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Alessandro Buzo
prefácio p. 8
Apresentação
proibida reprodução p. 12
Anos 70 p. 16
Anos 80 p. 18
Anos 90 p. 30
Uma nova, velha favela p. 42
Anos 2000 p. 54
Preto conhece preta p. 58
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Desta vez, seria diferente p. 70
O inesperado aconteceu p. 82
Daria um filme p. 90
O futuro a Deus
pertence. Você é
o que você planta p. 124
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Profissão MC Um romance de Alessandro Buzo Livremente baseado no filme Profissão MC (ficção, 52 min.) de Alessandro Buzo e Toni Nogueira.
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Curiosidade: Este livro começou a ser produzido sob encomenda da nVersos Editora, no dia 24 de dezembro de 2011. Exatamente no aniversário de 11 anos do primeiro livro do autor. Em 24/12/2000, Alessandro Buzo lançava O Trem – Baseado em fatos reais e “mudava o curso de sua vida”, segundo suas próprias palavras.
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Das Antigas, Dan e Preto são três garotos de periferia com caminhadas distintas, que num determinado momento, se cruzam através da música – no caso, o rap. Num misto de realidade e ficção, a história se desenvolve entre fatos corriqueiros e cotidianos, onde pode se enxergar nitidamente semelhanças com a trajetória de milhares de artistas pelo Brasil afora. Histórias pessoais que passam batido frente a invisibilidade desses inúmeros talentos, espalhados pelo mundão, e que talvez não chamasse tanta atenção se não fosse a narrativa instigante de Alessandro Buzo. Auto denominado “Suburbano Convicto”, o escritor, cineasta e apresentador não para um instante sequer. Buzo mantém uma livraria no bairro do Bixiga onde toda terça organiza o “Sarau Suburbano”, apresenta um quadro jornalístico semanal na principal emissora de tv do país, ministra palestras por todo Brasil e ainda arruma tempo pra escrever de forma absolutamente incessante. Em Profissão MC, filme que dirigiu em parceria com Toni Nogueira, Alessandro Buzo fez uso de sua livre circulação e coletividade entre os pilares do hip-hop brasileiro para selecionar um time totalmente debutante em atuação, mas com uma história consolidada no rap nacional, e os instruiu a seguir o roteiro sendo eles mesmos, quando as cenas estivessem sendo rodadas. O romance baseado no filme traz a mesma veracidade latente das atuações desses personagens reais, sendo o protagonista e peça central da história o cantor e compositor Criolo Doido. Em 2008 quando o filme foi rodado, Criolo Doido – ou Criolo, como ficou conhecido de um ano pra cá – já tinha lançado seu primeiro álbum Ainda Há Tempo (2006) e ocupava uma posição de destaque no cenário do rap nacional. Porém, foi em 2011 com o lançamento de Nó na Orelha – disco que tive a honra de assinar a produção musical junto a meu
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parceiro Marcelo Cabral – que Criolo teve projeção nacional entre os grandes nomes da música brasileira, alcançando um enorme sucesso de público, ganhando diversos prêmios e sendo reverenciado por alguns de seus mestres. A história aqui narrada evidencia a linha tênue que separa os possíveis caminhos dos jovens de periferia, colocando à prova a cada instante sua determinação e autoestima. Tive em minha carreira momentos de difícil compreensão e superação, como a perda de um dos maiores poetas que esse país já conheceu para o tráfico de drogas (Sabotage eterno!). Minha vivência como produtor sempre me manteve rodeado de muitos talentos, mas são as escolhas do dia a dia e pequenas atitudes que vão determinar a longevidade e prosperidade de suas carreiras. Por isso, “quando uma pessoa lhe oferecer o caminho mais curto, FIQUE ATENTO”.
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Daniel Ganjaman Produtor musical
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2011 foi um ano ímpar na minha vida literária. Simplesmente lancei os cinco livros abaixo: Janeiro – Hip Hop: Dentro do Movimento (Aeroplano Editora). Agosto – Do Conto À Poesia (Ponteio Editora). Setembro – Pelas Periferias do Brasil – Vol 5 (org). Outubro – Dia das Crianças na Periferia, livro infantil com ilustrações de Alexandre de Maio. Dezembro – Poetas do Sarau Suburbano (Ponteio Editora), org.
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Nem no meu sonho mais otimista eu imaginei viver um momento desses: 11 anos de carreira depois, lancei meu primeiro livro no Itaim Paulista – em dezembro de 2000. Naquele tempo, não era comum manos da periferia publicarem livros, fui um dos pioneiros. Não parei mais. Meu primeiro livro infantil foi o nono autoral da minha carreira, além dos seis outros que organizei. Todos esses lançamentos limparam o que eu havia produzido e, aguardando a publicação, coloquei tudo na rua e pensei: Agora, é escrever o próximo, sabendo que será o décimo. Eu só tinha uma certeza: Tinha que ser um baita dum romance. Mas a grande ideia ainda não tinha surgido e eu a estava esperando chegar naturalmente, até porque, no segundo semestre de 2011, eu trabalhei muito – lancei livros e estreei na Rede Globo em um quadro semanal de periferia no SPTV 1ª edição. Eis que pinta a ideia e nem foi eu que pensei. Recebi um e-mail da nVersos Editora, queriam conversar sobre um possível romance literário baseado no filme Profissão MC. Como não pensei nisso antes? Meu filme (roteiro e direção) daria um grande romance! Mas foram eles, da nVersos, que pensaram e me convidaram para escrever que eles publicariam.
Duas reuniões depois – uma na minha “casa”, a Livraria Suburbano Convicto no bairro Bixiga, e outra na “casa” deles, a sede da editora na Avenida Paulista. Acordo firmado e aqui estamos, alguns meses depois, com o resultado nas mãos. E, para quem não conhece o filme sobre o qual estamos falando, trata-se de uma ficção de 52 min., dirigida por Alessandro Buzo e Toni Nogueira, filmada no bairro do Itaim Paulista, minha terra, no extremo leste de São Paulo –, detalhe, sem captar um único real. O filme foi lançado no Cine Olido no dia 5 de outubro de 2009 e conta em seu elenco com: Criolo como protagonista, Das Antigas, DJ Dan Dan e Neto, com as participações especiais de Rappin Hood e do sambista Beto Guilherme. No ano de 2011, Criolo Doido passou a atender apenas por Criolo e lançou um disco maravilhoso intitulado Nó na Orelha, que o consagrou como o “músico do ano”. Ganhou o prêmio VMB da MTV, fez clipes superproduzidos, recebeu elogios até de Chico Buarque, cantou com Caetano Veloso e virou um megassucesso na vida real, diga-se de passagem. Sucesso, esse, merecido, afinal o Criolo é talentoso mesmo, estava lutando há quase 20 anos no rap. Com pouca grana no bolso, viagens de busão do Grajaú – extremo sul de SP – pro centro eram frequentes. Mais que merecido, e para mim é um orgulho que antes de tudo isso ele tenha brilhado em Profissão MC. Agora, vamos à história. Boa leitura.
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Alessandro Buzo www.buzo.com.br
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Ano
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Itaim Paulista, anos 70. É incerto quando esses três amigos vieram morar no bairro, mas segundo consta foi assim: o Das Antigas nasceu no distrito Itaim Paulista, extremo leste de São Paulo. Nasceu em casa, pois não deu tempo de socorrer e levar para um hospital, lá não passava táxi e pouquíssimos vizinhos dele, no bairro Jardim Camargo Novo, tinham carro. Nenhum deles estava em casa no momento, mas a vizinha, que é filha de uma antiga e respeitada parteira da região, estava. Ela fez algumas emergências depois que sua mãe se foi, com quase 90 anos e centenas de partos. Das Antigas nasceu em 1972, filho de Dona Rosa e de Mário, que é da vida loka nas horas vagas. Preto e seus pais, Dona Maria e Seu Jaime, chegaram para morar no bairro Jardim Romano em 1975. O lugar era pobre, bem diferente da Penha, onde viviam antes, mas era onde seu pai, metalúrgico, podia pagar. Passaram muitos venenos – ruas sem pavimentação, esgotos a céu aberto. Já o pai de Dan, Seu Jura, quando sua mãe faleceu, voltou para a casa onde nasceu e viveu sua infância, no bairro Jardim Campos. Ele e sua irmã, tia de Dan, herdaram a casa da mãe. Seu Jura tinha acabado de receber indenização por 10 anos de trabalho da panificadora onde era padeiro, comprou a parte de sua irmã e em 1976 mudou-se com a esposa, Dona Meire, e Dan, até então filho único do casal. As vidas de Das Antigas, Preto e Dan ainda não haviam se cruzado. Isso só aconteceu anos depois.
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A vida no início dos anos 1980 não estava fácil no Itaim Paulista, nem para quem era trabalhador, nem para quem era do crime. Preto era uma criança em 1980, mas lembra que seu pai, metalúrgico, disse à sua mãe, Dona Maria, que tinha sido fundado o PT (Partido dos Trabalhadores) e que suas vidas iriam mudar. Falou que um barbudo chamado Lula foi à frente da fábrica e fez um discurso dizendo que precisavam lutar por mais direitos e melhores condições de trabalho, etc. Preto não imaginava que, lá na frente, ele votaria no “barbudo chamado Lula” e que este seria o presidente do Brasil. Os três futuros amigos, Das Antigas, Preto e Dan, ainda não se conheciam, mas o destino iria juntá-los numa favela, antes de chamarem favela de comunidade – bem antes. Os anos 1980 trouxeram novos sucessos nacionais, como: Barão Vermelho, Titãs, Blitz, Paralamas do Sucesso, Ultraje a Rigor, Ira e Kid Abelha, entre outros do rock. Além de sucessos da MPB não tão novos assim como: Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros. O pai de Das Antigas, Mário, quando estava de boa, ouvia Bezerra da Silva, que ele chamava de “Rei dos Malandros”; logo, ele, que se considerava um malandro, era súdito. Seu Jura, pai de Dan, ouvia discos de vinil do Trio Parada Dura, Tião Carreiro e Pardinho, entre outros. Já a mãe, Dona Meire, ouvia vinil de trilhas de novelas da Rede Globo, principalmente as internacionais, que eram as que mais tocavam nas rádios FM. A música dos pais sempre influencia as crianças. Nem sempre as preferências são as mesmas, mas despertam o tal do gosto musical. Preto ouvia música com seu pai, porque era a hora em que ele mais lhe dava atenção e até carinho. Eles ouviam Cartola, Benito de Paula e Osvaldinho da Cuíca. Preto absorvia tudo em sua cachola – às vezes, também ouviam Luiz Gonzaga.
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O ano do qual Das Antigas, Dan e Preto melhor se recordam foi 1982; eles tinham entre 9 e 11 anos, já eram “grandes”. Deste ano, o que não esqueceram fora a Copa do Mundo na Espanha. A seleção brasileira, comandada por Telê Santana, só tinha craques: Júnior, Zico, Sócrates, Falcão e Eder, entre outros. Das Antigas lembra de seu pai feliz, bebendo cerveja com os amigos e assando carne. Recorda-se também de ter assistido a alguns jogos em casa, um na rua com os vizinhos e outro no bar. Seu pai impunha respeito. Das Antigas percebia que algumas pessoas tinham medo dele, mas não entendia bem por que, já que em alguns momentos seu pai era engraçado e brincalhão. Preto assistiu aos jogos entre amigos. A montadora de carros onde seu pai trabalhava colocou uma TV para que os funcionários pudessem assistir, mas só paravam o batente na hora exata em que o jogo começava – nada de hino, preliminar ou cerveja; só o jogo. Mas quando a partida caiu no dia de folga de Seu Jaime, ele e Dona Maria assistiram ao jogo com os filhos – não falei ainda, mas Preto tem uma irmã 5 anos mais nova que ele, Rita. Além de assistir aos jogos com a família e vizinhos, Seu Jura, pai de Dan, trazia guloseimas da padaria onde trabalhava e também comprava cervejas e refrigerantes. O Brasil encantava em campo; então, surgiu a Itália, que na primeira fase não botou medo em ninguém. Mas, na segunda fase, jogou contra o Brasil num jogo épico e inesquecível. O Brasil tomou três gols de Paolo Rossi, e perdemos de 3 x 2. Os gols de Sócrates e Falcão não salvaram aquela seleção que o povo abraçou de naufragar nesta partida. Falando nela, que partida! Dan, Das Antigas e Preto, anos depois, comentariam juntos os lances desta partida, ainda que em 1982 eles ainda não se conhecessem. Bola cruzada na área e Paolo Rossi fez o primeiro gol de cabeça, 1 a 0 pra Itália. Foi aí que Mário, pai de Das Antigas, começou a pegar no pé do goleiro Valdir Peres; a partir dali, tudo era culpa do goleiro. Seu Jura estava preocupado com o ataque e não acreditou no gol na cara, que Serginho Chulapa perdeu.
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Mas depois, para alívio geral da nação, Luciano do Vale narrou na TV o lindo lance e o toque perfeito de Zico para o Dr. Sócrates, que invadiu e bateu forte. A bola levantou até cair depois da linha do gol; Brasil 1 x 1. Havia festa em toda parte, Preto percebia que até no pobre Jardim Romano as pessoas tentavam enfeitar as ruas para a Copa. Na TV, via lugares ainda mais decorados. De volta ao jogo, parece mentira: Cerezo tocou uma bola de lado, havia uma linha de zagueiros e quem pegou? De novo, ele, Paolo Rossi, fez 2 x 1 para Itália. “Culpa do Valdir Peres”, segundo Mário. Conforme Seu Jura, “o gol que o Chulapa perdeu vai fazer falta”. Eis que surge no jogo Falcão; ele já tinha dado um chute que raspara a trave. Na segunda tentativa, foi ajeitando, ajeitando e soltou uma bomba, que o excelente goleiro Zoff não conseguiu agarrar e impedir o empate brasileiro. Mário gritava: – Eles já eram... eles já eram. O Brasil teve outras chances. Em uma delas, Zico chutou uma por cima, mas do nada um escanteio foi cortado, a bola foi chutada da entrada da área e quem ela encontra na pequena área? Ele... Paolo Rossi, que fez seu terceiro gol. Placar final: Itália 3 x 2 Brasil. Tragédia do Sarriá para alguns e inesquecível para quem gosta de futebol-arte, uma seleção cheia de craques que não levou a taça em 1982. Um pouco mudada, quatro anos depois, em 1986, a seleção brasileira também não levou a taça; duas chances que Telê Santana teve e perdeu. Ele ficou com fama de pé-frio até 1990, quando montou um esquadrão no time do São Paulo e garantiu o bicampeonato mundial para o tricolor paulista. Ainda no ano de 1982, Mário precisou ir ao centro da cidade, coisa rara. Resolveu levar Das Antigas para que seu filho conhecesse a cidade – naquele tempo, ir à cidade significava ir ao centro de São Paulo. Mário estava feliz e tinha dinheiro. Comprou esfirras e Coca-Cola para eles e, quando viram um cinema, notou que os olhos de Das Antigas brilharam: o cartaz gigante anunciava o filme ET – O extraterrestre. Mário, feliz,
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resolveu apresentar um cinema ao filho – antes disso, Mário só tinha ido aos “inferninhos pornôs”. Assistiram ao filme e este foi o dia mais feliz da infância de Das Antigas, que no futuro herdaria a profissão do pai, tornando-se bandido e traficante. Mário era ladrão e assaltava mansões. Fazia um assalto por mês, até menos, e no restante do tempo só gastava o dinheiro. E, para esse dinheiro render, não usava uma conta-poupança: ele comprava 1,2 kg de maconha e vendia as trouxas. Dona Rosa, sua esposa, xingava e pedia para ele parar de mostrar o que fazia ao filho que estava crescendo. – Ele ainda é uma criança, não entende as coisas – censurava Dona Rosa. Das Antigas entendia bem mais do que ela imaginava. Pior que isso, para o desespero de Dona Rosa no futuro, ele admirava o respeito que o pai tinha nas ruas do Jardim Camargo Novo. Dan também tinha uma lembrança particular de 1982. Ele e seu pai assistiam ao Jornal Nacional da Rede Globo – uma quase religião para Seu Jura. E, de repente, ouviram a notícia de que a Argentina havia invadido as Ilhas Malvinas e começado uma guerra contra a Grã-Bretanha. – O que é uma guerra, pai? – perguntou Dan. Seu Jura tentou explicar: – É quando dois ou mais países mandam soldados lutarem até a morte por alguma causa, morre muita gente e no fim ninguém ganha nada com isso. – Por que então fazem isso, pai? – Porque o poder cega o homem. Dan ficou preocupado e pensativo, então tornou a perguntar:
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– E se o Brasil um dia entrar em guerra, pai? Seu Jura então respondeu: – O Brasil é o melhor país do mundo, aqui não tem guerra e nem terremoto. Dan não sabia ao certo o que era terremoto, mas ficou aliviado por seu pai garantir que não teríamos guerra. Em 1982, no Itaim Paulista, não há nada para destacar além do clima de festa da Copa e o fato de ter sido a primeira de que nossos amigos Das Antigas, Preto e Dan têm lembrança, pois em 1978, na Argentina – quando o time da casa foi campeão –, eles eram muito novos. Ser morador do Itaim Paulista não é fácil. A maioria da população trabalha na região central de São Paulo e o Itaim é o último bairro da gigante Zona Leste. Oficialmente, são 38 quilômetros que separam a quebrada do centrão. Mas o que ajuda muito é ter a linha de trem que liga o Brás, região central da cidade, a Calmon Viana, no município de Poá – SP. De trem, hoje, são 30 minutos; nos anos 1980, eram 45 minutos em média. Os três futuros amigos ainda não sabiam, mas iriam se conhecer na linha do trem. O tempo é rei e ele passa para todos..... 83, 84, 85 foram ficando para trás. Dan gostava de assistir à corrida de Fórmula 1 com seu pai e lembra de 1983, quando Nelson Piquet se tornou bicampeão mundial da Fórmula 1. Mas o grande ídolo de Dan ainda estava para surgir e atenderia pelo nome de Ayrton Senna. 1983 foi também o ano em que a Apple lançou o computador Macintosh, mas essa tecnologia ainda estava muito longe do Itaim Paulista, que seguia seu ritmo. Todo dia, milhares de moradores acordam cedo para buscar seus ganha-pães no centro de São Paulo. O bairro oferece algum comércio nas ruas centrais próximo à Praça Silva Teles e à estação de trem Itaim Paulista. Preto tem em sua memória esportiva às Olimpíadas de Los Angeles, em 1984.
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Das Antigas se ligou mais no movimento das Diretas Já!, pois seu pai, Mário, vivia dizendo que “tinham que tirar os militares do poder e acabar com a ditadura, porque esses milicos são tudo safado, estão legislando em causa própria”. Já para Dan, nem Olimpíadas e nem Diretas Já!; o que marcou para ele foi o SBT (Sistema Brasileiro de Televisão) passar a exibir a série Chaves em 1984. Dan até hoje assiste à série, mesmo sendo reprisada pela centésima vez. Imagina em 1984, quando era novidade. Não é que 1985 trouxe Tancredo Neves para presidência do Brasil, – ainda que de forma indireta? Ele tinha o apelo popular por não ser militar. Mas Tancredo Neves faleceu antes de tomar posse do cargo, foi uma comoção em todo o País, e quem assumiu a presidência foi seu vice, José Sarney. Era oficialmente o fim da ditadura no Brasil e, no final da década, em 1989, o país elegeu Fernando Collor de forma direta, o povo nas urnas. Mas deixa o Collor para lá, o mesmo povo que o elegeu exigiu seu impeachment com a luta dos “caras-pintadas”. Antes, vamos falar da Copa do Mundo de 1986, no México, país onde, em 1970, a seleção brasileira de Pelé e companhia encantou o mundo. Mas a seleção de Telê era com base no esquadrão de 1982, última chance para a geração do craque Zico e tantos outros. Não deu de novo: o Brasil não encantou como em 82 e ainda assistimos à França nos eliminar numa disputa de pênaltis. Esse dia foi inesquecível. Das Antigas lembra que ajudou a enfeitar a rua de sua casa com bandeirinhas e pintando muros. A França tinha Michel Platini e nada mais, nós tínhamos Zico, Sócrates... No Jardim Romano – super violento em 1986 –, a festa era dentro das casas, porque na rua existia uma guerra não declarada entre bandidos e policiais. Desde que um PM fora morto – e os bandidos desfilaram pelo bairro com o soldado num carrinho de pedreiro – que cada bandido foi tendo seu fim. No dia seguinte a esse ocorrido, choveu polícia no Jardim Romano, dezoito pessoas foram levadas para a delegacia e sete foram liberadas
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depois que provaram ser trabalhadores. Mas oito criminosos, entre eles um inocente, foram mortos pela polícia naquele dia, pouco antes do início da Copa do Mundo. Por conta disso, a tensão era grande nas ruas em 1986 e Preto lembra bem do fato, pois não podia sair de noite e nem ficar de bobeira nas esquinas. Mesmo com tudo isso, algumas ruas foram enfeitadas de verde e amarelo. Claro que no Jardim Campos também existiam muros e ruas pintados, e antes do jogo da França, um enorme balão verde e amarelo subiu arrastando uma bandeira brasileira. Cada um, à sua maneira, lembra-se desse jogo, Brasil 1 x 1 França no tempo normal. O mais incrível foi o craque Zico, que perdeu um pênalti que poderia ter dado a vitória e a vaga para a seleção canarinho, mas não deu, Zico perdeu a cobrança e acabou empatando 1 x 1. E o juiz ainda terminou o jogo trinta segundos antes dos 15 minutos do segundo tempo da prorrogação – para a revolta de Mário, pai de Das Antigas. Como se esses 30 segundos tivessem tirado a nossa vaga. “Penalidade máxima, uma loteria”, dizia Osmar Santos, que saiu do rádio para narrar essa Copa na TV, conhecido como “pai da matéria”, criador de frases memoráveis. Primeiro pênalti – e logo de um craque do Brasil –, Sócrates partiu e perdeu. O goleiro defendeu. Stopyra fez 1 x 0 para a França, começou o sofrimento, Alemão foi e fez o gol, Brasil 1 x 1. Depois, foi a vez de Manuel Amoros, França 2 x 1. Seu Jura assistia incrédulo e Dan disse: – O Carlos vai agarrar o próximo, pai. Todos torciam. Zico partiu para a cobrança com grande responsabilidade e coragem, afinal, perdera um pênalti no tempo normal. E Zico fez 2 x 2 para o Brasil. Quando B. Bellone partiu, Seu Mário gritou: – Esse francês de merda vai perder, vai perder. As crianças, Das Antigas e os meninos vizinhos, riram dele e Dona Rosa o repreendeu: – Para de gritar, homem de Deus.
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– Mulher não entende de futebol, esse francês de merda vai perder e pronto – Mário retrucou. A molecada riu ainda mais e Dona Rosa os deixou com a TV no quintal e foi para dentro de casa, pouco interessada no jogo, mais preocupada com a vida – o filho estava crescendo e o marido migrara do assalto para o tráfico de drogas e andava fazendo as coisas na frente de Antônio. Sim... o nome de Das Antigas é Antônio. Voltando ao jogo, Bellone partiu e chutou, a bola bateu na trave e na volta bateu nas costas do goleiro Carlos e entrou. Gol da França, apesar dos protestos de que não valia – por ter voltado e batido no goleiro –, ainda assim o juiz declarou gol. França, 3 x 2. Até Dona Rosa riu com Mário gritando: – Juiz ladrão, safado, sem vergonha. Ladrão. Preto e seu pai, Seu Jaime, assistiram à partida lá mesmo, na Vila Itaim, vizinha do Jardim Romano, na casa de um amigo de seu pai, que trabalhava com ele na montadora de automóveis no ABC. Eles tinham um padrão de vida melhor que alguns vizinhos, por Seu Jaime ter um emprego melhor. Foi a família toda. Dona Maria levou um frango assado e maionese, e a irmã do Preto, Rita, levou sua boneca. Ela não entendia nada do que estava acontecendo, nem o porquê de tanta festa. Branco partiu e Seu Jaime disse ao amigo: – Só falta ele chutar pra fora. – Vira essa boca pra lá, compadre – respondeu o amigo Neco. Neco tinha 3 filhos. Um rapaz com 18 anos, que não estava em casa, e duas meninas, uma com 3 anos e Bruna, que é um ano mais velha que Preto. E foi naquele dia que ele, Preto, deu seu primeiro beijo. Prorrogação do jogo longa, casa grande, os dois no quintal dos fundos, então ela perguntou: – Você sabe beijar? – Mais ou menos, mas posso aprender com você – respondeu Preto. Assim, foram dados os primeiros beijos de Preto, que dali em diante ia pegar muita menina no Itaim – Preto era bom de papo com as mulheres. Na hora do pênalti, ele estava ao lado de Bruna.
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Branco cobrou e bateu forte, fazendo 3 x 3. A próxima cobrança era do craque francês Platini, que beijou a bola e a mandou para fora. Para fora! Festa no Jardim Campos, no Camargo Novo, no Brasil inteiro. E para comemorar, Preto abraçou Bruna – moleque safado. Todos passaram a acreditar na vitória de novo, o craque da França perdera isso iria desestabilizar o time. Mário, quase sem voz, gritava: – Chupa, Platini, chupa... Júlio Cesar partiu para a cobrança com chance de pôr o Brasil em vantagem. Ele bateu com força e a bola explodiu na trave direita do goleiro e foi para fora. Silêncio! L. Fernandez partiu, bateu e fez, França 4 x 3. Fim da era Zico e um dia inesquecível para Preto – por outros motivos. Tirando isso, 1986 trouxe o Plano Cruzado e, antes da Copa, houve a aparição do Cometa Halley, em fevereiro, mas nada comparado ao dia em que Preto aprendeu a beijar – e não parou mais. 1987 passou e em 1988 houve as Olimpíadas de Seul, na Coreia do Sul. Os anos 1980 estavam acabando e nossos amiguinhos estavam crescendo e sobrevivendo nas ruas do Itaim Paulista, com pouquíssimas opções de lazer e praticamente nenhuma de cultura. Do último ano da década, Dan recorda de que estava assistindo à TV e escutou a notícia no Jornal Nacional informando que a União Soviética estava retirando suas tropas do Afeganistão, o mesmo Afeganistão onde no futuro surgiria Osama Bin Laden. Dan se lembrou da guerra inútil das Malvinas e pensou: O poder cega os homens. Já Preto lembra-se de ter ficado atônito com a queda do muro de Berlim: Como podia existir um país dividido por um muro? Por isso que na Copa tinha a Alemanha Ocidental e a outra! Naquele momento, ele entendeu que as duas Alemanhas eram a mesma, mas separada por um muro, e esse muro caiu e Preto achou legal.
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