Revista de Catequese

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Ano 36 • N. 142 - Julho/Dezembro - 2013 • ISSN 1676-2630 Publicação semestral de formação para catequistas e agentes de pastoral

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UNISAL CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO DE SÃO PAULO Unidade São Paulo - Campus PIO XI

REVISTA DE CATEQUESE Chanceler Edson Donizetti Castilho Reitor Ronaldo Zacharias Pró-Reitora Acadêmica Romane Fortes Santos Bernardo Diretora da Unidade São Paulo - Campus Pio XI Rosana Manzini Coordenador do Curso de Teologia Maurício Tadeu Miranda EQUIPE EDITORIAL Diretor Maurício Tadeu Miranda Editor Renato Tarcísio de Moraes Rocha Consultor Luiz Alves de Lima Jornalista Responsável Hilário Passero - MTb 025.676 Revisão Editorial Américo Vasconcelos, Edson Cardoso Colman, Giovane de Souza, João Gabriel Galhoti Pinto, José Antenor Velho, Leandro Brum Pinheiro Tradução para o Inglês Margaret A. Guider Leandro Brum Pinheiro Capa Pedro André Pinto Júnior

Revista de Catequese / Publicação do Centro Universitário Salesiano de São Paulo – Unidade São Paulo – Campus Pio XI e Instituto Teológico Pio XI. – ano 1, nº 0, (1977) - . — São Paulo: UNISAL, 1977 – v. ; 23 cm Semestral ISBN 1676-2630 I Catequese. II Educação Religiosa. III Evangelização. IV Educação de fé. V Pastoral. VI Ensino Religioso Escolar. CDU 268 CDD 268 Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Miriam Ambrosio Silva – CRB 5750/8

Diagramação e Editoração Eletrônica Renata Lima - AN Gráfica CONSELHO EDITORIAL Elza Helena de Abreu UNISAL - São Paulo Emílio Alberich Universidade Pontifícia Salesiana - Espanha Enrique Garcia Ahumada Universidad Cat. Silva Enriques - Santiago do Chile

Redação, Administração e Permuta Unidade São Paulo - Campus Pio XI Rua Pio XI, 1.100 - Alto da Lapa 05060-001 - São Paulo - Brasil Fone: 0xx11 - 3649-0200 (biblioteca - à tarde) Contato: revistacatequese@pio.unisal.br Edição: catequese.editor@pio.unisal.br

Fernando Altemeyer Júnior PUC-SP/UNISAL-SP Israel José Nery Associação de Educadores Cristãos - São Paulo Luiz Eduardo Pinheiro Baronto São Judas - São Paulo Luiz Alves de Lima UNISAL - São Paulo Maurício Tadeu Miranda UNISAL - São Paulo

Impressão e Acabamento: AN GRÁFICA LTDA Rua Alamoique, 73 - Freg do Ó 02807-100 São Paulo - SP Fone: 0xx11 - 3975-9262 e-mail: angrafica@uol.com.br

Ronaldo Zacharias UNISAL - São Paulo Wolfgang Gruen Inspetoria Salesiana de Belo Horizonte

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Assinatura anual: R$ 60,00 • Assinatura para o exterior: US$ 55,00 Número avulso: R$ 30,00


ÍNDICE EDITORIAL 5

Editorial - Renato Tarcísio.......................................................................................................................................

PERSPECTIVAS Jornada Mundial da Juventude: experiência e promoção da ‘cultura do encontro’ – Alexandre Awi Mello..........

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Sexualidade e juventude: por uma teologia moral da sedução – José A. Trasferetti e Ronaldo Zacharias...... 23 Sexualidade e juventude: perspectivas e desafios – Ademildo Gomes............................................................ 29 Liturgia e juventude – Gabriel Frade.................................................................................................................... 41 A renovação da Igreja, o Papa Francisco e a catequese – Francisco Catão.................................................... 49 Secretaria paroquial: lugar de encontro e proximidade para a missão – Denilson Geraldo............................... 60

EXPERIÊNCIAS A dimensão catequética dos salmos – Maria Ivaneide Bezerra Rodrigues..................................................... 68 Catequese e crise da transmissão - Denis Villepelet......................................................................................... 79 Catequese e liturgia: duas ‘irmãs gêmeas’ inseparáveis – Humberto Robson de Carvalho................................. 87 Temas catequético-pastorais debatidos no Sínodo de 2012 II – Luiz Alves de Lima........................................ 94 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Fundamento teológico da Nova Evangelização - Dom Rino Fisichella........................................................................... Fé e conhecimento - Dom Francisco Moraglia............................................................................................................... Nova Evangelização, Igreja e mudanças de cenários – Dom Santiago Silva Retamales................................................. O anúncio do Evangelho nas alegrias e nos dramas da vida – Dom Filipe Santoro....................................................... Catequese aos adultos: instrumento de evangelização - Dom Stanislaw Gadecki......................................................... Os santos evangelizam - Dom Ângelo Amato.................................................................................................................. Diálogo com as culturas locais - Dom Adriano Langa....................................................................................................... Urgência do anúncio querigmático na evangelização - Kiko de Argüello......................................................................... Contribuição da Vida Consagrada feminina à evangelização - Madre Ivonne Reungoat, fma........................................ Catequese e a Nova Evangelização - Pe. Renato de Guzman, sdb.................................................................................

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A radicalidade do segmento de Cristo: a perda que é puro lucro - Solange Maria do Carmo................................. 108 Juventude, educação na fé e vocação: ensaios e perspectivas - Sival Soares............................................... 114

DOCUMENTOS Catequese e Bíblia: um diálogo para a animação bíblica da catequese............................................................. 122 Compreender, viver e anunciar a Palavra de Deus: mensagem do I Congresso Latino-Americano de ABP e VI Encontro regional da FEBIC-LAC..................................................................................................................... 124 Mensagem aos (às) catequistas do Brasil: saudação aos catequistas por ocasião do Dia Nacional do Catequista - Dom Jacinto Bergmann............................................................................................................................ 128

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O tema principal do último número da Revista de Catequese (141) foi o Ano da Fé, iniciado em 11 de outubro de 2012 e encerrado em 24 de novembro de 2013. Além da espiritualidade e das contribuições teológico-pastorais deste Ano tão especial para a Igreja, 2013 pode ser também caracterizado como o Ano da Juventude, a começar pela Campanha da Fraternidade realizada no Brasil, cujo tema foi ‘Fraternidade e Juventude’ e o lema “Eis-me aqui, envia-me” (Is 6, 8). Justamente por isso, a equipe editorial da Revista de Catequese dedica o presente número (142) à reflexão sobre a ‘Juventude’. No Ano da Juventude, um acontecimento marcante foi a JMJ, ocorrida no Rio de Janeiro. A presença e a condução do Papa Francisco deram um colorido especial ao evento que reuniu milhões de jovens, provenientes de todos os cantos do mundo. Tratou-se, como afirma o P. Alexandre Awi em seu artigo, de uma verdadeira experiência e promoção da ‘cultura do encontro’. De fato, o P. Alexandre, em função do serviço por ele assumido, o de secretário direto do Papa, pôde, proximamente, constatar tal cultura não somente entre os jovens, mas principalmente nas palavras e nos significativos gestos de Francisco. Um versículo do Evangelho de Mateus ficou ecoando após a Santa Missa de encerramento da Jornada Mundial: “Ide, façam discípulos a todas as nações” (28, 19). As palavras de ordem do Papa Francisco proferidas em sua homília (ide, sem medo, para servir) não se destinam somente aos jovens, mas a todos os envolvidos na chamada Nova Evangelização, como acentuou o último Sínodo dos Bispos, ocorrido em outubro de 2012 (conferir os temas catequético-pastorais na seção ‘Experiências’). De modo especial, essas palavras possuem um significado muito próprio para os educadores da fé, sobretudo os que se ocupam da juventude. Considerados os desafios pastorais relativos à educação juvenil, ganha pertinência a temática da sexualidade (trabalhada nos artigos ‘Moral da Sedução’ – do P. Trasferetti e P. Ronaldo - e ‘Sexualidade e Juventude’ – do P. Ademildo) e da liturgia (tratada no artigo ‘Liturgia e Juventude’ do Prof. Gabriel Frade), especialmente no ano em que se comemora o cinquentenário da Constituição Sacrosanctum Concilium. Se por um lado, as rápidas transformações socioculturais desafiam a atividade educativa e a vida da Igreja como um todo, por outro, possibilitam o surgimento de novas perspectivas à luz da fé, como pontua o Prof. Catão em seu artigo. Desejo, juntamente com a equipe editorial, uma boa leitura e reflexão a todos!

Renato Tarcisio de Moraes Rocha Editor São Paulo, ano 36, n. 142, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE Experiência e promoção da ‘cultura do encontro’ WORLD YOUTH DAY The experience and promotion of the ‘culture of encounter’ Alexandre Awi Mello*

RESUMO: Durante a Jornada Mundial da Juventude (JMJ Rio 2013), o Papa Francisco utilizou sistematicamente a expressão ‘cultura do encontro’ como algo conhecido de todos. A formulação, embora não seja difícil de entender, é inovadora. O autor encontra nas reflexões da V Conferência do CELAM uma possível fonte para a compreensão desse conceito teológico-pastoral. Para além de um ideal com forte potencial cultural, defende que a aludida cultura foi uma experiência concreta vivida na preparação e na realização da JMJ. Como pessoa próxima ao Papa, tanto em Aparecida quanto no Rio de Janeiro, o autor fundamenta a reflexão em sua experiência pessoal em ambos os acontecimentos eclesiais e nos respectivos documentos finais. Palavras-chave: Jornada Mundial da Juventude, comunhão, cultura do encontro. ABSTRACT: During World Youth Day (WYD Rio 2013) Francis Pope systematically used the term ‘culture of encounter’ as an expression understood by everyone. The formulation, while easy enough to understand, is nonetheless innovative. The author finds in the reflections of the Fifth Conference of CELAM a possible source for understanding the origin of this pastoral-theological concept. In addition to being an ideal that has significant potential culturally speaking, he argues that the culture alluded to was an experience that was concretely lived out during the preparation and realization of WYD. As a person who was in proximity to the Pope, both in Aparecida as well as Rio de Janeiro, the author’s reflections are based on his personal experience of the ecclesial events that occurred as well as their respective final documents. Keywords: World Youth Day, fellowship, culture of encounter.

INTRODUÇÃO A Igreja, no Brasil e no mundo, ainda está decantando a forte experiência da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), realizada no Rio de Janeiro. O homem moderno, acostumado com a velocidade da internet e com avalanches de informações, imagens e impressões por segundo, parece ter perdido a sensibilidade para

saborear a presença e as mensagens de Deus nos acontecimentos da vida; custa-lhe ler os sinais dos tempos1 e perceber o Deus que se manifesta na história; sente dificuldade de parar para perceber o Deus que se revela em “acontecimentos e palavras intimamente relacionados”.2 O teólogo e o catequeta, porém, não podem abster-se dessa reflexão. José Kentenich, fundador do Movimento de Schoenstatt, criou um

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Sacerdote do Instituto Secular Padres de Schoenstatt, mestre em Teologia pela Philosophisch-Theologische Hochschule Vallendar (Alemanha). Professor de Teologia Sistemática no UNISAL – Centro Universitário Salesiano de São Paulo – Campus Pio XI e na Faculdade de São Bento (São Paulo). Artigo submetido à avaliação em 11.08.2013 e aprovado para publicação em 20.08.2013. 1

Cf. CONSTITUIÇÃO Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo de hoje. In: CONCÍLIO VATICANO II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: Paulinas, 2007, n. 4. 2

Cf. CONSTITUIÇÃO Dei Verbum sobre a revelação divina. In: CONCÍLIO VATICANO II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: Paulinas, 2007, n. 2.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS neologismo em alemão muito certeiro para descrever esse processo: nachkosten, que etimologicamente significa saborear, degustar (kosten) posteriormente (nach). É tempo de nachkosten e o presente artigo quer colaborar nesta tarefa. A JMJ foi um kairós, um tempo da graça. E esta chegou a nós por meio de incontáveis encontros: com Cristo, com pessoas, com lugares... Passado o mar de graças e encontros da JMJ, é hora de saborear as experiências, perceber seus frutos e projetar suas consequências. Também a teologia e a pastoral catequética devem se perguntar sobre os significados, os aprendizados e os legados da JMJ Rio 2013. As respostas são seguramente muitas e variadas. Cada pessoa ou cada grupo experimentou a JMJ de uma forma diferente. Ninguém pode ter a pretensão de esgotar ou limitar seu significado. Atrevo-me, contudo, a partir da minha experiência pessoal, a indicar uma dimensão da JMJ que considero valiosa e que merece, portanto, uma reflexão teológico-pastoral adequada: a JMJ como experiência de autêntica ‘cultura do encontro’. Durante seus discursos no Brasil, o Papa Francisco utilizou algumas vezes essa expressão, como se fosse um termo conhecido por todos. Contudo essa formulação era, até então, pouco comum. A expressão tem chamado a atenção dos meios de comunicação.3 O presente artigo busca entender sua origem e significado, além de mostrar que, mais que uma ideia, ‘cultura do encontro’ foi o que se experimentou na preparação e realização da JMJ. Este conceito teológico-pastoral, acunhado pelo Papa, descreve bem a vivência e a mensagem da JMJ, descreve ainda o segredo do carisma do Papa Francisco. Por que sua personalidade tem atraído tanto? Parte da resposta pode ser encontrada no seu estilo, ou ainda melhor, nessa cultura que ele encarna e promove: a cultura do diálogo, da amizade, da proximidade, da solidariedade, em uma palavra: do encontro.

1 JMJ, UMA EXPERIÊNCIA DE ENCONTRO Antes da Jornada formularam-se suspeitas em relação ao valor pedagógico e catequético da mesma, e alguns sentiram certa falta de comunhão eclesial na condução da JMJ. Tratava-se de um projeto de toda a

Igreja ou só de algumas dioceses específicas? Seria um simples evento de massas, um ‘oba-oba’ com toque religioso, um carnaval com ritmo cristão, uma festa passageira, ou poder-se-ia esperar algum efeito catequético e eclesial duradouro? Valeria a pena investir tantas forças em algo tão efêmero, que tinha grande possibilidade de ser infecundo para a experiência de fé dos jovens? Eram perguntas válidas e necessárias. Parece-me, contudo, que hoje já podemos dar algumas respostas a tais interrogantes, por mais que não sejam certamente unânimes. Mesmo consciente de que todo ponto de vista é sempre a ‘vista a partir de um ponto’, formulo aqui a minha percepção. Meu ponto de vista se caracterizou pela proximidade ao Comitê Organizador Local (COL), durante a longa preparação da JMJ, e ao Papa Francisco durante a realização da mesma. Talvez outros tenham tido experiências diferentes. Posso não ter enxergado bem e toda complementação será bem-vinda. Por isso mesmo vale a pena lançar o debate e iniciar a reflexão. A teologia e a pastoral catequética agradecerão a todos os que se envolverem neste processo e se perguntarem sobre sua experiência pessoal e comunitária na JMJ. Um processo que envolve milhões de pessoas – contabilizaram-se 3,5 milhões na missa final em Copacabana! – não tem como ser igual para todos nem isento de falhas. Pode-se, porém, perceber linhas preponderantes, experiências dominantes e lições comuns que valem para todos. Atrevo-me assim a afirmar que a JMJ foi uma ‘profunda experiência de encontro’. E o que fica da JMJ é um profundo convite a continuar cultivando experiências semelhantes no nosso dia a dia, ou seja, transformar o nosso entorno por meio de encontros verdadeiros, capazes de gerar uma autêntica ‘cultura do encontro’. A JMJ foi uma experiência de encontro. Em primeiro lugar, ‘encontro com Jesus’; pensemos nos longos e emocionantes momentos de silêncio que envolveram os milhões de jovens presentes em Copacabana. Encontro ‘entre os povos’, como se notava na variedade das bandeiras dos 175 países presentes, nos diálogos alegres e atrapalhados entre irmãos de línguas diferentes, na catolicidade de uma Igreja una e multicultural. Encontro entre ‘peregrinos e a população’ do Rio de Janeiro, que nas ruas e nas casas esbanjou carinho e acolhimento. Encontro ainda entre as pastorais e movimentos eclesiais, como o que pude vivenciar em

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Cf. Notícias nos sites das seguintes instituições: CBN, Canção Nova, Agencia Ecclesia, AICA e, inclusive, em páginas não religiosas, por exemplo, LUZ, Rodrigo. A PEC 99 e a cultura do encontro. Disponível em: http://dutorrodrigoluz.blogspot.com.br/ 2013/08/a-pec-99-e-cultura-do-encontro.html. Acesso: 18 ago. 2013. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 6 - 22, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS uma missão comum entre jovens de Schoenstatt e da Renovação Carismática nas praias e favelas do Rio durante a Semana Missionária, anteriormente à JMJ. Essas experiências de encontro foram confirmadas o tempo todo pela presença, os gestos e as palavras do Papa Francisco durante a JMJ. O encontro com o Papa cativou o Brasil, deixando marcas profundas em católicos e não católicos. Um jogo de palavras em alemão indica que ‘dons são tarefas’ (Gaben sind Aufgaben). Os dons recebidos de Cristo, dos irmãos e do Papa naqueles dias se tornaram uma tarefa: fazer dessas experiências uma ‘missão cultural’ por meio da ‘promoção de uma cultura do encontro’. Esta foi a clara mensagem de Francisco na JMJ.

2 NAS SENDAS DO ENCONTRO DE APARECIDA A interpretação teológico-pastoral do fenômeno religioso chamado JMJ Rio 2013 não se encontra somente na própria Jornada nem se esgota nela; tem raízes na caminhada recente da Igreja latino-americana. Em especial, os fundamentos teológicos da expressão ‘cultura do encontro’ devem, a meu juízo, ser buscados no ‘Encontro de Aparecida’, ou melhor, na V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho (CELAM), realizada no Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, em maio de 2007. A íntima relação entre a JMJ e o Documento de Aparecida4 foi sugerida recentemente pelo próprio porta-voz da Santa Sé, Pe. Frederico Lombardi. Segundo ele, o Documento de Aparecida oferece as chaves para se entender os temas relacionados à JMJ.5 Não deve surpreender o fato de que o Papa Francisco se sinta tão identificado com a Conferência de Aparecida. Durante sua visita ao Brasil, além de fazer questão de visitar o Santuário Nacional, fez mais de cinquenta referências a Nossa Senhora Aparecida e à Conferência do CELAM ali realizada. Afinal, ele a viveu intensamente nada menos que como presidente da

Comissão de Redação do documento final desse acontecimento fundamental para a condução e inspiração atual da Igreja latino-americana e caribenha. Foi lá também que nos conhecemos pessoalmente, visto que era um dos dois secretários da mencionada comissão. Não tenho dúvidas de que foi devido a esse encontro que fui convidado para secretariá-lo durante sua visita ao Brasil. Posso testemunhar que o Papa Francisco está profundamente marcado pela V Conferência e sua mensagem. Aparecida está na memória e no coração do novo Papa, de tal forma que um dos seus colaboradores afirmou em um artigo recente que o espírito de Francisco foi “forjado em Aparecida”.6 De fato, em nossas conversas, o Papa mencionou em várias ocasiões a Conferência do CELAM: “Tudo isso me faz lembrar Aparecida”, disse-me em um momento. “Mas não se preocupe, pois não vamos ficar trabalhando novamente até às duas da manhã”, concluiu com seu toque de humor característico. Ele se alegrou muito por voltar ao Santuário Nacional e recordar os momentos ali vividos, e se impressionou outra vez com o grande afluxo de peregrinos a esse lugar. Desde sua eleição, é possível perceber que ele tem citado, direta ou indiretamente, as conclusões de Aparecida em suas homilias e pronunciamentos. Inclusive ele tem dado de lembrança o Documento de Aparecida para autoridades que o visitam, como as presidentes Cristina Kirchner e Dilma Rousseff. De fato, no dia de sua chegada ao Brasil, quando ele me apresentou a esta última, no Palácio Guanabara, a única referência que fez foi minha colaboração na elaboração do Documento de Aparecida, despertando na Presidenta a lembrança de que tinha recebido das mãos do próprio Pontífice o mencionado texto. Na sua homilia no Santuário de Aparecida, o próprio Papa Francisco dá testemunho de como ficou marcado pela experiência da V Conferência, na qual pôde darse conta “de um fato belíssimo: ver como os Bispos –

4 Cf. CONFERÊNCIA GERAL DO ESPICOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM). Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. Brasília: CNBB, 2007. 5

“A Jornada e o Documento de Aparecida opõem-se a cultura de desperdício e exclusão, sendo a JMJ uma demonstração latente da cultura de inclusão e encontro, de respeito pela criação, mostrado na diversidade social e cultural presente entre os jovens participantes do evento que acolhe o Papa Francisco.” Cf. GAUDIUMPRESS. JMJ: o documento de Aparecida. Disponível em: http://www.gaudiumpress.org/content/48998-JMJ-e-o-Documento-de-Aparecida##ixzz2cRcuXOhP. Acesso em: 18 ago. 2013. 6 Assim escreveu recentemente ao jornal La Nación Dom Victor Fernandez, um dos teólogos que atuou como perito junto à Comissão de Redação do documento de Aparecida. Cf. FERNÁNDEZ, Víctor Manuel. El espíritu de Francisco forjado en Aparecida. In: D’AMICO, Hector (org.). Francisco: viaje al corazón de los jóvenes. Buenos Aires: La Nación, 2013, p. 38.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS que trabalharam sobre o tema do encontro com Cristo, discipulado e missão – eram animados, acompanhados e, em certo sentido, inspirados pelos milhares de peregrinos que vinham diariamente confiar a sua vida a Nossa Senhora”.7 Por isso, segundo o convencimento do Papa, “pode-se dizer que o Documento de Aparecida nasceu justamente” de uma experiência de encontro, a saber, do “encontro entre os trabalhos dos Pastores e a fé simples dos romeiros, sob a proteção maternal de Maria”.8 O mesmo caminho ele deseja que a Igreja percorra: “É de Maria que se aprende o verdadeiro discipulado. E, por isso, a Igreja sai em missão sempre na esteira de Maria”.9 Assim se entende porque o encontro do Papa Francisco com os brasileiros começou em Aparecida e porque ele fez questão de mencionar Nossa Senhora Aparecida em vários momentos da sua visita ao Brasil, dando, inclusive, longas explicações teológicopastorais sobre a mesma. Falando aos bispos do Brasil, Francisco fez uma bela interpretação do acontecimento histórico do encontro da imagem nas águas do Rio Paraíba do Sul como “chave de leitura para a missão da Igreja”.10 O Papa convida a imitar as atitudes dos pescadores: abertura ao mistério, confiança, simplicidade, missionariedade, entre outras. Os pescadores foram tomados pela fascinação do encontro com a imagem de Nossa Senhora e isso os impulsionou a anunciar o que encontraram, os motivou a ser missionários: A missão nasce precisamente dessa fascinação divina, dessa maravilha do encontro. Falamos de missão, de Igreja missionária. Penso nos pescadores que chamam seus vizinhos para verem o mistério da Virgem. Sem a simplicidade do seu comportamento, a nossa missão está fadada ao fracasso. A Igreja tem sempre a necessidade urgente de não desaprender a lição de Aparecida; não a pode esquecer.11

Convém recordar que a devoção a Nossa Senhora Aparecida não nasce de uma aparição, mas de um encontro: o encontro de uma imagem nas águas de um rio, o encontro de alguns pescadores com Maria. Segundo Francisco, esse encontro se torna paradigmático para a compreensão da missão eclesial.

3 ENCONTRO: IDEIA-CHAVE NO DOCUMENTO DE APARECIDA Não só o encontro com Maria é mencionado no Documento de Aparecida, mas com facilidade se reconhece em toda a mensagem da V Conferência a centralidade do termo ‘encontro’ como uma das chaves de compreensão da mesma. Os bispos convidam os fiéis a um ‘encontro pessoal com Jesus Cristo’, indicam ‘lugares’ onde particularmente se dá esse encontro (um deles é justamente o encontro com Nossa Senhora) e apontam ‘caminhos’ para que o encontro com Cristo se projete numa ‘rede de encontros’ com os demais, gerando vida para os nossos povos. Parece-me que na origem deste termo está uma afirmação basilar do pontificado de Bento XVI, já presente logo no início de sua primeira carta encíclica: “No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”.12 O próprio documento de Aparecida cita explicitamente, mais de uma vez e em momentos-chave, este texto da Deus caritas est.13 O discurso inaugural de Bento XVI foi considerado como programático para o desenvolvimento da V Conferência. Também ali ele se referiu à centralidade do encontro com Cristo. Destacou ainda o valor desse encontro para a formação da cultura do nosso continente. Procurou relacionar explicitamente o encontro com Cristo

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FRANCISCO. Homilia do Santo Padre na Basílica do Santuário Nacional de Aparecida (24.07.2013). In: ______. Palavras do Papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 22. 8

Ibid.

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Ibid.

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FRANCISCO. Encontro com o episcopado brasileiro (27.07.2013). In: ______. Palavras do Papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 87. 11

Ibid., p. 90.

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BENTO XVI. Deus Caritas est. Carta Encíclica sobre o amor cristão (25.12.2005). São Paulo: Paulinas, 2007, n. 1, grifo nosso. 13

Cf. CONFERÊNCIA GERAL DO ESPICOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM), op. cit., nn. 12, 243. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 6 - 22, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS com a formação de uma cultura marcada por esse encontro. Numa passagem que gerou certa polêmica na época, Bento afirmou que “Cristo era o Salvador esperado ansiosamente” 14 pelas culturas précolombianas e que do encontro delas com Cristo surgiu a cultura latino-americana.15 O encontro com Cristo forma uma cultura que sai ao encontro dos demais, pois, como Bento XVI deixa claro, “o encontro com Deus é, em si mesmo e como tal, encontro com os irmãos, um ato de convocação, de unificação e de responsabilidade pelo outro e pelos demais”.16 Uma cultura assim formada percebe o valor de uma ‘opção preferencial pelos pobres’, que – nas palavras do Papa – “está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecernos com a sua pobreza (cf. 2 Cor 8, 9)”.17 Reafirma assim que “a evangelização sempre esteve unida à promoção humana e à autêntica libertação cristã”,18 o que já tinha enfatizado também em sua encíclica Deus Caritas est: “Amor a Deus e amor ao próximo fundem-se num todo: no mais pequenino, encontramos o próprio Jesus e, em Jesus, encontramos Deus”.19 Tudo isso encontrou eco na assembleia da V Conferência e a palavra ‘encontro’ foi a escolhida para expressar a experiência de união com Deus e dos homens entre si. Teologicamente se poderia considerar mais adequado falar de ‘comunhão’ ou de ‘aliança’, já que estas palavras têm mais amplo fundamento bíblico e mais longa tradição teológica. Contudo, sem deixar de utilizá-las, a Conferência deu ênfase ao termo ‘encontro’. Se na III Conferência do CELAM, em Puebla, a relação com Deus e entre os homens foi mais enfaticamente definida como

de ‘comunhão e participação’, em Aparecida preferiu-se falar simplesmente de ‘encontro’. O caminho do encontro foi trilhado, em primeiro lugar, pelo próprio Cristo: “Jesus saiu ao encontro de pessoas em situações muito diferentes: homens e mulheres, pobres e ricos, judeus e estrangeiros, justos e pecadores... convidando-os a segui-lo”.20 Seu convite ao encontro com ele permanece vigente hoje, sendo, porém, mediado pela ação amorosa e missionária dos seus discípulos: “Hoje, [Jesus] segue convidando a encontrar n’Ele o amor do Pai. Por isto mesmo, o discípulo missionário há de ser um homem ou uma mulher que torna visível o amor misericordioso do Pai, especialmente aos pobres e pecadores”.21 Desta forma, o dom do encontro com Deus quer ser partilhado e anunciado, como expressa o seguinte texto do documento conclusivo: Quando cresce no cristão a consciência de se pertencer a Cristo, em razão da gratuidade e alegria que produz, cresce também o ímpeto de comunicar a todos o dom desse encontro. A missão não se limita a um programa ou projeto, mas em compartilhar a experiência do acontecimento do encontro com Cristo, testemunhá-lo e anunciá-lo de pessoa a pessoa, de comunidade a comunidade e da Igreja a todos os confins do mundo (cf. At 1, 8).22

A maior alegria do cristão é ter encontrado Jesus e, por isso, deseja comunicar essa alegria aos homens e mulheres do nosso tempo.23 Neste sentido os bispos destacam que “os esforços pastorais orientados para o encontro com Jesus Cristo vivo deram e continuam

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BENTO XVI. Sessão inaugural dos trabalhos da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe (13.05.2007). In: CONFERÊNCIA GERAL DO ESPICOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM). Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. Brasília: CNBB, 2007, p. 268. 15

A polêmica se deu mais pela afirmação seguinte, que parecia indicar desconsideração pelo conflitante processo de inculturação da fé na colonização da América: “Com efeito, o anúncio de Jesus e do seu Evangelho não supôs, em qualquer momento, uma alienação das culturas pré-colombianas, nem foi uma imposição de uma cultura alheia.” (Ibid., p. 268). 16

Ibid., p. 273.

17

Ibid. Cf. Ibid., n. 146.

18

Ibid., p. 274.

19

BENTO XVI, Deus Caritas est, n. 15.

20

CONFERÊNCIA GERAL DO ESPICOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM), op. cit., n. 147.

21

Ibid. “O encontro com Jesus Cristo através dos pobres é uma dimensão constitutiva de nossa fé em Jesus Cristo. Da contemplação do rosto sofredor de Cristo neles148 e do encontro com Ele nos aflitos e marginalizados, cuja imensa dignidade Ele mesmo nos revela, surge nossa opção por eles. A mesma união a Jesus Cristo é a que nos faz amigos dos pobres e solidários com seu destino” (Ibid., n. 257). 22

Ibid., n. 145.

23

Cf. Ibid., n. 32.

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São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 6 - 22, jul. / dez. 2013.


PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS dando frutos”.24 Estes são frutos de comunhão, ou seja, de novos encontros: desde o encontro entre os próprios bispos25 até o encontro com os mais pobres. De fato, o encontro com Cristo impulsiona o compromisso missionário, levando a comunidade a sair “ao encontro dos afastados, interessa-se por sua situação, a fim de reencantá-los com a Igreja e convidá-los a novamente se envolverem com ela”.26 O Documento de Aparecida dedica uma longa reflexão ao ‘caminho de formação’ dos discípulos missionários. Novamente aqui, a perspectiva do encontro aparece como central. O discípulo missionário deve estar animado por uma ‘espiritualidade trinitária do encontro com Jesus Cristo’. A Trindade, o Deus-Amor, é o fundamento teológico de toda unidade e comunhão na diversidade. Desta forma, todo encontro humano é reflexo do encontro trinitário das Pessoas divinas. A experiência do encontro com o Deus Uno e Trino leva o homem a superar o egoísmo para se encontrar plenamente no serviço para com o outro. 27 Assim, o caminho da iniciação cristã parte da busca existencial do ser humano por um encontro mais profundo consigo, que só se sacia plenamente no encontro com Jesus. Este o conduz ao encontro com os demais. Daí que a formação do discípulo missionário desemboca necessariamente no encontro dos irmãos, seja na vida fraterna dentro da comunidade eclesial, seja na solidariedade para com os necessitados ou na irradiação missionária.28 O documento de Aparecida indica ainda os diversos lugares onde se dá esse encontro com Cristo: a Igreja, a Palavra de Deus, a liturgia, os sacramentos, a oração, o próximo (em especial os mais pobres e aflitos), a piedade popular, Maria29 e os santos.30

Para os bispos em Aparecida não passa despercebida a importância desses lugares e desses encontros para a ‘formação da cultura’. Os valores cristãos formam a cultura e são influenciados por ela; quanto mais marcada por essas experiências de encontro, mais fraterna e solidária será a cultura na qual os cristãos estão inseridos. Desta forma, a V Conferência valoriza as diversas culturas presentes no continente americano e reforça a consciência da íntima relação entre a fé a cultura: A fé só é adequadamente professada, entendida e vivida quando penetra profundamente no substrato cultural de um povo. Deste modo, toda a importância da cultura para a evangelização aparece, pois a salvação dada por Jesus Cristo deve ser luz e força [...] para as questões presentes nas culturas respectivas dos povos. O encontro da fé com as culturas purificaas, permite que desenvolvam suas virtualidades, enriquece-as, pois todas elas procuram em sua última instância a verdade, que é Cristo (Jo 14, 6). 31

Na ‘relação fé-cultura’, têm lugar privilegiado os estabelecimentos de educação cristã, pois são lugares de assimilação sistemática e crítica da cultura, mediante um encontro vivo e vital com o patrimônio cultural.32 Eles devem promover “uma educação que ofereça às crianças, aos jovens e aos adultos o encontro com os valores culturais do próprio país, descobrindo ou integrando neles a dimensão religiosa e transcendente”.33 Portanto, continua o documento, “a meta que a escola católica se propõe com relação às crianças e jovens, é a de conduzir ao encontro com Jesus Cristo vivo [...] e, dessa forma, à vivência da aliança com Deus e com os homens”.34

24

CONFERÊNCIA GERAL DO ESPICOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM), op. cit., n. 99.

25

Cf. Ibid., n. 181.

26

Ibid., n. 226 d.

27

Cf. Ibid., n. 240.

28

Cf. Ibid., n. 278.

29

“Maria Santíssima, a Virgem pura e sem mancha é para nós escola de fé destinada a nos conduzir e a nos fortalecer no caminho que conduz ao encontro com o Criador do céu e da terra. O Papa veio a Aparecida com viva alegria para nos dizer em primeiro lugar: Permaneçam na escola de Maria” (Ibid., n. 270). 30

Cf. Ibid., nn. 246-275.

31

Ibid., n. 477.

32

Cf. Ibid., n. 329.

33

Ibid., n. 334.

34

Ibid., n. 336. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 6 - 22, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS Da mesma forma, também a pastoral universitária deve promover “um encontro pessoal e comprometido com Jesus Cristo e múltiplas iniciativas solidárias e missionárias”, além da “presença próxima e dialogante com membros de outras universidades públicas e centros de estudo”.35 A ‘conversão pastoral’, à qual Aparecida conclama nossas comunidades eclesiais, também é definida como um ‘sair ao encontro do outro’; ela implica a passagem de “uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária [...] fazendo com que a Igreja se manifeste como uma mãe que nos sai ao encontro, uma casa acolhedora, uma escola permanente de comunhão missionária”.36 O Papa Francisco em muitas ocasiões tem insistido nesta urgência. Assim, embora o documento não use a expressão ‘cultura do encontro’, podemos afirmar que está indicando claramente nessa direção. O n. 394 fala de uma “atitude permanente de encontro, irmandade e serviço”, que se manifesta em “opções e gestos visíveis”. Toda cultura está justamente marcada por atitudes e comportamentos socialmente assumidos. Se estes são de encontro, irmandade e serviço, assim será a cultura gerada por eles, ou seja, uma cultura de encontro, irmandade e serviço. O texto diz: “De nossa fé em Cristo nasce também a solidariedade como atitude permanente de encontro, irmandade e serviço. Ela há de se manifestar em opções e gestos visíveis, principalmente na defesa da vida e dos direitos dos mais vulneráveis e excluídos”.37 O n. 540 é ainda mais explícito ao propor a ‘promoção de uma cultura marcada pelo encontro’: Os discípulos e missionários de Cristo promovem uma cultura do compartilhar em todos os níveis, em contraposição à cultura dominante de acumulação egoísta, assumindo com seriedade a virtude da pobreza como estilo de vida sóbrio para ir ao encontro e ajudar as necessidades dos irmãos que vivem na indigência.38

As grandes cidades, lugares de liberdade e oportunidades, são espaços privilegiados para a promoção desta ‘cultura da partilha’:

Nelas, as pessoas tem a possibilidade de conhecer mais pessoas, interagir e conviver com elas. Nas cidades é possível experimentar vínculos de fraternidade, solidariedade e universalidade. Nelas, o ser humano é constantemente chamado a caminhar sempre mais ao encontro do outro, conviver com o diferente, aceitá-lo e ser aceito por ele.39

Por tudo isso, a V Conferência termina implorando um novo Pentecostes, que leve a Igreja a sair ao encontro das pessoas para levá-las ao encontro com Cristo, com elas mesmas e com os irmãos: Necessitamos sair ao encontro das pessoas, das famílias, das comunidades e dos povos para lhes comunicar e compartilhar o dom do encontro com Cristo, que tem preenchido nossas vidas de ‘sentido’, de verdade e de amor, de alegria e de esperança! Não podemos ficar tranquilos em espera passiva em nossos templos, mas é imperativo ir em todas as direções.40

Todas essas reflexões da V Conferência podem ser consideradas como uma base teológica adequada para o desenvolvimento da expressão ‘cultura do encontro’, tão usada pelo Papa Francisco. O encontro com Deus e com os demais gera uma cultura de encontro que marca todos os âmbitos de relacionamento da pessoa.

4 CULTURA DO ENCONTRO NOS DISCURSOS DE FRANCISCO ANTES DA JMJ É difícil precisar desde quando a ‘promoção de uma cultura do encontro’ tem acompanhado o ministério pastoral de Jorge Mario Bergoglio.41 Quiçá se possa afirmar que, funcional e espontaneamente, já está presente há anos e faz parte do seu ‘estilo’, da sua forma de condução e pastoreio. Contudo, mais recentemente começou a usar explicitamente a expressão e difundi-la quase que programaticamente como uma ‘categoria

35

CONFERÊNCIA GERAL DO ESPICOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM), op. cit., n. 343.

36

Ibid., n. 370.

37

Ibid., n. 394.

38

Ibid., n. 540.

39

Ibid., n. 514.

40

Ibid., n. 548. Cf. Ibid., n. 549.

41

Tive acesso, por exemplo, a um manuscrito não editado, que me foi enviado pelo próprio Card. Bergoglio, com o título

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS pastoral’ tal, como a propôs aos bispos da coordenação do CELAM, por ocasião da JMJ Rio 2013. A expressão já pode ser encontrada em uma homilia do então Cardeal Arcebispo de Buenos Aires, por ocasião do encerramento do ‘Encontro de Pastoral Urbana’ da Região de Buenos Aires, em 2 de setembro de 2012. Ali ele utilizou esse conceito com matizes muito semelhantes aos utilizados durante a JMJ. Começa falando do Deus próximo e sua atitude de proximidade: Nosso Deus é um Deus próximo. E é curioso: Ele curava, fazia o bem. São Pedro disse bem claro: “Passou fazendo o bem e curando”. Jesus não fez proselitismo: acompanhou. E as conversões que conseguia eram precisamente por essa sua atitude de acompanhar, ensinar, escutar [...]. O Deus próximo, próximo a nossa carne. O Deus do encontro, que sai ao encontro de seu povo.42

Em seguida dá a impressão de que o Cardeal está apresentando uma expressão nova, pouco conhecida, cujo uso parece ter ‘emprestado’ da diocese de São Justo, onde supostamente ela teria sido acunhada. Esta é sua proposta: O Deus que – vou usar uma palavra linda da diocese de São Justo –: o Deus que põe seu povo em situação de encontro. E com essa proximidade, com esse caminhar, cria essa cultura do encontro que nos faz irmãos, nos faz filhos, e não sócios de uma ONG ou prosélitos de uma multinacional. Proximidade. Essa é a proposta. […] Sim à proximidade. A caminhar com o povo de Deus. A ter ternura especialmente com os pecadores, com os que estão mais afastados, e saber que Deus vive no meio deles.43

Deus põe seu povo em situação de encontro. Portanto, a iniciativa do encontro é claramente de Deus, mas essa proximidade divina, essa ação de Deus

próxima ao homem cria uma cultura do encontro que faz aos homens irmãos, filhos, membros da Igreja e não de uma ONG. Mais recentemente, já como Papa Francisco, na vigília de Pentecostes, em 18 de maio de 2013, junto aos movimentos eclesiais, Bergoglio apresentou o tema de forma clara e falou sobre o porquê considera importante a categoria ‘encontro’. Aqui novamente as ideias são muito semelhantes às utilizadas recentemente no Rio de Janeiro. Depois de definir sua experiência vocacional aos 17 anos como uma experiência de encontro com o Senhor, mediada pelo encontro com um padre desconhecido no sacramento da confissão, Francisco insiste que “a Igreja deve sair de si mesma”, ir ao encontro das “periferias existenciais”.44 Neste movimento de saída, pode ser que ela se acidente, mas o Papa prefere ‘mil vezes’ isso a uma Igreja ‘doente por fechamento!’ Ele recorda o livro do Apocalipse que apresenta Jesus como aquele que está à porta e chama, que bate para entrar no coração (cf. Ap 3, 20). Mas inverte o texto e questiona: Quantas vezes Jesus está dentro e bate à porta para sair, ir para fora, mas não O deixamos sair, por causa das nossas seguranças, por estarmos muitas vezes fechados em estruturas caducas, que servem apenas para nos tornar escravos, e não filhos de Deus que são livres? Nesta ‘saída’, é importante ir ao encontro de… [...].45

Neste ponto, o Papa interrompe seu raciocínio e quase como que abrindo um parêntese, explica porque considera importante a palavra encontro: “esta palavra, para mim, é muito importante: o encontro com os outros. Por quê? Porque a fé é um encontro com Jesus, e nós devemos fazer o mesmo que Jesus: encontrar os outros”.46 Em seguida, Francisco coloca o tema em um contexto mais amplo, o cultural:

Propuesta de Aparecida para la Pastoral de la Iglesia en Argentina, com data de 15.06.2009, no qual o então Arcebispo de Buenos Aires desenvolve toda a sua argumentação em torno à categoria do encontro. Ali afirma que ‘a vida plena que propõe Aparecida se ilumina a partir da categoria de encontro’. E justifica as razões: primeiro porque esta é ‘a categoria antropológica mais utilizada no documento’ e porque nosso pecado principal como povo (argentino) é o dos ‘desencontros’. O apreço do Cardeal pela categoria encontro vem, portanto, de longa data! 42

Cf. BERGOGLIO, Jorge Mario. La cultura del encuentro. Disponível em: http://www.es.catholic.net/temacontrovertido/326/1592/ articulo.php?id=55830. Acesso em 19 jul. 2013, tradução nossa. 43

Ibid., grifo nosso.

44

FRANCISCO. Vigília de Pentecostes com os movimentos eclesiais (18.05.2013). Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/ francesco/speeches/2013/may/documents/papa-francesco_20130518_veglia-pentecoste_po.html Acesso em: 18 ago. 2013. 45

Ibid.

46

Ibid. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 6 - 22, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS Vivemos numa cultura do desencontro, uma cultura da fragmentação, uma cultura na qual o que não me serve deito fora, a cultura das escórias. A propósito, convidovos a pensar – e é parte da crise – nos idosos, que são a sabedoria de um povo, nas crianças... a cultura das escórias. Nós, pelo contrário, devemos ir ao encontro e devemos criar, com a nossa fé, uma ‘cultura do encontro’, uma cultura da amizade, uma cultura onde encontramos irmãos, onde podemos conversar mesmo com aqueles que pensam diversamente de nós, mesmo com quantos possuem outra crença, que não têm a mesma fé. Todos têm algo em comum conosco: são imagens de Deus, são filhos de Deus. Ir ao encontro de todos, sem negociar a nossa filiação eclesial.47

Sua linha de raciocínio apresenta, portanto, três níveis: primeiro, o encontro com Jesus, segundo, o encontro com os demais (motivado pelo encontro com Jesus e pelo exemplo dado por Ele) e, terceiro, a formação de uma cultura marcada pela atitude de proximidade e encontro. A ‘cultura do encontro’ é a antítese da ‘cultura do desencontro’ ou do ‘descarte’, da mesma forma que a ‘cultura da vida’ é a antítese da ‘cultura da morte’, tantas vezes mencionada por João Paulo II e Bento XVI. Na verdade, a ‘cultura do encontro’ é uma dimensão da ‘cultura da vida’, uma dimensão que, segundo o Papa Bergoglio, deve ser especialmente acentuada nos tempos de hoje.

5 FRANCISCO E A CULTURA DO ENCONTRO NA JMJ Certamente, a JMJ foi para Francisco, uma oportunidade privilegiada para o anúncio, difusão e, em particular, para a vivência dessa ‘cultura do encontro’, que a sociedade e a Igreja de hoje tanto necessitam. A exemplo de outros Papas que deixaram impulsos marcantes e programáticos, agora Francisco promove a ‘cultura do encontro’, uma ‘categoria pastoral’ que condensa uma série de valores que devem caracterizar o agir cristão e a sociedade que este quer formar. Convém mencionar que, antes de pregar sobre o encontro, Francisco, de fato, se encontrou com os participantes da JMJ Rio 2013! Seguindo o princípio de que

‘as palavras convencem, mas são os exemplos que arrastam’, o Papa deu testemunho daquilo que anunciou. Quem acompanhou a visita do Bispo de Roma ao Rio, seja pessoalmente, seja pelos meios de comunicação social, não tem dificuldades para confirmar essa afirmação. Em entrevista transmitida em rede nacional logo após sua partida, ele explicou porque manteve os vidros abertos do carro utilizado no Brasil e porque escolheu um papamóvel aberto dos lados: “Eu não poderia vir ver este povo que tem um coração tão grande, por trás de uma caixa de vidro. E nesse automóvel, quando ando pela rua, baixo o vidro. Para poder estender a mão, cumprimentar as pessoas. [...] Comunicação pela metade não faz bem. [...] vim visitar gente, e quero tratá-las como gente. Tocando-as”.48 No fundo, queria comunicar-se, encontrar-se de coração a coração com as pessoas que veio visitar. No Brasil, Francisco distribuiu sorrisos, abraços, beijos, apertos de mão, e procurou o mais que pôde fazerse próximo, ir ao encontro das pessoas. Mesmo que isso implicasse sujar os sapatos na grama encharcada do aeroporto de São José dos Campos para saudar o povo que, atrás da cerca, o esperava horas a fio debaixo de chuva e frio, como pude testemunhar pessoalmente. Nas vezes que o acompanhei no papamóvel pude perceber de perto seu profundo ‘desejo de encontro’; doía-lhe não poder abraçar nem dar atenção a todos. Ao mesmo tempo, as pessoas estavam ‘sedentas de encontro’ e faziam de tudo para ‘se aproximarem’ do Papa por meio dos gritos e os pedidos de bênção, além das muitas cartas, terços, camisetas, bandeiras e tantas outras coisas arremessadas para dentro do papamóvel. Francisco procurava corresponder a tantos gestos de carinho e proximidade. Seus gestos foram claros e unívocos. Também o foram suas palavras. Ainda no voo de Roma ao Rio, disse aos jornalistas que o acompanhavam que estava especialmente preocupado com os jovens desempregados, porque “aos poucos fomo-nos acostumando a esta cultura do descarte”. No voo de ida o Papa não concedeu nenhuma entrevista, prometendo fazê-la no voo de volta. Contudo, nas poucas palavras que pronunciou, tentou resumir o intuito de sua visita ao Brasil, dizendo: “Temos de acabar com esse hábito de descartar. Ao contrário, cultura da inclusão, cultura do encontro, fazer um esforço para integrar a todos na sociedade. Isto é de certo modo o sentido que eu quero dar a esta visita aos jovens, aos jovens na sociedade”.49

47 FRANCISCO. Vigília de Pentecostes com os movimentos eclesiais (18.05.2013). Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/ francesco/speeches/2013/may/documents/papa-francesco_20130518_veglia-pentecoste_po.html Acesso em: 18 ago. 2013. 48 FRANCISCO. Entrevista a Gerson Camarotti (29.07.2013). Disponível em: http://www.comunidadeucraniana.com.br/noticia/ arquivos/2013-entrevista-papa.pdf. Acesso em: 30 jul. 2013. 49 FRANCISCO. Encontro com os jornalistas durante o voo papal (22.07.2013). Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/ francesco/speeches/2013/july/documents/papa-francesco_20130722_gmg-intervista-volo-rio_po.html. Acesso em: 23 jul. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS Não seria exagerado afirmar, portanto, que o sentido da visita do Papa aos jovens na JMJ foi a promoção de uma ‘cultura da inclusão e do encontro’. Certamente fez mais que isso, mas conscientemente esta era uma das metas perseguidas por ele. É exatamente a mesma mensagem que repetiu no final da entrevista a Gerson Camarotti, quando este lhe pediu que deixasse uma mensagem para os brasileiros, católico ou não. O seu ‘refrão’ não foi outro: “Creio que é preciso estimular uma cultura do encontro, em todo o mundo”.50 E menciona a importância de que as religiões se unam no trabalho por aquilo que é humano e no serviço ao próximo, superando os egoísmos, ou seja, “dentro dos valores de sua própria fé, trabalhar pelo próximo. E nos encontrarmos todos para trabalhar pelos outros. [...] Mas, sobretudo hoje em dia, urge a proximidade. Sair de si mesmo para solucionar os tremendos problemas mundiais que existem”.51 A ‘cultura do encontro’ precisa ser cultivada não só pelas religiões, mas por toda a sociedade. Diante desta, representada pela classe dirigente do Brasil no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Francisco falou do tema. Primeiro, valorizou ‘a originalidade dinâmica’ que “caracteriza a cultura brasileira, com a sua extraordinária capacidade para integrar elementos diversos”. 52 Abordou, assim, a delicada questão da integração entre fé e cultura, ou, em outras palavras, da evangelização inculturada e a inculturação do evangelho, como acunhou a Conferência de Santo Domingo.53 O Papa 50

FRANCISCO. Entrevista a Gerson Camarotti (29.07.2013), op. cit.

51

Ibid.

usou expressões mais simples, mas apontava para isso. Disse que a visão integral do homem e da vida, própria do povo brasileiro, “recebeu também a seiva do Evangelho, a fé em Jesus Cristo, no amor de Deus e a fraternidade com o próximo”.54 Assim se fecundou “um processo cultural fiel à identidade brasileira e, ao mesmo tempo, um processo construtor de um futuro melhor para todos”.55 Francisco fez questão de caracterizar esse fenômeno como “um processo que faz crescer a humanização integral e a cultura do encontro e do relacionamento”,56 reforçando que “este é o modo cristão de promover o bem comum, a alegria de viver”, pois nesse encontro entre fé e cultura convergem “a dimensão religiosa com os diversos aspectos da cultura humana”, já que “o cristianismo combina transcendência e encarnação”.57 Essa cultura do encontro, capaz de integrar fé e cultura deve projetar-se numa atitude de responsabilidade social, ou seja, no encontro responsável com as novas gerações,58 que se expressa também no compromisso com a política, a economia e a construção de uma sociedade marcada pelos valores do evangelho. A visão humanista da economia e da política,59 estimulada pelo Papa, não é outra coisa que a realização da ‘cultura do encontro’ nesses âmbitos da vida, pois se expressa na participação de todos, fraternidade e solidariedade (manifestações de encontro), evitando a segregação e a discriminação (formas de desencontro).

52

FRANCISCO. Encontro com a classe dirigente do Brasil (27.07.2013). In: ______. Palavras do Papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 78. 53

“A inculturação é vista como um movimento de penetração de toda cultura até seu núcleo pelo evangelho, de modo que o que surge é uma cultura cristã. O evangelho torna-se, então, a base de pensar, viver, julgar, agir. A fé (cristã) se faz cultura (cristã).” (LIBÂNIO, J. B. Prefácio. In: CELAM. Santo Domingo: conclusões. 7. ed. Brasília: CNBB, 1992). Cf. Ibid., n. 298ss. 54

FRANCISCO. Encontro com a classe dirigente do Brasil (27.07.2013), op. cit., p. 79.

55

Ibid.

56

Ibid., grifo nosso.

57

Ibid., p. 79.

58

Este tema é mencionado algumas vezes pelo Papa em sua visita, por exemplo, no Angelus de 26 de julho, dia dos avós: “Como é importante o encontro e o diálogo entre as gerações, principalmente dentro da família. [...] Esta relação, este diálogo entre as gerações é um tesouro que deve ser conservado e alimentado!”. Cf. FRANCISCO. Angelus (26.07.2013). Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/francesco/angelus/2013/documents/papa-francesco_angelus_20130726_gmg-rio_po.html. Acesso em: 27 jul. 2013. 59

“O futuro exige de nós também uma visão humanista da economia e uma política que realize cada vez mais e melhor a participação das pessoas, evite o elitismo e erradique a pobreza. Que a ninguém falte o necessário, e que se garanta a todos dignidade, fraternidade e solidariedade: este é o caminho proposto.” (FRANCISCO. Encontro com a classe dirigente do Brasil (27.07.2013), op. cit., p. 80). São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 6 - 22, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS Francisco aponta ainda o ‘diálogo construtivo’, outra atitude própria de uma cultura do encontro: “Um país cresce quando suas diversas riquezas culturais dialogam de maneira construtiva: a cultura popular, a cultura universitária, a juvenil, a artística, a tecnológica, a cultura econômica, a cultura da família e dos meios de comunicação”.60 Dessa forma, o diálogo deve chegar a ser uma atitude cultural nas relações entre os diferentes grupos sociais, pois, para Francisco, “o único modo para que uma pessoa, uma família, uma sociedade cresça; a única maneira para que a vida dos povos avance é a cultura do encontro!”.61 O Papa explica, em seguida, o que entende por esta cultura do encontro e descreve a atitude aberta, ‘despreconceituada’ e humilde que a caracteriza: Uma cultura na qual todo mundo tem algo bom com que contribuir, e todos podem receber algo bom em troca. O outro sempre tem algo que me dar quando sabemos nos aproximar dele com atitude aberta e disponível, sem preconceitos. Esta atitude aberta, disponível e sem preconceitos, eu a definiria como ‘humildade social’, que é a que favorece o diálogo.62

Assim, a cultura do encontro favorece o diálogo, o respeito e a mútua fecundação entre as religiões e as culturas. Pois, segundo o Papa, “ou se aposta no diálogo e se aposta na cultura do encontro, ou todos perdemos”.63 Falando aos bispos, o Papa apresentou de forma sugestiva o fundamento antropológico-teológico de uma cultura pautada pelo encontro: o homem só se possui a si mesmo quando está em referência a outro, seja ele Deus ou o próximo. “Não admite a autorreferencialidade: ou refere-se a Jesus Cristo ou refere-se às pessoas a quem deve levar o anúncio dele. Sujeito que se transcende. Sujeito projetado para o encontro: o encontro com o Mestre (que nos unge discípulos) e o encontro com os homens

que esperam o anúncio”.64 Daí sua insistência em falar das ‘periferias existenciais’ às quais deve tender o discípulo missionário, pois este “vive em tensão para as periferias... incluindo as da eternidade no encontro com Jesus Cristo”.65 Ele não deve ter medo de sair do centro. Afinal, “o discípulo missionário é um ‘descentrado’: o centro é Jesus Cristo, que convoca e envia. O discípulo é enviado para as periferias existenciais”.66 No encontro com os bispos do Brasil, o Santo Padre também abordou temas semelhantes. Falou da colegialidade e solidariedade entre os bispos como mais uma expressão da cultura do encontro, agora no interior da própria Igreja. Para falar da comunhão eclesial, usou a imagem da ‘teia’ que é tecida com “paciência e perseverança, que vai gradualmente ‘aproximando os pontos’ para permitir uma cobertura cada vez mais ampla e densa”, pois “um cobertor só com poucos fios de lã não aquece”.67 Recorda que na Conferência de Aparecida se cultivou essa atitude colegial capaz de congregar a diversidade de ideias e de experiências para pôr em movimento uma dinâmica vital. Insiste, contudo, que todo encontro – também o que se dá nas conferências episcopais – tem sua origem no encontro com o Cristo Ressuscitado. A cultura do encontro, proposta por Francisco, não é uma mera filosofia ou simples experiência humana; ela é sempre ‘teologal e cristológica’. “A Conferência Episcopal é justamente um espaço vital para permitir tal permuta de testemunhos sobre os encontros com o Ressuscitado, no norte, no sul, no oeste...”.68 Assim se valoriza o elemento local e regional, fazendo crescer a autêntica colegialidade e solidariedade. Na missa conclusiva em Copacabana, o Papa recorda aos jovens que na JMJ eles “puderam fazer a bela experiência de encontrar Jesus e de encontrá-lo juntos, sentindo a alegria da fé”.69 E os incentiva a levar a outros a ‘experiência deste encontro’. Convida-os,

60

FRANCISCO. Encontro com a classe dirigente do Brasil (27.07.2013), op. cit., p. 82.

61

Ibid., p. 83.

62

Ibid.

63

Ibid.

64

FRANCISCO. Encontro com a comissão de coordenação do CELAM (28.07.2013). In: ______. Palavras do Papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 143. 65

Ibid., pp. 143-144.

66

Ibid., p. 144.

67

FRANCISCO. Encontro com o episcopado brasileiro (27.07.2013), op. cit., p. 102.

68

Ibid., p. 103.

69

FRANCISCO. Santa Missa para a XXVIII Jornada Mundial da Juventude (28.07.2013). In: ______. Palavras do Papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013, pp. 121-122.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS porém, a fazê-lo em comunhão, a ser apóstolos em comunidade. Segundo Francisco, “o discípulo de Cristo não é uma pessoa isolada em uma espiritualidade intimista, mas uma pessoa em comunidade para se dar aos outros”.70 O encontro entre os discípulos os leva a serem uma comunidade de missionários que proporciona a outros a experiência do encontro com Cristo e com a própria comunidade eclesial, encontro este que se prolonga inclusive na comunhão dos santos: Jesus não disse: ‘Vai’, mas ‘Ide’: somos enviados juntos. Queridos jovens, sintam a companhia de toda a Igreja e também a comunhão dos santos nesta missão. Quando juntos enfrentamos os desafios, então somos fortes, descobrimos recursos que pensávamos que não tínhamos. Jesus não chamou os Apóstolos para que vivessem isolados; chamou-os para formar um grupo, uma comunidade.71

Ao teorizar sobre o tema, diante dos bispos do CELAM, Francisco falou de duas categorias pastorais: a proximidade e o encontro. A meu ver, se trata de duas caras de uma mesma moeda, duas facetas da ‘cultura do encontro’. A proximidade leva ao encontro e o encontro gera proximidade. O Papa formula da seguinte forma: “Em Aparecida, verificam-se de forma relevante duas categorias pastorais, que surgem da própria originalidade do Evangelho e nos podem também servir de orientação para avaliar o modo como vivemos eclesialmente o discipulado missionário: a proximidade e o encontro”.72 Em seguida Francisco fundamenta teologicamente essas categorias a partir da história de salvação do Deus-conosco, que sempre encontra seu povo, cuja imanência atingiu seu ápice na encarnação do Verbo: “Nenhuma das duas [categorias] é nova, mas constituem a modalidade em que Deus se revelou na história. É o ‘Deus próximo’ do seu povo, proximidade que atinge o ponto máximo na encarnação. É o Deus que sai ao encontro do seu povo”.73

Coerente com esta reflexão, o Papa pede que não se ignore “a ‘revolução da ternura’, que provocou a encarnação do Verbo”74 e convida a Igreja da América Latina e do Caribe a evitar uma pastoral “distante”, meramente disciplinar ou organizacional, “sem proximidade, sem ternura, nem carinho”, justamente porque esta não é capaz de “atingir o encontro: encontro com Jesus Cristo, encontro com os irmãos”, já que só a “proximidade cria comunhão e pertença, dá lugar ao encontro. A proximidade toma forma de diálogo e cria uma cultura do encontro”.75 Falando ainda aos bispos, sacerdotes, religiosos e seminaristas, na Catedral do Rio, Francisco recorda-lhes três aspectos da sua vocação: foram ‘chamados por Jesus’, ‘chamados para evangelizar’ e ‘chamados a promover uma cultura do encontro’. O chamado de Jesus a permanecer com Ele, a “abraçá-lo em nosso encontro cotidiano com Ele na eucaristia, em nossa vida de oração” e adoração, nos leva a “reconhecê-lo presente e abraçá-lo nas pessoas mais necessitadas.” Pois, “o ‘permanecer’ com Cristo”, continua o Papa, “não significa isolar-se, mas um permanecer para ir ao encontro dos outros”76 e para servir a Cristo nos pobres, pois – citando a Madre Teresa de Calcutá – “é nas ‘favelas’, nos ‘cantegriles’, nas ‘villas miseria’ onde se deve ir buscar e servir a Cristo. Devemos ir até ele como o sacerdote se aproxima do altar: com alegria (Mother Instructions, I, p. 80)”.77 Daí a importância de “sair pela porta para buscar e encontrar”, de pensar a “pastoral a partir da periferia, começando pelos que estão mais afastados”.78 Nessa homilia o Papa insiste, mais uma vez, na promoção da cultura do encontro em contraposição a uma cultura da exclusão e do descarte. Nesta última, regida pelo humanismo economicista e pelos “dogmas” da eficiência e do pragmatismo, “não há lugar para o ancião nem para o filho não desejado; não há tempo para deter-se com aquele pobre na rua”.79 Diante disso,

70

FRANCISCO. Encontro com a comissão de coordenação do CELAM (28.07.2013), op. cit., p. 134.

71

FRANCISCO. Santa Missa para a XXVIII Jornada Mundial da Juventude (28.07.2013), op. cit., p. 124.

72

FRANCISCO. Encontro com a comissão de coordenação do CELAM (28.07.2013), op. cit., p. 144.

73

Ibid., pp. 144-145.

74

Ibid., p. 145.

75

Ibid.

76

FRANCISCO. Santa Missa com os bispos da JMJ, sacerdotes, religiosos e seminaristas (27.07.2013). In: ______. Palavras do Papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 71. 77

Ibid., p. 71.

78

Ibid., pp. 73-74.

79

Ibid., p. 74. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 6 - 22, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS Francisco faz um apelo veemente para que seus ouvintes tenham a coragem de ir contra a corrente dessa cultura! Não podemos deixar a fé para nos equiparar à cultura eficientista e do descartável, própria do nosso tempo. Pelo contrário, temos que ressaltar e devolver à cultura do nosso tempo a experiência do encontro, o valor e o significado desta palavra, que está sendo escondida na cultura atual, quase como se fosse um palavrão, diz o Papa. “O encontro e a acolhida de todos, [...] a solidariedade e a fraternidade são elementos que fazem nossa civilização verdadeiramente humana”.80 Para que os jovens “encontrem Cristo e se convertam em construtores de um mundo mais fraterno”, seus pastores precisam “ser servidores da comunhão e da cultura do encontro”.81 O Papa está tão convencido disso, que continua dizendo – de forma tremendamente enfática – que “gostaria de vê-los quase obcecados nesse sentido”, pois são chamados a “promover com alegria a cultura do encontro!”.82 Por isso pede a Maria que os leve pela mão e os “impulsione para sair ao encontro de tantos irmãos e irmãs que estão na periferia, que têm sede de Deus e não há quem o anuncie a eles. Que não nos expulse de casa, mas que nos anime a sair de casa”.83 Que Maria Mãe ensine a Igreja a ser mãe, a ser “uma Igreja que volte a dar calor, a inflamar o coração”,84 que encontre os homens em seu caminho, entre em sua conversa e dialogue com eles, enfim, uma Igreja capaz do encontro, que vive de encontros e os propaga culturalmente. Francisco está convencido de que vivemos no ‘tempo da misericórdia’. Na longa entrevista que deu no voo de volta a Roma, afirmou que a mudança de época em que vivemos e os tantos feridos deixados também pelo contratestemunho da própria Igreja em tantos campos, nos convidam a encarnar ainda mais claramente os traços da Igreja Mãe e misericordiosa para com todos, que cuida dos feridos, que não se cansa de perdoar. “A

Igreja deve fazer assim. Quando há pessoas... não se limitar a esperar por elas, mas sair ao seu encontro! Esta é a misericórdia. E eu penso que este seja um kairós: este tempo é um kairós de misericórdia”,85 um kairós para que a misericórdia se faça um valor cultural. Mesmo depois da JMJ, Francisco não abandonou este tema. Pelo contrário, parece que nos deparamos aqui com uma categoria teológico-pastoral que tem marcado seus primeiros meses de pontificado e começa a fazer parte de sua mensagem como Papa. Em 7 de agosto de 2013, a apenas uma semana do encerramento da JMJ, numa mensagem gravada aos romeiros do Santuário de São Caetano em Buenos Aires, o Papa voltou a insistir no assunto, repetindo, em pouco minutos de fala, nada menos que 36 vezes o termo encontro/ encontrar. Afirmou, enfaticamente: “Precisamos edificar, criar, construir, uma cultura do encontro”.86 Motivado pelo lema escolhido para a peregrinação anual ao santuário – ‘Com Jesus e São Caetano, vamos ao encontro dos mais necessitados’ – o Papa Bergoglio recorda que o importante não é olhar o mais necessitados “à distância, ou ajudá-los à distância. Não, não! É ir ao encontro. Isso é o cristão! Isso é o que ensina Jesus: ir ao encontro dos mais necessitados. Como Jesus que ia sempre ao encontro das pessoas. Ele ia encontrá-los. Sair ao encontro dos mais necessitados”.87 Destaca também que quem dá esmola sem olhar nos olhos da pessoa ajudada e sem tocá-la, não se encontra realmente com ela. Pois, “o que Jesus nos ensina é primeiro encontrar-nos, e no encontro, ajudar. Precisamos saber encontrar-nos. Precisamos edificar, criar, construir, uma cultura do encontro”.88 Não preciso ir ao outro com o intuito de convencê-lo a ser católico, basta encontrá-lo. O Papa recorda que vivemos num mundo de muitos desencontros, e estes não ajudam. Por isso, com mais razão, precisamos promover ‘a cultura do encontro, sair para encontrar-nos’, em especial

80

FRANCISCO. Santa Missa com os bispos da JMJ, sacerdotes, religiosos e seminaristas (27.07.2013). In: ______. Palavras do Papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013, pp. 74-75. 81

Ibid., p. 69.

82

Ibid., p. 75.

83

Ibid., p. 76.

84

FRANCISCO. Encontro com o episcopado brasileiro (27.07.2013), op. cit., p. 100.

85

FRANCISCO. Encontro com os jornalistas durante o voo de regresso (28.07.2013). Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/ francesco/speeches/2013/july/documents/papa-francesco_20130728_gmg-conferenza-stampa_po.html. Acesso em: 18 ago. 2013. 86

FRANCISCO. Precisamos edificar, criar, construir uma cultura do encontro. Disponível em: http://www.zenit.org/pt/articles/papafrancisco-precisamos-edificar-criar-construir-uma-cultura-do-encontro. Acesso em: 15 ago. 2013. 87

Ibid.

88

bid.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS com aqueles que estão em situação pior que a nossa. “Venho à fila para encontrar-me com São Caetano e com Jesus, e depois saio para encontrar-me com os demais, porque sempre há alguém pior do que eu. É com esses que nós temos que nos encontrar”.89 E conclui afirmando o poder multiplicador da experiência do encontro: “Quando o seu coração se encontra com aquele que mais necessita, começará a aumentar, aumentar, aumentar! Porque o encontro multiplica a capacidade do amor. O encontro com outro, aumenta o coração”.90

6 A MISSÃO CULTURAL DA IGREJA: ENCONTRO ENTRE FÉ E CULTURA Como último passo da presente reflexão, pareceme importante colocar num contexto mais amplo a ação e os discursos do Papa Francisco analisados até aqui: a missão eclesial de proporcionar um encontro fecundo entre a fé e a cultura. Formar cultura é uma tarefa eclesial, pois o Reino de Deus começa já aqui na terra. Sem pretensão de voltar aos tempos da Cristandade, a Igreja tem a missão de impregnar com os valores cristãos a cultura na qual está inserida. A Igreja tem uma ‘missão cultural’: marcar a cultura com a fé e os valores do Evangelho. De fato, a modernidade experimentou a ruptura entre cultura e evangelho, o que Paulo VI descreveu como “o drama da nossa época”.91 No âmbito eclesial, o tema da cultura passa a aparecer como central para a pastoral a partir do Concílio Vaticano II, quando se elabora a relação entre a Igreja e o mundo, no documento Gaudium et Spes (GS).92 A própria definição de o que se entende por cultura já é, em si, um tema difícil. A GS arrisca uma formulação, retomada depois por Puebla:

A palavra “cultura” indica, em geral, todas as coisas por meio das quais o homem apura e desenvolve as múltiplas capacidades do seu espírito e do seu corpo; se esforça por dominar, pelo estudo e pelo trabalho, o próprio mundo; torna mais humana, com o progresso dos costumes e das instituições, a vida social, quer na família quer na comunidade civil; e, finalmente, no decorrer do tempo, exprime, comunica aos outros e conserva nas suas obras, para que sejam de proveito a muitos e até à inteira humanidade, as suas grandes experiências espirituais e as suas aspirações.93

Paulo VI desenvolveu o tema da ‘evangelização da cultura’ na importante Encíclica Evangelii Nuntiandi (1975), enfatizando que: “importa evangelizar, não de maneira decorativa, como que aplicando um verniz superficial, mas de maneira vital, em profundidade e isto até às suas raízes, a civilização e as culturas do homem, [...] a partir sempre da pessoa e fazendo continuamente apelo para as relações das pessoas entre si e com Deus”.94 Ao indicar que a evangelização deve dar-se ‘a partir da pessoa’ e das ‘relações das pessoas entre si e com Deus’, Paulo VI está indicando o caminho das relações humanas, o que seu sucessor Francisco irá chamar o caminho do encontro. Puebla havia afirmado que “a evangelização pro-cura alcançar a raiz da cultura, a zona de seus valores fundamentais”.95 Alguns desses valores fundamentais, segundo os discursos e a prática do papa atual, são o encontro, o diálogo, a solidariedade. Se a fé não plasma a cultura é sinal de que não está viva, pois para ser fecunda a fé deve se expressar em formas de vida capazes de gerar uma cultura com selo cristão. Para o Papa Francisco, o encontro de amor com Deus e com o próximo, o diálogo, a fraternidade e a solidariedade devem chegar a ser muito mais que ideias ou ideais cristãos, devem ter a ‘força da vida que plasma

89

IFRANCISCO. Precisamos edificar, criar, construir uma cultura do encontro, op. cit.

90

Ibid.

91

PAULO VI. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi sobre a evangelização no mundo contemporâneo. Vaticano: Typis polyglottis Vaticanis, 1975, n. 20. 92

Cf. CONSTITUIÇÃO Gaudium et Spes, nn. 57-62.

93

Ibid., n. 53. No documento conclusivo de Puebla: “Com a palavra ‘cultura’ indica-se a maneira par-ticular como em determinado povo cultivam os homens sua relação com a natureza, suas relações entre si próprios e com Deus (GS 53b), de modo que possam chegar a ‘um nível verdadeira e plenamente humano’ (GS 53a). É ‘o estilo de vida comum’ (GS 53c) que caracteriza os diversos po-vos.” (CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO [CELAM]. Documento de Puebla: texto conclusivo da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano. São Paulo: Paulinas, 1979, n. 386). 94

PAULO VI, op. cit., n. 20. E continua: “O Evangelho e a evangelização independentes em relação às culturas, não são necessariamente incompatíveis com elas, mas suscetíveis de as impregnar a todas sem se escravizar a nenhuma delas”. 95

CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM), 1979, n. 388. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 6 - 22, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS uma cultura’, que ele chama ‘cultura do encontro’. Quando algo não se vive, não plasma cultura; plasma ideias (ou ideologias!), mas não cultura. As ideias podem ser influentes, determinantes, orientadoras de uma cultura, mas isso não basta; as ideias encarnadas são as que plasmam a cultura e não só as ideias pensadas. Se o cristianismo não quiser renunciar à sua missão cultural, deve chegar a influenciar verdadeiramente a formação da nova cultura em gestação nessa mudança de época. Na minha apreciação, a JMJ e o Papa Francisco foram testemunhos vivos da cultura do encontro com a qual se deve marcar a sociedade e a Igreja do século XXI. São valores a serem cultivados hoje, embora seus frutos só serão reconhecidos a longo prazo, pois todo processo cultural leva anos para se estabelecer. Uma coisa são as correntes e os estilos que estão ‘de moda’, outra são os valores que impregnam a cultura, e estes requerem tempo. Neste contexto, nas pegadas do Papa Francisco, a Igreja está chamada a promover uma cultura de encontro para os novos tempos, a apresentar e fomentar no mundo de hoje um importante paradigma cultural: a cultura do encontro! Esse paradigma é novo e antigo. É antigo, porque já está anunciado no Evangelho, mas é novo porque é necessário e atual, já que nem sempre tem sido valorizado na cultura de nosso tempo, nem mesmo dentro da própria Igreja.

7 O POTENCIAL CULTURAL DA CATEGORIA ENCONTRO Em sentido amplo, a categoria encontro tem um potencial cultural fundamental porque implica muitos elementos antropológicos relevantes. O encontro envolve a personalidade em sua dupla dimensão de ‘identidade’ e de ‘relação’. Há um sujeito, único e original, que entra em relação com outro, também único e original. Para entrar em um processo de encontro é preciso atuar com ‘liberdade’, o que implica em tomar ‘decisões’ e fazer ‘opções’. Desta forma, todo encontro livremente assumido envolve ‘compromisso’ e ‘responsabilidade’. Implica também ‘reciprocidade’, com direitos e deveres mútuos. Todos esses são valores humanos de grande relevância e perfeitamente compreensíveis para o 96

homem moderno. Há abertura e receptividade para essas categorias. Identidade, relação, liberdade, responsabilidade, reciprocidade são categorias consensualmente aceitas e valorizadas em nossa sociedade. Além disso, a categoria encontro apresenta também ‘relevância teológica’. Já a criação do homem e da mulher, está marcada pela iniciativa de Deus, que deseja encontrar-se com o ser humano em um encontro livre de amor. Por sua vez, o homem passa a vida buscando um encontro mais pleno com Deus e só neste encontro se realiza plenamente, segundo as conhecidas reflexões de Santo Agostinho no início do livro das Confissões. Na espiritualidade cristã, o encontro de amor com Deus leva ao encontro de amor com o irmão e vice-versa. O amor leva a relação de reciprocidade a vínculos profundos, a uma solidariedade que é comunidade de corações e destinos. A cultura do encontro é a cultura da aliança, aquela mesma selada entre Deus e o seu povo, por meio de Noé (cf. Gn 9, 9), Abraão e os patriarcas (cf. Gn 17, 7; Ex 2, 24), Moisés (cf. Ex 6, 5) e todos os profetas (cf. Is 42, 6; 55, 3; Jr 11, 2; Ez 37, 26; Os 6, 7). O Deus da Aliança é o Deus próximo, o Deus do amor e da fidelidade. Ele pedia ao povo que vivesse segundo esta aliança, que tivesse um estilo de vida, uma cultura, marcada pela aliança. Diante, porém, da infidelidade do povo Deus se encarna e sela definitivamente sua ‘nova e eterna Aliança’ por meio do sangue de Cristo (cf. 1Cor 11, 25). Segundo o testemunho da Carta aos Hebreus, por esta aliança Deus gravará suas leis nas mentes e corações dos cristãos (cf. Hb 8, 10) até que esta se torne um estilo de vida para eles. Trata-se, então, de uma cultura de aliança e vínculos de amor, que se plasma no concreto da vida diária de pessoas e comunidades. Concretiza-se também na área pública e na vida social: economia, política, comunicação, educação etc. Todos são campos passíveis de serem fecundados por relações de encontro, diálogo, solidariedade e amor, pois estes são os campos que influem na cultura, expressam a cultura e a conformam.96 O desafio que Francisco nos convida a enfrentar é, portanto, o de gerar uma cultura solidária no mundo atual, o de fecundar a cultura atual com experiências de encontro. Mas gerar (ou fecundar) uma cultura implica

Sirvam como referência a este tema algumas afirmações do Documento de Aparecida: “O discípulo e missionário de Cristo que trabalha nos âmbitos da política, da economia e nos centros de decisões sofre a influência de uma cultura frequentemente dominada pelo materialismo, pelos interesses egoístas e por uma concepção do homem contrária à visão cristã” (CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO [CELAM], 2007, n. 506). Ou ainda: “O cristão de hoje não se encontra mais na primeira linha

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS a promoção de um modo de viver, com formas, costumes, linguagem, tradições e símbolos que marquem por séculos essa cultura. E estes devem abarcar todos os âmbitos da vida: a relação com Deus, com os demais e com o mundo. Tais âmbitos são descritos na definição de cultura que traz o próprio Documento de Aparecida, que tanta influência tem sobre Bergoglio: “a cultura, em sua compreensão maior, representa o modo particular com o qual os homens e os povos cultivam sua relação com a natureza e com seus irmãos, com eles mesmos e com Deus, a fim de conseguir uma existência plenamente humana”.97 Aparecida indica, assim, a necessidade de que todos os âmbitos da cultura atual sejam fecundados pela cultura cristã, caracterizada pelo texto como ‘cultura de solidariedade’: Neutralizar a cultura de morte com a cultura cristã da solidariedade é um imperativo que diz respeito a todos nós e que foi um objetivo constante do ensino social da Igreja. No entanto, o anúncio do Evangelho não pode prescindir da cultura atual. [...] Mas esta mesma fé deverá gerar modelos culturais alternativos para a sociedade atual. Os cristãos, [...] deverão ser criativos em seus campos de atuação: o mundo da cultura, da política, da opinião pública, da arte e da ciência.98

8 UM OLHAR PARA MARIA, ARTÍFICE DE ENCONTRO Para concluir a presente reflexão no melhor estilo do Papa Francisco, não se pode deixar de olhar para Maria, lugar privilegiado do encontro entre Deus e a humanidade. Seguindo a linha de Puebla, o Documento de Aparecida fala da importância cultural de Maria: A “Igreja, que com nova lucidez e decisão quer evangelizar a fundo, na raiz, na cultura do povo, se volta a Maria

para que o Evangelho se faça mais carne, mais coração da América Latina”.99 A presença de Maria nos corações das pessoas e na história dos povos tem gerado a experiência de encontro, ajudando os homens a se sentirem família. Ela gera, assim, uma cultura de encontro e comunhão: “Como na família humana, a Igreja-família é gerada ao redor de uma mãe, que confere ‘alma’ e ternura à convivência familiar. Maria, Mãe da Igreja, além de modelo e paradigma da humanidade, é artífice de comunhão”.100 Maria, “reunindo os filhos, integra nossos povos ao redor de Jesus Cristo”.101 De fato, continua o documento: [...] com os olhos postos em seus filhos e em suas necessidades, como em Caná da Galileia, Maria ajuda a manter vivas as atitudes de atenção, de serviço, de entrega e de gratuidade que devem distinguir os discípulos de seu Filho. Indica, além do mais, qual é a pedagogia para que os pobres, em cada comunidade cristã, ‘sintam-se como em sua casa’.102

Essas atitudes, promovidas pela presença, intercessão e exemplo de Maria na vida do cristão, são as atitudes próprias da cultura do encontro promovida por Francisco. Aparecida insiste ainda no papel educativo de Maria nesse processo de transmissão cultural, tão próprio de uma mãe: [Ela] cria comunhão e educa para um estilo de vida compartilhada e solidária, em fraternidade, em atenção e acolhida do outro, especialmente se é pobre ou necessitado. Em nossas comunidades, sua forte presença tem enriquecido e seguirá enriquecendo a dimensão materna da Igreja e sua atitude acolhedora, que a converte em “casa e escola da comunhão” e em espaço espiritual que prepara para a missão.103

Por tudo isso, “Maria Santíssima é a presença materna indispensável e decisiva na gestação de um

da produção cultural, mas recebe sua influência e seus impactos. As grandes cidades são laboratórios dessa cultura contemporânea complexa e plural” (Ibid., 509). “Os discípulos e missionários de Cristo devem iluminar com a luz do Evangelho todos os espaços da vida social. [...] Se muitas das estruturas atuais geram pobreza, em parte é devido à falta de fidelidade a compromissos evangélicos de muitos cristãos com especiais responsabilidades políticas, econômicas e culturais” (Ibid., n. 501). 97

CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM), 2007, n. 476.

98

Ibid., n. 480.

99

Ibid., n. 303.

100

Ibid., n. 268.

101

Ibid., n. 265.

102

Ibid., n. 272.

103

Ibid. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 6 - 22, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS povo de filhos e irmãos, de discípulos e missionários de seu Filho”.104 Que Ela, artífice de encontro e comunhão, ajude a Igreja a seguir a voz e o testemunho do Papa Francisco, colaborando na construção da civilização do amor, da civilização do encontro. Que Ela implore um

novo Pentecostes para a Igreja, para que esta, seguindo o impulso de Aparecida, possa “sair ao encontro das pessoas, das famílias, das comunidades e dos povos para lhes comunicar e compartilhar o dom do encontro com Cristo”.105

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______. Encontro com o episcopado brasileiro (27.07.2013). In: ______. Palavras do Papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013. 104

CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM), 2007, n. 524.

105

Ibid., n. 548.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS SEXUALIDADE E JUVENTUDE Por uma teologia moral da sedução SEXUALITY AND YOUTH Towards a moral theology regarding seduction José A. Trasferetti* e Ronaldo Zacharias**

RESUMO: No presente artigo, os autores apresentam, com base em um contexto marcado por rápidas transformações socioculturais, uma oportuna reflexão moral com vista à educação sexual de adolescentes e jovens. Após a abordagem da cambiante realidade juvenil brasileira, especial atenção é dada à tarefa educativa das famílias, da escola, da Igreja e da Teologia Moral. Palavras-chave: sexualidade, teologia moral, educação, sedução. ABSTRACT: In this article, the authors, situated in a context affected by rapid socio-cultural transformations, present a timely moral reflection regarding the sexual education of adolescents Following a discussion of the constantly changing reality of Brazilian youth, special attention is given to the educational task of families, schools, the Church and Moral Theology. Keywords: sexuality, moral theology, education, seduction.

INTRODUÇÃO Com o advento das novas tecnologias, das redes sociais e da forte presença dos meios de comunicação de massa, podemos observar profundas mudanças tanto no modo como os jovens concebem a moralidade quanto na vivência da sexualidade. Como Igreja, temos uma proposta educativa significativa a lhes oferecer, embora devamos também reconhecer que os jovens, mesmo os mais ligados à comunidade eclesial, sentem dificuldade de entender e vivenciar em seu cotidiano as orientações oriundas do magistério, sobretudo, em relação à sexualidade. Nesse sentido, propomos oferecer algumas pistas para a elaboração de uma possível Teologia Moral da Sedução, como uma proposta norteada não por uma moral ‘rigorista’ ou ‘laxista’, mas pelo diálogo educativo que lhes possibilite escolhas livres e responsáveis e capaciteos para decisões morais que dignifiquem a vida humana.

1 JUVENTUDE BRASILEIRA EM CONTEXTOS DE TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS O Brasil tem-se constituído num imenso laboratório de grandes transformações socio-comportamentais. O movimento das ruas em junho/julho de 2013 demonstrou uma capacidade de articulação e de manifestação por parte dos jovens há muito tempo adormecida. Protestando contra o sistema neo-liberal de cunho capitalista, que não possibilita serviços públicos de qualidade, os jovens gritaram a todos os cantos que o povo brasileiro não está “deitado em berço esplêndido” e obrigaram os gestores da política a se movimentarem e agirem com uma rapidez incomum. A presença do Papa Francisco no Rio de Janeiro, durante a 28ª. Jornada Mundial da Juventude (julho 2013), converteu-se numa voz profética no contexto das

*

Doutor em Teologia Moral pela Academia Alfonsiana (Roma) e em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma). Professor na PUC - Campinas. **

Doutor em Teologia Moral pela Weston Jesuit School of Theology (Cambridge - USA). Professor e coordenador do curso de Pós-Graduação lato sensu em Educação Sexual no UNISAL – Centro Universitário Salesiano de São Paulo – Campus Pio XI. Artigo submetido à avaliação em 05.11.2013 e aprovado para publicação em 08.11.2013. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 23 - 28, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS manifestações: ao mesmo tempo em que conclamou os jovens a viverem na esperança e na caridade, ele os estimulou a não se conformarem com uma sociedade que tende a favorecer o individualismo, o egoísmo, o relativismo, a indiferença, a violência e a injustiça. Os gestos de Francisco demonstraram o desejo de uma Igreja mais solidária e próxima dos pobres, uma Igreja capaz de conjugar o Evangelho com a realidade social. Consciente de que vivemos uma mudança de época, o Papa Francisco estimulou os jovens e a sociedade a reverem os próprios paradigmas, a fim de assumir o bem do outro – sobretudo do mais frágil e vulnerável – como critério de decisão moral.

1.1 TRANSFORMAÇÕES NA ÁREA DA SEXUALIDADE Nesse contexto de profundas transformações sóciocomportamentais queremos destacar as que ocorreram no âmbito da sexualidade. Os meios de comunicação de massa (redes sociais, internet, televisão, jornal etc.) têm produzido imensas transformações comportamentais, em grande parte influenciadas pelo mercado e pela sociedade de consumo. Os valores propagados por esses meios estão muito mais ligados a uma moral “laxista” de caráter mercadológico que tem levado a juventude a cultivar práticas valorizadoras do descartável e do efêmero. Não há como negar que os meios de comunicação de massa são os grandes produtores do comportamento moral nos tempos atuais. Eles atuam de forma sutil, subliminar, determinando ações e práticas modeladoras do comportamento dos jovens. A influência das novelas, dos programas de auditório, dos noticiários, da vida dos artistas, jogadores e outros é sensível e causa muita perplexidade na juventude. A sociedade está mudando, os valores estão mudando, tudo está em permanente estado de crise e de transformação. A sexualidade deixou de ser vivida apenas no contexto do matrimônio heterossexual e de visar à finalidade procriativa para tornar-se prática de liberdade, tendo em vista a autorrealização no que se refere ao prazer e à saúde do corpo. A sexualidade, em grande parte, desvinculou-se pouco a pouco do amor, da procriação, da fidelidade, do compromisso. Parece que nenhum contexto é mais ilícito para a prática do sexo. Apesar do bombardeamento e, ao mesmo tempo, do acesso irrestrito à informação, é assustador o número 1

de adolescentes, jovens, adultos e idosos que assumem comportamentos sexuais de risco e se tornam vítimas da própria liberdade - sinônimo, muitas vezes, de irresponsabilidade, ignorância e imprudência (basta ter presente o alto índice dos que se descuidam da proteção, não acreditam nela ou aderem de forma consciente à não autopreservação). Constatamos, ainda, pouca ou nenhuma presença de programas de educação sexual nas escolas e pais que ainda resistem a abordar o assunto julgando que, se o fizerem, irão promover a prática do sexo. Em muitas instâncias, o aconselhamento sexual ainda é baseado em tabus ou preconceitos religiosos; em outras, a ausência de diálogo sobre a sexualidade parece reproduzir o contexto de décadas atrás. O cenário é bastante contraditório: fala-se muito sobre sexo e quase nada sobre sexualidade. As respostas aos inúmeros desafios que emergem não são simples. Precisamos, urgentemente, de uma verdadeira educação sexual, tanto na família quanto na escola. A Igreja Católica, por sua vez, propõe alternativas de vida que seguem os preceitos das sociedades clássicas: enfatiza a importância da família, da abstinência sexual pré-matrimonial, da fidelidade conjugal e combate o uso de métodos artificiais de controle de natalidade, o recurso ao preservativo como método de prevenção e as relações sexuais fora do casamento ou entre pessoas do mesmo sexo. Em matéria de normatividade no campo do comportamento sexual, a Igreja Católica, por meio do seu magistério, não alterou seu ensinamento nos últimos anos. As orientações têm sido as mesmas de meio século atrás. Mais do que ir ao encontro das exigências de uma época de mudanças, muitas vezes caracterizada pela perda de valores morais, a Igreja tem se limitado a recordar a constância da doutrina. Impera o critério da continuidade histórica do ensinamento, mesmo que a história, apesar dos seus limites, sugira que outros caminhos pudessem ser percorridos. Basta tomarmos como exemplo um fato: muitos, em nome da Igreja Católica, servem-se de meios de comunicação de massa supermodernos, mas propõem uma moral tradicional, dando mais ênfase aos ensinamentos de décadas atrás do que se abrindo à perspectiva proposta pelo Concílio Vaticano II.1 Num contexto como esse, a Igreja não pode se omitir de abrir-se ao diálogo com as novas gerações se quiser

“Consagre-se cuidado especial ao aperfeiçoamento da Teologia Moral cuja exposição científica, mais alimentada pela doutrina da Sagrada Escritura, evidencie a sublimidade da vocação dos fiéis em Cristo e sua obrigação de produzir frutos na caridade, para a vida do mundo” (DECRETO Optatam Totius sobre a formação dos sacerdotes. In: CONCÍLIO VATICANO II. 1962-1965. Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos, declarações. Petrópolis: Vozes, 2000, n. 16).

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS que as suas propostas educativas sejam ouvidas, acolhidas e assumidas como ponto de referência no processo de desenvolvimento e amadurecimento afetivosexual dos jovens.

1.2 A NOVA CONSCIÊNCIA MORAL Os jovens de hoje não sabem mais lidar com uma moral casuística. A nova consciência moral implica uma educação da consciência que os transforme não apenas em protagonistas de ações sociais, mas também responsáveis pelos seus próprios atos. A moral casuística, próxima do rigorismo que norteou a práxis cristã dos nossos antepassados, não interessa à juventude atual, porque ela não educa; apenas se impõe de forma autoritária, exigindo das pessoas uma cega obediência a ela. Estaríamos fechados a todos os “sinais dos tempos” se acreditássemos que essa moral ainda é uma opção viável. A “laxista”, própria dos meios de comunicação de massa e da sociedade de consumo, por sua vez, também não interessa aos nossos jovens, porque prega valores que os tornam servidores do mercado, subservientes ao consumo, cada vez mais descartáveis num contexto em que tudo é líquido e, portanto, facilmente se evapora. A nova consciência moral exige educação para os valores, tendo em vista a responsabilidade da ação. A educação formal (aquela que se desenvolve nas escolas) e a informal (aquela que se dá nas famílias) é a chave para a vida em sociedade. Os pais, os professores e os demais profissionais e educadores devem acompanhar os jovens para proporcionar a eles um conhecimento que lhes permita fazer as próprias opções com liberdade e responsabilidade. A educação deve ser acompanhada da arte da sedução, ou seja, no mundo atual não cabe mais se imporem comportamentos e esperar subserviência; as pessoas, sobretudo os jovens, precisam ser conquistadas pela significatividade dos valores propostos, pela força dos argumentos chamados em causa e pela plausibilidade efetiva de vivência do ideal que lhes é proposto. Em outras palavras, pais, professores, educadores – entre os quais a própria instituição eclesial e os estudiosos da questão moral – não podem abdicar da sua responsabilidade num contexto de emergência educativa. Devolver ao jovem a capacidade de indignar-se, de ser protagonista das próprias ações é tarefa de todos os agentes morais (pais, professores, catequistas) e de todas as instituições sociais (família, escola, Igreja, 2

universidade). A formação da consciência crítica nos tempos atuais exige que saibamos conjugar o acesso à informação com a arte da sedução. O acesso à informação é, praticamente, irrestrito. Todos têm acesso a tudo o que desejam saber e esse parece ser um caminho sem volta. A arte da sedução é tarefa para aqueles que são portadores de valores capazes de dar sentido à vida e unificar, num projeto de vida, tudo o que se descobre ou aprende. Na verdade, é necessário fazer interagir informação e sedução, tendo em vista práticas sociais e morais que dignifiquem o ser humano. Para que serve o acesso irrestrito à informação se não se é capaz de articulá-la com a própria vida e não se pode contar com o acompanhamento de pessoas que possam ajudar a passar do mero conhecimento teórico à interiorização e vivência de valores que humanizam? Os educadores (pais, professores, catequistas entre outros) não podem se omitir neste momento de suprema importância para os jovens. A moral da consciência exige disciplina, informação em abundância, mas, sobretudo, discernimento para realizar as escolhas corretas. Auxiliar no processo de discernimento numa sociedade em constante crise é mais do que um mero dever. É um imperativo moral.

2 A TAREFA DAS FAMÍLIAS A família continua sendo a ‘célula mater’ da sociedade. Mas ela não pode mais ser pensada somente no singular. Vivemos em contextos nos quais há uma grande diversidade de uniões afetivas que geram comprometimento, produzem identidades, preveem responsabilidades e enlaçam as pessoas.2 Para tais uniões – que não deixam de ser familiares – o formato e os ingredientes contam pouco. Por isso que podemos dizer que família é uma realidade plural. No entanto, a moral católica, tendo como modelo a família nuclear - composta por homem, mulher e filhos, constituída pela união civil e o sacramento do matrimônio - continua pensando a família no singular. Esse tipo de família, pensada no singular, muitas vezes só existe na esfera do ideal, do desejável. A realidade concreta na qual as pessoas vivem suas relações familiares, na maioria das vezes e dos contextos, está muito distante do ideal desejável. Mas, nem por isso podemos diminuir ou menosprezar a bondade moral de determinadas intervenções educativas. Mesmo em contextos nos quais o formato e os ingredientes contam pouco – como é o

Cf. DIAS, Maria Berenice. “A brava juíza dos afetos”. Cláudia 03 (2010) 42-47. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 23 - 28, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS caso de muitas famílias – impõe-se o imperativo moral de educar para a afetividade e a sexualidade. Educação sexual é tarefa primária, insubstituível e inalienável dos pais, que podem contar com a colaboração de outras instâncias, mas nunca delegá-la por completo a elas.3 Para a Igreja Católica, a educação sexual identifica-se com a formação para a castidade, entendida como “integração correta da sexualidade na pessoa”.4 Portanto, para ela, é no quadro da educação integral do jovem que se dá a educação sexual. Partindo do pressuposto de que toda pessoa e, portanto, todo jovem quer se realizar no amor e que o amor é a única realidade capaz de humanizar a sexualidade,5 uma autêntica formação para a castidade, na perspectiva do Magistério, deve levar o jovem a assumir o amor como fundamento do próprio projeto de vida e até mesmo como o próprio projeto de vida. Amor entendido como dom sincero de si, abertura ao outro, reciprocidade. Quando nas famílias somos educados a prestar atenção às necessidades do outro, a nos relacionarmos com o outro respeitando a sua dignidade na diversidade, estamo-nos educando sexualmente. Quando nas famílias somos educados para o autodomínio, para o respeito à vida, para a integração entre amor e sexo, para o apreço da paternidade-maternidade responsáveis, para a fidelidade aos compromissos assumidos, para a sensibilidade em relação a quem sofre, para o cuidado com e de quem precisa de ajuda, estamos sendo educadores sexuais. O direito-dever educativo dos pais – ou de quem faz as vezes deles – implica a responsabilidade moral de favorecer à criança, ao adolescente e ao jovem, um clima afetivo dentro de casa, uma presença positiva nos períodos mais críticos para os processos de identificação, uma relação honesta, franca e transparente dos adultos entre si e com os próprios filhos, um modo de se colocar diante do outro que gere relação de confiança, incentive a unidade, favoreça a reciprocidade e a solidariedade, uma opção pelo cuidado respeitoso com o outro que se expressa por meio da acolhida e do respeito incondicional ao outro na sua intimidade e individualidade. Em outras

palavras, cabe aos pais – ou a quem faz as vezes deles – o imperativo moral do testemunho de vida. Os filhos precisam perceber que seus pais – ou quem faz as vezes deles – são pessoas integradas e felizes, realizadas nas escolhas que fizeram para viver o amor, devotadas a eles e não dependentes ou indiferentes a eles, capazes de opções e renúncias por amor, conscientes de seu papel educativo, participantes e colaboradores de um mistério que os transcende, tal qual o desígnio de Deus sobre seus filhos. É nesse contexto que se dá uma verdadeira educação para o amor e, consequentemente, uma verdadeira educação sexual e formação para a castidade.

3 A TAREFA DA ESCOLA Os pais – ou quem faz as vezes deles – não são capazes de satisfazer por si só todas as exigências do processo educativo. A Igreja Católica é a primeira a reconhecer que eles precisam ser ajudados nessa tarefa. E a escola pode subsidiá-los, isto é, participar do processo educativo dos educandos como uma instância que não substitui os pais, mas colabora com eles e age em nome deles.6 Considerando que a educação sexual é um dos aspectos da educação integral, o Magistério da Igreja afirma que o papel da escola não pode reduzir-se a ser meramente informativo. É a pessoa que está sendo formada. E a formação da pessoa não pode nunca estar desvinculada da assimilação dos valores e da tomada de consciência das responsabilidades que derivam do processo formativo. Há uma relação tão estreita entre sexualidade e ética que seria ingenuidade acreditar numa proposta neutra, meramente informativa. Mais ainda, a própria sexualidade precisa ser apreciada como valor e tarefa.7 É por isso que a educação sexual não pode reduzir-se a uma simples disciplina na matriz curricular ou a eventos ocasionais de informação-sensibilização; ela visa ajudar o educando a amadurecer afetivamente, a saber sair de si mesmo e abrir-se a relações significativas para e respeitosas com a dignidade e os direitos do outro.

3

Cf. CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A FAMÍLIA. Sexualidade humana: verdade e significado. Orientações educativas em família, n. 41. Disponível em: http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/family/documents/rc_pc_family_doc_08121995_humansexuality_po.html. Acesso em: 20 set. 2013. 4

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 9. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Loyola; Paulinas; Ave-Maria; Paulus, 1999, n. 2337.

5

Cf. CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA. Orientações educativas sobre o amor humano: linhas gerais para uma educação sexual, n. 6. Disponível em: http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/ccatheduc/documents/ rc_con_ccatheduc_doc_19831101_sexual-education_po.html. Acesso em: 20 set. 2013. 6

Cf. CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A FAMÍLIA, op. cit., n. 23.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS Se a família não mais pode ser pensada somente no singular, a escola, por sua vez, também não pode ser reduzida a um espaço onde formação intelectual não tenha nada que ver com educação para o amor; onde formação profissional não tenha nada que ver com desenvolvimento de habilidades desintegradas da educação da vontade, dos sentimentos e do caráter; onde o conteúdo programático tenha prioridade sobre o sujeito do processo educativo; onde o programa de educação sexual é confiado a poucos iluminados; onde as normas são mais repressivas do que portadoras de valores que colaboram para o crescimento e a humanização do educando. Dada a importância da educação sexual na formação integral da pessoa, os professores-educadores precisam ter ciência dos diferentes aspectos da sexualidade e sua incidência na personalidade global dos educandos.8 Numa “época de mudanças”, num contexto em que tudo parece ser líquido e, ao mesmo tempo, lícito, não se pode adotar a política do silêncio, acreditando que a tarefa da escola na educação sexual é secundária ou até mesmo dispensável. O acesso irrestrito dos adolescentes e jovens à internet e às redes sociais, por exemplo, indica que, se a escola não ocupar seu espaço no processo de subsidiar os pais quanto à educação sexual dos seus filhos, outras instâncias o farão. E aí será muito tarde para se lamentar que os adolescentes e jovens se deixaram seduzir por quem ou pelo que não deveriam.

4 A TAREFA DA IGREJA Na sua passagem pelo Brasil, o papa Francisco não se envolveu em temas polêmicos relacionados com a moral sexual. E fez isso de forma consciente, pois, segundo ele, todos já sabem o que a Igreja Católica pensa sobre o assunto. Sua mensagem foi clara no sentido de solicitar aos jovens maior engajamento social, compromisso com a justiça e com um mundo mais justo e fraterno. A própria Igreja, segundo Francisco, precisa sair da sacristia e atuar de maneira forte com as pessoas em seus locais de moradia, trabalho, educação, saúde e lazer. O Papa não quer jovens parados, desanimados, trancafiados em suas casas ou em suas comunidades. Ele quer o povo de Deus nas ruas, fazendo “bagunça”, como ele mesmo fez no Rio de Janeiro. Ele quer os jovens lutando por inclusão social, respeitando a diversidade, 7

Cf. CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA, op. cit., n. 69.

8

Cf. Ibid., n. 89.

comprometendo-se com a solidariedade, cuidando dos mais sofridos e vulneráveis, defendendo os direitos dos mais fracos, opondo-se à lógica do mercado, enfrentando a sociedade líquida, promovendo a cidadania. O que isso tem que ver com educação sexual? Não estaríamos “forçando a barra” ao procurar uma relação entre a mensagem do Papa aos jovens e o ensino da Igreja sobre sexualidade? Se analisarmos profundamente o que aconteceu na Jornada Rio-2013, talvez tenhamos mais elementos para responder a essa pergunta: milhares de jovens de todo o mundo sentiramse atraídos pelo convite de encontrar-se com o Papa por uma semana. Francisco, consciente da sua liderança, soube ajudá-los a fixar os olhos para além da sua pessoa. Para o Papa, é a pessoa e a proposta de Jesus que atraem. São elas que seduzem. Se considerarmos, ainda, que, em matéria de sexualidade, não foram registrados grandes e profundos ensinamentos do que Jesus disse, mas que os evangelistas fizeram questão de focar no essencial - no mandamento do amor como o maior dos mandamentos -, entenderemos que aquilo que aconteceu com os seguidores de Jesus pode acontecer com todo jovem que fixa o olhar e o coração n’Ele e na Sua proposta: por amor os apóstolos foram atraídos e, aos poucos, deixaram-se seduzir; o amor resgatou-os das próprias fraquezas e limitações; por amor eles deram a própria vida; pelo Amor eles redefiniram a própria existência; com amor eles se tornaram a expressão mais autêntica da doação de si mesmos. O amor atrai, seduz, resgata, motiva, ressignifica. Esse dom mais precioso deve ser oferecido aos jovens e Francisco tem consciência disso! Ao convidar os jovens a virem ao seu encontro no Rio de Janeiro, o Papa apresentou-lhes Jesus como definitiva resposta amorosa de Deus à humanidade. Ele deixou claro que, ao amarmos como Deus ama, precisamos renunciar à tentação de nos tornarmos juízes daqueles que acreditamos macularem o amor pela simples dificuldade e/ou impossibilidade de amar com todo o coração, toda a alma, todo entendimento e todas as forças, em contextos nos quais já não são plenamente donos de si mesmos, em contextos que roubaram a capacidade de acreditar no amor como abertura e dom de si ao outro. A tarefa de educação sexual é um direito-dever dos pais, ou de quem faz as vezes deles. Esses, nessa tarefa, podem fazer-se ajudar pela escola. Família e escola devem, por sua vez, contar com o apoio da Igreja, apoio

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS que se expressa pela coragem de propor valores que humanizam e uma moral que não se reduz ao cumprimento de normas, mas à interiorização de valores.

5 A TAREFA DA TEOLOGIA MORAL: EDUCAÇÃO E SEDUÇÃO A moral casuística de cunho moralizante não responde mais às necessidades do nosso tempo e não se propõe a uma educação crítica de qualidade. Os jovens desejam ardentemente serem protagonistas de novas ações morais pautadas na liberdade e no amor. Os jovens não querem mais simplesmente obedecer a regras e normas que não fazem sentido no seu mundo real, nem pautarem suas vidas por axiologias que se perderam com o tempo. Se toda a Igreja não se abrir à juventude, convicta de que se trata de um lugar teológico, e não dialogar com ela de forma madura, correrá o risco de fracassar em sua missão de atrair para Cristo. A Teologia Moral deve estar atenta aos movimentos juvenis em nosso país e propor conteúdos e metodologias de qualidade que reflitam os anseios democráticos de inclusão social e combate à corrupção moral e atendam a eles. No contexto atual, não basta afirmar dogmas e normas de forma autoritária; é preciso explicar suas razões e convencer com argumentos. A razoabilidade da Teologia Moral está em sua plataforma de sedução, uma vez que ela precisa explicar seus argumentos, detalhar suas propostas e seduzir pela sua beleza e eficácia. A juventude

mundial não mais pode ser tratada como ignorante, mas como um novo sujeito social, capaz de se mobilizar e exigir transformações que atendam ao evangelho da sabedoria e da paz. Os valores que a sociedade de consumo impõe de forma autoritária e subliminar precisam ser questionados de forma radical. A necessidade de rebeldia é constante, pois a juventude não pode acomodar-se. A Teologia Moral deve oferecer um serviço que qualifique a juventude para não só encontrar “sentido” em sua existência, mas também permear sua vida baseada na defesa de um ethos não excludente, mas compreensivo e generoso. Por meio de uma educação moral crítica e de qualidade, a ignorância deve ser banida, pois ela é a mãe de todos os preconceitos.

CONCLUSÃO Embora o ensinamento da Igreja em matéria de sexualidade tenha permanecido constante nos últimos anos, a sociedade exige uma nova postura dos teólogos moralistas e de todos aqueles que estão próximos dos adolescentes e jovens. Redescobrir o significado da educação no sentido mais pleno da palavra é uma necessidade urgente. Uma educação que proponha a cidadania, a responsabilidade, o protagonismo social e, ao mesmo tempo, a liberdade para ser o que se é. A juventude mundial clama por outra moral, uma moral da consciência que a ajude na difícil tarefa de discernir as ações tendo em vista a construção da democracia social e a felicidade de todas as pessoas de boa vontade.

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VIDAL, M. Dez palavras-chave em moral do futuro. São Paulo: Paulinas, 2003.


PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS SEXUALIDADE E JUVENTUDE Perspectivas e desafios SEXUALITY AND YOUTH Perspectives and challenges Ademildo Gomes*

RESUMO: A relação entre juventude e sexualidade é um dos temas mais importantes e desafiadores da prática pastoral. A atividade catequética, uma vez que visa à formação total do iniciante na vida cristã, não pode prescindir desse desafio. Neste artigo, inspirando-se no alegre e esperançoso espírito da 28ª Jornada Mundial da Juventude e nas palavras encorajadoras do Papa Francisco, o autor propõe algumas significativas pistas para esse trabalho. Palavras-chave: juventude, sexualidade, corpo, amor. ABSTRACT:The relationship between young people and sexuality is one of the most important and challenging issues for pastoral practice. Inasmuch as the objective of catechetical activity is to provide a complete formation for those being initiated into the Christian life, this challenge cannot be ignored. In this article, which is inspired by the joyful and hopeful spirit of the 28th World Youth Day and the encouraging words of Pope Francis, the author offers some significant proposals for such work. Keywords: youth, sexuality, body, love.

INTRODUÇÃO Neste ano, as atenções da Igreja se voltam para a juventude. Já a Campanha da Fraternidade havia dado destaque para o tema: ‘Fraternidade e Juventude’, acreditando assim na força missionária, na criatividade pastoral e na esperança de renovação dos jovens. Entre os dias 23 e 28 de julho acompanhamos, de forma presencial ou através dos meios de comunicação, a Jornada Mundial da Juventude, desta vez em terras brasileiras, com a concentração no Rio de Janeiro, mas que movimentou todas as dioceses e arquidioceses do Brasil e do exterior antes e durante tão extraordinário evento. Esperamos que a moção do Espírito que impulsionou os jovens a saírem de seus lugares, enfrentarem chuvas e frio, continue motivando-os a viver

e a anunciar os valores do evangelho, sobretudo agora, na pós-jornada. As palavras que lhes foram dirigidas pelo Papa Francisco, durante a jornada, são de esperança e total encorajamento. Para o constatarmos, basta recordar um pequeno trecho da reflexão que o Pontífice proferiu durante a vigília no sábado, dia 27. Num clima de profunda contemplação e comovente interioridade, disse o Papa aos mais de dois milhões de jovens concentrados em Copacabana: Sejam protagonistas, não fiquem na fila da História. Joguem sempre na linha de frente, no ataque![...] Não deixam que outros sejam protagonistas, sejam vocês. Vocês têm o futuro nas mãos. Por vocês, é que o futuro chegará. Peço que vocês também sejam protagonistas, superando a apatia e oferecendo uma resposta cristã

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Presbítero e frade da Ordem dos Agostinianos Recoletos (OAR). Mestre em Teologia Moral pela Academia Alfonsiana (Roma), com especialização em bioética. Professor, autor e conferencista na área de bioética e moral sexual. Artigo submetido à avaliação em 07.09.2013 e aprovado em 09.10.2013. 1

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Na Vigília com os jovens, Papa Francisco diz “vamos jogar no time de Jesus”. Disponível em <http://www.cnbb.org.br/site/eventos/juventude/12498-na-vigilia-com-os-jovens-papa-francisco-diz-vamos-jogarno-time-de-jesus>. Acesso em: 29 jul. 2013. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 29 - 40, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS às questões políticas que se colocam em diversas questões do mundo. Envolvam-se num mundo melhor. Não sejam covardes, metam-se, saiam para a vida. Jesus não ficou preso dentro de um casulo. Saiam às ruas como fez Jesus. Mas, fica a pergunta: por onde começar? A quem vamos pedir que se comece isso ou aquilo? Quando perguntaram a Madre Teresa de Calcutá o que devia mudar na Igreja, por onde começaríamos a mudar, e ela respondeu: você e eu! Ela tinha muita garra e sabia por onde começar. Repito as palavras de Madre Teresa: começamos por mim e por você. Faça essa mesma pergunta: se tenho que começar por mim mesmo, por onde devo começar? Abram seus corações para que Jesus lhes fale. Queridos amigos, não se esqueçam: vocês são o campo da fé! Vocês são os atletas de Cristo! Vocês são os construtores de uma Igreja mais bela e de um mundo melhor.1

O tema escolhido para o evento foi retirado do Evangelho de Mateus e corresponde ao mandado missionário do Senhor: “Ide e fazei discípulos entre todas as nações” (Mt 28, 19). Segundo o padre Geraldo Dondici Vieira, diretor do Departamento de Teologia da PUCRio, “Esse tema, de fazer discípulos, de chamar outros discípulos para a comunhão e o convívio com o Senhor, é o tema mais querido do Evangelho de Mateus [...]. E, na verdade, só faz discípulo quem já é discípulo, quem convive com o Senhor”.2 A jornada, portanto, antes de ter sido uma chamada a sair, foi um convite feito aos jovens a voltarem-se para o Senhor, em quem podem encontrar forças para viver autenticamente a sua fé, e anunciá-la ao mundo. Tal como outrora dizia Bento XVI: Fazer conhecer Cristo é o dom mais precioso que podemos fazer aos outros. A evangelização sempre parte do encontro com o Senhor Jesus: quem se aproximou d’Ele e experimentou o seu amor, quer logo partilhar a beleza desse encontro e a alegria que nasce dessa amizade. Quanto mais conhecemos a Cristo, tanto mais queremos anunciá-lo.3 Neste ano, a Igreja, portanto, renova seu compromisso com a juventude percebendo a importância

da força jovem no processo da evangelização. Como diz o Documento de Aparecida: “os jovens e adolescentes representam enorme potencial para o presente e o futuro da Igreja e de nossos povos”.4 Contudo, o próprio documento ressalta algumas situações preocupantes. A primeira é a ideologia do mercado e exaltação do consumo, pois, “a avidez do mercado descontrola o desejo de crianças, jovens e adultos”.5 As novas gerações são as mais afetadas por essa cultura do consumo em suas aspirações pessoais mais profundas. Isso faz com que para as novas gerações o futuro se manifeste como incerto.6 Também as crises da família produzem, na juventude, profundas carências afetivas e conflitos emocionais,7 e ainda há o uso indiscriminado e abusivo da comunicação virtual, o que provoca uma perigosa alienação. Referente à questão da afetividade e sexualidade, não encontramos nas Palavras do Papa Francisco, durante a Jornada, explícitas e detalhadas reflexões a respeito. Contudo, o papa incentivou os jovens a se rebelarem contra a ‘cultura do provisório’. Mostrando que o matrimônio não é uma instituição fora de moda como muitas vezes se prega: Há quem diga que hoje o casamento está fora de moda. Está fora de moda? Perguntou Francisco. “Nããããão!”, responderam os jovens, em coro. A todos, Deus nos chama à santidade, a viver a sua vida, mas tem um caminho para cada um. Alguns são chamados a se santificar, constituindo uma família através do sacramento do matrimônio”, continuou. Na cultura do provisório, do relativo, muitos pregam que o importante é ‘curtir’ o momento, que não vale a pena se comprometer por toda a vida, fazer escolhas definitivas, ‘para sempre’, uma vez que não se sabe o que reserva o amanhã. Peço que vocês sejam revolucionários, que vão contra a corrente; sim, nisto peço que se rebelem: que se rebelem contra esta cultura do provisório que, no fundo, crê que vocês não são capazes de assumir responsabilidades, que não são capazes de amar de verdade. Tenham a coragem de ‘ir contra a corrente’. Tenham a coragem de ser felizes!8

2

JMJ RIO 2013. Lema da Jornada. Disponível em <http://www.rio2013.com/pt/a-jornada/lema-da-jornada>. Acesso em: 20 jul. 2013.

3 Cf. JMJ RIO 2013. Lema da Jornada. Disponível em:<http://www.rio2013.com/pt/a-jornada/lema-da-jornada>. Acesso em: 20 jul. 2013. 4

CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM). Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. Brasília: CNBB, 2007, n. 443. 5

Ibid., n. 50.

6

Cf. Ibid., n. 51.

7

Cf. Ibid., n. 444.

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São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 29 - 40, jul. / dez. 2013.


PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS Para que os jovens realizem essa ‘revolução’, esse ‘nadar contra a corrente’, é preciso que a Igreja não se distancie deles, não os deixe desamparados, mas caminhe com eles, oferecendo-lhes acolhida e apoio. Caminhar com a juventude, significa considerar os jovens como grandes protagonistas e imprescindíveis forças para impregnar o mundo com os valores do Evangelho de Jesus Cristo. O fervor que transparecia no rosto dos jovens durante a Jornada nos fez perceber que a juventude não quer apenas existir, mas sim, viver e viver com entusiasmo, com prazer, seriedade, autenticidade, enfim, com plenitude. Os jovens não querem apenas cumprir normas e obrigações, mas viver positivamente e com sentido. É preciso apostar nos jovens, confiar na sua força e capacidade, ajudá-los a tornarem-se protagonistas de sua própria história. É preciso compreender a realidade e os anseios da juventude e com ela buscar um novo tempo. A luz para esse novo tempo protagonizado pelos jovens é, incontestavelmente, o seu encontro com Jesus Cristo Vivo, seu seguimento na Igreja e sua luta na sociedade. Neste mundo de instabilidade, de fluidez e de laços frágeis e descartáveis, da exaltação do egoísmo e da idolatria do prazer, é preciso enfatizar, portanto, as palavras do Beato João Paulo II: “Só o que é construído sobre Deus e sobre o amor é durável”.9 É a partir, portando, da estabilidade do amor que compreendemos a nós mesmos e podemos viver os valores do Evangelho com autenticidade de fé e coerência moral também no âmbito da afetividade e sexualidade.

1 O JOVEM NO ATUAL CONTEXTO SOCIOCULTURAL As pessoas, diante das bruscas e rápidas transformações do contexto em que vivemos ficam

atordoadas com o ritmo acelerado do curso da história e desnorteadas por não mais confiarem em seus critérios. Por isso, muitas vezes, sentem-se incapacitadas para responder às novas situações.10 No âmbito da afetividade, em um ambiente de individualismo, presenciamos a consolidação de uma afetividade autônoma e narcisista. Notadamente, as novas gerações encontram dificuldade em manter relações permanentes e compromissadas, preferem relacionamento restrito ao encontro casual.11 Nessa situação, todo tipo de vínculo e cobranças parecem um pecado contra a liberdade e um atentado à autonomia. Contudo, como pensa Libânio, a afirmação da autonomia e da subjetividade extrema, comum e inegociável entre os jovens, também produz um empobrecimento da consciência do mistério do ser humano e de sua existência. Dessa forma, a tendência é que as realidades permaneçam subjugadas ao arbítrio e à liberdade humana, que decide acerca do bem e do mal ou sobre os valores, rejeitando qualquer instância objetiva ou exterior ao sujeito, sem abertura à alteridade.12 Além disso, o Sistema econômico neoliberal e capitalista nas economias industrializadas cria uma árdua competição. Essa fervorosa competição faz com que as funções profissionais sejam eleitas como prioritárias entre os objetivos estabelecidos nos projetos de vida. O casamento, por exemplo, deixa de ser a razão da felicidade futura, para se submeter à realização profissional. Isso, se por um lado, pode conduzir a matrimônios mais maduros e conscientes, por outro lado, promove relações paralelas, casuais e não institucionais. Assim, vemos projetos em vista de se casar e ter filhos serem adiados ou até mesmo descartados devido à busca de formação profissional cada vez mais prolongada, resultando em maior permanência dos jovens na casa dos pais, por causa da dependência econômica.13 Neste momento da história, portanto, os jovens se deparam com grande fragilidade de instituições que outrora eram incumbidas de acolhê-los e servi-los, como

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DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Papa diz que casamento não está ‘fora de moda’. Disponível em: <http://www. diario de pernambuco.com.br/ app/noticia/mundo/2013/07/29/interna_mundo,453114/papa-diz-que-casamento-nao-esta-fora-de-oda.shtml>. Acesso em: 29 jul. 2013. 9

AZEVEDO, Walmor Oliveira. A juventude quer viver. Disponível em: <http:// www. cnbb. org.br/ site/ articulistas/dom-walmoroliveira-de-azevedo/12431-a-juventude-quer-viver>. Acesso em: 29 jul. 2013. 10

Cf. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Fraternidade e juventude: texto-base CF 2013. Brasília: CNBB, 2012, n. 17.

11

Cf. Ibid., n. 20.

12

Cf. LIBÂNIO, João Batista. Para onde vai a juventude? 2. ed. São Paulo: Paulus, 2012, nn. 24-26.

13

Cf. CNBB, 2012, nn. 18-19. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 29 - 40, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS a família, hoje fragmentada. E, mesmo as paróquias, às vezes, mais burocráticas do que comunitárias, pastorais e missionárias, deixam pouco espaço para a criatividade juvenil ou para discussões de temas que lhes dizem respeito. É claro que isso fragiliza a força juvenil, mas, ‘graças a Deus’, não elimina a sua esperança: “a brava juventude não arrefece diante das dificuldades e vai desbravando novos caminhos com seu protagonismo”.14 Os jovens não temem os desafios, por isso, estão sempre a procura de novos espaços, de ‘algumas janelas’ quando encontram muitas portas fechadas. Assim, vão desbravando novos caminhos de realizações e também de vivências de fé em diferentes meios de interação. Atualmente, o novo jeito de o jovem interagir tem suas raízes na comunicação em rede: as chamadas redes sociais. Uma teia de novas tecnologias em que se pode ser rapidamente ouvido, visto, considerado, ‘curtido’. Os jovens têm construído suas relações a partir desses meios que se tornaram fundamentais como instrumentos de comunicação e estilo de vida.15 Porém, as antigas formas de comunicação e linguagem não podem ser abandonadas. Há, portanto, a necessidade de proporcionar a esta geração hiperconectada a possibilidade de conexões pessoais duradouras e resistentes às crises,16 a utilização dos meios virtuais de comunicação como instrumentos de comunhão e não de alienação, principalmente da alienação provocada pela ideologia pornográfica amplamente presente nesses meios. Vale ressaltar aqui, as palavras de Bento XVI: A vós, jovens, que vos encontrais quase espontaneamente em sintonia com estes novos meios de comunicação, compete de modo particular a tarefa da evangelização deste “continente digital” (Mensagem para o XLIII Dia Mundial das Comunicações Sociais, 24 de Maio de 2009). Aprendei, portanto, a usar com sabedoria este meio, levando em conta também os perigos que ele traz consigo, particularmente o risco da dependência, de confundir o mundo real com o virtual, de substituir o encontro e o diálogo direto com as pessoas por contatos na rede.17 14

2 JUVENTUDE E SEXUALIDADE Gostaria de iniciar a elaboração deste item com uma citação muito significativa do Documento 85 da CNBB. O Documento, voltado para os jovens, ressalta a necessidade da educação para o amor. Assim assevera: Um programa de educação para o amor que integre a sexualidade em um projeto mais amplo de crescimento e maturidade no qual ela seja baseada na liberdade e não no medo; leve em conta as exigências da ética cristã; leve ao amor e à responsabilidade; desperte para a autoestima, principalmente no cuidado com o corpo do próprio jovem e dos outros; tenha Deus, criador da vida, da sexualidade e da alegria, como sua fonte de inspiração.18

O documento demonstra a importância de uma educação para o amor e aponta os elementos fundamentais a serem levados em conta nessa mesma educação: a integração da sexualidade num projeto amplo de vida; a importância da liberdade em vez do medo; da luz oferecida pela ética cristã; da responsabilidade; a promoção da autoestima e do cuidado com o corpo e ainda o caráter teológico ou espiritual da sexualidade, pois, Deus é sua fonte de inspiração. Com base nesses elementos de ordem profundamente positiva é que podemos falar de sexualidade da juventude no contexto atual que vivemos, onde liberdade, autonomia, realização, satisfação e prazer são palavras marcantes. De fato, o desejo de liberdade, a busca pela autonomia, a descoberta da própria identidade, a criatividade lúdica, o conhecimento a partir das experiências vividas e dos conflitos enfrentados, a quebra de barreiras, tabus e obstáculos, o confronto com autoridades estabelecidas e institucionais, o medo ou despreparado diante de compromissos duradouros e definitivos são características significativas do mundo da juventude. Destarte, isso não pode ser compreendido como uma total ausência de seriedade ou falta de personalidade, mas características de uma fase de

CNBB, 2012, n. 25.

15

Cf. Ibid., n. 37.

16

Cf. CELAM, op. cit., n. 489.

17 JMJ LIMEIRA. Mensagem do Papa Bento XVI para a XXVIII Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro, em julho de 2013. Disponível em: <http://jmjlimeira org.br/mensagem-do- papa-bento-xvi-para-a-xxviii-jornada-mundial-da-juventude-no-rio-dejaneiro-em-julho-de-2013>. Acesso em: 29 jul. 2013. 18

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Evangelização da juventude: desafios e perspectivas pastorais (Documentos da CNBB, 85). São Paulo: Paulinas, 2007, n. 103.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS descobertas, de perplexidade diante de um mundo de novidades que aos poucos vai se descortinando. Tudo isso apresenta um nítido reflexo nos diversos âmbitos que compõem a vida dos jovens. Do ambiente familiar, educacional, profissional até o psicológico, afetivo e sexual. Às vezes, dizemos que os jovens não levam à vida a sério, mas há também o perigo de extrema gravidade de não os levarmos devidamente a sério. Quando falamos de relações descartáveis, onde o que conta é a quantidade e não a qualidade, esquecemos que o jovem vive no mundo que apresenta uma clara necessidade de autoafirmação, onde o ter é mais importante que o ser, e isso, não envolve somente objetos, mas também pessoas. E ainda, será que essa situação, muito mais que uma revelação da fragilidade dos laços da juventude, não é também uma denuncia contra um moralismo ‘infantilizante’ e acrítico, marcado pela obrigatoriedade externa e fria, no qual a lei é mais importante que os sentimentos, o prazer, a alegria e o amor? É claro que essa reação de confronto e negação também suscita oposições, sobretudo quando no anseio de mudanças e renovações, se descartam valores importantes na manutenção da vida. Por isso, um dos grandes desafios da ética sexual e da pastoral catequética, no que se refere ao mundo dos jovens, é a busca de diálogo consciente e equilíbrio de comportamentos e avaliações, no qual pontos outrora relevantes podem ser criticados, reformulados ou recriados. Contudo, que não caiamos no mero hedonismo, na permissividade, no relativismo e numa exaltação errônea da liberdade que, contraditoriamente, acontece na escravidão do desejo e dos impulsos. De fato, quando falamos de sexualidade com os jovens, tudo parece muito bem, antes de entrarmos nos pontos nevrálgicos da moral sexual católica. Quando falamos do tema da relação entre sexualidade e matrimônio, sexualidade e procriação, sexualidade e compromisso estável, sexualidade e castidade, por exemplo, tudo já começa a se complicar e temos o grande risco de falarmos às paredes, aos surdos, sermos ridicularizados ou nos apresentarmos como insignificantes vozes que ressoam inutilmente no deserto. Parece que sexualidade no mundo juvenil e moral católica são pontos fatalmente antagônicos que nem mesmo ‘ajeitando ali’, ‘fechando os olhos aqui’, conseguimos uma convincente conciliação. Mas o que fazer? Omitimo-nos e deixamos as coisas acontecerem como estão? Deixar os jovens usufruírem desta bonita

fase da vida sem lhes colocar limites para não frustrálos diante dos diversos ‘sins’ de possibilidades do mundo pós-moderno, com os nossos ‘nãos’ educativos, mas dificilmente aceitos e compreendidos? Realmente, a nossa ação pastoral se depara com um grande dilema, um duro desafio, mas cremos que a omissão e o silêncio não sejam, neste caso, a melhor postura de profetas. Por isso, longe de um moralismo normativo e prescritivo é necessário empenharmo-nos numa reflexão aberta e dialogante com o mundo dos jovens sobre uma temática que muito mais que polêmica, conflituosa e divergente, é envolvente e profundamente rica de conteúdos e, embora tenha sido quase que predominantemente vinculada ao pecado, sem nenhum receio, hoje podemos inseri-la no árduo caminho de transcendência e salvação. Indubitavelmente, a sexualidade é tanto um dom, com um lugar teofânico. Quando se busca viver a sexualidade, verdadeiramente como um dom de comunhão, amor e doação, certamente Deus se comunica ao mundo através dela. Ajudar os jovens a descobrir o sentido teológico, espiritual e santificante da sexualidade, é, portanto, uma grande missão eclesial e catequética. Isso certamente ajudará na valorização de cada um como pessoa, como imagem de Deus e templo do Espírito e cooperador dos projetos divinos em todas as circunstâncias da vida, também no âmbito sexual. E justamente nessa perspectiva é possível entender o que São Paulo dizia: “Tudo posso, mas nem tudo me convém”. (1Cor, 6, 12) Falar de sexualidade numa perspectiva pastoral e catequética, obviamente, não se restringe a dizer ‘o que pode’ e ‘o que não pode’, ‘o que deve’ ou ‘o que não deve’. Em outras épocas, esse caminho doutrinal pode ter ajudado as pessoas a crescerem e amadurecerem, mas essa postura não condiz mais com as exigências de nosso contexto. O mundo em que vivemos clama por reflexão, por pessoas mais conscientes que façam e vivam, mas que saibam por que fazem e por que vivem. De pessoas que não cumpram regras apenas porque outros dizem que é bom, que é bonito ou importante, mas que elas mesmas interiorizem e percebam o sentido em suas próprias vidas e, por isso, assumem a experiência. Sendo assim, muito mais que ditar normas, repetir preceitos, é preciso ressaltar o papel propositivo e vocacional da moral católica no âmbito da sexualidade e mostrar que é possível viver toda a beleza da sexualidade na juventude sem renunciar jamais a beleza mais esplêndida deixada por Cristo, a riqueza do Evangelho como orientação para a felicidade e a paz. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 29 - 40, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS Numa catequese com tonalidade positiva e propositiva, a sexualidade passa a ser desvinculada da imediata ligação com o pecado, para se unir ao projeto salvífico. É uma linguagem do corpo, uma exteriorização da alma, uma fundamental expressão de amor e comunhão entre as pessoas e também com Deus. A sexualidade não é algo à parte da pessoa, é uma expressão do ser pessoal. O jovem, portanto, que aos poucos vai tomando consciência do seu valor como pessoa aos olhos do mundo e, principalmente, aos olhos de Deus, também vai percebendo a riqueza e o valor da própria sexualidade e reconhecerá a importância da autoproteção e valorização da riqueza e energia de comunhão que porta consigo. Existe um princípio evidente: quanto mais me valorizo, mais reconheço que a sexualidade não é algo banal e os relacionamentos não podem ser simplesmente descartáveis, baseados na quantidade superficial, mas sim, na profundidade e fidelidade, no sacrifício e no compromisso. Por isso, a primeira questão não deveria ser ‘ter ou não ter sexo’, ‘nesta ou naquela idade’, ‘neste ou naquele lugar’, ‘com preservativo ou sem preservativo’. Mas, ‘quem sou eu?’ ‘Qual o meu valor como pessoa?’ ‘E a pessoa que está comigo, quem é ela?’ ‘Que valor ela tem?’ Quando a sexualidade é desvinculada da pessoa, ela esvazia-se, torna-se algo fútil, valorizado só momentaneamente, porque a própria pessoa só tem valor instrumental, funcional, só vale para aquele momento. Sem valorização da pessoa, a sexualidade se aproxima do animalesco. E aí, as diversas experiências não enriquecem, pelo contrário, empobrecem. Neste caso, quanto mais tem, menos se realiza pessoalmente. Nesse sentido, é oportuno recordar as instruções do Magistério: a sexualidade é uma componente fundamental da personalidade, um modo de ser, de se manifestar, de se comunicar com os outros, de sentir, de expressar e de viver o amor humano. Ela é parte integrante do desenvolvimento da personalidade e do seu processo educativo. A sexualidade caracteriza o homem e a mulher não somente no plano físico, como também no psicológico e espiritual marcando toda a sua expressão. A sexualidade deve ser orientada, elevada e integrada pelo amor que é o único a torná-la

verdadeiramente humana. Ela realiza-se em sentido pleno somente com a conquista da maturidade afetiva, que se manifesta no amor desinteressado e no total dom de si.19 A sexualidade, portanto, não se reduz ao âmbito dos impulsos genitais; ela não se define pela genitalidade nem muito menos pelo mero ato sexual. A sexualidade abrange toda a pessoa humana em todas as suas expressões. A sexualidade humana é uma energia que nos envolve dos pés à cabeça. Expressa-se em nossa condição de sermos homem ou mulher. Ela diz respeito ao conjunto de toda a nossa personalidade: comportamento social, atitudes morais, valores éticos, religiosos políticos [...] O desenvolvimento de uma sexualidade sadia depende muito das primeiras descobertas da adolescência. A sexualidade humana iluminada pelo Evangelho ensinanos a nos apaixonar por alguém, a assumir uma vida a dois pelo casamento, a construir uma família, a alimentar sonhos e desejos, a entregar a vida pelo Reino na vida consagrada [...] Literalmente, não podemos reduzir a capacidade de amar à capacidade de fazer sexo.20

A sexualidade também não pode ser reduzida a função ‘procriativa’, pois ela é muito mais: é comunicação entre homens e mulheres que respondem ao projeto de Deus.21

3 DIMENSÕES DA SEXUALIDADE Como vimos, a sexualidade não se resume aos órgãos sexuais ou ao exercício da genitalidade; ela envolve o modo de ser no mundo, expressa-se em outras atividades e depende do contexto em que se vive. Pressupõe formação, amadurecimento afetivo: capacidade de orientar sentimentos, amar e ser amado, assumir compromissos e fidelidade.

3.1 DIMENSÃO BIOLÓGICA A história de cada pessoa e da sua sexualidade tem suas raízes primeiras implantadas na dimensão biológica. Esta é a primeira dimensão a ser considerada numa

19

Cf. CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA. Orientações educativas sobre o amor humano: linhas gerais para uma educação sexual. SEDOC 16 (1984) 771-792, p. 772.

20

LELO, Antônio Francisco. Projeto Jovem: para grupos de perseverança (livro do perseverante). 3. ed. São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 75-76. 21

Cf. BENTO, Luiz Antônio. Educar para o amor. Diálogo 47 (2007) 16-20, p. 18.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS reflexão sobre a sexualidade humana. Por trás das configurações biológicas escondem-se milhares de genes agrupados nos cromossomos. Também nesta mesma área podemos falar da importância dos hormônios. Enquanto os ovários produzem estrogênio e progesterona, os testículos produzem testosterona. Os hormônios são responsáveis, antes de tudo, pelo desenvolvimento dos caracteres secundários: timbre de voz e outras características que irão configurar melhor o homem e a mulher. A dimensão hormonal da sexualidade tem igualmente um papel importante no equilíbrio da pessoa ao longo de toda a sua vida; um desequilíbrio hormonal pode, eventualmente, ser um dos responsáveis por desequilíbrios comportamentais. Também aqui assume um papel decisivo o córtex cerebral. É a partir do córtex cerebral que a pessoa toma consciência de si mesma, filtra os estímulos externos e mesmo internos, podendo assim administrar o seu próprio comportamento.22 Portanto, dentro da dimensão biológica, podemos falar da sexualidade com fontes genéticas, sexualidade hormonal e sexualidade cerebral.

3.2 DIMENSÃO SOCIOCULTURAL Todas as sociedades e culturas têm normas e estas se apresentam como um processo de civilização. A maneira como as pessoas se comportam é reflexo do ambiente cultural em que vivem. Através desta espécie de ‘memória’, que é construída ao longo das gerações, é que o ser humano vai descobrindo o sentido e os parâmetros para si e para o grupo com o qual se identifica.23 Numa cultura como a nossa, marcada pela exaltação do sexo, do prazer, da supervalorização do corpo, da sensualidade, é claro que isso influencia a nossa maneira de conceber a sexualidade e também marca profundamente o modo como os jovens encaram e vivem a sexualidade. A sexualidade, portanto, é também um fenômeno social. Para uma vivência da sexualidade pautada pelas orientações da moral cristã, os jovens são convidados a nadar contracorrente e se confrontar com diversas ideologias culturais.

3.3 DIMENSÃO PSICOLÓGICA A sexualidade não é tudo (obsessão), nem o mais importante, mas uma dimensão essencial da vida

inserida num processo mais amplo da própria personalidade. Daí, a necessidade de sentido e integração no conjunto da vida. Aqui se dá o que se denomina identidade sexual, que poderia ser expressa a partir dos seguintes aspectos: o gênero, a orientação ou a condição sexual, o sentir-se como homem e como mulher. É a partir do âmbito psicológico que a pessoa se percebe como pertencente a determinado sexo e a agir em consequência. A partir da consciência psicológica é que a pessoa começa a sentir necessidade de comunicar-se, de entrar em relação com as demais. E é neste processo que a pessoa vai se sentir aceita ou rejeitada, com tudo o que isto implica em termos de auto-imagem. É ainda neste processo que a pessoa vai se masculinizando ou feminilizando, ou seja, se assume ou rejeita, em contraposição às outras determinações sexuais.24

O ser humano, portanto, encontra-se em contínuo desenvolvimento, rumo ao amadurecimento; também a sexualidade participa desse dinamismo. Neste processo, podem ser encontrados conflitos e traumas, daí a necessidade de superação. Por isso, às vezes, pode ser necessária a ajuda psicológica e espiritual. Há casos em que se torna muito importante a colaboração de especialistas. No processo catequético é importante a percepção dessa situação.

3.4 DIMENSÃO AFETIVA A dimensão afetiva interage com a dimensão psicológica, mas sem com ela se confundir. A afetividade é um desdobramento da sexualidade. A afetividade é constituída pela ressonância interna que o contato com o mundo externo e com os outros vai deixando impressa nas profundezas de cada pessoa humana.25 A afetividade corresponde a toda a carga de sentimento que deve acompanhar todo exercício da sexualidade, garantindolhe um sentido verdadeiramente humano.

3.5 DIMENSÃO RELIGIOSA E ESPIRITUAL O próprio dinamismo sexual comporta uma abertura para o Transcendente. As aspirações de plenitude implícitas no desejo sexual não podem realizar-se em nenhum dos planos assinalados anteriormente. É

22

Cf. MOSER, Antônio. O Enigma da Esfinge: a sexualidade. 3. ed. Petrópolis. Vozes, 2002, pp. 37-39.

23

Cf. Ibid., p. 40.

24

Ibid., p. 41.

25

Cf. Ibid., p. 43. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 29 - 40, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS exatamente neste nível que se insere um prisma espiritual, podendo-se falar de uma verdadeira ‘espiritualidade’ da sexualidade. É neste nível espiritual que se encontra o sentido profundo da sexualidade, segundo o qual é possível esboçar uma verdadeira teologia sexual na qual a sexualidade não é vista como algo separado da dignidade humana ou da santidade, um chamado feito a todos nós.26 A sexualidade está inserida naquela realidade muito boa criada por Deus. Isso, se por um lado é graça, por outro é compromisso, é tarefa: o homem deve viver a sexualidade de modo que corresponda à própria dignidade de imagem de Deus recebida na criação e também se santificando dia a dia e glorificando ao Senhor através dela.

4 A PROBLEMÁTICA DA SEXUALIDADE EM NOSSO TEMPO Dentre os problemas que mais preocupam a reflexão pastoral a respeito da sexualidade humana estão: a) A tendência crescente em fazer da sexualidade um artigo de compra e venda, isto é, a sexualidade inserida no sistema de mercado, tratada como mercadoria a ser desfrutada segundo a liberdade e o interesse de cada um. É o fenômeno da mercantilização ou coisificação da sexualidade humana. A pornografia, o uso ideológico da sensualidade, sobretudo, feminina, em suas variadas formas, inclusive no ambiente virtual, é um dos principais exemplos desta tendência. Numa reflexão pastoral sobre a sexualidade, é preciso, portanto, profeticamente, denunciar toda comercialização, banalização da sexualidade e coisificação das pessoas. Pois isso, certamente, não corresponde à mensagem libertadora da Boa Nova de Cristo. b) A redução da sexualidade humana ao nível genital, isto é, ao sexo, destituindo-a daquilo que ela tem de mais genuíno: o amor e o compromisso. É própria do ser humano a capacidade de fazer do relacionamento sexual uma expressão de afeto, de amor, vivida na doação total e no compromisso com o outro. A perda daquilo que há de mais específico na sexualidade humana tem provocado a clara desumanização das expressões sexuais, tornando-as carentes de sentido. Desse modo, a catequese, preocupada com uma 26

educação sexual abrangente e com a formação da pessoa na sua totalidade, deve combater esse reducionismo, propondo uma compreensão da sexualidade nas suas diversas dimensões, etapas e implicações. c) Em consequência destes dois fatores anteriores, além de outros, encontramos infelizmente o crescimento da violência sexual, em suas variadas formas, como os casos de estupro e outros abusos sexuais. É triste quando uma energia criada para ser um impulso de amor e comunhão, seja instrumento de violência, muitas vezes traumatizando a vida dos adolescentes e jovens. Não raro, na pastoral, encontramos adolescentes e jovens que manifestam comportamentos, na linha sexual, que são frutos de traumas adquiridos pelas experiências dolorosas que enfrentaram. Conhecer sua história de vida é uma estratégia pedagógica importante para ajudálos a viver de modo sadio e alegre a sexualidade, vendoa não como uma energia destrutiva, mas como um elemento fundamental de edificação. d) A questão da diversidade sexual, sobretudo, o tema da homossexualidade e transexualidade, a problemática da atividade sexual fora do contexto matrimonial, o uso do preservativo, são sem dúvida na atualidade, grandes entraves no diálogo pastoral com a juventude. Carecemos, portanto, de uma reflexão teológica mais abrangente, não apenas fundamentada nos princípios da tradicional lei natural, mas que leve em conta a análise histórico-crítica das Sagradas Escrituras e os conhecimentos atuais das ciências humanas, sobretudo, da biologia, antropologia, psicologia e sociologia.

5 A SEXUALIDADE: LINGUAGEM DO CORPO Os jovens do século XXI têm uma marcante tendência à valorização do corpo. O que nem sempre é positivo, sobretudo, quando o corpo é visto apenas como objeto. É preciso frisar, portanto, que o corpo não é somente um objeto de manipulação, ele é um sujeito fundamental na constituição do ser humano, principalmente, no seu aspecto sexual. Meu corpo constitui minha presença no mundo. Não existo sem meu corpo.27

Cf. MOSER, op. cit., p. 44.

27

Cf. DIOCESE DE SÃO MATEUS. Afetividade e sexualidade: projeto nacional tecendo relações. <Disponível em: <http:// pjdiocesesaomateuses.blogspot.com.br/2011/03/afetividade-e-sexualidade-projeto.html>. Acesso em: 28 jul. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS A sociedade atual valoriza muito o corpo saudável e bonito. Passar pelas ruas e ver as pessoas malhando nas academias é, nos dias de hoje, uma cena comum. Alguns para conseguirem um corpo definido segundo os padrões socioculturais da pós-modernidade buscam cirurgias e ‘bombas’ vitamínicas, causando sérios prejuízos à própria saúde. Contudo, a valorização do corpo não pode se reduzir somente ao estético. Não podemos classificar as pessoas segundo um padrão de beleza estabelecido pela mídia. Somos um corpo com inteligência, vontade, sentimentos, afetos e atração. Numa palavra: Somos um corpo animado e uma alma encarnada. Não é só a aparência que conta. Nosso corpo deve refletir o nosso interior, pois ele é realmente uma bela obra de Deus, e tem necessidade de uma alma igualmente sadia que mostre sua grandeza. É nesse sentido que a Bíblia diz que o corpo é a casa, o templo do Espírito Santo (Cf. 1Cor 6, 19).28 Se por um lado, a exaltação do corpo não é uma atitude louvável, também não o é o seu desprezo. E isso se dá de diversos modos, tanto pelos jovens que são usados e manipulados sexualmente como se fossem objetos nas relações, nos meios de comunicação social e pelas ideologias pornográficas, como também pelo consumo de álcool, do cigarro e outras drogas fatalmente destrutivas. O corpo humano não é apenas um dado biológico: é aquilo através do qual eu existo, me expresso. Ele é presença. De fato não deveríamos dizer, ‘eu tenho um corpo’, mas sim ‘eu sou um corpo’. A primeira expressão denota objeto, já a segunda denota existência, pertença, identidade. O homem é chamado a responder à chamada evangélica na sua totalidade, incluindo a dimensão corporal. Porém, deve fazer com que todos os dinamismos corpóreos, os desejos, os instintos, as pulsões, sejam integrados harmoniosamente no projeto da pessoa e sejam orientados a participar daquela plenitude humana e daquela harmonia que Cristo nos restituiu. O corpo, portanto, pode ser um caminho de encontro com os outros e com Deus, muito mais que lugar de pecado, manipulação e afastamento. A sexualidade é indubitavelmente uma realidade do corpo, mas pela unidade da constituição do homem, também envolve uma dimensão espiritual, participa da

sua natureza de espírito encarnado, assumindo significados novos e transcendentes. A sexualidade humana não é somente uma realidade instrumental, ao serviço de determinados objetivos, como a transmissão da vida. É uma forma de linguagem que permite ao homem a comunicação, e colocando-se em relação com o outro, diferente e complementar, faz com que ele encontre sua própria realização como pessoa.29 O corpo humano é a janela por onde assoma o espírito para fora, a vereda que utiliza quando deseja aproximar-se até as portas de outro coração, a palavra que possibilita encontro. Sua tarefa não consiste principalmente em objetos biológicos, indispensáveis sem dúvida para a própria existência, mas em servir, sobretudo, para essa outra função: a de ser epifania de nosso ser pessoal, como um idioma comum para entrar em comunhão com os outros. Enfim, a dimensão corpórea possui sentido transcendente, de abertura e revelação, além de um enfoque simplesmente biológico. De fato, o corpo humano é algo mais do que um conjunto anatômico de células vivas.30 A genitalidade, no entanto, refere-se à base biológica e reprodutora do sexo e ao exercício, portanto, dos órgãos adequados para essa finalidade. À sua esfera pertencem todas as atividades que mantém vinculação mais ou menos próxima à função sexual em seu sentido restrito. Será sempre uma forma concreta de viver a relação sexual, mas não a única nem tampouco a mais frequente e necessária.31 Para analisarmos pastoralmente e dialogarmos mais significativamente com os jovens a respeito da sexualidade precisamos ter uma grande clareza na relação entre sexualidade e corporeidade e considerar que o corpo, longe de ser mero instrumento de prazer, simbolismo estético, simples realidade anatômica ou mesmo fonte de pecado, é uma expressão da própria pessoa, uma linguagem da sexualidade com anseio de encontro e comunhão. O corpo é mais do que biologia: é uma realidade onde se implantam as sementes de eternidade e se manifestam os sinais do Reino [...] O corpo humano é mais que um corpo qualquer; porque foi criado à imagem de Deus, pode tornar-se semelhante a Ele, transformando-se em templo do Altíssimo. E em se

28

Cf. LELO, Antonio Francisco. Projeto Jovem: para grupos de perseverança (livro do catequista). São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 86-87. 29

Cf. GATTI, Guido. Morale sessuale: educazione dell’amore. Torino: Elledici, 1998, p. 55.

30

Cf. AZPITARTE, López Eduardo. Ética da sexualidade e do matrimônio. São Paulo: Paulus, 1997, p. 49.

31

Cf. Ibid., pp. 50-51. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 29 - 40, jul. / dez. 2013.

37


PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS transformando em templo de Deus, o corpo humano está destinado a ser um dia um corpo glorioso, à semelhança do corpo glorioso do próprio Cristo.32

6 A SEXUALIDADE: LINGUAGEM DO AMOR Costuma-se dizer que o traço mais típico da sexualidade moderna é ter superado seu destino primário e quase exclusivo da procriação. Contudo, se afirmamos que o sexo não serve somente para procriar, que outro sentido lhe podemos atribuir? No fundo, não existe senão uma dúplice alternativa: ou a colocamos a serviço do amor, que dignifica a pessoa e integra seus outros objetivos, ou se converte só em prazer e diversão, à margem de toda vinculação afetiva. As consequências de uma ou outra opção serão muito diversas, pois cada projeto, para o qual se orienta a práxis, apontaria itinerário bastante divergente. Muitos se aproximam da sexualidade desde outros pontos de vista para encontrar nela desafogo fisiológico, escape da tensão nervosa, forma de entretenimento, gratificação pessoal, ou droga que estimula e eleva o vigor. Sua função é inteiramente interessada e utilitarista, como um fato que aduz benefícios e gratificações. Se o sexo deixou de estar vinculado à procriação, muitas vezes também é desvinculado do amor. O prazer que provoca e que, inclusive, compartilha-se, é, às vezes, carente de conteúdo afetivo e amoroso.33 Contudo, se o simples prazer pode ser alcançado mediante qualquer tipo de afetividade genital, o prazer humano e totalizante exige contexto de amor e compromisso. Talvez por aqui se pudesse explicar o sentimento de vazio daqueles que, depois de tantas liberdades e experiências se sentem frustrados, como se houvesse algo de mais profundo que não alcançaram com as meras experiências prazerosas buscadas e vividas.34 Se existe algo capaz de cobrir o desejo de felicidade, é preciso se referir de imediato ao amor. Só ele consegue fechar qualquer ferida humana para não deixar a dor da insatisfação, do que não se pôde realizar. Nessa tendência para o carinho como meta é onde o prazer adquire seu 32

MOSER, op.cit., pp. 69-70.

33

Cf. AZPITARTE, op. cit., p. 67.

34

Cf. Ibid., p. 68.

35

MOSER, op. cit., p. 162.

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sentido verdadeiro, pois se revela como sinal e expressão de uma conduta que não se sustenta por ele, com sua fragilidade momentânea, mas por uma força que o transcende e permanece inclusive quando desapareceu. Ao converter a relação sexual numa relação amorosa, já não há lugar para o vazio. Se o prazer se oculta e esfria, a chama do amor esquenta como um rescaldo, e o gozo da entrega continua, enchendo de felicidade o coração dos que assim se querem. O prazer se vive, então, não como objetivo primário, mas como símbolo da entrega amorosa e sopro da alma. Nesse sentido é o amor a causa do prazer, não é o prazer que encontra razão e sentido em si mesmo. Com razão sempre se afirma que o amor é o único critério eminentemente evangélico. Só que não se trata de um amor qualquer, mas um amor que pode ser definido como ‘oblativo’. Se dizemos que o amor que se constitui no critério máximo da ética sexual é ‘oblativo’, já excluímos o amor interesseiro, egoísta, descompromissado, volúvel. Em contraposição, acentuamos o compromisso, a vontade de assumir a pessoa do outro em sua totalidade e em todas as circunstâncias. Acentuamos mesmo a perspectiva da cruz: só ama verdadeiramente quem é capaz de dar a vida pelo outro. O princípio do amor assim enunciado não é nem vago nem pouco exigente. Ele questiona profundamente não apenas os não-casados, mas também os casados. Pois a fronteira não pode ser estabelecida por um ‘estado de vida’, mas pela maior ou menor dose de egoísmo; pela maior ou menor oblatividade; pelo maior ou menor empenho em assumir a pessoa do outro.35

7 A SEXUALIDADE: LUGAR TEOLÓGICO A Palavra de Deus, segundo o relato bíblico da Criação, mostra primeiramente o valor e a dignidade da sexualidade humana. É o próprio Deus quem cria o ser humano como homem e mulher, isto é, como ser sexuado, como afirma o livro do Gênesis: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou” (Gên. 1, 27). Desse modo, a sexualidade apresenta-se como algo a ser acolhido como dom do Criador, e a ser vivida conforme o projeto divino.


PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS Se concebermos a sexualidade como uma linguagem do amor, podemos também dizer, sem medo que ela corresponde a um lugar teológico ou com mais profundidade, um lugar teofânico. Deus se comunica conosco através do dom da sexualidade quando esta é vivida com compromisso, fidelidade, doação e amor autêntico. É o amor a garantia do sentido ético da sexualidade, como também do seu sentido espiritual. Sem o amor, a vivência da sexualidade acaba reduzida a meras pulsões instintivas, distante da responsabilidade, do compromisso e da transcendência. Sendo assim, torna-se incompatível com a fé. De fato, a vivência da sexualidade não pode ficar excluída da ética, nem à margem da fé, reduzida a um nível meramente instintivo. A fé cristã ilumina e orienta a vivência da sexualidade humana, oferecendo critérios de discernimento ético. À luz da fé, a sexualidade se insere num contexto de conversão permanente que deve englobar toda a vida cristã em seus vários aspectos a fim de chegar à vida nova, à imagem do Homem novo, que é Jesus Cristo. A fé cristã revela-se, deste modo, extremamente importante para motivar e orientar a vivência da sexualidade. É preciso, portanto, ajudar os jovens a redescobrirem a força da vida nova que brota do encontro de fé com o Homem novo Jesus Cristo, capaz de dar o sentido último e a direção maior para todas as dimensões da vida humana, entre as quais está a sexualidade. É Jesus Cristo, portanto o fundamento e o paradigma para a vida moral do cristão. Certamente os jovens encontrando-se com Cristo, fazendo a experiência do seu amor único, envolvente e oblativo, terão forças para enfrentar toda e qualquer ideologia relativista, permissivista e coisificante, para viverem autenticamente como criaturas novas, amadas e libertadas por Cristo, templos do Espírito. E assim, poderão assumir com entusiasmo os valores do Evangelho mesmo na dimensão íntima e pessoal da sexualidade, conduzindo essa energia dentro do processo amplo e contínuo de conversão, santidade e salvação ou mesmo orientando-a de acordo com o projeto vocacional específico. Enfim, nesse e noutros desafios, é importante nas nossas pastorais e movimentos, sempre enfatizar, como o fez o papa Francisco na missa de encerramento da Jornada mundial da Juventude em Copacabana: Jovens,

“a Igreja precisa de vocês, do entusiasmo, da criatividade e da alegria que lhes caracterizam”.36

CONCLUSÃO No final desse artigo queremos expressar nossa alegria em poder desenvolver essa temática num momento muito especial que nossa Igreja está vivendo, esse clima de renovação da evangelização junto à juventude provocado pela Jornada Mundial da Juventude realizada no Rio de Janeiro e, sobretudo, pela presença simples, acolhedora e carismática do Papa Francisco na sua visita ao Brasil para se encontrar com os jovens do mundo inteiro e fazer com que eles se voltem para Cristo e se tornem itinerantes no seu caminho, como discípulos e missionários. Como dissemos no interior do artigo, o Pontífice não refletiu de maneira explícita e abrangente sobre a temática da sexualidade, mas o combate ao relativismo e à cultura do provisório, a promoção do matrimônio como instituição ainda vigente e fundamental para a Igreja e sociedade e a apresentação de Cristo como modelo de vida, de comportamento, de amor e compromisso, são elementos de suma importância para falar de sexualidade junto à juventude, que as pastorais, movimentos, sobretudo, a catequese, não podem perder de vista. De fato, somente proporcionando aos jovens o encontro real e profundo com Cristo e seguindo a sua pedagogia, a iniciação cristã cumprirá o seu papel de forma eficaz e conseguirá atingir o mundo dos jovens na sua pluralidade e exigência, sobretudo no que se refere à afetividade e à sexualidade. Aqui, de forma limitada, apresentamos alguns caminhos, dentre eles: a necessidade de se aproximar dos jovens a partir do contexto sociocultural em que vivem. Para isso, é preciso levar em conta a realidade midiática, principalmente, o mundo virtual e as redes sociais; compreender a sexualidade nas suas mais diversas dimensões, problemáticas, desafios e lacunas ainda abertas da moral cristã; por fim, apresentar a sexualidade não como marca do pecado, mas como uma bonita e saudável linguagem do corpo, linguagem do amor e lugar teofânico, isto é, como um espaço muito significativo da manifestação do Deus-Amor.

36

O E STADO DE SÃO PAULO. ‘A Igreja precisa de vocês’, diz Papa aos jovens em Copacabana. Disponível em: <http:// www.estadao.com.br/noticias/cidades,a-igreja-precisa-de-voces-diz-papa-aos-jovens-em-copacabana, 105 8222,0.htm>. Acesso em: 29 jul. 2013. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 29 - 40, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, Walmor Oliveira. A juventude quer viver. Disponível em: <http:// www. cnbb. org.br/ site/ articulistas/dom-walmoroliveira-de-azevedo/12431-a-juventude-quer-viver>. Acesso em: 29 jul. 2013.

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BENTO, Luiz Antônio. Educar para o amor. Diálogo 47 (2007) 16-20. CONFERÊNCIA GERAL DO ESPICOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM). Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. Brasília: CNBB, 2007. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Evangelização da juventude: desafios e perspectivas pastorais (Documentos da CNBB, 85). São Paulo: Paulinas, 2007. ______. Fraternidade e juventude: texto base CF 2013. Brasília: CNBB, 2012. ______. Na Vigília com os jovens, Papa Francisco diz “vamos jogar no time de Jesus”. Disponível em: <http:// www.cnbb.org.br/site/eventos/juventude/12498-na-vigilia-comos-jovens- papa-francisco-diz-vamos-jogar-no-time-de-jesus>. Acesso em: 29 jul. 2013. CONGREGAÇAO PARA A EDUCAÇAO CATÓLICA. Orientações educativas sobre o amor humano. Linhas gerais para uma educação sexual. SEDOC 16 (1984) 771-792. DIÁRIO DE PERNAMBUCO. Papa diz que casamento não está ‘fora de moda’. Disponível em: <http://www. diario de pernambuco.com.br/app/noticia/mundo /2013/07/29/interna_ mundo,453114/papa-diz-que-casamento-nao-esta-fora-demoda.shtml>. Acesso em: 29 jul. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS LITURGIA E JUVENTUDE LITURGY AND YOUTH Gabriel Frade*

RESUMO: A Jornada Mundial da Juventude e os 50 anos da promulgação da Sacrosanctum Concilium são o ponto de partida para as considerações presentes neste artigo, que busca abordar a relação entre juventude e liturgia considerando o papel dos grupos eclesiais na formação litúrgica do jovem e as eventuais tensões presentes nessa relação. Palavras-chave: liturgia, juventude, grupos eclesiais. ABSTRACT: World Youth Day and the 50th Anniversary of the promulgation of Sacrosanctum Concilium are the starting point for the considerations presented in this article, which seeks to address the relationship between youth and liturgy considering the role of ecclesial groups in the liturgical formation of young people and possible tensions present in this relationship. Keywords: liturgy, youth, ecclesial groups.

1 A REFORMA DA SACROSANCTUM CONCILIUM O documento do Concílio Vaticano II que estipulou os princípios norteadores para a reforma da liturgia,

como é notório, foi a Constituição Sacrosanctum concilium2 e, embora o seu texto não tenha demonstrado maiores preocupações sobre questões mais específicas, nem por isso deixou de abarcar temáticas mais particulares – como, por exemplo, a da juventude – ao tratar da liturgia em seus princípios gerais. De fato, dentro

*

Mestre em Liturgia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), doutorando na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na Universidade de São Paulo (USP). Professor de Liturgia e Sacramentos no UNISAL – Centro Universitário Salesiano de São Paulo – Campus Pio XI e no Mosteiro de São Bento (SP). Artigo submetido à avaliação em 02.11.2013 e aprovado em 05.11.2013. 1

Quanto aos objetivos da Jornada, ver o texto produzido pelo encontro da Pontifícia Comissão para a América Latina com um grupo de sacerdotes e religiosos, ocorrido em Roma no ano de 2011. Dentre os pontos elencados, se diz que objetivos da JMJ são: “Um encontro pessoal com Cristo que mude a vida; [...] a redescoberta da vocação batismal por parte dos jovens chamados a serem membros ativos da Igreja, evangelizadores e missionários do mundo contemporâneo; a redescoberta do sacramento da reconciliação e da centralidade da Eucaristia [...]” (PONTIFICIA COMISSIONE PER LA AMERICA LATINA. Le Giornate Modiali della Gioventù e la loro proiezione pastorale per l’America Latina. Disponível em: <http://www.laici.va/content/dam/laici/documenti/clemens/italiano/giornate-mondialidella-gioventu-e-la-loro-proiezione-pastorale-per-america-latina.pdf>. Acesso em: 02 ago. 2013). 2 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Constituição conciliar Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, 4 dez. 1963. In: AAS 56 (1964) 97-138. Doravante, será citada por meio da sigla SC. Nunca será demais lembrar que este ano a SC, desde a data de sua promulgação em 04.12.1963, completará 50 anos de existência. Para lembrar a importância particular desse documento, apenas com a finalidade de ilustrar - e sem querer entrar numa seara que não é a nossa, posto que carecemos dos conhecimentos precípuos para tal – queremos invocar certa experiência comum no campo legislativo. É relativamente frequente ouvirmos através dos meios de comunicação que determinada lei - seja da esfera municipal, ou estadual, ou até mesmo federal -, ao seguir os seus tramites legais dentro daquela que é a ação própria do Poder Legislativo, seja por vezes declarada ‘inconstitucional’.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS daquela que foi uma das maiores ambições de toda reforma litúrgica, a participação ativa3 dos fiéis na liturgia, podemos encontrar os elementos que dizem respeito à juventude e sua consequente relação com a liturgia. De fato, dentro da preocupação de levar todos os fiéis à efetiva participação na liturgia, o n. 19 do texto da SC afirma a necessidade de uma adequação gradual do sujeito mediante uma apropriada formação e introdução à ação litúrgica, que deve levar em consideração a sua situação cultural, capacidade intelectual e, até mesmo, a sua idade: Procurem os pastores de almas fomentar com persistência e zelo a educação litúrgica e a participação ativa dos fiéis, tanto interna como externa, segundo a sua idade, condição, gênero de vida e grau de cultura religiosa, na convicção de que estão cumprindo um dos mais importantes múnus do dispensador fiel dos mistérios de Deus. Neste ponto guiem o rebanho não só com palavras, mas também com o exemplo.4

Outro elemento presente no texto da SC, e que nos oferece uma pista para uma abordagem da liturgia em contexto juvenil, são os nn. 34 e 38 da Constituição, nos quais se dá uma ênfase ao aspecto de adaptação da própria liturgia aos sujeitos que dela participam:

Brilhem os ritos pela sua nobre simplicidade, sejam claros na brevidade e evitem repetições inúteis; devem adaptar-se à capacidade de compreensão dos fiéis, e não precisar, em geral, de muitas explicações. Mantendo-se substancialmente a unidade do rito romano, dê-se possibilidade às legítimas diversidades e adaptações aos vários grupos étnicos, regiões e povos, sobretudo nas Missões, de se afirmarem, até na revisão dos livros litúrgicos; tenha-se isto oportunamente diante dos olhos ao estruturar os ritos e ao preparar as rubricas.5

Como se pode perceber, a preocupação presente no texto conciliar por uma liturgia participada pode nos levar, num desdobramento lógico, a colocar o problema da relação entre a ação litúrgica e a juventude no âmbito da comunicação do mistério. Nesse sentido, para que essa comunicação possa ocorrer de maneira satisfatória ela deve desenvolver-se, como bem nota a SC, em dois momentos: é necessária uma formação litúrgica do sujeito – em nosso caso, o jovem – que leve em consideração o aspecto mistagógico6 da ação celebrativa e também, certa adaptação da própria liturgia para que o mistério em sua objetividade torne-se compreensível por parte do mesmo sujeito.7

Isso ocorre, em parte, devido ao fenômeno da diplomação da Lei, isto é, as leis em geral, devem ser interpretadas à luz da Lei maior - em nosso caso a Constituição - a fim de que não haja contradições e, consequentemente, abusos por parte do legislador. Algo que os latinos haviam sintetizado através da famosa expressão ubi maior minor cessat (onde está o maior, o menor perde a relevância). Analogamente é sempre bom recordar que estamos diante de uma Constituição conciliar, ou seja, todas as afirmações do magistério contemporâneo da Igreja sobre a matéria litúrgica devem necessariamente ser lidas à luz da SC. 3

No âmbito litúrgico, a expressão aparece pela primeira vez num documento do magistério datado do ano de 1903. No Motu Proprio do Papa S. Pio X, intitulado Tra le Sollecitudini, o Papa expressava sua preocupação pelo bom andamento da música sacra nas igrejas em geral. Em certo momento do documento, o Papa se expressava da seguinte maneira: “Sendo de fato nosso vivíssimo desejo que o espírito cristão refloresça em tudo e se mantenha em todos os fiéis, é necessário prover antes de mais nada à santidade e dignidade do templo, onde os fieis se reúnem precisamente para haurirem esse espírito da sua primária e indispensável fonte: a participação ativa [grifos meus] nos sacrossantos mistérios e na oração pública e solene da Igreja” (S. PIO X. Motu Proprio Tra le Sollecitudini, 22 nov. 1903. In: ASS 36 [1903-1904] 329-339). Certamente o Papa – ou, pelo menos, com muita probabilidade - não poderia atribuir o mesmo sentido a essa expressão como, posteriormente, o Movimento Litúrgico e o texto da Sacrosanctum Concilium iriam fazê-lo, ao refletir de maneira mais profunda sobre o significado teológico da própria liturgia. Sobre esse conceito de actuosa participatio ou participação ativa, cf. GRILLO, Andrea. Che ne è oggi dell’Actuosa Participatio? Rivista di Pastorale Liturgica 1 (2013), 49-53. Disponível me: <http://liturgia-opus-trinitatis.over-blog.it/article-chene-e-oggi-dell-actuosa-participatio-115180439.html>. Acesso em 02 ago. 2013; MELO, José Raimundo de. A Participação Ativa na Liturgia: grande aspiração da reforma litúrgica do Vaticano II. In: SILVA, José Ariovaldo da; SIVINSKY, Marcelino (orgs.). Liturgia, direito de um povo. Petrópolis: Vozes, 2001, pp. 11-42 e TRIACCA, A. M. Participação. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille M. (orgs.). Dicionário de Liturgia. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1992, pp. 886-904. 4

CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Sacrosanctum Concilium, 19, grifo nosso.

5

Ibid., nn. 34 e 38, grifo nosso. Veja-se também os nn. 21, 23, 37, 39, 40 e 44 da mesma Constituição Conciliar sobre a adaptação da Liturgia, bem como os documentos posteriores ao Magistério Conciliar como, por exemplo, JOÃO PAULO II. Carta apostólica Vicesimus quintus annus, 4 dez. 1988. In: AAS 81 (1989) 897-918, principalmente nn. 16-17 e SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E PARA A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Instrução sobre a liturgia romana e a inculturação, 25 jan. 1994. In: AAS 87 (1995) 288-319.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS 2 FORMAÇÃO LITÚRGICA Naturalmente, seguindo o pensamento expresso pelo texto da SC, n. 14, a formação não deve ser compreendida como algo que diga respeito apenas aos fieis leigos – e de modo particular aos jovens – mas a todos os agentes da celebração, incluindo também aqueles que devem normalmente presidir a celebração, isto é, os pastores, que têm um importante papel no itinerário formativo. De fato, sem uma adequada formação litúrgica que leve em consideração a totalidade da pessoa humana – não se trata apenas de formação intelectual! – dificilmente se poderá fazer uma qualificada experiência do mistério pascal; dificilmente se poderá, de fato, ‘con-celebrar’, isto é, ser membro pleno de uma assembleia celebrante.8 A questão torna-se ainda mais densa quando a formação litúrgica deve ter como objeto o jovem, já que sua condição particular, isto é, a de ser pessoa humana em processo de amadurecimento, deve ser particularmente considerada para a obtenção de um maior êxito na participação à liturgia da Igreja. Não caberá neste artigo uma análise mais aprofundada da situação do jovem diante da liturgia; queremos tão somente fazer algumas considerações a

propósito dessa realidade tão presente em nossas comunidades. Primeiramente, é preciso constatar que a significativa frequência dos jovens em nossas igrejas, representa muitas vezes um paradoxo: por um lado a presença do jovem é percebida justamente como algo de muito importante,9 do momento que essa presença é vista como portadora de esperança para a Igreja e, por isso mesmo, digna de grande atenção; por outro lado, quando o argumento é liturgia e juventude, parece-nos que esse fato se ressinta de muito menos atenção, de modo que as palavras de um liturgista e catequeta italiano, apesar da distância no tempo em que foram pronunciadas, ainda parecem muito atuais: Não podemos deixar de reconhecer que, infelizmente, na pastoral juvenil, o capítulo da educação litúrgica nunca foi suficientemente desenvolvido. Na melhor das hipóteses, ficou dependendo de alguma improvisação bem sucedida.10

Embora os esforços na Igreja no Brasil tenham sido grandes para o aprofundamento de uma pastoral litúrgica que contemple a relação entre juventude e liturgia,11 são perceptíveis os desafios e os problemas oriundos, muitas vezes, de uma formação carente.

6

Citamos uma parte da definição que Aldazábal confere ao conceito da mistagogia: “A palavra ‘mistagogia’ e seus derivados, ‘mistagogo’, ‘mistagógico’, vêm do grego: a raiz myst- que indica o mistério, o oculto, e agaggein, guiar, conduzir. Refere-se, portanto, a tudo o que ajuda a conduzir ao mistério. No nosso caso, ao Mistério de Cristo, celebrado na liturgia e vivido na existência cristã. O que na verdade nos guia e faz entrar em sintonia com o mistério salvador de Cristo é o Espírito Santo. Mas também se chama mistagogia à dinâmica interior e à pedagogia com que a própria celebração litúrgica e os seus agentes nos ajudam a celebrar em profundidade e, depois, a viver esse mistério. [...]”. ALDAZÁBAL, José. Vocabulário básico de liturgia. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 227ss. 7

“[…] a inadequação das expressões litúrgicas dificulta a participação plena e frutuosa a que o povo tem direito” (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Diretório para missa com grupos populares. São Paulo: Paulinas, 1977, p. 6). 8 Cf. TENA, Pere. La formación litúrgica como responsabilidad pastoral. In: Celebrar el misterio. Barcelona: Centre de Pastoral Litúrgica, 2004, p. 92ss. 9

Além da preocupação tradicional pela juventude expressa tanto pelos documentos da CNBB como por aqueles do CELAM (o doc. de Aparecida cita cerca de 50 vezes a palavra ‘jovem’ em seu texto, por exemplo), dois fatos novos provocaram alguma reflexão mais aprofundada sobre o tema do jovem. O primeiro, de natureza mais eclesial, foi a Jornada Mundial da Juventude; o segundo fato foi a constatação do crescimento da parcela jovem da população brasileira. Segundo os levantamentos mais recentes do Censo, o Brasil atingiu a marca histórica de 51 milhões de jovens. A importância desse número histórico – analistas preveem o constante envelhecimento da população e a diminuição sensível no número de jovens que compõem a população brasileira para os próximos decênios – impulsionou uma série de discussões para além do campo apenas religioso e que culminaram em mudanças concretas na sociedade brasileira. Basta lembrar que este ano tivemos no Brasil a promulgação do Estatuto da Juventude, legislação específica, mas que tocará todo o conjunto da sociedade. O texto do Estatuto está no site do Governo Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12852.htm>. Acesso em: 10 out. 2013. 10

RUSPI, Walter. Jovens. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille M. (orgs.). Dicionário de Liturgia. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1992, p. 623. 11

Para além das preocupações expressas nos documentos da CNBB queremos citar, dentre tantas iniciativas e apenas a título de exemplo, o evento proposto e realizado pelo Centro de Liturgia D. Clemente Isnard, a Semana Nacional de Liturgia. Realizada em São Paulo de 3 a 7 de outubro de 2011, a 25ª Semana Nacional de Liturgia foi realizada em parceria com outras entidades e teve como tema Liturgia e juventude: uma proposta de formação mistagógica. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 41 - 48, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS Além disso, é preciso constatar que outro setor, em que provavelmente a formação deficitária ocasionou desgastes desnecessários, parece ter sido o campo da adaptação e da inculturação no âmbito da liturgia. A necessária adaptação da liturgia12 parece ter-se tornado fonte de problemas, na medida em que muitas iniciativas, por vezes bem intencionadas, sob o nome de ‘adaptação’ ou de ‘inculturação’, se revelaram na verdade como verdadeiros e próprios abusos litúrgicos. O problema no Brasil foi tão grave, a ponto de não poucos fiéis hoje considerarem ‘adaptação’ e ‘inculturação’ como sinônimos de abuso e de liturgias mal celebradas.13 Apesar disso, é preciso afirmar que também foram muitos os exemplos de boa ‘adaptação’ e de boa ‘inculturação’ que serviram a celebrações mais participadas e vividas. 14 Um campo no qual a boa adaptação exerceu uma influência benéfica, particularmente nos jovens, é o campo da música litúrgica, que no Brasil conheceu um desenvolvimento extraordinário.15 Porém, ao se falar de formação ou de adaptação da liturgia em vista de um público jovem, é possível intuir de antemão uma série de tensões, desafios e problemáticas. É sabido, por exemplo, que os jovens em geral têm uma percepção muito particular da realidade, justamente porque ainda se encontram num processo de desenvolvimento e amadurecimento.

2.1 O PAPEL DO GRUPO NA FORMAÇÃO LITÚRGICA DOS JOVENS

Dentro do processo dinâmico de desenvolvimento do jovem, é interessante notar a importância que o grupo16 desempenha para o sujeito juvenil. O grupo – ou, grupos – é uma dimensão que as ciências, tais como a psicologia e a sociologia, têm percebido sempre mais como algo de grande importância na formação do jovem, haja vista o sentido de pertença, de confronto, de mimese e de identidade que o jovem atribui e/ou encontra, dentro dos variados grupos de interação estabelecidos ao longo do percurso da sua juventude. 17 Esses elementos encontrados na relação com os grupos são essenciais para que o jovem possa fazer a passagem da vida juvenil para a vida adulta de maneira satisfatória. Dentro desses grupos que pertencem ao histórico evolutivo do jovem também tem lugar, sem dúvida, o grupo de relevância religiosa; e é precisamente nesse grupo que o jovem poderá fazer uma experiência mais qualificada da ação litúrgica.18 Já aqui, porém, emerge uma problemática profundamente rica e que tem chamado a atenção não só dos especialistas, mas até mesmo dos bispos no Brasil e que toca de algum modo o campo da liturgia: a relação dos grupos particulares com a assembleia da Igreja local.19

12

Além dos números da SC e de outros documentos do magistério já citados, um documento também importante para compreender a necessária adaptação da liturgia no Brasil, pode ser encontrado na publicação das Edições Paulinas: CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS NO BRASIL. Adaptar a liturgia: tarefa da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1984. Sobre o conceito de ‘inculturação’ ver o estudo de CHUPUNGCO, Anscar J. Inculturação litúrgica. São Paulo: Paulinas, 2008. Ver também o texto precioso de LUTZ, Gregório. Liturgia “fria” ou “quente”. In: COSTA, Valeriano S. (org.) Liturgia: peregrinação ao coração do mistério. São Paulo: Paulinas, 2009, pp. 161-170. 13 A percepção da inculturação e da adaptação litúrgicas como algo simplesmente negativo foi, em alguma medida, incentivada também por grupos tradicionalistas que, numa leitura distorcida e parcial, quereriam fazer crer que os abusos litúrgicos seriam fruto direto da reforma da liturgia. 14

Um exemplo de busca por uma linguagem mais adequada à juventude, no que diz respeito ao argumento litúrgico, encontrase na iniciativa da CAJU (Casa da Juventude Pe. Burnier). Cf. CARDOSO, Edna Lima. Escola de liturgia para jovens: uma história para contar. Revista de Liturgia 225 (2011) 6-8, p. 6ss. 15

Deixando de lado os pontos negativos, inegavelmente o campo onde houve mais adaptação na liturgia, especialmente no Brasil, foi o campo da música litúrgica. Para uma visão mais sintética sobre a trajetória da música litúrgica no Brasil, veja-se CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS NO BRASIL. A música litúrgica no Brasil. 6. ed. São Paulo: Paulus, 2004. 16

A propósito da importância do grupo para o jovem, ver este interessante trabalho na área da Psicologia da Educação: VIDAL, Fernando Campane. O processo de socialização como fator significativo na construção da identidade durante a adolescência. Dissertação (Mestrado em Piscologia da Educação) - Universidade Pontifícia Salesiana, Roma, 2005. 150 f. 17

Durante a vida do jovem, ele conviverá com diversos grupos extremamente significativos para si: a família, outros jovens amigos, adultos significativos, como professores, padres, catequistas etc. 18

Embora o Ritual de Iniciação Cristã de Adultos (RICA) tenha em mente mais a comunidade paroquial - que não deixa de ser um grupo mais amplo - não podemos deixar de notar a insistência que o Ritual atribui ao papel ativo da comunidade ao longo de todo processo catecumenal; este papel está descrito principalmente em sua introdução quando, por exemplo, afirma que “a iniciação dos catecúmenos faz-se à maneira de uma caminhada progressiva, dentro da comunidade dos fiéis” (RICA, n. 4, grifo nosso), ou ainda, que “No exercício diário da vida cristã, os candidatos, amparados com o exemplo e ajuda dos garantes e

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS Do ponto de vista litúrgico, o grupo particular pode, inegavelmente, representar um grande ganho tanto na percepção como na vivência dos conteúdos celebrados,20 já que é a partir do pequeno grupo que o sujeito, especialmente o sujeito juvenil, pode ter uma chance ampliada de se sentir melhor acolhido e fazer uma experiência como membro efetivo de uma comunidade celebrante e participante da liturgia. De fato, a nossa sociedade urbana tende muitas vezes a reduzir as pessoas ao anonimato, dificultando frequentemente a interação mais aprofundada entre sujeitos. 21 De certo modo, nossas assembleias litúrgicas paroquiais, tendem igualmente a espelhar esse individualismo; por vezes é muito difícil uma maior interação 22 na celebração litúrgica por parte da assembleia paroquial devido ao pouco conhecimento

que existe entre as pessoas. O grupo particular – movimentos, grupos de jovens, etc. – tende a ser uma reposta à despersonalização do sujeito que pode ocorrer nas liturgias celebradas de maneira massiva e, pode ainda, servir como momento e espaço para a melhor introdução do sujeito à liturgia, objetivando uma maior e mais qualificada experiência celebrativa por parte do mesmo sujeito na grande assembleia litúrgica23 da Igreja local. Embora os grupos particulares tenham seu lugar assegurado na Igreja, não podemos deixar de notar a grande tentação que estes grupos podem desenvolver no sentido de valorizar demasiadamente a sua existência e a função do próprio grupo particular em detrimento da Igreja local, criando um fenômeno de separação ou de constituição de ‘igrejas paralelas’.24

padrinhos, e ainda dos fiéis de toda a comunidade, habituam-se a orar a Deus com mais facilidade, a dar testemunho da fé, a procurar Cristo em tudo, a seguir em seus atos a inspiração do alto, a entregar-se ao amor do próximo até à renúncia de si mesmos” (RICA, n. 19, grifo nosso). No Brasil, o documento 97 da série ‘Estudos’ da CNBB, dentro do contexto da iniciação cristã, dá uma atenção especial ao jovem que se dispõe a começar o caminho de inserção na vida cristã: “Adolescentes e jovens vivem diferentes situações religiosas, emocionais e morais. Muitas vezes atravessam crise de fé, são maltratados pela vida ou foram seduzidos por comportamentos desastrosos. Outros estão apenas buscando aprofundar uma opção de fé que de fato já fizeram e esperam ser ajudados nisso pela comunidade” (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS NO BRASIL. Iniciação à vida cristã: um processo de inspiração catecumenal. São Paulo: Paulus, 2009, pp. 56-57, grifo nosso). 19

Basta citar uma das últimas intervenções dos bispos no Brasil, o documento da série estudos n. 104, intitulado Comunidade de Comunidades: cf. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS NO BRASIL. Comunidade de comunidades: uma nova paróquia. Brasília: Edições CNBB, 2013. 20

O valor das celebrações, e principalmente a celebração eucarística, nos grupos particulares foi ressaltado por uma Instrução da Congregação para o Culto Divino. Cf. SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E PARA A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Instrução Actio pastoralis de Missis pro coetibus particularibus, 15 mai. 1969. In: AAS 61 (1969) 806-811. 21

A propósito do individualismo em nossa sociedade contemporânea e de seus aspectos negativos, Bauman oferece uma análise bastante apropriada: “Para o indivíduo, o espaço público não é muito mais que uma tela gigante em que as aflições privadas são projetadas sem cessar, sem deixarem de ser privadas ou adquirirem novas qualidades coletivas no processo da ampliação: o espaço público é onde se faz a confissão dos segredos e intimidades privadas. Os indivíduos retornam de suas excursões diárias ao espaço ‘público’ reforçados em sua individualidade de jure e tranquilizados de que o modo solitário como levam sua vida é o mesmo de todos os outros ‘indivíduos com ele’, enquanto – também como eles – dão seus próprios tropeços e sofrem suas (talvez transitórias) derrotas no processo” (BAUMAN, Zygmund. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, pp. 49-50) 22

Penso aqui numa experiência pessoal que tive em minha paróquia já há alguns anos. Quando indagada sobre o porquê de ter deixado a comunidade, a resposta da pessoa foi muito objetiva: “Professor, no meio de tanta gente lá na missa, quem é que se importava se eu ia ou se eu deixava de ir. Ninguém nunca me chamou pelo nome lá... Ninguém nunca se interessou dos meus problemas...”. 23

Para uma visão sobre a Assembleia litúrgica, veja-se a obra de GELINEAU, J. (org.) Em vossas assembleias. São Paulo: Paulinas, 1975, pp. 53-192; PADRÓS, Jaume González. La asamblea litúrgica em la obra de Aimé Georges Martimort. Barcelona: Centre de Pastoral Litúrgica, 2004. Ver também CUVA, A. Assembleia. In: TRIACCA, Achille M. (org.). Dicionário de liturgia. São Paulo: Paulus, 1999, pp. 94-104 e VENTURI, G. Grupos particulares. In: TRIACCA, Achille M. (org.). Dicionário de liturgia. São Paulo: Paulus, 1999, pp. 512-521. 24

De fato, a Instrução dedicada aos grupos particulares põe em guarda sobre essa tensão, ao reconhecer a bondade dos grupos particulares fala ao mesmo tempo sobre os possíveis problemas relacionados a divisões: “O cuidado pastoral se dirige porém, também aos grupos particulares, não certamente com a finalidade de alimentar a tendência da separação, da igrejinha, do privilégio, mas para ir ao encontro de especiais necessidades ou para aprofundar e intensificar a vida cristã, segundo as exigências e a preparação das pessoas que compõem os próprios grupos, valendo-se para tal fim das vantagens provenientes da identidade de um peculiar empenho espiritual ou apostólico e do desejo da mútua edificação” (SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E PARA A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Instrução Actio pastoralis de Missis pro coetibus particularibus, 15 mai. 1969. In: AAS 61 [1969] 806-811). São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 41 - 48, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS No que diz respeito ao jovem, e mais particularmente a sua inserção em grupos particulares, sempre deverá existir por parte destes grupos a preocupação de fundo em introduzir gradualmente o jovem no grupo maior da comunidade diocesana/paroquial. Quando isso ocorre de maneira satisfatória, os resultados positivos são perceptíveis. Nesse sentido, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude, tivemos a oportunidade de verificar em primeira mão a importância do grupo para uma melhor inserção do jovem na liturgia. Pudemos acompanhar alguns grupos de jovens brasileiros e estrangeiros que, tendo em sua bagagem uma experiência em grupos oriundos de movimentos e de pastorais, nos deixaram uma impressão extremamente positiva, ao constatarmos uma participação particularmente qualificada desses jovens nas celebrações que pudemos acompanhar ao longo da preparação para os dias da Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro. Além disso, o patente sentimento de pertença e de comunhão entre os jovens serviu, muitas vezes, como agente facilitador para a maior participação destes na liturgia para além das especificidades dos grupos particulares aos quais esses jovens pertenciam.

3 A EXPERIÊNCIA DA JMJ 2013 Na Jornada Mundial da Juventude propriamente dita, em meio a uma assembleia massiva, não pudemos deixar de fazer algumas considerações a propósito de certa influência dos grupos particulares na condução de alguns momentos de celebração litúrgica que ocorreram

durante um evento que, por definição, caracteriza-se pela sua universalidade. Ainda que tenha sido perceptível a tentativa de equilibrar a participação dos vários grupos nas celebrações ocorridas durante o evento da JMJ, parecenos que houve a preponderância de um modelo baseado nas concepções mais ligadas aos movimentos que seguem uma linha que poderia ser classificada como gospel25 católica.26 A preponderância do modelo foi percebida principalmente através da escolha do repertório musical, de certas posturas do corpo – olhos fechados, cabeça baixa etc. – e dos próprios animadores do canto durante as celebrações – em sua maioria cantores de certo sucesso, presentes nas mídias católicas. Não que isso seja um problema em si, mas nos perguntamos até que ponto essas formas, presentes em grande medida no evento da JMJ, e presentes também com certa frequência em muitas celebrações realizadas pelos grupos formados por jovens – que no Brasil, ao que parece, seriam majoritariamente mais próximos a uma linha carismática – sejam reveladoras de uma liturgia celebrada mais afeita ao espírito do Concílio Vaticano II. Já constatamos que há certa tensão natural entre a liturgia celebrada pelo grupo particular e aquela celebrada pela comunidade paroquial, por exemplo. Agora, à distância de 50 anos da promulgação da SC, nos perguntamos se a aparente consagração de certo modo de celebrar a liturgia por parte de alguns grupos particulares não coloque em pauta também a questão do risco de um afastamento dos ideais conciliares expressos pela reforma da liturgia e também considerados pelos documentos do magistério Latino Americano.27

25

Para uma definição do uso do termo gospel no Brasil e seus desdobramentos, veja-se LIBÂNIO, J. B. Religião no início do milênio. São Paulo: Loyola, 1999 e o estudo de CUNHA, Magali do Nascimento. A explosão gospel: um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 2007 p. 67ss. 26

Veja-se a arguta entrevista de Brenda Carranza, intitulada A JMJ cristalizou a consagração da cultura gospel católica no Brasil, a mesma foi publicada pela revista eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/ entrevistas/522322-as-intervencoes-do-pontifice-mudaram-de-tom-da-presenca-teologica-para-o-contato-pastoral-entrevistaespecial-com-brenda-carranza>. Acesso em: 18 ago. 2013. Na entrevista, a pesquisadora tece comentários muito interessantes a propósito das relações entre a JMJ e a cultura gospel católica no Brasil. 27

Pensamos aqui de modo particular na Segunda Conferência do Episcopado Latino Americano realizada na Colômbia; em seu texto final, conhecido como ‘Documento de Medellin’, especialmente no número 9, o documento traz afirmações que foram consideradas derivações legítimas do ensinamento conciliar da SC, quando se afirma, por exemplo, que “o gesto litúrgico não é autêntico se não implica um compromisso de caridade, um esforço sempre renovado para ter os sentimentos de Jesus Cristo e uma continua conversão”. E ainda: “Na hora atual de nossa América Latina, como em todos os tempos, celebração litúrgica coroa e comporta um compromisso com a realidade humana […] precisamente porque toda a criação está inserida no desígnio salvador” (CONFERÊNCIA DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO. Conclusões da Conferência de Medellín: a Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1985, n. 9).

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS Até que ponto, por exemplo, as celebrações litúrgicas realizadas num modelo mais alinhado ao universo ‘gospel católico’ não correm o risco de criar relações que vinculam o sujeito apenas ao ato litúrgico, percebido somente em sua exterioridade, sem levar em consideração a relação entre os sujeitos da assembleia celebrante, que a própria liturgia reclama? Até onde uma celebração que sublinhe mais o sentimentalismo, que procure mais a catarse coletiva, o comprazer-se do indivíduo, sem de fato criar vínculos de solidariedade entre as pessoas – tanto dentro da comunidade, como fora dela, como insistiu Medellín – não seja uma extensão ou o desenvolvimento de um individualismo expresso através de um mascarado indiferentismo para com a realidade do mundo e do outro? Ao assim celebrar, não estaríamos invalidando a grande aspiração do Concílio no que diz respeito à participação do povo fiel à liturgia? Uma participação que seja fácil, perfeita, plena, consciente, ativa, piedosa e frutuosa?28 Não estaríamos ajudando a alienar as pessoas? Diante de tantas indagações, parece-nos que as constatações do grande liturgista alemão, mas brasileiro de adoção, Pe. Gregório Lutz, servem-nos de constante admoestação para todos: [...] não todos os católicos acolheram plenamente a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II. Não me refiro com isso só aos que celebram a missa exclusivamente

em latim e segundo o missal de Pio V. Muitos outros também, comunidades e paróquias, embora celebrem a liturgia na língua do povo, parecem ter compreendido e estar realizando pouco daquilo que o Concílio ensinou em sua constituição Sacrosanctum Concilium, sobre a sagrada liturgia [...]. [...] muitas vezes não conhecem ou mal sabem o que é celebração e o que é uma liturgia autêntica. Como na Idade Média se procurou saciar a sede de Deus [...] nas devoções, agora, eles [aqueles que consideram a liturgia apenas sob o viés criativo, popular] inventam e criam outros substitutivos de uma liturgia autêntica, por exemplo, em conscientização, ensino e moralização, em devoções sentimentalistas, individualistas e esotéricas, até em show, onde eles talvez celebrem mais a si mesmos do que Jesus Cristo e seu mistério.29

Como já se acostumou a dizer, vivemos não mais numa ‘época de mudanças’, mas numa ‘mudança de época’. Estamos numa transição que demandará um autêntico espírito cristão para fazer frente às várias necessidades que se perfilam diante do horizonte da Igreja. Caberá à nossa geração corresponder da melhor maneira possível aos desafios, superando toda e qualquer dificuldade. Um papel importante nesse processo terão os jovens que, se bem alimentados espiritualmente por uma liturgia autêntica poderão encontrar a força e a graça necessária para realizar a presença da Igreja como sacramento universal de salvação no mundo.30

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALDAZÁBAL, José. Vocabulário básico de liturgia. São Paulo: Paulinas, 2013.

C HUPUNGCO , Anscar J. Inculturação litúrgica. São Paulo: Paulinas, 2008.

BAUMAN, Zygmund. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

CONCÍLIO VATICANO II. Constituição dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja, 21 nov. 1964. In: AAS 57 (1965).

CARDOSO, Edna Lima. Escola de liturgia para jovens: uma história para contar. Revista de Liturgia 225 (2011) 6-8.

______. Constituição conciliar Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, 4 dez. 1963. In: AAS 56 (1964) 97-138.

CARRANZA, Brenda. A JMJ cristalizou a consagração da cultura gospel católica no Brasil. Disponível em: <http:// www.ihu.unisinos.br/entrevistas/522322-as-intervencoes-dopontifice-mudaram-de-tom-da-presenca-teologica-para-ocontato-pastoral-entrevista-especial-com-brenda-carranza>. Acesso em: 18 ago. 2013.

CONFERÊNCIA DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO. Conclusões da Conferência de Medellín: a Igreja na atual transformação da América Latina à luz do concílio. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1985. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS NO BRASIL. Adaptar a liturgia: tarefa da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1984.

28

A quantidade de adjetivos que a Sacrosanctum concilium destina ao conceito de participação dos fieis à liturgia revela a grande preocupação e desejo da Igreja em apresentar uma liturgia que não se deixe reduzir a conceitos mais afins a um ritualismo vazio, ao clericalismo, à instrumentalização para atingir fins privados ou para servir a determinadas ideologias, mas que seja expressão do Mistério Salvífico de um Deus de amor que entra na história humana e que quer salvar todos os homens (cf. 1Tm 2, 4). 29

LUTZ, Gregório, op. cit., pp. 162-163.

30

CONCÍLIO VATICANO II. Constituição dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja, 21 nov. 1964. In: AAS 57 (1965), n. 48. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 41 - 48, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS ______. A música litúrgica no Brasil. 6. ed. São Paulo: Paulus, 2004. ______. Comunidade de comunidades: uma nova paróquia. Brasília: Edições CNBB, 2013. ______. Diretório para missa com grupos populares. São Paulo: Paulinas, 1977. ______. Iniciação à vida cristã: um processo de inspiração catecumenal. São Paulo: Paulus, 2009. CUNHA, Magali do Nascimento. A explosão gospel: um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 2007. CUVA, A. Assembleia. In: TRIACCA, Achille M. (org.). Dicionário de liturgia. São Paulo: Paulus, 1999. G ELINEAU, J. (org.) Em vossas assembleias. São Paulo: Paulinas, 1975. GRILLO, Andrea. Che ne è oggi dell’actuosa participatio? Rivista di Pastorale Liturgica 1 (2013). Disponível em: <http://liturgiaopus-trinitatis.over-blog.it/article-che-ne-e-oggi-dell-actuosaparticipatio-115180439.html>. Acesso em: 02 ago. 2013. JOÃO PAULO II. Carta apostólica Vicesimus quintus annus, 4 dez. 1988. In: AAS 81 (1989). LIBÂNIO, J. B. Religião no início do milênio. São Paulo: Loyola, 1999. LUTZ, Gregório. Liturgia “fria” ou “quente”. In: COSTA, Valeriano S. (Org.) Liturgia: peregrinação ao coração do mistério. São Paulo: Paulinas, 2009. MELO, José Raimundo de. A Participação Ativa na Liturgia: grande aspiração da reforma litúrgica do Vaticano II. In: SILVA, José Ariovaldo da; SIVINSKY, Marcelino (orgs.). Liturgia, direito de um povo. Petrópolis: Vozes, 2001. PADRÓS, Jaume González. La asamblea litúrgica em la obra de Aimé Georges Martimort. Barcelona: Centre de Pastoral Litúrgica, 2004.

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PONTIFICIA COMISSIONE PER LA AMERICA LATINA. Le Giornate Modiali della Gioventù e la loro proiezione pastorale per l’America Latina. Disponível em: <http://www.laici.va/content/dam/laici/ documenti/clemens/italiano/giornate-mondiali-della-gioventue-la-loro-proiezione-pastorale-per-america-latina.pdf>. Acesso em: 02 ago. 2013. RITUAL ROMANO. Ritual da Iniciação Cristã de Adultos. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2009. RUSPI, Walter. Jovens. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille M. (orgs.). Dicionário de Liturgia. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1992. S. PIO X. Motu Proprio Tra le Sollecitudini, 22 nov. 1903. In: ASS 36 (1903-1904). SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E PARA A DISCIPLINA DOS S ACRAMENTOS. Instrução Actio pastoralis de Missis pro coetibus particularibus, 15 mai. 1969. In: AAS 61 (1969) 806811. ____. Instrução sobre a liturgia romana e a inculturação, 25 jan. 1994. In: AAS 87 (1995) 288-319. TENA , Pere. La formación litúrgica como responsabilidad pastoral. In: Celebrar el misterio. Barcelona: Centre de Pastoral Litúrgica, 2004. TRIACCA, A. M. Participação. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille M. (orgs.). Dicionário de Liturgia. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1992. VENTURI, G. Grupos particulares. In: TRIACCA, Achille M. (org.). Dicionário de liturgia. São Paulo: Paulus, 1999. VIDAL, Fernando Campane. O processo de socialização como fator significativo na construção da identidade durante a adolescência. Dissertação (Mestrado em Psicologia da Educação) - Universidade Pontifícia Salesiana, Roma, 2005. 150 f.


PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS A RENOVAÇÃO DA IGREJA, O PAPA FRANCISCO E A CATEQUESE Francisco Catão*

INTRODUÇÃO Uma das mais profundas mudanças na Igreja, suscitadas pelo Vaticano II (1962-1965), foi a atenção redobrada à história, aos “sinais dos tempos”, na abordagem do mistério de Deus, anteriormente considerado quase que exclusivamente à luz das verdades eternas, que presidem à coerência do discurso sobre a Realidade Primeira, a qual denominamos Deus. Nessa perspectiva renovada do discurso da fé, a renúncia de Bento XVI e a entronização de Francisco são sinais dos caminhos pelos quais o Espírito conduz a Igreja em nossos tempos. Bento XVI, empenhado em interpretar o Concílio Vaticano II, complementou-lhe o ensinamento sobre a Igreja – sacramento da união com Deus e da unidade de todo o gênero humano1 – apontando para a fonte de sua vida e missão, a Palavra de Deus,2 e acentuando, em continuidade com Paulo VI e João Paulo II, a novidade da evangelização, nos cenários que caracterizam o mundo contemporâneo.3 No outono de 2011 convoca o Ano da Fé4 para celebrar o cinquentenário do Concílio, em que sublinha a prioridade da atitude pessoal do crente ou, em outras palavras, do ato de crer. 5 Dá, então, por cumprida sua missão, coroando os pontificados anteriores de Paulo VI e João Paulo II, empenhados na renovação sonhada por João XXIII de um novo Pentecostes para a Igreja, testemunha viva da fé em Jesus, na história.

O gesto de Bento XVI tem como efeito colateral a proclamação de que o ministério na Igreja, a começar pelo de Pedro, é um serviço assumido livremente, expressão histórica indispensável à presença no mundo do Espírito de Jesus, em continuidade com a Encarnação, mas sujeito a todas as contingências humanas. A relatividade e o caráter temporal do ministério, inclusive petrino, mostram que seu papel no mundo não é de natureza política, mas está voltado para a transcendência, chamado a dar testemunho do Evangelho na história. Todos os cristãos, leigos e clérigos, em sua vida, são chamados, antes de tudo, a ser fiéis a Jesus, na sua dupla face de Filho de Deus encarnado. Os leigos, no exercício de uma cidadania responsável, empenhando-se, de acordo com sua condição, na construção de um mundo de justiça e liberdade, de igualdade e de fraternidade, animada pelo amor de Deus. Os clérigos, testemunhando em primeiro lugar o Reino de Deus e sua plena realização na eternidade. A condição histórica do papado, é verdade, não evoluiu com clareza de acordo com esses princípios. O cristianismo, tendo se tornado religião do Estado no século IV e assumindo, com o esfacelamento do Império Romano, a responsabilidade sobre a sociedade no seu conjunto, centralizou, na autoridade do bispo de Roma, tornado papa, toda a autoridade espiritual e temporal, o que deu lugar a graves desvios no exercício de seu governo.

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Doutor em Teologia pela Université de Strasbourg – Facultè de Théologie de Théologie Catholique (França). Professor emérito do UNISAL – Centro Universitário Salesiano de São Paulo – Campus Pio XI e do Mosteiro São Bento (São Paulo). É conferencista, articulista e autor de diversas obras. Artigo submetido à avaliação em 29.07.2013 e aprovado para publicação em 10.08.2013. 1

Cf. CONSTITUIÇÃO Lumen Gentium sobre a Igreja. In: CONCÍLIO VATICANO II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: 2007, n. 1. 2

Cf. BENTO XVI. Verbum Domini. Exortação apostólica pós-sinodal sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja (30.09.2010). São Paulo: Paulinas, 2010. 3

Cf. SÍNODO SOBRE A NOVA EVANGELIZAÇÃO PARA A TRANSMISSÃO DA FÉ. Proposições. Revista de Catequese 140 (2012) 59-75.

4

Cf. BENTO XVI. Porta Fidei. Carta apostólica com a qual se proclama o ano da fé (11.10.2011). São Paulo: Paulus, 2011.

5

Cf. CATÃO, Francisco. O ato de crer: adesão a Deus e acolhimento de sua Palavra no Espírito. Revista de Catequese 141 (2013) 22-30. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 49 - 59, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS A Igreja veio a se conceber como uma estrutura de poder e chegou a adotar os procedimentos temporais como forma de sua atuação no mundo. As figuras medievais de Gregório VII (1073-1085), Inocêncio III (1198-1216) e Bonifácio VIII (1294-1303) configuraramna por vários séculos. Só o Vaticano II propôs uma grande mudança. Nos nossos dias, o atual bispo de Roma procura concretizá-la. Com a escolha do nome, Francisco, e o modo de agir nesses primeiros meses de ministério, o papa tem sinalizado a convicção de que se considera chamado a realizar a renovação vislumbrada por João XXIII, sem quebra de continuidade com os papas que o precederam. A modernidade, reivindicando com as luzes da razão a autonomia do saber e da vida temporal, constituiu-se como um movimento de libertação do poder e das imposições da Igreja. A consequência foi o divórcio entre a fé e a cultura, contra o que reagiu, já no século XIX, o Concílio Vaticano I (1870), através de duras condenações. Numa perspectiva mais saudável, de compreensão e de diálogo, o Vaticano II (1962-1965), conduzido pelo Espírito, convencido de que a Igreja é, antes de tudo, a expressão histórica do testemunho do Verbo, Verdade de Deus que transforma toda a vida, inaugurou um novo posicionamento da Igreja em face do mundo, entendendo a sua atuação a partir do coração de todos os humanos, numa relação vivenciada com todas as filosofias e estruturas temporais que saibam respeitar a vocação transcendente do ser humano e das sociedades humanas. A libertação da razão e do poder, que se havia desenvolvido historicamente contra a Igreja, passa a ser sempre atribuída ao Espírito, que a alimenta interiormente, pois as legítimas aspirações pela liberdade, igualdade e fraternidade são marcas indiscutíveis do Evangelho, no qual se manifesta o Espírito de Jesus. Assim, renovar a Igreja para João XXIII era rever a vida da Igreja adequando-a ao que há de evangélico na história, pois a Palavra e o Espírito de Deus estão na origem de toda a criação e da história, como fonte de todo ser e de todo bem. A fidelidade a esse princípio está na base do ministério dos papas que o sucederam e adquire agora, com o papa Francisco, um relevo todo particular.

1 O VATICANO II E SUA ‘RECEPÇÃO’ O projeto de atualização de João XXIII era desafiador e exigia um Concílio Ecumênico para que 50

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toda a Igreja o abraçasse, mas era impossível de se realizar no âmbito de uma simples assembleia de bispos, cuja maioria havia sido formada numa perspectiva de Igreja entendida como hierarquia religiosa; era preciso justamente superar essa perspectiva para instaurar o indispensável diálogo com a modernidade. João XXIII, com toda simplicidade, colocou-se nas mãos do Espírito, que o guiou de forma a atuar de maneira inteligente e sutil, insistindo no essencial, sem procurar definir, na prática, todas as características do que seria uma Igreja atualizada. Deixava assim à história, através da qual Deus nos dá a conhecer os seus desígnios – os sinais dos tempos –, a seus sucessores e à Igreja no seu conjunto, a tarefa de buscar os caminhos de sua própria renovação. Daí a importância do que denominamos tecnicamente de ‘recepção’, ou seja, a forma como a Igreja entendeu e interpretou o Concílio Vaticano II nos anos subsequentes. No cinquentenário do Concílio, ressalta-se, antes de tudo, a sua originalidade em relação aos vinte concílios ecumênicos que o precederam. Ao contrário dos anteriores, reunidos para definir verdades da fé, corrigir ou estabelecer princípios disciplinares, o 21º Concílio Ecumênico, o Vaticano II, foi desde o início concebido como um concílio de mudança, de atualização da Igreja no seu conjunto, modificando a forma de exprimir a fé e inaugurando novos estilos de viver e de atuar dos cristãos, guiados pela fé, em meio às novas condições do mundo em que vivemos. A determinação dessas novas orientações, qualificadas genericamente de orientações pastorais – um concílio pastoral, dizia João XXIII -, iria surgir progressivamente. Primeiro, no desenvolvimento do próprio concílio, ao longo de mais de três anos e, depois, através de mudanças mais amplas na vida da Igreja, nos pontificados que se seguiram. Passados cinquenta anos, podemos dizer que o Vaticano II, em seus dezesseis documentos, nos apresenta como núcleo, germe ou semente, três orientações ou eixos fundamentais chamados a se desenvolver de maneira nova e criativa nas condições sempre cambiantes do mundo em evolução: uma visão nova da Igreja, uma nova concepção da revelação e uma nova relação da Igreja com a sociedade. A Igreja enquanto sociedade prioritariamente invisível, 6 fruto da revelação, entendida como comunicação da vida da Trindade pela Palavra no Espírito,7 é chamada a se constituir como povo de Deus, destinado a dar testemunho de Deus no seio da historia desde suas origens até o fim dos tempos.8


PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS No centro da herança conciliar está, portanto, uma visão renovada da Igreja, como expressão histórica (sacramento, mysterion) de uma realidade espiritual única, mas dual: a união com Deus e a unidade de toda a humanidade. Comunhão com Deus aberta e inseparável da comunhão com todos os humanos chamados à participação na vida de Deus, à santidade, desde já e por toda a eternidade. Na fonte dessa participação, está a iniciativa divina de nos comunicar o ser e sua vida através de sua Palavra, chamando-nos à existência (criação) e à sua amizade (salvação), vocação a ser acolhida na liberdade da fé, enquanto significa o dom efetivo de Deus a cada um de nós, em comunhão uns com os outros. Renasce assim a Igreja entendida como um laço entre Deus, que a sustenta, e o mundo dos homens, junto a quem tem a missão de proclamar a Boa Nova de Jesus. A Igreja deixa de ser uma realidade que tem sentido por si mesma, uma instituição absoluta,9 para ser considerada uma instituição criada, sob dois aspectos, distintos, mas inseparáveis: realidade prioritariamente espiritual, como a Pessoa de Jesus, sua Cabeça, espelho da vida divina vivida na história, e, ao mesmo tempo, instituição encarnada na história, revestida de toda autoridade na esfera da condução da vida humana e aberta a toda diversidade proveniente dos tempos e das culturas. Essa nova visão da Igreja, fundada na revelação, entendida como comunicação da vida divina, nos leva a um novo posicionamento da Igreja em face da sociedade, posicionamento visado por João XXIII e que se revigora hoje com o papa Francisco.

2 UMA ENCÍCLICA A QUATRO MÃOS A mensagem mais recente no quadro da recepção do Vaticano, completada pelos gestos do Papa 6

Francisco, é a Carta Encíclica Lumen Fidei, de 29 de junho deste ano. Nos últimos duzentos anos, os papas exercerem seu magistério ordinário através de Cartas Encíclicas dirigidas aos bispos e a todos os fiéis. No Ano da Fé não podia faltar uma encíclica, tanto mais que o papa Bento XVI já havia escrito uma sobre a caridade e outra sobre a esperança. Era preciso agora tratar da fé. Nessas circunstâncias Bento XVI começara a escrever uma encíclica sobre a fé como fonte de conhecimento da vida e do mundo a partir de visão do próprio Deus: a fé como luz chamada a guiar os passos de toda a humanidade em busca do que dá sentido à vida. Não teve, porém, tempo de terminá-la antes de sua renúncia. Legou o texto a seu sucessor, que o assumiu consciente de ser a expressão acabada dos princípios que presidiriam seu ministério. A autoridade da Lumen Fidei é de quem a assinou e não podemos esquecê-lo quando se trata de interpretar sua atividade missionária, cujo estilo contrasta, às vezes frontalmente, com o de seu antecessor. A compreensão do rumo da Igreja nos dias de hoje, conduzida pelo Espírito, que se manifesta através do magistério do bispo de Roma, requer uma análise, ainda que rápida, desse documento original, expressão da continuidade entre os dois pontificados. Ambos, Bento e Francisco, apesar de serem homens tão diferentes, quase que opostos por sua origem, temperamento, cultura e prática pastoral, estando investidos da mesma missão, pronunciam-se sobre o que há de mais fundamental na tradição cristã, num momento decisivo da história da Igreja. O tema é ‘a luz da fé’, como ressaltam as duas palavras iniciais do documento. Posiciona-se em contraste com o ‘século das luzes’, que rejeitava a fé, considerando-a solidária com obscurantismo religioso. Longe de ser uma opção cega, um salto no vazio, uma

Cf. Lumen Gentium, n. 8.

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Cf. CONSTITUIÇÃO Dei Verbum sobre a revelação divina. In: CONCÍLIO VATICANO II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: 2007, nn. 2-5. 8

Cf. CONSTITUIÇÃO Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo de hoje. In: CONCÍLIO VATICANO II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: 2007, passim, e demais documentos da fase final do Concílio. O caráter evolutivo da doutrina conciliar foi posto em evidência pelo grande estudioso da recepção conciliar, Christophe Théobald. Cf. THÉOBALD, Christophe. As grandes intuições de futuro do Concílio Vaticano II a favor de uma “gramática gerativa” das relações entre Evangelho, sociedade e Igreja. São Leopoldo: Unisinos, 2013 (Cadernos de Teologia Pública, n. 77). Disponível em: http:// www.ihu.unisinos.br/cadernos-ihu-teologia/520428-as-grande-intuicoes-de-futuro-do-concilio-vaticano-ii-a-favor-de-umaqgramatica-gerativaq-das-relacoes-entre-evangelho-sociedade-e-igreja. Acesso em: 15 jul. 2013.

9 Vale aqui a advertência do Catecismo Romano, retomada pelo Catecismo da Igreja Católica, n. 750, de que a Igreja deve ser contada entre as criaturas.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS ilusão, a fé nos enriquece o saber sobre o que há de mais importante na vida da humanidade, o sentido definitivo da vida. Como luz, a fé começa por nos introduzir na grande comunhão de amor, a qual está na raiz da realidade em que estamos inseridos, comunhão de vida com Deus, que é amor. Somos todos chamados a participar desse Amor. Muito mais do que um conjunto de verdades inacessíveis à razão, como muitos ainda pensam, a fé é a forma de participarmos na comunhão que nos realiza como criaturas inteligentes. Esse é o conteúdo do primeiro capítulo. O segundo discorre sobre sua resultante imediata: acreditar no Amor é alcançar a verdade. Somente ela dá consistência e sentido definitivo às nossas vidas, de modo que a fé, ao mesmo tempo, nos ilumina a inteligência e nos plenifica o coração. Os dois outros capítulos, respectivamente sobre a transmissão da fé e suas consequências para a vida dos homens em sociedade, depois de sublinharem que a fé é o limiar de nossa entrada na comunhão com Deus e que a comunidade cristã é expressão histórica, ‘sacramento’, como diz o Concílio, mostram a fé em Deus na raiz da fidelidade recíproca entre os humanos, na família, na vida social, na cultura comum e na sociedade organizada. A luz da fé nos introduz na contemplação do mistério da comunicação da vida de Deus que vem a nós na história e que culminou na encarnação do Verbo. A partir dessa consideração fundamental, toda a atividade pastoral e missionária de Francisco mostra como, somente à luz da fé, os cristãos podem discernir os caminhos que levam a Deus, como discípulos de Jesus e, ao mesmo tempo, testemunhar Jesus junto a toda a humanidade, até as periferias da existência, como missionários.

À grandeza da fé, porta da contemplação, a Porta Fidei acrescenta a prioridade da fé como princípio da vida da Igreja no cumprimento de sua missão no mundo, abraçando o despojamento dos meios materiais, do poder, do dinheiro, da fama e do prestígio, e seguindo de perto as pegadas de Jesus que culminam na cruz.10

3 DESAFIOS E PERSPECTIVAS11 Dificilmente se podem avaliar as consequências que têm para a vida da Igreja as mudanças, vivificadas pelo Espírito, ocorridas nesses últimos cinquenta anos, a começar pelo reconhecimento do ‘primado do espiritual’ na Igreja. A Lumen Gentium entende a Igreja como ‘sacramento da união com Deus e da unidade de todo o gênero humano’. Quer dizer: expressão querida por Deus, moldada por Jesus e animada pelo Espírito, mas expressão; expressão histórica, temporal e transitória de sua realidade ‘invisível’, que transcende o tempo.12 Desde então, desenvolveu-se um processo de mudança na Igreja, com duas características basilares: (1) a percepção mais clara da forma como nasce de suas fontes, a Palavra de Deus e o Espírito, acolhidos no coração de cada fiel formando a comunidade, a Igreja, e (2) o empenho no cumprimento de sua missão, antes de tudo espiritual, mas encarnada na história, de testemunhar o Evangelho, animando a vida pessoal, familiar, cultural e social. Esse processo de mudança, iniciado no decorrer do período conciliar, tornou-se mais claro e se fortaleceu nos cinquenta anos subsequentes, tendo alcançado, com a eleição do papa Francisco, certa completude. Pela sua prática, Francisco deixa claro que a missão da Igreja, animada pelo Espírito, é dar testemunho de Deus na

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Já havíamos concluído esse artigo por ocasião da visita ao Brasil do papa Francisco, na 28ª Jornada Mundial da Juventude. O conjunto de sua ação e de seus discursos confirmaram inteiramente nossas considerações. Do ponto de vista da catequese, chamaria atenção para o encontro do Santo Padre com os responsáveis pelo CELAM, em que se posiciona claramente a respeito das tentações que ameaçam a pastoral latino-americana e, portanto, nossa catequese. 11

O binômio ‘desafios e perspectivas’, empregado correntemente desde a 4ª Conferência do CELAM (Santo Domingo, 1992), esconde, por vezes, um equívoco grave do ponto de vista pastoral. Desafios e perspectivas são sempre considerados a partir de determinado ponto de vista. Quando se trata de pastoral, a perspectiva a partir da qual são considerados não pode ser senão a perspectiva da fé, mesmo quando se utilizam, na análise, dados hauridos das ciências humanas, da religião, da sociologia e da economia. Sendo cristã por natureza, a ação pastoral não pode ser pensada senão a partir da fé, sob cuja luz somente somos capazes de lhes discernir a forma cristã de encarar o mundo, quais os problemas que enfrenta (desafios) e as perspectivas em se que deve colocar. 12

Sobre esse problema fundamental, além do primeiro capítulo da Lumen Gentium, seja-nos permitido lembrar o magistral estudo, anterior ao Concílio, do Pe Henri De Lubac, sj, no qual trata em profundidade da questão, principalmente nos três primeiros capítulos. Cf. DE LUBAC, Henri. Méditation sur l’Église. Paris: Aubier, 1954.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS história, à luz da fé, pelo manifesto acolhimento da Palavra. Francisco retoma assim o papel profético desempenhado por João XXIII e projeta, através de gestos eminentemente significativos, uma Igreja autenticamente evangélica, feita de oração e de austeridade, efetivamente empenhada em trilhar os caminhos de Jesus, pobre e despojado, doando sua vida por amor aos marginalizados e oprimidos da terra, feitos testemunhas privilegiadas de sua presença no meio de nós.13 Os passos dados pela Igreja nos últimos cinquenta anos, em si mesmos e no seu conjunto, repercutem, à luz da fé, sobre toda a vida da Igreja, mostrando novas frentes de atuação (desafios) e indicando caminhos mais ou menos inexplorados a seguir (perspectivas) no cumprimento de sua missão. Encarados à luz da fé (ver), os novos ‘cenários’ em que vivem os cristãos (julgar) abrem tão surpreendentes possibilidades de atuação apostólica (agir), que se chega a falar de ‘nova evangelização na transmissão da fé cristã’. Fortalecer as raízes da presença e da ação dos cristãos no mundo é o objetivo da ‘encíclica a quatro mãos’, que completa os ensinamentos do papa emérito e oferece sólido fundamento teológico aos gestos eminentemente significativos de seu sucessor. Vale a pena, por isso, recorrer a ela, para fazer algumas considerações no âmbito da catequese. A síntese operada pela Lumen Fidei nos ajuda a refletir sobre três características maiores que devem ser cultivadas daqui por diante no trabalho catequético: (1) a centralidade da experiência, numa catequese da vida, (2) a natureza quase sacramental da transmissão da fé na comunidade eclesial e (3) a vocação do cristão no mundo, iluminado pela fé, vivida em sociedade.

3.1 A CATEQUESE DA VIDA A catequese é a transmissão da fé anunciada pelo Evangelho, a Boa Nova manifestada por Jesus e em Jesus: Deus vem a nós e nos comunica sua vida para que entremos definitivamente em comunhão com Ele. Transmissão, porém, que não é apenas uma simples comunicação de verdades ou atitudes, mas se realiza na iniciação à vida nova, de participação na Trindade, com base no dom de uma experiência de vida fundada num novo relacionamento pessoal com Deus, a que temos acesso pela fé. Como o explicita a Lumen Fidei: [...] na fé, não se trata tanto de prestar assentimento a um conjunto de verdades abstratas, como de fazer a vida toda entrar na comunhão plena com o Deus Vivo. Podemos dizer que, no Credo, o fiel é convidado a entrar no mistério que professa e a se deixar transformar por aquilo que confessa.14

O texto mostra, em seguida, como no Credo se propõe a expressão de uma verdadeira ‘experiência’. Vocabulário novo, que desponta na reflexão católica em meados do século XX, 15 generaliza-se nos meios influenciados pelos diversos movimentos de Renovação no Espírito, mas só é definitivamente assimilado como central no ensinamento de Bento XVI, em particular na Exortação Apostólica Verbum Domini.16 Referindo-se quase vinte vezes à experiência, a Lumen Fidei17 retoma a tradição cristã mais antiga em relação à ‘experiência da fé’, fazendo, desde o início, menção ao testemunho dos primeiros mártires: Para (os primeiros) cristãos, a fé, enquanto encontro com o Deus vivo que Se manifestou em Cristo, era uma «mãe», porque os fazia vir à luz, gerava neles a vida divina, uma nova experiência, uma visão luminosa da

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Um dos indícios dessa preocupação central do papa Francisco é sua repetida alusão ao conceito de ‘mundanidade espiritual’ herdado de De Lubac, o qual, por sua vez, o encontrou em Dom Anscário Vonier, osb (Cf. DE LUBAC, op. cit., p. 327. Apud VONIER, Anscário. L’Esprit et l”épouse, p. 144.), para denunciar a preocupação excessiva com o dinheiro e o poder manifestada com frequência no meio clerical. 14

FRANCISCO. Lumen Fidei. Carta Encíclica sobre a fé (29.06.2013). Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/francesco/ encyclicals/documents/papa- francesco_20130629_enciclica-lumen-fidei_po.pdf. Acesso em: 05 jul. 2013, n. 45. 15

Cf. MOUROUX, Jean. L’expérience chrétienne: introduction à une théologie. Paris: Aubier, 1954, passim.

16

Cf. BENTO XVI, Verbum Domini. Nessa Exortação Apostólica o termo ‘experiência’, praticamente ausente dos documentos conciliares, é empregado quase setenta vezes.15 Cf. MOUROUX, Jean. L’expérience chrétienne: introduction à une théologie. Paris: Aubier, 1954, passim. 17

Repete-se, na Lumen Fidei, a insistência na experiência que se observou na Exortação Apostólica Verbum Domini. Essa insistência está ligada ao fato de que, desde sua iniciação, se deve fundar a vida cristã e a atuação do cristão no mundo numa efetiva experiência vivida de Deus, no Espírito de Jesus, de que hoje têm consciência, de modo particular, os movimentos e novas comunidades nascidos no âmbito da renovação no Espírito. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 49 - 59, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS existência, pela qual estavam prontos a dar testemunho público até ao fim.18

Toda a vida e a ação cristãs, segundo o ensinamento da Lumen Fidei, são chamadas a se desenvolver em continuidade com essa experiência fundamental, experiência de fé, geralmente denominada ‘efusão do Espírito’, em vista do testemunho da comunicação com Deus, experimentada na intimidade pessoal com Jesus, no Espírito. O cristão é sustentado pelo dom de Deus, apropriado ao Espírito Paráclito, que atua em nosso espírito, numa vivência ou experiência que nos torna capazes de dar, pessoalmente, na liberdade, o testemunho de Jesus, nos dois sentidos da expressão, a respeito de Jesus e em continuidade com o testemunho que Ele mesmo deu em sua vida terrena, na sua paixão e ressurreição. Podemos dizer que a Igreja, durante mais de um milênio, foi pensada como uma sociedade fundada no poder de Deus, comunicado aos homens e mulheres, que se realizam, fazendo jus à vocação de se tornarem filhos de Deus. Entendida como a religião que se impõe a todos os homens em nome de Deus, a Igreja era vista, inclusive por seus responsáveis, como depositária da Palavra de Deus a ser proclamada como padrão de vida para toda a sociedade. O Vaticano II colocou em questão esse modo de ver a Igreja. Acentuou, na Igreja, o primado do espiritual, com todas as consequências que a história dos últimos cinquenta anos nos trouxe, levando-nos a repensar todo o agir da comunidade cristã. A catequese passa a ter como objetivo explícito não apenas a simples instrução religiosa ou introdução nas práticas da Igreja inserida na história, mas a iniciação na ‘vida do Espírito’, como se intitula a terceira parte do Catecismo, em função da santidade da vida cristã, segundo o Evangelho, como participação da vida divina. Catequizar, pois, é oferecer aos homens e mulheres, desde a infância, na juventude e na idade madura, uma opção de vida espiritual, capaz de levá-los a viver concretamente, segundo os ensinamentos de Jesus, na plena docilidade ao seu Espírito. O grande desafio da catequese sempre foi o da santidade. Em nossos dias, porém, em virtude da perversa evolução cultural que entende a vida humana como independente de Deus, pensamos a transmissão

da fé cristã em ruptura com a cultura ambiente, como Jesus, aliás, que proclamou o Reino em contraste com o ensino dos escribas e com a prática dos fariseus, representantes da cultura de seu tempo. Essa, precisamente, é a primeira grande lição da eleição de Francisco: abraçar, em nossos dias, o puro testemunho de Jesus, em ruptura com a mentalidade reinante no mundo, que muitas vezes invade a esfera eclesiástica, até mesmo muito próxima do papa. A transmissão da fé cristã não se fará senão a partir do testemunho de quem vive o seguimento de Jesus. A vida cristã do catequista é a primeira exigência básica para que exerça seu ministério.

3.2 A TRANSMISSÃO DA FÉ A prioridade da catequese da vida repercute diretamente na maneira de entender a transmissão da fé, seu objeto imediato. O Catecismo menciona esse laço fundamental entre a transmissão da fé e a vida da comunidade cristã, ao lembrar o caráter comunitário da fé que se estende no tempo: Nós cremos. A fé é um ato pessoal: a resposta livre do homem à iniciativa de Deus que se revela. Ela não é, porém, um ato isolado. Ninguém pode crer sozinho, como ninguém pode viver sozinho. Ninguém deu a fé a si mesmo, como ninguém deu a vida a si mesmo. O crente recebeu a fé de outros, deve transmiti-la a outros.19

Como o esclarece a Lumen Fidei no seu primeiro capítulo, a fé deve ser pensada em continuidade com sua transmissão no tempo, assegurada hoje pela Igreja, mas em continuidade com as suas origens históricas, desde Abraão e Moisés, alcançando sua plenitude com Jesus: É impossível crer sozinhos. A fé não é só uma opção individual que se realiza na interioridade do crente, não é uma relação isolada entre o «eu» do fiel e o «Tu» divino, entre o sujeito autônomo e Deus; mas, por sua natureza, abre-se ao «nós», verifica-se sempre dentro da comunhão da Igreja.20

A Encíclica chama, assim, atenção para a base antropológica dessa condição da transmissão da fé, pressuposta no Catecismo:

18

FRANCISCO, op. cit., n. 5.

19

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 9. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Loyola; Paulinas; Ave-Maria; Paulus, 1999, n. 166.

20

FRANCISCO, op. cit., n 39.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS Não posso, por mim mesmo, ver aquilo que aconteceu numa época tão distante de mim. Mas, esta não é a única maneira de o homem conhecer; a pessoa vive sempre em relação: provém de outros, pertence a outros, a sua vida torna-se maior no encontro com os outros; o próprio conhecimento e consciência de nós mesmos são de tipo relacional e estão ligados a outros que nos precederam, a começar pelos nossos pais que nos deram a vida e o nome.21

Base antropológica, que se verifica em cada família: Como sucede em cada família, a Igreja transmite aos seus filhos o conteúdo da sua memória. Como se deve fazer esta transmissão de modo que nada se perca, mas que tudo se aprofunde cada vez mais na herança da fé? É através da Tradição Apostólica, conservada na Igreja com a assistência do Espírito Santo, que temos contacto vivo com a memória fundadora.22

Na família, a transmissão da cultura é assegurada pela própria natureza. No caso da fé, porém, é garantida pelo dom de Deus: o Espírito, que vivifica a vida da comunidade, anima a Tradição viva, em continuidade com o que nos ensina o Novo Testamento. A graça é dada pessoalmente aos crentes, para cada um deles e todos juntos formarem o Povo de Deus. A Tradição, dom do Espírito, constitui, ao longo da história, uma realidade comunitária e espiritual que transcende o tempo, em cujo seio nasce e se alimenta a fé. Fala-se, então, da fé da Igreja, na sua dupla função, de assegurar a fidelidade ao Evangelho e de testemunhá-lo até os confins dos tempos:

Numa palavra, o que se transmite é vida, mais do que simples ensinamento ou conjunto de práticas e atitudes. Ora: Para se transmitir tal plenitude, existe um meio especial que envolve a pessoa inteira: corpo e espírito, interioridade e relações. Estes meios são os sacramentos celebrados na liturgia da Igreja: neles, comunica-se uma memória encarnada, ligada aos lugares e épocas da vida, associada com todos os sentidos; neles, a pessoa é envolvida, como membro de um sujeito vivo, num tecido de relações comunitárias. Por isso, se é verdade que os sacramentos são os sacramentos da fé (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 59), há que afirmar também que a fé tem uma estrutura sacramental; o despertar da fé passa pelo despertar de um novo sentido sacramental na vida do homem e na existência cristã, mostrando como o visível e o material se abrem para o mistério do eterno.24

Ensinamento capital para se compreender a transmissão da fé e, por conseguinte, o lugar da catequese na Igreja. Longe de ser a simples comunicação de conhecimentos, atitudes ou formas de compartilhar a vida em comunidade, a catequese é a transmissão da “luz nova que nasce do encontro com o Deus vivo”,25 de uma palavra destinada a transformar a vida, tornando-a agradável a Deus no seguimento de Jesus e na docilidade ao Espírito, o que permite pensar a catequese, como um verdadeiro ministério, em analogia com os sacramentos.26

3.3 A INSERÇÃO NO MUNDO [...] a fé tem necessidade de um âmbito [...] adequado e proporcionado ao que se comunica. Para transmitir um conteúdo meramente doutrinal, uma ideia, talvez bastasse um livro ou a repetição de uma mensagem oral; mas aquilo que se comunica na Igreja, o que se transmite na sua Tradição viva é a luz nova que nasce do encontro com o Deus vivo, uma luz que toca a pessoa no seu íntimo, no coração, envolvendo a sua mente, vontade e afetividade, abrindo-a a relações vivas na comunhão com Deus e com os outros.23 21

FRANCISCO, op. cit., n. 38.

22

Ibid., n. 40.

23

Ibid.

24

Ibid.

25

Ibid.

A Igreja vive no mundo como expressão da participação espiritual na vida do Pai, com o Filho, no Espírito Santo, com base na fé, estendida no tempo por sua transmissão, gerando-nos como filhos no Filho, como Igreja. Igreja que está no mundo e cuja relação com o mundo, mais do que um desafio dentre outros, constitui verdadeira síntese dos desafios, dos quais o Vaticano II, por determinação expressa de João XXIII, não podia

26

Tocamos aqui nos fundamentos teológicos a ideia ventilada no Sínodo de 2012, sobre a Nova Evangelização, que tendeu a reconhecer o caráter da catequese como verdadeiro ministério. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 49 - 59, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS deixar de se ocupar.27 A relação Igreja-sociedade é a questão de fundo que está presente não apenas na Gaudium et Spes, mas igualmente no Ad Gentes e nas Declarações Nostra Aetate e Dignitatis Humanae. Cinquenta anos mais tarde, a conturbada história da recepção do Concílio nos permite considerar essa relação Igreja-sociedade como um dos pontos mais delicados, ainda hoje de grande atualidade, da renovação da Igreja, trazido quase que violentamente à baila pela renúncia de Bento XVI e a eleição do papa Francisco. Quando se considera a Igreja como uma realidade histórica, inscrita e, até certo ponto, configurada pelo entendimento da sociedade que se tem numa determinada tradição cultural, se é muitas vezes levado a pensar sua renovação em continuidade com os princípios que comandam a visão cristã que se tem dessa realidade cultural, entendida como predominantemente religiosa, social, econômica ou política. Nessa perspectiva, têm-se da renovação da Igreja tantas visões quantas se possam ter da sociedade, tornando-se historicamente impossível pensar a Igreja a partir de sua vocação transcendente, genuinamente uma, objeto da fé. Prevalecem então, como base das orientações pastorais, os dados da conjuntura em que a Igreja exerce sua missão histórica de promoção humana e de um mundo de liberdade e de fraternidade. O Concílio, porém, tendo sido levado a reconhecer o primado do espiritual e a colocar em evidência a fonte da vida e da missão Igreja, que é a Palavra de Deus acolhida no Espírito pela fé, fez com que a relação Igrejasociedade viesse progressivamente a ser pensada não mais a partir da Igreja, mas de sua fonte, a fé na Palavra de Deus acolhida no Espírito. Em consequência, toda a problemática da relação Igreja-sociedade deve passar a ser abordada a partir da luz da fé, que transcende as visões que se tenha da sociedade e de suas urgências econômicas, culturais ou políticas. A fé, voltada para a realidade que transcende a história, será sempre uma fonte de consolidação do que há de positivo em cada visão ou contingência em que se encontrem os cristãos vivendo em sociedade, sustentando na transcendência, em Deus, tudo que há de válido nas diferentes realidades humanas. 27

Nessa perspectiva é que se deve avaliar a importância pastoral e catequética dos densos números em que a Lumen Fidei recorda esses princípios: Ao relembrar a história dos patriarcas e dos justos do Antigo Testamento, a Carta aos Hebreus põe em relevo um aspecto essencial da sua fé, que não se apresenta apenas como um caminho, mas também como edificação, preparação de um lugar onde os homens possam habitar uns com os outros [...]. A fé revela quão firmes podem ser os vínculos entre os homens, quando Deus Se torna presente no meio deles. Não evoca apenas uma solidez interior, uma convicção firme do crente; a fé ilumina também as relações entre os homens, porque nasce do amor e segue a dinâmica do amor de Deus. O Deus fiável dá aos homens uma cidade fiável.28

Afirmar que ‘a fé ilumina as relações entre os homens’ ao mesmo tempo em que se lhe reconhece a prioridade no agir cristão e, portanto, também no agir da Igreja, na pastoral, é atribuir à fé um papel de base na análise da realidade pastoral, que começa pelo ver, a ser comandado, antes de tudo, pela luz da fé, a que se submetem todas as análises da conjuntura feitas na perspectiva das ciências humanas. Essa posição da Lumen Fidei, que põe em questão práticas correntes de nossa programação pastoral, tem como fundamento teológico o fato de que “a fé opera pela caridade” (Gl 5, 6), conforme a expressão de Paulo no capítulo da Carta aos Gálatas em que trata, precisamente, da vida no Espírito. O texto da Encíclica não pode deixar de ser lido: Devido precisamente à sua ligação com o amor (cf. Gl 5, 6), a luz da fé coloca-se ao serviço concreto da justiça, do direito e da paz. [...] A luz da fé é capaz de valorizar a riqueza das relações humanas, a sua capacidade de perdurarem, serem confiáveis, enriquecerem a vida comum. [...] Sem um amor confiável, nada poderia manter verdadeiramente unidos os homens: a unidade entre eles seria concebível apenas enquanto fundada sobre a utilidade, a conjugação dos interesses, o medo, mas não sobre a beleza de viverem juntos, nem sobre a alegria que a simples presença do outro pode gerar. A fé faz

Lembre-se, aqui, o famoso discurso do Cardeal Suenens, encomendado pelo Papa, no fim da primeira sessão (04.12.1962), lembrando que, depois de considerar a Igreja ad intra, seria necessário considerá-la também ad extra, na sua relação com o mundo, que deu origem ao que foi votado no último dia do Concílio, como Constituição Pastoral da Igreja no mundo de hoje, a Gaudium et Spes. 28

FRANCISCO, op. cit., n. 50.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS compreender a arquitetura das relações humanas [...]. Por isso, a fé é um bem para todos, um bem comum: a sua luz não ilumina apenas o âmbito da Igreja nem serve somente para construir uma cidade eterna no além, mas ajuda também a construir as nossas sociedades de modo que caminhem para um futuro de esperança.29

A iniciação dos cristãos, desde criança, num posicionamento claro e objetivo da relação que a fé nos leva a manter com a sociedade, constitui, nos dias de hoje, uma tarefa das mais delicadas e difíceis da catequese. As pastorais ‘fé e política’ precisam ser totalmente revistas, na perspectiva do ensinamento dessa última encíclica. Muito se deverá analisar, em consequência, para se chegar às orientações concretas a dar aos catequistas. Esses princípios lembrados pela Lumen Fidei devem estar sempre presentes, como podemos constatar analisando uma catequese, escolhida quase ao acaso, entre as muitas a que se dedica quase diariamente o papa Francisco. Não seria exagero dizer que a fidelidade da pastoral e da catequese latino-americanas a tais princípios é o que podemos esperar do pontificado de Francisco.

4 UMA CATEQUESE DO PAPA FRANCISCO Uma das características do ensinamento de Francisco, quase nas antípodas de seu antecessor, embora em perfeita continuidade de doutrina, é a forma de apresentá-la, sempre numa perspectiva catequética, isto é, voltada para a iniciação cristã. Vale a pena analisar suas falas curtas e enxutas, como por ocasião do Angelus no dia 30 de junho, 13º domingo do tempo comum. O Evangelho deste domingo (Lc 9, 51-62), começa Francisco, mostra uma passagem muito importante na vida de Cristo: o momento em que - como escreve São Lucas - “manifestou o firme propósito de ir a Jerusalém” (9, 51). [...] Desde aquele momento, após a “firme

decisão”, Jesus fixa a meta, e [...] para as pessoas que encontra e que lhe pedem para segui-lo, diz claramente quais são as condições: não ter uma moradia estável; desapegar-se dos afetos humanos; não ceder à nostalgia do passado.30

Assim, como na raiz do gesto redentor de Jesus está seu firme propósito de ir a Jerusalém, o seguimento de Jesus, caminhada em que o cristão é chamado a se iniciar, requer o desapegar-se dos afetos humanos. Notese a primeira exigência da catequese: começar por alimentar no coração do catequizando o firme propósito de seguir a Jesus e deixar em segundo plano todos os outros afetos e objetivos humanos. A vocação cristã não consiste apenas na integração na Igreja pelo batismo. Trata-se de um chamado a que nos tornemos como Jesus, no fundo do coração e, em consequência, suas testemunhas para o mundo: [...] Jesus diz também aos seus discípulos, encarregados de o preceder no caminho rumo a Jerusalém para anunciar a sua passagem, que nada imponham: se não encontrarem a disponibilidade para o receber [...]. Jesus nunca impõe, Jesus é humilde, Jesus convida. Se quiseres, vem! A humildade de Jesus é assim: Ele convida sempre, não impõe.31

Esse é o segundo objetivo da iniciação cristã: convidar os que acolhem Jesus, os discípulos, para que se disponham a testemunhá-lo e a participar de sua missão salvadora, na qualidade de missionários. Discípulos e missionários, objetivos distintos, mas inseparáveis da iniciação cristã, tal como foram lembrados pelo Documento de Aparecida, cuja redação, não o esqueçamos, esteve a cargo do mesmo Bergoglio, que agora nos ensina na cátedra de Pedro. “Tudo isto nos faz pensar”,32 continua Francisco. A regra da catequese, como da missão, é não se fazer por imposição, a qualquer título que seja. A fé e a religião não podem ser comunicadas como meio de se conseguir a libertação do sofrimento, a satisfação de uma necessidade, um caminho de prosperidade ou o penhor para obtenção da felicidade. Deus só é verdadeiramente reconhecido e servido quando se apresenta como

29

FRANCISCO, op. cit., n. 51. FRANCISCO. Angelus. Roma, 30 jun. 2013. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/francesco/angelus/2013/documents/ papa-francesco_angelus_20130630_po.html. Acesso em: 30 jun. 2013.

30

31

Ibid.

32

Ibid.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS devendo ser acolhido na liberdade, a ponto de se poder dizer que não é autêntica a fé e a religião que não sejam fruto da liberdade. A liberdade é a regra da salvação e da missão. O ato redentor de Jesus foi um ato de total liberdade, inteiramente ditado pelo amor do Pai, extensivo a toda a humanidade, como nos ensina essa mesma passagem do Evangelho: Diz-nos, por exemplo, a importância que, também para Jesus, tinha a consciência: ouvir no seu coração a voz do Pai e segui-la. Na sua existência terrena Jesus não era, por assim dizer, «telecomandado»: era o Verbo encarnado, o Filho de Deus que se fez homem, e numa certa altura resolveu subir a Jerusalém pela última vez; uma decisão tomada na sua consciência, mas não só: juntamente com o Pai, em plena união com Ele! Decidiu em obediência ao Pai, em escuta profunda e íntima da sua vontade. E por isso a decisão era firme, porque foi tomada juntamente com o Pai. E no Pai Jesus encontrava a força e a luz para o caminho. E Jesus era livre, naquela decisão Ele era livre.33

Se Jesus, na sua consciência humana, fez o firme propósito de acolher a vontade do Pai, de dar a sua vida para a salvação de toda a humanidade em plena liberdade, também nós, como cristãos, somos chamados a viver na plena liberdade, segundo nossa consciência. Este tem de ser, sem dúvida, o objetivo primeiro da iniciação cristã: Jesus quer que nós, cristãos, sejamos livres como Ele, com aquela liberdade que vem deste diálogo com o Pai [...]. Jesus não quer cristãos egoístas, que seguem o próprio eu, que não falam com Deus; também não quer cristãos tíbios, cristãos sem vontade, cristãos «telecomandados», incapazes de criatividade, que procuram unir-se sempre à vontade de outra pessoa e não são livres. Jesus deseja que sejamos livres, mas onde se realiza esta liberdade? No diálogo com Deus, na própria consciência. Se o cristão não souber falar com Deus, se não souber sentir Deus na sua consciência, não será livre, não é livre.34

33

FRANCISCO, Angelus (30.06.2013).

34

Ibid.

35

Ibid.

36

Ibid.

37

Ibid.

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Francisco deixa claro que toda a catequese deve convergir para a formação de uma consciência em contínuo diálogo com Deus, como a consciência de Jesus. Somente nesse Caminho se chegará a alcançar a liberdade do amor que confere valor redentor a toda a nossa vida, em continuidade com a vida de nosso Salvador. Daí conclui: Por isso, temos que aprender a ouvir mais a nossa consciência. Mas, atenção! Isto não significa seguir o próprio eu, fazer o que me interessa, o que me convém, o que me agrada... Não é assim! A consciência é o espaço interior da escuta da verdade, do bem, da escuta de Deus; é o lugar interior da minha relação com Ele, que fala ao meu coração e me ajuda a discernir, a compreender qual é o caminho a percorrer, e uma vez tomada a decisão, a ir em frente, a permanecer fiel.35

Para terminar, antes de mencionar Nossa Senhora, que “com grande simplicidade, escutava e meditava no íntimo de si a Palavra de Deus e o que estava acontecendo com Jesus”,36 recorre ao exemplo de seu antecessor, interpretando-lhe a renúncia como um gesto da consciência cristã madura, em plena liberdade: Nós tivemos um exemplo maravilhoso do modo como se realiza esta relação com Deus na própria consciência, um recente exemplo maravilhoso. O Papa Bento XVI deu-nos este grande exemplo quando o Senhor lhe fez compreender, na oração, qual era o passo que devia dar. E seguiu, com um profundo sentido de discernimento e coragem, a sua consciência, ou seja, a vontade de Deus que falava ao seu coração. E este exemplo do nosso Pai faz muito bem a todos nós, como um exemplo para seguir.37

Paulo VI e João Paulo II centraram seu magistério no mistério da Igreja. Bento XVI apontou para sua fonte, a Palavra de Deus, que nos comunica seu Espírito. Francisco, agora, chama atenção para a liberdade da consciência, o coração, no sentido bíblico, a ser visado pela iniciação cristã como a base da vida de fé, no Espírito, que somente edifica a Igreja, em continuidade com o coração de Jesus.


PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS CONCLUSÃO A renovação da Igreja vislumbrada por João XXIII e realizada pelo Vaticano II vem se efetivando aos poucos, durante os últimos cinquenta anos. Num primeiro momento parecia que partiria da atualização da Igreja ao mundo contemporâneo, que dela se havia distanciado e se constituíra (construíra) em grande parte contra ela. Seria preciso ajustá-la ao modo de pensar e às maneiras de agir das pessoas a que era chamada a comunicar a mensagem da salvação. Mas não tardou a se dar conta de que esse movimento de revisão do posicionamento cultural e político das instituições e ensinamentos eclesiais tinha uma densidade própria a ser respeitada, como condição de fidelidade às suas origens. Viveu-se um período de tensões entre uma posição reformadora e outra tradicionalista, em que se punha em questão a própria Igreja, nos pontificados de Paulo VI e de João Paulo II. Bento XVI, dando um passo adiante, não no sentido de ajustamento ao mundo, mas de aprofundamento da Igreja em direção às suas fontes, contribuiu de maneira decisiva para que a questão da relação com o mundo se colocasse não a partir da Igreja, mas de suas fontes,

a Palavra de Deus acolhida na fé, pela docilidade ao Espírito. A Igreja, como João Batista, é chamada a diminuir aos olhos do mundo, na pobreza e no despojamento, para dar lugar à Luz da Palavra e ao Ardor do Espírito, chamados a iluminar todos os humanos e abraçá-los como filhos no Filho, na comunhão que é Deus. Cumprida sua missão, promulgado, nesse sentido, um Ano da Fé, Bento XVI teve a coragem de reconhecer seus limites, afastando-se, como João Batista, e cedendo o lugar a quem o Espírito indicasse, no caso, o papa Francisco. A expressão desses acontecimentos culmina na “encíclica a quatro mãos”, escrita como uma síntese do grande desafio de levar a Palavra e o Espírito de Deus a nosso mundo, e da concretização, por gestos extremamente significativos, do que é, de fato, o Evangelho testemunhado em face de nosso mundo. Como catequistas, ministros da transmissão da fé, não podemos deixar de nos empenhar, por nossa vida e nossa ação, para que a fé, em que se funda o testemunho do Evangelho, se torne a razão de viver de todos os batizados, para que a luz de Deus brilhe diante dos homens e sejam todos fortificados pelo sal que nos preserva a vida como cristãos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENTO XVI. Porta Fidei. Carta apostólica com a qual se proclama o ano da fé (11.10.2011). São Paulo: Paulus, 2011. ______. Verbum Domini. Exortação apostólica pós-sinodal sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja (30.09.2010). São Paulo: Paulinas, 2010. CATÃO, Francisco. O ato de crer: adesão a Deus e acolhimento de sua Palavra no Espírito. Revista de Catequese 141 (2013) 22-30. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 9. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Loyola; Paulinas; Ave-Maria; Paulus, 1999. CONSTITUIÇÃO Dei Verbum sobre a revelação divina. In: CONCÍLIO VATICANO II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: 2007. CONSTITUIÇÃO Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo de hoje. In: C ONCÍLIO V ATICANO II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: 2007. CONSTITUIÇÃO Lumen Gentium sobre a Igreja. In: CONCÍLIO VATICANO II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: 2007.

DE LUBAC, Henri. Méditation sur l’Église. Paris: Aubier, 1954. FRANCISCO. Angelus. Roma, 30 jun. 2013. Disponível em: http:/ /www.vatican.va/holy_father/francesco/angelus/2013/ documents/papa-francesco_angelus_20130630_po.html. Acesso em: 30 jun. 2013. ______. Lumen Fidei. Carta Encíclica sobre a fé (29.06.2013). Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/francesco/ encyclicals/documents/papa- francesco_20130629_enciclicalumen-fidei_po.pdf. Acesso em: 05 jul. 2013. MOUROUX, Jean. L’expérience chrétienne: introduction à une théologie. Paris: Aubier, 1954. SÍNODO SOBRE A NOVA EVANGELIZAÇÃO PARA A TRANSMISSÃO DA FÉ. Proposições. Revista de Catequese 140 (2012) 59-75. THÉOBALD, Christophe. As grandes intuições de futuro do Concílio Vaticano II a favor de uma “gramática gerativa” das relações entre Evangelho, sociedade e Igreja. São Leopoldo: Unisinos, 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS SECRETARIA PAROQUIAL Lugar de encontro e proximidade para a missão Denilson Geraldo*

INTRODUÇÃO A reflexão teológica e pastoral sobre a paróquia tem levado a reconsiderar a função da secretaria paroquial, bem como, a atuação dos sacerdotes e das pessoas que trabalham neste ambiente de apostolado e missão. Não é fácil abordar o tema, porque estamos tratando da secretaria de uma comunidade de fiéis que é chamada por vocação a testemunhar a fé e a caridade, sem deixar a qualidade do trabalho prestado. Vamos sempre nestas duas vias, uma não exclui a outra, mas uma exige a outra. Contudo, se elas se separam, o dano é certo; porque a Igreja pode ser confundida com um ‘negócio’ ou se transformar em ambiente anacrônico, impedindo o diálogo de uma comunidade cristã com a cultura que evolui e se aperfeiçoa.

1 A PARÓQUIA: COMUNIDADE ABERTA AO ENCONTRO DE PESSOAS Inicialmente, concentremos nossa atenção sobre a paróquia e tomemos uma nova consciência sobre o seu significado teológico, místico e pastoral, superando uma visão apenas burocrática. Ela é o rosto visível e concreto do Mistério da Igreja, ‘Sacramento de salvação’ no mundo; é uma comunidade de batizados, congregados em nome da Trindade Santíssima, vivendo a fé, a esperança e a caridade.1 Deste conceito sobre a paróquia, decorrem algumas considerações. Cabe-lhe, antes de tudo, a qualificação de ‘comunidade missionária dos discípulos de Cristo’ no meio do mundo. É comunidade de pequenas comunidades, famílias, pessoas, grupos, organizações

e instituições que testemunham a variedade, a riqueza e a beleza dos dons de Deus e estão a serviço da missão recebida de Cristo. Tal missão se expressa na diocese, confiada ao bispo, sucessor dos Apóstolos e na universalidade da Igreja, confiada ao pastoreio do Sucessor de Pedro. Nesta intrínseca comunhão e unidade, as estruturas eclesiais e iniciativas pastorais, que estão a serviço da vida e da missão da Igreja, tornam-se imagens visíveis daquilo que a Igreja de Jesus Cristo é na sua totalidade e no seu mistério humanodivino, um mistério vivido na base, no qual a vida e a missão da Igreja acontecem. Deste modo, a paróquia é a célula viva da Igreja, lugar privilegiado onde a maioria dos batizados tem a possibilidade de fazer uma experiência concreta do encontro com Cristo e da comunhão eclesial, possibilitando realizar a tríplice missão de Cristo: o anúncio da Boa Nova, a santificação da humanidade pelos sacramentos e o serviço pastoral, que é a razão de ser da vida e da ação de toda a Igreja e também de cada paróquia.2 Além desta conceituação teológica, agregamos o discurso do Papa Francisco ao CELAM por ocasião de sua visita ao Brasil, salientando alguns critérios eclesiológicos que aplicamos à paróquia, como lugar da vivência do discípulo missionário. O primeiro critério eclesiológico é pensar a paróquia para o dia de hoje, retomando a Conferência de Aparecida, deixando uma projeção futurista utópica ou restauracionista com saudades do passado que não condiz com a ação do Espírito Santo. O ‘hoje’ é o que mais se aproxima da eternidade, é uma centelha de eternidade, não é sinal de provisório, mas compromisso real com a história. O segundo critério eclesiológico é que este hoje se dá em

*

Sacerdote da Sociedade do Apostolado Católico (Palotinos). Doutor em Direito Canônico pela Pontificia Università Lateranense (Roma). Professor de Direito Canônico no UNISAL – Centro Universitário Salesiano de São Paulo – Campus Pio XI, na PUC-SP e no Instituto de Direito Canônico de São Paulo. Artigo submetido à avaliação em 15.11.2013 e aprovado para publicação em 26.11.2013. 1

Cf. SCHERER, Odilo Pedro. Carta pastoral à Arquidiocese de São Paulo: paróquia, torna-te o que tu és. Disponível em: http:// www.arquidiocesedesaopaulo.org.br/content/destaque-pastoral. Acesso em: 10 ago. 2013. 2

Cf. Ibid.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS tensão, não de modo estático. O discípulo missionário não pode possuir-se a si mesmo, não vive sem a missão, está em tensão para a transcendência do discipulado e para a transcendência da missão, deixando de ser ele mesmo o centro e o Cristo torna-se a referência para levar às pessoas o anúncio. É um sujeito projetado para o encontro: o encontro com o Mestre (que nos unge discípulos) e o encontro com os homens que esperam o anúncio. Nesta perspectiva, apresenta-se o terceiro critério: o discípulo vive em tensão para as periferias existenciais, descentralizando-se. Voltando ao nosso tema sobre a paróquia, podemos afirmar que, se a paróquia se erigir como ‘centro’, ela se funcionaliza e, pouco a pouco, se transforma em uma ONG. Torna-se cada vez mais autorreferencial e se enfraquece na ação missionária. Deixa de ser Esposa para ser Administradora e de Servidora transforma-se em Controladora. A paróquia busca a proximidade e o encontro assim como o próprio Deus que se revelou na história. É o Deus conosco, próximo do seu povo, proximidade esta que atinge o ponto máximo na Encarnação. Se uma secretaria paroquial for distante das pessoas, privilegiando apenas disciplinar as condutas e os procedimentos organizacionais, obviamente sem proximidade, sem uma teologia da Encarnação, podemos esperar uma dimensão de proselitismo e de conquista de pessoas que nunca irá alcançar a inserção nem a pertença eclesial de uma comunidade de fiéis para o testemunho da caridade na verdade. A proximidade cria comunhão, torna possível o encontro. A proximidade toma forma de diálogo e cria uma cultura do encontro. Todo este trabalho paroquial é guiado pelo pároco, como pai e irmão, com grande mansidão, paciente, misericordioso, testemunhando a pobreza evangélica, quer a pobreza interior como liberdade diante do Senhor, quer a pobreza exterior como simplicidade e austeridade de vida, sem a psicologia de príncipes, capaz de vigiar sobre o rebanho que lhe foi confiado e cuidando de tudo aquilo que o mantém unido.3

2 A SECRETARIA PAROQUIAL Considerando paróquia como comunidade de fiéis, lugar de encontro e proximidade, assim como Deus se

fez próximo pela Encarnação, a secretaria paroquial expressará o ser Igreja na base, saindo de si em direção ao centro, Jesus Cristo e a missão em favor das pessoas, colocando-se na periferia para que o centro esteja evidenciado. Nesta perspectiva, a secretaria paroquial deixa de ser apenas um lugar para anotar recados, mas peça-chave para a vida cristã da comunidade, com bom atendimento e com qualidade, ocupando um lugar de destaque no relacionamento entre os membros e os grupos ali constituídos. Neste mesmo discurso que citamos acima, o Papa Francisco alerta para a tentação do ‘funcionalismo’. Esta atitude é paralisante, não tolera o mistério, aposta na eficácia, reduz a realidade da Igreja à estrutura de uma ONG e o que vale é o resultado palpável e as estatísticas com modalidades empresariais de Igreja. De fato, a estrutura administrativa e organizacional da secretaria paroquial encontra sentido quando está a serviço das pessoas, quando possibilita o encontro e a proximidade dos fieis com Cristo, centro de toda ação eclesial, com os membros da comunidade e com as pessoas que não pertencem a esta, abrindo-se para a cidade e para o ecumenismo. Sempre nesta perspectiva teológica e eclesial, vejamos algumas atribuições da secretaria paroquial que auxiliam o encontro e a proximidade das pessoas. Inicialmente, como caráter prático é dever da secretaria responsabilizar-se pelo funcionamento da própria secretaria, respeitando os horários de funcionamento; zelar pela guarda e sigilo dos documentos; agir como facilitadora das relações interpessoais; recepcionar, preparar, redigir e expedir as correspondências; organizar a agenda do pároco e da paróquia; algumas vezes desempenha também a função de supervisionar e orientar os demais funcionários; atendimento ao público (pessoalmente, ao telefone e internet); classificar e guardar documentos; anotar as intenções de missas; oferecer e conhecer a catequese, a celebração dos batizados e casamentos; organizar reuniões, encontros, palestras; manter em dia os livros paroquiais, arquivos, a movimentação financeira, as estatísticas, o protocolo e a correspondência.4 Além dos trabalhos elencados, a secretaria paroquial testemunha sua fé pela maneira como é organizado o ambiente. Quem não gosta de estar numa sala limpa, organizada, arejada e acolhedora? Não é a opção pelo

3

Cf. FRANCISCO. Encontro com a comissão de coordenação do CELAM (28.07.2013). In: ______. Palavras do Papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013. 4

Cf. NOGUEIRA, Luiz Rogério. Secretaria paroquial. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2006, pp. 13-14. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 60 - 67, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS luxo e a colocação de móveis requintados e caros que podem agredir o bom senso e a simplicidade de uma comunidade cristã, utilizando objetos que inibam as pessoas e principalmente os pobres que fazem de tudo para ganhar o pão de cada dia. Uma secretaria organizada e arrumada que recepciona bem as pessoas é sinal de respeito com o próximo, imagem e semelhança de Deus, criatura que deve ser amada por aquilo que é. Não resta dúvida de que a simplicidade acolhedora facilita e proporciona a vida e a transmissão da fé na própria secretaria paroquial. Evidente que a primeira atitude de acolhida é do sacerdote. Quando este tem um coração aberto ao próximo, isto imprime um modo de viver a fé cristã na comunidade paroquial e nos funcionários, tornando-se uma escola dos discípulos de Jesus. Podemos dizer que a secretaria reflete a própria imagem do pároco e sua perspectiva pastoral de acolhida e amor ao próximo que busca colocar o Cristo no centro da existência.

3 TRABALHAR À LUZ DA FÉ O Papa Francisco publicou no dia 29 de junho a Encíclica A Luz da Fé que contou com a participação de Bento XVI na redação e estrutura do conteúdo. Vamos procurar aplicar o conteúdo da encíclica ao trabalho da secretaria paroquial, isto é, um serviço motivado pela fé e procuremos uma maior clareza sobre esta fundamental relação. Inicialmente, a fé não é ilusória, não é um salto no vazio, mas ilumina objetivamente a história pessoal e social da pessoa. Este aspecto de luz é necessário para que a fé seja redescoberta no encontro com a verdade, pois o crer não ofende, mas abre a razão e a ilumina. O testemunho de fé das pessoas que trabalham na secretaria é verdadeiro, é consciente, não vive na superstição. Daí a importância de uma formação permanente no campo da teologia e de outras ciências, dando razões de sua própria fé. Atualmente, existem cursos online, por correspondência, as próprias faculdades fazem parcerias com as paróquias, oferecendo cursos de extensão e aprimoramento teológico. Na realidade, seria bom que nossas secretárias tivessem cursado a faculdade de teologia, mas estamos um pouco longe disso. No entanto, este ideal poderá ser alcançado se alimentarmos a perspectiva de que a fé busca sempre conhecer e aprofundar Aquele que ama. Retornando à encíclica, a primeira parte coloca a questão do meio para o conhecimento da fé. Se 62

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quisermos compreender o que é a fé temos que olhar a vida e a história dos que pautaram suas vidas sobre ela, os que acreditaram nas promessas de Deus e receberam o que foi esperado pela fidelidade do próprio Deus. Esta maneira de conhecer nos tira do intelectualismo e nos leva ao testemunho dos que nos precederam no caminho do seguimento como discípulos e missionários de Jesus Cristo. A secretaria paroquial é uma experiência de comunhão eclesial com as pessoas que vivem no hoje e com os que formaram a história da comunidade. Um exemplo disto é o cuidado com o arquivo paroquial que representa o respeito pela história de fé da comunidade. Por isso, não existe arquivo inútil, descartável ou morto. O arquivo é sempre presente, pois não seria possível a vida da comunidade no hoje sem o testemunho dos que viveram anteriormente. O cuidado da secretaria com a história demonstra a gratidão, a consideração e a continuidade da vida de uma comunidade. A segunda parte da Encíclica coloca a relação entre fé e verdade. A dificuldade em tratar este tema é a crise em torno da verdade e este argumento é sempre visto com suspeita de totalitarismo e como raiz do fanatismo. No entanto, é razoável ter fé porque Deus mantém suas promessas e podemos colocar nele toda nossa segurança. Isto se dá porque a fé autêntica é expressão da verdade, não é fábula, pois sem a verdade os passos da existência humana seriam inseguros. Devido à sua intrínseca relação com a verdade, a fé pode oferecer uma nova luz e ver mais longe, compreendendo o agir de Deus. Além de se relacionar com a verdade, a fé também se relaciona com o amor e apenas na medida em que o amor estiver fundamentado na verdade é que pode perdurar no tempo. O amor não é sentimentalismo passageiro e a verdade não pode ser reduzida a autenticidade subjetiva, válida apenas para a vida individual. Portanto, a fé está fundamentada na verdade e no amor, sendo que o amor não está sozinho, pois do contrário seria solidão e egoísmo, então nasce um encontro com o Outro (Deus) e com os outros. Esta é a razão pela qual o cristianismo contribui com o bem comum: a fé relaciona-se com a verdade e o amor construindo a comunidade humana. Neste ponto, não há o perigo de fanatismo religioso porque sendo a verdade de um amor, não se impõe pela violência e nem esmaga o indivíduo, mas chega ao centro pessoal de cada ser humano. Este é o fundamento do diálogo entre cristianismo e as diferentes religiões: um diálogo que busca a verdade com amor e respeito ao próximo. Esta é a concepção bíblica da fé


PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS apresentada como escuta da voz de Deus no íntimo da consciência, para que um dia se chegue a ver o próprio Deus face a face. A secretaria paroquial tem a missão de desenvolver a capacidade estratégica de dialogar, na verdade e no amor que manifestam a fé, com a cidade e colaborar para a construção de uma nova ordem social, através do contato com todas as pessoas que procuram a paróquia por diversos motivos, não somente religiosos, mas sociais e culturais. O difícil atendimento às famílias afastadas da Igreja que procuram o sacramento do batismo, a catequese para a primeira eucaristia, o matrimônio, as exéquias e a missa de sétimo dia, tornamse oportunidades de diálogo com uma cultura que deixou o encontro com Jesus Cristo na vida de comunidade em segundo plano. Tal diálogo se dá especialmente na secretaria paroquial, traduzindo os conteúdos da vida cristã numa linguagem simples e acessível, que possibilite construir a civilização do amor. A terceira parte da Encíclica apresenta o transmitir daquilo que foi recebido. Quem se abriu ao Amor (Deus) e acolheu sua voz, recebe sua luz, não pode guardar este dom para si. Esta transmissão se dá no contato, de pessoa a pessoa, como uma chama que se acende em outra chama. Passa também pelo tempo, de geração em geração até chegar ao verdadeiro Jesus, autor da fé cristã. Neste sentido, é impossível crer sozinho, a fé não se dá numa relação isolada entre o ‘eu’ e o ‘Tu’ divino, mas por sua natureza abre-se ao ‘nós’ que significa a comunidade dos discípulos de Jesus, a Igreja. A experiência da fé professada como ‘nós’ é celebrada nos sacramentos, rezada na oração do Pai nosso e testemunhada nos Dez Mandamentos da lei da Deus. Temos aqui a unidade da fé que encontra sua origem no único Senhor, sendo partilhada com todos os membros da comunidade como um corpo que não se separa. Certamente, a secretaria irá sempre dialogar com as pessoas distantes da vida da comunidade, mas irá também contribuir para que os membros presentes na vida eclesial aprofundem a sua pertença. Assim, mostra-se a importância de uma profunda experiência de pertença eclesial, capaz de entender os dramas e as tensões da vida em comunidade, não se isolando, mas se colocando no caminho dos passos de Jesus, mesmo que a cruz pese muito em alguns momentos. A secretaria paroquial será um caminho para fazer a ponte entre os grupos, entre as pessoas e o padre, abrindo sempre possibilidades para a resolução de dificuldades na perspectiva da fé.

Esta mesma fé contribui para o bem comum porque sua fonte de conhecimento é o amor e a verdade recebida e transmitida, iluminando a vida humana, acompanhando todas as idades, desde a infância com o batismo e a catequese para a primeira Eucaristia, passando pela juventude com os grupos de jovens e catequese para o sacramento da crisma. Depois, acompanha o início da vida matrimonial, a maturidade e o término desta vida. A fé iluminada e aprofundada em família torna-se luz para a sociedade, ensinando que a luz do rosto de Deus ilumina o rosto do irmão, faz acolher com respeito e responsabilidade a natureza, está sempre aberto ao perdão que muitas vezes requer tempo, paciência e empenho, pois o bem é sempre mais originário e mais forte que o mal. A fé também é luz para o sofrimento, para a fraqueza e inclusive a morte é iluminada, podendo ser vivida como a última experiência de fé. Este arco de experiência humana exige da secretária a capacidade de empatia com todos. Tudo que for humano a Igreja considera que foi iluminado pela Encarnação de Deus. A paróquia como vivência cristã de base é chamada a testemunhar com todas as dimensões da vida que se relaciona com a comunidade. Seria um absurdo, se a pessoa que trabalha na secretaria se recusasse a atender alguma realidade humana. Não é um trabalho fácil, é exigente porque oferece a oportunidade de experimentar a universalidade da vida nos mais diversos setores e etapas. Concluindo, o modelo por excelência da fé é Maria, aquela que acreditou em Deus e no cumprimento de suas promessas, intimamente associada ao Cristo. Espera-se das pessoas que trabalham na secretaria paroquial que sejam devotas de Nossa Senhora. A presença de Maria na vida e na devoção pessoal demonstra que o discípulo é missionário. O destaque à imagem da Mãe de Deus na secretaria cria um ambiente materno, longe de uma recepção fria e burocrática. Ali nos sentimos em casa, na casa da mãe que acolhe o filho em suas necessidades.

4 A SECRETARIA E O CONHECIMENTO BÁSICO DO DIREITO CANÔNICO Trabalhar na secretaria paroquial motivado pela fé, promovendo a cultura do encontro e da proximidade pela ação missionária, pela celebração sacramental e formação catequética, exige também um conhecimento básico de direito canônico. A natureza das leis da Igreja está contida nos livros do Antigo e do Novo Testamento, São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 60 - 67, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS do qual, como de fonte primária, emana toda a tradição jurídico-legislativa. Cristo Senhor, com efeito, de modo algum destruiu, mas, deu pleno cumprimento (cf. Mt 5, 17) à riquíssima herança da Lei e dos Profetas, formada paulatinamente pela história e pela experiência do Povo de Deus no Antigo Testamento. Embora São Paulo, ao falar sobre o mistério pascal, demonstre que a justificação não se realiza pelas obras da lei, mas por meio da fé (cf. Rm 3, 28; cf. Gl 2, 16), não exclui, a obrigatoriedade do Decálogo (cf. Rm 13, 8-10; cf. Gl 5, 13-25; 6, 2), nem negou a importância da disciplina na Igreja de Deus (cf. 1 Cor 5-6). Os escritos do Novo Testamento nos permitem perceber mais claramente essa importância da disciplina e entender melhor os laços que a ligam mais estreitamente à índole salvífica da própria Boa Nova do Evangelho. Torna-se bem claro, pois, que o objetivo do Código de Direito Canônico não é substituir na vida da Igreja ou dos fiéis, a fé, a graça, os carismas, nem muito menos a caridade, mas facilitar o seu desenvolvimento orgânico.5 A partir de sua fundamentação bíblica, encontramos o caráter pastoral do Direito Canônico e dos Diretórios para os Sacramentos Diocesanos, estabelecendo medidas concretas, fazendo com que as leis e as instituições canônicas estejam adequadas ao bem das pessoas. Nesta perspectiva, é oportuno deter-se a refletir sobre um equívoco, talvez compreensível, mas não por isto menos danoso, que infelizmente condiciona, não raro, a visão da pastoralidade do direito eclesial. O equívoco é contrapor as dimensões jurídica e pastoral que estão inseparavelmente unidas na Igreja peregrina. Antes de tudo, há uma harmonia derivante da finalidade comum: a salvação da pessoa. Com efeito, a atividade jurídico-canônica por sua natureza, é pastoral. Ela constitui uma peculiar participação na missão de Cristo Pastor, e consiste em atualizar a ordem de justiça intraeclesial, desejada por Cristo. Por sua vez, a atividade pastoral, embora superando de longe os aspectos apenas jurídicos, comporta sempre uma dimensão de justiça. De fato, não seria possível conduzir e proporcionar o encontro e a comunhão se prescindisse daquele mínimo de caridade e de prudência, que consiste no empenho em fazer observar, com fidelidade

a lei e os direitos de todos na Igreja. A justiça na Igreja, animada pela caridade e moderada pela equidade, merece o qualificativo de pastoral. Não pode haver um exercício de caridade pastoral autêntica, que não tenha em consideração, antes de mais, a justiça pastoral.6 A observância do Código de Direito Canônico e do Diretório para os Sacramentos conduz ao amor e a misericórdia para com o próximo. É um erro usar o direito para maltratar as pessoas, colocando-se numa posição de superioridade. A justiça não é alheia à caridade, não é um caminho alternativo ou paralelo à caridade, mas é inseparável da caridade e lhe é intrínseca. A caridade e misericórdia sem justiça não é tal, mas somente uma contrafacção, porque a própria caridade exige aquela objetividade típica da justiça, que não deve ser confundida com insensibilidade desumana.7 As pessoas que atendem na secretaria paroquial precisam de algumas noções de direito matrimonial, incluindo a preparação para o casamento, o conteúdo dado no encontro de noivos, a documentação necessária, bem como, a atuação dos tribunais eclesiásticos para orientar os casos de ‘segunda união’. Também é fundamental conhecer as normas para o batismo e as exigências para ser um padrinho e madrinha. Quando ressaltamos que a secretaria é lugar de proximidade e acolhida, podemos dizer que o modo de explicar as normas sobre os sacramentos seja um ponto essencial neste argumento. A humildade e simpatia para orientar sobre algumas condições para a celebração dos sacramentos são importantes para a secretaria paroquial porque muitas vezes as pessoas que procuram a Igreja não têm a mesma linguagem e conhecimento.

5 A INTERAÇÃO ENTRE A SECRETARIA PAROQUIAL E A CIDADE Um princípio pastoral para a secretaria paroquial é criar pontes entre os fiéis da comunidade com a cidade como um ministério de evangelização social, propenso a iluminar, estimular e assistir a integral promoção da pessoa. A Igreja vive e atua na história, interagindo com

5 Cf. JOÃO PAULO II. Constituição apostólica Sacrae disciplinae leges sobre a promulgação do Código de Direito Canônico (25.01.1983). Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_constitutions/documents/hf_jpii_apc_25011983_sacrae-disciplinae-leges_po.html. Acesso em: 12 ago. 2013. 6 Cf. JOÃO PAULO II. Discurso ao Tribunal da Rota Romana (18 de janeiro de 1990), n. 4. L’Osservatore Romano, ed. português, 28 jan. 1990, p. 31. 7

Cf. BENTO XVI. Discurso ao Tribunal da Rota (29 de janeiro de 2010), n. 6. L’Osservatore Romano, ed. português, 6 fev. 2010, p. 8.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS a sociedade e a cultura do próprio tempo, para cumprir a sua missão de comunicar a todos os homens a novidade do anúncio cristão, na concretude das suas dificuldades e lutas e dos seus desafios, de sorte que a fé os ilumine para compreendê-los na verdade de que abrir-se ao amor de Cristo é a verdadeira libertação. Hoje, mais do que nunca, a Palavra de Deus não poderá ser anunciada e ouvida senão na medida em que ela for acompanhada do testemunho na vida da sociedade pelo poder do Espírito Santo, que opera na ação dos cristãos a serviço dos seus irmãos.8 O conhecimento das instituições públicas e sociais da cidade favorece o diálogo e o encaminhamento pela secretaria da paróquia de muitos casos de ajuda social. São numerosos os pedidos para um café da manhã, almoço, compra de remédio, solicitação de exame, passagens para viagem, albergue para uma noite, cesta básica. Busca-se também a intercessão do padre para uma vaga na creche ou no asilo, auxílio de pendências judiciais com a orientação de advogado, etc. Em tudo isso, é importante que a secretaria paroquial conheça e esteja informada de tudo que acontece na cidade. Não basta dizer às pessoas, principalmente aos pobres: ‘Vá à prefeitura’, lavando as mãos como Pilatos. Sabemos da ineficiência do poder público em nosso país. É preciso interagir e dialogar com a cidade, conhecendo os lugares de ação social e orientando os membros da comunidade e todos os que procuram a paróquia através de sua secretaria, onde encontrar os serviços essenciais para a população. Este papel da secretaria ajudará na interação entre paróquia e cidade, mostrando uma presença eficaz e dinâmica da comunidade católica. Este desenvolvimento de trabalhos da secretaria não limita a criação e o desenvolvimento de grupos de caridade e assistência social. Pelo contrário, a Igreja é chamada a testemunhar sua fé pelas obras. No entanto, as pessoas que procuram a secretaria podem encaminhar suas questões de modo mais rápido e eficaz com uma simples informação. Este é o ponto. Não é a secretária paroquial quem irá realizar todo este trabalho, mas saberá informar onde e quando a pessoa irá procurar os serviços públicos e ao mesmo tempo, os serviços de caridade oferecidos pela comunidade.

6 ALGUMAS QUESTÕES PRÁTICAS Para realizar todo este trabalho é necessário aperfeiçoar o atendimento no expediente paroquial e fazer com que ele passe de uma simples recepção para um acolhimento fraterno, respondendo com dinamismo às exigências de uma secretaria. Faz-se necessária a preparação de pessoas nas diversas áreas, dentre elas, a de recursos humanos, preparação teológica, administrativa, etc. De fato, não se podem dispensar os avanços obtidos na sociedade em matéria de conhecimento, mas também não se pode negligenciar aquilo que é específico de uma comunidade paroquial: a caridade evangélica e o amor ao próximo. Se isto não for realizado, corre-se o risco de transformar a paróquia numa empresa que simplesmente presta serviço. O estimado Francisco em sua primeira vigília de Pentecostes como Papa disse que o Evangelho é a principal contribuição que podemos dar e que Igreja não é um movimento político, nem uma estrutura bem organizada, nem uma ONG com o perigo do ‘eficientismo’. Fundamentalmente, o valor da Igreja é viver o Evangelho e dar testemunho da fé como sal da terra, luz do mundo, chamada a tornar presente na sociedade o fermento do Reino de Deus, por meio do seu testemunho, do amor fraterno, da solidariedade e da partilha. É um dano fechar-se na paróquia, com os amigos, sempre no mesmo movimento ou pastoral, com aqueles que pensam as mesmas coisas. Quando a Igreja se fecha, adoece, mas ela deve sair de si mesma em direção às periferias existenciais, sejam elas quais forem. Nesta saída, a característica é ir ao encontro, porque a fé marca a proximidade com Jesus e abre uma verdadeira crítica à cultura do desencontro, da fragmentação exige da comunidade eclesial a cultura do servir, da amizade, onde se pode dialogar mesmo com aqueles que pensam diversamente e com os que não têm a mesma fé.9 Neste sentido, o objetivo primordial da secretaria paroquial é o acolhimento e a partilha de informação na caridade cristã e com o profissionalismo que a função exige. Vale lembrar que já houve um tempo em que a função da secretária ou secretário paroquial se resumia em atender os fiéis para marcar missas, casamentos, batizados ou outras atividades restritas aos sacramentos,

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Cf. PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da doutrina social da Igreja (02.04.2004). 7. ed. São Paulo: Paulinas, 2011, nn. 524-525. 9

Cf. FRANCISCO. Vigília de Pentecostes com os movimentos eclesiais (18.05.2013). Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/ francesco/speeches/2013/may/documents/papa-francesco_20130518_veglia-pentecoste_po.html Acesso em: 18 ago. 2013. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 60 - 67, jul. / dez. 2013.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS ou então escrever cartas, memorandos, atender telefonemas. Hoje em dia, as pessoas que atuam na secretaria paroquial exercem um papel fundamental dentro da paróquia. Elas continuam fazendo as atividades de antes, porém muitas outras atividades estão sob a sua responsabilidade. As secretárias e secretários estão cada vez mais inseridos no dia a dia da paróquia, conhecendo e entendendo tudo o que acontece nela, inclusive na diocese e na cidade, influenciando e ajudando, com bom-senso, nas decisões mais frequentes. Se por um lado, o poder de decisão das secretárias e secretários aumentou, por outro, aumentaram as exigências da paróquia. É uma função que vem se transformando, expandindo-se e adquirindo nova roupagem, de acordo com as diferentes realidades em que cada um trabalha. Até certo tempo, as secretárias paroquiais eram vistas como pessoas com pouca ou nenhuma qualificação profissional e sem habilidades para lidar com o público. Antes existia o estereótipo de que para trabalhar no expediente paroquial não se exigia boa formação. Tudo isto mudou. Elas têm que ser muito versáteis para se adaptar às diferentes situações, favorecendo o bom atendimento e ajudando no acolhimento. Algumas questões práticas podem favorecer este trabalho. Começamos pelo atendimento dado na recepção ou expediente da paróquia ou o atendimento direto daqueles que vão pessoalmente até esse local em busca dos serviços da paróquia. O atendimento exige pontualidade de abertura da secretaria, cortesia, roupas adequadas à função, atenção com as expressões corporais, evitando demonstrar tédio, deixando de olhar o relógio e se o telefone tocar é necessário pedir licença. Contudo, dentre todos os requisitos, talvez o mais importante, é saber ouvir com equilíbrio emocional, sendo eficiente para atender o que a pessoa necessita. O segundo tipo de atendimento é o indireto que se dá ao telefone, via internet com emails e site, também com a secretária eletrônica e correspondências.10 Tanto no atendimento direto como indireto, as pessoas precisam obter respostas para suas buscas. O sentimento de que você não é importante para o outro se dá quando a pessoa conclui que ali não tem jeito, que ninguém ajuda em nada, que a secretaria tem muitas exigências, mas não oferece nenhuma ajuda. É o descaso com a pessoa, imagem e semelhança de Deus. 10

Outro ponto no atendimento é quando ocorrem situações que podem levar a discussões. Confusão não fica bem em lugar nenhum, muito menos no expediente paroquial. Elas expõem tanto quem está atendendo como quem é atendido, sem contar que cria um clima desconfortável. Há pessoas peritas em arrumar confusão e quem atua no expediente paroquial sabe bem disso. Quantos não são os que brigam por qualquer motivo? Quando você perceber que a pessoa tem dificuldade de entender o que você está explicando ou que ela está nervosa, predisposta a criar confusão, convide-a para uma conversa à parte, numa sala ao lado, longe dos olhares e ouvidos dos demais. Ali você vai poder ser mais firme com ela, sem a necessidade de ‘dar broncas’. Mas não faça isso em público, mesmo que a pessoa queira provocar essa situação. Lembre-se: debates verbais podem causar ressentimentos e criar hostilidades e antipatias que não raro perturbam o relacionamento. A verdade pronunciada com caridade é sempre convincente. Use de gentileza no atendimento. Há pessoas que são gentis por natureza e outras que têm que se esforçar para isso. No entanto, gentileza faz parte da boa educação e não é apenas um dom exclusivo de alguns. É certo que uns têm mais facilidade que outros, porém não é impossível ser gentil se houver boa-vontade e empenho para isso. Nesse caso, valem as regras da boa educação. A gentileza vai desde o tom de voz, a postura do corpo até a presteza e agilidade no atendimento. Quem usa de generosidade no atendimento cria um ambiente favorável no local de trabalho, além de elevar a própria autoestima e a consideração que as pessoas têm pela Igreja. A paróquia que tem como secretário(a) pessoas gentis e educadas avança no seu processo de evangelização, uma vez que o acolhimento é parte fundamental desse processo. Por fim, exige-se de quem está trabalhando na secretaria paroquial que seja uma pessoa de fé, que tenha uma prática da religião católica, que tenha todos os sacramentos, que frequente assiduamente as missas, que demonstre ter uma vida de oração. Isso não se dá somente com palavras, mas na prática diária. Ora, se a paróquia tem missa pela manhã, é conveniente que o secretário(a) levante mais cedo e participe da missa antes de entrar no trabalho. Nas horas livres, como antes ou depois do almoço, quando sair do trabalho, vá rezar um pouco diante do Santíssimo. Pratique obras de caridade não apenas com

Cf. PEREIRA, José Carlos. Atendimento paroquial: guia prático para secretárias/os, padres e demais agentes de pastoral na gestão de pessoas. Petrópolis: Vozes, 2010, pp. 11-12.

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PERSPECTIVAS PERSPECTIVAS os recursos da paróquia, mas com seus próprios recursos. É bom que as pessoas que trabalham na secretaria reservem um tempo para visitar doentes, famílias carentes e outros tipos de necessitados da comunidade. Participar de algum trabalho voluntário, sendo a primeira pessoa a envolver-se nas campanhas que a paróquia promove. Em casa, reservar um tempo para a oração pessoal e também para a oração em família. Participar de terços, novenas (do Natal, da Quaresma, da Campanha da Fraternidade, da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, etc.) e outros momentos de oração que a comunidade promove. Uma pessoa de fé atuante é calma, equilibrada e sabe lidar com mais eficiência com todos os problemas, sejam eles do trabalho ou da vida particular. De fato, a secretária precisa rezar sempre, pois a oração é o ‘combustível’ para um bom desempenho profissional e eclesial no atendimento paroquial.11

CONCLUSÃO Apresentamos algumas sugestões para aprofundar a reflexão sobre a importância do trabalho do secretário(a) no processo de evangelização paroquial: exercitar a prática da leitura sobre as bibliografias que se relacionam com o tema; conhecer outras experiências de atendimento paroquial; disponibilizar tempo para continuar estudando em alguns cursos rápidos nas áreas de gestão de RH, gestão financeira, gestão de marketing e planejamento; verificar a possibilidade de iniciar um curso de teologia na diocese ou em alguma faculdade católica. Como foi colocado no início, o tema não é simples porque exige o profissionalismo de um secretário(a) para

o bom atendimento ao público e ao mesmo tempo, preservar a caridade cristã própria de uma comunidade de fiéis. Este foi o nosso intuito neste artigo e o simples fato de se questionar sobre este trabalho paroquial já é o início de uma transformação. O problema se dá quando a comunidade está, juntamente com seu pároco, convencida de que tal pessoa trabalha há tanto tempo neste local e sempre foi e sempre será assim. Transformações e renovações são importantes em todos os setores. Muitas vezes, a pessoa continua fazendo o mesmo de sempre porque ninguém a orientou de outro modo ou porque já chegou a hora de mudar. Mudanças não significam que tal pessoa seja má, mas que as necessidades da sociedade são outras e que para melhor atender com caridade, profissionalismo, proximidade e com senso de pertença se faz necessário contratar alguém à altura da função. Para tanto, a equipe de administração da paróquia pode dar grande ajuda, isto, é, se o pároco souber abrir para esta equipe as necessidades da paróquia, os membros poderão ajudar no processo de seleção. No entanto, faz-se necessário que se conheça as necessidades para depois encontrar a pessoa. Se a comunidade continuar pensando que a secretaria é somente para anotar recados, marcar missas e dar algumas informações sobre os sacramentos, provavelmente irá chamar alguém capaz somente para isto. Em síntese, a reflexão sobre o tema da secretaria paroquial leva-nos a pensar sobre qual a visão de paróquia possuímos e suas implicações na vida dos membros da comunidade e no diálogo com a sociedade. Responder a tais questionamentos é fundamental para elaborar um plano de trabalho para a secretaria paroquial.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENTO XVI. Discurso ao Tribunal da Rota (29 de janeiro de 2010), n. 6. L’Osservatore Romano, ed. português, 6 fev. 2010. JOÃO PAULO II. Constituição apostólica Sacrae disciplinae leges sobre a promulgação do Código de Direito Canônico (25.01.1983). Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/ apost_constitutions/documents/hf_jp-ii_apc_25011983_sacraedisciplinae-leges_po.html. Acesso em: 12 ago. 2013. ______. Discurso ao Tribunal da Rota Romana (18 de janeiro de 1990), n. 4. L’Osservatore Romano, ed. português, 28 jan. 1990. FRANCISCO. Encontro com a comissão de coordenação do CELAM (28.07.2013). In: ______. Palavras do Papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013. ______. Vigília de Pentecostes com os movimentos eclesiais (18.05.2013). Disponível em: http://www.vatican.va/ 11

holy_father/francesco/speeches/2013/may/documents/papafrancesco_20130518_veglia-pentecoste_po.html Acesso em: 18 ago. 2013. NOGUEIRA, Luiz Rogério. Secretaria paroquial. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2006. PEREIRA, José Carlos. Atendimento paroquial: guia prático para secretárias/os, padres e demais agentes de pastoral na gestão de pessoas. Petrópolis: Vozes, 2010. PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da doutrina social da Igreja (02.04.2004). 7. ed. São Paulo: Paulinas, 2011. SCHERER, Odilo Pedro. Carta pastoral à Arquidiocese de São Paulo: paróquia, torna-te o que tu és. Disponível em: http:// www.arquidiocesedesaopaulo.org.br/content/destaquepastoral. Acesso em: 10 ago. 2013.

Cf. PEREIRA, José Carlos. op. cit., pp. 68-69. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 60 - 67, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS A DIMENSÃO CATEQUÉTICA DOS SALMOS Maria Ivaneide Bezerra Rodrigues*

INTRODUÇÃO A catequese, por sua natureza, constitui um elemento diverso e posterior ao primeiro anúncio, ou à primeira evangelização, e esta é uma ação profundamente eclesial, conforme afirma a Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi.1 A verdadeira promotora da catequese é a própria Igreja, sucessora da missão de Jesus Mestre, imbuída do Espírito Santo, que foi enviada para ser educadora da fé. Todavia, a Igreja, imitando Maria Santíssima, conserva no seu coração o Evangelho, anuncia-o, celebra-o, vive-o e o transmite na catequese a todos aqueles que optaram por seguir o Mestre. Com efeito, a Catequese é um ato fundamentalmente eclesial.2 Quando se menciona a pedagogia da fé, não se trata meramente de um saber humano, mas sim de expor com intensidade a Revelação de Deus – Revelação esta que manifesta a forma como Deus se deu a conhecer pelo homem, atraindo-o para si numa relação de amor que cresce obediente à Sua palavra. Sobretudo no Evangelho, o próprio Deus, na pessoa do Filho, Verbo de Deus encarnado que veio morar entre nós (Jo 1, 14), se valeu de uma pedagogia que deve permanecer como modelo para a pedagogia da fé. A pedagogia da fé está intimamente ligada à catequese, visto que comunica, na

sua integridade, a Revelação de Deus e, como técnica, somente será válida se colocada a serviço da fé para transmitir e educar.3 Conhecer a realidade é fator primordial para o discípulo-missionário anunciar o Evangelho com eficácia. João Paulo II, na sua carta apostólica Tertio Millennio Adveniente, conclamava que se fizesse uma tomada de consciência, principalmente sobre a realidade hodierna da Igreja. O cristão, diante do Senhor e em meio a tantas luzes e muitas sombras, deve interrogar-se sobre as responsabilidades que lhe cabem, perante os males do tempo atual.4 A Conferência de Aparecida vem substanciar um tempo de transformações profundas que afetam a realidade, não apenas em alguns aspectos, mas como um todo. De fato, mudanças de época são tempos desnorteadores, como consta nas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2011 – 2015.5 Em meio a uma sociedade pluralista, secularizada e descristianizada, e diante do contexto atual, o grande desafio da catequese é instruir à e na fé os interlocutores para que continuem sagazes em sua fé, assegurem sua identidade cristã, percebam a plenitude de Deus e deem testemunho dela em tempos desorientadores. É apropriado, neste cenário, indicar que:

* Especialista em Pedagogia Catequética pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Especialista em Administração Escolar, com licenciatura em Pedagogia e Orientação Educacional pela Universidade Católica de Brasília. Artigo submetido à avaliação em 02.10.2013 e aprovado para publicação em 16.10.2013. 1

Cf. PAULO VI. Evangelii Nuntiandi. Exortação Apostólica sobre a evangelização no mundo contemporâneo (08.12.1975). São Paulo: Paulinas, 2001. 2

Cf. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Diretório geral para a catequese. São Paulo: Paulinas, 2003, n. 78.

3 Cf.

Ibid., n. 139; CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA Dei Verbum sobre a Revelação Divina. In: CONCÍLIO VATICANO II. 1962-1965. Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos e declarações. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2000, n. 185; JOÃO PAULO II. Catechesi Tradendae. Exortação Apostólica sobre a catequese de nosso tempo. São Paulo: Paulinas, 1995, n. 58. 4

CF. JOÃO PAULO II. Tertio Millennio Adveniente. Carta Apostólica sobre a preparação para o Jubileu do ano 2000 (10.11.1994). Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_letters/documents/hf_jpii_apl_10111994_tertio-millennioadveniente_po.html. Acesso em: 22 ago. 2012, n. 34. 5

Cf. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil: 2011 – 2015. 3. ed. Brasília: CNBB, 2011, n. 20.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS [...] em nossos dias mais do que no passado, a fé vêse sujeita a uma série de interrogativos, que provêm duma diversa mentalidade que, hoje de uma forma particular, reduz o âmbito das certezas racionais ao das conquistas científicas e tecnológicas.6

Na dimensão catequética, inúmeros são os documentos da Igreja que exortam a utilização da Sagrada Escritura como fonte primordial e é nessa dimensão que a Literatura Sapiencial apresenta uma profunda fonte de oração catequética vivencial, levando o interlocutor a comunicar-se com Deus numa relação dialogal, conduzindo-o à intimidade com a Palavra e por sua vez, à prática ética condizente com a vida cristã. O livro dos Salmos é, por excelência, o livro de oração, por refletir um profundo conteúdo catequético, dos mais belos e significativos da tradição orante da Igreja, assegura Bento XVI. O Saltério foi para o povo de Israel uma grande escola lírica da experiência pessoal e comunitária. Mais do que interpelações, os Salmos constituem expressões em que o ser humano pode gritar diretamente com seus sentimentos, dizendo palavras similares ou genéricas. O sentir próprio e alheio é transformado em palavras; portanto, o Saltério é uma autêntica criação da língua da interioridade.7 Preparar o ambiente para a vinda do Messias era uma das funções históricas do povo hebreu. Houve um cuidado especial por parte de Deus em favor de seu povo para erigi-lo religiosamente acima dos outros, não apenas no terreno doutrinal, mas também no moral – houve também um operar pedagógico por parte de Deus na formação moral do povo de Israel. Serve-se desta herança, o leitor, ao meditar os Salmos: mergulhando no conhecimento deste livro bíblico, ele reza ao Pai em Cristo e com Cristo, na dimensão da nova perspectiva do mistério Pascal de Cristo, como interpretativa última. Neste estudo, verificou-se carência do conhecimento das fontes dos escritos bíblicos, principalmente do Livro dos Salmos, o que representou um fator de dificuldade durante a pesquisa.

1 O LIVRO DOS SALMOS O processo que deu origem aos escritos bíblicos faz parte de uma longa história de fé. O povo da Bíblia é um 6

povo de muita fé. Ao perceber o Deus revelado na história, de geração em geração, os feitos de Deus foram narrados até constituir um livro escrito como é hoje a Bíblia. Por isso, na origem de cada Salmo está um salmista, um poeta, uma pessoa, como também uma comunidade, um povo. O povo se reconhecia nos Salmos, pois estes eram a expressão da sua fé, de sua esperança e de seu amor. Por este motivo os cantava, selecionava e guardava na memória. Assim chegou-se ao Livro dos Salmos, após um longo processo, muito semelhante ao observado hoje na formação dos livros de canto usados na catequese e na evangelização das comunidades. Na Bíblia, a coletânea catequética do livro dos Salmos insere-se depois dos conjuntos de livros intitulados Pentateuco e Livros Históricos. Os Salmos estão dentro do grande conjunto chamado de Literatura Sapiencial, que compreende os livros de Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cânticos dos Cânticos, Sabedoria de Salomão e Eclesiástico. Esta coletânea abre a terceira seção da Bíblia Hebraica. A figura de Salomão está intimamente ligada à origem do pensamento sapiencial, como é possível observar em 1Rs 3, 4-15. Salomão é um arquétipo de todos os sábios, que promoveu intensas relações políticas e comerciais com povos vizinhos. Sua corte foi organizada nos moldes dos países mais evoluídos da época, em especial o Egito. A leitura Sapiencial exprime a sabedoria do povo de Deus, como um conhecimento fundamentado na experiência acumulada ao longo da vida e melhorada no curso das várias gerações. Em Israel, cultura não caracterizava acúmulo de conhecimento: sabedoria traduzia-se pelo bom senso e discernimento das situações, adquiridos através da meditação e reflexão sobre a vida. Nesses livros chamados Sapienciais, é possível verificar um mundo caracterizado pela fé, na sabedoria divina que dá origem a todas as coisas, organiza o universo e cada ser humano. Contudo, sabedoria designa um fenômeno intercultural amplamente difundido na antiguidade, da Mesopotâmia ao Egito, e também da Grécia a Roma, o qual poderia ser chamado de saber prático da vida ou saber do cotidiano adquirido pela prática. Para o povo de Israel, a sabedoria desenvolve-se segundo o Deus da revelação. Ela tem por objetivo primeiro conhecer e

BENTO XVI. Porta Fidei. Carta Apostólica com a qual se proclama o Ano da Fé (11.10.2011). São Paulo: Paulus, 2011, n. 12.

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BENTO XVI. Audiência Geral (22.06.2011). Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/audiences/2011/ documents/hf_ben-xvi_aud_20110622_po.html. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 68 - 78, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS defender a vida e nasce do desafio dos problemas cotidianos, procurando conviver e buscar respostas. O livro dos Salmos se caracteriza também por uma coleção de orações do povo. São diversas orações que revelam a experiência profunda que Israel fez com seu Deus. É chamado também de Saltério, que indica coleção ou repertório. Em hebraico é seper tehillim, traduzido por hinos, cântico de louvor. A Septuaginta ou LXX, versão grega do Antigo Testamento, do século III a.C, na diáspora judaica de Alexandria, traduziu tehillim por Psalmós, da tradução hebraica mizmor, que quer dizer cântico acompanhado de um instrumento de cordas. Mais tarde o latim traduziu psalmós por psalmus que significa, “cantar ao som da cítara, vibrar as cordas de um instrumento”. Esta beleza literária dos salmos é apresentada na Bíblia por uma coletânea de 150 salmos. É interessante observar que, além dos 150 Salmos que formam o Saltério, encontram-se, ao longo do Antigo Testamento, outros escritos com características literárias de Salmos, como o Cântico de vitória no Mar dos juncos (Ex 15, 1-18); o Cântico de Moisés (Dt 32); o Cântico de Débora (Jz 5); o Magnificat de Ana (1Sm 2, 1-11); o Cântico de despedida de Davi (2Sm 23, 1-7); o Hino de gratidão dos salvos (Is 12); o Salmo de Jonas (Jn 2, 310) e o Cântico de Judite (Jt 16). Vale ressaltar que, num momento da história, os judeus estabeleceram os Salmos como coleção oficial de orações, como livro canônico. Professar isto é considerá-lo sagrado: o livro era obra de Deus, fato característico da tradição judaico-cristã.8 Em forma atual, está demonstrado que os Salmos foram compilados ao longo de setecentos anos, pois há sinais da sua evolução histórica.9 Para Weiser, o Saltério está dividido em cinco livros, por analogia à Torah, encerrando-se cada qual com uma doxologia litúrgica. Assim, o primeiro bloco dos salmos 141 refere-se ao Livro do Gênesis; o segundo bloco, de (42-72), ao Livro do Êxodo; o terceiro bloco, de (73-89), ao Livro do Levítico; o quarto, de 90-106, ao Livro dos Números; e o quinto e último, de (107-150), ao Livro do Deuteronômio.10 Em cada Salmo encontra-se o motivo da oração. Por isso, na dimensão da Catequese, os Salmos vêm corroborar como instrumento riquíssimo de oração bíblica, que oportuniza o leitor a uma dimensão de ensino, instrução e conhecimento da Palavra revelada, tencionando a uma atualização de fé e vida do cristão.

A oração dos Salmos proporciona ao catequizando a expressão e manifestação de seus sentimentos e levao a fazer um deserto consigo mesmo, perscrutando os seus mais ínfimos pensamentos, percebendo que Deus, independentemente da situação de vida em que se encontra, o escuta. Na meditação dos Salmos, o catequizando percebe-se diante do Deus vivo, que não apenas o escuta, mas o convida para um diálogo de reciprocidade; tem a certeza de que está diante de um amigo fiel e, ao recitar os versos, percebe a presença do Espírito Santo de Deus envolvendo-o numa relação divino-humana. A oração sálmica, faz com que o catequizando sinta-se encorajado a enfrentar as dificuldades que a vida apresenta. O seu grito de súplica anima-o a esperar na misericórdia de Deus. Quando está gozando de felicidade, no Saltério, o catequizando pode manifestar a sua gratidão ao grande e fiel amigo. No gozo desta alegria, sente-se estimulado a recitar os Salmos que ressaltam as maravilhas e a grandeza de Deus, tornando este momento oracional uma grande celebração da vida. A meditação dos Salmos guia o catequizando a perceber-se nos conflitos e nos problemas de sua caminhada, norteando-o a viver de maneira intrínseca a realidade do seu cotidiano; consolida sua fé, acolhendo a Revelação amorosa de Deus, consequentemente, torna-se mais humanizado. Ao beneficiar-se da oração Sálmica, o catequizando orante percebe-se no ministério profético da Igreja, atualizando constantemente a Revelação de Deus, que o educa para ser discípulomissionário, resultando em fazer a opção por Jesus e levar a todos a Boa Nova do Reino. O catequizando encontra-se, portanto, motivado a compor seus próprios salmos, e desta forma, torna sua relação com Deus mais íntima e mais intensa.

2 A UTILIZAÇÃO PEDAGÓGICA DO LIVRO DOS SALMOS A relação de Deus com o ser humano é experimentada na situação concreta de sua vida, em cada estágio do processo da história humana, individual e social. O Livro Divino oferece o valor religioso do universo e da história humana, documentando de forma

8

Cf. SCHÖKEL, Luís Alonso; CARNITI, Cecília. Salmos I: tradução, introdução e comentário. São Paulo: Paulus, 1996, p. 73.

9

Cf. SANTO AGOSTINHO. Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos): Salmos 101-150. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 13.

10

Cf. WEISER, Artur. Os Salmos. São Paulo: Paulus, 1984, p. 11.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS surpreendente o acontecimento mais extraordinário e paradoxal, por inspiração do autor bíblico: a inserção do pensamento e da ação de Deus nas concepções religiosas e ético-morais no curso da vida humana, individual e social. Falar dos Salmos é falar da história de fé do israelita. Ritos e liturgia é a chave para o processo de significado da história de Israel e mostram ainda possibilidades de expandir um eixo de experiências históricas entre o passado e o futuro. A interpretação dos Salmos é incorporada ao texto, visto que devem ser recitados ou cantados, e nasceram ou são destinados à execução. Qualquer texto literário deve ser reproduzido para viver, mesmo que na mente silenciosa do leitor. No entanto, por sua essência incorporada do texto, os Salmos são para serem rezados e todos os orantes, desconhecidos e futuros, entram em cena e introduzem-se neles. É relevante evocar que a designação Salmos procede do Novo Testamento (Lc 20, 42; 24, 44; At 1, 20; 13, 33) e remonta ao século II com a Versão da Septuaginta. O livro dos Salmos está longe de incluir todos os Salmos. A divisão dos Salmos em cinco partes significa interpretar esta coleção de orações num correspondente ao Pentateuco que, por sua vez, faz de Davi dos Salmos um arquétipo de Moisés da Torah.11 No Novo Testamento, surge um componente novo na interpretação dos Salmos, que é a menção a Jesus Messias, vindo à humanidade por vontade do Pai, como na passagem “Depois lhes disse: São estas as coisas que eu vos falei quando ainda estava convosco: era necessário que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Lc 24, 44). Ou ainda, como em Jerusalém, Jesus responde à censura de algumas autoridades judaicas referindo-se às Escrituras: o Salmo 8,3 em Mateus 21, 16; em João 13, 18, na ceia, Jesus refere-se ao Salmo 41, dizendo “Mas é preciso que se cumpra a Escritura” (Sl 41, 10).12 As primeiras comunidades cristãs conservavam os Salmos como profecias messiânicas e fonte de ensinamento. Os Salmos, portanto, continuaram sendo o conjunto oficial de oração para as comunidades cristãs. Desde o século III até meados do século VI, de Orígenes 11

Cf. WEISER, op. cit., p. 10.

12

Cf. SCHÖKEL; CARNITI, op. cit., p. 14.

a Cassiodoro, houve uma intensa ação intelectual e mística em torno dos Salmos. Eram considerados ação intelectual, para diferenciar do uso litúrgico e espiritual, nunca interrompido, pois alimentavam o trabalho intelectual, e o intensificava em comparação à cultura da época.13 Na divisão da cristandade século XVI e XVII, nos dois movimentos opostos da Reforma e Contrarreforma, os Salmos continuaram sendo rezados por ambas as partes da cristandade dividida. Um evento muito importante neste contexto foi a invenção da imprensa que, por sua vez, contemplou a exegese. No século XX, um evento de grande importância no estudo do Antigo Testamento aponta que os Salmos derivam de hinos, liturgias, orações e oráculos destinados ao uso da monarquia pré-exílica.14 Os Salmos apresentam uma pedagogia que conduz o interlocutor a uma educação para a compreensão e percepção de Deus. Esta se revela na história do povo, conectando o crente no caminho desta história numa percepção cristocêntrica, tendo em vista que ao orar, os Salmos são transferidos ao presente, objetivando rezá-los como cristãos. Isto posto, sobrepõe-se a novidade recriadora do mistério pascal de Cristo e de sua revelação – fato fundamental garantido pelo Espírito Santo que ensina a orar. Os Salmos não são percebidos como escrito de uma cultura antiga; no entanto, são identificados como oração e expressão dos sentimentos dirigidos a Deus. Ao rezar os Salmos, o crente ou a comunidade manifestam suas crenças, exprimem seus sentimentos espirituais e são estimulados à ação. Os Salmos são, pois, expressão humana portadora de sentido. Ao sintonizar os Salmos como oração é necessário que se creia, pois somente o crente é capaz de orar. Ao orar um Salmo, alcança-se o Deus verdadeiro. Ele é adorado espiritualmente e de forma autêntica. Ao exprimir a experiência de um ser humano ou de uma comunidade, a oração dos Salmos deve converterse em expressão religiosa de uma nova pessoa e de uma nova comunidade, resultando em promoção humana na qual as pessoas façam mais umas pelas outras, portanto, numa comunidade fraterna.

13

Cf. Ibid., p. 17.

14

Cf. VOEGELIN, Eric. Israel e a Revelação. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2010, p. 340. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 68 - 78, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS 3 GÊNEROS LITERÁRIOS DOS SALMOS A explicação de um gênero ou de uma forma literária, nem sempre constitui um trabalho simples. A partir da comunicação são estabelecidos certos padrões de linguagem convencionados que são repetitivos e acabam sendo aceitos como os mais adequados às diferentes situações, originando os gêneros. Estes são padrões de linguagem, oral ou escrita, que têm seus tipos identificados por meio das características particulares que apresentam; são, a rigor, uma abstração teórica baseada na observação de exemplos concretos específicos, ou seja, à medida que são repetidos, são incorporados ao conhecimento. O gênero literário corresponde aos vários tipos ou modelos de textos existentes na Bíblia. Para o autor Simian-Yofre, estudioso da Metodologia Bíblica, o gênero literário consiste numa abstração linguística à qual é possível associar os textos que possuem forma literária semelhante numa mesma categoria. A identificação do gênero literário está vinculada à origem do texto; assim, como requisitos do estudo exegético do texto estão a determinação de sua forma e a determinação de seu gênero literário. A “forma é o conjunto dos elementos linguísticos que dão fisionomia precisa e única ao texto”.15 A história de um gênero literário particular é o resultado de métodos e metodologias. Uma vez estabelecida sua existência, sua evolução pode ser descoberta a partir da comparação com outros textos em que o mesmo gênero pode ser identificado. Os pontos obscuros relativos à classificação dos gêneros literários podem ser elucidados a partir do material literário histórico e arqueológico que as descobertas modernas põem à disposição dos estudiosos. No gênero literário em que se classifica a produção escrita, são considerados: forma, intenção a que se propõe o autor, devendo-se considerar, portanto, a maneira particular de raciocínio, narrativa, escrita e ambiente bíblico. Com seus temas e estilos, os escritos bíblicos compõe o gênero sapiencial do latim sapientia, ou seja, sabedoria, especialmente representado por Jó, Provérbios, Eclesiastes, por certos salmos e por algumas passagens de outros livros. Para transmitirem o seu ensinamento, os sábios recorrem frequentemente ao provérbio ou à reflexão que se acha nos Ketubim sob duas diferentes formas: a admoestação e a sentença. A 15

primeira se reconhece logo pela frequência do uso do modo verbal imperativo, empregado para aconselhar e exortar os discípulos acerca do caminho que devem seguir (Pr 19, 18; 20, 13; Ecl 7, 21). A segunda, a sentença, consiste na breve descrição objetiva de uma realidade comprovável, de um fato sobre o qual não se pronuncia nenhuma espécie de juízo moral (Jó 28, 20; 37, 24; Pr 10, 12; 14, 17; Ecl 3, 17; Ct 8, 7). Junto a essas fórmulas proverbiais, a Bíblia recolhe outros modelos didáticos utilizados pelos sábios para a transmissão dos seus conhecimentos: o poema sapiencial (Pr 1-9), o diálogo (Jó 3-31), a digressão no discurso (característica de Eclesiastes), a alegoria (Pr 5, 5-19) e também a oração e o cântico de louvor (formas características dos Salmos). Do ponto de vista literário e estilístico, segundo os estudiosos da literatura sapiencial e, sobretudo dos salmos, eles se distinguem em três grandes gêneros, considerados segundo o princípio das formas: hinos, súplicas e ação de graça. Os hinos apresentam composição bem uniforme, iniciando todos por uma exortação a louvar a Deus. O corpo do hino propõe as razões ou temas do louvor: o ser e o agir de Deus, na natureza e na história. Sua conclusão exprime uma prece ou repete a fórmula da introdução. São hinos os Salmos 8; 19; 29; 33; 46-48; 76; 84; 87; 93; 96-100; 103-106; 113; 114; 117; 122; 135; 136 e 145-150. As súplicas não cantam as glórias de Deus, mas dirigem-se a Ele. São salmos de sofrimento e lamentações, que podem ser coletivos ou individuais As súplicas coletivas são cânticos para o culto dos dias de jejum e penitência e correspondem aos Salmos 12; 44; 60; 74; 79; 80; 83; 85; 106; 123; 129 e 137. Nas súplicas individuais, o poeta pede a Deus a libertação e salvação, ou perdão de seus pecados; são os Salmos 3; 5-7; 13; 17; 22; 25; 26; 28; 31; 35; 38; 42 + 43; 51; 54-57; 59; 63; 64; 69-71; 77; 86; 102; 120; 130 e 140-143. Os Salmos de Ação de Graças são aqueles que expressam o agradecimento a Deus. São os Salmos 18; 21; 30; 33; 34; 40; 65-68; 92; 116; 118; 124; 129; 138 e 144.

3.1 NÚMERO E NUMERAÇÃO A numeração precisa de um escrito não é simples. Em se tratando dos Salmos, seu número oficial, conforme o cânon nas Sagradas Escrituras, é 150. Em meados do século II a. C., o texto hebraico dos Salmos foi

Cf. SIMIAN-YOFRE, Horácio. Metodologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2000, p. 28.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS traduzido para o grego, para uso dos judeus da Diáspora: a Septuaginta ou versão dos Setenta. A numeração não é semelhante à do Texto Hebraico Massorético, 16 contudo, por duas vezes ocorre o caso de um Salmo, único no texto hebraico, estar dividido em dois na versão grega (Sl 116 e 147). Também inversamente, por duas vezes, dois Salmos da coletânea hebraica (9 e 10; 113 e 114) correspondem a um único canto da Septuaginta. Na prática muitas vezes provoca confusão por parte do interlocutor, por isso há necessidade de expor o quadro sinótico, objetivando melhor compreensão. A Vulgata e o Texto Massorético contêm 150 Salmos, enquanto que a versão dos LXX, 151. A numeração é diferente, pois a LXX e Vulgata uniram os Salmos 9-10 e 114-115 e dividiram o Salmo 116 e 147 em duas partes (Salmo 116 = na Vulgata 114 + 115; Salmo 147 = na Vulgata 146 + 147). Para os demais Salmos, a numeração na Vulgata e na Septuaginta é a mesma que a do Texto Massorético. O fato de alguns Salmos terem sido colocados duas vezes (Salmo 14 e 53; Salmo 40, 14-18 e 70; Salmo 107 e 57, 8-12 e, por fim, o Salmo 60, 6b-14 e 108), indicam que foram constituídos de peças de outros Salmos. Se o Livro dos Salmos fosse de um único autor, tais repetições não ocorreriam.17

No decorrer desta pesquisa, foi utilizada a Bíblia tradução da CNBB, por ser de opção litúrgico-catequética e por também fazer opção pela numeração da Bíblia Hebraica.

3.2 A AUTORIA DOS SALMOS Tanto a autoria como o tempo de origem dos escritos do Saltério são desconhecidos ou duvidosos, uma vez que vários Salmos foram, no passar do tempo, revistos, completados ou adaptados ao uso litúrgico. Os Salmos, como já mencionado, procedem de hinos, liturgias, orações e oráculos, destinados ao uso no culto da monarquia pré-exílica.19 A contribuição destes escritos foi uma descoberta significativa no que se refere aos estudos do Antigo Testamento do século XX, que veio elucidar o caráter da composição dos Salmos. Os inúmeros pontos de ligação entre os Salmos e o culto da festa da Aliança das tribos de Israel reforçam ao indicativo de que a maioria dos Salmos é de origem préexílica. De modo que a época da composição dos diferentes Salmos deve fixar-se à exegese de cada Salmo.20 Verifica-se a sensata decisão da maioria dos comentadores atuais de não discutir o problema da autoria do Saltério ou de Salmos individuais. Entretanto, em respeito à velha tradição, convém apresentar alguns autores.21 A suposta autoria aponta: 73 Salmos atribuídos a Davi; 12, a Asaf filho de Baraquias, que foi mestre de canto de Davi (1Cor 6, 39.43; 15, 17; 16, 5; 2Cr 29, 30); 11 aos filhos de Coré, que foram Aser, Elcana e Abiasaf; o Sl 90 a Moisés; 1 a Salomão; 1 a Hermã e 50 anônimos.

4 DIMENSÃO PEDAGÓGICA DOS SALMOS: INSTRUÇÃO CATEQUÉTICA QUE CONDUZ NO CAMINHO DA PALAVRA 16 O Texto Massorético deve-se aos Massoretas, críticos do texto judaicos (cerca de 750 até 1000), cujos esforços tinham por alvo estabelecer um texto hebraico definitivo e imutável. (Cf. VAN DEN BORN, A (red.). Dicionário enciclopédico da Bíblia. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 194). 17

Cf. B ARBOSA , Maria Aparecida. Os salmos na Catequese. Brasília: CEPA-CNBB, 2011. Disponível em: http:// catequeseebiblia.blogspot.com.br/2011/05/os-salmos-e-catequese.html. Acesso em: 10 set. 2013.

18 Cf.

SCHÖKEL; CARNITI, op. cit., p. 74.

19 Cf.

VOEGELIN, op. cit., p. 340.

20 Cf.

WEISER, op. cit., p. 61.

21

Cf. SCHÖKEL; CARNITI, op. cit., p. 76. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 68 - 78, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS Ao percorrer o Livro dos Salmos é possível perceber, em seu conteúdo e estilo, a dimensão catequética e sua função pedagógica, histórica e vivencial. Nos Salmos está contido um precioso meio de oração: cultivá-los é encontrar um valioso tesouro. Vale ressaltar a função pedagógica dos Salmos, uma vez que neles pode-se reconhecer a vida de cada um e também a vida de toda humanidade, desde a criação até a parusia. Pode-se dizer que os Salmos expressam o mistério do ser humano em toda a sua plenitude e, à luz de Cristo e em Cristo, eles assumem um significado mais profundo e mais pleno. Os diferentes gêneros sálmicos apresentam função pedagógica que levam o leitor ao conhecimento e compreensão da Palavra de Deus; educa-o na escuta das verdades divinas; insere-o no contexto da interação fé e vida e, com o auxílio do Espírito Santo em sua vida, manifesta uma espiritualidade sálmica gestada num coração orante. Na liturgia, o povo celebra enquanto assembleia convocada por Deus, podendo-se dizer que liturgia é ação. A Constituição Apostólica Sacrosanctum Concilium apresenta a liturgia como o cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte donde emana toda a sua força. Desta forma, como função litúrgica, os Salmos indicam que a vida deve ser celebrada individual e comunitariamente.22 Nas ricas e belas páginas do Saltério encontramse poemas permeados de elementos com profundo conteúdo de instrução catequética. A pedagogia encontrada nestes Salmos é bem diversificada. O salmista emprega diversos temas: lição de história, exortações à maneira dos profetas, admonições litúrgicas, reflexões sapienciais sobre problemas de moral e outros. Dentre os poemas sapienciais, destacam-se os Salmos 1; 37; 49; 73; 112; 119; 127; 133; 128 e 139. O Salmo Primeiro nos comunica e vem assinalado com um teor pedagógico. Abre o Saltério apresentando os dois caminhos: do justo e do ímpio. Ou seja, o ser tem a opção da escolha entre o caminho que conduz a Deus e o caminho que leva à perdição; trata-se de um princípio bíblico presente no livro do Deuteronômio, capítulo 30: a questão da escolha é opção de vida. Cada escolha se faz em

plena liberdade e nesta liberdade, o ser humano assume suas consequências. Além disso, ele instrui o catequizando a refletir sobre o caminho a seguir. A livre tomada de decisão deve estar apoiada no cumprimento da Lei do Senhor. O comentário de Santo Agostinho é um meio de instrução catequética, que norteia a compreensão do Saltério, de modo especial à luz do mistério de Cristo. Percorrer os Salmos é perscrutar na dimensão do caminho que conduz o ser humano na busca pela verdade. Perguntava-se, o santo: Quid enim fortius desiderat anima quam veritatem? (Que deseja o homem mais intensamente do que a verdade?). O ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus, em virtude disto, traz no seu coração o desejo pela verdade. A oração do Salmo possibilita ao leitor orante perceber-se como imagem do Criador e, com efeito, aprenderá a ter um profundo respeito pelo ser humano, contribuindo para a construção de uma sociedade de justiça e paz; aprenderá também o sentido da liberdade autêntica, pois sendo o homem um ser relacional que vive em relação com os outros, e, sobretudo com Deus, não poderá alcançar esta liberdade afastando-se do Criador. O aprendizado da pessoa humana advém de um instinto natural, sublinhado na Carta Encíclica Fides et Ratio do Sumo Pontífice João Paulo II, por uma afirmação de Aristóteles: “Todos os homens desejam saber”. Acrescenta que desvendar a realidade das coisas é uma busca diária. A opção da pessoa humana pelos valores verdadeiros aperfeiçoa-a, completando a sua natureza. Desta forma, quando a pessoa consegue identificar, com meios próprios, o que é certo e o que é falso, considera-se que se tornou adulta. A verdade é o propósito de seu desejo. 23 Deus criou o universo conforme um plano no qual cada pessoa tem um significado próprio que aponta em direção a Ele. Os Salmos, portanto, apresentam um referencial pedagógico, compostos a partir das experiências vividas por um povo crente num Deus único na busca de sua identidade e do seu caminho. A leitura dos Salmos proporciona, sobretudo, percorrer este caminho em direção a Deus, fortalecendo a identidade cristã.

22

Cf. CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia. In: CONCÍLIO VATICANO II. 1962-1965. Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos e declarações. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2000, n. 10. 23

Cf. JOÃO PAULO II. Fides et Ratio. Carta Encíclica sobre as relações entre a fé e a razão (14.09.1998). São Paulo: Paulinas, 2001, n. 25.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS 5 A DIMENSÃO MISTAGÓGICA DOS SALMOS Mistagogia é um termo grego que significa “conduzir ao mistério”. De acordo com o Dicionário Enciclopédico da Bíblia, mistério é um rito religioso em que só os iniciados tomavam parte, e pelo qual estes julgavam obter a salvação. A mistagogia, pois, refere-se ao mistério. Este tema é visto e desenvolvido no período da teologia dos Santos Padres, rico de catequese mistagógica, isto é, de uma catequese que conduz aos mistérios da fé. É uma catequese imbuída de expressões litúrgicas, com uma pedagogia própria, com intuito de conduzir o catecúmeno à pedagogia divina, à dinâmica da Revelação, à fé como experiência pessoal e comunitária e à Igreja como sacramento de Jesus Cristo no mundo. Compreende-se que, seja qual for o campo de atuação pastoral, que deve haver uma pedagogia própria que perpassa a ação evangelizadora, que se dá a partir de um diálogo que Deus vai tecendo amorosamente com cada pessoa e com cada comunidade, e que se torna um ‘eco’ desta comunicação divina, uma mediação entre a ação divina e a realidade pessoal, histórica e social.24 A Igreja nascente, seguindo a trajetória da evangelização apostólica, dedicava grande cuidado à iniciação à fé cristã e ao seguimento de Jesus. A atividade, que se iniciou com a pregação missionária, passou por um processo de organização e estruturação vindo a se tornar posteriormente uma instituição eclesial denominada catecumenato.25 É neste período do Cristianismo nascente, que o processo de transmissão da fé passa a empregar o termo específico katecheô. O conceito de katechéô apresenta no Novo Testamento os primeiros esboços do significado específico que obterá enquanto instrução cristã na fé (Rm 2, 18; 1Cor 14, 19; Gl 6, 6). Trata-se do tempo de uma catequese eminentemente bíblico-vivencial. Segundo esta concepção, o ensinamento catequético é como um eco, o ressoar da Palavra de Deus mediante a voz do catequista. Na verdade, a catequese era tida como a transmissão viva do depósito de fé da Igreja aos novos membros que a ela se agregavam. O catecúmeno 24

seria aquele que está sendo iniciado na ‘escuta’, não de uma palavra qualquer, mas da Palavra de Deus. O catecumenato delineava-se como uma instituição também catequética, uma vez que em seu planejamento constava a instrução na doutrina dos Apóstolos, a formação da pessoa através de ritos, orações, prática da fraternidade e a formação em vista da superação de situações que não condiziam com a fé cristã.26 No catecumenato antigo, a Iniciação Cristã ou a iniciação à fé, era orientada como um caminho de introdução, abertura e diálogo com o Mistério de Deus, que fala através de sua palavra, atos e acontecimentos. O princípio fundante e dinamizador do caminho é o próprio Deus, que se revela na história a cada ser humano, em seu tempo e lugar. A mistagogia foi conhecida na tradição como explicação teológica do fato sacramental ou dos ritos que compõem a celebração litúrgica. Contudo, é muito mais do que um gênero literário ou uma metodologia pastoral-litúrgica: ela é a teologia dos primeiros tempos.27 A Igreja hoje, ao falar da mistagogia, ou de uma catequese mistagógica, quer resgatar o princípio iniciante da fé. Neste princípio está uma catequese de raiz bíblica e orante. A vida litúrgica celebrativa judaica, através do culto de Israel, é um referencial, no qual a tradição não significa apenas recordação do passado, mas atualiza e antecipa o futuro e, ao fazer reviver o passado, a liturgia reaviva a esperança. O Saltério se encerra com o grande louvor no Salmo 150 que expressa a dimensão do lúdico e da festa: um único convite a louvar a Deus em que todas as vozes se unem ao som vigoroso da orquestra. O motivo do louvor é a grandeza e as manifestações do poder de Deus. A liturgia festiva do culto divino do Templo projeta-se na liturgia celeste como triunfo final da harmonia. Crisóstomo declara que todos são convidados ao louvor a Deus: habitantes do céu, da terra de todos os tempos e, finalmente, os instrumentos musicais! A dimensão da festa de todo o povo eleito, quando é convidado a testemunhar os feitos divinos que enredam em si a realização da obra salvífica da criação de Israel, é que designa a salvação do mundo. O Salmo 150 termina com um convite ao louvor inefável àquele que se revelou por primeiro, louvor este que somente

Cf. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO, op. cit., n. 144.

25

Cf. LOPES, Jesús. Catecumenato. In: PEDROSA, Vicente Maria; NAVARRO, Maria. Dicionário de Catequética. São Paulo: Paulus, 2004, p. 125. 26

Cf. PEDROSA, Vicente Maria; NAVARRO, Maria. Dicionário de Catequética. São Paulo: Paulus, 2004, p. 144.

27

Cf. MAZZA, Enrico. La Mistagogia: una teologia della Liturgia in epoca patristica. Roma: Centro Liturgico Vincenziano, 1988, pp. 6-7. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 68 - 78, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS pode brotar da alma daquele que reconhece a magnitude de sua grandeza. Destaque-se que este Salmo é como um painel luminoso, o ponto de chegada do caminho da oração, em que a humanidade aparece como um conjunto alegre e animado, cantando e dançando num louvor eterno. Ao se valer do livro de orações, o leitor, percebe, ao orar nos Salmos de louvor, que a vida é e deve ser celebrada.28 Um grande desafio da atualidade para os discípulosmissionários é suscitar a fé nas novas gerações, diante do fenômeno de descristianização. Incitar, motivando a renovação da catequese, para retomar a prática da iniciação cristã, rumo a uma catequese de inspiração catecumenal, pode ser uma proposta eficiente a contemplar tal desafio. A mistagogia marca o último tempo do processo catecumenal. Os Salmos vêm contribuir de forma eficaz neste processo. Em diálogo com a cultura religiosa de nossa época, é perceptível a mistagogia presente nos Salmos. Os Salmos emanam um relevante conteúdo mistagógico, visto que, são vivenciais, experienciais e orantes. A seguir são apresentados os três passos mistagógicos: o encontro do Salmista com Deus; a conversão e a adesão ao Projeto de Deus. Ao refletir sobre a dimensão mistagógica dos Salmos percebe-se que os passos mistagógicos se misturam e, em um mesmo Salmo é possível percebê-los, os três, simultaneamente. O primeiro passo, do encontro do salmista com Deus, está representado nos seguintes Salmos: 1-5; 7-14; 1618; 22-25; 31; 35-37; 42-46; 50; 53-55; 60; 62-64; 70; 74; 76-78; 82-85; 87-88; 90-94; 99; 102-104; 109-110; 114-116; 118-132; 136; 139-140 e 143. Nestes Salmos, o crente é conduzido para dentro do mistério de Deus e sustenta um encontro amoroso, motivando o crescimento na fé. A relação do interlocutor com o mistério de Deus e o Deus do mistério é o próprio mistério de sua vida e de sua história. Esta experiência sálmica, comunica ao orante que o mistério deve ser contemplado, vivenciado e experimentado: “Porque sol e escudo é o Senhor Deus; o Senhor concede graça e glória, não recusa o bem a quem caminha com retidão. Senhor dos exércitos, feliz o homem que em ti confia” (Sl 84, 12-13). Ao perpassar por este itinerário mistagógico, o interlocutor é ‘iniciado’ no conhecimento do mistério e do Reino de Deus, na comunhão com Ele, não somente

ao proferir os Salmos, todavia, na escuta e na experiência vivencial com Deus que se revela. “Sei que o Senhor faz justiça ao oprimido e defende o direito do pobre” (Sl 140, 13). O leitor orante reconhece o Deus do mistério e declara-se disposto a seguir seus ensinamentos: “Bendito és tu, Senhor; ensina-me teus estatutos” (Sl 119, 12). Perscrutando estes Salmos, o orante permite uma proximidade com Deus, reconhecendo a necessidade de sua pertença a Ele. Percebe também a importância de caminhar na prática da justiça, na obediência à sua Lei e no amor ao próximo. “Eu digo ao Senhor: És tu o meu Senhor, fora de ti não tenho bem algum” (Sl 16, 2). Para realizar esta experiência mistagógica sálmica, pode-se valer de que não é possível separar fé e vida de sua realidade pessoal, familiar, profissional, social. Nos paradigmas da nova cultura, determinada pelo individualismo, ao orar os Salmos, o mistério toca o coração e a mente do interlocutor, conduzindo-o a uma espiritualidade envolvente e edificante. “Misericórdia e fidelidade se encontram, justiça e paz se abraçam” (Sl 85, 11).29 O segundo passo da mistagogia é a conversão, observada nos Salmos 5-7; 9; 19; 32; 38-41; 51; 58; 65; 68-69; 73; 78-80; 86; 103; 106; 109; 119; 137 e 141. Neste itinerário mistagógico, o crente, ao se encontrar, reconhece Deus como verdade absoluta. À medida que toma consciência do mal e do pecado no seu seio, como um poder inevitável a superar, anseia por um coração puro, sincero, humilde e agradável a Deus; reconhecese pecador e clama a misericórdia infinita de Deus. “Ó Deus, tem piedade de mim, conforme a tua misericórdia; no teu grande amor cancela o meu pecado” (Sl 51, 3). Neste passo, o orante, ao rezar os Salmos, adentra no mistério e percebe-se diante da única possibilidade que lhe resta – confiar na misericórdia de Deus – e que Ele mude a partir de dentro, do coração, uma situação insuportável, obscura e sem futuro. Ao reconhecer-se impotente por si mesmo, coloca-se nas mãos de Deus e continua a esperar as suas promessas. “De todo coração te procuro: não me deixes desviar dos teus preceitos. Conservo no coração tuas promessas para não te ofender com o pecado” (Sl 119, 10-11). Quando se trata da sua vida mais autêntica e do seu destino, o crente coloca a sua esperança em Deus, esperando dele um coração novo, sensível e submisso. Põe a sua confiança no autor da vida, pois é Ele que dará vida em plenitude.

28

Cf. MESTERS, Carlos. O rio dos Salmos das nascentes ao mar. 2. ed. São Paulo: Paulus; São Leopoldo: CEBI, 1988, p. 24.

29

Cf. BUYST, Ione. O Segredo dos Ritos: ritualidade e sacramentalidade da liturgia cristã. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 117.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS O terceiro passo da mistagogia é a adesão ao Projeto de Deus, como se percebe nos Salmos 7; 9-10; 15-16; 1922; 24; 26; 27-30; 33-35; 40; 47-49; 52; 56; 57; 59; 61; 66-69; 71-72; 75; 78; 81; 89; 92; 95-98; 100-101; 105-108; 111-113; 117-119; 133-136; 138 e 144-150. A atitude da pessoa iniciada é a de chamado. Ela é convidada a aproximar-se do mistério que quer se revelar pessoalmente, envolvendo-a na história da salvação, numa atitude de escuta, acolhimento, aceitação e adesão ao Projeto de Deus. “Pois ele falou e tudo se fez, ordenou e tudo começou a existir” (Sl 33, 9). Trata-se de descobrir que Deus vai se revelando e atuando na história da salvação do mundo e na própria história do crente. Este dá a sua resposta pessoal de forma gradual a essa revelação de Deus em Jesus Cristo no Espírito Santo e, como consequência desta resposta, ocorre uma mudança progressiva de vida. “Em Deus, cuja promessa eu louvo, no Senhor, cuja promessa eu louvo” (Sl 56, 11). Ao refletir sobre os Salmos que apontam o caminho da iniciação, o interlocutor é chamado à prática e à vivência de seus ensinamentos. É também chamado a dar testemunho na comunidade de fé. “Oh! Como é bom, como é agradável os irmãos morarem juntos!” (Sl 133, 1). Os Salmos são, portanto, uma rica fonte inspiradora na caminhada mistagógica, conduzindo o orante a um encontro íntimo e verdadeiro com Deus, capaz de comunicar uma dimensão transformadora e libertadora. Ao fazer a experiência pessoal de encontro profundo e definitivo com Deus, em Cristo, no Espírito Santo, o leitor orante dos Salmos, por si mesmo compreende quem é o Senhor de sua vida e testemunha viver a alegria da fé, da esperança e da caridade com entusiasmo num mundo tíbio. A partir da leitura dos Salmos, o encontro do crente com o Senhor motiva-o a testemunhar com alegria e convicção o amor de Deus, dando sentido à sua existência. Torna-se místico, contagiando e conduzindo outras pessoas ao coração amoroso de Deus.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os Salmos reforçam a fé e animam a caminhada do cristão. Ao orar com os Salmos, Deus aspira que o orante não apenas os reze, mas também os vivencie. O Salmo representa um diálogo de Deus com o orante, que não apenas recita os monólogos, mas dialoga com um amigo face a face. 30

SCHÖKEL; CARNITI, op. cit., pp. 59-65.

31

MESTERS, op. cit., p. 42.

Alguns sentimentos e atitudes identificadas no Saltério ajudam o leitor na compreensão de seu relacionamento com Deus. Dentre eles está o louvor, que gera gozo, por realizar-se como reconhecimento da bondade; Deus é generoso e com sua generosidade, dignifica. O agradecimento é o reconhecimento da bondade. A súplica, também observada, sugere confiança, enquanto o arrependimento é resultado da culpa e enaltece o perdão de Deus, desdobrando-se em paz, gozo e serenidade. A surpresa é manifestada diante de Deus, de suas obras e suas manifestações. A aflição, ou pena, é provocada pelo mal presente. O desejo é percebido e sentido no espírito e no corpo. “Oh Deus, tu és o meu Deus, desde a aurora te procuro. De ti tem sede a minha alma, anela por ti minha carne como a terra deserta, seca, sem água” (Sl 63, 2). A complacência envolve prazer por algo próprio ou alheio, a vaidade toma o sujeito como objeto. A indignação também é identificada, pois se inflama basicamente diante da injustiça e do abuso contra os fracos, podendo desembarcar em imprecações apaixonadas e até violentas. Na indignação revela-se o amor e a justiça. O amor e o ódio são definidos por seus objetos: a quem, o que ama o orante? A Deus, sobretudo; o seu povo; o país e a capital; o templo; a lei; a família; aborrece os malvados, os idólatras, a mentira e a duplicidade.30 Ao apoiar-se na oração dos Salmos, o interlocutor coloca-se diante de Deus e rememora a Aliança, a vontade de viver. Esta aliança, de um lado, é iniciativa gratuita do amor de Deus, que convoca o homem a recomeçar apesar das falhas e infidelidades. De outro lado, é desejo do povo de ser fiel a Deus, enxergar a sua vontade, observar a Lei e viver como povo de Deus.31 Os Salmos são de um profundo conteúdo catequético, pois revelam um sentido orante do povo, visto que brotaram de suas experiências, traduzidas em orações personificadas, em sentimentos dirigidos a Deus. A comunicação de Deus com seu povo, a partir da oração dos Salmos, resulta em intimidade e instrui o orante quanto às verdades divinas, orientando a prática catequética e constituindo uma fonte pedagógica para a mesma. Percorrer o itinerário dos Salmos possibilita refazer a caminhada da construção do livro dos Salmos, desde a abertura dos caminhos, mostradas pelo Salmo Primeiro, em que se escolhe como será conduzida a caminhada, até o louvor profundamente expresso pelo Salmo 150, que confere a dimensão lúdica do louvor a Deus. Ademais, o conteúdo mistagógico dos Salmos

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS contribui para a catequese, dando caráter à experiência pessoal e profunda do orante com Deus. Ao rezar os Salmos, o leitor orante é instruído a corrigir sua oração, antes intimista, dando um sentido novo, inserindo-se numa dimensão comunitária. Desta forma estimula-se a oração centrada no amor ao próximo. Esses textos são de um valor inestimável para a vida cristã, visto que estimulam a caminhada do povo de Deus, abrindo o horizonte do crente a realidades inesperadas. Os Salmos ajudam a conservar na memória a história, constituem o lugar onde se pode reconhecer a ação de Deus em favor da humanidade. Isto se dá, não em tempos distantes, mas no contexto do cotidiano. Também alimentam a esperança, mesmo em momentos de desespero, visto que, ao rezar os Salmos, encontramse respostas que dão sentido e direção à vida e animam a caminhada e provocam a criatividade, inspirando a construção de Salmos particulares, com e a partir da

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA, Maria Aparecida. Os salmos na Catequese. Brasília: CEPA-CNBB, 2011. Disponível em: http://catequeseebiblia. blogspot.com.br/2011/05/os-salmos-e-catequese.html. Acesso em: 10 set. 2013. BENTO XVI. Audiência Geral (22.06.2011). Disponível em: http:/ /www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/audiences/2011/ documents/hf_ben-xvi_aud_20110622_po.html. ______. Porta Fidei. Carta Apostólica com a qual se proclama o Ano da Fé (11.10.2011). São Paulo: Paulus, 2011. B UYST , Ione. O Segredo dos Ritos: ritualidade e sacramentalidade da liturgia cristã. São Paulo: Paulinas, 2011. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil: 2011 – 2015. 3. ed. Brasília: CNBB, 2011. CONGREGAÇÃO PARA O CLERO. Diretório Geral de Catequese. São Paulo: Paulinas, 2003. CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA Dei Verbum sobre a Revelação Divina. In: CONCÍLIO VATICANO II. 1962-1965. Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos e declarações. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia. In: C ONCÍLIO V ATICANO II. 1962-1965. Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos e declarações. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

vida: Compor salmos é dar sentido de oração ao contexto real da vida, de forma sincera e verdadeira. Os Salmos edificam a fé em Deus que é pleno Amor, por meio do Espírito Santo: Ele entra em contato com o orante, deixa-se conhecer e ser acolhido e se faz presente na sua história, comunicando uma mensagem transformadora na vida do interlocutor. Animam a caminhada do crente, estimulando-o a vivenciar no convívio humano, assegurando relacionamentos mais solidários e fraternos na dimensão do Amor de Deus, inspirando-o a rejeitar o individualismo e o indiferentismo moderno, fomentando a promoção humana, alicerçando sua identidade cristã. Ao rezar os Salmos, o Salmista percebe-se membro do povo de Deus, levando-o à descoberta do sentido comunitário da oração.32 Tomando as páginas deste livro Santo, adquire-se a instrução por Deus, por dirigir-se a Ele. Nestas páginas são encontradas orações que imputam, nos corações, as regras para o agir ético cristão. ______. Tertio Millennio Adveniente. Carta Apostólica sobre a preparação para o Jubileu do ano 2000 (10.11.1994). Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/ apost_letters/documents/hf_jpii_apl_10111994_tertiomillennioadveniente_po. html. Acesso em: 22 ago. 2012. KUISNER, Maria da Costa; BAGUINSKI, Thereza. A Bíblia: fonte da catequese e do ensino religioso. v. 7. Petrópolis: Vozes, 1988. (Col. Catequese Fundamental). LOPES, Jesús. Catecumenato. In: PEDROSA, Vicente Maria; NAVARRO, Maria. Dicionário de Catequética. São Paulo: Paulus, 2004. MAZZA, Enrico. La Mistagogia: una teologia della Liturgia in epoca patristica. Roma: Centro Liturgico Vincenziano, 1988. MESTERS, Carlos. O rio dos Salmos das nascentes ao mar. 2. ed. São Paulo: Paulus; São Leopoldo: CEBI, 1988. PAULO VI. Evangelii Nuntiandi. Exortação Apostólica sobre a evangelização no mundo contemporâneo (08.12.1975). São Paulo: Paulinas, 2001. PEDROSA , Vicente Maria; N AVARRO , Maria. Dicionário de Catequética. São Paulo: Paulus, 2004. SANTO AGOSTINHO. Comentário aos Salmos (Enarrationes in psalmos): Salmos 101-150. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2008. SCHÖKEL, Luís Alonso; CARNITI, Cecília. Salmos I: tradução, introdução e comentário. São Paulo: Paulus, 1996. SIMIAN-YOFRE, Horácio. Metodologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2000.

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32

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS CATEQUESE E CRISE DA TRANSMISSÃO* Denis Villepelet**

INTRODUÇÃO Como toda missão educativa, a catequese não escapa da ruptura da tradição que especifica a cultura ocidental contemporânea. Ela confronta-se hoje com uma situação inédita, plena de desafios, mas não desesperante. Para nos convencer, deter-nos-emos no questionamento e na advertência de dois especialistas da teologia e da catequese. Emilio Alberich nos adverte que “nós nos encontramos diante de um dos problemas mais sérios e difíceis da pastoral europeia contemporânea: o de ter que considerar em profundidade todo o processo de iniciação do cristianismo”.1 André Fossion,2 do Instituto Lumen Vitae da Bélgica segue a mesma intuição quando escreve: “o conjunto dos processos tradicionais da comunicação da fé, pelo menos na sociedade ocidental contemporânea, está abalado, e os esforços da catequese contemporânea, apesar de sua criatividade, parecem insignificantes e muito frequentemente desproporcionais em relação ao que acontece nas novas culturas”. Se esse mundo em mutação permanente não é menos digno do evangelho do Cristo que outro, somos obrigados a levar mais a sério essa crise e a medir os deslocamentos aos quais ele obriga a teologia da catequese ou, para retomar a expressão de André Liégé,3 a catequética.

1 CATEQUESE E CATEQUÉTICA A catequese é em primeiro lugar um ato de comunicação que põe as pessoas em relação. Trata-se menos de comunicar uma informação ou uma mensagem do que iniciar uma arte de viver, de motivar cada um a viver como discípulo no seguimento de Jesus Cristo. Se esse ato de comunicação nas suas dimensões interpessoais, sociais e institucionais é finalizado pela aprendizagem de uma vida cristã, ele requer uma arte da transmissão. Retomando categorias de Aristóteles, como ato de comunicação, a catequese reenvia à praxis, ou melhor, à ação com tudo o que isso comporta de começo, de invenção e de aventura; como arte da transmissão, ela reenvia à técnica e ao saber fazer, à estratégia pedagógica. Na catequese francesa, ao seguir as tentativas e as buscas pedagógicas da escola, temos privilegiado a arte catequética esquecendo-nos do ato de comunicação que comporta sua parte de iniciação e de risco, sua parte de proposição. Considerar a catequese como comunicação é considerar que, o que é comunicado é indissociável de suas condições de enunciação e de recepção e do contexto espacial, temporal e sociocultural no qual o ato acontece. Não há uma mensagem quimicamente pura: o receptor coopera com a transmissão e essa não tem nada de unilateral. Falar de catequese como ato de comunicação é também situá-la como um cruzamento

* Título original: Catéchèse et crise de la transmission. In: VILLEPELET, Denis; GAGEY, Henri Jérôme. Sur la proposition de la foi. Paris: L’Atelier, 2000. Tradução de Paulo Sérgio Carrara (Sacerdote Redentorista, mestre em Teologia Espiritual pela Gregoriana de Roma, doutor em Teologia pela Faculdade dos Jesuítas. É professor no Ista e na FAJE) e Solange Maria do Carmo (doutora em Catequética pela Faculdade dos Jesuítas. É professora no ISTA e na PUC-Minas). Artigo submetido à avaliação em 15.08.2013 e aprovado para publicação em 15.10.2013. ** Denis Villepelet é doutor em Filosofia e Teologia, professor no Instituto Católico de Paris, onde foi diretor do Instituto Superior de Pastoral Catequética. 1

ALBERICH, Emilio. Regard sur la catéchèse européenne. In: Catéchèse 100-101 (1985), p. 167.

2

Cf. FOSSION André. La catéchèse dans le champ de la communication. Paris: Cerf, 1990, p. 321.

3

Cf. LIÉGÉ, Pierre-André. Pour une théologie pastorale catéchétique. Revue des Sciences philosophiques et religieuses 39 (1955), p. 8. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 79 - 86, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS no seio do qual se concentram, se articulam, se cruzam e se opõem até dinâmicas diferentes. Há a tradição viva, os catequizandos e seus projetos de vida, os catequistas, dos quais se diz que estão eles mesmos tocados pela crise da transmissão e demandam ser catequizados. Essas dinâmicas se inscrevem também em conjuntos mais vastos e mais complexos. Se a catequese faz parte da missão evangelizadora da Igreja, que para ela é um momento essencial, não se pode esquecer, como repete o Diretório Geral da Catequese (n. 46) “que qualquer definição parcial e fragmentária não dá conta da realidade rica, complexa e dinâmica que é a evangelização”. A catequese deve encontrar o equilíbrio entre acolhida, testemunho e anúncio, entre palavra e sacramento, entre conversão e transformação social. A serviço da catequese há a catequética. Como escreve Fossion, 4 a catequética é a ciência da catequese. Ela é “uma reflexão sistemática e metodológica”, um lugar de tomar distância teórica e de evolução crítica sobre a práxis catequética. Se, no entanto, ela tenta oferecer à catequese os elementos teóricos necessários ao seu desenvolvimento nos contextos complexos e diversos, compreende-se bem que ela não possa adotar o ponto de vista de Sirus. Ela é, ao mesmo tempo, teórica e prática, e reveste-se de um caráter inacabado e provisório. Ela é um trabalho que tenta articular o conjunto das disciplinas necessárias à compreensão desse ato de comunicação da fé. Entre essas disciplinas, nós encontramos, é claro, a teologia e a Sagrada Escritura, mas também a pedagogia, a história e as ciências da cultura, a antropologia e a filosofia. A ciência prática da catequese continua o trabalho da teologia. É uma inteligência da fé que se elabora na catequese e considera a mensagem cristã no seu ato mesmo de ser comunicada e recebida. A catequética é a elaboração teológica do ato de catequese. Sublinhamos isso para compreender melhor que a catequese não é nem uma vulgarização nem uma aplicação da teologia. Catequética e teologia têm a mesma matéria, mas objetivos diferentes.

2 AS BASES CATEQUÉTICAS ATUAIS De onde viemos nós? A catequese contemporânea lança suas raízes no que chamamos de renovação catequética. O movimento de pesquisa inicia-se em 1905 4

com o trabalho da escola de Munique que insiste sobre a função central da Palavra de Deus e sobre a caminhada da aprendizagem do catequizando. Na realidade, ele ganha mesmo amplidão a partir dos anos cinquenta – na França com o trabalho notável de Joseph Colomb – autor de grandes eventos internacionais de catequese (Antuérpia em 1956, Nimega em 1959, Eichtätt em 1960, Manila em 1967 e, enfim, Medellín em 1968). Através dessas grandes assembleias, elabora-se realmente uma catequética. Daí emergem as correntes querigmática, catecumenal, antropológica e histórico-profética. 5 De fato, não se trata de aproximações diferentes que se opõem umas às outras, mas de um mesmo trilho que se aproxima e se necessita graças a uma interação permanente entre a experiência e a teorização. Nós propomos aqui algumas dimensões estruturantes da catequese, resultantes dessa renovação. A renovação catequética é confrontada com o desenvolvimento da modernidade. Em tal mundo, a fé não é transmitida automaticamente, o ambiente não é mais portador da fé. Trata-se de pensar a catequese passando de uma visão religiosa tradicional para uma visão secular moderna. A renovação catequética não pode, então, senão tomar distância do catecismo resultante da Contrarreforma que a precedeu. Essa forma catequética, ainda dominante em 1937 no catecismo usado nas dioceses da França, é composta segundo o esquema “dogma, moral, sacramento” e promove uma pedagogia do ensinamento segundo o eixo “memorização, explicação, aplicação”. Essa forma catequética convém bem a uma sociedade homogênea, de mudanças lentas onde a fé se transmite como uma herança. O ensinamento frontal por repetição das verdades que se impõem porque elas deram suas provas no passado é o principal artesão da memória social e o garantidor da coesão do grupo. O catecismo é concebido com fins apologéticos; é um pequeno resumo da doutrina. Para a renovação, a catequese não transmite primeiramente uma doutrina, mas uma mensagem, a Palavra de Deus. Essa mensagem é o Cristo, a revelação de Deus na sua plenitude. Para além da doutrina, há a pessoa de Jesus, o Cristo. A fé cristã não é primeiramente adesão a verdades, mas apego a uma pessoa. Vai-se “por Cristo, ao Pai, no Espírito”. Se a catequese é a transmissão dessa palavra viva e encarnada, para que

Cf. FOSSION André, op. cit., p. 491.

5

Para um conhecimento mais aprofundado e uma análise das diferentes correntes, fazemos referência ao livro já citado de André FOSSION. Cf. também ADLER, Gilbert; VOGELESSEN, G. Un siècle de catéchèse en France (1893-1980). Paris: Beauchesne, 1981.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS ela encontre eco em todo o ser daqueles a quem ela é endereçada, ela é fundamentalmente cristocentrada. Evidentemente, tal processo que convida ao encontro do Cristo não impede o acesso a seu ensinamento nem ao da Tradição da Igreja. Trata-se antes de formar discípulos e de introduzi-los na organicidade da fé cristã. Mas o Cristo não é primeiramente um mestre de sabedoria e, se ensina com sabedoria, não o faz à maneira dos escribas. A importância está na pregação profética e escatológica do Reino de Deus, e a catequese é de certa forma a porta-voz dessa pregação. A catequese é também como um movimento de maturação da fé. Como a tradição o indica, ela caminha da fé para a fé. Mas, para a renovação, é menos da fé da Igreja – a fides quae creditur – para a fé do discípulo – a fides qua creditur – que da fé inicial, justamente despertada para uma fé adulta e eclesial ou que esposa o melhor possível a fé da Igreja da fides qua creditur, para a fides quae. Insiste-se sobre uma concepção dinâmica da vida de fé vivida na Igreja. A fé não é uma aquisição, ela é hoje um processo e uma tarefa. O movimento de conversão e de adesão ao Cristo deve ser reforçado constantemente. A fé da Igreja – concebida como comunidade reunida por seu Senhor – é a mediação e o ponto de chegada dessa maturação. A catequese está desde então centrada sobre a pessoa e seu devir cristão. Insiste-se sobre a caminhada do catequizando e o desenvolvimento de sua fé como atitude, sobre a dimensão de decisão própria do ato de fé. Põe-se resolutamente a prioridade na catequese dos adultos. O adulto é um permanente iniciado e a catequese ajuda a construir de forma continuada a estrutura de fundo da fé cristã, desde o tempo do primeiro anúncio (kerigma) passando pelo catecumenato e se prolongando pelo aprofundamento. A renovação concebe menos a catequese como a exposição e a transmissão da estrutura sincrônica da fé – a integralidade, a sistematicidade e a organicidade da mensagem – do que como seu desenvolvimento diacrônico e histórico. A escolha induz a uma concepção evolutiva e dinâmica da revelação cristã. O anúncio da salvação está na história dos homens. Há conexão entre essa história e a história da salvação. Evidentemente, essa conexão é complexa, diferenciada e dinâmica. Se ela impede toda confusão, ela exclui também toda dicotomia. A catequese torna-se iniciação ou dinamismo interpretativo da história dos homens à luz da fé e correlativamente do sentido da fé cristã em relação à 6

história dos homens. A catequética abandona a ontologia substancialista do catecismo clássico em vista de uma hermenêutica dos sinais dos tempos. A catequese promovida pela renovação vai desenvolver a pesquisa pedagógica apoiando-se sobre os dados da psicopedagogia nascente, das ciências cognitivas e da aprendizagem. Ao contrário da pedagogia frontal e dedutiva do catecismo da Contrarreforma, ela defende uma pedagogia indutiva e interativa que se apoia sobre a experiência. Ao esquema exposiçãomemorização-aplicação, ela substitui o esquema experiência-implicação, explicação-compreensão, apropriação-transferência. Nessa orientação pedagógica, a exposição é mais narrativa do que didática. Narra-se mais do que se ensina. É preciso sublinhar que o fato de levar em conta a experiência do catequizando não é só uma tentativa de ‘aperitivo’ que visa a otimizar suas capacidades de escutar a Palavra de Deus. Ela é um momento constitutivo do ato catequético que se funda sobre a teologia da criação e da encarnação. Em nome do mistério da criação e da encarnação, a catequese assume todas as realidades da existência humana. O Cristo plenitude da revelação, que conjuga em si duas naturezas distintas ao mesmo tempo, completa em sua pessoa as mais altas aspirações humanas. Certamente, ele revela o que Deus é para o homem, mas também o que o homem é aos olhos de Deus. A catequese é assim conduzida a uma dupla fidelidade: a Deus e ao homem. A fidelidade ao homem é requisitada pela fidelidade a Deus, que se revela em seu Filho, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.

3 ALGUNS DESLOCAMENTOS A SEREM FEITOS Como difundir hoje esse rumor de alegria? Emilio Alberich6 evoca a urgência de uma reinterrogação fundamental sobre a maneira de inscrever e de conceber o testemunho da fé na sociedade contemporânea. A catequética deve, pois, pôr mãos à obra e retomar com valores novos suas problemáticas. Em contribuição a tal trabalho, apresentamos aqui quatro pilares de interrogação. Esses pilares explicitam os deslocamentos a serem operados nos campos da catequética, a ciência da catequese. Para melhor compreender essa ideia de

Cf. ALBERICH, op. cit., p. 167. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 79 - 86, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS questões e de deslocamentos, nós recorremos ao filósofo Gaston Bachelard7 e seu conceito de obstáculo epistemológico. Para Bachelard, é em termos de obstáculo que é necessário pôr o problema da pesquisa e do conhecimento científico. O obstáculo é dito epistemologicamente porque ele é inerente ao pensamento. Ele não vem de fora. De que se trata? Uma ideia e uma teoria que são dotadas de uma fecundidade e uma eficácia notáveis, adquiridas pela tradição que elas dispensam; um valor e uma evidência tais que elas dispensam o pensamento de continuar a buscar. O instinto conservador do pensamento é qualquer coisa de muito forte, e a valorização das teorias habituais tornam-se um fator de inércia. O pensamento científico deve lutar contra seus próprios obstáculos para encontrar a flexibilidade e a mobilidade necessária à pesquisa. No campo da catequética, os princípios que permitiram à catequese tomar pé da modernidade devem ser reavaliados, repensados, à custa de não se tornarem verdadeiros obstáculos epistemológicos e de impedirem a catequese de ter qualquer eficiência para a situação atual.

3.1 O PRINCÍPIO DA CONVERGÊNCIA Para a renovação catequética, é uma pressuposição fundamental que há convergência entre os desejos profundos, as aspirações vitais, as expectativas apaixonadas dos homens e das sociedades e a mensagem evangélica. A humanidade inteira, quer ela saiba ou não, quer ela aceite ou refute, participa das verdades mais profundas da mensagem cristã. Ela é sua beneficiária. A experiência e a história dos homens não são em vão ou predestinadas ao nada; relidas à luz do evangelho, elas encontram seu sentido último nele e nele acolhem seu futuro. O princípio de convergência se apoia sobre a teologia da criação e da encarnação. Deus é o Criador e o Pai de todos os homens concebidos à sua imagem. O Espírito Santo opera em cada coração humano desde muito tempo. Tudo encontra sua identidade em Jesus Cristo, Verbo encarnado no qual Deus fala ao homem e ilumina assim a experiência humana em seus diversos aspectos. A experiência não é simplesmente o entreposto da memória, e as Escrituras, uma coletânea de 7

conhecimentos. Não basta ter vivido os acontecimentos para reivindicar uma experiência. O vivido se transforma em experiência por uma lenta elaboração reflexiva e um trabalho de interpretação e de síntese ativa. Não se trata de um jogo intelectual, nem de uma brincadeira; o ser humano tem necessidade de reler e de fazer sentido. A catequese é o lugar privilegiado onde se pode fazer esse trabalho à luz do evangelho. Ela põe, então, pedagogicamente, acento sobre a articulação entre essa experiência em vias de elaboração e a mensagem evangélica como palavra de Deus. Uma encontrará sempre sua verdade na outra. Essa convergência pode levar a pensar que a revelação se identifica, sobretudo, com uma tomada de consciência do que cada um carrega desde sempre em si de modo escondido. Essa concepção da revelação se assemelha à reminiscência platônica. A catequese resultante da renovação transfere para o homem da sociedade secularizada moderna o que a catequese resultante da Contrarreforma atribuía à sociedade tradicional: no fundo, tanto a sociedade tradicional quanto o homem moderno são coniventes com o evangelho e nada os pode separar essencialmente do ato do Criador. Quer queiramos ou não, o mundo presente se encontra frio e indiferente a todas as razões de ser que o judeu-cristianismo lhe deixou como legado. Essa indiferença não é nem uma recusa, nem uma oposição; ela se dá no plano da possibilidade de crer e de aceitar a imagem de Deus e a visão de mundo que foi proposta pela fé cristã. Trata-se de lenga-lengas por longo tempo remoídas, de velhas histórias desgastadas e estéreis. As respostas propostas são suspeitas de impertinência. Nós contemporâneos estamos menos em busca de sentido do que de sabedoria; como viver nesse mundo que parece ter perdido a cabeça? Nós não podemos esquecer aqui que a fé cristã testemunha uma sabedoria que Paulo nos diz que “não é deste mundo, nem dos pensamentos do mundo, destinados à destruição [...]; ela é sabedoria de Deus misterioso e escondido” (1Cor 2, 6-7). Nós sabemos também que ela é loucura para aquele que é “entregue à sua própria natureza”. Ela reconhece o Deus que relativiza as realidades, quebra as suficiências, esvazia as pretensões humanas de poder e de ser mestre para inventar a verdadeira vida.

Cf. BACHELARD, Gaston. La formation de l’esprit scientifique. Paris: Jean Vrin, 1972, p. 16. “Precisar, retificar, diversificar são alí tipos de pensamentos dinâmicos que encontram nos sistemas herdados mais obstáculos que impulsão”. Em sua obra Le nouvel esprit scientifique. Paris: PUF, 1971, Bachelard afirma mesmo que o conhecimento científico deve lutar contra os conhecimentos anteriores para que ele “nasça apesar das evidências”. Evidentemente, a catequese não está ne o mesmo terreno que o de Bachelard, mas se ela pretende ser ciência de uma prática de comunicação que trabalha tanto a emissão, a mensagem, quanto a recepção, ela tem interesse de adquirir essa flexibilidade e essa dinâmica.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS Esse Deus ao qual o homem pode escolher para além dos ídolos que se apresentam a ele é um Deus totalmente outro, de uma alteridade irredutível: Deus sempre maior, disse santo Inácio de Loyola. Sua realidade é imensamente maior do que a experiência que nós podemos ter. A distância entre a experiência humana e o mistério impensável de Deus é inesgotável. “Deus ultrapassa infinitamente o homem!”, exclama Pascal. Não está no fim das racionalizações, porque ele vem de outro lugar e se revela através de seu Filho que acreditou nele e no seu amor que ultrapassa toda medida.8 Essa projeção feita sobre a alteridade de Deus que se comunica ao homem em seu Filho e sobre a experiência de fé como abertura jamais fechada e superada conduz a repensar catequeticamente a articulação entre os mistérios da revelação, da criação e da encarnação. Criação e encarnação não são mais tão evidentes: elas fazem também parte dessa revelação do totalmente outro e da sua gratuidade absoluta, que culmina no mistério pascal. A catequese resultante da renovação preocupou-se com a encarnação. A catequese de hoje deve se enraizar mais fundamentalmente no mistério pascal, sem o qual jamais viríamos a falar de encarnação.

3.2 PERTENÇA E IDENTIDADE Há hoje uma reivindicação dos indivíduos para serem reconhecidos como inteiramente sujeitos a tal ponto que se pode falar, como o fez Lipovetsky, 9 de uma psicologização do social. Ora, nossa cultura científica moderna, ao menos no campo das ciências sociais, se esforçou para privar-se da noção de sujeito: nós a expulsamos da ordem das razões e a confinamos à afetividade. Somente as ciências da vida psíquica se interessaram em desmascarar as ilusões e os erros de uma interioridade exageradamente narcisista. A subjetividade caiu assim na armadilha das preocupações da ação. Pôde-se reduzir o sujeito a ator e apenas reter a identidade social do indivíduo, relegando o resto à esfera privada. A identidade de ator ficou definida como

interiorização das pertenças sociais através de modelos e de representações de conduta. Esse ator é tanto mais autônomo e senhor de si mesmo quanto sua apropriação das normas sociais se fortalece. O ator se identifica com o sistema no qual trabalha para seu desenvolvimento. Reconhecemos que a catequese se situou nesta onda dos tempos, tendo por objetivo a passagem de uma fé inicial, apenas despertada, para uma fé adulta eclesial. O fiel de Cristo catequizado é um ator engajado que é capaz de “gastar sua força para a obra de evangelização” e “que coopera com a missão de toda a Igreja” (AG, 983). O DGC (n. 24) reconhece, por fim, que a renovação catequética deu muitos frutos, dando à luz um tipo de cristão verdadeiramente consciente de sua fé e vivendo em coerência com ela, tendo o sentido da corresponsabilidade da missão da Igreja, partilhando as exigências sociais da Igreja em nome de uma redescoberta mais profunda de Jesus Cristo. Mas nosso presente desmente em todo lugar a crença moderna na eficiência e na utilidade social. Como o indica Touraine,10 de acordo com pesquisadores como Sainsolieu, Croizer e até mesmo Bourdieu,11 o sujeito se torna mero figurante quando abandona o papel de ator. Ele é o excluído, o sem direito, o desempregado de longa data, o sem domicílio fixo, o doente isolado e sua própria existência é uma prova da inumanidade de um sistema que promete a ação sem ator. Muitos condenam os funcionamentos institucionais e os organismos que levam ao vazio. O sujeito ali é menos o ato de ocupação de uma fortaleza do que uma exposição a todas as tendências que procura desesperadamente sua identidade. O indivíduo se reconhece menos como ator social que como ator de sua própria vida à procura de sua identidade. A busca de identidade pessoal não tem nada a ver com a procura desesperada de si no seu próprio reflexo. Nós desconfiamos da palavra “individualismo”, pejorativa em muitos sentidos. Nesse universo flexível e instável que resiste à adaptação permanente, o tornar-se sujeito é um trabalho sobre si geralmente penoso. Cada um

8

Cf. DORÉ, Joseph. Annoncer le Dieu de Jésus-Christ dans un monde d’indifférence. Catéchèse 110-111 (s.d.), p. 123. O autor sugere tomar a revelação de Deus como mistério inacessível e, ao mesmo tempo, pensar sua proximidade do homem em Jesus Cristo. Trata-se de um Deus totalmente outro do qual se pode, no entanto, fazer experiência.

9

Cf. LIPOVETSKY, Gilles. L’ère du vide: essai sur l’individualisme contemporain. Paris: Gallimard, 1983, p. 91.

10

Cf. TOURAINE, Alain. La formation du sujet. In: TOURAINE, Alain. Penser le sujet. Paris: Fayard, 1995. pp. 21-45.

11

Segundo BOURDIEU, Pierre (Choses dites. Paris: Editions de Minuit, 1987), CROZIER, Michel (L’entreprise à l’écoute. Paris: Interéditions, 1989) e SAINSOLIEU, Arnaud (Sociologie de l’organisation et de l’entreprise. Paris: Presses de la fondation nationale des sciences politiques et Dalloz, 1977), não se trata de eliminar a fronteira entre o ator e o sujeito como faz a psicologia, mas de pensar como o conceito de sujeito pode ter uma pertinência para compreender os funcionamentos coletivos. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 79 - 86, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS tem que assumir sua história pessoal. Todo sujeito é uma complexidade e conflitualidade contínua, que procura se reconciliar consigo mesmo para tirar dessa identidade as referências para a ação, porque tal busca não impede a vontade de ser agente de transformação. Certo número de perguntas levantadas durante as catequeses das JMJ giraram em torno da seguinte questão: “Como nós podemos viver e agir como cristãos num universo profissional no qual não se pode mudar nada?”. A questão da identidade cristã é menos uma questão de pertença eclesial a uma comunidade que uma questão que toca a identidade pessoal de um sujeito que se busca na fé. No campo da catequese, essa valorização do adulto responsável e engajado, membro de uma comunidade missionária, pertencente ao Povo de Deus, é um obstáculo epistemológico que arrisca mascarar os verdadeiros desafios da proposição da fé hoje. É preciso trabalhar sobre o que constitui uma identidade cristã, sobre a destinação de um sujeito crente confrontado com o problema vital de sua identidade e de sua relação com a tradição. Tal tomada de posição obriga também a reexaminar os laços que a catequese forjou entre a fides quae creditur – o conteúdo da fé cristã – e a fides que creditur – a caminhada subjetiva de adesão. A exacerbação da distinção da oposição entre a objetividade do dado e a subjetividade da recepção poderia ter uma consequência contraditória em relação aos efeitos esperados. Arriscase assim a desencorajar o sujeito na sua busca de identidade, impondo-lhe uma alteridade pronta à qual ele não poderá jamais chegar e que ele próprio se interdita. Ao contrário, todo sujeito é capaz de se abrir a uma alteridade que dialogue com ele de forma fecunda sem o despojar de sua responsabilidade. Quando se fala em sujeito, fala-se em interioridade, capacidade de simbolizar, de projetar e de introjetar, resumidamente, de interpretar e de conferir significados. Por outro lado, não é porque um sujeito procura sua identidade que sua caminhada é apenas subjetiva, narcisista, eliminando como um inferno toda prova de alteridade. Quanto mais um sujeito pode dizer ‘eu’, mais ele desenvolve sua capacidade de interioridade, suportando sua inconsistência e sua vulnerabilidade e tanto mais pode deixar lugar ao outro e o acolher para crescer. No ato de comunicação que a catequese representa, é necessário sempre situar a fides quae, não como a origem ou o fim do ato de fé, mas como uma mediação permanente, aquela alteridade inesgotável que permite ao sujeito crente – fides qua – amadurecer como sujeito. Não se vai mais da fides quae para a fides qua, nem da 84

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fides qua para fides quae, mas da fides qua para a fides qua pela mediação da tradição e pela fé da Igreja. Tratase de animar uma comunicação verdadeira entre a tradição viva da Igreja transmitida hoje através dos discípulos e dos sujeitos prontos para se entregar ao encontro com Cristo.

3.3 CATEQUESE E PEDAGOGIA O que propor às pessoas batizadas e catequizadas na infância, que estão aparentemente afastadas desde a adolescência, mas que se despertam no momento do nascimento de uma criança ou da morte de um ente querido? O que propor como caminho catequético às pessoas indiferentes à Igreja, mas que se interessam pelo fato cristão através da descoberta do patrimônio arquitetônico e artístico? O que propor aos pais que se engajam de novo num caminho de fé a partir da catequese de seus filhos, àqueles e àquelas que não querem ouvir falar de formação, mas que dão seu tempo em nome de sua fé para o serviço da caridade? O que propor aos antigos companheiros de engajamento pastoral e missionário animados pelo Vaticano II, mas sobrecarregados hoje pela urgência da tarefa, muitas vezes cansados e às vezes imersos na morosidade? E a todos aqueles e aquelas que precisam ser despertados, a quem poderíamos oferecer a fé como uma possibilidade crível, dando-lhes o gosto de Deus e da aventura cristã? Poderíamos continuar a lista ou poderíamos enumerá-la de outra maneira até o infinito. A cada sujeito, uma proposta catequética particular! Hoje, provavelmente, somos levados a privilegiar os percursos personalizados, flexíveis, capilares, adaptáveis. Notamos que, na sua tradição, a Igreja faz a diferença entre os simpatizantes, os catecúmenos, os eleitos, os neófitos e os fiéis, e propõe sendas catequéticas adaptadas ao processo de maturação de cada um. Esta lógica processual do tornar-se cristão se complexifica ainda mais até porque, hoje, passa-se de um estatuto a outro sem saber qual seu sentido. Uma pessoa pode ter vivido como fiel em uma época de sua vida, ter tomado distância em outra, permanecendo simpatizante, e se encontrar em uma caminhada catecumenal entre aqueles que são chamados, para dizer melhor, os reiniciantes. Essa diversidade de itinerários pessoais obriga a catequese a trabalhar sobre a diversificação de pedagogias. Para avançar nesta pesquisa, há um primeiro obstáculo a ultrapassar: aquele da oposição pedagógica entre a aquisição de conhecimentos e de


EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS desenvolvimento de atitudes ou de maneiras de ser, entre o ensinamento frontal e expositivo e a aprendizagem ativa e comunicacional. Se, como o indica o DGC (n. 145), “a catequese se apresenta como um processo, um itinerário, um seguimento de Cristo para atingir a maturidade da fé”, se ela chega às pessoas às quais ela se dirige lá onde elas estão, respeitando suas possibilidades e suas necessidades, então ela é mais uma iniciação do que um ensinamento ou uma aprendizagem. Assim, o DGC (n. 69) a define ainda como “uma iniciação cristã integral ao modo de vida evangélica”. O reinvestimento da iniciação no campo catequético12 obriga a um trabalho de pesquisa em pedagogia. Na cultura ocidental contemporânea, sabese ensinar, educar, conduzir a uma aprendizagem, mas não se sabe iniciar. A pesquisa contemporânea em ciências da educação praticamente ignora o termo. A nova enciclopédia filosófica universal apenas a menciona no capítulo da etnologia para fazer referência aos processos de transmissão nas sociedades sem escrita. No campo escolar ou da formação profissional, ele indica um primeiro degrau na aquisição de conhecimentos ou na aprendizagem, mas sabe-se bem que uma iniciação à teologia não faz um teólogo! Ele nem mais se lembra de que tal iniciação exige uma pedagogia particular. No entanto, o filósofo da educação Oliver Reboul, no seu pequeno e sugestivo livro Que é aprender?,13 não hesita em afirmar que a iniciação “parece constituir por si só a forma mais completa do ato de aprender. Ela interage com as três formas de aprender que são o ensinamento, a aprendizagem e a educação, sem, no entanto, se confundir com elas. Iniciar-se não está para além de todo saber-fazer e de todo saber; não seria ela aprender a ser?”. Ser iniciado é começar um caminho e percorrê-lo. Na iniciação, se entra, se vai, se vive. O iniciado se deixa tomar por um estilo de vida que ele descobre, fazendoo pouco a pouco. Desde seus primeiros passos no caminho escolhido, ele está na iniciação: ela não gosta nem dos aperitivos nem das antessalas. Ela suscita um movimento e desperta o desejo, mas em compensação ela não se precipita e tem o seu tempo. Ela progride por etapas ou por umbrais e por contato até chegar à intimidade com o objeto da busca. A iniciação permite o

mergulho do iniciado em um banho de significações que ele aprende a interpretar à medida que faz seu caminho e seu processo de maturação. As coisas são-lhe reveladas, fazendo-o entrar na compreensão precisamente depois do choque, quando a ação ou a prova foi suficientemente significativa nela mesma. O ato da iniciação é gesto, melhor dizendo é, ao mesmo tempo, movimento e palavra: ele traz em si sua significação. A iniciação supõe uma dupla decisão: a do iniciado, que aceita fazer o salto no desconhecido, deixando-se transformar para melhor; e a do iniciador, que se reveste de autoridade no tempo da iniciação, pois ele mesmo foi iniciado, mas sabe também que essa autoridade deverá se extinguir e aceita essa extinção. Como ligar essa iniciação como forma pedagógica da catequese com a vida sacramental e os outros sacramentos da iniciação? A questão é complexa: de um lado, nós podemos dizer que a catequese é uma dimensão estruturante do amadurecimento da fé e que ela acompanha o discípulo de Cristo ao longo de todo seu percurso. Se essa catequese é uma iniciação, então, pode-se dizer que o cristão é um iniciado permanente. De outro, nós sabemos bem que a iniciação cristã na sua estruturação sacramental tem um fim: o iniciado cristão chega ao status de fiel de Cristo. Há um antes e um depois; uma etapa de ruptura que contradiz um pouco o aspecto permanente da iniciação como forma pedagógica da catequese. Há muito a pesquisar sobre as ressonâncias possíveis entre essas duas formas de iniciação sem separá-las depressa demais. A iniciação sacramental entendida como começo de uma vida nova não contradiz a ideia de uma continuação da descoberta dessa vida. A catequética deverá revisitar toda a grande tradição mistagógica.

4 CATEQUESE E COMUNICAÇÃO A catequese é um ato de comunicação que tem sua fonte na comunicação de Deus aos homens. Como escreve Fossion 14 na obra que ele consagrou à catequese, esta “responde ao mandato de Cristo de proclamar o evangelho a todas as criaturas, se inscreve na obra de comunicação da fé da Igreja que tem uma palavra a transmitir e uma Boa-nova a proclamar para

12

Esse reinvestimento tem sido na realidade já empreendido desde longa data através de pesquisas e trabalhos do P. Abel Pasquier no âmbito do ISPC. 13

Cf. REBOUL, Olivier. Qu’est-ce qu’apprendre? Paris: PUF, 1980, p. 92.

14

Cf. FOSSION, op. cit., p. 16. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 79 - 86, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS que os homens, por sua vez, a vivam e testemunhem”. Se o dado da fé cristã exige comunicação, esta toma uma amplitude mais imperativa e se inscreve em um destino mais radical que aquele capaz de pensar o imaginário tecnológico e estratégico que habita nossa mentalidade midiática. De fato, esse universo de difusão de informações em todas as direções cria um verdadeiro problema de comunicação, um problema inédito na história, cujas consequências antropológicas, sociais, culturais são hoje inimagináveis. Graças à tela da televisão ou do computador, do cinema ou da publicidade, as culturas se comunicam entre si, as barreiras simbólicas caem e os sistemas de valores não podem sobreviver por muito tempo como autarquias. Como escrevia Baudrillard,15 há um excesso de sentido e uma hemorragia de valores, mas este estado de superabundância relativiza os referenciais fortes e consensuais que nutrem o mínimo de confiança necessária para toda vida social. Não há mais consensos que se imponham por si mesmos. A menos que prefiram a suspeita, o desprezo, a violência e a barbárie, as sociedades contemporâneas devem privilegiar o entendimento e, por causa disso, devem comunicar, debater, negociar. Todos os comitês de ética instituídos desde há alguns anos são uma boa prova dessa necessidade. A comunicação não é simplesmente o meio de difusão da informação; ela é também a mediação do social enquanto tal. A catequética tem trabalhado bastante a comunicação em termos de mensagem a transmitir, de emissores e de receptores, de canal e de código, muito menos em termos de mediação e de análise de desafios

antropológicos e sociais. Ora, o mistério da comunicação que habita a fé cristã para a qual ela é mais uma mediação do que um instrumento deveria convidar a catequese a assumir sua parte na pesquisa social sobre as condições de uma verdadeira comunicação. Se, como o diz Fossion,16 “o cristianismo fala precisamente da comunicação, defende-a, promove-a; abre-lhe perspectivas insuspeitas em nome de um Deus que se comunica em pessoa e, se comunicando, permite que todos se comuniquem, sem exclusividade alguma”, há coisas a dizer não somente para o campo da catequese, mas também para a vida dos homens hoje. Isso exige, no entanto, que se elabore uma teologia do processo de comunicação de Deus e de sua palavra, levando em conta os dados contemporâneos das ciências da comunicação. Essa proposta catequética mereceria desenvolvimentos mais amplos. Ela tem um teor programático que se afirma em detrimento da problematização dos quatro deslocamentos a realizar. Mas a escolha sublinha a amplitude e a urgência do trabalho teológico e catequético a ser efetuado hoje para realizar e acompanhar o imenso trabalho da catequese contemporânea que busca, inventa, se arrisca em novos caminhos e tenta levantar assim o desafio da proposição da fé nas condições inéditas com relação à modernidade precedente. Sem dúvida, nós sentimos catequeticamente que a proposição se sustenta em uma ex-posição: trata-se de testemunhar em sua experiência de discípulo uma ultrapassagem da experiência, uma abertura jamais fechada na qual o Deus de Jesus Cristo pode ser reconhecido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADLER, Gilbert; VOGELESSEN, G. Un siècle de catéchèse en France (1893-1980). Paris: Beauchesne, 1981. A INSOLIEU , Arnaud. Sociologie de l’organisation et de l’entreprise. Paris: Presses de la fondation nationale des sciences politiques et Dalloz, 1977.

CROZIER, Michel. L’entreprise à l’écoute. Paris: Interéditions, 1989. DORÉ, Joseph. Annoncer le Dieu de Jésus-Christ dans un monde d’indifférence. Catéchèse 110-111 (s.d.). F OSSION André. La catéchèse dans le champ de la communication. Paris: Cerf, 1990.

ALBERICH, Emilio. Regard sur la catéchèse européenne. In: Catéchèse 100-101 (1985).

LIÉGÉ, Pierre-André. Pour une théologie pastorale catéchétique. Revue des Sciences philosophiques et religieuses 39 (1955).

BACHELARD, Gaston. La formation de l’esprit scientifique. Paris: Jean Vrin, 1972.

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BOURDIEU, Pierre. Choses dites. Paris: Editions de Minuit, 1987.

TOURAINE, Alain. La formation du sujet. In: TOURAINE, Alain. Penser le sujet. Paris: Fayard, 1995.

15

BAUDRILLARD, Jean. Simulacres et simulations. Paris: Galilée, 1981, pp. 11-12.

16

Cf. FOSSION, op. cit., p. 380.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS CATEQUESE E LITURGIA Duas ‘irmãs gêmeas’ inseparáveis Humberto Robson de Carvalho*

INTRODUÇÃO Objetiva-se com o presente artigo apresentar a ligação entre catequese e liturgia e, consequentemente, o desenvolvimento dessa relação ao longo da história, desenvolvimento marcado pela unicidade, rompimento e redescoberta dos seus verdadeiros significados. Nesta perspectiva, a presente abordagem terá como ponto de apoio e referencial reflexivo a memória do Mistério Pascal celebrada e vivenciada pelos primeiros cristãos. A partir da historiografia religiosa, observa-se que as comunidades cristãs têm sua origem no Antigo Povo de Israel. Os israelitas – desde Abraão, Sara, Agar, Isaac, Jacó, Moisés, Davi, Salomão e Rute – entre tantos, sentiram o chamado para se consagrar a Deus por meio do amor ao próximo, da oração, da prática da justiça, do sacrifício e da obediência à Lei. Os pais, pela prática da solidariedade e fraternidade, ensinavam os filhos a respeitar a vida e preservar a dignidade de todas as pessoas. Patriarcas, reis, sacerdotes, profetas e o povo em geral foram se organizando e formando o Povo de Deus, querido e amado. No Novo Testamento, o Povo de Deus começou a se organizar quando alguns pescadores da Galileia se encontraram com Jesus. Com Ele, tiveram um encontro pessoal. A partir daí, responderam afirmativamente ao convite do Mestre e Senhor: “Vem e segue-me” (Mc 1, 17 e Mt 4, 19).1 Eles o seguiram imediatamente. Como se observa, a vocação dos primeiros discípulos é, sem dúvida, fruto de um encontro pessoal (com Cristo) que fez nascer neles o desejo e o compromisso de se consagrarem radicalmente a Deus, no serviço da catequese (do ensinamento da fé) e da liturgia (da celebração do mistério).

O encontro pessoal com o Senhor transformou suas vidas, despertando encanto e sedução. A partir daquele momento, foram adquirindo o desejo pela vida espiritual, catequética e litúrgica. Esse estilo de vida os uniu de tal forma com o Senhor, que decidiram segui-lo com entusiasmo, perseverança e total dedicação, comunicando aos outros a própria experiência. As outras pessoas também são convidadas a fazerem a experiência vocacional de discipulado missionário, experiência que eles mesmos fizeram com Cristo. Após a morte de Jesus, imediatamente os discípulos se escondem, pois não tinham coragem nem mesmo de ir ao encontro dos demais discípulos (cf. Jo 20, 19). Desanimados, desconsolados e inibidos, procuram sair de Jerusalém sem rumo e direção (cf. Lc 24, 13 e Mc 14, 27). Até mesmo a fé já lhes parecia ter acabado, pois nem sequer acreditam na notícia esperançosa que as mulheres lhes contaram após o episódio da cruz (cf. Lc 24, 11). Porém, depois da experiência que tiveram com o Ressuscitado, especialmente no caminho de Emaús (cf. Lc 24, 13-35), tudo se transforma imediatamente. Os discípulos recuperam o sentido da vida, sobretudo o compromisso com a missão. Puderam recobrar o ardor e o desejo de anunciar a Boa Nova (Mt 28, 10), fazer novos discípulos e batizar (cf. Mt 28, 19), perdoar (cf. Jo 20, 23), servir (cf. Jo 13,14), celebrar a memória do Ressuscitado (cf. 1Cor 11, 14) e testemunhá-lo em todo o mundo (cf. At 1, 18).2 Estes apontamentos são necessários para fazer pensar no sentido da catequese e da liturgia, haja vista a catequese consistir no encontro pessoal com Cristo por meio da adesão do catequizando ao Mistério Pascal. A liturgia é celebração desse encontro, é celebração da

*

Mestre em Educação Sociocomunitária pelo UNISAL – Centro Universitário Salesiano de São Paulo – Campus Americana. Professor e coordenador do curso de pós-gradução lato sensu de Catequese e Espiritualidade no UNISAL – Centro Universitário Salesiano de São Paulo – Campus Pio XI. Artigo submetido à avaliação em 15.09.2013 e aprovado para publicação em 20.09.2013.

1

Cf. BENTO XVI. En las orígenes de la Iglesia: los apostoles y los primeros discípulos de Cristo. Madrid: San Pablo, 2010, p. 7.

2

Cf. CONFERÊNCIA DOS RELIGIOSOS DO BRASIL. Seguir Jesus: os evangelhos. v. 5. São Paulo: Loyola, 1994. (Coleção Tua Palavra é vida), pp. 48-49. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 87- 93, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS fé, de onde brota toda a espiritualidade e o compromisso cristão. Somente a partir dessas vertentes podemos pensar no verdadeiro sentido da transmissão, da vivência e da celebração da fé, o que faz da catequese e da liturgia ‘irmãs gêmeas’, inseparáveis. Nesse sentido, espera-se que tais apontamentos possam incentivar os catequistas, verdadeiros educadores da fé, a vivenciar a interação entre catequese e liturgia, levando em consideração que o Mistério Pascal é o centro e o coração de toda atividade catequética e litúrgica.

1 CATEQUESE E LITURGIA NA HISTÓRIA O modo de celebrar a liturgia e de fazer catequese dos primeiros cristãos era idêntico aos da comunidade judaica. Os discípulos continuaram, por algum tempo, participando do Templo e do modo de rezar dos judeus. Só mais tarde os primeiros cristãos foram elaborando o jeito cristão de celebrar. À medida que o tempo foi passando, as celebrações foram tomando formas próprias e se constituindo na liturgia cristã propriamente dita. O mesmo pode-se dizer a respeito da catequese. Ao se considerar a Eucaristia, por exemplo, em seus elementos rituais originários, nota-se, de um lado, uma continuidade com a liturgia judaica e, de outro, os posteriores acréscimos substanciais e culturais ao longo da história. Mas há, sobretudo, uma grande novidade, pois na Eucaristia está presente a ação pascal do próprio Jesus, que entregou sua vida por nós e ressuscitou glorioso.3 De acordo com os Atos dos Apóstolos (2, 42), no início do cristianismo, os cristãos celebravam a Eucaristia em suas casas. Chamavam esta celebração de fração do pão e, em algumas circunstâncias, de Ceia do Senhor. Só no final do século I e início do II, com a Didaché (Catecismo dos primeiros cristãos), a celebração da Ceia passará a se chamar Eucaristia.4 Em se tratando de catequese e liturgia, não pode ser esquecido um dos textos mais antigos que comenta a relação entre a Eucaristia e o Domingo, o dia do Senhor. Trata-se, por sua vez, de uma catequese a

respeito da celebração que os primeiros cristãos realizavam. O texto, escrito por volta do ano 155, é de Justino, leigo cristão e filósofo de profissão. Natural da Síria, redigiu uma carta para explicar ao imperador pagão Antonino Pio (138-161) e a seu filho, o futuro imperador Marco Aurélio, como os cristãos daquela época celebravam a fé. Justino deu a vida pela causa de Jesus Cristo, tornando-se mártir. No dia chamado “do sol” como é chamado, reúnem-se num mesmo lugar os habitantes, quer das cidades, quer dos campos. Leem-se, na medida em que o tempo o permite, ora os comentários dos Apóstolos, ora os escritos dos Profetas. Depois, quando o leitor terminou, o que preside toma a palavra para aconselhar e exortar à imitação de tão sublimes ensinamentos. A seguir, colocamo-nos todos de pé e elevamos nossas preces por nós mesmos [...] e por todos os outros, onde quer que estejam, a fim de sermos considerados justos por nossa vida e por nossas ações, e fiéis aos mandamentos, para assim obtermos a salvação eterna. Quando as orações terminaram, saudamo-nos uns aos outros com um ósculo. Em seguida, leva-se àquele que preside aos irmãos o pão e um cálice de água e de vinho misturados. Ele os toma e faz subir louvor e glória ao Pai do universo, no nome do Filho e do Espírito Santo, e rende graças longamente pelo fato de termos sido julgados dignos destes dons. Terminadas as orações e as ações de graças, todo o povo presente prorrompe numa aclamação, dizendo: Amém. Depois de o presidente ter feito a ação de graças e o povo ter respondido, os que entre nós se chamam diáconos distribuem a todos os presentes pão, vinho e água “eucaristizados” e levam (também) aos ausentes.5

Fundamentalmente, a catequese, como educação da fé, e a liturgia, como celebração da fé, são duas funções estrategicamente relacionadas com a missão evangelizadora e pastoral da Igreja. As duas realidades se complementam e fazem parte da natureza e da razão de ser da Igreja. Por isso podemos afirmar que a catequese litúrgica é um processo que visa enraizar o amadurecimento consciente e responsável dos catequizandos com Cristo e com a Igreja.6 A Catequese possibilita, por meio do aprendizado da fé, a significação das ações litúrgicas, e a liturgia,

3

Cf. CARVALHO, Humberto Robson. Missa: celebração do mistério pascal de Jesus. São Paulo: Salesiana, 2010, pp. 14-15.

4

Cf. Ibid. p. 11.

5

Ibid. pp. 17-18. Apud CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 9. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Loyola; Paulinas; Ave-Maria; Paulus, 1999, n. 1345. 6

Cf. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Diretório nacional de catequese. Texto aprovado pela 43ª Assembleia Geral. Brasília: Edições CNBB, 2006, nn. 120-121.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS por sua vez, possibilita a memória (celebrada) daquilo que é transmitido pelo ensinamento da Igreja (catequese). Uma completa a outra: a catequese apresenta os conteúdos da fé e a liturgia celebra esta fé, transmitida e vivida ao longo dos séculos. Sendo assim, a partir dessa unicidade, entramos em contato com o Mistério Pascal de Jesus Cristo, Mestre e Senhor, razão de nossa peregrinação na terra em busca da Jerusalém Celeste, “onde seremos tudo em todos” (cf. 1 Cor 15, 28). No início do cristianismo, a relação entre catequese e liturgia era substancial e profunda. Com o passar do tempo, esta relação restringiu-se ao culto da Eucaristia e dos demais Sacramentos, o que provocou certo ‘rubricismo’ na liturgia e, por isso, o isolamento das ações litúrgicas e das ações catequéticas. Foi precisamente no século VI que a catequese e a liturgia se distanciaram: a catequese passou a priorizar os conteúdos doutrinais da fé, em detrimento da mistagogia e da própria liturgia. A partir desse século, as duas ‘irmãs gêmeas’ se separaram.7 Cabe a cada um de nós, catequistas de hoje, juntar novamente essas duas irmãs que de certa forma ainda estão separadas. É nossa missão resgatar, nos encontros de catequese e nas celebrações, o sentido profundo e amplo dessas duas realidades inseparáveis, a fim de que a catequese não se torne um depósito de conteúdos e a liturgia uma ação esvaziada do sentido e do conteúdo da fé.

2 CATEQUESE E LITURGIA A PARTIR DO CONCÍLIO VATICANO II Com a reforma do Concílio Vaticano II, volta-se à preocupação original dos primeiros tempos, ou seja, o resgate da centralidade da celebração do Mistério Pascal em todas as dimensões da Igreja, sobretudo no que diz respeito à liturgia e, por conseguinte, à catequese. O

Concílio, por meio de um documento específico sobre a Sagrada Liturgia (Sacrosanctum Concilium),8 resgatou valores essenciais que se perderam durante o segundo milênio da era cristã, como a centralidade do Mistério Pascal, a consciência da presença real do Senhor na globalidade da celebração, a importância da Palavra de Deus proclamada, o sentido comunitário da liturgia, a participação ativa da assembleia, os sacramentos como atualização do Mistério Pascal etc. Podemos afirmar que, após o Vaticano II, a centralidade do Mistério Pascal voltou a ser, como nos primórdios do cristianismo, o centro de toda atividade litúrgico-catequética.9 Considerando o espírito do Concílio Vaticano II, expresso particularmente na Sacrosanctum Concilium, podemos afirmar que a liturgia tem uma importante função catequética, embora a celebração litúrgica não se caracterize como uma catequese em sentido estrito.10 Assim sendo, não se deve transformar a celebração litúrgica em encontro de Catequese. Os fiéis cristãos, na divina liturgia, celebram e vivem os mistérios. Embora a liturgia seja, principalmente, culto da Majestade Divina, ela colabora também para o ensinamento do povo querido de Deus.11 Voltando às considerações do Vaticano II, devemos compreender que o mesmo apresentou um espírito novo e transformador para a Igreja, especialmente para a catequese e a liturgia. O Concílio devolveu às ‘duas irmãs gêmeas’ o caráter teológico, pastoral e espiritual. Preocupou-se em manter a Tradição, mas abriu caminho para uma adaptação e compreensão do mistério celebrado, quer catequética ou liturgicamente levando em consideração a cultura e a realidade de cada Igreja local.12 O Concílio propôs estimular sempre mais a vida cristã entre os fiéis, adaptando-se às necessidades dos tempos modernos e levando em consideração a língua própria de cada país. Como consequência dessa nova compreensão, devolveu a dimensão comunitária da participação dos fiéis, própria do início do cristianismo e

7 Cf. ALVES DE LIMA, Luiz. A iniciação cristã ontem e hoje: história e documentação atual sobre a iniciação cristã. Revista de Catequese 126 (2009) 20-33, p. 11. 8 Cf. CONSTITUIÇÃO Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia. In: CONCÍLIO VATICANO II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: Paulinas 2007. 9

Cf. BUYST, Ione; SILVA, J. A. O mistério celebrado: memória e compromisso I. São Paulo: Paulinas; Valencia (Espanha): Siquem, 2003, pp. 63-67. 10

Cf. CONSTITUIÇÃO Sacrosanctum Concilium, n. 33.

11

Cf. ALBERICH, E. Catequese evangelizadora: manual de catequética fundamental. São Paulo: Salesiana, 2004, p. 315; BECKHÄUSER, A. Sacrosanctum Concilium: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 54. 12

Cf. CONSTITUIÇÃO Sacrosanctum Concilium, n. 23. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 87- 93, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS que foi se perdendo ao longo dos séculos. A participação dos fiéis na liturgia e, por sua vez, na catequese, foi o principal objetivo da reforma litúrgica proposta pelo Concílio.13 O Concílio insistiu ainda na afirmação do lugar especial da Palavra de Deus nas celebrações, particularmente na celebração da Eucaristia. A Palavra de Deus é apresentada como alimento. Ouvindo, comemos e bebemos a Palavra de Deus. Sem a partilha da Palavra, que sentido pode ter o alimento? Ao recebermos o Corpo e o Sangue de Cristo, nós nos empenhamos em ‘fazer memória dele’ por meio do nosso comportamento cotidiano e de nossa adesão ao compromisso de discípulos missionários. As duas realidades, isto é, a Eucaristia e a Palavra estão interligadas de maneira tão estreita que formam um só ato de culto, uma só celebração.14 O catequista, na visão do Concílio Vaticano II, é um facilitador da ação do Espírito na vida de cada pessoa, no processo de conversão ao Senhor Jesus. O Concílio revolucionou a vivência espiritual e a participação do fiel cristão na vida litúrgica e catequética. Se até então a vida litúrgico-espiritual se caracterizava como ‘fuga do mundo’ e refúgio individualizado em Deus, a teologia do povo de Deus e da nova postura da Igreja, diante do mundo, encaminha o cristão para uma espiritualidade laical e comunitária, inserida num contexto histórico determinado. Trata-se de uma espiritualidade que vai se tornando uma mística interior, ou seja, uma força interior que motiva para a ação, para o testemunho, para o seguimento de Jesus Cristo e para a ação concreta do cristão na transformação da sociedade e do mundo.15 A Igreja é, por natureza, essencialmente missionária. Sua missão evangelizadora, iniciada no dia de Pentecostes, foi sempre marcada por um profundo ardor missionário. A exemplo de Jesus e da sua Igreja e, sobretudo, a partir da catequese e do comprometimento com as celebrações litúrgicas das quais participamos, somos chamados a nos tornar corajosos e esperançosos missionários na construção de um mundo mais humano, fraterno e solidário.16 13

Cf. CONSTITUIÇÃO Sacrosanctum Concilium, n.14.

14

Ibid., n. 56.

O Catecismo da Igreja Católica ao falar de catequese e liturgia, assim se expressa: “A liturgia é o ápice para o qual tende a ação da Igreja, e ao mesmo tempo é a fonte donde emana toda a sua força” (SC, n. 10). Ela é, portanto, o lugar privilegiado da catequese do Povo de Deus. “A catequese está intrinsecamente ligada a toda ação litúrgica e sacramental, pois é nos sacramentos, e, sobretudo na Eucaristia, que Cristo Jesus age em plenitude para a transformação dos homens” (CT, n. 23). A catequese litúrgica tem em vista introduzir no mistério de Cristo (ela é “mistagogia”), procedendo do visível para o invisível, do significante para o significado, dos “sacramentos” para os “mistérios”.17

O Catecismo, ao se servir das afirmações do Concilio Vaticano II, destaca a liturgia como cume e fonte da vida cristã, realçando a importância e a profunda ligação existente entre catequese e liturgia. Revela a centralidade do Mistério Pascal que deve passar e perpassar toda realidade humana. De fato, a ação de Cristo incide na transformação da humanidade, tornando o ser humano sal e luz em uma sociedade que necessita, a cada dia, ser construída e reconstruída à luz da justiça, da verdade e da solidariedade.18 Mãos à obra! O Concílio já resgatou as riquezas da centralidade do Mistério Pascal. Cabe a cada um de nós, agora, a tarefa de traduzir ou explicitar na catequese e na liturgia a grandeza e a relevância de Jesus de Nazaré, o morto-ressuscitado, o verdadeiro Senhor e Mestre da vida e da história de cada um de nós.

3 DIMENSÃO MISTAGÓGICA DA CATEQUESE E DA LITURGIA A catequese, em sua função mistagógica de educação da fé, tem por missão educar para a sagrada liturgia a fim de que a celebração seja verdadeiramente expressão de fé e vivência no Mistério Pascal de Jesus. A missão da catequese é possibilitar que o resplendor

15

Cf. DECRETO Ad gentes sobre a atividade missionária da Igreja. In: CONCÍLIO VATICANO II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: Paulinas 2007, n. 15. 16

Cf. Ibid. n. 2.

17

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, nn. 1074-1075.

18

Cf. SILVA, Carlos Rômulo Gonçalves. A intrínseca ligação entre catequese e liturgia. Revista de Catequese 127 (2009) 20-23, pp. 22 -23.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS do Cristo ressuscitado seja refletido no mundo todo, em todas as realidades. A expressão catequese carrega consigo a palavra ‘eco’ (do grego: echos), ou seja, nela se esconde o ‘ecoar de algo’. Para nós cristãos este algo é a Palavra divina; é o mistério da vida, morte e ressurreição de Jesus, nosso amado Mestre e Senhor. Tal eco deve continuar a ecoar a partir da liturgia vivida e celebrada na vida, na história de cada fiel cristão, sobretudo, dos consagrados ao ministério catequético.19 O seguimento de Jesus Cristo exige de nós, na qualidade de discípulos missionários, uma radical vivência catequético-litúrgica. Uma espiritualidade genuinamente centrada no Mistério Pascal do Senhor, na vivência de sua Palavra e, sobretudo, no amor e no respeito ao próximo. O catequista, em sua missão mistagógica, carrega consigo um profundo amor em favor do outro, amor que é fruto do encontro pessoal com o Senhor, sua Palavra, e os sacramentos. No que se refere à dimensão mistagógica da catequese e da liturgia, o Diretório Nacional de Catequese assim se expressa: “Na liturgia Deus fala a seu povo, Cristo ainda anuncia o Evangelho e o povo responde a Deus com cânticos e orações” (SC, n. 33): ela, ao realizar sua missão, torna-se uma educação permanente da fé. A proclamação da Palavra, a homilia, as orações, os ritos sacramentais, a vivência do ano litúrgico e as festas são verdadeiros momentos de educação e crescimento na fé. A liturgia é fonte inesgotável da catequese, não só pela riqueza de seu conteúdo, mas pela sua natureza de síntese e cume da vida cristã (cf. SC, n. 10; CR 89): enquanto celebração ela é ao mesmo tempo anúncio e vivência dos mistérios salvíficos; contém, em forma expressiva e unitária, a globalidade da mensagem cristã. Por isso ela é considerada lugar privilegiado de educação da fé. “A proclamação da palavra na liturgia torna-se para os fieis a primeira e fundamental escola da fé” (DGAE, n. 21). As festas e as celebrações são momentos privilegiados para a afirmação e interiorização da experiência da fé. O RICA é o melhor exemplo de unidade entre liturgia e catequese. Celebração e festa contribuem para uma catequese prazerosa, motivadora e eficaz que nos acompanha ao longo da vida. Por isso, os autênticos

itinerários catequéticos são aqueles que incluem em seu processo o momento celebrativo como componente essencial da experiência religiosa cristã. É esta uma das características da dimensão catecumenal que hoje a atividade catequética há de assumir. Há uma relação íntima entre a fé, a celebração e a vida. O mistério de Cristo anunciado na Catequese é o mesmo que é celebrado na liturgia para ser vivido: “pelos sacramentos a liturgia leva a fé e a celebração da fé a se inserirem nas situações da vida” (CNBB 43, n. 92; cf. Puebla, n. 922). Por essa interação, avida cristã é discernida à luz da fé e desenvolve-se uma conaturalidade entre culto e vida: “acolhemos com alegria o atual anseio de, nas celebrações litúrgicas, celebrar os acontecimentos da vida inseridos no Mistério Pascal de Cristo” (Ibidem, n. 50). 20

A pessoa do catequista, envolvida com Jesus Cristo e com os seus ensinamentos, participa eficazmente de sua graça libertadora e, por isso, entra em comunhão de vida com Deus, tornando-se, para os outros, sinal sensível e visível do amor de Cristo, amor manifestado pela humanidade e celebrado em cada mistério que a Igreja nos convoca e nos propõe a celebrar. O Documento de Aparecida nos impulsiona e remete a uma profunda vivência do discipulado, apontando-nos alguns elementos fundamentais como possibilidade de aprendizado no amor, no seguimento de Cristo e na vivência mistagógica. Eis o que nos sugere: Como características do discípulo, indicadas pela iniciação cristã, destacamos: que tenha como centro a pessoa de Jesus Cristo, nosso Salvador e plenitude de nossa humanidade, fonte de toda maturidade humana e cristã; que tenha espírito de oração, seja amante da Palavra, pratique a confissão frequente e participe da Eucaristia; que se insira cordialmente na comunidade eclesial e social, seja solidário no amor e fervoroso missionário. A paróquia precisa ser o lugar onde se assegure a iniciação cristã e terá como tarefas irrenunciáveis: iniciar na vida cristã os adultos batizados e não suficientemente evangelizados; educar na fé as crianças batizadas em um processo que as leve a contemplar sua iniciação cristã; iniciar os não batizados que, havendo estudado o querigma, querem abraçar a fé. Nessa tarefa, o estudo e a assimilação do Ritual Cristã de Adultos é referência necessária e apoio seguro.21

19

Cf. ALBERICH, op. cit., p. 317; SILVA, J. A. Catequese e liturgia a partir de um verdadeiro “eco” do mistério: liturgia em mutirão. Brasília: CNBB, 2007. (Subsídios para a formação), pp. 223-224. 20

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, op. cit., nn. 118-119.

21

CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM). Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2007, nn. 292-293. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 87- 93, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS O catequista, profundamente alicerçado no Mistério Pascal do Senhor, por meio da catequese e da liturgia, professa sua fé em Jesus, preservando sua espiritualidade e humanidade cristã, em contraposição a qualquer outro ‘espiritualismo’, isto é, uma espiritualidade irreal, subjetiva e intimista. Em se tratando de vivência catequética-litúrgico, o Documento de Aparecida afirma: A Catequese não pode se limitar a uma formação meramente doutrinal, mas precisa ser uma verdadeira escola de formação integral. Portanto, é necessário cultivar a amizade com Cristo na oração, o apreço pela celebração litúrgica, a experiência comunitária, o compromisso apostólico mediante um permanente serviço aos demais. Para isso, seriam úteis alguns subsídios catequéticos elaborados a partir do Catecismo da Igreja Católica e do Compêndio da Doutrina Social da Igreja, estabelecendo cursos e escolas de formação permanente aos catequistas. Deve-se dar catequese apropriada que acompanhe a fé já presente na religiosidade popular. Maneira concreta pode ser a oferta de um processo de iniciação cristã com as visitas às famílias, onde não só se comuniquem a elas os conteúdos da fé, mas também as conduza à prática da oração familiar, à leitura orante da Palavra de Deus e ao desenvolvimento das virtudes evangélicas, que as consolidem cada vez mais como Igrejas domésticas. Para esse crescimento na fé, também é conveniente aproveitar pedagogicamente o potencial educativo presente na piedade popular mariana. Trata-se de um caminho educativo que, cultivando o amor pessoal à Virgem, verdadeira “educadora na fé” que nos leva a nos assemelhar cada vez mais a Jesus Cristo, provoque a apropriação progressiva de suas atitudes.22

CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar de termos sofrido imensamente a dicotomia entre catequese e liturgia ao longo dos séculos, o Concílio Vaticano II - dom de Deus, novo Pentecostes suscitado por mentes e mãos carinhosas, as do bom papa João XXIII e, posteriormente, as de Paulo VI – permitiu-nos retornar às origens do cristianismo, o que possibilitou o resgate da compreensão e vivência do Mistério Pascal do Senhor na vida da Igreja. Como vimos, na comunidade dos primeiros cristãos havia uma perfeita harmonia entre fé, vida, catequese e 22

liturgia. Com base nesta interação entre fé e vida, experimentada à luz da Palavra de Deus, da oração, da Eucaristia e da comunhão fraterna, nos sentimos convidados, enquanto catequistas, a traduzir com a nossa vida os mesmos sentimentos de Jesus Cristo, nosso Mestre e Senhor. Este convite suscita a necessidade de despertarmos em nossos catequizandos o mesmo fascínio daquele tempo, por meio da adesão a Jesus Cristo e ao Evangelho. Na qualidade de discípulos missionários, somos impelidos a viver uma autêntica e profunda vida catequético-litúrgica. Cada um de nós, a partir do envolvimento com a pessoa de Jesus Cristo e com os seus ensinamentos, participa eficazmente de sua graça libertadora e, por isso, entra em comunhão com Deus, tornando-se para os outros, sinal sensível e visível do seu amor, da sua graça e do seu poder. A experiência espiritual vivida pelos primeiros cristãos, ou seja, pelos primeiros catequistas, deve continuar sendo a espiritualidade dos catequistas de hoje. Somos chamados como eles a servir. Jesus, na ação do lava-pés não disse nada. Em silêncio, tocou profundamente o coração dos apóstolos. Assim como Jesus, nossas palavras devem ser sempre comprovadas e consagradas com o nosso agir. O catequista, a exemplo de Jesus, Mestre e Senhor, tem consciência de que o seu ser evangelizador e missionário está comprometido com a pessoa do outro, com a comunidade e a sociedade como um todo. É nessa complexidade que o catequista é chamado a realizar sua missão catequético-litúrgica. Nesse contexto, o discípulo missionário é convidado a renovar a paróquia como comunidade de comunidades, como comunidade que acolhe, ama, solidariza, mas que também vai ao encontro para evangelizar os diversos espaços da cidade, sobretudo aqueles aonde a evangelização ainda não chegou. O catequista de hoje, ainda deslumbrado com os catequistas de ontem, deve procurar responder às necessidades religiosas das pessoas, particularmente quando estão inseridas num contexto sociocultural de negação dos valores humanos e religiosos. Que a exemplo de Jesus, o primeiro ‘ecoador’ do Pai e o catequista por excelência, e de sua Mãe, discípula missionária do Filho, dos apóstolos e dos inúmeros colaboradores do Reino, possamos também nós ‘ecoar’ a Boa Nova, a partir da experiência pascal vivida na catequese celebrada cotidianamente na liturgia, em nossas comunidades.

CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM), op. cit., nn. 299-300.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS Em suma, catequese e liturgia, duas ‘irmãs gêmeas’ inseparáveis, devem fazer ‘ecoar’ o mistério da fé na vida e na história de cada catequista e catequizando. Ambas precisam consolidar a ligação entre fé e vida, superando toda e qualquer visão reducionista de catequese. É urgente a revalorização do sentido mistagógico da realidade catequético-

litúrgica. De mãos dadas, essas duas ‘irmãs gêmeas’ precisam superar os modelos ultrapassados de metodologia catequética, particularmente no que diz respeito aos encontros, para que sejam encontros celebrativos e orantes, que levem, de fato, o catequizando ao encontro pessoal com Jesus, nosso Mestre e Senhor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBERICH, E. Catequese evangelizadora: manual de catequética fundamental. São Paulo: Salesiana, 2004. ALVES DE LIMA, Luiz. A iniciação cristã ontem e hoje: história e documentação atual sobre a iniciação cristã. Revista de Catequese 126 (2009) 20-33. BECKHÄUSER, A. Sacrosanctum Concilium: texto e comentário. São Paulo: Paulinas, 2012. BENTO XVI. En las orígenes de la Iglesia: los apostoles y los primeros discípulos de Cristo. Madrid: San Pablo, 2010. BUYST, Ione; SILVA, J. A. O mistério celebrado: memória e compromisso I. São Paulo: Paulinas; Valencia (Espanha): Siquem, 2003. CARVALHO, Humberto Robson. Missa: celebração do mistério pascal de Jesus. São Paulo: Salesiana, 2010. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 9. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Loyola; Paulinas; Ave-Maria; Paulus, 1999. CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM). Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. São Paulo: Paulus, 2007.

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Diretório nacional de catequese. Texto aprovado pela 43ª Assembleia Geral. Brasília: Edições CNBB, 2006. C ONFERÊNCIA DOS RELIGIOSOS DO B RASIL . Seguir Jesus: os evangelhos. v. 5. São Paulo: Loyola, 1994. (Coleção Tua Palavra é vida). C ONSTITUIÇÃO Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia. In: CONCÍLIO VATICANO II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: Paulinas 2007. DECRETO Ad gentes sobre a atividade missionária da Igreja. In: CONCÍLIO V ATICANO II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: Paulinas 2007. SILVA, Carlos Rômulo Gonçalves. A intrínseca ligação entre catequese e liturgia. Revista de Catequese 127 (2009) 20-23. SILVA, J. A. Catequese e liturgia a partir de um verdadeiro “eco” do mistério: liturgia em mutirão. Brasília: CNBB, 2007. (Subsídios para a formação).

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS TEMAS CATEQUÉTICO-PASTORAIS DEBATIDOS NO SÍNODO DE 2012 – II Luiz Alves de Lima

Dando sequência à apresentação das ‘intervenções’, pronunciamentos ou discursos durante o décimo terceiro Sínodo Ordinário dos Bispos em outubro de 2012 sobre a Nova Evangelização para a transmissão da fé, apresentamos a seguir, mais dez desses pronunciamentos, com uma maior significação para a pastoral e catequese. São abordagens da realidade eclesial, a partir de vários pontos de sua presença no mundo, não só em sua dimensão religiosa e espiritual, mas também em sua realidade ética e antropológica. Para uma apresentação e significado desse momento sinodal que ocupou mais de um terço de todo o tempo do Sínodo, pode-se consultar a edição anterior.1

1 FUNDAMENTO TEOLÓGICO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO Dom Rino Fisichella

Dom Rino Fisichella fez esse pronunciamento na manhã de 09 de outubro de 2012 durante a XIII Assembleia Geral do Sínodo.2 Ele é Arcebispo titular de Voghenza (Vicus Habentia ou Voghiera, ao norte de Ferrara, Itália) e Presidente do Pontifício Conselho para a Nova Evangelização, organismo criado em 2011 por Bento XVI para atender essa grande urgência da Igreja em nossos dias. Anteriormente, Dom S. Fisichella havia sido Reitor Magnífico da Universidade Lateranense de Roma. Participou também do Sínodo como relator do Círculo Menor Italiano A, e foi eleito pela Assembleia Geral para compor o XIII Conselho Ordinário da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos, encarregado, entre outras coisas, de assessorar o Papa na redação da Exortação Apostólica que recolherá o pensamento e as conclusões desse Sínodo. Eis a íntegra de sua intervenção: Desejo fazer referência ao n. 20 do Instrumento de Trabalho onde se acena à necessidade de um fundamento teológico [sobre a nova evangelização]. É uma exigência imprescindível, sobretudo porque a nova evangelização se apresenta como um projeto pastoral que impregnará a Igreja nos próximos decênios.

Enquanto tal é urgente que antes do ‘agir’ (agere) se possa encontrar o fundamento do nosso ‘ser’ (esse) cristão, de modos que a nova evangelização não seja considerada como um acréscimo num momento de crise, mas como a constante missão da Igreja, que, nisso, exprime sua natureza. É importante conjugar a exigência da unidade, para ir além da ‘fragmentaridade’, com a riqueza de nossas diversas expressões culturais e tradicionais eclesiais. A unidade de um projeto pastoral não equivale à uniformidade de realização; antes, indica a exigência de uma linguagem comum e de sinais compartilhados que permitam emergir nesse momento o caminho de toda a Igreja mais do que a originalidade de uma experiência particular. Os conteúdos não mudam com a evolução dos tempos. Cristo Jesus permanece sempre o mesmo “ontem, hoje e sempre” (Hb 13, 8), e o encontro com Ele determina a vida, de tal modo que encontre o sentido da existência, em vão procurado em outro lugar. Todavia, devem-se dar motivações das razões pelas quais, num período particular epocal como o nosso, assinalado por uma crise generalizada, é exigido de nós ‘hoje’ – assim como o foi em outros momentos da história – viver de modo ordinário a nossa ordinária vida eclesial. Surge um primeiro problema: enquanto no passado Jesus Cristo era percebido realmente como uma ‘novidade’ na vida das pessoas, hoje não é mais assim.

1

Cf. ALVES DE LIMA, Luiz. Temas catequético-pastorais debatidos no Sínodo de 2012 [I]. Revista de Catequese 141 (2013) 5266. Excetuando dois pronunciamentos, a tradução dos textos originais em italiano e castelhanos, assim como todas as introduções que situam cada um dos discursos, são do P. Luiz Alves de Lima, sdb, participante do Sínodo como consultor. 2

O texto original integral em italiano foi protocolado na Secretaria do Sínodo em 08.10.2012, como Arquivo IN-017 e publicado, em forma resumida, pelo Boletim Informativo 07, divulgado em 09.10.2012.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS Um dos traços do novo ateísmo se exprime como uma indiferença impressionante, muitas vezes seguida pela marginalização e escárnio daqueles que creem. A pessoa humana hoje, sobretudo entre os jovens, não percebe mais a ausência de Deus como uma falta para a própria vida. A ausência dos conteúdos básicos da fé, como, por exemplo, o sinal da cruz, se conjuga com uma forma de presunção que não tem precedentes. De que modo podemos expressar a novidade de Jesus Cristo num mundo impregnado apenas de cultura científica, modelado sobre a superficialidade de conteúdos efêmeros, e insensíveis à proposta da Igreja? Anunciar o Evangelho equivale a mudar de vida; mas parece que nossos contemporâneos estão fortemente ligados a um estilo de vida do qual se sentem patrões, de uma maneira certa ou errada, pois podem decidir quando, como e quem deve nascer; quando, como e quem deve morrer. Como a nova evangelização é dirigida, sobretudo, ao Ocidente que possui uma cultura impregnada de cristianismo, esses traços aparecem ainda mais preocupantes. Além disso, presume-se que Jesus Cristo e a Igreja sejam conhecidos, e não raramente são considerados coisas obvias, tornando-se difícil colher a novidade que trazem. As nossas comunidades, talvez, não apresentem mais os traços que permitam reconhecer como portadores de uma boa notícia que transforma a vida. Estamos enclausurados em nós mesmos, mostramos os traços de uma autossuficiência que impede de aproximar-nos como uma comunidade viva e fecunda que gera as várias vocações, pois burocratizamos demais a vida de fé e a celebração dos sacramentos. Muitas vezes, nossas comunidades parecem estagnadas, repetidoras de fórmulas obsoletas que não comunicam a alegria do encontro com Cristo e titubeiam diante do caminho a seguir. Numa palavra, não se sabe mais que ser batizados equivale a ser evangelizadores: perdemos a identidade. Incapazes de ser propositivos com relação ao Evangelho, débeis na certeza da verdade que salva, e cautelosos na maneira de falar porque oprimidos por um controle da linguagem que falseia sobre nós, perdemos a credibilidade e corremos o risco de esvaziar Pentecostes. Devemos redescobrir a força do anúncio de Cristo Ressuscitado, de Quem somos testemunhas, sem deixar-nos sufocar pelas superestruturas, para reencontrar a pessoa humana onde quer que ela esteja.

É inútil, nesse momento, tanto a nostalgia de tempos passados, como a utopia de ir atrás de sonhos que não se realizarão. A Nova Evangelização requer de nós uma análise lúcida: não escondamos as reais dificuldades, mas também não neguemos o grande entusiasmo de tantas experiências que, nesses anos, permitiram a atuação da Nova Evangelização. Este, e não outro, é o tempo que nos foi dado como história de salvação. Aqui e agora devemos renovar a força da graça que age, e assumir a responsabilidade de transmitir às novas gerações o único Evangelho que salva.

2 FÉ E CONHECIMENTO Dom Francisco Moraglia

Dom Francisco Moraglia fez esse pronunciamento na manhã de 13 de outubro de 2012 durante a IX Assembleia Geral do Sínodo.3 Ele é arcebispo Patriarca de Veneza, e participou do Sínodo como um dos quarenta nomeados diretamente pelo Papa. Participou como membro do Círculo Menor Italiano C. Entre outras coisas ele deseja que “a nova evangelização reserve maior espaço à catequese, com particular atenção à complementaridade férazão”. Eis a íntegra de seu pronunciamento: Nessa intervenção me refiro ao quarto capítulo do Instrumento de Trabalho (‘reavivar a ação pastoral’) sobretudo em seus nn. 153 a 157, que tratam do tema ‘fé e conhecimento’. Na linha do constante Magistério da Igreja e, mais recentemente, do magistério do João Paulo II na encíclica Fides et Ratio, e de Bento XVI em sua Lectio magistralis na Universidade de Ratisbona (Regensburg) em 12 de setembro de 2006, auguro que a nova evangelização reserve maior espaço à catequese, com particular atenção à complementaridade fé-razão. Somos muito agradecidos aos esforços dos que, não somente hoje em dia, com competência e sensibilidade se ocupam da pastoral da cultura (falo aqui da ‘alta cultura’) favorecendo o diálogo com os intelectuais e os cientistas cristãos, com os que estão em busca de Deus ou fazem profissão de agnosticismo ou ateísmo. Elogiando tal esforço, penso que também sobre o plano da catequese ordinária, em nível dos fiéis comuns, devamos nos encaminhar em direção de uma maior e

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O texto original integral em italiano foi protocolado na Secretaria do Sínodo em 11.10.2012, como Arquivo IN-140 e publicado, em forma resumida, pelo Boletim Informativo 14, divulgado em 13.10.2012. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 94-107, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS partilhada consciência sobre a essencialidade da dimensão cultural da fé, a fim de que o crente não viva numa submissão psicológica e não tenha a sensação de que esteja ultrapassado diante do avanço da história. Temos a impressão de que, às vezes em alguns casos, o católico médio viva uma espécie de complexo de inferioridade diante da modernidade e pósmodernidade, por causa de um conflito pessoal entre fé e razão não resolvido. Em geral o silêncio do católico médio, ao dar as razões de sua esperança, é fragorosíssimo! Além de potenciar para eles o momento do primeiro anúncio, da leitura da Bíblia, da lectio divina, na linha da Constituição Dogmática Dei Verbum e da exortação pós-sinodal Verbum Domini, momentos essenciais em vista da Nova Evangelização, penso que seja necessário igualmente fortificar a ligação estrutural entre razão e fé. Trata-se de superar o profundo hiato entre fé e cultura, levando a pastoral da cultura a ser uma pastoral ordinária: parece-me que isso hoje responda a uma verdadeira diaconia cristã em confronto com a história, diante de uma cultura que se elabora sempre mais a partir do saber das ciências e da tecnologia, gerando um modo de pensamento instrumental e funcional. Em tal situação a maioria dos jovens, uma vez completada a iniciação cristão, refiro-me à situação italiana, perde o contato com a Igreja, com a fé, com Deus. Múltiplas são as causas que determinam tal situação; penso, porém, que em não poucos casos, a fé, não suficientemente consolidada por uma catequese amiga da razão, não ofereça uma visão antropológica a ponto de legitimar a plausibilidade da opção cristã no atual contexto cultural. É necessário relançar com vigor o Catecismo da Igreja Católica dando maior espaço aos conteúdos a fim de que a fé não seja reduzida a uma fé ‘vire-se por si mesmo’. Não raramente, a fides quae é muito carente em nossas catequeses. É importante a metodologia, mas não com prejuízo dos conteúdos ou da experiência elevada a lugar teológico. Se, como foi justamente observado: com Deus ou sem Deus tudo muda, é nossa obrigação voltar a centralizar a catequese sobre Deus e sobre quanto a revelação cristã diz a seu respeito, não esquecendo que o Deus de Jesus Cristo, como recorda o Papa Bento 4

XVI em seu magistério, é ao mesmo temo Agape e Logos.

3 NOVA EVANGELIZAÇÃO, IGREJA E MUDANÇAS DE CENÁRIOS Dom Santiago Silva Retamales

Dom Santigo S. Retamales, Bispo titular de Bela e Bispo auxiliar de Valparaíso, fez esse pronunciamento na tarde de 13 de outubro de 2012, sábado, durante a X Assembleia Geral do Sínodo.4 Dom Santiago Silva R. participou do Sínodo como Secretário Geral do Conselho Episcopal LatinoAmericano (CELAM) e ao mesmo tempo como um dos 40 convidados por escolha pontifícia. Durante os trabalhos sinodais esteve no círculo linguístico luso-hispânico B, do qual foi também relator. Dom S. Silva Retamales foi ainda eleito, também por escolha pontifícia, para integrar os 15 membros do XIII Conselho Ordinário da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos que está auxiliando o Papa na redação da Exortação Apostólica relativa a esse Sínodo sobre a Nova Evangelização.

1 APROXIMAÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO PARTIR DE ‘UMA ENCRUZILHADA’

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De onde partir para entender e levar adiante a Nova Evangelização hoje? Após uma atenta leitura de algumas passagens do Evangelho e do Documento de Aparecida, manual do discípulo-missionário para América Latina e Caribe, atrevo-me a colocar a Nova Evangelização em ‘uma encruzilhada’ com o objetivo de entender o que se deve fazer e como compreendê-la. Sem dúvida, tudo se torna mais complexo do que aquilo que eu possa expressar aqui. É evidente que vivemos nossa fé em cenários bastante novos, que ainda não conseguimos compreender em profundidade. Assim se afirma tanto nos Lineamenta quanto no Instrumentum laboris do presente Sínodo. E isto que acontece na Igreja, acontece também com outras confissões. Ora, sem dúvidas a Igreja, com sua obra evangelizadora, não pode renunciar a sua vocação e missão que vêm de Jesus Cristo Ressuscitado. Então, o que faremos? Mudamos os cenários? Não damos

O texto original integral pronunciado em castelhano foi protocolado na Secretaria do Sínodo em 10.10.2012, como Arquivo IN113 e publicado, em forma resumida, pelo Boletim Informativo 15, divulgado em 13.10.2012. A tradução do original castelhano é de Leandro Brum Pinheiro, sdb.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS importância a estas mudanças e agimos como se nada tivesse mudado? Ou tentamos mudar a Igreja para adequá-la a estes novos cenários? Esta é a encruzilhada: se os cenários mudaram e continuarão mudando, com o nosso parecer ou sem ele, não poderíamos mudar a Igreja para evangelizar estes cenários? Acredito que não. Penso que a Igreja ‘de sempre’, a que nasceu do Mistério Trinitário, é a que deve tomar a peito os novos cenários para evangelizá-los; mais ainda se acreditamos que a Igreja, em todos os tempos, esteve atravessada pelas circunstâncias históricas, políticas e sociais sempre em mudança, pois somos discípulos de Jesus deste mundo e neste mundo. A respeito desta relação ‘Igreja-mundo’, não falo em sentido joanino.

2 A IGREJA ‘DE SEMPRE’ NOS NOVOS CENÁRIOS Mas qual é a Igreja ‘de sempre’ chamada a evangelizar estes cenários pós-modernos, especialmente quando nós, seus membros, vivemos neles, os geramos e com eles sofremos? A Igreja ‘de sempre’ não é a Igreja tradicional, mas a comunidade de Jesus que vive a escuta da tradição viva como lugar hermenêutico a partir do qual o Senhor, em sua comunidade e por sua comunidade, se encarrega das esperanças e das ilusões dos homens e mulheres de hoje. Por essa comunidade, Jesus sai ao encontro de todos, gerando os significados vitais propícios que satisfazem os desejos profundos do ser humano como tal e como discípulos-missionários a serviço do mundo. A Igreja ‘de sempre’ não é a da hermenêutica de interesses individualistas, por mais religiosos e santos que possam parecer. A hermenêutica da ‘letra’ da Escritura sempre acaba por nos conduzir a nós mesmos e não à Palavra de Deus relacionada a ela: ao Logos só se acessa transcendendo os logoi. A Igreja da Palavra de Deus é a que se deixa, em primeiro lugar, interpelar pelo Senhor para converter-se em sinal e instrumento cada vez mais claro e pertinente à salvação. A Igreja da Palavra é a Igreja da escuta e da contemplação e, por isso, do silêncio fecundo, atento aos rostos de Jesus Cristo que saem ao seu encontro. A Igreja ‘de sempre’ não é a do poder nem a da imposição, mas a Igreja que, porque se compreende como a depositária da Verdade e da Vida, que é Jesus Cristo, se aproxima com humildade para dialogar com todo ser humano e com a toda a realidade humana. É uma comunidade que não tem medo de fazer-se palavra, diálogo, colóquio para propor a comunhão. Uma Igreja que não se ‘im-põe’, mas que se ‘ex-põe’, precisamente

porque entende que as sementes do Verbo não se esgotam nos limites e fronteiras da Igreja institucional, mas que brilham presentes em tudo o que é realmente humano, em razão da orientação fundamental do homem e de sua vida ao Filho do Homem, ao Novo Adão, desde quando o Verbo se fez carne e nos redimiu. A Igreja ‘de sempre’ não é a Igreja do ritualismo, mas a da celebração alegre da fé, onde os rituais estão a serviço do diálogo da assembleia cristã com Deus Trino, de modo que Deus aconteça de tal modo e com tal eficácia que a assembleia reunida celebre sua vocação e missão de ‘povo de Deus’, ‘Corpo de Cristo’ e ‘Templo do Espírito Santo’ a serviço do mundo. A Igreja ‘de sempre’ é a que, aberta ao dom do Espírito, vai ao encontro de Jesus, para aprender dele, ainda que seja noite, como Nicodemos; é a que, como a Samaritana, se encontra com Jesus com a certeza de que Ele é a água viva que jorra para a vida eterna. É a Igreja que, em seguida ao Pentecostes, vai como Pedro e João entregar o que tem, oferecendo tudo isso de mãos cheias aos doentes e marginalizados; é a que, como Felipe, o diácono, obediente ao Espírito, sai a caminho dos que anseiam por conhecer a Deus e fazer parte de seu Mistério através dos sacramentos; é a que, como o samaritano, se deixa surpreender pela dor e angústia humana, dando não apenas seu tempo, mas todo o seu ser. Esta é a Igreja ‘de sempre’!

3 O MODELO DE JESUS E A VIDA DAS PRIMEIRAS COMUNIDADES

Basta olhar para o ministério de Jesus de Nazaré como aparece nos Sinóticos e basta contemplar a vida cristã das primeiras comunidades segundo os Atos dos Apóstolos para dar-se conta que a Nova Evangelização não pode restringir-se a respostas aprendidas no decorrer do conflitante e esperançoso caminhar da humanidade, sem nenhum testemunho, sem cultivar quaisquer relações pessoais e comunitárias. A Nova Evangelização pede a nós aquela sabedoria e aquela coragem que nos faz voltar às nossas origens, e não apenas de olhar, mas de coração. E nossas origens são o desígnio salvador do Pai, o dom do mistério pascal do Filho e a disponibilidade absoluta, sem nenhum limite, ao Espírito Santo; é Ele que aponta caminhos adequados e que dá a capacidade de amar a toda pessoa e realidade humana, inclusive aquelas transpassadas pelo pecado, ou melhor, de maneira especial aquelas transpassadas pela maldade e pela pobreza, para tornar real o amor e a comunhão de Deus na terra. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 94-107, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS Jamais podemos nos esquecer de que nossa origem é Jesus de Nazaré, o Messias que foi desprezado e crucificado e que, por isso, somos discípulos de Alguém que foi um marginalizado e estigmatizado por sua sociedade. A partir desta convicção, temos que nos empenhar pela Nova Evangelização. Obrigado.

4 O ANÚNCIO DO ENVANGELHO NAS ALEGRIAS E NOS DRAMAS DA VIDA Dom Filipe Santoro Dom Filipe Santoro fez seu pronunciamento na manhã de 13 de outubro de 2012, sábado, durante a IX Assembleia Geral do Sínodo.5 Dom F. Santoro, ligado ao movimento Comunhão e Libertação, já trabalhou no Brasil, onde foi bispo auxiliar do Rio de Janeiro (1996 a 2004) e bispo de Petrópolis (RJ, 2004) e a partir de 2011 é arcebispo metropolitano de Taranto (Itália). Participou do Sínodo como um dos quarenta nomeados diretamente pelo Papa e fez parte do Círculo Menor Italiano B., do qual foi porta voz junto à imprensa. Entre outras coisas, disse ele nesse pronunciamento: “entre as alegrias e dramas da vida anunciamos a presença de Cristo Ressuscitado, a Sua vitória sobre o mal e sobre a morte, sem complexos de inferioridade e sem ânsia de hegemonia”. Santo Padre, Veneráveis Irmãos e irmãs, O Motu Proprio Porta Fidei afirma que é necessário mostrar aos cristãos e aos não cristãos em primeiro lugar ‘Cristo como cumprimento’ de todo desejo e de toda a esperança do coração do homem (n° 11). O cristianismo se dirige àquela ‘exigência’ profunda de verdade que constitui o ‘coração’ do homem, que é o ‘desejo de Deus’ (cf. ibid. n. 10). E a Igreja precisa dizer a todo homem uma ‘palavra definitiva’ sobre a vida e a morte, sobre o significado do mundo e da história. O anúncio cristão do Verbo feito carne, morto e ressuscitado, ‘realiza’ aquilo que na consciência do homem emerge às vezes como ‘pressentimento’ ou ‘profecia’. Cristo ressuscitado ‘proclama que tudo na história é redimível’, que não se perde nada no vértice dos acontecimentos, que se pode viver, portanto, ‘sem esquecer e renegar nada’. 5

A Nova Evangelização tem sede de encontrar os cristãos hoje afastados e de dialogar com a atual cultura do mundo. Mas o mundo muitas vezes não tem nenhuma vontade de dialogar conosco e se o faz, é somente em batalhas provocadas por eles conforme o espírito do tempo. Mas também nos inícios da Evangelização ninguém tinha interesse em dialogar com os cristãos, com aquele pequeno grupo de homens estranhos que acreditavam num homem crucificado e ressuscitado. Era, porém, justamente para esse mundo que eles se dirigiam mostrando a quem os ignorava e os perseguia a experiência de uma vida mudada e a proposta da salvação. Àquele mundo não se respondia com discurso, mas com o milagre de uma humanidade transformada. E também quem propunha o debate, como o filósofo Justino, dava ao mesmo tempo a prova suprema do sangue: o martírio. Homens e mulheres, escravos e senhores, ricos e pobres eram atraídos por Cristo por meio do sinal da Igreja, da unidade que os alcançava através de um amigo, através da mulher amada, do soldado, do centurião, do escravo, da mulher convertida, da virgem, da mãe de família. Para cristãos distantes e para as pessoas que não se colocam o problema da fé e que seguem o seu caminho cheio de preocupações e incertezas, o que toca é somente o encontro com um milagre que, na força do Espírito, atinge o coração, isto é o afeto e a razão. Para que a verdade intuída no encontro cristão se transforme em mentalidade pessoal se requer, portanto, um trabalho, uma ascese contínua, ascese pessoal e que cresce somente dentro de um alvéolo: a Igreja como corpo social que incide na vida da sociedade. A presença evangelizadora no mundo tornase possível pela força do Espírito e na pertença uma unidade maior. Depois de 27 anos de missão e de serviço à Igreja no Brasil, retornei à Itália, numa diocese de antiga evangelização, num contexto de difusa e sentida religiosidade popular onde a fé é fortemente confrontada com a secularização. Pelos efeitos poluidores da maior fábrica siderúrgica da Europa, doze mil pessoas (vinte mil, por outros critérios) correm o risco de perder o emprego, enquanto muitas outras pessoas já foram vítimas de doenças e graves enfermidades por causa da contaminação ambiental.

O texto original integral em italiano foi protocolado na Secretaria do Sínodo em 10.10.2012, como Arquivo IN-087 e publicado, em forma resumida, pelo Boletim Informativo 14, divulgado em 13.10.2012.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS A Igreja não ficou só olhando, mas logo se empenhou em defesa da vida atacada pela dioxina e por outras substâncias tóxicas e defendeu o trabalho que permite o desenvolvimento da vida. Não tendo à disposição uma receita para a solução desse grave problema, oferecemos uma presença solidária e um apoio efetivo, concreto a quantos foram tocados pelos efeitos desastrosos dessa triste alternativa nesse período de recessão econômica mundial. Não oferecemos soluções, mas sim a proximidade, conscientes da missão de tornar-nos peregrinos ao lado de quem sofrem, favorecendo o diálogo, a negociação e o bem comum. Para isso visitei os operários dos altos fornos que faziam greve a 60 metros de altura, encontrei os doentes vítimas da contaminação ambiental, visitei a comissão contra a leucemia, a esclerose múltipla, a associação nacional contra doenças ambientais e outras associações, entre elas a de crianças contra a poluição. Entretanto, o conflito permanece aberto e vemos a profunda crise humana e social provocada por este modelo de desenvolvimento econômico. Jesus abraçou os necessitados, colocou-se ao lado dos pobres, dos pequenos, dos pecadores, dos excluídos. Amou-os e, através disso, revelou o rosto do Pai. “Amai-vos uns aos outros assim como eu vos amei. Se vos amardes uns aos outros, por isso reconhecerão que sois meus discípulos” (Jo 13, 35). É indispensável que o anúncio vibrante da fé seja unido ao testemunho da caridade. No Motu Proprio Porta Fidei está escrito a esse propósito: “A fé sem a caridade não produz fruto e a caridade sem a fé seria um sentimento à mercê constante da dúvida. Fé e caridade se exigem mutuamente, de tal modo que uma permite à outra realizar o seu caminho” (Porta Fidei, n. 14). E Vossa Santidade, Beatíssimo Padre, nos disse segunda feira passada de manhã, 07 de outubro, que a confessio, a confissão da fé deve estar unida à caritas, ao fogo da caridade. Assim, a Igreja poderá colocar dentro das necessidades humanas o milagre da cura que Cristo opera por meio do anúncio e do testemunho da caridade cristã. E isso quer no desafio das pobrezas, velhas e novas, quer no drama da saúde ameaçada pela

contaminação ambiental e pelas fábricas que correm o risco de serem fechadas. Nas alegrias e nos dramas da vida anunciamos a presença de Cristo Ressuscitado, a Sua vitória sobre o mal e sobre a morte sem complexos de inferioridade e sem ânsia de hegemonia.

5 CATEQUESE AOS ADULTOS: INSTRUMENTO DE EVANGELIZAÇÃO Dom Stanislaw Gadecki Dom Stanislaw Gadecki, Arcebispo de Poznan (Polônia) desde 2002, fez esse pronunciamento na manhã de 15 de outubro de 2012, segunda feira, durante a XI Assembleia Geral do Sínodo.6 Dom Stanislaw Gadecki participou do Sínodo como Delegado do Episcopado de seu país, foi membro da Comissão para as Controvérsias e participou do círculo linguístico italiano A. Ele é especialista nas ciências bíblicas, tendo se formado tanto em Roma, como em Jerusalém; é também vice-presidente da Conferência dos Bispos poloneses desde 2004. Beatíssimo Padre, Caros irmãos participantes do Sínodo Refiro-me ao n. 104 do Instrumento de Trabalho e irei falar sobre ‘a catequese dos adultos’ como instrumento da evangelização.7

1 OS JOVENS A minha primeira observação é que nossos jovens se encontram hoje numa condição insustentável. De um lado eles são lançados com muita antecipação no âmbito de uma idade mental adulta, riquíssima de informações, saberes, sensações, oportunidades de encontro; mas, por outro lado, são abandonados a si próprios pelos adultos em seu percurso formativo. Nenhuma época como a nossa conheceu tanta liberdade individual e de massa como a que experimentam nossos jovens. Mas a essa liberdade não corresponde nenhuma promessa sobre o futuro, pois a geração anterior abandonou sua missão educativa.

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O texto original integral pronunciado em italiano foi protocolado na Secretaria do Sínodo em 11.10.2012, como Arquivo IN-139 e publicado, em forma resumida, pelo Boletim Informativo 16, divulgado em 15.10.2012. O texto integral na própria língua do autor encontra-se em: http://www.archpoznan.pl/blog/index.php/component/content/article/41-katecheza-dorosych-jako-narzdzieewangelizacji. Acesso em: 25 ago. 2013. 7

O n. 104 do Instrumento de Trabalho pertence ao capítulo III (‘Transmitir a Fé’) e encontra-se dentro do item intitulado ‘A pedagogia da fé’. Tanto o autor desse artigo como o Instrumento de Trabalho usa a expressão tradicional ‘Catequese de Adultos’. No Brasil, e em outras partes da Igreja, usa-se a expressão ‘Catequese com Adultos’ para significar melhor o protagonismo desses interlocutores dessa catequese. Mantivemos, entretanto, a expressão original (nota do tradutor). São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 94-107, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS O problema de hoje é a ausência de cuidado que os adultos manifestam com relação às novas gerações. Não que os adultos em geral não estejam preocupados com o futuro de seus filhos, mas a preocupação não corresponde às ações concretas de educação. A preocupação dos pais não está em grau de oferecer sustentação para a formação. Como numa espécie de ‘destino da mítica personagem de Édipo’ às avessas, são os pais que matam seus filhos. Uma responsabilidade onerosa de opção atende nossos jovens, pois suas vidas não estão mais vinculadas aos trilhos imutáveis da tradição familiar da fé. Sempre mais raramente os jovens podem encontrar nos adultos, personificações confiáveis de responsabilidade. O hedonismo contemporâneo exorcizou a tarefa educativa como uma coisa para moralistas. Consequentemente, a liberdade foi reduzida a fazer aquilo que se quer, sem vínculos ao menos insuficientes e débeis. A liberdade não gera satisfação nenhuma, mas se associa sempre mais à depressão. “Nossos jovens crescem na dispersão lúdica, enquanto que a história os investe de uma responsabilidade enorme” (M. Recalcati).8

2 OS ADULTOS Essa situação requer uma resposta à altura. Os adultos, principalmente os que se afastaram da Igreja, devem reassumir suas responsabilidades. Na nossa diocese procuramos ajudá-los nessa missão, propondo-lhes uma catequese de adultos realizada por outros adultos. Já que as novas gerações normalmente confrontam a própria fé com a fé dos adultos, os pais batizados podem de novo, por causa do amor de seus filhos, transformarem-se nos primeiros e indispensáveis catequistas. “Uma comunidade de fé não pode considerar-se verdadeiramente cristã, enquanto não proporcionar uma catequese que atinja a todos, reconhecendo ao mesmo tempo um caráter central da catequese dos adultos” (A catequese na comunidade cristã, 25). São os adultos catequistas que, como testemunhas da fé e portadores do seu conteúdo, muitas vezes, de um modo melhor que os sacerdotes, podem preparar outros adultos para sua tarefa educativa de transmissão da fé. Isso não é possível sem apoiar-se em comunidades evangelizadoras, que, por sua vez, prestarão auxílio às 8

pessoas evangelizadas e não evangelizadas: quer aos adultos não batizados que têm necessidade de serem conduzidos ao encontro com Cristo, quer aos adultos batizados que se afastaram da fé, quer, enfim, aos batizados que desejam aprofundar a própria fé. Os caminhos que conduzem aos adultos que se extraviaram da fé não deveriam necessariamente passar pelas paróquias; deveriam, sim, percorrer mais os ambientes com os quais eles se identificam: os ambientes comunitários (como, por exemplo, clubes, hospitais, prisões, casas para mães com crianças, pais de crianças que se preparam para a primeira comunhão eucarística ou para o batismo, lugares de atividade humana), quer lugares da própria educação (asilos, escolas, universidades, o mundo da cultura, a mídia, etc.). Da formação desses catequistas de adultos, à imagem de Cristo, se ocupa em nossa diocese a Escola dos Catequistas, que, trâmite uma formação espiritual, intelectual, pastoral, pedagógico-didática, prepara adultos para a evangelização de outros adultos, através de um dos três níveis da catequese: a catequese da evangelização, catequese complementar e catequese permanente. A Escola de Catequistas se serve das ‘várias formas de catequese’: catequese sistemática, sacramental, ocasional, a catequese da evangelização, evangelização através da comunidade, da cultura, até catequeses dos movimentos religiosos e das associações. Este trabalho de evangelização tem dado até agora bons resultados. “Trouxeram a Jesus um paralítico, carregado por quatro homens. Como não conseguiam apresentálo a Ele, por causa da multidão, abriram o teto, bem em cima do lugar onde Ele estava e, pelo buraco, desceram a maca em que o paralítico estava deitado. Vendo a fé que eles tinham, Jesus disse ao paralítico: ‘Filho, os teus pecados são perdoados’” (Mc 2, 3-5).

6 OS SANTOS EVANGELIZAM Dom Ângelo Amato

Dom Ângelo Amato, salesiano, fez esse pronunciamento na tarde de 15 de outubro de 2012, segunda feira, durante a XII Assembleia Geral do Sínodo.9 Dom Ângelo Amato foi criado cardeal em 2010, com o título de ‘Santa Maria in Aquiro’, e prefeito da Congregação da Causa dos Santos da Cúria

Massimo Ricalcati, pensador italiano especializado em psicologia social, de inspiração lacaniana, formado em Paris com Jacques-Alain Miller. É professor na Universidade de Milão, atuando também em Lausanne (Suíça), Pádua, Urbino, Bergamo, Pavia e Bolonha (nota do tradutor).

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS Romana desde 2008, e, como tal, foi membro nato do Sínodo. Anteriormente, ele tinha sido professor, decano da Faculdade de Teologia e Reitor Magnífico da Universidade Pontifícia Salesiana de Roma. Foi nomeado Arcebispo titular de Sila (Bordj-El-Ksar na Algéria) em 2002 e Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, da mesma Cúria Romana até 2008. Nessa sua fala ele acentua a importância da santidade dos evangelizadores para a eficácia do anúncio evangélico. No documento Lineamenta desse Sínodo, são elencados umas quarenta citações, quer sobre a ‘santidade’ como conversão a Cristo e como plena acolhida da sua graça, quer sobre os ‘Santos’ como indispensáveis protagonistas da Nova Evangelização: “O segredo último da Nova Evangelização é a resposta à vocação de cada cristão para a santidade” (n. 158). O tema da santidade da Igreja no seu ser e no agir de seus filhos constitui uma tema transversal de todo o documento. Qual a razão dessa insistência? Porque nos Santos a Igreja oferece às pessoas o espetáculo edificante do Evangelho vivido, testemunhado e proclamado sine glossa. Os Santos, de fato, evangelizam com sua vida virtuosa, nutridas pela fé, esperança e caridade. Eles encarnam as bem-aventuranças evangélicas, que são o espelho fiel de Cristo: bem-aventurados os pobres, os mansos, os puros de coração, os misericordiosos, os operadores da paz, os perseguidos. Eles respondem com extraordinária criatividade ao mandamento do amor de Deus e do próximo: tive fome e sede e me destes de comer e de beber, era estrangeiro e me acolhestes, doente e preso e me visitastes. Os santos abraçam a humanidade com a sua caridade, tornando a convivência melhor, mais pacífica, mais fraterna. Por isso os dias de nosso calendário estão assinalados pelo nome dos santos. A história da Igreja, no Oriente como no Ocidente, no Norte e no Sul, registra santos de todas as idades, de todos os países, de todas as raças, línguas ou culturas, pois a graça de Deus Trindade é como o orvalho da manhã: ela pousa sobre todas as plantas do jardim, mas sobre a rosa é vermelha, sobre as folhas é verde, sobre os lírios é branca. Assim é a santidade que, embora sendo única como dom divino, penetra suave e transformadora nos

corações dos filhos da Igreja em toda parte do mundo, na Ásia como na África, na América como na Oceania ou na Europa. Há santos mártires, santos confessores, santos doutores da Igreja. Todos são testemunhas de Cristo e evangelizadores. Os Santos provêm daquele laboratório de inculturação que é a graça do Espírito Santo, efundida nos sacramentos da Igreja. No dia 02 de dezembro próximo, na diocese de Kottar (Índia), haverá a Beatificação do Venerável Devasahayam Pillai, fiel leigo, nascido em 23 de abril de 1712 e morto in odium fidei (ódio pela fé) nas proximidades da floresta de Aralvaimoshy, em 14 de janeiro de 1752. O pai era brâmane, e a mãe era da casta Nair, casta guerreira. Foi educado na religião hindu, converteu-se ao cristianismo e foi batizado com o nome de Devasahayam, que é a versão, em tâmil, do nome bíblico ‘Lázaro’, que significa ‘Deus ajudou’. Devasahayam iniciou uma verdadeira e autêntica evangelização de seu povo, convidando os hindus à conversão e ao batismo. Como cristão, ele não se importava mais com a diferença de castas. Por causa de seu orgulho de ser cristão, foi acusado de traição e de ódio aos deuses, aos brâmanes e ao trono real. Preso, foi submetido por três anos a humilhantes e torturantes suplícios até a morte. O Venerável Pillai mostra a possibilidade do cristianismo também no meio daquela cultura, tão original e diversa. Toda cultura pode ser evangelizada, pois a caridade é a língua compreendida por todos e um gesto de bondade e de consolação não precisa de interpretações. O princípio que perpassa todo o texto dos Lineamenta é formulado à luz dos Atos dos Apóstolos: “Não se pode transmitir aquilo que não se crê e não se vive” (n. 91). Os santos são evangelizadores convictos e que convencem, pois são coerentes. Esta é a lei de toda Nova Evangelização.

7 DIÁLOGO COM AS CULTURAS LOCAIS Dom Adriano Langa Foi durante a décima terceira Congregação Geral do Sínodo, em 16 de outubro de 2012, pela manhã, que Dom Adriano Langa fez seu pronunciamento.10 a respeito do diálogo entre a evangelização e as

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O texto original integral em italiano foi protocolado na Secretaria do Sínodo em 12.10.2012, como Arquivo IN-166 e publicado, em forma resumida, pelo Boletim Informativo 17, divulgado em 15.10.2012. 10 O texto original em português foi protocolado na Secretaria do Sínodo em 13.10.2012, como Arquivo IN-185. O seu resumo foi publicado pelo Boletim Informativo 18, publicado em 16.10.2012.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS culturas locais. Ele é bispo diocesano de Inhambane, Moçambique. Entre outras coisas ele destaca a necessidade conhecer e respeitar a ‘diversidade de culturas’, o respeito e ‘direito à diferença’, a ‘identidade cultural’, o respeito e direito das ‘minorias’ e o ‘diálogo’ com as ‘religiões tradicionais’. A seguir apresentamos o seu pronunciamento integral e original, pois falou em português; mantivemos, o mais possível, o modo de falar o português ‘em África’. A minha intervenção enfoca os números 87 e 88, em paralelo com os números 7 e 12 do Instrumento de Trabalho,11 para dizer que a Evangelização em África realizou e está realizando uma obra grandiosa que, justamente, tem merecido elogios.

1 ESTADO DA QUESTÃO Nos países da velha cristandade fala-se da necessidade de novos ‘métodos’ e novas ‘expressões’ para o anúncio do Evangelho, pois, os antigos já não têm significado para o homem de hoje. Em África, o problema dos métodos, das línguas e da linguagem existiu sempre e continua a existir. A estes problemas, hoje, vieram juntar-se os problemas da modernidade. Por isso, o nosso Instrumento de Trabalho, no seu n. 87 reconhece este fato. Nesta hora em que se fala da nova evangelização, é preciso que a Igreja se interrogue sobre o que faz problema à evangelização da África, do homem africano. É preciso que a Igreja se interrogue ‘o que é esta África e quem é este africano’. Na verdade, pode-se dizer que, em África, um ‘desconhecido’ tem estado a anunciar o Evangelho a outro ‘desconhecido’. A questão antropológico-cultural é crucial e tem sido o grande ponto de sangria da evangelização em África, sabotando esforços dos missionários sacrificados e bemintencionados. Se assim não fosse, o sucesso seria ainda maior do que aquele que testemunhamos. A Igreja, no seu todo e em toda a parte, sempre debateu com este problema (cf. At 15), de tal modo que, ao longo dos séculos, até aos nossos dias, o Magistério tem sido chamado a intervir, de diversas maneiras, para guiar os evangelizadores. Ainda hoje, é preciso insistir, até porque já contamos com a iluminação das ciências humanas, antes desconhecidas; estas nos trouxeram uma nova 11

compreensão sobre o homem, ao falar da ‘diversidade de culturas’, do ‘respeito e direito à diferença’, da ‘identidade cultural’, do respeito e direito das ‘minorias’ e do ‘diálogo’ com as ‘religiões tradicionais’. A Evangelização do ‘desconhecido’ pelo ‘desconhecido’ produziu um cristão dividido e torturado por dentro, devido à duplicidade a que está sujeito na vida prática, porque ‘obrigado’ a abandonar convicções, crenças e práticas ancestrais sem uma catequese adequada nem convincente.

2 PERSPECTIVA DE SAÍDA É preciso que o Evangelho, na pessoa do evangelizador, conheça quem é o africano; é preciso que ele saiba o que alegra e o que oprime este homem cultural, social e politicamente. É preciso que o evangelizador fale ao africano até este poder dizer como a mulher samaritana: “Ele disse-me tudo o que eu fiz” (Jo 4, 39). É preciso que os africanos digam aos evangelizadores como os samaritanos disseram à mulher samaritana: “Já não é pelas tuas palavras que acreditamos; nós próprios ouvimos e sabemos que Ele é o Salvador do mundo” (Jo 4, 42). Para se chegar ao ponto em que Jesus e a samaritana chegaram, certamente, é porque Jesus penetrou profundamente na vida dela; para isso, Jesus falou a língua e a linguagem dela. Falou não como ele falava aos judeus, aos escribas e fariseus. Portanto, é imperioso e urgente que a inculturação deixe de ser letra morta para os evangelizadores de hoje, como tem sido, infelizmente. Um missionário, ou qualquer outro evangelizador, com toda a sua bondade, não vai inventar ‘novos métodos’, nem ‘linguagem’, nem ‘novas expressões’ em África e para o africano se não mergulhar na cultura deste. Isto quer nos dizer: se a ‘nova evangelização’ é uma questão de ‘métodos e de ‘expressões’, ela não será ‘nova’ se não passar pela ‘inculturação’.

8 URGÊNCIA DO ANÚNCIO QUERIGMÁTICO NA EVANGELIZAÇÃO Kiko de Argüello

O Sr. Kiko de Argüello, 12 leigo, é um dos fundadores do Caminho Neocatecumenal, considerado cofundador juntamente com a Sra.

Os nn. 87 e 88 fazem parte do capítulo II (‘Tempo de uma nova evangelização’) e tratam da definição e significado da ‘nova evangelização’. Os nn. 7 e 12 fazem parte do capítulo I (‘Jesus Cristo Evangelho de Deus para o homem’); o n. 7 versa, entre outras coisas, sobre “as justas consequências sociais, culturais e políticas da pregação do Evangelho) e o n. 12 refere-se à Evangelii Nuntiandi que releva a importância da ‘linguagem’ na Evangelização.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS Carmen Hernández. Participou do Sínodo dos Bispos de 2012 como um dos 49 convidados na qualidade de ‘ouvinte’, assim como outros fundadores de movimentos modernos de evangelização, também presentes. Fez esse pronunciamento em italiano, embora seja espanhol, na tarde de 17 de outubro de 2012, quarta feira, durante a XVI Assembleia Geral do Sínodo.13 Durante os trabalhos sinodais, participou do círculo linguístico luso-português A. O ‘Caminho Neocatecumenal’ é um movimento que tem recebido grande apoio da Hierarquia, por causa de seus frutos de evangelização e a eficácia do ‘método querigmático-catecumenal’. Apesar da resistência e críticas de alguns bispos e pastoralistas, devido à radicalidade de sua pregação, o ‘Caminho Neocatecumal’ se encontra atualmente difundido em mais de 100 países, incluindo alguns que não são tradicionalmente cristãos como China, Egito, Coréia do Sul, Japão e outros. Agradeço ao Santo Padre o convite para participar desse Sínodo como ouvinte. Aproveito a ocasião para saudar a todos os Padres Sinodais. A Carta aos Hebreus diz: “Como os filhos têm em comum a carne e o sangue, também Jesus participou da mesma condição, para destruir, com sua morte, aquele que tinha o poder da morte, isto é, o diabo. Assim libertou os que, por medo da morte, passavam a vida toda sujeitos à escravidão” (2, 14-15). Conforme essa antropologia revelada, o homem não pode amar – “como eu vos amei” – pois está cercado pelo medo da morte. Partindo desse texto, que os Santos Padres utilizavam na catequese aos catecúmenos, como podemos ler, sobretudo em São Cirilo de Alexandria, me faço uma pergunta: Cremos de fato que os homens, pelo medo da morte, estão sujeitos durante toda vida à escravidão do demônio? E se não: por que evangelizar? Mas se o cremos, esse Sínodo deveria afirmar como São Paulo: “Caritas Christi urget nos. O amor de Cristo nos impulsiona, considerando que um só morreu por todos e, portanto todos estão mortos. De fato Cristo morreu por todos, para que os que vivem já não vivam para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou” (2 Cor 5, 14-15).

O teólogo ortodoxo Olivier Clement, diz que o pecado original dentro do homem o obriga a sofrer tudo por si mesmo. E São Paulo diz que o homem conhece o bem, e gostaria de realizá-lo, mas experimenta outra lei, isto é: querendo fazer o bem, é o mal que realiza (cf. Rm 7, 16). Na nossa experiência de todos os anos, evangelizando em meio aos afastados e aos pagãos, vemos tanta gente que vive no inferno; tantos casamentos que se desfazem, tantas mulheres mortas, tanta gente sozinha, milhares e milhares de suicídios, tantos jovens abandonados a si mesmos na droga... O Pai, que vê a humanidade sofredora, condenada ao inferno do ‘não-ser’ e que não pode viver na verdade, que é Cristo crucificado na doação total de si mesmo, enviou Seu Filho à terra para que graças à sua morte e ressurreição, sejamos perdoados de nossos pecados e o homem possa ser libertado da escravidão do demônio e receber a natureza divina que o torna filho de Deus. Em Cristo se abre de novo os céus e o homem pode amar como Cristo nos amou, graças ao dom do Espírito Santo. Diz São Paulo que Deus quis salvar o mundo através da loucura da pregação (do querigma), que é o anúncio dessa notícia (cf. 1Cor 1, 21). Mas a fé vem pela audição e hoje nos encontramos numa sociedade secularizada que possui os ouvidos fechados. Nos Atos dos Apóstolos se vê como Deus faz milagres, sinais, para abrir o ouvido e preparar para a audição do querigma. E depois de ter ouvido o querigma, perguntam a Pedro: “O que devemos fazer?”. E Pedro responde: “Convertei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para o perdão de vossos pecados. E recebereis o dom do Espírito Santo” (At 2, 38). Mas, em certo momento, os milagres nos Atos cessam porque aparece o milagre moral, que é a Igreja: “Vejam como eles se amam”, gritavam os pagãos. Diz Jesus: “Amai-vos como eu vos tenho amado” (cf. Jo 13, 33-34) e “Sede perfeitamente unidos e o mundo crerá” (cf. Jo 17, 23). Também hoje se quisermos evangelizar é preciso dar sinais que abram os ouvidos do homem contemporâneo. Mas, como pode uma comunidade cristã chegar a essa estatura de fé, de amor na dimensão da cruz e da perfeita unidade?

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Seu nome oficial é Francisco José Gómez-Argüello Wirtz. Nasceu em León (Espanha) em 9 de janeiro de 1939 e deu início ao ‘Caminho Neocatecumenal’ ainda em 1964, quando se realizava o Concílio Vaticano II. Artista e agnóstico, converteu-se ao Evangelho e foi um dos primeiros a atender o apelo do Vaticano II para restaurar, nos tempos modernos, a dinâmica do antigo catecumenato. 13 O texto original integral em italiano foi protocolado na Secretaria do Sínodo em 16.10.2012, como Arquivo UD-31 e publicado, em forma resumida, pelo Boletim Informativo 21, divulgado em 17.10.2012.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS Eis a necessidade do ‘catecumenato pós-batismal’ que faça crescer a fé.

9 CONTRIBUIÇÃO DA VIDA CONSAGRADA FEMININA À EVANGELIZAÇÃO Madre Ivonne Reungoat, fma

A Madre Ivonne Reungoat, religiosa salesiana (FMA), é Superiora Geral do Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora. Participou do Sínodo dos Bispos de 2012 como um dos 49 convidados na qualidade de ‘ouvinte’, assim como outras superioras e superiores gerais de ordens ou congregações religiosas presentes na Aula Sinodal. Fez esse pronunciamento em italiano, embora seja francesa, já quase no final dos trabalhos sinodais, na manhã de 26 de outubro de 2012, sexta feira, no curso da XX Assembleia Geral do Sínodo. 14 Durante os trabalhos sinodais em grupos, participou do círculo linguístico francês B. A Madre Ivonne Reungoat nasceu em Plouénan (França) em 14 de janeiro de 1945. Laureada em História e Geografia pela Universidade de Lyon e depois de exercer vários cargos em seu país e em outros lugares da Congregação, por doze anos participou do Conselho Geral. Desde 2002 foi Vigária Geral e no XXII Capítulo Geral de 2008, foi eleita Superiora Geral, como 9ª Sucessora de Santa Maria Domingas Mazzarello e a primeira não italiana a ocupar esse cargo. Essa intervenção se refere aos nn. 84 e 114 do Instrumento de Trabalho.15 Nas respostas sintetizadas no Instrumento de Trabalho é proposta uma pastoral vocacional que solicite aos sacerdotes e consagrados “um estilo que saiba testemunhar o fascínio do chamamento recebido e saiba individuar modos de falar aos jovens. Isto se refere também às vocações à vida consagrada, especialmente as femininas” (n. 84). Deseja-se “que a vida consagrada dê um contributo essencial à nova evangelização, em particular no campo da educação, da saúde, da cura pastoral, sobretudo para

com os pobres e as pessoas mais necessitadas de auxílio espiritual e material” (n. 114). A vida consagrada feminina evangeliza através do testemunho de vida, que reflete o fascínio da relação com Jesus. Conseguimos evidenciar esse ‘fascínio quando nos deixamos evangelizar por Deus’. Expressamos isso de tal modo que torne a vida consagrada bela, realizada, feliz, capaz do encontro e da partilha. Para recuperar um estilo autenticamente profético devemos enraizá-lo na mística, a ponto de dar razão da esperança que está em nós. ‘Não só devemos ser crentes, mas críveis’. Dessa credibilidade depende todo o empenho na evangelização e o nosso próprio futuro como vida consagrada. O ser amados por Deus, atraídos por seu amor, se expressa na comunhão fraterna. ‘A fraternidade’ na vida religiosa é o desafio que o mundo de hoje compreende mais imediatamente. É isso que lhe restitui a capacidade de ser fogo, luz, fermento e sal mediante um estilo revestido de profunda fé e, ao mesmo tempo de simplicidade, de comunhão. Num mundo complexo, multicultural e multirreligioso, as nossas comunidades podem oferecer essa dádiva, apresentando-se como laboratório de humanidade e de cidadania universal, sinal da universalidade da Igreja, e como lugar de testemunho alegre de fé, demonstrando que é possível viver com pessoas de proveniências e culturas diversas, reunidas em nome do Senhor. A vida comunitária é chamada a mostrar como se vive concretamente o Evangelho. Como mulheres, nos parece que na Igreja temos condição de desenvolver mais intensamente a atitude de ‘reciprocidade’, colocando à disposição o dom que podemos oferecer ao humanizar a vida e ao qualificar as relações. A Evangelização será assim realizada, se alcançarmos com humildade as feridas da natureza humana e procurarmos curá-las na quotidianidade. Assim conseguiremos levantar os profundos questionamentos humanos, suscitando o desejo de Deus e abrindo assim a porta da fé. A vida consagrada está realizando uma caminhada de abertura, relacionando-se sempre mais dentro da Igreja, no ambiente em que se vive, entre as diversas

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O texto original integral em italiano foi protocolado na Secretaria do Sínodo em 16.10.2012, como Arquivo UD-33 e publicado, em forma resumida, pelo Boletim Informativo 29, divulgado em 26.10.2012. 15

O n. 84 do Instrumento de Trabalho pertence ao capítulo II (‘Tempo de Nova Evangelização’) e encontra-se dentro do item intitulado ‘Transformações da Paróquia e Nova Evangelização’: aborda a falta de padres e problemas da pastoral vocacional. Por sua vez, o n. 114 pertence ao capítulo III (‘Transmissão da Fé’) e é o primeiro número do item intitulado ‘Chamados a evangelizar’ e trata da vida consagrada e evangelização.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS Congregações, para responder, em sinergia, às necessidades dos mais pobres. A Evangelização tem necessidade de canais de transmissão que tornem necessária uma ‘mediação cultural e educativa’ capaz de entrar nos cenários do mundo contemporâneo para encontrar os jovens e os mais pobres e oferecer-lhes propostas de crescimento humano e cristão. Como Consagradas Salesianas Filhas de Maria Auxiliadora (FMA) ‘evangelizamos educando’: estamos presentes nas novas fronteiras da cultura juvenil. A vida consagrada, não obstante a experiência de sua pobreza está impregnada de uma potente inspiração missionária. Como nossos fundadores, queremos ter palavras de entusiasmo apaixonado, capazes de nos fazer entender pelos nossos contemporâneos, sobretudo os jovens; ou melhor, para ‘transformar-nos em paixão e ardor’. Seremos, então, junto com os leigos, comunidades vocacionais, onde se vive a cada dia a surpresa de nos sentir amados por Deus e de levar a outros essa boa notícia; seremos antecipadoras de um futuro diferente: o futuro de Deus! Maria de Nazaré é para nós, mulheres consagradas, o modelo em quem nos inspiramos no empenho de humanizar as relações, de despertar para a vida e acompanhá-la rumo Àquele que é a vida.

10 CATEQUESE E A NOVA EVANGELIZAÇÃO Contribuições da II Assembleia Plenária do Episcopado Filipino Pe. Renato de Guzman, sdb

O Pe. Renato de Guzman, religioso salesiano, é assistente principal para a Pastoral do Instituto Técnico Dom Bosco de Makati City (Filipinas). Participou do Sínodo dos Bispos de 2012 como um dos 49 convidados na qualidade de ouvinte. Fez esse pronunciamento em inglês, já quase no final dos trabalhos sinodais, na manhã de 26 de outubro de 2012, sexta feira, no curso da XX Assembleia Geral do Sínodo.16 Durante os trabalhos sinodais em grupos Pe. R. Guzman participou do círculo linguístico inglês C.

1 EVANGELIZAÇÃO E CATEQUESE NA II ASSEMBLEIA PLENÁRIO DAS FILIPINAS Essa intervenção se refere ao n. 92 do Instrumento de Trabalho.17 Em 1991, a Igreja nas Filipinas convocou e celebrou sua II Assembleia Plenária (II APF), 29 anos após a abertura do Concílio Vaticano II. Nos atos e decretos dessa II APF encontra-se o projeto de evangelização em nosso Arquipélago para o terceiro milênio. Seu impulso renovou a evangelização em três áreas principais: a catequese, a liturgia e ação social. Destas três, a primeira a ser priorizada é a catequese renovada. O Instrumento de Trabalho no n. 92 menciona também a ligação entre a evangelização e a catequese, bem como entre os diversos aspectos relevados nessa aula sinodal.

2 TRÊS ASPECTOS DA CATEQUESE NOVA EVANGELIZAÇÃO

EM VISTA DA

A nova evangelização exige que a catequese esteja em constante renovação, assim como nós a experimentamos nas Filipinas. A catequese na Igreja tem muitas áreas que precisam ser renovadas. Com base na prática catequética nas Filipinas, permitam-me mencionar três áreas, a saber: (1) o primeiro anúncio e catequese, (2) a dimensão afetiva da fé na catequese e (3) catequistas como comunicadores do Evangelho. a) Primeiro anúncio e catequese É necessário que as pessoas envolvidas na catequese destaquem não só o seu conteúdo ou o seu método, mas também aquilo que é mais importante: seu objetivo de “levar as pessoas a entrarem em comunhão com Jesus Cristo” (Catechesi Tradendae, 5). Em vista da nova evangelização, a nossa catequese tem de deixar de ser apenas um ministério de instrução sistemática para ser um aprofundamento da fé. Enquanto nós catequistas nos esforçarmos para transmitir bem os ensinamentos de Jesus, é preciso prestar atenção para o objetivo da catequese, isto é: conduzir o catequizando para um encontro pessoal com Jesus Evangelizador. Precisamos descobrir como ajudar o catequizando a integrar o conhecimento da Fé, com a vida diária

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O texto original integral em inglês foi protocolado na Secretaria do Sínodo em 18.10.2012, como Arquivo UD-42 e publicado, em forma resumida, pelo Boletim Informativo 29, divulgado em 26.10.2012. 17

O n. 92 do Instrumento de Trabalho pertence ao capítulo III (‘Transmitir a Fé’) e faz parte da introdução a esse capítulo. Trata do conceito de “evangelização como o processo através do qual a Igreja, animada pelo Espírito, anuncia e difunde o Evangelho em todo o mundo; animada pela caridade, permeia e transforma toda a ordem temporal, assumindo e renovando as culturas. Proclama explicitamente o Evangelho, chamando à conversão”. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 94-107, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS através da promoção dos valores evangélicos, e a desenvolver as convicções de fé, como se conhece e se segue Jesus. Qualquer método catequético que usamos hoje será eficaz na medida em que os catequizandos forem capazes de se esforçar por pensar como Jesus, julgar como Jesus e viver como ele viveu (Diretório Geral para a Catequese, 53; Catechesi Tradendae, 20). Para que isso aconteça, os catequistas precisam verificar se houve o primeiro anúncio e o encontro pessoal com Jesus entre os catequizados. Como podem os catequizados estarem em contato e em comunhão com Jesus se eles não o encontraram primeiro? b) A dimensão afetiva da fé na catequese Esta segunda área de renovação da catequese hoje corresponde à primeira. Para ter certeza do primeiro anúncio ou do querigma, do encontro pessoal de Jesus e da comunhão com Ele, os catequistas têm de considerar seriamente o aspecto afetivo da formação da fé na catequese, tornando a experiência catequética menos abstrata e cerebrina, e mais carregada de valores, capaz de comover o coração. Como o Cardeal Donald Wurel já mencionou durante as intervenções livres nessa Assembleia Sinodal, existem muitos que estão sacramentalizados, mas não encontraram Jesus, assim como há também muitos que estão catequizados e têm Jesus em suas mentes, mas não em seus corações. Nas Filipinas, temos três grupos de catequizados: • Aqueles que conhecem a fé católica e mantêm as práticas católicas tradicionais, especialmente a devoção à Virgem Maria (Ang Mahal na Birhen)18 e aos santos. Eles conhecem e tem a experiência de fé fiducial, de coração, mas a um nível superficial, pois não tiveram aprofundamento sistemático. Eles pertencem àqueles cuja fé infantil não se transformou em fé adulta, como menciona Sua Santidade o Papa Bento XVI em uma de suas catequeses das quartas-feiras. Assim, quando os bispos pedem alguma vigília de oração por causa de problemas políticos ou religiosos, eles respondem e participam, mas não compreendem muito do que se trata. • O segundo grupo de catequizados são aqueles que tiveram ensino religioso nas escolas católicas e nas paróquias, mas estão em desacordo com os 18

ensinamentos da Igreja, especialmente com os bispos. Por exemplo: hoje eles são cidadãos e cidadãs que trabalham no Congresso Nacional, deputados e senadores; alguns fazem parte de grupos católicos que estão promovendo leis sobre o controle da natalidade, o que é contra a doutrina da Igreja. No entanto, esses legisladores católicos tiveram sua educação religiosa nas escolas católicas e alguns deles, ainda por cima, são professores de universidades católicas. Eles foram catequizados em sala de aula e sua fé permanece na mente ou no nível de conhecimento. Nossa II APF já tratou sobre este grupo que foi instruído na fé, mas não conseguiu formar e sustentar convicções de fé, bem como os valores de Jesus. “... Muitos dos egressos de nossas escolas (católicas) não parecem ter assimilado suficientemente os valores cristãos, de tal forma a renovar a vida cristã...” (II APF, 627). • E o terceiro grupo de catequizados são aqueles que tiveram uma boa formação cristã, consolidaram suas convicções de fé e estão realmente vivendo sua vida como amigos e discípulos de Jesus. Estes são os nossos homens e mulheres católicos que cresceram e desenvolveram a própria fé, tornando-a uma fé adulta e que testemunham uma intimidade e comunhão com Jesus, tanto em casa e na paróquia, como nos locais de trabalho. É exemplo de uma catequese integrada na mente, no coração, e também nas próprias atividades, como descrito em nosso Diretório Catequético. c) Catequistas como comunicadores do Evangelho Como pode a catequese ser uma experiência de conversão a Jesus e ter, ao mesmo tempo, dimensão intelectual e afetiva? A terceira área de renovação pastoral pode responder a esta pergunta. Quando os catequistas são formados como comunicadores, então eles se tornam evangelizadores comunicativos. À luz da nova evangelização, há necessidade de destacar a catequese como um processo de comunicação, de tal forma que os catequistas estejam preocupados não só em dominar a Bíblia e o Catecismo, além do uso de estratégias inovadoras de ensino, mas, sobretudo, estejam conscientes de promover em si as qualidades de Jesus Cristo, o

Sobre essa devoção mariana, cf. Carta Pastoral sobre a Virgem Maria da Conferência Episcopal Católica das Filipinas (ANG MAHAL NA BIRHEN: Mary in Philippine life today. A Pastoral Letter on the Blessed Virgin Mary Catholic Bishops’ Conference of the Philippines). Disponível em: http://www.cbcponline.net/documents/1970s/1975-mahal_na_birhen.html. Acesso em: 30 set. 2013 (nota do revisor).

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS Comunicador Perfeito (Communio et Progressio, 10). Os novos catequistas evangelizadores precisam ser considerados como pessoas de fácil comunicação, hábeis tanto na promoção da comunicação humana, quanto no das novas mídias da comunicação social durante a atividade catequética. Sendo comunicadores do Evangelho e destacando a catequese como um processo de comunicação, mais do que mestres da fé, os catequistas se transformam em educadores da fé. Assim, na formação dos catequistas, a teologia e a espiritualidade da comunicação são temas prioritários, juntamente com a tecnologia de comunicação.

CONCLUSÃO: CATEQUESE EDUCAR EVANGELIZANDO As três áreas acima discutidas na renovação da catequese em vista da nova evangelização são sugestões que visam tornar nossa catequese hoje verdadeiramente evangelizadora. Seria bom para nós, catequistas da nova evangelização, sermos conscientes de que educamos na fé enquanto evangelizamos, e evangelizamos [anunciamos a Boa Nova] enquanto educamos (Diretório Geral para a Catequese, 147).

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS A RADICALIDADE DO SEGMENTO DE CRISTO A perda que é puro lucro Solange Maria do Carmo*

1 EXIGÊNCIAS DO SEGUIMENTO DE JESUS, EM MC 8, 34-38, PRESENTES NA VIDA DE PAULO Na sociedade atual, falar de renúncia parece no mínimo fora de contexto ou coisa de reacionários que tentam implantar a qualquer preço uma espiritualidade do passado em tempos que são bem outros. Para os jovens, então, fruto de uma sociedade muito mais leve e condescendente que no passado, a renúncia soa como coisa de antiquário ou de museu: uma peça rara em extinção, sob os olhos curiosos do observador. Mas saibam nossos jovens que a palavra renúncia sempre frequentou o dicionário cristão. Não foi a Igreja quem a inventou; nem foi a Idade Média que a implantou no caminho do discipulado cristão. Não é a Igreja que, para recuperar sua imagem denegrida diante do mundo, volta a esta palavra para ganhar moral diante de seus seguidores. A renúncia nunca ficou fora do âmbito cristão e nem mesmo agora – quando se fala tanto em mudança epocal e consequentemente mudança de valores – a fé cristã pode riscar a renúncia de seu vocabulário, exilando-a para âmbitos rigoristas e ascetas. Basta um rápido olhar sobre a catequese dos sinóticos para perceber a importância da renúncia no seguimento do Nazareno. Diversas vezes a palavra aparece e, quase sempre, como exigência do seguimento do Homem de Nazaré. Em Mateus, Jesus exige que o jovem rico se desapegue de seus bens para segui-lo (cf. Mt 19, 1626); em Lucas, Jesus exige renúncia a comodidades e apegos para entrar na dinâmica do Reino (cf. Lc 9, 5762); em João, Jesus exige que Nicodemos renuncie a seus conhecimentos para nascer de novo (cf. Jo 3). São inúmeros os exemplos de renúncia exigidos dos que

desejam seguir Jesus. Os Evangelhos estão permeados de exigências de renúncia como condição para o seguimento do Nazareno. Mas é Marcos provavelmente o primeiro evangelista a delinear o caminho do seguimento com as exigências da renúncia. Depois, Mateus e Lucas vão seguir suas pegadas, com pequenas diferenças. Poucos anos depois da morte de Jesus, entrou no cenário cristão a figura de Paulo de Tarso, o perseguidor da Igreja nascente, que, depois de um encontro pessoal com o Ressuscitado no caminho de Damasco, converteu-se e se pôs a serviço do evangelho. Dos anos 49 até no máximo o ano 67, Paulo atuou como teólogo e escritor, evangelizador das nações, deixando-nos um legado considerável. Ainda que muitas das cartas a ele atribuídas tenham, depois de estudos mais recentes, se revelado como pseudopaulinas ou deutero-paulinas, 1 persiste a certeza de que Paulo escreveu muitas cartas às comunidades que fundara ou àquelas que ele assessorava por meio de notícias de seus companheiros. É o caso da Primeira Carta aos Tessalonicenses, a Carta a Filêmon, e as Cartas aos Romanos, aos Gálatas, aos Filipenses e as duas aos Coríntios. Há um consenso entre os exegetas de que essas cartas são autenticamente paulinas, assim como há acordo de que as pseudopaulinas têm influência do fariseu de Tarso, tendo sido escritas por correntes paulinas ou por algum secretário, ou alguém de seu círculo teológico. Os escritos de Paulo antecedem até mesmo os Evangelhos, podendo Paulo “ser considerado o pioneiro da reflexão cristã sobre o evento Jesus Cristo”.2 Sua morte é datada antes da redação final de Marcos (ano 70 dC). Marcos, provavelmente, teria

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Doutora em Catequese pela Faculdade dos Jesuítas (FAJE). Professora na área de Bíblica e Catequética no Instituto dos Religiosos (ISTA) e no Instituto Dom João Resende Costa da PUC-Minas. Artigo submetido à avaliação em 10.08.2013 e aprovado para publicação em 20.08.2013. 1

É o caso da Carta aos Colossenses, aos Efésios, a Segunda Carta aos Tessalonicenses, as duas a Timóteo e a Carta a Tito.

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CASALEGNO, A. O evangelho do amor fiel a Deus. São Paulo: Loyola, 2001, p. 9.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS conhecido Paulo, trabalhado com ele em uma de suas viagens e bebido de sua reflexão teológica.3 Mas, independente dessa hipótese aceita por biblistas renomados,4 é inegável a semelhança da pregação paulina com a pregação marcana. Konings cita pequenas aproximações (cf. 1Ts 4, 9 e Mc 12; 1Ts 4, 13-18 e Mc 13), perguntando se isso não é indício do “evangelho de Paulo”5 (cf. Gl 1, 8.11) transparecendo no Evangelho de Marcos. Comungamos dessa hipótese e ensaiamos uma aproximação entre Mc 8, 34-38 e alguns textos paulinos presentes em Fl 3, 1-14 e 2Cor 11, 21-28. O Evangelho de Marcos apresenta Jesus de Nazaré como o evangelho ou a boa nova do Pai. Seu texto centra-se na vida pública, paixão, morte e ressurreição de Jesus,6 não se atendo aos relatos de nascimento ou da infância (como Mt e Lc) ou mesmo aos relatos de aparições. 7 Para Marcos importa anunciar Jesus, respondendo à pergunta norteadora do seu escrito: “Quem é Jesus?”. Para dizer que Jesus é o Messias e o Filho de Deus, e consequentemente convidar os leitores ao discipulado, ou seja, ao seguimento do Homem de Nazaré, Marcos elabora um texto simples, enxuto, mas rico de detalhes e sutilezas. Todos que leem o seu Evangelho são interpelados a se colocar a caminho com Jesus, pois só é possível saber quem é ele ao longo da caminhada com o mestre. Este caminho tem, certamente, suas exigências. Marcos percebe que o seguimento de Jesus tem traços característicos próprios, por isso encaixa nos relatos

de “anúncio da paixão” as exigências necessárias do discipulado. Vejamos passo a passo o texto de Mc 8, 34-38.8 34a

Jesus chamou a multidão, juntamente com os discípulos, e lhes disse: 34b “Se alguém quiser seguir atrás de mim, renuncie-se a si mesmo, leve a sua cruz e siga-me”, 35 pois aquele que quiser salvar a sua alma a perderá; quem, porém, perder sua alma por causa de mim e do evangelho a salvará. 36 Pois qual a utilidade de um homem lucrar o mundo inteiro e sua alma ser danificada? 37 Pois que daria alguém dar [em] equivalente da sua alma?”

“Se alguém quiser seguir atrás de mim, renuncie-se a si mesmo, leve a sua cruz e siga-me” (v. 34b). Numa única frase, aparecem três imperativos: renuncie-se a si mesmo, leve a sua cruz e siga-me. Os três verbos aparecem precedidos de uma condicional: “Se alguém quiser seguir atrás de mim”. Ir atrás de Jesus não é imperativo. Ninguém está obrigado a segui-lo; a fé é proposta e por isso aparece apresentada como convite para quem quer, para quem se sente seduzido por seu apelo, por seu chamado. O discipulado não encontra sentido como algo imposto, não vem de fora, senão de uma adesão livre, pessoal e consciente pelo Filho de Deus, que livremente por nós se entregou, amando-nos até o fim, com morte de cruz. Se, para Marcos, o seguimento do Nazareno não é imperativo, o mesmo não pode ser dito da renúncia necessária para segui-lo. Uma vez declarada a

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Marcos, o evangelista, seria o João Marcos do qual fala Lucas no livro dos Atos dos apóstolos. Marcos aparece como companheiro da primeira viagem missionária de Paulo e é o pivô do desentendimento de Paulo com Barnabé por ocasião dos preparativos para a segunda viagem. Marcos desertou na primeira viagem e Paulo não o quer mais como companheiro, enquanto Barnabé insiste em mantê-lo na delegação. Cf. At 13, 1-13; 15, 36-41. 4

Cf. KONINGS, J. Paulo, Jesus e os Evangelhos. Theologica, 1 (2009) 13-27, p. 22.

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Todos nós sabemos que Paulo não escreveu um Evangelho. Não temos na Bíblia o “Evangelho segundo Paulo”, mas todo o tempo de seu apostolado Paulo pregou o evangelho. O “Evangelho de Paulo” salta de suas cartas, como a linha condutora do anúncio de Jesus Cristo, morto e ressuscitado, que o homem de Tarso não se cansa de anunciar. Poderíamos então dizer que Paulo tem sim um evangelho, mas não no gênero “evangelho”, ou seja, narrativo-teológico como Mt, Mc, Lc e Jo, mas no gênero carta, ou seja, exortativo-teológico. Transparece nos escritos paulinos Jesus de Nazaré, sua vida, paixão, morte e ressurreição. 6 Relato também chamado de querigma. Cf. KONINGS, J; CARMO, S. M. Marcos, Lucas e o querigma da salvação universal. Revista Eclesiástica brasileira 273 (2009) 103-119. 7

Os relatos de aparições em Marcos presentes no capítulo 16, versículos 9 a 20, apesar de canônicos não pertencem originalmente ao Evangelho de Marcos. São acréscimos posteriores da comunidade que, tendo conhecido os diversos relatos dos outros evangelhos, faz um resumo das aparições e encaixa-os no final do texto, como uma espécie de epílogo. Uma analise mesmo superficial mostrará a semelhança das notícias de aparições em Marcos com os relatos de aparições presentes nos Evangelhos de Mateus, Lucas e João. 8

Para citar Mc, Lc e Mt, seguimos Konings (cf. KONINGS, J. Sinopse dos Evangelhos. São Paulo: Loyola, 2005). Para as Cartas Paulinas, cf. BÍBLIA: Tradução CNBB. 5. ed. São Paulo: Canção Nova; Brasília: CNBB, 2007. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 108-113, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS disposição de seguir Jesus, a renúncia torna-se exigência do caminho a ser percorrido. Ela não tem valor em si mesma, mas em vista do seguimento ao Mestre que vai à frente enfrentando a paixão e ensinando o caminho do amor e da fidelidade. Caso contrário, a renúncia seria confundida com masoquismo, com autopiedade ou coisas do gênero. Acontece que a adesão à pessoa de Jesus e ao seu Reino tem sabor de radicalidade e comporta exclusividade: ou se pertence a ele ou não se faz parte do grupo dos “com Jesus”. Marcos gosta desta radicalidade e ela aparece em outros relatos quando, por exemplo, ele opõe a família biológica de Jesus, representada por sua mãe e seus irmãos, à família escatológica, composta pelos seguidores do Mestre (cf. Mc 3, 20-35). O argumento para a radicalidade do seguimento vem logo em seguida na perícope estudada. Marcos faz questão de explicar tudo direitinho para que não haja equívocos. Que ninguém abandone uma migalha que seja para depois reclamar da escolha feita. O Mestre de Nazaré não prometeu vida preferiria tranquila, nem benesses advindas do seguimento. Quando Pedro reclama seus direitos em nome do que deixou para trás, Jesus esclarece: “Todo aquele que deixa casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos e campos, por causa de mim e do evangelho, recebe cem vezes mais agora, durante esta vida – casas, irmãos, irmãs, mães, filhos, e campos, com perseguições – e, no mundo futuro, vida eterna” (Mc 10, 29-30). Nenhum dos que seguiam Jesus devia estar iludido, achando que haveria privilégios por causa do seguimento. O argumento da exigência aparece em Mc 8, 35 com uma explicação: “Pois aquele que quiser salvar a sua alma a perderá; quem, porém, perder sua alma por causa de mim e do evangelho a salvará” (v. 35). A negação de si mesmo, a tomada da cruz e o seguimento que são exigidos no versículo anterior ganham sentido quando entendidos por uma causa maior: a salvação da própria vida (alma), perdida em meio a tantas tentativas de encontrar-se. Ao ‘perder-se’ a si mesmo, o discípulo se encontra numa singularidade sem par, advinda de uma causa mais nobre que não a procura narcisista de si mesmo: Jesus e seu evangelho. Não há argumentação mais clara. A renúncia encontra-se no imperativo não por causa daquele que é seguido, porque ele é intransigente ou perverso, mas por amor ao seguidor. A renúncia não visa o engrandecimento do mestre, mas

ela se impõe por limitação do discípulo; não por capricho de quem chama, mas por fragilidade daquele que foi chamado. A renúncia não se impõe por si mesma, não tem estatuto próprio, não é valor em si mesma. Ela existe em função daquele que renuncia, pensando unicamente no bem do discípulo. Vale observar a delicadeza marcana “quem quiser salvar a sua alma...”. Querer salvar a própria vida é escolha pessoal, é decisão que cada um deve tomar livremente, sem coações, assim como também a decisão de seguir atrás do Mestre. Perdê-la por causa de Jesus e do evangelho, porém, não é ação própria, mas obra do Espírito que age na vida daquele que aceita a proposta de Jesus. Marcos afirma: “quem perder sua alma por causa de mim e do evangelho”. Note que o evangelista não escreve: “quem quiser perder sua vida por causa de mim e do evangelho”. Marcos não diz “aquele que quiser perder sua vida”, pois não parece razoável alguém querer perder-se. Ninguém quer perder-se, mas achar-se; ninguém quer perder a alma ou a vida, mas ganhá-la. Marcos dá a “perdição de si mesmo” como um dado já construído anteriormente sobre o apelo do seguimento (quem perder). No ato da livre decisão de seguir o mestre, o espírito age e capacita para a renúncia. A condição de possibilidade do perder-se não se encontra nas forças do discípulo, mas na dynamis daquele que nos amou e nos chamou ao discipulado. E Marcos ainda interroga: “Pois qual a utilidade de um homem lucrar o mundo inteiro e sua alma ser danificada? Pois que daria alguém [em] equivalente da sua alma?” (vv. 36-37). O evangelista não vê nenhuma vantagem em ganhar o mundo inteiro, se a pessoa perder sua alma, ou seja, sua identidade de filho no Filho, cuja vocação primeira é amar e doar-se como Aquele que o filiou. Ter a alma danificada parece indicar a fuga da vocação mais genuína;9 a perda daquela interioridade que nos é mais autêntica, mais particular. Não há nada que possa ser dado em troca desse bem maior: o de ter a posse de si mesmo para se ofertar a outrem, num eterno perder-se para se encontrar. Marcos está convicto de que, assim como Jesus tem posse de si para se perder por amor aos seus (neste gesto de entrega se encontra sua identidade de Filho de Deus, pois Jesus significa Deus salva), cada discípulo deve ter posse de sua vida para entregá-la em oblação.

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Como o nome Jonas, que significa ‘a pomba’, que em livro de mesmo nome é apresentado como aquele que bate asas para outros campos, fugindo de Deus. 10

Apesar de os exegetas estarem convictos de que é mais fácil acrescentar algo à Escritura que suprimir alguma de suas expressões.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS Mateus e Lucas foram fidelíssimos a Marcos ao fazerem o mesmo relato. O texto se encontra quase sem alterações, salvas raríssimas exceções. A primeira é que Mt 16, 24 e Lc 9, 23 não utilizam o verbo seguir como no v. 34 de Marcos (Se alguém quiser seguir atrás de mim...). O convite de Jesus se dá com o verbo vir (Se alguém quiser vir atrás de mim...). Uma distinção oportuna para que a condição do convite e os imperativos do convite não se confundam. Ir atrás de Jesus é escolha; renunciar, levar a cruz e seguir é exigência para quem se pôs a caminho com ele. A segunda diferença é que Mt 9,25 e Lc 19,24 não usam a Palavra evangelho como faz Mc 8, 35 (quem perder sua alma por causa de mim e do evangelho). Mateus e Lucas ignoram essa expressão. Para eles, a perdição de si mesmo irrompese como um dado exclusivamente por causa de Jesus. A princípio, diríamos que Mateus e Lucas suprimiram a expressão ‘e do evangelho’.10 A hipótese que prevalece é a de que, com o passar do tempo, as comunidade cristãs de Mt e Lc, que tiveram seus escritos mais ou menos dez anos depois de Marcos, tendo já no seu seio a convicção de que Jesus é o evangelho do Pai, não viam mais necessidade de afirmar esse detalhe. Mas poderíamos também dizer que Mc originalmente não escreveu “por causa de mim e do evangelho”, mas apenas “por causa de mim”, a cujo texto Mateus e Lucas teriam sido fieis. Mais tarde, a comunidade marcana, querendo realçar o valor do evangelho que os norteava, teria acrescentado a expressão “e do evangelho” ao texto. A discussão continua em aberto. Sabemos que Marcos provavelmente escreveu seu Evangelho na década de 60, ou a muito tardar no ano 70. Sua comunidade teria conservado a radicalidade do discipulado, ‘tematizando-a’ como “renunciar a si mesmo, tomar a cruz e seguir o Mestre”. Se os verbos renunciar, tomar (ou abraçar) e seguir são de máxima importância no texto de Marcos, mais importância ainda se encontra no complemento destes verbos: renunciar a si mesmo, levar a cruz e seguir o mestre. Renunciar a si mesmo é coisa para fortes. O verbo renunciar costuma cheirar mal. Renunciar às regalias, à riqueza, ao poder, ao comodismo, à vida tranquila, até à família... Tudo isso faz pensar. Tudo isso gera constrangimentos. “Por que não podemos seguir Jesus com todas as tralhas e penduricalhos que temos atrelados a nós?”, nos perguntamos. Parece-nos

absurdo que, para seguir Jesus, tenhamos que abrir mão de muitas coisas que nos são importantes. Se já traz alguma complicação a renúncia de bens, pessoas, hábitos e outras coisas adquiridas ao longo da vida, quanto maior constrangimento nos causa ouvir Marcos falar que o objeto indireto do verbo renunciar não se refere a algo exterior a nós, mas a nós mesmos. Nós somos a única coisa que, aparentemente, possuímos. Tudo o mais nos é tirado com tanta folga, com tanta facilidade. Então nossa tendência é nos reter, nos poupar, nos salvar. Mas é justamente nós mesmos que somos o objeto da renúncia que Marcos propõe. Renunciar a nós mesmos, ou ao que pensamos ser nós mesmos, é condição para ficar cheios do Espírito e dar conta do discipulado. Por nossa própria força jamais conseguiríamos viver a proposta de Jesus. Levar a cruz também não é tarefa fácil. Mas o que é a cruz? A cruz, berço no qual o Filho descansou sua cabeça nos ombros do Pai, já aparece neste texto como algo bendito, algo a ser abraçado e não como algo repulsivo ou maldito. No tempo em que Marcos escreveu seu Evangelho, a comunidade cristã já havia ressignificado a cruz que, de maldição, passou a benção.11 A cruz aparece aqui como aquilo que nos atrela ao Filho. Como Jesus assumiu sua condição humana, não se esquivou do preço de ser ele mesmo (o Filho de Deus e o Messias), assim cada um de nós tem que se assumir, com todas as mazelas e dores que fazem parte de nossa vida. Para Marcos, a cruz não é uma predestinação de Deus, nem uma provação, nem um infortúnio. Não é o marido que bebe nem o filho que se droga, nem um pai ou familiar doente. Ela é nossa própria vida que carregamos sobre nossos ombros, sem declinar do que ela nos exige. Ela é a maca do paralítico que tem de ser colocada nos ombros e não pode ficar para trás (cf. Mc 2, 11-12). Ela é nossa história, nossa identidade, nossa marca. Ela diz respeito a nossos limites, a sermos nós mesmos, coisa nada fácil. E certamente tem a ver com as pessoas que nos cercam. Ser nós mesmos quando vivemos sozinhos não parece fardo tão pesado, mas ser nós mesmos nos limites do outro que também quer e deve ser ele próprio já se tornou tarefa bem mais árdua. Mas é justamente na relação com o outro e no confronto com ele que sabemos quem somos e somos instigados a assumir nossa história pessoal. O outro nos revela quem somos e até nos ajuda, como o Cirineu, a carregar nossa cruz.

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Pouca probabilidade encontramos em atribuir tais palavras ao Jesus histórico; no seu tempo a cruz era algo ignominioso, e abraçá-la era algo improvável. A radicalidade do seguimento se encontra nele depositada, mas a formulação parece advinda de uma teologia cristológica posterior. Partilhamos a tese de Konings quanto à “continuidade entre a pregação de Jesus, a pregação apostólica refletida nos Evangelhos e a pregação de Paulo” (KONINGS, Paulo, Jesus e os Evangelhos, p. 15). São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 108-113, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS Seguir o mestre é uma constante no Evangelho de Marcos. O verbo seguir pede objeto direto. Seguir o que ou quem? Para Marcos, seguir Jesus e só Jesus, mais nada nem ninguém mais. Não é à toa que o centro do seu Evangelho é a profissão de fé de Pedro, seguida do ‘vai para trás de mim, satanás’ que Jesus lhe dirige quando este quer passar à frente do mestre ou se colocar ao lado dele ensinando-lhe o destino. Para Marcos, o discípulo vem sempre atrás do mestre, não em outra posição qualquer. O mestre vai à frente mostrando o caminho, e o discípulo vai atrás, nas pegadas do mestre. Daí a exigência marcana do ‘siga-me’. Assim como aparecem bem visíveis em Marcos as exigências do ir atrás de Jesus, uma leitura atenta das Cartas Paulinas aponta para a mesma radicalidade marcana, tendo o próprio apóstolo Paulo como paradigma daquele que renunciou a tudo, tomou sua cruz e se pôs a seguir Jesus. Não são poucas as passagens em que o apóstolo adverte as comunidades a deixar tudo por causa de Cristo. É só conferir Filipenses. Ele convida a comunidade de Filipos (cf. Fl 2, 1-5) a renunciar a toda glória a exemplo de Jesus (cf. Fl 2, 6-11) e dele próprio (cf. Fl 3, 7-14). Depois de falar da kenose de Jesus, de seu rebaixamento, de sua total renúncia a qualquer privilégio divino ao assumir a condição humana, Paulo fala de seu próprio rebaixamento. O Apóstolo dos gentios estava bem consciente de que a experiência do CrucificadoRessuscitado relativiza todas as coisas. Diante do conhecimento de Cristo, o bem supremo, toda renúncia se torna pequena. Essa experiência apresenta-se com tal força que Paulo abre mão de várias conquistas importantes para abraçar um bem maior. Vejamos Fl 3, 4-16 e 1Cor 11, 21-33. Ao ter seu encontro com Jesus Ressuscitado, Paulo entendeu bem as três exigências do discipulado, presentes em Mc 8, 34b: renunciar a si mesmo, tomar a cruz e seguir atrás do Crucificado.

2 RENUNCIAR A SI MESMO Em confronto com os judaizantes que se ufanam de seus privilégios de povo eleito, Paulo adverte que também ele teria de que se orgulhar e não seria sem motivo se colocasse sua confiança na carne (cf. Fl 3, 34). Ele foi circuncidado ao oitavo dia, era da raça de 12

Israel, da tribo de Benjamim, um verdadeiro hebreu, filho de hebreu, observador da Lei de tal forma que seu zelo o tornou perseguidor da Igreja; uma pessoa irrepreensível diante da Lei (cf. Fl 3, 5-7; 1Cor 11, 22). Mas tudo que antes era ganho apresenta-se agora como prejuízo por causa de Cristo.12 Paulo compreende que aquele que se apresenta diante de Deus com o coração cheio demais sai vazio da sua presença. Não há mais espaço para a ação de Deus. Para deixar Deus agir, Paulo sabe que deve passar por uma verdadeira kenose, a mesma kenose experimentada pelo Verbo de Deus ao se fazer homem. Tendo abandonado os privilégios divinos, o Filho se faz homem e tem que ser ‘filializado’ na carne, num processo contínuo de aprendizagem da fidelidade por meio da obediência. Esse processo de ‘filialização’ só se dá no esvaziamento total de si mesmo, na renúncia absoluta de todo privilégio. Paulo, que tão bem descreve a kenose divina, assume a kenose como sua tarefa. Diante do bem supremo experimentado, que é o conhecimento do Cristo Jesus (vv. 7-8), tudo virou esterco, lixo: nada mais tem significado a não ser seguir e servir Jesus no despojamento total de si mesmo: a kenose paulina. E o apóstolo dos gentios não narra com pesar suas perdas. Ao contrário, sabe que este é o único caminho possível do seguimento: “Por causa dele, perdi tudo e considero tudo como lixo, a fim de ganhar Cristo e ser encontrado unido a ele” (Fl 3, 8-9). Paulo se deixa perder por amor a Cristo. Ele comunga com Marcos da mesma teologia: perder por causa de Cristo é tudo ganhar. Na entrega radical da vida ao Crucificado, encontra-se a identidade mais profunda do seguidor, a singularidade, a interioridade antes perdida nas garantias da carne. A garantia da justificação em Cristo suplanta a pretensa justificação advinda da observância da Lei (cf. Fl 3, 9). A comunhão com Cristo, o ser encontrado unido a ele, não tem preço. Vale qualquer preço, qualquer renúncia.

3 TOMAR A CRUZ Renunciar a si mesmo só tem sentido se em prol de abraçar algo maior e melhor do que aquilo que foi deixado para trás. Não há para o seguidor do Crucificado outra força maior que a força da cruz que o próprio Jesus abraçou livremente em favor dos seus como sinal de amor e fidelidade. Paulo, ciente disso, abraça sua cruz

Dunn apresenta o questionamento de alguns autores se, de fato, Paulo deixou o judaísmo para trás. Cf. DUNN, J. D. G. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 49.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS e faz comunhão com os sofrimentos do Mestre e com sua morte, rumo à ressurreição que também ele espera (cf. Fl 3, 10-12). Paulo se assume, assume seu passado de perseguidor, de fariseu zeloso etc. e sabe que tudo isso tem um preço. São muitos os sofrimentos que advém de sua história. Negá-la seria mais fácil, mas não mais cristão. Paulo abraça sua cruz. A cruz de Paulo se revela no seu ministério: fadigas, prisões, açoites, perigo de morte, chicotadas, apedrejamento, naufrágio, numerosas viagens, perigos por toda parte – nos rios, na cidade, no deserto, no mar –; da parte de ladrões, dos irmãos de estirpe, dos gentios, dos falsos irmãos. E mais: vigílias, duros trabalhos, fome, sede, jejum, frio, nudez. E a preocupação cotidiana com todas as Igrejas (cf. 1Cor 11, 23-29). Tudo isto mostra quem Paulo é, sua índole, sua personalidade, seu ser, o preço a pagar por suas escolhas. De nenhuma cruz imposta pelo apostolado, o Apóstolo se esquivou. Tomou-as sobre os ombros e levou-as até o fim do caminho, atrás do mestre Jesus. Compreendeu que seus sofrimentos “são participação nos sofrimentos e na morte de Cristo”.13 Paulo vai entender, na dor do apostolado, como é duro recalcitrar contra o aguilhão (cf. At 26, 14).

4 SEGUIR JESUS A terceira condição colocada por Marcos diz respeito ao seguimento contínuo. Seguir Jesus não é apenas colocar-se atrás dele ocasionalmente; é continuar a correr sempre no desejo de alcançá-lo (cf. Fl 3, 12),

lançando-se em direção à meta, para conquistar o prêmio que Deus nos chama a receber, o próprio Cristo Jesus (cf. Fl 3, 13-14). Paulo está consciente dessa exigência cristã e dela não abdica. Insiste que persegue o alvo, como um atleta rumo ao prêmio. Ele corre sempre atrás do prêmio, que é o próprio Cristo ressuscitado. Não se põe em pé de igualdade com ele, não abdica de ouvir sua voz e se dispõe a sempre obedecê-la. Paulo sabe que o lugar do discípulo é atrás do mestre, e não se digna tentar outro lugar no caminho que não este. Retomando Marcos, percebemos que o renunciar a si mesmo, o tomar a cruz e o seguir Jesus são em prol do discípulo. Podemos afirmar que Paulo, com certeza, o compreendeu. Nenhuma perda significa de fato perda para ele; ao contrário, é lucro. Nenhuma renúncia seria maior do que a de não ser discípulo autêntico e ter sua singularidade cristã comprometida por causa de seus apegos. Nenhuma cruz pesa mais do que a de não poder seguir o mestre em amor e fidelidade. Paulo e Marcos comungam da mesma fonte: entendem os imperativos do discipulado como consequências naturais da opção abraçada. Paulo, em sua vida entregue ao apostolado, é ícone das exigências radicais de Mc 8, 34-38. Oxalá o exemplo de Paulo e o relato das exigências de Marcos motivem nossos jovens a renunciar a todo impedimento para seguir Jesus. Nesta Jornada Mundial da Juventude, percebam eles o apelo que Jesus Cristo lhes faz ao discipulado. Para tal, será sempre atual e necessária a renúncia. Ecoa forte o que escreveu Marcos: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me!”.

REFERÊNCIAS BÍBLIA: Tradução CNBB. 5. ed. São Paulo: Canção Nova; Brasília: CNBB, 2007.

KONINGS, J. Paulo, Jesus e os Evangelhos. Theologica, 1 (2009) 13-27.

CASALEGNO, A. O evangelho do amor fiel a Deus. São Paulo: Loyola, 2001.

______. Sinopse dos Evangelhos. São Paulo: Loyola, 2005.

CERFAUX, L. O cristão na teologia de São Paulo. São Paulo: Paulinas, 1976.

______; CARMO, S. M. Marcos, Lucas e o querigma da salvação universal. Revista Eclesiástica brasileira 273 (2009) 103-119.

DUNN, J. D. G. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulinas, 2008.

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CERFAUX, L. O cristão na teologia de São Paulo. São Paulo: Paulinas, 1976, p. 125. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 108-113, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS JUVENTUDE, EDUCAÇÃO NA FÉ E VOCAÇÃO Ensaios e perspectivas Sival Soares*

INTRODUÇÃO Numa sociedade plural, cujos rostos dos povos são diferentes, as instituições diversas e as opiniões e formações multifacetadas, o jovem, camada social e cultural sobre o qual tecemos nosso discurso, sofre o impacto da pluralidade em sua formação religiosa, cultural e social. Nesse contexto, propor um processo de educação na fé preocupada com a dimensão vocacional, torna-se um desafio de ordem primária para nossa Igreja. Nosso objetivo é compreender este impacto e propor a animação vocacional na catequese como forma de preparar nossos jovens para serem felizes e realizados em sua vocaçãomissão. Mas, vamos por parte! Em primeiro lugar, convém discernir os caminhos das juventudes na atualidade, especialmente os jovens e os grupos do interior da nossa Igreja. Este será o objeto da nossa preocupação neste momento inicial do artigo. Depois, seguiremos tentando apresentar uma razoável definição e um delineamento do processo de educação na fé, suas características e suas preocupações. Tal procedimento pode nos ajudar a propor uma catequese vocacional. Serão estes os temas a serem tratados, respectivamente, na segunda e terceira partes do nosso ensaio em perspectivas. Ensaio porque não é a peça teatral, nem a obra artística em si. São insights que desejam apontar-nos direções. Ou melhor: perspectivas possíveis para uma catequese vocacional, ‘entre’ – ‘com’ – e ‘para’ os jovens. Na conclusão apresentamos sete propostas para o trabalho com jovens, na catequese, dando ênfase à dimensão vocacional.

1 UMA JUVENTUDE PLURAL Parece ambíguo falarmos de ‘uma’ juventude ‘plural’. Sendo ‘plurifacetária’, deveríamos chamar – como assim preferem certas correntes que trabalham com jovens – juventudes;1 se é singularizada, no sentido originário do termo, parece não ser fiel à pluralidade de faces joviais espalhadas no seio da sociedade. Una e múltipla, como pensavam os gregos, é a realidade. Assim também parece pensar a visão sistêmica quem considera as partes em sua singularidade complexa e o todo em sua harmonia integral. Podem-se incluir nessa visão, também os jovens! Mas, quem são esses sujeitos aos quais nos direcionamos? Uma primeira resposta pode ser contrária: não são os velhos; nem os adultos; nem os mortos. São seres existentes, presentes no mundo, cuja marca que delimita sua ‘categoria’ de jovens é, num primeiro momento, a idade. Não dá para excluirmos esse dado de faixa etária. Mas também não podemos tornálo absoluto! A Conferência das Nações Unidas chama de jovens aqueles que têm entre 18 e 29 anos. Mas precisamos compreender as juventudes como ‘momento existencial’, mais do que a soma de anos. Deste ponto de vista, compreendemos os jovens ou a etapa da juventude como uma “fase importante de elaboração de projeto de vida, fase em que os valores sociais interpelam as pessoas e a educação acontece segundo a identidade dos grupos, particularmente das tribos”.2 Ora o tema do projeto de vida na etapa de vivência da juventude nos parece fundamental tanto na perspectiva catequética quanto vocacional. Ademais, se a identidade se constitui

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Religioso rogacionista, bacharelando em teologia no UNISAL – Centro Universitário Salesiano de São Paulo – Campus Pio XI, bacharelado em Filosofia pela Faculdade Vicentina (Curitiba). Artigo submetido à revisão em 29.07.13 e aprovado em 10.08.2013. 1

A terminologia deseja contemplar os vários rostos dos jovens e evitar leituras unilaterais das juventudes. Considera, assim, a pluralidade dos grupos juvenis, sua complexidade e sua diversidade – tanto de expressão como de ‘modo’ de ser. A compreensão das Juventudes, em muito, está baseada na teoria sistêmica, segundo a qual, para se perceber a totalidade de uma realidade é necessário compreender a complexidade das partes. A despeito deste tema, sugerimos a leitura do artigo Juventudes: entendêlas a partir da escuta de seus sentimentos, do Fr. Rubens Nunes Mota, psicólogo formado também em filosofia, teologia e especialista em terapia sistêmica. O referido artigo foi publicado pela Conferência Nacional dos Religiosos do Brasil no livro Juventudes: o exercício da escuta no processo de aproximação, pela Editora CRB em 2010.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS neste período (especialmente a identidade social, cultural e eclesial), nos interessa muito pensar os grupos, aliás, as tribos do interior da Igreja. Para nossa compreensão e delimitação, queremos nos referir tão somente aos jovens com os quais temos acesso frequente: os de ad intra. Mas isso não significa que não devamos considerar os de ad extra do meio eclesial. Nossa opção se presta a fins pedagógicos. A pluralidade das juventudes no seio da Igreja se expressa ora em movimentos (de Congregações, de correntes específicas de espiritualidade etc.), ora em pastorais, ora em eventos pontuais ou agremiações com objetivos sociopolíticos.3 Nos movimentos há muitas riquezas e profundos desafios. Entre as riquezas, podemos destacar a capacidade e a técnica de arrebanhamento de jovens que, não obstante as múltiplas ofertas nos ambientes sociais e culturais desvinculados da Igreja, encontram nos movimentos espaço de cultivo da espiritualidade, troca de experiências, partilha de vida, momentos de integração e formação não somente catequética, mas também cultural e sociopolítica. Não é demais reconhecer, com merecida veemência, o quanto movimentos de Congregações ou Institutos Religiosos, Carismáticos, de Novas Comunidades, entre outros, têm conseguido desenvolver trabalhos pontuais, em pequenos grupos e em grandes massas, com êxito e competência. Isso sem falar no processo de formação e evangelização junto aos jovens. Não se pode, também, nivelar jovens carismáticos e jovens ligados às Congregações. Há diferenças. Mas o que desejamos é destacar a contribuição dos movimentos e instituições eclesiais que trabalham com as juventudes. É expressiva a experiência, por exemplo, dos Maristas, dos Salesianos e dos Rogacionistas no acompanhamento e animação junto aos jovens. Apesar de haver muitos desafios, cada Congregação ou movimento contribui, à sua maneira, com a empreitada de anunciar a todos os povos a Boa Nova e a proximidade do Reino de Deus. Tais instâncias eclesiais fazem ecoar a

seguinte verdade: “a fé cristã não é somente uma doutrina, uma sabedoria, um conjunto de regras morais, uma tradição. A fé cristã é um encontro real, uma relação com Jesus Cristo”. 4 Na mesma medida em que, talvez, haja êxito e competência, há também riscos e desafios, dentre os quais gostaríamos de destacar três que constituem, sob nosso ponto de vista, um empecilho à proposta de Jesus e da Igreja. O primeiro deles é o fechamento. Não são poucos os grupos juvenis que se isolam e até se rivalizam uns com os outros, fechados num tipo de espiritualidade (carisma específico ou visão de Igreja), de valores e de atuação social. Tal procedimento, muito comum especialmente em movimentos subjetivistas ou em Congregações e Institutos muito radicalizadores em suas propostas carismáticas, pode implicar dificuldades tanto no interior da Igreja (dificuldades relacionais) quanto no testemunho de comunhão e de participação, testemunho que todos nós somos convidados a dar ao mundo. Nunca é demais lembrar que o desejo de Jesus é que sejamos um (cf. Jo 17, 20-26), testemunhemos a Luz e anunciemos o tempo da graça (cf. Lc 4, 17-19). Outro desafio ou limite consiste na caminhada paralela que muitos movimentos fazem em relação à proposta da Igreja. Essa postura também impede a comunhão. Mas tem uma raiz mais profunda: a competição que há, muitas vezes, em movimentos que trabalham com jovens. Pastorais historicamente mais sociais tendem a rejeitar e até desprezar movimentos recentes que versam sobre a primazia da dimensão espiritual. O inverso também ocorre. Aqui, convém recorrer novamente à experiência de fé do Segundo Testamento, recordando a necessidade de equilibrar a dimensão espiritual com a atividade apostólica (cf. Tg 2,14-17) – que inclui, também e, sobretudo, o compromisso social. Temos conquistas e limites em todos os ambientes. Não só a Igreja padece pela falta de comunhão, paralelismo de caminhadas, competições de movimentos... No fundo, a crise se origina no interior dos nossos corações e das nossas mentes e, em boa parte das vezes, se exprime no locus de vivência, de

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PRADO, Antonio Ramos. Relacionar-se para construir projetos e sonhos. In: Juventudes: o exercício da escuta no processo de aproximação. Brasília: Editora CRB, 2010, p. 42. 3

O Documento Evangelização da Juventude da CNBB traz importantes contribuições para conhecimento da realidade dos jovens no Brasil. Destacam-se os de movimentos ligados às Congregações e Novas Comunidades e também os das tradicionais pastorais da juventude (PJE, PJMP, PJU, PJ, entre outras). Cf. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Evangelização da juventude: desafios e perspectivas pastorais (Documentos da CNBB, 85). São Paulo: Paulinas, 2007. 4

SÍNODO DOS BISPOS. A nova evangelização para a transmissão da fé cristã (Instrumentum Laboris). São Paulo: Paulinas, 2012, n. 18. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 114-121, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS construção da vida. A Igreja, sacramento da salvação, é “sinal e instrumento da união íntima com Deus e da unidade de todo gênero humano”.5 A Igreja é gruta (kefas), aconchego da humanidade, espaço de construção da vida e, como tal, experimenta as angústias e esperanças das pessoas.6 Importa salientar que o processo de educação, compreendido não só como transmissão de conteúdos, mas, sobretudo, como interação das dimensões da vida em vista do aprendizado, ajuda-nos a crescer. Crescer e amadurecer em comunhão. Especialmente se esta educação recebe o predicativo ‘da fé’.

2 EDUCAÇÃO DA FÉ: DOM DIVINO E PROCESSO HUMANO A Tradição da Igreja sempre afirmou ser a fé um dom de Deus. Mas não se trata de uma afirmação vaga. A fé também é ‘adesão’ livre da parte de cada ser humano. Sendo algo ao qual se adere na liberdade deve também comportar o conhecimento prévio do que se está aderindo. Aqui, a fé adentra pelas veredas humanas. A sabedoria bíblica e eclesial afirmou por muito tempo que a fé entra pelo ouvido. A esse adágio seguiu-se a categoria teológica auditus fidei. Significa etimológica e teologicamente ouvir a fé. Escutar aquilo que nos é dito, que entra pelos nossos ouvidos humanos e depois é processado pela nossa inteligência, 7 pela nossa capacidade de compreender (intellectus fidei) aquilo que nos foi transmitido. Dom de Deus, a fé nos entra pelo ouvido, perpassa nosso corpo, nossos sentidos, e ganha sentido em nossa vida. De modo que crer em Deus é, de certa maneira, ouvir sua Palavra, compreendê-la sempre mais (a isso chamamos busca da Verdade) e agir a partir d’Ele, que é Mistério e Amor. A educação, por ser processo, não só de aprendizado de conteúdos, mas de vivência, comporta a escuta, a compreensão e a adesão prática. No caso da nossa compreensão eclesial, a catequese enquanto

processo de educação da fé, nos permite experimentar a realidade de Deus, Mistério e Amor, por meio da escuta e da compreensão. O Ritual de Iniciação Cristã de Adultos (RICA) ensina que o processo de catecumenato ou de educação na fé nos ajuda a refletir sobre a ‘excelência do mistério pascal’ e renovar nossa conversão através de ‘etapas ou passos’ pelos quais caminhamos sempre na intenção de amadurecer a fé.8 Nossos jovens, com suas múltiplas faces, estão sedentos desse ato de amadurecimento na fé, por etapa, no exercício da escuta e da compreensão. Talvez tenhamos de descobrir as novas maneiras de chegar aos ouvidos e às mentes juvenis. De certo, muitos palavreados não atraem mais. Urge um mergulho no Mistério! O testemunho de oração, os gestos de caridade e a presença fraterna podem ser sinais desse mergulho. E tais sinais, por mais que duvidemos, falam aos jovens na atualidade! Muitas são as iniciativas provenientes do mundo juvenil que renovam o rosto da nossa Igreja. Entre as iniciativas é mister ressaltar o testemunho dos jovens no uso das novas tecnologias para evangelizar, a criatividade juvenil nas manifestações culturais (teatro, dança, música, pintura ou escultura) posta a serviço das liturgias, a presença evangelizadora em shoppings, praças e baladas, bem como junto aos pobres nas grandes cidades etc. Estas iniciativas fazem valer o que dizem os bispos ao afirmarem que a Igreja é sensível à realidade plural da nossa sociedade, especialmente à evangelização nas fronteiras, quer dizer, a evangelização voltada aos temas relativos à questão “da mulher, da miséria, da fome, da corrupção, do mundo das drogas e da violência, das minorias excluídas”.9 Com estes sujeitos, muitas Congregações e movimentos vêm desenvolvendo trabalhos significativos. São as formas criativas de anunciar Jesus Cristo e solidificar a fé, de propor a audição ou visão das ‘coisas do alto’ tão caras e sagradas para todos nós. No campo midiático muitas são as emissoras de rádio e TV, além das mídias virtuais, que se comprometem com a divulgação dos valores

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CONSTITUIÇÃO Lumen Gentium sobre a Igreja. In: CONCÍLIO VATICANO II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: 2007, n. 1. 6

Cf. CONSTITUIÇÃO Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo de hoje. In: CONCÍLIO VATICANO II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: 2007, n. 1. 7

Cf. LIBÂNIO, João Batista; MURAD, Afonso. Introdução à teologia: perfil, enfoque, tarefas. São Paulo: Loyola, 2007, p. 94.

8

Cf. RITUAL ROMANO. Ritual da Iniciação Cristã de Adultos. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2009, nn. 4-7.

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CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Diretório nacional de catequese. Texto aprovado pela 43ª Assembleia Geral. São Paulo: Paulinas, 2007, n. 91.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS evangélicos. Mesmo com alguns limites, a evangelização nos meios impressos e virtuais tem sido uma prática comum nas paróquias e em outras instituições católicas, como escolas, obras sociais, hospitais, casas de acolhida etc. Ademais, também nos parecem válidas as experiências de formação cultural dos jovens. Grupos de teatro que anunciam a Boa Nova pelas técnicas cênicas sempre tornaram nossas formações e nossos espaços celebrativos mais atraentes e participativos. O mesmo vale para a música e as composições católicas que a cada ano embelezam nosso cenário artístico. Toda essa riqueza de experiência nos faz perceber o quanto temos de possibilidades neste mundo sedento de sentido e da Palavra divina; o quanto temos de possibilidades para atuarmos e propormos o Evangelho como projeto de vida aos jovens, especialmente aos que já estão no meio eclesial. A catequese, quando bem orientada e acompanhada, num esforço conjunto com ministros ordenados e leigos, pode ser um caminho de encontro fundamental com a pessoa de Jesus de Nazaré, Aquele que confessamos ser nosso Senhor. A educação na fé, sendo processo gradual e permanente – quer dizer por etapas, ‘degustativas’ e com duração sequencial até a nossa morte – requer de nós a inserção no mundo dos jovens. Não só para conhecer e propor, mas, sobretudo, para contribuir na transformação. Muitos são os jovens imersos nos relativismos, individualismos, niilismos... que ainda acreditam na força renovadora e provocadora da Palavra de Deus. É mister aproveitar essa sede de ouvir e essa abertura para orientarmos vocacionalmente e direcionarmos, inclusive nossa juventude, ao encontro com Cristo. Ele é o sentido e a razão da nossa existência, da nossa fé e do nosso trabalho pastoral. É por causa deste Jesus, homem de Nazaré e Filho de Deus, que laboramos nas veredas da existência. Os jovens, tal como definiram os bispos no Documento de Puebla (1979), ainda são prioridade no interior da nossa Igreja e fora dela também. Agora, é evidente que a opção pelos jovens deve ser cada vez mais humanizadora. Não pensemos que encontraremos anjos. Tanto teológica quanto pastoralmente, a “boa teologia coincide com a boa antropologia (...) o plano de Deus para o ser humano é de mais vida e realização”.10 Nunca antes uma camada social necessitou tanto de vida digna e de plena realização como a juvenil. Por isso, não basta somente priorizar. Apesar de a Igreja ter trilhado um longo caminho

junto às juventudes, apesar de haver no Brasil 11 Centros e Institutos de Juventude, apesar de ainda existirem Congregações, movimentos, setores da CNBB etc., é preciso ir além, com propostas ousadas e atuais, que falem ao coração e à mente dos jovens. Frente aos desafios, é preciso que também a catequese, como espaço educativo, desenvolva novas e atraentes maneiras de fazer com que ardam os corações desta parcela significativa de nossa sociedade.

2.1 VOCAÇÃO: DOM DE DEUS E INICIATIVA HUMANA

Já se sabe que etimológica e existencialmente a vocação é um chamado que supõe uma resposta livre e amorosa. A vocação, nessa perspectiva, tem início em Deus. Ele nos chama: primeiro à existência, depois à fé no seu amor e, em seguida, às respostas específicas. Isso é motivo de alegria e festa. Aliás, a vocação é a “festa do ser humano que se deixa finalmente chamar pelo amor de Deus e afasta a ideia de merecimento diante de Deus; é também festa do Deus que chama”.11 Nascemos de um ato de amor festivo, das entranhas de Deus. Ele nos quis e continua nos querendo como na experiência de Jeremias (cf. Jr 1, 4-10): antes de nos formarmos e de adentramos no mundo das coisas e dos fenômenos. O desejo de Deus é de existência feliz. Ele nos quer, nos convoca e nos prepara para existir neste mundo com dignidade e plenitude. A vida, nesse sentido, é toda vocacional: do nascer ao morrer. Sendo dom divino enquanto chamado à vida, a vocação implica também abertura humana. É uma resposta de amor dada no horizonte da liberdade humana. A própria dinâmica do chamado pressupõe uma resposta. Desde a luta pela vida, atravessando os gritos do parto, até a labuta diária por sobrevivência, o ser humano busca responder a esse convite divino. E responde de forma geral e específica. Geral porque nosso desejo mais profundo, como previa Aristóteles, é de uma vida feliz. Muito do que trabalhamos, construímos e edificamos no mundo é por razões de felicidade. Não de maneira abstrata. Trata-se duma felicidade concreta: fugir da dor, buscar o prazer do bem viver, ter o necessário e digno para a existência como comida, diversão, trabalho, cultura, aconchego e amores. A felicidade neste patamar prático assume um caráter não só individual, mas também, e, sobretudo,

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CRUZ, Therezinha. A catequese e o desafio da cidade. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 90.

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CENCINI, Amadeo. O Irmão mais velho. Revista Rogate 310 (2013) 20-23, p. 22. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 114-121, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS coletivo. Todos merecem ser felizes. Para isso, o exercício das virtudes, das boas disposições de caráter, são essenciais tanto individual como coletivamente. O chamado divino a uma vida feliz exprime-se também pelo cultivo da interioridade. É neste campo fértil onde só Deus e a nossa consciência caminham desabrocha a resposta humana a uma vocação específica. Responder ao chamado divino, de maneira específica e à luz da fé, hoje pode ser traduzido por construir, com Deus e com a comunidade de fé, um ‘projeto’ de vida. Não pode faltar o objetivo central ao qual Deus nos convidou: a felicidade. Mas aqui adentramos nos meandros específicos desta felicidade: casar-se, servir à comunidade numa pastoral, dedicarse radicalmente ao seguimento de Jesus ou ser consagrado aos ministérios ordenados. Eis, pois, propostas específicas que podem – se bem trabalhadas num projeto pessoal de vida maduro e adequado – tornar uma pessoa, um vocacionado feliz. A vocação matrimonial, chamado ao amor conjugal, exprime-se pela construção de uma vida a dois, na solidariedade e no compromisso com a obra criadora, sendo o casal fecundo no ato de desabrochar a vida, povoando esta terra com pessoas que exprimem o ápice (não no sentido pervertido do termo, mas na perspectiva nobre e vocacional de ser o homem e a mulher obrasprimas das mãos de Deus) da criação. O matrimônio, mais que um contrato entre duas pessoas com vistas à procriação, é um ato de amor: duas almas se unem para, na vida, testemunhar a beleza do Amor divino e a grandeza do Amor humano. A vocação matrimonial é um brinde à vida amorosa do homem e da mulher que, ciosos de felicidade, buscam na família um lugar de Vida Plena. Os adolescentes e jovens precisam ser educados para responder ao chamado divino do matrimônio. Se não encontrarem na catequese esse espaço de educação, as novelas, os realitys shows midiáticos se encarregarão de tal processo. Mas, para tal intento, é preciso que nossa catequese, e mesmo o ensinamento magisterial, apresente o matrimônio em linguagem não somente jurídica ou moral, mas, sobretudo, existencial. Os encontros catequéticos, à luz da Palavra de Deus e do que há de melhor em nosso Magistério, podem debater e aprofundar temas considerados ‘tabus’, como a sexualidade, o relativismo, a coisificação das relações, o sexo antes do casamento, a masturbação, o aborto etc. Assim, apesar dos limites da linguagem humana, descobriremos a divindade do valor da relação matrimonial. A vocação matrimonial é, hoje, talvez, mais urgente do que a vocação à vida consagrada ou ao 118

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ministério ordenado. Isso porque a cada ano a família, o matrimônio cristão e até mesmo a fé nos sacramentos vêm sendo bombardeados por contravalores que relativizam demasiadamente a relação conjugal, desprezam ou banalizam os laços familiares e, quando muito, maquiam o amor com ‘pseudoamores’. Uma catequese preocupada com a dimensão vocacional pode ajudar a educar na fé os jovens que desejam unir-se no amor e pelo amor, um ao outro, na esperança de construir uma vida feliz e agradável diante de Deus e das pessoas. Nesse mundo tão marcado pela correria, pelo estresse e pela falta de tempo, a vocação laical, a de servir à comunidade de fé, exprime a solidariedade e a doação que todo ser humano, potencial e praticamente, possui em seu íntimo. Dizemos potencial porque muitas pessoas, realmente, desejam e não podem participar da comunidade; outras se negam por comodismo ou relaxamento. Mas há quem dedique a vida, as forças e os dons a serviço da construção do Reino. A vocação, chamado com vistas à felicidade, pressupõe sempre uma missão. Por isso, não há vocação abortiva, inerte ou paralisante. Na medida em que respondemos ‘sim’ ao chamado divino estamos assumindo a missão que Deus nos confia tanto no interior da Igreja quanto nas atividades seculares, quer dizer, no testemunho que damos da Igreja fora de seus muros: no trabalho, na educação, na cultura, na política etc. Ser leigo é também fazer uma experiência existencial, pessoal e comunitária, de Jesus. É ser testemunha da primazia de Deus na vida. A vida laical é sinal do comprometimento direto com a missão divina de construção do mundo da Paz, da Justiça e do Amor. A fé no Deus de Jesus, o Abbá, íntimo e próximo do ser humano, exige ação concreta, vida doada e entregue a uma causa. Muitos são os animadores de comunidades, líderes de pastorais e movimentos, catequistas e cristãos engajados em partidos políticos ou entidades sociotransformadoras que testemunham o gosto do Sal e o brilho da Luz nesse mundo conturbado e necessitado de Deus. Muitos desses leigos assim agem porque tiveram uma catequese sólida e eficaz. Nela puderam fazer a experiência do ressuscitado e sentiram seu coração arder tal como ocorreu com os discípulos de Emaús (cf. Lc 24, 32). A experiência pessoal e comunitária com Jesus de Nazaré, o Senhor, abre nossos olhos e faz com que voltemos à Galileia, quer dizer, ao lugar onde Jesus iniciou sua missão e no qual nós também precisamos nos inspirar para voltar às origens e, a partir do nosso


EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS lugar e da nossa realidade, construir o Reino de Deus. Assim podemos gritar e proclamar, como o vocacionado Isaías lido por Jesus na sinagoga, um tempo novo, um ano da Graça de Deus (cf. Lc 4,17-18). Uma catequese atenta aos jovens, especialmente os de nossa Igreja, procura oferecer momentos e espaços para a edificação de uma vida espiritual fecunda, capaz de fazer com que eles se encontrem consigo, com Deus e com seus irmãos, sempre numa perspectiva pessoal e comunitária. Ao longo da história, o chamado de Deus sempre foi dirigido à pessoa em seu contexto, de acordo com a Vontade d’Aquele que ama e conhece os corações. A vida consagrada, desde os primórdios com os Padres do Deserto, até as versões mais atuais das novas comunidades de leigos consagrados, teve como característica a radicalidade evangélica e o desprendimento expressos na vivência da pobreza, da castidade e da obediência. Eis um jeito singular de responder ao convite à Vida, à felicidade em Cristo! A vida em comunidade ou claustral, perpétua ou temporária, constitui uma riqueza e um desafio para os vocacionados que são consagrados por Deus neste caminho espiritual. Oração, trabalho e vida fraterna são, por assim dizer, pilares fundamentais no dia a dia dos consagrados. Jovens, adultos e idosos assim conseguiram edificar uma vida santa e radical vislumbrada, por exemplo, na vida da jovem Terezinha de Jesus ou do maduro e rico em dons, São João da Cruz. Mas também São João Bosco, Santo Aníbal, Santo Afonso Maria de Ligório, Madre Paulina e tantos outros religiosos, consagrados e consagradas, encontraram na vida religiosa consagrada um ethos, um modo de ser, viver e servir a Deus e aos mais necessitados. Na esteira da radicalidade evangélica, não obstante os vários desafios da vida consagrada, muitos são os jovens que, amadurecidos na fé e desejosos de seguir o Mestre, se colocam a serviço da vida religiosa consagrada. Uma catequese vocacional propõe, constante e sistematicamente, a vida consagrada como ‘possibilidade’ de seguimento ao Mestre. Várias são as formas de edificar essas propostas: visita a casas religiosas; conversas e diálogo constante com padres, irmãos ou freiras de diferentes congregações, ordens ou institutos; retiros temáticos e experiências de estágios vocacionais. Numa catequese de inspiração catecumenal, entre jovens ou adultos, é prioritária a necessidade da experiência de encontro com Jesus também nos seminários, mosteiros, conventos ou casas de formação religiosa. Isso ajuda e marca a caminhada de fé. Possibilita aos interlocutores da catequese um

aprofundamento da vida cristã que é rica e diversa em suas expressões. Mesmo os casados merecem ter a experiência de conviver, por uns dias, em casas de consagrados para saber e experimentar o modo de ser desses homens e mulheres que se aventuram no mistério de Deus, na radicalidade da vida simples, ligada a um carisma específico, vivendo a pobreza, a castidade e a obediência. Três são as formas de viver a vocação ao ministério ordenado: como diácono, como presbítero e como epíscopo. No fundo, as três formas exprimem um modo de ser na Igreja e de estar a serviço do Povo de Deus. Ao diácono cabe a missão de, como vocacionado de Deus, numa vida austera e feliz, proclamar a Palavra, servir à mesa eucarística e praticar, cotidiana e insistentemente, a caridade. Na antiguidade os diáconos, mais do que ‘sub-padres’ ou seus substitutos, eram os que cuidavam duma camada social vulnerável: estrangeiros, órfãos e viúvas. O ministério diaconal é um caminho de serviço humilde e carinhoso à Igreja. A diaconia exprime o mistério do Cristo que se enverga para lavar os pés dos necessitados, dispõe atenção e cuidado para com todos e prepara a refeição, não só a eucarística, para os famintos. Sem deixar de servir à Palavra, à mesa eucarística e à prática da caridade, o presbítero, padre ordenado, tem por missão apascentar o rebanho de Cristo que lhe é confiado numa determinada porção do Povo de Deus, numa paróquia, numa comunidade educativa, num trabalho específico, pondo-se sempre a serviço da comunhão. Mas o ministério da ordem no grau do presbiterato também comporta o ensinamento, a catequese. A ela deve-se unir a celebração e a presidência dos sacramentos, especialmente o da Eucaristia, centro da vida cristã. O padre reza e vive em oração, no exercício da caridade, sempre e em todo lugar. Ele é como que o ‘chão de Deus’ por entre os seres humanos. Apascenta o rebanho, preside os sacramentos e também ensina o reto ensinamento da Palavra de Deus. O padre é o homem da palavra, do ensinamento edificador que liberta, à luz da fé – e não de ideologias! – que se ancora nas Escrituras, na Tradição da Igreja e na vida da comunidade eclesial. Homem de Deus, testemunha o amor e a beleza de uma vida cujo centro é aquele Jesus humano-divino que morreu na cruz e ressuscitou para salvar, quer dizer, livrar a humanidade das trevas do erro, das injustiças e do pecado. Mestre do ensinamento da fé, guia do povo de Deus e expressão da Igreja universal, o bispo ou epíscopo, São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 114-121, jul. / dez. 2013.

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EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS com sua missão numa Igreja particular ou diocese, é o animador da vida de fé do Povo de Deus. Responde pela condução da Igreja local, zelando sempre pela primazia espiritual e pelo testemunho de caridade. Não é o homem da arrogância, das pompas e do báculo amedrontador. Ao contrário, é pai espiritual, humilde por natureza, homem da simplicidade de fé e da palavra afetuosa. Suas vestes, seu cajado, sua mitra e sua autoridade têm razão de ser no apascentamento de todas as ovelhas. Ele é o pastor por excelência. Homem de comunhão e de afeto, assegura a missão de evangelizar herdada dos apóstolos e compartilhada durante séculos na história da Igreja. Ao bispo, ministro por excelência do sacramento da Crisma e da Ordem, é dado o dom de governar, ensinar e dispensar com generosidade, sob a assistência do Espírito, os frutos do Paráclito. Por suas mãos e pela oração eclesial recebemos a presença daquele que anima e inspira a comunidade de fé. Os três ministros, vocacionados do Pai, são, no fundo, servidores do Povo. Partilham de forma específica um ethos vocacional. Os jovens, e hoje também os adolescentes, necessitam ser educados para a apreciação, conhecimento e experiência vocacional com esses ministros. Assim como não se pode amar aquilo que não se conhece, também não se pode desejar um estilo de vida sem conhecê-lo. Daí a importância de diáconos, padres e bispos estarem sempre presentes nos ambientes catequéticos. Trata-se não de uma presença pontual ou sacramental, mas de se fazer próximo dos adolescentes e jovens. Visitar a catequese, conhecer os catequizandos, interagir com eles nas celebrações e em seus ambientes de vida (escolas, trabalho, lugares de lazer etc.) também faz parte da missão dos ministros ordenados. Aos catequistas cabe a tarefa de ser ponte, de facilitar o encontro e a convivência entre os catequizandos e os ministros ordenados.

3 SUGESTÕES CATEQUÉTICOVOCACIONAIS Depois de termos feito um longo percurso relacionando juventude, catequese e vocação, agora queremos apresentar algumas sugestões. Trata-se de um elenco com sete práticas que já existem em muitos lugares do Brasil. O número, embora indique teologicamente a totalidade das coisas, quer indicar, 120

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pedagogicamente, sete formas de tornar a catequese com jovens um ambiente de formação da consciência vocacional. A experiência rogacionista, por se tratar de uma Congregação Vocacional, nos dá a consciência e a responsabilidade de trabalhar em toda a Igreja a dimensão vocacional. Por isso, as sugestões querem ser setas, caminhos indicativos. Não se esgotam em si mesmas, mas ampliam-se na medida em que nos enriquecemos no carisma. Para cada sugestão-seta apresentamos também um objetivo e três estratégias. A intenção é facilitar a compreensão e a execução do que se propõe.

3.1 REZAR PELAS VOCAÇÕES, À LUZ DA PALAVRA DE DEUS E COM SUBSÍDIOS ESPECÍFICOS, NO COMEÇO E NO FIM DOS ENCONTROS CATEQUÉTICOS

Objetivo: considerar o pedido de Jesus ‘rogai ao Senhor da messe’ e despertar a consciência de que somos todos responsáveis pelas vocações na Igreja. Estratégias: proposição de orações vocacionais previamente preparadas ou já disponíveis em subsídios especificamente vocacionais; realização de Lectio Divina com leituras vocacionais nos encontros catequéticos; construção, com os interlocutores da catequese, de ambientes simbólico-vocacionais que exprimam a diversidade de vocações na Igreja.

3.2 CONSCIENTIZAR CATEQUISTAS E JOVENS SOBRE A DIMENSÃO VOCACIONAL NO PROCESSO CATEQUÉTICO

Objetivo: despertar a consciência de que todos somos vocacionados de Deus, que nos criou, nos chamou, nos enviou e, por isso mesmo, nos tornou responsáveis pelas vocações específicas. Estratégias: participação em retiros vocacionais, estágios e congressos sobre o tema das vocações (tanto os catequistas quanto os catequizandos); envolvimento mínimo com o Serviço de Animação Vocacional Paroquial e desenvolvimento de atividades em conjunto; leitura frequente de subsídios (revistas, diários, livros ou sites/ blogs/filmes) vocacionais.

3.3 PROPOR

A CATEQUESE COMO ESPAÇO DE

ENCONTRO COM

JESUS

E DE DESCOBERTA DA

VOCAÇÃO FUNDAMENTAL E ESPECÍFICA


EXPERIÊNCIAS EXPERIÊNCIAS Objetivo: tornar o catequista animador vocacional, especialmente no que se refere à espiritualidade e ao reconhecimento, por parte do catequizando, do chamado que Deus lhe faz. Estratégias: atenção aos carismas pessoais dos interlocutores da catequese; não hesitar em dizer que Deus chama o catequizando para uma vocação específica; encaminhamento dos possíveis vocacionados para os animadores vocacionais de Congregações, Ordens e Dioceses ou às pastorais específicas (matrimônio ou serviços eclesiais).

3.4 P ROPICIAR

AOS JOVENS E ADULTOS DA

CATEQUESE CONTATO COM AS FORMAS DE VIVÊNCIA DAS VOCAÇÕES ESPECÍFICAS (O CASAMENTO, A VIDA LAICAL, A VIDA CONSAGRADA OU MINISTERIAL)

Objetivo: contribuir na consciência vocacional dos catequizandos, especialmente no que se refere ao chamado específico. Estratégias: visita às casas religiosas (de Congregações, Ordens, Dioceses) ou às pastorais laicais específicas do interesse dos catequizandos; formação temática sobre as várias vocações na Igreja; frequência ao cinema ou projeção de filmes com temáticas vocacionais nas casas dos catequizandos.

3.5 CONSTRUIR COM OS JOVENS E ADULTOS O PROJETO DE VIDA Objetivo: ajudar os jovens e adultos a sistematizarem sua opção vocacional, tendo Deus como guia e a Igreja como espaço de vivência da fé. Estratégias: capacitação em vista da construção do Projeto de Vida; acompanhamento pessoal dos

catequizandos no processo de desenvolvimento do Projeto; participação de especialistas (no tema de projetos) em encontros formativos de catequistas e catequizandos.

3.6 OFERECER ACOMPANHAMENTO ESPIRITUAL AOS JOVENS

Objetivo: possibilitar o crescimento na fé, de maneira personalizada e edificante, através da orientação espiritual feita por ministros ordenados ou leigos disponíveis. Estratégias: capacitação de leigos para esse serviço junto aos catequizandos; avaliação pessoal e comunitária junto aos catequistas envolvidos no processo de acompanhamento espiritual; oferta de livros e filmes específicos sobre orientação espiritual para os catequizandos.

3.7 P ROMOVER

AO MENOS DOIS ENCONTROS

CATEQUÉTICOS DE CARÁTER ESPECIFICAMENTE VOCACIONAL DURANTE O ANO

Objetivo: favorecer um melhor discernimento do chamado que Deus faz a cada pessoa, a partir do encontro pessoal e dos apelos eclesiais. Estratégias: realização de retiros vocacionais; participação em estágios vocacionais oferecidos por casas de formação (de Congregações, Ordens e Dioceses) ou passar um dia com uma família; visita a situações limites da existência (hospitais, favelas, asilos, casa-abrigo etc.) para sensibilizar os jovens sobre a necessidade de dizer sim a Deus, tendo em vista os que mais sofrem.

REFERÊNCIAS CENCINI, Amadeo. O Irmão mais velho. Revista Rogate 310 (2013) 20-23.

CRUZ, Therezinha. A catequese e o desafio da cidade. São Paulo: Paulinas, 1993.

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Diretório nacional de catequese. Texto aprovado pela 43ª Assembleia Geral. São Paulo: Paulinas, 2007.

LIBÂNIO, João Batista; MURAD, Afonso. Introdução à teologia: perfil, enfoque, tarefas. São Paulo: Loyola, 2007.

______. Evangelização da juventude: desafios e perspectivas pastorais (Documentos da CNBB, 85). São Paulo: Paulinas, 2007. CONSTITUIÇÃO Lumen Gentium sobre a Igreja. In: CONCÍLIO VATICANO II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: 2007. CONSTITUIÇÃO Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo de hoje. In: C ONCÍLIO V ATICANO II. 1962-1965. Vaticano II: mensagens, discursos, documentos. São Paulo: 2007.

PRADO, Antonio Ramos. Relacionar-se para construir projetos e sonhos. In: Juventudes: o exercício da escuta no processo de aproximação. Brasília: Editora CRB, 2010. RITUAL ROMANO. Ritual da Iniciação Cristã de Adultos. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2009. SÍNODO DOS BISPOS. A nova evangelização e para a transmissão da fé cristã (Instrumentum Laboris). São Paulo: Paulinas, 2012.

São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 114-121, jul. / dez. 2013.

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DOCUMENTOS DOCUMENTOS CATEQUESE E BÍBLIA Um diálogo para a animação bíblica da catequese (II Seminário Nacional de Catequese da Argentina)*

Na Argentina, no decorrer do Ano da Fé, cresceu uma imensa corrente de ideias, diálogos e contribuições acalentando o sonho de realização de um novo Seminário Nacional de Catequese (SENAC). Tal aspiração foi de encontro a uma proposta do Instituto Superior de Catequese (ISCA, de Buenos Aires) de se refletir sobre a ‘Catequese e a Bíblia’, com a finalidade de favorecer o diálogo em direção à animação bíblica da Catequese. O I Seminário Nacional de Catequese em 2011 foi organizado como uma preparação ao III Congresso Catequético Nacional,1 realizado em Morón (grande Buenos Aires) em maio de 2012. Desde então, organizou-se um espaço de trabalho e reflexão, sobretudo através de meios informáticos, que cresceu sobremaneira e adquiriu uma identidade própria, concretizado na realização desse II SENAC. Um dos fortes momentos de preparação do II SENAC foi o fórum que se estabeleceu entre os futuros participantes via internet. Foram também produzidos diversos papers (contribuições sobre os diversos aspectos do tema central), de tal modo que todos os que participaram do Seminário já se encontravam com uma reflexão adiantada sobre a animação bíblica da catequese. Essa espécie de pré-seminário muito colaborou para o êxito do encontro. Apresentamos a seguir, duas matérias sobre esse evento: 1 Um relato confeccionado pela Equipe do ISCA e 2 Uma crônica de um dos participantes (Pe. José Lazzaletta).

1 RELATO DA EQUIPE DO ISCA SOBRE O II SENAC O relacionamento entre Catequese e a Palavra de Deus foi o eixo e o centro dos debates do II Semanário Nacional de Catequese (SENAC), com o tema: ‘Catequese e Bíblia: um diálogo para a animação bíblica da catequese’, realizado em San Antonio de Arredondo (nas cercanias de Córdoba, Argentina) entre os dias 05 e 08 de julho de 2013. O SENAC foi organizado pelo Instituto Superior de Catequese (ISCA), sob os auspícios da Comissão Episcopal de Catequese da Conferência dos Bispos Argentinos. Participaram 160 leigos, religiosos,

sacerdotes e bispos envolvidos na renovação do anúncio catequético. A Missa de abertura foi celebrada por Dom Luís Eichhorn, que também participou integralmente de todo o Seminário. O representante da CEA (Conferência Episcopal Argentina), Dom Martín de Elizalde, afirmou: “Todos somos consagrados e enviados. As palavras de Jesus devem nos estimular a sermos os propagadores do Evangelho. A catequese, muitas vezes se dirige à crianças, mas não é uma proposta de vida cristã apequenada. Ela nos encaminha para os sacramentos, entrega a Palavra em nossas mãos. Ensina-nos a pensar”. A reflexão foi enriquecida pela contribuição do Pe. Luiz Alves de Lima, salesiano (Brasil), que esteve presente no Sínodo sobre a Nova Evangelização de

*

Colaboração de Ir. Rosa Luz, participante do II SENAC. Tradução de Pe. Luiz Alves de Lima, participante e conferencista do II SENAC. 1

Sobre esse importante evento catequético argentino, pode-se consultar ALVES DE LIMA, Luiz. Antecipar a aurora, anunciar a esperança: III Congresso Catequético Argentino de 24 a 27 de maio de 2012. Revista de Catequese 138 (2012) 4-5; IRUZUIBIETA, Celso Moga. Antecipar a aurora, construir a esperança: III Congresso Nacional de Catequese Argentina. Revista de Catequese 139 (2012) 6-16.

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DOCUMENTOS DOCUMENTOS 2012. “Quando a Catequese se concentra na Palavra transforma-se num encontro, onde não mais existem catequistas e catequizandos, professores e alunos, mas sim todos interlocutores”, afirmou. Também houve espaço para temas sobre a Comunicação, como a apresentação de novas tecnologias, a cargo do Prof. Ricardo Grzona, também ele participante do Sínodo sobre a Palavra de Deus (2008) e fundador do projeto ‘Cristonautas’. 2 Ele apresentou uma nova aplicação (app)3 móvel sobre a ‘História da Salvação’, como ferramenta adaptada para que a Palavra chegue aos jovens. Esta aplicação gratuita foi apresentada ao Papa Francisco numa audiência privada. Trabalhou-se intensamente nos seminários e nos espaços de apresentações simultâneas. Houve a possibilidade de acompanhar o II SENAC on line e participar das conferências através do ‘Seminário Virtual’: http://www.isca.org.ar/senac/seminario-virtual.php. Também se pode debater e apresentar as próprias opiniões através de um ‘Fórum Aberto’ na internet. Uma comissão de participantes do Seminário trabalha atualmente elaborando uma síntese num texto comum, que sirva de testemunho e documentação desse Encontro entre Bíblia e Catequese. Será um subsídio para “passar de um catequista que só lê e proclama a Palavra, para um catequista amante da Palavra, que a escute, anuncie, saboreia e procura vivê-la com alegria”, como foi relatado em um dos Seminários.

2 CRÔNICA DE JOSÉ LAZZALETTA O II SENAC teve início no dia 05 de julho, sexta feira, quando todos os participantes transpuseram a porta da fé4 e celebramos a Eucaristia presidida por Dom Luis Guillermo Eichhorn, Bispo de Morón, que participou de todo o encontro em fraternal atitude para os congressistas. O Reitor do ISCA, Pe. José Luís Quijano, acolheu a todos com as boas vindas aos 140 catequistas, 15 sacerdotes e 2 bispos. Concluída a apresentação dos delegados das regiões pastorais e das Dioceses, foram 2

lidas diversas adesões, vindas de todas as partes, destacando-se a do Papa Francisco. Em seguida foram esclarecidos os objetivos deste II SENAC. Eis uma pequena síntese das conclusões do II SENAC: 1 Compreender e assumir a Bíblia como sujeito da evangelização e elemento fundante e transversal de toda a Pastoral. 2 Conceber nossos processos catequéticos como escolas de interpretação da Palavra que suscita e alimenta a fé. 3 A configuração da catequese de acordo com o paradigma da iniciação cristã, dentro da perspectiva catecumenal, é uma das conversões pelas quais hoje a catequese deve passar. 4 O encontro de Jesus com os discípulos de Emaús e todo o encontro do Mestre com seus discípulos constituem verdadeiros paradigmas da Catequese Missionária. É Ele que sempre sai ao nosso encontro. Jesus, Palavra do Pai, se antecipa a toda situação humana para lhe dar resposta e orientá-la para a vontade do Pai que O enviou. Em continuidade com tais proposições, o II SENAC assumiu para si essas palavras da Verbum Domini: “Um momento importante da animação pastoral da Igreja, onde se pode sapientemente descobrir a centralidade da Palavra de Deus, é a catequese, que, nas suas diversas formas e fases, sempre deve acompanhar o Povo de Deus.” (VD 74). Um momento inicial de oração muito intenso foi a Lectio Divina do texto de At 8, 26-40, que iluminou os diversos momentos de todo o Seminário. Esta lectio foi orientada pela biblista Verónica Talamé. Merece um agradecimento especial o desempenho da equipe do ISCA, organizador e coordenador que esteve constantemente cuidando de todos os detalhes e o Departamento de Bíblia do Episcopado Argentino que enviou seus membros para a animação das exposições realizadas nos diversos seminários. O Pe. Luiz Alves de Lima, salesiano de São Paulo, doutor em Teologia Pastoral Catequética, assessor da Conferência Episcopal Brasileira, professor em

Cf. Disponível em: http://www.cristonautas.com. Acesso em: 10 set. 2013.

3

É possível encontrar tais aplicativos na Internet. Disponível, por exemplo, em: http://app1.cristonautas.com/; http://www.news.va/ e s / n e w s / c r i s t o n a u t a s - l a n z a - u n a - n u e v a - a p p - s o b r e - l a - h i s t o r i a ; h t t p s : / / p l a y. g o o g l e . c o m / s t o r e / a p p s / details?id=com.r1sa.cristonautas1; http://www.pccs.va/index.php/pt/news2/attualita/item/1600-cristonautas-1-la-nueva-aplicacion; http://www.appannie.com/app/ios/cristonautas-1/, e outros. Acesso em: 10 set. 2013. 4

O autor se refere a uma porta construída na entrada do salão de palestras que representava a ‘Porta da Fé’ (nota do tradutor). São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 122-124, jul. / dez. 2013.

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DOCUMENTOS DOCUMENTOS diversas universidades de seu país e do exterior, foi o conferencista principal, com duas palestras desenvolvendo o tema central ‘Bíblia e Catequese’. Brindou-nos não somente com sua iluminação, mas também com o testemunho de sua participação na XIII Assembleia do Sínodo dos Bispos para a Nova Evangelização e suas experiências pastorais no Brasil. Todos os participantes puderam partilhar suas preocupações e inquietudes nos diversos seminários simultâneos, realizados à tarde; trabalhando em forma de oficinas, as diversas comissões foram perfilando os desafios e propostas para o futuro, partindo do texto de At 8, 26-40, sentindo que a Palavra de Deus é uma convocação ao respeito e à inclusão, que se converterá, para muitos que se sentem marginalizados, excluídos ou desprezados, numa Boa Notícia.

5

O II SENAC não se conclui com resultados elaborados e definitivos. Pelo contrário, saímos com a esperança e o entusiasmo pela Palavra de Deus que é luz e fogo para nossa vida e a de todos os nossos semelhantes. Enquanto observo o rio seco, 5 com suas pedras brilhando ao sol, com suas paredes ressecadas, esperando que a água desça dos morros para renovar a vida, penso em tantos seres humanos que não têm sentido na vida, que vivem tristes e angustiados pela desesperança. E creio que o calor da Palavra de Deus nos faz todos vibrar a alma, pois é Deus mesmo, feito um de nós para trazer-nos a vida, a fé e a alegria.

O cronista faz referência a um riacho, quase seco por causa do inverno e falta de chuva, que corre nos fundos da Residência Franciscana de San Antonio de Arredondo, cujas poucas águas descem dos morros que circundam aquela localidade (nota do tradutor).

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DOCUMENTOS DOCUMENTOS COMPREENDER, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA DE DEUS Mensagem do I Congresso Latino-Americano de ABP e VI Encontro regional da FEBIC-LAC

No Brasil há dois anos realizou-se em Goiânia (GO), de 08 a 11 de Outubro de 2011, o Congresso Brasileiro de Animação Bíblica da Pastoral.1 Agora, com o mesmo tema, porém, em âmbito continental, realizou-se em Lima, Peru, de 5 a 8 de agosto de 2013 o I Congresso Latino-americano de Animação Bíblica da Pastoral. Esse evento foi também o VI Encontro Regional da Federação Bíblica Católica da América Latina e Caribe, secção da América Latina e Caribe (FebicLAL). O tema de estudo, como também no Congresso Brasileiro, foi a exortação apostólica Verbum Domini de Bento XVI. Tendo sido promovido pelo Centro Bíblico Pastoral da América Latina (Cebipal), do CELAM, e pela FebicLAL, estiveram presentes 85 pessoas entre bispos, sacerdotes, religiosos e leigos, representando as 22 conferências episcopais da América Latina e Caribe, organismos e outras igrejas cristãs. Acenamos aqui à presença de dom Santiago Silva Retamales, bispo auxiliar de Valparaíso (Chile) e Secretário Geral do Conselho Episcopal Latino-americano, do Pe. Décio Walker, assessor da Comissão Episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-Catequética da CNBB, e da Irmã Mercedes Lopes, assessora do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI). Esses dois últimos, representantes do Brasil, estiveram também ativamente presentes no Congresso de Goiânia em 2011. A finalidade do Congresso foi refletir sobre a identidade, objetivos e métodos da Animação Bíblica da Pastoral à luz do Documento de Aparecida e, principalmente, da Verbum Domini. Na Mensagem Final, que a seguir apresentamos,2 os participantes afirmam que a Verbum Domini serviu de texto guia e fio condutor do Congresso. Para o assessor da CNBB, Pe. Décio Walker, o evento foi um marco histórico para o trabalho bíblico na América Latina. “Trata-se do I Congresso da Animação Bíblica da Pastoral da América Latina e Caribe. Além disso, dá visibilidade às ações bíblicas que acontecem nas conferências episcopais e outros organismos da Igreja”, afirmou. De acordo com a mensagem final do evento, os participantes assumiram compromissos pastorais baseados em três linhas apontadas pela Verbum Domini: “Compreender, viver e anunciar a Palavra de Deus”.

INTRODUÇÃO A todos os irmãos e irmãs das Igrejas particulares da América Latina e do Caribe, nossa cordial sudação de comunhão e paz no Senhor Jesus Cristo, Palavra vivente de Deus.

Durante os dias 05 a 08 de agosto de 2013, 85 participantes, representando as Conferências Episcopais do Continente, outros organismos e outras Igrejas cristãs, nos reunimos na cidade de Lima/Perú. Estavam presentes: Bispos, sacerdotes, religiosas/os e leigas/os atraídos pela Palavra de Deus e convidados pelo Centro

1

Os vários temas tratados nesse I Congresso Brasileiro de Animação Bíblica da Pastoral foram publicados na Revista de Catequese. Cf. Revista de Catequese 136 (2011) 69-80; 137 (2012) 6-80; 138 (2012) 6-31. 2

A tradução do castelhano é da CNBB. Disponível em: http://catequeseebiblia.blogspot.com.br/2013/08/mesagem-final-do-1congresso.html. Acesso em: 31 ago. 2013. A edição e os subtítulos são da nossa Redação. São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 125-127, jul. / dez. 2013.

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DOCUMENTOS DOCUMENTOS Bíblico Pastoral da América Latina (CEBIPAL) e pela Federação Bíblica Católica da América Latina e do Caribe (FEBIC-LAC). Nossa motivação principal foi refletir sobre a identidade, os objetivos e os métodos da Animação Bíblica da Pastoral (ABP), como o Documento de Aparecida e a exortação apostólica Verbum Domini definem hoje a pastoral bíblica. Destacamos a presença da valiosa representação das Antilhas que deu ao Congresso um caráter especial por sua cultura e sua língua (inglês). Num clima de escuta, fraternidade, oração e participação, tendo como ponto de partida os desafios da Igreja Latino-Americana em estado permanente de missão, nos dedicamos a examinar a fundo os fundamentos teóricos e linhas de ação da ABP na América Latina e no Caribe através de conferências, trabalhos de reflexão em grupos, celebrações litúrgicas e experiências de Lectio Divina.

1 O SÍNODO SOBRE A PALAVRA DE DEUS: MENSAGEM DO SÍNODO E A VERBUM DOMINI Do início ao final nossa atenção se concentrou na exortação Verbum Domini que nos serviu de texto guia e fio condutor do Congresso. Junto com ela, nos inspirou também a dinâmica de apresentação da Palavra de Deus que nos ofereceram em 2008 os Padres Sinodais, na Mensagem do Sínodo. 3 Esta Mensagem, fez a transição entre o final do evento sinodal e a publicação da exortação Verbum Domini e ao mesmo tempo nos mostrou o dinamismo revelador da palavra Divina. De uma primeira revelação cósmica, que faz com que a criação se assemelhe a uma espécie de imensa página aberta diante da humanidade, na qual se pode ler uma mensagem do criador: “Os céus proclamam a glória de Deus”, passa, em uma etapa posterior, a ser palavra escrita. Desta forma as Escrituras são “o testemunho e memorial canônico, histórico e literário que atesta o evento da Revelação criadora e salvadora. A Palavra de Deus precede e excede a Bíblia”. Em consequência “nossa fé não tem como centro só um livro, mas uma história de salvação... e uma pessoa, Jesus Cristo, Palavra de Deus feita carne”. 3

“A Palavra do Senhor permanece para sempre” (1Pe 1, 25). Com essa convicção procuramos adquirir um conhecimento mais profundo e integral da ABP à luz da Verbum Domini e da experiência de nossos países. Para concretizar esse objetivo contamos com a iluminação de assessores bem preparados. Num primeiro momento se destacou a importância que a Mensagem do Sínodo sobre a Palavra de Deus na Vida e Missão da Igreja teve na elaboração da exortação pós-sinodal. As belas imagens ali usadas: ‘Voz da Palavra’, ‘Rosto da Palavra’, ‘Casa da Palavra’ e ‘Caminhos da Palavra’, inspiraram o Papa Bento XVI para estruturar as três partes da Verbum Domini: A Revelação da Palavra que é Jesus Cristo; sua acolhida na Igreja e seu anuncio e testemunho no mundo. A exortação Verbum Domini é um fruto maduro dos 50 anos do Concílio Vaticano II.

2 A NATUREZA E FUNÇÃO DA ANIMAÇÃO BÍBLICA DA PASTORAL Trabalhamos com grande interesse o tema central da identidade e função da Animação Bíblica da Pastoral, a natureza e a função da Sagrada Escritura como mediação do encontro e comunhão com Jesus Cristo, Cabeça do Corpo que é a Igreja, e desde a situação real e existencial dos sujeitos da evangelização. A natureza e a função da ABP estão em descobrir que a Palavra de Deus, contida nas Escrituras, é Jesus Cristo, plenitude de vida e de verdade. Palavra que foi comunicada para que seja cada vez mais o coração de toda a atividade eclesial (VD, 1). Esta Revelação, dom gratuito e generoso do Pai, deve ser anunciada ao mundo. A função da ABP é contribuir para que o povo de Deus compreenda, viva e testemunhe a Palavra de Deus contida na Bíblia. Ela ajuda para que o encontro com a Palavra seja cominho de comunhão com a Pessoa de Jesus Cristo, e com todos, sem excluir ninguém, caminho de conversão pessoal e pastoral e caminho para a missão sem fronteiras. Viver a Palavra é basear o dinamismo da vida e sua coerência no encontro pessoal com o Senhor Ressuscitado, presente nas Escrituras. Estas orientações motivaram o trabalho dos grupos convidados a considerar a ABP como caminho de interpretação, de comunhão e evangelização.

Cf. A voz, o rosto, a casa e os caminhos da Palavra: mensagem integral do Sínodo dos Bispos de 2008. Revista de Catequese 125 (2008) 72-80.

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São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 125-127, jul. / dez. 2013.


DOCUMENTOS DOCUMENTOS 3 COMPREENDER, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA DE DEUS As atividades desenvolvidas nestes dias de Congresso-Encontro nos levam a formular compromissos que apoiam a missão da ABP, expressa de muitas maneiras nas programações das organizações e missões concretas ao serviço da encarnação permanente da Palavra A força do Espírito Santo, cuja presença experimentamos, nos impulsiona a assumir compromissos pastorais baseados em três linhas apontadas pela exortação Verbum Domini: compreender, viver e anunciar a Palavra de Deus que a Sagrada Escritura nos oferece. Compreender com a mente, com o coração, ou seja, a pessoa em sua totalidade. Compreender implica numa interpretação que leve a descobrir o sentido originário da Palavra. A Nova Evangelização, que teve na América sua terra natal, objeto do último Sínodo dos Bispos (em outubro de 2012) está a serviço da transmissão da fé. A exortação Verbum Domini já havia apontado para esta realidade quando fala que são tantos irmãos batizados que não estão evangelizados e que

necessitam que se proponha de novo a eles a boa nova de Jesus Cristo. Esta evangelização se concretiza, à luz da Verbum Domini, na iniciação à vida cristã e no anúncio do evangelho querigmático que responda à busca das pessoas. Certamente o Sínodo dos Bispos sobre a Nova Evangelização dará em sua exortação pós-sinodal critérios e linhas mais precisas e atualizadas.

CONCLUSÃO A evangelização das culturas, o ecumenismo e o diálogo inter-religioso são parte essencial da Nova Evangelização. Mas, sobretudo, o testemunho cristão de solidariedade e caridade com os excluídos da sociedade. Desejamos que nossa relação discípulo-Mestrediscípulo produza coerência e se faça anúncio, testemunho, expressão e fonte de alegria porque Jesus Cristo é o Senhor ontem, hoje e sempre. Que Maria, aquela que fez de sua vida uma permanente escuta da Palavra, nos dê um coração apaixonado por Jesus Cristo, Palavra de Deus.

São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 125-127, jul. / dez. 2013.

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DOCUMENTOS DOCUMENTOS MENSAGEM AOS/ÀS CATEQUISTAS DO BRASIL Saudação aos catequistas por ocasião do Dia Nacional do Catequista Dom Jacinto Bergmann*

Por ocasião do Dia do Catequista, celebrado em 2013 no dia 25 de agosto, último domingo do mês vocacional, o Presidente da Comissão Episcopal Pastoral para Animação Bíblico-Catequética, Dom Jacinto Bergmann enviou a tradicional Mensagem aos/às catequistas do Brasil. Nela Dom Jacinto relaciona essa data com a celebração do Ano da Fé e os 30 anos da aprovação do documento Catequese Renovada, evocando a figura do Frei Bernardo Cansi. Embora o calendário civil brasileiro cite o dia 21 de agosto como Dia Nacional do Catecismo1 (dia da memória litúrgica de São Pio X), no Brasil a Igreja prefere celebrar e dar maior importância à pessoa do catequista e à sua vocação leiga como testemunha e educador da fé. Se o Catecismo tem sua importância objetiva, sem dúvida o testemunho vital da/do Catequista é mais importante para a ação concreta da catequese, da comunicação e educação da fé. A seguir, o texto integral da Mensagem:2

Um grande grito de louvor e ação de graças brota do nosso coração, por ocasião, mais uma vez, do Dia do/a Catequista. Nele celebramos o ministério bíblicocatequético de todos nós, tão essencial na vida da Igreja! O que seria da Igreja no Brasil, sem a plêiade de catequistas espalhados por todas as ‘periferias existenciais’ do seu imenso território? Neste ano de 2013, ainda em pleno Ano da Fé, fazemos a memória sagrada do Documento Catequese Renovada (documento 26 da CNBB). Desejo que cada um/uma de vocês sinta profunda alegria, não somente pelo documento escrito, mas por causa de toda a vida que ele gerou e impulsionou em nossa caminhada eclesial. Muitos de vocês, os/as mais vividos/as, guardam na mente e no coração o grande mutirão – um verdadeiro ‘vendaval’ provocado pelo Espírito Santo que trazia um dinamismo novo à nossa prática bíblicocatequética.

Todos nós vimos ou ouvimos falar do imenso esforço feito por pessoas que gastaram o melhor de suas vidas para divulgar e tornar vivo em nossas comunidades este espírito novo. Quero destacar, de modo muito especial, o Frei Bernardo Cansi, que já está na casa do Pai, de onde continua a nos inspirar. Este homem fez da ‘Catequese Renovada’ sua grande missão para servir Jesus Cristo de forma incansável: uma verdadeira paixão que contagiou milhares de catequistas por todo o Brasil. Na pessoa dele agradecemos a Deus toda a nuvem de catequetas e biblistas a serviço da renovação bíblicocatequética. E também agradecemos a Deus por cada um de vocês que até hoje lutam e, sem esmorecer, continuam a lutar para tornar realidade o processo de Iniciação à Vida Cristã e de Animação Bíblica da Vida e da Pastoral, que são os frutos atuais desse esforço de renovação.

* Arcebispo de Pelotas (RS). Presidente da Comissão Episcopal Pastoral da CNBB para a Animação Bíblico-Catequética. 1

Cf. LIRA, Gilson. Calendário cívico: datas comemorativas. v. 8. Disponível em: http://static.recantodasletras.com.br/arquivos/ 3292752.pdf, pp. 14, 237. Acesso em: 31 ago. 2013. Em muitos países é nesse dia de São Pio X que se celebra o Dia do Catequista. Em várias dioceses do Brasil foi comemorado em 07 de julho o Dia do Catecismo Jovem, o YouCat. Nesta data, em 2011 (Madri), o YouCat foi lançado como ‘catecismo da JMJ’. É um projeto nascido na Arquidiocese de Florianópolis (SC) por iniciativa de alguns seminaristas que, através das redes sociais, partilham, estudam e motivam a utilização do YouCat pela juventude brasileira. 2 Texto publicado no site da CNBB. Disponível em: http://www.cnbb.org.br/site/comissoes-episcopais/biblico-catequetica/12632comissao-da-cnbb-divulga-mensagem-pelo-dia-do-catequista. Acesso em: 31 ago. 2013.

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DOCUMENTOS DOCUMENTOS Neste Dia do/a Catequista também não podemos deixar de lembrar o que aconteceu entre nós há um mês atrás. O profundo processo bíblico-catequético desencadeado pela Jornada Mundial da Juventude, envolvendo grande número de bispos, presbíteros, religiosos e leigos – especialmente jovens -, mas tendo o papa Francisco como catequista principal. Ele apareceu diante de nossos olhos maravilhados de uma maneira muito simples, mas profundamente tocante de evangelizar. Uma catequese feita por ele de gestos, de atitudes, de simbologias e de palavras cheias de afeto e unção, dirigidas ao coração dos jovens e de todas as pessoas, provocando ânimo,

coragem, esperança e intensa alegria. Uma perfeita experiência de ‘catequese comunitária’, ‘vivencial e bíblica’, como o próprio documento Catequese Renovada propõe. Por fim recordamos, agradecidos, o papel de Nossa Senhora Aparecida, grande catequista que sustenta a fé, a esperança e o amor do nosso povo brasileiro. Que ela esteja sempre ao nosso lado e nos alcance a bênção da Trindade Santa! PARABÉNS, queridos/as catequistas da nossa Igreja no Brasil!

São Paulo, ano 36, n. 142, pp. 128-129, jul. / dez. 2013.

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ORIENTAÇÕES PARA PUBLICAÇÃO NA REVISTA DE CATEQUESE 1 Para apresentação de artigo devem ser observadas as seguintes normas técnicas: fonte Times New Roman 12; espaço entre linhas simples; total de 14 a 16 páginas. Margens: superior 2 cm, inferior 2 cm, esquerda 2,5 cm e direita 2 cm. 2 As citações diretas no texto, com até três linhas, devem estar contidas entre “aspas”. As citações diretas no texto, com mais de três linhas, devem ser destacadas com recuo de 4 cm da margem esquerda, com fonte 11 (sem aspas). 3 As referências bibliográficas deverão ser colocadas em notas de rodapé (fonte 10), com dados bibliográficos completos das obras citadas (inclusive com numeração das páginas), isso em cada nova obra. 3.1 Citação de livros: CODA, Piero. O evento pascal: Trindade e história. São Paulo: Cidade Nova, 1987, p. 10. 3.2 Citação de periódicos (revistas, jornais etc.): NERY, José Israel. Formação de catequistas: uma urgência no Brasil. Revista de Catequese 121 (2008) 6-18 [121 é o número da revista], p. 2. 3.3 Citação de partes de monografia, livro e afins: CALIMAN, Cleto. A eclesiologia do Concílio Vaticano II e a Igreja no Brasil. In: GONÇALVES, Paulo Sérgio Lopes; BOMBONATTO, Vera Ivanise (org.). Concílio Vaticano II: análise e prospectivas. São Paulo: Paulinas, 2004, pp. 229-248. 4 A numeração das seções segue o sistema decimal, em algarismos arábicos (como na descrição dessas normas). 5 O artigo é precedido de resumo em português e abstract (inglês) ou resumen (espanhol), contendo de 100 a 150 palavras. No final do resumo, sejam indicadas de 3 a 5 palavras-chave (keywords ou palabras clave). 6 Sejam enviados os seguintes dados do autor: a última titulação (com indicação da instituição), bem como, atualmente, em qual área atua e onde (instituição ou organização). 7 As ideias e conceitos dos artigos assinados são de responsabilidade dos autores. Isso deverá ser formalizado através de uma declaração, contendo os seguintes termos: “Declaro que o texto intitulado <título do texto aqui> é de minha autoria e assumo a responsabilidade autoral pelo mesmo”. Obs.: depois de datada e assinada, essa declaração deverá ser encaminhada à redação da Revista de Catequese (endereço abaixo). 8 Os autores serão avisados por e-mail da decisão dos membros do conselho editorial sobre a publicação do texto proposto. 9 O artigo deve ser enviado ao seguinte endereço:

UNISAL Centro Universitário Salesiano de São Paulo Unidade São Paulo, Campus Pio XI Rua Pio XI, 1.100 – Alto da Lapa São Paulo – SP. 05060-001 catequese.editor@pio.unisal.br São Paulo, ano 36, n. 142, jul. / dez. 2013.

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