A Rainha Secreta

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A RAINHA SECRETA e Outras Hist贸rias Mi guel Carqueija Miguel

Capa: Cerito 2012 2


ÍNDICE

Prefácio .................................................................................................... 4

A Rainha Secreta .....................................................................................

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A Casa do Medo ....................................................................................... 45

O Que Existe Entre as Estações do Metrô ................................................ 48

Não É Humano ........................................................................................ 51

A Nave do Silêncio ................................................................................... 59

Não Pintem o Rosto do Palhaço ............................................................... 64

Hiperespaço ............................................................................................. 85

Urros no Porão ........................................................................................ 90

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Pr efácio Prefácio “Uma Literatura A ventur esca e Edificante” Av enturesca A história que dá o título ao quarto volume da Coleção Terra Incognita, nos mostra uma narrativa de contexto medieval-tecnológico, situada em tempo e local indeterminado, servindo como pano-de-fundo para um triângulo amoroso entre duas mulheres e um aventureiro. Se fosse possível resumir “A Rainha Secreta” em poucas palavras, talvez esta fosse uma boa tentativa. Mas tão incompleta quanto qualquer esboço de definição. Ainda mais se falamos de Miguel Carqueija. Autor que privilegia a melhor tradição de se contar uma história divertida e rica em valores morais. Carqueija vem construindo ao longo de sua obra de vários contos, um universo definido de assuntos e personagens, de maneira coerente e criativa. O tema de mulheres fortes, destemidas, mas não menos femininas, vem constituindo um de seus tópicos mais bem explorados e recorrentes. “A Rainha Secreta” vai mais longe nesta linha, mostra Astra, uma rainha clandestina, que perdeu o trono para uma república autoritária, e busca recuperá-lo. Há também uma “heroína” mais próxima da nossa realidade, Ilde, uma garota inteligente e sensual que além de ajudar Astra em seu objetivo político, divide o coração de Mont, o Aventureiro Errante, outro personagem emblemático na ficção de Carqueija: idealista, com princípios morais bem definidos e com apurado senso de humor. A história eu não vou contar. Vale a pena você ler do começo ao fim, e se você não conhece as histórias de Carqueija verá que não estou apenas vendendo o peixe: ele realmente diverte, entretém, além de mostrar solidamente a visão de mundo do autor e de como ele concebe a arte e a literatura. Um veículo para edificar, mostrar os valores que perpassam a mente do autor, e o faz acreditar melhorar o leitor, fazê-lo sair enriquecido filosófica e moralmente ao fim do texto. E se ele tem todos esses recursos — e acredita ser possível este tipo de criação artística — seu texto por si só vale uma olhadela. Mas Carqueija não pára por aí e seus outros contos aqui incluídos nos mostram um amplo painel da ficção aventuresca e edificante desse autor carioca. Ele incursiona em narrativas neo-lovecraftianas como nos conhecidos contos “O Que Existe Entre as Estações de Metrô” e “Não é Humano” — este último, a meu ver, seu melhor conto já escrito em muitos anos. 4


O autor também apresenta dois novos contos inspirados pelo velho cavalheiro de Providence. Em “Urros no Porão”, Carqueija incursiona no universo ficcional da cidade de Pedra Torta, onde ao lado do escritor Gerson Lodi-Ribeiro vem desenvolvendo interessantes relatos lovecraftianos com sotaque caipira. Já em “A Nave do Silêncio”, um astronauta desperta no meio de uma viagem interestelar para descobrir que os outros 300 tripulantes da Janus III simplesmente desapareceram de seus casulos de hibernação... Após alguns percalços, consegue reprogramar o computador de bordo para que lhe mostre os registros do que de fato ocorreu aos demais tripulantes. Ao que parece, as forças de C’thulhu voltaram a atacar, e dessa vez em pleno domínio da FC hard! Há outra aventura espacial no conto “Hiperespaço”. Próximo à chegada a Alpha-Centauri dois astronautas duelam pelo amor de uma mulher. Não há traços de Lovecraft aqui, mas sim da boa e velha dualidade bom contra o mau, tão cara à prosa carqueijiana. Saindo em definitivo do ambiente dos monstros inomináveis de C’thulhu, o autor apresenta em “Não Pintem o Rosto do Palhaço”, a divertida história de um sujeito na miséria que arruma um emprego como maquiador de um palhaço em um circo. Ele não se dá muito bem com o palhaço, estrela do espetáculo. Quando a companhia chega à cidade de Hibernópolis para tirar o mágico Cartola da hibernação, o palhaço Amofina morre envenenado. Adivinhe quem é o único suspeito? E o assassino? Num suspense crescente e divertido, Carqueija nos embrenha nesta história intrigante. Miguel Carqueija é um dos autores mais produtivos e participativos da chamada comunidade brasileira de ficção científica. Por cerca de dez anos, ele é o autor mais publicado nas revistas de fãs (os fanzines), e já venceu concursos literários promovidos por essa comunidade. Outra característica marcante de sua trajetória é a variedade de temas e enredos que ele já desenvolveu. Partindo de sua visão cristã de mundo, cria seus personagens bem definidos dentro deste contexto, além dos cenários, as situações, as aventuras e locais por ele imaginados, como por exemplo, o espaço profundo, os terrores interiores de mitos e lendas imaginárias, crônicas do cotidiano num cenário futurista. Tudo isso faz de Carqueija, um autor surpreendente, variado e por isso mesmo muito lido e solicitado entre os leitores que já o conhecem. Sim, agora chegou a sua vez. 5


E A Rainha Secreta reúne todos os elementos do universo de Carqueija. Elementos que fazem dele um autor tão interessante a ser descoberto. Um interesse tão grande quanto o prazer da melhor tradição das boas histórias, como se contadas ao lado de uma fogueira numa noite de inverno. E essa tradição resiste maravilhosamente na prosa de Carqueija. Leiam e comprovem. Marcello Simão Branco

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A RAINHA SECRET A SECRETA CAPÍTULO I Como Mont se En volv olvee Naquilo que Não Deseja Env Era uma tarde extremamente quente e abafada quando cheguei, cansado, à velha Estalagem do Bicudo, no sopé do Pico Malvado. Lá estava a estátua da ave de rapina a nos contemplar sinistramente, no frontispício do albergue; lá estavam as marcas nas velhas paredes, das descargas de chicotes elétricos em tenebrosas batalhas do passado. Eu lá cheguei, porém, desejoso de paz e tranqüilidade; queria apreciar o luar azul que, daquelas paragens de Cantolândia, é incrivelmente belo; queria refazer as forças antes de partir para novas aventuras. Como quer que seja, abri a porta já meio desconjuntada e mirei os degraus de pedra rosa, observando num relance as pessoas que lá se encontravam. Junto à parede da direita, a portaria onde a velha Grimes ainda trabalhava, anotando em seu livro com uma antiquada pena de gansão. No salão em frente, vários hospedes ou viajantes ocupavam poucos lugares das mesas encardidas. O bufão com chapéu de plumas; o tocador de violetas; a garota disponível e o negociante que com ela brindava; o casal de velhos, no canto mais escuro; o homem com o filho pequeno e um palrador no ombro. Fechei a porta rangente, desci os degraus e dirigi-me à Grimes: — Boas luas, Grimes! Recorda-te de mim? — Como não, Mestre Mont! Oh! Os fados nos sorriem de novo! Como esperar, depois de tantos anos, a tua volta, ó Aventureiro Errante? Tiveste muitas aventuras neste mundo de Deus? — Um pouco, ó estalajadeira. Não muitas. E o teu marido como está? — Perguntei, desviando o assunto. — Bem, ó ilustre Paladino. Acredito que ele esteja tão bem quanto possa estar um varão com três palmos de terra por cima... — Não! Queres dizer então que ... — Sim, sim, aventureiro. Teânio morreu há já uns três anos. Estavas sem dúvida muito longe... — Sim. ó Grimes. Eu estava na Península, em penosos trabalhos. — Eu imagino, ó Paladino, o quanto Teânio teria gostado de te rever... Enquanto assim falava ela arregalou a vista e eu percebi que olhava algo na direção da porta. Segui seu olhar e vi, com espanto, quatro esbirros 7


com seus uniformes azuis e capacetes cor de cobre. Eles desceram rapidamente os degraus e, em meio ao súbito silêncio que caíra no local, acercaram-se dos dois velhos, que se encontravam visivelmente apavorados. O Oficial Vermelho do grupo tonitruou a voz: — Então, vermes! Onde ela está? Os dois infelizes responderam com tremores. O homem, cujos cabelos eram escassos e cinzentos, ergueu-se e fez um gesto conciliatório. De onde eu me encontrava não podia escutar o que o velhinho tentava explicar. Ouvi porém, e muito bem, a bofetada que ele recebeu. Ah, as limitações de um Aventureiro Errante! Não sendo clandestino, mas legalizado, como eu poderia interferir com as ações de soldados a serviço do Governo? Os privilégios que eu tinha, e que me abriam as portas de todas as vilas e cidades, seriam imediatamente cassados. E eu próprio passaria a ser um fugitivo. Hoje era uma lenda errante. Amanhã, um nada... — Oh, Deus! — Grimes soluçou e retirou-se rapidamente. As outras pessoas debandaram, enquanto os dois velhos eram puxados para o centro da sala, mesas eram derrubadas e o espancamento tinha início. E eu, protegido pelas minhas insígnias, a tudo assistia, paralisado de horror. -Parem! Nunca me esquecerei desse grito. Olhei para o alto da escadaria no fundo do salão. Todos olharam. E lá estava ELA. Era uma moça alta, de compridos cabelos azuis que formavam ondas sobre seus ombros. Um rosto longo, de feições nobres e um olhar firme como raras vezes eu vi num ser humano. Em hábito pouco comum fora das camponesas, usava calças compridas; seu costume platinado era elegante, mas o que mais chamava atenção era a capa lilás e lustrosa que ela usava. Após a paralisação inicial a cena voltou a se animar. A garota da capa gritou: -Acabem com essa covardia! É a mim que vocês querem, então venham me pegar! O oficial vermelho fez um gesto e dois dos esbirros correram para a escada, já puxando seus bastões. A jovem esperou-os no alto da escada, sem demonstrar medo. Quando eles chegaram perto, deu-se uma cena que eu jamais poderia ter esperado e que, certamente, levarei para o túmulo. A garota da capa moveu-se para a frente — literalmente mergulhou sobre os dois homens, enlaçando-os e provocando a queda tripla de mais de vinte degraus. Rolaram os três até embaixo. E aqui Deus me castigue se eu estiver mentindo, 8


mas um Paladino de Estrada como eu possui o raro treinamento de perceber e acompanhar os detalhes de cenas rápidas. E afirmo que a garota manipulou a queda, de maneira a evitar machucar-se e, ao mesmo tempo, causar o máximo em matéria de contusões e ossos quebrados nos seus adversários. Afinal, no sopé da escada, deixando os dois rufiões em petição de miséria e gemendo de dor, ela se ergueu ilesa e preparou-se para enfrentar os dois restantes. O terceiro esbirro-soldado avançou, mas a pequena, com os dois bastões tirados dos outros, fez voar longe o bastão do seu novo adversário e quebrou-lhe a cabeça sem maior dificuldade. Restava o bigodudo oficial que, perplexo, sacou a pistola psíquica. A moça tirou então de sua tiracolo uma arma semelhante, com seu cano largo e curto. Os jatos de luz amarela foram acionados pelos duelistas e, por um instante, senti pena da valente mocinha. Todos sabem como são poderosos e implacáveis os oficiais no manejo de suas armas de amplificação de ondas mentais. Todo o ódio do Oficial Vermelho estava agora dirigido contra a mulher que ousava desafiálo. Pessoas comuns, mesmo armadas com armas idênticas, não poderiam jamais enfrentar semelhante ataque. Mas eu já deveria ter entendido que a figura de capa não era uma pessoa comum. Durante alguns minutos o duelo neurônico manteve-se em estado de equilíbrio, o homem com o rosto alterado de ódio e ferocidade, a mulher apenas com determinação e coragem. Então, notei as gotas de suor na testa do oficial governista. Logo ele se tornou cada vez mais transtornado, transido em esgares de dor, ofegante. A garota firme. Finalmente, dobraram-se os joelhos daquele homem fortíssimo e ele caiu. — Piedade! — ainda gritou, incrédulo e apavorado. Ela, porém, só cessou a pressão psíquica quando o viu estendido no chão, sem sentidos. Um pouco antes eu notara que o homem da cabeça quebrada recuperava aos poucos a consciência e arrastava-se até um dos bastões esquecidos no chão. Abraçados a um canto e amedrontados, os dois velhos nada viam. E foi aí que algo dentro de mim impeliu-me para a frente. Tomei então a atitude que até então buscara evitar e que iria mudar minha vida a partir de então. Intervi nos acontecimentos. O soldado ergueu-se de chofre e atacou com o bastão. Tendo pulado o obstáculo de uma cadeira caída, segurei-lhe o braço no instante em que a menina, alertada por algum ruído, voltava a cabeça. Foi tudo muito rápido. Torci o braço que, no instante seguinte, iria golpear a cabeça da jovem; puxei o soldado, que me viu bem, e acertei-lhe um soco no queixo. Como 9


ele já estava meio desacorçoado pela pancada anterior, caiu desacordado sem maiores objeções. Senti-me paralisado, estarrecido com minha própria audácia. Eu já enfrentara muitos rufiões, bandidos e estupradores na minha vida; nunca porém agredira um serviçal da República. Aquele simples gesto, se divulgado, bastava para me transformar num fora-da-lei. Eu havia atravessado a linha. Mas não houve tempo para refletir no caso. Uma suave mão pousou no meu ombro direito. — Muito obrigada, Paladino da Justiça. Não sabe o quanto eu lhe agradeço — murmurou a moça. — Não sei se deve me agradecer, Senhora. Eu não poderia ter feito o que fiz. — Entendo o que quer dizer. Mas não se perca em escrúpulos banais. Você fez o que era certo. Qual é o seu nome? — Chamo-me Mont. — É um belo nome, Aventureiro — e assim ela soube o meu nome, mas não disse o próprio. Os dois anciães finalmente tomaram coragem e se aproximaram, abraçando-se à sua jovem heroína. — Graças a Deus! — disse a mulher, que devia ter umas 4.000 luas aproximadamente. E voltando-se para mim : — Quem é ele, querida? — Apresento-lhes o Mestre Mont — respondeu ela, sorrindo, continuando com aquelas apresentações unilaterais. O casal me cumprimentou efusivamente e ela mais efusivamente ainda, beijando-me ambas as faces. Esse gesto pareceu causar certa admiração aos velhos, mas eu me sentia incomodado por outro motivo: — Senhora, sei que não está obrigada a declarar seu nome ou de seus acompanhantes. Mas isso não é da minha conta. Aconselho, porém, a que nós quatro apressemos a nossa retirada, antes que eles recuperem os sentidos ou que cheguem reforços. — Eu já ia dizer isso, Paladino. Iremos agora mesmo. — Aqui, portanto, nos despedimos, Senhora sem nome — observei ironicamente. — Oh, não, Mont. Você irá comigo. — Senhora, eu não posso. Tenho o meu próprio caminho. — Seu caminho agora é o meu. Ou você duvida? — e assim dizendo ela apontou-me a arma psíquica. 10


Observei aquela arma presa nos dedos anular e médio de sua sinistra. Sim, ela era sinistra ou canhota, coisa rara entre as mulheres. Tentei pensar rápido. Armas psíquicas não agem com rapidez extrema. Mesmo que ela acionasse o jato eu teria tempo de pegar a minha própria pistola mentalizadora e responder ao ataque. Nós, Paladinos — Aventureiros de Estrada, somos altamente treinados com esses armamentos. Eu provavelmente seria capaz de derrotar o próprio oficial dos esbirros. Mas derrotar aquela mulher? Depois do que eu tinha assistido, assaltava-me a dúvida. Tentei então negociar: — Eu sou um Aventureiro Errante. Meu caminho é sempre isolado... — Tolices! — a pele de flor, azul-claro, brilhava estranhamente naquele ambiente mal-iluminado — Muitos de vocês são casados e carregam até filhos, ou andam em duplas, trios e quartetos. Não achei que fosse a hora adequada para discutir questões de ortodoxia da profissão. Estava procurando algum argumento quando outra mão, já não tão suave, pousou no meu ombro: — Mestre Mont, deves acompanhá-la. Ide com ela, sem demora. Ajuda-a, protege-a. Eu sei quem ela é. Ide-vos embora imediatamente, é perigoso ficar. Grimes retornara para me aconselhar. Eu sentia um crescente nervosismo, a cada segundo que permanecíamos naquele lugar. — Está bem, eu irei. E você, que fará? — Chamarei a polícia. Pobre de mim se não o fizer! Socorreremos esses homens. Portanto, correi! Ganhai distância!

CAPÍTULO II Como Ilde se Tor na a Ale gre Par ticipante de um Seqüestr o Torna Aleg Participante Seqüestro Corremos para os fundos da estalagem, conduzidos por Grimes e por Ilde, uma das auxiliares. Passamos em meio às assustadas galinhas e Grimes ordenou a Ilde que fosse com os velhos buscar o transporte dos hóspedes. A rapariga permaneceu comigo, vigiando-me com sua arma. Eu ainda pensava numa possível reação. Poderia tomar a arma de uma pessoa normal. Aquela, porém, em nenhuma fração de segundo baixava a guarda dos olhos e dos músculos. Eu havia percebido isso e não me decidia a reagir. Ou talvez, no fundo, me agradasse uma companhia tão intrépida e impetuosa e ao mesmo tempo tão feminina. 11


Parado ali, com o braço de Grimes enganchado no meu, contemplei as sinistras penhas e os arrebites líticos do terrível Pico Malvado, com suas arestas traiçoeiras e seus boqueirões arrepiantes. Meu destino, pensei. Aonde iremos, senão para lá? No lado oposto, no Grande Ouvido, fugiríamos mais facilmente. Logo, pelo caminho de pedra que levava à estrebaria, veio o ruído dos cascos dos focinhudos da hóspede, que vinham puxando o rodeiro, conduzidos pelo casal de velhos; a pé e na frente, correndo com os pés descalços, vinha a jovem Ilde, com suas calças curtas de trabalho; chegou diante de nós, meio sem fôlego e revoltos os cabelos, e falou de forma entrecortada: — Fiz o melhor que pude... coitados, eles estão muito chocados... alimentamos os bichos às pressas... — Eu agradeço muito — falei, afagando-lhe o rosto afogueado. Ela deu-me um olhar maroto. — Oh, Mestre Mont! Não me agradeças! Ajudar um aventureiro... e além disso, uma... Grimes pousou-lhe dois dedos nos lábios. — Cala-te, Ilde. Pega tuas coisas e vai com eles. Tens cinco minutos. Senhora, usa teu raio de poder sobre aqueles homens, para que durmam mais. — Se eu o fizer, Mont escapa. Mas não pusestes teus hóspedes e serviçais para vigiar? — Sim, ó Senhora. Acredito que dormirão bastante, mas não há tempo a perder... — Bem. Se precisares, me avisas. Ilde já se precipitara para o interior do albergue e eu fitei Grimes, que insistia em ficar de braço dado comigo. Toda aquela intimidade mal disfarçava sua intenção de ajudar a hóspede. — Para que Ilde vai nos acompanhar? — Será a guia, Mestre Mont. Não sabereis os melhores caminhos na cordilheira... Observei os dois velhos que, afora as marcas dos sopapos, nada mais exibiam senão perfeitas caras-de-pau de quem não sabe, não viu e nem ouviu nada e nada tem a declarar. Mas, claro, viajar entre duas garotas — uma fogosa e uma majestosa — não me desagradava na verdade. Logo Ilde voltou com uma mochila de couro, atenta à ordem de não perder tempo. — Eu vou, Grimes. Fica com Deus. Volto quando puder. — Vai com Deus, Ilde. E cuida dos nossos hóspedes! 12


Beijaram-se e Ilde subiu no banco de trás do rodeiro, deixando a porta aberta. A moça da capa fez-me um sinal imperativo. Fitando a arma ainda implacavelmente apontada para mim, encaminhei-me por minha vez, escoltado por Grimes. Despedi-me rapidamente, esquecendo inclusive de corresponder à linguagem empolada das estalajadeiras (não que eu fosse obrigado a isso, era apenas costume da região) e acompanhei aquela mulher misteriosa. Cuja identidade, porém, eu já imaginava. Sentei-me no centro do banco, entre as duas mulheres. A um sinal de sua patroa, os dois velhos tocaram os focinhudos e a carruagem seguiu. Ilde ainda ficou acenando alegremente para Grimes até que, na primeira curva do caminho, ela se perdeu de vista. Então Ilde colocou a mochila no colo, procurou e achou umas sandálias e calçou-as. -Não tive tempo de trocar de roupa — observou, sorrindo-me com seu rostinho sardento e juvenil. — Lamento tê-la metido nessa encrenca — respondi secamente. — Oh, não se preocupe! O que a Grimes me pede eu atendo com prazer! Eu estou muito alegre por ter vindo! — Você já não está usando linguajar de estalajadeira... Ela deu uma risada. — É! Só faço isso na presença da Grimes. Afinal eu sou estalajadeira também. Mas não gosto muito de só falar na segunda pessoa... A conversa estava muito boa, mas resolvi esclarecer de uma vez um assunto com a outra moça. Voltei-me para ela: — Afinal, quem é você? — Talvez você já saiba, ou adivinhe. — Eu acredito que sei. Posso falar na frente da Ilde? — Eu não me importo. Arrisque. — Você é a Rainha Secreta. — Parabéns, Mestre Mont. Eu sou. Chamo-me Astra. Sou a Rainha Secreta de Miramar. — Desculpe-me, sei que não devia tê-la chamado de você... — Tolice, Mont! Sou uma fora-da-lei. Uma fugitiva. Meu poder não é reconhecido. Como posso exigir que me tratem de alteza e outros fricotes desse gênero? Me chame de você! — Está combinado. Ilde bateu palmas de alegria. Era uma garota interessante. — Que bom que vocês estão se dando bem! 13


CAPÍTULO III Como Astra, Mont e Ilde Praticam o Jo go de Gato e R ato Jog Rato E o rodeiro seguiu em frente. A estrada começou a se tornar íngreme e impraticável para veículos normais. Os focinhudos, orientados pelos condutores, começaram a galgar os degraus de subida enquanto Astra puxava a alavanca para inflar os balões embutidos. Aos poucos a paisagem descortinou-se grandiosa e selvática. Imensas folhas de bagaços projetavam-se para todas as direções; pintacudos chilreavam alegremente e bandos de dirigíveis zebrados formavam nuvens voadoras e barulhentas, por vezes atacados por corvinos de longos bicos negros. Após algumas curvas do caminho, bordejando despenhadeiros medonhos, a estalagem perdeu-se completamente de vista e uma floresta de palmeironas ensombreceu o nosso caminho. Do alto de uma rocha triangular, um camaleão-torpedo projetou sua língua trífida em nossa direção, provocador, enquanto mais acima, nos galhos finos e horizontais de uma árvore-das-tranças, uma família de asas-negras já cochilava, de cabeça para baixo, pois as primeiras luas já brilhavam no céu, provocando reflexos azulados na bela pele de Astra. Tínhamos permanecido silenciosos por alguns momentos, apreciando a beleza da região, mas aí eu resolvi reencetar a conversação: — E eles, quem são? — Meus preceptores. Leil e Wagner Fulquetin. São muito fiéis, sabe? — Calculo que sim. Voltei-me para Ilde: — Não teme por Grimes? — Oh, não! Ela é muito esperta! E conhece muitas autoridades... para todos os efeitos ela nada podia fazer. Se quatro esbirros foram derrotados... — E você? Como explicará o seu sumiço? — Não há o que explicar. Ajudantes de estalagem vêm e vão, vão e vêm... — fez um gesto vago e deu uma alegre gargalhada, meio sem motivo. — Sigam pela esquerda! — orientou Ilde pela corneta acústica, indicando aos condutores uma passagem mais estreita e que descia, uma alameda entre grandes árvores. Observei Astra, ao meu lado. Uma bela mulher, sem dúvida. Belíssima. Eu pensava em lhe dirigir algumas perguntas, mas ela teve a mesma idéia: — Qual é a sua história, Mont? Quais os seus feitos na vida, por onde tem andado? 14


— Eu andei por toda Miramar e até pelo exterior. Mas um Aventureiro Andante não gosta de falar no seu passado, além do mais eu é que preciso saber algumas coisas. — Como assim? — Porque você quis que eu a acompanhasse? — Você me deu uma valiosa ajuda. — Sim, mas e daí? — Não compreende? Eu estou sem escolta. Você é um bom lutador e certamente pode ser útil à Coroa. — Desde quando aceitei ser convocado pela Coroa? — A sua queixa procede, mas espero convencê-lo. Não é um monarquista, Mont? — Não tenho posição formada. — O que sabe sobre nós? — Sei mais do que sabe a maioria. Quando a República se instalou há 300 anos houve uma perseguição cruel à família real. Embora se diga oficialmente que ela foi extinta, extra-oficialmente se sabe que ela continuou a existir na clandestinidade. Assim surgiram os reis secretos e sua lenda corre até hoje. Eu tinha uma vaga notícia a seu respeito. — Conhece minha terra? — Certamente você é natural das Fontes. — Isso é verdade. E você onde nasceu? — Em Puntbuld, mas saí de lá cedo... — É. Você tem mesmo jeito e sotaque de puntbuldiano. Chegáramos a uma escarpa especialmente difícil e Ilde passou pela portinhola para dar algumas instruções mais detalhadas aos velhos. Aproveitei para fazer uma pergunta importante à rainha: — Nada sei sobre os seus propósitos. A que está me arrastando? Quais os seus objetivos? — De imediato, permanecer viva e livre. A longo prazo, casar-me e perpetuar minha dinastia. A prazo mais longo ainda, derrubar a República e restaurar a Monarquia. — E espera que a ajude nisso tudo? — Mont, você é um homem de verdade. Como restam poucos. Fiz-lhe uma pergunta há pouco, mas nem precisava. Conheço a sua fama. É de um homem como você que eu preciso. — Sim, mas...— súbito percebi todas as implicações do que ela dizia. Afinal, ainda há pouco ela falara: “casar-me e perpetuar minha dinastia.” 15


Fiquei sem fala e evitei o seu olhar. Felizmente, escurecia. Ilde retornou e, olhando maliciosamente para nós dois, perguntou-me à queima-roupa: — Mont, você é um bom travesseiro? — Hem? — Bom, terá que servir. — Do que você está falando? — Pra baixo o Céu ajuda, o trecho agora é seguro e eu estou cansada. Vou repousar um pouco. Assim dizendo ela tirou as sandálias, enroscou-se no assento e pousou a cabeça em minhas pernas. — Eu gosto. És um bom travesseiro, Mont. Olhei para Astra. Decididamente, ela não tinha gostado. — Nós vamos acampar daqui a pouco. Não precisava ela ter feito isso... — Acampar? — Perguntei. — É claro. Ou você pensa que vamos andar a noite inteira? As bestas precisam de descanso e alimento. — Não são só elas. Afinal, eu ia jantar e dormir na Estalagem do Bicudo. — Lembrei. — Queria matar as saudades do estufado que a Grimes faz... Ilde bocejou, remexendo a cabeça em minhas pernas. — Ih, nem fales! — Ilde falou. — Mas eu trouxe uns pastéis... — Podemos colher umas frutas. De qualquer forma, temos comida. — disse Astra levantando-se — Bem, tenho que falar com os Fulquetins. Dêemme licença. Ela abriu a portinhola da direita e passou para a frente do veículo, não sem antes lançar um olhar incomodado para a garota estalajadeira. Vendo-se sozinha comigo, Ilde perguntou maliciosamente: — Tu a achas atraente? — É uma mulher atraente. — É para ti? — Por que pergunta isso? — Fiz-te uma pergunta. Não me respondas com outra. — Por que você está falando na segunda pessoa? — Não desconverses! — ela deu-me um soco de brincadeira no braço mas notei que, se ela quisesse dá-lo para valer, doeria. — Pois bem. Ainda não tive tempo de pensar no assunto. — Pois pense sem demora, Mont. Você quer ser um Príncipe Consorte? Não caia nessa. Apesar do nome, um príncipe consorte geralmente é um sujeito azarado. Tu serás uma figura decorativa, o pai dos filhos dela, mas 16


não apitarás nada. E serás perseguido pelo resto da vida ou te exilarás com ela. É muita coisa para pedir a um homem. Eu quero um homem que seja o pai dos meus filhos, mas também o meu marido. — Você não é um pouco jovem demais para pensar nisso? — Que queres dizer? Não sou nenhuma criança, Mont! Sou uma mulher! Interrompeu-se. Astra retornava. Ilde fechou os olhos, fingindo cochilar. Acabamos acampando numa espécie de mirante, de onde se podia avistar o Vale do Timbre a grande distância. Astra e os Fulquetins puseram-se a espalhar uns sacos de dormir pelo chão duro, enquanto Ilde pendurava uns lampiões em galhos próximos. Eu ficara com a incumbência de preparar a comida num fogão e numa mesa portáteis. Quanto às frutas, só de dia poderíamos procurá-las. Não lembro direito o que foi que comemos, talvez porque eu perdera toda a vontade de comer. Umas panquecas pré-fabricadas, penso, e os pastéis da Ilde. Esta continuava tendo idéias. Eu trocara rapidamente de roupa, dentro do rodeiro e fora das vistas das mulheres. Na minha mochila sempre haviam peças para troca. Agora, de pijama, procurava escolher um saco de dormir. Ilde chamou Astra e tocou-me no braço: — Rainha, e se ele fugir? — Eu penso que ele agora está conosco, Ilde. — Eu não confiaria tanto. Que tal amarrá-lo? Tu apontas a arma para ele e eu o amarro. Depois, durmo ao seu lado para vigiá-lo. Tens cordas, não tens, Astra? — És uma biruta, garota. Mas eu tenho coisa melhor do que isso. Ela tinha, como quem não queria nada, puxou um vaporizador da tiracolo. Acionou o jato cor-de-rosa sobre mim, num abrir e fechar de olhos. — Sabe o que é isso, Mestre Mont? — Um marcador fotônico — respondi secamente. — Isso. Você está marcado por três dias. Com os meus sensores poderei achá-lo facilmente. — Rainha, será que tudo isso é sério? — É uma boa pergunta. Vamos dormir, que amanhã o dia será longo e incerto. Assim dizendo, deu-nos as costas e foi se trocar no rodeiro. Visivelmente decepcionada, Ilde acariciou-me o peito por cima da roupa: 17


— Preferia te amarrar. Daria menos trabalho que te rastrear, se tu fugires.

CAPÍTULO IV eta Como Ev olui o Relacionamento da R ainha Secr Secreta Evolui Rainha gem com a Gar ota da Estala Garota Estalag Foi uma noite mal dormida. Por um lado, eu precisava refletir sobre os acontecimentos. Um Aventureiro Errante, um Paladino das Estradas, só age quando enxerga claramente o que deve fazer. E eu não enxergava. Daí a minha relativa passividade. Se eu me rebelasse contra o sistema vigente, teria de ser para valer. Até aí eu enfrentara piratas, assassinos, saqueadores de estrada, protegia populações inocentes. Mas não podia levantar a mão contra uns reles esbirros arbitrários. Por isso eu podia usar o meu uniforme de paladino, com as folhas em relevo nas costas e a espada de fogo pintada no casaco. Mas se tivesse sido identificado tudo estaria perdido. A não ser que aquela figura de teatro de farsa pudesse derrubar a ditadura republicana e me colocasse novamente legalizado. Se por outro lado eu resolvesse ir embora, separar-me da rainha clandestina, provavelmente teria que haver confronto entre nós. Os dois velhos não eram de nada e eu podia ignorá-los. A posição de Ilde era ambígua. De qualquer forma parecia disposta a se opor, se eu quisesse me separar. Seus motivos, porém, não deviam coincidir com os de Astra. Muito pelo contrário. Ilde tomara carona em nossa fuga e já agora não se mostrava propensa a nos deixar. Celibatário há tantos anos e eis que, de repente, surgem duas chances de casamento. E ao mesmo tempo, na mesma noite! Amanhã ou depois poderíamos estar mortos, se não conseguíssemos nos colocar em segurança. Como elas podiam pensar nisso, quando estávamos debaixo da sombra da morte? Tentei adormecer. Vez por outra, porém, meus ouvidos aguçados escutavam um ruído leve de pés nus que se aproximavam e paravam perto de mim. Eu fingia continuar dormindo e abria os olhos somente o suficiente para ver quem era. E era sempre Ilde. A noite inteira ela fez isso, vinha e ficava parada alguns minutos, em contemplação; depois se afastava. Uma ou duas horas depois retornava. Teria dormido? Não sei. Quanto a Astra, não tinha duvidas, pois ouvia o seu tranqüilo ressonar. 18


Os dois velhos roncaram a noite toda. Ao amanhecer, espreguiçando-me no saco de dormir, procurei definir uma estratégia. A prioridade era escapar ao rastreamento dos esbirros. No Grande ouvido, com seus inúmeros caminhos, suas incontáveis aldeias, encontrar-nos seria como achar agulha em palheiro. Só que eu não poderia continuar com minhas insígnias que revelavam minha posição de Aventureiro e Paladino. Decidi que teria que retirar minhas insígnias e deixar crescer o bigode. Apalpei cuidadosamente os compartimentos, inclusive secretos, de meu pijama. Todas as minhas armas estavam comigo. Eu não as deixara no uniforme pois alguém poderia ter a idéia de confiscá-las. Levantei-me e procurei os demais. Ilde veio ao meu encontro e nos beijamos espontaneamente. — Mont — disse ela, pondo-se nas pontas dos pés e pousando os dedos das mãos em meus ombros para me fitar mais de perto — a Rainha está tomando banho no rodeiro. Os outros estão com Bú e Bó. — Quem? — Os focinhudos, Mestre. Não sabia que esses são os seus nomes? — Ninguém me apresentou a eles. Bem, já os vi. — Venha ver de perto. São animais tão nobres! Ela pegou minha mão e conduziu-me. Mais adiante, perto de um arvoredo, Leil e Wagner escovavam os dois focinhudos. Aproximei-me e cumprimentei os dois anciãos. Wagner voltou para mim sua face enrugada e com o cinza típico de um conariano das montanhas: — Boas luas, Mestre Mont! O senhor já os olhou de perto? Realmente eram belíssimos animais e eu os afaguei com gosto. Bú era um exemplar rajado de negro, com um probóscide com mais de 40 centímetros. Bó era do tipo baio, com grandes pupilas amarelas, e resfolegava energia. Leil se voltou com um sorriso: — São animais de raça, senhor. Nossa ama gosta muito deles. — É, eu também gosto. Percebi que todos estavam com roupas diurnas — mesmo Ilde, com seu calçãozinho desbotado — ela não pudera colocar roupas volumosas na mochila, quando de nossa partida apressada ( ou talvez nem as tivesse). Isto só podia significar uma coisa: eu dormira demais. Conseqüência da prolongada insônia... 19


Um aventureiro e Paladino Andante não deve dormir demais. Fiquei zangado comigo mesmo. Ilde porém, com o braço enganchado no meu, já me puxava na direção do veículo. — Ela já deve estar saindo. Você toma o seu banho e depois nós comemos. — Estou achando que este veículo é super-bem equipado... Abriu-se uma das portas do rodeiro e a Rainha Secreta saiu, inteiramente vestida, inclusive com a capa. Eu gostava de bonitas azuladas como Astra; normalmente atraiam-me mais que as esverdeadas tipo Ilde. Isso na maioria das vezes. Astra veio em nossa direção e me beijou. Então, visivelmente incomodada, voltou-se para Ilde, que mesmo então não largara meu braço. — Ilde, tenho algo a lhe dizer. — Claro, Astra. — Estive estudando o mapa e conclui que podemos escolher entre uma das dez aldeias ao longo do Timbre. Escolhi Vila Molhada por diversas razões. Pelos meus cálculos poderemos chegar lá por volta de meio-dia. Lá passa uma ferrovia que contorna a serra e pode deixar você em Mercúrio, onde poderá baldear para Serenópolis. — Eu sei de tudo isso, Rainha. Você está sugerindo que eu me separe de vocês? — Sua missão estará encerrada. Você nos guiou através da montanha. Eu havia, discretamente, separado meu braço do de Ilde, e agora acompanhava com interesse aquele diálogo. — Rainha, eu não quero retornar. Não agora. — E por que não? Você tem o seu emprego. — Não importa! Grimes me receberá quando eu quiser. — Mas por que você quer vir conosco? — Não percebe? Mont é um homem solitário. Já ficou assim por muito tempo. Ele precisa ter uma mulher ao seu lado. Astra cruzou os braços. — E eu, o que sou? — Tu és uma pedra de gelo! Estava claro que as relações entre as duas começavam a degenerar. Astra não se deu por achada: — Oh, bem! Mas então nós temos outra mulher aqui, a Leil... — Sabes que ela é velha e já tem o homem dela... 20


— Começo a me arrepender por ter consentido que você nos acompanhasse. Ah, Grimes, que bela idéia a tua! Mas há algo que não pareces ter pensado, menina: tens dinheiro? Comida, alojamento, roupa, tudo isso geralmente custa dinheiro. — Tenho um pouquinho. — E depois? Eu não vou te sustentar. — Rainha, isto não será necessário. Enquanto eu estiver com Mestre Mont, usaremos o Privilégio dos Paladinos. Engoli em seco. Um Aventureiro Errante deve falar pouco e ouvir muito. Só que eu ainda não dissera a elas da minha prudente decisão de retirar as insígnias. Com elas de fato as minhas facilidades eram muitas. Onde quer que eu fosse as portas eram abertas, as camas preparadas, os pratos abastecidos. Sem as insígnias seria tudo mais difícil. Mas eu sabia que Astra estava blefando. A dinastia dos Diamantinos não teria sobrevivido por três séculos sem uma rede de apoio pelo país, constituída por uma grande parte do povo. Não faltariam refúgios para Astra, que podia se esconder até despistar os seus perseguidores. Eu podia jurar que a escolha da Vila Molhada não era casual. Astra dirigiu-se para mim: — Mont, vá lá no carro tomar banho e se trocar. Rápido, pois não temos tempo a perder. No caminho discutiremos isso. Eu estava terminando de me pentear, e ainda perplexo com o rumo dos acontecimentos, quando bateram furiosamente na porta do compartimento de banho do rodeiro. — Mestre Mont! Abra depressa, por favor! — Mestre Mont, por amor do Céu, precisamos do senhor! Wagner e Leil. Ora essa! Abri a porta. — Que está havendo? — As duas, Mestre! As duas! — falavam ao mesmo tempo. Vi logo do que se tratava. Corri para o local do incidente. E lá estavam as duas, rolando pelo chão em luta furiosa. Tinha me passado pela imaginação a figura de Ilde sendo facilmente dominada por Astra. Afinal, eu vira o que a Rainha Oculta era capaz de fazer. A cena real, porém, era bem outra. Elas lutavam em igualdade de condições, e se eu fosse dado a apostas apostaria em Ilde. Lembram-se do que eu falei sobre a minha capacidade — como Aventureiro das 21


Estradas que sou — de perceber os detalhes nos rápidos movimento? Pois bem: Ilde, apesar do equilíbrio da luta, estava firmíssima. Astra, porém, ofegava. Quando a Rainha Secreta perdesse o fôlego, a outra faria dela o que quisesse. Astra provavelmente só tinha uma possibilidade de ganhar a briga: escapar àquela luta livre e acertar um golpe em sua adversária. Mas para interromper a luta de agarramento seria preciso que Ilde lhe soltasse os braços — e isso Ilde não fazia. A pequenina era um osso duro de roer! Provavelmente não se encontraria uma mulher em um milhão com a aptidão física de Astra. E ali estavam duas! O mundo tem estranhas coincidências! Tentou-me a idéia de deixar que as duas continuassem lutando, ver quem podia mais afinal. Mas os dois idosos teriam um acesso. Acerquei-me, agarrei Ilde pelas axilas e puxei-a com quanta força tinha. Ela insistia em atacar e eu, tentando contê-la, torci-lhe o braço esquerdo para trás. — Larga-me! Como eu não a largasse, Ilde deu-me uma cotovelada no fígado, com o braço direito, ao mesmo tempo em que Astra se erguia. A dor foi tanta que eu me vi obrigado a largar Ilde, que se virou e me acertou um bofetão fortíssimo, jogando-me ao solo. No mesmo instante ela se ajoelhou ao meu lado e me cobriu de beijos. — Oh, meu querido! Desculpa! Não quis te bater! Tu me perdoas? — Bem, se a indenização for sempre essa... Ilde fuzilou o olhar para Astra, que nos observava com expressão irônica: — Estás satisfeita? Assim dizendo Ilde me ajudou a levantar e tornou a se dirigir à Rainha: — Entende isso, Astra. Não te tenho medo! Se precisar te enfrentar de novo... eu te enfrentarei. Afastou-se de nós, parecendo, apesar de tudo, a pique de chorar. Sua voz não soara firme. — Que aconteceu, afinal? — perguntei, enquanto os preceptores se abraçavam à sua Rainha. — Leil, Wagner, vão preparar o desjejum. Deixe-me falar com Mestre Mont. Eles se afastaram, obedientes, e ela me respondeu: — Ela me abordou, disse-me coisas desagradáveis. Eu respondi com outras. Não gosto de crianças atrevidas. Então ela me pulou em cima. 22


— E aí? — Eu lhe dei um golpe que a jogou no chão. Mas é uma pequena esperta e destemida. Ela puxou minha perna e me derrubou também. Aí veio sobre mim na luta livre. E eu tenho que reconhecer: ela é ótima na luta livre. Se casares com ela, Mont, é bom que te prepares. Terás muita diversão pela frente.

CAPÍTULO V onel Bom Coronel Entra em Cena o Cor Ilde sentara-se, amuada, numa cadeira desdobrável que fora colocada ao ar livre. Astra foi ajudar os outros dois a esquentar um desjejum. Resolvi que teria que agir. Aproximei-me de Ilde: — Vamos comer alguma coisa? — Creio que terei que fazê-lo. Não quero ficar fraca. Quando nos reunimos em torno da mesa também desdobrável, comecei a falar: — Quero pedir uma coisa a vocês duas. Nós corremos perigo iminente de vida e temos que agir com base nesse pressuposto. Ora, nós somos capazes de nos defender, mas só se estivermos unidos. Não podemos brigar. Temos que ser todos amigos quanto mais não seja por interesse. Ou não somos todos adultos? Calei-me. Meu discurso, de legítima filosofia de botequim, foi recebido com um espectral silêncio e olhares constrangidos. Comemos em silêncio os bolinhos de fafiton, preparados por Leil, e só ao término eu me animei a dar outro conselho: — Rainha... eu penso que é tempo de começarmos a vigiar o que se aproxima. Não podemos ser pegos de surpresa. — Nunca sou pega de surpresa, Mont. — Mas não providenciamos sentinela... — Não é preciso. Existem os sensores do rodeiro. — Isso não me deixa totalmente tranqüilo. — Então venha ao meu gabinete. Ela se ergueu e caminhou em direção ao enorme rodeiro. Eu dei uma olhada em Ilde e segui a rainha. Logo percebi que Ilde vinha atrás. Entramos os três no gabinete, situado nos fundos do rodeiro. Um espaço pequeno, mas muito bem distribuído. Astra sentou-se diante de um trans23


missor-receptor ondiônico equipado com teletipo e puxou o relatório. Leuo rapidamente e acendeu a tela de tv. — Como vocês verão, dentro de dez minutos haverá um pronunciamento em rede feito pelo Coronel Bom, do Comando Estratégico do Norte. Pelas informações que recebi, ele falará a meu respeito. — Como assim, Rainha? Como é que essas informações não são detectadas? — Porque eu uso uma rede secreta e beneficiada de um tamponamento energético à prova de detecção. A ciência dos monarquistas é avançada. — Entendo. E você deve ter milhões de adeptos em Miramar. — Ativos, só milhares. Mas é o suficiente para que eu saiba do que ocorre. Esperamos em silêncio pelo pronunciamento. Leil e Wagner mantinham-se à porta, eu me sentara num dos dois únicos assentos ( no outro estava a rainha) e Ilde ajeitara-se no chão mesmo, atrás de nós, aparentemente muito interessada. Então, à hora aprazada, o canal governista interrompeu sua programação habitual e anunciou “um importante pronunciamento do Coronel Bom, Comandante Estratégico do Norte, dirigido a todo o povo de Miramar.” Eu conhecia o Coronel Bom e sua aparição não me agradava nem um pouco. E lá estava ele. Careca, com um olho tampado e nariz de colherão-decrista, aquele olhar penetrante e repulsivo no único olho sadio. Não mudara nada em dez anos. “Povo de Miramar: “Neste momento está em curso um movimento subversivo que visa à restauração do antigo regime real, que o nosso povo repudiou há várias gerações. “Uma mulher, que se apresenta como Rainha Astra, e que pretende ser herdeira da antiga dinastia real, lidera na aparência esse movimento na verdade relacionado com forças corruptas e antipatrióticas. Utilizando métodos audaciosos, uma rede de traidores prossegue até hoje com a rebeldia que periodicamente perturba o país. “Ao longo de três séculos os monarquistas tentaram e não conseguiram retornar ao poder. E não o fizeram porque o povo não os quer mais. Estão na contramão da História.” — Nunca fizeram plebiscito — observou Astra. 24


“Na noite de ontem,” — prosseguiu o coronel — “uma patrulha governamental sofreu covarde agressão da qual participaram a mulher em questão e mais dois homens e uma mulher. Um casal está plenamente identificado, como seguidores habituais de Astra. O outro homem usava insígnias de Paladino de Estrada e não foi identificado. A agressão ocorreu na Estalagem do Bicudo, em Serenópolis, na Cantolândia. Sabe-se que o grupo fugiu através do Pico Malvado, utilizando um rodeiro puxado por focinhudos. Vamos aos retratos dos três indivíduos já identificados e ao retrato falado do segundo homem.” Seguiram-se os retratos de Astra, Leil e Wagner, em poses absolutamente normais. O meu retrato falado, porém, não me fazia justiça. Sentime aliviado. Grimes fizera um bom trabalho. “Agora,” — prosseguiu o coronel — “quero que cada um compreenda que os quatro criminosos em questão devem ser capturados vivos, para serem interrogados e julgados. Só se houver necessidade deverão ser mortos, isto é, se resistirem à prisão. “Será concedida uma recompensa no valor de 1.500 discos por terrorista entregue — dentre esses quatro ora denunciados.” O coronel despediu-se e eu percebi o quanto estava tenso. Sabia que com ele, ou vai ou racha. Astra leu alguns relatórios aparentemente em código e se ergueu: — Não há perigo imediato. Haverá quando o coronel Bom der início efetivo às suas buscas. Vamos pegar umas frutas e partir imediatamente. — Vamos para onde, Astra? — indagou Ilde. — Já disse que vamos para Vila Molhada. Pareciam mais calmas. Pouco depois, com uma cesta cheia de cerêgias, deixamos o local em grande velocidade. A paisagem mudou, atravessávamos lezírias e várzeas e cruzávamos com outros veículos, inclusive rodeiros. Passamos por diversas aldeias e vilas, cada uma tão boa ou ruim (depende do ponto de vista) quanto as outras. Eu seria capaz de jurar que em Vila Molhada as próprias autoridades administrativas locais deviam ser coniventes com Astra. Ela certamente não ia lá à toa. Só que Ilde, já agora à minha direita, continuava com suas idéias. — Rainha, se vamos saltar numa aldeia você deve fazer uma coisa. — O quê? — Guardar essa capa. Tire essa coisa enquanto é tempo. — Que é que você quer dizer? 25


— Não percebe? A capa é um chamariz. Ainda mais que foi vista pelos esbirros. Se você não quer nos matar a todos, deixe essa coisa guardada. — Está bem. Talvez você tenha razão. Eu tirarei a capa. Assim dizendo a Rainha Secreta desligou os botões das alças do pescoço de sua majestosa capa. Então, dobrou a capa em seu colo e passou-a aos velhos na frente do veículo, para que a guardassem. Depois voltou-se para Ilde. — Fiz a tua vontade. Agora é a tua vez. Trata de calçar alguma coisa. Também chamarás atenção se entrares descalça na aldeia, como se já não bastassem essas tuas pernas de fora. Ilde riu-se com espontaneidade e procurou as suas sandálias. Senti que a tensão entre as duas já relaxava. Para mim foi uma alívio.

CAPÍTULO VI Como Astra Começa a Demonstrar Seu Poder Lembrei-me de algo importante. Retirei o meu casaco e busquei na mochila um traje à paisana. Poderia adaptar o casaco, mas daria muito trabalho e eu poderia precisar dele em breve. Astra foi a primeira a protestar: — Por que você fez isso? — Já que o assunto é não chamar a atenção... Ilde também fez o seu protesto: — Mas, Mont! Como poderás usar o teu privilégio? — Cara menina, lembra que eu agredi um esbirro? E que isso pode custar a cassação de minha licença de aventureiro? — Imaginei isso, mas é uma pena que tu sejas tão limitado. — Não depende de mim. — Está bem. Com ou sem as insígnias, eu gosto de você. Assim dizendo ela repousou o rosto em meu ombro. A rainha não pôde deixar de interferir! — Mestre Mont, a sua preocupação é legítima. Acontece que, com sua adesão à minha causa, você deve contar com sua inteira reabilitação... caso seja necessária... só depende da restauração da monarquia. — Quem foi que disse que eu aderi à sua causa? — Você está comigo, não está? — Não necessariamente. 26


— Não blefe! Observei-o bem e sei que minha causa lhe é simpática. O que você precisa é deixar de ter medo da República. Se você é um Paladino da Justiça, não pode consentir na violência e na opressão só porque elas usam distintivo. Assuma o justiceiro que você é e me ajude, que eu preciso de justiça para a minha causa. Houve um curto silêncio. Astra então se dirigiu à garota: — E você, Ilde, fique também conosco. Eu gosto de você. pode nos ajudar muito. E depois, entre os meus seguidores, poderei até lhe arranjar um bom marido. — Melhor do que Mont, Rainha? Astra sorriu com ironia. — Quem sabe? — Humpf — fez Ilde, com evidente pouco caso. A estrada se dirigia à Vila Molhada, porém Astra ordenou que se tomasse um atalho, cuja placa dizia: Fazendola. Estranhei. — O que houve, Rainha? Não vamos mais à Vila Molhada? — A fazenda faz parte de sua área. — Sim, mas... — É para onde vamos em primeiro lugar. Não discuti. Sabia que aquela mulher tinha os seus segredos. O que me preocupava era de fato sair da estrada, antes que aparecesse alguma patrulha. Com nossas armas psíquicas Astra e eu podíamos enfrentar muita gente, mas não convinha arriscar. As surpresas estavam apenas começando. Na grande porteira de garanino da fazenda fomos recebidos por um casal de meia-idade e outras pessoas. Astra desceu e teve uma rápida e reservada conversa com o casal. Depois voltou para o rodeiro e mandou seguir em frente. Ilde estava muito curiosa, mas a rainha não deu muita importância às suas perguntas. Paramos em frente a um casarão de três andares e saltamos os cinco. Astra dirigiu-se a um velho ossudo, a quem cumprimentou efusivamente: — Tel, cuide dos meus bichinhos, por favor. Leil e Wagner o ajudarão. — É uma grande honra poder servi-la mais uma vez, Rainha. — Eu sei o quanto você é leal. Mas permita-me, por favor, não apresentar os meus amigos. — À vontade, Rainha. Astra voltou-se para nós: 27


— Peguem as suas bagagens e me acompanhem. — Mas, Rainha... — Nenhuma objeção, amigo. Tudo se esclarecerá daqui a pouco. Nós a seguimos e Astra penetrou no átrio do casarão, onde esperou a chegada do casal. Logo que eles se acercaram a Rainha disse: — Como já tratamos na porteira, tudo o que precisamos é comida, roupa lavada, banho e novo veículo. Isso quer dizer que daqui a três horas poderemos partir, correto? — É claro, Majestade — respondeu a mulher, fazendo uma mesura ridícula — Sua vontade é lei entre nós. — Obrigada, Sia. Conheço a lealdade de vocês, a sua em particular. E vocês, meus amigos, me acompanhem. Cada um de nós terá um quarto para de trocar e banhar; depois almoçaremos. Eu não estava boquiaberto porque, como Vigilante das Estradas, possuía privilégios parecidos. Os de Astra, porém, eram visivelmente maiores e de certa forma até alarmantes. Não posso me queixar do almoço. O filé de corupapo cor-de-rosa estava delicioso. Depois que recebi a roupa lavada e fechei minha mochila, quando aguardava na sala de estar, Astra veio até mim: — Mestre Mont, vamos para a Vila Molhada. Mas antes quero conversar com você. — Não é um pouco cedo, Rainha? — Que quer dizer? Você também lê pensamento? Sorri. — Vejamos se é o que eu pensei. — Sente-se, Mont. Sentei-me e ela sentou ao meu lado: — Mestre mont, se der o seu consentimento já em Vila Molhada poderemos nos casar. — Mas... como assim? — Posso arranjar um sacerdote que realize matrimônio secreto e aí não haverá burocracias. Além disso, como rainha tenho esse privilegio. — E Ilde? Eu dissera isso só para provocá-la. — Você a leva a sério, Mont? É apenas uma criança. — Talvez eu prefira uma criança a uma rainha... — Mont, sei que você não fala sério. Pois saiba que, se eu quisesse, Ilde 28


poderia ficar aqui retida. Bastaria uma ordem minha. — Mas você não o fará. — Não, Mont. Ela é muito inocente e nem lhe passa pela cabeça esse risco. E no entanto eu poderia fazê-lo. Ela provavelmente nunca mais o veria. — Você não o fará — insisti. — Não, eu não o farei. Ela é uma boa escudeira e pode ser útil. Não pense que eu seja tão boazinha! — Você tem bom coração, Astra, embora não queira admiti-lo... — Basta, Mont. Eu fiz uma proposta. Não compreende o que isto quer dizer? — Sim, compreendo que você quer me usar num jogo de poder. Ela fechou a expressão e crispou a mão direita. pensei que ia me dar uma bofetada. Mas a bofetada não veio. — Mont, eu não posso me externar aqui. Questões de conveniência. Mas eu sei abraçar, beijar nos lábios, sou uma mulher e não uma pedra de gelo como Ilde acusou. E eu não lhe faria essa proposta se não gostasse realmente de você! — Será necessário que você prove — respondi secamente. — Até que ponto, Mont? — Não ultrapassaremos os limites. Um Paladino de Estrada não seduz uma Rainha. Seria uma baixeza da qual eu não sou capaz. Ela sorriu. — Está bem, Mont. Eu te provarei que sou feminina. Quando pudermos estar à sós. Tendo deixado bem claro que não aceitaria um casamento tão rápido, dispus-me a acompanhar Astra. Ela então passou-me as novidades: — Meus preceptores ficarão aqui. Não posso arriscá-los por mais tempo. — Só iremos nós dois? — Não, Mont. Ilde irá conosco. E somente ela. — Você não poderia levar mais gente? — Você verá que não é necessário. — Mas diga...como foi que aqueles esbirros a encontraram? — Estavam na minha pista desde Lacustre. Eu estava com três escudeiros, e eles sacrificaram suas vidas para me salvar e a Leil e Wagner. Eles desviaram a atenção dos governistas. — E o que houve com os membros da Família Real? — Quase toda ela foi dizimada. E eu não quero me casar com um dos meus primos. Não são muito interessantes. 29


Astra ergueu-se e me fez sinal para fazer o mesmo. Apontou a decoração da sala, a louça de Rimbud e os azulejos em estilo tontonista superior. — Esta mansão, Mont, pertenceu ao Conselheiro Gorado. Coisas importantíssimas se passaram aqui. Pense nisso e me acompanhe! Segui-a por uma escada estreita e por um corredor. Pessoas nos viram, mas ela não lhes deu importância e prosseguiu até uma porta azul, que abriu com uma das chaves de seu chaveiro. — Entre, Mestre Mont. Entrei e me vi dentro de um quarto agradável e bem mobiliado. Ela apontou para um divã: — Venha. Ela sentou-se, não sem antes trancar a porta. Eu me sentei ao seu lado. Astra era uma figura dominadora. Naquele momento senti-me como que arrasado, sem forças ou vontade para resistir. Por um absurdo momento, uma absurda fantasia sibilou-me que eu estava diante do carrasco — alguma espécie de carrasco. E então a fantasia se esfumou e eu me vi diante, isto sim, de uma mulher belíssima, carismática e recatada. Uma mulher que fulminaria com o simples olhar, qualquer gesto mais atrevido. — Dez minutos, Mont. Depois sairemos. Me abrace e me beije. Que mais eu poderia fazer. Os dias que se seguiram foram de crescente surpresa. Em Vila Molhada, na casa que nos acolheu, até o Prefeito veio nos visitar discretamente. E chamou-me Príncipe. Cada vez se tornava mais clara a existência, em Miramar, de um poder paralelo e subterrâneo que servia sem vacilação àquela mulher extraordinária. Um poder que ela guiava com segurança e firmeza. Nós ali chegáramos num carro ovóide, fornecido na fazenda, de modo que as informações do Coronel Bom ficaram bastante desatualizadas, aumentando a nossa chance de fuga. E eu evitava o olhar de Ilde.

CAPÍTULO VII Como V elhos Ami gos se Reencontram Velhos Amig Passaram-se algumas luas. 30


Uma espécie de remorso, que a princípio parecia me sufocar, a pouco e pouco me abandonava como um espírito possessor sendo exorcizado. Ilde e eu nos tratávamos de forma fria e distante. Eu me tornara o noivo da Rainha Secreta e a escudeira guardava a mágoa no íntimo do seu coração... e nos seguia. Uma voz abafada, no mais recôndito da minha consciência, sussurrava às vezes, acusando-me de crueldade e ingratidão. Eu, porém — assim me justificava — apreciava Ilde e sua dedicação. Certo dia do mês de Tusan, cedinho pela manhã, sob forte chuva, estávamos Astra, Ilde, eu próprio e dois dos seguidores da Rainha — Akerbaton e Trupadox — no alto de uma colina verdejante, em Ladencion, no extremo norte do Grande Ouvido. Em todo aquele tempo tínhamos zombado dos esforços do Coronel Bom, que passara a província a pente fino e só encontrara pistas falsas. Astra revelara-me parte do seu grandioso plano e agora eu via claramente que, se alguém detinha a capacidade de restauras a monarquia esse alguém era ela. Num trabalho paciente, que lhe custara os anos da juventude (não era tão jovem quanto parecia), aglutinara forças dispersas e consolidara uma poderosa rede de informações. Essa legião rebelde e oculta estava pronta para se levantar e dar a vida pela Rainha. Incrível, mas verdade. — Veja, Mestre — dizia ela, apontando a torre cilíndrica ao longe — eis o que nos interessa. Esta central retransmissora, escondida na solidão. Aqui existem recursos que o governo provavelmente esqueceu-se de inventariar. Por esse nó eletrônico, podemos confundir o serviço de inteligência do inimigo. — Duvido muito, Astra. Não deixariam um local desses tão desguarnecido. — Há certos fatores a considerar, Mont. Em primeiro lugar, a displicência do governo republicano, que deixa até que estoques de alimentos se estraguem. É bem a ideologia vigente, de não ligar para nada em matérias importantes. Em segundo lugar, oficialmente não existe a Revolução Monarquista. Oficialmente a própria Rainha Secreta não existe. Portanto, colocar uma rede de segurança em certos lugares seria reconhecer uma coisa que não existe. E há um terceiro fator: o pouco caso que o Estado dedica à ciência. Você acha que Normus entende o significado estratégico das ondas? — Seria esperar demais dele... — Que faremos Rainha? — disse Trupadox — Chove muito! — Oh, cale-se! Observe! 31


Do imenso farol saíram quatro figuras portando capas de chuva, que rapidamente iniciaram um conserto numa rede de aracnídeo conectada à ala noroeste da construção. Sabíamos que eles eram toda a equipagem e sabotáramos o equipamento para obrigá-los a sair. Abaixando o seu binóculo, Astra ordenou: — Os homens devem ficar aqui. Ilde, me acompanhe. Os outros homens fizeram ouvir seus protestos. Astra, porém foi taxativa. — Vocês me escutaram e é isso que irão fazer. — Astra — observei, com a liberdade de noivo — eu sou um Aventureiro Errante e não posso ficar de fora. Além do mais, com o meu treinamento... — Mont, procure compreender, eles podem temer vocês, porque são homens, mas não quererão ter medo de duas mulheres. Uma vez lá dentro... — Será muito perigoso, pense! Eles são quatro... — Está bem. Como eles são quatro, TALVEZ eu precise de uma AJUDAZINHA. É por isso que eu vou levar Ilde. Portanto, chega e até já! Fez uma sinal para Ilde e esta, sem olhar para mim, acompanhou a Rainha. Trupadox afastou algumas folhas de carmesim perolado e, parando perto de mim, tentou consolar-me. — Não se amofine, Mont. Uma Rainha sabe o que faz. Tive vontade de mandá-lo às favas. Eu não era monarquista. Eu amava Astra. De nosso posto de observação vimos como ambas desceram pelo matagal e como acenaram para os quatro homens que, depois de se entreolharem, foram ao encontro das moças. Elas certamente começaram a contar uma história complicada envolvendo um carro enguiçado e, em pouco tempo, dirigiram-se todos para o interior da construção. Não tivemos que esperar muito. Em dez minutos Ilde e Astra saíram e nos acenaram. Descemos à toda, aliviados. Encostados a uma parede, no interior da torre, estavam os quatro funcionários, desacordados e amarrados. Ilde só chegara a lidar com um — o único, por sinal, a ostentar equimoses. Os outros três estavam aparentemente incólumes, pois Astra sabia dar golpes que não deixavam marcas. Por outro lado Astra estava ilesa e Ilde ficara com o nariz e a boca sangrando. Mas não ficara abalada. Meus conhecimentos de eletrônica eram reduzidos. Sentado ao lado de Astra, no painel-mestre, fiquei observando a desenvoltura com que a 32


Rainha Secreta penetrava nos códigos secretos, injetava vírus eletrônicos nos canais de Turtut e obtinha passagem em vias paralelas ao Circuito Magno, informando por ressonância magnética longínquos seguidores. No fim, tive a impressão de que ela conseguira sabotar os capilares da comunicação governamental, tornando-a vulnerável à espionagem. Astra não queria se demorar: era perigoso. Ao se preparar para sair, dirigiu-se aos prisioneiros, que já se encontravam acordados: — Vou soltá-los, mas primeiro usarei a arma psíquica para que durmam. Espero que me perdoem. Eu sou a Rainha de Miramar e vocês me devem obediência. Não sou um mito e nem uma sonhadora. Meu poder existe e meu direito ao trono é incontestável. A República é ilegítima e não me deterá. Quando saímos na chuva, uma palavra passou em meu espírito: megalomania. Seria esse o grande defeito de Astra? Mas ela tinha direito ao trono. ou não tinha? Horas depois rodávamos pela Via Sete, sinuosa como um ofidino, em nosso novo veículo puxado por quatro chifrudos, e Astra, comigo na parte de trás (Ilde conduzia) , dissertava sobre os seus planos: — Mont, o que nós fizemos foi, na verdade, deflagrar a revolta definitiva. Você verá. O Grande Ouvido, a Aguadeira, a Nova Terra, o Relógio, todas essas províncias estão maduras para a rebelião. Embaralhamos a rede de comunicações do Estado e agora, meu querido, sairemos das sombras. Não serei mais a Rainha Secreta. Serei a Rainha, simplesmente. Reinarei. — Cuidado! Vejam! O grito partira de Ilde. Ela parou subitamente o rodador e apontou para o alto. O torpedo luminoso terminara a sua subida e, perfazendo uma curva parabólica, descia agora sobre nós. Astra pulou para o banco da frente, empurrou Ilde e tentou uma desesperada manobra. Era tarde porém para escapar. Atingido pela repercussão do impacto, o rodador foi lançado fora da estrada, desfazendo-se em pedaços em volta de nós. Naquele sacolejo todo, o velho marrom Trupadox foi atravessado por um vergalhão de ferro e teve morte instantânea. Akerbaton foi cuspido para fora do veículo e arrebentou o crânio numa pedra pontiaguda de quartzo. Astra, Ilde e eu próprio de lá saímos praticamente ilesos. A Rainha reconheceu de pronto a morte de seus dois fiéis auxiliares e correu para os chifrudos, que se debatiam em desespero, bufando e resfolegando. 33


Ilde segurou o meu braço com vigor: — Mestre Mont, veja quem se aproxima! Pela lezíria próxima, vindos de trás de uma coxilha, meia dúzia de montadores se aproximavam, com seus focinhudos. Astra cortara as correias dos chifrudos, que debandaram em pânico, sem que ela conseguisse contêlos. Teriam sido a nossa chance de fuga. Ao tentar segurá-los, Astra foi derrubada. Ao observar os recém-chegados, dois dos quais puxavam artilharias com suas bestas, reconheci o Coronel Bom, a quem eu não via a dez anos. Todos os seis homens, ao desmontarem, ostentavam chicotes elétricos. Eu perdera a minha pistola psíquica na queda. Ilde não estava treinada com a sua e Astra, sozinha, não sustentaria batalha com seis esbirros. E todos sabiam que o Coronel Bom era campeão de tiro psíquico e chicote elétrico. Agora, diante de nós, o zarolho careca, sádico e triunfante, relanceando o olhar fixou-o em mim e trovejou: — Mestre Mont! Que prazer eu tenho em reencontrá-lo, amigo velho!

CAPÍTULO VIII Como a R ainha Secr eta Apar ece em Toda a Sua Glória Rainha Secreta Aparece Diante dos tristes destroços de nosso rodador, Ilde, Astra e eu encaramos nossos captores. — Coronel Bom — falei, mais para dizer alguma coisa — recordo-me bem do senhor na nossa unidade em Belprates. E dos seus métodos também. — Meu caro Mont, eu também me recordo. E me entristeço, é a pura verdade, diante do seu destino final. Há dez anos atrás entristeci-me com a sua partida de nosso quartel. Você iria servir sob as minhas ordens, mas saiu antes. E não pudemos nos testar mutuamente. Pois você era um osso duro de roer. Abandonou, porém, uma promissora carreira militar para ser um Aventureiro das Estradas! Um romântico Paladino da Justiça, sem eira nem beira porém protegido pela tolerância da República, que sempre respeitou as tradições populares! E assim você tem vivido esses anos todos, gozando as mordomias da sua profissão, já que onde quer que vá terá sempre quem lhe dê comida, bebida, roupa e teto para se abrigar, em troca de nada. Separando brigas de bêbados ou de lavadeiras de rio exaltadas, você segue em frente ostentando com orgulho as suas insígnias e dizendo a todos que o vêem: “Eu sou um aventureiro Errante!”E todos o olham passar e murmuram admirados: “Vejam! Ali vai um Aventureiro Errante! Ali vai o 34


famoso Mestre Mont!”Eis a que você foi reduzido, Mont, você que estudava para ser um alto oficial como eu: famoso e homenageado por prender ladrões de focinhudos! Mas que digo? Que vejo? Nem isso mais você é. Vejo que agora você se envergonha das suas credenciais. Não as usa mais. Uniuse a uma sediciosa e a segue como um pintadinho. Voltou-se contra a República que, por tolerá-lo, garantiu o seu fácil sustento por tantas centenas de luas. Mont, se eu me entristeci por você há dez anos, hoje eu me entristeço duplamente! Calou-se, aparentemente cansado com o longo discurso, que impacientara seus próprios ajudantes. Estes não iriam agir sem o seu sinal. Aproveitei então a deixa: — É verdade, Coronel Bom, que eu abandonei o exército. Não posso me esquecer de uma coisa. Você torturava os soldados sob as suas ordens. Costumava pendurá-los pelos pés e surrá-los com o chicote elétrico, até que perdessem as forças ou implorassem misericórdia. Se tivesse tentado isso comigo, Coronel Bom, haveria sangue. — Eu transformava meus soldados em homens, Mestre Mont. — Eu sempre fui um homem, e continuo sendo. — Discutiremos isso depois. Astra -ó Rainha — agora falemos de você. Astra estava mais glacial do que nunca: — O que deseja de mim? Já matou dois dos meus melhores amigos. — Isso é pouco, Grande Rainha — disse ele, ironicamente — Províncias em guerra, sabotagens elaboradas, inquietação social... o que mais você quer? — O trono ao qual eu tenho direito, Coronel, pelo meu nascimento. O Coronel estrondou numa feia gargalhada. -Seu direito de nascimento esfumou-se na História! Agora você não passa de uma fora-da-lei! Astra não respondeu. — Jogue sua capa! A ordem do Coronel Bom referia-se à velha e tradicional fórmula para rendição de monarcas e outros membros da família real. Confiante da consolidação de seu poder, Astra voltara a usar a capa. Olhei para a minha noiva. Vontade eu tinha de limpar as minhas mão na cara do brutamontes à minha frente, mas aquela não era a ocasião propícia. Comigo à esquerda e Ilde, silenciosa, à direita, a Rainha Secreta levou as mãos ao pescoço e começou a desatar a maravilhosa capa lilás. Retirou-a, 35


com gélida dignidade, e dobrou-a cuidadosamente. Em seguida deu um passo à frente e atirou-a aos pés do Coronel Bom. A capa explodiu. A concussão lançou por terra os seis militares. Foi, na hora, a última coisa que eu vi, pois o clarão cegante ofuscou-me totalmente. Joguei-me no chão, sem nada melhor para fazer. E até hoje considero aquele acontecimento como a maior frustração de toda a minha carreira de Paladino Errante, de Defensor da Justiça. Temporariamente cego, não pude tomar parte do que aconteceu em seguida. Astra, sabedora do que ia acontecer (a capa era a sua arma secreta, o seu trunfo para ser usado em último recurso), fechou os olhos na hora H. Ilde, avisada por um sussurro que não me alcançou, porque estava mais próxima da rainha, fez o mesmo. Quando o Coronel Bom e seus homens caíram por terra, cegos e indefesos, Astra e Ilde avançaram e fizeram uma festa. Tenho uma idéia do que aconteceu pelo ruído de carne contra carne, e posso garantir que o que escutei não foi brincadeira. Quando minha visão voltou ao normal, minutos após, os seis agentes estavam empilhados uns sobre os outros, arrasados. Desta vez não dava para distinguir quem fora espancado por Astra ou por Ilde: a rainha não tivera a mínima preocupação em não deixar marcas. Cheguei-me a Astra e abracei-a. — Meu querido, estou muito triste. Perdi a minha capa de estimação... Ilde segurou nossos braços: — Vamos agir! Vamos fugir pelas terras ulíginosas, antes que surjam outras patrulhas. — É uma boa idéia, Ilde — observou Astra — Porém não vamos fazer só isso. Vamos levar esse patife conosco e os corpos dos nossos amigos. Os outros deixaremos por aqui mesmo. Rapidamente amarramos os cinco agentes e mais o Coronel Bom, que foi colocado deitado sobre um dos focinhudos. Abandonando os outros cinco, partimos de lá em poucos minutos. Astra estava radiante e mais bela e senhora de si do que nunca: a captura do Coronel Bom sinalizava o início oficial da revolta. Os acontecimentos se precipitaram. Transmitida a captura pela rede subterrânea da rainha, a partir de uma parada em outra fazenda, em poucas horas o iceberg subiu à superfície e uma rebelião-monstro surgiu aparentemente do nada. Quando chegamos a Diamante Negro, capital de Relógio, Astra foi recebida em gala pela população. A guarnição republicana se rendera; a cidade estava em poder de Astra. 36


Espantado e aturdido, desfilei pela Artéria central ao lado da Rainha, com Ilde um pouco atrás de nós, conduzindo o focinhudo que transportava o Coronel Bom, humilhado e ofendido demais para dizer uma só palavra. Astra e eu próprio éramos aclamados pelo povo. Ilde também era festejada, tornara-se também uma heroína. Astra instalou-se no prédio do governo local e dali dirigiu uma proclamação a todo o Reino de Miramar (não mais República) e a todo o mundo. — A RAINHA OCUPA O SEU TRONO! — disse Astra. — Eu sou a Rainha de Miramar. E que Deus me ajude, pois quero ser a Rainha da Justiça e da Tolerância. Peço ajuda também ao povo de Miramar. Não tenhamos ódio de nossos inimigos! O Coronel da Repressão será libertado em troca de prisioneiros. A República da infâmia está com seus dias contados. Ainda ocupa lugar, mas por pouco tempo. Não tenhamos medo: A VITÓRIA SERÁ NOSSA!

CAPÍTULO IX Como Mestr Mestree Mont Reencontra a Si Mesmo Passaram-se luas e luas. Muitas luas mesmo. De Cristal a Janeta, desfilando pelos céus noturnos, o nosso cortejo de luas lembrava-me constantemente o grande acontecimento que seria a minha união com Astra. A rebelião ia de vento em popa. Só esperávamos a tomada da Grande Capital para ali realizar o matrimônio real. Eu me sentia feliz, eufórico, embora certas crises de melancolia me assaltassem na ausência de Astra. Eu tinha às vezes longas conversas com Leil e Wagner, e assim ficara sabendo de muitos detalhes da infância e adolescência de minha amada: seu amor pelos animais, pela justiça, seu gosto pelos esportes, lutas e manejo de armas. Cada vez mais admirava Astra, cujo talento chegava até a literatura: era autora de livros de poesia, ensaios, zoologia empírica... livros que circulavam em edições clandestinas e certamente agora seriam oficialmente publicados. Que belo casamento eu iria fazer! Quando poderia sequer imaginar que o meu destino seria tão grandioso? Certa tarde eu me encontrava folheando alguns papéis na escrivaninha de madeira-de-lei, no quarto que ocupava no Palácio da Formiga — onde nos alojáramos temporariamente enquanto preparávamos a marcha sobre Buletânia. Nisso bateram na porta. — Entre! — falei despreocupadamente. Não fechara a porta; de resto sabia que estávamos em segurança. 37


A porta se abriu e eu me voltei para a esquerda, procurando ver quem era. Ilde estava ali. De pé, junto ao portal. — Alô, querida! Entre, por favor. Só então reparei em como ela estava séria. Ela não estava, é claro, vestida como nos velhos tempos. Usava elegante calças de linho, uma blusa multicolorida, um boné informal, umas botas elásticas. Astra fizera um bom trabalho em seu visual. Já não fazia lembrar aquela garota descalça e desgrenhada dos velhos tempos. Ou será que fazia? Ela entrou no quarto e se aproximou de mim; levantei-me para cumprimentá-la. E ela se dirigiu a mim com um tom de voz mais triste ainda que a sua fisionomia: — Mont, tenho algo para te dizer. (Ela nunca mais se dirigira a mim na segunda pessoa). — Sim? — Eu vou-me embora, Mont. Estou de partida. — O quê? Você está louca, Ilde? E o casamento? Não vai assistir? — Não. — E o seu emprego como escudeira? — Isso apareceu... aconteceu. Mas eu não quero. Eu te amo, Mont. Por que deveria ficar nesta circunstância? — Pensei que isso já estivesse superado... — Eu te dei o meu coração e ainda não o peguei de volta. Nem sei se o farei, Mont. Mas volto para junto de Grimes. Se quiseres me ver, procure por mim na Estalagem do Bicudo. Convidei-a a sentar. Sentia-me atordoado. Acostumara-me com a presença fiel e agradável de Ilde e não queria que ela se fosse. — Espero sinceramente que você mude de idéia. — Não mudarei, Mont. — É uma pena. Eu gosto de você. Em toda a minha carreira de Aventureiro Errante, eu nunca... Ela se ergueu de repente. — Aventureiro Errante! Que dizes! Tu não é mais um Aventureiro Errante! Aquelas palavras inesperadas e carregadas de desprezo e comiseração, causaram-me um choque. Ergui-me também. — O que você quer dizer com isso? 38


— Então não te enxergas? Tu deixaste de ser um Aventureiro Errante desde o dia que aquela mulher pôs os olhos sobre ti. Teu último ato como Aventureiro Errante foi derrubar aquele esbirro na Estalagem do Bicudo. Assim dizendo ela me beijou rapidamente e saiu, encostando a porta. E eu sentei para não cair e ali fiquei, imerso em grande perplexidade. Ilde se foi , realmente. Pegou suas coisas, atravessou o Grande Ouvido — a essa altura, região libertada — e retornou à Estalagem do Bicudo, onde tudo começou. Astra, ao saber da deserção de sua escudeira, pareceu triste. No íntimo creio que estava aliviada. Eu não tinha muito tempo para pensar. A decisiva Batalha de Buletânia se aproximava e eu era um dos coordenadores estratégicos da campanha. É claro que hoje em dia isso já é ensinado nos livros, por isso não me detenho nos acontecimentos tão conhecidos. O que posso dizer é que a Capital caiu em 16 de Kepq e o nosso Estado Maior se instalou no Palácio de Vidro. Astra, radiante, iniciou oficialmente o seu governo e na tarde de 18 mandou me chamar para uma conversa particular. E lá fui eu. Colocara as minhas insígnias, que há meses eu ocultava. Lá estava de novo, em meu casaco, a célebre espada de fogo. Aproximei-me do gabinete ocupado por Astra, no 5o. andar, e toquei a campainha. Fiquei observando a porta em relevo e cheia de cores belas e fortes. Pouca gente, nos últimos séculos, teria esse estro para o entalhe. As nossas tradições estavam, pouco a pouco, sendo corroídas e isso me incomodava. A restauração da monarquia conseguiria reverter o processo? — Entre! Abri a porta. No outro lado do gabinete Astra exercitava-se tocando um helogofone múltiplo. Reconheci uma suíte de Zipi. Creio que “O Lago da Chuva”. Astra então interrompeu a música, veio ao meu encontro e me beijou. Depois indicou-me o divã. Sentamos-nos lado a lado e ela, acariciando minhas mão, observou: — Mont, temos muito que conversar. Chegou a hora dos nossos preparativos. Nós iremos nos casar em poucas semanas. Pensei no mês de lusol. Agora que o pior já passou, não vejo por que esperar mais. — Astra... é sobre isso que eu vim lhe falar... — Que ótimo! Você também está ansioso, não é, querido? Era agora ou nunca. 39


— Astra, não é isso. Eu não vou me casar com você. Vim aqui para desfazer o nosso compromisso. — Como? Eu me ergui e, diante da perplexidade da Rainha, tentei explicar o que sentia no íntimo. Nas últimas semanas, a partir do meu último encontro com Ilde, uma sensação crescente de pânico ia tomando conta de mim. O pavor de estar para dar o passo mais errado da minha vida era como um fantasma visível que me seguisse por onde eu fosse... zombando de mim, acintosamente, escarnecendo-me às gargalhadas. Eu temia não me sobrar coragem para falar a verdade à Rainha Astra — que já não era mais a Rainha Secreta. — Rainha, eu sou um Aventureiro Errante. Sou o que sou. É essa a vida que eu escolhi. Só à custa da perda de minha identidade eu poderei me tornar uma cabeça coroada. Não é o que eu quero da vida. — Mas, querido, eu te amo! — Eu também a amo, Astra. Mas até que ponto? Ao ponto de nos casarmos? Não temos tanta afinidade e, a meu ver, entre os seus auxiliares existem homens competentes e de bom caráter... procure escolher um deles. Ela se aproximou, abraçou-se a mim, era a própria imagem da derrota. Eu me senti um verme asqueroso. — Não acredito, Mont, meu amor! Que te aconteceu para mudares de idéia assim de repente? — Você já está falando como Ilde... — deixei escapar. — Ilde! Ela se afastou de mim, fitou-me com mágoa no olhar. — Já compreendi tudo. Está escrito em seu rosto. Você a prefere. Sentou-se na cadeira mais próxima, estremecendo de emoção. — É isso, não é? Fiquei em silêncio. — O seu silêncio é confirmação — disse ela. — Está bem. Digamos que Ilde é mais próxima de mim. Mas eu não sei se ela ainda me aceitará. Afinal, ela se despediu de mim e foi embora. Astra sorriu. Era uma mulher forte: não se debulharia em lágrimas. — Querido, o que você tem que fazer agora é ir atrás dela. Eu compreendo a sua atitude: enquanto ela estava por perto você não percebeu... o quanto a amava. Foi isso, não foi? — Talvez. Não achei necessário revelar-lhe as palavras de Ilde: “Tu não é mais um Aventureiro Errante!”...Etc. 40


A Rainha se ergueu. — Mont, espero assistir ao teu casamento. Espere um pouco. Abriu um armário, remexeu uma prateleira e afinal me trouxe um cofrezinho de ouro com a chave igualmente dourada. — Leva. É o meu presente para Ilde. E os que eu já te dei, fica com eles. Abraçou-me longamente e beijou-me. — Vá, Mestre Mont. Prepare a sua partida. Não se demore, porque o amor não pode esperar. Vá atrás de Ilde e depois me traga o resultado.

CAPÍTULO X Como Mestr inalmente Toma a Iniciati va Mestree Mont FFinalmente Iniciativ Cerca de dez dias depois, no crepúsculo azul que embelezava o Pico Malvado, eu me vi, após uma longa travessia de trem e de focinhudo, mais uma vez diante da velha Estalagem do Bicudo. Onde tudo havia começado. Desci do Crock, meu focinhudo, último presente de Astra. Uma jovem desconhecida e uniformizada aproximou-se de mim: — Boas Luas, Aventureiro. Vais dar a honra de te hospedares em nosso humilde albergue? — Boas Luas, menina. Sim, penso que farei isso. Mas antes quero que me leve à Grimes. Sou um velho amigo dela. A mocinha sorriu, os olhos brilhando de admiração. — Pois não, ó Aventureiro. Entra e senta, que vou acomodar a tua montaria. Lá dentro há gente que te atenderá. Entrei. Meu coração batia forte. Afinal, pensei, por que eu procurava a Grimes e não diretamente a Ilde? Medo de que já não estivesse lá? “-Ajudantes de estalagem vem e vão, vão e vem...” Desci novamente os degraus de pedra rosa e encaminhei-me para a portaria. No momento estava vazia. Sentei-me perto e fiquei esperando. Um rapazinho acercou-se de mim, soube que eu procurava a dona da estalagem e foi buscá-la. Cinco minutos depois lá veio a Grimes. Não tinha mudado nada, sua tez avermelhada e seu olhar enérgico permaneciam iguais. Ela correu para mim e me abraçou com força. — Oh, Mestre Mont! Que maravilha rever-te! Eu não esperava por isso! — Não sabias que eu viria? — Nada se sabe de ti há dias. Os boatos sobre o teu desaparecimento 41


me encheram de preocupação. Sabes que agora estamos em segurança: a Cantolândia e o Grande Ouvido estão com a Rainha Astra. E tu és o herói nacional, tu que apoiaste a nossa Rainha e te tornaste o seu noivo. — Grimes, antes de entrar nesse assunto eu quero saber sobre Ilde. Ela está aqui? — É claro que está, Mestre Mont! Está regando o jardim, sabes que essa é a melhor hora... — Está bem. Depois nós falaremos, Grimes. Vou lá falar com ela. — Como quiseres! Tornei a sair, reencontrei a auxiliar que me atendera e disse-lhe que já não precisava de ajuda. Contornei a estalagem e dirigi-me ao jardim que tão bem conhecia, situado à direita do prédio. Avistei Ilde pelas costas. Numa estreita viela entre canteiros perfumados, com uma mangueira, parecia mais atraente do que nunca, com uma saia comprida e florida, um corpete amarelo, os braços nus e os pés, como de hábito, livres. A pele esverdeada de Ilde estava lindíssima ao crepúsculo. — Ilde! — chamei. Ela levou um choque e voltou-se sem largar a mangueira. É claro que eu levei um banho. — Mont! Ela largou a mangueira, embaraçada e correu para mim, sem coragem para me beijar: — Mont, Mont! Desculpa por essa... Mas o que fazes aqui? — Ilde, querida, pode me beijar. — Sim...? — Eu desfiz o meu compromisso com Astra. Eu sou seu, Ilde. Não há outra mulher no mundo a quem eu deseje. — É sério? — E eu sou homem de brincadeiras? Aproximei-me dela, enlacei-a e beijei-a com quanto amor tinha. Ilde estava radiante: — Mont, Mont! Querido! Amor! Eu sabia que um dia conseguiria te amarrar!

EPÍLOGO Interrompem-se aqui as memórias de Mestre Mont Gluxil, o mais famoso Aventureiro Errante de sua época. Há quem diga que a felicidade não 42


se narra, mas só a desgraça. Talvez por isso Mont não quis escrever além do ponto em que as suas duvidas cessaram de existir, com a definitiva união de sua vida. Mont e Ilde jamais se separaram. Entretanto, nós que, de uma perspectiva de vários séculos, nos inclinamos sobre essas vidas ilustres, não podemos deixar de dar alguma notícia sobre o que ocorreu depois. Queixam-se alguns críticos que o memorial de Mont debruça-se sobre fatos irrelevantes e passa ao largo dos grandes acontecimentos relacionados com a revolta de Astra I. De fato, quem lê somente esta memória fica com a impressão de que a Rainha Secreta obteve facilmente o trono de Miramar. Na verdade, por cinco longos anos ainda ocorreram combates, visto que o sul do país com Tenácia como centro de resistência, opôs-se ferozmente às pretensões da jovem herdeira. Aos que lhe cobravam essa aparente incoerência Mont respondia não ser de seu interesse fazer história militar ou castrense, mas narrar em minúcias os fatos particulares que o levaram a maior decisão de sua vida, ou seja, o casamento com Ilde Long, que se realizou naquele mesmo ano, tendo Grimes, Leil, Wagner e Tel como padrinhos e com a presença de Astra I. Todos os acontecimentos aqui narrados são histórias que teriam permanecido nos bastidores da História, se Mestre Mont não tomasse a iniciativa de anotá-los. Daí que a rebelião de Astra apareça mais como pano de fundo, sobressaindo o curioso triângulo amoroso Astra - Mont - Ilde. Astra casou-se mais tarde com Fuquet, um de seus auxiliares mais chegados, e gerou vários filhos e filhas, garantindo assim a continuação da dinastia. Astra governou com prudência, tolerância e sabedoria. Ao consolidar seu poder anistiou os adversários políticos, inclusive o Coronel Bom. Este agradeceu armando o célebre atentado de Lurneburne. Como contam os manuais de História, Astra saiu gravemente ferida e Fuquet perdeu parte de um dedo, mas o coronel perdeu a vida. Anos depois, prosseguindo o impasse da guerra civil, Astra e o Conselho de Torelan chegaram a um acordo, criando o regime Misto — único no planeta — de monarquia e república, que até hoje subsiste. Wagner e Leil permaneceram fiéis à sua rainha até o final de seus dias, e ambos morreram em paz. Grimes aposentou-se três anos depois dos fatos aqui narrados; ainda viveu bastante. A Estalagem do Bicudo ainda existe, embora já descaracterizada. Ilde long casou-se com Mont Gluxil e tornou-se, ela própria, uma Aventureira Errante — uma das poucas mulheres que seguiram esse gênero de 43


vida típica de Miramar. Juntos viveram muitas aventuras e tiveram quatro filhos, inclusive duas gêmeas. Sempre mantiveram amizade com a rainha, que os recebia bem e muitas vezes comia com eles. Astra I foi feliz com o marido. Pessoas mais chegadas a ela, contudo, afirmaram que Astra levou para o túmulo a tristeza íntima que sentia por não ter podido se unir com o homem a quem realmente amava. Esta é a história, esta é a saga da Rainha Secreta, que os contadores propagaram de geração em geração. E, segundo eles, nunca mais, sobre a face do Mundo, surgiu governante igual a Astra I — a bondosa, a sábia, a grande Rainha de Miramar.

Balada Para Três Heróis E assim no Reino de Miramar o Bem triunfou sobre o Mal e a mão forte de uma mulher ergueu a justiça na vitória final! Esta é a saga de Astra Primeira a Rainha Secreta, a Justiceira. E esta é a saga de Mestre Mont, o Aventureiro, o viajor... E é também a saga de Ilde, a mocinha que venceu a Rainha com a força do amor... E esta é a saga de Ilde, a mocinha que venceu a Rainha pela força do amor!

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A CASA DO MEDO O apito tocou. Não foi fácil levantar, ainda que, passada a maior parte da sonolência, eu já levantasse transido de medo, movido a medo. Um medo que me acompanhava por toda a parte dentro dos limites da casa flutuante. Quando terminei minhas orações atrevi-me a olhar para fora, através da janela de 30 centímetros quadrados, com tampa corrediça. A água estava escura como de hábito, com aquela tonalidade conferida por limos seculares. Recendia a podridões ocultas e onipresentes, enquanto o horizonte distante mostrava apenas água, água e mais água. As ondulações eram suaves e inerciais. A água ondulava uniforme e tranqüila, como já o fizera ontem e anteontem, e antes de anteontem, e certamente ainda iria fazer amanhã e depois de amanhã, e depois de depois de amanhã. Eternas ondas. A vista procurava instintivamente alguma nuance na eterna cor, algum risco que escurecesse ainda mais aquele verde-garrafa, algum sinal de movimento subaquático. Passavam semanas e meses e nada acontecia, exceto a deterioração de nossos nervos, um fenômeno constante e provavelmente irreversível. Quando cheguei à cantina, Oliveira já estava lá, examinando sua xícara branca, aparentemente farejando-a. De fato, na maneira como as xícaras eram aquecidas, ou quem sabe por efeito de impregnações sucessivas de leite, o cheiro era agradável. Ele olhou para mim e observou: — Alguma novidade? Pergunta estúpida. Qual a novidade que já não nos pusesse a todos em polvorosa? — Nenhuma. Bem, creio que vi umas fragatas ao longe... — Acho que há dez anos não como carne que não seja galinha. Elas estão muito raras, muito difíceis... Eu não estava com vontade de conversar. Sentei-me e examinei minha xícara branca. Observei o fogareiro e a torradeira. O cheiro era agradável. Afinal, os trigais de estufa eram a grande riqueza que nos restava... Trabalhar, trabalhar, trabalhar. Filtrar a água, filtrar a água, filtrar a água. Lavrar, cultivar, colher, lavrar, cultivar, colher, lavrar, cultivar, colher. Calafetar, calafetar, calafetar. Remendar, remendar, remendar. Vigiar, vigiar, vigiar. Sempre. 45


Oliveira foi até o fogareiro, retirou as omeletes e panquecas e colocouas sobre a mesa de metal. — Eu gosto de madrugar. Não sei porque os outros são tão preguiçosos. Eu preferia assim. Poucos levantavam no primeiro apito, que dizia serem cinco da madrugada. Mas eu gostava de comer a sós, ou quase. O medo estava lá, pouco menos do que palpável. Oliveira também tinha medo. Todos tinham, mesmo quando evitavam falar nisso. Comecei a colocar o leite de cabra na minha xícara. Oliveira, muito ocupado em passar pasta de amendoim numa fatia de pão, parecia não se lembrar, desta vez, de comentar a minha obstinação em não constituir família. E então a casa flutuante sacudiu, sacudiu violentamente, como se apanhada por uma onda-monstro. O leite entornou. Xícaras, pratos e as omeletes e panquecas caíram ao chão. Ao mesmo tempo luzes vermelhas se acenderam e um trilo sinistro se fez ouvir. — Chegou a hora! — gritou Oliveira, em pânico. Vamos chamar todo mundo! Corremos para a sala de combate, no alto da barcaça. De lá, homens, mulheres e crianças, todos portando chicotes elétricos, puseram-se a lutar através das portinholas, contra as fúrias que nos atacavam. Tentáculos repulsivos e hediondos erguiam-se nas águas imundas e revoltas e subiam até o alto da casa, tentando abarcá-la e envolvê-la, para nos puxar a todos rumo ao fundo. Por todo o perímetro da sala de combate brandíamos nossas armas, chicoteávamos aqueles malditos braços de molusco, tentando fazêlos desistir. Creio que havia bem uma dúzia daqueles seres, era um ataque em massa. O barco, sob piloto automático, tentava prosseguir — mas, seguro pelos monstros, quase não avançava. Jogamos algumas bombas de profundidade e alvejamos seguidamente os tentáculos. Alguns se introduziram pelas estreitas portinholas e enlaçaram várias pessoas, marcando-as com suas ventosas, mas Oliveira, eu próprio e alguns outros cortamos aqueles membros asquerosos com golpes de machado. Finalmente, após meia hora de combate insano, os Krakens foram repelidos, não sem causar sérios prejuízos em nossas estruturas, nos tanques hidropônicos e até nos alojamentos de animais, tendo arrebatado galinhas, porcos e cabras. Dizem as lendas que o mundo nem sempre foi assim. Um dia existiram continentes, que eram extensões intermináveis de terra firme, povoa46


das por animais, plantas e seres humanos em número incalculável. Mas as experiências com a energia atômica dissolveram as calotas de gelo dos pólos e as demais geleiras, desagregaram os continentes e fizeram subir o nível dos oceanos. Quando terras e mares se misturaram, a superfície da Terra transformou-se nesse imenso alagado mal-cheiroso, lamacento, de profundidade geralmente pequena e habitado por polvos imensos, frutos de mutações radioativas, criaturas que, ao que parece, nutrem profundo ódio pelo gênero humano. E o que resta da humanidade reduziu-se a isto: pequenos grupos em casas flutuantes, onde tudo tem que existir em concentração: agricultura, indústria e comércio. As poucas ilhas não comportam mais gente e nenhum barco está a salvo dos ataques de polvos. Vivemos com medo, um medo onipresente, que penetra até a medula óssea... Antes, a humanidade dominava o planeta. A ponto de devastar a natureza e dizimar os animais, levando inúmeras raças à extinção... Assim dizem as lendas. Desolados, demos início ao penoso trabalho de reparação.

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O QUE EXISTE ENTRE AS EST AÇÕES DO METRÔ ESTAÇÕES De há muito que eu percebo em mim uma sensibilidade mórbida e acentuada, de maneira que freqüentemente noto coisas que as outras pessoas não suspeitam. O sentido da visão, especialmente, é em mim bastante aguçado sob certas condições; falando em português claro, na penumbra, em ambiente sombrio ou de trevas, desde que não seja a escuridão total. Já em criança fui muitas vezes advertido por meus pais e tios porque, no mato ou em qualquer lugar mais ermo, ou até na cidade, eu via formas estranhas e assustadoras, como morcegos com faces humanas (porém horripilantes) cruzando os ares, ou pássaros com estranhas flamas no olhar empoleirados em galhos altos e protegidos pelas sombras da noite. Sim, porque a minha visão especial mostra, por via de regra o horrível e medonho! O que as pessoas não crêem e nem querem que exista... Nos últimos tempos passei a ter intensas visões dentro do metrô do Rio de Janeiro. Sentado junto à janela, olhando para o exterior, quando a composição se move entre as estações, célere. E o que vejo é abominável! Você já deve ter reparado que, nas estações, o piso prossegue pelos túneis escuros, por onde é vedada a travessia de pedestres. Certamente que funcionários do próprio metrô por lá podem circular, até porque existem instalações além da área aberta ao público. Desconfio porém que trechos existem, mais para o meio dos percursos entre as estações, por onde ninguém normalmente circula, já que não teria ali o que fazer. Nesses trechos mais escuros, especialmente entre as estações seqüenciais mais afastadas entre si, é que eu enxergo, encostando-me à janela do trem, os monstros infames que ali habitam, sem que a população, que caminha na superfície, ao menos desconfie. Às vezes são seres bípedes, horrendos, de negras asas de quiróptero que agitam no ar viciado do túnel, enquanto seus olhos vermelhos e perversos fitam a composição que passa e parecem mesmo me olhar de relance, como se adivinhassem que eu os vejo, enquanto seus caninos aguçados refletem alguma luz de origem desconhecida. Quando o trem pára entre as estações, como às vezes faz perto da Saenz Peña, posso observar com mais atenção, embora tomando cuidado 48


para que as outras pessoas não me percebam excitado ou agitado. Vejo muitas vezes criaturas execráveis, com patas e escamas reptilianas, estendendo suas línguas bífidas ameaçadoramente em direção ao metrô. Há também seres que desafiam a descrição, que parecem brotados do granito das paredes, como se fossem apavorantes pedras movediças, abrindo goelas imensas. Ou ainda, lobisomens como o que eu vi pouco antes de chegar ao Largo do Machado, agitando o punho fechado na minha direção e atirando-me com expressão feroz alguma ofensa obscena que eu não pude ouvir... Quando você passa na Estação Afonso Pena, pode reparar nos painéis azuis e no extintor pendurado logo no início. Pois pouco antes disso eu vi serpentes horripilantes subindo na pedra como lacraias. Entre o Estácio e a Praça Onze (no lado esquerdo do trem, mas olhando para trás, por causa da posição do banco) você pode enxergar o túnel de ventilação, que chega até a rua. Uma estranha mão negra é vislumbrada saindo da penumbra. Não se consegue ver mais nada. Entre a Praça Onze e a Central vejo pássaros de fogo, com dentes, esvoaçando no túnel gradeado. Mais adiante, um alojamento. Sim, existem alojamentos de funcionários do metrô, a poucos passos do sobrenatural. E eles nada percebem! Ou será que percebem mas se calam? Olho o mapa da cidade na estação Central. Corremos em direção à parada conhecida como Presidente Vargas. A distância é pequena. Dá para ver um banheiro, já fora da grande Estação Central (não há banheiros para o público no Metrô — e os dos empregados já ficam na parte interdita), poucas luzes de néon, que iluminam vagamente uns monstros vegetais, a chapa de interdição e o corredor, que você deixa para trás ao chegar em Presidente Vargas. Indo para a Estação Uruguaiana, vejo buracos quadrados onde rastejam vermes asquerosos. Numa das pilastras de cimento, agarrado com as ventosas das patas e de cabeça para baixo, um pterossauro ou coisa parecida. Estamos na Estação Carioca e eu presto atenção no circuito fechado de tv e nos relógios. Vejo funcionários já nas partes escuras, logo antes e logo depois da Estação Cinelândia. Estão todos cegos para o que eu vejo? Depois da Glória enxergo fios, luzes e cavernas. Há um dragão numa dessas cavernas, e solta uma labareda na minha direção. Creio que eles me conhecem há tempos e não gostam da minha intromissão. Depois do Catete, uma forma indizível, lustrosa, agarrada num basculante... 49


E assim chego ao meu destino com a mente povoada dessas aparições monstruosas. E cada vez mais se firma em mim a convicção de que essas criaturas querem alguma coisa, planejam algo, não estão lá apenas vegetando. De onde vieram? Talvez do centro da Terra, onde existem cavernas de tamanho inconcebível. E se agora estão tão próximo da superfície, talvez não sejam mais que a guarda avançada de um exército de monstros que se preparam para invadir o nosso mundo e nos destruir. Preciso fazer alguma coisa. Mas o quê? Se conseguir matar alguns daqueles seres e exibir sua carcaças, as autoridades acreditarão em mim. Eu sei como se fabricam bombas-relógio. Farei várias. Atravessarei a placa de interdição e invadirei o domínio dos monstros. Ei de matar ao menos um... REL ATÓRIO DO DETETIVE ELIÉZER RELA “A descoberta desse diário do infeliz Sigmundo Ramos, a meu ver, esclareceu o assunto. Tratava-se evidentemente de um desequilibrado, e só possuía livros de bruxaria ou coisas semelhantes. Curiosamente, era um bancário e seus colegas não sabiam das suas obsessões. Trazia em sua mochila várias bombas de fabricação caseira, mas só uma explodiu, no trecho entre as estações de Glória e Catete. Fora a morte de Sigmundo, quase não houve danos. Na minha opinião ele deixou a mochila no chão para atacar um dos “monstros”com apenas uma bomba; depois usaria as outras. Mas, no estado de superexcitação nervosa em que se encontrava, não calculou bem o tempo... Resta somente explicar a origem do chifre negro e quebrado, que encontramos perto do cadáver.”

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NÃO É HUMANO Quando a noite chega, invariavelmente recordo os terríveis acontecimentos que agora me proponho a narrar. Medito, muitas vezes, na singular qualidade dos eventos que conduziram inadvertidamente minha existência até aquele ponto crítico — o ponto da voragem, do horror que se instalou em minha mente e me tornou um homem neurótico, dependente de tranqüilizantes. Não tenho coragem e nem vontade de divulgar em vida o que testemunhei. Acredito, porém, que colocar minha pavorosa experiência no papel funcionará, ao menos, como um derivativo salutar para a minha psique enferma. Após minha morte, que já não deve andar distante, quem vier a ler estas páginas fará o que quiser com elas. Provavelmente as destruirá, convencido de se tratar de mero sonho louco de um homem velho e esclerosado. Será melhor assim. Até porque o que tiver que vir, se vier, não será agora nem depois — será, que Deus o permita, num distante futuro. Ou talvez não venha nunca — como uma sombra negra que se aproxima ameaçadora mas, pelo fato de ser uma sombra, não será capaz de nos tocar. Lembro-me bem daquela tardinha em que, distraído com o vôo alegre das carriças, aproximei-me da Biblioteca Municipal de Pedra Torta, onde vivo há muitos anos. Tem sido essa cidade preguiçosa o meu refúgio de tranqüilidade — ou assim foi até aquela data. Hoje... mas não antecipemos. Eu geralmente procurava livros de forma aleatória e me decidia mais ou menos ao acaso. Naquele dia, depois de trocar um dedo de prosa com Berta, a velha bibliotecária, dirigi-me a uma estante esquecida, no fundo de uma ala empoeirada e sem muita luz. Dava-me a vontade de ir lá no fundo, garimpar alguma raridade. E foi lá, entre lombadas sebosas e gastas, que enxerguei um título incrível, já mal visível por faltarem pedaços do papel. Perplexo, retirei o volume a custo, pois estava muito apertado entre os outros livros da estante. Confirmei na capa: NECRONOMICON. Só que, em letras menores, lia-se: VOLUME II. Tanto a capa como as páginas estavam roídas de traças, mas o texto, aparentemente, ainda não sofrera mutilações. Fitei espantado, mais uma vez, o título, e mais embaixo, as palavras: “autor desconhecido”. Há muitos anos atrás, em Miskatonic, na Nova Inglaterra, eu vira o Necronomicon, atribuído a um autor oriental, e ignorava a existência de um segundo volume. Não lera de todo aquele estranho livro — era muito pesado para o meu estômago ainda jovem. Lembro-me porém vagamente da coleção de horro51


res que o compunha, do princípio ao fim. Era talvez a obra mais horripilante do mundo, baseada na insistente idéia de que forças pavorosas se emboscam permanentemente nas sombras, na zona do crepúsculo, vigiando a humanidade, esperando, esperando... um monstruoso ressurgir. Agora eu tinha nas mãos o segundo volume, editado pela Typographia Oceanno — assim, com esta grafia — ano 1921. A tradução era de um certo Carneiro Guedes, e não existiam outras indicações salvo esta informação: “traduzido do original armênio”. Embora nunca tenha sido muito ligado em assuntos esotéricos, deume vontade de ler aquela raridade. Por curiosidade científica, de professor aposentado. Levei-a para Berta anotar o empréstimo e sentei em frente à sua mesa, passando-lhe a obra. Ela olhou, algo admirada, e comentou: — Hum! Faz muito que ninguém lê essa coisa... — Você já leu? — Eu? Eu não! Isso não faz o meu gênero... Começou a preencher a ficha, apondo carimbo datador e assinatura. Nesse ponto alguém se aproximou de nós. — Por favor... Voltei-me. À minha esquerda surgira um homem alto e magro, com um terno surrado e cinzento — apesar do calor que fazia — de rosto esquelético e olhar estranho. — Desculpem, mas eu estava atrás desse livro. — Chegou tarde, moço. Ele já foi emprestado a este senhor aqui.— Berta me indicou. — Sim, mas eu tenho urgente necessidade dele. É para uma pesquisa. O senhor não poderia desistir de levá-lo hoje? Depois o senhor levaria. Era uma proposta tão esdrúxula que nem cogitei em aceitá-la. Afinal eu pegara primeiro e isso tinha que ser respeitado. — Meu amigo, dentro de quinze dias eu devolverei esse livro. O senhor não pode esperar? — Não, não! O senhor compreende... é para uma tese que eu preciso completar. Tenho prazo. Fiz uma longa viagem porque soube que este livro estava aqui... não posso me demorar quinze dias... preciso dele agora. Aquilo me pareceu ridículo e abusivo. Eu duvidava daquela história. Talvez ele fosse apenas louco, acromaníaco ou esquizofrênico, sei lá. De qualquer modo eu não via razão alguma para atendê-lo. — Lamento muito mas não posso ajudá-lo. Eu também sou um pesquisador. Voltei-me para Berta: 52


— Não haverá outro exemplar? — Tenho certeza que não. Ela sorria amarelo, e sua expressão me dizia: — Que fazer, de vez em quando surgem esses tipos excêntricos. Quando me voltei para o desconhecido, creio poder dizer que tive um choque. Tentarei explicar o que se passou, pois foi tudo num relance. O homem estava meio inclinado para frente, seu narigão apontado para o livro, talvez a uns 70 centímetros de distância. Analisando depois sua atitude, era como se, naquele momento, ele estivesse prestes a se atirar sobre o alfarrábio, arrebatá-lo e sair correndo. O tipo da coisa que normalmente ninguém faz. Pareceu-me também que ele estava extremamente nervoso e, finalmente, houve também a forte impressão de um odor acre, estranho, embora pouco perceptível. Tudo muito vago para que eu pudesse ter qualquer tipo de certeza. Mas enfim eu me ri, intimamente, das próprias tolices. O sujeito se desculpou e saiu contrariado, em passos duros e desgraciosos, como se as pernas fossem muito artríticas. Voltei-me para Berta: — Que tipo esquisito! Já o conhecia? — Eu? Olhe, estas rugas aqui já testemunharam muita coisa, mas esse tipo eu nunca vi... mas você não o escutou falar que fez uma longa viagem? Ele não é daqui. Fui para casa com o Necronomicon cuidadosamente embalado num plástico que costumo carregar para isso mesmo. Cheguei na minha casa, onde moro sozinho, salvo uma governanta idosa, que está comigo desde os tempos em que minha esposa era viva, e o Gonçalo — nome muito humano que eu dera ao meu pastor belga. Idalina, porém, ausentara-se para visitar a filha durante alguns dias, de modo que preparei eu próprio o lanche — habitualmente, já não janto há 30 anos. Comi torradas com maionese e folhas de brócolis, um chá de camomila, azeitonas e pudim de ameixas. Mais tarde fui para meu gabinete e, levado por irresistível curiosidade atiçada pelo incidente, pus-me a ler o livro emprestado. A partir deste ponto hesito em continuar escrevendo. O abismo de horror inumano que se abriu diante de minha imaginação, e que até hoje me consome, é indescritível. Não quero remoer estas coisas, mas alguns trechos daquele livro maldito precisam ser aqui mencionados: “Quase todas as pessoas julgam que os humanos são os Reis da Criação, ou quiçá a única espécie inteligente do Universo. Entretanto isto nem é 53


verdade somente em relação à Terra. Nosso planeta é antiqüíssimo, ao menos para os nossos padrões, e através das incontáveis eras geológicas, antes de Adão, outras raças aqui estiveram e dominaram. É possível que a graça divina somente tenha se estendido à raça adâmica e que , portanto, os seres que aqui antes estiveram sejam essencialmente malignos, e por esse motivo mergulharam no oblívio, incapazes de permanecer à luz do dia. Não se trataria de um privilégio da raça humana, mas antes de uma condição assumida por seres que, como Lúcifer, sabendo e podendo demais, quiseram demais. Assim o Grande C’thulhu, que hoje jaz no fundo do oceano, inerte, e que sonha voltar um dia à glória antiga, de 50 milhões de anos atrás. Antes de C’thulhu, porém, há 100 milhões de anos, existiu uma poderosa raça, no tempo em que os dinossauros pululavam sobre a Terra.” “ [...] os Saltodontes eram também dinossauros, com duas características que desde já devem ser mencionadas: 1ª) eram racionais; 2ª) até os dias de hoje são totalmente ignorados pela Ciência Humana. E isto aconteceu porque, até agora, a Ciência Humana recusa-se a abandonar a sua postura preconceituosa, e recusa o quanto pode a tudo que eventualmente venha a abalar os seus esquemas. Ora, assim como o homem pode ser considerado um primata, sendo porém imensamente superior a qualquer macaco ou lêmure, assim o Saltodonte era de todo superior a qualquer sáurio irracional. Tiranossauros, iguanodontes, tricerátopes, plessiossauros, alossauros, titanossauros, eram todos seres irracionais e estúpidos. O Saltodonte era civilizado, possuía veículos e escrevia livros, embora fossem de aspecto diferente dos livros atuais.” “ [...] a raça dos Saltodontes é, atualmente, uma das raças das sombras. As catástrofes que, na passagem de Nêmesis, eliminaram os dinossauros, destruíram sua civilização. Eles lograram se refugiar em algumas cidades subterrâneas e, posteriormente, tudo fizeram para eliminar vestígios de sua passagem pela superfície. Vestígios que os cientistas humanos possam ter encontrado foram desprezados como serão desprezadas todas as evidências de que entes racionais não humanos já existiram no mundo ou talvez ainda existam. A humanidade só acreditará quando eles efetivamente voltarem — e isto será inevitável, pois eles querem voltar e são poderosos. Aguardam apenas o momento propício para retomar o controle da Terra... eles e outros seres não humanos que aqui já estiveram e que hoje, exilados, sonham com a restauração dos seus poderes. Dia virá em que estas diversa raças se 54


confrontarão, e nesse dia os humanos não serão mais do que insetos, se uma força superior não os proteger.” Já havia se passado bem mais de uma hora quando percebi de súbito que não estava mais sozinho. Meus sentidos talvez estivessem superexcitados tendo em vista a hediondez absurda de tudo aquilo que vinha lendo, apesar de meu ceticismo. O lado emocional humano é muito vulnerável. Como quer que seja, levantei de repente os olhos do velho livro e enxerguei o intruso no momento em que ele empurrou a porta do gabinete. Um gabinete quase invisível da rua, já que se situa no andar de cima e é rodeado de estantes que chegam a obstruir a janela — razão pela qual coloquei verdadeiras luminárias para dispor de iluminação razoável. Era o mesmo tipo estranho da biblioteca. Naquele momento eu ainda não senti medo. Limitei-me a perguntar indignado: — Que quer o senhor aqui? Como entrou? — Professor Fiúza — disse ele — lamento, mas existe um motivo muito sério para que o senhor não continue a ler este livro. Existem aí conhecimentos secretos que não podem ser postos ao alcance de qualquer um. Na verdade este livro não deveria ter sido escrito e nós confiscamos o que pudemos de todas as edições em todos os países onde saiu. Este é um dos poucos que escaparam à nossa caçada. Portanto, entregue-o! A idéia de estar diante de um louco fez com que eu pensasse com rapidez. — Como sabe o meu nome? E, repito, como entrou aqui? — Tenho meios para penetrar em residências e sei fazer pesquisas. O Sr. é uma pessoa conhecida por aqui. Abri a gaveta e puxei o revólver. — Pois bem. Agora não tente nenhuma gracinha. Ele fitou a arma, aparentemente sem medo. Com a mão esquerda, alcancei o telefone. E então deu-se a metamorfose. O susto foi tão grande que eu pulei para trás e deixei cair o revólver, presa de um acesso de tremor violento, como se sofresse de Parkinson. O ser à minha frente — porque, de fato, não era um homem — transformara-se. As roupas se rasgaram, a pele tornou-se esverdeada, como um Hulk, mas também não era nenhum Hulk. Como se aquela epiderme fosse apenas uma estrutura contida, sob algum tipo desconhecido de pressão, aquilo retornou à sua forma primitiva: horripilante, abominável. A forma de um réptil an55


cestral. Parecia ser um velociraptor. Tinha uma cabeça enorme, pintas e manchas amarronzadas pelo corpo obeso, garras preênseis. Seu olhar não era apenas feroz, no sentido que se dá em relação a um leão, por exemplo. Era uma ferocidade antiga, antidiluviana, de uma profundidade que os homens não conhecem. E aquele cheiro amargo, agora evidente, empestava o ambiente. Sua voz também mudara para um sussurro, demoníaco: — Agora você entregará. — Quem é você? — Consegui balbuciar, encostado à parede, num trecho onde não havia estante, esquecido da arma que jazia no carpete. — Você já deve ter lido. Eu sou um Saltodonte, represento a maior e mais gloriosa raça que já habitou este planeta. Uma força cósmica nos aniquilou, mas nós voltaremos. A raça adâmica é miserável e desprezível, e não merece saber a verdade a nosso respeito. Eu procurava ganhar tempo. — Como você podia estar disfarçado em forma humana? — Eis uma prova da nossa superioridade. Nós podemos plasmar nossas formas externas e até as internas. Os nossos que estão infiltrados na superfície geralmente não são submetidos a autópsias. Tomamos precauções contra isso. Mas se acontecesse, dificilmente descobririam algo estranho. — Há... há muitos de vocês? — Eu continuava paralisado encostado à parede. — Bastantes, mas não tantos quanto ao tempo em que a maldita Nêmesis... Aqui ele proferiu algumas blasfêmias que não me atrevo a reproduzir, como se odiasse o plano divino que colocara a humanidade na Terra, ou como se sua raça estivesse em conluio com o Príncipe das Trevas, cuja rebelião seria, pois, antiqüíssima, de um tempo inimaginavelmente distante no passado... quando vestígio algum havia da humanidade. Talvez a primitiva rebelião fosse mais antiga que a Terra, que o Sistema Solar, que a Galáxia. Quantas outras raças, ao longo das incontáveis eras cósmicas, pudera aliciar, até que o Verbo se encarnasse para deter a onda maligna e salvar o Universo? Tudo isso eu julguei compreender ou entrever num relance, numa revelação. Podia ser que aquela especulação nada tivesse a ver com a realidade prática que eu tinha diante de mim e que era suficientemente terrível. Até aquela data eu era um agnóstico. Hoje, nem sei. — E o que vocês pretendem fazer? 56


— Limpar o terreno, evidentemente. Hoje induzimos sua raça a recriar geneticamente os dinossauros, o que um dia conseguirão. Veja toda a propaganda que existe em torno do assunto. Todos esses animais, nós podíamos utilizar em nossa civilização. E serão nossa grande arma contra C’thulhu, se este nosso inimigo retornar das profundezas do mar. A idéia de que a Terra houvesse sido ou viesse a ser apenas o campo de batalha entre forças monstruosas e maléficas repugnou-me ao extremo. Tomando uma decisão, abaixei-me para pegar a arma. O Saltodonte avançou e pulou sobre a mesa, mas eu já correra para outro canto da sala, onde ele procurou me encurralar com seus grandes dentes à mostra. Tentei disparar mas a arma, que nunca fora usada, picotou. Ele avançou com a horrível goela aberta... O cão atacou. Por alguns momentos não foi possível distinguir claramente o que estava acontecendo, aquela massa dupla revolvendo pelo carpete em luta mortal, sem que eu pudesse intervir ou soubesse como fazê-lo. Aquele turbilhão, vertiginoso como um desenho animado, logo porém cessou, juntamente com uns grunhidos horríveis. E Gonçalo, meu pastor belga, veio até mim, mancando da perna esquerda, pingando sangue... mas inteiro e válido. E um cadáver repulsivo ali estava, estendido no carpete, a garganta dilacerada a dentadas. O ser pré-histórico cometera um erro, ao achar que o cão estava preso no quintal. Havia uma portinhola de cachorro e Gonçalo a usara ao perceber que algo de anormal estava ocorrendo dentro de casa. Consegui ainda nervos suficientes para realizar algumas investigações. Aquele monstro possuía garras muito interessantes que talvez pudessem abrir fechaduras; mas ao entrar estava em forma humana. Descobri em suas roupas um curioso aparelho, que até hoje guardo, e que, como pude verificar, abre qualquer fechadura... pelo menos as que experimentei. Por que ele não entrara logo? Provavelmente perdera minha pista, quando eu saí em meu carro da biblioteca. Este aparelho, aliás, eu enterrarei após completar minhas anotações. Não quero deixar provas do que escrevo. Também não quero me demorar na descrição desagradável de como desmembrei o corpo e me desfiz dele aos poucos, jogando pedaços no mar, enterrando roupas, desinfetando o gabinete, trocando o carpete, inventando uma desculpa para os ferimentos e a pata quebrada do Gonçalo. Ninguém ficou sabendo de nada. 57


Estes acontecimentos datam de cinco anos atrás. Desde então o pesadelo tomou conta de minha vida. Ao passar pelas ruas, imagino quantos daqueles homens ou daquelas mulheres serão na verdade dinossauros disfarçados. O meu medo maior, porém, reside no livro, aquele amaldiçoado livro que eu não tive a coragem de destruir. Tive que devolvê-lo à biblioteca e lá está ele, escondido no seu canto escuro, ainda com aquelas informações subversivas, testemunha muda da tragédia que se abateu sobre mim e me consome dia a dia. Minhas noites são povoadas de pesadelos, de criaturas ferozes e de dentes pontiagudos, que me espreitam e emboscam. Se outro agente dos Saltodontes obtiver a pista deste exemplar e vier a Pedra Torta, verá o meu nome na ficha de empréstimos e provavelmente me procurará, para me silenciar. Isto se aquele que morreu em minha casa não tiver seu paradeiro rastreado. Temo, a cada dia, ser descoberto. Eles não me poupariam. Idalina, é claro, notou a decadência de minha saúde emocional e física, mas atribui sem dúvida esse efeito à minha idade. Só quem sabe e compreende é Gonçalo. O bom e velho Gonçalo, que hoje, já sem dentes tão fortes, talvez não repetisse a façanha. Agora só me resta esperar, esperar... e rezar.

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AN AVE DO SILÊNCIO NA Como posso descrever a sensação causada por um imenso salão vazio, majestoso em suas colunas, escadas e tapeçarias, bancadas e frisos, vitrais e grandes janelas hermeticamente fechadas, tudo suavizado por luz espectral lilás, iluminando uma área de duzentos metros quadrados, mergulhado na solidão e no silêncio? Eis o grande auditório da Janus III. Espantosamente vazio e silencioso. Percorro, lento e perplexo, aquele espaço tão estranhamente vazio, e olho em todas as direções, inclusive para o teto abobadado. Nada, nada se move, a não ser um pouco de pó em suspensão, diante dos meus olhos. Uma tremenda sensação de irrealidade me domina. Há três dias — desde que acordei da hibernação — vejo-me entregue a essa sensação, que cresce a cada dia. Onde foram parar os outros trezentos ocupantes da nave? Faz um ano e três meses que partimos da grande base espacial à roda da Terra, com destino ao gigantesco sistema de Canopus, em busca de mundos para explorar. Não fizemos nem a terça parte do percurso de cerca de 650 anos-luz, mas tínhamos um despertar programado para essa época — um dos vários, programados justamente para que possamos detectar qualquer problema e avaliar a situação da jornada — quando devíamos todos permanecer ativos por um mês antes do próximo período de hibernação. Só que, ao despertar, não encontrei mais ninguém. E nem vestígios de quem quer que seja. O despertar, diga-se de passagem, foi normal. O sono criogênico é interrompido pela elevação gradual da temperatura e pela infusão automática de substâncias químicas liberadas por cápsulas implantadas. Deveríamos despertar todos juntos. Contudo, quando saí de meu casulo não vi ninguém. As portas estavam todas abertas, mas não havia ninguém nos casulos e nem nos corredores. Nem na torre; nem no refeitório; nem no comando; nem, enfim, em lugar algum. Rapidamente, diante de mistério tão tenebroso, a perplexidade foi cedendo lugar à angústia e esta ao desespero. Desvairado, corri pela imensa 59


nave, procurando em cada canto, em cada buraco onde pudesse existir um ser humano. Afinal, o que teria acontecido? Onde estavam todos os tripulantes desta expedição? Quando enfim me acalmei, comecei a inventariar os fatos que pude estabelecer. Os objetos pessoais estavam praticamente intactos, salvo alguns que pareciam estranhamente chamuscados. Além dos tripulantes haviam desaparecido apenas os trajes especiais que eles usavam na hibernação criogênica e os animais e plantas de bordo, vale dizer, os seres vivos, biológicos. Acessei um terminal de computador. Infelizmente, ao meu pedido de relatório, veio a exigência de impossível cumprimento: digite senha. Eu não tinha alçada para penetrar nos recônditos do sistema, e nem um treino suficiente para burlar o mecanismo de segurança. Não era a minha praia. A lembrança dos colegas e amigos começou a me pesar horrivelmente. Anabela, por exemplo, a especialista em Química de cabelos compridos esvoaçantes, uma cientista brilhante em corpo de garota. Bem me interessava por ela! Não houve tempo... Quin, o barbudo, apaixonado por antiquados jogos de dama e xadrez, não dispensava um cálice de Porto de boa safra... Chou Li, que insistia em comer com palitinhos, como se ainda estivesse na China, e era alvo de muitas chacotas por seus maneirismos e manias e pela voz de falsete, num inglês de décima categoria... Hildebrand, o prussiano soturno, em cujo alojamento descobri certa vez uma caixinha de porcelana de cujas pequenas aberturas ovais emanava uma luzinha lilás enigmática — e que se assustou com a minha descoberta, correndo a esconder o objeto... Temístocles, o braço direito do comandante da expedição, que vivia discutindo política pelos corredores e proclamava em alto e bom som que não concordava com os objetivos da missão. Parecia maluquice, na posição dele, dizer essas coisas abertamente... E Rose, a francesinha, que andava em traje de noite naquele ambiente de descontração... E Tanganika, o tanzaniano, que não largava um bloquinho que vivia enchendo de anotações criptográficas e equações complicadíssimas. Nós o chamávamos “Stephen Blacking”... Onde estavam? Tinham-se evaporado? 60


Depois de muito pensar lembrei-me da televisão invisível, um sistema secreto que só podia ser acessado em caso de emergência e cuja lógica incluía a possibilidade de compreender uma situação nova. Para acessar esse sistema eu teria de convencer o computador da necessidade de franqueá-lo. Entrei na sala de comunicações, onde ficava o maior e melhor terminal, encimado por um belo modelo de engonatão. Iniciei as minhas tentativas. “Franqueie o sistema invisível.” — Digitei. “Tecle US.” Teclei. A tela mudou do verde para um azul brilhante e pediu: “Digite justificativa.” “Desaparecimento da tripulação da nave, com uma única exceção.” A solicitação foi remetida ao sistema de TVI e eu fiquei aguardando resposta. Por fim apareceu na tela: “Pode provar sua afirmação?” “Posso. Acione rastreamento geral do veículo.” Agora uma sonda eletrônica, simbolizada por uma porta negra na tela, foi avançando pelos compartimentos da Janus, esquadrinhando cada canto onde um ser humano pudesse estar oculto. Em vão, pois naquele mundo virtual, também só eu apareci. Uma vez “convencido”, o sistema TVI expressou sua concordância: “Está bem. Franquearei o sistema. Tecle ‘S’ e a data desejada.” Informei a última data em que estivera acordado, tantos meses atrás, e ordenei “avanço rápido”. A tela foi correndo e a imagem se movimentando, temporal e espacialmente. Meses sem nada, aparentemente. Intrigado e impaciente, resolvi parar a pesquisa no tempo, cerca de três meses atrás, e pus-me a verificar cada casulo de hibernação, por mais que me causasse enfado a visão daquelas pessoas em animação suspensa. Após mais ou menos uma hora, algo me chamou a atenção. Algo espantoso! No compartimento ocupado por Hildebrand, uma coisa luziu dentro do armário, através da fresta. Em pouco Hildebrand abriu os olhos e começou a se mexer — mesmo em estado de animação suspensa! Senti um arrepio na espinha, a sensação brutal de estar lidando com alguma coisa sobrenatural. Hildebrand levantou-se como um zumbi do casulo plástico flexível. Seu macacão metálico rebrilhava na escuridão, refletindo a luz misteriosa que, cada vez mais forte, emanava do armário. De repente aquela múmia rija de músculos dormentes emitiu gritos absurdos, que um homem em estado de hibernação não podia emitir: 61


— Shogotts! Shogotts! Venha o seu poder, venha! Louvor e honra ao Homem de Areia, ao Necronomicon, a Abdul Al-Hazred! Raça das sombras, dominai tudo! Cumpre o teu destino grandioso! Honra ao grande C’thulhu! Que o princípio do Mal triunfe sobre todas as criaturas! Aquele discurso ímpio e insensato não parecia partir dos lábios de um ser humano, muito menos do cosmonauta culto, a quem eu julgava conhecer, mas de um louco furioso ou um fanático satanista. Como a gente se engana com as pessoas! Continuei observando, fascinado pela cena horrível. Ele abriu de sopetão o armário e eu imaginei, naturalmente, que iria ver o que havia dentro. Qual o que! Um turbilhão incrível de luz e trevas, um ciclone demoníaco ou coisa parecida, qualquer coisa como um frenesi macabro tomou a tela inteira num abrir e fechar de olhos, enquanto Hildebrand berrava e berrava de horror, engolfado pela aparição fatal. Como um relâmpago a coisa se propagou em questão de segundos pela nave inteira, escapando-se em seguida para o vácuo. Quando se dissipou, coisa de um minuto após abertura do armário, já não existia mais ninguém a bordo... Quando retomei o auto-controle, lutando para não enlouquecer, examinei o quarto do Hildebrand e encontrei a caixa de porcelana, aberta e chamuscada, dentro do armário. Dentro dela, certamente, encontravam-se as criaturas. Quem eram elas, esclareceu-me o Necronomicon, estranho e absurdo livro, do qual havia um exemplar nos pertences do engenheiro prussiano. Escrito por Abdul Al-Hazred, o Necronomicon descrevia as entidades antiqüíssimas que haviam passado pela Terra e ainda existiam em incompreensíveis dimensões exteriores ao espaçotempo que conhecemos. Seres indescritíveis que, se contidos num espaço minúsculo por matéria refratária, ao escapar liberariam tamanha energia que destruiriam todos os seres dotados de energia biológica ao seu redor. Segundo o Necronomicon, em Canopus existiam fontes de energia capazes de revigorar as forças esgotadas de tais seres, que para lá se dirigiam sempre que possível — mesmo que decorressem milênios — e aí encontrar-se-iam prontos para novas conquistas. Quiçá a Terra... Porém a saída prematura dessas criaturas frustrou seus planos, levando-as provavelmente à morte no vácuo. Por que terei escapado? Por que ainda me encomendo a Deus? Talvez, não ouso afirmá-lo. Quase todos a bordo eram materialistas, o que enfraquece as defesas 62


metafísicas. Só Deus sabe, porém, o que realmente me preservou. Pode ter sido mero acaso, uma especial disposição de meu casulo no dormitório: Só me restou contactar a base, transmitir o ocorrido e desprogramar a nave, para que ela retorne a seu ponto de partida. Não posso esperar a resposta da Terra. Agora devo me colocar de novo em hibernação, programando o sistema para me acordar de tempos em tempos. Breves despertares... até chegar à órbita terrestre. Serei recebido como herói ou criminoso? Como poderão admitir a tragédia que ocorreu, mesmo documentada pelo registro da tv invisível? E que outras forças incompreensíveis nos emboscam nas estrelas? O cosmos, que antes me fascinava, agora me apavora, me amedronta e oprime... transmitindo a idéia de um ente selvagem, impiedoso, esmagador. Algo que a humanidade não pode enfrentar sozinha. Meus dias de astronauta acabarão agora, quando eu pisar de novo a Terra. Nunca, nunca mais serei o mesmo.

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NÃO PINTEM O ROSTO DO PPALHAÇO ALHAÇO Nunca esquecerei o dia em que compareci diante de Samuel Montuano, o poderoso dono do Circo Irmãos Montuano. Apenas ele, desde que o irmão falecera. E eu, com o estômago vazio há dias, esforçara-me para não tremer frente àquele homem pançudo, com cara de quem nunca passara fome na vida. Ele abriu o envelope com a carta de apresentação que Romualdo redigira para mim. Romualdo, o último de uma legião de amigos, que ainda não se afastava à minha aproximação. Samuel leu de cara fechada o texto conciso e datilografado. Como o envelope não fora fechado eu sabia o que Romualdo havia escrito: “Meu caro Samuel: Apresento-lhe Alípio Fadel, meu amigo há muitos anos. Ele está aceitando qualquer coisa, até mesmo varrer o circo. Alípio é homem instruído e honesto, teve bons empregos mas não deu sorte nos últimos anos. Perdeu o emprego, não conseguiu levar avante um negócio particular. Está completamente falido. Sei que você sempre precisa de gente. Empregue-o por favor, como um obséquio especial a mim. Ele está, inclusive, sem teto e não tem para onde ir.” O Sr. Samuel guardou a carta e encarou-me com olhos enfezados, parecendo não ter gostado muito da situação: — Já trabalhou em circo? — Não senhor. Posso aprender o que for preciso. — Tem família... — Eu tive... há tempos. Minha esposa faleceu há três anos. — Tem filhos? — Dois filhos. Estão com minha irmã, no sul. O Sr. compreende... eu não tenho condições para criá-los. — Entendo. Tem seus documentos aí? — Estão todos aqui. Identidade, CPF, carteira profissional... — Essa você esquece. Não vou assinar sua carteira. Afinal não botei nenhum anúncio. E você, pelo que eu entendi, está implorando misericórdia. Engoli a injúria e mesmo assim mostrei-lhe a carteira. 64


— Mas o senhor não quer ver... o meu currículo? Ele pegou a C.P. com pouco caso e folheou-a rapidamente. — Nada disso serve para mim.— disse, devolvendo-me o documento encardido. — Se você soubesse domar leões, atirar facas, contorcer-se dentro de um tubo, levantar 120 quilos, ficar em pé e fazer acrobacias num cavalo trotando... eu poderia considerar. — Mas então... o senhor não vai me empregar? — Você está precisando mesmo, não é? — Eu... para falar a verdade, estou no último grau de desespero. — Está bem. Eu o empregarei. Já tenho uma idéia do que você poderá fazer. — Oh, que bom! Diga-me o que é, Sr. Samuel. Farei o melhor que puder... — Você pintará o rosto do palhaço. — O quê? Pensei que ele estivesse fazendo chalaça comigo e me ergui, desapontado e arrasado. — Desculpe-me, senhor, pelo tempo que lhe tomei... Ele pareceu ficar espantado: — Não quer mais o emprego? — Ué! É sério? — É claro, homem! Acha que eu sou um moleque? — Não, não, senhor... — Tornei a me sentar, pressuroso. — É que... o senhor sabe, eu sou um burro... — Isso eu já percebi, mas até um burro pode fazer esse serviço. O palhaço Amofina precisa de um maquiador. O último que trabalhou com ele pediu demissão anteontem. Por isso você veio a calhar. — Mas por que ele se foi? — É que o Amofina tem mau gênio, e o pobre do Gustavo não agüentou e pediu as contas. Mas você não fará isso, pois precisa do emprego, concorda? — É claro, senhor. Ora! Aturar mau gênio... não pode ser tão difícil. — Seria pior se fosse a sua mulher, não é? Mas você só terá que aturar o Amofina quando for maquiá-lo. — Mas o que ele faz? — Nada de mais. É só um velho rabugento e cheio de exigências. Xinga, descompõe... Nada que um sujeito na miséria e doido para receber seu salário, como você, não possa suportar. 65


— É claro que eu suportarei, seu Samuel. Puxa, quanto lhe agradeço! Pensar que eu vou poder trabalhar... ter um emprego... quando começo? — Vou lhe apresentar ao meu capataz, o Orsino. Ele cuidará de tudo. O dono do circo se levantou e eu fiz o mesmo. O aposento começou a girar à minha volta. O Sr. Samuel ainda tentou me segurar, mas não chegou a tempo. Caí desmaiado. Finalmente, fui vencido pela fome. Quando afinal despertei, vi-me diante de uma cara de réu que me olhava por trás de grossos bigodes com pontas frisadas para cima. Um homem de camiseta, preto e parrudo, e também careca. — Onde estou? — No meu alojamento. O Samuel mandou que o puséssemos na minha cama. E que lhe déssemos um almoço. Assim, você já começa explorando antes de fazer qualquer trabalho. — Me desculpe. Mas o que posso fazer? Já cheguei aqui morto de fome. — Bom. Eu sou o Orsino. A sua gororoba está ali na mesinha. Trate de comer enquanto está quente. Eu vou ficar esperando pois tenho que lhe apresentar ao palhaço. Levantei da cama. Ele não fez nenhum movimento para me ajudar. Procurei meus sapatos e constatei que minha pequena bagagem — uma mochila — estava jogada a um canto daquele quarto de tenda. Sentei-me então num tamborete, diante de uma mesa encardida, e enfrentei um prato não muito convidativo: uma galinha ensopada num arroz com feijão aguado, com alguma coisa verde picada que eu julguei ser capim, mais um pão dormido e um copo com guaraná morno. Para mim, naquela hora, foi um banquete. E ainda tinha uma banana machucada de sobremesa! Quando terminei voltei-me para o capataz, que ostentava a cara mais entediada do mundo: — Já me sinto melhor. Podemos falar com o palhaço? — Já não é sem tempo. Acho que você e o Amofina serão dignos um do outro! Apesar daqueles comentários pouco animadores, eu estava otimista. O homem não poderia ser tão ruim assim, nada que eu não pudesse sobreviver. Fui, portanto, atrás do Orsino, observando ao redor moças semi-vestidas, varredores enfezados, um mágico elegante conversando com um sujeito musculoso de camiseta (que eu supus ser o halterofilista) e outras visões exóticas de circo. 66


Chegamos finalmente ao vagão onde se via pintado, na parede externa, o retrato do “Fabuloso Palhaço Amofina”. Por ali não poderia saber se o sujeito parecia simpático ou antipático. Não com aquele narigão de massa, aquela tinta vermelha nas bochechas, aquele chapéu em forma de torre assíria. Orsino bateu na porta três vezes. Imediatamente a porta se abriu e um homem velho e barrigudo, de ceroulas, apareceu esbravejando: — Que é, porra? Estou escovando os dentes! — E como é que eu ia saber? Termine logo que o Samuel quer que eu fale com você. — Falar o que? — Dane-se, homem, você não quer escovar os dentes primeiro? Faça logo essa... O outro bateu com a porta, com toda força. Orsino voltou-se para mim: — Espero que você goste dele.— Zombou. Esperamos mais tempo do que aquele que um homem normal gasta com um dentifrício. Então a porta voltou a se abrir e o Amofina reapareceu, tão zangado quanto antes: — Bom, fale logo! O que é que o Samuel quer? — Não vai nos convidar para entrar? Ele deu-nos as costas. — É o convite dele.— Orsino explicou.— Entre logo! Entrei. Vi-me diante de um aposento lúgubre, sujo e desleixado, onde até uma TV tridimensional jazia no chão, virada. Sentamo-nos nuns tamboretes cobertos por trapos e o Orsino explicou: — Festus, esse é o Alípio. Ele vai trabalhar com você. Estendi a mão e tive que recolhê-la, pois o palhaço não fez a mínima menção de apertá-la. — A equipe está completa. Não preciso de mais nenhuma merda de ajudante. — Escute aqui, Amofina! Ele vai te ajudar na maquiagem, apenas isso, porra! — Ah, bom! Até que enfim o filho da puta do Samuel resolveu substituir o Gustavo... Mas, diga: — nesse ponto ele se dirigiu a mim pela primeira vez. — você já maquiou alguém antes? — Vou ter que aprender. — Admiti. Essa resposta valeu mais algumas pérolas verbais do Amofina e por fim o desabafo: 67


— O velho podia pelo menos ter arranjado um profissional como o Gustavo! Estamos decaindo! Orsino se ergueu: — Bom, e você acha que algum profissional vai lhe aturar? O Gustavo aturou? Dê-se por feliz porque esse pobre diabo deu com os costados aqui. Eu tenho mais o que fazer. Vocês aí que se entendam. As coisas começaram a entrar na rotina. Porém uma rotina escura, sufocante. O Circo Montuano deslocou-se durante semanas pelo centro do país em seus veículos anacrônicos veículos. Depois guinou para o sul, em direção a Hibernópolis, onde deveríamos apanhar um mágico que tirara uma licença e lá se internara por uma período de seis meses. E todo esse tempo de viagem, foi um tempo infernizado. Havia talvez só uma coisa boa em tudo aquilo: a privacidade de um alojamento particular. Tradição. O dono do circo sabia naturalmente que as características de sua caterva eram por demais heterogêneas. Não se junta no mesmo quarto um palhaço malcriado e um capataz atrevido, um engolidor de fogo esquentado e um atirador de facas neurótico. Por isso, eu tinha o meu quartinho ambulante. Mas era só. Toda manhã tinha de me apresentar no alojamento do Amofina. Conforme a hora em que eu chegava, a recepção apresentava essas duas opções: — Vá à merda, cara! Não vê que é muito cedo? — Por que se atrasou, porra? Isto aqui não é lugar pra vagabundo! Eu engolia o orgulho junto com os insultos e lá ia misturar as tintas e as massas. Não era em si uma tarefa difícil. Usávamos essas modernas tintas biodegradáveis que podiam até ser ingeridas sem causar grande dano e, não sendo na verdade um tapado, aprendi rápido o que devia ser feito. Não que isso satisfizesse o Festus, que chegava ao ponto de usar uma régua para descobrir um milímetro de pintura a mais ou a menos e me cobrir de insultos ou zombarias, xingando-me de estafermo, besta quadrada, idiota, mula, bestalhão, imbecil, lorpa, débil mental, toupeira e outras preciosidades de seu vasto repertório. Isso, quando não me chamava de veado, mesmo. Podem crer, é duro agüentar essas coisas sem partir para a agressão física. Mas quando a opção é morrer de fome, a gente agüenta. Perto de Aparecida do Norte, armamos novamente o circo e eu pude mais uma vez observar os métodos do Amofina. Eram os métodos de um palhaço fascista: uma grande novidade para mim. O Taquara, o Texugo e o Carambola eram os três infelizes palhaços auxiliares. Primeiro surgia o 68


Amofina no picadeiro, saltitando como um reumático e fazendo salamaleques para o público. As crianças vibravam, os adultos batiam palmas; então o Festus, depois de meia dúzia de reverências aduladoras, puxava um lenço do tamanho dum bonde, assoava ruidosamente o nariz e cumprimentava o pessoal: — Alô, crianças! Alô, minha geeeenteeee!!!! Quem é legal, ganha. Quem é mau, apanha! É ou não é, garotada? — É É É É É É É!!!!!!! — E agora, onde é que estão aqueles idiotas dos meus auxiliares? — Aqui ele puxava da calça larga um relojão de corrente, do tamanho de um pires, conferia uma hora imaginária (os ponteiros eram pintados) e berrava: — Texugo! Carambola! Taquara! Onde estão vocês, seus burros? Vocês estão atrasados! Apareçam logo, antes que eu perca a paciência! E lá vinham eles aos pinotes. E cada um que chegava era Plaft! na cara e Pimba! no traseiro. E eu sabia que o Amofina batia mesmo. Basicamente os três palhaços-ajudantes eram pagos para apanhar do Amofina. Pelo menos, eram mais bem pagos do que eu. Mesmo assim, tinha pena deles. Não é fácil ganhar a vida sendo embolachado diariamente. Hibernópolis! Nunca tinha estado naquele lugar lendário, aquela cidade dos adormecidos. Quem tinha dinheiro — o que, é lógico, me excluía — se lhe desse na telha ia para lá, se desligar um pouco do mundo dos vivos, alugando uma cápsula de hibernação criogênica por alguns dias, meses e, em casos raros, até anos. Nesse último caso, o preço era absurdo, mas há quem diga que vale a pena, tal a restauração física trazida pelo longo descanso em estado de animação suspensa. Era lá que se encontrava o Cartola, um mágico que segundo se dizia era, ao lado do Amofina, a principal atração do Circo Montuano. O Sr. Samuel andava meio eufórico, ansioso por pegar de volta Demétrio Torrenova, ou seja, o Cartola; pois a presença dele traria maior público aos nossos espetáculos. Comentava-se entre o pessoal do circo — e até o Amofina me confidenciara isso, num dos intervalos de conversa normal — que o Samuel tentara por todos os meios convencer o Cartola a não se internar em Hibernópolis. Ridicularizara a hibernação, chamando-a de “vadiagem congelada”; mas o prestidigitador fora inflexível: — A vida é minha, chefe. Se eu quero hibernar, isto é problema meu. Durante esse período eu estou de licença e o senhor não me pagará salário. E se depois não me quiserem de volta, não me faltam propostas. 69


Samuel, porém, nem pensava em “não querer de volta” seu valioso colaborador. E a prova é que chegava a dirigir o comboio para resgatá-lo da câmara de hibernação. Chegamos pela manhã e o chefe deu-nos o dia de folga, embora fosse quinta-feira. Na verdade, com a saída do mágico marcada para sexta-feira às 16 horas, podíamos contar que antes de domingo não haveria espetáculo, se é que faríamos algum naquele lugar. De qualquer forma, teríamos ensaios e faxinas. Mas naquela quinta-feira estávamos livres, exceto quem tivesse que alimentar ou banhar os animais ou fazer qualquer tarefa inadiável. Não era o meu caso. Sem ensaios programados, o Amofina não se pintaria. Que grande alívio! Saí para passear de bermuda, agradecido ao Céu por poder descontrair um pouco. Curiosa cidade aquela, com suas cúpulas onde se alojavam os hibernantes e suas torres com as usinas que forneciam a energia necessária para que tudo aquilo funcionasse. Intercaladas entre os quarteirões residenciais ou comerciais, as cúpulas de alumínio brilhavam ao sol matinal. Eram belas, mas de uma beleza fria, glacial. Não se permitiam visitas aos hibernantes, para evitar acidentes ou sabotagens, de maneira que estes realmente descansavam em paz. Quando muito eu poderia entrar na portaria e pedir informações. Foi o que fiz, ao identificar a Cúpula 8 — Capitão Nemo — onde o Cartola dormia o seu sono hibernal. Na portaria, uma funcionária negra sonolenta (influência do local?) de uniforme vistoso me respondeu: — Ah, o mágico! Realmente, o processo de reanimação já começou. Amanhã ele vai sair da câmara. — Acho que eu nunca teria coragem de hibernar... Não há risco nisso? — Em tudo que se faz há risco. Mas temos uma equipe médica altamente qualificada para acompanhar o processo de reanimação... Ela bocejou e acrescentou: — Sentiremos falta dele. — Ué, mas ele não está hibernando inerte? — Está, sim. Agora. Mas foi combinado por aqui que ele nos divertiria com seus números a cada mês... Nós o reanimamos cinco vezes, ele deu um espetáculo interno e voltou a dormir. Agora porém é definitivo. Uáá... Os bocejos dela pareciam contagiosos e estavam me pegando; como não poderia ir ao local do sono do mágico, agradeci e fui olhar os painéis explicativos, cheios de esquemas curiosos. 70


A câmara de hibernação parecia um mausoléu de mármore, ligado porém por tubulações a uma espécie de usina e unidades de controle informático de última geração. Algo tremendamente moderno, de ponta mesmo, provavelmente a tecnologia mais moderna e avançada existente no Brasil. Havia muito dinheiro investido ali e certamente a diretoria não brincava em serviço. Clientes tão caros tinham que ser bem tratados, ainda mais que se houvessem falhas, haveriam mortes. Nunca porém ninguém morreu ali por falha das unidades de hibernação. Enquanto olhava os painéis percebi a presença de faxineiras munidas de aspiradores eletrônicos. Não me teriam chamado atenção se também não estivessem bocejando. Estranho local, realmente! O chefe teve autorização para assistir a reanimação do Cartola. Certamente não podia levar a tropa toda com ele, mas resolveu selecionar cinco pessoas para irem junto e, para minha surpresa, fui incluído no grupo. Infelizmente o Amofina também foi premiado, o que me desgostou bastante. As outras pessoas foram: a trapezista Arlene, o anão Pestana e o antipático do Orsino que vocês já conhecem. Naquele grupo, pelo menos a Arlene era simpática. De manhã, porém, fui subitamente despertado de um sono profundo por batidas na minha porta, por sinal, socos. — Que é? Que está havendo? — levantei de qualquer maneira, sentindo-me tonto. — É o tipo da coisa que faz mal à pressão. — Cambaleei até a maçaneta. Era o Amofina, e com cara mais feia que de costume. — O que você quer? — Perguntei, perplexo. — Arrume-se, latrina ambulante. É hora de trabalhar! — Como assim? Hoje não tem ensaio! — Hoje é um grande dia. A imprensa vai estar no local. Eu vou a caráter. — O quê? — É isso aí, seu idiota! Você vai me pintar! Quero você no meu camarim em dez minutos! O bafo de caninha quase me derrubou. Percebi que ele estava disposto a me dar um bofetão, se eu recusasse. Brigar com ele naquele dia não daria boa impressão ao chefe. 71


— Me dá quinze minutos. Tenho pelo menos que lavar o rosto e me vestir! — Está bem, traste inútil! Quinze minutos! O Pestana e a Arlene, conversando sobre o grande evento do dia, passaram por nós, e reparei em suas expressões constrangidas diante da estupidez do palhaço. Constrangido eu próprio, fechei a porta, quase chorando de tanta raiva. Quando enfim cheguei no aposento do Amofina, ele me recebeu aos berros: — Você falou quinze minutos! Passaram DEZESSEIS! — Desculpe, mas eu fiz o possível... — Ora, vá à merda! E faça um bom trabalho! Já basta o janota maluco... — O quê? — O maluco que passou por aqui querendo vender espelhos! Se não falou com você é porque você é um dorminhoco! — Não, eu não vi o sujeito... como ele era? — Alto, com um metro e oitenta, barbado, com um terno cinza... mas para que estou lhe contando isso? Você é muito feio para ficar se olhando em espelhos! Vamos começar! — Só uma coisa... alguém comprou algum espelho? — Só o besta do Texugo. É um burro mesmo. Qualquer um consegue enrolá-lo. Lembrando-se do motivo que o levara a me convocar mudou repentinamente de assunto e apontou a mesa de transformação. — Vamos trabalhar! Veja se hoje você finge que presta para alguma coisa! E eu disse para mim mesmo, em pensamento, repetidamente: Você precisa do emprego... Você precisa do emprego... Você precisa do emprego... Amofina sentou-se e aguardou, diante da pia e do espelho grande A mesa de transformação incluía pia e torneira, necessárias para a metamorfose. — Quem andou mexendo aqui? — O palhaço reclamou após abrir a gaveta e examinar as bisnagas. — Isso não está como eu deixei! — Não fui eu, é claro. — Estou vendo que vou ter que trancar essa gaveta! Que merda... Essa gente da limpeza é muito enxerida... Ah, se me roubarem algo eu mato um! Ele deve estar ficando caduco, pensei. Afinal já passou dos sessenta anos. 72


Comecei a preparar o sabonete, separei a espátula, a escova da cabeleira e tudo o mais que era necessário. — É duro agüentar você — Festus disse, descaradamente. — Com franqueza, espero que você não fique neste circo por muito tempo. Engoli minha resposta e ele prosseguiu: — Em vez disso quem vai embora é o Marmelada. Bom sujeito, ele. E o nojento do Cartola vai voltar! Por que não fica congelado mais alguns anos, até eu me aposentar? — Como? Você não gosta dele? — Daquele emproado, pernóstico e vigarista? Claro que não! Ele pensa que é o dono do circo! Graças à bebida, a língua do Amofina estava bastante solta. Por isso ele falava abertamente contra o mágico que era a menina dos olhos do Sr. Samuel. Quanto ao Marmelada, era o mágico de terceira classe que substituía interinamente o Cartola. Vinte minutos depois, Amofina ajeitou a torre assíria na cabeça e saiu do seu vagão. Saí junto, é claro, e fiquei sem saber direito o que iria fazer. Ele olhou para mim e rosnou: — Bom, já não agüento mais te ver hoje. Vá “alipiar”longe! — Está bem. Para mim também é um alívio. — O quê? Ele batera um recorde de xingamentos naquele dia. Por isso, deixando-me levar pelo agastamento, eu deixei escapar: — Você é muito chato. Isso não era a milésima parte do que ele lançava sobre mim. Mas o Amofina não estava nem aí para igualdade de direitos. No instante seguinte sua mão pesada me atingiu com tanta força que me vi de cara no chão, tonto e vendo estrelas. Quando consegui me recuperar do golpe, ergui-me com o pensamento fixo de pular pra cima do biltre. Mas nesse momento, Samuel veio correndo e me agarrou pela gola, dando-me uma sacudida: — Que pensa que está fazendo? Não vá arranjar briga com um profissional do picadeiro! Você é um subalterno, lembre-se! — E-está bem, senhor. — Falei, quase pedindo desculpas por ter levado o bofetão. Depois que eles se afastaram, retornei humilhado ao alojamento. Quando ia entrar, porém, passos rápidos de pés calçados com sapatilhas se fizeram ouvir e uma mão suave segurou meu braço. Era Arlene. 73


— Eu vi tudo, Alípio. Foi uma indignidade. Esse Festus! É um canalha nojento! Algum dia ele terá um castigo exemplar! Agradeci-lhe sinceramente, mas queria mesmo ficar só, meditando numa outra indignidade: a vida que eu estava levando. Eu era um derrotado. Mas o que fiz para merecer tudo aquilo? Teriam razão aqueles padres da minha infância, que diziam que a gente não devia esperar felicidade nesta vida, e sim fazer por merecê-la na outra? Por trás de uma grade circular de isolamento, observávamos o processo de reanimação. Dois técnicos trabalhavam nos terminais, junto à parede metálica. No mausoléu do Cartola ainda não dava para ver nada, a não ser luzes externas que acendiam e apagavam. Eu não entendia nada do que se passava e limitava-me a esperar, impaciente, que a tampa se abrisse. Procurava ficar perto de Arlene. O resto do grupo me esquecera. — Ele deve estar mais novo agora — A moça segredou-me. — Esse aparelho aí faz maravilhas! — Reanimação concluída. — O Dr. Castilho confirmou.— Injete as vitaminas! Iniciar a reposição sanguínea! — Tomara que essa merda acabe logo! — Amofina rosnou entre os dentes. — Já estou com dor de cabeça! — Controle-se. — Samuel ralhou em voz baixa. — Há repórter por aqui. Esse é um momento importante para o circo! De fato, já nos haviam filmado e indagado várias coisas. De má vontade, Festus parou de reclamar e procurou o banco mais próximo. Após 35 minutos, finalmente a tampa começou a ser lentamente levantada. Passando pela cancela da grade, duas enfermeiras se aproximaram com um aparelho para estimular a respiração. Vi Demétrio Torrenova pela primeira vez quando ele começou a se levantar. Certamente um homem bem apessoado e que despertava com ótima aparência, corado e alegre. Já estava vestido, embora de maneira simples, com um uniforme esverdeado e uns mocassins. Ao reconhecer Samuel e os outros fez-lhes um aceno alegre e múltiplo. Acenou também para mim, a quem não conhecia. Auxiliado pelas enfermeiras, aproximou-se de nós, subindo a rampa espiralada. Beijou as duas moças efusivamente e elas adoraram. Como estava à esquerda, meio isolado do grupo, fui o primeiro alcançado pelo mágico, que me abraçou e cumprimentou: 74


— Oi, meu velho! Quem é você? Está com Samuel agora? — Ah, sim... meu nome é Alípio... — Ótimo! Samuel, seu tratante! Que prazer em revê-lo! O circo sobreviveu sem mim? — Não foi fácil. — Montuano reconheceu com um sorriso amarelo. Mas abraçou cordialmente a “menina dos olhos”. Em seguida Demétrio beijou e abraçou Arlene, ela toda sorrisos. Depois apertou secamente a mão de Orsino, e eu percebi logo que eles não morriam de amores um pelo outro. Aliás, o Orsino não parecia gostar de ninguém no circo, a não ser talvez das moças. Com o Pestana, o mágico foi mais cordial. Por fim, Demétrio estendeu a mão para o Amofina. — Você por aqui, meu caro? Ainda? — Como assim, Demétrio?— O Amofina fingia uma cordialidade totalmente atípica. — Não se aposentou? — Não se livrarão de mim tão facilmente — O palhaço sorriu com ar amigável. O que é a política! — Bom, bom. — Samuel tentou apressar as coisas. — Vamos assinar o que tiver que assinar e vamos embora daqui! Lá fora você ainda vai ter que falar com o s repórteres! O mágico teria que se submeter a uns exames médicos de rotina. Começamos pois a caminhar, acompanhando as enfermeiras. Súbito, porém, Arlene deu um pequeno grito. Voltei-me para ela. Surpreso, vi que o Amofina estava caindo e que a moça esforçava-se por sustentá-lo. Tratamos de ajudá-la e as enfermeiras vieram socorrer o palhaço desfalecido. Foi Neide. — conforme constava em seu crachá — quem nos deu a notícia: — Esse homem está morto! Existia, é claro, um ambulatório para atendimentos rotineiros e emergências. O Dr. Vitor Gigante e a Dra. Marlene Guerra trataram de fazer um exame minucioso e, afinal, o resultado não demorou. Nós seis estávamos na sala de espera, angustiados com o ocorrido. Não que o Orsino, por exemplo, sentisse tanto. Amofina não era propriamente um sujeito popular, mas a morte sempre é uma coisa chocante. Por fim os médicos saíram e o Dr. Vitor falou sem rodeios: — Senhor Samuel, já chamei a polícia. 75


— A... a polícia? Está doido? Por que isso? — Esse homem foi assassinado por envenenamento. Por falar nisso, quem foi que pintou o rosto dele? Todos os olhares convergiram para mim. Mal pude balbuciar: — O que foi que houve? — O veneno estava na tinta. Cianeto. O assassino, portanto, deve ser o maquiador. E assim, pela primeira vez em minha vida, entrei em pânico. Um pânico real e absoluto, tão avassalador que eu mal consigo me lembrar das coisas que aconteceram logo em seguida. Sei que corri, corri como um doido varrido, atravessando salas, aposentos, como um bólido. Meu organismo agora bem nutrido recuperara a antiga agilidade. Pessoas corriam atrás de mim, inclusive meus colegas do circo. Passei por funcionários espantados, que já não ostentavam a cara de sono da véspera. Sei que saltei por uma janela e acabei por pegar um táxi por pura sorte. Gastei o pouco dinheiro que tinha, mas saltei perto de um beco e pus-me a atravessálo, rezando para ter despistado os meus perseguidores. O beco estava escuro e deserto. De repente, porém, ouvi passos leves atrás de mim. Voltei-me e lá estava Arlene, afogueada de tanto correr. — Alípio, espere! Foi um grande choque para mim. Pensei em sair correndo, mas não me decidi e ela se aproveitou de minha indecisão para chegar mais perto: — Tomei um táxi atrás de você. Creio que ninguém nos seguiu. — Por que você veio? — Você matou o Festus? — Não, juro que não! Não fui eu! — Então por que você fugiu? Piorou sua situação! — Iam me prender! E logo eu estaria apanhando como boi ladrão, para confessar o que não fiz... — Eu sei que não foi você! Mexeram na gaveta dele, lembra-se? — Ele me falou. Como é que você soube? — Ora, ele reclamou disso com o Samuel, queria descobrir quem foi. Você não mataria uma mosca! — E o que vamos fazer, então? — Não pode ficar aqui. Venha comigo! Arlene pegou-me pelo braço e fomos andando para fora do beco. Talvez nos tivessem visto das janelas. Mas não saberiam do que se tratava. 76


— Você conhece essa cidade? — Indaguei. — Já estivemos aqui antes. Sei de um local onde podemos nos esconder temporariamente. — Nós nos escondermos? Mas você vai fugir comigo? Ninguém a está acusando! — Não posso abandoná-lo numa hora dessas, Alípio. Você precisa de uma mão amiga. Não sabia o que dizer diante de tanto altruísmo. E, de qualquer modo, não estava em condições de recusar ajuda. Ela parecia conhecer bem a cidade e foi me conduzindo pela mão, com naturalidade. Caminhamos por ruas sujas de um bairro imundo, e chegamos enfim a um hotelzinho barato de quinta categoria. Antes de entrarmos ela olhou-me muito séria: — Vamos fingir o que não somos, mas é a única maneira de obtermos algum tempo livre para conversar. Está entendido? Ninguém pergunta nomes aqui. — Já entendi. Mas e o preço? — Eu tenho. Não se preocupe. E não discuta! Você não quer sair livre disso? Minutos depois estávamos num dos quartos e Arlene, tirando apenas a bolsa e os sapatos, sentou-se numa poltrona e convidou-me a fazer o mesmo. — Deixa eu te explicar uma coisa, Alípio. Quero que você me conte tudo, sem ocultar nada. Conheço bem os envolvidos. Por um pequeno detalhe, que você pode a princípio julgar desnecessário, talvez eu possa descobrir o que aconteceu. — Mas como você poderia... — Isso é o que vamos ver. Você tem que me contar tudo, entende? Desde o princípio. — Mas tudo o quê, Arlene? — Tudo. Pode começar com sua chegada no circo. O que o trouxe até nós, como conseguiu o emprego. Eu paguei por três horas nesse quarto; nós temos tempo de sobra. Conte-me tudo, desembuche. E foi assim que relatei a Arlene tudo o que agora reproduzo nesta memória. Não foi algo tão insosso. Ela me interrompia com freqüência, esmiuçava detalhes, fazia comentários espirituosos, revelando-se, pouco a pouco, uma criatura charmosa e inteligente, além de muito sensível. Como é que eu não havia percebido nada disso antes? 77


Quando terminei minha narrativa ela consultou o relógio, espreguiçou-se e ficou silenciosa durante alguns minutos. Eu já não sabia o que dizer e somente aguardava. Ela fechou os olhos e inclinou o rostinho juvenil para trás, como se sonhasse. Respirou fundo e, abrindo os olhos verdes, sorriu-me e falou: — Pobre Alípio! Que armadilha satânica lhe arranjaram! Já compreendi o que houve! — Você está brincando, não é? Pois se eu não compreendi nada! — Tolinho! Raciocina um pouco que você chegará à mesma conclusão que eu! Pois você me forneceu os dados necessários! Isso é apenas uma questão de boa lógica, que os fatos podem ser deduzidos pelo encadeamento das circunstâncias... — Bom, mas para mim o que você está falando é grego. Explique melhor tudo isso. Você sabe quem matou o Amofina? — Sei. — Então, por Deus, me diga logo! — Você mesmo não vai acreditar. — Mas, então... — Olhe, homem, não será fácil provar. O que você tem que fazer agora é estar disposto a lutar, a não se entregar. Até porque você entrou nisso como bode expiatório, como Pilatos no Credo. — Já não tenho muito o que perder. — Suspirei desanimado. — Aí é que você se engana. — Então ela veio para perto de mim e me beijou. E depois contou quem tinha morto o palhaço. O pessoal do circo ainda estava prestando depoimento na delegacia quando Arlene e eu chegamos. Enunciados nossos nomes, não houve dificuldade em sermos recebidos no gabinete do Delegado Fontana. Quando lá entramos, Samuel e os outros nos olharam com perplexidade e o delegado foi direto ao assunto: — Veio se entregar? — Não, delegado. — Arlene respondeu por mim. — Nós viemos delatar o verdadeiro culpado, que está aqui presente. Porque um dos presentes assassinou o Festus, mas não foi o Alípio, porque esse não faz mal a uma mosca. — Arlene, você está louca! — Samuel exclamou. — Que tem você com esse homem? 78


— Um momento.— O delegado interrompeu. — Tudo o que eu sei é que esse homem, quando acusado, fugiu... — Pânico, é compreensível. Mas eu já examinei os fatos, delegado, e posso provar que não foi ele, e sei quem foi. — Você é detetive então? Andou lendo Sherlock Holmes? Percebi um toque de sarcasmo tendendo à grosseria da parte do delegado. Ele certamente não ouviria a garota, pensei desanimado, já me sentindo na sala de tortura. Ah, essa questão insolúvel dos direitos humanos! Para minha surpresa, porém, Arlene contestou: — Conan Doyle e vários outros autores, como também é o caso do seu filho. — O quê? Que quer dizer? — A surpresa do tira era sincera. — O Valter e eu somos membros do Clube dos Amantes do Mistério, o C.A.M. Ele é membro 78 e eu o 101. — Ora vejam! — Ele sorriu. — É, ele tem esse “hobby”... — Pois é, Delegado Fontana. Já vê que eu tenho certo interesse em deduções, em resolução de mistérios. Por isso queria que o senhor me ouvisse, porque eu concatenei certos fatos desse caso e julgo que tenho a solução. — Pois muito bem. Sente-se e explique. — Não preciso sentar, obrigada. Vou ficar de pé para me movimentar enquanto falo, isso é bom para os nervos. Orsino olhou-a com desprezo: — Não conhecia essa sua faceta... Arlene não ligou para o capataz e nem a um comentário jocoso do mágico, que não escutei direito. Foi direto ao assunto. — O Alípio é considerado o suspeito Nº 1 por indícios circunstanciais. Foi colocado um veneno na maquiagem do palhaço. Alípio era a pessoa que pintava o rosto do palhaço. No dia em que Festus morre, havia sido maquiado por Alípio. Pior, os dois se desentenderam, e Alípio foi agredido por Festus. E todo mundo, no circo, ficou sabendo dessa briga. “Podemos acrescentar que, ao longo de meses, Alípio sofreu inúmeras humilhações, afrontas e mortificações no trato com o Amofina que, como toda a trupe sabia, era neurastênico, maníaco e violento. Em suma, motivos para o homicídio, ainda que mesquinhos, existiam. “Entretanto não foi ele o assassino. Seria óbvio demais colocar veneno na pintura. Alípio não seria tão burro. Talvez achassem que ele fosse, por causa da sua humildade. Mas ele é inteligente.” 79


— Você está sabendo demais sobre ele.— O anão comentou em tom maldoso. — Cale-se, Pestana.— Ela respondeu rápida. — Esse assunto requer atenção. Existem nisso tudo uns fatos a considerar. “Primeiro, porque remexeram no material do Amofina. Ele reclamou, na sua última sessão com Alípio. O próprio Amofina se queixou, e não foi só ao Alípio, não é, Samuel? — É, ele se queixou.— O dono do circo reconheceu. — E daí? Isto só prova que o crime foi preparado previamente. — Sim, mas veja bem. Teria sido fácil para Alípio colocar o cianeto e deixar tudo como antes, sem alteração visível. E, no entanto, o criminoso teve pressa para não ser pilhado em flagrante. “Segundo, um estranho andou por lá na manhã do dia do crime. Um vendedor janota, que vendia espelhos e até vendeu um para o Texugo. Esse, infelizmente, não está aqui, mas outros viram esse homem. Não é mesmo, Orsino? — Eu o vi. Era um chato. — Você quer dizer que ele é o assassino? — O delegado indagou. — O senhor disse tudo. Veja bem: naquela manhã o Alípio foi tirado da cama pelo Amofina, que queria porque queria ser pintado para comparecer à cerimônia de reanimação. Se o veneno foi posto naquele dia, o Alípio não teve tempo de fazê-lo. — E como é que o sujeito entrou no vagão do palhaço? — Imagino que ele não tenha trancado a porta. Afinal de contas ele não pretendia se afastar, nem se ausentar muito tempo: foi apenas chamar o Alípio. — Isso tudo é muito vago. Vendedores andam por toda a parte. — O delegado não parecia convencido. — O sujeito pode ter colocado o veneno previamente, portanto é muito cômodo dizer que foi um desconhecido, que provavelmente não poderá ser encontrado... Ele deixou algum telefone, um cartão de visitas, deixou o nome? — Disse chamar-se Mozart, mas que eu saiba não deixou direção nenhuma. — Então estamos na estaca zero. — Não, delegado, não estamos. Já esqueceu que eu falei que o assassino está aqui? — Você quer dizer o quê? Que o criminoso se disfarçou de vendedor? — Isso mesmo. 80


— Mas que absurdo! — Samuel exclamou.— Ontem nós todos estávamos no circo e vimos o sujeito. — Todos menos um, Samuel. E aí todos os olhares convergiram para Demétrio Torrenova. — Está louca! — O mágico gritou, pondo-se de pé. Arlene enfrentou o prestigiado personagem. — Não estou louca, não senhor! Foi você mesmo, Cartola! E vou provar o que estou dizendo! Vou te desmascarar! — Hibernei durante seis meses e não saí da hibernação para ouvir essas besteiras... O delegado se ergueu e exclamou, quase brutal: — Olhe aqui, garota! A polícia não tem tempo a perder! Até então calado, o escrivão Lupicínio resolveu entrar na dança: — Isso é uma palhaçada! Ela deve estar de caso com esse cara... — Parem, por favor! — Arlene insistiu. — Escutem só: esse homem não passou seis meses em animação suspensa! Ele saía da hibernação uma vez por mês para divertir os funcionários... Fazia um show de mágica! Com isso ele hipnotizou os funcionários, ou talvez tenha subornado alguns. O fato é que, na manhã de ontem, ele já não estava hibernando. Ele veio, armou a armadilha para o Amofina e o Alípio, e retornou ao centro de hibernação. Esse último argumento pareceu impressionar os policiais. Fontana olhou para Demétrio. Este confirmou: — Isso é verdade. E daí? Eu tinha esse trato para divertir o pessoal... Até aí eu me mantivera calado, mas resolvi intervir: — A alta direção das cúpulas de hibernação sabia disso? Ele olhou com raiva para mim. — E eu lá sei? A chefia local autorizou, portanto... eu não saí da hibernação ontem pela manhã, você mesmo me viu sair à tarde! — Você voltou para lá — Arlene contra-atacou. — No estado de hipnose em que se achavam os empregados nada viram, nada notaram. — Isso me parece fantasia, Arlene. Eu conheço um pouco de hipnotismo mas como poderia magnetizar aquele pessoal todo... — Você o fez, — lembrei-me de repente, — pois todo mundo estava com sono, bocejando. Isso não é normal. Demétrio voltou-se para o policial: — Delegado, eu vou embora, tenho que descansar. Não posso ficar escutando essas asneiras. 81


Fontana virou-se para Arlene: — Podemos verificar essas coisas, mas você tem uma prova concreta? Pois vamos e venhamos: é incrível que alguém possa sair de uma hibernação criogênica para cometer um homicídio. — Ele é um mágico, senhor delegado. Mas nem todas as mágicas dele poderão eliminar um rastro que ele deixou. Porque só Deus sabe quantas saídas ele deu, além das que foram “oficialmente reconhecidas” na Capitão Nemo. Ele viajou pelo país, foi muitas vezes, sem dúvida, nas exibições do circo. De cada vez usou um disfarce diferente. De qualquer forma, nunca, como nos últimos seis meses, andaram tantos vendedores ambulantes e pregadores de seitas exóticas, pedintes e pesquisadores pelos acampamentos do Circo Montuano. E todos eles com um metro e oitenta de altura. Vocês todos se lembram? Percebi que o Samuel Montuano finalmente pareceu impressionado. — Cruzes! — Exclamou, olhando para o mágico. O Cartola, porém, não havia perdido a serenidade. Cruzando os braços, olhou para Arlene: — E as provas que o delegado pediu? Onde estão elas? — Estão na movimentação da sua conta corrente. Demétrio pareceu levar um choque, finalmente: — O quê? Que é que você quer dizer, sua intrometida? — Que nada se faz sem dinheiro, espertalhão. Nas suas movimentações você teve que sacar pelo Brasil afora, pelos terminais eletrônicos, já que não existem mais agências bancárias. Que tal fazermos uma análise minuciosa de sua movimentação bancária nos últimos seis meses? — Você crê que meu dinheiro ficou parado seis meses, só por causa da hibernação? Eu tenho um procurador... — E será que ele esteve em todos os lugares por onde o circo passou? De São Luis a Paranaguá? Ele poderá provar isso? O sorriso de Demétrio desapareceu. Sozinhos num parque verde, imersos em nosso amor ainda mal iniciado, tínhamos o ambiente para terminar de rememorar nossa aventura. — Nunca imaginei que você fosse uma Sherlock Holmes... — Hercule Poirot, talvez. Eu usei as pequeninas células cinzentas. — Ainda não compreendi claramente o que realmente aconteceu... — Então pense, meu amor. É evidente que o crime foi planejado com grande antecedência, foi muito bem premeditado. O Amofina era um infe82


liz, que só fazia inimigos. Com o Cartola ele passou da conta, como eu expliquei na delegacia e direi no Tribunal do Júri. — É, você disse que ele bateu na cara do mágico... — Um bofetão só, mas bastou para jogar o Cartola no chão. O Festus tinha a mão muito pesada, por isso seus auxiliares do palco estavam sempre com equimoses. Você mesmo sentiu a mão dele... Ora, o Demétrio sentiu seu orgulho ferido e resolveu se vingar. Na ocasião, fingiu perdoar o agressor, até pediu que não contassem nada ao Samuel. E o fato é que o Samuel não ficou sabendo, mas eu assisti a agressão e não me esqueci dela. Foi um mês depois que o Cartola veio com aquela história de hibernar. — E aí? — Aí ele desenvolveu esse plano diabólico, que parece até coisa do governo. Com seus poderes de hipnotizador, foi fácil “programar” os funcionários para libertá-lo em determinadas datas. Pela Internet e por outros meios ele sabia os trajetos do circo. Nas vezes em que apareceu disfarçado, deve ter descoberto sua existência. Não que isso tenha determinado coisa alguma. O bode expiatório seria o maquiador, fosse ele quem fosse. Não era nada pessoal, você compreende. — Grande consolo.— Repliquei. Ela riu e deu um tapinha na minha perna. — Se o maquiador ainda fosse o Gustavo, teria sido ele o bode. Escapou de boa! — Admira-me também você ter descoberto a cumplicidade do Texugo... — Foi a única pessoa que deu atenção ao vendedor e até fez uma compra. Foi a ocasião de passar a chave da porta do Amofina. O serviço foi feito rapidamente, na hora em que o palhaço foi chamá-lo. — Mesmo assim foi muito risco... — Nem tanto. O Cartola se fez invisível... — O quê? Isso é impossível! — Não é não. É um truque de hipnose. Você é condicionado a não olhar para tal canto, não reparar em tal pessoa. Aí você não vê. Como naquele livro do Stephen King, Os Olhos do Dragão. — Bem, mas no fim de contas ele se deu mal... Ela fez um muxoxo. — Hum... não sei não. Tenho a impressão de que ele será absolvido. — Ah, não! Isso seria absurdo! Já está provado... — As provas, querido, de pouco valerão, se ele hipnotizar o júri. 83


— Ué! Mas você não disse que ninguém é hipnotizado contra a vontade? — Mas aí é preciso estar de sobreaviso. Eu já falei com o Fontana, mas acho que ele lavou as mãos. — Foi mesmo? O que foi que o delegado disse? — Simplesmente, que não pode dizer ao juiz para tomar cuidado com hipnotismo; que o juiz pode achar que é gozação dele. Mas o caso é que o hipnotismo foi uma das armas do crime! — Bem. Nós, pelo menos, não seremos hipnotizados. Mas correremos perigo se ele for absolvido. — Não penso assim, querido. Se ele for absolvido, terá conseguido o que quis; matar o Festus e ficar livre. O Festus talvez tenha merecido aquele fim, Deus me perdoe. Só não sei o que o Samuel resolverá com o Cartola. Se vai despedi-lo ou não... — A você ele já despediu, o pilantra! E a mim... veja só como é o mundo. — Ele vai ver o que é bom na justiça. Mas o Cartola tem que ir para a prisão, ele merece isso! Querer jogar um inocente na cadeia... Eu a beijei: — Até agora ainda não sei como lhe agradecer por ter-me livrado dessa encrenca... Ela enlaçou o meu pescoço. — Basta me dar o seu amor, meu querido. Basta me dar o seu amor!

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HIPERESP AÇO HIPERESPAÇO Após dois dias de navegação pelo hiperespaço, nossa astronave Cybelle aproximava-se do porto de emersão, já no sistema de Alpha-Centauri. Maravilhas do super-espaço, ou hiperespaço, como é mais geralmente conhecido! À velocidade da luz, levaríamos mais de quatro anos. O mergulho no hiperespaço, porém, como num passe de mágica eliminava a distância. Um fenômeno físico ainda à espera de uma explicação científica completa, embora já soubéssemos aplicar alguns de seus aspectos em termos práticos. Visível de nossas escotilhas, o firmamento era branco como leite, sem nenhum detalhe visível. Nenhuma estrela ou meteoro. Nada em absoluto. Só o branco. Apenas nossos instrumentos de medida nos asseguravam do avanço da viagem, garantindo que não nos encontrávamos encalhados na eternidade. Mesmo assim era enervante, e só não o era mais devido à pouca duração da travessia. Olhei para Simeão Gonzaga Drummond, pela tela de circuito interno que o mostrava na sala de astronavegação. Ele me olhava também. Suas idiossincrasias pareciam visíveis. Seu rosto corado exibia um sorriso matreiro que tanto poderia significar alívio e satisfação por terem sido completadas as poucas providências que necessitavam de intervenção humana, como o triunfo íntimo que a sua vitória de macho conquistador decerto lhe fornecia. Naquele momento, eu não podia ver minha própria expressão, mas sabia que a mesma era sombria, reveladora de constrangimento e reserva. Uma atitude que eu mantivera durante toda a viagem e nos contatos com meu companheiro na fase de preparação para a jornada. Desde que soubera termos sido designados para efetuar juntos aquela missão... — Preciso ter uma conversa com você, Gustavo. — Ele disse, sem abandonar o sorriso pérfido. — Sim? — Limitei-me a dizer, impassível. — Vai ser a conversa mais séria de nossas vidas. — Ele adiantou. Nós quase não havíamos nos falado, limitando-nos ao mínimo necessário para o cumprimento da missão. O correio cósmico não podia funcionar automaticamente, ainda eram necessários seres humanos, mas parecia uma brincadeira de mau gosto colocarem justo nós dois na mesma viagem! Tentei aceitar as coisas de forma profissional. Que outra atitude eu poderia tomar? 85


Ele não demorou a se explicar: — Nós não estamos mais no Cretáceo, Gustavo, e por isso podemos resolver nossas diferenças do modo mais civilizado possível. — Do que você está falando? — Mas não se iluda. As maneiras mais civilizadas são apenas, em grande parte, mais sofisticadas ou requintadas. Só isso. “Esse sujeito deve ter absorvido raios cósmicos em demasia”, pensei. “Só pode. Melhor deixá-lo falar à vontade”. — Mas, como disse Jack o Estripador, vamos por partes.— Ele prosseguiu, movendo-se na poltrona giratória.— Nós dois sabemos que há uma situação constrangedora entre nós. Sua esposa está comigo. Vocês ainda não se divorciaram. Esse detalhe, para o que eu vou colocar, é extremamente importante. — Não tive tempo de providenciar a separação.— Falei secamente. — Pois é. Pior para você. Pois nunca lhe ocorreu, Gustavo, que se hoje você vier a faltar, sua pensão irá para Gertrudes? E que eu, incidentalmente, também serei beneficiado com isso? “Ele só pode estar de gozação”, falei para mim mesmo. “Não ousaria fazer isso”. Achei melhor permanecer em silêncio, sem deixar de observá-lo. — Agora procure visualizar a situação, Gustavo. Esta nave possui algumas características interessantes. A estase, por exemplo, pode ser compartimentada. Isso quer dizer que ela pode ser localizada, isolada numa parte do veículo e mantida até mesmo após a reversão estrutural para o espaço cósmico, na emersão do hiperespaço. Se isso acontecer, o compartimento da Cybelle em que a estase permanecer não emergirá, não retornará ao continuum einsteiniano e jazerá definitivamente no hiperespaço. Percebeu as implicações do que estou a dizer? É maquiavélico, não é? — Você bebeu alguma coisa? — Perguntei, tentando manter a diplomacia. — Ah! Ah! Ah! Estou mais sóbrio que você, amigo. Mas você sabia que, quando se conhece o suficiente de programação, é relativamente fácil direcionar os capilares de estase de maneira a circunscrever apenas uma parte da nave? O único problema é garantir que a parte restante — aquela que chegará ao sistema Alpha-Centauri — terá auto-suficiência, a começar pela impenetrabilidade das paredes e terminando pela dirigibilidade do conjunto e sua eficácia de pouso. Como vê, o problema não é tão difícil assim e eu consegui resolvê-lo. 86


A intenção daquele indivíduo começou a ficar clara. — Você não ousaria uma coisa dessas. A própria Gertrudes não aceitaria isso. — Ela não precisará saber a verdade. Para que perturbá-la com tais assuntos? Ela só saberá que você morreu no desastre e que eu escapei providencialmente. E no íntimo, ela vai ficar muito satisfeita. — Você será descoberto. — Que nada! Para um analista de sistemas “sênior” como eu, é fácil deletar todos os registros incômodos e farei isso em poucos minutos, após o reingresso da nave no espaço normal. Em suma, não há por onde me pegar... Eu sou esperto, Gustavo. — E pedante. — Concedo isso. Sou pedante. Mas continuarei a ser um pedante vivo, e estarei com Gertrudes. Já você... — E a sua consciência? Você terá paz e sossego pelo resto da vida? — Eu vendi a alma ao diabo.— Ele respondeu, cínico. — Por esse lado também não vai adiantar nada. Não me faça um discurso sentimental e ético, que eu não vou verter lágrimas por sua causa. — Não deixarei que você me faça isso. Assim dizendo, corri para o terminal auxiliar à minha frente. Ele riu às gargalhadas e pôs-se a manipular os controles. — Tarde demais, Gustavo! Sua hora chegou! Adeus! Tentei travar o computador de bordo. Simeão riu dos meus esforços. — Você há de reconhecer, — o monstro prosseguiu enquanto manipulava os controles com toda a frieza do mundo, — que não há maneira mais civilizada de assassinar alguém. Nenhuma violência, nenhuma brutalidade. Eu sou altamente civilizado, Gustavo. Tudo o que eu fiz na vida, foi feito com requinte e elegância. E sempre fiz tudo à minha maneira; jamais fui um bonifrates. Sempre fiz da minha vida o que eu bem quis. Poder, dinheiro, mulheres, diversão... Vai me dizer que, por tudo isso não vale a pena sacrificar vidas maçantes e tediosas como a sua? — Canalha! — falei, acionando o comutador do alarme vermelho. — Você não está no seu estado normal. — Simeão prosseguiu com uma calma repugnante. — Acionar o alarme no hiperespaço... Nem as almas penadas poderão escutá-lo. Tive vontade de destruir aquela tela de parede a cadeiradas. A tubulação de magiplast translúcido começou a apresentar uma coloração rósea, sinal de modificação da estase. Entretanto, isto só era visível no outro com87


partimento. Na sala de observação onde eu me encontrava, a cor leitosa continuava. — Você pode morrer também! Se remover 30% da estrutura, a desestabilização do sistema de navegação será um fato... — ... em trinta horas-padrão. Eu sei disso, tonto! E só preciso da quinta parte desse tempo para chegar à estação. Não, eu não me perderei. Faça as suas orações, meu caro! Ainda há tempo para isso! Peguei meu gravador-celular e me sentei junto ao painel auxiliar. Comecei uma lengalenga, sabendo que ele me ouviria: — Ao Comando Estelar, às autoridades da Terra e da Colônia Centauriana, aos meus pais Estela e Yúri, tenho uma importante comunicação a fazer... Simeão continuou com suas galhofas: — Você é um número, Gustavo! Que lhe adianta gravar suas acusações? Seu aparelhinho continuará com você e os dois ficarão perdidos no hiperespaço para sempre... Acoplei o aparelho num dos ganchos magnéticos da mesa do painel. O local começou a trepidar, a tremer, ante a iminência da transposição dimensional. A estase, porém resistia no compartimento em que eu me encontrava. Se as providências de Simeão houvessem sido acertadas com a adequação do componente plástico polimorfo de vedação automática, a separação far-se-ia sem problemas de escapamento do ar para o vácuo infinito. — Adeus, querido Gustavo! Lembranças aos anjinhos! — Ele gritou, fazendo ao mesmo tempo um gesto obsceno. Abri um compartimento secreto de meu gravador-telefone celular e teclei “power”. Instantaneamente a tubulação de magiplast começou a alterar suas cores. A cor rósea foi surgindo em meu aposento, a cor leitosa avançou sobre o dele. — Que é isso? O que você fez? — Tecnologia de última geração... última mesmo... — Respondi com serenidade. — É um aparelho de sucção energética e direcionamento de estase... Ainda em fase experimental mas que funciona mesmo. Um amigo cientista adaptou o brinquedinho em meu celular. Adeus, Simeão. Se um de nós vai ficar no hiperespaço, é você mesmo! — Espere! Não pode fazer isso comigo! Não é justo! Não é decente! É um crime! Pare... 88


Começou a se debater contra a tela, em meio a gritos de pânico, frases hipócritas. A reversão de estase atingiu-o nesse ponto. Num instante ele estava ali à minha frente, berrando como um possesso. No instante seguinte eu já não o via, e nem a sala ao seu redor, com todos os móveis e instrumentos: em seu lugar estava um céu de negrume profundo, cravejado de assustadoras estrelas... Como supus, apenas o compartimento onde Simeão se encontrava permaneceu no hiperespaço. “Acabou-se”, pensei. “Pobre diabo”. Ergui-me aborrecido com a imensa tarefa que tinha pela frente: recalcular, redesenhar a trajetória da nave mutilada, de maneira a garantir uma chegada suave e segura à Estação Arthur Clarke. A vida de um astronauta é sempre muito enfadonha.

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URROS NO PORÃO Minha infância e a de minha irmã Letícia foram marcadas por acontecimentos trágicos. Recordo com especial horror algo desnatural, insólito, que aos poucos foi envolvendo nossas vidas, como areia movediça na qual afundássemos. Nosso pai morreu muito cedo. Mal o conhecemos. Fomos criados por nossa mãe, a quem amávamos ternamente. Acredito que éramos boas crianças, amáveis, sensíveis e estudiosas. Não como essas crianças modernas, que até se trancam no quarto para assistir filme pornográfico, dizendo que estão estudando... Nossa mãe, Dirce, era pobre, como pobre fora nosso pai, Galileu. Morávamos em Cachoeiro de Macacu e mamãe, após a morte de papai, se esgotou em serviços domésticos, recusando a ajuda oferecida por nosso avô paterno, único parente próximo conhecido, fora uns tios que se encontravam lá no norte, demasiado longe e descontactados para que pudessem ajudar. Mamãe acabou por arruinar sua saúde já débil, pegando uma anemia profunda. Então um dia — eu tinha onze anos e minha irmã, dez — fomos chamados por mamãe que já mal tinha forças para se levantar da cama. — Meus filhos, preparem-se porque eu não vou durar muito tempo. Eu não gosto, não quero, mas vocês terão que morar com o vovô Jonas. — Você vai ficar boa, mamãe! Você tem que ficar boa! Isso nós dizíamos. Para crianças como nós era difícil de acreditar em semelhante perda. Um dia, porém, depois da vizinha que vinha dar uma ajuda ter ido embora, perguntei a mamãe: — Por que você não quer que a gente fique com vovô? — Vocês teriam que ficar naquela casa horrorosa dele em Pedra Torta... Morei lá com o pai de vocês e não deu para agüentar. Mas talvez não haja outro jeito. Se vocês forem para lá, procurem viver em paz com ele. E, pelo amor de Deus, não desçam ao porão da casa! Por nada desse mundo! Até o Galileu tinha horror daquele porão! Letícia e eu quisemos saber porque. Só que mamãe não estava disposta a nos contar claramente: — Não sei dizer. Existe alguma coisa... nojenta, infame, naquele porão. É o segredo de seu avô. Algo que lá existe... que mete medo... talvez um bicho-papão, não sei. Cuidado também com a biblioteca do velho. Se virem 90


um livro de encadernação de couro, com letras douradas, chamado Necronomicon... não o abram. Não leiam uma linha sequer. É um livro amaldiçoado, capaz de destruir a própria vida de vocês. Prometam que me atenderão! Nós prometemos. Não podíamos negar à nossa mãe moribunda. Qualquer um teria prometido. Chegou o dia, porém, em que mamãe nos deixou... definitivamente. Éramos de todo órfãos. Só nos restou chorar, prantear nossa sorte. Vovô, que viera nos visitar uma única vez durante a doença de mamãe, e que deixara, segundo ela, uma ajuda quase irrisória, mandou nos buscar. Seu advogado, um tal Sr. Picos, pegou-nos em Cachoeiro e nos levou de carro até Pedra Torta. É chegada a hora de falar alguma coisa sobre vovô. O vovô que até ali conhecíamos. Era um homem ainda forte, nem um pouco alquebrado pela idade, meio careca, de voz trovejante e com uma tatuagem de âncora no ombro esquerdo. Quando em casa gostava de usar camiseta, por isso esse detalhe estava sempre visível. Ele já fora marinheiro. Isto se refletia em seus hábitos, como os de fumar cachimbo e de falar palavrões e grosserias com freqüência. Às vezes, nos poucos contatos que havíamos tido, referira-se aos mistérios do mar. Vovô dizia que existiam sereias, serpentes marinhas e toda a sorte de seres espantosos. Afirmava com veemência a realidade do “Kraken”, o polvo gigante. Mas o ponto a que dava mais ênfase, era sobre o povo submarino — povo, não polvo, bem entendido. — Esses desaparecimentos de navios e tripulações, — era a conversa dele, — só se explicam pelo ataque de entidades desconhecidas, que vêm lá dos pélagos profundos... Eu tinha medo de vovô, porque ele parecia sempre obcecado por assuntos misteriosos e assustadores. De vez em quando, examinava uns blocos encardidos com anotações numa língua desconhecida. Ninguém sabia o que era aquilo. Às vezes deixava escapar coisas incompreensíveis. Entusiasmado por histórias em quadrinhos, eu dissera certa vez: — Ih, vovô! O século XXI vai ter tanta maravilha... — Patranhas, meu filho, patranhas! A maravilha, mesmo, vai ser a volta dos Antigos... 91


Diante de minha curiosidade infantil, ele se fechou em copas, procurou desviar o assunto, como que arrependido pelo que havia deixado escapar. Em tais ocasiões, minha mãe costumava observar o vovô com ares de preocupação. E agora, como num sonho mau, Letícia e eu deixávamos tudo que conhecíamos, nossos colegas de escola, a professora D. Jurema, nossos amigos de Cachoeiro, o lar de nossa mãe e nosso pai, a capela, enfim, tudo o que um dia amamos. Graças a Deus, fora as galinhas, não tínhamos animais para deixar por lá. Éramos muito pobres e por isso mamãe não nos deixara ter cão ou gato. Vovô mandara doar as galinhas à vizinhança, pois “seria ridículo vendê-las”. Era muito orgulhoso. O Sr. Picos era severo e pouco amigo de crianças. Não nos foi grande consolo na triste viagem, e às vezes chorávamos desolados. Mas enfim chegamos a Pedra Torta, sem porém atingir o perímetro urbano. A casa de vovô ficava afastada, numa colina, de onde se avistava a cidadezinha. Havia umas poucas casas na vizinhança. A de vovô era certamente a melhor: um casarão que sugeria alguém com posses, um ricaço algo decadente, tendo em vista o mau estado de conservação. Era uma casa de aspecto sombrio. Paredes cobertas de limo, janelas de guilhotina, cercada por umas árvores estropiadas, de galhos retorcidos em agonia, fantasmagóricos. Ao ver a casa pela primeira vez — já estivera lá, porém muito novo para me lembrar — senti um arrepio de angústia. Fiquei muito impressionado com o vôo de urubus, muito acima no céu, mas em círculos concêntricos centrados sobre a mansão. Bruxas em quantidade repousavam com suas asas negras nas velhas paredes. Imóveis como se estivessem mortas. Vislumbrei também algumas lagartixas. A casa tinha dois andares e um sótão, além do porão; em alguns trechos o tijolo estava à mostra. Em outros, viam-se rachaduras. Aves agourentas esvoaçavam ali perto, soltando crocitos importunos. As recordações que guardo daquele dia são ainda nítidas. Nosso avô, sabendo que estávamos prestes a chegar, aguardava no alpendre, sentado numa cadeira de balanço. Sabíamos que morava sozinho, por temperamento ou por força das circunstâncias. Parecia um caipira, com calças jeans e camisa quadriculada vermelha, de manga comprida, além de boné. Não se levantou para nos receber, a não ser quando chegamos bem perto. Lembro-me de que o abraçamos com afeto, e que ele nos correspondeu 92


de forma desdenhosa. Depois convidou o advogado a tomar um drinque e, como este recusasse, recebeu os papéis de adoção e outras coisas trazidas pelo Sr. Picos e despediu-se dele. — Não deixe de aparecer! — Vovô disse, uns quinze minutos depois, quando o Sr. Picos finalmente se retirou. Encontrávamo-nos agora na sala de estar, sentados lado a lado, junto à mesa coberta por um plástico adornado com desenhos de flores. Não ousávamos falar. Vovô sentou-se à nossa frente, no outro lado da mesa, acendeu seu cachimbo mal-cheiroso, ajeitou os óculos grossos e indagou: — Não querem comer alguma coisa? — Eu estou com fome. — Letícia respondeu. — Eu também.— Reforcei. — Nós não comemos nada.— Letícia explicou.— Não tinha mais comida em casa e o Sr. Picos não nos deu comida. — Está bem. Vovô Jonas se ergueu, pediu que esperássemos e nos trouxe, afinal, um pão de fôrma com umas fatias de mortadela velha. Nada que nos agradasse comer, mas tínhamos fome. E para beber nos deu água. Estávamos mastigando num silêncio entristecido enquanto vovô fumava e nos olhava, creio que imaginando como poderia se livrar de nós, quando, pela primeira vez, escutamos um som abafado, gutural, uma espécie de urro. — Que foi isso?— Perguntei. — Não ouvi nada.— Vovô retrucou. Um urro se repetiu, mais forte e mais feio que da primeira vez. — Meu Deus! — Letícia exclamou, erguendo-se. — Fiquem aqui e terminem de comer! É uma ordem! — Vovô bradou com o tom de quem exige obediência. Em seguida se levantou, recostou-se a uma arca encardida, como que refletindo, e, tomando uma decisão, dirigiuse para o corredor oculto por uma cortina suja. Antes de desaparecer, fingindo não escutar um terceiro urro ainda mais forte que o segundo, voltou a berrar: — Quando eu voltar quero encontrar vocês dois aí sentadinhos e com os sanduíches comidos! Ouviram bem? Sumiu de nossas vistas, deixando-nos entregues ao nosso pavor. Entreolhamo-nos, Letícia e eu. Não sei expressar a que ponto estávamos assustados. Creio que teríamos entrado pelo chão adentro, se isso fosse fisicamente possível. 93


Pareceu-me escutar a voz irada de vovô, gritando ao longe com alguém ou alguma coisa. Bastante transtornada, mas sem coragem de largar o sanduíche meio comido, Letícia levantou da cadeira e veio até mim: — Orestes, o que é isso? Eu estou com medo! — Eu também! Lembra o que a mamãe disse? — Vovô tem um monstro no porão! Ele cria um monstro! Estávamos petrificados e, sendo crianças, não tínhamos dificuldade maior em acreditar na existência de monstros. No armário, em baixo da cama ou no porão. Mas como poderíamos agir, se já tínhamos que enfrentar aquela outra espécie de monstro, aquele vovô-monstro que nos aterrorizava? Ao voltar ele olhou os pratos vazios e grunhiu: — Já comeram? Então para a cama! — Mas, vovô, — tentei argumentar, — é muito cedo! — Cedo uma conversa! Já são seis horas da noite! Para a cama! — Mas vovô... — Letícia disse, já com um acesso de tremedeira — Não poderíamos ver um pouco de TV? — O quê??? E quem vai pagar a luz? Não sou eu? Para a cama, já disse! — Mas onde é a cama? — Indaguei perplexo. Algo espantado, ele interrompeu seus movimentos por um instante, e aí lembrou que não nos tinha mostrado o quarto de dormir. — Ah, bom! Me acompanhem! Tragam a bagagem! E lá fomos nós, escada acima, atrás de vovô, e levando todo o peso da bagagem. Os dias que se seguiram foram para nós uma espécie de inferno. Vovô parecia cada vez mais perplexo com nossa presença, como se custasse a acreditar ter-nos aceito em sua casa. Comíamos de maneira irregular, pois vovô só fazia comida quando tinha vontade e não jantava. Ele mesmo arrumava a casa, que nunca estava limpa ou bem arrumada. Ninguém aparecia por lá, a não ser entregadores e carteiros. E o correio só trazia contas, que eu notasse. Quando perguntávamos ao vovô pela escola, ele dizia que pensaria no assunto. Quando pedíamos para passear, ele dizia que não tinha tempo, ou que fôssemos passear sozinhos. E lá íamos, aliviados por estar longe daquela casa. 94


E de vez em quando os urros apareciam de novo. Às vezes à noite, aterrorizando nosso sono. A biblioteca do vovô ficava no andar superior. Mamãe nos avisara para não procurar determinado livro por lá. De qualquer forma nós raramente lá entrávamos: estava quase sempre trancada e só havia livros velhos, empoeirados e feios. A casa toda dava uma impressão de decadência e, por não ter televisão, nem brinquedos, nem bichos de estimação — fora o monstro do porão, é claro — minha irmã e eu ficávamos sem ter muito o que fazer. Exceto varrer o chão, lavar os pratos, limpar o papel de parede... Tudo que vovô Jonas descobriu que podíamos fazer. Afinal, ele não tinha doméstica ou faxineira. Cedo descobrimos que vovô nunca nos levaria a passeio. Só nos levava de carro à cidade quando precisava que o ajudássemos a carregar compras. Quiçá sem se dar conta, cada vez mais nos transformava em criados. Íamos perdendo o ano letivo, mas isso não parecia preocupá-lo. Devo agora narrar o que se passou quando fomos sozinhos a Pedra Torta. Como mamãe nos levasse à missa aos domingos, pedimos a vovô que fizesse o mesmo. Ele estava de chinelos e pijama de bolinhas na varanda, sentado na cadeira de balanço, lendo o Diário de Pedra Torta da véspera. O jornal não saía aos domingos, pois não era nenhum avassalador O Globo ou Jornal do Brasil. Ao ouvir o nosso pedido quedou-se parado alguns instantes, com o jornal aberto, depois coçou a calva e nos encarou incrédulo: — Missa? Vocês falaram missa? — Falamos.— Respondi, sem entender tanto espanto. — Ora essa! Missa! Mas eu! Logo eu! — Que há demais, vovô? — Letícia arriscou.— Mamãe sempre levava a gente! — Ora! Mas sua mãe era sua mãe! Eu não levo ninguém à missa! — E por que? — Por que? Ora, não me pergunte! Não gosto de missa e está acabado! Não me perguntem mais nada! E lá fomos nós sozinhos, dispostos a encontrar uma igreja. No caminho, já em Pedra Torta — uma cidadezinha bem feia, principalmente na periferia — paramos numa vendinha para comprar balas com o pouco dinheiro que nos restava, já que vovô não nos dava nenhum. Ao entrarmos, 95


porém, fomos olhados de esguelha pelos presentes. Letícia pegou o saquinho de balas, e nesse momento uma mulher tipo “Olívia Palito” chegou-se a nós e falou irada: — Vocês vieram da casa do Jonas? — Vovô Jonas? Sim. — Respondi assustado. — São parentes do demônio! Parentes do demônio! Daquele diabo de velho... Por que não vão embora daqui? — Dona Florinda, por favor... — O português da venda pediu, algo encabulado. — Que por favor que nada! O que é que esses capetinhas têm que fazer aqui? — Viemos comprar balas.— Letícia afirmou, tentando ser corajosa — E estamos procurando uma igreja. — Uma igreja? O que querem com a igreja? — Queremos ir à missa. A megera soltou uma gargalhada, mas outra senhora nos deu a informação pedida e lá fomos nós. Mas era tudo muito estranho. Apontaram a gente a dedo, pelas ruas. Pelo visto a fama de vovô não era das melhores! Certa noite, acuados dentro de nosso quartinho mofado, Letícia e eu iniciamos nossa conspiração. — Orestes, a gente tem que fazer alguma coisa! Não podemos ficar aqui... sem saber o que está acontecendo! — Vovô falou que vai nos internar. Não tem tempo para cuidar de nós. — Já estamos aqui há dez dias. Eu não agüento mais de fome! Ele não nos dá de comer! Por que será que ele fica satisfeito com a comida que coloca e nós não? — Ele já não está em crescimento... — Minha irmã observou com perspicácia. — E o monstro do porão... Acho que ele urra de fome. Do jeito que o vovô é pão-duro, deve alimentá-lo muito mal. — Quando ele conseguir sair do porão, vai nos comer. — Você quer fugir? O vovô deve estar dormindo agora! A gente sai e não volta! — E para onde nós vamos? Acho melhor a gente descobrir a verdade! — Como, mana? — Vamos investigar! Vovô tem sono pesado! E assim nos arriscamos a sair de nosso quarto e lá fomos, descalços, de mãos dadas, tateando no escuro, a respiração suspensa. Queríamos descobrir o 96


que se passava naquela casa, mesmo que fosse o Terror em pessoa. Levar a vida em suspense, daquele jeito, já não agüentávamos. Antes se sair, inclusive, preparamos nossas mochilas com o que tínhamos de mais necessário, como as lembranças de nossa mãe. Estávamos preparados para fugir de casa. Primeiro fomos até o fundo do corredor, onde uma porta trancada nos barrava o caminho para chegar ao Necronomicon, o livro do vovô que, a julgar pelo que a mamãe nos confiara, poderia nos explicar o que afinal se passava naquela casa. Desta vez, por um acaso incrível, a porta fora esquecida aberta. Penetramos trêmulos naquele esconderijo e acendemos a luz, que era fraca. Procuramos, procuramos, num silêncio cúmplice. Trepei no rebordo da estante. Finalmente, numa das prateleiras mais altas, encontrei o Necronomicon. Puxei-o. Era pesado! E o mostrei a Letícia. Era bem como mamãe nos falara: letras douradas, encadernação de couro. — Não o abra! — Letícia implorou, presa de forte agitação nervosa. — Lembre-se do que mamãe pediu! Mas não resisti. Abri o livro ao acaso e li alguns trechos. Letícia também leu. E fechamos rápido aquela coisa e a recolocamos no lugar. Era horrível demais. Era insuportável. Tivemos pressa em sair daquele aposento empestado por aquele objeto maldito. Porém, quando eu ia transpor a soleira, minha irmã me puxou pelo pulso: — Mano! Olhe lá, naquele canto! Olhei. Sobre o tampo de mármore de uma mesinha de cerejeira velha e empoeirada, havia um aparelho telefônico, também sujo. Uma extensão. E, naquele momento, ouvimos tocar. Entreolhamo-nos. Sabíamos que o telefone, fechado a cadeado, encontrava-se no quarto de vovô, no andar de baixo. Ignorávamos a existência de uma extensão. — Que você acha? — Letícia indagou, excitada. Mudava o peso do corpo de um pé para o outro e tremia. Também me senti super assustado, alterado pelo medo. — Vamos tentar — Decidi. — Quem sabe a gente descobre alguma coisa? Todas as conversas de vovô eram secretas, pois ele se fechava no quarto quando o telefone tocava. Mas já devia andar com um pouco de amnésia, do contrário jamais esqueceria a biblioteca aberta. Lá de cima escutamos, muito ao longe, um bramido. A coisa urrava lá embaixo, insone. Isso nos decidiu: puxei delicadamente o fone e o coloquei 97


no meu ouvido. Sentei-me no chão e minha irmã fez o mesmo, colando o ouvido no pólo receptor do fone, de maneira a ouvir tudo o que eu iria escutar. Nem é preciso mencionar que aquela extensão também estava fechada a cadeado. Não tínhamos pego o início da conversa. Mas aí, de olhos arregalados, atentamos incrédulos para a voz que se fazia ouvir. Uma voz cavernosa, horrível, tão grotesca que praticamente não entendíamos uma palavra do que dizia. Parecia vir da maior profundeza dos infernos. No entanto, quem quer que fosse, desse mundo ou de outro, falava em português com vovô: — ... ! — Não. Isso não. Isso eu não posso fazer! — Você... tem... obrigações... as... palavras... Quitulu... — Sim, eu sei! Mas são meus netos! Não posso dá-los à Coisa! — ... o... livro... são... perigosas... depois... você... as... forças que... o futuro... — Não sou tão calejado e tão pervertido assim! Descobri isso! Maldita hora em que aceitei servir aos Grandes Antigos! Isso vale a pena? Se vocês tomarem conta de tudo, nós ganharemos o que? — ...o Necronomicon... será amaldiçoado... — Não! Eu não posso dá-los ao maldito que está no porão! Eu sei! Participei dos rituais, estou marcado pelo seu sinete. Mas tudo isso agora me repugna! Não sei se ainda tenho perdão diante de Deus, mas quero que Ele poupe os meus netos! São crianças inocentes! Além disso, que iria achar a polícia? — ...não serão encontrados... ninguém poderá dizer... — Não! Maldito seja! Pode me danar, mas não colaboro mais! Vocês não terão o que querem! Existe um Deus que pode mais que vocês! — ...! Você verá... ele sairá... — Isso é o que veremos! Vejo que terei de agir! Adeus! A ligação foi cortada. Estarrecidos, corremos para nosso quarto e pegamos as mochilas. Mudamos de roupa rápido, calçamos os tênis e saímos para o corredor. Já agíamos como adultos. Tínhamos compreendido a urgência de deixar aquela casa de horror, com ou sem nosso avô. Encontramos vovô lá embaixo, diante do corredor da cortina suja. Ele lembrou o Arnold Schwarzenegger, com um rifle debaixo do braço, um casacão cheio de bolsos recheados de cartuchos de munição e umas bananas de dinamite a tiracolo. Olhou para nós, transtornado: 98


— Vão embora daqui! Fujam! Não me sigam! A porta da rua está aberta! Mas nós o seguimos pelo corredor mal iluminado até a porta grossa de madeira de lei e com tranca de ferro, que antecedia a escada do porão. Os urros prosseguiam, fortíssimos, e batidas tremendas sacudiam a porta poderosa. — Para trás, maldito! — Vovô gritou, destravando o rifle. — Para trás, eu ordeno! Apertou um comutador junto à porta; ouvimos um ruído de descarga elétrica e um grito tremendo, seguido de uma série de baques surdos, como se um corpo pesado estivesse rolando escada abaixo. Tomado por um frenesi nervoso, como se à beira de um colapso, vovô pôs-se a abrir os ferrolhos e cadeados e por fim empurrou a porta, sem deixar de nos ordenar seguidamente que fôssemos embora. A porta era larga. Quando ele a abriu, vimos na penumbra lá embaixo uma espécie de massa verde, informe e cheia de olhos. Algo tão horrendo que desafia a descrição. Então Letícia me agarrou pelo braço e me puxou para trás, com uma decisão de pessoa adulta e de forma irresistível. Ela havia compreendido mais cedo que eu que vovô ultrapassara o limite da salvação física. Já não havia nada que pudéssemos fazer, a não ser nos colocar em segurança. Segui-a aos trambolhões pelo corredor medonho e semi-escuro. Meus dois pulsos seguros por Letícia, que fechara os dedos em torno deles e puxava, e puxava, ansiosa por nossa evasão. Os urros do monstro se confundiam com os gritos irados e insanos de vovô. E então soaram os tiros, urros de dor e raiva, ruído de coisas se quebrando, de luta, gritos de dor de nosso avô... E finalmente, quando saímos ao ar livre, a explosão da dinamite... Não permanecemos em Pedra Torta. Uma assistente social localizou nossos tios por parte de mãe na Bahia e conseguiu que eles nos acolhessem. Na casa destruída, o porão foi investigado pelos policiais. Afora os restos de vovô, encontraram uma estranha massa verde gelatinosa. Além disso, havia um túnel natural por baixo do porão, cuja entrada foi obstruída pelas explosões. Solidamente obstruída. O que quer que tenha existido naquele local, deve ter descido a tempo, ferido e mutilado, porém vivo, indo morrer nas profundezas do abismo. O 99


incêndio que se seguiu destruiu a biblioteca de vovô e, certamente, o exemplar do Necronomicon, o que certamente diminuiu a quantidade de mal neste mundo. Embora bem acolhidos por nossos tios — que jamais chegaram a compreender nossa história. Só diziam que vovô tinha parte com o “Coisa Ruim” — crescemos traumatizados por aquele acontecimento e jamais tivemos coragem de retornar a Pedra Torta. Para mim e para Letícia, aquele lugar era uma das passagens ou ligações do Mundo Subterrâneo com a superfície. Não sabemos porque vovô mantinha aberta aquela porta em seu porão, mas temíamos retornar ao lugarejo e ser reconhecidos pelas Forças das Trevas que haviam tentado nos condenar à morte. Não sei bem o que pensar de tudo isso. Queria esquecer, apagar da memória esses acontecimentos terríveis. Até hoje me metem medo as pesquisas sobre as camadas geológicas, sobre o interior do planeta. As histórias antigas que colocam o inferno no centro da Terra, não me parecem absurdas. Algo existe lá embaixo... Algo hediondo e infame.

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