Coletânea Ciclo Tristão de Athayde - Alceu Amoroso Lima 2017

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Coletânea

Ciclo A l c e u

A m o r o s o

L i m a


Apresentação Alceu Amoroso Lima (1893 – 1983), também conhecido pelo pseudônimo de Tristão de Athayde, figura entre os principais intelectuais brasileiros do século XX. Essa afirmação, em que pese seu acento, ainda diz pouco sobre um homem que transitou regularmente entre a ciência e a religião, entre a crítica e a produção artística, entre a política e o ensino – domínios nem sempre tranquilos se vistos a partir dos princípios organizadores internos que os regem, e diante dos quais, ao transitá-los, um indivíduo não passa ileso sem despender uma grande carga emocional e ter que praticar algo como um autocontrole ascético na organização do próprio pensamento. Em cada um desses domínios Alceu Amoroso Lima deixou marcas, propôs discussões, fez acordos e suscitou rusgas que atraíram – e ainda atraem - pesquisadores de diversas áreas, voltados a estudar e compreender seu pensamento. Aderiu ao movimento modernista e escreveu profusamente sobre os principais poetas do movimento. Foi um grande pensador católico e teve uma das maiores carreiras jornalísticas da imprensa brasileira. Foi um intelectual pleno, ao estilo de Mário de Andrade, no sentido em que, além do trânsito entre áreas distintas, também procurou conhecer-se melhor, a cada idade e a cada contexto, mesmo sob o risco de defender posturas e ideias que o fariam ser incompreendido, e mesmo correndo o risco de errar. Esse diapasão de atuações só acentua seu rico itinerário como ser humano que não se encontra acima do bem e do mal. Foi simpatizante dos movimentos de esquerda durante a ditadura militar e foi o representante brasileiro do Concílio Vaticano 2º. Participou da fundação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; ocupou assento na Academia Brasileira de Letras; também fez parte do Conselho Nacional de Educação. Homem complexo, enfim. Homem pleno, com certeza Como notado, sua contribuição está presente nos principais acontecimentos da história brasileira do século XX. Para homenagear Alceu Amoroso Lima, o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc realizou o Ciclo Tristão de Athayde, entre junho e julho de 2015, com curadoria de Guilherme Arduini. As apresentações - que buscaram problematizar, entender e discutir o homem e sua obra - estão aqui reunidas nesta publicação. Com este ato, um duplo entre homenagem e sincero reconhecimento, espera-se poder contribuir para a disseminação do pensamento do autor e para manter viva na memória, e no espaço público, a imagem que merece perpetuar-se: a de um grande intelectual humanista. Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo Junho 2017


Alceu Amoroso Lima – alegria e rigor Crítico literário, ensaísta, professor: diversas foram as atividades intelectuais exercidas por Alceu Amoroso Lima (1893-1983), cujas obras (mais de oitenta no total) por vezes apareciam assinadas comoTristão de Athayde. Para recompor suas múltiplas facetas e entender sua vida pública, organizamos o Ciclo Tristão de Athayde, que integrou a programação do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo nos meses de junho e julho de 2015. Durante cinco semanas, onze palestrantes tiveram a oportunidade de expor suas ideias. Nove entre eles registraram por escrito suas contribuições, das quais resultou este livro. As apresentações se deram sob o signo do diálogo aberto e da pesquisa solidamente interdisciplinar, posto que historiadores, sociólogos, cientistas políticos e educadores se propuseram a cobrir um espectro de análise que incluísse as relações sociais no seio das quais Tristão se formou, os traços de subjetividade que moldaram sua leitura de tais relações e o modo como elas aparecem em seus escritos, além do legado de suas ideias para a compreensão do presente. Esta publicação apresenta uma ordem lógica que se inicia com uma visão familiar de Alceu: Carlos Eduardo Affonso Ferreira (neto de Alceu) e Alceu Amoroso Lima Filho apresentam suas versões do personagem no convívio íntimo, restrito às pessoas mais próximas. Os testemunhos de um filho e um neto ajudaram a compor a intimidade deste personagem que, não obstante seu jeito expansivo e alegre, era bastante reservado no que concerne à vida familiar. Em seguida passamos à figura pública de Alceu, através das suas fortes amizades, nutridas por meio de uma prolífica correspondência, e também pelos enfrentamentos que inevitavelmente marcam a vida pública de grande envergadura. Para terminar, o remate da obra fica a encargo do decano entre todos os estudiosos de Alceu: Cândido Mendes, a quem também cabe o papel de preservar o arquivo pessoal de Tristão de Athayde e promover atividades sociais através do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade. Em suma, o Ciclo Tristão de Athayde foi, de um modo homólogo ao seu objeto de estudo, dotado de uma alegria e uma erudição impecáveis. Esta oportunidade única de repensar uma das trajetórias pessoais mais importantes do Brasil do século XX só foi possível graças à realização do CPF Sesc. Por este motivo, somos eternamente gratos a Andréa Nogueira e Maurício Trindade, respectivamente gerente e gerente adjunto do CPF, e especialmente a Danilo Santos de Miranda, Diretor Regional do Sesc São Paulo, pela confiança apresentada no trabalho. Através deste livro, a fecundidade de suas pesquisas poderá ser útil a um número muito maior de pessoas. Boa leitura! Guilherme Ramalho Arduini Doutor em Sociologia pela USP Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo


Alceu e o equilíbrio dos antagonismos Carlos Affonso Ferreira Inicio agradecendo ao Sesc pela realização deste evento que evoca alguém pouco lembrado ultimamente, mas que é um escritor de papel fundamental na cultura brasileira segundo a opinião de seus correspondentes, como Mário de Andrade, Carlos Drummond e Dom Luciano de Almeida. Vem a propósito mencionar a biografia de Alceu, que lancei em 2015, da qual me utilizo nas linhas abaixo. É engraçado, associo à biografia um ótimo restaurante italiano em Curitiba, em que se entra pela cozinha. É uma forma do freguês conferir a higiene do local. Da mesma maneira, hoje quero primeiro tratar da cozinha da biografia, de como me envolvi com esse trabalho, e contar um pouco do que foi o processo de escrevê-lo. Meus avós vinham do Rio a São Paulo a cada dois ou três meses visitar as duas filhas e um filho que moravam nessa cidade. O item principal da agenda era passar o dia com Lia, a filha beneditina enclausurada na Abadia de Santa Maria. Vamos, daqui para a frente, chamála de Tuca, seu apelido. Tristão chegava ao mosteiro cedo e dedicava a manhã no parlatório a pôr em dia assuntos que vinham diariamente tratando por carta. Como ele tinha o costume de escrever artigos se antecipando ao cronograma dos jornais, para livrar-se do stress desta dívida, não faltavam assuntos a tratar com a filha – e nisso ocupava o par de horas antes da chegada de minha avó para o almoço. Neste, dentro da realidade da dieta frugal das beneditinas, o que refletia seu orçamento apertado– carne, só comiam uma vez por semana –, não faltava um gesto de largueza das monjas, que acrescentavam às travessas um prato de doce. A tarde no parlatório, com os velhos instalados em cadeiras de balanço e a filha debaixo de seus panos pretos, sentada por detrás das grades –a tarde ia-se enquanto os três repassavam a crônica familiar, como enxergavam a travessia de vida de cada um de seus descendentes, por cuja sorte invariavelmente interessavam-se. Quando às 6h da tarde os sinos do convento tocavam, chamando as 60 freiras para a capela onde diriam Vésperas, o casal embarcava num táxi para jantar lá em casa, no Jardim Paulistano. O carro largava-os na Pão Kent, esquina da Av. Europa com a Rua Iguatemi (hoje Faria Lima), talvez a primeira padaria incrementada

à la padrão europeu da cidade, instalada em uns 500 metros quadrados de fartas vitrines,balcões com tampos de mármore e bons equipamentos para a época, como fatiadores de frios e máquinas de fazer sucos. Dali, atulhados de bisnagas de pão de qualidade (não disponível no Rio então) e barras de chocolate Sonksen, aquele da vaquinha, Alceu e Maria Tereza seguiam a pé três quarteirões, ele debaixo de indefectível boina, segurando embrulhos, uma pasta de couro e guarda-chuva. Aí pelas 7h da tarde chegavam lá em casa. Alceu investia pela sala adentro com seu andar rápido e decidido. Preparava-se para se instalar na poltrona junto à lareira, no que usaria a hora de sobra a ler os salmos. Estes são os 150 poemas líricos do Antigo Testamento, entre os salmos há hinos, súplicas e louvações. São louvações por prodígios realizados por Deus na natureza, súplicas com pedidos de socorro ou manifestações de confiança. Há ainda salmos de ação de graça por um bem qualquer conseguido. Vovô teria um intervalo descontraído, nele ruminaria o mistério que encontrava em cada dia e o faria a sorver uma dose de uísque em copo alto com gelo e água. Senti-me particularmente importante ao ser escalado seu barman. O neto já tramava cavar-lhe conversa, sem muita noção do valor para ele de uma oportunidade de contemplação e aterrissagem suave ao cabo dos compromissos cotidianos. Assim penetrei no mundo de sua infância e juventude, marcadas pelo eixo Rio/Paris, de que ele tinha relatos sedutores. Seu grupo social assimilara dos franceses o dom de prosear, das conversas de salão que até acabaram batizando um móvel próprio: causeuse, uma poltrona de dois lugares. Os relatos começavam de sua primeira viagem, com seis anos de idade, à Europa, em 1900. As estadias estendiam-se meses a fio e o menino foi inscrito num colégio em Paris. Mas o padrinho de Alceu, Antonio Marinhas, que acompanhara os Amoroso Lima na viagem, ao invés de entregar Alceu ao liceu, seguia com ele para lojas de brinquedos ou para passear no Jardim das Tolherias. Em outra das viagens à França, a bordo com eles iam famílias argentinas, que mantinham vacas no porão do navio de maneira a garantir-lhes leite fresco todas as manhãs. Nesse tempo, o transporte refrigerado de carne acabava de ser descoberto e a Argentina tornara-se o açougue da Inglaterra. Buenos Aires era capital da sexta economia do mundo.


Outra temporada de Alceu na Europa levou 18 meses, e só terminou com o estouro da I Guerra. Em Paris ele enturmou-se com um grupo animado de portenhas, com quem manteve agenda social animada incluindo tardes dançantes no Majestic, um hotel sofisticado a duas quadras do Arco do Triunfo, onde o meteram no sexto andar sem elevador, junto às pombas, segundo ele contava. No Majestic aprendeu a dançar tango, ritmo argentino ainda visto mais próprio para cabarés pouco recomendáveis da zona do cais do porto em Buenos Aires. Pois vovô foi talvez o introdutor do tango nos salões elegantes do Rio de Janeiro. Tudo isso era pé de conversa para histórias que seduziam o neto. Pois eu curtia cada detalhe do relato, começando daquele castiço sotaque carioca, sem excesso de silvo nos “s”, mas com “r”s assertivos e de som que sabe bem ao ouvido. Nesta terceira ida à Europa da belle époque os Amoroso Lima encostaram na hecatombe universal, pois estavam em Paris quando as tropas alemãs já haviam superado a barreira supostamente indevassável da linha Maginot e avançavam na direção da capital francesa. Andou o tempo, ia eu lá com 19 anos de idade todo pimpão, certo de triunfar, afinal cursando faculdade cobiçada (FGV), saúde sobrando e na garagem um automóvel conversível. Foi também quando me surge uma crise existencial braba precipitada por um desgosto afetivo dilacerante, foi como se alguém retirasse a escada em que eu subira. Machucado, aproximei-me do convento beneditino nessa altura meu vizinho em SP, onde hoje funciona o Hotel Maksoud e está erguida uma dúzia de arranha-céus. Ali onde existia apenas a abadia, uma igreja e um parque espalhado em 47.000 metros quadrados de terreno tocando na Rua Pamplona, vivia enclausurada a Tuca, Irmã. Maria Teresa Amoroso Lima, irmã de minha mãe. Visitar a Abadia de Santa Maria sempre foi programa atraente, as freiras têm uma enorme disposição de ouvir, produto escasso em nosso mundo superdotado de recursos eletrônicos de comunicação e nítido déficit de atenção. É uma gente de cotidiano fisicamente afastado do mundo, mas com prática de drenagem do próprio ego e hábitos contemplativos, então naturalmente atenta e hospitaleira. Era tudo o que eu procurava: acolhida. E ainda por cima Tuca tinha um temperamento delicioso, humor de plantão, era simples e prática, entusiasmada e interessada, sabia ouvir. As cartas do pai a mantinham bem informada, nele colhia uma influência arejada,

na vanguarda do pensamento esclarecido. Aliás, falando nisso, sintomático foi um episódio com um amigo meu. Ele, muito boêmio, disse à abadessa que amaria escutar o canto gregoriano do Laudes, às 6:00 da manhã, mas tal horário de soldado não lhe convinha. Sabe o que Tuca propôs? Que ele emendasse a noite, que viesse diretamente dos bares. A sugestão soou blague, incorporou-se ao folclore familiar, mas a madre não pilheriava. Muitas tardes completas, durante vários meses seguidos, eu gastei nos parlatórios da abadia. À entrada a porteira entregava ao visitante um papelucho que este preenchia se identificando e indicando qual madre gostaria de encontrar. O bilhete era posto na roda, um armário giratório dando no outro lado para a clausura, de onde a freirinha a postos levava até a pessoa procurada. E tal era a alegria prelibada do encontro com minha tia que começamos a avançar fuzarcas nos bilhetes, eventualmente alguma coisa séria antecipando os assuntos do parlatório. Pois num desses papeizinhos volta uma anotação de Tuca sugerindo que eu escrevesse a vida do pai dela, para que os bisnetos soubessem quem ele foi. A ideia me soou estapafúrdia, como é que um aluno de português medíocre, despreparado em literatura e treinando para vender trator poderia retratar um autor de 80 livros, crítico literário consagrado, erudito membro da Academia Brasileira de Letras, que logo se tornaria seu decano?! A madre não insistiu, de caju em caju tocava de leve na ideia. Corta a cena, avança mais um lustro o calendário. Aos 29, morando no Rio, a Belacap, esta covardia da natureza que é o cenário de tirar o fôlego, passou a me cobrar algum registro. Era impressão demais para acumular nos sentidos, as imagens tendiam a criar umas poças de emoções, que sem serem expressas, não trabalhadas e não articuladas ficavam sem drenos para o espírito. Este empoçava, formava lagoas, bolhas. Ora, além do desperdício de energia elas me causavam insônias devastadoras e grandes ressacas. Foi também quando reencontrei o Padre Charbonneau, meu antigo professor de Lógica no colégio Santa Cruz, e mencionei a ele o projeto encalhado. Sua usual assertividade foi contundente: a tarefa urgia, o tema merecia registro, era-me o projeto fundante. Seria também minha “escritoterapia”. Quando no ano seguinte ele visitou a Chapada Diamantina Charbonneau ofereceu-me improvisar ali mesmo uma oficina preparatória. Fomos já naquela


noite para a varanda da nossa casa na fazenda, onde o teólogo preparou um esboço da evolução das ideias do Iluminismo até o renouveau catholique noséc.XX, em seguida à I Guerra, antes de chegar ao Vaticano II. Nas anotações rascunhadas nasceram o mapa do meu projeto e da pesquisa. Comentei com o Charbonneau minhas dificuldades, meu medo da página em branco, meu despreparo. O padre canadense era extremamente prático, propôs que eu substituísse minhas hesitações por uma serie de entrevistas com gente que conhecera Alceu, que com ele travara relações intelectuais. Das entrevistas brotariam as chaves de leitura do pensamento de Tristão de Athayde. Podendo invocar parentesco com ele foi fácil conseguir entrevistas, logo eu me vi por exemplo no escritório de doutor Sobral Pinto, de Zuenir Ventura e mais outras 50 pessoas. Com Paulo Francis eu também estive, no apartamento em Nova Iorque em que ele morava nos anos 1970, embora depois de alguma insistência. Hoje olho para a empreitada intrigado. Constato a ação ao longo dela de uma força insistente e enérgica capaz de vencer minha indisciplina, minhas postergações e minha pequena escolaridade na matéria. Alceu é transparente no que escreve, tem muita didática, põe-se nos sapatos do interlocutor com a genuína e espontânea vocação de professor, sua parte flui bem. Mas foi preciso também ao menos “mobralizar-me” nas influências por ele recebidas e aí foram aparecendo os obstáculos. Ler Chesterton é instigante e especialmente divertido, mas digerir pensadores como Maritain e Mounier, ambos carregando o traço de um pensamento que trata menos de fatos e mais de conceitos abstratos, algo característico dos intelectuais franceses, é batalha morro acima. Essa força em contramaré os católicos chamariam de Espírito Santo. Ela se repete em Guimarães Rosa, em Grande Sertão quando o texto refere-se ao personagem Hermógenes, “que nasceu formado tigre, e assassim !!!” e que se pergunta “Será que a vida socorre à gente certos avisos ?”. Este “socorre” alude ao sobrenatural. A mesma força aparece também em Homero, cuja Pala Atenas, da Odisseia, aguarda o viajante na estrada para protegê-lo de perigos, defendê-lo de salteadores e de tempestades. Afinal aos poucos, ao longo das entrevistas e leituras foram aparecendo as tais chaves de leitura. ***

Mas vocês não vieram aqui pra saber das décadas de gestação de meu livro e sim conhecer Alceu Amoroso Lima um pouco mais. Penso que o melhor que eu teria a contar a vocês nasce da ideia de um dos meus entrevistados, Riolando Azzi. A ele o que mais impressiona na biografia de Alceu é a intensidade dos contrastes, as aparentes contradições, o choque de forças antagônicas e o equilíbrio que se forma entre elas. Esse equilíbrio não se dá pelo afrouxamento das forças, ambas continuam fortes, enérgicas, intensas. Vou apresentar esse traço – o equilíbrio de antagonismos- em cinco instâncias ao longo da vida de Alceu, poderíamos falar de 50 outras. Infância Alceu foi educado a domicílio até os nove anos de idade. Era na Casa Azul, uma chácara verde no Cosme Velho, por onde corria a descoberto o Rio Carioca antes de desembocar na Praia do Flamengo. Alfabetização, matemática e noções básicas de botânica, geografia e economia eram dadas pelo professor Kopke, um refugiado alemão que vinha à casa dar aula ao menino. O método de ensino empregado destoava do padrão pedagógico daqueles tempos mais dados ao Ateneu, de Raul de Pompeia, feito de decorebas, do professor que pontificando despejava conhecimentos sobre o aluno submisso. Kopke levava o menino a passear pela chácara e quando encontravam uma planta ou pedra paravam para analisar suas características vegetais ou minerais. Também circulavam pelo bairro identificando sua topografia espetacular, a por lado a lado granitos colossais despencando sobre o oceano e matas floridas crescendo nos intervalos. Naquela pedagogia itinerante iam identificando fenômenos sociais, frequentadores daquelas calçadas, consistindo em mascates de vassouras, frangos e frutas, fulanos que giram a manivela do realejo em troca de meio tostão, todos esses personagens do cotidiano da capital da República. Música era outro item fundamental na formação de Alceu. Vinha à chácara dar-lhe aula particular de piano o cearense Alberto Nepomuceno, autor de peças melódicas eruditas que logo seriam influência importante em Villa Lobos. Caligrafia tentou o prof. Goldsmith ensinar ao menino, sem nenhum sucesso. Este outro refugiado alemão, que vinha ao Cosme Velho abraçado a desenhos de sua autoria na vã esperança de empurrar alguns


sobre os pais dos alunos para reforço de suas finanças combalidas, tentava configurar o traço rebelde do garoto a um mínimo de estética, mas fracassou. A ponto daquela escrita irrequieta de Alceu, em estilo arame farpado seguido de rabiscos deselegantes, que ele próprio tinha dificuldade de entender, uns anos mais tarde ficou reduzida a uma única intérprete, Tuca e sua paciência beneditina. Com a morte dela, em 2012, tornaram-se órfãs e quase indecifráveis os 33 anos de correspondência diária e pontual que o escritor postava à filha. Estamos falando de umas 12 mil cartas hoje arquivadas na Unesp, campus de Assis. *** Contra-fluxo : Pois é esse menino cercado de atenções - o varão rodeado em casa por quatro irmãs e meia dúzia de tutores — que aos 10 anos de idade o pai dele, de convicções republicanas, resolve que está na hora de ser robustecido, de conhecer a realidade social do país, de sair da estufa profilática da zona sul, ter contato com outras classes sociais. Alceu é matriculado no Colégio Pedro II, na Zona Norte, onde convive com meninos socialmente mais toscos. É fácil imaginar as descontinuidades, o estranhamento provocado por alguém que traz de casa “fusains” lápis de cera franceses comprados nos magazines de Paris, lancheira preparada pela mãe coruja, etc. Já o som da palavra pronunciada em bom francês soa afetado, precioso. Os bullyings não demoraram. Aos 15, quando Ceceu afirma no recreio ter lido Shakespeare, um dos parrudos sai com ele aos sopapos. Juventude Outra vivência preparatória de novo choque de contrários dá-se em Duas Pontes, bairro em Petrópolis onde ficava a casa de campo de seus primos abonados, os Amoroso Costa. Repare-se que Manuel Amoroso Costa veio a ser matemático notório, professor da Politécnica; morreu tragicamente em 1928, na queda de um avião que circundava a Baia de Guanabara com uma comitiva de notórios para saudar o navio que trazia Santos Dumont de volta da França. Manuel foi genuíno cientista, só a pesquisa e a música o seduziam, a ponto de em viagem à Europa na mocidade ele preferir conhecer a Grécia da matriz mundial do conhecimento humanístico do que os cabarés parisienses.

Os primos Amoroso hibernavam na casa à beira do riacho quatro meses no verão petropolitano e outro tanto no inverno. Deglutiam os autores de destaque na belle époque francesa, portuguesa e brasileira. Anatole France, Eça de Queiroz e Machado de Assis, por exemplo. Era uma tertúlia em sessão continuada pelos meses de férias escolares. O traço filosófico identificador desse grupo é o diletantismo e a ironia, eles escolhem não optar, entretêm-se com literatura, acreditam não precisar definir-se, vão tocando a vida como o fluxo constante de um rio, eles apenas assistem. A questão social no país ainda andava adormecida. E para a geração da belle époque no Universo não havia mais enigmas, o espetacular surto científico das décadas recentes - nelas se inventou o motor, a explosão, os automóveis, a navegação transoceânica movida a caldeiras, à eletricidade, à telegrafia; ela bamburrou fabulosas jazidas de ouro e diamante na África do Sul. É a Europa ariana levando ao mundo seu poder civilizador, as teorias eugênicas prosperam. Não é a toa que a belle époque olhou o cristianismo com desprezo; egocêntrica e enfatuada, ela descartou liminarmente o paradigma de um rei crucificado, corresponderia em linguagem de hoje, como na canção dos Beatles, a “tosing out of tune”. Respirava-se aversão ao catolicismo, algo tão forte nos intelectuais companheiros de geração de Alceu, eles insistiam em guardar para si, reagindo um pouco como o personagem de Primo Basílio: “-Então o Conselheiro quer que eu, um engenheiro, um estudante de matemática, acredite que há almas que vivem no céu, com asinhas brancas, túnicas azuis, e tocando instrumentos?”. Alceu vive 18 meses baseado em Paris, só volta ao Rio quando em 1914 arrebenta a I Guerra. Aliás um incidente sintomático do espírito da época dáse na semana do retorno: com os jornais franceses noticiando tropas alemãs na fronteira ele consegue passagens para sua família (mãe e quatro irmãs) num trem para Lisboa, onde tomariam o vapor pro Brasil. Pois dona Camila não esconde o desaponto, “vou perder minha hora na costureira!”. Dom Timóteo Amoroso Anastácio dizia bem: “belle époque, era bocó!”


Em 1919 Renato Machado convida Alceu para escrever uma coluna de crítica literária em O Jornal. Essa coluna dá voto de confiança aos Modernistas de 22, que o establishment à época via como não mais do que um barulhento grupo underground. Observem-se as circunstâncias, o Rio de Janeiro era a capital do Brasil, sua importância relativa no país era destacada, São Paulo ainda decolava. Alceu se torna destacado crítico do Modernismo, troca cartas com os Andrade, Mario, Oswald e Carlos Drummond. Pois não demorou e o crítico se converte, levado à Igreja pelas mãos de um adepto da Ação Francesa, o movimento reacionário que se opunha à Revolução Francesa, Jackson de Figueiredo. Alceu passa a frequentar o Palácio São Joaquim, de onde o cardeal orienta a condução do Centro Dom Vital, um núcleo de leigos interessados em divulgar os valores cristãos para a sociedade. Dom Leme espera fazer uma presença católica na intelectualidade contagiada de positivismo cientificista. A reação dos correspondentes de Alceu não demorou. Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond, Sergio Buarque de Holanda e Rodrigo Andrade, todos se manifestaram enérgica e contrariamente à opção do crítico pela Igreja. Essa gente fez restrições públicas, eles diagnosticaram que a critica de Alceu poderia tornar-se sectária. Oswald não segurou sua ironia escandalosa, no Rei da Vela encaixou Cristiano de Bem Saúde, o retrato de um Alceu tido como grande censor a mando do clero. Oswald lamentava “Tristão é um dos nossos que agora acredita em anjo...” . Anos 1950 Nas semanas finais de 49 os Amoroso Lima faziam as malas para embarcar para Washington, Alceu convidado a ser diretor da União Pan-Americana, o embrião da OEA. Por culturalmente interessante que fosse o posto, havia custos afetivos substanciais agregados, o do isolamento. Os Amoroso Lima viajavam de navio, dez dias de mar só para chegar a NYC. Comunicações só por cartas, semanas de demora. Permaneceriam dois anos ininterruptos no exterior. Pois é este homo viator que oferece na mesma semana um frappé à filha na confeitaria D’Ângelo, em Petrópolis. Ali a jovem despeja sobre a mesa sua decisão de ingressar em Santa Maria, um convento

beneditino em São Paulo. Dizia-se que além das freiras viverem confinadas ao convento, de onde só tinham licença para sair para o médico, não poderiam escrever à família e as cartas recebidas passariam pela censura de madre abadessa. A despedida testava os nervos do progenitor, dois anos de separação da filha não bastariam, o afastamento geográfico incorporavase à vida da família. A notícia radical feriu minha avó que levou alguns anos a digeri-la.Para Alceu também a vocação da filha pôs à prova de esforço suas convicções. Tuca era especialmente ligada ao pai, iam juntos de bonde à faculdade, brincavam de imaginar a história dos outros passageiros, como seria a casa e a família do senhor de bengala que acabava de desembarcar ou aquele outro engravatado, com jeito de tesoureiro de banco. A opção da jovem a tiraria do convívio familiar, podaria qualquer desejo de conhecer o mundo que tanto ouvira seus pais evocar e a confinaria num mosteiro, onde cumpriria horários rígidos e alimentação franciscana. Para atenuar o rompimento de hábitos Alceu passou a escrever diariamente longas cartas à freirinha, a prática varreu 33 anos, até a morte de Alceu em 1983. Um envelope com 10 páginas de uma caligrafia a desafiar uma equipe de farmacêuticos Alceu despachava diariamente na agência central do Correio em Petrópolis. Há ali um corrimão de escada instalado a pedido de Tristão, ele, octogenário, reclamava à agência do perigo de descer a escada. Aí um cunhado meu, Egydio Bianchi, que na década de 90 dirigiu os Correios, quando instalou o corrimão, que teve que ser muito estudado dada a história do prédio tombado. Isso está contado num livro publicado pela ECT. * * Os Correios e Telégrafos no Brasil, ISBN 85-901137-1-X Velhice: Episódio Corção: Em 1967 o filho mais velho de Alceu, Jorge Alceu, na altura com 36 anos, casado e pai de cinco crianças, morador de Campinas, matriculara-se num curso de extensão na Fundação Getúlio Vargas, pelo que vinha a São Paulo todas as noites. Num desses percursos, ao voltar, quase meia noite, com a Anhanguera debaixo de chuva pesada, na altura do Frango Assado, km 71, eis que os pneus de um veículo passando em sentido contrário disparam um jato d’ água sobre o parabrisa da Rural Willys. Ela derrapa no asfalto, perde


o controle, cruza o canteiro e bate em automóvel vindo do interior. Nesse tempo não se usava cinto de segurança, o choque violento joga meu tio contra o teto da Rural, onde bate a cabeça. Removida a Campinas em ambulância, a vítima deu entrada na emergência do Hospital Vera Cruz em estado de coma. E assim inconsciente permaneceu 40 dias, metade deles sob um cobertor de gelo destinado a baixar a temperatura do corpo e evitar febres que agravassem o trauma no cérebro. Em matéria de recursos médicos podia-se contar com o máximo disponível na praça reputadamente bem provida, e as conexões familiares locais certamente ajudaram. Doutor Roque Balbo não mediu esforços, mas o caso era gravíssimo e resultou grave lesão na cabeça, impondo a Jorge uma sentença perpétua, ele perdeu o impulso avante da existência. Alertados por telefone na madrugada,Tristão e Maria Thereza desceram de Petrópolis pela Cometa, para acompanhar o caso. Pouco podiam contribuir além de testemunhar sua solidariedade. Minha avó não era de demonstrar emoções, mas ficou a ruminar o choque, o risco não pequeno da perda do filho varão a quem legara o temperamento fleumático. O acidente convocou muitas forças na família, Silvia, minha mãe, fez plantão todas aquelas noites no quarto do hospital, pois o mecanismo do cobertor térmico requeria um vigilante alerta para a necessidade de inserir uma moeda de 10 centavos de dólar na chave do sistema para corrigi-lo, o que a todo momento acontecia. Foi quando Tristão vislumbrou imolar algo pela intenção, não importando que o sacrifício custasse-lhe caro. A consciência assoprou-lhe a tarefa mais árdua, exigiu que pusesse de lado antigas mágoas e fosse procurar seu grande desafeto e adversário de ideias, o homem que havia sido seu principal colaborador no Centro Dom Vital mas que há anos movia pelos jornais uma campanha de desconstrução da imagem de Alceu: Gustavo Corção. O encontro deu-se no Rio poucas semanas depois. Tristão contou a Corção precisamente o que o trazia ali, o antigo companheiro comentou que vinha rezando diariamente pelo caso. A visita foi bem curta, Alceu disse a ele que eram adversários de ideias, mas unidos no coração de Cristo. Ao despedirem-se no portão da casa de Corção abraçaram-se, este não conteve as lágrimas, Alceu beijou-lhe a mão.

Domesticamente Outro choque de forças em antagonismo na biografia dava-se no cotidiano, era intenso e profundo. Refirome à dinâmica dos temperamentos. Minha avó era especialmente polida, mas não propriamente simpática. Introvertida, ao contrário da exuberância do marido, aquela alegria contagiante. Dou um exemplo: sendo minha avó de humor seco, se à mesa de almoço ela largasse uma brincadeira e as pessoas à volta não percebessem o cômico ela deixava passar batida. Era avessa à dramaticidade, a comoção fácil. Por exemplo, durante os 2 anos finais da correspondência de Alceu com Jackson, em que o marido viveu a crise da fé, Maria Thereza tinha sobre aquilo um olhar oblíquo, podador das efusões místicas do marido, ela via naquilo do marido ter insônia e estressar-se algo dramático, um exagero dispensável. O ambiente geral na primeira República, herdeiro do sec. XIX cientificista, podava a religiosidade. Alberto de Faria, meu bisavô, teria dito numa mesa de jogo de cartas que antes preferiria saber do genro encontrado num lupanar do que numa igreja. O temperamento reservado foi importante para podar a vida social e gregária do casal, eles não frequentavam nem recebiam em sua casa, nãolhes faltando a pecha de arredios. Não tertv em casa foi outra estímulo importante ao labor intelectual do intelectual católico. Não me esqueço de uma tarde em 1970 em que meus avós vieram conhecer o apartamento que eu ocupava como estudante em Paris, no Marais, então ainda um reduto judeu, nada a ver com sua sofisticação atual. Servindo-lhes um café narrei um pouco da festa ali havida na noite anterior para um grupo de amigos, ao que Tristão foi enfático: “não deixe a vida escoar entre gregarismos que a nada levam, procure adensar suas vivências”. Pois a postura mais cerebral de Maria Thereza foi trabalhando o marido, operando um circulo virtuoso a partir de algumas adversidades. Sem ela Alceuprovavelmente teria seguido adiante o diletante divagador, eterno aluno de professores particulares e colecionador de filigranas. Terminaria a vidaum grade conhecedor de Proust e apreciador de Baudelaire, mas sem sair de sua redoma, sem efetivo envolvimento na realidade social e politica brasileiras, sem interagir com elas em sua coluna de jornal. O robusto cacife do sogro mesmo dividido por oito teria de alguma forma sustentado uma existência de mero apreciador


da vida e do mundo que a este pouco devolveria. Aliás não me esqueço de um breve comentário de Tristão sobre um dos personagens do grande romance de Maria Alice Barroso, Um Nome para Matar. Um dos herdeiros na família do proprietário enfiou-se na biblioteca da casa e fez dela o centro de sua vida. Não fosse o senso de responsabilidade inato, eis uma opção que teria agradado a Alceu.

base nutricional, a tapioca que foi o único pão de nossos antepassados que durante a colônia não conheceram pão à base de trigo, ele aguardou a Independência.

Pois Alceu chegou a ser espécie de carranca do rio São Francisco, estas colocadas na proa da embarcação que avança destemida. Sua autoridade moral, sua coragem, sua disposição de denunciar arbitrariedades deram-lhe nos anos sombrios da ditadura militar a condição de único brasileiro cuja coluna de jornal não era censurada. A quem mais foi permitido à época escrever em dois dos jornais de maior circulação no Rio e em São Paulo, o Jornal do Brasil e a Folha de São Paulo, que o deputado Rubens Paiva fora sequestrado pelos órgãos de segurança do estado e que sumira em suas mãos ?

Xikito Affonso Ferreira Xikito@iaaf.com.br

*** Quero terminar evocando um afluente nacional do equilíbrio de antagonismos fundamental na cultura brasileira, Gilberto Freyre.Tal conceito foi amplamente trabalhado por Chesterton, autor que frequentou a mesa de cabeceira do antropólogo pernambucano e também a de Alceu Amoroso Lima. Ambos declararam profunda admiração por Chesterton, à base das convicções de ambos o pensador inglês teve influência, eles o leram no começo da carreira intelectual. Casa Grande & Senzala é um grande mosaico de antagonismos em equilíbrio. No Brasil do começo do sec. XX o entendimento comum era o de Nina Rodrigues: a miscigenação é a causa de nosso atraso. Ora, nesse ambiente entrou Gilberto Freyre propondo exatamente o contrário: o patrimônio cultural dos africanos enriqueceu aos europeus. Aliás o caso brasileiro não foi o primeiro, pois os berberes já haviam transferido aos portugueses suas técnicas de canalização de agua e a arte dos azulejos. Para o Brasil os negros trouxeram suas plantase seus pratos mais adaptados aos trópicos, sua música sacudida, seus ritmos que animam o espirito e açambarcam. Por mais que Gilberto Freyrepossa ter subestimado a violência da condição de escravo ele nos abriu as portas para apreciarmos os chorinhos e a bossa nova, a riqueza dos sabores tropicais, a presença da mandioca na alimentação brasileira, ela que foi nossa

Bahia, 15 jun.15


Depoimento Alceu Amoroso Lima Filho Fui convidado pelo Centro de Pesquisa e Formação do Sesc SP a escrever sobre meu pai, Alceu Amoroso Lima, pseudônimo Tristão de Athayde, o qual, nascido no Rio de Janeiro em 11 de dezembro de 1893, morreu em Petrópolis no dia 14 de agosto de 1983, três meses antes de completar seu nonagésimo ano de vida. Filho que sou, o de número cinco, nascido em 30 de julho de 1935 e batizado Alceu Amoroso Lima Filho, meu tema é contar um pouco de sua vida privada sua vida pública já é bem conhecida e comentada por muitos. E começo por dizer que na vida particular nada teve a ver com participação na política partidária, seja no Parlamento, seja no Executivo, seja no Poder Judiciário, embora muito participante na sociedade civil, especialmente no ambiente de Educação Superior e na mídia, seja no campo de educação, como professor de Literatura Brasileira na antiga Universidade do Brasil, hoje UFRJ, e com a mesma cadeira na PUC-RJ, seja nos jornais do Rio e de São Paulo, como cronista, colunista do Jornal do Brasil e da Folha de São Paulo durante muitos anos. Muito especialmente, foi ligado à Igreja Católica no Brasil e no exterior, desde sua conversão, em 1928, à educação religiosa e ao Vaticano (Conselho Mundial de Justiça e Paz). Seu Adeus à disponibilidade e outros adeuses, uma carta a Sérgio Buarque de Holanda - depois publicada em livro em 1969 -, marcou bem a sua conversão ao catolicismo, que acontecera em 1928; tive eu a ousadia de, na apresentação do livro Cartas do Pai, lançado em 2003 pelo Instituto Moreira Salles, falar no seu “retorno à disponibilidade”, alusão à “ressurreição” da intimidade de sua alma, que estava se publicando agora, via cartas diárias para a sua filha monja beneditina. Passou quatro anos em Washington, como Diretor Cultural da União Pan-Americana, secretaria da Organização dos Estados Americanos, e dois anos em Nova York, como professor da New York University, cadeira de Estudos Brasileiros. Membro desde 1935 da Academia Brasileira de Letras, nos últimos anos o “decano”, e da qual o ouvi dizer que “eu entrei na ABL, mas ela não entrou em mim...”. E lembro um episódio na ABL: Tristão protestou com veemência, na sessão semanal da ABL, presente Getúlio Vargas, contra uma determinação do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) que

obrigava a quem saísse do Rio com livros, a ter uma autorização especial, o que ele chamou de “censura prévia”; foi apoiado por uns, por outros, refutado, numa calorosa discussão pública; no dia seguinte os jornais noticiavam a “discussão calorosa” entre os acadêmicos, mas também a revogação pelo DIP da tal portaria! Uma das características da personalidade de Tristão, aliás penso eu que das mais fortes, era o sense of humour, que a meu ver se identifica com a inteligência e a naturalidade, esta última, segundo ele, a maior das virtudes! “A naturalidade é como um bando de crianças brincando na rua, em frente da Igreja”, disse uma vez. Convidado a se candidatar a Senador, recusou, mas recomendou que fosse convidado seu amigo de muitos anos, Hamilton Nogueira, que foi eleito pelo Rio de Janeiro. Convidado para Ministro da Educação, não sei por qual Presidente (teria sido o General Castelo Branco?...), recusou e disse “minha posição é na tribuna, onde tenho podido, até hoje, dizer o que penso...”. Aliás, procurado, por telefone, pelo Presidente Castelo Branco, que lhe disse “ser seu leitor e admirador”, e que se preocupava em explicar que “você,Tristão, está mal informado sobre a revolução...”, etc., etc.; e que, sentindo Tristão preocupado que pudesse ser “trote”, disse-lhe que poderia, “se quisesse, telefonar de volta para o número “xxx” para conferir quem o estaria chamando ao telefone...”. O cidadão e professor Alceu Amoroso Lima foi também escritor, dizia ter mais de cem títulos publicados entre 1928 e 1978, com temas dos mais diversos, principalmente nas áreas de filosofia, sociologia, política e religião, esta devotada a uma vida intensa de apóstolo da religião católica, desde que deixou uma vida burguesa de laissez faire para trás e, através de contatos com Jackson de Figueiredo, Padre Leonel Franca, S.J., e principalmente o Cardeal Dom Sebastião Leme, converteu-se ao catolicismo, em 1928. Ao invés de “chover no molhado” sobre a vida de meu pai e suas atividades, assunto que já terá sido e será por muito tempo ainda contado em prosa e verso por diversas pessoas, que direta ou indiretamente tiveram contato pessoal com ele, e/ou com suas obras e sua pregação, resolvi misturar o “meu pai de casa”, da minha autoria, conhecido por mim “ao vivo e a cores” de 1935 a 1983, pelo menos dos anos 40 até os anos 80 do século XX, com as pessoas de dentro ou mesmo “de fora de casa” que falaram


e escreveram sobre sua vida, tais como ele próprio, Medeiros Lima (Memórias Improvisadas), Francisco Assis Barbosa (Memorando dos 90) e outros. Sua personalidade pública foi narrada por Candido Mendes (Da pessoa à persona) magistralmente; aliás, diga-se de passagem. Candido, escolhido pelo próprio Alceu, próximo de morrer, como seu sucessor nas atividades literárias e sociais, criou na Universidade Candido Mendes o Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, que vem fazendo um trabalho grande de divulgação de suas ideias na sociedade brasileira, especialmente nas relações com a hierarquia da Igreja Católica. Chamemos então para a conversa o personagem Tristão e os outros seus amigos ou não (“tive amigos e inimigos” – dizia Tristão de Athayde), publicados ou desconhecidos, parentes ou sem parentesco, para se manifestarem sobre a sua presença na sociedade, na literatura e na política. Quando ele morreu, Zuenir Ventura, então repórter de revista, perguntou-me: “como era seu pai dentro de casa?” Respondi, sem hesitar, “ora, Zuenir, igualzinho ao que vocês conheciam e conviviam com ele no dia a dia!” E confirmo, hoje, a minha afirmação de então: Tristão era o mesmo na Avenida 15 de Novembro, em Petrópolis, após a Missa diária nos Franciscanos, comprando flores para levar para minha mãe em casa, tanto quanto tomando seu whisky no fim da tarde, na Rua Mosela, 289, nossa casa naquela cidade, hoje a sede do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade. Ou na Rua Dona Mariana, 149, em Botafogo, ou passeando após o jantar na Cathedral Avenue em Washington, para fazer a digestão. Um “homem do mundo”, se quiserem assim definir uma pessoa de refinada cultura, de maneiras de gentleman, que para nós exercia, através da figura de minha mãe, a posição de “dono da casa” (“da porta para fora, mando eu; da porta para dentro é sua mãe que manda!”), sem se pretender amigo ou colega dos filhos, nem se distanciar de discutir livremente conosco sobre nossas preocupações pessoais e/ou as dificuldades da sua própria vida, dentro de um clima de absoluta liberdade, sem exageros nem badalações intergeracionais.

Nunca, ao que me lembro, fui convidado a “uma conversa particular... a portas fechadas”, nem tampouco ouvi dele uma palavra menos “de salão”, a não ser, sinceramente, aquela “m....” que os franceses gostam, pronunciada a propósito de um mau governo, não sem antes se desculpar comigo - “desculpe a má palavra!...” -; o fato ocorreu aos seus 85 anos de idade ! Que disse Tristão de si próprio ao longo da vida? Como parte do livro Cartas do Pai, foi incluído o trecho “Alceu por Alceu”, contendo algumas coisas que ele disse ao completar 60 anos: -“ detestei meus tempos de ginásio...” -“fui sempre um aluno medíocre...” - “não faço uma afirmação sem sentir logo o protesto abafado das negações que ela implica...” - “a virtude que mais admiro é a naturalidade...” - “o vício que mais detesto, o farisaísmo...” - “guiei automóvel na cidade do México; mas hesitei dois meses antes de guiar no Rio de Janeiro...” - “conversei três horas com Thomas Merton; e dez horas com Maritain...” -“atravessei os Andes a cavalo...”, esta afirmação colocada em dúvida por meu cunhado Afrânio... - “nadei da Urca ao Morro da Viúva...”, também questionada por Afrânio... -“à medida que nos aproximamos do fim da vida, temos que escolher entre a humildade e a estupidez...” -“não há nada que mais enterneça um coração de velho do que ser chamado de você por uma criança (Petrópolis, 1981)...” - “a grande e grata surpresa da vida: os homens são melhores do que pensamos...” As cartas que Tristão escreveu, diariamente, para sua filha Lia, minha irmã monja, durante cerca de 20 anos, foram publicadas em dois livros (Cartas do Pai e Diário de um ano de trevas) pelo Instituto Moreira Salles, o primeiro livro sob a batuta do seu diretor, Antônio Fernando Franceschi, autorizado online pelo seu presidente, Doutor Walter Moreira Salles, que disse “isso é história do Brasil, temos que publicar” e, no caso do segundo livro, sob a responsabilidade do seu diretor, Flávio Pinheiro, foram produtos de leitura de Lia (conhecida em casa como Tuca! E no Mosteiro como Madre Maria Teresa), da digitação do autor destas linhas, e da revisão de Frei Betto. Foi uma autobiografia, segundo Tristão, “se você publicá-las algum dia, serão minha autobiografia”, resultado da leitura de Tuca (a única que, além de íntima da cabeça e das opiniões de Tristão, entendia a sua caligrafia hieroglífica... além da minha mãe) e


da minha tentativa insistente de participar, intelectual e tecnologicamente, em dueto inesquecível com ela, da reconstrução da figura admirada e amada do nosso pai. Estou convencido de que estamos deixando às pessoas que, de alguma forma, tiverem interesse em conhecer melhor o Tristão, uma leitura original e muito importante que, além de retratar sua personalidade, mostra seus comentários sobre os eventos dos quais participou, direta ou indiretamente, em sua vida, nesse período. As cartas, pessoais por natureza, retratam um viver e transmitir diário, seja doméstico, seja político, seja de comentários gerais sobre eventos e/ou pessoas ou instituições. Nada acrescentamos ao texto das cartas (salvo correções, a nosso ver, de alguns erros de português e de repetições a título de ênfase!), se bem que tenhamos suprimido algumas poucas passagens íntimas e/ou domésticas por julgá-las desnecessárias e/ou desinteressantes para o público leitor. Chegamos a 1968 e resolvemos parar, seja devido ao momento crítico da revolução de 1964, a edição do Ato Institucional número 5, que consolidava a ditadura militar, seja pelo tamanho grande, pouco prático, que o livro alcançaria, até o fim da última carta, de 31 de dezembro de 1968 (texto de 671 páginas, mais fotos). O segundo livro, Diário de um ano de trevas (a última carta é de 28 de Fevereiro de 1970, 264 páginas), é composto essencialmente por comentários em torno da atividade política, pois se trata do tempo da ditadura com todas as restrições criadas pelo poder militar. Aliás, diga-se a bem da verdade, Tristão muito poucas vezes foi impedido pela censura de publicar seus artigos nos jornais: livre que conseguiu ficar de segundas intenções visando ganhos financeiros ou políticos, dizia o que pensava, e, acrescento eu, ideias e opiniões, no mínimo, são difíceis de aprisionar... Além disso, o segundo livro, da metade para frente, reflete bastante a melancolia de Tristão, desiludido com a impossibilidade de redemocratização do Brasil, e com crescente desilusão, causada pelas mortes dos dois “Joões”, como ele dizia (John Kennedy e o Papa João XXIII), vistos por ele com tanta esperança no futuro da Igreja Católica e na paz mundial. O segundo livro foi encerrado devido a problemas de saúde de Tuca, cuja deficiência visual agravou-se, resultado da diabete, e ela passou a não poder mais ler os hieróglifos de Tristão.

Restam, inéditas, cerca de 10 anos de cartas (Tristão faleceu em agosto de 1983), manuscritas ainda, cuja decifração está sendo tentada por pesquisadores/ paleógrafos, para tentar completar a autobiografia, que algum dia ficará pronta, se Deus quiser. Chamemos à conversa os biógrafos de Tristão, Medeiros Lima (Memórias Improvisadas), Francisco Assis Barbosa (Memorando dos 90), Candido Mendes (Da persona à pessoa), Marcelo Timóteo da Costa (Um itinerário no século) e outros que poderão ter se referido a ele circunstancialmente, e procuremos acolher para uma troca de ideias e de opiniões com ele mesmo (via Tuca!). O tema passou a ser a mudança de Tristão, no modo de ver o mundo e o Brasil, da infância na burguesia da direita (único homem, três irmãs), não foi ao colégio primário, aprendia em casa com o (extraordinário professor) Kopke, muitas incursões pela Europa (belle époque, festas, namoradas, les argentines en fleur...) – enviesando para a “esquerda”... – ao contrário do normal dos jovens, que começam contestadores e crescem evoluindo da esquerda para a direita ao longo da vida. Tristão, como disse a Medeiros Lima, na juventude foi pela disciplina e na velhice pela liberdade, uma trajetória que, não por acaso, foi da naturalidade na infância para a autenticidade e, na conversão, para a liberdade, esta última cada vez mais sua maior convicção, no fim da vida. De Affonso Arinos surpreendeu-se ao ouvir: não presta para nada, a propósito de um conto passado na França, em francês, que escrevera e o mostrou a Arinos; e dele também ouviu um comentário ao informar-lhe que nunca lera nada de Eça de Queirós: que homem feliz! Machado de Assis foi seu vizinho no Cosme Velho, bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro; passava a mão pela cabeça do menino Alceu, que o espiava pelas grades da Casa Azul, onde nascera e morava, ao passar pela calçada com a esposa Carolina pelo braço; e Alceu foi ao seu enterro, acompanhado pelo padrinho Antônio Martins Marinhas. Manoel Bandeira, grande amigo, escreveu o poema A velha chácara, celebrando a Casa Azul, “já não existe mais a casa, mas o menino ainda existe!” Carlos Drummond de Andrade sobre Tristão, ao completar 70 anos: “[...] Tristão e Alceu, a mesma fiel cristalinidade, no sábio à sombra de Deus!”


É do mesmo Carlos Drummond de Andrade, convidado por mim e pelo Zuenir Ventura para que se candidatasse à cadeira de Alceu na Academia Brasileira de Letras, a resposta, curvando a cabeça: não sou digno. Deixou a crítica “por quê,Tristão?”, pergunta Medeiros Lima, Tristão em resposta “não é da minha natureza”, “[...] jamais consegue o crítico penetrar a essência da criação, ora por excesso de generalização, ora por excesso de análise”. Preferiu sempre o “e...e” ao “ou...ou”, influenciado por Chesterton. Medeiros Lima: Augusto Frederico Schmidt me declarou ter sido o senhor um dos homens que maior influência exerceu sobre ele. No entanto, não conheço duas pessoas tão diferentes. Tristão: quem pode desvendar o mistério das influências que recebemos e que exercemos? Só mesmo Deus. Por mais que procuremos analisá-las, sempre nos escapará o essencial: a influência é, como a cultura, por natureza, o que escapa à nossa análise e à nossa memória. “Sou um homem dominado por uma inquietação enorme em face da procura da verdade. Sinto-me um viajante, um homo viator! Thomas Merton também me pareceu ser um homo viator, ao morrer em pleno Oriente numa reunião de monges orientais de diversas crenças, em companhia dos quais discutia o tema ‘em procura da verdade’”. “A influência de Merton sobre mim, embora grande, não foi tão grande quanto a de Maritain; uma questão de oportunidade: quando Merton apareceu na minha trajetória, eu já estava no caminho [...]”. “A grave crise do mundo moderno tem sido motivada justamente pelo espírito de isolacionismo e de sectarismo levados ao extremo. Segundo João XXIII, se quisermos ultrapassar a crise, o caminho está na busca da compreensão recíproca, da aproximação dos contrários e dos diferentes”. Francisco Assis Barbosa: e por que “Tristão”? “Houve muitas confusões com os meus pseudônimos”.Tristão de Athayde: “existiu, sim. Coisa que eu ignorava totalmente quando adotei esse nome. Só mais tarde vim a saber que existiu um capitão das conquistas da Índia, chamado Tristão de Athayde, e que era o pior dos chantagistas!”, “mas já era tarde para corrigir.”. “O Prêmio Nobel? Depois que Guimarães Rosa morreu?!...” “Mas com certeza, como poeta, é Carlos Drummond de Andrade, que para mim é o suprassumo da criatividade literária. Para mim, é ele quem merecia o Prêmio Nobel!”


“Já dei um terço de minha biblioteca para a PUC de Petrópolis; não sei onde botar tanto livro...” Quem é Deus para Alceu Amoroso Lima? Tristão: “cheguei a Ele por tê-lo procurado em vão entre as coisas e os valores relativos e por sentir, de modo crescente, uma invencível necessidade de encontrar um sentido para a vida. Cheguei a Deus por meio de sua negação. Daí até hoje meu respeito pelos ateus...Só se nega aquilo que existe...”. E sobre Gustavo Corção: “Carlos Chagas Filho, que nos apresentara, me contou que, ao sairmos do nosso primeiro encontro a três, Corção lhe dissera: ‘nunca nos entenderemos!’ Nos desentendemos, depois nos entendemos. Sempre o admirei e respeitei até hoje. Como me disse um Reitor da PUC: ‘mesmo quando nos ataca, somos forçados a admirá-lo!’” Marcelo Timóteo da Costa traz a ideia do Alceu da “tripla devoção” diária: isto é, ir à Missa, ler o Breviário e escrever à filha beneditina. Queremos comparar as três práticas à trindade: a fé (a Missa), a esperança (“...os homens são melhores do que pensamos...”) e a caridade (“nada há no mundo de mais terrível do que a morte do amor!”). As monjas beneditinas da Abadia de Santa Maria, em São Paulo, reuniram várias palavras de Tristão de Athayde, e fizeram publicar um pequeno livro que teve o título de Palavras de Vida Eterna, o qual prefaciei, como segue. “Esse foi o ser humano com que nós, seus sete filhos, convivemos toda a nossa vida, sério quando precisava ser, respeitando e amando a nossa mãe, e ela responsável por grande parte da tarefa da educação dos filhos (“da porta da casa para dentro manda sua mãe...”), nunca entrando em conversas a “sós” porque elas eram todas transparentes na família, sempre nos dando todas as chances de acertar e de errar, de ir ou voltar, de crer ou de não crer, a liberdade acima de tudo (“plantei a árvore da liberdade na porta da minha casa...”), a responsabilidade e a seriedade como norma de vida. E essa liberdade sempre acompanhada pelo alerta de que “o ser humano não é confiável”: é capaz das atitudes mais nobres e bonitas, como também das menos aceitáveis, justamente porque “Deus nos fez livres... inclusive para negá-lo!” “O vício é o exagero da virtude”, outra de suas palavras marcantes: a fé levada ao exagero gera o fanatismo; o amor à verdade sem levar em conta a “verdade dos outros” pode levar ao farisaísmo; o amor sem limites pode levar às paixões loucas; enfim, o equilíbrio sempre tem que estar presente nas nossas atitudes;

o famoso “e...e” em lugar do “ou...ou”, expressão tão do seu agrado. Se nós, sete irmãos, trilhamos os caminhos mais diversos na vida, se tivemos erros e acertos como todo mundo tem, e ele próprio também os teve, se fizemos escolhas as mais diversas, boas ou ruins, não foi por falta de ter em casa um ser humano exemplar, que, sobretudo, sempre procurou nos mostrar a vida como ela deve ser vivida neste mundo, a caminho do lugar eterno para onde nos destinamos. Poucos dias antes de morrer, num intervalo do grande sofrimento a que o câncer o submetia, deu mais um exemplo que me faz recordar o ser humano que era: como discutíssemos, em volta de sua cama no hospital, sobre que horas seriam, ele saiu do seu torpor de doente terminal e disse: “por que vocês não ligam para 130?”, reação bem própria do homem sereno, em paz com sua consciência, que logo passaria para a outra vida, em trânsito pelas suas últimas horas nesse mundo. Com a naturalidade dos justos do Senhor! Hoje sou muitas vezes surpreendido por pessoas as mais diversas, das mais diferentes origens, idades, classes econômicas etc., que comentam, ao ler meu nome, que grande homem era o seu pai, e isso me dá a satisfação de mais uma oportunidade de admirar o homem que, sem ser poderoso financeiramente, politicamente ou de qualquer outra forma grande por critérios materialistas, fez bem ao bem comum das pessoas em geral, trazendo para elas esperança, solidariedade, e nelas recebendo gratidão, pois sempre foi grande aos olhos de Deus! Sei que a figura do meu pai é enorme, sob muitos aspectos foi e é ainda muito importante para a Igreja Católica e para o país, mas para mim, pessoalmente, seu exemplo é o que tentei exprimir através dessas palavras que mais uma vez, espero que possam trazer enriquecimento aos leitores destas “palavras de vida eterna” que estamos entregando ao público. Alceu Amoroso Lima Filho


A Correspondência de Tristão de Athayde e a Luta pelos Direitos Humanos Leandro Garcia Rodrigues

Falar em Direitos Humanos é uma tarefa sempre atual, pertinente e historicamente comprometida e articulada. Numa época de relativismos e também extremismos ideológicos, a luta pelos Direitos Humanos se mostra necessária e emblemática, já que a dignidade humana vem sofrendo toda a sorte de atentados, aumentando ou diminuindo, de acordo com cada realidade histórica e geográfica. O arquivo pessoal do escritor Alceu Amoroso Lima – o Tristão de Athayde – é um excelente repositório de inúmeros documentos que comprovam o engajamento desse intelectual plural na luta pelos Direitos Humanos. Estamos falando de cartas, relatórios, ensaios, anotações pessoais e manuscritos em geral, onde vemos que Alceu Amoroso Lima – que defendia a liberdade como grande dom da natureza humana – tinha uma real e salutar preocupação com essa temática. Como corte temporal e temático, ressalto a correspondência que manteve com inúmeros presos políticos e religiosos detidos ao longo do regime civilmilitar brasileiro (1964-1985). Deste conjunto, quero ressaltar o complexo diálogo de Tristão de Athayde com o frade dominicano Frei Betto, preso com vários outros religiosos dominicanos na Operação Bandeirantes de São Paulo (OBAN), que funcionava no Presídio Tiradentes, organismo de repressão que integrava o DOPS-SP . É um período conturbado e complexo da história brasileira, que ainda suscita dúvidas e pede por mais pesquisas e investigações, especialmente por envolver muitas pessoas e organizações oficiais, bem como políticas de Estado. Nesse período, prisões, torturas, desaparecimentos e mortes tornaram-se a regra, não a exceção. Tais práticas faziam parte do nosso cotidiano, atingindo em cheio todos aqueles que se posicionassem ideologicamente contrários a estes mesmos regimes, inclusive religiosos e leigos comprometidos com as causas da libertação, no mais amplo sentido desta palavra. Para ilustrar este clima de terror, cito este fragmento da carta que Frei Betto enviou a Alceu Amoroso Lima, em 22 de fevereiro de 1970, o texto mais difícil e contundente deste epistolário:

Além dos dominicanos, estão presos aqui um jesuíta e dois padres seculares. Todos nós fomos física e psicologicamente torturados e obrigados a assinar depoimentos forjados pela polícia. Sofremos o diabo: “pau de arara”, choques elétricos, socos, pontapés, além de vexames morais como o de ver um delegado trajando paramentos, de metralhadora em punho, ridicularizando a Igreja. A polícia aproveitou para levantar um verdadeiro processo da Igreja através de nós. Queria saber quem é quem na Igreja do Brasil, donde vem o dinheiro da CNBB, quem são as amantes de D. Hélder etc. Vivia-se um momento de terror e barbárie nas cadeias brasileiras, especialmente aquelas reservadas a interrogatórios e confinamentos dos chamados presos políticos, ou terroristas, como os aparelhos da repressão costumavam chamá-los, ou ainda “terroristas da Igreja”, alcunha reservada especificamente àqueles que pertenciam à hierarquia eclesiástica ou eram leigos comprometidos e envolvidos na causa do Evangelho. Nesta mesma carta a Alceu, num outro momento, Frei Betto inicia a narrativa da tortura de Frei Tito de Alencar Lima, também dominicano, preso com os demais religiosos de São Domingos e de outras ordens e/ou dioceses: Só para ilustrar a situação em que vivemos: há pouco mais de uma semana frei Tito de Alencar Lima foi levado para novos interrogatórios na “Operação Bandeirantes” (Polícia do Exército). Ontem soubemos que ele foi novamente torturado no “pau de arara” com choques elétricos e que havia “tentado o suicídio” cortando os pulsos. Levado ao Hospital Militar recebeu transfusões de sangue e já está fora de perigo, levaram-no de volta à prisão do Exército. Como o Núncio Apostólico tivesse vindo visitar-nos ontem (temos recebido todo o apoio dele e do episcopado brasileiro), pedimos que fosse ver como estava frei Tito. Não conseguiu, tendo sido barrado no Exército. Não deixaram que frei Tito receba qualquer visita enquanto não desaparecerem as marcas da tortura. É o costume. Nós que conhecemos bem a ele e à polícia do Exército, sabemos que frei Tito jamais seria capaz de um gesto desesperado. É jovem, tem grande força física e moral. Certamente tentaram “suicidá-lo”, como já ocorreu a outros e então bateram nele até arrancar sangue. Este é um caso entre centenas. É o retrato do regime em que vivemos. Nem senhores de idade escapam à tortura.


Nota-se o clima de terror, inclusive político, a ponto de impedirem a visita do próprio Núncio Apostólico, isto é, o embaixador do então Papa Paulo VI no Brasil e responsável pela diplomacia da Santa Sé em terras brasileiras. A este respeito, Frei Betto, enquanto na prisão, utilizou diversas das suas missivas para problematizar o papel e a devida atuação da Igreja no seio da sociedade brasileira. Às vezes cético, às vezes empolgado, o dominicano cambiou entre a euforia e a decepção, especialmente em relação à determinada parcela do episcopado brasileiro ainda renitente em denunciar as agruras cometidas no âmbito do regime militar. Numa carta aos seus pais, em 3 de março de 1970, ele assim declarou: Dentro de nossas limitações, tudo fizemos para que a Igreja emitisse uma nota de protesto. É preciso que ela tome posição a respeito da gravidade da situação brasileira, antes que seja tarde. Os bispos, porém, estão acostumados à posição defensiva. Preferem a omissão ao risco. Talvez seja mesmo necessário que alguém se sacrifique para que eles reajam. Não posso compreender, à luz do Evangelho, como é possível suportar calado declarações como essa que o governo acaba de fazer: que no Brasil nunca houve democracia! [...] A Bíblia mostra-nos claramente que Deus fala através dos acontecimentos. João XXIII lembrava que devemos observar os “sinais dos tempos” para compreender a ação de Deus na história. Creio que Deus fala à Igreja no Brasil e na América Latina através do que se passa conosco. Daí minha certeza de que nada temos a perder. O caso do Tito é uma prova cabal disso. (Frei Betto, 1978, p.36) Frei Tito de Alencar Lima (1945-1974) nasceu em Fortaleza e morreu em Éveux, França. Ainda adolescente, engajou-se nos movimentos de base da sua cidade natal, especialmente aqueles de caráter estudantil, com ênfase na JEC (Juventude Estudantil Católica). Ingressou no noviciado dominicano, em Belo Horizonte, em 1966, fez a profissão dos votos no ano seguinte e mudou-se para São Paulo para estudar Filosofia na Universidade de São Paulo (USP). Em outubro de 1968, Frei Tito foi preso por participar de um congresso clandestino da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna (SP), fato esse que dará início ao seu calvário de sucessivas torturas nas dependências da OBAN, sob a ação sádica do delegado Sérgio Paranhos Fleury e sua equipe do Esquadrão da Morte. Frei Tito foi brutalmente torturado por vários dias ininterruptos, o que o levou a tentar o suicídio dentro da própria OBAN. Ainda na prisão, escreveu sobre a sua tortura e o documento

correu pelo mundo, transformando-se em símbolo de luta pelos direitos humanos. Em 1971 foi deportado para o Chile e, sob a ameaça de novamente ser preso, fugiu para a Itália. Em Roma, não encontrou qualquer tipo de apoio oficial por parte da Igreja, por ser considerado um “frade terrorista”. De Roma, Tito foi a Paris, onde recebeu apoio dos dominicanos da província local, que o enviaram ao convento de Sainte Marie de La Tourette, em Évoux, Lyon. Traumatizado pela tortura física, moral e psicológica, Frei Tito submeteu-se a um tratamento psiquiátrico que surtiu pouco efeito benéfico, os traumas e fantasmas do passado na OBAN marcaram-lhe profundamente a alma e o próprio corpo. No dia 10 de agosto de 1974, um morador dos arredores de Lyon encontrou o corpo de Frei Tito suspenso por uma corda, entre o céu e a terra. Foi enterrado no cemitério dominicano do Convento de Sainte Marie de La Tourette. Em 25 de março de 1983, o corpo de Frei Tito de Alencar Lima chegou ao Brasil, passando por São Paulo, onde foi realizada uma celebração litúrgica em sua memória e em memória de Alexandre Vannucchi. Cercado por bispos e numeroso grupo de sacerdotes, Dom Paulo Evaristo Arns repudiou a tragédia da tortura em missa de corpo presente acompanhada por mais de quatro mil pessoas. A cerimônia foi celebrada em trajes vermelhos, usados em celebrações dos mártires. Da capital paulista, seu corpo foi levado à Fortaleza, onde foi definitivamente sepultado. A respeito da tortura de Frei Tito de Alencar Lima, assim narrou Frei Betto, em carta a Alceu Amoroso Lima, em 22 de fevereiro de 1970: Só para ilustrar a situação em que vivemos: há pouco mais de uma semana frei Tito de Alencar Lima foi levado para novos interrogatórios na “Operação Bandeirantes” (Polícia do Exército). Ontem soubemos que ele foi novamente torturado no “pau de arara” com choques elétricos e que havia “tentado o suicídio” cortando os pulsos . Levado ao Hospital Militar recebeu transfusões de sangue e já está fora de perigo, levaram-no de volta à prisão do Exército. Como o Núncio Apostólico tivesse vindo visitar-nos ontem (temos recebido todo o apoio dele e do episcopado brasileiro), pedimos que fosse ver como estava frei Tito. Não conseguiu, tendo sido barrado no Exército. Não deixaram que frei Tito recebesse qualquer visita enquanto não desaparecerem as marcas da tortura. É o costume. Nós que conhecemos bem a ele e à Polícia do Exército, sabemos que frei Tito jamais seria capaz de um gesto desesperado. É jovem, tem grande força física e moral. Certamente tentaram “suicidálo”, como já ocorreu a outros e então bateram nele


até arrancar sangue. Este é um caso entre centenas. É o retrato do regime em que vivemos. Nem senhores de idade escapam à tortura. Mas o sr. já deve estar a par disto, não vou prolongar-me. (Rodrigues, 2015, pp. 34-35) Daí a importância histórica desta correspondência: ela é atual, trans-histórica, com um destinatário múltiplo – todos aqueles que se escandalizam com este tipo de barbárie, de selvageria oficial em nome do Estado, em nome da segurança nacional. Por isso o caráter até mesmo profético dessas cartas: elas denunciam a opressão e a violação dos direitos humanos, mas também anunciam a esperança na libertação, na prática da justiça, numa espécie de espera messiânica por um novo tempo e uma nova realidade, como se percebe nessa mesma dramática carta de Frei Betto a Alceu: Apesar de tudo, estamos felizes pela graça de sermos a presença da Igreja nos cárceres. Nosso sofrimento não é inútil. Identificamo-nos com os milhares de prisioneiros anônimos, imagens vivas de Jesus Cristo. Rezamos os salmos diariamente, em conjunto, louvamos ao Senhor pela graça de trilhar o mesmo caminho de seu Filho, que foi perseguido, preso, torturado e condenado pela nossa redenção. Aqui aprendemos a “ter humildade diante da vida”, como nos diz Diógenes de Arruda Câmara , preso aqui também. É a oportunidade que temos de nos preparar para a Igreja dos pobres e oprimidos. Se a tortura nos humilhou, ela também nos dignificou, segundo a ótica da fé que nos ensina que o caminho da glória é ser o último dos homens. Só o mistério do Calvário nos faz compreender o que significa, diante de Deus, ser dependurado nu como porco no matadouro. Desculpe dr. Alceu este desabafo. Eu lhe escrevo apenas para agradecer aquele artigo. Mas quero lhe prometer que a Igreja descrita pela “Lumen Gentium” , aspirada por cristãos como o sr., está em gestação entre essas grades. Não é obra ou mérito nosso. É uma realidade viva que nos impõe severas exigências. Reze pelos que neste país lutam pela justiça, pelos presos políticos e suas famílias, pelos que morreram nas torturas, pelo frei Tito. Estaremos unidos ao sr. na mesma oração. Ela é a garantia dessa liberdade interior que ninguém pode arrancar de nós. Ou seja, aparentemente existe uma grande contradição nesserelato e em tudo que envolvia esses encarcerados: a prisão que também gerava relações de comunhão e fraternidade, de amor ao próximo e de fé renovada em Deus e nas suas promessas, na sua

palavra que nunca falha àqueles que nela creem. São os chamados “lírios da fé”, na expressão de muitos mártires cristãos ao longo da História, cujos martírios se renovam nas brutais experiências de tortura e violência aos quais muitos são impelidos e forçados, confirmando a promessa bíblica: Por Ele sofremos a ponto de ser acorrentados como malfeitores. Mas a Palavra de Deus não está presa. (2 Tim 2,9) Pode-se afirmar que essa correspondência entre Frei Betto e Alceu Amoroso Lima propiciou inúmeros frutos de denúncia com a escrita de vários artigos na imprensa – especialmente por parte de Alceu – bem como a tradução dessas cartas às mais diferentes línguas e posterior publicação nos respectivos países. E quando lembro de Alceu na imprensa da época, é realmente de se enaltecer a sua coragem, determinação e compromisso com a verdade. Percebe-se que Alceu fez dos jornais uma espécie de cátedra, sua voz retumbava aos quatro cantos no sentido de trazer a lume o que se passava nos subterrâneos do regime, não poupando nenhum nome, não criando metáforas para encobrir os devidos responsáveis. De sua imensa produção intelectual na imprensa da época, especialmente no Jornal do Brasil e na Folha de São Paulo, destaco a crônica “Terrorismo Mascarado”, publicada no Jornal do Brasil, em 25 de maio de 1966: A partir de 1º. de abril e, particularmente, do fatídico 9 de abril de 1964, o arbítrio governamental, militar e policial institucionalizado, introduziu o terrorismo à brasileira. E que representa este tipo de terrorismo? É a guerra de nervos. É a ameaça constante. É a perda de garantias legais. É a espada de Dâmocles. É a demissão injusta de um cargo, como a recentemente de Paulo Carneiro. São os IPMs. É a desfiguração da Universidade de Brasília. É a prisão de estudantes sob qualquer pretexto. É a supressão de colações de grau. É a expulsão, no ITA, de alunos como “subversivos”, por escolherem um paraninfo indesejável. São os julgamentos draconianos. É o não cumprimento dos habeas corpus. É a hipertrofia da justiça militar. É a falta de garantias para a proclamada liberdade de imprensa. É o julgamento iníquo de professores universitários. São os processos engavetados de fixação de residência, mas capazes, a qualquer momento, de serem desengavetados. Em suma, é um terrorismo encabulado, que não ousa confessar-se, mas que também não tem coragem de confessar o seu próprio malogro. Esse malogro se traduz na tremenda e crescente impopularidade da Revolução. Revela-se no medo de ir ao povo, no terror das eleições livres, na restrição do voto, na impostura democrática em que vivemos, na tentativa


de criar o peleguismo estudantil, pela organização de diretórios acadêmicos fantasmas, por imposição legal e na negação da liberdade sindical aos estudantes. [...] Enquanto não houver anistia, eleições livres, liberdade sindical autêntica, supressão dos IPMs, revogação do enquadramento dos estudantes, abolição da justiça de exceção e da hipertrofia do Poder Institucional dominante, haverá terrorismo cultural. Disfarçado ou mascarado se quiserem. Mas efetivo. (Lima, 1968, p.400) É o testemunho a serviço legítimo da liberdade, aqui compreendida nas mais diversas possibilidades e manifestações – de imprensa, de organização, de ideologia política, de expressão, de crença, enfim, liberdade de ser, sentimento esse que tem sua fonte na fé e na expressão que esta pode ter nas mais diferentes situações da vida cotidiana, especialmente a busca e a luta pela justiça – um dos grandes dons de Deus que o cristão traz consigo na vivência hodierna da sua história. Considerações finais Com a criação do Ciclo Tristão de Athayde, o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc SP deu um importante passo – firme e decisivo – no sentido de preservar a memória e atualização do pensamento de Alceu Amoroso Lima e todo o seu legado. Pode-se dizer que Alceu foi um intelectual plural, polífono e polígrafo. Não apenas pela sua imensa obra (mais de cem livros), mas principalmente pelo alcance do seu pensamento nas diferentes áreas do pensamento humano e cultural, pensando e analisando as mais diversas dinâmicas do pensamento brasileiro. De forma especial, ressaltei nesse texto a sua relação epistolar com o religioso católico Frei Betto, com quem Alceu manteve correspondência por muitos anos, sendo que no início da mesma, essa serviu como desabafo e documento de um dos piores momentos da história brasileira – o regime civil-militar brasileiro instaurado em 1964. São cartas importantes, dramáticas, algumas terríveis de serem lidas. Todavia, esses documentos também serviram como plataforma de profetismo e coragem por parte dos seus correspondentes, atravessando os limites físicos da cela, da cadeia, do presídio – buscando a liberdade, sentimento tão perseguido e sonhado nessas missivas.


1991.

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Notas sobre Alceu Amoroso Lima e Jacques Maritain: liberdade, emancipação e democracia Candido Rodrigues Neste texto, abordarei alguns aspectos da aproximação entre o líder católico Alceu Amoroso Lima e o filósofo francês Jacques Maritain nas décadas de 1930-1940. A presença da filosofia política de Jacques Maritain na obra de Amoroso Lima nessas décadas é ampla. A meu ver, alguns escritos do filósofo francês tiveram impacto mais decisivo sobre o crítico brasileiro, especialmente aqueles relativos ao comunismo, à emancipação política, à igualdade de direitos e à democracia. Para além do contato muito próximo entre ambos, registrado em oportunidades diversas, seja pessoalmente, seja por meio das missivas constantes, ou mesmo em razão das traduções de livros, resta evidente que algumas obras desempenharam um papel de maior relevância: Humanisme intégral (1936), Les droits de l’homme et la loi naturelle (1942), Christianisme et democracie (1943) e Principes d’une politique humainiste (1944). Merece destaque o fato de que muitas das reflexões presentes nessas obras servirão de base tanto a Amoroso Lima quanto a intelectuais latino-americanos para a criação de partidos políticos, inspirados na democracia cristã, como foi o caso do Partido Democrata Cristão (PDC), fundado em 1947. Jacques Maritain: o percurso rumo à emancipação política e à igualdade de direitos Convém aqui lembrar que Sérgio Miceli demonstra que a Igreja Católica procurou intensificar sua influência sobre a sociedade por meio de uma política estratégica de “criação de uma rede de organizações paralelas à hierarquia eclesiástica e geridas por intelectuais leigos” (MICELI, 2001, p. 127). Para Miceli (2001, p. 127),“a amplitude desse projeto resultava não apenas das diretrizes do Vaticano, então preocupado em sustar o florescimento dos movimentos operários de esquerda na Europa, mas também da tomada de consciência por parte do episcopado brasileiro da crise com que se defrontavam os grupos dirigentes oligárquicos”. No Brasil, esse processo foi definido como uma “reação católica” condicionada por uma postura de maior proximidade com o Vaticano e de condenação dos “erros da modernidade”, tais como o racionalismo, a liberdade de imprensa, a liberdade de religião, a maçonaria, o comunismo e a separação entre a Igreja e o Estado. Ciente das mudanças do

século XX, o Vaticano apoiou o projeto da Igreja Católica no Brasil, então liderada pelo cardeal Dom Leme, cujo objetivo era se reaproximar do Estado. Nesse projeto, os intelectuais foram considerados vetores indispensáveis. Portanto, foi nesse contexto que, primeiramente, Jackson de Figueiredo e, em seguida, Amoroso Lima, ocuparam lugares centrais na formação de um bloco de intelectuais que atuaram em defesa dos interesses católicos. Cabe destacar que o pensamento de Jackson de Figueiredo pairará por um longo período sobre Amoroso Lima e entrará em conflito com a presença dos escritos e das reflexões de Jacques Maritain. Maritain representou uma nova voz do neotomismo dentro da Igreja Católica no século XX, mais precisamente a partir da década de 1930, procurando romper com a crítica reducionista ao mundo moderno. Ele condenou, até 1926, o mundo moderno e esteve no círculo de apoiadores de Charles Maurras e do movimento Action Française. Conforme bem o demonstra o historiador Michel Winock, Charles Maurras era uma espécie de príncipe do nacionalismo, da autoridade, da antidemocracia, da xenofobia e do sentimento de decadência. Por essas posições e pelo forte laço de inserção que essas ideias tinham na Europa, sobretudo na França, Maurras e a Action Française exerceram forte influência sobre grande parte da juventude em todo o mundo, principalmente no pós-Primeira Guerra. É o que aponta Michel Winock ao referir-se, por exemplo, ao impacto da Action Française sobre Jacques Maritain: A Ação Francesa oferecia aos jovens em busca de ordem intelectual e moral uma perspectiva de ação de que não há outro exemplo, na França, a não ser sua antípoda, a organização comunista. Além disso, ela exercia, nas alas católicas, o que Jacques Maritain chama de um “principado de opinião”, que se estendeu às alas dos eclesiásticos, satisfeitos de encontrarem na Ação Francesa um braço secular contra os leigos, os franco-maçons e todos os inimigos da Igreja. (WINOCK, 2000, p. 239) Ainda acerca da trajetória de Jacques Maritain, cabe notar que, em 1927, o filósofo francês rompeu com a Action Française e, a partir de então, passou a considerar válidas as contribuições da modernidade. Em sua teorização, tais aportes deveriam ser colocados em favor de uma nova sociedade, ao mesmo tempo unitária e pluralista. Essa sociedade deveria constituirse por esses dois princípios a fim de comportar uma pluralidade de confissões de fé e de posicionamentos políticos – inclusive aqueles não católicos.


É importante assinalar que a ruptura de Jacques Maritain com a Action Française não representou um impacto imediato sobre Amoroso Lima – nem o poderia, visto que o rompimento ocorreu em 1927. Naquele momento, o contato de Amoroso Lima com a obra de Maritain era ainda incipiente. Assim, é possível afirmar que o efeito dessa ruptura sobre Amoroso Lima só pode ser mensurado na média duração e de modo progressivo, com destaque para o período posterior ao lançamento de Humanisme intégral (1936). Nesse livro, o filósofo francês define a liberdade como uma das características centrais para uma nova cristandade, caracterizada por uma autonomia das pessoas em oposição à ideia medieval da “força ao serviço de Deus” (MARITAIN, 1942, p. 191-213 ). Há uma passagem análoga em Principes d’une politique humaniste (1944), em que Maritain defende a necessidade de emancipação política como fruto da prática social e política. A seu ver, ambas deveriam ser pautadas na conquista da liberdade e na busca de um ideal histórico efetivo, em cujo seio a educação e a formação de cidadãos tivesse lugar de destaque (MARITAIN, 1945, p. 22 ). Avançando nesse ponto, vale observar que, para Maritain, a obra comum da nova cristandade se constitui na realização de uma comunidade fraterna, construída a partir de uma ação prática profana cristã com vistas ao bem comum civil. Esclarecendo: essa ação seria profana e cristã ao mesmo tempo e comportaria o pluralismo político e religioso. Segundo Maritain, em Humanisme intégral (1942, p. 198-199), “por isso mesmo que é profana e não sacral, não exige essa obra comum absolutamente de cada qual, como entrada, a profissão do cristianismo” . Gostaria também de lembrar que na obra Les droits de l’homme et la loi naturelle (1942), encontra-se uma definição semelhante à constituição da comunidade fraterna já proposta por Maritain em Humanisme intégral. Essa definição compõe-se por oposição aos regimes de força mundo afora e invoca a defesa da liberdade e da fraternidade, valores caros ao filósofo francês. Esse livro teve impacto categórico sobre Amoroso Lima, a se considerar ainda o cenário da ditadura varguista no Brasil. Cito diretamente, mais uma vez, Jacques Maritain (1967, p. 54 ): Bem comum revertido sobre as pessoas; autoridade política dirigindo os homens livres para este bem comum; moralidade intrínseca do bem comum e da vida política. Inspiração personalista, comunitária e

pluralista da organização social; ligação orgânica da sociedade civil com a religião, sem opressão religiosa nem clericalismo, em outros termos, sociedade realmente, não decorativamente cristã. [...] Obra inspirada pelo ideal de liberdade e fraternidade, e tendendo para a instauração de uma sociedade fraternal em que o ser humano seja libertado da escravidão e da miséria. Avançando um pouco mais sobre os escritos de Jacques Maritain, observo que foi efetivamente no livro Christianisme et démocratie (1943) que sua posição se modificou em relação particularmente ao comunismo, no qual passou a ver claramente a possibilidade de conversão. Em sua opinião, era bem provável que um povo pudesse estar sujeito a ser desviado do “ateísmo e dos erros espirituais do comunismo” por mudanças de ordem interna, por mais difícil e dolorosa que fosse tal “evolução”. Aos olhos de Maritain, havia esperança na “transformação espiritual do povo russo” não em razão do comunismo em si, mas em virtude de seus “profundos recursos religiosos e humanos”. O filósofo francês acreditava que uma restauração geral do pensamento e da ação democráticas poderia reintegrar à democracia aqueles que estavam inclinados ao comunismo. Em suas palavras, esta ação poderia reintegrá-los: [...] ao respeito das coisas da alma, ao amor da liberdade e ao sentimento da dignidade da pessoa, não seguramente a ortodoxia marxista e a disciplina do Partido Comunista, mas numerosos comunistas de sentimento e muitos daqueles que a revolta contra as injustiças sociais [inclinava ao comunismo]. (MARITAIN, 1957, p. 94-95) No período subsequente a essas publicações de Maritain, observamos que as ideias e as posturas de Amoroso Lima evoluíram gradativamente em consonância com as do filósofo francês. Nesse percurso, de católico conservador, Amoroso Lima avança ao longo dos anos em direção a posições mais progressistas. A meu ver, é inequívoco que Jacques Maritain está na origem e no caminho dessa profunda mudança de Tristão de Athayde, agora rumo a um catolicismo progressista e à defesa da liberdade. É a isso que me refiro quando trato da “segunda conversão” de Amoroso Lima ao catolicismo, visto que a primeira, realizada em 1928 pelas mãos de Leonel Franca, Dom Leme e Jackson de Figueiredo, correspondeu a um inquestionável engajamento às ideias e às posições conservadoras. Estas, àquele tempo, foram tributárias também, em grande medida,


de suas leituras de Charles Maurras e, por meio deste, de Joseph de Maistre. Demonstrei isso em minha tese de doutorado, mas aqui não convém avançar sobre esses pontos, dado o objetivo desta exposição. Amoroso Lima e Jacques Maritain: impactos da inspiração democrática à reconversão Foi, portanto, progressivamente à luz das leituras de Jacques Maritain que o líder católico Amoroso Lima definiu-se em favor da democracia, de base cristã, visto que manteve sua crítica à democracia de natureza liberal. Esta, por sua vez, era por ele considerada negativamente como o sustentáculo do mundo burguês. Com o cenário de guerra bem avançado, Amoroso Lima trouxe a público, em janeiro de 1944, o decisivo texto “Adeus à mocidade”. Esse artigo foi o resultado de um pronunciamento feito na sessão comemorativa de seu jubileu, em 13 de dezembro de 1943. Nessa sessão, Amoroso Lima falou de sua trajetória de vida até os cinquenta anos e também sobre as mudanças pelas quais a sociedade brasileira havia passado. Seu pronunciamento teve caráter marcante pois representou um momento em que se despediu de valores já superados e aceitou “um convite à meditação”. Seu grande objetivo naquela ocasião era demonstrar sua mudança em direção ao pensamento progressista:Mas quem pode fugir ao remorso, na hora em que honestamente se volta para o passado e vê o pouco que fez e tudo o que poderia ter feito se fosse realmente fiel ao seu destino? Como deixar de sentir a insignificância de tudo isso, em face do vulto imenso dos acontecimentos que nos cercam? (ATHAYDE, 1944a, p. 1-7). Se se considera que o “adeus à disponibilidade” dado por Amoroso Lima em 1928 teve o caráter de um adeus do “ceticismo, da ironia, do oportunismo ideológico” (LIMA, 2001, p. 171), percebe-se a dimensão do texto de 1944 já citado acima. Neste último, o líder católico deixa evidente seu engajamento em favor de uma “nova disponibilidade”, agora rumo à liberdade e à democracia. É o que se observa em outro texto de 1944, intitulado “Bernanos”, onde Amoroso Lima defende a construção de uma nova ordem mundial, que exigiria dos indivíduos ações claras e distintas: É a disponibilidade à experiência, ao ensinamento dos fatos, às lições dos acontecimentos desses últimos vinte anos, desde que as duas revoluções fascista e comunista tentaram dividir o mundo em dois blocos irredutíveis. Devemos voltar à disponibilidade, para


saber aproveitar o trágico depoimento da agonia, não pela morte, mas pela vida, não pelo apego a posições insustentáveis e anacrônicas, mas por uma sadia participação na construção de um mundo novo. (ATHAYDE, 1944b, p. 507, grifos meus)

se considerava ser a recristianização do Brasil. Em seu conjunto, os intelectuais próximos a Amoroso Lima tiveram relativo sucesso, em especial em virtude de sua “ação católica” nos campos político, cultural e educacional.

Apontamentos finais

Finalizo este texto com as palavras de Amoroso Lima em 1945, cuja intensidade e densidade expressam categoricamente sua relação com o mestre francês, Jacques Maritain:

Essa nova disponibilidade por parte de Amoroso Lima diante de uma nova ordem mundial devese, inquestionavelmente e em grande medida, ao impacto de sua relação com Jacques Maritain e seus escritos. É dessa relação que ele retira ensinamentos e mudanças acerca, por exemplo, do comunismo, da emancipação política, da igualdade de direitos e da democracia. Registre-se que foi igualmente a partir de Jacques Maritain que tanto Amoroso Lima quanto a rede de intelectuais católicos que gravitavam em torno dele investiram esforços na criação do Partido Democrata Cristão no Brasil. O conjunto de reflexões presentes nas obras de Jacques Maritain contribuiu inequivocamente para o que classifiquei em minha tese como uma “segunda conversão” de Amoroso Lima, desta feita rumo a um catolicismo com características progressistas e mais próximo à liberdade e aos valores democráticos. É oportuno destacar que, além da influência ou da apropriação dos escritos de Jacques Maritain,Amoroso Lima passou por um processo de autocrítica e de distanciamento em relação à herança conservadora de Jackson de Figueiredo. Seus incontáveis escritos presentes na revista A Ordem, suas entrevistas e suas obras, todas do período em estudo, demonstram cabalmente essa assertiva. É igualmente oportuno evocar como fatores contribuintes a sua nova conversão as perturbações, nacionais e internacionais, decorrentes do contexto de guerra, da ditadura varguista e do nazi-fascismo. Resumidamente, a meu ver, restou evidenciado que essa segunda conversão de Amoroso Lima operou-se (tal qual a primeira, de 1928) de forma progressiva, reflexiva e não sem conflitos interiores e divergências com alguns dos quadros importantes da Igreja Católica e do Centro Dom Vital. Por último, chama a atenção a necessidade do avanço das pesquisas voltadas à compreensão do impacto, pelo menos nos anos 1930 e 1940, seja dos escritos de Jacques Maritain, seja da ação de Amoroso Lima na Liga Eleitoral Católica, no movimento de Ação Católica, no Instituto Católico de Estudos Superiores e mesmo na Editora Agir. A rede de intelectuais liderada por Amoroso Lima foi marcadamente guiada por um sentimento de missão civilizadora. Seu objetivo era promover o que

Há vinte anos que quase outra coisa não faço senão traduzir em português o que posso aprender do pensamento desse homem admirável dos nossos tempos. Há vinte anos que acompanho de perto, pelo coração e pelo entendimento, a marcha acidentada desse espírito pelo arquipélago agitado dos tempos modernos e nunca me arrependi senão do que não tenho sabido aproveitar dos seus ensinamentos. [...] O partido de o amar, de o defender, de o seguir, está tomado há muito tempo, espero para sempre; [...] Como todo pensador realmente cristão, é no Cristo, fonte de toda ciência e de toda sabedoria, e não em si próprio, que ele vai buscar o melhor que nos dá. [...] O que sempre mais me prendeu a Maritain foi justamente essa humildade espontânea e profunda, tão diversa do falso publicanismo e tão adequada a esse sentido autêntico do cristianismo, que nos salva dos “Fuhren” segundo o mundo, para nos levar ao único Salvador, que não é “deste mundo”. [...] O que sentimos é a mais íntima ligação entre inteligência e experiência, entre a Fé rigorosamente intelectualista, uma visão profundamente mística das relações do homem com a Verdade, e uma observação muito objetiva dos nossos tempos. (ATHAYDE, 1945a, p. 98-104) Referências ATHAYDE, Tristão. Adeus à mocidade. A Ordem, Rio de Janeiro, n. 1-2, p. 1-8, jan. 1944a. ______. “Bernanos”. A Ordem, Rio de Janeiro, s/n, p. 505-516, nov./dez. 1944b. ______. Maritain. A Ordem, Rio de Janeiro, s/n, p. 91115, fev. 1945a. LIMA, Alceu Amoroso. Adeus à disponibilidade. In: AZZI, Riolando (Org.). Notas para a história do Centro Dom Vital. Rio de Janeiro: Educam/Paulinas, 2001. p. 169-174.


MARITAIN, Jacques. Humanismo integral: uma visão da nova ordem cristã. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1942. ______. Principes d’une politique humaniste. 2. ed. Paris: Paul Hartmann Éditeur, 1945. ______. Cristianismo e democracia. Rio de Janeiro: Agir, 1957. ______. Os direitos do homem e a lei natural. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967. MICELI, Sérgio. A elite eclesiástica brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. ______. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. WINOCK, Michel. O século dos intelectuais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. Bibliografia consultada BUSETTO, Áureo. A democracia cristã no Brasil: princípios e práticas. São Paulo: Editora da Unesp, 2002. COMPAGNON, Olivier. Le catholicisme français au Brésil: l’influence de Jacques Maritain sur Alceu Amoroso Lima. In: MATTOSO, Katia de Queirós; SANTOS, Idelette Muzart-Fonseca dos; ROLLAND, Denis (Dir.). Modèles politiques et culturels au Brésil: emprunts, adaptations, rejets. XIXe et XXe siècles. Paris: Publications de la Sorbonne, 2003a. p. 271-291. ______. Jacques Maritain et l’Amérique du Sud: le modèle malgré lui. Paris: Presses Universitaires du Septentrion, 2003b. RODRIGUES, Cândido. A Ordem: uma revista de intelectuais católicos, 1934-1945. Belo Horizonte: Autêntica/Fapesp, 2005. ______. Aproximações & conversões: o intelectual Alceu Amoroso Lima no Brasil das décadas de 19281946. São Paulo: Alameda, 2012.


Nenhum dia sem escrita: Da experiência do cristão e de seu registro – os casos de Alceu Amoroso Lima e Thomas Merton Marcelo Timotheo da Costa Nulla dies sine línea Plínio, o Velho As trajetórias de Alceu Amoroso Lima (†1983) e Thomas Merton (†1968) apresentam notável confluência a despeito de existirem diferenças biográficas não negligenciáveis entre eles. Em primeiro lugar, a diversidade: geográfica, cultural e geracional. Amoroso Lima era carioca, do ano de 1893; já Merton, filho de neozelandês e norteamericana e que adulto optaria pela mesma cidadania da Mãe, nasceu no Sul da França, mais de duas décadas depois, em 1915. Quanto às semelhanças em seus itinerários, ressaltem-se as mais relevantes para o presente texto: originários de famílias abastadas, foram educados com esmero e, após passarem infância e juventude sem qualquer preocupação metafísica duradoura, converteram-se ao catolicismo romano em idade adulta. Amoroso Lima, aos 35 anos incompletos; Merton, aos 23 anos de idade. Outra confluência a ser notada: essas conversões, fenômeno em princípio de esfera privada, foram levadas à praça pública pela dupla, sobretudo por meio de intensa atividade literária. Assim, a ambos foi associada dada militância intelectual católica típica do século XX, tempo de tensão e redefinição nas relações da Igreja com a sociedade moderna. Engajamento que, nos dois casos, com o passar do tempo e de forma não-linear, muda substancialmente: tanto o brasileiro como o norte-americano, mantendo-se rigorosamente fiéis a sua Igreja, cambiam quanto à maneira de pensar a fé e também suas implicações no mundo da experiência. Assim, convertidos em registro de fé reacionário, Amoroso Lima e Merton se tornam defensores do cristianismo progressista, transformação que, por um lado, ampliou a difusão de seus escritos para além dos muros católicos, por outro lado, fez com que a dupla necessitasse desenvolver especial e sofisticado controle de suas ações. É de tais permanências e câmbios – e principalmente sobre a forma como Amoroso Lima e Merton buscaram vivê-los – que tratam as linhas seguintes. ****

Alceu Amoroso Lima e Thomas Merton foram autores prolíficos. O brasileiro, segundo seus biógrafos, teria escrito entre 80 e 100 livros (aliás, a própria indefinição quanto à extensão exata da bibliografia amorosiana é por si só reveladora). Já o monge trapista teve publicadas mais de 60 obras em vida, deixando ainda material suficiente para mais alguns títulos editados após sua morte prematura, aos 53 anos. Isso posto, deseja-se frisar particular ponto de contato entre os dois intelectuais e ativistas católicos. Propõe-se, aqui, que eles modelaram a si mesmos pela escrita, atividade por intermédio da qual a dupla logrou organizar e dirigir suas trajetórias. Direção necessária porque ambos, como dito acima, passaram por significativas modificações relativas às suas visões da fé cristã e das implicações políticas e sociais da mesma. Convertidos ao catolicismo tridentino, aquele forjado para reagir à Reforma, modelo de igreja reativo ao século e à modernidade, tomados por condenados e condenáveis, Amoroso Lima e Merton, nos anos que se seguiram suas respectivas profissões de fé, buscaram encarnar com afinco a eclesiologia então vigente nas hostes católicas. Eclesiologia essa que produziu o chamado projeto romanizador ou de neocristandade. A idéia subjacente a tal projeto, no Brasil e fora dele, era realizar dupla réplica em relação à sociedade contemporânea. Replicar: responder aos tempos correntes, seus desafios, questionamentos, contestando especialmente às crescentes críticas que a chamada “razão moderna” impunha à fé (à fé cristã, em geral, e à fé católica, em particular). E, em sentido complementar, por intermédio do projeto romanizador, a Igreja tencionou replicar a sociedade, ao reproduzir importantes características deste corpo social (todavia, sob a clave cristã): se havia escolas e hospitais, deveriam existir escolas e hospitais católicos; o mesmo valia para partidos políticos, imprensa, sindicatos, intelectualidade, associações variadas (de jovens, moças, universitários, etc). Numa frase: tencionava-se marcar o século laicizado com a Cruz romana. E, paradoxalmente, se a reação católica em relação ao século mostrava-se dinâmica, a contenda pelo futuro da sociedade contemporânea tinha por bandeira o elogio a tempos pretéritos. De acordo com William Shannon, biógrafo de Merton, “A Igreja anterior ao [Concílio] Vaticano II [1962-65] na qual Merton foi batizado era uma Igreja ainda em reação – mesmo passados três séculos – à reforma protestante do século dezesseis. Caracterizada por uma mentalidade de cerco, cerrava fileiras em torno de suas certezas doutrinais e morais, ele grudava-se


a seu passado com grande tenacidade […] A Igreja gabava-se da estabilidade e do caráter imutável de seu magistério em meio a um mundo em movimento.” Apesar da Igreja Católica no Brasil viver questão muito particular – a adaptação à República laica proclamada em fins do século XIX – a observação de Shannon é igualmente válida para o caso de Alceu Amoroso Lima, convertido exatos dez anos antes de Thomas Merton. Pouco tempo decorrido de suas admissões na Igreja, Amoroso Lima e Merton, por caminhos diversos e com a benção de seus superiores hierárquicos, constroem e consolidam a imagem de convertidos e fiéis modelares. O brasileiro alcança tal posição – espécie de campeão nacional das causas católicas e da neocristandade – por intensa e quase onipresente atividade apologética. Ele atuou em variados círculos: na Universidade, na Academia Brasileira de Letras, na imprensa. Consolidou aliança com o governo federal, que tinha os mesmos inimigos da Igreja (como o anarquismo e o pensamento de esquerda); instruiu os fiéis católicos em pleitos e pelejas públicas. Merton torna-se figura exemplar pela própria conversão: de origem protestante, ainda que de família não praticante, formado em cultura secularizada e espécie de enfant terrible avant la lettre, ele não apenas assume a fé católica. Merton a adota de forma radical, fazendose sacerdote e monge, em sociedade materialista e onde o apelo de Roma é minoritário. Opção descrita em precoce autobiografia, A montanha dos sete patamares (1948), que, comparada a Confissões de Santo Agostinho, tornou-se best seller norteamericano e, posteriormente, ganhou projeção internacional. E, como anunciado, passadas cerca de duas décadas de suas respectivas conversões, Amoroso Lima e Merton vivenciam significativos câmbios em seus registros eclesiais, adotando leitura católica menos beligerante e mais dialogal face ao mundo contemporâneo. Renovação que foi sintetizada pelo brasileiro (sendo, no entanto, aplicável à dupla de intelectuais cristãos) nos seguintes termos: “Costumamos considerar demais a Fé como sendo uma âncora, segundo a sua simbolização tradicional. Mas, se realmente quiséssemos modernizar um pouco mais essa representação simbólica, acredito que seríamos ainda mais fiéis à realidade, se representássemos a Fé por uma hélice [...] a Fé, mais que permanência ou imobilidade, é movimento, é marcha, é viagem, é caminhada, é ascensão.” Ao frisar, mesmo antes do aggiornamento proposto pelo Vaticano II, a necessidade de “modernizar”

o catolicismo do século XX, Amoroso Lima opta pela aproximação com sociedade e cultura contemporâneas, alinhando-se entre católicos renovadores, notadamente aqueles vindos da Igreja francesa, leigos e sacerdotes como Jacques Maritain, Emmanuel Mounier, Yves-Marie Congar, Teilhard de Chardin. Interessante notar que tal antecipação ao aggiornamento católico também foi empreendida por Thomas Merton, outro que sempre cultivou laços com a reflexão teológica do Velho Continente, notadamente aquela proveniente da França (a propósito, os dois foram alfabetizados em francês, na França, durante a infância). Quanto à postura mais pluralista frente ao pensamento moderno, é o próprio Merton que assinala em seu diário, no dia 31 de julho de 1961:“Ser verdadeiramente ‘católico’ é ser capaz de se importar com os problemas e alegrias de todos e ser todas as coisas para todos os homens.” O monge, a seu modo, adianta-se ao célebre proêmio do documento conciliar “Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo de hoje”, proclamado pelos padres conciliares do Vaticano II, em dezembro de 1965: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens e mulheres de hoje [...] são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo.” Cumpre frisar ponto de grande importância para o presente texto: cambiar envolve riscos. Amoroso Lima e Merton bem sabiam disso e cuidaram de controlar seu itinerário entre os fiéis. Afinal, Merton, monge e presbítero, pertencia à Ordem religiosa conhecida pelo conservadorismo e circunspecção. E, ademais, estava submetido a voto de obediência a seus superiores. Já Amoroso Lima, ainda que fiel leigo, tinha as responsabilidades da liderança do laicato brasileiro. Ele havia sido alçado a tal condição por Dom Sebastião Leme, arcebispo do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, após a morte de Jackson de Figueiredo. Este fora pivô no processo conversional amorosiano e falecera meses depois da admissão de Alceu ao catolicismo. Morto Figueiredo, coube a Amoroso Lima a direção do Centro Dom Vital e da revista A Ordem, espécie de “cabeças de ponte” do projeto de neocristandade católico. **** E, conforme assinalado antes, Amoroso Lima e Thomas Merton alteram a forma de ver seu credo e repensam as implicações sociais e políticas dele. Quer-se destacar aqui a ligação entre transformação e risco. Cambiar é incorrer em riscos, perigo majorado para aqueles que, como Amoroso Lima e Merton,


estiveram vinculados a modelos de pensamento e ação muito rígidos. Perigo para o qual ambos estiveram atentos. Para ilustrar esse ponto, abordando a transformação eclesiológica de Amoroso Lima, diz Candido Mendes de Almeida: “Repetindo Erasmo, Dr. Alceu sabia da tentação dos hereges”. Católicos proeminentes em seus países, Alceu Amoroso Lima e Thomas Merton foram vigiados em seus itinerários (e mudanças) pela hierarquia eclesial mais conservadora. Aquele, por exemplo, a partir da segunda metade dos anos 1940, teve seus textos examinados por censor escolhido pelo então cardeal do Rio de Janeiro, Dom Jaime Câmara (sucessor de Dom Leme), que via com preocupação a influência “modernizante” de Jacques Maritain sobre Amoroso Lima. Este igualmente causara mal-estar entre certos círculos de crentes mais conservadores, em 1946, ao defender que o Partido Comunista Brasileiro não fosse colocado na ilegalidade. Graças a tal postura liberal, Amoroso Lima foi acusado de sabotar os reais interesses da Igreja no país. Já, de seu turno, Merton, enfrentou problemas mais graves com a supervisão de seus superiores. Ele esteve submetido a controles doutrinário, moral e também o relativo ao chamado “decoro monástico” (sobre o que seria oportuno a um monge falar e quanto à forma e conteúdo de sua mensagem). Controle que se transforma em censura, nos anos 1950, quando Merton escreve textos sobre a ameaça de guerra nuclear. Interdito que também é imposto quando o trapista defende maior aproximação com o budismo e outras tradições orientais. No primeiro caso, em tempo de acelerada corrida armamentista e Guerra Fria, a pregação pacifista era vista por alguns setores da sociedade norte-americana como fraqueza diante da ameaça comunista. Posicionamento esse que perderá a força com a célebre encíclica Pacem in Terris, do papa João XXIII (1958-1963), vinda a lume em seus últimos anos do pontificado. Já a aproximação com o misticismo oriental e a valorização do diálogo ecumênico encontrava, em tempos anteriores ao Vaticano II, notáveis resistências entre clérigos católicos, ciosos da manutenção (de certa leitura) da ortodoxia. Cabe ainda notar que, na década de 1950, época na qual Amoroso Lima e Thomas Merton vão consolidando suas transformações eclesiológicas, recrudescem as disputas internas no seio da Igreja. Era o final do longo pontificado de Pio XII (1939-1958), marcado por visível fechamento teológico-pastoral, movimento que atinge importantes experiências de abertura no orbe católico – como foi o caso da

Nouvelle Théologie e dos padres operários, ambas de origem francesa. Neste mesmo país, ao qual Amoroso Lima e Merton estavam ligados sentimental e intelectualmente, a Cúria romana impõe sanções à Ordem dominicana, importante pólo de inovação eclesial. Desta forma, em dias infensos às mudanças e inovações, Amoroso Lima e Merton, por caminhos independentes, porém em boa medida semelhantes, vão reconstruindo sua identidade católica. *** Vivenciando tais transformações, era necessário aos intelectuais em pauta organizar seus movimentos. Controle que exigiu acurada meditação sobre o caminho a seguir. Meditação que se traduziu em cálculo cotidiano de ações, projeção de cenários, aproximação com aliados, resposta (muitas vezes moderada) aos críticos, avaliação de riscos. Isso posto, atente-se para a palavra citada acima: meditação. Meditação, seja frisado, conjugada de maneira muito particular pela dupla de intelectuais católicos. Tanto Amoroso Lima como Merton eram tributários da espiritualidade beneditina. O trapista norteamericano pertencia à Ordem que deita raízes na tradição monacal de São Bento. Formalmente, os trapistas – ou Cistercienses da Estrita Observância – são uma reforma da Ordem Cisterciense, sendo esta última fruto de reforma anterior da própria Ordem de São Bento. E a “estrita observância” a que se refere a nomeação oficial trapista é relativa à Regra de São Bento. Quanto a Amoroso Lima, desde os primeiros dias após sua conversão, passou a freqüentar o Mosteiro de São Bento carioca, estabelecendo fortes laços com a comunidade local. Proximidade ratificada quando Amoroso Lima se fez oblato da mesma Ordem, nos anos 1950, época na qual, sintomaticamente, o intelectual leigo consolidava sua transformação eclesiológica, desvinculando-se dos ideais de neocristandade. Naquele tempo, aliás, os beneditinos do Rio de Janeiro constituíam núcleo renovador no cenário eclesial do Brasil, sobretudo quanto à Liturgia. E retome-se a palavra citada anteriormente: meditação. Para analisar como Amoroso Lima e Merton meditaram sobre suas convicções interiores e ações exteriores – intra-muros católicos e na praça pública – é preciso lançar luz sobre especial característica do beneditinismo. Na Regra de São Bento, o uso do verbo “meditar” permite interpretação importante para o presente argumento. Ali, meditar (meditent, em latim) significa exercitar-se e também experimentar.


Acredito que a dupla ora analisada, cambiando de eclesiologia e na forma de atuar no mundo da experiência, meditou e experimentou caminhos a partir da escrita. Da escrita de si. Exercício cotidiano, prolongado no tempo, que permitiu a Amoroso Lima e Merton movimentarem-se com segurança entre os membros de sua Igreja. Desta forma, eles se transformaram substancialmente e de maneira rigorosamente ortodoxa. Observe-se, em primeiro lugar, o caso de Merton. Em maio de 1939, poucos meses após sua profissão de fé católica, ele inicia a redação de diários (journals). Sua intenção era disciplinar a caminhada espiritual, posto que tomava a conversão como apenas o início de sua jornada. Intenção disciplinadora essa que será mantida através do tempo, até o dia de sua morte, em 10 de dezembro de 1968, data do último registro nos diários. São quase três décadas de contínuo meditar (em papel e tinta) sobre o cotidiano. Na verdade, Merton iniciara a escrita de diários na juventude, anos antes de se tornar religioso. Ao converter-se, ele reinicia a escrituração de si mesmo (e, tudo indica, queima seus diários anteriores). Reforçase, pois, a interpretação aqui proposta: sentindose “renascido” com o batismo, Merton buscou reestruturar sua vida, apagando inclusive o passado pré-conversão, tomado por pecaminoso. Se o risco era perder-se no novo caminho, comprometendo a conversão, convinha ter uma espécie de diário de bordo. E, para tanto, ele recomeçou seus journals em outras bases. Bases cristãs. Dada a natureza deste texto, não poderei me alongar mais na análise dos journals mertonianos. Destaco seu propósito primário, citando as palavras do monge. Ele disse estar, por meio dos diários, buscando “encontrar [s]eu caminho para onde supostamente est[ava] viajando.” Antes deste trecho, datado de março de 1951, o monge anotara, em fins de 1949: “Cada coisa que escrevo aqui é somente para a orientação [...].” E, à mesma época, na década de 1950, tempo em que sua transformação eclesiológica ganha força, Merton registra em livro: “minha máquina de escrever é fator essencial em meu ascetismo”. Unem-se, portanto, mística e escrita; meditação que é exercício e experimento de controle (de itinerário) pessoal. Processo semelhante de registro e de disciplinarização de si ocorre com Alceu Amoroso Lima, que não redigiu diários (nem autobiografia, como Merton fez em A Montanha dos Sete Patamares). Contudo, o brasileiro construiu algo comparável (na extensão temporal, freqüência e propósito) dos journals mertonianos. Alceu Amoroso Lima escreveu diariamente à filha Maria Teresa (nome religioso, Lia era seu nome de


batismo), por mais de 30 anos, isto é, do início da década de 1950, quando ela optou pela vida monacal internando-se na Abadia beneditina paulistana de Santa Maria, até 1983, ano da morte do pensador brasileiro. Claro está que tal epistolário é, primariamente, diálogo entre pai e filha. Quer-se, no entanto, olhar para além disso. Propõe-se, então, que, tal qual Merton em seus journals, Amoroso Lima exercitou-se (no sentido beneditino do termo) ao escrever à monja Maria Teresa. Alceu constituiu Maria Teresa sua confidente. Tratava-se de manobra prudencial. Os tempos pareciam exigir-lhe isso. Afinal, na década de 1950, o intelectual católico acelerava e consolidava seu já tantas vezes aludido câmbio eclesiológico. Dialogando com a Irmã Maria Teresa, ele buscava controlar os riscos desta transformação, disciplinar-se para seguir adiante. Diálogo epistolar: atividade comparável a uma confissão laica, como o próprio Alceu admitiu: “Você [Maria Teresa] que qualifique como quiser, o que sinto por dentro e me alivio, consideravelmente, confiando apenas a você (pois poderia fazê-lo a uma pessoa que deveria ser meu confessor, e cheguei mesmo a pedir-lhe que o fosse quando morresse o padre Franca, naturalmente D. Timóteo [Amoroso Anastácio, monge beneditino e primo do intelectual em questão], mas por vários motivos não consigo nunca confessar-me com ele, de modo que me confesso com você, já que não se trata propriamente do sacramento, mas de confiar o tumulto do que vai cá dentro e com isso ... tranqüilizar as águas [....].” Portanto, a correspondência familiar amorosiana, de pai para filha, deve ser entendida nessa clave confessional e de orientação. Alceu, escrevendo diariamente para a religiosa beneditina, e ele próprio tributário da espiritualidade de São Bento, exercitou-se, provou caminhos. Ele que, desde meados dos anos 1940, tempos antes da ida de Maria Teresa para o claustro, e também durante os anos 1950, ia remodelando seu registro de catolicismo, adotando eclesiologia (e atuação política) mais progressista. Em suma: ao se lançar por caminhos ainda não percorridos, Alceu Amoroso Lima (como Thomas Merton) procurou não se perder no trajeto. *** A consulta aos diários e ao epistolário de nossos autores, documentação que não poderá ser detalhada ao longo destas linhas, é conclusiva. Pela escrita de si cotidiana, em journals e cartas, Merton e Amoroso Lima meditam sobre a conjuntura eclesial e política, exercitam-se, traçam planos. E lapidam a si mesmos. A escrita de si, tecida pelo fio da fé, tem, portanto,

efeito de ladrilhamento interior. Processo que, no tenso e conflituoso século XX, guia a dupla entre os crentes, ratificando sua identidade católica romana e, simultaneamente, alterando sua forma de atuar entre os homens, ação sempre vista como imperativo e consequência da fé professada. Assim, Amoroso Lima e Merton, tributários de modelo eclesial reativo e triunfalista, ao se converterem, passam a adotar, em seus respectivos países, linha de ação diversa, pluralista. Thomas Merton, por exemplo, envolveu-se em questões candentes da sociedade norte-americana: defendeu com vigor os direitos civis, condenando, com igual ênfase, a segregação racial. Manifestou-se pela não-violência, envolveu-se com a causa pacifista, denunciando o risco de uma hecatombe nuclear planetária e a guerra do Vietnã. Manifestou-se em favor do diálogo ecumênico, do aggionamento resultante do Vaticano II e da aproximação entre culturas Ocidental e Oriental. Foi interlocutor do jovem Dalai Lama, a quem encontrou em seu exílio, na Índia. Também Alceu Amoroso Lima, como Thomas Merton e outros católicos liberais o fizeram, apoiou as inovações do Concílio Vaticano II e causas pacifistas mundiais. Quanto ao cenário interno brasileiro, ele atuou na denúncia da última ditadura civil-militar nacional. Em suas colunas de jornal, veiculados pelo Jornal do Brasil e Folha de S. Paulo, o intelectual católico pediu a volta das eleições livres e a redemocratização do país. E reivindicou a concessão de anistia política ampla e o retorno de todos os exilados. Questionou igualmente as autoridades do país sobre o destino de desaparecidos políticos. Atuações públicas, da parte de Merton e Amoroso Lima, sempre motivadas por seus credos. Fé duplamente remodelada, que faz os dois estabelecerem admiradores, interlocutores e aliados fora dos muros católicos. Ambos, desta forma, valorizando a diversidade e o diálogo, firmaram sentido mais amplo – e, ao mesmo tempo, estritamente canônico – do termo católico: universal.


Dois políticos e seus projetos: Alceu Amoroso Lima e Anísio Teixeira em torno da Educação Nacional Agueda Bernardete Bittencourt A Ação Católica por sua natureza é estranha à política partidária. Mas não é estranha à política superior, que visa o bem comum. Pois bem, com a nossa organização, espalhada por todo o Brasil, com o nosso empenho em favorecer a educação do povo, em velar e praticar a paz social, em defender a dignidade da pessoa humana, em todos os seus aspectos - estamos certos de poder retribuir fartamente ao Estado os benefícios que este fizer à Igreja, não por favores ou privilégios, mas pela prática efetiva de suas funções na garantia dos direitos individuais e da justiça social. Alceu Amoroso Lima (Carta a Gustavo Capanema, 16 de junho de1935) Embates em torno da educação marcaram o cenário nacional durante todo o século XX. Entre os mais estudados estão os que confrontaram católicos e laicos, seja nas Conferências Brasileiras de Educação, no Conselho Federal de Educação ou mesmo no Congresso Nacional, quando das Constituintes de 1934 e 1946, e depois, por ocasião do debate sobre a Lei de Diretrizes e Bases, por 12 anos tramitando nas Casas legislativas. Está estabelecido certo consenso sobre os grupos envolvidos na contenda, durante os anos 1930. Os defensores da escola laica são liderados por Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, além dos demais signatários do Manifesto dos Pioneiros. Do outro lado estão os aliados de Alceu Amoroso Lima, padre Leonel Franca e Gustavo Capanema. Pesquisas recentes, com base no estudo de trajetórias, começam a matizar esses grupos e questionar a laicidade dos defensores da escola laica e a simplificação do debate sobre os católicos. Estes, um grupo de militantes políticos organizados dentro do catolicismo (CARVALHO, 1998, 2004; PINHEIRO, 2015). Neste artigo buscamos compreender as disputas e os acordos construídos pelas grandes personalidades que lideraram os dois grupos – Anísio Teixeira e Alceu Amoroso Lima –, em campos opostos na década de 1930 e na mesma trincheira nos anos 1960. O estudo das biografias dos intelectuais, como o de suas redes sociais, oferece pistas para a compreensão dos embates, cujo aprofundamento será realizado, aqui, pelo estudo do pensamento de cada um deles, expresso em suas obras. Filhos das elites, em uma sociedade oligárquica, nasci-

Alceu Amoroso Lima nasceu na cidade de Petrópolis, a 11 de dezembro de 1893. Filho de Camila da Silva Amoroso Lima e do industrial Manuel José Amoroso Lima. Foi educado por John Köpke, o pedagogo poeta, precursor do escolanovismo no Brasil. Depois foi aluno do Colégio Pedro II, tendo-se formado na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro em 1913. Filho de mãe católica, não teve, porém, formação religiosa na infância, tendo frequentado colégio público e laico. Convertido ao catolicismo por influência de Jackson de Figueiredo, Alceu tornou-se um dos mais respeitados paladinos da Igreja Católica no Brasil. Foi Conde Romano pela Santa Sé. Fundou e dirigiu a revista A Ordem, em que manteve intensa colaboração, presidiu o Centro Dom Vital, que congregava os líderes do catolicismo no Rio de Janeiro. Cronista, ensaísta e crítico literário, publicou por mais de seis décadas nos principais jornais da capital federal e de São Paulo. Foi membro da Academia Brasileira de Letras. Catedrático de Literatura Brasileira na Faculdade Nacional de Filosofia e um dos fundadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Foi Diretor de Assuntos Culturais da Organização dos Estados Americanos (1951) e membro do Conselho Federal de Educação por várias décadas.

Este artigo é tributário do “Projeto Temático/ Fapesp nº 11/51829-0: Congregações Católicas, Educação e Estado Nacional” e da Bolsa de Produtividade/CNPq. Meus agradecimentos às duas instituições. Agradecimento também a Guilherme Arduini pelo convite para participar do Ciclo Tristão de Athayde e ao Centro de Pesquisa e Formação do Sesc SP pelo acolhimento. Professora Delart/FE/Unicamp e líder do grupo de pesquisaFocus/CNPq/Fapesp. E-mail: agueda@unicamp.br


dos no final do Império e início da República, estes dois homens trilharam os mesmos caminhos, frequentando as mesmas escolas. Não por acaso receberam educação cosmopolita, viajaram desde muito cedo pelos centros internacionais da cultura, na Europa e nos Estados Unidos da América. A Igreja Católica foi o ponto de união e de distanciamento entre ambos. Não apenas a Igreja, mas também as próprias redes sociais dos dois homens se cruzaram em vários momentos de suas trajetórias. Uma figura emblemática a ser destacada neste percurso é a de Afrânio Peixoto, médico e escritor, cunhado de Alceu, amigo e colaborador de Anísio, cuja mãe, D. Anna, era sua madrinha. Outra personalidade importante em momentos distintos para os dois foi Jackson de Figueiredo, sergipano, cuja trajetória intelectual se iniciou em Salvador, onde inspirou um grupo de pensadores conservadores (que viria a influenciar o jovem Anísio) e que, mais tarde, desempenhou importante papel na conversão de Amoroso Lima ao catolicismo. Como tem mostrado a sociologia, as relações se estabelecem dentro dos grupos sociais que circulam nas mesmas escolas, igrejas, clubes, partidos e associações. São essas relações de infância e juventude que marcam as cooperações e as alianças da vida adulta. Assim como os habitus formados nos mesmos círculos definem opções políticas e culturais futuras (BOURDIEU, 2011; CARVALHO, 1996). Temos duas personalidades saídas de setores distintos da vida nacional: um, filho de industrial do ramo têxtil, do estado do Rio de Janeiro, criado na capital da República, vizinho de Machado de Assis; e o outro, de uma família de políticos ligados à extração e à comercialização de minérios do sertão da Bahia. É na capital federal, no coração do estado nacional que se travará o primeiro embate entre os dois intelectuais, embate atravessado pelo projeto católico de nação e de sociedade a ser desenvolvido com base na educação. Ou seja, é no campo de poder por excelência que se trava a disputa, uma vez que, todos os campos remetem para o campo central que é o estado nacional (BOURDIEU, 2011). As disputas no âmbito do poder central se desenvolvem com base nas propriedades e nos capitais de que dispõem os agentes envolvidos. No caso de Alceu Amoroso Lima, como seu quadro biográfico deixa ver, tratava-se de um intelectual de formação cosmopolita, com cursos realizados na França, com domínio de línguas modernas e antigas, com capital econômico, relações sociais e familiares capazes de facilitar acesso aos locais de prestígio social e aos homens de poder

Anísio Spínola Teixeira nasceu em Caitité, no sertão baiano. Filho do médico e político Deocleciano Pires Teixeira e de Dona Anna Spinola Teixeira filha de família de políticos baianos. Estudou em colégios jesuítas. Formou-se em direito no Rio de Janeiro, em 1922. Manteve durante toda a sua juventude formação e aspiração pela carreira eclesiástica junto aos jesuítas. Na Bahia, ocupou o cargo de Diretor Geral da Instituição Pública de 1924 a 1929. Fez três viagens internacionais nesse mesmo período, quando visitou os principais centros de estudos sobre educação na Europa e nos EUA. Anísio Teixeira reformou o sistema escolar baiano. Estudou no Teacher’s College da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, onde conheceu seu mestre e inspirador de toda sua obra, John Dewey. Foi funcionário do Ministério da Educação e Diretor de Educação do Distrito Federal, onde criou a Universidade do Distrito Federal. Foi signatário do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, que propunha uma escola laica, obrigatória e gratuita. Foi um incansável debatedor da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Escreveu vasta obra, analisando os desafios e os percalços da educação nacional. Tem seu nome associado às principais criações do campo da educação, no século XX. Depois de uma breve passagem pela Unesco, atuou no Ministério da Educação, na Campanha de Aperfeiçoamento do Ensino Superior (Capes), no Centro Brasileiro de Pesquisa em Educação (CBPE), na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência SBPC), no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), no Conselho Federal de Educação. Fundador e Reitor da Universidade de Brasília. Morreu no Rio de Janeiro, em 1971.


político. A esses capitais sociais e simbólicos soma-se, após sua conversão, o poder da Igreja Católica. Anísio Teixeira, por sua vez, reúne o capital econômico trazido da família ao capital escolar expresso pela formação nas melhores escolas brasileiras e nas viagens internacionais, em elegante vagabundagem, garantidoras do acesso ao cosmopolitismo que o conhecimento de línguas estrangeiras, o contato com as artes e a história asseguram. Acrescenta a essas propriedades o título de mestre pela Universidade de Columbia, com a chancela de John Dewey. Essas são as cartas jogadas na mesa pelos dois políticos nos primeiros anos após a revolução de 1930, quando o estado nacional brasileiro se estrutura. Anísio Teixeira chega ao Rio de Janeiro apresentado como inteligência brilhante– capaz de liderar a esperada reconstrução nacional– pela célebre carta de Monteiro Lobato dirigida ao Diretor da Instrução Pública do Distrito Federal, Fernando de Azevedo (VIANNA; FRAIZ, 1986). O momento político é de reorganização dos grupos no poder nacional, dado que o modelo da república velha havia se esgotado. A recomposição no poder, promovida pela revolução de 1930, trouxe novas alianças. As elites paulistas são alijadas do poder. Gaúchos e mineiros lideram o processo apoiados por políticos de estados periféricos. É nesse contexto que um forte grupo de jovens baianos se desloca para a capital. Entre eles estão Hermes Lima, Vianna Filho e Anísio Teixeira, até então candidato a uma vaga de deputado. No Rio de Janeiro, Anísio começa suas atividades como professor na Escola Normal e logo consegue um posto no recém-criado Ministério da Educação e Saúde, comandado por Francisco Campos, para trabalhar sobre o ensino secundário. Ele acabara de publicar o livro: Aspectos Americanos de Educação (TEIXEIRA, 1928), em que apresenta o sistema educacional dos Estados Unidos. Não permanece no Ministério, é logo convidado por Pedro Ernesto Batista, interventor do Distrito Federal, para substituir Fernando de Azevedo na pasta da Educação da capital da República. Nesse momento, três polos de atuação reúnem os educadores brasileiros, envolvidos pela bandeira da reconstrução nacional: a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, sob a liderança de Fernando de Azevedo; o Ministério de Educação, já sob a direção de Gustavo Capanema; e a Diretoria de Educação do Distrito Federal, com Anísio Teixeira. Para

esses espaços convergem as lutas da intelectualidade nacional e os projetos elaborados no Centro Dom Vital pelos católicos e na Associação Brasileira de Educação, que formulou o Manifesto dos Pioneiros pela Educação Nova . O Manifesto dos Pioneiros, considerado o marco inaugural do projeto de renovação educacional do país, denuncia a desorganização do sistema escolar e a necessidade de que o Estado organize um plano geral de educação, com base em uma escola única, pública, laica, obrigatória e gratuita. Com essa bandeira, a ABE vai enfrentar a crítica dos setores conservadores da Igreja Católica, cujos interesses são ligados: à manutenção das escolas privadas, na maioria de propriedade de congregações religiosas, e à formação espiritual dos brasileiros dentro dos princípios do catolicismo, nas escolas públicas, contenda que culminará na retirada dos grupos católicos da Associação. Os polos mais ativos do movimento de intelectuais, escritores e artistas herdeiros da Semana de Arte Moderna e dos Congressos da ABE, e Academia Brasileira de Ciências encontram guarida na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e na Diretoria de Educação do Distrito Federal, tornados espaços privilegiados de atuação da intelligentsia do Brasil, na década de 1930 (MARTINS, 1987). Ficam os católicos mais próximos do Governo de Vargas e do então ministro da Educação Gustavo Capanema, amigo pessoal da grande liderança católica, Alceu Amoroso Lima. Assim, após a regulamentação do funcionamento de universidades estaduais e livres, o governo do estado de São Paulo cria sua Universidade Pública – USP –, capaz de marcar a posição distinta daquele estado, liderado por Armando Salles de Oliveira e pelo grupo do jornal O Estado de São Paulo, em relação ao restante do País e ao governo federal em especial . No Distrito Federal, Pedro Ernesto e Anísio Teixeira, que acreditavam nas possibilidades da ciência para a solução dos problemas políticos e sociais, buscam amplo acordo entre as classes populares, cientistas e intelectuais em torno de seu projeto educacional. Foi o pensamento de Anísio Teixeira, reconvertido durante seus estudos na Universidade de Columbia – quando elaborou a crítica à filosofia católica e ao que chamava de pensamento político europeu –, que fundamentou tal projeto político e provocou a ira dos católicos, organizados pelo Centro Dom Vital. Escreveu Anísio, no seu pouco conhecido Rumo ao desenvolvimento à margem dos Estados Unidos:


E tudo que se tem estudado e se tem investigado tem vindo reforçar as suas bases, e estabelecer uma confiança maior no homem. Em vez da creatura decahida que imaginava a philosophia anterior, é, antes um animal em longa e laboriosa evolução. Completa ou apparentemente completa a evolução biologica, a sua evolução social está ainda em pleno processo. A atormentada historia do homem nesse evoluir voluntario, dá-lhe direito a credito por todas as suas realizações, nenhuma dellas lhe tendo sido passada directamente do céo á terra.(TEIXEIRA, 1934, p.13)

A educação como campo profissional e a eficiência da técnica no trato das questões públicas são ideias que vão se estabelecendo no discurso do educador baiano. As cartas trocadas com Fernando de Azevedo testemunham essa crença. Ele entende que é imprescindível, além de realizar obras públicas e planos de governo, dotar o País de uma legislação capaz de inserir os avanços da política educacional de forma duradoura como argumenta a propósito do Código de Educação de São Paulo .

Tudo pode mudar e está a mudar. As instituições foram cria-

“Julgo que se pode afirmar, que ainda mais do que certa defi-

das pelo homem para o servirem e não para o dominarem. E

ciência administrativa sensível nos setores do ensino, tem preju-

o criterio para esse permanente evoluir que é um permanente

dicado a educação em nosso país, a falta de legislação adequa-

experimentar, é o da vida do homem no mundo, entendida como o

da, uniforme e completa sobre a matéria” (VITAL, 2000, p. 17).

processo ininterruptamente ascencional para uma maior largueza e uma maior altura. Vida mais rica, mais alta, mais ampla e mais livre. Desta sorte, a democracia americana presuppõe tres factos fundamentaes: a) que todos os homens têm completo direito a uma perfeita participação nas formas mais altas de vida social, o que envolve direito, a egual opportunidade economica e egual opportunidade educativa; b) que a vida neste planeta está sujeita ás leis ordinarias de evolução, sendo a progressiva libertação do homem, dentro das suas condições naturaes de vida, uma questão de esforço, de experiencia e de ascencional ajustamento; c) que o homem, pela largueza do seu coefficiente de educabilidade e pelo seu poder de controle sobre as causas naturaes que lhe dá o conhecimento, vae-se tornando, cada vez mais, senhor e juiz do seu destino na terra. (TEIXEIRA, 1934, p.14)

Durante quatro anos a educação no Distrito Federal se volta para a criação de um sistema integrado de escolarização em todos os níveis e modalidades de ensino, até então pontual e fragmentado, com especial atenção ao ensino secundário. A criação de sólidas estruturas institucionais estava no centro do projeto, como anunciou Anísio Teixeira em carta a Monteiro Lobato: “Preparem-se os homens. Criem-se os técnicos. Eles organizarão. Da organização virá a riqueza. E tudo mais – política sã, liberdades etc. etc. – virá de acréscimo” (VIANNA; FRAIZ, 1986, p. 56).

Assim, de posse das credenciais adquiridas na sólida formação nos colégios de elite e numa universidade de excelência e ainda portador dos conhecimentos sobre a política adquiridos na família, e com a certeza de poder interferir na política nacional, Anísio Teixeira escolhe os espaços de maior visibilidade e relevância para seus investimentos políticos. Dessa forma se mostrará um dos mais dedicados debatedores do capítulo da educação na Constituição de 1934, defendendo a reconstrução nacional pela educação e enfrentando notáveis confrontos políticos, especialmente com os representantes da Liga Eleitoral Católica – LEC, presidida então por Alceu Amoroso Lima. Este, por sua vez, estava convencido de que a educação não é sinônimo de salvação, ou mesmo reconstrução nacional, como expressou em sua dura crítica ao escolanovismo, ao analisar o livro de Lourenço Filho Introdução ao estudo da Escola Nova (LOURENÇO FILHO, 1930).

O “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” consolidava a visão de um segmento da elite intelectual que, embora com diferentes posições ideológicas, vislumbrava a possibilidade de interferir na organização da sociedade brasileira do ponto de vista da educação. Redigido por Fernando de Azevedo, o texto foi assinado por 26 intelectuais, entre os quais Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto, Lourenço Filho, Roquette Pinto, Delgado de Carvalho, Hermes Lima e Cecília Meireles. Disponível em: http:// www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb07a.htm. Acesso em: 20 dez. 2011. O Decreto de nº 25 579, de 27 de março de 1933, regulamentou o funcionamento das universidades estaduais e livres que eram previstas além das federais(PAIM,1982, p. 60).


Sua crítica é simplesmente demolidora. Revela um debatedor pleno de certezas, que está postado no caminho dos reformadores, ligados à Escola Nova. Em suas palavras: O superficialismo do pensamento moderno, quando se ocupa com problemas filosóficos e sociais, contrasta com a estrema especialização em profundidade quando se ocupa com problemas de ciência experimental. Não ouso repetir a aventura do autor, que manobra displicentemente em todas essas águas como se fosse piloto matriculado em todas elas. Limito-me a tomar um bote para ver e anotar algumas impressões pessoais, deixando a outros mais competentes a tarefa de destruir, como merece, todo o castelo de cartas que se apresenta com a arrogância de um castelo roqueiro (CURY, 2010, p.50/51). Alceu contrapunha à educação pela experiência e aos princípios científicos anunciados pelos escolanovistas a fé, a moralidade e a liberdade que deveriam constituir a base das reformas a serem feitas. Na Constituição de 1934, os dois grupos ganharam e perderam. Os reformadores lograram garantir na Lei, não apenas a afirmação da educação como direito de todos, ministrada pela família e pelos poderes públicos, como também a existência de um Plano Nacional de Educação, amarrado aos princípios da gratuidade e obrigatoriedade do ensino primário e à liberdade de ensino em todos os graus e ramos. Coube aos católicos a preservação da família ao lado do Estado como instância responsável pela educação e a oferta do ensino religioso, facultativo aos alunos, porém, garantido como matéria nos horários das escolas públicas primárias, secundárias, profissionais e normais. Por outro lado, também um desafio posto para os reformadores da educação dos anos 30 são a formação de professores e a pesquisa em educação, problema de que se ocupou Anísio Teixeira em seus estudos na Universidade de Columbia. Sem universidades, o grande gargalo é a preparação de professores para o ensino secundário, até então exercido por profissionais liberais, como ocupação secundária, ou pelos religiosos das congregações católicas. O Distrito Federal adianta-se em relação ao Ministério da Educação e organiza o Instituto de Educação, projetado para ser uma Escola Normal modelo, onde funcionem, como laboratório, um Jardim de Infância, uma Escola Primária e uma Escola Secundária. Funda também o Instituto de Pesquisas Educacionais, com a função, entre outras, de recolher dados sobre a realidade educacional que sirvam de subsídio às ações

de estrangeiros escolhido é formado por: Brehier, da Sorbonne, que viria para a cadeira de História da Filosofia; Charles Blondel, de Strasburgo, para a de Psicologia e Filosofia; Hauser, da Sorbonne, para o ensino da História Moderna e Economia; Desfontaines, de Lille, para Geografia Humana; Garric (ou Paul Hazard), para Literatura Francesa; Perret, de Montpellier, para Língua e Literatura Greco-Romana; Bourciez, para Filosofia das Línguas Romanas;Trochon, para Literatura Comparada; Albertini, do Colégio de França, para História da Civilização Romana. Na lista de professores brasileiros destacam-se: Candido Portinari, Carlos Delgado de Carvalho, Gilberto de Mello Freyre, Heitor Villa-Lobos, Heloísa Alberto Torres, Josué de Castro, Sérgio Buarque de Holanda. Ora, este projeto de Anísio Teixeira e Pedro Ernesto entra em choque não apenas com os interesses de Gustavo Capanema e do Ministério da Educação e Saúde, mas especialmente com o grupo católico, organizado em torno do Centro Dom Vital e da revista A Ordem, que projeta uma república católica e que concebe a universidade como o espaço por excelência de fomento da filosofia e do pensamento moral, capaz de dar suporte a tal projeto. Alceu Amoroso Lima, Padre Leonel Franca e Dom Sebastião Leme acalentam o sonho de uma Universidade Católica no Rio de Janeiro, com o apoio do ministro da Educação, Gustavo Capanema (BITTENCOURT, 2009; LIMA,1978; MENUCCI, 2006; SCHWARTZMAN, 1982). A guerra de posições que se trava na capital da República não está restrita aos corredores palacianos;povoa a grande imprensa, as editoras, as conferências de educação, além dos gabinetes dos Constituintes (ARDUINI, 2015;CURY, 1988; SCHWARTZMAN, 1982). O desfecho dessa história está fartamente documentado na correspondência entre Alceu Amoroso Lima e Gustavo Capanema, e entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato. Tem sua culminância na carta de Alceu a Capanema, exigindo o imediato afastamento do educador baiano do Departamento de Educação do DF, como se pode ver no fragmento abaixo: Expurgar pois o exército e a marinha (como se compreende a permanência do Comandante Cascardo à testa de um partido político?) de elementos políticos revolucionários, reforçar a polícia, excluir dos sindicatos e dos quadros do Ministério do Trabalho elementos agitadores, organizar a educação e entregar os postos de responsabilidade, nesse setor importantíssimo, a homem de toda confiança moral e capacidade técnica (e não a sectários, como o Diretor do Departamento Municipal de Educação) - tudo são


educacionais. O Instituto de Educação, depois Escola de Professores, passa a oferecer, pela primeira vez, a formação de professores em nível superior e será incorporado à Universidade do Distrito Federal (MARIANI, 1982). Interessado, porém, no progresso e na industrialização do País, o Diretor de Educação daria especial tratamento às escolas técnicas, frequentadas pelas classes populares, promovendo-as através de um processo de equiparação às escolas secundárias propedêuticas reservadas aos filhos da elite da época, especialmente ofertadas pelas congregações religiosas. A culminância dessa reforma é a criação da Universidade do Distrito Federal – UDF–, parte fundamental do projeto de transformação social, baseada na crença de que a Universidade “poderia efetivamente colaborar para uma coordenação intelectual que irradiasse o conhecimento humano entre diferentes camadas da sociedade” (MENUCCI, 2006, p. 117). Como se pode ver, as ações do grupo liderado por Anísio Teixeira, sob influência do pragmatismo americano, estão comprometidas com a transformação social a partir do Estado . Eles se atribuem a tarefa de retirar o país da ignorância e implantar a modernidade. Para isso elaboram uma proposta de universidade, com cursos de graduação e extensão em áreas distintas daquelas tradicionalmente oferecidas no ensino superior brasileiro, encarregado de formar profissionais liberais. A ordem passa a ser formar quadros para um Estado eficiente e desenvolver a pesquisa. São cinco as escolas projetadas: Ciências, Educação, Economia e Direito, Filosofia e Instituto de Artes. Os cursos previstos eram os de administração e orientação escolar, diplomacia, estatística, serviço social, biblioteconomia, jornalismo, publicidade, arquivo e artes cinematográficas, entre outros. Apoiado sobre contratações de intelectuais brasileiros e professores estrangeiros, escolhidos por Afrânio Peixoto, o projeto ganha visibilidade e expressa o poder político de seus idealizadores. O grupo de estrangeiros escolhido é formado por: Brehier, da Sorbonne, que viria para a cadeira de História da Filosofia; Charles Blondel, de Strasburgo, para a de Psicologia e Filosofia; Hauser, da Sorbonne, para o ensino da História Moderna e Economia; Desfontaines, de Lille, para Geografia Humana; Garric (ou Paul Hazard), para Literatura Francesa; Perret, de Montpellier, para Língua e Literatura Greco-Romana; Para uma análise detalhada desse projeto de modernização, ver Luciano Martins (1987). “A instituição se propunha a alcançar estes objetivos: a) promover e estimular a cultura de modo a concorrer para o aperfeiçoamento da comunidade brasileira; b) encorajar a pesquisa científica, literária e artística; c) propagar aquisições da ciência e das artes, pelo ensino regular de suas escolas e pelos cursos de extensão popular; d) formar profissionais e técnicos nos vários ramos de atividade que as suas escolas e institutos comportarem; e) prover a formação do magistério em todos os seus graus”(PAIM, 1982, p. 69). 6 7


Bourciez, para Filosofia das Línguas Romanas;Trochon, para Literatura Comparada; Albertini, do Colégio de França, para História da Civilização Romana. Na lista de professores brasileiros destacam-se: Candido Portinari, Carlos Delgado de Carvalho, Gilberto de Mello Freyre, Heitor Villa-Lobos, Heloísa Alberto Torres, Josué de Castro, Sérgio Buarque de Holanda. Ora, este projeto de Anísio Teixeira e Pedro Ernesto entra em choque não apenas com os interesses de Gustavo Capanema e do Ministério da Educação e Saúde, mas especialmente com o grupo católico, organizado em torno do Centro Dom Vital e da revista A Ordem, que projeta uma república católica e que concebe a universidade como o espaço por excelência de fomento da filosofia e do pensamento moral, capaz de dar suporte a tal projeto. Alceu Amoroso Lima, Padre Leonel Franca e Dom Sebastião Leme acalentam o sonho de uma Universidade Católica no Rio de Janeiro, com o apoio do ministro da

Educação, Gustavo Capanema (BITTENCOURT, 2009; LIMA,1978; MENUCCI, 2006; SCHWARTZMAN, 1982). A guerra de posições que se trava na capital da República não está restrita aos corredores palacianos;povoa a grande imprensa, as editoras, as conferências de educação, além dos gabinetes dos Constituintes (ARDUINI, 2015;CURY, 1988; SCHWARTZMAN, 1982). O desfecho dessa história está fartamente documentado na correspondência entre Alceu Amoroso Lima e Gustavo Capanema, e entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato. Tem sua culminância na carta de Alceu a Capanema, exigindo o imediato afastamento do educador baiano do Departamento de Educação do DF, como se pode ver no fragmento abaixo: Expurgar pois o exército e a marinha (como se compreende a permanência do Comandante Cascardo à testa de um partido político?) de elementos políticos revolucionários, reforçar a polícia, excluir dos sindicatos e dos quadros do Ministério do Trabalho elementos agitadores, organizar a educação e entregar os postos de responsabilidade, nesse setor importantíssimo, a homem de toda confiança moral e capacidade técnica (e não a sectários, como o Diretor do Departamento Municipal de Educação) - tudo são tarefas que o governo deve levar avante imediata e infatigavelmente, pois dela dependem a catolicidade das instituições e a paz social. (LIMA 1935) Para evitar constrangimentos e mais pressões sobre Pedro Ernesto, Anísio Teixeira – que como seu chefe também colabora escrevendo artigos para o jornal da Aliança Nacional Libertadora e, portanto,é acusa-


do de comunista e perseguido pela polícia política de Filinto Miller – deixa o cargo e vai assistir desde o sertão baiano à reconversão de seu projeto na depois conhecida Universidade do Brasil. Atendido em sua aspiração, o grupo do Centro Dom Vital assume a reitoria da UDF antes mesmo da chegada, ao Rio de Janeiro, da missão estrangeira escolhida por Afrânio Peixoto na Europa. Alceu Amoroso Lima foi, sem dúvida, a peça chave nesse processo. De posse de amplo reconhecimento público angariado pela presença constante na imprensa como cronista e crítico literário, pela já bem-sucedida ampliação da revista A Ordem (na quantidade de publicações e no público leitor) e pela extensa rede social da qual fazem parte a elite eclesiástica, os imortais da Academia Brasileira de Letras, além das relações familiares entre a elite econômica do estado do Rio de Janeiro, e por suas viagens internacionais, o intelectual não se depara jamais com portas fechadas. É ainda respaldado pela já significativa bibliografia publicada, que o qualifica como militante de um modelo social para o Brasil, baseado nos princípios do catolicismo. Destaquem-se: Introdução à Economia Moderna (1930); Preparação à Sociologia (1931); Debates Pedagógicos (1931). É tomando-o como portador de tais propriedades que se pode entender a facilidade com que Alceu transita pelo centro do poder nacional, fazendo indicação e vetando nomes para cargos públicos. Sugerindo e criticando projetos de governo, como bem o demonstra sua correspondência . Exerceu ainda um papel de intermediário entre as demandas da Igreja Católica e o governo Vargas, passando, em geral, por Gustavo Capanema, seu amigo pessoal. Anísio é assim afastado do poder nacional, em 1935, pela mão pesada da Igreja Católica, operada de forma competente por Amoroso Lima. Seu retorno só se daria depois de mais de uma década, período em que acumulou novas experiências na Secretaria de Educação da Bahia e como consultor da Unesco. Em 1951, Getúlio Vargas volta ao poder nacional, através de eleições democráticas, com base em novas alianças, com vistas a realizar um processo de conciliação nacional e continuar o desenvolvimento. Traz para o governo um grupo de políticos baiano, que assume o Ministério de Educação sob a liderança de Ernesto Simões Filho e a Assessoria Econômica da Presidência da República, que, sob o comando de Rômulo de Almeida, é encarregada de desenhar o

projeto de desenvolvimento nacional . Anísio Teixeira é convidado por seus ex-colegas no governo da Bahia: Rômulo de Almeida e Ernesto Simões Filho e assim chega ao cenário nacional propriamente dito. Assume a Secretaria Geral da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –Capes –; no ano seguinte passa a presidir o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos – INEP –, então transformado em órgão executor das políticas da Capes; e em 1955 cria o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais -– CBPE que serão, ao lado do CNPq, os organismos responsáveis pelo projeto que irá dotar o País da infraestrutura de pesquisa e formação superior encarregada de alavancar a modernização do Estado e da sociedade brasileira.Tal projeto é elaborado com forte participação de Anísio Teixeira e seus aliados nacionais e internacionais. Alceu Amoroso Lima, nessa década e meia, assiste à criação da PUC/Rio se tornar realidade, mas assiste também aos horrores e desmandos da ditadura Vargas, além de despedir-se para sempre de seus grandes interlocutores em torno do projeto católico para o Brasil: o cardeal Dom Sebastião Leme e o jesuíta padre Leonel Franca. Assim, o católico dos anos 1950 será um homem com ideias distintas das que expressou nos anos 1930. Mais próximo dos grupos progressistas da Igreja Católica, apoia Anísio Teixeira quando os setores mais conservadores, em 1958, voltam a pedir o seu afastamento, agora do INEP, e quando é mais tarde exonerado de seus cargos pela ditadura militar. À guisa de conclusão Os dois intelectuais viveram as contradições do catolicismo brasileiro durante o século XX. Ambos permaneceram na fé, defendendo posições distintas e semelhantes em épocas diferentes. Anísio Teixeira sonhou ser jesuíta, foi um forte candidato à elite eclesiástica. Apadrinhado pelo primaz do Brasil, visitou os países católicos europeus e foi recebido pelo papa aos 25 anos, quando ainda não havia sequer entrado para um seminário católico de formação eclesiástica. Tendo sido proibido de realizar esse projeto, assumiu uma posição radicalmente oposta para resistir ao afastamento e encontrar, para si, um outro lugar. Entretanto, jamais deixou de pensar dentro do quadro cristão: pensando em uma sociedade que pela educação evoluiria para o progresso, para a justiça social e para a paz. Em nenhum momento o educador pensou em revolução, em luta armada ou em perturbação da ordem instituída ou em luta de classe.

8 Ver a correspondência entre Alceu Amoroso Lima e Gustavo Capanema, especialmente as cartas, os bilhetes e os telegramas de 1933 a 1944, no Arquivo do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, em Petrópolis. 9 Alguns parágrafos deste texto foram extraídos de Bittencourt (2009).


Seu pensamento foi sempre na direção da conciliação. A carta que escreve a Gustavo Corção em 1958, comentando um artigo seu, ilustra essa minha hipótese. Defendo posição essencialmente idêntica à sua. A educação - não só a privada, como a pública - não deve ser sujeita ao Estado, mas, à Sociedade. Por isto defendo um governo independente para a educação: conselhos locais, de composição popular. No fundo, conselho de pais. A política educacional seria fixada por esses conselhos, ajudados pelos profissionais da educação, isto é, os professores. O senhor deseja, ao que parece, a mesma coisa. Como, porém, não defende a tese com uma plausibilidade imparcial, para a solução da educação dada pelo Estado e, ainda assim, independente, mas simplesmente como recurso de transferir o poder de educar à Igreja, toda sua argumentação soa falso. Não quer acompanhar a idéia até o fim. A educação pertence aos pais. Muito bem. Como vão eles organizá-la? Entregando à Igreja. Ótimo. Mas há várias igrejas... (TEIXEIRA, 1958) Se o educador baiano não abandonou jamais seu pensamento conciliador, Alceu considerou mudanças importantes em seu pensamento. Narrava sua vida em três etapas, sendo as duas primeiras de um catolicismo ultraconservador, inspirado por Jackson de Figueiredo e, a terceira, de um catolicismo progressista, inspirado por João XXIII. Assim passou do ataque radical ao abraço fraterno dos últimos tempos ao seu interlocutor excepcional. Por ocasião da morte de Anísio, em 1971, escreveu LIMA, 1971): ... Quando em maio de 1964 denunciei o “terrorismo cultural”, que começava de cima para baixo o caminho vitorioso do terrorismo entre nós, protestei contra a demissão de Anísio Teixeira. O presidente Castelo Branco que era um homem superior às paixões mesquinhas deu-me a honra insólita de um telefonema em que explicava a demissão de Anísio, educador a quem tanto ele admirava, por “injunções políticas”. Nosso convívio, lado a lado, no Conselho Federal de Educação, me aproximou então definitivamente de Anísio Teixeira. Não há nada como a presença para dissipar, ou aumentar, as prevenções. Pude então apreciar, de perto, sua personalidade excepcional. Não era só o brilho extraordinário de sua inteligência, que a propósito de qualquer pequeno debate alçava voos aquilinos, com supremo desprezo por aquelas 10 Vale lembrar que Alceu foi não só um amigo de Gustavo Corção, mas cuidou de apresentá-lo ao público em um artigo altamente laudatório, escrito em dezembro de 1944, quando comenta seu livro A descoberta do outro, Rio de Janeiro: Agir, 1944.

intermináveis discussões em torno de minúcias regimentais ou mesmo legais, que para ele representavam a negação do território humano da formação cultural, domínio da verdadeira tarefa educativa. Eram igualmente a sua cultura, a sua bondade, a sua despretensão, o seu alto teor moral, sua extrema sensibilidade. Compreendi que pertencia, e nunca deixara de pertencer, ao número dos membros invisíveis do Corpo Místico de Cristo. Mas as revoluções, que devoram os revoltosos, também não toleram os revoltados. Quando nossos mandatos terminaram não foram naturalmente renovados... E cessou, de novo, para mim, a invencível sedução de sua presença. Mas ficou, para sempre, a imagem viva de uma chama ardente e angustiada, que mal cabia na estreiteza de um corpo de asceta e que animou um dos maiores e mais desaproveitados valores do Brasil contemporâneo. Encerram-se aqui os encontros e desencontros entre essas duas lideranças cujas maneiras de fazer política não se distanciavam no essencial. Nenhum dos dois pensava em transformar o modelo de sociedade. Foram liberais, em tempos diferentes. Seus distanciamentos devem-se aos grupos que integraram. Referências Bibliográficas ARDUINI, G. R. Em busca da idade nova. Alceu Amoroso Lima e os projetos católicos de organização social. São Paulo: Editora da Universidade de S. Paulo, 2015. AZEVEDO, F. História de Minha Vida. São Paulo: José Olympio; Conselho Estadual de Educação, 1971. BITTENCOURT, A. B. Anísio Teixeira: Origines internationales d’un nationalisme pédagogique. Cahiers de la Recherche sur L’Éducation et les Savoirs, v. 1, p. 139-156, 2009.


Os escritos jornalísticos de Tristão de Athayde nos anos 1920 como matriz interpretativa de sua conversão ao catolicismo 1 Guilherme Ramalho Arduini2 “O mistério é o grande adversário do homem na natureza.” (Tristão de Athayde, 1923) “Nossa civilização só pode nascer da aliança íntima e harmoniosa de um espírito científico positivo e um espírito religioso positivo.” (Tristão de Athayde, 1930) Nacionalismo e identidade nacional As duas epígrafes formam parte de uma série de artigos de jornal de autoria de Tristão de Athayde e demonstram a alteração no seu modo de enxergar as relações entre ciência e fé. A primeira faz parte de uma argumentação para demonstrar que não existe transcendência, apenas fatos desconhecidos pela ciência. A segunda epígrafe foi escrita sete anos depois da primeira e revela uma visão diametralmente oposta. Ele ainda reconhece a importância do progresso científico, com a diferença de que sua capacidade estaria restrita ao aspecto material da existência. Mesmo quando houvesse a satisfação plena das necessidades físicas, a transcendência seria um fato inelutável da existência humana e a resposta a ela só poderia advir da doutrina da Igreja. O uso do termo “positivo” para designar tanto o espírito científico quanto o religioso mostra que para Tristão não haveria contradição entre os dois termos. O desafio deste texto será compreender como se deu a passagem de uma epígrafe à outra, isto é, como ele transita entre os extremos na relação entre ciência e fé e como tal mudança ajuda a compreender sua conversão ao catolicismo. Será possível também relacioná-la à trajetória de Jackson de Figueiredo, matriz a partir da qual Tristão de Athayde e outros membros do Centro Dom Vital pensaram seu “caminho para Damasco”. A crítica literária de ambos foi uma atividade desenvolvida cotidianamente durante um largo tempo e permite compreender o posicionamento destes autores frente aos outros críticos literários do período e seus principais temas de interesse. Quando Amoroso Lima estreou sua coluna “Bibliografia”, elegeu como um dos problemas centrais a formação de uma cultura nacional. Em seu primeiro

texto, de 17 de junho de 1919 , definiu sua atividade jornalística semanal como uma modesta contribuição para acelerar a formação de uma cultura brasileira superior. Em virtude de nosso atraso cultural, seria necessário que um exército de críticos, jornalistas e professores agissem por gerações em um trabalho lento para atingir os seguintes objetivos: Distinguir o que de eterno deixaram os clássicos, admirar sem submissão antigos e modernos, descobrir virtudes e belezas acima das fronteiras e nacionalidades, manter o contato com as ideias e preocupações contemporâneas, isolar o fio da tradição, sempre de olhos presos na cultura, para a formação de uma individualidade nacional. E aqui nesta coluna de jornal, ansiosos por trazer a nossa pedra ao formoso edifício da nossa cultura, guia-nos a esperança de que nos compreenderão, relevando a ousadia do empreendimento pela grandeza do objetivo, todos aqueles que amam esta terra e confiam neste povo. (LIMA, 1966, 63) Seu programa de crítica literária exibiu desde o início a marca de um nacionalismo que encontraria, poucos anos depois, companhia nos escritos dos modernistas, também eles preocupados com a valorização de uma cultura que pudesse elevar o Brasil no teatro de nações. Existe aqui um claro diálogo com as preocupações sobre a educação expressas ao longo da década de 1920 por livros como À Margem da História da República, conforme já comentado em trecho anterior deste texto. Sendo a educação o instrumento por excelência de formação de uma nova elite, era necessário pensar no que deveria ser ensinado. Para isso é que se voltavam os olhos de Alceu, que quis fazer de seu trabalho uma espécie de pauta da cultura nacional. O problema de definir nossa identidade se traduziu também por uma leitura estética a respeito do tipo de poesia produzida no país durante o período. Ainda um crítico literário em busca de projeção, Tristão adotou a estratégia de escolher nomes consagrados do parnasianismo como adversários. Sobre Coelho Neto , Tristão é bastante severo, a despeito de ser este autor um dos mais vendidos e aclamados no período. Seus escritos são comparados a “um brocado suntuoso vestindo uma imagem tosca” (LIMA, 1966, 79). Seu trabalho exagerado com a linguagem faz perder a naturalidade de estilo, defeito presente tanto em sua produção literária quanto nos discursos políticos. Para Tristão, Coelho Neto poderia ser um grande poeta se voltasse a escrever sem tanta afetação e sem a carga excessiva de referências à


cultura grega. Em relação a Olavo Bilac, o julgamento é mais positivo. Seu livro de poemas Tarde é visto por Lima (1966) como o resultado de um bom equilíbrio entre a pesquisa estética e a espiritualização da linguagem, capaz de transmitir os sentimentos mais sublimes, e o trabalho com a forma. Nacionalidade, natureza humana e vanguardas artísticas Não foram apenas as correntes consagradas na literatura de seu tempo que receberam reprovação, nem mesmo as mais duras. A leitura de André Breton (Manifeste du surréalisme, que Alceu traduz como “supra-realismo”) desperta a ira em razão das premissas sobre a natureza humana presentes neste texto, para o qual reserva suas piores palavras em duas crônicas, publicadas nos dias 14 e 21 de junho de 1925. Elas revelam um tipo de raciocínio sobre a arte e, em grau mais profundo, sobre a existência humana, que ajudam a compreender as razões que levaram Alceu a se aproximar da religião católica e a se afastar de Sergio Buarque de Holanda, o crítico literário responsável por levar ao Rio a ideia de um modernismo mais aberto às vanguardas europeias, e em especial ao surrealismo. O afastamento foi recíproco, em parte também porque o autor de Raízes do Brasil formulava em termos negativos a contribuição da Igreja Católica na história nacional, como uma instituição que dificultou ao máximo a criação de uma esfera pública autônoma. Para ele, era necessário impor limites aos experimentalismos, pois a natureza humana seria em sua essência racional, e isso era o que deveria ser expresso pela arte. Por tais motivos, apresentar uma estética que propusesse libertar o ser humano do domínio da razão parecia a Alceu“uma infecção literária natural, que correspond[ia] ao estado de espírito de toda uma época” (LIMA, 1966, p. 904). Escolhendo um conjunto de citações de estudiosos da Idade Antiga e da Medieval, Alceu constrói uma imagem idílica da vida social nesses dois períodos ao enfatizar os princípios da Ordem e do senso de comunidade como determinantes para uma boa sociedade. Ao contrário de tal imagem, as novidades trazidas pela filosofia e pelas artes a partir da modernidade consagraram a prerrogativa dos indivíduos como seres autônomos no direito, na arte ou na religião. Alceu se pergunta qual poderia ser a garantia de estabilidade política, de justiça ou de beleza em uma situação como esta, na qual tudo depende de vontades instáveis por natureza. Haveria segundo ele duas tendências igualmente importantes em seu tempo,

ainda que opostas: a primeira é a de homogeneização, a da construção de uma unanimidade sempre perigosa e provavelmente ditada pela força; a segunda é a de desagregação dos laços sociais, pois se cada indivíduo é uma entidade fechada em si mesma, não havia espaço para a formação de solidariedades. Os defeitos do surrealismo não se resumiriam, entretanto, a seu conceito de sociedade, incluindo sua definição de natureza humana. A ideia do subconsciente como aquele que rege o comportamento humano consiste para Alceu em um equívoco de consequências altamente nocivas à expressão artística, entendida como a busca racional pelo belo. A psicanálise havia proporcionado uma importante contribuição ao demonstrar a existência do subconsciente, mas essa descoberta não se encerrava em si mesma; era preciso seguir adiante e desenvolver um instrumental teórico capaz de confirmar o domínio da racionalidade na natureza humana. O texto também apresenta uma visão negativa sobre o presente, a partir da ideia de uma crise de valores a ser enfrentada em todos os âmbitos. Tristão toca pela primeira vez no tema e define o problema em termos de desequilíbrio da força do poder financeiro sobre as democracias modernas: Revelar uma riqueza não é, de forma alguma, concluir pelo seu predomínio. O dinheiro, a abundância de dinheiro verdadeiro é uma riqueza, não há dúvida. Mas o predomínio exclusivo do dinheiro é a plutocracia que submerge e desmoraliza as democracias modernas. (LIMA, 1966, p. 909) O texto revela uma crítica à ordem liberal a partir de um paradigma conservador, de quem lamenta a substituição da hierarquia social determinada pelo prestígio pela força do dinheiro. As antigas regras eram calcadas em características das personalidades de seus portadores, enquanto as riquezas podem ser formadas e perdidas em pouco tempo; elas podem ser reais ou fruto de uma bolha especulativa.Tudo isso torna a ordem social algo completamente irracional. Pelo mesmo motivo que critica o surrealismo, Tristão reprova o movimento pau-brasil e especialmente um de seus próceres, Oswald de Andrade. Lamenta que um dos melhores talentos da nova geração se deixe perder na ilusão de que sua estética representa uma imaginada essência brasileira, quando não passa de uma cópia das vanguardas europeias. Alceu condiciona o sucesso do modernismo à sua capacidade de dialogar efetivamente com seu esforço “de procurar o sangue da terra, o pulso da raça, o segredo da paisagem” (LIMA, 1966, p. 997) ao invés de reproduzir fórmulas do Velho Mundo.


No bojo das disputas entre os dois, o questionamento das ideias literárias se confunde ao do estilo de vida, pois ambos se acusam em momentos distintos de não serem fiéis na vida ao que pregam em seus escritos. Os primeiros escritos não prenunciavam esse desdobramento: ainda em 1922, Alceu fez uma crítica bastante positiva à Semana de Arte Moderna e incluiu o nome de Oswald como um dos talentos promissores. Os Condenados, romance social publicado por Oswald em 1922 e comentado por Alceu em 21 de Janeiro de 1923, recebeu elogios de Alceu por abrir uma nova vertente de realismo social dentro do modernismo. Como se torna então possível explicar as diferenças entre as opiniões do início de 1923 e as expressas pouco mais de dois anos depois? A resposta a esta indagação pode estar em um comentário extremamente irônico de Alceu sobre os hábitos de Oswald, a respeito do cotidiano daquele que pretendeu ser “o descobridor do Brasil”: Entre as almofadas do seu Cadillac, depois das trufas do Automóvel Club, entre uma partida de mahjong e a última teoria de Epstein, entre uma carta do Comte Etienne de Beaumont e o exame dos planos do novo sky-scraper do Triângulo, o Sr. Oswald de Andrade senta-se à sua secretária do Ruhlmann, acende o seu cachimbo de Old Bond-Street, toma da sua Watermann, invoca os manes de Apollinaire e do citoyen Vaché e põe-se a ensinar poesia brasileira aos caipiras do Cariri e do Garnier! (LIMA, 1966, p. 999). O espanto que Tristão demonstra na passagem se desdobra em diversas perguntas: como poderia um membro tão típico da aristocracia cafeeira, que se pretendia cosmopolita, querer deixar sua condição social de lado no momento de fazer poesia? Por que afirmar uma barreira completa entre a “autêntica literatura nacional” e a tradição já estabelecida, como se uma pudesse viver sem a outra? Athayde enxerga uma contradição gritante entre o convívio social de Oswald e a postura radical de negação da cultura estrangeira. Esta primeira contradição convive com uma segunda, a da afirmação de uma literatura nacional a partir da importação de vanguardas europeias. Da mesma forma que a cultura nativa precisaria se reconhecer em seu passado para modificar seu presente, o estilo de vida aristocrático adotado por Oswald estaria em evidente contradição com sua postura de ícone da “cultura brasileira”, tanto em sua vertente mais popular (os caipiras do Cariri) ou erudita (a famosa livraria Garnier, ícone de cosmopolitismo na época).

Tristão e os vitalistas: primeiras aproximações Se o modernismo literário feito por Oswald de Andrade, com suas inovações indesejáveis, não serviria de exemplo, onde ele poderia ser encontrado? Anos antes de assumir a liderança do Centro Dom Vital (1928), Tristão já enxergava em seus nomes alternativas promissoras. Neste sentido, é necessário relativizar a ideia de rompimento estabelecida pelo “Adeus à disponibilidade”, texto paradigmático no qual Tristão anuncia publicamente sua conversão. É mister perceber que as condições para o papel que Athayde exerceria após 1928 foram se estabelecendo no período anterior, em uma resposta crítica tanto ao modernismo literário paulista quanto à situação política da Primeira República, em franco processo de deterioração. Em ambos os casos, o grupo do Centro Dom Vital apresentaria uma resposta em afinidade com as opiniões de Alceu e seu julgamento cético em relação ao que considerava um excesso de individualismo. Em termos políticos, seria este liberalismo exacerbado o responsável pela emergência da questão social. Em crônica de 28 de fevereiro de 1921, Alceu (LIMA, 1966) teceu comentários a essa questão a partir do livro Penso e Creio. O primeiro comentário de Tristão é sobre o autor, Perillo Gomes, representante de uma nova geração de pensadores isentos de compromissos com os grupos favorecidos socialmente. Em uma volta retórica, isto vira justificativa para julgá-lo mais capacitado para fazer a defesa do status quo. O mesmo poderia ser dito de Figueiredo. O raciocínio apresentado acima pode ser lido a contrapelo como uma revelação das origens sociais de Figueiredo e Gomes, distante da elite carioca. O artigo saúda Figueiredo e Gomes como artífices de uma nova era no pensamento social, na qual a resposta à crise social começava espiritualmente, discutindo as bases filosóficas que sustentam o modo de pensar do homem moderno, isto é, através da crítica ao individualismo e ao materialismo. Ela conheceria seu final quando os empresários deixassem de considerar o lucro como a finalidade da economia, ou quando os trabalhadores enxergassem a importância social de sua produção, e, dessa forma, entendessem como a realização de greves era algo nocivo para eles e para toda a sociedade. A exigência de uma mudança de comportamento e valores como um elemento para a solução da crise econômica é um fator importante para entender como, posteriormente, a conversão de Athayde se torna possível. Já em 1921 existem registros em sua produção da busca por uma solução no terreno dos


princípios filosóficos para a organização do trabalho, tema que o ocuparia por toda a década de 1930. Portanto, a atração de Alceu pela obra de Perillo Gomes nasce da decisão deste autor de também tratar da questão social como um problema de fé, ou melhor, de falta dela, pois o abandono da crença no Evangelho teria conduzido os proprietários a se deixarem levar por um materialismo que enxergava com frieza o sofrimento provocado em seus trabalhadores. A respeito deste assunto, Perillo declara: Nós vemos na impiedade a causa do infortúnio de todas as classes e principalmente dos desprotegidos da fortuna. As classes ricas e poderosas libertas do temor de Deus pela ação de um materialismo dissolvente, não cuidam de mais que tirar da vida presente o máximo proveito, a despeito do sofrimento que encontram e que muitas vezes espalham pelo caminho. Assim, o capitalismo, sem o único freio capaz de o dominar e conter nos seus apetites – a religião – explora o trabalho do pobre com frieza e com desdém (GOMES, 1921, p. 64). O trecho acima reverbera as críticas tecidas na encíclica Rerum Novarum, de 1891, inclusive no que diz respeito ao papel dos empresários de serem igualmente os responsáveis pela crise e os únicos capazes de resolvê-la. Aos trabalhadores restaria um papel diminuído, mesmo que Perillo Gomes e Tristão considerem justas as reclamações deste grupo. Se na parte política os dois se aproximam, a leitura se torna mais seletiva quando se trata das relações entre fé e razão, ou entre a religião e a ciência. A este respeito, Tristão não concorda com o raciocínio de Perillo Gomes, o qual separa a realidade em duas instâncias hierarquicamente sobrepostas: a ordem natural, da alçada das “ciências humanas” e a ordem sobrenatural, responsabilidade das “ciências divinas”. Ainda segundo ele, da mesma forma como as ordens se sobreporiam, as ciências das quais tratam também, e a verdadeira ciência empírica adquiriria sua validade a partir do momento em que admitisse seus limites, isto é, em última análise, o mistério sobre a existência humana. Alceu, pelo contrário, ainda exibe uma visão otimista sobre o progresso da ciência na dominação da natureza e na expulsão do campo do desconhecido para territórios cada vez mais distantes: A natureza é a evidência como é o mistério; entre os dois polos estão colocados os segredos de que, à custa de um longo e inaudito esforço, vai o homem lentamente se apoderando. A ordem sobrenatural,


portanto, é a incapacidade do homem em determinar os limites da ordem natural. É mais lógico, portanto, atribuir essa ordem sobrenatural aparente à ignorância fundamental do Homem do que à existência de Deus. O mistério é o grande adversário do homem na natureza (LIMA, 1966, p. 322). Alceu admite um contrapeso ao papel declinante do mistério: a necessidade de ordem moral e social conduziria os seres humanos a buscarem o consolo da religião. Portanto, se o Alceu de 1921 é ainda um homem que acredita plenamente no progresso da ciência, demonstra em contraponto uma abertura para o diálogo com os portadores de alguma crença no sobrenatural, como é o caso de sua resenha de 09 de junho de 1922, sobre Jackson de Figueiredo e seu livro Pascal e a inquietação moderna. Nela desenhase a imagem do filósofo francês como alguém que poderia pautar o debate brasileiro de seu período e, dessa forma, trazê-lo para um terreno favorável a Figueiredo. Visto de outra forma, Jackson descreve a si próprio ao definir a imagem de Pascal como um filósofo que pecou por alguns excessos, como o jansenismo , mas que nunca deixou de acreditar na Igreja Católica como a realidade última do homem. E que tal característica se tornou o legado deste filósofo. A escolha por escrever uma obra sobre Pascal, quando outros autores eram os temas mais comuns nos escritos sobre doutrina católica, é uma aposta que precisa ser melhor esclarecida. Ela pode ajudar a compreender o público ao qual se destinava a obra: distante das discussões sobre a filosofia católica francesa do período e próxima da herança cartesiana. Outros nomes fundamentais da doutrina católica, como Santo Agostinho ou Santo Tomás, não teriam o mesmo impacto de falar a um público escolado em uma tradição de dúvida metódica. Com isso, Figueiredo permanece inscrito nos cânones filosóficos já estabelecidos, mas aberto a uma interpretação favorável ao projeto de tornar a Igreja Católica a legitimadora de todas as esferas sociais no Brasil dos anos 1920. Pascal é considerado como o filósofo que respondia à angústia do homem moderno: Pascal e a angústia são o elemento que mais vivamente agita a consciência contemporânea, sendo causa de primeira ordem, não só da reação espiritualista que vai estrangulando o materialismo moderno, mas também da já tão notada renascença, senão católica de um a outro extremo, pelo menos, cristã, entre as camadas intelectuais superiores, em todo o Ocidente (FIGUEIREDO, 1922, p. 159).

Tristão e Figueiredo compartilham do juízo de que o excesso de valor conferido à riqueza material estaria levando o Ocidente a uma crise, da qual já se notavam os primeiros sinais de resposta a partir de uma nova corrente espiritual. Figueiredo enxerga em Pascal uma resposta possível para suas próprias indagações. Tristão reconhece no filósofo o modelo mais sublime de adoção do catolicismo (LIMA, 1966) – que ele próprio viria a reproduzir alguns anos depois de fazer esse comentário. Outro dos fundadores do Centro cuja obra merece o olhar atento de Alceu é o de Tasso da Silveira e seu livro A Igreja Silenciosa, objeto da análise do dia 12 de novembro de 1922. Em seu comentário sobre a obra, Alceu demonstra o mesmo movimento pendular que estabelece no caso de Perillo Gomes, de aproximação e distanciamento. De um lado, o elogio à importância de se pensar nas questões religiosas, tal como expresso abaixo: A um século de dúvida intelectual parece suceder uma era de fé, dentro ou fora dos limites da natureza. Para nós, que, embora iniciando a era nova, ainda trazemos ou trazíamos o espírito impregnado da era anterior, pareciam-nos a ironia e o desdém pela ação a inteligência suprema de viver. Vemos hoje, ou pressentimos, que uma certa covardia intelectual é que nos levava a esse ceticismo integral (LIMA, 1966, p. 739). Seis anos antes da conversão de 1928, Tristão sentia a necessidade de crer em algo. Mas em quê? Ainda sem localizar-se no interior da fé católica, Tristão reconhece na aurora de uma geração preocupada com a religião, junto com a nobreza do trabalho e a inteligência da ação, a capacidade de salvar o país da sua situação atual de “preguiça intelectual”. Há, porém, o distanciamento de quem enxerga na religião a satisfação de uma necessidade humana, sem que isso signifique crer em algo para além do visível: Não duvido que as religiões possuam a “utilidade” fundamental de apoio à moral social, como argumenta o Sr. Tasso da Silveira em outro fragmento da parte final do seu livro, mas tudo isso o que indica é que as religiões são a obra fundamental do homem sobre a terra, fundamental mas humana (LIMA, 1966, p. 742). A religião seria apenas o resultado do desejo dos seres humanos por interagir com seus semelhantes, uma necessidade de sociabilidade, saudável em si mesmo, mas de nenhuma maneira transcendental, como desejava comprovar Tasso da Silveira.


Sobre este autor, Alceu ainda comentaria outro livro seu de poesia (Alegorias do homem novo) para identificar no tratamento que ele confere à religião um modo de comparação com o continentalismo americano de Ronald de Carvalho, a busca de uma nova linguagem brasileira de Mário de Andrade ou a sedução das coisas do dia-a-dia na obra de Manuel Bandeira.Todas essas seriam temáticas importantes de inspiração dos poetas, mas não constituiriam o cerne de sua atividade. Para tais autores, a religião poderia servir até de musa inspiradora, mas não como seu elemento definidor. A religião assumiu maior relevância na visão de mundo de Amoroso Lima a partir da primeira série de Estudos, reunindo textos publicados entre 1926 e 1927. Em meio a uma digressão sobre o tema da disponibilidade, emprestado de Gide, Alceu afirma: A conservação do espírito sempre livre de toda ligação para estar pronto a receber qualquer ideia nova que chegue – essa noção criou uma literatura de artifício e de diletantismo que faz os artistas perderem “la partie éternelle d’eux mêmes” (LIMA, 1928, p. 141). O comentário acima aparece em meio a uma discussão sobre as mudanças no espírito europeu após a I Guerra Mundial, mas não se restringe ao Velho Continente. Alceu enxerga na oposição entre o grupo da revista Esprit (recém lançada na França) e a mais conhecida obra de Bernanos, Sob o sol de Satã, uma tensão a ser resolvida também pela cultura brasileira, em formação. De um lado, Esprit enxerga na própria relação de forças sociais nascida do final da guerra condições para a solução dos problemas do capitalismo, a partir de um plano de revolução social que também não se identifica ao comunismo. Noves fora a indefinição do que seria tal revolução social, persiste o problema de se repensar a sociedade francesa (ou, para Alceu, a brasileira) apenas a partir de um rearranjo das forças já atuantes no presente. Em oposição a essa cena, Sob o sol de Satã proporia segundo Alceu “uma transcendência ao tempo e às superfícies [...] expressões do novo sentimento trágico da vida” (LIMA, 1928, p. 144). Em 1926, Alceu acompanhou com interesse o debate no interior do catolicismo francês e reconheceu em Maritain um de seus principais interlocutores. Naquele momento, a tensão em torno do radicalismo de Charles Maurras e de seu grupo, a Action Française, era o tema central na discussão dos católicos do hexágono. Ao encampar explicitamente a opinião de Maritain, ele sinalizou que tampouco considerava a primazia do político – o “politique d’abord” de Maurras – como a melhor alternativa do período.

Além disso, destinou maior espaço aos escritos dos membros de A Ordem e à maneira como eles buscavam reinserir a religião católica e a presença da Igreja no seio da discussão social. Quando Hamilton Nogueira publica A Doutrina da Ordem (Rio de Janeiro, A Ordem, 1925), Tristão dedica-lhe espaço em sua coluna ao promover um diálogo entre este e o livro de Júlio de Mesquita Filho, A Crise Nacional (São Paulo, Editora d’O Estado de São Paulo, 1925). O cerne da comparação está nas críticas que ambos autores realizam ao sistema político da Primeira República, com avaliações diametralmente opostas no que concerne às soluções apresentadas. Mesquita pensa que o sistema seria corrigido pela instalação de eleições secretas, as quais contribuiriam para o aperfeiçoamento de um sistema liberal-democrático, tido por ele como positivo em sua essência. Contra esta opinião, Alceu mobiliza Nogueira e sua capacidade de apresentar diretamente o cerne da questão: a substituição das eleições individuais por representantes escolhidos conforme sua profissão, fazendo parte de uma estrutura de Estado centralizada e forte (LIMA, 1928, p. 316). A alternativa apresentada em 1926 é expandida nas considerações sobre o tema na década seguinte, quando o corporativismo foi apresentado como a última solução possível para enfrentar uma revolução comunista que, caso contrário, talvez se anunciasse como inevitável. Alceu elogia a coragem de Hamilton Nogueira em se amparar nos ditames da doutrina da Igreja, sua guia, para se dirigir às consciências “com uma fé que não recua mesmo diante de evocações arriscadas e uma categoricidade que é a força das ideias-ação, tão necessárias, por vezes, em nosso meio de inação das ideias” (LIMA, 1928, p. 318-9). Essa é outra inovação entre os comentários de Alceu no período, uma vez que ele enxerga como um fato positivo que a convicção religiosa deste autor seja uma motivação importante para sua atuação política. Esta, no entanto, ainda peca por falta de um senso prático em suas escolhas, pois permaneceria no plano das “afirmações gerais, sem quase descer ao fato, ao exemplo concreto”. A religião de Nogueira é positiva quando oferece uma razão para envolver-se na solução dos problemas mais urgentes e concretos do Brasil no período, mas não para escapar deles como em uma fuga. A solução que Alceu prefigura para Nogueira é aceitar a inevitabilidade do regime democrático no continente americano, mas lutar para atenuar seus defeitos a partir da perspectiva aberta pela religião.


Os Estudos e a inflexão ao catolicismo O tema das soluções religiosas para enfrentar os problemas do presente ganha força nas séries seguintes de Estudos, como podem demonstrar as colunas escritas durante o ano de 1928 . Elas chegam ao ponto de transformar aquilo que Alceu enxerga como crítica literária. Seu esforço deixa de ser a apreciação estética do livro e se transforma em uma discussão sobre os princípios (explícitos ou não) apresentados pela obra. A partir deste critério, as análises de Alceu constituem dois grupos de obras: as capazes de apontar para a natureza espiritualista da sociedade brasileira e para a necessidade de recuperála e as demais, que merecem ser descartadas. Sua compreensão do que seria o catolicismo determina a apreciação dos autores, estabelecendo moldes rígidos para a leitura das obras. Há de se levar também em conta uma alteração no perfil dos livros comentados durante o período, com a diminuição na quantidade de romances e obras de poesia produzidas em relação a um aumento no número de colunas sobre os problemas sociais do país. O tipo de obra poderia ser um ensaio social ou um livro de apologia do catolicismo como o de Leonel Franca, mobilizado para defender a tese de que todo o clero deveria compreender que sua missão religiosa incluiria tomar parte na discussão política, educativa e intelectual do país. A obra de Franca seria a união de uma justa preocupação apologética com um caráter científico, em uma amostra do rumo que a produção intelectual deveria tomar dali em diante: Nossa civilização só pode nascer da aliança íntima e harmoniosa de um espírito científico positivo a um espírito religioso positivo. Um resolvendo os nossos problemas materiais básicos, o outro resolvendo os próprios fundamentos dos nossos problemas do espírito. E por isso mesmo é que obras como esta do P. Leonel, sendo um tributo admirável pela Verdade em si, são ao mesmo tempo um esforço necessário, de inteligência e bom senso, pela nossa verdade nacional (LIMA, 1930, p. 30). A conjugação entre a descoberta do que deveria ser essencialmente o país e a preocupação religiosa reaparece então constantemente, como é o caso da análise do livro de Paulo Prado, Retratos do Brasil, no qual Alceu enxerga o acerto em ver que nossa característica mais marcante como nação é a de possuir uma personalidade excessivamente romântica, desinteressada em preparar o futuro e de uma

imprevidência sem rival . Mas onde Prado enxerga um problema sem solução e, portanto, o futuro do país na sua dissolução em repúblicas menores, Alceu acredita que a unidade nacional poderia ser mantida a partir da intervenção na cena pública da única instituição presente em todos os lugares e aspectos da vida brasileira desde sua fundação: De modo que temos de corrigir pela estrutura exterior os perigos de dissolução a que nos levaria esse romantismo íntimo. E o remédio que vejo para resolver esse paradoxo, é – a volta à Igreja Católica. A solução religiosa, a solução espiritual, aquela que respeita integralmente os direitos de nossa personalidade ao romantismo e os deveres de nossa nacionalidade ao realismo (LIMA, 1930, p. 187). Nesta passagem há uma mudança no próprio conceito de religião. Ela é de ora em diante identificada intrinsecamente com a instituição eclesial católica e dotada de uma plasticidade capaz de conformar de um lado o perfil da “alma” brasileira, em sua intimidade, e por outro, as agruras de construir um país. Alceu passa a considerar que os melhores leitores da realidade brasileira têm o perfil próximo ao de Sebastião Leme ou Leonel Franca. Ele deixa em segundo plano o intenso trabalho de reinterpretação do país feito pelos modernistas, sobre os quais já escrevera suas críticas ao longo da década. Athayde travou novo embate com Sergio Buarque de Holanda poucos meses antes de ingressar no seio da Igreja, em artigo no qual lhe atribui a vontade de tomar o papel de líder do modernismo, privilégio que Tristão afirmou nunca ter desejado possuir (LIMA, 1928). Em meio a estes ataques pessoais, existe uma disputa sobre os critérios de autenticidade da arte. Sergio se ampara no surrealismo para dizer que a produção artística deve ser livre de todo empecilho – inclusive das consciências pessoais – e acusa seu oponente de trazer ideias nocivas para o desenvolvimento da arte ao invocar a necessidade de disciplina na produção artística. O embate nacional se espelha naquele ocorrido na França, com Sergio evocando o nome de André Breton e Tristão, os de Julien Benda, Charles Maurras ou Jacques Maritain, unidos na visão de mundo católica, mas muito distintos em seus posicionamentos políticos. As críticas literárias de Tristão se enveredam para a filosofia na medida em que a fé religiosa ascende em importância e atinge seu ápice no “Adeus à Disponibilidade”, cujo título antecipa a resposta de Alceu à escolha entre as duas posturas que


ele entende serem as possíveis para qualquer ser humano: 1) manter-se sempre na busca de um sistema filosófico capaz de explicar a totalidade da realidade ou, pelo contrário, 2) desistir da busca, tendo em vista a incapacidade de qualquer sistema filosófico de cobrir todas as dúvidas existenciais. O tratamento endereçado a Sergio também se altera para uma tentativa de conciliação, de demonstrar que a busca é vã. Tristão utiliza sua história pessoal de quem convivera com a dor e a angústia existenciais para lembrar a Sergio que a instabilidade onipresente no mundo também poderia se traduzir em problemas pessoais: O necessário, porém, creio eu, é compreender que o mal é esperar por algum sistema. O erro é pensar que a realidade se prende em qualquer sistema humano apenas, ou em qualquer ausência sistemática de um sistema qualquer. E V., que possui, no fundo, o verdadeiro sentido cristão da vida, precisaria apenas, creio eu, um pouco menos de desespero do homem, para alcançar também o senso católico que outra coisa não é senão a plenitude cristã (LIMA, 1969, p. 17). E a argumentação de Alceu prossegue no sentido de tentar provar como toda a filosofia moderna estaria amparada no equívoco de considerar o espírito humano como o centro de tudo o que existe, erro iniciado com o cogito de Descartes e perenizado por Kant. Na tentativa de fazer do próprio ser humano a garantia de resposta para as dúvidas existenciais e morais, a cultura ocidental estaria não apenas se afastando da religião mas criando situações desumanizadoras. Apenas ao aceitar sua incompletude e desaguar sua busca na religião é que a humanidade poderia devolver a dignidade ao ser humano. Considerações finais “Adeus à Disponibilidade” foi adotado por Alceu como o marco inicial de sua conversão. Após haver percorrido o caudaloso conjunto de escritos no período, é possível enxergar que essa data, assumida simbolicamente por Alceu como sua volta à Igreja, poderia ser mais precisamente descrita como o final de um processo que durou alguns anos, a ser observado em seus momentos cruciais a partir das crônicas analisadas. Elas também permitem enxergar algumas das representações de Alceu em meio a este processo, isto é, fornece pistas de como ele enxergava sua trajetória de anunciador do movimento modernista rumo à defesa dos interesses de uma instituição tão tradicional como a Igreja.

Bibliografia CANDIDO, Antonio. Iniciação à literatura brasileira. São Paulo: Humanitas, 1999. FIGUEIREDO, Jackson. Pascal e a inquietação moderna. Rio de Janeiro/Lisboa. Centro D. Vital/Anuário do Brasil/Renascença Portuguesa, 1922. GOMES, Perillo. Penso e creio. Rio de Janeiro/Lisboa: Anuario do Brasil/Renascença, 1921. JAPIASSÚ, Hilton & MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2006. LIMA, Alceu Amoroso. Estudos. Rio de Janeiro: Edição Terra de Sol, 1928 (1 Série). ______. Estudos. Rio de Janeiro, A Ordem, 1930 (3ª Série – 2º Volume). ______. Adeus à disponibilidade e outros adeuses. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1969. ______. Estudos literários. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar Editora, v.1, 1966. DICIONÁRIO literário brasileiro, v. 2. São Paulo: Saraiva, 1969.


Dr. Alceu e as muitas faces da modernidade Candido Mendes* Não serão muitas as dúvidas de que se possa falar do século XX como o de Dr. Alceu no Brasil, assim como o XVIII foi do Dr. Johnson na Inglaterra. No percurso enorme no tempo, o referencial desmesurado deixanos, todos, à sua vista. Dá-nos a trajetória, a riqueza em que o universo da cultura ganha o volume de toda a sua articulação. Implica no volteio primário da relação homem-obra. Sugere a grande metamorfose, em que a pulsação do espírito dita as suas vigências, já como perenidade, à flor da vida. E, em Dr. Alceu, a mais solar dessas escrituras. Sobretudo, permitenos o fenômeno raro e opulento que repta, pela consciência do seu gesto, a nova densidade do mundo à sua volta. Cumpre a conversão, feita com a lucidez que se impõe até o abandono da angústia. Não é a busca pascaliana da verdade, engémissant. E ganha no excesso de sua conquista: a plena doação da vontade do homem novo tem, como prêmio da entrega sem resto, a reemergência do homem velho. Alceu canônico, libertário da última grande imagem, é o do remate da peregrinação interior, sem fraturas. Do propósito radicalmente cometido. Por isso mesmo, circunavegação. Volta inteira do horizonte vital, que só se logra pela força de gravidade das asceses: “Comecei velho e acabo moço.” Lavrada a liberdade, purgada como só pode fazer a conversão, fruía do desaguar da primeira disponibilidade, mal à vontade, contrafeita. Marcada pela aplicação de um dever de época. Das lições de dança, ao lado de Themistocles Graça Aranha, dos plastrons janotas para a saída com as argentinas, ao “ler, ler, ler”, sorvedouro inútil diante da tentação de suicídio e da água podre divisada da janela do Hotel Danielli, na Veneza de 1913. Na obra, mais o fato que a fatura. Não há que repetir as estatísticas de suas dimensões. Sobretudo porque mal se começa a recensear todo o subsolo da correspondência, a que se somará o dia a dia beneditino das cartas a Madre Maria Tereza. Não é o texto o recado acabado. Mas o vestígio da passagem. A marca operária da presença no evento múltiplo, tantas vezes repetida a conotação da contemporaneidade, a mostrar o passo certo, desafogado, de quem calca o chão mais largo da aventura do situar-se, do testemunhar. Nesse mesmo limite, o livro não se completa, mas o homem se manifesta, com as roupas folgadas de sua predileção, à vontade, na palavra que vai adiante. O itinerário da pauta clara nele, tão bem entrevisto por


Afonso Arinos; das marcas, só em breves, da grandeza. Não se encontra, no que Francisco de Assis Barbosa chamou, à argúcia, de um memorandum, malha esquiva às autobiografias ou aos depoimentos para a posteridade, momentos fortes ou fracos. Tal como é difícil editar-se a trajetória monumental. Nosso não é o Dr. Alceu dos anos 1980. Nem o que, para alguns, teria morrido uma década antes. Deparamos, sim, essa vida fluida, sem nenhum interdito e, sobretudo, sem nenhuma nostalgia. Percurso exuberantemente ostensivo, onde o luxo está na falta de hiatos. Tão pequeno, também, o anedotário, diante do largo livro de horas. Nem o noturno, brotável no próprio Jackson. Nem a angústia de Mauriac. Nem o exílio de Bernanos. A biografia do prumo sem acidentes, para que a inquirição se desprendesse ampla, sem álibis. Toda domesticação e espanto da vida, como liberdade, na mão. Não está mais aí a Casa Azul, mas guardamos a camisa do batizado. O pai, um liberal, administrador surpreendente das franquias à educação moderna, na outra entrada do século. A mãe, significativamente pouco sentimental, fora da religiosidade de plantão. Ambos a lhe permitir o aprendizado flexível e inovador: o impromptu humanístico – as aulas particulares com João Kopke – ao lado da trilha do establishment. O Ginásio Nacional, hoje Colégio Pedro II, a Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, Fausto Barreto, Said Ali, Sílvio Romero, sem concessões, na fase de dar aula com o olhar fixado para fora da janela. Também Osório DuqueEstrada e, em literatura brasileira, Henrique Coelho Neto. O casamento em uníssono e, nos dois últimos anos, a comoriência deferida. “Eu agora não vivo, apenas sobrevivo, depois que Maria Tereza me deixou só.” E as viagens! Difícil para o padrão mesmo da belle époque emular a volta reiterada à sua Paris, guardada como cenário de fundo contra os espetáculos da alma: Siena e Oxford. O encaminhamento perfeito à profissão. O Direito, classicamente vivido como a crisálida da cidadania da nossa persona pública e de logo transposta ao lugar social do nosso protagonismo de ideias: essa especial militância de nossa cultura no jornalismo, sua e de seus imediatos companheiros de geração na ABL, Austregésilo de Athayde ou Barbosa Lima Sobrinho. Palco todo, essa biografia sem quebras, para ser possuída pela liberdade radical. A matéria-prima, de têmpera certa, aí estava no noviciado da disponibilidade. Não o prendia a reminiscência de um apego religioso, singularmente rarefeito na prática caseira. Nem o condicionamento dos reencontros,

nem a iluminação de um momento antológico da Igreja, a dar conta de sua mensagem. Ao contrário, estudando no Collège de France, vai defrontar a face autoritária do cristianismo transvazado à ordem de Maurras. Ou, como sua contrapartida, o misticismo intimista da poesia de Francis Jammes, da obra de Joseph Malègue ou do pan-humanitarismo de Daniel Rops. Ficava sem vestígio na sua biografia intelectual a vertente que então já o poderia imantar. A França da primeira década é, também, a da riqueza da especulação de Loisy e Tirrel, contrapartidas confessionais chegadas à condenação, mas a dizer do imperativo sólido, concreto, da ideia de mudança que Alceu admiraria na construção bergsoniana. Mas, saindo da tentação modernista, faltar-lhe-ia, também, o sinal do movimento de Marc Saulnier e do Sillon, que, na esteira de Albert de Mun e, sobretudo, de Ozanam, depararia a ruptura com os modelos da grande sociedade capitalista de então e os primeiros anúncios de uma “civilização do trabalho” que emergiria finalmente nos nossos dias de Laborem Exercens. Evaristo de Morais salientou claramente o interesse de Alceu pelo distributivismochestertoniano. Mas como fórmula, mais que como “andante” de um novo referencial de perspectiva histórica. Se conhecesse, à época, aquela meditação tão diretamente cavável nos veios do seu espírito, ter-se-ia, sem dúvida, volatizado a disponibilidade diante de um pensamento já cunhado ao estilo das intelligentsias e da ânsia por uma visão global de mundo. Diante dos vinte anos do pseudodiletante então surgido, seria a cunha para romper a “ética do descompromisso”. É toda essa latência que vai jorrar mais tarde no Alceu do segundo após-guerra, a cada vez mais se aproximar do grupo Esprit, no rumo que lhe empresta Mounier, Beguin, vindo da Âme Romantique et Le Rêve para a denúncia do triunfalismo residual do catolicismo francês, que vencera os Camelots du Roi. E, sobretudo, Jean-Marie Domenach, talvez o melhor intérprete do que seja o genuíno pluralismo cristão do meio século, reconhecível pelo rigor das opções, mais que pelo debate dos modelos de ação, cujas distinções tenderiam, dentro da doutrina social da Igreja, a desbordar para uma nova “questão dos universais”. A aula, a tertúlia, a conversa, mais que a polêmica, fincavam em Alceu o grande horizonte, e não a viseira para o combate das ideias. E é como o instigar da inteligência que Alceu verá, já, no convite e no repto de Graça Aranha, o papel a cumprir na volta ao comprometimento intelectual. Esta aconteceria ao fim da etapa em que a nossa atual sociologia do conhecimento reconheceria a mais


perfeita funcionalidade da estrutura econômico-social do país; a perda de todo o chão para que se assente o trabalho de uma vanguarda social; a época em que Afrânio Peixoto poderia, tranquilamente, referir-se à literatura como o sorriso da sociedade. Tinham-se, então, absorvido as primeiras fissuras a permitir a emergência, exatamente no seio da luta entre a Igreja e o Estado, de uma primeira geração confessional e questionadora entre nós: a dos católicos ultramontanos, nos anos 70 do século XIX. A Questão Religiosa surgia à margem de qualquer ruptura intrínseca da noção de “ordem social”. Desbordava-se por regularidade maior. E, no seu conflito com o Império, fugia das pautas tradicionais das intelligentsias católicas, suas contemporâneas no século XIX. Não surgiam das questões mistas; da licitação de autonomia religiosa, no campo do ensino ou do casamento, ou da procura de justiça no regime de trabalho. Mas na luta contra as contradições limites em que o padroado levara o poder do imperador a ver indisciplina episcopal em matéria de estrita administração dos sacramentos, no próprio imo da estrita e plena vida da Igreja. Ficaria no tempo o grande dissenso de Zacarias de Góes, Candido Mendes ou Ferreira Vianna, na defesa de Dom Vital, levado ao cárcere na Fortaleza de São João. No pleno fastígio republicano, refazia-se a força do expletivo: católicos e monarquistas. Por isso mesmo, de logo, no cânone de Carlos de Laet, a palavra necessariamente panfletária, a defesa de brilho e desassombro, já que prescindível, nesse “ver o mundo”, toda a análise crítica ou interpretação. Daí, por certo também, e em contracorrente, a sedução de Alceu por Eduardo Prado. Tão clara como o que dizem os projetos de estudos de premonição, perfeitos porque finalmente abandonados – perfilamento in petto –, como tão sutilmente nos sugeriu Josué Montello. Conduzirá a conversão o amadurecimento da náusea da disponibilidade, por sobre toda revelação súbita ou por sobre todo impacto fulgurante. A exigência do compromisso vinha ainda leiga, na batalha literária a eclodir da Semana de Arte Moderna. A receptividade imediata não trava, em Alceu, a valoração crítica: o quanto rompia, finalmente, a mirada desengastada; e o quanto o modo, ainda prosélito, de 1922 ganhava um metassentido e mensagem. É dentro da componente nacionalista dos textos de 22 que encontra Tristão de Athayde a maior afinidade para chegar à exclamação, quando a busca depara uma resistência nova de mundo. Romancista ao norte! Anúncio da descoberta de José Américo, na bateia daquela realidade em que começa a se mover o Brasil de fato sobre toda a

construção em que o reverberava a primeira trintena do século. Não há o “cinquièmepilier” à gauche da Notre Dame claudeliana, no Alceu que confessa e recebe a comunhão a 15 de agosto de 1928. A démarche exaustiva de quatro anos fez-se por carta, como se o roteiro da descoberta do cristianismo, mais do que a volta, reflexa, viesse da vera viagem da alma só e não quisesse se perturbar da imediação vital da presença de Jackson de Figueiredo. A trama dessa interpelação em crescendo ficará na nossa história das ideias também como o contraste perfeito de famílias do espírito. Do extremo cuidado da interlocução de um à imposição dos fiats do outro. Do percurso portado pelo distinguo das críticas ao das assunções pletóricas. Do debate ex-post. A decisão final não se pressente como um clímax argumentativo. Mas, pela evidência do convite ao compromisso, que o reacionarismo e a violência do catolicismo jacksoniano, provando a sua coerência a cada instante, levavam a raias de uma superdeterminação. É a resistência desse enlace que poderia municiar, única, a descarga da disponibilidade de Alceu. Colhia-a como ação para ser exatamente o suporte do seu sentido de liberdade. Não é a quebra da vida pela imposição da disciplina, mas a fome do desempenho brotada do aprofundamento da ascese que marca o rigor desapaixonado e quase protestante da ida a Leonel Franca para a entrega profunda. E para o que lhe virá, daí, “por acréscimo”. Faz-se a conversão de Alceu dessas aventuras do espírito que aceitam o repto, até mesmo com o risco contra a natureza da pulsão, do estilo e da trajetória vital. A exemplaridade do gesto – pelo auto despojamento – abria o largo limiar para a volta do homem velho no cristão novo; para o desatamento final, no defluir de tantas décadas do espírito libertário, sobre a tranquila e radical “aceitação da ordem”, que vira, através de Jackson, como o crivo do destaque da mouvance real da alma. Surgia para o novo combatente como um silogismo a perda do vínculo entre a Igreja e o conservadorismo. Seu sequitur impunha os deveres de uma militância, levada à responsabilidade exaustiva de um proscênio. Da liderança indivisa, que lhe requeria Dom Leme. Da imagem ostensiva da Igreja, assediada pelo fascismo entre as duas guerras, e do feito corporativo em que, naturalmente, viria à luz da Ação Católica. Não se furta o convertido ao risco de nenhuma trajetória esperada. Da morte do crítico, que pressagiara Mário de Andrade, à saudação como “soldado de Dom Vital”, que lhe endereça Jackson. Porta todas as marcas da ordem o arranco do leigo primordial – Alceu Amoroso Lima.


As conversões, na verdade, têm as suas portas menores e a grande via. É o que vê tão bem Arnold Toynbee, ao discutir os grandes movimentos de “retirada e retorno”, em que as trajetórias pessoais fertilizaram momentos históricos pela radical translação de sua vida interior. Mas, um é o enriquecimento que vem da pauta nova de registros, em que se verte a nova liberdade conquistada pela purgação, pela reinvestidura da vida a um resgate integral de liberdade. Mais raro é o adensamento chegado à retorsão. À lenta volta desse homem velho que se apossa do novo e que pode até permitir-se, pela provação da grande coerência de Alceu – pelo profundo, alegre e irrecorrigível mergulho nos deveres da mais generosa militância católica dos 30 –, resgatar o impulso primordial pela perene e aberta confrontação com o oposto que revestia o seu papel. É essa a aura e a paz de festa da última trintena de Alceu, prenunciada desde o colapso do Estado Novo; pressentida na negativa final ao endosso do integralismo, pela Liga Eleitoral Católica, que chefia em 1938, e na conversa agônica entre Plínio Salgado, Tristão e Leonel Franca. E trabalhada na descoberta do Humanismo Integral e da Democracia Cristã, de Maritain. Deixada, já, numa anotação de itinerário, proclamada no vigésimo aniversário da morte de Jackson, ao referir-se às conotações do modelo político que propugnava para o nosso tempo, na sua tríade, de “República”,“católica” e “democrática”. Mais e mais o terceiro termo dominaria a articulação, a fazer do confessionalismo muito mais do que uma determinação de regra, na Cidade dos Homens, a inspiração do que pedem o tempo e a Igreja peregrina à ordem do verbo. É essa a trajetória sem falha em que a disponibilidade se aperfeiçoa em liberdade. Cria-se como um fio interior entre o abandono de toda instalação, no que fosse a eficácia opulenta de um testemunho, em favor da voz da premonição e depois da denúncia. Ao mesmo tempo, de dessolidarização e trilha segura de caminho. Operado o salto, caucionava-se o longo recuperar do primeiro libertarismo, a se repor em tempo e a absorver na mirada cada vez mais ávida de futuro todo o conteúdo dissonante, portador da provação de base. Nessa coerência de fundo, que, inclusive, não vem à consciência de Alceu de 1930, dá-se o encontro e também o destaque de itinerários entre nosso pensador e Maritain do Humanismo Integral e, a seguir, do vieuxlaïc que escreve o Paysan de la Garonne. Nos seus últimos anos, o autor dos Degrés du Savoir revisita todo o percurso da sua Igreja e, após o concílio, interroga-se, já, dubitativamente, do que possa realizar uma atividade política, autêntica e vitalmente

cristã, nos movimentos concretos da história. Seria o Alceu da mocidade das suas últimas décadas que iria, cada vez mais, na esteira da Gaudium et Spes, fazer da busca incessante dos “sinais dos tempos” a lição incitadora à permanência e a certeza dessa encarnação. E do laço que só entrega o compromisso no que é, para o cristão, o engaste de cada hora: a que só sabe e porta essa presença, como penhor da transcendência. Idêntica à de Maritain, desenvolvia-se, no plano nacional, a trajetória antológica de Gustavo Corção, que terminaria no mesmo movimento contrário ao de Alceu. Contrapunham-se esses percursos, afinal, simetricamente opostos, diante da mesma força de uma entrega interior. Corção viveria a vocação pluralista dentro da Igreja, de início, como um membro da Resistência Democrática, de onde provinha, para abraçar, afinal, o espírito radica da “cruzada”. Tal como Alceu se filiara à Igreja da Ordem, para trocá-la pelas liberações amplíssimas já prenunciadas na luta contra a queda de Vargas. Nessa imersão no mundo, trocava a perspectiva de uma instauração na ordem pela presença no seio do evento. Mas as idas e vindas de seu empenho não fogem ao primeiro registro da conversão; dão-lhe dimensão plenária contra o arroubo do dissenso. Ao invés da transfiguração radical do mundo pela entrega franciscana, a tarefa, sim, de ajudar e proteger a vida e a florescência das estruturas da Cidade dos Homens. Divisava-se nos dois rumos, como tão bem sublinharia Monsenhor Lalande, assessor da Comissão Pontifícia Justiça e Paz, a diversidade de riscos em que incorre o compromisso político do cristão. E, diante da aceleração história dos nossos dias, seriam maiores as perspectivas de que se bloqueasse a palavra inserida pedida ao laicato pela Gaudium et Spes, do lado do integrismo, que do espírito libertário. A perda da escala da mudança exigiria mais – intuiu-o Alceu – da disciplina do compromisso social do cristão. Mas compensava-se por esse quase sacramental em que se constituía ad gentios o desenho largo no tempo de uma Igreja encarnada. Toda a instalação no temporal seria reptada pelo apelo a todos os homens, para a construção das dimensões da paz e da prática social trazida à tarefa do laicato. Alceu penetra-a de sua presença na Comissão Pontifícia Justiça e Paz, à escala do seu espírito libertário, desatado. Alceu, o patrício da suavidade do convívio, mas também da sua secreta etiqueta, pôde, como ninguém, trazer para a sua Igreja o grande sentido das hierarquias e das naturais distâncias sociais, nas quais o laicato encontraria não só o seu lugar, mas também, da mesma forma ciosa e nítida, a sua defesa. É o que lhe daria inserção única para compreender a autonomia desse mesmo leigo


na Igreja. Nada adjutório da sacristia. Nem manu longa da tarefa especificamente episcopal ou clerical. Esse o Alceu da exemplar colaboração com Dom Leme e também suscetível de sustentar a toma, sua, da palavra, na matéria em que lhe reconhecia o munus próprio à Doutrina Social, e viria a proclamar João Paulo II, como específica e naturalmente leigos, o exercício do compromisso político do cristão. Cosmopolita, o Alceu do currículo perfeito da viagem desde a França anatoliana, do Hotel Montalembert do após-guerra, como do Majestic do primeiro conflito; da União Panamericana; do Prêmio Maria MoorsCabot; de Van Istendal, de Vitorino Veronese, de Thomas Merton. Filtra-o, entretanto, cada vez mais, no grande universalismo. Paulo VI proclama-o como modelo de católico para o nosso tempo, fora dos quadrantes ou, inclusive, da prisão, dentro de um meridiano de latinidade. Esse cânon, ao mesmo tempo referido ou universal, seria a tônica permanentemente buscada por Alceu, no reconhecer, nesse seu profundo enraizamento da Igreja na história, o quanto ficava a dever a uma determinação ainda ocidentalizante do cristianismo. A interrogação fundamental da conversão de Alceu é de sabermos como conciliará o compromisso do católico aos reptos do crítico, no contexto de sua época. É essa a do rigor extremo da confessionalidade, quando Dom Pedro Sinzig interdita aos crentes 2.345 obras, num verdadeiro novo Syllabus, e num momento antológico do rigorismo católico. Na ocasião, Mário e Oswald de Andrade arguiam como seria possível a um pensador manter-se católico e garantir a neutralidade da sua crítica. É não se dar conta de que Alceu nutria-se da visão de mundo de Bergson, tanto no impulso do élan vital, na trama da modernidade, quanto, inclusive, na exposição a situações limites, que levou o nosso pensador a seduzir-se com a viabilidade do suicídio, em Veneza. Nesse telão de fundo, Alceu depara, em plena Semana da Arte Moderna, o repto, numa condição de mudança, entre a ruptura radical e a mantença da continuidade dos referenciais críticos. Ecoava a convocação de Oswald de Andrade segundo a qual,se ser um maníaco da parcialidade é preciso, que a gente tenha a coragem de ser parcial para poder romper. Oswald, nessa sequência, iria à ética do excesso, que o levou, inclusive, ao mutismo dos seus últimos cinco anos. Alceu foi aluno de Sílvio Romero, a quem vai dever a noção da “consciência epocal”, autor da primeira história da literatura brasileira a desmontar o mito apressado de Machado de Assis e a proclamar a

pobreza da crítica brasileira, a de Araripe Júnior e de José Veríssimo, objeto da investida do sergipano, nas suas “zeverissimizações”. No advento da nossa modernidade, Alceu avança um caveat básico, enquanto entende que o movimento dos anos 1920 era essencialmente paroquial e paulistano. Dizia: “Todo paulista é um regionalista; é muito difícil ter um paulista nacional.” Surge, desse horizonte, a ideia de um modernismo no Rio de Janeiro, na cooperação de Alceu com Tasso da Silveira e Cecília Meireles, na criação da revista Estética. Mas Alceu vai à visão prospectiva da nossa cultura pelo impacto de Graça Aranha, na sua conferência de 1922, “O Espírito Moderno”, quando rompe com o convencionalismo da ABL e proclama: “Isto é a casa das múmias; é o túmulo dos medíocres; é a casa do não-ser literário.” A frase vai à balbúrdia, levando os conservadores Coelho Neto aos ombros. E Alceu é um dos que erguem Graça Aranha. E todo confronto – salientaram os protagonistas – passou-se diante da absoluta imperturbabilidade do presidente da ABL de então, Medeiros e Albuquerque. O depoimento, nas Memórias Improvisadas, assentaria toda a envergadura da conversão de Alceu, sem dúvida, única, no quadro da nossa cultura. Entendeu-o, quase profeticamente, Jackson, convencido do seu impacto antológico, no quadro da recristianização da nossa intelli¬gentsia de então. E Alceu já entendido, então, como pri-mus inter pares. Mas faltava a autenticação do percurso crítico de Alceu. É o momento da aparição de Leonel Franca, “o padre que me faltava”, no auge da sua produção intelectual, no grande confronto com José Oiticica, no debate do socialismo, após a dogmática marxista do século XIX. É um Alceu que transpõe para a fé a sua militância e a sua disciplina, na cega obediência a Dom Leme e a toda a sua visão de um catolicismo restaurador. As Memórias marcarão esse meã culpa único de nosso crítico, ao aceitar a Universidade do Distrito Federal e aí dispensar, a partir de Anísio Teixeira, todos os grandes educadores da Escola Nova. A contemporaneidade de Alceu, na sequência desses mesmos anos 1930, nos dá o seu contraponto com Plínio Salgado, na defesa da noção de totalidade histórica contra o pecado fundamentalista, e na crítica antológica ao chamado “Movimento da Anta”, como bordão literário do credo integralista. A situação limite da consciência crítica de Alceu vai à decepção com Gustavo Corção. O resíduo beletrista ou os humanismos fáceis da belle époque levariam Alceu à busca corretiva, no fascínio inicial, com um pensador vindo das matemáticas, da física, e da regra de pensar de um engenheiro, que vinha à intelligentsia


a partir da “Esquerda Democrática”. Corçãopõe em causa, inclusive, a nossa epistemologia tão precária da nossa maturidade cultural nascente. A analítica de Corçãot ornar-se-á impenetrável à contextualização da mensagem, no contraste flagrante de Alceu, e ao imperativo pluralista de leitura dos “sinais dos tempos”. Corção, ao contrário, vai à polarização, ao “perigo comunista” e ao apoio ao governo militar, inclusive, com a delação de católicos levados à tortura. E não é outro esse contraponto com Alceu, na mesma época, condenando o regime e avançando na reflexão do compromisso inevitável da Igreja com a democracia, o que, para além da sua performance política, representa a sua garantia com os direitos humanos, e, por aí mesmo, sua marca-chave frente aos novos “gentios” de nosso tempo, dos regimes de seclusão social, senão– tal como demonstra o Estado Islâmico, Isis –do literal abate dos “gentios” do nosso tempo. Ao lado do manifesto e da inteligência combatente, já começava, à mesma época, a porejar o homem velho nos rumos ganhos pelo Centro Dom Vital, à busca do exercício do grande questionamento cristão, à luz do nosso tempo. E exatamente na linha que viria a se transformar em rotina da nossa aventura do espírito após a Gaudium et Spes. Era o que representava a exposição no nosso catolicismo às vigências de sua época, ao trazer Alceu ao Brasil, entre tantas vozes da contemporaneidade, Robert Garric, das Equipes Sociales, Maritain, ao fim dos anos 1940, e Padre Lebret e o seu movimento Economia e Humanismo, capaz de sintetizar as antigas propostas chestertonianas à escala da análise que queria lhe emprestar o mais ambicioso marxismo de então. O Centro Dom Vital crescia no contributo dos intelectuais conscritos por Jackson, a construir, por sobre o seu específico comprometimento, a aura da grande temática do tempo, trabalhada, sobretudo, através das profundas vivências literárias: a de Hamilton Nogueira, com Joseph Conrad; a do contínuo exercício machadiano de Barreto Filho; a de Mauriac, por Augusto Frederico Schmidt. Configurava-se como pano de fundo das reuniões do Casarão da Praça XV a ideia de um “Centro Fabiano”, em que a reciprocidade das perspectivas trazidas ao debate e a exposição do pensamento confessional às mais rigorosas correntes de reflexão de seu tempo cunhavam um novo e inesperado lugar do espírito para o Brasil de entre as duas guerras. É o que permitia ao confessionalismo cristão penetrar no nosso patriciado e propor-se, como alternativa, uma sofisticação agnóstica de tantos grandes espíritos

abertos à reflexão já sistemática sobre a nossa realidade. Ao lado da Ação Católica surge a Ação Universitária Católica, portada por essa nova paixão de enlace entre a crença e a vida, a levar ao convento a primeira grande leva de discípulos do Dr. Alceu, Dom Clemente Isnard, Dom Basílio Penido e Dom Marcos, trazendo a fertilização beneditina a tantas formas de renovação pastoral ad extra, do trabalho diocesano ao plantão da palavra e da poesia, na grande mídia. Esse monaquismo, a que viria se reunir Madre Maria Tereza, transformava-se na parusia secreta da entrega de 1928. Nessa pulsão, cada vez mais desatada de uma militância que se interroga e interpela, Alceu depara a pergunta: a Dieuest-il à droite? É essa a época em que os sucessos do franquismo levariam Tristão a dessolidarizar-se de todo triunfalismo da afirmação temporal da fé. Descerrava-se o caminho claro dos pontífices pós-conciliares e da promoção, no tempo, do homem todo e de todos os homens. Liberava-se, aí, de saída, do espírito da cruzada, tão suscetível nos anos 1930, de impedir a inteligência confessional a tomar partido na polarização entre o marxismo e as direitas restauradoras. E, dentro de um horizonte pastoral surgido em reação às perdas sucessivas de classes e nações no seio da sociedade moderna, naturalmente se levantam os toques de reunir em torno da defesa de uma exigência de cristandade. Entender-se-á o seu impacto e a sua sedução num país que já se aprestava à gratificação de maior nação católica do nosso tempo. Definiam-se aí todas as condições para o conforto das coisas e da tranquilidade da consciência. E mais avançam esses anos 1930, mais a ação de Alceu passa a discrepar do que seriam os formulários e os sucessos dessa sideração do cristianismo. Combate e impede, com Dom Leme, a criação de um partido católico. Demoraria o entendimento do impacto dominantemente negativo da Liga Eleitoral Católica, a se manifestar pelo poder de veto, diante da presença da Igreja no mundo dos homens, ungida pelo espírito de promoção. O remate de todo esse profetismo vai aos escritos dos últimos dias; ao sorriso só da alegria dos justos e às mãos do cuidado invisível; à voz certeira do tempo em que nascem as bem-aventuranças. No que pôde Alceu nos dar, como ninguém, justamente no que sabe e cumpre a vida, se a corta, toda, o gume mesmo da liberdade.


Chesterton e a intelectualidade católica brasileira Alessandro Garcia da Silva O objetivo deste artigo é tornar perceptível a importância da obra do autor Gilbert Keith Chesterton para o pensamento católico desenvolvido no Brasil, de maneira especial aquele formulado pelo intelectual e líder católico Alceu Amoroso Lima. Como bem advertiu o historiador Quentin Skinner , estudos sobre influência são por demais difíceis e, quando não são bem conduzidos, podem fazer com que atribuamos uma relação causal onde ela não existe. Além disso, há que tomar o cuidado de não tratar o ator que supostamente recebeu a influência como um mero repetidor. Em toda recepção de ideias há uma reelaboração delas em virtude do contexto intelectual e social onde aquele que é “influenciado” está localizado. As questões disputadas podem ser outras e outro é o horizonte de expectativas. Dado o escopo deste trabalho, muitas destas questões metodológicas não serão desenvolvidas. Isso não significa, no entanto, que estão esquecidas. São colocadas logo no início justamente como que um sinalizador com função de lembrar os limites das ideias aqui expostas e do caráter exploratório destas páginas. Com as limitações apresentadas, cabe agora ressaltar a relevância de um estudo sobre Chesterton e o Brasil, ou sobre Chesterton e Amoroso Lima. A importância de um estudo, ainda a ser feito, sobre a recepção ampla de Chesterton no Brasil é grande na medida em que tem condições de lançar luzes inéditas sobre a produção intelectual dos católicos brasileiros. Em grande parte dos estudos sobre autores brasileiros ligados à Igreja Católica nas primeiras décadas do século XX, normalmente dá-se grande ênfase aos diálogos com a tradição católica francesa. Essa postura não é arbitrária e decorre da França ter sido durante muito tempo a maior referência para a intelligentsia brasileira. Some-se a isso o fato de que no fim do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, ocorreu um grande movimento intelectual no catolicismo francês. Tal movimento foi mesmo denominado por alguns como renascimento literário católico. Apesar de sua importância, a intelectualidade católica francesa não foi a única fonte mobilizada pelos católicos brasileiros. Uma das mais importantes foi a tradição católica inglesa. O catolicismo vivia no século XIX situações muito diferentes na França e na Inglaterra. A primeira era marcada pelas consequências da Revolução Francesa, do positivismo e do secularismo. A França

era o país onde os ideais iluministas mais avançavam e o catolicismo, outrora hegemônico, perdia progressivamente boa parte de sua influência. Já na Inglaterra, a situação era um tanto quanto diferente. Desde a reforma anglicana, os católicos sempre foram minoria na sociedade inglesa, com uma influência muito pequena no cenário cultural. Apenas no século XIX, com uma grande migração de irlandeses, o número de católicos aumentou e a cena religiosa sofreu uma mudança. Ou seja, apesar de tudo, a Igreja vivia na Inglaterra um momento de expansão. Estes contextos sociais distintos levaram a reflexões teóricas distintas. Na França, o conservadorismo político e a crítica à revolução francesa marcaram muito as reflexões dos católicos no século XIX. Nas questões de cunho mais filosófico, as grandes disputas se davam em torno do materialismo, do positivismo e do liberalismo. No caso inglês, a cena é outra. O grande intelectual católico do século XIX na Inglaterra foi John Henry Newman. Newman não discute primeiramente com positivistas ou com o materialismo da modernidade, mas com a tradição anglicana. Suas principais questões giram em torno do tema da evolução do dogma e do assentimento humano a uma crença religiosa. O fato de ser um converso oriundo do anglicanismo explica muito suas prioridades. Uma característica distintiva da tradição intelectual cristã (e não apenas católica) inglesa é a ênfase no elemento imaginativo. Os cristãos ingleses, em sua crítica à razão moderna, não buscaram apenas demonstrar outra concepção de razão tida com mais ampla como fizeram os neotomistas franceses. Sua estratégia foi apresentar a imaginação como um outro instrumento fundamental de percepção da realidade. 1 – Chesterton e a intelectualidade católica brasileira Dos autores católicos ingleses, Chesterton foi o que mais fez sucesso no Brasil. Esse sucesso, contudo, acaba por não ser tão perceptível quando se observa o cenário atual. Boa parte das principais obras de Chesterton não era traduzida até bem pouco tempo , poucas referências a ela são encontradas na literatura contemporânea, praticamente nenhum trabalho acadêmico o tem como objeto e, mesmo entre os escritores católicos, ele é muito pouco citado. Apesar desta situação, Chesterton foi referência fundamental para aqueles que, provavelmente, foram os intelectuais católicos mais influentes do século XX no Brasil: Alceu Amoroso Lima e Gustavo Corção. Estes dois autores foram


presidentes do Centro Dom Vital e durante anos cultivaram uma forte amizade. No período que se seguiu ao Concílio Vaticano II e ao golpe de 64, os dois escritores romperam relações e, embora ambos continuassem católicos, adotaram posturas políticas totalmente diferentes. Apesar das diferenças ideológicas e na forma com que se relacionaram com a Igreja, tanto Corção quanto Amoroso Lima dizem ser Chesterton uma figura fundamental no processo que os levou a aderir à fé e à militância católica. Em “A Descoberta do Outro ”, autobiografia publicada em 1944, Gustavo Corção diz o seguinte sobre Chesterton: Chesterton trouxe-me uma libertação, uma recuperação da infância, encheu-me da confiança que mais tarde, pela misericórdia de Deus, seria vestida de Esperança; Maritain trouxe-me a retificação da inteligência e encheu-me da outra confiança que se revestiria de fé. O primeiro, creio que foi mais decisivo porque atingiu o nervo mais ferido e sensível, tocando-me o senso lúdico: com ele brinquei as horas mais felizes de meus quarenta anos, quando aparentemente, pela força dos acontecimentos, eu deveria estar acabrunhado de tristeza. Ninguém conhecia meu júbilo, ninguém suspeitava a felicidade que eu escondia com medo e avareza. E, muitas vezes, entrava pela noite adentro, lendo até não poder mais, e amanhecia abraçado ao livro. No caso de Alceu Amoroso Lima, o peso da obra do autor inglês pode ser desprendido do seguinte trecho de uma carta endereçada a Jackson de Figueiredo em 1927: “É toda uma revolução em meu espírito. E que devo tanto a você, meu querido e corajoso amigo, depois de Deus. Você e Chesterton foram os meus dois inquietadores. Ontem escrevi um artigo Ser e Vir a Ser, pensando que nunca o teria escrito se não tivesse encontrado a Chesterton e a você e se Deus não tivesse querido me iluminar”. Quando Alceu Amoroso Lima aproxima Chesterton de Jackson de Figueiredo não faz algo trivial. Jackson travou com Alceu um diálogo epistolar durante anos e é tido por este como a pessoa responsável por sua volta ao catolicismo e como aquele que marcou durante anos seu posicionamento ideológico. Quando a gratidão tributada a Chesterton é igualada àquela que tem para com o amigo brasileiro, Amoroso Lima demonstra sua dívida intelectual e existencial para com o autor inglês e assume a importância deste para

a visão de catolicismo que cultiva em seu retorno à Igreja Católica. A partir do contato com declarações tão entusiasmadas de intelectuais consagrados e ao saber que ambos tributam suas conversões à obra de G.K. Chesterton, quase que espontaneamente surge a seguinte indagação: o que esse autor trazia de tão persuasivo e encantador? Ou, em outras palavras: o que havia de tão atrativo no catolicismo tal qual difundido por G.K. Chesterton? Essas são perguntas difíceis de responder, afinal demandam um levantamento amplo do contexto intelectual e religioso da primeira metade do século XX, tanto no Brasil quando na Inglaterra. Dentro dos limites deste artigo, apontamos alguns elementos para uma resposta mais ampla. Para pensar tais elementos cabe um rápido olhar tanto para a forma quanto para o conteúdo do pensamento chestertoniano. Para uma melhor compreensão da estrutura formal dos textos de Chesterton, é preciso lembrar que ele não foi um poeta ou romancista por profissão, mas um jornalista. Escreveu artigos sobre o que ocorria no momento, escreveu resenhas sobre os livros de sucesso de seu tempo e participou ativamente das polêmicas públicas. Sua primeira grande contenda deu-se durante a Guerra dos Boers (1899-1902) quando se colocou contra a posição do governo inglês. Também é sugestivo que seu primeiro livro tenha por nome “O Defensor” e que tenha capítulos com os seguintes títulos: “Em defesa do absurdo”, “Em defesa das coisas feias”, “Em defesa da veneração pelos bebês”, “Em defesa do patriotismo”. Essas suas defesas andam lado a lado com suas acusações. Desde o início de sua carreira, Chesterton foi um polemista e não há como negar que a polêmica marca sua forma de escrever. Sempre está em combate, seja defendendo ou atacando. Defendendo aquilo que julga ser o senso comum e atacando a modernidade, que pensar estar afastada de tal senso. Somado a esse caráter combativo, o bom humor é outra característica do pensamento chestertoniano. Chesterton parece voltar contra a modernidade a ferramenta que muito foi utilizada contra o cristianismo: o riso. Suas páginas trazem sempre gracejos e mesmo quando condena o mundo moderno, faz com que sua condenação torne-se uma espécie de exposição ao ridículo. Seu humor é em grande parte das vezes construído a partir de paradoxos. Tanto o uso do riso (humor) quanto a polêmica estão presentes em praticamente todos os livros de Chesterton. Como exemplo, basta citar o primeiro parágrafo de sua mais famosa obra, “Ortodoxia ”:


A única desculpa para este livro é o fato de ser ele a resposta a um desafio. Um atirador, por pior que seja, torna-se digno de respeito quando aceita um duelo. Quando, há algum tempo, publiquei, sob o título de “Heretics”, uma série de ensaios, escritos apressadamente, porém com sinceridade, alguns críticos, cuja inteligência admiro (refiro-me ao senhor G.S.Street), declararam que eu incitava a todos a tornarem públicas suas teorias sobre os problemas cósmicos, mas evitava, cautelosamente, apoiar meus preceitos com o exemplo. “Começarei a me inquietar com minha filosofia” – disse, nessa ocasião, o senhor Street – “quando o senhor Chesterton nos tiver apresentado a sua”. Era, talvez, uma imprudente sugestão feita a quem está sempre preparado para escrever um livro à mais breve provocação. Em um contexto no qual o catolicismo era constantemente visto como sobrevivência de um passado sombrio e triste, como herança de uma idade das trevas, Chesterton é, para os católicos e para muitos setores da opinião pública de seu tempo, uma espécie de contraprova a essa crítica. É tido ao mesmo tempo como um cavaleiro e um palhaço, ou melhor, um cavaleiro cuja espada é o riso. Sua obra parece querer mostrar que a sisudez está do outro lado e que é na ortodoxia que se encontra a verdadeira festa. Do ponto de vista da forma, Chesterton trouxe um molde, se não novo, ao menos raro, para a defesa dos ideais católicos no âmbito da imprensa. Esse molde foi por demais atrativo, tanto para aliados quanto para adversários . E quanto ao conteúdo? O que defendia G.K. Chesterton? Não basta dizer que fazia uma defesa da religião católica, afinal boa parte de seus livros mais famosos foram escritos antes de sua conversão ao catolicismo em 1923. E, além disso, a intelectualidade católica não é um bloco monolítico onde todos cultivam exatamente as mesmas ideias. A obra de Chesterton é enorme. A coleção de suas obras em inglês chega a 37 volumes, sendo que grande parte do que escreveu ainda não foi compilado em livros. Não é exagero dizer que ele participou da grande maioria das polêmicas de seu tempo. Isso para não mencionar que publicou diversos livros de poemas e obras de ficção. Essa situação torna difícil a sistematização do conteúdo do pensamento chestertoniano. Como nosso interesse, no entanto, não é uma catalogação de todos os assuntos sobre os quais ele escreveu, mas a identificação das temáticas desenvolvidas por ele que exerceram fascínio sobre a intelectualidade católica brasileira, a estratégia adotada

será dar voz a Gustavo Corção, autor da única obra brasileira que, embora não pretendesse, realizou uma ordenação dos temas desenvolvidos por Chesterton. “Três Alqueires e uma Vaca ” foi publicado em 1946, e é o segundo livro de Gustavo Corção, lançado apenas dois anos depois de “A Descoberta do Outro”, seu ensaio autobiográfico. Cabe fazer a ressalva de que este livro, mais do que uma introdução a Chesterton, é um ensaio no qual Corção, ao mesmo tempo em que apresenta as ideias do escritor inglês, declarase seu discípulo e afirma construir seu pensamento sobre as bases lançadas pelo autor ao qual está declarando sua admiração. A abordagem de Gustavo Corção à obra de Chesterton defende uma forte unidade interna ao pensamento deste autor . Embora abordasse uma infinidade de temas a partir de uma grande variedade de formas, para Corção, Chesterton possuía um núcleo de ideias que se deixava perceber em todas as suas obras. São três as ideias centrais de Chesterton, segundo a visão de Corção. Ou, para ser mais fiel ao autor, em Chesterton existem “três núcleos planetários de ideias” . Em torno de três centros gravitacionais orbita o pensamento chestertoniano. Gustavo Corção lê esses três núcleos como três antídotos para dramas humanos. São estes dramas que dão nome às últimas partes do livro: “Para não ser doido”, “Para não ser bárbaro”, “Para não ser escravo”.O primeiro núcleo de ideias, “Para não ser doido”, está ligado à discussão que Chesterton empreende em relação à razão moderna e à defesa que faz do mistério como algo fundamental ao pensamento humano. Em sua argumentação, por exemplo, Chesterton afirma que a negação do mistério em prol da razão termina pela negação da própria razão, uma vez que esta não pode fundamentar a si mesma. Além disso, ele julga que a negação do mistério leva a uma percepção equivocada da própria realidade, uma vez que reduz esta às categorias do indivíduo e não faz com que o indivíduo se abra a um real que é maior que ele. A razão moderna “fagocitou-se”, ou seja, ao ser levada ao extremo, retirou as bases sobre as quais se fundamentava. A imaginação é, na concepção chestertoniana, uma saída para essa tragédia da razão, uma vez que abre novamente as portas para o mistério. É nesse contexto que Chesterton cunha sua famosa oposição entre o louco e o poeta :


A imaginação não produz a loucura: o que produz a loucura é exatamente a razão. Os poetas não enlouquecem, os jogadores de xadrez sim. (...) Como se há de observar no decorrer deste livro, não é meu propósito atacar a lógica; quero apenas frisar que o perigo está na lógica e não na imaginação. (...) O fato geral é simples. A poesia é sã porque flutua, facilmente, num mar infinito; a razão procura cruzar o mar infinito para, assim, torná-lo finito. (...). Aceitar todas as coisas é um exercício, entender todas as coisas é um esforço. O poeta procura apenas a exaltação e a expansão, isto é, procura um mundo no qual ele possa se expandir. O poeta pretende apenas meter a cabeça no céu, enquanto que o lógico se esforça por meter o céu na cabeça. E é a cabeça que acaba por estourar. Se o primeiro núcleo de ideias de Chesterton faz referência à teoria do conhecimento, o segundo, “para não ser bárbaro”, diz respeito a uma ética das relações sociais. Para Corção, no centro de tal ética, Chesterton colocou o juramento, e este é tido como a vitória da fidelidade sobre a astúcia, da palavra dada sobre as vicissitudes da vida e da sociedade. Essa defesa do juramento como algo fundamental para as relações humanas é o ponto de apoio sobre o qual Chesterton se coloca para defender valores tradicionais do catolicismo, como o casamento indissolúvel, sem recorrer diretamente a uma retórica religiosa. Por fim, o terceiro núcleo de ideias de Chesterton, “para não ser escravo”, está ligado à sua proposta econômica e social, o distributismo. O ideário distributista consistiu principalmente numa crítica ao capitalismo monopolista e na proposta de uma alternativa a ele baseada na pequena propriedade. Para o distributismo, o que importa não é a produção de riqueza, mas a criação de condições nas quais o homem possa desenvolver-se. Isso significa dizer que as necessidades humanas, e não o lucro crescente das empresas, devem ser o centro de toda a economia. No centro desta proposta está a ideia de que realização humana só é possível em um contexto de liberdade. A liberdade, no distributismo, é considerada um valor tão alto que não pode ser trocada nem por melhorias sociais. Para Chesterton, tanto o socialismo quanto o capitalismo podem propiciar certos avanços e garantir algumas melhorias sociais. O que nenhum dos sistemas tem a oferecer ao homem é o ser livre. De acordo com o ideário distributista, a liberdade é tida como a condição e salvaguarda da liberdade individual. No distributismo, a própria noção de democracia é tida como um contrassenso se não estiver baseada na distribuição da propriedade,

pois, de acordo com essa corrente de pensamento, um homem sem posses é um homem em estado de dependência e desprovido de autonomia, seja em relação ao Estado, seja em relação aos grandes detentores de capital. De maneira resumida, Chesterton defendeu uma epistemologia que salvaguardava o mistério e o dogma; uma ética na qual defendia, a partir de um valor caro aos homens de seu tempo, a moral católica tradicional; uma proposta econômica e social que criticava tanto o socialismo quanto o capitalismo. E tudo isso em uma linguagem cheia de paradoxos e bom humor. Outro dado importante é que Chesterton não era um acadêmico nem escrevia apenas para católicos, mas um jornalista que trabalhava na grande imprensa. Em diversos aspectos, ele apresentava um tipo diferente e atrativo de intelectual católico. 2. Chesterton e Alceu Amoroso Lima Como já mencionado, Chesterton foi um autor fundamental na conversão de Alceu Amoroso Lima. Que o catolicismo sob a ótica chestertoniana exerceu grande fascínio sobre o jovem Alceu é algo atestado pelo próprio. Cabe agora perguntar que elementos do pensamento de Chesterton estiveram presentes na obra do intelectual brasileiro. Se levarmos em conta a tripartição do pensamento de Chesterton feita por Gustavo Corção, o que mais aparece na obra amorosiana é o remédio para a escravidão, ou seja, o distributismo. Claro que a defesa do mistério como fundamental à experiência humana do mundo é algo que perpassa a reflexão de Alceu Amoroso Lima, sendo forte sinal disso o título de seu último livro, “Tudo é Mistério”. Esta coincidência, no entanto, não é forte o suficiente para permitir uma correlação entre as obras dos dois escritores, afinal é um ponto relativamente comum entre autores católicos e traços que denotem uma referência direta às formulações chestertonianas não são visíveis nas obras de Alceu. Algo parecido pode ser dito da elaboração de Chesterton acerca do juramento. Com o distributismo, a situação é diferente, há fartas referências, tanto no jovem convertido ao catolicismo no fim da década de 1920, quando no intelectual consagrado da década de 1970. Sabese que as referências teóricas de Alceu mudaram bastante durante sua vida. Apesar disso, cabe destacar que, mesmo de maneira menos intensa, Chesterton não deixou de estar presente na reflexão amorosiana. Sobre ele, Alceu diz o seguinte já no final de sua vida:


Chesterton era um católico recém-convertido. Lembro-me de ter lido seu livro Evolução da História da Humanidade, escrito em resposta a H.G. Wells. Embora cientificamente fraco, era um livro muito interessante e pitoresco. Foi por esse tempo que ele desenvolveu uma teoria econômico sociológica, à qual hoje me conservo mais ou menos fiel. Entusiasmado, cheguei a fazer uma conferência na Escola Politécnica, a convite de seu diretor, Tobias Moscoso. Essa teoria, que iria mais tarde redescobrir em Alberto Torres, chamava-se distributismo. Alceu julgava que o distributismo conciliava o que de melhor havia nos dois sistemas antagônicos, o socialismo e o capitalismo. Utilizando um linguajar mais contemporâneo podemos dizer que ele julgava que na proposta distributista tanto os valores da igualdade quanto os da liberdade estavam assegurados. Estas ideias são tão importantes para o ideário de Amoroso Lima que duas de suas primeiras obras são redigidas em diálogo com elas. Trata-se de “Preparação à Sociologia ” e “Introdução à Economia Moderna ”. Além da reflexão com as obras, houve também o desejo de um diálogo epistolar: Mais tarde, muito influenciado pelas ideias de Chesterton, e com o idealismo de moço, pensei em escrever-lhe, pois queria saber como poderia conciliar as minhas convicções distributistas com a responsabilidade de direção de uma empresa industrial. Como era sabido que Chesterton não respondia a carta nenhuma, escrevi a seu companheiro Belloc . O liberalismo de Chesterton foi um dos aspectos mais ressaltados por Amoroso Lima, no balanço que fez da sua vida na entrevista dada a Medeiros Lima. Alceu encarava Chesterton como um defensor da liberdade, contrário a soluções autoritárias. E contrastava a influência recebida dele com aquelas recebidas de Bernanos e Jackson de Figueiredo, mais alinhados com tendências de cunho autoritário. O já idoso Alceu julgava ser Chesterton o mais próximo de sua posição afeita à liberdade, da qual se afastou nos primeiros anos pós-conversão. As influências do autor de Ortodoxia foram, retrospectivamente, consideradas como um dos recursos intelectuais que permitiram também sua segunda conversão, ou seja, a vivência de um catolicismo afastado de posições políticas autoritárias. Segundo Alceu : Foi sua [de Chesterton] vivacidade de espírito, a sua extraordinária fertilidade inventiva e, sobretudo, o seu liberalismo que me impressionaram. Eu era

profundamente liberal, visceralmente liberal. O meu liberalismo atual, que chamo de libertarianismo, foi uma volta a essa vocação de liberdade na mocidade, que se obscureceu durante algum tempo através de minha conversão ao catolicismo e da convicção de que a autoridade era superior à liberdade, como sustentava Jackson de Figueiredo. Se recordarmos a, já citada, carta dirigida por Alceu a Jackson de Figueiredo em 1928 e pensarmos que o livro “Memórias Improvisadas” teve sua primeira edição em 1973, torna-se fácil perceber a presença de Chesterton em toda a reflexão de Alceu Amoroso Lima. E mais: confiando nas palavras do autor, há que se reconhecer que tal presença traduziu-se numa adesão, ainda que parcial, ao ideal distributista. Este dado torna-se ainda mais surpreendente quando é pensado a partir das diversas mudanças de postura política e ideológica pelas quais passou Amoroso Lima em toda a sua trajetória. Não é exagero dizer que a obra de Chesterton, ainda que lida de modos diversos, foi um dos elementos que permitiram que Alceu, apesar de ter passado por diversas transformações, continuasse a perceber-se como fiel a si mesmo e aos ideais abraçados na sua conversão.


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