sentindo a brisa, a areia”. Além dos cantos de trabalho do disco lançado pela Eldorado há 30 anos, o programa também traz músicas de Naná, Villa-Lobos e do sambista Paulistinha, e apresenta a trajetória do negro no Brasil. Divido em cinco atos, o espetáculo conta a travessia, a resistência, a saudade, a liberdade, e o sincretismo do africano em uma nova terra.
Novas travessias? Para o diretor musical do espetáculo, “não queremos falar de África, queremos falar da matriz cultural africana que desembocou na identidade brasileira, que indissociável dessa cultura africana. É uma bagagem cultural que veio de uma forma dura, tensa, com os escravos, mas que por outro lado, foi bonito, porque é uma forma de resistência deles”. “Calungá - - O mar que separa é o mar que une” já passou por Santos, Sorocaba e São José dos Campos e completa o circuito de lançamento em São Paulo. Em breve, será lançado o DVD com registro do espetáculo e um documentário, registrando todo o processo de criação do musical. Os planos não param por aí: “A ideia é circular, inclusive a gente tem ideias grandiosas de ir para o exterior, o Naná está indo pra Europa, quem sabe ele arruma alguma coisa”, diz Santana, sonhando com novas travessias.
“Não queremos falar de África, queremos falar da matriz cultural africana que desembocou na identidade brasileira, que indissociável dessa cultura africana.” diz Chico Santana
O quê: “Calungá - - O mar que separa é o mar que une” Quando: Sexta-feira, 13 de julho, às 21h Quanto: de R$ 10 a R$ 20 Onde: Auditório do Ibirapuera
Calungá
(Chico Santana) Imensidão Azul Encharca os olhos Horizonte infinito Inspira a alma
Tanta força e beleza Do povo e do mar Se afastam com as ondas Calungá separa
Rumo ao incerto Tempestuosa travessia Muito se deixa Muito se traz
O Canto da Liberdade (Solano Trindade)
Ouço um novo canto, Que sai da boca De todas as raças, Com infinidade de ritmos... Canto que faz dançar, Todos os corpos De formas E coloridos diferentes... Canto que faz vibrar Todas as almas De crenças E idealismos desiguais... É o canto da liberdade Que está penetrando, Em todos os ouvidos
O negro, e o brasileiro de uma forma geral, precisa se educar. Ler e aprender mais. Precisamos nos educar, poder conversar de diferentes assuntos. Entrevista com Naná Vasconcelos Qual o significado de “Calungá” e como esta palavra sintetiza o espetáculo? Eu fiz uma música sobre a travessia em uma ilha africana chamada Goreé, a música que canto no inicio do espetáculo. A travessia da África, quando os africanos vinham para a América. E “calungá” significa isso: o mar que separa é o mesmo tempo que une. É um tema, uma imagem - porque tem muito disso, música e imagem andam muito juntas - que faz parte do meu trabalho. Como se deu o convite para participar do espetáculo e como foi o contato com as crianças? O pessoal do Projeto Guri me convidou pra falar sobre a música dos escravos. Eu disse: “nós estamos em 2012, primeiro temos que lembrar que aqueles negros africanos eram escritores, ambulantes, poetas, cantores, artesãos”. Temos que tirar essa conotação porque trabalho escravo ainda existe no Brasil e temos que falar com a música para essas crianças que isso aconteceu.
Quando eles me convidaram, eu estava envolvido em outros projetos. Um deles é o “Língua-Mãe”, também com crianças, da América, Europa e África, que falam português. Tocamos junto com a Orquestra Sinfônica de Brasília, no aniversario de Brasília. E esse contato das crianças com a música é muito importante. A criança se toca muito com a música. E eles estão aprendendo uma coisa que faz parte da história, então acho que isso é muito importante. Quando comecei os ensaios com eles, eles cantavam como no coral, parados. Aí falei pra eles se soltarem um pouco Eles tiveram a oficina de jongo, tem todo um processo. Hoje, até se esquecem que estão fazendo três coisas ao mesmo tempo, cantando, dançando e tocando. Então acho que essa experiência é muito importante mesmo. De repente, eles estão fazendo coisas que nunca pensaram que poderiam fazer. Qual a importância do disco “O Canto dos Escravos” para a história social do Brasil? É bom trazer estas músicas, com cânticos em dialetos. Essas músicas que temos no interior do Brasil, mas que ninguém fala nisso. O negro, e o brasileiro de uma forma geral, precisa se educar. Ler e aprender mais. Precisamos nos educar, poder conversar de diferentes assuntos. Esse negócio de “sou negro, sou branco” é um vicio intelectual. Temos que celebrar as diferenças e exaltar as similaridades. E celebrar similaridades e exaltar as diferenças. Como você vê a música como instrumento sociabilizador? A música, das artes, é a mais imediata, porque ela é a única que passa imediatamente para a pessoa um sentimento. Ela vai direto, a música é um momento, ela mexe com os sentimentos, te faz sorrir, chorar, meditar. A música vai do silencio ao grito. Das artes , ela é a mais imediata. É natural isso.