Relatório 4 - Estudos de Caso

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A Criatividade Urbana na Região de Lisboa

RELATÓRIO 4 (versão preliminar)

Case Studies DEZEMBRO 2011


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Introdução A análise de diferentes casos de criatividade urbana na Região de Lisboa visa, em primeiro lugar, identificar os traços fundamentais de acontecimentos, processos e meios criativos. Tendo precisamente em vista esse objectivo, foram definidas 3 categorias de casos de criatividade urbana: os eventos – acontecimentos culturais que produzem uma imagem da cidade/região capaz de atrair criativos, empresas e visitantes reforçando assim a visibilidade e , ao mesmo tempo, e intensificando ao mesmo tempo o capital social colectivo; os lugares – espaços urbanos que através de uma estratégia criativa se conseguem diferenciar dos restantes, constituindo-­‐se, por essa via, como marcas de distinção da cidade/região; as organizações – colectivos que mobilizam a criatividade, normalmente através da expressão artística, para estimular a inovação social e, em particular, a inclusão e a coesão das comunidades locais mais frágeis. C R I T É R I O S P A R A A S E L E C Ç Ã O D O S E S T U D O S D E C A S O

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Com base nesses parâmetros, foram selecionados 10 casos que se distribuem do seguinte modo:

Pretende-­‐se compreender a génese, o desenvolvimento e os resultados das iniciativas que configuram estes vários casos de estudo. De modo a garantir uma análise sistemática, fundamentada e baseada em critérios relevantes e explícitos, foi elaborado um guião orientador que contempla os seguintes tópicos: 1.

Identificação do caso Designação Entidade(s) responsável (se aplicável) Localização (município)

2.

Percurso até à actualidade Data de início Inspiração (noutro lugar, adaptação de uma ideia ou actividade, …) Quem iniciou (organizações e agentes/liderança) Apoios para o arranque Como se iniciou Principais alterações ao longo do tempo (e justificação)

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3.

Contexto actual (em que quadro se desenvolvem as actividades/eventos Quadro geográfico (p.e. centro histórico, bairro desfavorecido, meio rural, …) Quadro social (p.e. jovens, população em risco de exclusão, estudantes, mulheres, imigrantes, …)

4.

Atributos (presente) Quadro institucional Agentes Modelo de gestão (privado/privado com apoio público/parceria privado-­‐público/ público com apoio privado/ privado) Parcerias Espaços Equipamentos Recursos Apoios

5.

Actividades (um quadro para cada actividade, p.e. formação, performance, workshop, …) Identificação Responsáveis Periodicidade Participantes Público-­‐alvo

6.

Eventos ou acontecimentos críticos (incluir aspectos positivos e negativos que ilustram especialmente bem as dinâmicas do caso em estudo, especialmente as transformações ocorridas)

7.

Resultados Visibilidade Integração social Aprendizagem Emprego Empreendedorismo Competitividade local ou regional Inovação (social e/ou económica)

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8.

Internacionalização Ligação a outros países Rede internacional Acordos ou parcerias internacionais

9.

Sugestões de política Economia-­‐emprego Sociedade-­‐cultura Urbano-­‐regional

Estes 9 tópicos são o ‘fio condutor’ da análise dos casos que apresentamos a seguir. Contudo, a organização e o discurso ficaram ao critério dos respectivos autores. Não só por questões de liberdade de expressão mas também porque cada caso é distinto dos outros. Nota -­‐ Este relatório preliminar não inclui os casos Amadora BD e LxFactory dado que não foi possível obter em tempo útil toda a informação necessária à análise.

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EVENTOS

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doclisboa Festival Internacional de Cinema Documental

João Reis

Esta imagem foi o cartaz da edição 2010 do doclisboa. Trata-­‐se e uma fotografia de Malick Sidibé, de 74 anos, o fotógrafo africano em atividade de maior reconhecimento internacional. Os seus retratos e fotografias documentais são testemunho do desenvolvimento cultural e social do Mali pós-­‐colonial. Esta fotografia é uma da 85 que integrava a exposição de referência apresentada no Palácio das Galveias por ocasião do doclisboa 2010. Fonte: Dossier de imprensa doclisboa 2010

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“Em outubro, o mundo inteiro cabe em Lisboa” (slogan do doclisboa)

Um percurso reconhecido «O que é que faz um bom festival? O ambiente que se vive, que tem a ver com os espaços e com as pessoas que nos recebem. A informação que nos dão -­‐ programa, site, catálogo e apresentação dos realizadores convidados -­‐ e, claro, a programação. Encarar a arte do documentário de forma séria mas sem pretensiosismos. E ousar lutar por melhores condições para o documentário, a nível nacional e internacional. O doclisboa tem tudo isto! » Tue Steen Müller, Filmkommentaren.dk

Organizado pela Apordoc na segunda metade de outubro, o doclisboa apresenta todos os anos em ante-­‐estreia os melhores documentários da última temporada reunindo uma série de filmes numa programação competitiva e não competitiva, incluindo a retrospectiva de autores internacionalmente aclamados. O doclisboa é hoje considerado um dos maiores festivais de cinema documental da Europa. Porventura o 2º maior, se atendermos ao número de espectadores atingidos: 37 000 na edição de 2010, a maior de sempre deste festival. Apenas o IDFA de Amesterdão supera o evento de Lisboa, que também superou um dos mais conceituados, o FID de Marselha. O festival é herdeiro dos “Encontros Internacionais de Cinema Documental da Malaposta” organizados na década de 90 pelo cineasta Manuel Costa e Silva, no Teatro da Malaposta às portas de Lisboa, no município de Odivelas. É ainda na vigência desses encontros que surge a Apordoc – a associação sem fins lucrativos, oficialmente constituída em 1998, para apoiar e desenvolver o cinema documental, cuja direção inicial, inclui nomes como José Manuel Costa, Luís Correia, Pedro Martins, Catarina Alves Costa, Catarina Mourão e outros nomes notáveis ligados à realização e produção. A associação surgiu no contexto da pressão para o apoio ao cinema documental e vai funcionar como parceiro e interlocutor das instituições no financiamento de projetos, designadamente junto da EDN (European Documentary Network). A primeira edição do festival ocorre em 2002 no CCB, tendo como diretor o produtor Luís Correia. Por vicissitudes várias a 2ª edição do festival ocorre dois anos mais tarde, já no espaço que acolhe o evento desde então: a Culturgest, sede da fundação para a cultura da Caixa Geral de Depósitos (CGD). Em 2004, ano que marca o verdadeiro arranque do festival tal como se apresenta atualmente, o ICA (Instituto do Cinema e Audiovisual) abre o 1º concurso para festivais de cinema no qual o doclisboa fica bem posicionado. Segundo os organizadores o sucesso da edição de 2004, já na Culturgest, terá surpreendido os próprios responsáveis da instituição de acolhimento, para os quais a inclusão do “grande auditório” seria manifestamente desproporcionada. A partir daí o festival prosseguiu uma dinâmica de expansão bem

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patente no Quadro 1 que assinala os locais e datas, bem como a respectiva evolução do número de espectadores, filmes e sessões.

Quadro 1 -­‐ cronologia do doclisboa Ano 2002 2004 2005 2006 2007

Local / data Espectadores Filmes/sessões CCB (1 a 9 de Junho) cerca de 3.500 69 filmes Culturgest (24 a 31 de outubro) 13 500 * 65 filmes / 55 sessões Culturgest (15 a 23 de outubro) 18 500 * 90 filmes / 62 sessões Culturgest (20 a 29 de outubro) 22 500 * 97 filmes / 74 sessões Culturgest, Cinema Londres, Cinema 33 000 150 filmes / 171 sessões São Jorge (18 a 28 de outubro) 2008 Culturgest, Cinema Londres, Cinema 33 000 175 filmes / 244 sessões São Jorge, (16 a 26 de outubro) 2009 Culturgest, Cinema Londres, Cinema 33 000 190 filmes / 208 sessões São Jorge (15 a 25 de outubro) 2010 Culturgest, Cinema Londres, Cinema 37.000 204 filmes / -­‐-­‐-­‐-­‐ sessões São Jorge, Cinema City Classic Alvalade (14 a 24 de outubro) 2011 Culturgest, Cinema Londres, Cinema -­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐ -­‐-­‐-­‐-­‐ filmes / -­‐-­‐-­‐-­‐ sessões São Jorge (20 a 30 de outubro) *o festival com mais público de Lisboa Fonte: Apordoc

Os dados permitem sublinhar a continua expansão em termos de salas, espectadores, filmes e sessões de exibição. Esta situação suscitou a defesa pelos programadores de um festival mais concentrado, com diminuição do número de filmes e salas, de forma a permitir aos espectadores uma menor dispersão, privilegiando a interação de públicos, consentânea com o formato de um festival. Deste modo, em 2011, a IX edição do doclisboa regressa aos espaços de 2009 (duas salas na Culturgest, duas salas no Cinema Londres e duas salas no Cinema São Jorge). Uma festa para o cinema do real Segundo os organizadores, o doclisboa é desde a sua primeira edição um festival competitivo, dedicado ao cinema do real, aberto a diversos géneros e tendências, que privilegia novas maneiras de pensar, de olhar o mundo e de comunicar. Alguns comentadores referem-­‐se ao doclisboa como a festa do cinema documental. A essa referência não é estranha a atração de públicos cada vez mais variados e curiosos que é uma das marcas deste evento na capital. Para além da dinâmica de crescimento das sucessivas edições do festival é de sublinhar a forte missão formativa, traduzida no envolvimento dos públicos escolares (do ensino básico, secundário e superior). O realizador Sérgio Tréfaut, ex-­‐diretor do evento, sublinhava em múltiplos textos e entrevistas, que a ambição do doclisboa não é apenas mostrar filmes mas intervir na sociedade. Esse aspecto interventivo não é alheio quer à atenção que os media prestam ao festival, quer à atração de um público diversificado embora maioritariamente jovem. Com efeito, um olhar atento sobre os espectadores do festival, tende a revelar um público sucessivamente alargado quer por razões de programação quer pela publicidade que tem rodeado o evento. O conhecimento mais rigoroso do perfil do

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público do doclisboa, resultará do estudo desse fenómeno na edição de 2011, no âmbito duma parceria da Apordoc com uma instituição de ensino superior. Depois dos anos em que a direção coube a Sérgio Tréfaut (2004-­‐10), o mais importante festival de cinema português dedicado ao documentário tem agora a sua direção a cargo de Anna Glogowski. A escolha da nova diretora resultou de um concurso internacional aberto pela Apordoc. Este concurso ocorreu na sequência da própria mudança de direção da Apordoc que integra nomes como Manuel Mozos, Susana de Sousa Dias, Maria João Taborda, Sandro Araújo e Fernando Carrilho. A nova diretora nasceu em São Paulo (Brasil), em 1950, e divide a sua atividade entre Portugal e França, onde trabalha na área do documentário na televisão pública francesa. Durante quase vinte anos, entre 1984 e 2002, integrou a direção de documentários da estação de televisão “Canal +”. Desde 2007 que Anna Glogowski já participa na seleção e programação de documentários portugueses no doclisboa. Para além do doclisboa existem outros eventos também da responsabilidade da Apordoc e que decorrem do evento principal. Com periodicidade anual, e já na 5ª edição, acontece em abril no cinema S. Jorge o “Panorama-­‐ mostra de documentário português”, onde o público pode ver o melhor do documentário produzido em cada ano. Com menos edições (vai na 3ª), realiza-­‐se em junho o “Doc_Europa”, uma mostra de filmes europeus, apoiada pela Comissão Europeia que acontece em simultâneo em Lisboa e no Porto. A edição de 2011 ocorreu em Cascais na sala da Casa das Histórias e no Porto no cinema Passos Manuel. Uma programação de referência Através da Apordoc foi criada uma estrutura organizacional responsável pela realização do evento. Na atual sede da Apordoc, no coração da Baixa de Lisboa, o doclisboa é reinventado todos os anos. Uma equipa de profissionais, cerca de 5 pessoas, trabalha todo o ano, sendo reforçada nos meses que antecedem o evento por mais duas dezenas de profissionais. Em outubro, o mês do evento, a máquina transfere-­‐se para a Culturgest e conta com o apoio de 40 voluntários. O interesse que o doclisboa suscita junto do público em geral e da comunidade cinéfila permite reconhecê-­‐lo como referência internacional tanto pela qualidade da sua programação como pela sua organização. Diversos realizadores de primeira linha são participantes regulares do festival e constituem uma verdadeira “família”: Frederick Wiseman, Nicolas Philibert, Avi Mograbi, Ricardo Íscar, Eduardo Coutinho, Ross McElwee, Jonas Mekas e Jean Rouch, entre outros. Alguns desses realizadores já foram objecto das retrospectivas de grandes autores que anualmente o festival inclui na sua programação. A edição 2011 do festival segue de perto a estrutura das edições anteriores estando a exibição dos filmes organizada por secções, conforme a sinopse que o Quadro 2 apresenta.

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Quadro 2 -­‐ programação doclisboa 2011 Competição Internacional Seleção de alguns dos melhores documentários de todo o mundo, produzidos na última temporada 2010-­‐ 2011, uns multipremiados e aclamados pela crítica, outros totalmente inéditos. A competição internacional é subdividida em duas categorias: longas e Médias metragens, com duração superior a 40 minutos; curtas metragens, com duração inferior a 40 minutos. Investigações Secção competitiva investigações que reúne filmes que procuram dar a conhecer situações críticas do presente e do passado. Por revelarem algo de novo, por se posicionarem perante a realidade, estes filmes podem interferir sobre a própria realidade ou enriquecer a nossa visão da história. Competição Portuguesa Seleção competitiva que apresenta alguns dos melhores documentários de produção e/ou realização portuguesa, concluídos no último ano. A maior parte das obras são estreias mundiais. Retrospectiva do Cinema das Guerras de Independência 50 anos após o início da luta armada dos povos colonizados por Portugal, um programa original de grande relevância política: uma retrospectiva histórica de filmes sobre as guerras de libertação das colonias portuguesas em África. Um resgate das obras cinematográficas mais significativas filmadas junto dos Movimentos de Libertação, cuja raridade e dispersão prometem reflexão, descobertas e emoção. Retrospectiva Jean Rouch (em colaboração com a Cinemateca Portuguesa) Jean Rouch (1917-­‐2004), etnólogo e cineasta, é homenageado com uma mostra que promete ser a maior jamais realizada no país. A sua obra em constante renovação, desde os anos 50 quando começou a filmar em África, influenciou o cinema moderno, até a própria Nouvelle Vague. O doclisboa traz uma obra que vem sendo restaurada desde 2008, pelo «Centre National de la Cinématographie». Retrospectiva Harun Farocki Harun Farocki é um dos mais conceituados realizadores contemporâneos da Alemanha, artista e teórico dos media, autor de uma obra variada em filme e vídeo, profundamente politizada. Riscos Secção paralela que tem por objectivo revelar obras ousadas, inovadoras, que se situam na fronteira entre a ficção e o documentário Heart Beat Secção paralela, que apresenta documentários onde a música é um elemento fundamental. Este ano teremos um Heart Beat «vintage», onde se redescobrem ou apresentam pela primeira vez em sala obras primas esquecidas. Fonte: http://www.doclisboa.org/2011/

A partir de 2005 o festival inicia a descentralização através das chamadas “extensões”. Trata-­‐se de mostras descentralizadas dos filmes portugueses exibidos no doclisboa e ocorrem em várias cidades em parceria com agentes locais, cineclubes ou outros. Estas iniciativas constituem em geral mostras dos filmes nacionais que tiveram mais impacto no festival desse ano. Segundo os organizadores, o objectivo das “extensões”, a longo prazo, é o reforço de parcerias para a formação de um novo público (sessões especiais para estudantes) e fidelização (apresentações regulares, com periodicidade mensal, como já acontece em alguns casos). É muito importante levar o documentário às zonas do país onde precisamente não existe esta tradição. No último ano o festival teve “extensões” em nove cidades, marcando presença em Alcobaça, Barcelos, Coimbra, Faro, Leiria, Viseu entre outras. O conjunto de atividades paralelas que o doclisboa contempla constam do Quadro 3. Algumas realizam-­‐se imediatamente antes do festival como é o caso do “Lisbon

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Docs”, outras durante o festival e/ou ao longo do ano, como é o caso do trabalho com as escolas.

Quadro 3 -­‐ Atividades paralelas ao doclisboa Lisbon Docs Fórum Internacional de Coprodução e Financiamento de Documentários. O Lisbon Docs é um fórum de financiamento e coprodução de documentários destinado a realizadores e produtores, que tem lugar no quadro do Festival doclisboa, onde é possível desenvolver projetos de documentário e estabelecer as bases para a coprodução e o financiamento a nível europeu. Num workshop de três dias, os realizadores e/ou produtores de cerca de 20 projetos de documentário trabalham os seus projetos orientados por uma equipa de tutores composta por produtores, realizadores e financiadores com reconhecida experiência internacional. No fim do workshop, os projetos são apresentados em duas sessões públicas de pitching perante um painel de representantes de canais de televisão internacionais (commissioning editors) e representantes de instituições financiadoras de documentários. Depois do pitching, são organizados encontros individuais entre os representantes dos projetos e os potenciais financiadores. Masterclasses As masterclasses do festival são públicas e gratuitas. Estes encontros informais com os realizadores estimulam o diálogo entre os profissionais e o público. Docs 4 Kids Ateliers para crianças. O documentário como experiência de aprendizagem e de crescimento. Grupos Escolares Os grupos escolares têm entrada a preço reduzido (1 euro por pessoa, no mínimo dez alunos) mediante marcação e levantamento prévio dos bilhetes (até 2 dias antes da sessão). Docbreakfast /Happy Hour diária / Guest meet Guest Espaços de encontro para facilitar o conhecimento e troca de experiências profissionais durante o festival Fonte: http://www.doclisboa.org/2011/

O financiamento do doclisboa é essencialmente público e depende, por ordem de grandeza: do lnstituto do Cinema e Audiovisual (ICA), organismo no âmbito da atual secretaria de Estado da Cultura; da Câmara Municipal de Lisboa e do Programa Media (um programa da União Europeia de apoio ao cinema e ao audiovisual). O evento conta com a coprodução da Culturgest, do cinema S. Jorge (através da EGEAC a empresa municipal de gestão dos equipamentos e animação cultural) e da Cinemateca Portuguesa. A organização do evento conta também com uma rede de patrocinadores privados e de instituições ligadas à cultura que variam consoante a programação. Se, por exemplo, a programação inclui retrospectivas de autores estrangeiros é natural que as instituições culturais dos respectivos países apoiem a mostra programada. Entre os patrocinadores para os prémios, contam-­‐se a CML e a CGD, e entre os parceiros de media, o jornal Público e a MOP (Multimédia Outdoors Portugal). O orçamento global do festival, segundo os responsáveis da organização está próximo de 1 milhão de euros, consumindo os custos diretos cerca de metade desse montante. As verbas provenientes do ICA, a principal entidade financiadora, embora estejam

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protocoladas por três anos sofreram no corrente ano um corte de 10% e o apoio da CML não está assegurado para os próximos anos. Um festival internacional O doclisboa é hoje visto como a janela privilegiada para se descobrir as últimas novidades do documentário português e as mais importantes obras internacionais que ainda não chegaram às salas de cinema. Para a edição de 2011 foram inscritos cerca de 1400 filmes nas categorias de curtas e longas metragens. Entre os filmes inscritos, cerca de duzentos são de realizadores portugueses o que representa um crescimento de 100% nos últimos cinco anos. doclisboa

Quadro 4 -­‐ O DOCLISBOA EM NÚMEROS DE 2004 A 2010 2004 2005 2006 2007

Filmes inscritos Filmes apresentados Filmes Portugueses Filmes inéditos em Portugal Filmes comprados para distribuição em cinema Filmes para difusão em televisão após o Festival Países representados Profissionais acreditados Jornalistas acreditados Extensões do festival Público escolar Número de sessões Valor total dos prémios (euros) Visionamentos na Videoteca

2008

2009

2010

-­‐-­‐ 65 11 -­‐-­‐ -­‐-­‐

558 90 15 87 5

956 97 20 81 6

1052 150 23 135 2

1081 175 25 142 5

1358 190 29 179 9

1182 201 37 147 -­‐-­‐

-­‐-­‐

4

5

7

10

9

-­‐-­‐

21 -­‐-­‐ 79 -­‐-­‐ 1300 55 14500 380

22 180 85 3 2475 62 21000 515

25 275 100 7 3125 74 28500 715

31 242 75 6 2396 171 27500 1044

32 422 83 6 2051 244 40000 1153

48 33 462 -­‐-­‐ 101 -­‐-­‐ 8 9 2146 -­‐-­‐ 208 -­‐-­‐ 46000 41000 4165 -­‐-­‐ Fonte: Apordoc

Os números que o Quadro 4 evidencia impressionam pela grandeza e pelo rápido crescimento. Vale a pena sublinhar o número de filmes portugueses apresentados que mais do que duplicou em sete anos, bem como o acesso a filmes inéditos que o festival propicia. No capítulo da formação de públicos é de assinalar o número de espectadores estudantes que marcaram presença nas sucessivas edições, em resultado da atividade paralela dedicada aos grupos escolares.

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As relações internacionais são um elemento fundamental num evento desta natureza. A programação do festival implica uma rede de contactos e viagens aos principais festivais para visualização e escolha dos filmes. Desde os primórdios que a iniciativa “Lisbon Docs” resulta de uma produção conjunta entre o doclisboa e a EDN (European Documentary Network), uma rede europeia que congrega cineastas e financiadores. A presença em todos os festivais, de nomes notáveis na realização e produção de filmes atesta o esforço dos organizadores em destacar o doclisboa no mapa dos festivais internacionais onde se podem recensear mais de uma centena de eventos em cerca de 50 países. O prestigio do doclisboa é reconhecido internacionalmente e recentemente passou a integrar o Doc Alliance, uma parceria internacional que congrega os mais significativos festivais europeus. Esta parceria que surgiu como resultado do esforço cooperativo de cinco principais festivais europeus de cinema documentário: CPH Dox -­‐ Copenhaga, DOK -­‐ Leipzig, IDFF -­‐ Jihlava, Planete Doc -­‐ Varsóvia e Visions du Reel -­‐ Lyon. O objetivo do Doc Alliance é apoiar a diversidade dos documentários, promovê-­‐los junto do público e criar uma plataforma de distribuição inventiva e dinâmica para os cineastas e produtores, oferecendo alternativas interessantes, debates, escolhas e perspectivas. Esta parceria nasceu com a consciência de que são necessárias novas iniciativas para promover os filmes, num mercado em geral menos permeável à sua circulação e comercialização, bem como abordar os públicos das mais diversas formas, que incluem cinema, televisão, DVD e outras redes. Nesse sentido, foi também lançada a iniciativa Doc Alliance Films, uma plataforma online para a distribuição de documentários e filmes experimentais. Uma cidade mais criativa Um pouco por todo o mundo o cinema documental tem vindo a ganhar público e visibilidade. Este fenómeno acentuou-­‐se na última década com a proliferação de eventos (mostras e festivais) e com o protagonismo à escala global de alguns realizadores de cinema documental. O realizador Michael Moore é porventura o exemplo mais conhecido em virtude de êxitos como “Fahrenheit 9/11” (2004), ou mais recentemente “Capitalism: a love story” (2009) sobre a crise financeira internacional. Entre nós é consensual o papel do doclisboa quer no despertar do interesse pelo documentário, quer no incremento de filmes produzidos pela atual geração de cineastas portugueses. O trabalho desta geração acentuou a diferença entre cinema e reportagem, e encontrou rumos temáticos e estéticos que vão muito além duma certa tradição do documentário centrado num objecto artístico ou literário. O prestígio internacional do documentário português tem vindo a ser objecto de reconhecimento nos últimos anos. É exemplo disso a atribuição do grande prémio do Cinéma du Réel (França, 2010) ao filme “48”, realizado em 2009 por Susana de Sousa Dias, sobre a tortura no Estado Novo, mais tarde também distinguido no festival de Leipzig, na Alemanha. Também o filme “Ruínas” de Manuel Mozos sobre edifícios abandonados em diversos lugares no território português, recebeu entre outras distinções, o prémio Georges Beauregard no FIDMarseille (Festival Internacional do Documentário de Marselha) em 2009.

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A projeção mediática do doclisboa foi desde o seu início um elemento decisivo na capacidade de atrair público para o cinema documental. Como referem os organizadores, ao fim de algumas edições, há uma nova geração de jovens que cresceram e aprenderam a ver e a fazer filmes nas salas do doclisboa. Em algumas edições, chegou a ser o festival que em Lisboa teve mais espectadores. Os dados do ICA, entre 2007 e 2010, confirmam o doclisboa como o terceiro maior festival nacional de cinema. Em 2010, com 36 640 espectadores, o doclisboa só é ultrapassado pelo “Fantasporto” e pelo “Indie”, festivais internacionais no campo do cinema de ficção, que tiveram 42 036 e 43 790 espectadores, respectivamente. O interesse do público português pelo cinema documental tem vindo a notar-­‐se também na audiência dos filmes que são exibidos no circuito comercial. Nos últimos anos, alguns documentários foram os filmes mais vistos nas salas de cinema, superando o cinema de ficção. São exemplos desse fenómeno, documentários portugueses como “Os Lisboetas” de Sérgio Tréfaut que em 2006 foi visto por mais de 15 508 espectadores e “José e Pilar” de Miguel Gonçalves Mendes, filme de abertura no doclisboa 2010, que foi visto por 22 000 espectadores em 4 meses de cartaz. Os dados do ICA para 2011 (contabilizados até 4 de setembro), sobre os filmes nacionais em exibição (longas-­‐metragens) revelam que nos três primeiros lugares estão documentários. Se por um lado estes dados parecem atestar a vitalidade do documentário também evidenciam a crise do cinema de ficção nacional que embora tenha raízes longínquas parece acentuar-­‐se. Apesar da notável evolução desta última década, não existe ainda uma escola de referência no campo do documentário. O percurso daqueles que querem especializar-­‐ se ou fazer uma carreira nesta área tende a exigir experiências de formação e/ou trabalho fora de Portugal. Há mais gente em escolas e universidades portuguesas, há mais gente a trabalhar em cinema e áreas afins, contudo parece distante a criação de um verdadeira indústria de produção cinematográfica, significativa em termos da sua empregabilidade e da importância num cluster de industrias criativas. A produção cultural portuguesa e europeia está dependente do financiamento público. Nesse contexto paira sobre o cinema em geral e os filmes documentais o espectro da escassez de financiamento num futuro que, para muitos, é já hoje. Algumas produtoras encerram e os mecanismos de financiamento europeu envolvem uma burocracia demasiado pesada. É a crise! Com a mobilização da classe criativa e dos seus parceiros, foi possível colocar Lisboa no mapa dos eventos internacionais do cinema documental. Foi possível criar um festival que funciona como um agente ativo do documentário na vida pública portuguesa. Veremos se essa mais valia cultural ajuda os vários agentes a ultrapassar estes tempos difíceis. A produção e fruição do cinema do real deve continuar a fazer de Lisboa uma verdadeira cidade criativa. Fontes:

doclisboa 2011 -­‐ Sítio do IX festival internacional de cinema, 20 a 30 de Outubro em Lisboa. http://www.doclisboa.org/2011/

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APORDOC – Associação pelo Documentário. Sítio da entidade organizadora do doclisboa, o festival internacional de cinema documental que se realiza em Lisboa desde 2002. O sítio remete para o doclisboa e viceversa. http://www.apordoc.org/ http://www.doclisboa.org/pt_festival.php Fórum Internacional de Coprodução e Financiamento de Documentários (incluído nas atividades paralelas do doclisboa) http://www.doclisboa.org/lisbondocs/pt_home.php Doc aliance – parceria do principais festivais de cinema europeus http://docalliancefilms.com/section/about-­‐doc-­‐alliance European Documentary Network – Associaçãoo internacional do profissionais do cinema documental http://www.edn.dk/ ICA -­‐ Instituto do Cinema e do Audiovisual -­‐ Instituto público no âmbito da Secretaria de Estado da Cultura http://www.ica-­‐ip.pt/ Página do doclisboa no facebook. http://www.facebook.com/doclisboa Entrevistas: Ana Jordão – Direção de Produção e Fund Raising do doclisboa Sérgio Tréfaut – Realizador, diretor do doclisboa entre 2004 e 2010

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Festival de Almada

Ana Estevens

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O Festival de Almada (FA) decorre há vinte e oito anos entre os dias 4 e 18 de Julho no concelho de Almada. Este evento é organizado pela Companhia de Teatro de Almada, sob a direcção de Joaquim Benite, e pela Câmara Municipal de Almada. O FA tem passado por várias designações ao longo da sua existência. Começou por se chamar Festa de Almada e passou por Festival Internacional de Teatro de Almada. Mas foi crescendo e tal como o festival de teatro de Avignon se chama Festival d'Avignon, o Festival de Almada também se passou a chamar assim.

Jornal da Festa de Almada (1986) O FA é no momento uma referência nacional e internacional das artes cénicas, do teatro e da reflexão teatral. O núcleo central do festival é o teatro mas também a dança, a música e as artes plásticas têm o seu lugar de destaque. “O festival é um discurso artístico, não é um amontoado de espectáculos, não é um conjunto de espectáculos que se escolhem e que se mostram” (Benite, 2010) o que lhe confere identidade e um papel político e simbólico de relevo. O objectivo dos festivais de teatro é uma discussão antiga que também tem palco no FA. No festival de 2008 este debate fez-­‐se. José Monléon (Director do IITM e do Festival Madrid Sur) referiu que “é certo que alguns festivais perderam o Norte, limitando-­‐se a congregar vários

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espectáculos de êxito. Mas noutros persiste a ideia que os associa ao desenvolvimento dos valores humanos, à criação da liberdade, à consciência planetária, à globalização do conhecimento e da solidariedade. É como se cada festival constituísse em si mesmo uma só obra, aberta a muitas vozes e vertebrada pelo mais profundo, antigo e necessário pensamento político. É evidente que o Mundo de hoje já não pode explicar-­‐ se com a teoria de ontem. Precisamos de uma nova cultura que, para além disso, aproxime a realidade dos enunciados teóricos do direito democrático. E o teatro pode ajudar-­‐nos”. E o FA enquadra-­‐se neste espaço de reflexão crítica e de abertura. Em 1971 o Grupo de Campolide (actual, Companhia de Teatro de Almada) iniciou a sua actividade sob a direcção de Joaquim Benite. Depois de percorrer todo o país com peças de António José da Silva, Pablo Neruda, Agustin Cuzzani e Virgílio Martinho, em 1977 instalou-­‐se no Teatro da Trindade onde permaneceu durante um ano. Em 1978 mudou-­‐se para Almada, para o teatro da Academia Almadense, num efeito do movimento de Descentralização Teatral, passando a designar-­‐se Companhia de Teatro de Almada. Após dez anos de permanência no concelho, a Câmara Municipal convida a Companhia a instalar-­‐se no Teatro Municipal e a tornar-­‐se aí residente. Em 2005 é inaugurado o novo Teatro Municipal de Almada. Considerado um dos teatros do país melhor equipados, esta obra dos arquitectos Manuel Graça Dias e Egas José Vieira, já recebeu dezenas de peças e espectáculos. A Companhia de Teatro de Almada é subsidiada pelo Ministério da Cultura / Instituto das Artes e pela Câmara Municipal de Almada. O festival teve início em 1984 e tem vindo, desde aí, a consolidar a sua existência ao nível da organização dos espectáculos, dos grupos participantes, do público e dos espaços utilizados conseguindo preservar a sua identidade. O FA surgiu dez anos após a a Revolução de 25 de Abril. Era “um acontecimento sazonal e sobretudo uma festa para mostrar o trabalho dos grupos, sobretudo amadores, que a Companhia de Teatro de Almada apoiava” (Vasques, 2008: 2). “A Festa de Almada ainda faria, durante vários anos, a ponte entre o que era um fraterno encontro de velhos camaradas, em fabulosa festa intimista, a amostragem de experiências de grupos profissionais, semiprofissionais e amadores e aquilo que poderemos designar como confronto, ou melhor, ”mostração”, a um público eminentemente popular, de espectáculos fundados num certo arrojo de linguagens” (idem). Vasques (2008: 3) considera que o A C R I A T I V I D A D E U R B A N A N A R E G I Ã O D E L I S B O A – C A S E S T U D I E S

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FA tem passado por diversas fases. Até ao momento conta quatro fases: a primeira, entre 1984 e 1995/1996, em que o FA se afirma, principalmente, a nível nacional mas também a nível internacional e a mudança de espaços começa a acontecer, com a construção do Palco Grande na escola D. António da Costa (1993) e do Fórum Romeu Correia (1998); a segunda fase, até 1999, em que o Ministério da Cultura inclui o Festival Internacional de Almada na categoria de projectos “convencionados”; a terceira fase, até 2005, é marcada pela inauguração do novo Teatro Municipal que era um projecto da autarquia e da Companhia há muitos anos; e uma quarta fase, que ainda permanece em aberto e em processo de desenvolvimento e expansão.

Teatro Municipal de Almada

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Em 1987 o FA assume uma dimensão internacional e começa a receber grupos estrangeiros, apresentando um conjunto vasto de criações. Esta integração do FA no circuito internacional de festivais de teatro aparece como uma afirmação na agenda da programação cultural a um nível mais amplo. Cruzeiro (2006) referindo-­‐se a esta internacionalização disse que “também no carácter internacional do Festival se pode ler, não o que vulgarmente se entende, quando se fala de internacionalização numa perspectiva, tantas vezes redutora, de instrumento para o reforço da famigerada “competitividade”, mas sim, num sentido humanista de abertura, de curiosidade e respeito pela diversidade, na mira de um lucro especial, sem exploradores nem explorados, o lucro que a todos advém das trocas culturais equilibradas”.

O FA não é apenas constituído por produções teatrais. Para além dos espectáculos de teatro, o festival conta também com o importante contributo de “actos complementares. Os “actos

complementares” decorrem em paralelo com a restante programação teatral do FA. São constituídos por exposições, colóquios, encontros na Casa da Cerca (em Almada), música, lançamento de livros, workshops, óperas e animações, e decorrem nos diversos espaços ocupados

pelo festival.

FA, 2003-­‐2011

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Quando olhamos para os últimos programas (2003-­‐2011) do FA é possível observar a evidente internacionalização de que se fala. Cerca de 50% das produções do festival são de companhias estrangeiras. Os países de origem das companhias visitantes vão desde o Vietname à República Checa, do Canadá ao Senegal ou do Chile à Rússia. Ao longo do período referido, destaca-­‐se uma permanência mais continuada e presente de companhias oriundas de França, Espanha e Itália. É também de destacar que todos os anos é eleito pelo público um espectáculo de Honra para o ano seguinte e que muitos destes espectáculos têm sido representados por companhias estrangeiras. Actualmente, embora a maioria dos espectáculos decorra no concelho de Almada, a utilização de outros espaços, nomeadamente na cidade de Lisboa, tem-­‐se tornado crucial. O espaço central do FA é a escola D. António da Costa, em Almada. Neste local é montado o Palco Grande, uma esplanada onde são servidas refeições e onde se realizam apresentações musicais e conversas. Ao longo dos anos os espaços do festival foram mudando. Até 1989 os espectáculos eram acolhidos no Pátio do Prior do Crato, na Rua dos Tanoeiros (palco dos Tanoeiros), no teatro da Academia Almadense, na Boca do Vento (palco da Boca do Vento) e na sala da Incrível Almadense. No final dos anos 1980 surgem mais dois espaços: o Teatro Municipal e a Casa da Cerca. Em 1992 é utilizado pela primeira vez o espaço da escola D. António da Costa, onde até hoje é instalado o Palco Grande do FA. Este palco é ao ar livre e tem um carácter simbólico muito grande. Anos mais tarde, também o Auditório Fernando Lopes-­‐Graça do Fórum Romeu Correia e a Sala Virgílio Martinho (do antigo Teatro Municipal) passaram a ser utilizados. Em 1999 o FA abre as suas fronteiras para além dos limites do concelho de Almada. Salas da cidade de Lisboa passaram a ser também utilizadas e a integrar os espaços do festival: Teatro da Trindade, Centro Cultural de Belém e o Teatro do Bairro Alto. Actualmente (reportando-­‐nos ao ano de 2011), o FA decorre em 13 espaços das cidades de Almada (Teatro Municipal de Almada, Escola D. António da Costa, Fórum Romeu Correia e Silos da Romeira) Lisboa (Teatro Nacional D. Maria II, Centro Cultural de Belém, Culturgest, São Luíz Teatro Municipal, Teatro Maria Matos, Teatro Camões e Teatro da Cornucópia), Porto (Teatro Nacional de S. João) e Coimbra (Teatro da Cerca de São Bernardo).

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O FA é financiado pelo Ministério da Cultura / Instituto das Artes e pela Câmara Municipal de Almada, associando-­‐se todos os anos outros parceiros (este ano envolveram-­‐se como parceiros a Região de Turismo de Lisboa e Vale do Tejo),o Ministério da Cultura de França, o Instituto Goethe, a Embaixada de Itália, a Embaixada da Roménia e a Embaixada de Espanha). A autarquia valoriza este financiamento assumindo o desenvolvimento cultural como uma estratégia essencial de intervenção no município pois tem a “consciência plena de que o aprofundamento do saber e do conhecimento, que o usufruto de bens culturais da mais diversa natureza proporciona a cada um dos cidadãos, representa um investimento da maior relevância para a construção de uma sociedade mais avançada, mais culta, mais desenvolvida e, por isso, mais Humana” (Neto de Sousa, 2011:5). Contudo, o financiamento por parte do Ministério da Cultura (actualmente extinto e transformado em Secretaria de Estado da Cultura) tem vindo a diminuir desde 1996: este ano o corte foi de 150.000€ relativamente ao ano anterior. O FA tem um orçamento de 580.120€, quando o do Festival d’Avignon (França) é de 12.062.689€ ou o de Mérida (Espanha) é de 3.700.000€. Benite (2011:6) depois de salientar os

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testemunhos elogiosos feitos ao FA por encenadores, críticos, directores de festivais, investigadores (Emmanuel Demarcy-­‐Mota, Jean-­‐Pierre Han, Theodoros Terzopoulos, Yahia Belaskri, etc.), assume-­‐se cansado e desiludido perante a situação actual e deixa uma questão: “Que importância dão as autoridades a todos estes testemunhos, e de que forma aproveitam as potencialidades de um Festival já com 27 anos, para reforçar o prestígio do nosso País nos circuitos culturais internacionais, através de um apoio crescente e sustentado a uma iniciativa que, sendo o que é, ganhou um lugar indelével na história do teatro português e que já é estudada como uma manifestação particular e pouco comum da capacidade de iniciativa e organização dos portugueses?” A imagem da cidade de Almada transformou-­‐se, contrariando a sua posição na ‘sombra da cidade de Lisboa’. Deixou de ser vista como “a cidade dormitório” e passou a ser percebida como uma cidade com identidade cultural, com tradições, lugares históricos e património. O lugar periférico tornou-­‐se central, produzindo e transformando relações. Neste local de encontro entre espectadores, artístas e teóricos do teatro desenvolve-­‐se um espaço cultural dinâmico e complexo e as portas abrem-­‐se à discussão e à reflexão teatral numa filosofia de serviço público. Benite (2009, cit. Vargas, 2009), falando sobre o efeito do teatro na transformação dos lugares refere que “alguns pensam que o seu tempo passou, que o Mundo em que vivemos é irremediavelmente diferente daquele que dizem ter conhecido e que não vale a pena continuar a agir com o fito de contribuir para a sua transformação. Por mim, penso que o Mundo é nosso enquanto cá andamos, que nada, com a excepção da morte (no plano individual) é irremediável e que depende de todos (portanto de cada um de nós) decidir os rumos, escolher o programa, visualizar a casa em que queremos habitar. Esta ideia conduzirá, muitas vezes, a nossa acção ao nosso campo de luta e de resistência – e frequentemente ao isolamento e à incompreensão dos outros. Mas esse é o tributo que se paga pelo desejo de participação, impulsionador do movimento, sem o qual não há vida. A inquietação e a necessidade de questionar o Mundo que nos envolve e de que somos parte, é uma condição da existência».

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Referências Benite, J. (2011) “Economia” in programa 28º Festival de Almada, CTA, Almada: pp.6-­‐7. Carneiro, João (2010) “26º Festival de Teatro de Almada. A Festa vai começar.” in Obscena nº 20, 2010 Gomes, R. T e Lourenço, V. (coord.) (2000), Públicos do Festival de Almada, Observatório das Actividades Culturais, Lisboa. Neto de Sousa, M.E. (2011) “28º Edição do Festival de Almada. Uma referência incontornável no panorama internacional das artes cénicas” in programa 28º Festival de Almada, CTA, Almada: pp. 4-­‐5. Vargas, Susana (2009) “O teatro como vivência” in Le Monde Diplomatique http://pt.mondediplo.com/spip.php?article514 Vasques, Eugénia (2008) “A contas com um festival!” in Obscena nº13/ 14, 2008 http://www.oac.pt/pdfs/FA_homenagemOAC.pdf (discurso de M. Eduarda Cruzeiro, 2006) http://www.ctalmada.pt/cgibin/wnp_db_dynamic_record.pl?dn=db_imprensa&sn=recortes&orn=249 (entrevista a Joaquim Benite (2010))

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LUGARES

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Óbidos

João Reis

“Mais que a dimensão dos territórios, o que nos interessa fazer em Óbidos é aumentar a ativação de neurónios” Telmo Faria, presidente da Câmara Municipal de Óbidos, Urbact Conference – Junho, 2011

ISCTE | 2010

agenda

Uma

agenda

Criativa

como

força de mudança

Mercado Medieval identidade, trabalho associativo, comunidade forte;

Maio Barroco investigação e comunicação de um compositor do século XVIII;

Festival de Ópera Prestígio e democratização da Arte Maior;

Vila Natal As tradições podem gerar épocas altas;

Festival de Chocolate Um produto global pode tornar uma marca global;

Junho das Artes Criação contemporânea e o peso da história;

Fonte: Óbidos Criativa, 2010

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Um contexto favorável A vila de Óbidos é sede do concelho com o mesmo nome que integra a sub-­‐região Oeste da Região de Lisboa e Vale do Tejo, na costa ocidental da Europa. O concelho com os seus 11 689 habitantes (2011), dos quais pouco mais de três mil residem na vila, e uma área de 142,6 km2 dividida por 9 freguesias, integra com mais 11 concelhos a Comunidade Intermunicipal do Oeste. O município de Óbidos disfruta de um de um conjunto de amenidades naturais e histórico-­‐culturais geradoras dos fluxos turísticos que estão na base da economia local. Entre as amenidades locais salienta-­‐se uma paisagem geomorfológica diversificada, que inclui várzeas agrícolas, aldeias e casas rurais dispersas, uma faixa atlântica com várias praias e a Lagoa de Óbidos. No entanto, o verdadeiro ícone de Óbidos é a sua muralha, concluída no final do século XIV, que envolve o centro histórico e onde pontuam o castelo, as igrejas, a porta da vila, o pelourinho, a rua direita e o aqueduto, entre outros elementos de reconhecido valor patrimonial. Os resultados preliminares dos censos de 2011 revelam um ligeiro acréscimo demográfico o que parece contrariar a tendência de perda e envelhecimento da população das décadas anteriores. Paralelamente, regista-­‐se um crescimento acentuado do número de alojamentos e edifícios, situação que não será alheia à implantação dos empreendimentos turísticos e à expansão imobiliária que se verificou um pouco por todo o concelho. O conjunto das atividades terciárias fornecem 50% do emprego, nas quais o sector do turismo tem maior relevância. Contudo, o sector agrícola (hortícolas, fruta e vinho) continua a ser representativo, com 34% do emprego local. A posição geográfica privilegiada de Óbidos viu a sua centralidade reforçada com a abertura, em 1998, da autoestrada do Oeste (A8: entre Lisboa/Loures e Leiria/Figueira da Foz) e mais tarde também com a abertura, em 2001, da A15 (Caldas da Rainha/Santarém). Estas acessibilidades aproximaram o município de centros urbanos relevantes, como Leiria (a capital do distrito a que Óbidos pertence), Coimbra e Santarém, e colocaram-­‐no a menos de uma hora de Lisboa. O reconhecimento nacional e internacional de Óbidos está associado a um património imaterial e simbólico marcado por memórias e identidades de diferentes épocas, em que figuras da nobreza escolhiam a vila como refúgio. A economia regional beneficia com esta identidade local, enraizada na herança histórica, na paisagem natural e nas tradições e estilos de vida rural que permanecem vivos. Neste contexto, uma liderança política forte tem vindo a desenvolver uma estratégia que procura tirar partido de amenidades endógenas, conciliando-­‐as com novas amenidades construídas em sectores como o turismo, a educação e o empreendedorismo (Selada e al., 2010).

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Uma liderança reconhecida A projeção mediática do município surge frequentemente ligada à entrada em cena do autarca Telmo Faria. O autarca tinha 30 anos quando foi eleito presidente da câmara em 2001 e foi reeleito em 2005 com 69% dos sufrágios. A juventude e a audácia do seu programa político, conferiram-­‐lhe um protagonismo indissociável da atual imagem do município. A organização de eventos públicos que atraem um número significativo de visitantes e turistas para a cidade histórica, constitui a parte mais visível da ação da autarquia ao longo da última década. Contudo, a estratégia de desenvolvimento que os responsáveis locais têm vindo a implementar combina turismo, cultura e economia com o objectivo de regenerar e diversificar a economia local. Entre os vários eventos que Óbidos hoje oferece, o “Festival Internacional de Chocolate”, cuja primeira edição ocorreu em 2002, pode ser considerado o evento mais significativo em termos de visitantes e proveitos para a economia local. O autarca Telmo Faria inscreveu a realização deste evento no seu primeiro programa eleitoral, e a sua concretização foi um êxito desde a primeira edição. O sucesso desta iniciativa terá funcionado como âncora para outras iniciativas entretanto dinamizadas como o Festival de Ópera, a “Vila Natal” e o Mercado Medieval. A criação e oferta de eventos é uma marca indissociável do êxito de uma liderança, que o responsável da autarquia soube consolidar. Em declarações públicas o edil tem referido que a ideia inicial do festival de chocolate terá partido de um cidadão americano que residia na vila. No entanto, parece existir alguma semelhança com a animação cultural que integra a oferta da cidade brasileira de Gramado, no Rio Grande do Sul, com a qual a vila de Óbidos se encontra geminada. O processo de aproximação, iniciado na década anterior, veio a concretizar-­‐se com a geminação dos municípios, em janeiro de 2011. A cidade brasileira, recebe mais de 2 milhões de turistas por ano, e para além do festival de chocolate realiza também eventos como a Vila Natal, que também integra a agenda de Óbidos. Algum paralelismo de agendas de um e outro lado do atlântico terá inspirado os respectivos autarcas. Entre as marcas desta gestão autárquica estão os novos complexos escolares que abarcam toda a área do concelho e constituem uma infraestrutura de excelência. Em setembro de 2008 foi inaugurado o Complexo escolar dos Arcos, distinguido pela OCDE como um equipamento educativo exemplar a nível mundial. Em resultado dessa distinção, o equipamento surge integrado no “Compendium of Exemplary Educational Facilities”, lançado em Paris em setembro de 2011. Este ciclo de investimentos escolares recebeu novo impulso, em setembro de 2010, quando foram inaugurados o Complexo do Alvito e o Complexo do Furadouro. O Município de Óbidos pretende desenvolver um modelo de escola baseado em conceitos relacionados com educação criativa, com forte incremento de novas tecnologias e apoio de equipas especializadas. Os resultados são sublinhados pelo autarca Telmo Faria em declarações à imprensa local: “...nos últimos cinco anos duplicámos o número de alunos a estudar no concelho” (Gazeta das Caldas 17/06/2011). No âmbito

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do ensino e formação profissional o município dispõe também do pólo da Escola de Hotelaria e Turismo do Oeste. Nesta área, o autarca anuncia outros projetos que envolvem a criação de uma escola de grande “chocolataria” associada a um laboratório e uma fábrica de chocolate gourmet em parceria com a marca francesa Valrhona (Expresso, 13/08/2011). Óbidos tem vindo a participar em várias redes com outras vilas e cidades a nível nacional e europeu, de forma a facilitar a troca de experiências e permitir a afirmação internacional. Destacam-­‐se as redes nacionais “ECOS -­‐ Energia e Construção Sustentáveis", a "Rede de Economias da Criatividade” (Óbidos, Guimarães; Montemor-­‐o-­‐Velho, Tondela, Seia e Montemor-­‐o-­‐Novo), e também a rede europeia URBACT "Clusters Criativos em Áreas Urbanas de Baixa Densidade" (encerrada em junho de 2011) que envolveu cidades do Reino Unido, Espanha, Itália, Roménia, Finlândia e Hungria. A autarquia criou uma “Rede de Investigação, Inovação e Conhecimento de Óbidos” (RIICO) cuja coordenação científica é partilhada com diversas universidades . Esta rede tem vindo a desenvolver projetos de aprofundamento do conhecimento acerca de Óbidos, e a apoiar a formalização de instrumentos técnicos e científicos indispensáveis à futura concretização da candidatura de Óbidos a Património Mundial. As “Habitações Criativas” são outra iniciativa da autarquia no sentido de facilitar o acolhimento temporário da classe criativa (artistas, designers, investigadores). O Município pretende que os vazios urbanos – indústrias ou empresas desativadas – se transformem em espaços centrais para a afirmação dessa criatividade. Na prática esta ideia traduz-­‐se na criação de espaços flexíveis através da recuperação de edifícios abandonados situados na Rua Nova da vila. Uma estratégia para a criatividade A criatividade foi assumida como o eixo da estratégia de desenvolvimento do município. No âmago dessa linha estratégica está a criação do Parque Tecnológico, uma infraestrutura de apoio ao empreendedorismo que acolhe indústrias criativas (cultura, comunicação, arquitetura, design, gastronomia, …). O Parque Tecnológico foi construído especificamente para empresas ligadas à economia criativa, oferecendo vantagens materiais (incentivos fiscais, microcrédito), que devem aliar-­‐se a boas condições de trabalho e qualidade de vida. Embora nos 25 hectares do parque já existam algumas empresas instaladas (6 segundo o sítio da internet do parque tecnológico), esta infraestrutura prevê a disponibilização de lotes para a instalação progressiva de 100 a 150 empresas. A construção dos edifícios centrais cujo projeto, no valor de 3,6 milhões de euros financiados pelo QREN, foi recentemente aprovado (setembro de 2011), prevê-­‐se que esteja concluída em 2013.

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A estratégia que a autarquia designou por “Óbidos criativa” passou pela criação em 2004 de duas empresas municipais: “Óbidos Patrimonium” e a “Óbidos Requalifica”. A primeira atua na gestão de eventos, promoção turística, merchandising e gestão de espaços públicos e concessões municipais, enquanto a segunda se ocupa dos projetos de requalificação e reabilitação urbana, energias alternativas e gestão de parques empresariais. Foram também promovidas parcerias públicas e privadas, como a “OBITEC -­‐ Associação de Óbidos para a Ciência e Tecnologia” que envolvem a “Óbidos Requalifica”, bem como instituições de ensino superior, empresas de formação e associações empresariais. Complementando a oferta do parque tecnológico, existe também um espaço de incubação chamado ABC (Apoio de Base à Criatividade) que possibilita o alojamento de empresas criativas num curto período de tempo. A infraestrutura está instalada no antigo convento de São Miguel nas Gaeiras, um edifício de valor patrimonial. Estão aí instaladas cerca de duas dezenas de empresas e organizações relacionadas com design, edição e publicação, joalharia, sistemas de informação geográfica e turismo. No quadro 1 estão identificadas as condições de instalação na incubadora. Quadro 1 -­‐ CONDIÇÕES DE INSTALAÇÃO NA INCUBADORA REGIME NORMAL DE OCUPAÇÃO: 9/m2 acrescidos de €60,00 mensais, incluindo: a) Infraestrutura associada à área ocupada: água, eletricidade, instalação de telefone, acesso à internet, limpeza dos espaços comuns e estacionamento; b) Suporte de apoio operacional: Recepção e apoio ao secretariado, utilização de auditório, com capacidade para 64 lugares, manutenção e limpeza do espaço de escritório, correio interno e encaminhamento para correio externo. INCUBAÇÃO 6/m2 acrescidos de €60,00 mensais, incluindo: a) Infraestrutura associada à área ocupada: Água, electricidade, instalação de telefone, acesso à internet, limpeza dos espaços comuns e estacionamento; b) Suporte de apoio operacional: Recepção e apoio ao secretariado, utilização de auditório com capacidade para 64 lugares, manutenção e limpeza do espaço de escritório, correio interno e encaminhamento para correio externo; c) Apoio ao desenvolvimento do negócio: Apoio à elaboração, desenvolvimento e acompanha-­‐ mento do business plan, apoio de um conjunto de profissionais em diversas áreas -­‐ jurídica, financeira, informática e apoio a candidaturas, entre outros. INCUBAÇÃO VIRTUAL €60,00 mensais, incluindo: a) Utilização por parte da empresa da morada e telefone do ABC – apoio de base à criatividade; b) Recepção e expedição de correio; c) Utilização de uma sala para elaboração de reuniões; d) Utilização de auditório, com capacidade para 64 lugares; e) Apoio ao desenvolvimento do negócio (apoio à elaboração, desenvolvimento e acompanha-­‐ mento do business plan, apoio de um conjunto de profissionais em diversas áreas -­‐ jurídica, financeira, informática e apoio a candidaturas, entre outros).

Fonte: http://www.pt-­‐obidos.com/?page_id=880

Um dos aspectos mais salientes da economia do município relaciona-­‐se com os empreendimentos turísticos assentes no golfe e no imobiliário. Assumem relevância, pela dimensão do investimento, três empreendimentos: Praia d’el Rey – golf beach resort, Bom Sucesso – design resort leisure golf, Quinta de Óbidos – country club, os dois

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últimos ainda em desenvolvimento. Alguns analistas referem que na região Oeste, este município terá seguido a sugestão de um estudo de Ernâni Lopes e José Poças Esteves: golfe e investimento imobiliário. Recentemente (junho de 2011) a imprensa local dava conta de um novo investimento nesta área: o empreendimento Falésia d’el Rey. Trata-­‐se de um investimento no valor de 200 milhões de euros que foi estudado ao longo de mais de uma década que irá permitir o encaixe de receita extraordinária, quer para este ano quer para os próximos anos. Este empreendimento segue o modelo de outros já existentes: um resort de cinco estrelas com hotel de luxo, spa, campos de ténis, circuitos desportivos e um campo de golfe de 18 buracos. O Falésia D’el Rey vai ocupar uma área correspondente a 230 hectares de orla costeira, no topo da falésia, com vista sobre o mar nas proximidades da Lagoa de Óbidos. Merece ainda referência, o aparecimento de novas infraestruturas culturais na vila de Óbidos desencadeado pela gestação de um cluster criativo, como a Casa das Rainhas (Óbidos Story Centre), São Tiago Bookshop e a Casa do Arco. A rede de museus e galerias integra o Museu Municipal, o Museu Paroquial, o Museu Abílio Mattos e Silva, e duas galerias de arte contemporânea: Nova Ogiva e Galeria Casa do Pelourinho. Existe ainda o Centro de Design de Interiores Maria José Salavisa. Esta rede permite uma oferta cultural diversa -­‐ música, dança, teatro, pintura, escultura – que não se esgota nos eventos de entretenimento para grandes massas. Uma programação para a cultura e entretenimento O carácter histórico da vila de Óbidos e a sua riqueza patrimonial funcionam como um cenário que lhe confere grande atratividade. Este cenário tem sido o palco de um ambicioso programa de eventos de cultura e entretenimento realizados nos espaços interiores da vila ou na cerca do castelo. Esta programação e oferta mudaram a percepção da “cidade-­‐museu” e evidenciaram uma forte capacidade de organização, bem como o envolvimento da comunidade e das associações locais. Quadro 2 – OS PRINCIPAIS EVENTOS NA VILA DE ÓBIDOS EM 2011 Festival Internacional de Chocolate 17 de Março a 3 de Abril Chocolate. Uma palavra mágica que em Óbidos assume um significado muito especial. O Festival Internacional de Chocolate de Óbidos, desde a primeira edição é o maior evento organizado pelo município. Todos os anos cerca de 200 mil pessoas visitam o certame que tem vindo a subir qualidade de oferta. Mais espaço, mais atividades, mais esculturas em chocolate…mas a mesma magia! Concursos: Esplanada da Porta da Vila, Pontos de Venda-­‐Porta da Vila, Internacional de receitas de Chocolate, Chocolatier do Ano, Montras e Chocolate Semana Santa de Óbidos 17 a 24 de Abril Óbidos continua a ser um palco privilegiado de celebrações de acontecimentos de índole histórico-­‐religiosa. Evocando a Paixão e a morte de Cristo, a Semana Santa atrai à Vila milhares de pessoas, portuguesas e estrangeiras, unidas pela devoção e pela cultura". Despertando o maior interesse do ponto de vista turístico, a Semana Santa, desde cedo, revelou-­‐se como o melhor cartaz de Óbidos e, inegavelmente, apresenta as mais impressionantes cerimónias religiosas do seu género no Oeste e no país, para além de um programa cultural

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com concertos, exposições, autos, atraindo milhares de portugueses e estrangeiros a Óbidos. Maio Barroco 7 a 28 de Maio Esta Temporada de Música erudita é dedicada ao compositor obidense José Joaquim dos Santos (1747 – 1801). Com esta iniciativa pretende-­‐se chamar a atenção sobre o património musical local e prestar homenagem a um dos principais vultos da música portuguesa da segunda metade do século XVIII.J.J. dos Santos foi mestre da Santa Igreja Patriarcal e ficou conhecido como o único compositor da segunda metade de setecentos que teve a sua obra impressa. Hoje, a sua obra encontra-­‐se dispersa pelo mundo inteiro e tem havido notícias da existência de partituras suas em Paris, Rio de Janeiro e em muitos outros países. Durante o mês Maio é organizada uma temporada de música cujo programa inclui concertos cujo repertório é composto por obras deste compositor. Temporada de Cravo Setembro-­‐Novembro A Temporada de Cravo, em Óbidos, reveste-­‐se de um interesse especial por dois motivos: por ser um instrumento central da música antiga e porque Óbidos, sem dúvida, oferece um palco muito especial a esse tipo de sonoridade, já que, além do seu ilustre passado medieval, também o Barroco assume uma presença homogénea e rara. Deste modo a Câmara Municipal de Óbidos, possuindo um instrumento de grande qualidade (cópia de Goemans-­‐Taskin do género franco-­‐flamengo 1764-­‐1783, fabricado pelo italiano Guido Bizzi no ano 2000), aplica-­‐o na valorização das sonoridades e sensibilidade barroca, tão adequada aos espaços da Vila. A Temporada de Cravo de Óbidos procura divulgar a música, sobretudo da época barroca, tendo como ponto de partida o instrumento mais emblemático desta época. Junho das Artes 4 a 26 de Junho Junho das Artes é um evento que se abre à participação de todos os artistas emergentes (jovens artistas, finalistas e/ou recém-­‐licenciados), com trabalhos nas diversas áreas das Indústrias Criativas: Arquitetura, Artes Visuais, Audiovisuais, Televisão & Rádio, Artes Performativas & Entretenimento, Cinema & Vídeo, Design, Escrita & Publicação, Música, Software Educacional & Lazer. As Artes em Óbidos, no mês de Junho, à conversa com o património, criam novas vivências. Óbidos integra as artes com o seu espaço construído ao apostar na inovação, numa fusão em que a história e a produção criativa estão em estreita relação com múltiplas competências, dando forma a um território de experimentação, reflexão e intensa atividade artística. Proporciona-­‐se aos artistas um espaço de peculiar envolvimento para exposição, divulgação e venda das obras de arte. Mercado Medieval de Óbidos 7 a 24 de Julho Desde 2002 que Óbidos mergulha no tempo e a Vila transforma-­‐se num verdadeiro palco da história. Este ano as Artes e os Ofícios são o ponto central do evento e a partir desta temática serão elaboradas rábulas, personagens, mestres de juglaria, taberneiros, mercadores, aguadeiros, vendedores ambulantes e outros que tais… transportando o visitante para uma verdadeira Festa da História. Outra das apostas da organização do Mercado Medieval é o maior envolvimento das gentes locais, que vai desde a estruturação da zona de Tabernas à participação na Animação do evento. Semana Internacional de Piano 28 de julho a 8 de Agosto SIPO -­‐ semana internacional de piano de Óbidos é um projeto com o apoio da Câmara Municipal de Óbidos que tem acolhido, desde 1996, grandes personalidades do meio musical e jovens estudantes, vindos de todo o mundo, para um encontro que visa o aperfeiçoamento e desenvolvimento de competências musicais. Durante dez dias no período do verão, a música de piano invade a Vila de Óbidos, quer através dos cursos das masterclasses que durante o dia decorrem simultaneamente em vários pontos, quer pelos concertos que integram o Festival, à noite, e que chamam um público melómano e entusiasta. Festival de Ópera 30 de Julho a 14 Agosto O Festival de Ópera de Óbidos é um projeto pioneiro no campo da Ópera, sistematizando a oferta cultural como estratégia de promoção e valorização do património edificado da Vila e do Concelho. Pelo charme do seu património construído, fruto da inspiração de séculos, Óbidos tem-­‐se transformado num ambiente ideal para a realização de atividades líricas e para a promoção de grandes eventos musicais. Ao longo dos anos, Óbidos tem trazido para uma esfera de natureza, património e ruralidade moderna, o mundo da ópera, através de títulos bem conhecidos e encenações capazes de ajudar a criar novos públicos para a arte lírica. Resistindo a tantas adversidades, o factor de motivação é precisamente a fiel comparência e gosto de um público generoso disposto a consagrar artistas que têm talento e que, por isso, merecem palco. O Festival de Ópera de Óbidos 2011 traz a cena as mais emblemáticas obras de vários autores, apostando na concentração de títulos bem conhecidos do grande público, numa perspectiva de divulgação do estilo lírico que alcance as mais variadas esferas de público, desde o mais conhecedor deste género ao mero curioso da música. Fonte: http://issuu.com/municipio_obidos/docs/agenda_web_2011

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As atividades de suporte dos eventos quer culturais quer de entretenimento funcionaram como alavanca para criar equipas técnicas em domínios como a cenografia, os figurinos, a representação e as artes plásticas. Todos os eventos dependem em grande medida do poder municipal e têm uma periodicidade anual. Alguns dos eventos têm públicos alvo mais específicos, como é o caso da música barroca e da temporada de cravo. Contudo, os eventos mais mediatizados estão vocacionados para grandes massas e procuram nalguns casos contrariar a sazonalidade dos fluxos de turistas e visitantes, através da calendarização fora da época estival. No espaço nacional e internacional a visibilidade do Óbidos foi especialmente incrementada pelo impacto dos eventos como o “festival de chocolate”, que realizou em 2011 a IX edição. Desde a primeira edição (2002) que o evento mereceu referências nos meios de comunicação nacionais e estrangeiros e isso refletiu-­‐se na enorme afluência de visitantes. Desde início que o número de visitantes e a consequente geração de receitas tem vindo a crescer. Um jornal local, a “Gazeta das Caldas” de 25/3/2011, referia 50 mil visitantes nos primeiros quatro dias desta última edição. Óbidos Vila Natal é outro dos eventos com maior capacidade de atração de visitantes. Segundo José Parreira, administrador da Óbidos Patrimonium, a empresa municipal organizadora: “ a edição de 2010 foi a mais curta de todas, mas acolheu o maior número de visitantes/dia, mais de 120 mil pessoas e foi também a edição com mais visitantes estrangeiros, calculando-­‐se que na última semana tenham passado por Óbidos mais de 20 mil cidadãos de outros países. (Jornal das Caldas-­‐on line, 6/01/2011). Os custos do evento são repartidos pela empresa municipal (60%) e pelos patrocinadores, nomeadamente o BES (Banco Espírito Santo). Os responsáveis da autarquia avaliam em 10 milhões de euros as receitas do evento “Vila Natal” para a economia local. Um futuro sustentável? O município de Óbidos constitui um exemplo de sucesso da intervenção das políticas públicas no desenvolvimento socioeconómico em territórios de baixa densidade. Neste sentido, como revelam estudos sobre áreas similares, este caso vem confirmar que nas áreas de baixa densidade territorial prevalecem um conjunto de condições favoráveis à atração de talentos, ao desenvolvimento de negócios criativos e, logo, à dinamização de clusters criativos (Selada, Vilhena, 2010 ) . A última década foi para Óbidos um tempo de realização de um vasto conjunto de iniciativas que tentaram inverter o ciclo de envelhecimento e diminuição da população residente e encetaram uma dinâmica de empreendedorismo na área das industrias A C R I A T I V I D A D E U R B A N A N A R E G I Ã O D E L I S B O A – C A S E S T U D I E S

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criativas. A capacidade de atrair grandes investimentos na área do turismo, atrair novas empresas, modernizar o parque escolar, transformaram profundamente o território do concelho onde o sector agrícola continua a desempenhar um importante papel económico. Acompanhando essas transformações, foi desenvolvida uma programação de cultura e entretenimento para grandes massas cujo êxito colocou a vila de Óbidos no mapa dos eventos a nível nacional e internacional. O reconhecimento da liderança do autarca Telmo Faria tem sido apontado como decisivo na colocação de Óbidos “no mapa” e daí que alguns excertos de uma das suas entrevistas possam ser elucidativos para perspetivar o futuro do município. Excertos da entrevista de Telmo Faria ao Jornal das Caldas Preocupações financeiras Estou, sobretudo, muito preocupado com o atrofiamento financeiro das nossas autarquias nas questões das águas (consumo e saneamento), energia e resíduos, pois estas três áreas são deficitárias e têm, cada vez mais, um peso maior na execução financeira. Estamos conjuntamente a procurar soluções para estancar estas hemorragias. Já o conseguimos nos resíduos e podemos reduzir mais de 50 por cento da atual despesa na energia, onde só em iluminação pública os municípios do Oeste gastam mais de 7 milhões de euros por ano. A nova Agência de Energia, a Oeste Sustentável, tem vindo a desenvolver uma negociação muito complexa que possibilita reduzir esse valor para menos de 4 milhões. Se os municípios se mantiverem unidos vamos consegui-­‐lo. Como sempre, quando não há divisões somos muito fortes.

Atração de jovens O nosso modelo tem vindo a privilegiar a atração dos jovens. A duplicação em cinco anos do número de alunos nas nossas escolas é um feito notável, tal como a nossa aposta nas indústrias criativas, onde já temos no universo das empresas do Parque Tecnológico mais de uma centena de jovens a trabalhar no concelho. Só em empresas em incubação são cerca de 30, o que revela que temos reunido condições para atrair os jovens empreendedores. Um bom exemplo, entre outros, é o nascimento aqui do primeiro canal de televisão português virado só para os jovens, precisamente, o Young Channel, que arrasta, cada vez mais, jovens para Óbidos. Acho que estamos a agarrar essa geração com instrumentos inovadores e não só pela oferta de habitação que era a forma clássica de “fixar”. De que nos interessa que eles cá durmam se não criam cá riqueza? Acho que temos que falar, cada vez mais, de riqueza e da forma como podemos criar produto e valor acrescentado. A situação do País pede esse caminho e estamos, com todos os recursos que temos, a fazê-­‐lo. Locais como o ABC, a incubadora do Convento de S. Miguel, que são centros de jovens talentos, têm que se multiplicar e é nisso que estamos a apostar. Esses são os jovens que queremos fixar no nosso universo económico-­‐social, mesmo que morem num concelho vizinho. Isso não é problema, pois temos uma visão maior que a fronteira do concelho.

Emprego e investimento Não temos feito outra coisa que não atrair. Atraímos investimento e erguemos um cluster de economia do Turismo que é altamente empregador; atraímos pessoas aos nossos grandes eventos e aumentamos as oportunidades de negócio; investimos nas indústrias criativas e atraímos, cada vez mais, empresas. Só em investimento privado apoiado pelo QREN no Verão passado já ultrapassávamos os 50 milhões de euros. Isso é um sinal que estamos a ficar cada vez mais fortes e dentro de alguns anos estaremos a ter mais empregos e um PIB concelhio muito maior!

O que falta fazer Muita coisa! Falta que o Estado Central cumpra senão todos, pelo menos uma parte significativa dos seus compromissos para com Óbidos. Por exemplo, que o Ministério da Educação permita ao Município maior autonomia na definição de um modelo educativo próprio e garanta o financiamento para a construção da nova Escola Josefa d’Óbidos. Falta que o Ministério da Agricultura cumpra o prometido plano de rega das Baixas da Amoreira e Óbidos, ou que o Ministério da Administração Interna concretize o novo quartel da GNR ou a loja do Cidadão, já para não falar da Lagoa de Óbidos. Veja que

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isto não são promessas, são compromissos jurídicos traduzidos em aprovações, acordos ou protocolos! Da nossa parte as pessoas conhecem a ambição do nosso executivo e do seu presidente, por aquilo que já conseguimos fazer. Apesar da conjuntura ser muito difícil, e de haver quem gostasse que a Câmara de Óbidos não conseguisse fazer mais nada, não falharemos nenhuma oportunidade, isso eu posso garantir.

Apoio aos idosos Desde sempre que temos estado muito atentos a esta questão. Repare que Óbidos, para além de ser um concelho maioritariamente rural, é também um concelho com uma grande dispersão geográfica, o que provoca um grande isolamento dos idosos. Por isso, criámos, em 2005, o Programa Melhor Idade, com uma rede municipal de centros de dia e de convívio, e tem como o principal objectivo, precisamente, combater a solidão e isolamento dos mais idosos. Contamos atualmente com uma rede de 12 centros de dia e de convívio, distribuídos pelas 9 Freguesias do Concelho. Estes Centros fornecem refeições e uma planificação variada de atividades, como ginástica, hidroginástica, ateliês de teatro, música, bordados, jardinagem, artes plásticas, entre outros. Este Programa permitiu que cerca de 400 idosos do Concelho passassem a usufruir de um convívio diário, retirando-­‐os, assim, da solidão. Criámos o VAT – Veículo de Apoio Técnico, onde um técnico da autarquia efetua pequenos arranjos na casa das pessoas. Criámos ainda o OBI – Mobilidade para Todos, que melhorou, claramente, a rede de transportes públicos do concelho, aumentando a acessibilidade de todos. A população mais idosa, iletrada, com fracos recursos económicos, passou a ter um serviço que lhes permite, de forma gratuita, deslocar-­‐se para o centro da Vila e aceder aos vários serviços públicos. Também o acesso aos serviços de Saúde melhorou muito com a UMS (Unidade Móvel de Saúde) e o Programa Saúde Melhor efetuou uma série de rastreios descentralizados pelas Freguesias e ações de sensibilização para a promoção da saúde. Temos também o Programa de Promoção de Saúde e Segurança na Terceira Idade, que se realiza anualmente, e que conta com vários oradores de diversas áreas, como segurança pública, segurança social, saúde, bombeiros, proteção civil, veterinária, o que permite que a informação chegue à população que está mais isolada e se encontra, provavelmente, mais desfavorecida. Por outro lado temos apoiado e crescido muito no desenvolvimento de IPSS, que aumentaram muito as valências. Hoje, em plena crise, temos uma intervenção e uma rede social muito mais forte, fruto do que criámos nos últimos anos.

A mais-­‐valia dos eventos trouxeram para o Concelho de Óbidos Oportunidades de negócio para todos e promoção de Óbidos como nunca. As poucas pessoas que não reconhecem isto, eu nunca as consegui convencer, pois existe um bloqueio chamado “partidarite” aguda, uma doença que atinge alguns personagens. O número dos eventos tem que ver com as necessidades de impulso económico que estamos a enfrentar. Veja que os eventos que trazem mais pessoas, como o Festival Internacional de Chocolate e o Óbidos Vila Natal são feitos no Inverno, na época baixa. Esta é a nossa perspectiva, muito ligada à economia, não é tanto uma escolha de prazer pessoal. Fonte: Jornal das Caldas -­‐ on line (28/04/2011) http://www.jornaldascaldas.com/index.php/2011/04/28/entrevista-­‐a-­‐telmo-­‐faria-­‐nunca-­‐pensei-­‐que-­‐o-­‐ governo-­‐fosse-­‐capaz-­‐de-­‐nos-­‐conduzir-­‐na-­‐direccao-­‐da-­‐bancarrota/

Em tempos de crise e consequente reajustamento, os responsáveis da autarquia devem equacionar a sustentabilidade financeira deste projeto, cuja componente cultural depende em grande medida de investimento público. Nos últimos anos, os relatórios de gestão do concelho (disponíveis no sítio do município na internet) revelam que as receitas oriundas do imobiliário estão em acentuado declínio tal como as transferências do orçamento de estado. Esta situação obrigará certamente a alterações no programa de investimento da autarquia para o futuro. Espera-­‐se que este ciclo económico não venha a por em causa a sustentabilidade da estratégia seguida ao longo da última década. A dimensão do concelho e a sua natural inserção na região Oeste, exige uma verdadeira cooperação intermunicipal alicerçada numa estratégia regional comum, capaz de superar alguma rivalidade entre os municípios.

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FONTES Portal oficial do município de Óbidos. http://www.cm-­‐obidos.pt/ Agenda de Óbidos 2011, contém os principais eventos e iniciativas de interesse turístico e cultural, prevista para todo o ano. http://issuu.com/municipio_obidos/docs/agenda_web_2011 Portal de notícias do concelho de Óbidos http://www.obidosdiario.com/ Sítio oficial do IX Festival Internacional de Chocolate – Óbidos 17 de Março a 3 de Abril de 2010. http://www.festivalchocolate.cm-­‐obidos.pt/ Guia da Inovação e criatividade de Óbidos. Catálogo das industrias criativas do concelho: arquitetura, design, publicidade, TIC, sustentabilidade, produção de eventos e new media. http://issuu.com/other-­‐things/docs/guia-­‐inovacao-­‐primeira-­‐edicao Sítio e brochura do Parque Tecnológico de Óbidos. http://www.pt-­‐obidos.com/?cat=3 http://issuu.com/parquetecnologicodeobidos/docs/pto_18out_web?viewMode=magazine Sítio da Rede de Investigação, Inovação e Conhecimento de Óbidos http://www.rede.cm-­‐obidos.pt/Home/UI/HomeUI.aspx Gazeta das Caldas, notícia da conferencia de encerramento da rede Urbact em 9 de junho de 2011 http://www.gazetacaldas.com/12594/telmo-­‐faria-­‐quer-­‐plataforma-­‐governamental-­‐para-­‐coordenar-­‐ economia-­‐da-­‐criatividade/ Jornal das Caldas on-­‐line: entrevista com o presidente da Câmara de Óbidos, 28/04/2011 http://www.jornaldascaldas.com/index.php/2011/04/28/entrevista-­‐a-­‐telmo-­‐faria-­‐nunca-­‐pensei-­‐que-­‐o-­‐ governo-­‐fosse-­‐capaz-­‐de-­‐nos-­‐conduzir-­‐na-­‐direccao-­‐da-­‐bancarrota/ Galeria de fotos no portal oficial do município de Óbidos, contempla eventos, notícias e outros temas. http://www.cm-­‐obidos.pt//catalogs/listentities.aspx?category=79&m=a62 Página do município de Óbidos no facebook. http://www.facebook.com/pages/Munic%C3%ADpio-­‐de-­‐%C3%93bidos/217139258304786?sk=wall SELADA, C.; VILHENA DA CUNHA, I. (2010) “Criatividade em Áreas de Baixa Densidade: O caso da Vila de Óbidos”. In: OLIVEIRA DAS NEVES, A. (coord.). Criatividade e Inovação – Cadernos Sociedade e Trabalho. Lisboa: Gabinete de Estratégia e Planeamento – Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, p. 197-­‐211. SELADA, C; TOMAZ, E.;VILHENA DA CUNHA, I (2011), “Creative-­‐based strategies in small cities: A case-­‐study approach”, INTELI– inteligência em Inovação, Centro de Inovação, Redige, volume 2, nº 2, p. 77-­‐111.

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Cova do Vapor Margarida Queirós

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A COVA DO VAPOR E A ESCOLA INFORMAL DE ARQUITECTURA ONDE NINGUEM ENSINA E TODOS APRENDEM Cuidada e delicada, feita de afectos que não marcam os bairros degradados das periferias, a Cova do Vapor está longe de ser um bairro de lata ou uma aldeia igual às outras. É uma povoação singular, é um lugar onde tudo é diferente, sem escola, centro de saúde ou vestígio de serviço público, um lugar contraditório, uma relíquia de exceção. São construções mais ou menos precárias, encavalitadas umas nas outras, expoentes de engenho e desenrascanço, às vezes sem se perceber onde é que começam umas e acabam as outras. São casas e casinhas, com apenas duas ruas de terra batida, onde estão as poucas lojas da terra, capazes de deixar passar carros; mas o labirinto dos caminhos serpenteia por toda a parte, com largura apenas para os assadores, para os canteiros da salsa e dos coentros, para um tanque de roupa ou um duche apertado. Às vezes ainda há espaço para umas couves, umas flores, umas árvores de fruto, armários, estendais, e inventivas garagens e anexos de casas. In Cerejo, José A., Uma Relíquia Chamada Cova do Vapor. PÚBLICO, 28/04/2002

O caso de estudo A Cova do Vapor é uma pequena localidade situada no “cotovelo” de terra que o rio Tejo construiu com o oceano Atlântico, no extremo norte da Costa da Caparica, na freguesia da Trafaria, concelho de Almada (fig. 1). Foi aldeia de pescadores, mas hoje é também um povoado balnear e de residência permanente, de casas pequenas e aconchegadas. Aqui os arquitetos, Flipe Balestra e Sara Göransson, instalaram o projeto piloto TISA, ou seja, a escola informal de arquitetura1. Este projeto inovador, que adopta o conceito de arquitetura orgânica, criada pelas populações em função das suas necessidades, encontrou aqui uma forte expressão e, por isso, também contou com o apoio da associação de moradores e o empenho dos residentes e proprietários na sua concretização. O objetivo da iniciativa foi documentar a arquitetura informal e orgânica da localidade. O resultado é uma “aldeia em cartão”, uma réplica da Cova do Vapor, em forma de maqueta, agora apresentada à população local, amanhã, quem sabe, ao mundo. De uma forma não convencional, a intervenção da TISA veio reproduzir e talvez amplificar as soluções criativas da população. A criatividade naturalmente não se esgota aqui e ela está presente em ambos os protagonistas deste caso: o bairro criativo da Cova do Vapor e os criativos da TISA.

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TISA, The Informal School of Architecture.

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Figura 1. Cova do Vapor, entre a Trafaria e a Costa da Caparica

Cova do Vapor: um estranho caso de (i)legalidade? A Cova do Vapor situa-­‐se numa área de grande dinâmica morfológica (POOC Sintra-­‐Sado, 2003). No passado, a Cova do Vapor beneficiava da deposição das areias do mar, chegando a linha de costa a avançar para perto do farol do Bugio. Mas em cinquenta anos da sua existência enquanto aldeia piscatória e refúgio balnear, foi empurrada mais de meia dúzia de vezes pelo mar, sobretudo para dentro da mata de São João. Este processo regista-­‐se desde os finais da década de 1940. Por isso, os seus habitantes, movendo-­‐as para terra segura, “andaram com a casa às costas”, na verdade, rebocadas sobre estacas de madeira puxadas por juntas de bois. O meu sogro era dono do Bar Atlântico e teve de mudar a casa sete vezes (depoimento de um residente). Quando o mar começou a comer isto, aqui há uns cinquenta anos, as barracas de madeira que estavam a 1km do Bugio tiveram de ser arrastadas por juntas de bois. Umas desmontavam-­‐se, outras vinham inteiras (Hernâni Pereira, ex-­‐presidente da Associação de Moradores). Com vista para o Tejo e para o mar, o núcleo inicial da Cova do Vapor começou por ser um pequeno bairro piscatório nos anos 20 do século XX e para onde os proprietários das “barracas de madeira” da Lisboa Praia (situada a cerca de 600m da atual Cova do Vapor, hoje desaparecida, pela ação do mar, fig. 2) as rebocaram e às quais se juntaram as “casas dos pescadores” atribuídas pela antiga Junta Central das Casas dos Pescadores, do tempo do Estado Novo (Diário de Notícias, 7 de Agosto de 2011; Sr. Eduardo, morador da Cova do Vapor e membro da Associação de Moradores, 2011).

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Figura 2. As habitações originais da Lisboa Praia (foto original cedida pelo Sr. Eduardo)

Os barcos a vapor, o Zagaio ou o Flecha traziam as pessoas do Cais do Sodré e do Terreiro do Paço para a Lisboa Praia, que começava a ser procurada, mormente aos fins de semana. Porém o mar trataria de forçar a deslocalização das habitações que não haviam sido destruídas, com a devida licença da Direcção-­‐Geral de Portos, para a Cova do Vapor. Na década seguinte, a Cova do Vapor passaria efetivamente a zona de recreio e balnear, sobretudo de segunda residência (fig. 3).

Figura 3. A Cova do Vapor, praia popular da margem Sul

Nos anos 1940 a Cova do Vapor já albergava população todo o ano, sobretudo a que já lá possuía uma casa de verão; inclusive transacionavam-­‐se e construíam-­‐se “barracas

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de madeira desmontáveis”2. Nos finais da década de 40, registaram-­‐se importantes recuos da linha de costa entre a Cova do Vapor e a Costa da Caparica (somente entre 1947-­‐1951 desapareceram 500 metros); mas em contrapartida, na década de 1950 o mar fez crescer a Cova do Vapor que chegou a situar-­‐se (diz-­‐se) apenas a cerca de 150 metros do Bugio. Na década de 1970, a Costa da Caparica conhece o “boom do campismo”, a praia democratiza-­‐se. Habitantes de Lisboa, sobretudo pescadores, estivadores e peixeiras, oriundos de freguesias populares – Alcântara, Alfama e Campolide – porque têm amigos ou familiares que vivem na Costa, ali vão passar férias. No período balnear montavam as tendas de campismo e todos os anos no mesmo local; daí foi um passo até a Costa da Caparica conhecer dois tipos de populações: os que se tornaram moradores em definitivo e os veraneantes que também vinham aos fins de semana para a sua “residência de férias”. A Cova do Vapor conheceria um período de expansão e o número de moradores foi crescendo ao longo dos anos. De acordo com a Associação de Moradores (2011), os terrenos onde se encontra atualmente a Cova do Vapor pertenciam à Fábrica de Explosivos da Trafaria3, e há registos do bairro inicial, um resultado do avanço do mar, ter sido inaugurado com a presença de “figuras de Estado” (Sr. Eduardo, Associação de Moradores, 2011).

Figura 4. A rede que estabelece os limites entre a Cova do Vapor e a mata de São João

Este período de expansão, sobretudo após 1974, levaria a um grande crescimento e desordenamento da área, ao ponto dos habitantes e dos veraneantes da Cova do Vapor estarem já a construir habitações ocupando a mata de São João, afinal tudo 2

Referência extraída de documento emitido pelo Governo Militar de Lisboa, Licença nº4964/B, de 4 de Fevereiro de 1941. 3 A primeira unidade industrial de explosivos em Portugal data de 1874, com localização nas proximidades da Trafaria (MAOTDR, 2006).

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terrenos do proprietário da fábrica de explosivos da Trafaria que, com o fim da guerra colonial entra em crise. No verão de 1975 há mesmo um registo de intervenção militar (o Copcon de Otelo Saraiva de Carvalho) para impedir mais construção. Retroescavadoras arrasam a “futura” pensão e algumas casas, travando o processo de expansão da Cova do Vapor – que muito provavelmente se estenderia hoje até à Costa da Caparica. Nesta altura muitos moradores (já não se tratava apenas de 2ª residência) colocaram-­‐se em frente dos militares e impediram que o derrube fosse avassalador. Desde então há um limite tácito, onde mais tarde se colocaria efetivamente uma rede, a qual os moradores da Cova do Vapor respeitam (fig. 4). Todavia os moradores da cova do Vapor são cada vez mais e desde meados dos anos 1970 até meados dos anos 90, as fotografias aéreas da área urbanizada da Cova do Vapor evidenciam como esta aumentou consideravelmente (Gomes e Pinto, s.d.). A Associação de Moradores, criada após 1974, “para defender os interesses dos moradores”, consegue ao longo das décadas de 1980-­‐90, infraestruturar a área: água canalizada da rede dos serviços municipais da Câmara Municipal de Almada, rede de drenagem de águas pluviais, energia eléctrica, TV cabo e rede telefónica, recolha de lixo, todos os serviços pagos pelos moradores. Inclusive todos pagam contribuição autárquica e possuem caderneta predial (m2). O número de moradores foi crescendo ao longo dos anos e “a crise” traz cada vez mais gente para a Cova do Vapor: filhos e netos vêm para casa de familiares para evitar pagar uma renda de casa (José Cleto, Presidente da Comissão de Moradores, 2011). Com efeito, em 2002 existiam cerca de 350 casas, das quais umas 90 habitadas em permanência com cerca de 200 habitantes permanentes e 400 associados (fig. 5). Hoje residem para cima de 1000 pessoas e a associação de moradores tem 570 sócios (José Cleto, 2011).

Figura 5. Os “palheiros” (as casas de madeira do núcleo inicial) na sua atual configuração evidenciando a necessidade de espaço

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A diversidade de entidades que tutelam a área da Cova do Vapor dificulta a situação dos residentes. Muito embora sejam de propriedade privada, os terrenos situam-­‐se no domínio público, sendo que a sua jurisdição pertence à Direcção-­‐Geral de Portos. Ainda nos finais dos anos 1990, os terrenos são adquiridos pela Urbanizadora Praia do Sol aos antigos proprietários da fábrica de explosivos, cujos terrenos estavam em estado de abandono; depois, esta é adquirida pelo grupo privado Ensul, que a transforma na Urbisol. A Urbisol apresentaria já na década de 2000 um “projeto âncora” que pretendia “renaturalizar a Cova do Vapor, pôr fim às habitações clandestinas, devolver a zona aos turistas, e melhorar a segurança das populações”, contemplando para tal a construção de um campo de golfe, unidades hoteleiras, habitações, comércio e serviços, num terreno de 123 hectares, propriedade da Urbisol. Este projeto, feito em parceria com a Parque Expo, destinado à renovação urbana, foi chumbado nos finais de 2000, dado o Instituto da Água considerar que se trata de uma zona de alto risco, porque próxima dos locais afectados pelos avanços do mar, sendo o risco de erosão bastante elevado. É, portanto, neste contexto que os moradores da Cova do Vapor não temem o mar, antes as decisões políticas. Para o atual presidente da Associação de Moradores da Cova do Vapor seria inaceitável tal projeto, considerando poder tratar-­‐se de um pretexto para os retirar dali com o argumento de que não seria seguro devido à proximidade do mar, para depois serem construídos hotéis e campos de golfe, marina – uma segunda Troia... Todavia, é certo que muitos dos residentes na Cova do Vapor hoje possuem uma licença de construção (requisito legal que não é necessário para as casas de madeira da Cova do Vapor porque foram construídas antes de 1950), pagam impostos municipais e os serviços básicos. Um outro projeto que se avizinha para as imediações da Cova do Vapor parece ser mais pacífico. Segundo José Cleto, atualmente existe um “entendimento estratégico” entre a Administração do Porto de Lisboa e a Associação de Moradores da Cova do Vapor (fig. 6), sobre a localização do terminal de contentores do Porto de Lisboa na Trafaria, já que a Costa da Caparica não pode depender exclusivamente do turismo; havendo que apostar na vocação industrial da Península de Setúbal e dada a crise, os moradores da Cova do Vapor não se oporiam a ter os contentores na sua proximidade.

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Figura 6. As instalações da Associação de Moradores

Cova do Vapor: um exemplo atual de auto-­‐organização e emergência A Cova do Vapor é uma estrutura social emergente. Não encaixa numa qualquer designação do tipo “urbanização clandestina”. Se bem que a sua origem esteja coberta com um “véu de incerteza” quanto à legalidade das construções, revela-­‐se hoje um bairro auto-­‐organizado, com uma abrangente memória, uma história de, pelo menos, 80 anos. É um local onde, segundo o presidente da Associação de Moradores, “nada lhes foi dado”, tudo foi conquistado: nele habitam cerca de um milhar de pessoas e foram eles (ou os seus antepassados) que construíram as casas e “pavimentaram” as ruas, bem como pagam os serviços públicos solicitados e os impostos sobre os imóveis que ocupam. É verdade que não tem escola, nem creche, nem centro de dia, mas orgulha-­‐ se de ter uma associação de moradores, sala de convívio, mercado, talho, mini-­‐ mercado, posto médico, proteção balnear, parque infantil, padaria-­‐pastelaria, restaurante... e promove torneios de jogos, festas no fim do ano e nos santos populares, carnaval e são martinho... Tem afinal as características de um bairro popular, onde todos se conhecem. Lá mora gente pobre, mas sem problemas de marginalidade e de integração social e com uma forte noção de vizinhança. Da Cova do Vapor emana, em simultâneo, uma sensação de segurança, de convívio e de solidariedade. É esta a atmosfera social da Cova do Vapor, impregnada de sentido de comunidade, onde a interação local é muito forte e onde todos se habituaram a resolver os próprios problemas (fig. 7).

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Figura 7. Da esquerda para a direita: o Mário conhecido como o “tio sininho”, o Eduardo e a Maria do Augusto, três dos mais antigos moradores e referências incontornáveis na Cova do Vapor

Numa sociedade hipertexto como a de hoje, a Cova do Vapor apresenta-­‐se como um palco alternativo: autossuficiente, os seus moradores são os protagonistas da arte portuguesa do desenrascanso (José Cleto, Presidente da Associação de Moradores, 2011). Com efeito, do pondo de vista do desenho e da produção do edificado, corresponde a um espaço altamente densificado, é uma construção “fora dos canais”, uma enciclopédia de “arquitetura informal e popular”, resultado de uma amálgama de casas, construídas com os mais diversos materiais, com os seus canteiros e ornamentos improvisados; o que resta entre elas resulta nas ruas. Tudo autoconstrução, desde a feitura do cimento às paredes de tijolos ou de outros materiais, “recolhidos aqui e acolá”. Nascida há tempo suficiente para conter memória e ação coletiva, a matriz global da Cova do Vapor é hoje um reduto emergente (e 99,9% português, com uns holandeses e franceses à mistura), em que o todo, é muito mais do que o agregado das partes que o compõem. Este é um território povoado de estímulos internos e externos. Ao longo da sua história, foi mudando e evoluindo, sempre guiado por umas poucas regras internas simples, fazendo-­‐se o que se pode, de acordo com as necessidades, respeitando a diversidade e a autonomia dos moradores e das ações das respetivas famílias, e construindo uma rede de decisões coerente e coesa. Naturalmente, a proximidade física e o contexto social semelhante estimularam os interfaces internos e, o ambiente externo desfavorável (a génese “ilegal”, logo o fantasma do despejo, não permitem descuidos) potenciou as interligações e os múltiplos ajustes internos. Conectividade e organização entre os as gentes da Cova do Vapor estimulam estruturas emergentes como esta.

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Na Cova do Vapor cada um faz como sabe e se necessário, os vizinhos dão uma ajuda. Ali moram pescadores, eletricistas, biólogos, arquitetos, informáticos, padeiros, mecânicos, pedreiros e esta amálgama de profissões favorece a cooperação para a resolução de problemas. Cada casa e cada rua é orgânica, diferente da outra. Imagens de santos, arcos nas portas, janelas redondas, canteiros floridos; aqui, azulejaria dispersa forrando as paredes, ali, cimento com conchas do mar incrustadas ornamentam os muros. As ruas sinuosas e estreitas adaptam-­‐se ao clima local e criam uma atmosfera de proximidade, de partilha e de humor, como é visível na toponímia das ruas, quase todas de terra batida (fig. 8): avenida dos Milionários, 5ª avenida, rua da Alegria, rua travessa 25 de Abril. Os nomes das ruas refletem também as personalidades que ali tiveram um papel importante, como a rua Fernando Gouveia ou a rua Beatriz Ferreira, outras têm a ver com a história, como a rua 5 de Outubro; outras ainda com o núcleo piscatório (rua da baia, rua dos pescadores, rua dos resistentes do mar).

Figura 8. Avenida dos Milionários

Cada casa é um pedaço de cada família (fig. 9), revelando não apenas a sua história, feita de ciclos de aumentos e de acrescentos, mas também servindo o seu apreço e orgulho pela obra alcançada: Casinha dos Meus Sonhos, Lar dos meus Netos,...

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Figura 9. A “Casinha dos meus Sonhos”

Não há empresas de construção civil, é tudo o resultado simultâneo do esforço diário e manual, individual e coletivo. Todos os que ali vivem conhecem o bairro como as próprias mãos, porque foi com elas que o construíram (Diário de Notícias, 7 de Agosto 2011 ). A diversidade impera já que a configuração de cada casa e de cada rua é uma função das necessidades, dos gostos, das possibilidades e das habilidades (fig. 10). E de um dia para o outro há mudanças.

Figura 10. Arcos e janelas redondas: habilidades e possibilidades

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A Cova do Vapor não é um bairro suburbano insípido e padronizado, um acidente caótico ou uma abstração absurda, é um sistema real interrelacionado, de grande vitalidade e particularidade. A juntar-­‐se à vitalidade urbana, a atmosfera de alegria, companheirismo e bem-­‐estar nas ruas é muito contagiante. Este é o mundo real, em contato com a natureza, espontâneo e genuinamente português. É passado, presente e futuro. Numa leitura mais abstrata, o paradigma do que aqui se observa é a modelação de um mundo habitado que se auto-­‐organiza através das sinergias locais (Gouveia, 2010). Por um lado, na Cova do Vapor observa-­‐se um mecanismo de interação cooperativa, em que os indivíduos (os moradores) contribuem para a modificação do seu ambiente, deixando em aberto a possibilidade de outros indivíduos (a escola informal de arquitetura) responderem a esse ambiente com um novo input (a maquete como forma de narrativa interativa – dos atores do lugar com os do exterior). Por outro lado, a competição pelo espaço e seus usos gera também configurações e estratégias de disputa de oponentes (moradores versus interesses públicos e privados/imobiliários), numa superação constante, gerando efeitos não previstos no design do sistema espacial e relacional. Esta relação dinâmica cooperação-­‐competição sugere um quadro interativo e partilhado, permitindo a alteração e reconfiguração dos olhares e das narrativas sobre a Cova do Vapor. Segundo Vandana Shiva (2008), quando uma sociedade se organiza com a energia viva dos seus cidadãos, a democracia viva é um fenómeno emergente, tornando possível o impossível, criando esperança no meio do desespero, aproveitando as nossas energias criativas para nos salvar da ruina social e ecológica. Nesta perspectiva – também a de Filipe Balestra –, a Cova do Vapor, dinâmica e libertadora, é uma mais-­‐ valia para Almada, é um tesouro que vale a pena defender com unhas e dentes. TISA e a arquitetura biológica, num tempo onde se valoriza a arquitetura geneticamente modificada 4.1 O projeto Os jovens arquitetos Filipe Balestra4 e Sara Göransson trouxeram a ideia. A associação de moradores da Cova do Vapor emprestou-­‐lhes o espaço, a “casa da curva”, o 4

Filipe Balestra estudou arquitetura em Edimburgo e urbanismo em Estocolmo. É professor na Universidade Técnica Real de Estocolmo e na Escola de Belas Artes de Estocolmo desde 2009. Em 2008, juntamente com Sara Göransson, fundou a Urban Nouveau*, uma rede aberta de seres humanos de todo o mundo que resolvem problemas do dia-­‐a-­‐dia. Nesse mesmo ano lançou uma estratégia para a reabilitação de bairros degradados da Índia sem implicar a destruição dos mesmos. Em 2010 lançou Connecting-­‐Stockholm, uma estratégia de autossuficiência alimentar a longo prazo para a região de Estocolmo. Balestra é o mentor da TISA, The Informal School of Architecture cujo projeto piloto foi lançado na Cova do Vapor em 2011 (Prova Oral, Antena 3, 6 /09/11).

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número 99 da rua Fernando Correia (fig. 11), a espreitar o mar (http://noticias.sapo.pt/infolocal/artigo/1168243.html); a população abriu-­‐lhes as portas das suas casas, mas também os seus corações.

Figura 11. As instalações da escola informal de arquitetura

O que pretendiam estes jovens fazer? Em primeiro, o objetivo: fazer uma maqueta do bairro, aplicando o conceito de urban nouveau* (com asterisco), que se descreve como "uma plataforma interdisciplinar que suporta uma rede aberta de seres humanos que resolvem problemas do dia-­‐a-­‐dia". A ideia forte: valorizar o que já existe e levar esta arquitetura biológica para a cidade geneticamente modificada. Como se poderia fazer isto? Através de um processo dinâmico, interativo entre os cerca de 50 alunos das escolas profissionais EPAD (artes, tecnologia e desporto) e Gustave Eiffel que foram para a Cova do Vapor aplicar o que sabiam dos bancos de escola e aprender aquela arquitetura e o design orgânico, juntamente com os mentores da ideia, Filipe e Sara, os arquitetos. Porquê este local? Filipe e Sara procuram a expressão da personalidade que não existe nos bairros modernos, logo, o que os move é o encontro com a arquitetura orgânica, biológica, viva, criada pelas gentes em função das suas necessidades, daí a sua opção pela Cova do Vapor. A proximidade e Lisboa, num mundo espontâneo que é afinal a expressão das interações simples entre a terra e as pessoas, com o mar e o rio, onde se vive com o que se tem e com o se retira desta natureza, constitui um forte atrativo para documentar.

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Como nasceu o projeto, ou os antecedentes Quando acabou o curso, Filipe foi trabalhar para uma ONG no Brasil e logo compreendeu que a comunicação em papel não era importante naquele local mas sim a comunicação oral e traçou um projeto: entrar na favela, a maior favela da América do Sul, pegar num edifício antigo e transformá-­‐lo numa escola. É que com 200 mil habitantes e apenas três escolas, o nível de analfabetização é muito alto. Do empenho de Filipe, da ONG e da população da favela, a escola nasceu. Quatro andares remodelados e refeitos, cada um com sua função: um terraço para a prática de capoeira, uma sala grande para danças e afins e salas de aula. Com muitos moradores a fazer cimento, assentar tijolos e a pintar paredes, tendo como bíblia os desenhos técnicos do Filipe, o projeto Sambarquitectura foi concretizado e a favela tem hoje mais uma escola. Este projeto está documentado em vídeo e foi mostrado no Festival de Filmes Brasileiros em Estocolmo; Sambarquitectura foi também exibido no museu de arquitetura em Estocolmo e no Botkyrka Konsthall. Seguiu-­‐se a Índia. Ali juntou-­‐se à ONG SPARC, de Jockin Arputham, considerado um ícone incontornável do desenvolvimento para gerir projetos de habitação. Com Sara, rumou a Bombaim para ajudar a ONG a desenvolver uma estratégia de habitação para os bairros de lata, coisas simples que os próprios moradores pudessem levar a cabo e onde não fosse necessária a presença constante de arquitetos. Com a experiência de Filipe no Rio de Janeiro e de Sara em Estocolmo, onde criou o Lo-­‐Glo, um projeto que estrutura e controla o crescimento da capital sueca, estavam unidos os esforços necessários para construir e reabilitar 1200 habitações. Todo o trabalho foi feito, como não podia deixar de ser, com os moradores, que além de ajudar na construção, tinham carta verde para escolher as cores das suas casas. As imagens de todo o processo foram expostas em Nova Iorque, no Centro de Arquitetura, sob o nome de Jugaad Urbanism. Como se concretizou o projeto da escola informal na Cova do Vapor Filipe e Sara misturam-­‐se com os moradores de todos os locais por onde passam. A Cova do Vapor não é exceção: contactam o presidente da associação de moradores que decide acolher o seu projeto, batem à porta dos residentes e apresentam-­‐lhes o Urban Nouveau* que é uma escola informal cujo objectivo é ir ao encontro da vida real. É também uma escola interdisciplinar, onde participam companheiros de escola de Filipe: Francisco Mota, João Albuquerque e Diogo Braga, que ensinam no terreno. Em finais de 2010, estabeleceram os primeiros contatos, os moradores aceitaram a sua presença e colaboraram com os jovens que assentaram arraiais na Cova do Vapor durante dois meses e meio (de Maio a Julho de 2011), não para reabilitar, mas para fundamentar a arquitetura informal e orgânica da localidade. A C R I A T I V I D A D E U R B A N A N A R E G I Ã O D E L I S B O A – C A S E S T U D I E S

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Os moradores colaboram intensamente no projeto, abrindo as suas casas, dando opiniões e informações preciosas sobre as habitações enquanto os jovens em formação, sob a coordenação dos arquitetos, realizam as observações e medições no terreno e tiram fotos. Se necessário, os moradores corrigem os detalhes dos desenhos, disponibilizando comida, mesas e os seus quintais para o trabalho – e até abrigo para dormirem. O relacionamento não podia ter sido melhor: os moços eram muito educados, bem falantes, com bom porte (Sr. Mário ou o “tio sininho”, morador na Cova do Vapor, 2011). Vinham diariamente e, quando necessário, ficavam aos fins de semana, interagindo com os moradores, realizando esboços e medições da parte de fora e dos interiores das casas (fig. 12). Foi uma juventude que apareceu aqui que ainda não vi igual (D. Maria do Augusto, moradora na Cova do Vapor, 2011). Fizeram tudo com amor e dedicação absoluta (Sr. Eduardo, morador na Cova do Vapor, 2011).

Figura 12. Uma jovem com um dos moradores na Cova do Vapor (Foto TISA)

Quando a maquete ficou pronta, anunciou-­‐se a sua exibição pública (fig. 13): uma grande festa pensada primeiro para os moradores (a família), os atores principais do empreendimento, depois haveria outra mostra para o público em geral. A primeira foi da iniciativa da TISA, embora com ajuda de toda a gente. Trouxeram as casinhas, uma a uma, e depois uma base em anfiteatro onde as montaram cuidadosamente; e a exposição decorreu na casa do “Bugio à Vista”: só a primeira mostra juntou 3500 pessoas. Cada família tirava uma foto com a sua casa na mão.

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Figura 13. Exposição de casas: há festa na “família da Cova do Vapor”

Os moradores são unânimes em afirmar que as casas ficaram iguais, no mais ínfimo detalhe (fig. 14). A emoção e o orgulho dos moradores, são os sentimentos de que todos se lembram. O relacionamento não acabou com a apresentação da maquete: ainda hoje “os moços” os visitam. O facebook e o twitter dão uma boa ajuda para a divulgação do projeto. Os media também: o Diário de Notícias fez uma reportagem sobre a Cova do Vapor e a TISA e a RTP 1 também; Fernando Alvim através da Prova Oral difunde o trabalho de Filipe e Sara (fig. 15)...

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Figura 14. Cova do Vapor, uma construção fora dos canais do desenho e da produção arquitectónica (Foto Diário de Notícias 07/08/11)

A segunda exibição, decorreu oito dias depois, e foi da responsabilidade da Associação de Moradores, com o objetivo de angariação de fundos para o restante do pagamento do asfaltamento da estrada principal. Para esta, a Câmara Municipal de Almada foi convidada, mas ninguém apareceu; vieram todavia representantes da Administração do Porto de Lisboa e a Presidente da Junta de Freguesia da Trafaria (Associação de Moradores, 2011).

Figura 15. Os arquitetos Filipe e Sara com a maquete ao fundo (Foto Diário de Notícias 07/08/11)

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Cova do Vapor, um pedaço de cidade em que a natureza está presente A Cova do Vapor é uma aglomeração que cresceu num espaço fisicamente limitado e se fortaleceu e densificou com o tempo. Pessoas sem grandes meios financeiros participaram na construção de um lugar comum e as suas diversas origens e profissões geraram um todo coerente e orgânico, num contexto adverso. A legitimação (ou a legalidade) da Cova do Vapor está entranhada na sua história, o que elucida a existência de uma estrutura de liderança forte, a Associação de Moradores; esta é o motor da relação dinâmica e positiva das suas gentes. Com efeito, as respostas construtivas da população da Cova do Vapor evidenciam uma utilização necessariamente criativa dos poucos recursos materiais, técnicos e institucionais disponíveis face ao ambiente externo, natural e social, pouco favorável. E o confinamento do espaço – entre o rio, o mar e a mata – gerou uma “compactação”, oferecendo as condições para um território de proximidade, facilitando e estimulando a convivência social. Sem fortes poderes públicos na retaguarda e uma ameaça latente dos interesses privados. Uma conjuntura em que a própria sobrevivência depende da capacidade criativa. Por tudo isso, a Cova do Vapor é um lugar genuinamente autêntico, orgânico, não intencional, não desenhado, talvez primitivo, mas capaz de responder com “flexibilidade” às necessidades/dificuldades dos moradores (por exemplo, quando os filhos casam e têm bebés, mudam-­‐se para os anexos que fazem atrás da casa principal, in Diário de Notícias 07/08/11). A densidade de relações e a necessidade em transformar o espaço confinado de forma a que possa oferecer qualidade de vida e bem-­‐estar, está presente na paisagem. A Cova do Vapor revela uma estupenda capacidade natural para comunicar e inventar criativamente o que for necessário para enfrentar as dificuldades, atributo fundamental para a vitalidade do lugar (Jacobs, 1961). Não serão estas as condições que favorecem a criatividade? Criatividade porque a cidadania e a expressão cultural e identitária foram atributos ameaçados e sempre presentes na história da Cova do Vapor? Criatividade porque ela está nas pessoas e a Cova do Vapor é um exemplo material dessa capacidade? A TISA veio realçar o que já lá existia, mas quase ninguém o via: a construção e o desenho urbano, bem diferentes do que se aprende nos bancos de escola. O desenho participativo e o senso comum foram as técnicas também elas criativas usadas pela escola informal e os resultados do “projeto crítico” da TISA estão à vista: a Cova do Vapor explica-­‐se através da metáfora orgânica, é uma lição de arquitetura, sobretudo para a “geneticamente modificada”, é um todo maior que as partes, é um fenómeno emergente de autossuficiência; a Cova do Vapor, como diria Jacobs (1961), é viva, diversificada e intensa, contendo as sementes da sua própria regeneração.

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É a abordagem criativa da TISA, ela própria uma escola sem professores, onde todos aprendem com todos, olhando e respeitando a comunidade auto-­‐organizada que é a Cova do Vapor, que estimula a legitimação deste lugar. A abordagem empírica da TISA coloca em evidência a perspectiva de que o lugar é genuíno, um orgulho português e não “mais um bairro de génese ilegal”. Um olhar externo que valoriza o território e a comunidade, uma janela de oportunidade que os transportará da Trafaria para o mundo (com vontade política e apoios, por exemplo, da Ordem dos Arquitetos, a maquete seguirá para exposições itinerantes, nacionais e internacionais). A TISA também ela, aprende com as comunidades e os saberes tradicionais para repensar e propor um novo modelo de sociedade mais sustentável. A Cova do Vapor necessita de reconhecimento social e a TISA é certamente a sua melhor alavanca. O valor simbólico e a componente cultural da Cova do Vapor, que a escola informal destacou, revelam o seu potencial diferenciador, num tempo em que a suburbanização insípida nos é oferecida como a maravilha eterna desprezando os locais auto-­‐organizados, espontâneos e genuínos, num tempo em que só se vê desordem onde existe a mais completa e singular das ordens, num tempo em que as iniciativas de autossuficiência alimentar, eficiência energética e de redução da pegada ecológica se revelam essenciais, porém são esmagadas pelo modelo do “supercrescimento” económico (Latouche, 2011). Sem sentimentalismos para com a natureza, a Cova do Vapor foi criada e usada por criaturas que amam o seu território. Novas formas de pensar e agir, de ser e fazer, estão a evoluir a partir de alternativas criativas empregues em pequenas comunidades, como a da Cova do Vapor. É esta energia renovável oriunda da partilha e da solidariedade que precisamos gerar e multiplicar, como contraponto à energia destrutiva da ganância que gera a escassez em todos os níveis: de habitação, de trabalho, de felicidade, de segurança, de liberdade e até de escassez do futuro (Vandana Shiva, 2008). A propósito de exemplos como o que nos ensina a Cova do Vapor, não podemos deixar que um qualquer processo que leve à sua destruição e desintegração fiquem sem desafio. Agradecimentos Associação de Moradores: Presidente, José Cleto. Moradores: Sr. Eduardo (o padeiro-­‐pasteleiro); D. Maria do Augusto (uma das mais antigas e respeitadas moradoras); Sr. Mário (o tio sininho). TISA: Arquitetos Filipe Balestra e Sara Göransson. Referências bibliográficas Associação de Moradores, 2011. Entrevistas aos moradores: Sr. Mário, Maria do Augusto e José Cleto.

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Diário de Notícias, 7 de Agosto de 2011. Lição de Arquitectura na Cova do Vapor. Notícias Magazine. Gomes e Pinto, s.d. Cova do Vapor. Costa da Caparica (Portugal) EUROSION Case Study. databases.eucc-­‐d.de/files/000146_EUROSION_Cova_do_Vapor.pdf (acedido em Setembro 2011). Gouveia, P., 2010. Artes e jogos digitais – Estética e Design da Experiência Lúdica. Ed. Universitárias Lusófonas, Lisboa. Jacobs, Jane (1961). The Death and Life of Great American cities. Random House, New York. Latouche, S., 2011. Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno. Ed. 70, Lisboa. MAOTDR, 2006. Sector dos Explosivos em Portugal. Relatório síntese. Trabalho temático 2006. IGAOT, MAOTDR. POOC Sintra-­‐Sado, 2003. RCM nº 86/2003 de 25 de Junho. http://www.cm-­‐ sintra.pt/Artigo.aspx?ID=3172 (acedido em Novembro 2011) Público, 28/04/2002. Uma relíquia chamada cova do vapor. José António Cerejo. Vandana Shiva, 2008. Soil, not oil. Climate change, peack oil and food insecurity. Zed Books, London. Artigos de imprensa on-­‐line (acedidas em Outubro 2011): http://noticias.sapo.pt/infolocal/artigo/1168243.html http://www.dezeen.com/category/architecture-­‐news/ http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=655007&page=1 http://www.ionline.pt/conteudo/122636-­‐urban-­‐nouveau-­‐ou-­‐arquitectura-­‐biologica-­‐ na-­‐cova-­‐do-­‐vapor http://www.ionline.pt/conteudo/51128-­‐moradores-­‐da-­‐cova-­‐do-­‐vapor-­‐temem-­‐fim-­‐da-­‐ localidade-­‐ http://www.slideband.com/slide/1354_Incremental-­‐Housing-­‐Strategy-­‐by-­‐Filipe-­‐ Balestra-­‐and-­‐Sara-­‐G-­‐ransson.html

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Mouraria Ana Estevens

TOCA – Feira II (2011)

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O bairro da Mouraria localiza-­‐se no concelho de Lisboa. É um dos bairros históricos da cidade que se reparte por sete freguesias: Anjos, Graça, Sé, Santa Justa, São Tiago, Socorro e São Cristóvão e São Lourenço. A sua área é delimitada5 a norte pela Avenida Almirante Reis, Rua dos Anjos e Travessa da Bica aos Anjos; a sul pela Rua de São Mamede e Rua de Augusto Rosa; a poente pela Rua da Mouraria, Rua do Arco Marguês do Alegrete, Poço do Borratém e Rua da Madalena; a nascente pela Rua da Bombarda, Rua das Olarias, Calçada do Monte, Calçada da Graça e Travessa das Mónicas. A Mouraria é um bairro onde o conceito de interculturalidade está bem presente, convivendo no mesmo espaço nacionalidades diversas (Bangladesh, Paquistão, Índia, China, Brasil, PALOP, etc.) que animam a paisagem com sabores, odores e cores. Desta diversidade resulta também uma multiplicidade de lugares e acontecimentos artísticos que conferem a este território uma dinâmica muito particular. São já antigas as colectividades que povoam a Mouraria: o Grupo Desportivo da Mouraria (fundado em 1936), a Casa dos Amigos do Minho, onde todos os domingos dançam casais num baile, o Sport Clube do Intendente ou o Centro Escolar Republicano Almirante Reis. Como parte integrante do bairro as instalações destas colectividades acolhem nos seus espaços diversos eventos artísticos que se realizam no bairro ao longo dos anos. Um destes eventos é o “TODOS, Caminhada de Culturas”. O TODOS é um festival da iniciativa da Câmara Municipal de Lisbo (C.M.L.), do GLEM – Gabinete Lisboa Encruzilhada de Mundos e da Academia de Produtores Culturais. Este evento realiza-­‐se há três anos (desde 2009) no mês de Setembro entre o Martim Moniz e o Largo do Intendente. O TODOS tem a concepção artística e a programação a cargo de Madalena Victorino e de Giacomo Scalisi. O festival TODOS procura fazer com que os residentes estrangeiros da zona “se deêm a conhecer: a sua cultura e o seu quotidiano, para que sejam inseridos nos bairros onde vivem” (Júdice, M., 2011). Este evento, de grande mediatismo, envolve espectáculos de música, de teatro , de dança,

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Segundo o Regulamento do Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Mouraria (1997).

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performances, exposições, workshops e lições de culinária do Brasil, da Índia, da Ucrânia, de Cabo Verde e da China. A Orquestra TODOS, sob a direcção artística e musical do maestro Mario Tronco, foi a estreia deste ano. Esta orquestra é constituída por músicos de várias origens na procura de uma música do mundo. A Orquestra TODOS começou a formar-­‐se em Junho, quando foi feito o convite à participação de músicos de diferentes culturas presentes em Lisboa a integrar esta orquestra. Também em Junho foi feito o convite aos lisboetas a deslocarem-­‐se à “Tenda” e a deixarem fotografar-­‐se. Deste convite resultaram mais de 450 fotografias, a que Victorino, M. (2011) chamou de encontros, de “conversas sobre a vida, sobre o corpo, sobre a família sobre tudo e TODOS”. Destes retratos dos fotógrafos Luís Pavão, Luísa Ferreira, Camilla Watson, Carlos Morgado e Cláudia Damas resultou a exposição “TODOS” que decorreu no Núcleo Fotográfico – Arquivo Municipal de Lisboa. Algumas destas fotografias também puderam ser vistas na Praça do Martim Moniz, na Rua da Palma e nas varandas da Rua do Benformoso. O conceito desta exposição decorreu da ideia de Luís Pavão de trabalhar o retrato em espaço público. A “Tenda”, localizada no Largo do Intendente, convidava quem passava na rua a deixar-­‐se fotografar: “As pessoas, num primeiro momento hesitavam. Depois voltavam e quando entravam finalmente na tenda, muitos tinham ido pentear-­‐se, vestir-­‐se, chamar o avô, o amor, o cão. Rondavam a tenda como uma caixa de curiosidades” (idem). Na sequência do festival TODOS foi assinado um protocolo entre o Município e o Conselho da Europa que formaliza a adesão de Lisboa à Rede de Cidades Interculturais6. Segundo António Costa (discurso de assinatura do protocolo de adesão à Rede de Cidades Interculturais, 8 de Setembro de 2011), o TODOS foi decisivo para que Lisboa pudesse aderir à Rede de Cidades Interculturais do Conselho da Europa: “O TODOS é muito importante para estimular o diálogo intercultural, para espelhar a diversidade que vemos nos rostos fotografados. O TODOS tem sido decisivo para podermos descobrir um bairro da cidade que era desconhecido para 6

A Rede de Cidades Interculturais é um projecto do Conselho da Europa e da Comissão Europeia desenvolvido no contexto do Ano Europeu do Diálogo Intercultural, com o objectivo de “estimular novas ideias e práticas em relação à integração dos imigrantes e das minorias (C.M.L., 2011). Outro objectivo desta rede é “reforçar as acções das comunidades locais, tirando o máximo partido da sua diversidade cultural, apoiar as cidades no desenvolvimento de estratégias de actuação e acções que ajudem a gerir a diversidade de forma construtiva e inovadora, propondo políticas concretas e métodos que as cidades de toda a Europa possam vir a adoptar e a beneficiar. A integração da cidade de Lisboa nesta rede permitirá o aprofundamento, em conjunto com vários parceiros, de uma estratégia de integração e de multiculturalidade, com partilha de conhecimento e de boas práticas” (Costa, A., 2011).

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muitos de nós. Muitas pessoas vêm pela primeira vez à Mouraria por causa do TODOS. Essa descoberta da Mouraria é um dos grandes contributos que o TODOS tem deixado à cidade”. Salientando também o contributo do projecto TODOS, a Fundação Calouste Gulbenkian atribuiu uma Menção Honrosa do Prémio de Melhores Práticas Autárquicas em Integração de Imigrantes. Este evento “tornou-­‐se num espaço e num tempo de afirmação onde se cruzam artistas, moradores do bairro e público em geral” (Júdice, M. , 2011). Contudo, o território de eleição desta iniciativa vai ser substituído para o próximo ano (2012): “Não quisemos ficar na Mouraria para sempre, porque a interculturalidade tem pontos em comum com vários bairros da cidade” (idem).

Festival TODOS (2011) Mudando de perspectiva, encontramos na Mouraria o trabalho efectuado pelo c.e.m. – centro em movimento. O c.e.m. – centro em movimento é uma estrutura de investigação artística que desenvolve parte do seu trabalho no bairro, apesar da sua sede se encontrar fora dos limites da Mouraria (na Rua dos Fanqueiros). Esta estrutura

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artística é financiada pelo Ministério da Cultura, Direcção Geral das Artes. A abordagem do c.e.m. neste território é diferente do convencional. Abandonando uma visão paternalista do trabalho com as pessoas, desenvolvem projectos em que a partilha, o estar-­‐com (como lhe chamam) são a parte essencial do seu trabalho. Nas palavras de Passos (2011: 129), “trabalha ali com as pessoas e os lugares, densificando redes de relações que se tornam pontos de outras cartografias”. O c.e.m. desenvolve o trabalho de dança e corpo no seu estúdio, com aulas e formações diversas. Mas também desenvolve fora do estúdio este trabalho de compreensão do corpo e do lugar: no Centro de Dia do Socorro, no Centro de Dia de São Critóvão e São Lourenço, na escola do 1º ciclo da Madalena, no ATL da Madalena (Junta de Freguesia) e na Creche do Beco do Rosendo. Paralelamente. São também de destacar diversos projectos socioartísticos no contexto do bairro. Desde 2005 que o projecto “IR” dialoga com a arte relacional. É um projecto do c.e.m em parceria com a Obra Social das Irmãs Oblatas e financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, onde através da dança, se aprofundam os estudos do corpo e do movimento, acompanhando o percurso de “(re)conhecimento de si e dos caminhos quotidianos de um grupo de mulheres em contexto de prostituição de rua no Intendente”, trabalhando “a pessoa que está para além do papel social que representa este grupo de trabalhadoras do sexo” (site http://www.c-­‐e-­‐m.org/?p=283). Propõe um desafio: “um encontro de cada mulher consigo própria e com um contexto mais alargado do que apenas aquele que está à sua volta” (idem). Questões que emergem do estigma e do preconceito, trabalham em continuidade a emergência de conteúdos artísticos e políticos, numa perspectiva relacional e de transformação social. Numa abordagem transdisciplinar procuram-­‐se causas, questões, curiosidades, escolhas, pretendendo acompanhar a pluralidade e diversidade de situações existentes neste contexto. A transformação ocorre pela aproximação e pela confiança, alterando-­‐se estereótipos. Num trabalho semanal, procura-­‐se a conquista de “um espaço reivindicativo para que, se configure uma sociedade mais digna e menos hipócrita” (…) “evoluindo a partir de uma esfera próxima/micro para uma mais alargada/ macro, ou ainda do indivíduo para o colectivo e do colectivo para o mundo”. (ibidem). Deste projecto surgiu o documentário “Do Corpo À Palavra – um filme colectivo” (2007). E no contexto da experiência local da prostituição de rua surgiu em 2009/2010 o solo de A C R I A T I V I D A D E U R B A N A N A R E G I Ã O D E L I S B O A – C A S E S T U D I E S

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dança “CRU” que teve como espaço de residência artística e de estreia a Casa dos Amigos do Minho. Foi “uma respiração mais profunda e revolucionária que se instalou no trabalho e permitiu um alargamento da acção” (Lemos e Domingues, 2011, p.3). Na continuidade do projecto “Ir”, aparece o projecto “TOCA”. Este é um projecto intergeracional desenvolvido pelo c.e.m. e financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian no âmbito do Programa “Entre Gerações”. Lemos e Dominges (2011, p.4) referem que o “TOCA nasceu da relação entre uma pessoa e um lugar: do encontro entre o c.e.m. e a Dona Beatriz na Casa dos Amigos do Minho. (…) Indo pelas ruas do Intendente e da Mouraria, encontrámos pessoas vindas de muitas paisagens – migrantes de dentro e de fora de Portugal que costuram o espaço da cidade com as suas mais diversas histórias e experiências”. Assim, o TOCA surge como um projecto sobre “o encontro, a casa, a rua, o chamar, o convidar, o aceitar” (idem). O projecto desenvolveu-­‐se ao longo de um ano de trabalho (entre Outubro de 2010 e Julho de 2011) e organizou-­‐se em três fases coordenadas por equipas intergeracionais que trabalharam especificamente com três grupos etários diferentes e associados a eles três núcleos: pessoas mais velhas utentes de centros de dia (núcleo Gera) , mulheres adultas imigrantes relacionadas com a prostituição (núcleo Inter) e crianças do 1º Ciclo do Ensino Básico (núcleo Ações). Na primeira fase, a que chamaram “Núcleos”, que decorreu entre Outubro de 2010 e Janeiro de 2011, cada núcleo teve dinâmicas que foram ao encontro das suas especificidades. Na segunda fase, entre Fevereiro e Abril de 2011, denominada “Ligações” as equipas, que antes tinham trabalhado em separado, começaram a estreitar laços e a articular propostas cruzando as pessoas e promovendo as ligações. Na terceira e última fase, entre Maio e Junho de 2011, a da “Criação Colectiva” emergiu o potencial das acções colectivas. Ao longo destas três fases ocorreram diversos eventos que foram pautando todo o projecto: o TOCA-­‐ Feira I, em Dezembro de 2010 na Casa dos Amigos do Minho, o TOCA-­‐Feira II que decorreu durante dois dias no final de Fevereiro de 2011, também na Casa dos Amigos do Minho. Neste TOCA-­‐Feira foi possível assistir à projecção de filmes documentais, tirar “Fotos de Família” num convite à criação de cenários com materiais improváveis, tricotar e cantar ideias e ouvir a Rádio Toca e a música do guineense Mamadu Baio no salão de baile. O TOCA-­‐Feira III realizou-­‐se em meados de Março no espaço habitual. Aí, “pessoas de todas as idades puderam espreguiçar-­‐se sob o sol e teceram A C R I A T I V I D A D E U R B A N A N A R E G I Ã O D E L I S B O A – C A S E S T U D I E S

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conversas, partilhando estórias que se desenrolavam em inesperados encontros” (site). Entre Maio e Junho de 2011 decorreram três encontros: o primeiro ocorreu no espaço do ConTacto Cultural7; o segundo foi no Centro de Dia da Rosa (Santa Casa da Misericórdia); e o terceiro no espaço do c.e.m.. Em Julho, para finalizar o projecto, realizou-­‐se o TOCÃO com a apresentação do livro “Corpo – Bússola. Histórias do TOCA com a coordenação de Mariana Lemos e Lysandra Domingues, a projecção do documentário de Alex Campos, produzido a partir dos encontros realizados ao longo do ano na Casa dos Amigos do Minho, na Lavandaria da Rosa (Rua do Benformoso), a peça de dança “CHÃO” de Carolina Höfs, a música guineense de Galissá e o rap dos jovens do ConTacto Cultural. Com todo este projecto foi possível criar “um lugar para o exercício da possibilidade da diferença e da igualdade, da vivência do que é a interculturalidade” (Lemos e Dominges (2011, p.4). Outro trabalho desenvolvido pelo c.e.m. é o festival Pedras d’Água, financiado pela Câmara Municipal de Lisboa e com os apoios da Junta de Freguesia de Santa Justa, EGEAC, ConTacto Cultural, Consultores de Comunicação, Lda., Junta de Freguesia de São Cristóvão e São Lourenço, Junta de Freguesia da Madalena e Junta de Freguesia do Socorro. O Pedras d’Água é um festival que passa despercebido a muitas pessoas, apesar de ser anunciado nos meios de divulgação cultural. “É um acontecimento anual que agrega a criação emergente do estar-­‐com as pessoas e os lugares” (Neuparth, 2011, p. 8). Para Christine Greiner (2011, p. 10) o Pedras d’Água “apresenta uma outra possibilidade absolutamente excepcional em termos de cultura-­‐mundo (…) isso porque, ao invés de entrar na rede mundializada que norteia boa parte da arte contemporânea, actua localizadamente na cidade de Lisboa, em bairros determinados e em locais específicos (uma escadaria, um beco, a casa de alguém e assim por diante).(…) Trata-­‐se de um festival que é, ao mesmo tempo, um projecto de vida e de partilha de saberes.” Há sete anos que o c.e.m. “congrega em torno de um evento visível” o trabalho que desenvolve “de forma rizomática, pela escuta atenta e no comprometimento de acções co-­‐desenvolvidas com a população dos lugares” (site). É um trabalho que parte 7

O ConTactoCultural é um projecto financiado pelo Programas Escolhas, cuja instituição promotora e gestora é a Solidariedade Imigrante e tem como parceiros a Junta de Freguesia dos Anjos, SOU - movimento e arte e o Sport Clube do intendente. Desde o início, em 2004, a sua principal visão é fomentar nos jovens uma consciência para a participação social e atitude pró-activa na sociedade. Actualmente o Espaço ConTacto- Centro de Recursos Jovem está localizado no Mercado do Forno do Tijolo.

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do estar na rua, o estreitar laços e ouvir as pessoas e os lugares. Desde há dois anos que o trabalho se desenvolve diariamente na Mouraria. Entre Janeiro e Julho de 2011 foram-­‐se “tecendo ligações que respondem com uma complexidade própria e reconfigurativa, e onde a potencialidade das formas de actuação das pessoas e dos lugares se dilata” (site). Ao longo destes meses é desenvolvido um conjunto de acções com o objectivo de criar “encontro entre os artistas e as pessoas que habitam determinado lugar” (Sofia Neuparth em entrevista à Agenda Cultural de Lisboa – Julho/Agosto de 2011, p.65). As “Limpezas Performativas” são um exemplo destas acções. Todas as sexta-­‐feiras, desde Janeiro, que esta acção se desenvolveu num espaço do bairro: desde o Chafariz do Benformoso às Escadinhas da Saúde, passando pelo Largo do Intendente. E depois das limpezas seguiam-­‐se as “Conversas para Nada”, finalizando o dia com um minimicrobaile. Os aventais usados nas Limpezas foram sendo feitos no atelier de costura que a Dona Amália (uma costureira da Mouraria) desenvolve no espaço do c.e.m., permitindo que o rosa e o vermelho marcassem os lugares, enquanto cada pedra da calçada era ensaboada.

Limpezas performativas nas Escadinhas da Saúde (2011)

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Sobre o Pedras d’Água Sofia Neuparth diz que estas acções abrem “a existência das pessoas para um outro nível de qualidade. As pessoas aqui não vivem bem, mas por um momento um gesto quotidiano pode ter um novo significado.” (em entrevista à Agenda Cultural de Lisboa – Julho/Agosto de 2011, p.65). E o seu quotidiano transforma-­‐se quando na sua rua, na sua janela, no seu largo dançam bailarinos estrangeiros e podem sentar-­‐se num pequeno banco a ver. Maria Filomena Molder (2011, p.202) diz que “o que fazem em princípio é dança, mas o modo como fazem dança implica sair do lugar onde se exercitam para se dirigirem a outros lugares que não são lugares quaisquer lugares pelos quais as pessoas passam, param e correm e fazem compras e despedem-­‐se, lugares que são ruas da cidade muito antigas em zonas muito específcas e em muitos casos mais degradadas. (…) Encontram um espaço, um espaço de vida, que contém uma riqueza de formas de vida, tentando traduzir, tentando também embeber-­‐se disso que auscultam, de modo a poder criar um efeito mimético em relação àquilo que se passa, ao dia-­‐a-­‐dia das pessoas”. Todos os anos é possível encontrar eventos diferentes dentro do Pedras d’Água. Este ano (2011) para além de diversas apresentações coreográficas e de uma instalação, foi possível assistir à acção de um artista plástico de São Paulo (Brasil), que desenvolveu um projecto durante três anos na aldeia de Lençóis em que pintou todos os muros da aldeia, e que na Mouraria também veio pintar duas das suas paredes. Também o coro Rosa Velho teve a sua primeira actuação pública. É o trabalho desenvolvido com as pessoas do centro de dia e que partindo da sua própria iniciativa, escreveram a letra e coreografaram o que cantaram. Outra novidade deste festival foi a materialização na exposição “O Lugar das Pessoas”8 das histórias ouvidas e partilhadas todos os dias. No final deste evento foi apresentado o livro “Arte Agora-­‐ Pensamentos Enraizados na Experiência”, organizado por Sofia Neuparth e Christine Greiner.

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“Os últimos 7 anos de trabalho junto das pessoas e lugares do coração de Lisboa têm produzido uma riqueza de documentação tão preciosa que se tornou urgente partilhar alguns desses momentos que nos falam da cidade hoje num lugar onde a proximidade, a vivência quase de aldeia, nos traz possibilidades de reflexão sobre velocidade, urbanismo, turismo, respeito, migrações, sofrimento, auto-estima... No entanto, o risco de transformar um processo relacional tão fino numa montra infinita de materiais em diversos suportes não nos pareceu nem justo nem adequado. Ajuntámo-nos assim com amor em torno de cada movimento e fomos construindo uma paisagem que se abre como uma atmosfera convidando quem visita a mexer e remexer, procurar nos recantos, sentar-se a ouvir, saborear as estórias ou até criar outras. Entrar e mergulhar nas colinas, nas esquinas, nos mistérios, nos cheiros, nas paixões, nas velhices, nos trânsitos, nas mentiras, nas pedras, pareceu-nos um desafio cheio de energia! Abre-se a casa e encontram-se os sons, as imagens, os objectos, os rastos agora documentos. Talvez coisa de criança no sótão…” (Catálogo do Pedras d’Água 2011, 2011).

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“O Lugar das Pessoas” -­‐ Pedras d’Água 2011 Da apresentação destas duas intervenções criativas e, ao mesmo tempo, artísticas que representam dois modos de estar na cidade, importa fazer alguma reflexão sobre a sua importância no território da Mouraria. São duas abordagem muito distintas de pensar o território/espaço /lugar enquanto agente activo nas políticas sócio-­‐culturais e económicas. Neste ambiente socialmente diverso e singular é necessário agir com cuidado e coerência. Para isso é necessário que as políticas criativas sejam integradas numa estratégia geral para toda a cidade, não devendo aparecer pontualmente em situações mais mediáticas. Cada território tem as suas particularidades e por isso necessita de um conhecimento mais aprofundado e diário das necessidades e carências aí existentes. A continuidade dos eventos artísticos e das práticas criativas no mesmo território cria ligações e forma uniões que devem ser preservadas. O envolvimento da população e o seu, verdadeiro, empoderamento pode vir a constituir uma mais valia para o território, atraindo mais criativos ao bairro e desenvolvendo parcerias até aí inexistentes. Também a transformação das relações sociais é uma mais valia para o bairro quando, p.e., o espectador se transforma em artistas e vice-­‐

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versa. Aí, o habitante do lugar sente-­‐se integrado no seu território e os estereótipos e os estigmas podem ser ultrapassados. Referências Passos, G. (2011, pp.125-­‐130), “ Não sei se as galinhas vão ter dentes, mas sei que as palavras vão ter de criar músculos” in Neuparth, S. e Greiner, C. (org.)(2011), Arte Agora. Pensamentos Enraizados na Experiência., Annablume, São Paulo. Molder, M. F. (2011, pp.212), “Uma conversa com Maria Filomena Molder” in Neuparth, S. e Greiner, C. (org.)(2011), Arte Agora. Pensamentos Enraizados na Experiência., Annablume, São Paulo. Lemos, M. e Domingues, L. (coord.) (2011), Corpo – Bússola. Histórias do TOCA., Guide – Artes Gráficas, Lisboa. Neuparth, S. (2011, pp. 7-­‐8), “Antes de Começar” in Neuparth, S. e Greiner, C. (org.)(2011), Arte Agora. Pensamentos Enraizados na Experiência., Annablume, São Paulo. Greiner, C. (2011, pp.9-­‐11), “Sobre a organização do livro” in Neuparth, S. e Greiner, C. (org.)(2011), Arte Agora. Pensamentos Enraizados na Experiência., Annablume, São Paulo. Madalena Victorino (Setembro de 2011, folheto da exposição TODOS) Manuela Júdice (26 de Agosto de 2011) em entrevista à Lusa. Sofia Neuparth em entrevista à Agenda Cultural de Lisboa – Julho/Agosto de 2011, p.65). http://www.c-­‐e-­‐m.org/?p=283 (Projecto IR) http://www.c-­‐e-­‐m.org/?p=971 (Projecto TOCA) http://www.c-­‐e-­‐m.org/?p=955 (Catálogo do Pedras d’Água 2011) http://videos.sapo.pt/lZaoKFQYZaFIVE9uCtEg (Discurso de António Costa em 8 de Setembro de 2011)

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ORGANIZAÇÕES

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André Carmo

“InTerEsse”, DRK, Teatro da Comuna, 2009

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As origens: rumando ao Sul... do Norte Global O GTO LX é uma organização não governamental fundada em outubro de 2005 e, tanto o seu aparecimento como o seu processo de desenvolvimento, entrecruzam-­‐se com a trajectória percorrida pela sua actual directora artística – Gisella Mendoza. O interesse que nutre por assuntos relacionados com a problemática geral do desenvolvimento humano está intimamente relacionado com um conjunto de projectos de cooperação e voluntariado nos quais esteve envolvida na década de 90, ainda enquanto jovem estudante de gestão e cooperação internacional em Berlim. O seu primeiro contacto com o teatro do oprimido9 (TO) dá-­‐se em 1996. À data voluntária numa organização de desenvolvimento (i.e. Carl Duisberg Gesellschaftt), Gisella candidatou-­‐se a um projecto de microcrédito em Cuba, para o qual viria a ser seleccionada. Foi então que, no período preparatório que antecedeu a sua ida, participou numa sessão de trabalho subordinada ao TO. Já no decorrer do estágio, teve também oportunidade de se deslocar à Costa Rica, para colaborar noutro projecto semelhante, e de aí participar numa experiência de aplicação do TO em meios rurais. Depois dessa experiência inicial, o seu percurso foi marcado por uma grande incerteza relativamente ao futuro e ao papel nele reservado para o teatro. Após concluir o curso, no ano 2000, fez um estágio de seis meses na Volkwagen Autoeuropa. O desejo de conhecer o Sul da Europa e a possibilidade de aprender a língua portuguesa foram aspectos que pesaram na sua decisão. Depois, regressou à Alemanha. Mas por pouco tempo. Em 2001, estava de volta a Portugal e começou a trabalhar na Unilever na área da construção e aplicação de indicadores de consumo, algo que em retrospectiva considera interessante mas muito pouco estimulante em termos criativos. Assim, no Verão de 2002, insatisfeita com as características do trabalho que exercia, resolveu fazer um curso de teatro com a duração de três meses. Nessa altura tomou consciência de que aquilo que a atraia no teatro não era o eventual protagonismo ou reconhecimento que este lhe podia dar mas sim o facto deste possibilitar a exploração crítica dos aspectos sociais e políticos mais significativos da vida humana. Assim, com um interesse renovado pelo TO, começou a 9

Método teatral desenvolvido por Augusto Boal durante as décadas de 1960 e 1970.

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estudar a obra de Augusto Boal. A opção estava tomada. Seria o TO que a iria acompanhar no futuro. Nesse mesmo ano conheceu Diogo Mesquita10, que a convidou para viajar até Moçambique. Antes de aceitar a proposta, entrou em contacto com Alvim Cossa, director do GTO Maputo, para saber se existia a possibilidade de se juntar ao seu grupo durante cerca de seis meses. Este demonstrou uma grande abertura e acolheu-­‐a calorosamente. Em Moçambique, Gisella começou por fazer uma formação inicial em Nhambane e depois permaneceu algum tempo numa aldeia remota do interior, onde compreendeu a importância do envolvimento comunitário para que a experiência do TO fosse verdadeiramente significativa. Quando, no final de 2002, voltou a Portugal, desempregada, e com pouco dinheiro no bolso, tomou mais uma vez a decisão de emigrar, desta feita para Amesterdão. Novamente com Diogo, permanecerá um ano na Holanda, após o qual regressou a Portugal. E é assim que em 2003, já com a necessária estabilidade financeira e o desejo de retribuir os conhecimentos e as experiências adquiridas em Moçambique à comunidade africana da região de Lisboa iniciou um périplo por alguns bairros suburbanos para perceber se existiam condições para iniciar o seu trabalho enquanto formadora de TO. Com o apoio inicial da Associação Cultural Moinho da Juventude (ACMJ), que cedeu um espaço para os ensaios, Gisella começou a trabalhar com um grupo de jovens da Cova da Moura e do bairro Estrela de África, ambos na Amadora. Embora tivesse inicialmente havido uma grande adesão, progressivamente, o desinteresse foi-­‐se instalando e o grupo acabou por terminar. No final de 2004 foi convidada para participar no projecto DiverCidade, no âmbito do programa de iniciativa comunitária EQUAL, através do uso do teatro-­‐fórum11 (TF) enquanto instrumento de desenvolvimento comunitário. Aceitou e, durante o ano de 2005, para além dessa participação, desenvolveu trabalho enquanto formadora na ACMJ e deu apoio a um recém criado grupo de Coimbra que utilizava o TO para lidar com um conjunto de problemas associados a contextos prisionais. No final desse ano, o volume de trabalho era já difícil de gerir e tornou-­‐se necessária a criação de uma organização que pudesse dar respostas adequadas. Para além disso, os recursos

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Co-­‐fundador do GTO LX. Actualmente ocupa o cargo de director executivo.

11 Uma das técnicas que constituem o TO, baseada na eliminação das fronteiras existentes entre o palco e a plateia.

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provenientes do EQUAL possibilitavam já o desenvolvimento de uma actividade mais consistente. Foi criado, então, o GTO LX. Territórios e protagonistas: jovens das periferias (sub)urbanas, subam ao palco! O GTO LX tem vindo a dinamizar um conjunto vasto de actividades que ocorrem em diferentes contextos e são desenvolvidas por grupos sociais distintos. Ao longo de quase seis anos de actividade, conseguiu criar grupos de TO em cinco concelhos da região de Lisboa, nomeadamente, Lisboa, Amadora, Moita, Barreiro e Seixal. A maior parte deles é constituida por jovens residentes em bairros suburbanos da região de Lisboa, nos quais a população de origem africana apresenta uma expressão significativa. Vale da Amoreira, Cova da Moura, Zambujal, Bairro 6 de Maio e Arrentela são alguns dos bairros onde existe ou já existiu um grupo de TO. No seu conjunto, configuram a Rede Multiplica (Fig. 1), que traduz a lógica territorial de articulação reticular subjacente à estratégia de desenvolvimento do GTO LX. Figura 1 -­‐ Expressão geográfica da Rede Multiplica na região de Lisboa, 2005-­‐2011

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Hoje, se incluirmos a companhia de teatro do GTO LX, cuja actividade tem um carácter mais irregular, existem seis grupos de TO em actividade na região de Lisboa. A maior parte tem entre cinco a dez participantes regulares, sendo que o número tende a ser menor quando os grupos se encontram estabilizados, e maior se o grupo estiver ainda numa fase inicial do seu processo de desenvolvimento. Com excepção dos grupos Tudo Menos Caspa, que centrava a sua produção teatral nas temáticas relacionadas com o envelhecimento, a solidão e o abandono, Às vezes a gente esquece-­‐se, que colocava o enfoque num conjunto de problemáticas relacionadas com a deficiência e da companhia do GTO LX, que tem trabalhado um conjunto mais amplo e diversificado de temáticas, todos os outros têm manifestado preocupações convergentes e trabalhado temáticas similares (Quadro 1). Os grupos de TO da região de Lisboa têm centrado a sua produção artística em quatro grandes temáticas que se entrecruzam e marcam as vidas daqueles que neles participam. Em primeiro lugar, têm privilegiado os problemas associados ao grupo etário de pertença, nomeadamente, a pressão dos pares, as opções para a vida futura, a adolescência e a sexualidade. Segundo, têm colocado o enfoque sobre aspectos relacionados com a discriminação e o racismo de que são vítimas por serem, na sua grande maioria, jovens de origem africana. Em terceiro lugar, a desigualdade de género, muito associada ao tratamento diferenciado que é dado a rapazes e raparigas pelas suas famílias. Por último, os problemas inextricavelmente associados aos contextos geográficos que servem de referência para a construção dos espetáculos de teatro. Assim, enquanto os grupos comunitários tendem a focar aspectos que caracterizam os bairros de onde são oriundos, como por exemplo, a imagem negativa, a marginalização e estigmatização, os grupos escolares, privilegiam um conjunto de aspectos associados ao ambiente escolar, como por exemplo, as relações que se estabelecem entre professores e alunos e o bullying. Para além dos grupos da região de Lisboa, a Rede Multiplica inclui também o grupo Depois dos Entas, sedeado na Casa do Povo da Fajã de Baixo em São Miguel, Açores. Criado em 2008, no âmbito do EQUAL, o grupo conta com dois espetáculos realizados que incidem sobre a temática geral do envelhecimento e alguns dos problemas que lhe estão associados. A C R I A T I V I D A D E U R B A N A N A R E G I Ã O D E L I S B O A – C A S E S T U D I E S

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Quadro 1 – Mapa sinóptico da Rede Multiplica na região de Lisboa, 2005-­‐2011 Lugar

Grupo(s) TO

Participantes

Grupos escolares

30 jovens

Bip/Zip

15 jovens

GTF Arrentela

30 jovens

Alta de Lisboa

Arrentela

Bairro 6 de Maio

Realidade Riba Palco

8 jovens

Temáticas Pressão dos pares, relação aluno-­‐professor, bullying, família, -­‐

Estimatização territorial, discriminação racial, igualdade de oportunidades

Discriminação e marginalização do bairro Igualdade de género, adolescência, pressão dos pares,

Duração 2009-­‐2010 Início em 2011 2008 Reinício em 2011 2010-­‐ actualidade

Bairro dos Lóios

Vários

30 jovens

Cidade Sol

GTF Cidade Sol

10 jovens

Discriminação racial na comunidade escolar

2010-­‐2011

Cova da Moura

Doutores de Rua

8 jovens

Racismo, estigmatização territorial

2006-­‐2008

Cova da Moura e Zambujal

Drogas, igualdade de oportunidades, opções dos 12

DRK

Nova Às vezes a gente esquece-­‐se

Lisboa

Olivais

Picheleira

Vale da Amoreira

10 jovens

jovens, dinheiro, igualdade de género, discriminação, abandono escolar, identidade

A Malta da Horta

Horta Nova

consumo de alcoól

Companhia GTO LX

5 jovens

Imagem do bairro, sentimento de pertença e relações de vizinhança

2008-­‐2011

2008-­‐ actualidade

2010-­‐2011

10 adultos portadores de

Discriminação médica, relações familiares, sexualidade

2008-­‐2010

deficiência Envelhecimento, questões de género, família, 8 adultos

interculturalidade, imigração, diversidade cultural, discriminação, identidade, racismo

2007-­‐ actualidade

Pressão dos pares, relações familiares, ambiente

Ano lectivo

escolar

2007/08

10 idosos

Envelhecimento, solidão, abandono

2009-­‐2011

ValArt

9 jovens

Sexualidade, adolescência, igualdade de género

Keritearte

6 jovens

Estigmatização territorial, discriminação racial

Grupos escolares

25 jovens

Grupos escolares Tudo Menos Caspa

20 jovens

Zambujal

2008-­‐ actualidade 2006-­‐2008

Pressão dos pares, relações familiares, bullying,

Ano lectivo

ambiente escolar

2007/08

12

Fundado em 2008, os DRK resultam da fusão dos grupos Doutores de Rua (Cova da Moura) e Keritearte (Zambujal).

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O GTO LX na actualidade O GTO LX é uma organização relativamente pequena no que respeita ao número de trabalhadores, integrando actualmente oito pessoas: quatro técnicos em regime full-­‐ time, dois multiplicadores em part-­‐time, e duas estagiárias, uma em full-­‐time e outra em part-­‐time. Não obstante, se contabilizarmos todos aqueles que já participaram nos grupos da região de Lisboa, o número ascende mais de duas centenas de pessoas. Funciona simultaneamente enquanto companhia autónoma de TO e nó central da Rede Multiplica. Por um lado, contribui para a criação e consolidação de grupos de TO, ou seja, para a densificação da rede e para a promoção da sustentabilidade e autonomia dos grupos que a constituem. Por outro lado, monitoriza o trabalho de cada um dos grupos, acompanhando as actividades que desenvolvem, e promove a realização de encontros e outros eventos nos quais os participantes podem trocar experiências e enriquecer o seu próprio trabalho. Pese embora o facto de uma parte substancial do seu financiamento ter origem em apoios públicos (Quadro 2), o GTO LX preserva uma grande autonomia. À semelhança de outras entidades da sociedade civil, ou do chamado terceiro sector, o seu modelo de gestão apresenta características híbridas pois, por um lado, os recursos financeiros são simultaneamente provenientes de receitas próprias e fundos públicos, por outro, ao nível do estabelecimento de parcerias, a Rede Multiplica constrói-­‐se com base no tecido institucional e associativo de base local com o qual se articula. No cômputo geral, aproximadamente 40% das receitas do GTO LX provêm da venda de espetáculos, formações e prestações de serviços, e cerca de 60% de um leque diversificado de programas e instituições de financiamento, merecendo particular destaque, pela continuidade e importância para a organização, os financiamentos provenientes do EQUAL e, mais recentemente, do POPH-­‐QREN.

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Quadro 2 – Financiamento e parcerias da Rede Multiplica, 2005-­‐2011 Lugar

Grupo(s) TO Grupos escolares

Alta de Lisboa

Bip/Zip

Arrentela

GTF Arrentela

Bairro 6 de Maio

Realidade Riba Palco

Bairro dos Lóios

Vários

Cidade Sol

GTF Cidade Sol

Cova da Moura

Doutores de Rua

Cova da Moura e Zambujal

GEBALIS Programa Bip/Zip Câmara Municipal de Lisboa (CML) 2008: Associação Cultural Khapaz 2011: QREN Até 2011: Centro Social 6 de Maio 2011: POPH-­‐QREN Santa Casa Misericórdia de Lisboa (SCML) Programa CLDS Barreiro (Segurança Social) EQUAL 2008-­‐09: EQUAL

DRK

2009-­‐actualidade: CIG,POPH-­‐QREN, ACIDI

A Malta da Horta Horta Nova

Financiamento

CML, K’Cidade

Khapaz, CM Seixal

Centro Social 6 de Maio

SCML, CDC do Bairro dos Lóios

EB2.3 Santo António da Charneca Associação Cultural Moinho da Juventude ESTC da Amadora, Associação Cultural Moinho da Juventude

PROACT (ISCTE), APOD, JF Carnide

Às vezes a gente

Grupo de Acção Comunitária Fórum

Grupo de Acção Comunitária -­‐ Fórum sócio-­‐ ocupacional Sol Nascente

esquece-­‐se

sócio-­‐ocupacional Sol Nascente

GTO LX

GTO LX

Olivais

Grupos escolares

ACIDI (Pátios Interculturais)

Picheleira

Tudo Menos Caspa

GEBALIS 2008-­‐09: EQUAL

ValArt

2009-­‐actualidade: CIG, POPH-­‐QREN, ACIDI, IPJ

Zambujal

Escola D. José I; K’Cidade; APEAL

GEBALIS

Nova

Lisboa

Vale da Amoreira

Parcerias

Keritearte

EQUAL

Grupos escolares

ACIDI (Pátios Interculturais)

-­‐ EB 2.3 Almeida Garrett (Amadora), ACIDI, JF Buraca, JF St. Maria dos Olivais Médicos do Mundo ES Baixa da Banheira, CEA do VA, Iniciativa Bairros Críticos, CM Moita, Fórum José Manuel Figueiredo, RUMO, Associação Positivo, EB1/JI Nº1 do VA Associação Cultural Moinho da Juventude EB 2.3 Almeida Garrett (Amadora), ACIDI, JF Buraca, JF St. Maria dos Olivais

Visto que para o TO o espaço onde decorrem os espetáculos é um aspecto importante, importa também dizer que as actividades desenvolvidas pelo GTO LX e pela Rede Multiplica ocorrem, fundamentalmente, em três tipos de espaços. Para os ensaios são disponibilizados, por diferentes entidades (ex: ESTC da Amadora, EB1/JI do Vale da Amoreira), salas que podem ou não estar preparadas para performances teatrais. Por vezes, os espetáculos ocorrem nesses mesmos espaços mas, normalmente, têm lugar em salas disponibilizadas pelas instituições que acolhem os

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grupos de TO. Também neste caso, nem sempre as salas possuem as condições mais adequadas à realização de espetáculos (Fig. 2). Figura 2 – “Sonhos? Tente mais tarde!”, DRK, Escola Profissional Gustave Eiffel, 2011

Adicionalmente, existem também espetáculos realizados no âmbito de festivais, digressões e outros eventos, menos frequentes, que acontecem em salas de espetáculos propriamente ditas (ex: Teatro Municipal São Luiz, Teatro “A Barraca”, Fórum Cultural José Manuel Figueiredo) (Fig. 3). Finalmente, a partir do segundo semestre de 2011, os DRK têm vindo a realizar alguns espetáculos em espaço público, ou seja, em praças, largos e ruas do concelho da Amadora. O que faz o GTO LX? O GTO LX é responsável pela dinamização de quatro tipos de actividades: i) ensaios; ii) espetáculos; iii) formações; iv) festivais (Fig. 4).

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Figura 4 – Actividades desenvolvidas pelo GTO LX, 2011

Em regra, os grupos têm 3h de ensaio por semana. Os dois grupos mais consolidados (i.e. DRK e ValArt) têm normalmente 6h de ensaios semanais, embora por vezes sejam realizadas sessões extra de preparação para determinados eventos. No biénio 2009/2010, foram efectuados 125 espetáculos, totalizando cerca de 7000 espectadores. Tão ou mais importante é o número de total intervenções de TF (405) que traduz, entre outras coisas, a dinâmica que se estabelece entre a plateia e os actores bem como o interesse que o espetáculo suscita nos espetadores. O GTO LX é também responsável por diferentes tipos de formação em TO. Acções de sensibilização, que consistem em sessões de trabalho com a duração de 4h nas quais são trabalhadas algumas noções básicas de TO, sobretudo a técnica de TF, e têm como destinatários, pessoas inseridas (formal ou informalmente) em instituições públicas interessadas na experimentação do método do TO. Formação inicial em TF, na qual os participantes aprendem durante um período de 17h, os conceitos e princípios subjacentes ao TO, aplicando-­‐os através da experimentação da técnica do TF, e é dirigida a técnicos sociais, activistas, dinamizadores de grupos, professores, e todos aqueles interessados em utilizar o teatro como ferramenta de discussão e transformação social. Formação avançada nas técnicas do TF, que consiste num

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aprofundamento da formação anterior, explorando, num período de 21h, as componentes política e estética do processo criativo bem como o papel desempenhado pelo curinga13. Por último, o GTO LX oferece também uma formação de 21h direccionada especificamente para curingas, centrada no desenvolvimento das competências necessárias à construção do diálogo colectivo entre a plateia e o público, ou seja, na dinamização do processo de transformação dos espectadores em “espect-­‐actores”. Contrariamente aos primeiros, estes dois últimos tipos de formação exigem alguma familiaridade com o TO. Para além das formações ministradas pelo GTO LX, o grupo ValArt tem sido também responsável pela realização de sessões de formação em sexualidade, dirigida estudantes do ensino básico e secundário, em algumas escolas do concelho da Moita. Por último, o GTO LX tem vindo também a organizar alguns festivais que visam dar a conhecer o TO a um público mais alargado, contribuindo assim para a disseminação deste método teatral. Destacam-­‐se o mini-­‐ festival comunitário de TF realizado na Cova da Moura em 2007, que atraiu cerca de 200 pessoas, muitas delas não residentes no bairro e o festival internacional de TO, inserido no projecto A Escola Intercultural realizado no início de 2011 no Goethe-­‐ Institut que teve a duração de quatro dias e atraiu cerca de 300 pessoas. Quadros-­‐síntese das actividades GTO LX 2011 Identificação

Ensaios

Responsáveis

Gisella Mendoza, Reginaldo Spínola, Cassandra Tavares, Gisela Patrícia

Periodicidade

Semanal

Participantes

Aproximadamente 135 actores

Público-­‐alvo

Grupos de TO

Identificação

Espetáculos

Responsáveis

Gisella Mendoza, Grupos de TO, Parceiros

Periodicidade

Bi-­‐mensal

Participantes

Aproximadamente 1000 espectadores

Público-­‐alvo

Sobretudo jovens

13

Elemento do grupo de TO responsável pela facilitação e moderação do TF bem como pela intermediação da relação entre o palco e a plateia.

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14

Identificação

Formações

Responsáveis

GTO LX (TO), ValArt (Sexualidade)

Periodicidade

Trimestral

Participantes

Aproximadamente 250 formandos

Público-­‐alvo

Organizações, técnicos sociais, activistas, dinamizadores de grupos, professores, alunos do ensino básico e secundário

15

Identificação

Festivais

Responsáveis

GTO LX, Parceiros

Periodicidade

Anual

Participantes

Aproximadamente 1500 espectadores

Público-­‐alvo

Diversificado

Momentos que o tempo não apaga... Na ainda relativamente curta história do GTO LX, é possível identificar três acontecimentos particularemente relevantes para a percurso que tem vindo a trilhar. Em primeiro lugar, a organização do já referido mini-­‐festival comunitário de TF na Cova da Moura, em 2007. Este evento foi importante porque contribuiu para tornar mais porosas as fronteiras simbólicas (e materiais) que separam esse lugar concreto do seu entorno. A criação de um espaço performativo que permite o contacto entre pessoas externas ao bairro e a comunidade que nele habita, favorece a reconstrução da alteridade em torno de linhas mais igualitárias. Por outro lado, foi também muito importante, a possibilidade de, em 2009, o GTO LX passar a ter instalações próprias, num edifício localizado na zona do Cais do Sodré. Estas, contribuiram para tornar mais ágil e coordenada a gestão da organização, dando também uma imagem de maior profissionalismo. Por último, o supracitado festival internacional de TO revelou-­‐ se também de grande importância pois, por um lado, contribuiu para fortalecer as ligações com grupos estrangeiros de TO, conhecer outras realidades, práticas e especificidades metodológicas, possibilitando contactos interculturais entre jovens. 14

Dados referentes ao ano de 2010. Dados referentes ao período 2007-­‐2011.

15

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Por outro lado, serviu também para relembrar a necessidade de fortalecer a essência comunitária do TO, na medida em que as experiências trazidas pelos diferentes grupos estrangeiros traduziram um profundo enraizamento nas comunidades onde desenvolvem o seu trabalho. GTO LX, transformando os palcos da vida Entre 2005 e 2011 o GTO LX e os grupos da Rede Multiplica conseguiram já obter, em vários domínios, um conjunto de resultados interessantes. Em 2008, no âmbito do evento Projectar um Novo Futuro / Powering a New Future, em que se fez o balanço de oito anos do EQUAL, a atribuição de uma menção honrosa ao projecto DiverCidade, no qual o GTO LX era responsável pelo empowerment comunitário através da técnica do TF, contribuiu para tornar mais visível o trabalho que até então tinha sido desenvolvido pela organização. Por outro lado, o número crescente de espetáculos e “espect-­‐actores” traduz não só o alargamento da Rede Multiplica mas também o crescente número de solicitações por parte de diferentes entidades públicas e/ou privadas. Paralelamente, a comunicação social tem vindo também a demonstrar interesse pelo trabalho desenvolvido pela organização através da realização de algumas entrevistas com a sua directora artística e com alguns dos jovens participantes nos grupos de TO. A realização de um projecto de investigação16 que tem o GTO LX como caso de estudo, bem como o acompanhamento dos DRK por parte de uma fotógrafa também assinalam um crescente interesse no trabalho da organização. Ao nível da integração social, algumas das maiores conquistas ao longo destes seis anos de trabalho foram o desenvolvimento da consciência crítica dos jovens membros dos grupos, o estímulo à sua intervenção cívica e política através das artes, o auto-­‐reconhecimento de que através do desenvolvimento de uma cidadania activa podem contribuir para a transformação social e também para uma maior compreensão dos problemas que marcam o quotidiano dos bairros onde residem. Através do trabalho desenvolvido no GTO LX, os membros dos grupos de TO tornam-­‐ se participantes activos das suas comunidades. O trabalho pedagógico do GTO LX

16

Projecto intitulado Geografia(s) do Teatro do Oprimido: o caso do GTO LX, André Carmo, IGOT-UL.

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contribuiu para que três jovens que haviam abandonado a escola precocemente, tomassem a decisão de retomar os seus estudos em áreas relacionadas com a cultura e as artes (i.e. representação, cenografia e desenho de moda). Tem também promovido o desenvolvimento de processos de aprendizagem informal pois a criação e preparação dos espetáculos exige dos jovens que estes reflictam colectivamente em torno das temáticas abordadas, para problematizar as questões que decidem abordar. Para além disso, a técnica do TF visa a abertura de canais de comunicação dialógica que são, em si mesmos, constitutivos de processos mais vastos de aprendizagem. No caso específico do trabalho desenvolvido pelo grupo ValArt ao nível da formação em sexualidade, têm sido realizadas com alguma regularidade sessões de esclarecimento, dirigidas por técnicos e especialistas, sobre alguns aspectos considerados relevantes, designadamente, violência conjugal, homossexualidade e gravidez na adolescência. No seguimento deste trabalho, dois dos membros dos ValArt adquiriram a certificação de aptidão pedagógica em sexualidade. O GTO LX tem também desempenhado o papel de intermediário entre os jovens artistas e o mercado de trabalho, contribuindo para que dois deles tenham já participado em longas-­‐ metragens (ex: Amor de Perdição, A Esperança Está onde Menos se Espera). Paralelamente, tem incorporado nos seus quadros alguns dos jovens pertencentes aos grupos de TO como estagiários e/ou multiplicadores, fazendo com que estes adquiram competências profissionais ao nível do trabalho administrativo e da gestão organizacional. Enquanto organização responsável pela dinamização de teatro em territórios desfavorecidos e adversos, o GTO LX pode ser compreendido enquanto experiência socialmente inovadora a vários níveis, alguns dos quais já referidos anteriormente. Merece particular destaque, no entanto, o facto de contribuir para a promoção da auto-­‐estima dos participantes, através do reconhecimento social das actividades que desenvolvem e de lhes dar a oportunidade de entrarem em contacto com realidades completamente distintas daquelas a que estão habituados, não só através da participação em eventos internacionais (ex: Palestina, Senegal, Croácia, Brasil), mas também através da cooperação com outras instituições e associações.

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De Lisboa para o Mundo, a internacionalização do GTO LX O processo de criação de relações internacionais do GTO LX tem início em 2006, pouco tempo depois da sua fundação, com a vinda a Portugal de Alvim Cossa, do GTO Maputo, que contribuiu para o início das actividades da organização. Em 2008, existindo já uma estratégia consciente de fortalecimento das redes internacionais, foi importante a visita de Adrian Jackson, director artístico e CEO do principal grupo de TF do Reino Unido (i.e. Cardboard Citizens). A oportunidade de aprender novos métodos e técnicas, sobretudo ao nível da curingagem, revelou-­‐se muito valiosa para o GTO LX. Em 2009, vendo reconhecido o trabalho até então desenvolvido, a organização é convidada pelo CTO-­‐Rio para participar na conferência internacional de TO. Desde então, têm sido feitos esforços no sentido da internacionalização com a participação em festivais e outros eventos internacionais, como por exemplo, o Festival Internacional de Artes Negras, Senegal (2010); o Pula Fórum – The Opressed Theater Festival, Croácia (2011) e o projecto “Creative Links for Peace”, financiado pela fundação Anna Lindh, no âmbito do qual os DRK viajaram até à Palestina (2011). No final de 2011 irá iniciar-­‐se um projecto de formação contínua no qual o GTO LX irá colaborar, durante pelo menos um ano, com grupos de TO oriundos da Croácia, Inglaterra e Alemanha.

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André Carmo

Actividades desenvolvidas pelo Tocá Rufar, 2011

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As origens: o renascer de uma tradição As origens do projecto Tocá Rufar remontam ao ano de 1996. Nesse ano, Rui Júnior, foi convidado no âmbito da Expo’ 98 a criar um espetáculo de percussão baseado na rítmica tradicional portuguesa e no instrumento bombo. Após a exposição o projecto permaneceu vivo e, a 28 de Maio de 1999, constituiu-­‐se como associação A.D.A.T – Associação dos Amigos do Tocá Rufar. As ligações do criador do projecto ao mundo musical são, no entanto, anteriores. Após um primeiro contacto com a percussão ainda durante a infância, é somente depois, enquanto emigrante na Bélgica, que a paixão de Rui Júnior por este género musical se desenvolve. A oportunidade de aprender diferentes métodos e técnicas de percussão com dois “mestres” estrangeiros (i.e. Mustapha El Iraki e Lou McConnel), durante um período de aproximadamente dois anos, levaram-­‐no a enveredar definitivamente pela carreira musical. Assim, quando em 1981 regressa a Portugal, rapidamente se torna um dos mais solicitados percurssionistas do panorama musical português. Colaborando com artistas tão prestigiados como Júlio Pereira, Zeca Afonso, Fausto, Janita Salomé, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Vitorino, Jorge Palma, Amélia Muge, António Pinho Vargas, entre outros, Rui Júnior viria também a formar um grupo de percussão – o Ó que Som Tem?. A sua ascensão meteórica ao longo da década de 80 viria, no entanto, a chegar ao fim no início dos anos 90. Um período bastante conturbado da sua vida pessoal levou-­‐o a abandonar a música. Felizmente, na segunda metade da década regressou ao activo, e foi durante esse período que viria a ser convidado para protagonizar uma das performances mais originais e marcantes da Expo’ 98. Desde 1996 até à actualidade, o projecto que dirige tem apresentado uma trajectória de cada vez maior notoriedade e reconhecimento públicos, sendo o grande responsável pelo aumento do número de grupos de bombos e orquestras de percussão tradicional portuguesa. Tem também demonstrado uma assinalável resiliência pois apesar dos efeitos da actual crise económica e de, no dia 1 de Março de 2011, a sede do projecto A C R I A T I V I D A D E U R B A N A N A R E G I Ã O D E L I S B O A – C A S E S T U D I E S

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(i.e. TamborQFala), ter sofrido um incêndio responsável pela destruição do património acumulado ao longo de 14 anos de actividade, as diferentes actividades prosseguiram. É certo que se verificou uma reestruturação do projecto, devido às perdas e a toda a turbulência causada por esses acontecimentos. Não obstante, o Tocá Rufar parece ter sido capaz de se reconfigurar sem comprometer os três principíos identitários que norteiam o seu funcionamento, nomeadamente: i) independência e laicidade, empenhado que está no respeito pelos direitos do ser humano, da igualdade e da justiça; ii) internacionalismo, defendendo os valores universais da solidariedade e igualdade e ultrapassando as fronteiras dos nacionalismos e sectarismo; iii) humanismo e ambientalismo, pois coloca o enfoque sobre as necessidades humanas e ambientais em oposição aos caminhos de procura do lucro. Ao fazê-­‐lo, procura assegurar a sua sustentabilidade enquanto projecto de formação artística e cultural com uma importante vertente social. Territórios e protagonistas: Margem Sul a bombar! O Tocá Rufar desenvolve um vasto conjunto de actividades que procura incluir pessoas de todas as idades, géneros e origens sociais e étnicas. Não obstante, apesar do perfil social dos participantes ser bastante diversificado, a maior parte dos rufinas17 são jovens, fruto da estratégia desenvolvida, fortemente baseada no trabalho desenvolvido junto de escolas do ensino básico. Algumas delas, encontram-­‐se localizadas em territórios desfavorecidos (ex: Vale da Amoreira, Fonte da Prata), pelo que existe a possibilidade de uma parte dos participantes poderem, efectivamente, pertencer a populações em risco de exclusão (Quadro 1).

17

Designação que é dada a todos os inscritos no Tocá Rufar.

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Quadro 1 – Oficinas Tocá Rufar, 2010 Concelho

Seixal

Moita

Escola EB1 do Miratejo EB1 José Afonso EB1 Nossa Senhora do Monte Sião EB1 Quinta da Medideira EB1 Quinta de Santo António EB1 Quinta dos Morgados EB2.3 da Cruz de Pau EB2.3 Nun’Alvares EB1 Alhos Vedros Nº2 EB1 Baixa da Banheira Nº2 EB1 Baixa da Banheira Nº3 EB1 Baixa da Banheira Nº4 EB1 Barra Cheia EB1 da Moita Nº1 EB1 do Gaio EB1 Fonte da Prata EB1 Vale da Amoreira Nº1 EB1 Vale da Amoreira Nº2 EB2.3 Vale da Amoreira

Nº Oficinas

Formandos

143

508

95

488

Apesar de concentrar a maior parte das suas actividades ao nível da formação em apenas dois concelhos da margem sul da região de Lisboa (i.e. Seixal e Moita), no que toca à realização de espetáculos, nomeadamente, aqueles conduzidos pela Orquestra Tocá Rufar18, o quadro altera-­‐se substancialmente. Nesse caso, a amplitude geográfica do projecto aumenta, passando o projecto a fazer-­‐se sentir em 12 concelhos de portugal continental, embora continue a verificar-­‐se uma grande concentração destas actividades na região de Lisboa (Fig. 1). Somente sete dos 100 espetáculos realizados até Agosto de 2011 não ocorreram na região de Lisboa. Assim, de um total de 63 000 espectadores, apenas cerca de 9 000 assistiram a espetáculos realizados fora da região de Lisboa.

18

Designação do grupo formado pelos alunos de percussão tradicional portuguesa do projecto do Tocá Rufar de cujo trabalho resultam os espectáculos da Orquestra Tocá Rufar.

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Figura 1 – Expressão geográfica dos espetáculos da Orquestra do Tocá Rufar, 2011

O projecto Tocá Rufar na actualidade Enquanto projecto multifacetado, o Tocá Rufar encontra-­‐se sob a alçada da A.D.A.T, desde 1999. A criação da associação, resulta da necessidade sentida por Rui Júnior de dar continuidade ao trabalho desenvolvido a partir de 1996 com vista à produção do espetáculo preparado para a Expo’ 98. Os inúmeros recursos humanos e financeiros

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mobilizados para esse fim, não poderiam apenas desaparecer de um dia para o outro. Era necessário criar uma estrutura que pudesse dar um novo impulso ao trabalho inicial. Assim, Rui Júnior, que é hoje presidente da direcção da A.D.A.T, foi também responsável pela sua formação inicial, tendo para o efeito recrutado pessoas da sua inteira confiança. De há alguns anos a esta parte, o projecto, tem vindo a investir na qualificação e especialização dos seus quadros. Paralelamente, introduziu também novos modelos de funcionamento e procedimentos, com vista ao aumento dos níveis de produtividade. A equipa permanente do Tocá Rufar é composta por 10 elementos, auxiliados por colaboradores pontuais e por um grande número de voluntários. A maior parte da equipa permanente faz também parte da direcção da A.D.A.T, que conta hoje com pouco mais de uma dezena de membros. A progressiva redução do número de pessoas envolvidas no Tocá Rufar tem não só a ver com opções de estratégia administrativa mas também com as crescentes dificuldades sentidas ao nível da gestão. Entende-­‐se que uma equipa de trabalho de pequena dimensão é mais facilmente gerível, contribuindo também para uma maior produtividade. Não menos importante é o facto de libertar também mais tempo para o objectivo principal do projecto que é a criação artística e cultural. Ao longo dos anos, o Tocá Rufar construiu uma rede de parcerias bastante diversificada, assumindo particular destaque o papel desempenhado pelas Câmaras Municipais do Seixal e da Moita. Estas, têm contribuido fortemente para a sustentabilidade do projecto nos territórios que administram (Quadro 2). As actividades do Tocá Rufar distribuem-­‐se por vários espaços diferentes. Até há pouco tempo atrás, o TamborQFala funcionava enquanto pólo aglutinador. Entre outras funções, servia de sede, local de ensaio, sala de espetáculos, restaurante, bar e sala de acolhimento. Desempenhava, por isso, um papel muito importante para o projecto. Uma oportunidade para o seu futuro desenvolvimento. Com o incêndio ocorrido no início de 2011, o Tocá Rufar foi forçado a mudar a localização da sua sede. A Câmara Municipal do Seixal cedeu, por um período de um ano, o edíficio A Maceta, localizado na freguesia do Seixal. Esta mudança teve importante implicações nas actividades desenvolvidas. Por exemplo, os ensaios da Orquestra Tocá Rufar, bem como alguns dos espetáculos que antes seriam realizados no TamborQFala, ocorrem hoje em espaços públicos do concelho do Seixal. Por outro lado, também ao nível do A C R I A T I V I D A D E U R B A N A N A R E G I Ã O D E L I S B O A – C A S E S T U D I E S

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equipamento, o incêndio teve consequências desastrosas. No total, perderam-­‐se cerca de 8 000 instrumentos musicais, computadores, milhares de horas de registos áudio , meia centena de registos vídeo, todo o histórico das actividades, bem como dezenas de instrumentos únicos e insubstituíveis. Ao nível da autonomia financeira, o incêndio também teve repercussões importantes. Enquanto antes, aproximadamente 90% do financiamento provinha de receitas próprias (espetáculos, formações, e outras actividades comerciais), hoje, as estimativas apontam para um valor que não ultrapassa os 50%. O restante, resulta dos protocolos assinados com a DGArtes e as Câmaras Municipais do Seixal e da Moita. Quadro 2 – Mapa sinóptico das parcerias Tocá Rufar, 2010 Entidades Ministério da Cultura/Direcção-­‐Geral das Artes

Câmara Municipal do Seixal

Junta de Freguesia do Seixal

Câmara Municipal da Moita

Pousadas da Juventude Quaternaire Portugal Nestlé PT SHOWBIZ – António Marques Produções Pedro Rua

Tipo de relacionamento Presta apoio directo através do regime Bienal para Entidades Mistas. Contribui com uma verba e cedência do autocarro de transporte para os ensaios da Orquestra do Seixal e, em contrapartida, o Tocá Rufar desenvolve oficinas em escolas do Seixal, realiza gratuitamente espectáculos para o Município e animações nas escolas e dá vida a um projecto de formação no âmbito da Orquestra do Seixal. Sempre que o departamento de Turismo da Câmara Municipal do Seixal desenvolve acções de promoção e divulgação do turismo do Seixal (ex: BTL – Feira de Turismo de Lisboa ou NAUTICAMPO), convida o Tocá Rufar a apresentar-­‐se e expor material informativo e promocional. Em contrapartida, a Orquestra anima gratuitamente esses eventos. É parceira deste 1997 e presentemente acolhe o projecto Tocá Rufar. Em parceria com o Projecto Bairros Críticos contribui com uma verba e, em contrapartida, o Tocá Rufar desenvolve oficinas em escolas da Moita, realiza gratuitamente espectáculos para o Município e animações nas escolas e dá vida a um projecto de formação no âmbito da Orquestra da Moita, no Espaço Pé de Vento, no Vale da Amoreira. Cede alojamento e, em contrapartida, o Tocá Rufar realiza gratuitamente espectáculos da Orquestra para animação de eventos e cerimónias. Cede gratuitamente ao Tocá Rufar serviços de consultadoria. Em contrapartida o Tocá Rufar disponibiliza-­‐se como “case study”. Contribui com uma verba, fornecimento de máquinas de água e garrafões de água durante 4 anos em troca da criação e produção de um vídeo institucional para a empresa, da responsabilidade do Tocá Rufar. Cede material áudio e de iluminação e, em contrapartida, o Tocá Rufar faz promoção à empresa e cede o espaço TamborQFala para desenvolvimento de projectos artísticos. Director técnico e consultor do Tocá Rufar, responsável pela aquisição de material técnico e, em contrapartida, é-­‐lhe cedido o espaço TamborQFala e o material técnico Tocá Rufar.

O que faz o Tocá Rufar? As actividades desenvolvidas pelo Tocá Rufar podem ser agrupadas em quatro grandes domínios: i) formação; ii) espetáculos; iii) produções; iv) loja de ritmo (Fig. 2). O projecto oferece cinco tipos diferentes de formações. Em primeiro lugar, aquela que

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é realizada no âmbito da Orquestra Tocá Rufar19, que actualmente compreende alunos com idades entre os 5 e os 60 anos, embora esteja aberta a todos e seja gratuita. Em segundo lugar, a formação no âmbito da Companhia de Música Tocá Rufar20 que compreende alunos com idades entre os 12 e os 50 anos, aberta a todos os tocadores da Orquestra Tocá Rufar de nível médio e avançado e igualmente gratuita. Em terceiro lugar, as oficinas Tocá Rufar nas escolas do ensino básico, em vigor nos municípios do Seixal e da Moita, que complementam o ensino formal, oferecendo formação em percussão tradicional portuguesa aos alunos do 1º, 2º e 3º ciclos, de forma gratuita, com uma periodicidade semanal e/ou quinzenal. Em quarto lugar, a formação de formadores, centrada nos vários aspectos associados à implementação e gestão de projectos e orquestras de percussão tradicional portuguesa, nomeadamente, gestão cultural, suporte financeiro e fontes de financiamento, cultura organizacional, comunicação e marketing, recursos humanos, entre outros. Por último, as acções de team-­‐building, através das quais o Tocá Rufar propõe um modelo de formação adequado ao mundo empresarial, centrado no desenvolvimento de competências ao nível do trabalho em equipa e da gestão do tempo. De há sete anos a esta parte, ao nível das produções, o Tocá Rufar produz o Festival Internacional de Percussão Portugal a Rufar (PAR). Aos fins-­‐de-­‐semana, durante o mês de Maio, são realizadas oficinas abertas e concertos ao livre. No último domingo do mês, celebra-­‐se o Dia do Bombo e realiza-­‐se um desfile com quase 1500 tocadores de todo o país21. Para além disso, colabora há mais de uma década na produção do Festival Musidanças que tem como missão promover e incentivar o trabalho dos artistas de origem portuguesa, angolana, brasileira, moçambicana, cabo-­‐verdiana, são-­‐tomense, guineense e timorense. Por último, após o incêndio que destruiu por completo o TamborQFala, e tendo como grande objectivo a recuperação geral do 19

Designação do grupo formado pelos alunos de percussão tradicional portuguesa do projecto do Tocá Rufar de cujo trabalho resultam os espectáculos da Orquestra Tocá Rufar. 20 Designação do grupo formado pelos alunos do projecto do Tocá Rufar de cujo trabalho resultam os espectáculos: Bidonmania e Wok – Ritmo Avassalador. 21 Na edição de 2011 do Festival Portugal a Rufar participaram os seguintes grupos: alunos das oficinas Tocá Rufar nas escolas da Moita e do Seixal; Bardoada -­‐ Pinhal Novo; Batucando – Montijo; Bomb' alen – Elvas; Bomboémia – Braga; Bombom -­‐ Peso da Régua; Bunga' ritmo – Cascais; Família Lopes – Lordelo; Eclodir Azul – Loures; Figueiras na Rua -­‐ Antas de Rubiães; Gigabombos do Imaginário – Évora; Grupo de Bombos de Santa Maria do Magoito – Sintra; Grupo de Percussão da EB2.3 Maceda; Imparáveis de Paços de Ferreira; Percutunes – Tunes; Pestinhas – Lordelo; Ribombar -­‐ Torres Vedras; Ritmus, Instituto Jacob Rodrigues – Lisboa; Rufus & Circus e Sempr' a Bombar -­‐ Santa Maria da Feira; Terranova – Leiria; Toca a Bombar Pavia; Tocá Rufar – Seixal.

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projecto, iniciou-­‐se a Campanha Vidas Tocadas que contempla inúmeras acções (ex: concertos, digressão nacional, acções de marketing, realização de filmes temáticos, edições) e abarca todo o território nacional e estrangeiro. Ao nível dos espetáculos, o Tocá Rufar tem activos quatro projectos artísticos distintos, embora a percussão tradicional portuguesa seja transversal a todos eles. Assim, os espetáculos mais emblemáticos do projecto são os desenvolvidos pela Orquestra Tocá Rufar, fruto de um investimento de mais de uma década na formação musical gratuita de crianças, jovens e adultos. Figura 3 – WOK-­‐Ritmo Avassalador

Adicionalmente, o espetáculo WOK – Ritmo Avassalador, visa renovar, de forma criativa e original, os instrumentos, ritmos e danças oriundos do imaginário tradicional português (Fig. 3). Por seu turno, o espetáculo Bidonmania, adapta as peças originalmente concebidas para serem tocadas pela Orquestra Tocá Rufar, para um outro formato, conferindo-­‐lhe uma sonoridade e estética mais urbanas. Por fim, Rui Júnior e o Ó que Som Tem?, continuam o trabalho de criação e reinvenção da percussão portuguesa, iniciado na década de 1980, fazendo espetáculos um pouco por todo o país. Por último, loja de ritmo, é a designação atribuída a um conjunto de

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actividades de natureza complementar, congregando, por um lado, os pontos de ritmo, ou seja, os terminais de comunicação e venda de instrumentos, merchandising e edições Tocá Rufar; por outro, a actividade editorial do Tocá Rufar que abrange textos ligados à experiência e história do projecto bem como ao seu método de ensino da percussão tradicional portuguesa, publicando também as partituras originais do repertório Tocá Rufar. Quadros-­‐síntese das actividades Tocá Rufar 2011 Identificação

Formações

Responsáveis

Rui Júnior, Maria Ceia

Periodicidade

Semanal/Quinzenal/Mensal/Trimestral

Participantes

Aproximadamente 1700 formandos

Público-­‐alvo

Alunos do Tocá Rufar; Escolas do Ensino Básico dos Concelhos do Seixal e Moita; professores, animadores sócio-­‐culturais e outros; empresas

Identificação

Espetáculos

Responsáveis

Rui Júnior, Maria Ceia, Mário Santos, alunos Tocá Rufar

Periodicidade

Semanal

Participantes

Aproximadamente 10 000 espectadores

Público-­‐alvo

Diversificado

Identificação

Produções

Responsáveis

Toda a equipa Tocá Rufar, Lúcio Lampreia, Artur Serra, João Matela, Nuno Santos

Periodicidade

Anual

Participantes

Aproximadamente 2500 espectadores

Público-­‐alvo

Diversificado

Identificação

Loja de Ritmo

Responsáveis

Gabriela Machado, Rui Júnior

Periodicidade

Semestral

Participantes

Aproximadamente 40 000 clientes

Público-­‐alvo

Diversificado

Momentos que o tempo não apaga...

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No já longo percurso do projecto Tocá Rufar, devem ser sublinhados, embora por razões distintas, três grandes marcos históricos. Em primeiro lugar, a Expo’ 98, que constituiu o pontapé de saída do projecto, o impulso inicial para que a história de sucesso que hoje conhecemos se viesse a concretizar. Em segundo lugar, as presenças nas cerimónias de abertura do Campeonato Mundial de Futebol de 2002, realizado na Coreia do Sul e no Japão, e na Expo’ 2005, em Aichi, no Japão, por constituirem oportunidades únicas para contactar com realidades sócioculturais distintas, promovendo processos activos de aprendizagem intercultural. Em ambos os casos, os elementos do Tocá Rufar integraram grupos de percussão constituídos por tocadores oriundos de todo o mundo (ex: Brasil, Senegal, Japão, Estados Unidos da América). Por último, o já referido incêndio ocorrido no dia 1 de Março de 2011. Fundamentalmente, por ter representado uma perda de valor incalculável que comprometeu todo o projecto, mas também por forçar o Tocá Rufar a adaptar-­‐se a um novo contexto, de modo a poder encarar o futuro com optimismo. Tocá Rufar, muito mais do que bum, bum, bum! Desde 1996 até 2011, o Tocá Rufar tem obtido resultados interessantes em vários domínios. No que toca à sua visibilidade, tem-­‐se afirmado enquanto projecto sem fins lucrativos, de inegável valor educativo, tendo-­‐lhe sido atribuido pelo Ministério da Cultura o Estatuto de Projecto de Interesse Cultural. Em 1999 representou Lisboa no encontro das Cidades Educadores e, em 2001, foi galardoado com o prémio de Qualidade pelo Programa Educativo Nacional em 2001. Em Março de 2006, representou Portugal na Conferência Mundial de Educação Artística, realizada no Centro Cultural de Belém. Entre 2006 e 2008, integrou o Projecto Reinserção pela Arte, projecto piloto de natureza experimental promovido pela Gulbenkian em colaboração com a Direcção-­‐Geral de Reinserção Social. Mais recentemente, em Outubro de 2009, a Rádio Clube de Leiria dedicou-­‐lhe o Prémio pela Arte da Cultura e Bombo Portuguesa, na presença do então Ministro da Cultura, José António Ribeiro. O trabalho desenvolvido no Tocá Rufar favorece a aquisição de competências que promovem a integração social, designadamente, a promoção da auto-­‐estima dos A C R I A T I V I D A D E U R B A N A N A R E G I Ã O D E L I S B O A – C A S E S T U D I E S

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rufinas, fruto do reconhecimento social associado à qualidade das suas performances; a exigência e intransigência no que diz respeito à pontualidade e assiduidades de cada rufina; a construção de aprendizagens colectiva, pois o trabalho numa orquestra obriga cada indivíduo a conhecer bastante bem o seu papel e a desempenhá-­‐lo de forma responsável perante os restantes pois, se o não fizer, poderá comprometer o trabalho de todos; a capacidade de conceber e delinear projectos a médio e longo prazo, contrariando a tendência actual de privilegiar o efémero e o imediato. Por outro lado, o Tocá Rufar também tem impactos ao nível da criação de emprego e da promoção de uma atitude proactiva por parte dos rufinas. De acordo com Rui Júnior, existem pelo menos duas dezenas de pessoas que estiveram ligadas ao projecto e que continuaram as suas carreiras profissionais no mundo da música, sobretudo na área da percussão (ex: Carlos Mil-­‐Homens, Pedro Calado – Gaiteiros de Lisboa; Nuno Patrício – Blasted Mechanism). Em 2005, a formação do grupo de percussão Eclodir Azul, de Loures, foi também da responsabilidade de um antigo rufina. Para além disso, o Tocá Rufar abriu também caminho para a formação de cerca de meia centena de projectos de percussão tradicional portuguesa. Todos os anos, dois a três novos grupos de percussão procuram consultoria, formação e outro tipo de apoios junto do Tocá Rufar. Em termos de competitivade, os impactos do Tocá Rufar fazem-­‐se sentir sobretudo à escala local. A última edição do PAR, é disto um bom exemplo. Para a sua realização, e contrariamente ao que se passou em anos anteriores, quando o festival era realizado no antigo complexo fabril da Mundet, o Tocá Rufar estabeleceu contactos com os agentes comerciais do centro histórico do Seixal, para que estes ficassem abertos nos dias do festival. Ao fazer o festival nos espaços públicos do centro histórico do Seixal, todo o consumo realizado pelos participantes e visitantes reverteu a favor do comércio local. Adicionalmente, as actividades de team-­‐building, realizadas junto de empresas como a McKinsey & Company, a Deloitte, a Axa, a Autoeuropa, o BES ou o Barclays, têm tido sempre bons resultados ao nível do desenvolvimento de competências em termos de organização de equipas de trabalho e da gestão de lideranças.

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Tocá Rufar, made for portugal? Sendo um projecto centrado na região de Lisboa, sobretudo nos concelhos do Seixal e da Moita, a participação continuada em redes internacionais e o estabelecimento de acordos ou parcerias com agentes estrangeiros é inexistente. Todavia, são frequentes as participações em eventos internacionais (ex: Exposições Internacionais, Merseyside International Street Festival). Rui Júnior foi também responsável, em colaboração com a Fundação Eden (Malta), pela criação de uma orquestra de percussão constituída integralmente por pessoas com problemas de desenvolvimento. Ele acredita também que, após a consolidação do mercado da percussão em Portugal, o modelo Tocá Rufar pode ser implementado junto das comunidades portuguesas residentes no estrangeiro, em Inglaterra, Alemanha, Cabo Verde, França e Canadá.

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Isabel André

Fonte: http://www.orquestra.geracao.aml.pt/faces-­‐da-­‐orquestra-­‐geracao

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O Projecto Geração tem início em 2005 apoiado pela Iniciativa EQUAL e desenvolvido em parceria pela Câmara Municipal da Amadora, pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelo Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural. É um projecto de desenvolvimento social que visa especificamente o combate ao abandono e insucesso escolares no Casal da Boba (Amadora). O Geração promoveu diversas actividades -­‐ ateliers, desporto, dança, música, ... -­‐ que convergem na ambição de aumentar as competências das crianças e dos jovens do bairro e sobretudo de reforçar a sua confiança e auto-­‐estima levando-­‐as a construir um projecto de vida. Entre as várias acções deste projecto, destacou-­‐se a Orquestra Geração (OG) que surge em 2007 e ganha rapidamente uma dimensão e visibilidade inesperadas, impactos que justificaram a sua continuação muito para além do Projecto Geração. O arranque da OG contou com uma parceria mais vasta que a do Projecto Geração, incluindo a Escola Nacional do Conservatório de Música de Lisboa e vários agentes locais, como a Junta de Freguesia de S. Brás e a Escola Miguel Torga. Tratou-­‐se de uma acção-­‐piloto inspirada por El Sistema, ou Fundación del Estado para el Sistema de Orquestras Juveniles e Infantiles de Venezuela. Inspiração e conceito A génese de El Sistema situa-­‐se em 1975 na cidade de Caracas e deve-­‐se à iniciativa de José António Abreu, engenheiro, músico e politico com fortes preocupações sociais, dentro da doutrina católica, e um carácter visionário e persistente. Nesse ano cria e dirige a Orquestra Nacional Juvenil ‘Juan José Landaeta’ que mais tarde adopta a designação de Orquestra Sinfónica Juvenil Simão de Bolivar. “Ao idealizar a criação da orquestra, José António Abreu pensou sobretudo na dramática situação dos estudantes de música no nosso país. O que faz um jovem quando chega ao 6º ou 7º ano de estudos musicais? Geralmente deserta. Deixa a música e regressa a outros estudos, porque sabe que ao graduar-­‐se como músico não terá onde trabalhar. Outros, mais afortunados, vão para o estrangeiro onde fazem carreira – por vezes uma carreira brilhante – o que contribui para uma lamentável fuga de talentos. De tal maneira, que uma orquestra

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destinada a acolher esses numerosos estudantes era logicamente a única solução adequada. A orquestra é assim o ponto intermédio entre a escola e a profissionalização. El Nacional (Venezuela), 2 fevereiro de 1976

Depois de se debater com sérios problemas de sobrevivência, a Orquestra acaba por beneficiar do rápido crescimento da economia venezuelana associado ao petróleo acabando por dar origem à Fundação do Estado para a Orquestra Nacional Juvenil da Venezuela (fundada em Fevereiro de 1979) que define como objectivos a capacitação de recursos humanos altamente qualificados na área da música. Nos anos 80, o contexto volta a ser de crise, mas apesar das dificuldades a Fundação sobreviveu e em 1993 recebe o Prémio Internacional de Música da UNESCO, o que torna o maestro e El Sistema referências internacionais incontornáveis. É neste contexto, facilitado também pela presença de José António Abreu no governo venezuelano enquanto ministro da cultura, que se consolida El Sistema com a criação em 1996 da Fundação do Estado para o Sistema Nacional das Orquestras Juvenis e Infantis da Venezuela (FESNOJIV). Mas, não mudam apenas as designações. Na década de 90, os objectivos principais passam a incidir explicitamente na inclusão social e as competências musicais são sobretudo entendidas como um meio para atingir esse fim. [Uma orquestra é] “una comunidad que tiene por característica esencial y exclusiva, ella sola tiene esa característica, de que es la única comunidad que se constituye con el objetivo esencial de concertarse entre sí. Por tanto el que hace práctica orquestal empieza a vivir la práctica de la concertación. ¿Y qué significa en otras palabras la práctica de la concertación?: la práctica del equipo, la práctica del equipo que se reconoce a sí mismo como interdependiente, donde cada uno es responsable por los demás y los demás responsables por uno” José António Abreu, documentário “Tocar y Luchar”

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A ‘utopia realizada’ de José António Abreu abrange 3 campos complementares mas distintos: Pessoal e social – O desenvolvimento integral da personalidade através da conjugação entre benefícios emocionais e intelectuais, incluíndo o sentido de comprometimento, de responsabilidade, de generosidade e dedicação aos outros, bem como a capacidade de liderança. Salienta a importância do contributo individual para alcançar objectivos colectivos, processo que, na sua opinião, leva ao desenvolviento da autoestima e da confiança (‘sentir-­‐se alguém’). Familiar – Em numerosos casos, sobretudo nas situações mais problemáticas, a criança passa a ser um modelo para a sua família (responsabilidade, perseverança e pontualidade, entre outras competências). Quando a criança percebe que é importante para a sua família começa a ter outras expectativas de futuro para si e para os seus familiars, o que leva a uma dinâmica social ascendente, desencadeada por novos sonhos e objectivos mais ambiciosos. Comunitário – A dinâmica social das famílias repercute-­‐se muito na comunidade local. Mas, para além disso, as orquestras são espaços culturais criativos, ‘fontes de trocas e novos significados’ (Abreu, entrevista TED, 2009). Ainda nas palavras de José António Abreu, “mais do que estruturas artísticas, (as orquestras) são escolas de vida social porque tocar e cantar juntos significa conviver intimamente buscando a perfeição e a excelência, seguindo uma disciplina rígida de organização e coordenação para buscar a interdependência harmónica de vozes e instrumentos.” “Rodrigo Guerrero, the director of FESNOJIV’s Office of International Relations best describes the miracle of social service vs. musical goals. He says that the students are so excited by and dedicated to the musical fun and creation, they don’t realize until they leave El Sistema that it is really a social development program more than a musical one. The music is a means to change lives. And the means is so fully engaging, that the participants are don’t even notice how it is changing the trajectory of their lives.” Eric Booth (2009) Thoughts on Seeing El Sistema, Teaching Artist Journal, v7 n2 p75-­‐84.

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Actualmente, existem 180 núcleos espalhados pelas várias províncias da Venezuela que integram 350 000 crianças e jovens. El Sistema foi relativamente imune à governamentalização da cultura empreendida pelos governos de Hugo Chavez e tornou-­‐se mesmo uma bandeira do novo regime que estabeleceu metas muito ambiciosas, tais como atingir 1 milhão de crianças e jovens em 2019. O conceito essencial de El Sistema é dar um sentido coerente a uma comunidade de aprendizagem através da música promovendo assim o desenvolvimento comunitário inclusivo. “La música en sí misma es inclusiva, pues aglutina dimensiones intelectuales, sociales y afectivas, lo que la convierte en una herramienta ideal para el modelo de transformación social y educativo propuesto. En los casos de comunidades de aprendizaje se intenta implicar a todos los agentes en el trabajo conjunto, todos crean significados y todos participan emocionalmente en el proyecto.” Marta Fernández-­‐Carrión Quero (2011) Proyectos Musicales Inclusivos, Tendencias Pedagógicas N. 17, p.74-­‐82

O método de aprendizagem é o mimetismo – as crianças aprendem a tocar música tal como aprendem a falar, imitando os outros. Baseia-­‐se no funcionamento colectivo – a orquestra – guiado pelo interesse comum de interpretar uma peça musical. A colaboração é muito mais importante que a competitividade. O trabalho exige assiduidade, disciplina e esforço individual. O trabalho musical adapta-­‐se às idades. Os mais pequenos, a partir dos 3 ou 4 anos, praticam expressão corporal, canto e ritmo, a seguir passam para a flauta e para a percussão para aos 7 anos escolherem um instrumento. O instrumento é um aspecto muito importante na medida em que implica responsabilidade e responsabilização. Cada criança tem de cuidar do seu instrumento em permanência e só pode trocar de instrumento por razões muito fundamentadas, o que implica persistência e previne a instabilidade. A Orquestra Geração na AML

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Como foi referido na introdução, a OG nasceu em 2007 na Escola Miguel Torga, Casal de S. Brás, Amadora. É o resultado de uma conjugação de vontades colectivas e individuais. As reflexões conjuntas de Jorge Miranda (Câmara Municipal da Amadora), Luísa Valle (Fundação Calouste Gulbenkian) e António Wagner Diniz (Escola de Música do Conservatório Nacional) e os apoios das respectivas instituições permitiram esta experiência piloto inédita. O professor Wagner Diniz conhecia bem o projecto venezuelano e acreditava nas suas potencialidades, tendo percebido, desde logo, como se aplicava bem em Portugal num contexto suburbano bastante desfavorecido, onde o futuro das crianças é gravemente comprometido por percursos escolares de insucesso.

ESCOLA MIGUEL TORGA, RECEPÇÃO AOS MAESTROS JOSÉ ANTÓNIO ABREU E GUSTAVO DUDAMEL, 25 ABRIL 2009 (http://www.eb23-­‐miguel-­‐torga.rcts.pt/ )

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O projecto foi iniciado com 35 alunos do 4º ao 7º ano de escolaridade que se distribuíam por diversos instrumentos de cordas, 17 violinos, 8 violas, 5 violoncelos e 5 contrabaixos. A coordenação coube a 4 professores seleccionados entre os músicos que realizaram formação com professores do El Sistema que se deslocaram para o efeito a Portugal em Setembro de 2007. Eram leccionadas 30 horas semanais, incluindo aulas de instrumento, naipes, orquestra e formação musical. A primeira apresentação pública ocorreu na Escola Miguel Torga em Dezembro de 2007. Nesta primeira fase, o projecto foi financiado pela Iniciativa EQUAL, pela Câmara Municipal da Amadora e pela Fundação Calouste Gulbenkian. Em Janeiro de 2008, o projecto passa a integrar também o Agrupamento de Escolas de Vialonga22. A OG inicia-­‐se com crianças do 1º ciclo, tendo o Conservatório Nacional unicamente o papel de supervisão pedagógica e estando toda a parte organizativa dependente da direcção do agrupamento escolar. Começa com um núcleo de cordas que envolve 66 alunos: 37 violinos, 12 violas, 12 violoncelos e 5 contrabaixos. Estes alunos eram acompanhados por 7 professores, sendo 6 de instrumento e 1 de formação musical. O financiamento do projecto foi assegurado pela Central de Cervejas e pela Fundação Calouste Gulbenkian, na aquisição dos instrumentos, e pelo Ministério da Educação que garantiu o salário dos professores, através do programa TEIP. No final do ano lectivo 2007/08, a OG já contava com 101 crianças que realizaram o 1º estágio de Verão com um concerto final no Anfiteatro ao Ar Livre da Fundação Calouste Gulbenkian. O projecto continua o seu percurso no ano lectivo 2008/2009 mobilizando também o apoio da Fundação EDP para aquisição de novos instrumentos. Desenvolvem-­‐se assim os núcleos de cordas e têm início os núcleos de sopros (naipe das madeiras e dos metais). Neste segundo ano de OG estiveram envolvidos 68 alunos e 14 professores no agrupamento escolar Miguel Torga e 118 alunos e 11 professores na Vialonga. Ainda no decorrer do ano lectivo 2008/09 foi integrado no projecto o núcleo do Casal da Mira através de uma proposta da Associação Unidos de Cabo Verde e da Câmara 22

Que já desde 2005 desenvolvia, por sua iniciativa, uma acção similar que visava combater o insucesso escolar através do ensino do violino.

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Municipal da Amadora com apoio financeiro integral do grupo Chamartín (que iria inaugurar, em Maio de 2009, o Centro Comercial Dolce Vita Tejo, localizado muito próximo do Casal da Mira). Neste núcleo da OG, as aulas funcionaram nas instalações da Associação, que alberga um jardim-­‐de-­‐infância e desenvolve ATL com crianças mais velhas que, tendo frequentado o jardim, se encontram na escolaridade básica, nomeadamente no 1º e 2º. O programa de aprendizagem é similar para as crianças do 1º e 2º ciclo, desenvolvendo com as mais pequenas as componentes de Expressão Dramática e Iniciação Musical. O núcleo começou com 58 alunos, sendo 30 do Jardim-­‐ de-­‐infância. No final do ano lectivo 2008/09 a OG contava já com 216 participantes dos 6 aos 16 anos. A 1 de Julho é realizado o 2º estágio de verão e o concerto final é realizado novamente no Anfiteatro ao Ar Livre da Fundação Calouste Gulbenkian. Em Julho de 2009 emerge um núcleo OG -­‐ Orquestra Geração/Bora Nessa -­‐ com características diferentes, inserido no âmbito do Contrato Local de Segurança de Loures. Inclui os Agrupamentos de Escolas da Apelação, Camarate e Sacavém. Para além do apoio da Câmara Municipal de Loures, este núcleo da OG conta ainda com o suporte do Ministério da Administração Interna, através do Governo Civil de Lisboa, da Universidade de Lisboa e da Fundação PT. Em 2010, o projecto OG alarga-­‐se significativamente na AML, passando a incluir as escolas EB1 Alexandre Herculano e Arquitecto Ribeiro Telles (ambas no concelho de Lisboa, a primeira no Alto da Ajuda e a segunda no bairro da Boavista), a escola EB1 do Alto do Moinho (Zambujal, Amadora), o agrupamento escolar Mestre Domingos Saraiva (Algueirão/Sintra) e o agrupamento escolar Quinta do Conde (Sesimbra).

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Entretanto, a OG começava também a expandir-­‐se para além das fronteiras da Área Metropolitana de Lisboa, com os núcleos de Amarante (2009) e os de Mirandela e Coimbra (2010). CONCERTO DE NATAL 2010 OG QUINTA DO CONDE CINETEATRO MUNICIPAL JOÃO MOTA, SESIMBRA

No ano lectivo 2010/11 estavam incluídas nas OG da AML cerca de 700 crianças e jovens maioritariamente do 1º e do 2º ciclos, mas também algumas do 3ºciclo. CRIANÇAS E JOVENS ENVOLVIDOS NAS OG EM 2011, AML Alunos na OG 2011

Nome da Escola

Localização

Escola EB 2+3 Miguel Torga

Casal de S. Brás -­‐ Amadora

Escola EB 1 do Alto do Moinho

Zambujal -­‐ Amadora

61

Escola Básica Pedro d`Orey

Damaia -­‐ Amadora

46

Escola Amélia Vieira Luís

Carnaxide -­‐ Oeiras

30

Agrupamento Mestre Domingos Saraiva

Algueirão -­‐ Sintra

47

Agrupamento de Escolas Quinta do Conde

Quinta do Conde -­‐ Sesimbra

46

Escola Ens. Básico 1º e 2º Ciclo da Apelação

Apelação -­‐ Loures

52

Escola Básica Mário Sá Carneiro

Camarate -­‐ Loures

41

Escola Básica Bartolomeu Dias

Sacavém -­‐ Loures

31

Escola EB1 Alexandre Herculano (Ajuda)

Lisboa (Ajuda)

44

Escola EB 1 Arq. Ribeiro Telles (Boavista)

Lisboa (Boavista)

22

Agrupamento Escolas Vialonga

Vialonga -­‐ Vila Franca Xira

190

TOTAL

-­‐-­‐-­‐

704

94

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Entre os jovens músicos, predominam as meninas. A maioria tem entre 8 e 12 anos e está entre o 3º e o 6º ano de escolaridade. Apesar de uma grande parte destas crianças ter um percurso escolar sem retenções, a parcela dos casos de insucesso é significativa, abrangendo 26% do total das crianças e jovens das OG. PERFIL DAS CRIANÇAS E JOVENS DAS OG, AML2011 (*) %

SEXO Feminino

62,5

Masculino

37,5

IDADE 6

1,2

7

6,4

8

13,2

9

12,7

10

18,8

11

18,3

12

13,2

13

6,4

14

5,6

15 e mais

4,1

%

ANO ESCOLARIDADE 1º

0,4

6,6

11,5

18,3

23,5

20,3

9,9

3,8

2,0

Secundário

3,6

RETENÇÕES Sem retenções

73,6

1

18,5

2 e mais

7,9

(*) Dados fornecidos pelo Ministério da Educação

O programa pedagógico aplicado em todos os núcleos da AML é elaborado pela EMCN com o apoio de dois músicos venezuelanos (formados no El Sistema) a trabalhar em Portugal: a violinista Ana Beatriz Manzanilla (Orquestra Gulbenkian) e o violetista Pedro Saglimbeni Muñoz (Orquestra Sinfónica Portuguesa). O repertório da OG é elaborado tendo em atenção os contextos locais. Assim, para além das peças de música clássica, inclui também músicas tradicionais, portuguesa e dos PALOP, jazz, pop, etc.. Para além dos apoios institucionais já referidos, tem sido também fundamental o financiamento do QREN através do PO Lisboa. Um projecto promovido pela AML em associação com as várias câmaras municipais onde existem núcleos OG e que garante cerca de 1/3 do orçamento total. Contudo, o principal financiador é o Ministério da

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Educação que garante os salários dos professores envolvidos no projecto OG, à excepção dos professores de instrumentos de sopro das Escolas de Sacavém e Camarate, pagos pelo MAI. São ambiciosas as metas do projecto OG (aprovado em 2011 pelo Ministério da Educação). Em 2020, ambiciona: •

Estar presente em todas as regiões de Portugal Continental (Norte Litoral, Norte Interior, Área Metropolitana do Porto, Centro Litoral, Centro Interior, Área Metropolitana de Lisboa, Raia, Alentejo e Algarve).

Ter 14 escolas a funcionar em cada região e 28 em cada uma das Áreas Metropolitanas, com 50 alunos em cada escola

Abranger, no total, 154 escolas e 7700 crianças e jovens.

Um conjunto de opiniões recolhido junto dos agentes envolvidos nas OG -­‐ escolas, professores OG e patrocinadores -­‐ salienta inequívocas mais valias do projecto no âmbito da inclusão social e do desenvolvimento pessoal e social, bem como no que respeita ao reforço da cultura musical. Em particular, são referidos os ganhos de auto-­‐ estima dos alunos, que contribuem para alargar as suas motivações e perspectivas de futuro, o desenvolvimento de competências pessoais e sociais, o crescente envolvimento das famílias no processo de aprendizagem dos alunos, com consequências ao nível do acompanhamento destes e da sua relação com a escola e valorização de outras formas de cultura, como a música clássica. É ainda sublinhado o importante contributo da OG para a igualdade de oportunidade, possibilitando que alunos de meios sociais desfavorecidos tenham acesso a práticas e a espaços culturais que frequentemente estão reservados às elites.

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