Íntegra da decisão de Raquel Dodge

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N.° 00302/14/2017 — REFD Sistema Único n.°331.0233 /2017 PETIÇÃO n° 7320 REQTE: Cid Ferreira Gomes REQDO: Ministério Público Federal RELATOR: Ministro Edson Fachin

Excelentíssimo Senhor Ministro Edson Fa.chin,

A Procuradora-Geral da República, no uso de suas atribuições constitucionais, vem, em atenção ao despacho de fl. 53, expor e requerer o que segue.

Trata-se de Petição autônoma desmembrada dos autos da PET 7003, por meio da qual Cid Ferreira Gomes opõe-se à decisão que determinou o envio do vídeo n. 2 de Wesley Mendonça Batista à Seção Judiciária do Estado do Ceará, alegando haver menção ao Deputado Federal Antônio Balhmann Cardoso Nunes Filho nesse depoimento, bem como questiona a veracidade de seu teor. O Ministro Relator determinou, às fls. 02/06, o desentranhamento do requerimento e autuação na classe Petição, instruindo-se com o traslado da decisão e mídia contendo a íntegra do conteúdo da PET 7003 para otimizar a tramitação. Em seu pedido às fls. 07/25, o requerente narra e sustenta que: Gabinete da Procuradora-Geral da República Brasília / DF


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O nome do Requerente foi citado pelo Sr. WESLEY MENDONÇA BATISTA em depoimento prestado no contexto de acordo de colaboração premiada firmado com o Ministério Público Federal. Em relação a alguns fatos, entretanto, não haveria o envolvimento de autoridades com foro nesta Corte, de modo que Vossa Excelência, em decisão monocrática, determinou a remessa dos autos para os foros territoriais competentes para o processo e o julgamento de cada caso. Foi esse o caso de CID FERREIRA GOMES, em que Vossa Excelência determinou a remessa expediente para a Seção Judiciária do Estado do Ceará, sob a premissa de que os fatos não envolveriam autoridades com foro especial por prerrogativa de função. Assim, resolveu Vossa Excelência, em decisão datada de 18.05.2017: (ii.d) determinar o envio de cópia do Termo de Depoimento em vídeo n. 2 (Ceará) de WESLEY BATISTA, do dia 4.5.2017, à Seção Judiciária do Ceará para a adoção das providências cabíveis, ficando autorizada, por parte do requerente, a remessa de cópia de idêntico material à Procuradoria da República naquele Estado; Ocorre que há no citado "depoimento em vídeo n. 2 (Ceará)" menção expressa do colaborador sobre o envolvimento, nos fatos delatados, de autoridade com foro especial nesta Excelsa Corte: o Deputado Federal ANTONIO BALHMANN CARDOSO NUNES FILHO. Por essa razão, a competência para o processo e julgamento dos fatos relacionados a CID GOMES e a ANTONIO BALHMAN é, inequivocamente, deste Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 102, I, "b", da Constituição da República, c/c art. 84 do Código de Processo Penal.

Prossegue o requerente informando que a questão da competência do Supremo Tribunal Federal, para processar o feito, foi suscitada pela Procuradoria da República no Estado do Ceará nos autos do processo n° 0001049-54.2017.4.05.8100, o qual foi instaurado a partir do declínio de competência nos autos da PET n. 7.003, havendo decisão do Juízo da 32' Vara Federal da Seção Judiciária do Ceará determinando o retorno dos autos ao STF, em virtude da narrativa, pelo delator, de supostas condutas criminosas imputadas a Cid Ferreira Gomes também envolverem Deputado Federal. Na mídia de fl. 49, na qual consta cópia integral da PET 7003, o Apenso n° 20 se refere ao Processo n. 0001049-54.2017.4.05.8100 oriundo da Seção Judiciária do Ceará. Às fls. 28/32, a Juíza Federal assim decidiu: Verifico que o pleito do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL merece ser acolhido. Com efeito, a decisão do Ministro Edson Fachin que determinou o envio de cópia do termo de depoimento em vídeo n. 2 (Ceará) de WESLEY MENDONÇA BATISTA, do dia 4.5.2017, à Seção Judiciária do Ceará ressalvou que a referida remessa não importava em qualquer definição de competência, que poderia ser avaliada e revista nas instâncias próprias (fls. 05/16). Analisando o arquivo contido na mídia de fl. 16, verso, a partir do 07m01 s, verifico que WESLEY MENDONÇA BATISTA afirmou que, duas semanas após a visita do exGovernador CD GOMES, foi procurado pelo Deputado Federal ANTONIO BALHMANN que, junto com o ARIALDO PINHO, propuseram o pagamento dos créditos atrasados de R$110.000.000,00 (cento e dez milhões de reais) em troca da

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contribuição de R$20.000.000,00 (vinte milhôes de reais) para a campanha eleitoral do atual Governador do Ceará CAMILO SANTANA. Consta informação na página da Câmara dos Deputados que o Deputado Federal ANTONIO BALHMANN licenciou-se do mandato de Deputado Federal, na Legislatura 2015-2019, para assumir o cargo de Assessor para Assuntos Internacionais do Governo do Estado do Ceará, a partir de 6 de agosto de 2015. Contudo, o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que o membro do Congresso Nacional que se licencia do mandato para investir-se em cargo do Poder Executivo não perde os laços que o une, organicamente, ao Parlamento (CF, art. 56, 1). (• • .) Nesse sentido, entendo que não é da competência do Juízo da Seção Judiciária do Ceará a decisão acerca da abertura ou não de investigação em face do Deputado Federal ANTONIO B.ALHIMANN, bem como a realização ou não da cisão na investigação cm relação aos envolvidos não detentores de foro por prerrogativa de função (Inq 3984, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCK1, Segunda Turma, julgado em 06/12/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-267 D1VULG 15-12-2016 PUBLIC 16-12-2016). Portanto, considerando a existência de suposto envolvimento de autoridade detentora de foro por prerrogativa de função, bem como considerando que a decisão de fls. 06/16 não decidiu acerca da cisão na investigação em relação aos envolvidos não detentores de foro por prerrogativa de função e, ainda, ressalvou que a remessa de parte da delação não importava cm qualquer definição de competência, que poderia ser avaliada e revista nas instâncias próprias, DEVOLVO os autos ao Supremo Tribunal Federal, junto com o Procedimento Preparatório n° 1.15.000.001454/201776 (em anexo), para que seja analisado se os fatos criminosos ocorridos em 2010 e 2014 são autônomos ou se ocorreram em contexto de continuidade delitiva, bem como a conveniência do desmembramento dos atos criminosos envolvendo os demais investigados que não possuem prerrogativa de foro. (destaque nosso)

Como se percebe da manifestação da Procuradoria da República no Estado do Ceará (fls. 23/25 do Apenso 20) e da decisão do Juizo daquela Seção Judiciária, são dois fatos imputados a Cid Ferreira Gomes. O primeiro fato teria ocorrido em 2010 quando o então governador Cid Gomes solicitou ao seu secretário Arialdo Pinho que procurasse Joesley Batista para pedir "contribuição financeira" para a sua reeleição na campanha daquele ano. Diante disso, Wesley afirma que Joesley concordou em pagar cinco milhões de reais a Cid Gomes (3,5 milhões foram pagos por notas frias e um milhão fora pago por meio de doação oficial, conforme afirmado pelo colaborador) em troca da liberação de um crédito de ICMS1 devido pelo Estado do Ceará, em valor que o colaborador não se recordava. O segundo fato, conforme narrado pelo colaborador Wesley Batista, teria ocorrido em 2014, quando recebeu a visita de Cid Gomes em seu escritório em São Paulo, o qual pediu

I A Procuradoria da República no Ceará apurou nos autos de Procedimento Preparatório que o crédito em questão não se refere ao ICMS e sim ao Programa de Incentivos às Atividades Portuárias e Industriais do Ceará (PROAPI). 3


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a ele e seu irmão Joesley Batista uma contribuição de R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais). Nessa ocasião, o colaborador teria dito ao então governador que não poderia pagar tal montante, pois o Estado do Ceará estaria devendo um crédito de ICMS de R$ 110.000.000,00 ( cento e dez milhões de reais) ao Grupo Empresarial J&F. Ainda nos termos da delação, duas semanas após o ocorrido acima, o então Deputado Federal Antônio Balhmann, acompanhado do secretário Arialdo Pinho, foram até o escritório de Wesley Batista em São Paulo, afirmando que, em troca da contribuição de vinte milhões, o Estado do Ceará pagaria os cento e dez milhões de reais de crédito de ICMS devidos, o que de fato ocorreu. Retornando ao requerimento de Cid Ferreira Gomes (fls. 07/25), este, além de requer a manutenção das investigações no âmbito do Supremo Tribunal Federal, também afirma trazer fatos relevantes acerca do descrédito da delação manifestada por Wesley Mendonça Batista, no que se refere às imputações relativas ao requerente: Narra-se aqui conduta, em tese, constitutiva do crime tipificado no art. 19 da Lei 12.850/2013, imputado ao Senhor WESLEY MENDONÇA BATISTA, em virtude de declarações comprovadamente falsas sobre fato relevante por ele prestadas a pretexto de colaboração prendada. Apresentam-se, nesta oportunidade, documentos comprobatórios da falsidade de parte relevante das declarações prestadas pelo Senhor WESLEY MENDONÇA BATISTA. (• • .) Assim, no Termo de Colaboração Premiada n° 15, referente ao chamado "Anexo 20 Ceará" (doc. 04), o delator narra dois momentos em que teria havido a prática do delito de corrupção ativa e passiva no âmbito do desenvolvimento das atividades comerciais da empresa CASCAVEL COUROS, pertencente ao grupo econômico J&F (doc. 05 - vídeo com o depoimento prestado pelo Sr. WESLEY BATISTA). O primeiro fato narrado consiste em suposto pedido de doação eleitoral feito ao delator, tendo por beneficiário o comitê de campanha política do Requerente para o Governo do Estado do Ceará no ano de 2010. Em troca de tal apoio econômico à campanha, créditos fiscais legítimos e em atraso, tendo como credora a empresa CASCAVEL COUROS, seriam "liberados" pelo Governo do Estado do Ceará. (• • .) O fato teria se repetido no pleito eleitoral de 2014, no qual também havia disputa eleitoral para o Governo do Estado do Ceará. Narra então o delator que a empresa CASCAVEL COUROS efetuou atividades de exportação de produtos no Ceará ao longo dos anos dc 2011 a 2014, isto fazendo que no final desse último ano a empresa alcançasse um crédito junto ao Governo do Estado do Ceará no valor total de R$ 110.000.000,00 (cento e dez milhões de reais). Em particular, declarou o Sr. WESLEY BATISTA que a empresa não recebeu ao longo dos anos acima referidos "nenhum centavo" do que era devido pelo Governo do Estado do Ceará, de modo que os valores restaram acumulados até o final do ano de 2014. No contexto da existência do débito do Governo do Ceará com a empresa CASCAVEL COUROS, o Requerente teria ido até o escritório do delator e de seu irmão (que também figura como colaborador), JOESLEY BATISTA, em São Paulo/SP, para pedir doação 4


MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROCURADORIA GERAL DA REPÚBLICA eleitoral para a campanha de 2014, no valor de R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais), em favor de diversos políticos cearenses. O delator diz então ter objetado, na oportunidade, que seria impossível contribuir com tal valor para a campanha eleitoral, considerando que o Estado do Ceará devia o valor de cento e dez milhões de reais à empresa CASCAVEL COUROS. Em razão da negativa, o Requerente teria saído da conversa sem "dizer nada", asseverando apenas que veria o que era possível fazer sobre esse assunto da dívida do Estado com a empresa do delator. Dois meses depois da visita do Requerente, o Deputado Federal ANTÔNIO BALHMANN e o Secretário de Governo do Ceará de nome ARIALDO PINHO teriam procurado novamente o delator WESLEY BATISTA para propor o pagamento do montante de vinte milhões de reais, como contrapartida da "liberação" da integralidade do crédito de cento e dez milhões devidos pelo Governo do Estado do Ceará. (..) Pela narrativa constante no acordo de colaboração premiada, é como se o Requerente tivesse provocado intencionalmente a situação de total inadimplência dos valores devidos, estando a empresa do delator sem receber qualquer valor do Estado. A ausência de pagamento total, e não apenas parcial, dá mais credibilidade ao depoimento do delator, propiciando-lhe melhores vantagens premiais. Ocorre que o delator prestou Informação falsa ao afirmar que o Estado do Ceará não teria pago "nenhum centavo" do que era devido à empresa CASCAVEL COUROS entre os anos de 2010 a 2014. A realidade mostra que, ao contrário, havia uma regularidade de pagamentos, em valores expressivos, à empresa CASCAVEL COUROS no período indicado. Com efeito, diversos valores foram pagos no período compreendido entre os anos de 2011 a 2013, conforme se constata nos extratos anexos (doc. 06), os quais demonstram: Dessa forma, é falsa a versão apresentada pelo Sr. WESLEY BATISTA de que "nenhum centavo" foi pago pelo Estado do Ceará no período compreendido entre 2011 a 2013. OS VALORES PAGOS PELO ESTADO DO CEARÁ NOS ANOS DE 2011, 2012 e 2013 TOTALIZAM O MONTANTE DE R$ 41.946.927,98 (quarenta e um milhões, novecentos e quarenta e seis mil, novecentos e vinte e sete reais e noventa e oito centavos). Trata-se de valor extremamente expressivo. Expressivo mesmo para um bilionário como WESLEY BATISTA, sendo absurdo imaginar que ele, conscientemente, não soubesse desse pagamento, a ponto de afirmar que NADA RECEBERA do Estado naqueles anos -2011, 2012 e 2013. Por isso, WESLEY BATISTA, CONSCIENTEMENTE, OMITIU o fato de ter recebido valores relevantes nos anos de 2011, 2012 e 2013, PARA ASSIM DAR MAIS CREDIBILIDADE A SUA VERSÃO DE QUE OS REPRESENTANTES DO ESTADO DO CEARÁ LHE DEIXARAM EM SITUAÇÃO EXTREMA (NÃO PAGARAM "UM CENTAVO") Só PARA DEPOIS CONSEGUIREM DELE UM APOIO POLÍTICO DE VALOR MAIS ELEVADO. (—) A falsidade é frontal: WESLEY BATISTA afirmou NÃO TER RECEBIDO "UM CENTAVO" nos anos de 2011, 2012 e 2013. Os documentos anexos PROVAM O RECEBIMENTO DE R$ 41.946.927,98 (quarenta e um milhões, novecentos e quarenta e seis mil, novecentos e vinte e sete reais e noventa e oito centavos), nos anos em questão. O confronto é linear. (• • .) Está, portanto, configurada, em tese, a prática do crime tipificado no art. 19 da Lei 12.850/2013, consistente em imputar falsamente a prática de infração penal, a pretexto de

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colaboração com a Justiça, Ou revelar informações sobre a estrutura de organização criminosa que sabe inveridicas: Art. 19. Imputar falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações sobre a estrutura de organização criminosa que sabe inveridicas: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Ao final, Cid Ferreira Gomes requereu que fosse firmada, nos termos do art. 102, I, "b", da Constituição Federal, a competência deste Supremo Tribunal Federal para o processo e o julgamento dos fatos ora narrados, considerando a imputação de crime a Deputado Federal e a impossibilidade de cisão da investigação diante do contexto fático narrado, bem como requereu que fosse dada vista do presente requerimento à ProcuradoriaGeral da República, para a adoção das providências pertinentes, especialmente para determinar a instauração de procedimento criminal destinado a apurar a materialidade e a autoria do crime de denunciação caluniosa objeto do art. 19 da Lei 12.850/2013 e, nesse passo, promover a revisão do acordo de colaboração premiada firmada por Wesley Batista. Após, vieram os autos à Procuradoria-Geral da República para manifestação. É o relatório.

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Inicialmente, há de se concordar com o entendimento externado no pedido da Procuradoria da República no Estado do Ceará e na decisão do Juizo daquela Seção Judiciária no sentido de que cabe o Supremo Tribunal Federal definir a abrangência de sua competência no caso concreto, devendo esse Tribunal decidir se os fatos comportam ou não cisão em relação aos não detentores de foro por prerrogativa de função nessa Corte Suprema. Com efeito, constam nos documentos que formam o Apenso 20 da PET 7003 (mídia de fl. 49) que são imputados a Cid Ferreira Gomes fatos criminosos que se separam pelo lapso temporal de 4 (quatro) anos. Embora haja semelhança nas circunstâncias, pois ambos envolveram pedidos de vantagem indevida em troca de liberação de créditos da empresa Cascavel Couros junto ao Estado do Ceará, não há dúvida de que os fatos são distintos e, portanto, devem ser apurados separadamente, por não existir continuidade delitiva. O crime continuado apresenta requisitos para que seja verificado: a) pluralidade de condutas; b) crimes da mesma espécia; c) circunstâncias semelhantes de tempo, lugar, modo de execução e outras. Quanto ao último requisito, o objetivo do art. 71 do Código Penal é de 6


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que as circunstâncias semelhantes levem à conclusão de que os delitos subsequentes são continuação do primeiro. Ocorre que o lapso temporal de 4 (quatro) anos entre os dois supostos fatos delituosos permite concluir que o crime de corrupção supostamente ocorrido em 2014 não é uma continuação do primeiro delito, supostamente ocorrido em 2010. Ainda que houvesse conveniência na apuração conjunta dos dois fatos, pois envolvem os mesmos agentes e o mesmo modus operandi, é certo que na jurisprudência do STF a cisão processual constitui a regra, mantendo-se as apurações perante os tribunais com competência originária apenas em relação aos eventuais detentores de prerrogativa de foro. Portanto, como no primeiro fato imputado a Cid Ferreira Gomes não há menção ao envolvimento de autoridade detentora de foro perante o STF, bem como por não se tratar de crime continuado, ante o longo lapso temporal transcorrido entre as condutas delitivas, a cisão processual entre os fatos ocorrido em 2010 e 2014 faz-se necessária, evitando-se manter no Supremo Tribunal Federal investigação de fatos que não envolvem detentores de foro nessa corte. Com relação ao suposto pagamento de vantagem indevida no valor de R$ 20 milhões de reais no ano de 2014 para que o Estado do Ceará pagasse o crédito de R$ 110 milhões em favor da empresa Cascavel Couros, assiste razão ao requerente, assim como ao Juízo da 32a Vara Federal da Seção Judiciária do Ceará, que declinou da competência em favor do Supremo Tribunal Federal. Embora o principal envolvido nesses fatos seja Cid Ferreira Gomes, pessoa não detentora de forro por prerrogativa de função no STF, essa Corte já reconheceu persistir a reunião das investigações em situações excepcionais nas quais os fatos narrados encontrem-se intrinsecamente relacionados, "de tal forma imbricados que a cisão por si só implique prejuízo a seu esclarecimento" (AP n. 853/DF, Rel. Min. Rosa Weber, DJ de 22/5/2014). Na presente hipótese, evidencia-se necessária, ao menos por ora, a manutenção da unicidade da investigação relacionado aos fatos ocorridos em 2014, uma vez que as condutas das pessoas mencionadas, de fato, encontram-se intrinsecamente relacionadas ao ponto de eventual cisão resultar, neste momento, em prejuízo para a persecução criminal. A apuração conjunta dos fatos, inclusive àqueles que não detêm foro por prerrogativa de função no Supremo Tribunal Federal, neste momento, é medida que se impõe, para evitar prejuízo relevante à formação da opinio delicti no tocante à autoridade investigada. 7


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Por fim, quanto ao requerimento de que seja instaurado procedimento investigató- II rio criminal para apurar o crime tipificado no art. 19 da Lei 12.850/2013 que teria sido praticado por Wesley Mendonça Batista, não merece ser acolhido nesse momento. O requerente argumentou que, por várias vezes, Wesley Batista teria dito que o Estado do Ceará não pagou "nenhum centavo" e que esse fato é falso, pois o Estado do Ceará pagou entre 2011 e 2013 o valor de R$ 41.946.927,98, logo, o colaborador teria cometido crime por omitir o pagamento de tais valores. Também alega o requerente que foi decisivo para a narrativa do colaborador afirmar que nada estava sendo pago para assim dar mais credibilidade a sua versão de que os representantes do Estado do Ceará lhe deixaram em situação extrema (não pagaram "um centavo") só para depois conseguirem dele um apoio político de valor mais elevado. Ocorre que esse argumento não passa de uma suposição do requerente, pois, em seu depoimento à Procuradoria-Geral da República, Wesley Batista não afirmou que o Governador do Estado do Ceará, Cid Gomes, deixou intencionalmente de pagar os valores devidos à empresa Cascavel Couros para poder ter um trunfo contra o empresário no ano eleitoral. No depoimento do colaborador é narrado que o Estado estava em débito de R$ 110 milhões de reais e que, após combinar o pagamento de R$ 20 milhões de reais em propina, o crédito foi pago. Wesley Batista usou figura de linguagem quando disse que o Estado não pagou "um centavo", quando na verdade o Estado pagou mais de R$ 41 milhões no período de três anos, mas o simples uso deste recurso exagerado na narrativa do colaborador não pode conduzir à tipificação da conduta. O crime em questão se verifica em caso de imputar prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente, no presente caso, apenas se fosse apurada a inexistência do crime de corrupção. Os pagamentos no total de R$ 41 milhões ao longo de três anos e o pagamento de R$ 110 milhões apenas no ano de 2014, na verdade corroboram o que foi narrado pelo colaborador, uma vez que em três anos se pagou menos da metade do total pago no ano eleitoral, justamente o ano em que o Wesley Batista afirma que pagou R$ 20 milhões de reais de propina para a liberação dos créditos. Pelos fundamentos expostos, a Procuradora-Geral da República requer: (i) seja indeferido o pedido de manutenção no Supremo Tribunal Federal dos fatos imputados a Cid 8

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Ferreira Gomes ocorrido no ano de 2010, com a consequente remessa à Seção Judiciária do Ceará; (ii) seja firmada a competência do STF, nos termos do art. 102, I, "b", da Constituição da República, para processar e julgar os fatos ocorrido no ano de 2014 envolvendo o Deputado Federal Antonio Ballunann Cardoso Nunes Filho e Cid Ferreira Gomes; (iii) o indeferimento do pedido de instauração de investigação em face de Wesley Mendonça Batista por não estarem presentes elementos que indiquem a ocorrência do crime do art. 19 da Lei 12.850/13 e (iv) nova vista dos autos para análise e adoção das providências cabíveis. Brasília, 06 de dezembro de 2017.

glim (944— uel Elias Ferreira Dodge Procuradora-Geral da República

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