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Dos "públicos no plural" a uma pluralidade das concepções de públicos1
Cayo Honorato 2
Entre os dias 12 e 14 de novembro de 2013, o Sesc São Paulo realizou, na unidade da Vila Mariana, o Encontro Internacional Públicos da Cultura, que reuniu pesquisadores, professores universitários, gestores e representantes de instituições culturais, procedentes de 8 países dos continentes americano e europeu, para um debate sobre o consumo e as práticas culturais na sociedade contemporânea. Segundo a pesquisadora e consultora do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo (CPF) Isaura Botelho (2011), o Encontro veio preencher uma lacuna importante no cenário cultural brasileiro, em face de um campo de pesquisas "sem fisionomia definida", que no país "dá apenas seus primeiros passos". Para ela, os públicos são "o elo menos estudado da cadeia criação/produção, circulação/difusão, fruição/consumo"; uma situação que o Encontro terá certamente desejado questionar. Neste relato, procuro repassar e discutir algumas das inúmeras questões e abordagens trazidas pelas diversas conferências (foram 18 no total), articulando-as em três diferentes temas: (1) os públicos no plural, com destaque para alguns "públicos específicos": os jovens, os deficientes e os presidiários; (2) a formação dos públicos, em que surge o problema das relações entre o marketing e a educação, assim como, noutro plano, entre os objetivos da oferta e os objetivos da demanda; (3) e as formas de se estudar os públicos, onde os "públicos" são percebidos como "efeitos das interações culturais", para além de "grupos com interesses particulares". Para remediar as muitas insuficiências de minhas anotações e de minha memória, ou ainda, para me servir de um ou de outro contraponto, recorri eventualmente a algumas referências externas às conferências, que estão listadas no final do relato. Tais decisões, que fui tomando na elaboração do texto, terminaram por deixar muita coisa de fora, até mesmo algumas das conferências. Por certo, não há nisso nenhuma valoração. Apenas o relato não se pretende exaustivo (muito menos totalizante) do Encontro, o que de resto me pareceria impossível. Em 1
Relatoria do Encontro Internacional Públicos da Cultura, realizado em novembro de 2013. Mestre em Cultura e Processos Educacionais pela UFG e doutor em Filosofia e Educação pela USP. É pesquisador-colaborador do Grupo Fórum Permanente: Sistema Cultural entre o Público e o Privado, do Instituto de Estudos Avançados da USP. 2
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todo caso, especialmente para os que não estiveram no evento, recomendo sua leitura em conjunto (ou mesmo em debate) com a visualização dos registros em vídeo que terão sido disponibilizados pelo Sesc. Também recomendo a leitura do relato igualmente comissionado de José Marcio Barros. *** Para o diretor regional do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda (cf. bloco de notas do Encontro), "são notórias as transformações no consumo cultural". A partir da compreensão de que os públicos são uma "instituição social específica, marcada pela diversidade, fluidez e permeabilidade", Miranda reconhece haver "novos perfis de consumidores culturais, dotados de inédito protagonismo". Tais mudanças, "impulsionadas em boa parte por inovações tecnológicas importantes" (uma percepção que reaparece em várias conferências), deram lugar a "modos renovados de relação com a cultura e de formação dos gostos". Diante disso, o Encontro não só terá sido "um espaço de reflexão e diálogo a respeito das práticas culturais e do consumo cultural na sociedade contemporânea", mas também uma oportunidade para a instituição emitir um posicionamento: "uma ação cultural de destinação pública é inócua caso não incorpore o esforço de escuta e conhecimento de seus interlocutores". Conforme a pesquisadora Isaura Botelho (cf. Revista E, 2013), é preciso "que as instituições saiam de si próprias e de sua autossatisfação com a excelência de sua oferta, para [justamente] assumir uma postura de 'conversa' com seus frequentadores". Mas de que modo os públicos têm se transformado? O que significa esse "panorama cambiante" a que Miranda se refere? Para o sociólogo Olivier Donnat, no retrospecto que apresentou das pesquisas sobre as práticas culturais na França, isso não só diz respeito ao reconhecimento, desde os anos 1980, de que os públicos são diversos (as famílias, os jovens, ou mesmo grupos excluídos, como os presidiários etc.) e não mais podem ser tomados genericamente enquanto "o povo francês"; mas também às consequências da massificação dos meios digitais, a partir dos anos 1990, que trouxeram novos modos de acesso à cultura (e não necessariamente à cultura legítima), os quais se verificam mesmo em relação às antigas ofertas (como no caso da televisão, tal como se pode ver na conferência de Lívia Barbosa). Nesse contexto, praticamente toda a oferta cultural se digitaliza (alguns autores diriam: converge), podendo ser acessada por meio de telas diversas, cada vez mais interconectadas e onipresentes. Disso decorre tanto uma diversificação da oferta e dos meios de difusão, quanto uma individualização (ou customização) do consumo, no sentido de uma relativa ampliação da liberdade de escolha por parte do consumidor. Tais mudanças reconfiguram o contexto no
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qual se faziam aquelas pesquisas, deslocando a abordagem sociológica, em algum momento, das classes sociais para o indivíduo, a fim de aproximá-la do modo pelo qual as pessoas definem, elas próprias, suas experiências culturais; ao mesmo tempo em que, decisivamente, põem em crise as políticas de democratização cultural – tanto sua crença de que a oferta por si só desperta a demanda, quanto a hierarquização que elas sustentam entre "artes maiores" e "artes menores". A "transformação dos públicos", nesse sentido, pode ser notada nessa mudança do centro de gravidade das dinâmicas culturais – da oferta para a demanda –, que passa a exigir uma atenção específica à esfera do consumo e à atuação dos públicos.
públicos no plural Os públicos já não existem no singular, como um pólo abstrato ou entidade homogênea que os ofertantes (artistas, produtores, instituições etc.) poderiam pressupor. Em sua conferência sobre os processos de transmissão do interesse cultural pela família e pela escola, o sociólogo Gilles Pronovost advertiu que, ainda hoje, a noção de "públicos da cultura" pode ser muito "adultocêntrica". Por sua vez, a socióloga Sylvie Octobre, falando sobre as transformações nas práticas culturais juvenis, observa que as culturas juvenis podem ser percebidas como algo "perigoso", por seu caráter entrópico imediatamente inapreensível – os jovens são consumidores infieis, mas vorazes; são ativos, mas não cativos; participativos, mas rebeldes; coletivos, mas singulares (cf. bloco de notas do Encontro). Ao mesmo tempo, tal entropia pode ser vista positivamente, como fluidez e mobilidade entre linguagens, gêneros e práticas; e não como incoerência. Para Donnat, as práticas juvenis são um dinamizador fundamental daquelas mudanças em geral. Segundo Ana Rosas Mantecón, no México, os jovens são os principais consumidores das novas mídias. Na conferência de Sérgio Amadeu sobre os públicos da cibercultura, são eles que aparecem como agentes de uma "cultura recombinante", por exemplo, no caso dos produtores de fanfics. Também Octobre aponta uma predileção desse segmento populacional pelas mídias autoexpressivas. Contraditoriamente, tanto Donnat quanto Octobre notam um declínio da leitura (de livros) por parte dos jovens, um distanciamento em relação à cultura do saber; o que para ela pode ser um efeito perverso da centralidade do livro no currículo escolar francês. Octobre enfatiza que a juventude hoje é muito fragmentada, o que no mínimo complica a tarefa de representá-la. Entre outros aspectos, cada vez mais cedo se lhe atribui uma responsabilidade civil, sem que lhe sejam assegurados, em compensação, meios para o exercício de uma liberdade individual, por
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exemplo, se não há trabalho e a dependência dos pais deve ser prolongada, especialmente nos "bairros sensíveis", onde moram os imigrantes. Outro segmento abordado no Encontro foi o dos públicos com deficiências, particularmente, em relação aos museus de arte. No Brasil, segundo o Censo de 2010, quase 24% da população, ou cerca de 45 milhões de pessoas, declara ter ao menos um tipo de deficiência. Apesar disso, para Amanda Tojal, é comum ouvir argumentos contrários aos programas de inclusão e acessibilidade, como se aquele quantitativo fosse "pouca gente para tanto investimento". Em resposta, Tojal afirma que a diferença que eles trazem é enorme; que mais do que mudanças físicas nos espaços (na arquitetura, na expografia, na comunicação etc.), são mudanças de atitude nos profissionais do museu e no público em geral, assim como um paradigma de aprendizagem multissensorial, o que os deficientes exigem e fazem desenvolver. Por sua vez, Carrie McGee, representando o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA), repassa o trabalho da instituição com diferentes públicos: veteranos de guerra, imigrantes, comunidades etc.; para então ressaltar que, no trabalho com os visitantes deficientes (visitors with disabilities), não se trata de simplificar determinado conteúdo, mas de conceber o melhor projeto a partir disso, perguntando como se poderia desenvolvê-lo, por exemplo, com crianças autistas, a partir de suas habilidades. No MoMA, as "deficiências" também podem ser estendidas, circunstancialmente, a pessoas doentes em hospitais, assim como a pessoas em situação de isolamento social – o que, nos Estados Unidos, segundo McGee, é um problema tão grave quanto a obesidade e o tabagismo. Embora se pretenda, com isso, surtir efeitos na saúde física e emocional dessas pessoas, McGee admite que tais programas, em função das barreiras (ou preconceitos) que eles quebram, podem também intervir na distribuição de poderes dentro da instituição. Mas se, por um lado, "fomentar o amplo acesso pelos mais diversos públicos", conforme Tojal, significa "pensar os museus desde sua função social" (cf. bloco de notas do Encontro); por outro, McGee não parece constrangida em associar a necessidade de atendimento às pessoas com deficiência ao fato de que, para o museu, isso traz tanto oportunidades de financiamento quanto boa publicidade – uma confusão (entre função social e estratégias de marketing) que deveria ser melhor discutida. Parece-me relevante a ideia de que os benefícios da acessibilidade não se limitam aos deficientes. Mas sua utilização em benefício da imagem do museu deveria ser ponderada, sobretudo se os efeitos de visibilidade (dos programas e do museu) se sobrepõem às apropriações reais por parte dos públicos. Podemos acreditar na história do garoto paranoico, que resiste a sair de casa, até expor no museu, ou ainda, na declaração de que "todo mundo saiu mais feliz do que entrou", de que bastava "olhar no rosto
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das pessoas" para sabê-lo. Entretanto, na medida em que tais "apropriações" não foram exatamente analisadas, seria preciso questionar se elas não subsistem meramente enquanto imagens, ou seja, enquanto aquilo que o museu pode mais facilmente capitalizar. Neste ponto – se a gestão da imagem se sobrepõe à investigação dos processos –, o MoMA, em seu autodeclarado compromisso com a educação, parecerá funcionar mais como uma empresa do que como um centro de pesquisa; o que pode não ser nenhum segredo. Objeções semelhantes poderiam ser feitas à experiência do Louvre em uma prisão francesa (a Prison de la Santé, distante 4 km do museu), apresentada por Anne Krebs; ainda que me pareça bastante salutar a manutenção pela instituição de um departamento de estudos e pesquisas, atualmente dirigido por Krebs. Por certo, não é anódino que a rotina bastante demarcada dos presidiários seja quebrada em algum momento por uma temporalidade incomum, que além disso lhes faculta meios autoexpresivos, experiências de sociabilidade, ou mesmo momentos de evasão imaginária. A propósito, neste ponto, a oferta do Louvre – Krebs nos apresentou a realização de uma exposição na prisão, de cópias das obras do museu, aparentemente organizada pelos detentos – pode não ser mais do que um pretexto para alguns, como no caso de um dos presos, cuja condição para participar, foi a de que pudesse plantar seus tomates. Em todo caso, pode parecer um tanto perversa a ideia de que "quanto maiores as privações, maiores os benefícios" (Krebs, 2010), como se a valorização dos benefícios desejasse o aumento das privações. Noutro contexto, Krebs (idem) apresenta resultados que atribuem a "um grande número de detentos" – uma parcela dos cerca de 500 ou 600 participantes, com idade média de 30 anos (!), marcados por diferentes trajetórias de exclusão, majoritariamente imigrantes (!), com dificuldades básicas de cognição e comunicação etc. – uma espécie de consagração do museu: "Ele representa, aos olhos de muitos dententos, um lugar central do patrimônio da humanidade, um museu universal, cujo valor [...] irá se destacar dentre as inúmeras atividades que, de modo semelhante, lhes são oferecidas pela Maison d'Arrêt de la Santé". O incoveniente da experiência, neste caso, é nos fazer crer que o museu é mais importante para essas pessoas do que essas pessoas para o museu.
formação de públicos Em sua conferência sobre como construir demandas para as artes, o consultor Alan Brown observa que, nos Estados Unidos, a taxa de atendimento às artes – particularmente, às artes cênicas ou performáticas – vem caindo nos últimos 30 anos. Diante disso, a Doris Duke
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Charitable Foundation (DDCF) – entre outras fundações preocupadas com o investimento que têm feito sobretudo na oferta – decidiu em 2012 conceder "bolsas de residência" a artistas e organizações de arte dispostos a aplicar sua criatividade na ampliação do interesse pelas artes. A iniciativa considera que muitos artistas já trabalham com as comunidades, mas que suas pesquisas, quanto ao problema da construção de demandas, não são necessariamente sistemáticas; ao mesmo tempo, que muitos artistas se eximem desse problema, sem contudo questionar sua própria dependência das fundações, uma vez que seus públicos (ou a falta deles) não podem suntentá-los suficientemente. Assim, ela desafia o papel dos artistas naquilo que, tipicamente, atribui-se ao marketing e à educação. Mas, poderíamos perguntar: Isso não terminaria tirando os artistas do trabalho que lhes é próprio? Ou a construção de demandas poder ser pensada como arte? Para Brown, todavia, as perguntas são outras: Qual deve ser o papel de cada agente (inclusive dos públicos) diante desse problema? Com que conceitos devemos avaliar suas estratégias? E assim por diante. Brown certamente não espera que os artistas façam as vezes do marketing, mas que procurem se endereçar a públicos cada vez mais amplos e diversos. Ao mesmo tempo, entende que é preciso criar uma linguagem comum, capaz de articular diferentes ações: aumentar a venda de ingressos, fidelizar os públicos já conquistados, identificar e engajar demandas latentes, despertar interesse por meio de processos formativos etc.; o que, conforme a metáfora usada por ele, vai desde a colheita dos frutos mais a mão, até a plantação de novos pomares. Noutro contexto, Brown (2012) reconhece haver três ideias muito difundidas quanto à relação que se deve buscar dos públicos à oferta cultural: aprofundar (no caso dos que já são públicos), ampliar (no caso dos que são públicos de um tipo de oferta mas não de outro) e diversificar (no caso dos que, a rigor, ainda não são públicos). Para ele, no entanto, essa ideias ainda estão tipicamente ligadas, enquanto audience development ou audience engagement, às estratégias de "vender ingressos" (para um determinado artista, instituição ou tipo de arte); e não necessariamente às estratégias de "expandir interesse" (para uma "energia artística" pouco familiar), enquanto demand-building – o que ele quer favorecer. Assim, enquanto as primeiras (caracteristicamente mais próximas do marketing) visam resultados mais imediatos, as últimas (mais próximas da educação) os têm a longo prazo. Na conferência, Brown compara as estratégias do tipo demand-building a campanhas publicitárias que buscam estimular demandas primárias (irrestritas a uma só marca ou fabricante), mas entende que o interesse pelas artes costuma se construir em torno de obras ou artistas específicos, portanto, de maneira comparável às campanhas mais recorrentes, que buscam estimular demandas seletivas. Desse modo, nos termos de uma demand-building, o desafio aos artistas resulta
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paradoxal: já que não podem se contentar com um reconhecimento futuro (e aqui não se discute a ideia, inexclusivamente deleuziana, de que toda obra de arte se endereça a um público que ainda não existe), eles devem buscar resultados a curto prazo, porém, empregando "estratégias" cujos resultados se dão a longo prazo. Em suma, devem ser criativos o bastante para emprestar ao marketing algo que, na verdade, seria próprio da educação, ou mesmo da herança familiar. Das cerca de 179 candidaturas ao programa da DDCF, Brown extraiu 11 diferentes tipos de estratégias: (1) estratégias "instrumentais", quando as artes são meios para se alcançar objetivos comunitários ou sociais, não necessariamente artísticos; (2) engajamento comunitário ou co-criação, quando os artistas propõem ou se dispõem a uma colaboração com grupos comunitários; (3) acesso a demandas latentes por meio de um cruzamento das linguagens, quando artistas de diferentes linguagens propõem uma colaboração entre si; (4) novas abordagens curatoriais, quando a curadoria ou direção incorpora contribuições dos públicos, por exemplo, via crowdsourcing; (5) experiências com o cenário (setting), quando se propõem mudanças no ambiente ou lugar das apresentações, diminuindo eventualmente barreiras ao acesso; (6) experiências com o formato, quando se propõem mudanças nos elementos que compõem uma linguagem ou programa, por exemplo, incorporando vídeos a concertos musicais; (7) uso de recursos tecnológicos, enquanto estratégia de divulgação ou mesmo de produção; (8) estratégias de participação, que podem variar de ensaios abertos a works-in-progress; (9) "desmistificação", quando se propõe a desconstrução de percepções negativas em relação às artes, por meio de eventos informais ou de programas educacionais; (10) estratégias de comunicação; (11) estratégias de programação, por exemplo, quando se fazem apresentações que incluem a preparação de alguma refeição – o que, na maioria dos casos, foi proposto de forma combinada pelos candidatos. Neste momento, 10 propostas contempladas se encontram em fase de execução. Para além desse programa, dentre os exemplos de demand-building citados por Brown, está o da criação – por encomenda do departamento de marketing da Malmö Opera, então dirigido por Thomas Wickell – de uma ópera na forma de um blog, visando o público jovem. No blog, uma escritora contratada se apresenta como Erika – com base na personagem homônima da ópera Vanessa (1957), de Samuel Barber – e passa a fazer postagens ficcionais sobre sua vida estudantil e libertina, mas sem fazer referência à obra de Barber ou à Malmö, em uma linguagem próxima à daquele público. O blog fez um sucesso inesperado; foi o que mais cresceu em acesso no período, na Suécia, chegando a 35 mil seguidores. A certa altura, em seguida à estratégia de marketing ser revelada, Erika se mata (suponho que faz uma postagem
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avisando que o faria), tal como na ópera. Os comentários prosseguem incrédulos, levando a instituição a propor uma cerimônia fúnebre presencial, à qual compareceram cerca de 100 pessoas. Quanto aos resultados, registrou-se de fato um acréscimento de frequentadores dessa faixa etária, mas, como se pode notar, a experiência incide sobretudo na percepção que os jovens fazem da ópera, que, neste caso, deixa de lhes parecer algo enfadonho ou "de gente velha". Além disso, o solo fertilizado pelo experimento permite que, depois, outras estratégias comunicacionais possam mais facilmente ser acionadas. Mas a tentativa de envolver os artistas na construção de demandas não só responde a um contexto de queda no atendimento aos espetáculos. Também a ascensão de uma "cultura participativa" tem nisso um papel importante. Segundo Brown, Novak-Leonard & Gilbride (2011), "Este é, talvez, o desafio definitivo de nosso tempo para os artistas, organizações de arte e seus patrocinadores: abraçar uma visão mais holística da ecologia cultural e identificar novas possibilidades para os americanos [sic] se engajarem nas artes". No relatório Getting in on the act para a James Irvine Foundation, Brown e seus colaboradores concebem um "especto de envolvimento dos públicos", dividido em 5 categorias de participação, conforme o grau de "controle criativo" dos participantes: (1) recepção passiva (spectating), quando tão somente se assiste a um espetáculo, por exemplo; (2) "engajamento" (enhanced engagement), quando se participa de discussões antes ou depois do espetáculo, por exemplo; (3) crowd sourcing, quando os públicos contribuem com o espetáculo, aportando ideias, informações etc.; (4) co-criação, quando os públicos se envolvem diretamente na criação do espetáculo, mas sob a condução dos artistas; (5) espectador-como-artista, quando os públicos finalmente se encarregam do espetáculo. Para esses autores, é importante construir uma comunidade de agentes (artistas, produtores, públicos etc.), articulando essas diferentes categorias de participação, assim como os diferentes lugares das práticas (instituições, comunidades, espaços públicos, virtuais ou domésticos etc.), em um mesmo ecossistema participativo. Mas, para eles, é como se todas essas possibilidades estivessem disponíveis à escolha dessas articulações; como se elas dependessem de um simples voluntarismo. Neste ponto, vale a ressalva de Donnat: temos que falar primeiro do dinheiro, isto é, dos limites orçamentários, e das relações de poder entre o que são objetivos da oferta e o que são objetivos da demanda; eventualmente, de uma divisão de orçamento entre essas duas instâncias. (Donnat, 2011: 21) Afinal, pode acontecer de seus objetivos não serem em todo caso conciliáveis. Pode acontecer de o protagonismo dos públicos ser visto pelos ofertantes tradicionais como ameaça, não como esperança. O reconhecimento dos públicos enquanto participantes não necessariamente os reconhece enquanto praticantes ou produtores daquilo
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que, muitas vezes, circula e se organiza ao largo de uma oferta legitimada, de maneira inabarcável pelas categorias estabelecidas. Embora tenha afirmado que não mais se trata de divisar os que participam dos que não participam, mas sim diferentes modalidades de participação, Brown parece menos interessado em levar a termo esse contexto emergente – que, mais do que uma "cultura participativa", chamaria de uma hiperprodução cultural distribuída –, do que em modelar como os ofertantes podem se adaptar a ele, se não curvá-lo para si mesmos, sem o que perderiam terreno em um mercado cada vez mais competitivo. Do mesmo modo, seria preciso discutir se as pesquisas sobre o consumo cultural, para além de servirem ao planejamento de políticas públicas, não funcionam, mais propriamente, enquanto dispositivos de governamentalidade. Em sua conferência, Isaura Botelho repassa uma pesquisa realizada em meados dos anos 2000, sobre o uso do tempo livre e as práticas culturais na Região Metropolitana de São Paulo (Botelho & Fiore, 2005), com objetivo de compreender como a cultura é vivida pela população em geral, de um ponto de vista tanto econômico (a partir de variáveis sociodemográficas) quanto simbólico. A pesquisa fez uma primeira sondagem com 2002 pessoas, cujos resultados confirmaram, tal como em muitos países (França, Estado Unidos, Itália, Espanha, Polônia, México e Portugal), a desigualdade de acesso à chamada cultural tradicional ou erudita, a partir de variáveis como: classe, escolaridade, renda e localização domiciliar. Posteriormente, entrevistou de maneira mais aprofundada cerca de 5% desse universo, com o intuito de perceber quais valores essas pessoas atribuem às suas práticas (quaisquer que elas sejam), bem como os mecanismos de transmissão do gosto e dos hábitos culturais que aí operam. Nesse sentido, a pesquisa considerou não só a relação dessas pessoas com as atividades "legítimas", por assim dizer (exposições, espetáculos, cinema etc.), mas também o uso que elas fazem do tempo livre (associado ou não ao trabalho), seja para o lazer cultural, seja para o lazer puro e simples. Para Botelho & Fiore (idem), a percepção das "desigualdades" deve ser questionada, caso ela se refira exclusivamente à cultura erudita; poderíamos acrescentar: na medida em que isso tende a beneficiar mais as políticas de democratização (o Estado, o governo, as instituições culturais etc.), do que os indivíduos supostamente excluídos. Para além da concentração da oferta (que obviamente tem seu peso na definição das formas de consumo, por exemplo, quanto à distribuição das práticas entre "saídas culturais" e "cultura em domicílio"), outros fatores devem ser considerados: formações e hábitos distintos, a diversidade dos públicos, outras formas de produção, tradições populares, a chamada cultura de massa etc; em benefício de uma política de democracia cultural. Portanto, do ponto de vista da pesquisa, é
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preciso partir de uma "dinâmica de pluralidade (no plano da produção e de suas 'raízes') e de unificação (no plano do controle da distribuição e dos circuitos de consumo), [...] sem preconceitos elitistas ou populistas"; portanto, de uma dinâmica de "democratização", no sentido de uma generalização da distribuição e dos meios de acesso, porém, referidos a essa pluralidade de produções, e não só à oferta legitimada. Essa compreensão se vincula à perspectiva do sociólogo francês Bernard Lahire, para quem "a fronteira entre legitimidade cultural (a chamada 'alta cultura') e ilegitimidade cultural (a 'baixa cultura', o 'simples divertimento') não separa simplesmente as classes sociais, mas distingue diferentes práticas e preferências culturais próprias a cada indivíduo" (Botelho & Fiore, idem); o que significa que indivíduos de uma classe podem se interessar pelas práticas tipicamente atribuídas a outra classe, ainda que, segundo a pesquisa, tais "dissonâncias" (entre gosto e classe) sejam mais prováveis nas classes médias e altas. Além disso, para Lahire, uma cultura "legítima" só poderia ser postulada como tal por aqueles que lhe conferem essa importância; o que serve para denunciá-la enquanto uma concepção autorreferida. Do mesmo modo, só poderia haver "desigualdade de acesso" (a determinada oferta) se houvesse um forte desejo coletivo (por essa mesma oferta) sendo represado; o que não necessariamente se verifica. Assim, muitos são os argumentos que põem em crise a diretiva da democratização. Em todo caso, para Botelho & Fiore (idem), aquele desejo deve ser cultivado em populações mais vastas, ajudando-lhes inclusive a construir uma percepção da desigualdade; o que, para a pesquisa, reitera a importância da educação. Certamente, trata-se de um desejo de outra ordem, pela pluralidade, que tampouco é natural. Mas como ele se forma? Como formá-lo? O recurso à educação não deve sugerir uma simples transferência para o futuro de um problema atual das políticas (entre outros agentes), como se essa transferência fosse a "solução" que lhes coubesse apontar. Desse modo, pode parecer que a formação seria um problema secundário para as políticas. Pode parecer que o desejo ou encargo das políticas é, primordialmente, dedicar-se à oferta. Sem dúvida, trata-se de um problema a ser melhor coordenado entre diferentes agentes. Afinal, também a educação pode funcionar em uma direção democratizante. Nesse sentido, qual deve ser o papel das políticas, por exemplo, em face do esgotamento do dispositivo escolar sob o regime da disciplina e da obrigatoriedade? Do mesmo modo, qual dever se o papel da educação diante do problema da democracia cultural?
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estudar os públicos Ao repassar os estudos que, nos últimos 30 anos, têm sido feitos sobre os públicos na América Latina, o sociólogo Pedro Güell identifica 3 diferentes abordagens: (1) A primeira, mais recorrente, procura divisar os frequentadores dos não frequentadores, a partir de variáveis socioeconômicas, principalmente, de modo a traçar correlações entre capital econômico e capital cultural. Para ele, isso tende a postular, de um lado, que os públicos são portadores de variáveis independentes e, de outro, que a oferta cultural se constitui de bens estritamente objetivos. Desse modo, ela costuma servir à legitimação das políticas institucionais, deixando de lado os efeitos da cultura sobre os indivíduos. (2) A segunda, intermediária, busca identificar as motivações do consumo cultural em sua dinâmica própria, atribuindo aos públicos um papel mais ativo. Para essa abordagem, a oferta não tem um valor absoluto em si mesmo, mas relativo ao uso que se faz dela. Nesse caso, o foco passa da oferta institucional para a subjetividade da demanda, ainda que tal subjetividade seja concebida enquanto algo anterior à oferta. (3) A terceira, menos recorrente, procura traçar relações entre a experiência na esfera cultural e a construção da subjetividade noutros âmbitos. Nesse caso, o consumo é, ele próprio, um fator dessa construção, dessa subjetivação, de modo que os públicos são pensados, em parte, como efeitos de uma interação com a oferta cultural. No entanto, para Güell, todas elas, em diferentes proporções, tendem a pensar que, entre os indivíduos e a oferta, existiria uma relação de exterioridade; que as obras culturais teriam significados próprios, independentes das instituições e dos públicos; que o campo cultural seria autônomo em relação às dimensões econômicas, políticas, tecnológicas etc.; que os públicos e as dinâmicas culturais não seriam produtos históricos, e que portanto as relações entre as subjetividades e as ofertas não se dariam a longo prazo; que os públicos só poderiam ser criativos coletivamente, enquanto as ofertas e os artistas o seriam individualmente. Por certo, ainda segundo Güell, tanto as noções do que seja arte ou patrimônio, quanto as noções do que seja identidade são hoje em dia muito cambiantes; o que a relativa estabilidade das estatísticas (que, segundo Foucault, surgem como ciência do Estado) nem sempre consegue perceber. Assim, como estudar os públicos? Conforme Güell, as experiências culturais surgem das práticas reais, isto é, das interações concretas entre as subjetividades e as lógicas (dos sujeitos, das instituições e dos bens culturais) nos espaços e territórios culturais, cujos resultados não podem ser completamente antecipados. Logo, as práticas não são simplesmente um conjunto de coisas que as pessoas fazem, determinado por diferenças de classe, gênero, idade ou localização domiciliar, mas
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justamente os "efeitos" das interações. São esses efeitos que devem ser estudados, em atenção ao modo como indivíduos e grupos se constroem a si mesmos, combinando elementos de diferentes sistemas simbólicos. Interessados em compreender o lugar que os bens culturais (em sentido próprio) ocupam hoje para os chilenos, em sua organização tanto estrutural quanto subjetiva, Güell & Peters (2012: 13) afirmam que "[...] os objetos culturais mudaram seu modo de produção, organização e circulação, mas não seu caráter: eles continuam a ser tomados como veículos de formação de identidade [...]. A grande diferença é sua autonomização enquanto objetos, em relação a seus contextos sociais de origem, assim como sua liberação para serem usados por indivíduos no jogo das combinações com que constroem e expressam suas identidades". Por certo, essa centralidade das preferências individuais desenha novas linhas de diferenciação, que ainda são administradas por regras de inclusão e exclusão, seja o dinheiro, o direito ou as condições para participar das instâncias de deliberação pública, em um contexto de "capitalismo dos signos". Quanto a isso, Güell & Peters (idem: 14) reconhecem um triplo processo em curso: (1) de objetivação e fragmentação dos objetos culturais; (2) de mercantilização, politização e "cidadanização" de sua produção e circulação; e (3) de individualização das significações e combinações. Eis o que pode explicar uma aparente contradição no fato de que vivemos em uma sociedade de "consumo cultural", cujo horizonte é a "democracia cultural". Tanto o caráter de "bem" quanto o de "cultural" dos bens culturais "[...] estão a serviço de uma sociedade que deve criar mecanismos impessoais de reprodução e integração econômica, política e social, mas, também, a serviço dos indivíduos que requerem construir suas identidades mediante livres combinações de objetos simbólicos". Logo, é preciso estudar as práticas não só de maneira segmentada, mas em sua interdependência com as transformações da sociedade, isto é, na trama social e histórica que as produz e transforma. Em sua conferência sobre os públicos na América Latina, Ana Rosas Mantecón também reconhece que as estatísticas não conseguem apanhar a revolução na participação cultural que, de certo modo, acompanha o surgimento das novas tecnologias de comunicação. Segundo os dados que apresentou, 40% das pessoas aí têm acesso à Internet, enquanto outros 70% têm celular. De fato, essas tecnologias – que, como se sabe, não necessariamente demovem seus usuários de atuar nas ruas, mas certamente refazem as relações entre o público e o privado – potencializaram as dinâmicas culturais internas a cada país (com destaque para o mercado da pirataria), permitindo não só novas formas de acesso à produção cultural, mas uma espécie de contrafluxo (ou de fluxo transversal) em relação à oferta dos países centrais, sobretudo, dos Estados Unidos, que ainda é dominante. Assim, para
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Mantecón, uma questão chave à compreensão das práticas nesse contexto diz respeito às relações entre participação cultural e desigualdade social. Por certo, quando se fala em América Latina, fala-se de uma gama de países com graus de desenvolvimento e acesso à produção muito diversos. Em todo caso, de um modo geral, os públicos aí não são mais somente espectadores; o que trouxe desafios que as políticas culturais têm se mostrado pouco preparadas para enfrentar. Para ela, se o caso não é mais simplesmente possibilitar o acesso, mas sim oferecer todos os instrumentos que permitam a relação com os bens culturais e entre os consumidores, articulando uma miríade de práticas e experiências, temos uma agenda pendente. Mas o que significa ser (ou se tornar) público? Mantecón observa que há pouca pequisa sobre a formação dos públicos, que por isso tendem a ser pensados como pré-existentes à oferta, quando na verdade se formam de muitas maneiras através das ofertas. Neste ponto, ela se refere a um grupo de 30 ou 40 mulheres (policiais, varredoras de rua, vizinhas, comerciantes, indígenas migrantes, garçonetes, vigilantes de espaços culturais e estudantes, moradoras ou trabalhadoras do centro histórico da Cidade do México, que nesse momento participam de um projeto de cidadania cultural chamado Corazón Seguro), que decidiu sair em protesto pelas ruas da cidade, após terem ouvido de um diretor de museu que elas não poderiam entrar de graça na instituição, já que tinham dinheiro para gastar com cigarros. Assim, o consumo cultural pode se vincular à partipação social e à construção de cidadania. Certamente, o protesto endereçado à instituição também significa uma vontade de participar do que ela oferece. Mas se os públicos não pré-existem à oferta é porque também lhe respondem de maneira imprevista, inclusive, de uma maneira que a instituição talvez não tenha desejado. Repassando as pesquisas que, sob sua direção, têm sido feitas no Instituto de Arte Educação da Universidade de Artes de Zurique, Carmen Mörsch é categórica em afirmar que "não fazemos pesquisa de públicos (visitors studies)". A ideia que intitulou sua conferência, a de que "não existe o que chamamos de visitante", refere-se a um artigo de Judith Mastai (2007), no qual a educadora canadense justifica sua recusa em considerar os públicos como simples visitantes, consumidores ou clientes, portadores de desejos e necessidades previamente identificados, os quais a instituição teria de suprir para se mostrar publicamente comprometida. Tal recusa, na verdade, questiona a confusão que se estabeleceu – a partir dos anos 1980, com a redução do investimento público na manutenção dos museus de arte, particularmente, na América do Norte e Europa – entre "museu educacional" e "museu amigável". Segundo Mastai, "a necessidade de entender melhor a experiência do público surgiu da necessidade de melhor servir o cliente [...]. Porém, se a prática do educador
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incorpora o paradigma do marketing, a abordagem educacional começa e termina seguindo as trilhas do desejo do visitante, buscando encontrar conteúdos atraentes, utilizando temas cotidianos, populares ou 'acessíveis' para vender a experiência do museu". Para ela, os visitantes não podem, como os clientes, ter sempre razão; o que de nenhum modo se desinteressa pelas questões, narrativas e inseguranças pessoais que as pessoas podem trazer para os museus. Por sua vez, Mörsch aponta 3 diferentes objeções aos visitor studies: (1) Objeções políticas, que se endereçam ao critério de financiamento dos projetos artístico-educacionais, disseminado nos países anglo-germânicos da Europa (ao que ela preferiu se limitar), de que é preciso demonstrar a utilidade desses projetos para os públicos, tipicamente, nos termos de alguma transformação social. O ponto é que, para os públicos serem "transformados", no sentido de "melhorados" ou "enriquecidos", é preciso concebê-los como deficitários, justamente, daquilo que os projetos têm a lhes oferecer. Nesse sentido, há para Mörsch uma ênfase demasiada nos públicos enquanto um conceito, isto é, enquanto uma projeção. (2) Objeções históricas, a respeito da vinculação daquele tipo de pesquisa às perspectivas coloniais, que se interessam, pelo menos desde a Exposição Universal de 1851 (exemplo trazido por Mörsch), por controlar ou definir normas de comportamento para os públicos, nesse caso, para as classes populares. (3) Objeções epistemológicas, quanto à orientação cada vez mais mercadológica dessas pesquisas (o que novamente se refere ao artigo de Mastai), que redundam na definição dos públicos enquanto "alvo", e não como parte atuante da sociedade contemporânea; o que para Mörsch deveria ser considerado tanto em relação aos públicos quanto aos museus. Contudo, quando Mastai afirma que "não existe o público", ela na verdade quer sublinhar a necessidade de o educador identificar múltiplos pontos de entrada (aos recuros educacionais do museu) para visitantes de todo tipo, com base em diferenças de idade, gênero, raça, níveis de conhecimento sobre a história, sobre a história da arte etc.; enfim, para os diferentes segmentos do público (crianças na escola, crianças fora da escola, crianças na pré-escola, crianças com suas famílias, adultos com suas famílias, adultos somente, adultos que visitam durante o dia, adultos que trabalham durante o dia, jovens adultos, adultos solteiros, adolescentes, idosos, aqueles que sabem um bocado de arte, aqueles que sabem muito pouco etc.), entendidos enquanto grupos com interesses particulares. O ponto é que, se as subjetividades se constroem por meio das práticas, isto é, se os públicos são, nesse sentido, efeitos de uma interação com as ofertas, ou ainda, se os públicos surgem em um trama complexa de elementos interdependentes, então, nem tais interesses podem ser
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completamente antecipados (como já disse Güell), nem os públicos podem se resumir a grupos de pessoas. São certamente uma instituição social específica, mas que pode se referir tanto à estranheza de uma destinação incerta, a uma relação entre desconhecidos, ou mesmo com o desconhecido, à qual no entanto se pode pertencer; quanto a um espaço de circulação em que muitas referências, contextos e tempos se entrecruzam no decorrer do tempo – o que estaria no lugar da antiga noção de "esfera pública". (Warner, 2005: 65-124) *** Talvez o Encontro tenha discutido, principalmente, os públicos em sentido empírico, isto é, no sentido daquilo que pode ser perfilado, alvejado, mensurado, governado etc.; mais do que em sentido discursivo, quando significam um espaço de circulação material e imaginário, um "conglomerado de alteridades"; também mais do que no sentido de sujeitos históricos ou formações emergentes (povo, massa, multidão, manifestantes etc.), portadores de um imaginário político muitas vezes dissidente, na medida em que surgem à maneira de um acontecimento, de um mundo por vir, de uma "heterogeneidade radical". Assim, mesmo a "pluralidade" dos públicos enquanto "grupos com interesses particulares" pode limitá-los a entidades pré-existentes, esquadrinháveis por categorias sistêmicas e anti-históricas; o que tipicamente ocorre quando todos os públicos são divididos entre "público agendado" e "público espontâneo", mas que também perpassa, em menor grau, o contraponto dos "públicos no plural" ao "público no singular". Enfim, para que tal limitação não seja naturalizada, seria preciso que também as concepções de públicos fossem consideradas no plural, de modo interdependente. Certamente, são concepções em sentido praxiológico, que se fazem das práticas e de seus praticantes (o caso não é mesmo reduzir as pessoas, nem mesmo os indivíduos), assim como dos discursos e das instituições. Em todo caso, algo da intitulada "programação entranhada" (um conjunto de proposições artísticas paralelas ou transversais ao Encontro, com a intenção de problematizar as ideias de "audiência, evento e público") pode ter se aproximado desse horizonte. É o que podemos dizer, por exemplo, desse cartaz (trabalho do artista Vitor Cesar), disponibilizado no foyer do Teatro, no qual se lê, em letras vazadas: "sempre algo entre nós". Ou ainda, da denominada "relatoria aforística" (trabalho do escritor e mediador cultural Flávio Aquistapace), que processava as conferências em tempo real, produzindo não só aforismos, mas também truísmos, manchetes, slogans etc. (não sem alguma ironia), que em seguida apareciam em grandes painéis distribuídos pelo Sesc Vila Mariana. Também, do chamado "telefone com fio" (trabalho do artista Eduardo Salvino), instalado na Praça de Eventos, que
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recolhia e disponibilizava depoimentos dos participantes do Encontro, a respeito das relações entre o público e o privado, entre outras questões. Todas essas proposições, cada qual a seu modo, remetem-nos a certa objetividade das mediações intersubjetivas; a uma instância de circulação reflexiva das conferências, ou ainda, à temporalidade em que elas atuam; a um contexto de interação, de referenciação e de autoimplicação entre textos e seus leitores (em sentido abrangente), dentro e fora das conferências, ou ainda, de dentro para fora delas e vice-versa; a uma conversa entre posicionamentos que se caracterizam uns em relação aos outros etc. De certa maneira, é também o que este relato terá pretendido (embora por meandros mais descritivos e analíticos do que artísticos), na medida em que opera como uma reinserção do Encontro, tempos depois, a partir de uma leitura cruzada das conferências. A propósito, uma discussão sobre a Internet e as redes socias, sobre o espaço e os agentes que isso inaugura, é certamente sua principal lacuna.
Cayo Honorato, janeiro de 2014.
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