Textos de Jan Araújo, Ludmila Alves e Matias Monteiro
O Centro Cultural Câmara dos Deputados é responsável pela preservação do acervo museológico da Câmara dos Deputados e pela realização das ações culturais que ocorrem na instituição, como exposições artísticas e históricas e eventos literários. Além de promover as culturas regionais e a produção artística contemporânea nacional, o Centro Cultural atua na preservação da memória da instituição e na história do Poder Legislativo. Idealizado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, o Palácio do Congresso Nacional abriga obras de artistas brasileiros renomados da segunda metade do século XX, como Di Cavalcanti, Athos Bulcão e Marianne Peretti. Com o intuito de viabilizar a diversidade e a qualidade das exposições realizadas pelo Centro Cultural, todos os anos promovemos um edital público para a seleção das mostras artísticas e históricas que ocuparão, no ano subsequente, os espaços destinados aos eventos culturais. As propostas apresentadas são avaliadas por uma Comissão Curadora e, desta forma, o Centro Cultural proporciona a artistas e curadores de todo o Brasil a oportunidade de apresentar seus trabalhos em áreas da Câmara dos Deputados onde há grande circulação de visitantes de diversas partes do país, propiciando o exercício e a promoção da cultura e da cidadania.
I. A terra inconstruível: linhas do canteiro
Jan Araújo
II. Fósseis do futuro
Ludmila Alves
III. Pairos e equívocos: coreografias
Matias Monteiro
Jan Araújo
Ludmila Alves
Matias Monteiro
I. A terra inconstruível: linhas do canteiro
Jan Araújo
Antes de entrar na matéria – marcar a bifurcação da natureza, o período moderno inteiramente colorido por ela – tentemos reconhecer os materiais do plano do artista, no intento de aprender algo sobre os eventos e as relações envolvidos na feitura de um lugar. Do o projeto ao concreto, as abstrações que construímos marcam um embate entre papel e estrutura, natureza e artifício, operações repletas de equívocos de uma concretude mal colocada. Como vemos já pela entrega de chaves da casa modernista, a ferrugem nunca dorme: a capital como forma transcendental e o imperativo do novo se impregnam com o suor do ferro, se espantam ainda que a mobília do mundo respira e é móvel. Concreto voador que aterrissa sobre o peito escarificado do Planalto Central. Como nos diz o Ferro, o Concreto é uma arma. Chega justo como força monocultural contra as maestrias artesanais e a memória da terra habitada. É da impossibilidade material de controlar e de subjugar os saberes e ofícios construtivos da pedra e da madeira que
surgem o ferro e o concreto armado como armas da arquitetura moderna.
Da implosão de interiores engessados, da coleta de ruínas, são reunidas aqui ossaturas (vértebras, colunas, dígitos, fósseis férreos), ferros velhos incrustados como joias em painéis seriados: variações morfológicas que especulam mutações da espécie. Organismo e mecanismo se fundem a partir dos tecidos vegetais que revestem os metais, sudários de um trabalho suado que não deixa de desvelar o desmembramento de seus pares. Singularidade contra a homogeneização crescente do espaço, do lugar como commodity descartável e intercambiável. História espacializada contra as armas da abstração. Entremeada numa lógica modular, repetitiva, acaba por encontrar uma ontopologia, um modus operandi vacilante composto de gestos que nos ensinam como encontrar um lugar numa cidade de espaços. Como habitar a abstração. A entrada se vê um mirante, ruínas circulares de uma Atlântida altiplânica. Mudança sucessiva de planos: um espelho d’água na parede dando a ver a cidade submersa, cruz cartesiana transfigurada em runa. Tabula rasa esburacada com rugas milenares, conjurada fundamentalmente pela concentração de energia humana, canto de trabalho que vai compondo um território desalinhado, impaginado. Nessa miragem o frágil fragmento,
as miniaturas, tomam formas monumentais, continentais (ainda que parciais). Gesso e calcário, placas rupestres queimadas, enlameadas de argila, cinzas volantes. Como se as paredes, descascadas como o bioma, deixassem entrever uma geografia esquecida. Nesse lugar parece operar uma espécie de equivocação controlada, geoengenharia reversa que utiliza as ferramentas da modernidade para ler os grafismos da Terra.
Contrariando a lei do horizonte, do tombamento, há o derrube, movimento determinado em que o chão se verticaliza. Fruto de multirrotas orogênicas os arquipélagos verticais são um esforço recombinatório, testemunhos de uma era de grande plasticidade e reconfiguração espaçotemporal, onde (quando) cai suspenso o antiplástico do firmamento. Este congelamento mítico, um espejismo da plasticidade da estrutura cósmica, nos faz ver no fim o começo: desconhecer para reconhecer. O que é uma serra? Um planalto? Uma chapada? Uma colina? Uma quebrada? Os estilhaços destelham formas, pedras, pássaros no espaço (vejo Brâncusi numa onda radial etíope), a terra cultivada em altura, em variedade, em extensão e intenção. O plano voa. E da nostalgia geográfica entre a crosta terrestre e a malha de alvenaria, contra a hidroponia arquitetônica, que imagina que se poderia imprimir uma cul-
tura sem chão e a rede trófica do solo, surge um jogo tétrico e ludita de sabotagem contra a arquitetura. Um jogo de níveis na cidade plana, a criação de uma costa e de uma cordilheira para Brasília.
Em determinado instante uma paisagem de “falenas” se conforma. Antes que um plano, conformam um solo, um opaco espelho divinatório, asas com olhos que revelam um avesso lunar. Se camuflam, e um poderia tentar se situar nesse território, nesse campo minado, listando uma tipologia, mas claramente seria um engano quando a morfologia é de natureza metamórfica, se adequa ao sítio. A ciência concreta mais adequada para sua leitura, ou melhor, a arte do concreto –de origem próxima às das lajes cogumelo – é a Fitografia, conhecida como a escritura das plantas baixas. Praticada por árvores petiças e retorcidas, atua na decomposição de memoriais brutalistas, máquinas de moer gente, imunes a uma atmosfera cada dia mais hostil. Molda fósseis vivos, fitólitos sobreviventes, em suportes fitográficos. Sua principal função hoje é, no entanto, encontrar no concreto as pegadas da floresta devorada. Traçado, contorno, preenchimento, são tarefas didáticas da imaginação territorial postas em movimento pela necessidade do ensino da forma, ensino do espaço, da construção de mundo. Se poderia construir um
território desde o vazio, como o corpo oco da cerâmica, a espiral do grau zero, o vazio que sustenta: um desenho de placas tectônicas, cordas, protótipos, serpentes de barro, ou seja, o humano em sua essência de húmus.
A invenção de vazios foi porém também a grande estratégia do esforço endocolonial de ocupação dos interiores do continente.
O mapa que consumiu o território: extrativismo, promessas de progresso, desenvolvimento, futuro, saltos, “pacificações” brutais, avançadas… a colonização do interior como criação e preenchimento de vazios demográficos, morais, civilizatórios.
Construir uma nação desde o vazio, disseminar marcas de países numa terra com vocação camaleônica, com simultaneidade de dimensões e uma identidade pluriversal, nos deixou com as ruínas do mapa. Surpreende a quantidade de mapas da América Latina que são na verdade mapas da América do Sul (penso em visionários como Juan Downey, Horacio Zabala, Joaquín Torres-García…). Parecera a princípio que o imperialis-
mo ianque conseguiu de fato fazer um corte profundo no Tampão de Darién, estancando trocas e fluxos multidirecionais, soterrando as pegadas dos caminhantes de Acahualinca.
Ou que a Coroa espanhola logrou construir de fato uma ponte feita de prata, de Potosí até Sevilha, deixando para trás as montanhas ocas. Encontramos somente assombrações, ranhuras, delírios e caprichos geopolíticos.
O arquivo das páginas que faltam. Linhas antiquadas marcando a contagem regressiva duma clepsidra sanguínea, grande fluxo antes da troca de pele, Corrente de Humboldt, Neotrópico de Capricórnio, Tratado de Tordesilhas, Anomalia do Atlântico Sul. O confim como começo: seria essa configuração antes um ponto de vista parcial, contra qualquer universal? Partes-todo, tempo-filme: assim se mostram, isto é, se ensinam, os videogramas do subcontinente. Provisório, precário e situado; o presságio de uma rodagem por vir.
II. Fósseis do futuro
Ludmilla
Alves
através
olhando restos materiais e gestos, tentei compor fragmentos, possibilidades em aberto, talvez imagens para serem lidas. um mapa, muitos caminhos –decidi seguir o percurso de pedaços e palavras que foram se soltando da cidade, do tempo, da história. eu, também catadora, me inclinei e reuni
cacos estávamos ali no suposto centro da cidade pensando dizendo a cidade, talvez sonhando a cidade impossível eu não sei se o mapa sonhado moraria dentro da cidade planejada, construída se alguma linha de ferro poderia sustentar o conflito entre os discursos e a incontornável dureza dos fatos, das relações sociais, das ações concretas. e então como se a matéria fosse atravessada por feridas relacionais, históricas, olho as cores do ferro
1. Paulinho
outra imagem do tempo a terra debaixo do asfalto ou as ruínas da cidade submersa1 entre pilotis, paredes, palavras aparecendo através daquilo que se desprende das coisas e do corpo da cidade. imagino, com o tempo: alguma mensagem se acomoda na folha-ferro?
da Viola. Cidade Submersa, 1973.
caminhos do gesto catar pedaços vindos de um barco um automóvel uma casa um prédio, restos sobreviventes de estruturas erguidas por mãos anônimas
2. Refiro-me às legendas e à descrição do trabalho de Clara Ianni. Free Form, 2013. Disponível em: https:// claraianni.com/free-form/.
Acesso em: maio 2024.
silêncio proibido leio fragmentos desse obscuro episódio da construção da capital2: Brasília, 1959. foi aberta num ponto central da cidade uma vala imensa para comportar os corpos dos trabalhadores mortos pela polícia, durante uma revolta contra a companhia construtora e as condições de trabalho workers were killed at the construction company…
entrevistadas a respeito, figuras importantes implicadas no projeto construtivo disseram: i never heard about that i never heard about it
patrimônio histórico
não consigo parar de pensar nos monumentos assentados sobre os ossos dos mortos
fissuras
estruturas equívocas linhas antiquadas arquipélagos azulejos e nesse desarranjo tento observar a estrutura delirante onde se assentam as coreografias dos passos dessas vidas todas
falenas mariposas, vaga-lumes, asas caídas uma folha em queda pousa no concreto ainda molhado e talvez ainda não saiba mas ficará ali, absorvida, seu corpo de folha entregue ao chão
monumento-contra-monumento
enquanto procuro me mover entre as imaginações de futuro, a transformação da matéria e aquilo que petrifica, você pensa nas falenas como poemas para os candangos que morreram no concreto
3. Filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Bacurau, 2019. Ficção/ Faroeste.
museu histórico em bacurau3, há uma sequência de velório e celebração que de algum modo, para mim, está ligada a essa conversa e a tantas coisas que poderíamos aprender a partir daí. mas tudo isso e as histórias que podem vir junto dos trabalhos me fazem querer comentar uma outra cena: após um massacre dentro do museu histórico da cidade, a responsável pela instituição decide não lavar as manchas de sangue deixadas nas paredes – para que elas possam contar às gerações futuras o que aconteceu ali
imagino e se, numa reviravolta, as paredes tomassem a palavra e nos contassem, elas, as histórias da construção? cascas e asas e cacos, os restos como testemunhas
é preciso coragem para olhar uma luz inquieta no escuro se insinua e desaparece as quedas de folhas absorvidas pelo concreto, petrificadas, seus corpos marcados desse acidente, adicionando mais uma camada à vida do chão mãos e asas e ossos
revoluções
o tempo trata de revolver o solo de histórias submersas
a folha e o ferro guardando uma carta as coisas como seixos rolando no rio do tempo
subterraneamente penso nas revoluções a partir do gesto de olhar e catar coisas do chão os ossos de brasília, as últimas paisagens4 uma folha se entrega à queda, pousa no concreto ainda molhado e ficará ali como um lembrete imprevisto na estratégia urbana, uma infiltração, um poema escrito na calçada
4. Gilberto Gil. Objeto Sim, Objeto Não, 1969.
5. Georges Didi-Huberman. Levantes. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2017.
desejo da terra me pergunto se um monte de folhas levantadas sustentaria uma insurreição poética e “poética” não quer dizer “longe da história”, muito pelo contrário. levantes lampejos desafiando as leis da atmosfera o tempo se solta das amarras os elementos se desencadeiam o tempo todo o corpo da cidade reencenando histórias da construção de algum modo, folhas poemas cacos ferros estruturas e paredes se reúnem, para mim, numa espécie de de desejo de vida, indestrutível revirar a gravidade que nos prende ao chão, até que as próprias paredes tomem a palavra5
6. Didi-Huberman. Levantes
São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2017
noturnas forças que são antes de tudo desejos e imaginações, reaberturas de possibilidades6. quinta-feira nas ruas de brasília – terá caído um ferro essa noite, desprendido de outra engrenagem, nalgum terreno baldio?
josé silva guerra alguns anos atrás, ocorreu um vazamento na laje onde fica a cúpula do plenário da câmara dos deputados. foi preciso fazer um buraco pra entrar e corrigir. lá pelas tantas, um dos operários ligou para o engenheiro chefe dizendo que encontrou ali “umas coisas estranhas, umas poesias” escritas por josé silva guerra, essas palavras levaram aproximadamente de 60 anos para vir à tona: que os homens de amanhã que aqui vierem tenham compaixão dos nossos sonhos e que a lei se cumpra nesse lugar dura lex sed lex7
7. Descrição disponível em Conta-contos - Homenagem ao dia do servidor, Câmara dos Deputados: https://youtu.be/yaGnpZmKEWI?si=9CJHgmE5viOO7RAk
olhar de novo não estaremos aqui para saber se, daqui a algum tempo, as paredes serão lidas como testemunhas de histórias soterradas ou se as folhas falenas nos fariam sonhar outros monumentos, mas talvez a gente continue catando restos. enquanto o tempo passa, enquanto olho novamente pela possibilidade de imaginar os fósseis do futuro, perguntar o que viram.
Faz urbanismo o escultor, faz urbanismo o pintor, faz urbanismo até mesmo quem compõe uma página tipográfica.1
1. ARGAN. G.C. Urbanismo, Espaço e Ambiente. In: História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
Esta, como todas as outras, é uma escrita feita de restos; Suponha-se uma grafia do mundo; desde este incessante embate de texturas, de toda sorte de matéria que, por ação do tempo e dos elementos, risca, traça e sulca superfícies. Que se talha em grandes colisões e pequenos atritos, aos sopros e solavancos, impressões gentis e investidas brutais. Nada ali se exprime ou se codifica senão a retificação da marca do mundo em sua condição abrasiva. E, todavia, em prontidão e de bom grado, tentamos lê-la.
2. BLANCHOT, Maurice. A Conversa Infinita: a palavra plural. São Paulo: Escuta, 2001.
3. COCTEAU, Jean. Essai de critique indirecte: Le mystère laïc – des Beaux-Arts considérés comme un assassinat. Paris: Éditions Bernard Grasset, 1932.
4. PONGE, Francis. Métodos Rio de Janeiro: Imago. 1997.
5. KRISTEVA, Julia. Elipse sobre o pavor e a sedução especular In: Psicanálise e Cinema. Lisboa: Editora Relógio d’água, 1984.
Como generoso manancial, essa condição gráfica do mundo antecede e antecipa a escrita humana. Não apenas isso, ela também burila a superfície da linguagem quando, sorrateira, se inscreve em cada palavra; ranhura sutil, como as digitais que desenham labirintos nas pontas dos dedos.
A escrita humana é enriquecida por estes vazios anteriores2, como desconcertante expressão deste rumor vegetal3 (quem se atreveria a lê-lo sem embaraço?) que se encava nos enunciados, que faz opacidade na língua, demanda contínua, interminável, de ser outra coisa4. Ser coisa alguma, e, ainda assim, coisa. Ser outra coisa da escrita: sem significado que nada tem de insignificante5 . É preciso seguir com cautela.
Aventura-se na escritura aquele que explora um território, não poderia ser diferente. Afinal, ler é uma exigência de deslocamento por superfícies suficientemente complacentes (como uma pele, um osso, uma pedra, uma madeira, um papiro ou um papel). É preciso passar os olhos, esfregar os dedos: a leitura é uma coreografia no sentido que nela o movimento é codificado e orientado por uma convenção social, que lhe impele sentido e direção, e por um conjunto de sinais gráficos que encadeia seu avanço. E, como todo o deslocamento, ela não está isenta de seus desequilíbrios e
6. CERTEAU, Michel de. Caminhadas pela Cidade. In: A Invenção do Cotidiano – artes de fazer. Pehtrópolis: Ed. Vozes, 1994.
7. VALERY, Paul. Variedades
São Paulo: Iluminuras, 2007.
8. VALERY, Op. Cit
9. LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro. Rocco. 1999.
10. GEHL, Jan. Cidades para Pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2013.
11. CENDRARS, Blaise. Etc..., Etc... (um livro 100% Brasileiro) São Paulo: Editora Perspectiva, 1976.
vertigens, quando se atinge os limites mais íngremes da escrita.
Lê-se um espaço construído, planejado, domesticado à ergonomia. A cidade é um fenômeno discursivo que também se produz numa negociação (disputa) de gestualidades6. O sistema urbano, performado e apropriado como textualidade enunciada, só pode objetivar o mesmo que todo texto: promover um encontro7. Deslocar-se pela cidade é lê-la, proferi-la, vociferá-la e interpretá-la (como prosa ou poesia, caminhando ou dançando8 é um ato geopoético e geopolítico. É também arqueologia, pois é como um palimpsesto que a grafia da cidade se acumula, se tece e se deslinda por meio também de suas fissuras, suas pequenas erosões, através de tudo aquilo que, em sendo também cidade, se sonha ruína.
No entanto, não é a um conceito abstrato ou genérico de “cidade” que a obra de Gregório Soares alude, mas a uma experiência singular: Brasília.
De fato, muito já foi dito sobre Brasília: sua condição de espantoso enigma9, a dimensão de fracasso urbano rodoviarista10, mesmo sua função delirante11 e de sonho profético e, todavia, permanece Brasília como um desafio de leitura.
O projeto de Brasília se organiza e fundamenta não apenas nos princípios
plásticos arrojados e cosmopolitas da arquitetura moderna brasileira, nem em seus ideais funcionalistas, mas, sobretudo, em uma suposta superação da disputa entre a exaltação neocolonial e o sincretismo compositivo da arquitetura eclética. É preciso dizer, de partida, Brasília, antes de uma cidade, fora um projeto: um plano-manifesto, um programa social e uma obra de arte. É como um monumento trans-histórico que a nova capital fora proposta a tempo algum. Seu passado parece sempre espelhar um projeto de futuro: o modernismo, o progresso industrial, o processo de urbanização e interiorização do país... Qualquer antítese desse projeto não parece sequer estar condicionada a uma função de passado a ser superado. O discurso desenvolvimentista almeja suplantar e obliterar por completo qualquer aspecto contrário, o que se evidencia, por exemplo, na necessidade retórica de constituir o Planalto Central como terra rasa simbólica e imaginária, emergência naturante de um cerrado tomado como savana continental a ser dominada. Assim, desde o princípio, Brasília é proposta como um gesto ex nihilo, que é capaz de, em um movimento só, se apropriar simbolicamente de um território e, simultaneamente, fundar seu sistema urbano na conversão gráfica da intersecção de
duas linhas retas, que demarcam um limite topográfico e propõem um reordenamento sob a égide de um escoamento rodoviário concêntrico. Projeta-se uma cidade com engenho e eficiência, um bem-estar comunitário, uma forma de viver articulada nos conceitos modernos de unidade-vizinhança, cidade-parque, superquadras... Como ler a marca colonial de Brasília com projeto de dominação territorial, de exploração violenta e sistemática do trabalho, de exclusão e marginalização de sua população nos contínuos ciclos de ocupação e reassentamento?
É preciso ponderar: uma cidade planejada, no entanto, jamais se reduz à realização de um projeto. Por mais rigorosa que seja sua execução ou por maior que seja a mobilização de forças e interesses políticos, um projeto urbanístico permanece irrevogavelmente em sua condição de estimativa, plano, esboço. A cidade, é forçoso reconhecer, é outra coisa ; organismo vivo, que se orienta e realiza por meio de vivências e anseios comunitários, trilhas do desejo: disputas, afetos, dominações, exclusões, enfrentamentos... Ler a cidade não é o mesmo que ler um projeto, o que nos leva a crer, há um hiato entre Brasília como projeto modernista e Brasília como prática urbana.
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Gregório Soares, Fissuras: estruturas equívocas, 2012, fotografia (detalhe de tríptico).
Identifiquemos como a obra de Gregório Soares declina reiteradamente a escala monumental de Brasília. Nada aqui se refere a seus palácios, suas vias largas, sua Esplanada. Pelo contrário, seu olhar volta-se sobretudo a pequenos incidentes, às escalas ínfimas, em especial a suas referências afetivas (a azulejaria de Athos Bulcão, os pilotis que produzem a experiência lúdica do embaixo do bloco, o contraplano da base da Torre de TV).
Por outro lado, parte de sua produção parece reencenar formalizações projectuais (seus esboços, sua alusão a escalas, suas seriações, modulações e apresentações ortogonais). Há uma inversão e uma tensão primordial nessa obra: não é do projeto que se apreende a experiência-leitura da cidade, é a cidade que parece revelar em cada fissura, em cada fenda, sua condição como uma espécie de fantasmagoria do projeto.
O artista inventa e manipula pequenos fragmentos da cidade, rearranjando e reordenando-os sob uma lógica formal; exercício peculiar no qual escombros ininteligíveis são insistentemente tratados como elementos textuais. Essa, como todas as outras, é uma escrita feita de restos.
Podemos aludir aqui ao empreendimento de Georges Didi-Huberman, que coleta e distribui sobre uma superfície cascas de árvores dos arredores de Auschwitz, na tentativa
12. DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. São Paulo: Editora 34. 2017.
13. BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
de rudimentar uma escrita e ler uma carta que jamais alguém escreveu10; ou à Elida Tessler quando, em obra homônima a Kafka, destrincha uma máquina de escrever, a decompõem em seus mínimos elementos e os dispõem como letras em sua própria “carta ao pai”. Há, indubitavelmente, uma gramática do ilegível, uma escrita que reitera incessantemente senão a marca do mundo em sua condição abrasiva. Um rumor que nada afirma, senão sua condição essencial de ser sempre outra coisa. Vez por outra, desmontar relógios pode, por fim, nos permitir ler algo sobre o tempo13.
Examinemos este conjunto de rachaduras, assim dispostos como um feixe, um fluxo coeso (uma falésia, um rio, um relâmpago, uma sentença). Vejamos estes pilotis, assim fragmentados e decompostos em intervalos regulares e precisos, em modulação rítmica que lhes nega justamente sua viabilidade como sistema construtivo. O pavimento que racha ou o pilar que nada sustenta são imagens de uma desfuncionalização de recursos urbanos e arquitetônicos. Reimagina-se, nestes fragmentos sutis, Brasília como uma superfície perene, na qual cada fissura sugere (ou produz) um bastidor. Não é, portanto, fortuito ou casual que estes elementos sejam reorganizados e reordenados segundo princípios composicionais rigorosos. Ao revelar em seu ato de leitura a
Gregório Soares,. Fissuras: estruturas equívocas, 2012, fotografia (detalhe de tríptico).
cidade como uma trama gráfica, palimpsesto, Gregório escava superfícies para revelar camadas adjacentes; uma cidade outra. Este empreendimento talvez encontre sua expressão máxima na imagem fotográfica de um azulejo de Athos Bulcão rachado. Sob sua superfície vítrea e estamparia geométrica, contrasta a ranhura áspera da espátula. Dois movimentos se sobrepõem: gestos, de fato, particularmente similares que se repercutem como um conjunto ordenado de linhas paralelas. Precisão e rudimentariedade: neste incidente geológico mínimo, o trabalho manual, a construção civil, constitui um bastidor que sustenta o projeto moderno de Brasília. Suponha-se, então, uma grafia incessantemente sobreposta (textura, tessitura, trama) que, em prontidão, tentamos ler.
A obra de Gregório Soares revela distintas geologias, sedimentos evidenciados por pequenos acasos, ranhuras, vestígios, que burilam a superfície da paisagem. Frag-
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Gregório Soares, Fissuras: estruturas equívocas, 2012, fotografia (detalhe de tríptico).
mentos do espaço urbano que nos convidam a reimaginar uma cidade, cidades que se vislumbram e intuem de ruínas mínimas reordenadas como elementos construtivos. Ler, mais do que um simples deslocamento, é uma negociação de traços e um ato inventivo. Reduzir a cidade a seus elementos mínimos, decompor sua sintaxe, seus recursos gráficos para, então, recompô-la, como condição de produzir novas formas de habitá-la e de enunciá-la.
Jan Araújo
É artista visual, curador e cineasta experimental. Vive atualmente em Alto Paraíso de Goiás, Chapada dos Veadeiros. Seu atuação decorre dos temas das artes e tecnologias ancestrais, diferentes usos do solo, conflitos territoriais e ontológicos. Colabora com agentes locais para disseminar conhecimentos bioculturais e regenerar ecossistemas através da memória arqueológica e ambiental.
Alves
É artista, pesquisadora e professora. Bacharel em Comunicação Social (FAC/UnB). Doutora e mestre em Arte (PPGAV/UnB), com a tese Rotas, Raízes e Devorações – re-voltar a pintura e outras histórias selvagens (2021), e a dissertação Noite Oblíqua (2016). No ensino, atua nas áreas de arte-educação, teoria, história da arte, métodos e processos de criação em arte contemporânea. A pesquisa prática transita por investigações com o Cerrado, transformações da matéria, ficções, experiências com o tempo, a palavra e o campo da pintura, em diálogo com proposições, colagens, intervenções, instalações, entre outras. Expõe e publica regularmente desde 2013.
Ludmilla
Matias Monteiro
É doutor em Arte pelo Programa de Pós Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade de Brasília. Atua como artista, curador, pesquisador e educador. É Analista de Pesquisa Cultural Sênior no núcleo de Informação e Difusão Digital do Itaú Cultural. Atuou como Coordenador de Parcerias Institucionais no Núcleo de Cultura e Participação do Instituto Tomie Ohtake e como Palestrante e Produtor de Conteúdos pelo Educativo da Fundação Bienal de São Paulo. Foi docente do curso de Licenciatura em Artes Visuais da Faculdade Dulcina de Morais, FADM, e, na condição de professor substituto, do curso de Bacharelado em Museologia da Universidade de Brasília, UnB. Coordenou diversas ações educativas em eventos e centros culturais, como a 12a Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo.
Instalação com azulejos
Athos Bulcão
170 cm
Cacos 2024
Assemblagem com azulejos Athos Bulcão
40 x 50 cm (cada/7)
Concreto e objetos metálicos 25 x 25 cm (cada/30)
Caminhos do ferro 2024
Papel-ferro 2024
Papel artesanal com objetos de ferro Dimensões variáveis
Réguas para uma linha antiquada 2018
Réguas escolares e pintura automotiva 25 x 600 cm
Desenhos, papel vegetal
30 x 40 cm (cada/10)
Derivas Métricas
Arquipélagos verticais
2015 Fotografia
20 x 20 cm (cada/12)
Pilotis: estruturas equívocas (série) 2011
Colagem fotográfica ampliada em canvas 250 x 178 cm
Gregório Soares
Gregório Soares (1988), natural de GoiâniaGO, vive e trabalha em Brasília - DF. Sua pesquisa concentra-se nas possibilidades do desenho, da fotografia e de objetos em diálogo com as dimensões poéticas e políticas do espaço, suas estruturas de poder e as contradições do desenvolvimento urbano moderno, explorando narrativas visuais que formulam rastros do tempo presente. Atua como professor do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília desde 2016, é mestre em Poéticas Contemporâneas e doutor em Artes Visuais do PPGAV/UnB. Em 2012, foi finalista do Prêmio EDP nas Artes, do Instituto Tomie Ohtake, e integrou o educativo da 30ª Bienal de São Paulo no mesmo ano. Foi finalista do Prêmio Transborda de Arte Contemporânea, da Caixa Cultural, em 2015. Entre 2017 e 2018, atuou no Conselho Curatorial da Casa da Cultura da América Latina - UnB. Em 2016, realizou a exposição Geografia do Atopos, com o prêmio do Fundo de Apoio à Cultura - FAC/DF. Coordenou entre 2019 e 2020 as Casas Universitárias de Cultura da Universidade de Brasília. Em 2021, realizou a curadoria do projeto Festival Desenho Vivo no Centro Cultural Banco do Brasil. Em 2024 realizou a exposição Concretos Voadores, no Centro Cultural da Câmara dos Deputados.
List of works
1. Shards
2024
Instalação com azulejos
Athos Bulcão
170 cm
p. 70- 71
2. Fissures
2024
Assemblage with Athos Bulcão tiles
40x50cm (each/7)
p. 72 - 78
3. Paths of Iron
2024
Concrete and metallic objects
25 x 25 cm (each/30)
p. 82 - 97
4. Iron-paper
2024
Handmade paper with oxidized iron objects
Variable dimensions
p. 98 - 105
5. Rulers for an Outdated Line
2018
School rulers and automotive paint
25 x 600 cm
p. 108 - 119
6. Metric Drifts
2024
Drawings, tracing paper
30 x 40 cm (each/10)
p. 120 - 124
7. Moths 2024
Photographic transfer on cement floor shells
Variable dimensions
p. 128 - 133
8. Vertical Archipelagos
2015
Photography
20 x 20 cm (each/12)
p. 134 - 137
9/10. Pilotis: Ambiguous Structures (series)
2011
Enlarged photographic collage at canvas
250 x 178 cm
p. 140 - 144
I. The unconstructable earth: lines from the plat
by Jan Araújo
Before delving into the matter - marking the bifurcation of nature, the modern period entirely colored by it - let us try to recognize the materials of the artist’s plan, in an attempt to learn something about the events and relations involved in the making of a place. From the drawing to the concrete, the abstractions we construct mark a clash between paper and structure, nature and artifice, operations replete of misunderstandings of a misplaced concreteness. As we already see from the delivery of the keys of the modernist house, rust never sleeps: the capital as a transcendental form and the imperative of the new are impregnated with the sweat of iron, they are still startled that the furniture of the world breathes and is movable. Flying concrete that lands on the scarified chest of the Central Plateau. As Iron (Ferro) tells us, Concrete is a weapon. It arrives as a monocultural force against artisanal masteries and the memory of inhabited land. It is from the material impossibility of controlling and subjugating the knowledge and constructive crafts of stone and wood that iron and reinforced concrete emerge as weapons of modern architecture. From the implosion of plastered interiors, from the collection of ruins, here are gathered skeletal remains (vertebrae, spines, digits, iron fossils), scrap metals embedded like jewels in serialized panels: morphological variations that speculate mutations of the species. Organism and mechanism merge from the vegetal tissues that coat the metals, shrouds of sweaty work that never fail to unveil the dismemberment of their peers. Singularity against the increasing homogenization of space, of place as a disposable and interchangeable commodity. Spatialized history against the weapons of abstraction. Intertwined in a modular, repetitive logic, one ultimately finds an ontopology, a wavering modus operandi composed of gestures that teach us how to find a place in a city of spaces. How to inhabit abstraction. At the entrance, one sees a lookout point, circular ruins of a highland Atlantis. Successive change of plans: a water mirror on the wall revealing the submerged city, a Cartesian cross transfigured into ruin. Tabula Rasa potholed with ancient wrinkles, conjured fundamentally by the concentration of human energy, a work song composing an unaligned, unpaginated territory. In this mirage, the fragile fragment, the miniatures, take on monumental, continental forms (albeit partial). Plaster and limestone, burnt rock slabs, clay-muddied, fly ash. As if the walls, peeled like the biome, revealed a forgotten geography. In this place, there seems to operate a kind of controlled equivocation, a reverse geoengineering that uses the tools of modernity to read the Earth’s glyphs.
Contrary to the law of the horizon, of tumbling, there is the felling, a determined movement in which the ground becomes verticalized. Fruit of orogenic multi routes, vertical archipelagos are a recombinatory effort, testimonies of an era of great plasticity and spatiotemporal reconfiguration, where(when) the anti-plastic of the firmament hangs suspended. This mythical freezing, a mirage of the plasticity of cosmic structure, makes us see in the end the beginning: to unknow in order to recognize. What is a ridge? A plateau? A plain? A hill? A ravine? The shards shed forms, stones, birds in space (I see Brâncusi in an Ethiopian radial wave), the earth cultivated in height, in variety, in extension and intention. The plan flies. And from the geographic nostalgia between the earth’s crust and the masonry grid, against architectural hydroponics, which imagines that culture could be imprinted without ground and the trophic network of soil, arises a tetric and luddite game of sabotage against architecture. A game of levels in the flat city, the creation of a coast and a mountain range for Brasília.
At a certain moment, a landscape of moths becomes evident. Before a plan, they shape a ground, an opaque divinatory mirror, wings with eyes revealing a lunar underside. They camouflage themselves, and one could try to situate oneself in this territory, in this minefield, listing a typology, but it would clearly be a mistake when the morphology is of a metamorphic nature, adapting to the site. The most suitable concrete science for its reading, or rather, the art of concrete - closely related to mushroom slabs - is Phytography, known as the writing of floor plants. Practiced by stunted and twisted trees, it acts in the decomposition of brutalist memorials, machines for grinding people, immune to an increasingly hostile atmosphere. It molds living fossils, surviving phytoliths, into phytographic supports. Its main function today, however, is to find in concrete the footprints of the devoured forest.
Tracing, contouring, filling in, are didactic tasks of territorial imagination set in motion by the need to teach form, teach space, build a world. One could build a territory from emptiness, like the hollow body of ceramics, the spiral of ground zero, the emptiness that sustains: a drawing of tectonic plates, ropes, prototypes, clay serpents, in other words, the human in its essence of humus. The invention of voids was also, however, the great strategy of the endocolonial effort to occupy the interiors of the continent. The map that consumed the territory: extractivism, promises of progress, development, future, leaps, brutal “pacifications,” advances... the colonization of the interior as the creation and filling of demographic, moral and civilizational voids.
Building a nation from a void, disseminating marks of countries on a land withchameleonic vocation, with simultaneous dimensions and a pluriversal identity, has left us with the ruins of the map. It is surprising the number of maps of Latin America that are actually maps of South America (I think of visionaries like Juan Downey, Horacio Zabala, Joaquín Torres-García...). It would seem at first that Yankee imperialism did manage to make a deep cut in the Darién Gap, halting exchanges and multidirectional flows, burying the footprints of the walkers of Acahualinca. Or that the Spanish crown actually managed to build a bridge made of silver from Potosí to Seville, leaving behind hollow mountains. We find only specters, grooves, delusions, and geopolitical whims. The indexed archive of missing pages. Outdated lines marking the countdown of a sanguine clepsydra, a great flow before the shedding of skin, Humboldt Current, Neotropic of Capricorn, Treaty of Tordesillas, South Atlantic Anomaly. The confine as beginning: would this configuration then be a partial viewpoint, against any universality? Parts-whole, time-film: this is how they show, that is, teach us, the subcontinent’s videograms. Provisional, precarious, and situated; the presage of a shooting to come.
II. Future fossils
by Ludmila Alves
Through
observing material remnants and gestures, I endeavored to assemble fragments—open possibilities, perhaps images meant for interpretation.
A map, numerous paths— I chose to trace the route of bits and words shedding from the city, from time, from history. I too, a gatherer, bent down and collected:
Shards
There we were, in the presumed heart of the city, articulating, perhaps dreaming of the impossible city.
I am unsure if the dreamt map could dwell within the designed, constructed city, or if any rail line could uphold the conflict between discourses and the inevitable harshness of facts, social relations, and tangible actions. And so, as if matter were traversed by relational, historical wounds, I gaze at the colors of iron.
Another image of time
the soil beneath the asphalt or the ruins of a submerged city1 among stilts, walls, and words emerging from what loosens from things and the body of the city itself.
Over time, I wonder: might a message find its resting place on an iron leaf?
Paths of Gesture
Gathering fragments from a boat, a car, a house, a building, surviving remains of structures erected by anonymous hands.
Forbidden Silence
I read fragments of this obscure episode from the capital’s construction2: Brasilia, 1959. A vast trench was dug at a central point in the city to accommodate the bodies of workers killed by the police during a revolt against the construction company and the working conditions. Workers were killed at the construction company... When interviewed, key figures involved in the construction project said:
“I never heard about that.” “I never heard about it.”
1. Paulinho da Viola. Cidade Submersa, 1973.
Historic Heritage
I cannot stop thinking about the monuments erected over the bones of the deceased.
Fissures
Ambiguous structures, outdated lines, archipelagos of tiles—and in this disarray, I try to observe the delirious structure upon which the choreography of these lives’ steps are based.
Moths
Moths, fireflies, fallen wings— a leaf in descent lands on the still-wet concrete and perhaps does not yet know, but it will remain there, absorbed, its leafy body surrendered to the ground.
Counter-monument
As I try to navigate through imaginations of the future, the transformation of matter, and that which petrifies, you think of the moths as poems for the candangos who died in the concrete.
Historical Museum
In “Bacurau”3, there’s a sequence involving a wake and celebration that, in some way, is connected to this discussion and to many things we could learn from it.
But all of this, along with the stories that might accompany the work,
compels me to mention another scene: after a massacre inside the city’s historical museum, the person in charge decides not to wash the bloodstains left on the walls - so that they might tell future generations what happened there.
Imagine
What if, in a twist, the walls themselves began to speak and tell us the stories of the construction? Shells and wings and shards, the remains as witnesses.
It Takes Courage to Look
A restless light flickers in the dark, insinuates itself, then disappears.
The fall of leaves absorbed by the concrete, petrified, their bodies marked by this accident, adding another layer to the life
3. Film by Kleber Mendonça Filho and Juliano Dornelles. Bacurau, 2019
4. Gilberto
5. Georges Didi-Huberman. Uprisings Edições Sesc: São Paulo, 2017.
6. Georges Didi-Huberman, Op. Cit.
of the ground, hands and wings and bones
Revolutions
Time takes care to turn over the soil of submerged stories. The leaf and the iron holding a letter, objects like pebbles rolling in the river of time.
Subterraneously
I think about revolutions from the gesture of looking and picking things up from the ground, the bones of Brasília, the last landscapes4 . A leaf succumbs to its fall, lands on the still-wet concrete and will stay there as an unexpected reminder in the urban strategy, a seepage, a poem written on the sidewalk.
Desire of the Earth
I wonder if a heap of uplifted leaves could sustain a poetic uprising, and “poetic” does not mean “removed from history”—quite the opposite.
Uprisings
Flashes challenging the laws of the atmosphere, time frees itself from its restraints, the elements unleash. Continuously, the body of the city reenacts stories of its construction.
In some way, leaves, poems, shards, irons, structures, and walls come together for me in a kind of indestructible desire for life, overturning the gravity that binds us to the ground, until the walls themselves begin to speak5.
Nocturnal
Forces that are, above all, desires and imaginations, reopening possibilities6 . Thursday on the streets of Brasília -might a piece of iron have fallen tonight, detached from another mechanism, in some vacant lot?
José Silva Guerra
Some years ago, there was a leak in the slab where the dome of the Chamber of Deputies’ plenary is located. It was necessary to make a hole to enter and fix it. At one point, one of the workers called the chief engineer saying he had
Gil. Objeto Sim, Objeto Não, 1969
7. Description available at Conta-Contos - Homenagem ao dia do servidor Câmara dos Deputados: https://www.youtube. com/watch?v=yaGnpZmKEWI
found “some strange things, some poems” written by José Silva Guerra, these words took about 60 years to come to light: may the men of tomorrow who come here have compassion for our dreams and may the law be fulfilled in this place dura lex sed lex7
Looking Again
We won’t be here to know if, in some time, the walls will be read as witnesses to buried stories or if the moth leaves would make us dream of other monuments, but perhaps we’ll continue to gather remains. As time passes, as I look again at the possibility of imagining the fossils of the future, asking what they saw.
III. Floats and missteps: choreographies
by Matias Monteiro
The sculptor practices urbanism, the painter practices urbanism, even the one who composes a typographic page practices urbanism. 1
1. ARGAN, G.C. Urbanism, Space, and Environment. In: History of Art as History of the City. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
2. BLANCHOT, Maurice. The Infinite Conversation: the plural word. São Paulo: Escuta, 2001.
3. COCTEAU, Jean. Essai de critique indirecte: Le mystère laïc –des Beaux-Arts considérés comme un assassinat. Paris: Éditions Bernard Grasset, 1932.
4. PONGE, Francis. Métodos. Rio de Janeiro: Imago. 1997.
5. CERTEAU, Michel de. Walks in the City. In: The Practice of Everyday Life. Petrópolis: Vozes, 1994.
6. CERTEAU, Michel de. Caminhadas pela Cidade. In: A Invenção do Cotidiano – artes de fazer. Pehtrópolis: Ed. Vozes, 1994.
7. VALERY, Paul. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 2007.
This, akin to all other writings, is composed of remnants; Envision a world script born from the perpetual clash of textures, various matters scored, traced, and furrowed by time and elemental forces. Carved through major collisions and minor frictions, by gusts and jolts, gentle impressions, and brutal onslaughts. Yet, despite this, we willingly endeavor to decipher it.
As a generous wellspring, this graphic essence of the world predates and foresees human writing. Not only that, it subtly refines the surface of language as it stealthily inscribes itself in each word; a delicate scratch akin to the fingerprints that map mazes on fingertips. Human writing is enriched by these prior voids2, a disconcerting expression of vegetative noise3 that infiltrates statements, rendering language opaque, perpetually demanding to be something else4. To be something nothing, yet something still. To be something else of writing: devoid of meaning save for its insignificance5. Proceed with caution. Venturing into writing is to explore a terrain, as reading necessitates a traversal of surfaces amenable enough to the touch (like skin, bone, stone, wood, papyrus, or paper). One must skim, rub the fingers: reading is a choreography wherein movement is encoded and directed by social convention, imbuing meaning and direction, guided by a set of graphic signs that steer its course. And like all motion, it is not immune to imbalances and vertigo, reaching the most precipitous limits of writing. One reads a constructed space, planned, domesticated for ergonomics. The city, a discursive phenomenon, is born from a negotiation (dispute) of gestures6. The urban system, performed and appropriated as articulated text, seeks the same end as any text: to facilitate an encounter7. Navigating the city
9.
Clarice. A
10. GEHL, Jan. Cidades para Pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2013.
11. CENDRARS, Blaise. Etc..., Etc... (um livro 100% Brasileiro). São Paulo: Editora Perspectiva, 1976.
is to read it, proclaim it, shout it, and interpret it (as prose or poetry, walking or dancing8) is a geopoetic and geopolitical act. It is also archaeology, for the city’s script accumulates, intertwines, and unravels like a palimpsest, through its fissures, its minor erosions, through all that dreams itself as ruin.
However, Gregório Soares’ work does not allude to an abstract or generic concept of “city,” but to a singular experience: Brasília.
Much has been said about Brasília: its status as a perplexing enigma9, its urban failure driven by roadways10, even its delirious11 function, and prophetic dream, yet Brasília remains a challenge to read.
The Brasília project is not solely grounded on the bold principles of Brazilian modern architecture or its functionalist ideals, but primarily on a presumed resolution to the dispute between neocolonial exaltation and the syncretic composition of eclectic architecture. Brasília, before being a city, was a project: a manifesto-plan, a social program, and a work of art. It is proposed as a trans-historic monument, devoid of a specific time. Its past seems to mirror a future project: modernism, industrial progress, the country’s urbanization and interiorization... Any antithesis to this project appears unbound by a past function to overcome. The developmental discourse seeks to surpass and obliterate any opposing aspect, evidenced, for example, by the rhetorical necessity to portray the Planalto Central as a symbolic and imaginary flatland, an emergent savannah to be conquered. Thus, Brasília is proposed as a gesture ex nihilo, symbolically appropriating territory and simultaneously founding its urban system on the graphic conversion of two intersecting straight lines, demarcating a topographic limit and proposing a reordering under the auspices of concentric roadway drainage. A city projected with ingenuity and efficiency, promoting community well-being, a modern lifestyle articulated in the concepts of neighborhood-unit, park-city, superblocks...
How do we interpret Brasília’s colonial mark amidst a project of territorial domination, violent and systematic labor exploitation, exclusion, and marginalization of its population in cycles of occupation and resettlement?
A planned city, however, is not just the realization of a project. However rigorous its execution or extensive the mobilization of political forces and interests may be, an urbanistic project remains entrenched in its state of estimate, plan, sketch. The city is something else; a living organism, oriented and realized through communal experiences, desires, paths of desire: disputes, affections, dominations, exclusions, confronta-
LISPECTOR,
descoberta do mundo. Rio de Janeiro. Rocco. 1999.
tions... Reading the city differs from reading a project, suggesting a gap between Brasília as a modernist project and Brasília as urban practice.
Let’s examine how Gregório Soares’ work consistently eschews Brasília’s monumental scale. None of this alludes to its palaces, wide avenues, or Esplanade. Rather, his focus is on small incidents, minute scales, especially his emotional references (the tile work of Athos Bulcão, the pilotis producing the playful experience under the block, the counterplan of the TV Tower base). Conversely, part of his production seems to mirror project formalizations (his sketches, allusions to scales, seriations, modulations, orthogonal presentations). There’s an inversion and a primordial tension here: the city-reading experience isn’t derived from the project but rather the city itself, revealing its condition as a phantasmagoria of the project in each fissure, each gap.
The artist invents and manipulates small city fragments, rearranging them under formal logic; a peculiar exercise where unintelligible debris persistently masquerade as textual elements. This, like all others, is a writing of remnants.
We can reference Didi-Huberman’s endeavor, collecting and distributing tree bark from Auschwitz surroundings on a surface, attempting to rudimentarily write and read a letter never written12; or Elida Tessler dissecting a typewriter in a Kafka-homonymous work, arranging its smallest elements as letters in her “letter to the father.” Undoubtedly, there’s a grammar of the illegible, incessantly reiterating the world’s mark in its abrasive condition. A rumor asserting nothing but its essential condition of perpetually being something else. Occasionally, dismantling clocks may allow us to glean something about time13.
Let’s inspect this set of cracks, arranged as a bundle, a cohesive flow (a cliff, a river, lightning, a sentence). Observe these fragmented pilotis at regular, precise intervals, in a rhythmic modulation denying their viability as a constructive system. Cracked pavement or pillars sustaining nothing are images of urban and architectural resource defunctionalization. In these subtle fragments, Brasília is reimagined as a perennial surface, where each fissure suggests (or produces) a framework. Thus, the reorganization and rearrangement of these elements according to rigorous compositional principles aren’t casual. By revealing the city as a graphic plot, a palimpsest, Gregório excavates surfaces to unveil adjacent layers; another city.
This endeavor perhaps culminates in the photographic depiction of a cracked Athos Bulcão tile. Beneath its glossy sur-
12. DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. São Paulo: Publisher 34, 2017.
13. BARTHES, Roland. Fragments of a Lover’s Discourse. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
face and geometric patterns, the spatula’s rough groove starkly contrasts. Two movements overlap: gestures, particularly akin, resonating as an ordered array of parallel lines. Precision and rudimentary: in this minimal geological incident, manual labor and civil construction form a backdrop supporting Brasília’s modern vision.
Imagine, then, a ceaselessly overlapping script (texture, weaving, fabric) that we strive to read.
Gregório Soares’ work reveals distinct geologies, sediments evidenced by minor chances, scratches, traces, engraving the landscape’s surface. Fragments of urban space beckon us to reimagine a city, glimpsing and intuiting cities from minimal ruins reorganized as constructive elements. Reading, beyond mere displacement, is a negotiation of traces and an inventive act. To distill the city to its minimal elements, to dissect its syntax, graphic resources, then recompose it, fostering new ways of inhabiting and articulating it.
Jan Araújo (Brasília, 1995) is a visual artist, curator, and experimental filmmaker. He currently lives in Alto Paraíso de Goiás, Chapada dos Veadeiros. His work revolves around themes of ancestral arts and technologies, different land uses, territorial and ontological conflicts. He collaborates with local agents to disseminate biocultural knowledge and regenerate ecosystems through archaeological and environmental memory.
Ludmilla Alves (Taguatinga, 1987) is an artist, researcher and professor. She holds a Bachelor’s degree in Social Communication (FAC/UnB). She earned her Master’s and Doctorate degrees in Art (PPGAV/UnB), with the thesis Routes, Roots, and Devotions – returning to painting and other wild stories (2021), and the dissertation Oblique Night (2016). In teaching, she works in the areas of art education, theory, art history, methods, and processes of creation in contemporary art. Her practical research explores investigations with the Cerrado biome, material transformations, fictions, experiences with time, words, and the field of painting, in dialogue with propositions, collages, interventions, installations, among others. She has been exhibiting and publishing regularly since 2013.
Matias Monteiro holds a PhD in Art from the Graduate Program in Visual Arts at the Institute of Arts of the University of Brasília. He works as an artist, curator, researcher, and educator. He is a Senior Cultural Research Analyst in the Digital Information and Diffusion Unit of Itaú Cultural. He previously served as Coordinator of Institutional Partnerships at the Culture and Participation Unit of Instituto Tomie Ohtake and as a Lecturer and Content Producer at the Education Department of the São Paulo Biennial Foundation. He was a faculty member of the Visual Arts Teaching degree program at Faculdade Dulcina de Morais, FADM, and as a substitute professor in the Museology degree program at the University of Brasília, UnB. He coordinated various educational activities at events and cultural centers, such as the 12th International Architecture Biennial of São Paulo.
Gregório Soares (1988), Brazilian artist, curator, and researcher, born in Goiânia-GO, lives and works in Brasília-DF. His research focuses on the possibilities of drawing, photography, and objects in dialogue with the poetic and political dimensions of space, its power structures, and the contradictions of modern urban development, exploring narratives that formulate traces of the present time. He has been a professor at the Department of Visual Arts at the University of Brasília since 2016, holds a master’s degree in Contemporary Poetics and a doctorate in Visual Arts. In 2012, he was a finalist for the EDP Arts Award, from the Tomie Ohtake Institute, and participated in the educational program of the 30th São Paulo Biennial in the same year. He was a finalist for the Transborda Contemporary Art Prize, from Caixa Cultural, in 2015. Between 2017 and 2018, he served on the Curatorial Council of the Casa da Cultura da América Latina - UnB. In 2016, he held the exhibition Geography of Atopos, with the support of the Cultural Support Fund - FAC/DF. He coordinated the University Houses of Culture at the University of Brasília between 2019 and 2020. In 2021, he curated the project Festival Desenho Vivo at the Centro Cultural Banco do Brasil.
Mesa Diretora da Câmara
dos Deputados
Presidente
Arthur Lira (PP-AL)
1º Vice-Presidente
Marcos Pereira (REPUBLICANOS-SP)
2º Vice-Presidente
Sóstenes Cavalcante (PL-RJ)
1º Secretário
Luciano Bivar (UNIÃO-PE)
2ª Secretária
Maria do Rosário (PT-RS)
3° Secretário
Júlio Cesar (PSD-PI)
4º Secretário
Lucio Mosquini (MDB-RO)
Suplentes
Gilberto Nascimento (PSD-SP)
Pompeo de Mattos (PDT-RS)
Beto Pereira (PSDB-MS)
André Ferreira (PL-PE)
Secretaria de Comunicação Social, Centro Cultural Câmara dos Deputados
Secretário de Comunicação
Social Jilmar Tatto (PT/SP)
Secretário de Participação, Interação e Mídias Digitais
Luciano Ducci (PSB/PR)
Diretoria Executiva de Comunicação e Mídias Digitais
Cleber Queiroz Machado
Coordenação de Cerimonial, Eventos e Cultura
Frederico Fonseca de Almeida
Supervisão do Centro Cultural Isabel Flecha de Lima
Palácio do Congresso Nacional Câmara dos Deputados Anexo 1 Sala 1601 – CEP 70160-900 – Brasília/DF www.camara.leg.br/centrocultural
Acesse nosso edital de seleção:
Galeria Décimo
Anexo IV
Câmara dos Deputados
Concretos Voadores (2024 : Brasília, DF)
Concretos Voadores [recurso eletrônico] / Gregório Soares ; textos de Jan Araújo, Ludmila Alves e Matias Monteiro. – Brasília : Câmara dos Deputados, Centro Cultural, 2024.
Textos em português e inglês. Título aparece no item como: O Centro Cultural Câmara dos Deputados apresenta a exposição
Concretos Voadores.
Catálogo da exposição realizada na Câmara dos Deputados, Galeria Décimo, Anexo IV, de 15 de abril a 6 de junho de 2024. Versão e-book.
Modo de acesso: bd.camara.leg.br Disponível, também, em formato impresso. ISBN 978-85-402-1012-7
1. Arte, exposição, Brasil, catálogo. I. Soares, Gregório, 1988-. II. Araújo, Jan. III. Alves, Ludmila. IV. Monteiro, Matias. V. Brasil. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Centro Cultural. VI. Título.