Esse retorno, pelo qual vamos ansiando tanto quanto pelo esclarecimento final do crime, num policial, traz ao leitor a recompensa final da eficácia do conceito, a surpresa de um autor melhor delineado, a riqueza de uma obra permanentemente “em progresso”. Este livro realiza a proeza de ao mesmo tempo nos introduzir à semiótica, nos conduzir através de uma paisagem pouco visitada e nos fazer mergulhar numa das mais importantes tentativas de erguer uma teoria geral dos signos.
A autora é Lucia Santaella, semioticista brasileira que, há anos, vem se dedicando ao difícil e necessário trabalho de percorrer a vastíssima obra de Peirce, em boa parte ainda inédita, à cata tanto das pistas quanto das informações explícitas que permitam retomar e levar adiante a inacabada semiótica de Peirce. Por isso mesmo, essa obra destina-se àqueles que, não se satisfazendo com as versões simplistas e reducionistas da semiótica, desejam entender o extraordinário poder dos símbolos, sinais, códigos e linguagens que transitam nos processos de comunicação e hoje povoam as modernas mídias eletrônicas.
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Capa Teoria Signos quinta-feira, 14 de junho de 2012 14:20:41
A TEORIA GERAL DOS SIGNOS
teoria geral dos signos é um livro consagrado à admirável obra do lógico e filósofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914), hoje internacionalmente reconhecido como um dos mais importantes pensadores americanos de todos os tempos. Suas preocupações com as leis e a organização geral do pensamento, das ações e da sensibilidade humanas o levaram a postular, como fundamento da lógica, uma teoria geral dos signos, também chamada de semiótica, cuja tarefa é desvendar o que são e como operam os signos e, por meio deles, o próprio pensamento e, conseqüentemente, os modos pelos quais podemos compreender as coisas.
Lucia Santaella
Assim, a semiose, o complexo processo por meio do qual o signo constrói a representação e torna possível a comunicação, vai revelando a lógica única e absoluta de seu engendramento, numa verdadeira autogeração. Concentrando o melhor de seus esforços no Peirce menos conhecido do público, Santaella adentra o labirinto dos manuscritos inéditos. Percorre-o com firmeza e determinação, e não esquece de ir desenrolando, a cada passo, o novelo da leitura atenta e sistemática, cujo fio garantirá a volta segura.
O extraordinário poder das comunicações de massa, as modernas mídias eletrônicas renovam a cada minuto a perplexidade e o interesse do homem contemporâneo diante da proliferação dos signos e de seu funcionamento, muitas vezes caprichoso e obscuro. É por essa razão que a semiótica de Charles Sanders Peirce está na ordem do dia, muitas décadas depois da morte de seu mentor; e é cada vez mais comum ouvir-se falar de Peirce, de símbolos, ícones, índices, semiose, etc. Esse apressado mundo das mídias – que continuamos precisando decifrar, se não quisermos ser devorados – talvez seja um dos principais responsáveis pelo fato de, mesmo estando na moda, Peirce e sua semiótica continuarem sendo conhecidos “de orelhada”.
Como as linguagens significam as coisas
Lucia Santaella
É na contracorrente desse “ouvir dizer” que Lucia Santaella não se cansa de remar. Como ela mesma diz, “este é um livro de amor pelas minúcias, de calma e paciência para com os conceitos”; a calma e a paciência necessárias para que os pormenores de uma primeira impressão possam revelar-se, por assim dizer, “pormaiores”, capazes de esclarecer, na obra de Peirce, o que já era hábito considerar “obscuro por natureza”.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Santaella, Lucia Teoria geral dos signos : como as linguagens significam as coisas / Lucia Santaella. – SĂŁo Paulo : Cengage Learning, 2012. Bibliografia ISBN 85-221- - 1. LingĂźĂstica 2. Peirce, Charles Sanders, 1839-1914 3. SemiĂłtica 4. Signos e sĂmbolos I. TĂtulo
04-0509
CDD–401.41
Ă?ndice para catĂĄlogo sistemĂĄtico: 1. SemiĂłtica : Linguagem e comunicação : LingĂźĂstica 401.41
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A Teoria Geral dos Signos Como as linguagens significam as coisas Lucia Santaella Capa, Editoração Eletrônica e Fotolitos: Macquete Gráfica Produções
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Para Alexandre e Cristina Aprendi com Borges que uma dedicatória é o modo mais amoroso de pronunciar seus nomes.
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Apresentação O mundo está ficando cada vez mais povoado de linguagens, signos, sinais, símbolos. Já no século passado, Charles Baudelaire, poeta simbolista francês, sensível às transformações que a explosão demográfica estava trazendo para os centros urbanos, via a cidade de Paris como uma floresta de símbolos. Símbolos que lhe lançavam olhares familiares. De fato, de lá para cá, crescentemente, as cidades foram se cobrindo de signos: sinais de trânsito, outdoors, fachadas, luminosos, miríades de direções e indicações de caminhos, lugares, destinos. Sim, todos esses signos nos olham e prevêem a nossa familiaridade com eles. Se lá fora os signos já proliferam, o que dizer dos interiores, nossas casas, nossos locais de trabalho, lazer e socialização, nossa privacidade? A distribuição dos ambientes arquitetônicos que, por si só, já é prenhe de significados está pontilhada de objetos que significam seus usos: mesas de trabalho, de reuniões, de refeições, cadeiras para trabalhar, sofás para relaxar etc. junto com uma parafernália de utensílios e dispositivos para a vida doméstica e social e para as diferenciadas jornadas de cada tipo específico de trabalho. Com todos esses objetos convivemos como se fossem unha e carne de nosso próprio corpo, porque suas formas desenham seus usos. Lemos esses desenhos com a naturalidade com que vestimos nossas roupas, pois o hábito de interpretá-los entranhou-se em nós até o ponto de ficar imperceptível. Somos humanos porque somos simbólicos. Falamos e gesticulamos. E isso nos faz humanos. Também rimos e choramos, outras marcas do humano. Além disso, sonhamos, fabricamos e trabalhamos. Mas isso não basta. Precisamos brincar, jogar, cantar, dançar. Tudo isso junto ainda não nos foi suficiente. A aventura da linguagem parece ser infinita. Os gestos prologaram-se na produção de desenhos, pinturas, inscritos nas pedras, nos muros, paredes e telas. A fala, cuja morada estava no próprio corpo, tornou-se escrita e imigrou para o couro, papiro, papel e hoje para a memória IX
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do computador e telas eletrônicas. O canto prolongou-se em instrumentos musicais, orquestras, gravadores de sons e ruídos e para os bancos sonoros à disposição dos músicos nos modernos estúdios eletroacústicos. Graças ao rádio, aos toca-fitas, aos toca-CDs, sons nos acompanham por toda parte, assim como nossas vozes caminham nos quatro cantos do globo pelas ondas da telefonia. Do mesmo modo que o som veio a ser gravado, o visível veio a ser capturado nas câmeras fotográficas. O congelamento do espaço-tempo na fotografia adquiriu movimento no cinema. O hiato cinematográfico entre o tempo de filmagem e o de exposição foi sincronizado na televisão, ao vivo. Acontecer e ver podem se dar simultaneamente em espaços diversos. As coisas, situações e pessoas foram se tornando cada vez mais ubiquas. Estão lá na Nigéria, Hungria ou Peru e, ao mesmo tempo, dentro das salas de nossas casas. As imagens, pedaços roubados e duplicados da realidade para serem expostos nas bancas de revistas, nos livros, nas telas também ganharam autonomia. Livraram-se da duplicação do mundo. Viraram números na memória do computador que podem simular quaisquer coisas visíveis ou invisíveis, imagináveis ou inimagináveis, reais ou irreais em duas ou três dimensões e fazê-las aparecer nas telas dos monitores tão animadas quanto os corpos vivos. As linguagens – cada qual com sua materialidade e suporte próprios, palavras nos jornais, nas revistas e livros, imagens nas fotografias e vídeos, sons, músicas e canções no rádio e nos CDs – de repente puderam ser digitalizadas, adquirindo com isso um passaporte que lhes dá acesso às máquinas. Dentro dos computadores, todas as linguagens juntam-se e se confraternizam na criação de hipersignos híbridos, a hipermídia. Enfim, as linguagens crescem e se multiplicam na medida mesma em que são ininterruptamente inventados os meios que as produzem, reproduzem, meios estes que as armazenam e difundem. Do livro para o jornal, da fotografia, gravador de som e cinema para o rádio, televisão e vídeo, da computação gráfica para a hipermídia são todos nítidos índices de que não pode haver descanso para o destino simbólico do ser humano; destino que hoje encontra seu clímax nas milhares de redes planetárias de telefonia e computadores interligadas na formação de um ciberespaço dominado pela internet, um vasto labirinto comunicacional feito de impulsos eletrônicos e informação. Não só o planeta recobriu-se de signos, mas é para o céu que os signos também estão migrando. Um incontável número de satélites equipados com sensores devolvem ao planeta imagens de sua superfície, assim como naves sondam as cercanias da Terra, delas enviando imagens e sinais, enquanto antenas de rádio-astronomia auscultam os ruídos do cosmo. Em nível microscópio, não é menor o poder das imagens. Os mais íntimos recessos do corpo humano são visitados por máquinas não-invasivas, de ultrasonografia, ecografia, tomografia computadorizada, ressonância magnética etc., X
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máquinas destinadas a explorar o interior do corpo e devolver ao exterior imagens para o diagnóstico médico. Se no século XIX, Baudelaire via a cidade como uma floresta de símbolos, hoje é o planeta e suas cercanias, nossas moradas e nosso próprio corpo que se tornaram densas florestas das mais variadas espécies de signos, imagens, sinais e símbolos. A semiodiversidade, a diversidade semiótica do mundo está se tornando cada vez mais vasta e profunda. Quando escrevi esta Teoria Geral dos Signos (publicada inicialmente em 1995 pela Editora Ática), a hipermídia ainda não havia se difundido e da internet mal tínhamos ouvido falar. A rapidez com que as linguagens estão crescendo parece estar exigindo de nós que nossa interação com elas não se limite ao nível puramente intuitivo, mas que possamos dialogar com elas no nível mais crítico e reflexivo. Essa é a finalidade de uma Teoria Geral dos Signos. Equiparnos com uma capacidade de penetração analítica que nos permita ler os signos com a mesma naturalidade com que respiramos, com a mesma prontidão com que reagimos ao perigo e com a mesma profundidade com que meditamos. Lucia Santaella Kassel, junho/2000
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Sumário INTRODUÇÃO............................................................................................
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1. DO SIGNO............................................................................................... Um equívoco renitente ............................................................................ Sinais de alerta......................................................................................... A forma ordenada de um processo .......................................................... O fundamento do signo........................................................................... O caráter vicário do signo ....................................................................... A função mediadora do signo.................................................................. A questão da determinação...................................................................... O problema do significado ...................................................................... A incompletude-impotência do signo ..................................................... Retorno à infinitude ................................................................................
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2. DO OBJETO............................................................................................. A complexidade do objeto....................................................................... Experiência colateral ............................................................................... Dois tipos de objetos ............................................................................... Exemplos de objeto imediato .................................................................. Modalidades do objeto dinâmico ............................................................ Implicações do objeto dinâmico.............................................................. Objeto e percepção .................................................................................. A tríade perceptiva................................................................................... Gradações do percipuum............................................................................. Retorno ao objeto ....................................................................................
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3. DO INTERPRETANTE ............................................................................ O interpretante como terceiro ................................................................. As divisões do interpretante .................................................................... Momentos lógicos do interpretante......................................................... Uma segunda classificação do interpretante............................................ As duas tricotomias: uma visão de conjunto...........................................
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4. O SIGNO REVISITADO........................................................................... 89 Amplitude da noção de signo .................................................................. 90 As tríades dos signos ............................................................................... 92 Quali, sin e legi-signos ............................................................................ 96 Ícone, hipoícone, índice e símbolo.......................................................... 107 As tricotomias dos interpretantes ............................................................ 138 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................... 151
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Introdução Esse livro começou a ser escrito em 1987. De lá para cá, passou, pelo menos, por três interrupções. Duas delas, longas e por força de sofrimentos tão profundos e penosos que, por muito tempo, desacreditei que o alento espiritual e a pregnância do ideal, necessários para levar à frente o projeto de um livro, algum dia voltariam a me animar. Mas a vida tem vias de secreta sabedoria. Só as conhecemos se dermos a ela, vida, a chance de manifestá-las. A terceira foi mais recente e se deveu a uma razão diametralmente oposta às anteriores. Esse livro foi interrompido para que um outro fosse escrito. Como ambos são até certo ponto complementares, um ajudou o outro, assim como espero que um possa auxiliar o leitor a ler o outro. Refiro-me ao livro A assinatura das coisas – Peirce e a literatura, publicado pela Imago, em 1992. Faço tal referência porque a existência desse livro acabou por trazer conseqüências para essa introdução que abre o estudo sobre a semiose, apresentado nos capítulos subseqüentes. Octavio Paz diz que se ruim é citar-se, pior é parafrasear-se. Sigo, portanto, o caminho do menos pior. A introdução originalmente prevista deveria ser consideravelmente mais longa do que esta. Ela visava introduzir um estudo eminentemente monográfico que tem por objetivo colocar, em foco de aproximação máxima, a lógica do engendramento da semiose, o modo como o signo age ou – o que é a mesma coisa – como ele é interpretado para, então, seguir o trajeto dessa ação em câmera lenta. Numa explicação menos metafórica, o que se busca é examinar detalhada e vagarosamente a definição triádica do signo formulada por Peirce, com atenção às minúcias, em estado de alerta contra as ciladas das interpretações equivocadas e com abertura para as possíveis implicações, tanto dos fundamentos filosóficos, de um lado, quanto do potencial de aplicação dos conceitos semióticos, de outro. 3
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A menção à câmera lenta é procedente. São muitas as variações das definições de signos que Peirce elaborou. Todas muito sintéticas. Nenhuma vai além de um parágrafo. Pois bem, dois terços desse livro versarão apenas sobre a definição geral do signo. A cada membro da tríade da semiose (signo-objeto-interpretante) será dedicado um capítulo autônomo para, só ao final, no Capítulo 4, proceder-se ao exame dos diferenciados tipos de signos, das suas misturas, seus modos de significar, denotar, conotar, nascer, crescer, tudo isso à luz, então, de uma pluralidade de exemplos para trazer os conceitos para mais perto da experiência e do nosso convívio cotidiano. Quanto mais o tempo passa e quanto mais me aprofundo na obra peirceana, mais convencida vou ficando do valor extremo dessa obra na contribuição que pode prestar à compreensão de todos os processos de comunicação de qualquer tipo, ordem ou espécie, tanto no universo biossociológico das humanidades, quanto dos animais e também no mundo das máquinas inteligentes, até em qualquer outro mundo que possamos imaginar no qual ocorram processos comunicativos. Afinal, não há, de modo algum, comunicação, interação, projeção, previsão, compreensão etc. sem signos. Provavelmente, a tarefa mais cabal desse livro será patentear a onipresença inalienável dos signos. Tudo é relativo, porque tudo depende dos signos de modo absoluto. No limite, signo é sinônimo de vida. Onde houver vida, haverá signos. A ação do signo, que é a ação de ser interpretado, apresenta com perfeição o movimento autogerativo, pois ser interpretado é gerar um outro signo que gerará outro e assim infinitamente, num movimento similar ao das coisas vivas. O mundo está se tornando cada vez mais complexo, hiperpovoado de signos que aí estão para serem compreendidos e interagidos. Já é mais do que tempo de nos livrarmos, de um lado, do preconceito estreito e empobrecedor de que a noção de signo equivale exclusivamente a signo lingüístico, ou seja, de que só o signo verbal é signo. Também não ajuda muito, para superar esse preconceito, constatar que existem outros signos além ou aquém dos verbais, mas continuar a enxergá-los com os mesmos recursos de análise utilizados para entender os signos verbais. É enorme a profusão de signos distintos dos verbais. Cada um deles só será compreendido se for respeitado na sua diferença. Por outro lado, é tempo de nos livrarmos das visões mortificantes que a perplexidade diante do crescimento ininterrupto dos signos, linguagens e mensagens está produzindo em intelectuais conservadores, disfarçados de profetas do apocalipse. As postulações correntes de desrealidade, desreferencialização do mundo, morte da identidade do sujeito estão ainda, a meu ver, carregadas de todos os equívocos de uma herança cartesiana mal resolvida, como se tivesse havido algum momento privilegiado, adâmico, em que os signos não eram 4
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necessários para um sujeito auto-idêntico ter acesso a um “real” em estado de pureza, ainda não contaminado pelas linguagens. Evidentemente, essas questões são muito complexas. Nesse livro não se irá colocar foco direto nelas. Acredito, contudo, que se aprendermos a olhar os signos de frente, tanto na finíssima película de sua superfície, quanto na visão em raio X, despidos dos subterfúgios ardilosos que o racionalismo exclusivista não cessa de procriar, poderemos mediatamente enxergar com olhos renovados as eternas questões do “real”, da referência, do sujeito, do papel da representação e da interpretação. A obra de Peirce tem muito para nos ajudar nisso. Este é um livro de amor pelas minúcias, de calma e paciência para com os conceitos. Ir seguindo, com certo carinho, as nervuras de sua construção na convicção de que, quando bem-definidos e bem-compreendidos na sua formulação, os conceitos nos oferecem sua eficácia como recompensa. O leitor também encontrará aqui um grande número de citações de passagens dos escritos de Peirce. Isso é inteiramente proposital. A gigantesca obra inédita, que Peirce deixou ao morrer, foi e continua sendo vítima da tragédia de não ter recebido até hoje uma publicação decente e que lhe faça jus. A intenção é também organizar, comparar, oferecer ao leitor, tanto quanto possível, o acesso às fontes, para que ele possa me acompanhar no ato interpretativo quase em igualdade de condições. Aliás, esse ato não se fez sozinho. Há uma seleção de autores, intérpretes de Peirce pelos quais cultivo grande admiração. São objetos de minha escolha. Com eles, pus meu pensamento em diálogo para iluminar a teoria peirceana dos signos. Há ainda nesse livro, em cada frase, em cada palavra, um forte sentimento de gratidão que precisa ser explicitado. Graças à confiança que os órgãos de fomento à pesquisa, muito especialmente a Fapesp, mas também o CNPq e mesmo a Fulbright, têm depositado nos meus projetos, tive a oportunidade e o privilégio (aos quais não tenho poupado esforços para fazer jus) de estagiar, por várias vezes (algumas mais longas, outras mais curtas), na Universidade de Indiana, EUA, tanto no campus de Bloomington, com sua fantástica biblioteca – monumento de amor à beleza do saber, da cultura e ciência, localizada na Acrópole do campus – quanto em Indianápolis, no Peirce Edition Project, onde estão depositados os noventa mil manuscritos inéditos de Peirce. Durante esses estágios, assisti a vários cursos sobre Charles S. Peirce, em 1983, ministrado por Joseph Ransdell, em 1985, por Gérard Délledale, em 1988, por Christian J. W. Kloesel e Nathan Houser (editores do Peirce Edition Project), em 1992, por Nathan Houser e André De Tienne. A todos esses professores e especialistas, sempre tão abertos à escuta da alteridade, sou sinceramente grata. Com Joseph Ransdell, mais particularmente, tenho uma dívida de aprendizagem inolvidável. Em 1983, esse grande mestre colocou nas mãos de seus alunos o manuscrito de sua obra sobre a semiótica peirceana. Esta obra, até hoje em progresso, infelizmente não foi ainda publicada, mas o efeito desse ma5
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nuscrito sobre o meu entendimento de Peirce foi e continua sendo indelével. Creio que, ao longo de tantos anos de consultas e leituras repetidas, devo saber esses manuscritos quase de cor. A presença de J. Ransdell, nesse livro, é marcante. Espero que o espírito de generosidade, concentração quase insana no objeto do pensamento, disponibilidade para a dúvida, que definem o perfil desse magnífico professor, também tenham deixado aqui, talvez por obra de alguma magia contagiosa, algumas marcas. É ainda profunda a minha gratidão para com Thomas A. Sebeok e Jean Umiker-Sebeok, diretor e diretora associada do Research Center for Language and Semiotic Studies, em Bloomington, pela exímia eficiência profissional, aliada ao calor sincero de uma amizade honesta e sadia com que me recebem na sua grande casa intelectual. Quando mencionei, no início da introdução, que esse livro e A assinatura das coisas são complementares, essa complementaridade não deve ser entendida como sinônimo de similar. Embora ambos tratem da obra de Peirce, creio que eles são diametralmente opostos. Esse é um livro monográfico e detalhista na sua verticalidade. Da gigantesca obra de Peirce, foi selecionada apenas uma parte, a semiótica. Uma vez mais ainda, num outro recorte, dentro da semiótica e dentre seus três ramos (gramática especulativa, lógica crítica e retórica especulativa), foi selecionado apenas o primeiro ramo. Enfim, trata-se aqui apenas de tentar compreender a lógica do signo e seus mecanismos de engendramento, misturas e multiplicação, com toda a perfeição possível, ou melhor, numa luta cabal pela perfeição, justo porque se sabe que a imperfeição é a sina humana, nossa fragilidade e, ao mesmo tempo, nossa grandeza. Costumo dizer que se os deuses fossem humanos, saberiam o que é a luta pela perfeição. A semiótica está no coração da obra peirceana. Ocupa a posição de um centro vital. Mal se pode compreender essa obra sem o batismo da compreensão da semiose, verdadeiro sistema nervoso central ou corrente sangüínea do pensamento peirceano. Para ficarmos por aqui nessas robustas metáforas biológicas, esse livro pretende circular nessas veias. Um tal nível de especialidade pressuporia que o leitor fosse apresentado, antes de tudo, ao panorama geral da obra de Peirce para que, dentro dela, pudesse localizar a semiótica e, nesta, o papel da semiose. Ora, essa visão panorâmica aprofundada está dada no livro A assinatura das coisas, especialmente no Capítulo 4, denominado “O tempo da colheita”. Não incorrerei na segunda falha apontada por Octavio Paz, não me parafrasearei. Remeto para A assinatura das coisas os interessados num aprofundamento sobre o diagrama geral da obra peirceana, razão por que esta introdução pôde ser reduzida em relação ao seu plano original. Mas, para que não fique nesse livro, que ora entrego à atenção do leitor, uma lacuna que o colocaria de sobressalto diretamente no curso do signo, que é aquilo sobre o que o Capítulo 1 discorrerá, passo a apresentar, a seguir, uma brevíssima panorâmica de um 6
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setor da obra de Peirce, especialmente voltada para suas categorias fenomenológicas, pois é diretamente delas que nasce a semiótica e a definição de signos nas suas múltiplas facetas.
Da fenomenologia à semiótica Foi em torno dos 12 anos que Peirce começou a estudar lógica. Poucos anos depois, estudou intensivamente as cartas de Schiller e, então, passou para Kant, cuja Crítica da razão pura, depois de dois anos de estudos obstinados, sabia quase de cor. Conhecia profundamente os gregos, os empiristas ingleses, a lógica escolástica e todos os idealistas. Ao completar 28 anos, já havia publicado alguns trabalhos importantes, mas aquele que viria marcar profundamente sua obra futura seria Sobre uma nova lista das categorias. Resultado de dois anos de estudos intensíssimos, a tarefa pretendida e realizada nesse trabalho foi dar à luz as categorias mais universais de todas as experiências possíveis. Seguindo a mesma terminologia de Aristóteles (hai kategoriai) e de Kant (die kategorien), por considerar seus propósitos comparáveis aos desses pensadores, Peirce via sua empresa como muito mais ambiciosa e radical do que aquelas que seus antecessores, inclusive Hegel, levaram adiante. Como ponto de partida, sem nenhum pressuposto de qualquer espécie, Peirce voltou-se para a experiência ela mesma. Como entidade experienciável (fenômeno ou phaneron), considerou tudo aquilo que aparece à mente. Sem nenhuma moldura preestabelecida, sua noção de fenômeno não se restringia a algo que podemos sentir, perceber, inferir, lembrar, ou localizar na ordem espaço-temporal que o senso comum nos faz identificar como sendo o “mundo real”. Fenômeno é qualquer coisa que aparece à mente, seja ela meramente sonhada, imaginada, concebida, vislumbrada, alucinada... Um devaneio, um cheiro, uma idéia geral e abstrata da ciência... Enfim, qualquer coisa. Como procedimento, Peirce realizou o mais atento e microscópico exame do modo como os fenômenos se apresentam à experiência. Esse exame tinha por função revelar os diferentes tipos de elementos detectáveis nos fenômenos para, a seguir, agrupar esses elementos em classes as mais vastas e universais (categorias) presentes em todos os fenômenos e, por fim, traçar seus modos de combinação. Essa análise radical de todas as experiências, segundo Peirce, é a primeira tarefa a que a filosofia tem de se submeter. Ela é difícil, talvez a mais difícil de suas tarefas, exigindo poderes de pensamento muito peculiares. Não obstante a dificuldade de tal empresa, Peirce a enfrentou sem desvios, chegando à conclusão de que só há três elementos formais ou categorias universalmente presentes em todos os fenômenos, as quais não podem ser confun7
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didas com entidades puras. Há infinitas modalidades de categorias particulares que habitam todos os fenômenos. Estas, no entanto, são as mais elementares e universais, tão gerais que podem ser vistas mais como tons, humores ou finos esqueletos do pensamento do que como noções definitivas. São pontos para os quais todos os fenômenos tendem a convergir. Terminado o estudo, apesar do rigor que nele empenhara, Peirce julgou-se vítima de uma auto-ilusão. Reduzir a multiplicidade e variedade dos fenômenos a três elementos parecia-lhe fantasia absurda. Mas as categorias continuaram resistentes às suas repetidas investidas para refutá-las. Tanto é que, em 1885, treze anos mais tarde, ele produziu um outro estudo: Um, dois, três: categorias fundamentais do pensamento e da natureza. As categorias voltavam agora com mais vigor, estendidas para toda a natureza. Por quase trinta anos, Peirce buscou comprovações empíricas para elas, encontrando-as em todos os domínios, da lógica e psicologia, à metafísica, fisiologia e física. As denominações que as categorias receberam foram várias, visto que elas assumem naturezas diferenciadas, dependendo do campo ou fenômeno em que tomam corpo. Apesar da variabilidade material de cada fenômeno específico, contudo, o substrato lógico-formal das categorias se mantém sempre. Daí Peirce ter finalmente fixado para elas a denominação logicamente mais pura de “primeiridade, secundidade e terceiridade”. O primeiro está aliado às idéias de acaso, indeterminação, frescor, originalidade, espontaneidade, potencialidade, qualidade, presentidade, imediaticidade, mônada... O segundo às idéias de força bruta, ação-reação, conflito, aqui e agora, esforço e resistência, díada... O terceiro está ligado às idéias de generalidade, continuidade, crescimento, representação, mediação, tríada... É justamente a terceira categoria fenomenológica (crescimento contínuo) que irá corresponder à definição de signo genuíno como processo relacional a três termos ou mediação, o que conduz à noção de semiose infinita ou ação dialética do signo. Em outras palavras: considerando a relação triádica do signo como a forma básica ou princípio lógico-estrutural dos processos dialéticos de continuidade e crescimento, Peirce definiu essa relação como sendo aquela própria da ação do signo ou semiose, ou seja, a de gerar ou produzir e se desenvolver num outro signo, este chamado de “interpretante do primeiro”, e assim ad infinitum, conforme será visto detalhadamente no Capítulo 1. Assim sendo, uma interpretação, um ato interpretativo aqui e agora de um signo não é senão um caso especial do interpretante, uma vez que este é, por natureza, mais geral, social e objetivo do que um ato particular e exclusivo de um só intérprete, questões estas que serão aprofundadas no Capítulo 3. Mas um signo só pode funcionar como tal porque representa, de uma certa forma e numa certa medida, seu objeto. O objeto do signo não é necessariamente aquilo que concebemos como “coisa” individual e palpável. Ele pode ser desde mera possibilidade a um conjunto ou coleção de coisas, um evento ou 8
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INTRODUÇÃO
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uma ocorrência até uma abstração ou um universal. No caso da semiose genuína (triádica), o objeto do signo é sempre um outro signo e assim ad infinitum, conforme veremos no Capítulo 2. O que disso se pode provisoriamente concluir é que a semiótica peirceana é uma teoria lógica e social do signo. A objetividade do interpretante é, por natureza, coletiva, não se restringindo aos humores e fantasias pessoais de um intérprete particular. A ação de gerar, cedo ou tarde, interpretantes efetivos é própria do signo, cujo caráter não é aquele de uma matéria inerte e vazia à espera de um ego auto-suficiente que venha lhe injetar sentido. Além disso, a semiose não é antropocêntrica. A autogeração não é privilégio exclusivo do homem. Ela também se engendra no vegetal, na ameba, em qualquer animal, no homem e nas inteligências artificiais. Para completar, a teoria dos signos é, por fim, uma teoria sígnica do conhecimento. Todo pensamento se processa por meio de signos. Qualquer pensamento é a continuação de um outro, para continuar em outro. Pensamento é diálogo. Semiose ou autogeração é, assim, também sinônimo de pensamento, inteligência, mente, crescimento, aprendizagem e vida. Como isso se dá é o que esse livro pretende trazer à luz.
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Esse retorno, pelo qual vamos ansiando tanto quanto pelo esclarecimento final do crime, num policial, traz ao leitor a recompensa final da eficácia do conceito, a surpresa de um autor melhor delineado, a riqueza de uma obra permanentemente “em progresso”. Este livro realiza a proeza de ao mesmo tempo nos introduzir à semiótica, nos conduzir através de uma paisagem pouco visitada e nos fazer mergulhar numa das mais importantes tentativas de erguer uma teoria geral dos signos.
A autora é Lucia Santaella, semioticista brasileira que, há anos, vem se dedicando ao difícil e necessário trabalho de percorrer a vastíssima obra de Peirce, em boa parte ainda inédita, à cata tanto das pistas quanto das informações explícitas que permitam retomar e levar adiante a inacabada semiótica de Peirce. Por isso mesmo, essa obra destina-se àqueles que, não se satisfazendo com as versões simplistas e reducionistas da semiótica, desejam entender o extraordinário poder dos símbolos, sinais, códigos e linguagens que transitam nos processos de comunicação e hoje povoam as modernas mídias eletrônicas.
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Capa Teoria Signos quinta-feira, 14 de junho de 2012 14:20:41
A TEORIA GERAL DOS SIGNOS
teoria geral dos signos é um livro consagrado à admirável obra do lógico e filósofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914), hoje internacionalmente reconhecido como um dos mais importantes pensadores americanos de todos os tempos. Suas preocupações com as leis e a organização geral do pensamento, das ações e da sensibilidade humanas o levaram a postular, como fundamento da lógica, uma teoria geral dos signos, também chamada de semiótica, cuja tarefa é desvendar o que são e como operam os signos e, por meio deles, o próprio pensamento e, conseqüentemente, os modos pelos quais podemos compreender as coisas.
Lucia Santaella
Assim, a semiose, o complexo processo por meio do qual o signo constrói a representação e torna possível a comunicação, vai revelando a lógica única e absoluta de seu engendramento, numa verdadeira autogeração. Concentrando o melhor de seus esforços no Peirce menos conhecido do público, Santaella adentra o labirinto dos manuscritos inéditos. Percorre-o com firmeza e determinação, e não esquece de ir desenrolando, a cada passo, o novelo da leitura atenta e sistemática, cujo fio garantirá a volta segura.
O extraordinário poder das comunicações de massa, as modernas mídias eletrônicas renovam a cada minuto a perplexidade e o interesse do homem contemporâneo diante da proliferação dos signos e de seu funcionamento, muitas vezes caprichoso e obscuro. É por essa razão que a semiótica de Charles Sanders Peirce está na ordem do dia, muitas décadas depois da morte de seu mentor; e é cada vez mais comum ouvir-se falar de Peirce, de símbolos, ícones, índices, semiose, etc. Esse apressado mundo das mídias – que continuamos precisando decifrar, se não quisermos ser devorados – talvez seja um dos principais responsáveis pelo fato de, mesmo estando na moda, Peirce e sua semiótica continuarem sendo conhecidos “de orelhada”.
Como as linguagens significam as coisas
Lucia Santaella
É na contracorrente desse “ouvir dizer” que Lucia Santaella não se cansa de remar. Como ela mesma diz, “este é um livro de amor pelas minúcias, de calma e paciência para com os conceitos”; a calma e a paciência necessárias para que os pormenores de uma primeira impressão possam revelar-se, por assim dizer, “pormaiores”, capazes de esclarecer, na obra de Peirce, o que já era hábito considerar “obscuro por natureza”.