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apresenta
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Vocês conseguem identificar algo de “cearense” no trabalho de vocês? Se sim, o que seria? Claro! O senso de humor, a panelada e a baixa auto-estima. 3
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A semente da Mostra Alumbramento surgiu numa conversa com Uirá dos Reis no final de 2009. Na época, eu estava fazendo uma curadoria para uma mostra de cinema que ia acontecer no interior do Ceará. A ideia era levar um recorte da produção do coletivo Alumbramento, mas acabou não rolando. Somente cinco anos depois, a ideia ganhou forma, e realizamos a primeira edição da Mostra Alumbramento no Dragão do Mar, em Fortaleza. Para nós, retomar esse projeto em um momento em que o coletivo Alumbramento completa 10 anos de existência é um momento de pura celebração. Poder levar mais de 40 filmes dessa cinematografia para outro Estado é celebrar o árduo e prazeroso fazer cinema, os encontros que se deram e se dão, as formas de interagir com o outro e consigo. É a resistência de estar fora do eixo, é a síntese da força que parece nunca secar. Uma década de muitas experimentações e a maneira de imprimir uma marca autoral numa forma de ver e fazer cinema. É o fato de estar no Ceará, de parecer uma loucura para aquele grupo que deu início à trajetória do Coletivo em 2006. É resistência, é amor e entrega. É tudo isso e mais um arsenal de coisas que pulsam e fazem criar, seja por necessidade, arte ou política. O cinema é isso: puro movimento. Que o respirar continue ofegante, que o silêncio venha sempre que preciso, porque ele também é isso. CESAR TEIXEIRA
Idealizador da Mostra Alumbramento
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índice
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A (co)existência alumbrada — Celina Hissa Em Cartaz na Terra do Sol — Marcelo Ikeda Longa vida aos filmes Alumbramento — Érico Araújo Lima Longa vida ao cinema cearense: pensando uma cidade e um cinema para além da questão identitária — Rodrigo Capistrano Alumbramento na Cinemateca Francesa — Guto Parente, Pedro Diógens, Ivo Lopes, Luiz Pretti e Ricardo Pretti Alumbramento, Fortaleza-CE — Uirá dos Reis Alguns pensamentos soltos — Luiz Pretti O Livro livre — Alexandre Veras Sobre os Diários de Ivo — Beatriz Furtado
58 74 80 84
Um cinema que nos implica — Janaina de Paula Do fundo dos baús para a tela de cinema — Maíra Bosi Sábado à noite — Rodrigo de Oliveira Modo mar azul — Flávia Memória
8 24 26 32 40
88 96 100 102
Olhar e repetição — Camila Vieira Afetados e afetivos — Denilson Lopes Cinema das origens — Fábio Andrade Alegoria, ruína e sonho — Camila Vieira
104 110
Nada além — Juliano Gomes Carta a Frances Farmer — Ricardo Pretti
114 116
Não estamos sonhando — Roger Koza Filmes como oposição a formas de vida: o cinema como oposição e não cura — Marcelo Pedroso Formas e desafios do engajamento — Érico Araújo Lima Ideias e formas, matéria e memória — Victor Guimarães Paulo Emílio, Vigo, O Porto — Ricardo Pretti Cinema atual — Luiz Pretti Com os punhos cerrados — Fernando Oriente Reflexões após a estreia de Com os punhos cerrados no festival de Locarno — Ricardo Pretti
122 130 136 138 140 144
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150 152 154 160 164 166
Sobre No lugar errado — Luiz Pretti Ensaios sobre a amizade — André Félix Entrevista: Encontro entre o cinema e o teatro no filme No lugar errado A volta dos que não foram — Fábio Andrade Estrada para Ythaca — João Toledo Roteiro de Estrada para Ythaca
174 184 195
Conversas Conversa com Guto Parente e Pedro Diógenes Conversa com Ivo Lopes, Ricardo Pretti e Luiz Pretti Conversa com Caroline Louise
200
SIM/NÃO — Ricardo Pretti
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a (co)existência alumbrada1 celina hissa e silas de paula O lugar de nascimento do mal, da fonte de infelicidade, é o um Pierre Clastres2
“O Alumbramento ia ser um ônibus”, disse o realizador Danilo Carvalho3 no primeiro momento de nossa conversa. Eles brincavam de planejar viajar levando luz, cinema, oficina e arte pelas cidades do interior do Brasil. Alumbramento vem da ideia de alumiar, iluminar, e é inspirado no curta Alumbramiento, do cineasta espanhol Victor Erice. Um devaneio poético que incluía morar em um ônibus, todos juntos, fomentando cineclubes, oficinas de música e arte por onde fossem passando. Um percurso que seria filmado, viraria filme, geraria diversos produtos artísticos, além de trocas nos lugares onde o Alumbramento passasse. Viver e produzir se misturaria; tudo faria parte da viagem. Naquela época, meados de 2005, essa ideia vagava na cabeça de Ivo Lopes4, Fred Benevides5, Danilo Carvalho e outros. Se eles não chegaram a morar juntos em um ônibus, dividiram um sítio, dividiram casas, jantares, banhos de mar, aglutinaram amigos e compartilharam várias viagens pelo interior do Brasil, projetos comuns e que até hoje fazem parte de suas rotinas. — 1. Este artigo é fruto da dissertação de mestrado defendida em 2015: A coexistência como resistência: um esboço na definição de coletivos a partir da prática artística de três grupos em Fortaleza, CE. 2. CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o estado. São Paulo: Cosac Naify, 2012. 3. Conversas realizadas com Danilo Carvalho em 2015. Danilo foi integrante do Alumbramento desde sua fundação até 2011. É realizador audiovisual, técnico de som, desenhista sonoro e compositor de trilhas. Foi integrante e fundador do Alumbramento. 4. Ivo Lopes é integrante do Alumbramento desde sua fundação. Nasceu em Fortaleza, teve uma infância feliz cercado de amigos, primos e tios. Sempre gostou de viajar e da natureza, hoje faz filmes e fotos adora gente e acima de tudo ama a música. (Descrição fornecida por Ivo Lopes em julho de 2015). 5. Fred Benevides foi integrante do Alumbramento desde sua fundação até 2012. É realizador e pesquisador. Mestre em Estudos de Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense (UFF), formado na Escola de Audiovisual de Fortaleza da Vila das Artes e graduado em Comunicação pela UFC. 8
Esse encontro de vários amigos começa de maneira informal, entre 2005 e 2006, antes da institucionalização do coletivo. Tudo estava muito misturado com o conviver6 cotidiano: o Alumbramento, pois, começa como uma grande relação de amizade; uma necessidade dos integrantes de se conhecerem a si que acabou por ser produtora e inventiva. Godard costumava dizer que era necessário “[...] fazer politicamente os filmes políticos”. Não apenas fazer filmes políticos, mas assumir essa postura inclusive na sua forma. O Alumbramento nos parece nos levar por esse caminho: levantar questionamentos políticos não apenas em suas obras, mas também com o modo coletivo de fazer. Antes de seguir, vale dizer que na caminhada aqui proposta a amizade é pensada junto com os filósofos Jacques Rancière (1996)7 e Giorgio Agamben (1993)8 no que eles entendem sobre amizade política. Ela é, segundo esse pensamento, a principal relação entre os integrantes e o fazer coletivo dentro do âmbito da ação e do processo. E o conceito de amizade política não é o mesmo do senso comum. É mais que bem-querer: é também uma permissão à existência do outro que dialoga com a noção de respeito e coexistência. Acontece no agir, no processo, nos entres, e ocorre fundamentalmente na pluralidade, não no isolamento (ARENT, 2005)9. Isso quer dizer, também, que o coletivo se faz na medida em que as partes integrantes entendem-se como diferentes, mas dialogam na produção de algo em comum. Um ponto que não pode passar despercebido é que a rede de amigos, um dos pilares desses modos de cinema alternativo, não é pautada em relações de trocas econômicas ou financeiras. Os integrantes trabalham uns com os outros porque percebem uma afinidade nos modos de estar no mundo e resistem a uma lógica de estrutura industrial. Por isso, nos intriga e se faz necessária a explanação dessa relação, já que ela funciona como um modo produtivo, se é que podemos chamá-la assim. — 6. Ao mencionarmos “conviver”, convocamos a definição do filósofo italiano Giorgio Agamben (2009) sobre o amigo. O amigo seria aquele que consente o outro na sua vida. A partir desse consentimento, iniciase o convívio, que é quando a própria existência é dividida: partilha-se a vida. 7. RANCIÈRE, Jacques. O Desentendimento. São Paulo: Editora 34, 1996. 8. AGAMBEN, Giorgio. O amigo. In: ______. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 20 9. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. 9
Nosso pensamento vacila ao nomear a amizade de modo produtivo: há uma contradição existente nos termos. Se a amizade é da ordem do processo e da ação, modo produtivo possui um fim específico e pré-determinado, o que contradiz o conceito de ação10. Apesar disso, no coletivo Alumbramento, é a amizade o elemento responsável pelo diálogo e produção da obra comum, sem a qual estes não vivem. O número de integrantes é significativo: o Alumbramento chega a ter treze membros oficiais, vários informais e cujo pertencimento acontecia principalmente em decorrência destas relações de amizade. De acordo com Ivo Lopes11, o que os unia era o sentimento de liberdade, uma necessidade de valorizar a vida e de não se inserir de forma tradicional no mercado. A reinvenção, ou mesmo resistência, a um modelo posto de como se fazer filmes foi o que os movimentou e induziu a trabalhar em coletivos, com amigos. No lugar da tradicional divisão entre atividades técnicas e criativas, há a escolha pelo revezamento dos participantes nestas funções: o diretor de um filme é o fotógrafo de outro; o roteirista de um ajuda na edição de um outro, e assim por diante: solidariedade produtiva. Desta forma, eles viabilizam mais filmes e driblam barreiras financeiras.
— 10. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. 11. Conversas realizadas com Ivo Lopes em 2014. 12. Não podemos deixar de lembrar que o Alumbramento faz parte de uma cena alternativa na qual destacam-se também a produtora Teia (MG), Símio Filmes (PE) e Trincheira Filmes (PE), coletivos que não dependem de altos financiamentos nem se limitam ao eixo Rio-São Paulo. Com a ajuda do digital e das novas tecnologias, os cineastas libertam-se do monopólio e da dependência polarizada pelas robustas infraestruturas cinematográficas dos estúdios. Eles participam de uma cena com produção descentralizada, não só geograficamente, como também em cada um de seus expoentes, pois contam com processos produtivos colaborativos, cuja criação não é hierarquizada, como nos tradicionais modelos de cinema industrial. 13. Conversas realizadas com Fred Benevides em 2015. 14. O Alpendre Casa de Arte, Pesquisa e Produção foi fundado em 1999, a partir da reunião de um grupo de pesquisadores e artistas de várias áreas. Sua primeira formação reunia Alexandre Veras, Beatriz Furtado, Andrea Bardawil, Manoel Ricardo de Lima, Eduardo Frota, Alexandre Barbalho, Luiz Sabadia, Luiz Bizerril e Solon Ribeiro (BENEVIDES, 2013). 15. Alexandre Veras é realizador em audiovisual e co-fundador da ONG Alpendre – Casa de Arte, Pesquisa e Produção, na qual coordenou o Núcleo de Vídeo, os projetos de formação e foi corresponsável pela curadoria do núcleo de Artes Plásticas, que realizou intervenções com artistas de todo o país. Trabalha com vídeo desde 1989 e tem desenvolvido intensa atividade como professor de vídeo, trabalhando com oficinas de vídeo-arte, documentário, vídeo-dança, história e teoria do filme experimental. Vem desenvolvendo pesquisas e produções em vídeo-arte, vídeo-dança, imagens projetadas e colaborado em projetos de vídeo e videoinstalações com diversos artistas 10
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Havia também uma vontade de fortalecer a produção local12, a cidade, como pontua Fred Benevides13, que começou seu contato com o cinema no Alpendre14, guiado pelo realizador Alexandre Veras15, com quem Ivo também desenvolveu um de seus primeiros filmes. Era ali que muitos dos encontros, não só sobre cinema, mas trocas artísticas de uma forma geral, aconteciam. Neste primeiro ano de convívio, Ivo Lopes muda-se para uma casa de um sítio em Sabiaguaba, bairro afastado do centro comercial de Fortaleza. Três meses depois, Danilo de Carvalho vai morar em outra residência do mesmo sítio, em seguida Gláucia Soares e sem demora, Fred Benevides e Rúbia Mércia16, em uma quarta casa. Tinham uma vida em comunidade: tomavam café da manhã, almoçavam e jantavam juntos, tudo em simultâneo às reuniões de trabalhos, processos coletivos de escrita, trocas, projetos nos quais uns e outros estavam envolvidos. Hábito, trabalho e amizade. A importância do cotidiano e do hábito também é recorrente nos filmes do Alumbramento. Um exemplo disto é o curta dos irmãos Pretti, Às vezes é mais Importante Lavar a pia do que a Louça, ou Simplesmente Sabiaguaba (2006)17 que retrata atividades do dia a dia no sítio em que eles moravam, e os Diários, de Ivo Lopes, cujo próprio nome já nos antecipa a proposta dos curtas. Pouco depois da mudança de Ivo Lopes para Sabiaguaba, os Irmãos Pretti, cariocas, foram morar com ele para ajudá-lo na montagem do filme Sábado à Noite (2007), o primeiro longa do grupo. Deste filme também estavam envolvidos Danilo Carvalho (no som), Fred Benevides (montagem e assistência de direção) e Rúbia Mércia (produção). No mesmo ano, surgia a Escola de Cinema da Vila da Artes, em Fortaleza, que começou a funcionar no final de 2006, quando novos encontros aconteceram: Ivo Lopes, Alexandre Veras, Ricardo Pretti, Luiz Pretti e — 16. Rúbia Mércia foi integrante do Alumbramento desde a sua fundação até 2011. Graduada em Comunicação Social pela UNIFOR, formada na escola de audiovisual da Vila das Artes e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é coordenadora da Escola de Audiovisual da Vila das Artes. 17. Sabiaguaba (Irmãos Pretti, Brasil, 2006) foi o primeiro curta produzido pelos irmãos Pretti no Alumbramento. 12
Danilo Carvalho foram professores da Vila das Artes; Gláucia Soares18 foi coordenadora; Fred Benevides e Rúbia Mércia, que já estavam trabalhando no filme de Ivo Lopes, tornaram-se alunos, onde conheceram Guto Parente, Pedro Diógenes, Maíra Bosi19, dentre outros que também fizeram e fazem parte do coletivo. Foi com a exigência de um CNPJ para concorrer ao edital do Governo do Estado que Ivo Lopes juntou os amigos e sugeriu a formalização do coletivo. A fundação aconteceu em uma reunião em Sabiaguaba na qual estavam presentes: Ivo Lopes, Thaís de Campos20, Danilo Carvalho, Glaucia Soares, Ythallo Rodrigues21, Fred Benevides, Rúbia Mércia, Luiz Pretti e Ricardo Pretti, nove integrantes que fizeram parte de fundação do Alumbramento. Nesta reunião, como testemunhas e orientadores estavam também Alexandre Veras e Armando Praça, constantes orientadores do grupo. Eles contam que à reunião se seguiu uma avalanche de atividades – lançamento e distribuição do filme Sábado à Noite, início das aulas na “escolinha”22 – e para intensificar ainda mais os encontros, ao final de 2007 acontece a primeira greve no curso de cinema, que é quando os estudantes decidem acampar na casa do Barão de Camocim (Centro de Fortaleza). Com isso, mais encontros, produção coletiva, ideias de instalações e também a proposição do primeiro filme coletivo do grupo, Praia do Futuro (2008). *** Praia do Futuro é composto de episódios, uma proposição coletiva na qual cada realizador (ou dupla de realizadores) tem como ponto de partida a Praia do Futuro (nome emblemático de um bairro em Fortaleza, que também é uma praia), mas cuja criação era livre, “[...] sem regras, sem comando, sem dinheiro” (PRAIA DO FUTURO, 2008). — 18. Gláucia Soares foi integrante do Alumbramento desde sua fundação até 2011. Nasceu e estudou jornalismo e cinema no Rio de Janeiro. Viveu onze anos em Fortaleza, onde implantou e coordenou os três primeiros anos da Escola de Audiovisual da Vila das Artes, concluiu a Especialização em Audiovisual e Mídias Eletrônicas da UFC. 19. Maíra Bosi foi integrante do Alumbramento desde 2009 até 2011. É produtora de cinema, graduada em Comunicação Social pela UFC, formada na escola de audiovisual da Vila das Artes e atualmente mestranda em comunicação na UFRJ. 20. Thaís de Campos foi integrante do Alumbramento desde sua fundação até 2011. 21. Ythallo Rodrigues foi integrante do Alumbramento desde sua fundação até 2011. É cineasta e poeta do Cariri cearense. Realiza trabalhos em diversas áreas do audiovisual desde 2004, sendo atualmente membro da produtora Filmes de Alvenaria. 22. Como apelidaram carinhosamente a Escola de Audiovisual da Vila. 13
Em Praia do Futuro (2008)23 era possível perceber claramente a parte que cabia a cada realizador daquele filme coletivo. Diferente de outras experiências coletivas, naquele momento cada diretor assinava seu próprio episódio, imprimindo sua autoria individual dentro de um filme coletivo, no qual podíamos perceber cruzamentos, conexões e olhares que se misturavam. Havia um comum contemporâneo, uma produção cinematográfica que se originava junto, a partir de conversas, mas lá também estava bem definida a parte que cabia a cada realizador. Por isso o filme pode ser entendido como um lugar onde essas diferentes formas de fazer cinema conviviam. Mas o longa só existe no momento em que os pequenos filmes de cada diretor co-existem. A partir dessa coexistência, que os modifica reciprocamente, foi possível a produção de um comum. Um filme que não acontece a partir da anulação das partes, mas sim com a partilha da parte que cabe a cada diretor e em um conjunto comum a todos. No longa Praia do Futuro (2008), a elaboração de cada episódio aconteceu em meio a conversas e à medida em que os integrantes se reuniam para assistir aos filmes projetados na sala do Edifício Pimentel (local sede do Alumbramento naquele momento). Assim, o referido filme pontuava a questão da não hierarquia ao propor a exibição aleatória dos episódios e um processo de feitura no qual cada diretor era livre e não impunha sua vontade sobre a do outro (pois o episódio de cada qual poderia conviver sem precisar do aval do outro). Havia um entendimento intuitivo das questões que envolvem a vida em coletivo e a amizade política. Havia discordâncias e conflitos sobre os episódios e sobre o que foi exposto, mas também uma permissão recíproca para a coexistência das variadas formas estéticas. Como pontua Thaís Campos, [...] quinze filmes um do lado do outro, tentando se conectar, tinha uns que você gostava, tinha uns que você não gostava. E você aceitava seu filme do lado daquele que você não gostava tanto. Apesar de tudo, que massa que a gente fez isso! Se expôs dessa forma, porque a vida é assim24. 23. Praia do Futuro (Armando Praça, Diogo Costa, Fernanda Porto, Fred Benevides, Guto Parente, Ivo Lopes Araujo, Rúbia Mércia, Luiz Pretti, Mariana Smith, Pablo Assumpção, Ricardo Pretti, Salomão Santana, Thais Dahas, Thais de Campos, Themis Memória, Wanessa Malta, Ythallo Rodrigues, Felipe Bragança, Brasil, 2008). 24. Conversas realizadas com Thaís de Campos em 2015. 14
Se os diretores se influenciaram juntos durante a feitura do filme, podemos também entender a obra como um conflito de imagens, a edição é uma organização política, pequenos filmes que postos juntos tentam construir uma narrativa e que abrem para experimentação de várias formas de mundo. Desta forma, é possível fazer um paralelo: o coletivo não pode ser enquadrado ou definido como algo único. Ele entende-se como no filme Praia do Futuro (2008), no qual vários olhares convivem, respeitando-se, sem impor-se uns aos outros. *** Se até o momento citamos apenas referências de produções cinematográficas do grupo, o Alumbramento não se resumia a isso. Havia integrantes de outras áreas, como as artistas Thaís de Campos, Mariana Smith25 e Themis Memória26, com atuação também no campo das artes visuais. Nessa época, o coletivo começou a aglutinar muita gente, tendo vários colaboradores, amigos, tornando-se um grande grupo produtor não só de cinema, mas de um cruzamento de várias linguagens, produção de instalações, dentre outros. Exemplo disso é o Livro Livre (2008), um movimento artístico para pensar a cidade e suas conexões. Essa ação se caracterizava pela distribuição de 100 livros em branco por Fortaleza. Cada livro vinha com uma data e um endereço onde ele deveria ser devolvido 100 dias depois. Havia em cada livro a seguinte sugestão: “Continue o livro, escreva, desenhe, deixe algo na superfície branca e depois deixe o livro, escolha um lugar e abandone-o”. Assim, propunha-se um processo coletivo de escrita no qual a pessoa que estivesse com ele na data determinada deveria devolvê-lo no endereço sugerido. A intervenção aponta para a necessidade do grupo se expandir para a cidade, convidar outros atores a fazer parte. Como coloca Alexandre Veras em seu texto sobre a obra Livro Livre, — 25. Mariana Smith foi integrante do Alumbramento de 2008 a 2011. É artista e desenvolve pesquisa em torno da construção de paisagens a partir da relação de tempo e memória, inscrições e resquícios. Trabalha com videoinstalações e fotografia. Graduou-se em Comunicação Social, habilitação Jornalismo, pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Possui especialização em Audiovisual em Meios Eletrônicos, na Universidade Federal do Ceará (UFC) e atualmente é mestranda em artes pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) 26. Themis Memória foi integrante do Alumbramento desde sua fundação até 2011. É graduada em Design de Moda pela Universidade Federal do Ceará (UFC) em 2006, trabalha com projetos de direção de arte para obras audiovisuais e de artes cênicas. Realiza trabalhos em vídeo e performance. Atualmente dirige o espaço cultural Salão das Ilusões. 15
Há algo de profundamente romântico nesse gesto. Arremessar algo ao mundo e esperar pelo eco, provocar uma variação, arriscar perder-se nessa variação, apostar que um gesto mínimo pode alterar a ordem do mundo, acreditar “que a vida é a arte dos encontros, embora haja tantos desencontros na vida”. Mas há também o prazer de um puro gesto e o encantamento com a possibilidade desse gesto, um arremesso (VERAS, 2008).27
São processos que se iniciam, mas não têm objetivos fixos, nem metas, nem destinatário: um arremesso. Importa afirmar a vida como arte dos encontros, existindo na necessidade de pensar na arte como ação, como disponibilidade e gesto político. Como amizade. *** Maíra Bosi28 lembra que, quando alguém dizia que queria sair do coletivo, entendia-se mais como um “eu não quero ser amigo de vocês”29, e constantemente reafirmava-se que isso não significaria o fim da amizade. Todavia, a própria necessidade de enfatizar isso evidencia a grande mistura que existia entre o pertencimento ao coletivo Alumbramento e ao grupo de amigos. A aposta nas trocas cotidianas mostram como o trabalho não se sustentava sem a amizade. O modo de fazer se misturava com o tema dos filmes e, nesse ponto, o Alumbramento se destaca frente aos outros coletivos por ter tematizado sobre amizade de forma intensa e constante. Estrada para Ythaca, de 2010, se torna emblemático, mas não foi o primeiro nem o último. O compartilhamento da existência também é tema de filmes e curtas como: A Amiga Americana (Ivo Lopes Araújo e Ricardo Pretti, Brasil, 2007); Os Monstros (Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes, Ricardo Pretti, Brasil, 2011); No Lugar Errado (Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes, Ricardo Pretti, Brasil, 2011); Meu Amigo Mineiro (Gabriel Martins e Victor Furtado, 2012), dentre outros. Em A Amiga Americana (2009), um pequeno gesto simboliza o consentimento para que a amizade se dê: Thaís, que interpreta uma das personagens, — 27. Texto completo disponível neste catálogo. 28. Conversas realizadas com Maíra Bosi em 2015. 29. Conversas realizadas com Maíra Bosi em 2015. 16
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levanta seu guarda-chuva e dá espaço para que a outra personagem, Paris, uma estrangeira americana, compartilhe a sombra. A partir deste momento inicia-se uma relação de “co”, co-existência. O compartilhamento da sombra dá indícios da disposição dos dois seres ao con-vívio, no qual é possível que se deixem de lado as questões de linguagens (Paris e Thaís não falam a mesma língua; uma comunica-se em inglês e a outra em português) e, apesar dos obstáculos, que se partilhem questões em comum. O curta é extremamente sensível ao mostrar a forma como se dá a relação entre elas e também os vestígios que um amigo deixa no outro. Esses filmes são metalinguísticos. Em Estrada para Ythaca, percebemos que os quatro se revezam filmando uns aos outros. Uma produção horizontalizada, para a qual se supõe uma constante conversa: acordos e desacordos sobre o que se está fazendo. Além disso, se a viagem do filme não parecia ter um rumo certo, o mesmo aconteceu com a sua feitura: deu-se no processo, durante o percurso. Luiz Pretti30 nos conta que se a filmagem aconteceu em uma semana, a montagem demorou nove meses, isso devido às inúmeras conversas que precisaram ser estabelecidos para que os quatro dessem conta dos dissensos surgidos. Desta maneira, no Alumbramento, o trabalho em grupo não se resume a uma forma de viabilizar produções independentes ou fortalecer-se frente à força da indústria cinematográfica; é também uma escolha estética. Vale a pena trazer todo o parágrafo de um trecho já citado aqui, uma reflexão interessante que consta na sinopse do filme Praia do Futuro (2008): Tendo como ponto de partida a Praia do Futuro (uma das praias mais badaladas de Fortaleza), 18 realizadores, espalhados por 15 episódios, compuseram um emaranhado de olhares e afetos, que vezes fundem-se, vezes confundem-se, numa experiência coletiva livre, sem regras, sem comando e sem dinheiro. A parte ao final da sinopse, “sem dinheiro”31, nos convida à reflexão – já que dinheiro é um dos motores de uma relação de trabalho. Claro é que — 30. Conversa realizada com Luiz Pretti em 2015. 31. Não podemos deixar de ressaltar que, quando se fala em filmes “sem dinheiro”, na verdade isto se refere à falta de financiamento. O termo utilizado deveria ser baixo orçamento, pouco dinheiro ou verba própria. 19
predominam no coletivo as relações de amizade, e não as de trabalho. Mas no coletivo também existem relações de trabalho e de produção. Mesmo que o grupo se constitua em função das relações dos amigos, ele não se baseia apenas nisso, gerando trocas profissionais que acabam por caracterizar a mistura entre arte e vida. Talvez o desafio dos coletivos, não apenas deste em específico, esteja exatamente em balancear o jogo entre essas duas relações.Se o trabalho e a produção conectamse diretamente à necessidade de ter um produto final e retorno financeiro, a amizade se baseia exatamente no processo, na convivência, no inacabado. Maíra Bosi entrou no grupo no ano de 2009, a convite de Gláucia Soares, com a proposta de atuar como produtora executiva. Ela nos lembra algumas tentativas frustradas de novos projetos que envolvessem todos do coletivo. Um deles foi o Na Casa Alheia, um filme que se propunha a acontecer a partir da troca de casa entre os cineastas, mas acabou não tendo continuidade por falta de envolvimento dos participantes. Além disso, fala sobre a grande inexperiência por parte dos envolvidos sobre as questões burocráticas e afirma que aprenderam na prática (perdendo dinheiro, com erros e acertos) sobre emissão de notas, custo de impostos etc. Assim, o grupo foi se rearticulando em grupos menores, sempre conversando e discutindo entre todos sobre o que queriam ser e o que eram como coletivo, mas cada qual tocando projetos mais individuais (apesar de muitas vezes contar com o envolvimento dos amigos na produção). Entre as muitas formatações do grupo (dado a aproximação e o distanciamento que as práticas cotidianas e de amizade de cada um iam desenhando junto ao coletivo), a partir de 2009, Ricardo Pretti, Guto Parente, Luiz Pretti e Pedro Diógenes encabeçaram um grupo de quatro diretores dentro do Alumbramento com uma rápida velocidade de produção, de maneira que em menos de dois anos eles assinam juntos 3 longas, coisa rara para diretores, inclusive entre os coletivos de cinema independente. Desta forma, o sucesso desse grupo de diretores começou a inserir definitivamente o Alumbramento no circuito de cinema independente, tornando-os uma referência na cena brasileira. Nesse momento, as questões da ordem profissional (até então em segundo plano) começam a aparecer, como a participação em festivais de cinema, a contratação de estagiários e compromissos financeiros. Esse “coletivo” dentro do coletivo sentia a necessidade de ser uma produtora de fato. Nesse contexto, surge também 20
um desentendimento entre os integrantes – e discute-se quem de fato faz parte e deseja se dedicar efetivamente a essa nova configuração. Naquele ano, é importante frisar ainda que a convivência intensa dos 13 integrantes havia diminuído. É possível atestar a participação de todos no revezamento de funções na produção dos filmes, de revistas e na participação de festivais com filmes assinados como Alumbramento. Enquanto projetos paralelos corriam, continuava a haver um compromisso com o coletivo. Houve, porém, um esgarçamento das relações, e ao final de 2011, em um processo de desvinculação, saíram nove dos antigos participantes e entraram dois novos (Pedro Diógenes, que até então era apenas colaborador, e Caroline Louise, produtora). O Alumbramento passou a se configurar oficialmente como um grupo de seis: Ivo Lopes, Guto Parente, Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Pedro Diógenes e Caroline Louise. Reformulação para alguns, ruptura ou fim do coletivo para outros, tal processo marcou, pois, o início de uma segunda fase do Alumbramento. O acontecimento da segunda fase do grupo enfatiza um obstáculo que transpassa vários coletivos: a manutenção da diferença e da vida em plural é interpelada pelas exigências de definições quando se trata de um grupo que também produz e precisa dialogar com o mercado (seja independente, alternativo ou comercial). Esse parece ser um jogo de forças presente em vários coletivos de arte. Se existe a relação de amizade e a de trabalho, as duas estão em constante embate, pois se uma pede processo e ausência de fechamento, a segunda pede produção, objetividade e visibilidade. Por outro lado, Themis nos lembra que “[...] o coletivo está em constante reformulação, afirmar quem é ou não parte, é querer enquadrar, fechá-lo e acabar com a sua própria possibilidade de ser”32. Ela, assim como Thaís de Campos, apesar de oficialmente não serem mais parte do coletivo, continuam a participar dos filmes e conforme me disseram em entrevista33 “sentem-se parte”, não achando que essas definições devem ser relevantes. Themis Memória faz um paralelo: “Quando você abarca o universo, ele deixa de ser — 32. Conversas realizadas com Themis Memória em 2015. 33. Idem 21
universo”34. O mesmo se aplicaria ao coletivo Alumbramento, o que dialoga muito intensamente com o que afirma Cezar Migliorin: “Um coletivo é fragilmente delimitável” (2012, p. 6). A definição de quem é ou não parte dá-se muito mais na prática e no fazer diário. Uma prática fluida, na qual mais importante que a identidade dos indivíduos é a força que eles criam em conjunto. O Alumbramento nasce da amizade e, também em sua história mais recente, continua a agregar, se alongar, retrair, crescer e novamente agrupar amigos. Depositamos aqui o desejo de que siga consciente de que “Jamais conseguiremos encontrar uma definição conclusiva do que é a Alumbramento. Nunca encontraremos uma expressão, ou coisa que o valha, que dê conta das singularidades que fazem parte desse encontro. Seria um erro acreditar que um coletivo se apresenta em voz uníssona” (2012, texto retirado do site do grupo, assinado pelo coletivo).
— 34. Idem 35. Disponível em: www.alumbramento.com.br. 22
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em cartaz na terra do sol1 marcelo ikeda “Quer desfrutar de momentos inesquecíveis em um cenário paradisíaco e cheio de surpresas, onde vive um povo hospitaleiro e gentil por natureza?” Então venha para o Ceará, a Terra do Sol. Mas se você ficar mais de uma semana e resolver caminhar pelas ruas, verá as contradições que assolam o lugar: no ranking dos 27 estados brasileiros, o Ceará aparece em 22º lugar quanto ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) (dados de 2005). Na capital de Fortaleza convivem grandes arranha-céus à beira-mar e o grande mar de prostituição a céu aberto, que se tornou a Praia de Iracema, antes centro da intelectualidade e da jovem boemia da cidade. É nesse cenário que desponta o mais interessante movimento audiovisual do cinema brasileiro de hoje: o Alumbramento, que sintetiza toda a efervescência da cena audiovisual em Fortaleza, além de um conjunto de outros realizadores que, embora não diretamente ligados ao Alumbramento, gravitam em torno dessa influência agregadora e se reúnem para sorver doses fartas da cachaça Mangueira e um arroz de arraia no bar do Arlindo. Embora relacionada a uma tradição mais antiga, que passa pelo Alpendre e pelos pioneiros cursos no Dragão do Mar, a nova cena cearense despontou para fora do Estado com a realização de três documentários do DOC-TV: Vilas Volantes (de Alexandre Veras) – possivelmente a mais importante obra audiovisual cearense de todos os tempos – seguido de Sábado à Noite (de Ivo Lopes Araújo) e Uma Encruzilhada Aprazível (de Ruy Vasconcelos). Com a fundação da Escola do Audiovisual e seu currículo inovador, trazendo professores de todo o país, para módulos de uma semana, surgiu uma leva de jovens inconformados com a mesmice da cena cultural da cidade e ao mesmo tempo com um enorme sentimento afetuoso em relação às imagens, aos sons — 1. Publicado originalmente no catálogo do Curta Cinema de 2009. Agradecemos a autorização da republicação no catálogo.
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e a si mesmos. Esse caldeirão ferveu ainda mais com o “êxodo urbano” de Luiz e Ricardo Pretti, que desistiram da “politicagem mauricinha” do cinema carioca e desembocaram em Sabiaguaba, bairro interiorano de Fortaleza. Nos intervalos de um curso sobre cinema contemporâneo, realizaram Sabiaguaba, sendo selecionados simplesmente para o Festival de Oberhausen. Essa nova geração de realizadores começou a produzir um conjunto de curtas de diferentes visões de mundo e de cinema. Com a difusão da internet e as ferramentas peer-to-peer de visualização de filmes, reúnem-se, após as sessões do antigo Cine Caolho, hoje Cine Alumbramento, para discutir os novos e antigos filmes de Pedro Costa, Chantal Akerman e Agnès Varda, entre tantos outros, de forma que temos a impressão que as Filipinas se tornaram muito mais perto que Recife. Não possuem um “projeto” de cinema, ou melhor, esse projeto se limita ao próximo filme, ao próximo encontro no Arlindo ou na casa de alguém, para ver as últimas imagens recém-captadas. É dessa forma que se aproximam os membros de uma “geração amadora” que não só fazem cinema juntos, mas vivem, respiram, dormem, divertem-se juntos, que possuem afinidades íntimas que vão além do “campo profissional”, mas que se estendem a um modo de viver. Nesta sessão, veremos o cinema particular dos Irmãos Pretti, que vivem de “esperar Godot” como se fossem João Cesar Monteiro em Sabiaguaba, a singular reavaliação do material de arquivo em A Curva, típico dos trabalhos de Salomão Santana, a textura do celular em Alto Astral, a ironia inicial e a questão ética centrais a Vista Mar, a irreverente oscilação entre o cinema de gênero (o terror, o melodrama) e o documentário contemporâneo em Miúdos, o jogo improvável entre Peter Kubelka, o sci-fi e o cinema político em Flash Happy Society, e, para fechar a sessão, um abraço afetuoso, uma enorme declaração de sentidos, através da caminhada noturna (soturna mas esperançosa) dos jovens realizadores do Alumbramento no final de Longa Vida ao Cinema Cearense. Isso você só vê em Fortaleza, no Ceará, na Terra do Sol. Então, o que você está esperando? Venha você também conhecer as maravilhas da nova cena cearense, em cartaz no Curta Cinema.
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longa vida aos filmes alumbramento1 érico araújo lima A encruzilhada que levava a Ythaca abriu várias fendas. Quanto mais se caminha pela estrada, mais caminhos de cinema são experimentados. São tornadas possíveis novas dinâmicas de relação, de invenção e de vida com o cinema. No lugar da oscilação entre duas vias, podemos falar de uma porosidade radical às bifurcações, às dobras e aos atravessamentos. A figura da encruzilhada é tomada por processos de diferenciação, porque cada ponto do caminho pode abrir-se para uma outra travessia e fazer surgir toda uma nova intensidade de forças. “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”. *** A cada processo, um filme, e esse um é aqui fundamental, porque se torna signo de singularidade. Em muitos casos, podemos ver nos inícios das projeções a indicação: “um filme Alumbramento”. Essa apresentação pode variar e também surgir segundo outras disposições textuais. O nome pode vir direto e seco, sem intermediários linguísticos, anunciando o porvir: tela negra, “Alumbramento”. Pode também estar ao final, assinando aquilo que foi visto e encerrando a sucessão das imagens. Pode ainda vir seguido pela palavra “apresenta” (que tem surgido, cada vez mais, em companhia também de alguns parceiros de aventuras): é a Alumbramento que nos apresenta, então, aquela experiência que vai se desenrolar dali em diante na tela, como quem compartilha algo que quer mostrar para os amigos. Mas seria possível operar com aquela primeira formulação, a que enuncia “um filme Alumbramento”, para dizer não apenas da marca da produtora (aspecto fundamental, sem dúvida), mas, sobretudo, das implicações sensíveis para a própria experiência fundada a cada obra. Cada filme é um filme. Cada filme surge como — 1. Uma versão deste texto se fez circular durante a Mostra Alumbramento ocorrida em dezembro de 2014, no Cinema do Dragão-Fundação Joaquim Nabuco, em Fortaleza.
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singularidade. Mas é também um filme habitado por um mundo, por uma rede de conexões, por um espírito de desejos, de memórias e de processos coletivos, como se estivesse grávido de uma comunidade. Um filme Alumbramento poderia ser, então, o agregado diferenciante de uma infinidade de afetos e de uma multidão de encontros. A cada vez, sempre um, e a cada vez, sempre muitos. Nesse jogo de singularização dos trabalhos dos filmes, a paisagem sensível é povoada por variações de figuras, que ao mesmo tempo ressoam entre si e apontam para trilhas bastante próprias. Ressoam porque as partilhas continuam sendo processadas, os encontros não cessam de existir, e cada um segue experimentando com o outro, segue no diálogo com o outro, na troca mútua de afinidades. Mas também fazem linhas desviarem, porque é a configuração maleável e aberta dessa reunião de forças para fazer cinema que não permite o estabelecimento de programas ou de visões dogmáticas quanto a um dever ser, quanto a um seguimento de possíveis já percorridos. É que cada trabalho pede para si as próprias condições de possibilidade. Não se trata de falar de evolução de linguagem, porque essa perspectiva não parece dar conta do que se passa aos processos de invenção. Uma tal noção evolutiva corre o risco de colocar em etapas muito compartimentadas toda a complexa aventura que é fabricar cinema. Se os filmes Alumbramento têm, no presente, certos desenhos sensíveis, isso se dá muito menos porque teriam passado por fases, dentro de uma suposta sucessão de estados formais, do que por uma constante inquietação produtiva, com idas e vindas de motivos melódicos nos processos de criação, com aberturas de diferentes frentes estéticas e políticas e com um caráter potente de proliferação. Se o cinema resiste, é preciso que ele resista primeiro a ele mesmo. Para que se faça com a capacidade de questionar os próprios percursos e quebrar qualquer linha contínua e segura. O cinema precisa correr perigo. Nas variações tonais que passam a soar, seria possível esboçar um breve retrato dessa paisagem mais recente da produção da Alumbramento, colocando em relevo as figuras que as obras inventam. Poderiam ser considerados alguns conjuntos de passagens que vão de certa autonomia maior que se dá para as possibilidades dos encontros a um controle mais forte por parte da mise-en-scène. Se tomarmos filmes como Fim de Semana, de Ivo Lopes e Pedro Diógenes, e Odete, de Luiz Pretti, Clarissa Campolina e Ivo Lopes, podemos perceber dois campos de experimentação distintos que se abrem, desde já pelas próprias diferenças da natureza entre o trabalho documental do primeiro e a construção ficcional do segundo, mas principalmente pela motivação que faz acontecer cada um dos curtas, no contato deles com o mundo e com os materiais expressivos de que dispõem para se efetivar. As variações podem se dar também entre a construção dramatúrgica 27
vinda dos arranjos de imagem/som e operações mais tomadas pela atenção à palavra e à enunciação. É notável como toda a narratividade que podemos atribuir a filmes como A Misteriosa Morte de Pérola, dirigido por Guto Parente, e Medo do Escuro, de Ivo Lopes, é fundamentalmente imagética e sonora, costurada pelos recursos dos enquadramentos visuais e sonoros. Já a linha apontada por O Rio nos Pertence, de Ricardo Pretti, estabelece um diálogo com uma dramaturgia em que o realizador passa a se colocar também no exercício de dirigir uma cena mais mediada pela palavra, pela enunciação e por um estilo de decupagem mais marcada. Quadro e mistério É na espessura da imagem e na densidade dos sons que alguns dos trabalhos articulam grande parte das atmosferas e da potência mesma de cinema. Guto Parente e Ticiana Augusto Lima fazem de A Misteriosa Morte de Pérola uma obra que pinta as sensações na superfície do quadro cinematográfico. Estamos aqui em um filme que coloca em curto-circuito as formas expressivas do cinema e da pintura: de um lado, é na passagem entre as imagens, nos ritmos e nas durações de cada plano que se desenrolam os climas; de outro, temos na unidade do quadro, nas camadas que ele cria, no campo que ele abre e na textura que ele tece os lugares por excelência das fulgurações e do povoamento fantasmático. A heterogeneidade de matérias fílmicas, possibilitada pelas transições para a modulação característica do vídeo caseiro, reverbera de forma sintomática nesse trabalho de associar texturas para compor o quadro. O curto-circuito operado vai sendo progressivamente, também, entre um mundo de cá e um mundo de lá da imagem, entre lugares que podem criar vida e morte, ora recriando uma forma de vida, ora desencadeando a morte. Cineasta bom é cineasta morto. Se o cinema se contamina pelas formas pictóricas, é toda a casa que se transforma em um corpo vivo, repleto de respirações próprias, e capaz de ser um portal para outras forças e energias variadas – passagens misteriosas nesse universo de coabitações e de interpenetrações. Essas figuras pictóricas de Pérola não deixam de reverberar o interesse presente também no colorismo e nas velocidades experimentadas em Dizem que os cães veem coisas, também de Guto Parente, e nos tons de Doce Amianto (dirigido por Guto em parceria com Uirá dos Reis), filme também permeado pelas experiências fulgurantes da imagem e pelos intercâmbios da fada Blanche, que vem de outros mundos para tecer relações com os viventes. Os contatos com um cinema de gênero, na perspectiva de uma subversão, são também o motor em Medo do Escuro, já numa vizinhança maior com a ficção 28
científica e segundo um caráter pós-apocalíptico. Uma cidade desabitada e em ruínas é o que parece desencadear as assombrações e os mistérios aqui. Já não tanto com o rigor formal do quadro fixo, como em Pérola, mas com um interesse semelhante pela plasticidade e pela superfície pictórica da imagem, a câmera vai passeando ao ritmo do corpo do personagem central. Também se trata de um trabalho de texturas e de intensidades pictóricas, criadas pelas escalas de cores, de brilhos e de vibrações do material fílmico, mas agora a paisagem que se abre é diversa, e a construção do quadro se processa de forma mais delirante. É um filme que pinta a devastação de um mundo, para o qual só se pode responder com a energia vital do movimento do corpo errante, observado na sua ritualidade performática. Esse ritual pega delírio especialmente na dança final, em que música, corpo, luz e câmera colocam-se em jogo de imprevisibilidades, numa sequência que faz lembrar a intensidade atingida também na cena final de Os Monstros (Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti), quando a performance musical dos quatro atores e diretores era acompanhada pelo movimento de uma câmera-corpo gestual e igualmente performática. Filmes selvagens O empreendimento de estudo das texturas e das formas é carregado de toda uma tonalidade política. Essa preocupação não é inédita nas estradas dos realizadores da Alumbramento, especialmente se entendermos como políticos pequenos deslocamentos no olhar, micro-acontecimentos que podem desconcertar uma estruturação da sensibilidade, como quando Guto Parente observava o lugar adquirido pela imagem como mediadora da experiência, em Flash Happy Society, filme de operações muito sutis, de uma absoluta simplicidade, e ao mesmo tempo de uma radical contundência no gesto de provocar crises dentro do jogo extremo de visibilidades da sociedade contemporânea. Essas tensões são tomadas por um interesse em fazer da própria forma fílmica um operador ativo de desestabilização e de ranhura nas constituições aparentemente dadas do mundo. Fazer filmes selvagens. Toda uma prática composicional que dialoga fortemente com a estética do vídeo é posta em ação para desencadear descompassos com uma maneira organizada de gerir a vida, os corpos e as imagens. É o Filme Selvagem, de Pedro Diógenes, uma expressão emblemática dessa toada de assumido manifesto, que instaura embates com as formas de governança dos sentidos. E a tessitura crítica passa pelo campo das formas que fazem fissura em outras formas, desgoverno que desvia de uma organização modelizante.
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São táticas de resistência que passam a ser experimentadas como táticas de cinema. Em Com os punhos cerrados, de Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti, ouvimos a leitura do fragmento “Como fazer TNT”, extraído do “Livro de receitas do anarquista”, enquanto as imagens apresentam imensos blocos de concreto, prédios emblemáticos que dizem muito das estratégias dos poderes em esquadrinhar o espaço urbano. Os ruídos nas texturas da imagem e do som deslocam todo um modo de perceber esses lugares pobres de experiência. E então o cinema, nas suas táticas de montagem e de encenação, encontra uma forma tanto de tornar dizível uma insatisfação quanto de tornar fazível uma imagem insurgente, tão incendiária quanto TNT. Explosões de cinema que podem ser vistas também em Não estamos sonhando, de Luiz Pretti, que aponta um cinema projétil para a cidade, quando o gravador de som vira detonador da fabulação que abala estruturas, desfaz coordenadas e leva virtualmente um mundo de concreto ao lugar de ruínas. Essas roturas sensíveis se dão no limiar do cinema com um fora, o que fica ainda mais evidente em O Porto (Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Clarissa Campolina e Julia de Simone), que carrega para a escritura uma conexão urgente com o presente e com os processos de ordenação do espaço urbano. A ficção que nos pertence Esse desejo de intervenção política é ainda inseparável da potência constituinte vinda da dramaturgia dos filmes. E um dos lugares de destaque para essa invenção de mundos é a ficção. Haveria toda uma política da ficção, que consiste em possibilitar a fabricação, no sentido mais concreto que essa palavra pode ter. Uma resistência passa menos pela lógica da oposição e da postura reativa que de uma capacidade de insistir numa produção de mundos. Fabricar tem a ver com uma maneira de articular elementos para fazer irromper um timbre inédito, uma vibração ainda não sentida, uma voz que não era ouvida, um corpo que não tinha espaço. Quando A Misteriosa Morte de Pérola e Medo do Escuro tomam para si toda uma matriz de cinema de gênero, trata-se também aí de dar novos usos à linguagem e fazer com que ela desvie de um caminho estabelecido previamente. O esforço fundamental está no jogo de desapropriar um modo de fazer. Cabe transformar primeiro em impropriedade um certo campo de referências, que como tal, já não pode pertencer a um ou outro, mas precisa tornar-se comum. O gesto seguinte é inventar o próprio possível, a partir desse território que foi desapropriado e se tornou terra partilhável por todos. Eis uma política ficcional bastante intensa nos filmes da Operação Sonia Silk, projeto que inclui O Rio nos Pertence, O Uivo da Gaita, de Bruno Safadi e O Fim de uma Era, de Ricardo Pretti e Bruno Safadi: ativando toda uma operação narrativa mais marcada, eles tomam algo como que 30
uma supermemória do cinema para contar histórias que não cessam de colocar os filmes em crise com um estado do mundo. Se O Fim de uma Era faz a ficção da ficção, a imagem dentro da imagem, compondo rostos e vozes, a partir da própria aventura de fazer cinema dentro do processo de realização desses três filmes, o trabalho de construção de personagens vai surgir com maior marcação em O Rio nos Pertence, com dramaturgia bastante singular dentro dos outros trabalhos que Ricardo já realizou dentro dos próprios trajetos Alumbramento. Já não se trata tanto dos recursos expressivos de filmes como Estrada para Ythaca, Os Monstros e Com os punhos cerrados. Seria possível mesmo reaproximá-lo de Medo do Escuro e também de A Misteriosa Morte de Pérola, se pensarmos em todo o temor que ronda misteriosamente os personagens dos três filmes, com se houvesse sempre um mundo que bate à porta, ameaçador e prestes a tudo engolir. Aqui é a cidade inteira que assombra, e todo o jogo de encenação, de dramaturgia e de decupagem vai sustentar um sentimento de desconexão com o espaço. Ir e vir, sair e entrar: todas as passagens operadas pelo corpo da personagem vão se materializar também no controle dos trânsitos do cinema. Talvez se trate de constituir a sensação de uma cidade da qual seria preciso se despedir, uma cidade desterro. *** Alumbramiento, um filme de Victor Erice. Esse curta de dez minutos é uma grande inspiração para o coletivo Alumbramento, disparador do próprio nome escolhido para reunir amigos. Um filme que pode ser visto em suas várias implicações, mas que me parece dizer muito do tempo, da possibilidade de uma simultaneidade de acontecimentos na espessura de uma duração. Existe uma série de ações coexistindo ao longo do filme. Enquanto um bebê recém-nascido tem um sangramento que demora a ser percebido, a mãe dorme um sono inquieto. Em outro canto, um garoto desenha no pulso um relógio, ele cria a sua ficção do tempo. Um pouco mais longe, uma mulher estende roupas no varal. Dizendo muito rapidamente, é mais ou menos assim que segue o curta, com essa variação de frentes abertas, até uma posterior confluência. É que uma vida e um filme podem condensar toda uma heterogeneidade de percursos. As figuras do cinema têm também a ver com as figuras temporais da vida. E o tempo é também marca de redes e de aberturas, de bifurcações e de fendas. Um filme Alumbramento poderia ser pensado segundo essa figura da multiplicidade: comunidade de tempos, de afetos e de espaços. Pois não cabe apenas escolher entre dois caminhos na travessia que se bifurca (dualidades perigosas) – trata-se, sobretudo, de fabricar caminhos.
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longa vida ao cinema cearense: pensando uma cidade e um cinema para além da questão identitária1 rodrigo capistrano Não! Você não me impediu de ser feliz! / Nunca jamais bateu a porta em meu nariz! / Ninguém é gente! / Nordeste é uma ficção! Nordeste nunca houve! / Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos! / Não sou da nação dos condenados! / Não sou do sertão dos ofendidos! / Você sabe bem/ Conheço o meu lugar! Conheço o meu lugar! (Trecho da música “Conheço o meu lugar”, de Belchior, 1978).
Belchior compôs a música acima em seu álbum intitulado “Era uma vez um homem e seu tempo”. Vivendo no Rio de Janeiro em fins da década de 1970, o compositor nascido no Ceará já questionava acerca das diferenças rigidamente marcadas pelas delimitações das fronteiras regionais, — 1. Esse texto compõe parte da pesquisa desenvolvida pelo autor em sua tese de doutorado provisoriamente intitulada “O cinema e a cidade: representações de Fortaleza na produção audiovisual do coletivo Alumbramento (2006-2011)”. A partir da orientação da Dra. Meize Regina de Lucena Lucas, a tese compõe o Programa de Pós Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará, na linha de pesquisa de Cultura e Poder. 32
diagnosticadas especialmente por uma elite sulista interessada em continuar detentora dos poderes decisórios da nação, como também pelas ricas camadas nortistas, igualmente beneficiadas por esse discurso da exclusão, de toda uma “maquinaria de produção, mas, principalmente de repetição de textos e imagens”2. As indagações do compositor cearense voltariam à tona em alguns trabalhos audiovisuais da Alumbramento. Poucas vezes isso foi tão forte quanto no curta-metragem Longa vida ao cinema cearense. O filme dirigido pelos Irmãos Pretti toma emprestado o título e utiliza como fonte de inspiração direta um curta-metragem realizado nas Filipinas. No caso, a produção realizada por Raya Martin3 Vida longa ao cinema filipino! (2007). No filme, uma mulher anda pelo seu escritório, lendo roteiros e contando dinheiro. Ela é surpreendida por um grupo que invade esse espaço e atira em seu peito (figura 1). Depois de assassinada ela tem seu corpo queimado e suas cinzas são colocadas dentro de uma lata de filme. Forma-se aí o título do curta-metragem (figura 2). Narrado de uma maneira seca, o diretor filipino utilizou de violência e ironia para contar um pouco da realidade cinematográfica do seu país. Trata-se de uma sátira a “Mother Lily”, rica empresária que controla a maior produtora de cinema das Filipinas. Ela comanda um grande estúdio, responsável pela criação de comédias e melodramas com temáticas e estética repetitivas, que dividem com os blockbosters norte-americanos as salas de cinema comercial do país. Segundo o crítico de cinema filipino Francis Joseph Cruz, os filmes produzidos são: “(...) romances redundantes, comédias inúteis, filmes de terror inócuos e dramas mal escritos que são consumidos por grande parte da população. (...) Mother Lily ainda está em atividade, cuspindo filmes que parecem piorar a cada ano”4. Raya Martin seria um dos principais representantes de um novo cinema, mais voltado para a reflexão e apostando no experimentalismo da linguagem audiovisual5. — 2. ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M.. A Invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo/Recife: Cortez/Massangana, 1999. 3.Raya Martin nasceu em Manila,Filipinas,em 1984.Suas realizações cinematográficas se iniciaram ainda na adolescência,onde já acumula dezenas de trabalhos em curta e longa-metragem. Entre os seus filmes de maior repercussão destacam-se os longas Uma pequena película sobre o índio nacional (2005),Autohystoria (2007),Independência (2009) e La última película (2013),este último dirigido em parceria com Mark Peranson. 4.CRUZ,Francis Joseph.“Um pequeno artigo sobre os filmes do índio nacional (ou a prolongada agonia do cinema filipino)”.In: Descobrindo o cinema filipino. Disponível em: http://cinemafilipino.com.br/artigos03.php. Último aceso: 17/08/2016. 5.Na verdade,esse chamado “Novo Cinema Filipino”conta com realizadores de várias gerações.Entre os nomes mais experientes, destacam-se Lav Diaz e Brillante Mendoza.A geração de cineastas mais jovens tem em Raya Martin seu principal representante. Destacamos ainda John Torres e Khavn de La Cruz. Em 2010, o Centro Cultural Banco do Brasil organizou no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, uma mostra intitulada “Descobrindo o cinema filipino”, onde os principais filmes desses realizadores foram exibidos em sua grande maioria pela primeira vez no Brasil. 33
Longa vida ao cinema cearense não deixa de ser uma homenagem a esse novo cinema filipino, mas principalmente procura refletir sobre a atual situação da produção audiovisual desenvolvida no estado do Ceará. Realizado de maneira simples e com um potencial de ironia talvez ainda mais carregado que o seu antecessor e fonte de inspiração direta, o filme assinado pelos Irmãos Pretti aponta que o Ceará mantém algumas semelhanças com o cinema das Filipinas. Já temos algumas décadas em que o “cinema oficial” do estado, e mais facilmente reconhecível pelo senso comum como representante de uma suposta “cearensidade”, é realizado por um pequeno grupo de pessoas que continuam a reproduzir fórmulas e repetir temáticas regionais. Os Irmãos Pretti brincam com isso de maneira explícita na primeira parte do seu curta-metragem. Para isso, resgatam um personagem de um filme realizado pouco tempo antes, Espuma e Osso6 (2007). Tratase de um homem que, no interior de sua casa, realiza ações cotidianas e comuns, mas que estranhamente utiliza uma gigantesca cabeça que se assemelha ao personagem Mickey Mouse, dos estúdios Disney. Em Longa vida ao cinema cearense, o citado “homem-Mickey” retorna à cena interpretando um aspirante a cineasta. A primeira sequência do filme localiza-se numa sala de cinema. A luz estourada da projeção na tela abre as imagens do filme, seguido por um primeiro plano das costas do personagem principal sentado no cinema assistindo Espuma e Osso. Posteriormente o mesmo se encontrará localizado nas escadarias do Cine São Luiz7. Ele porta uma pequena câmera de vídeo e desenvolve um roteiro de um filme. Junto com seu grupo de amigos, todos também portando cabeças de personagens do universo infantil, se deslocam até a produtora “Cangaço Filmes” para apresentar o projeto. Vemos que esses primeiros minutos de Longa vida ao cinema cearense é carregado de referências do universo ativo de cinefilia dos Irmãos Pretti: o — 6. Espuma e Osso é um curta-metragem que teve a direção de Guto Parente e Ticiano Monteiro. Realizado originalmente num exercício prático da Escola de Audiovisual de Fortaleza, o filme foi exibido e premiado em vários festivais de cinema do país. Na época da realização de Longa vida ao cinema cearense, Guto Parente tinha ingressado a pouco tempo na Alumbramento. Ele assina o som direto e a edição do referido curta. Espuma e Osso encontra-se disponível para exibição em: http://vimeo.com/10642603. Último acesso: 16/08/2016. 7. O Cine São Luiz é o último e imponente sobrevivente dos cinemas de rua da cidade de Fortaleza. Depois de se encontrar recentemente fechado durante alguns anos, o cinema foi reformado e encontra-se hoje em plena atividade, realizando além das sessões de cinema, espetáculos de teatro, música e dança. O prédio tombado pelo patrimônio histórico também abriga, em alguns dos seus andares, a sede da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará – SECULT-CE. 34
título do filme que remete à obra filipina, a metalinguagem do “filme dentro do filme”, a referência ao personagem do curta Espuma e Osso, os espaços e objetos que circunscrevem os personagens (a sala de exibição, a produtora, a câmera de vídeo, o roteiro), o irônico título da produtora, provável representante da continuidade de um cinema “regional e nordestino”. Longa vida ao cinema cearense é um filme que está ancorado em torno desse universo de referências. Isso continuará pautando todo o trabalho, numa obra que só existe por conta dessa teia relacional, envolta numa rede de conecções que se estabelece desde a própria motivação em fazer o filme. Seguimos para a sequência da interna no escritório: o personagem principal entrega seu roteiro para ser apreciado pelos quatro representantes da produtora. Eles estão de costas sentados ao redor de uma mesa. Ao fundo, percebemos na parede um grande mapa do Ceará e um quadro branco onde está escrito: “Bem Vindo: você está no Ceará”. O “homem-Mickey” entra no espaço e entrega o roteiro. De mão em mão a volumosa quantidade de folhas de papel vai identificando parcialmente os representantes da Cangaço Filmes: temos a índia, o cangaceiro, o empresário engravatado e um lutador de kung-fu. Ao término da rápida e superficial apreciação, o roteiro é jogado ao chão. Os quatro produtores se levantam e espancam o jovem cineasta. A começar pelo nome fictício dado à produtora, passando pela maneira absurda e propositadamente estereotipada em que são mostrados os seus representantes, vemos um desejo dos Irmãos Pretti em desvincular o seu cinema de alguns personagens habituais do universo cearense. Em Longa vida ao cinema cearense, o personagem espancado parece querer uma oportunidade em conseguir apoio e buscar financiamento para emplacar seus projetos. Porém, a lógica da produtora é rechaçar esse novo que se apresenta. No filme, vestindo a capa do regionalismo e adotando um suposto verniz identitário, o cinema “oficial” cearense não quer o diálogo com esse cineasta e precisa silenciá-lo de alguma maneira. O plano seguinte é o das portas da produtora se fechando. Na externa, vemos as cabeças gigantes de espuma dos jovens cineastas jogados na calçada. Elas são abandonadas. A segunda metade do filme se inicia com a câmera registrando uma caminhada noturna pelo centro de Fortaleza. Os quatro cineastas outrora desacreditados pela Cangaço Filmes não se intimidam e continuam filmando. Durante um tempo somos levados a acompanhar esse percurso silencioso, até que um dos planos apresenta a equipe do filme por trás das 35
câmeras. Identificamos na caminhada os próprios diretores do filme, outros representantes da Alumbramento e da equipe técnica, além de amigos colaboradores. São pessoas que estão juntas nesse caminhar, constituindo verdadeiros “atos de fala pedestres”. Michel de Certeau teria comparado a ação de andar pelo espaço urbano com a linguagem8: O caminhar tem uma tripla função enunciativa: é um processo de apropriação do sistema topográfico por parte do pedestre (...); é uma atuação espacial do lugar (...) e implica relações entre posições diferenciadas, ou seja, entre ‘contratos’ pragmáticos na forma de movimentos9.
O lugar escolhido para a caminhada cumpre aqui, portanto, uma importante função enunciativa. Ela acontece nas proximidades do centro de Fortaleza, um dos espaços mais utilizados como cenário e fortemente problematizado nos filmes realizados pela Alumbramento10. Parte dos representantes da produtora cearense moram, ou já moraram, no referido lugar. Ocupando alguns apartamentos de um pequeno prédio denominado “Edifício Dona Bela”, com sua construção datada provavelmente da década de 50 do século passado11, os “alumbrados” fizeram a opção em realizar a caminhada naquele espaço que tanto diz respeito a suas vidas e práticas artísticas desenvolvidas. A sede da produtora sempre funcionou no centro de Fortaleza e, não por acaso, a partir de outubro de 2012, seus integrantes conseguiram transferir a mesma para o Edifício Dona Bela. Ironicamente, a Alumbramento funciona nos dias de hoje exatamente no mesmo espaço físico da fictícia “Cangaço Filmes”. — 8. Tendo o cuidado de entender linguagem em seu sentido amplo, utilizamos as palavras de Nicolau Sevcenko: “(...) o que entendo por linguagem não se restringe ao domínio oral e escrito das palavras, e sim consiste em todo o sistema de produção de significados e de interação comunicativa” (1993: 78), em: SEVCENKO, Nicolau. “Transformações da linguagem e advento da cultura modernista no Brasil”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 6, n.11, 1993. 9. Citado em: ARANTES, Antônio Augusto. “A guerra dos lugares”. In: Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Campinas: Ed. Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial, 2000. 10. O caso mais exemplar é o filme Retrato de uma paisagem (2012), de Pedro Diógenes. Destacamos ainda os filmes Rua Governador Sampaio (2008), de Victor de Melo, Raimundo dos Queijos, de Victor Furtado, bem como Sábado à noite (2007) e Medo do escuro (2014), ambos dirigidos por Ivo Lopes Araújo. 11. Acerca do referido edifício, encontramos apenas essa informação contida no site do espaço cultural Salão das Ilusões: “O Salão das Ilusões é uma oásis multicultural no Centro da Cidade de Fortaleza. Sediado no edifício Dona Bela, construído na década de 50 pelo mesmo arquiteto do Iracema Plaza e Lord Hotel”. (ver em: http://www.salondelasilusiones.com/nos/. Último acesso: 16/08/2016). O prédio teria sido construído por iniciativa de Pedro Philomeno Gomes, proprietário do Iracema Plaza (Edifício São Pedro, na Praia de Iracema, erguido em 1951) e do Lord Hotel (importante edificação do Centro de Fortaleza construída em 1956), mas não conseguimos apurar maiores detalhes acerca da data da sua construção. 36
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Retomando a caminhada pelo centro, vemos que o percurso continua por mais alguns minutos. A câmera se detém novamente nos quatro personagens. Eles chegam até uma casa ou galpão não facilmente identificado. A porta se fecha, formando o título do filme sobre a mesma. Se fôssemos nos deter apenas na linha narrativa de Longa vida ao cinema cearense, acreditamos que o local de chegada não seria muito importante, pois os realizadores parecem não se preocupar que o percurso tenha um fim ou um claro objetivo definido. Conforme apresentamos anteriormente, o ato de caminhar é o que mais importa. Porém, o local de fechamento do curta também não foi escolhido aleatoriamente. Trata-se da sede do Alpendre – casa de arte, pesquisa e produção –, lugar de referência para o cenário cultural da cidade de Fortaleza na década passada. Muitos dos representantes da Alumbramento se conheceram em atividades desenvolvidas naquele espaço, desenvolveram trabalhos e participaram de festas ali ocorridas, verdadeiro ponto de encontro corriqueiro12 para os que participaram das filmagens do curta-metragem. O deslocamento excita a imaginação, libera lembranças e emoções. Faz reviver narrativas e flagrantes de experiências passadas. Leva ao encontro de referências pessoais e dos lugares de memória pessoal. Um marco remete a outro, logo em seguida, na cidade onde se viveu por longo tempo. A lembrança constitui o trajeto, obscurece as distâncias, estabelece relações. O caminhar permite a escolha de fragmentos de histórias pessoais e do lugar13.
Vemos, portanto, que os espaços nomeados para a realização da caminhada que pontua toda a segunda metade do filme são significativos para colocar em relação elementos do trabalho, lazer e a vida cotidiana daqueles realizadores. Longa vida ao cinema cearense é um recorte pessoal, um olhar dos Irmãos Pretti sobre um momento em que vive o cinema daquele estado. Mas bem poderia ser alçado à condição de um manifesto, espécie de “carta de intenções” da Alumbramento.
— 12. O Alpendre era localizado num antigo galpão da Praia de Iracema, muito próximo do centro da cidade e em frente ao Centro Cultural Dragão do Mar. Criado no ano 2000 por representantes de várias linguagens artísticas, o lugar encerrou suas atividades no ano de 2012. 13. ARANTES, Antônio Augusto. “A guerra dos lugares”. In: Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Campinas: Ed. Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial, 2000. 38
Se nos grandes centros urbanos, “a condição física do corpo em deslocamento reforça a desconexão do espaço, em alta velocidade é difícil prestar atenção à paisagem”14, os filmes assinados pela produtora Alumbramento possuem outro ponto em comum. Eles tentam devolver esse corpo à paisagem, aproximar a arte da vida cotidiana, registrar os modos de individuação15 dos lugares-comuns, buscar ver o imperceptível, ouvir os silêncios do mundo. Em meio ao ritmo desenfreado da rapidez cotidiana tenta-se extrair o acontecimento na contemplação do comum. Esse exercício de observação voltado para ações cotidianas e corriqueiras são potencializados pela presença de planos geralmente longos e a pouca inserção de diálogos nos filmes, compartilhando de olhares mais atentos para os espaços e a experiência temporal. Longa vida ao cinema cearense busca esse respiro de tempo e rechaça a demarcação dos espaços identitários. A presença de um perfil predominantemente urbano dos filmes da Alumbramento busca a cidade que se apresenta como um produto de experiências subjetivas, tanto individuais, como coletivas. Corroboramos aqui com as palavras de Carl Schorske: “Ninguém pensa a cidade em isolamento hermético. Forma-se uma imagem dela por meio de um filtro da percepção derivado da cultura herdada e transformado pela experiência pessoal”16. Nos filmes, vemos que essa percepção da cidade não é fechada, não apresenta valores e conhecimentos prévios, não se exige dela definições precisas. Neles, a cidade é percebida pelas experiências propostas, inserida num campo de ações e interações. Longa vida ao cinema cearense põe em movimento esses elementos voltados para a escrita da cidade, pensando e construindo uma história urbana a partir das indissociáveis experiências de lazer, trabalho e vida cotidiana, colocando em estreito diálogo tanto a materialidade e conteúdo dos filmes, como os aspectos contidos no plano extrafílmico dos mesmos. Uma cidade aberta, em construção, e transpassada pela paixão de fazer cinema.
— 14. SENNETT, Richard. Carne e pedra. Rio de Janeiro: Record, 1997. 15. Esses modos de individuação aos quais nos referimos confirma o pensamento defendido por Deleuze. Eles “já não são os de uma coisa, de uma pessoa ou de um sujeito: por exemplo, a individuação de uma hora do dia, de uma região, de um clima, de um dia ou de um vento, de um acontecimento.” (1992: 38), em: DELEUZE, Gilles. Conversações. 1972-1995. São Paulo: Ed. 34, 1992. 16. SCHORSKE, Carl. “A ideia de cidade no pensamento europeu: de Voltaire a Spengler”. In: Pensando com a história: indagações na passagem para o modernismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 39
alumbramento na cinemateca francesa guto parente, pedro diógens, ivo lopes, luiz pretti e ricardo pretti Estes pequenos textos foram escritos por ocasião da exibição de 5 filmes da Alumbramento na Cinemateca de Paris, no dia 11 de Setembro de 2014. Como haveria apenas um dos membros do coletivo presente na sessão, essa foi a forma que encontramos de todos participarem, mesmo que à distância. O texto foi lido no começo da sessão, em voz alta, para um público que pouco ou nada conhecia do nosso trabalho, fazendo com que a apresentação se tornasse um ato performático onde uma parcela da nossa visão de mundo era exposta com bom humor, mas também com alguma seriedade. Optamos por não nomear o autor de cada trecho pois isso faz parte do jogo e também para manter um senso de coletivo que tende a se perder no momento em que as ideias são personalizadas. Aproveitamos para agradecer a Cinemateca francesa na pessoa de Bernard Payen pelo convite que nos deu a felicidade de mostrar esses filmes em solos franceses. O Alumbramento é uma família. Mas não uma família no sentindo tradicional e conservador. É uma família de pessoas que resolveram viver o mais próximas possíveis e transformar essa convivência em um constante ato de criação. O Alumbramento é uma produtora, um coletivo, é trabalho, é amizade, é resistência. O Alumbramento é a possibilidade de viver fazendo o que sonhei quando criança, que é cinema, com pessoas que amo e do jeito que acredito que o cinema deva ser feito: na troca entre as pessoas. Construir um coletivo de cinema na cidade de Fortaleza é uma aventura pioneira, única e para poucos audaciosos e loucos o suficiente. Alumbramento vem há oito anos se aventurando, se embrenhando por mata virgem e enfrentando ferozes bichos desconhecidos só avistados nessa região. Não sabemos aonde essa aventura vai nos levar, mas a curiosidade nos mantém indo em direção ao desconhecido, pois como já disse Maiakóvski, “Toda poesia é uma viagem ao desconhecido”.
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Alumbramento é um território que criamos todo dia há oito anos para existirmos juntos, como uma zona suspensa, sem geografia, sem chão, lugar de troca e criação, lugar de afetos e explosões, lugar de fuga e de encontro e de conforto e de confronto. Lugar onde dançam nossas inquietações. E depois da dança, a suruba. E da suruba nascem vários bichos cinema, filmes criaturas, selvagens, tortos, endiabrados, cheios de amor, mas cheios de fúria também. E juntos, nós e as nossas crias, lutamos para resistir a um mundo mesquinho, desumano, conservador, preconceituoso, segregador, excludente, burro e violento, que tantos infelizmente dedicam suas vidas a manter. Se a revolução não se anuncia no horizonte, na resistência encontramos a possibilidade de seguir existindo. E a arte é a nossa única arma. With no god in the sky and no money in the pocket. Porém felizes. No Alumbramento é imprescindível sonhar e trabalhar pelos sonhos, acreditar neles e fazer deles a possibilidade da troca intensa e verdadeira entre amigos, irmãos, seres maravilhosos que trabalham transformando encontros em luz. Não deixemos o capitalismo transformar nossa inteligência, nosso desejo e nosso talento, em profissionalismo ou empreendedorismo. Fazer parte do Alumbramento é aprender e reaprender diariamente a se despir de suas próprias obsessões e se entregar ao outro com a mesma intensidade e abertura que me entrego a mim mesmo. Viver o Alumbramento é viver o risco constante, é não ter medo nem do amor nem do ódio. É aonde eu sou menos eu, mas ao mesmo tempo o lugar onde encontro mais ferozmente comigo mesmo. Ser do Alumbramento é manter-se jovem com o passar dos anos, se permitir a rebeldia, a transgressão e a irreverência. É lutar e trabalhar diariamente pela liberdade na vida e no fazer cinematográfico.
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alumbramento, fortaleza–ce1 uirá dos reis “Nec spec nec metu” Frase gravada no punhal do pintor Caravaggio, segundo Derek Jarman
No começo da década de 00, ao lado do Dragão do Mar em Fortaleza, quando Luiza Interlenghi ainda era a generosa diretora que abriu as portas do Museu de Arte Contemporânea da cidade para os jovens artistas, havia o Alpendre Casa das Artes, espaço de exposição, estudo e discussão sobre artes visuais, dança, literatura e cinema. Um lugar bonito, acolhedor, onde o pensamento fluía enquanto o corpo divertia-se em exposições-festas, proposições-sonhos, observações-rituais. Misturas tão inusitadas quanto enriquecedoras sempre aconteciam, sobretudo de pessoas. Dessa e daquela área e daquela outra, desse ponto da cidade e daquele ponto também, desse estado e do outro, desse país e de fora e, assim, novos sonhos começaram a surgir. Também tinha a escola gratuita de cinema da Vila das Artes, fundada pela prefeitura que passou a funcionar e só não fechou ainda no primeiro momento por conta da grande ocupação que seus alunos fizeram, morando lá durante algumas semanas, e apresentando vários trabalhos pelo espaço onde hoje funciona a escola, entre shows, recitais e filmes, além de promover discussões sobre temas diversos, enquanto o futuro da “escolinha”, como fora apelidada, não era senão uma dúvida. De tantos encontros houve um que resultou interessantíssimo, inclusive por servir de metáfora para o momento, onde a pluralidade e a coletividade apresentavam-se reais, e a alegria e o amor estavam em todos os cantos. Alexandre Veras, um dos idealizadores do Alpendre Casa das Artes, foi responsável por muitos desses encontros que culminariam, entre outras coisas, no surgimento da Alumbramento. Nesse mesmo período eu e Ivo nos aproximamos bastante, e ele conversava sobre a vontade de fazer um filme coletivo, feito por várias mãos (e corações — 1. Texto revisado pelo autor e publicado originalmente no DVD Alumbramento volume 1, lançado pela Lume Filmes em 2012. 42
e mentes) ao mesmo tempo. O resultado dessa vontade é o filme Praia do Futuro, “um filme em episódios”, diz o cartaz ainda colado na parede do meu quarto. Lançado em 2008 em sessão gratuita no Cine São Luiz, maior e mais antigo cinema da de Fortaleza, hoje reativado, o filme apresentou a Alumbramento para um público enorme e dividiu opiniões e, se não foi tratado da maneira correta, ao menos foi destratado pelos motivos errados. Posto como uma obra confusa, irregular e feia – o que não chega a ser uma mentira – além de ser acusado de “inútil!” ou “falcatrua!” diante do fato de que era uma obra malfeita e com dinheiro público – o que é uma mentira, posto que o filme foi feito integralmente com o dinheiro dos envolvidos – mas dificilmente compreendido como um ato de coragem e libertação, um grito para o futuro, em busca de construí-lo, mesmo que irregularmente, mas sempre em busca da Arte, em detrimento de tudo ou quase tudo, inclusive do apocalipse, da hecatombe, e sempre em combustão. Yoko Ono em Rising: “Listen to your heart/Respect Tour intuition/Make Your manifestation/There´s no limitation/Have courage/Have rage/We´re all together/We´re rising...” (“Ouça o seu coração/Respeite sua intuição/Faça a sua manifestação/Tenha coragem/ Tenha bravura/Nós estamos todos juntos/Nós estamos ascendendo...”). Hoje o filme pode ser visto de forma randômica na página da Alumbramento (www. alumbramento.com.br), livre de uma ordem ou cronologia, da maneira que foi idealizado e originalmente concebido. Tão certo que o Praia do Futuro é um filme em longa-metragem quanto uma crise estética para alguns dos seus realizadores, digo que não é possível esquecer o fato da liberdade pungente e anárquica que ele nos antecipou, anunciando a coragem e a audácia de um cinema feito por um grupo de pessoas que traz em si a vontade de correr o risco em nome de uma arte que nos fale sobre suas vidas, apresente o seu lugar, nos explique os seus afetos criando a partir disso um diálogo estético imediato com diversos cineastas e entusiastas do cinema por todo o país. É certo também que o grande divisor de águas dessa geração foi o Sábado à Noite, de 2007, esse documentário poético de Ivo Lopes Araújo sobre um sábado à noite em Fortaleza, onde um oco ruidoso é a paisagem exibida, que informa do risco-não-risco de se viver num lugar que é um deserto – rico como um deserto e gigante como um deserto e vazio como um deserto – mesmo que margeado pelo mar. Um mar verde oliva que ali é preto e branco e que tem seu peso gótico apresentado pela velocidade robusta das ondas e também pelo sinistro delicado do som.
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Perdemo-nos por entre as ruas, no filme, labirintos de automóveis e espaços vazios, e somos guiados por estranhos que nada nos revelam que não a paisagem ao redor. Sempre aquele oco ruidoso, sempre um sinistro delicado, alucinação em p&p, como se uma febre em minha memória, tudo apresentado de modo mezzo onírico, com muita elegância e paixão. Ali, quando alguém nos emociona de verdade, é porque já não somos como espectadores, mas como cúmplices: estamos dentro de sua casa, ouvimos de perto sua canção predileta, sem mais informações acerca da pessoa – e como isso é bonito… Depois o Mar. Sábado à Noite é um documentário extremamente corajoso, porque extremamente poético. A opção por um ritmo aquático, marinho, com o tempo que por tantas vezes nos parece estanque, e também a ausência de falas, a ausência de silêncios (num impecável trabalho sonoro feito por Danilo Carvalho) enquanto o filme circula ao léu pelas ruas da cidade, não nos permite pensar sobre questões técnicas; sobre como ele foi realizado, quantas pessoas haviam naquela equipe e por quanto tempo tudo isso durou: É um instante capturado sempre e para sempre, é um amor revelado como um engasgo que se sobrepõe a outro engasgo e que segue em círculos, formando espirais até o infinito. Num breve espaço de tempo, muitos filmes foram feitos por esse grupo, circulando por festivais em diversos estados e países, com algumas premiações e bastante visibilidade, e o nome Alumbramento passou a existir como referência de um ótimo trabalho cinematográfico feito no Brasil, ajudando a construir um novo mapa para um novo cinema independente. Instituiu-se uma espécie de regime de cooperativa, então sempre havia um trabalhando na produção do outro, o que possibilitava a feitura de muitos filmes ao longo de um único ano, e também reforçava laços e lendas sobre o coletivo e seus relacionamentos. Quando Ythallo Rodrigues decidiu voltar para Juazeiro do Norte, sua cidade natal, e quando tudo no grupo era um estremecimento e muitos amores, Ricardo Pretti, Pedro Diógenes, Luiz Pretti e Guto Parente decidiram “buscar de volta” o amigo, homenageando essa amizade no importantíssimo Estrada para Ythaca, onde assinam juntos roteiro, direção e montagem, e também atuam. A cidade mística do sertão cearense, formada pelo político católico, o mitológico Padre Cícero, vira-se na Ythaca de Ulisses, e Ythallo, que tem as três letras iniciais de seu nome idênticas ao nome da cidade inventada (e qual cidade não o é?), vira-se, talvez, em Penélope, não a descrita por Homero, mas uma que habite na poesia de Konstatinos Kaváfis, sempre ele, e ajuda aos quatro amigos, os Ulisses, a inventarem sua mitologia particular, onde a 44
volta para a casa passa a ser a morte do companheiro e a trágica odisseia pelos mares um road movie que segue da margem em direção ao centro, ao sertão. Um filme que celebra não só a amizade, mas a amizade que compreende que a diversão não é a tolice e que é possível ser bonito e criativo junto. Um filme que celebra o cinema e também a feitura da arte como um caminho possível ou, como diz Pedrinho (na vida, não no filme), o único caminho possível. Um filme que nos lembra ou nos revela que pode um filme ser contemporâneo sendo poético e silencioso sem que seja necessário perder o humor – e manter o humor sem que seja preciso gritar ou parecer rude ou meramente idiota. Um filme que mostra o quanto bebemos e o quanto nos divertimos juntos, antes de criarmos juntos, durante nossas criações e após, enquanto morremos de medo de nossa própria coragem, nos expondo assim, nos exibindo assim, nos artificializando assim, na tentativa de falar do mundo fazendo arte a partir de nós mesmos. Nosso universo é o mundo e o mundo somos nós. Nós, porque estou com eles, faço parte disso. Nós, porque viemos do nada e decerto voltaremos para lá, cedo ou tarde, mas no caminho tocaremos em tudo, e tentaremos com afinco modificar o que nos for possível. Fortaleza, no oposto do Rio de Janeiro ou de Recife, é uma cidade que se mata a si própria diariamente, destruindo a cada dia o que se era no dia anterior. Socialmente, isso pode ser mesmo um horror ou no mínimo um desastre. É realmente problemático um ambiente onde quase nada que não seja Deus e consumo possa permanecer (nossa “tradição” é sempre uma “cultura imediata” que não é mais que Deus se recriando a todo instante e em quase todas as coisas). No entanto, em casos como esse, ao menos para um artista esse vazio e essa vastidão sem precedentes e essa barbárie perene mantida politicamente pode ser e deve ser a motriz da libertação. Aquele que não tem o que conservar muito menos precisa ser um conservador, então este tudo pode. E é assim. Podemos tudo. Nossa miséria nos permite. E é do umbigo do deserto, para lembrar Caetano Veloso, que a Alumbramento apresenta suas belezas, repletas de rigor, sim, e decerto diversas irregularidades, e é daqui que sai nossa arte e nossa gana – nossa grana, quando vier, que venha de todos os lugares, claro. Mas é daqui, dessa cidade de arquitetura feia e hostil, que gritamos para o mundo e que existimos. Juntos, não importa onde.
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alguns pensamentos soltos1 luiz pretti “Acordo tarde (passa das 10) e cago cedo. Não estava à espera que um cagalhão de cordeiro se avolumasse durante a noite, até ganhar as dimensões de um cagalhão de bode. Difícil e espremida espiação a deste ciclo digestivo. À laia de último retoque, e para que seja maior o inesperado, deposito uma caganita no fundo da sanita, após o que dou tarefa por concluída. Passo de seguida à habitual lavagem do cu, este aliás levemente dorido pelo esforço de o esgarçar. Começar um dia em que o nosso próprio cu nos dá vontade de rir (e uma vontade de rir ligada à uma vontade de cagar) é no mínimo, auspicioso”. João César Monteiro O que é inspirador em João César é o fato dele saber rir de si mesmo. *** Na internet assisto a alguns vídeos da nova geração do cinema filipino. Três vídeos do John Torres me impressionam bastante. Ele consegue ser sentimental sem ser piegas. É um cara que ainda acredita na revolução, mas a revolução está acontecendo no íntimo dele. Me parece, pelas entrevistas que eles ainda estão num processo de descobrimento do cinema deles. É interessante que eles pregam um cinema filipino, mas os poucos filmes que eu pude ver percebe-se logo que são de cineastas muito distintos. Não dá pra dizer que existe um estilo comum entre os filmes. Um cinema de guerrilha, talvez seja um ponto em comum — 1. Publicado originalmente em 4 de setembro de 2012, no site da Alumbramento Filmes: www. alumbramento.com.br. 46
entre os filmes. Pra eles fazer cinema é sinônimo de ir pra rua e lutar contra um sistema que oprime as expressões artísticas livres que eles estão querendo realizar. Essa liberdade com a qual eles fazem os filmes é empolgante e me faz pensar em alguns filmes feitos em Fortaleza. Sem dúvida temos pontos em comum, que vão além de sermos terceiro mundo. Eu diria que é a falta de uma tradição cinematográfica. Na verdade tem uma coisa que fica patente: esses cineastas não se referem à história do cinema. Antes a televisão, a cultura popular e a internet. Os filmes parecem surgir do que eles estão vendo no mundo, ou os filmes são produtos do mundo. Eles parecem ser todos bastante jovens, apesar da maioria já não ser. Resta saber se eles vão saber rir de si mesmos. *** Fazer cinema é ficar bêbado, mas pra ficar bêbado tem que saber beber. *** Fazer cinema é meditar. Meditar é escutar Bach. *** Numa cena de “O diabo provavelmente” a personagem do garoto que quer morrer diz para um psicanalista “se o meu objetivo fosse lucrar todo mundo me respeitaria”. *** Fazer cinema é um ato de doação. Do cinema a gente não pode tirar, ao contrário, só podemos oferecer, os nossos humildes serviços.
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o livro livre1 alexandre veras Abrir o mapa da cidade, conhecer seus nomes, medir distâncias, escolher pontos, juntar os cúmplices, dividir equipes, definir estratégias, traçar uma rede, marcar datas, concentrar as forças e só aí, lançar o corpo por entre a cidade, ir de um ponto a outro atualizando as linhas de estratégia, num mesmo movimento, invisível, com gestos mínimos. O artista como cartógrafo. Cem livros brancos, com cem páginas em branco, distribuídos em cem pontos da cidade, por dez pessoas divididas em cinco equipes. Para cada movimento um pequeno registro, cem vídeos de um minuto, em cada um, um livro deixado. Em cada livro uma mensagem, continue o livro, escreva, desenhe, deixe algo na superfície branca e depois deixe o livro, escolha um lugar e abandone-o. Continue o movimento do livro. Cem dias se passarão e cem pessoas poderão encontrá-lo e depois abandoná-lo novamente. Dez mil encontros e desencontros, dos quais só saberemos pelos vestígios deixados nas páginas em branco. Para o último encontro, um pedido, abandone-o neste endereço, não se diz o que é o lugar, apenas uma rua, um número e uma data. O artista como sismógrafo. Esse é o movimento do livro-livre. Mas há outro. O movimento dos cúmplices. O que fazer nesses cem dias? Esperar? É preciso continuar o movimento do livro numa outra série, criar um duplo do movimento das páginas preenchidas dia a dia. Para cada dia passado, um minuto de vídeo. Dez pessoas, produzindo a cada dia um vídeo de um minuto, durante cem dias. Dez vídeos de cem minutos. O artista como arquivista. Há algo de profundamente romântico nesse gesto. Arremessar algo ao mundo e esperar pelo eco, provocar uma variação, arriscar perder-se nessa variação, apostar que um gesto mínimo pode alterar a ordem do mundo, — 1. Texto escrito por ocasião da ação coletiva Livro Livre (2008). A respeito desse projeto, ver neste catálogo o texto “A coexistência alumbrada”, de Celina Hissa. Agradecemos a autorização da republicação no catálogo. 48
acreditar “que a vida é a arte dos encontros, embora haja tantos desencontros na vida”. Mas há também o prazer de um puro gesto e o encantamento com a possibilidade desse gesto, um arremesso. Sim é preciso atravessar a cidade, distribuir os pontos. E de cada ponto achar a ponte para o arremesso. Mas qual o sentido do arremesso? Arremesso em direção ao “outro”, porque o outro é o próprio sentido desse arremesso. Um arremesso que começa sempre antes e só finda depois, uma prolongação do gesto, uma garrafa ao mar, um livro livre cuja única mensagem é o convite a um novo arremesso. Arremesso acrescido de uma nova dobra, pois todo livro é um livro de dobras que se desdobram em cada arremesso-livro. Um livro-arremesso que se desdobra em duas linhas. Uma que segue sempre e não sabemos nunca se volta, outra que já segue voltando, como se cada arremesso comportasse dois sentidos. Um que vai em direção ao “outro” e outro que volta em direção a quem fica. O arremesso aciona duas séries. A primeira uma série louca, imprevisível, regida por Aion, senhor das intensidades e das bifurcações, a outra com as marcas de Cronos, senhor das distribuições temporais, deixadas como vestígios em cada vídeo realizado por cada um do grupo, dia a dia, durante cem dias. Da primeira série, que segue as derivas do livro, talvez nunca haja retorno, e talvez seja melhor assim, pois pesará sempre sobre quem volta a dúvida se a viagem foi longe o suficiente, chegando àquele ponto em que voltar é não ter arriscado ir mais. Aqui a perversão seria achar que o trabalho só se resolve se os livros voltarem. Cada livro arremessado rompe o Fio de Ariadne, e quando se rompe o fio, perder-se volta a ser a razão do labirinto. Teseu-livro não mata mais o Minotauro e sai glorioso, mas desaparece como o capitão Ahab, que nunca pôde evitar ir mais além, e ser devorado por Moby Dick, a imensa baleia branca. A questão aqui é se teremos uma narrativa possível a partir dessa viagem de onde não há regresso. Esse foi sempre o dilema da narrativa, quem poderá narrar quando a viagem é sem volta. A narrativa da própria experiência sempre estará sobre suspeita, pois quem volta para narrar talvez não tenha ido o suficiente, mas como converter a experiência em narrativa se não há volta? Da segunda série, ou dos que ficaram no cais é sempre possível dizer que a viagem nunca é apenas dos que partiram, pois quem fica, continua e quem aposta no arremesso, aposta na volta do arremesso sobre si, como se a linha 49
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que volta nos levasse a continuar a história. A exposição que encontramos aqui traz a produção realizada nas variações dessa segunda série. Livrodispositivo, que aciona linhas de fuga, de ruptura, de expressão. No entanto há um convite que marca o início desta viagem, uma data marcada para a volta. Um desejo de ter nas mãos o livro-narrativa com os vestígios da viagem. Um jogo com o acaso, um desejo de aproximar as séries. Esta exposição celebra isso: o encontro com o imponderável, a alegria de inventar relações, de inventar a si e ao mundo. A vida como Livro-Livre. -Nãodeixeapetecacair!Dizolivro-arremesso-dobra-vestígio-dispositivo-livre.
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sobre os diários de ivo beatriz furtado Os “Diários” de Ivo Lopes, filmes realizados em pequenos rolos de 16mm, são anotações sobre o fazer cinema, sobre os encontros que esse fazer proporciona, sobretudo, com o próprio cinema. Um dos rolos, “Barlavento” (2013), traz já no próprio nome um jeito de dizer a Glauber Rocha, de “Barravento” (1962), o que a Alumbramento vem fazendo com o cinema meio século depois de seu primeiro filme. Barlavento é um termo náutico que diz sobre a direção com que o vento sopra em uma embarcação. É quando a situação para navegar é favorável e se pode dizer então de “ventos a barlavento”. Não que Ivo Lopes e a Alumbramento estejam escrevendo em filmes sobre tempos exatamente favoráveis. A abundância do bons ventos que aparecem em todos os rolos dos “Diários” é muito mais sobre a força de realizar o bom cinema, apesar de tudo. Ivo Lopes, ao convocar “Barravento” para dentro de um dos seus “Diários” – “Barlavento” – explicita seu interesse com o que o cinema novo brasileiro deixou como legado para essa nova geração de realizadores. Em “Barlavento”, um grupo de amigos de cinema se reúne na fazenda “Desterro”, interior do Ceará, para colocar em movimento pequenos artefatos para produzir ventos e sons. “Barravento”, de Glauber, de 1962, conta sobre uma comunidade de pescadores, na praia de Buraquinho, na Bahia, descendentes de africanos, e o retorno de Firmino, após um tempo de estudos em Salvador, para livrá-los de suas crenças e escravidão usando meios diabólicos. Os ventos, os que produzem violência e os que reúnem amigos, são os responsáveis pelas camadas de tempo que se acumulam entre Ivo e Glauber, entre a comunidade de pescadores e a comunidade de jovens cineastas. Para a gente do mar, barravento é a mudança do tempo. No samba de roda é a troca do verso. É, ainda, o ritmo e o toque sincopado de atabaque usado na capoeira, no candomblé e na umbanda. O toque predileto de Xangô, é o 52
orixá cultuado pelas religiões afro-brasileiras, considerado o rei da justiça, dos raios, dos trovões e do fogo. Os “Diários” de Ivo Lopes fazem o vento soprar devagar, os sons que acompanham as imagens ou as sobrepõem, vêm das guitarras de Fernando Catatau, das ranhuras da sua própria experimentação com as cordas. Suas imagens são delicadas brincadeiras com a sobre-exposição das luzes e sobre a fragilidade da película envelhecida e com cheiro de passado, apesar de feito do tão próximo. Algo do inapreensível fica ali impresso, como na sequência em que Jean-Claude Bernardet aparece sentado numa poltrona vermelha, entre um sorriso e uma fala sem que o áudio possa chegar até nós. Fica aqui a impressão de que nos escapa algo de muito importante de uma conversa informal – entre amantes do cinema e/ou entre um mestre e alguns dos seus admiradores. Não porque não possa ser revelado. De tão suave e grandioso, não tem dimensão, é maior, não pode ser narrado. Fica um fragmento da imagem, uma lembrança banhada pelo tempo. Ivo Lopes faz com seus “Diários” uma obra de pequenos filmes continuados. O primeiro deles tem por título “Desterro Session”, resultado de mais um desses encontros entre um grupo de amigos que faz do cinema uma vida, um modo de habitar o mundo. “Desterro” é a mesma fazenda onde foi filmado “Barlavento”, também a fazenda onde Gláucia Soares, realizadora da primeira formação da Alumbramento, montou o seu belíssimo “Cidade Desterro”, filme de despedida dos amigos, da cidade de Fortaleza, antes de partir para Rio de Contas, na Chapada da Diamantina. “Desterro Session” faz referência direta a uma Jam Session, onde um grupo de músicos se reúnem para tocar em improvisações. Na Session de Ivo Lopes, vemos rostos, sorrisos, banhos de açude, conversas, todas em torno do cinema, para fazer cinema, para ver cinema: uma longa sequência, um grande lençol branco estendido na vertical, amarrado em duas árvores e a afinação do projetor para uma das exibições no cair de tarde. Cena que configura a história não apenas do mais recente cinema brasileiro, mas notadamente de um jeito de gostar de fazer em meio a um coletivo, para saudar o cinema, sua luz, seus movimentos, sua trajetória, suas inquietações. Cenas de um cinema marcado por “Walden”, “Lost, Lost, Lost” e tantos outros filmes do nonagenário e maravilhoso mestre Jonas Mekas.
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Eu quero celebrar as pequenas formas cinematográficas, as formas líricas, os poemas, as aquarelas, os estudos, os esboços, as cartas postais, os arabescos, as conversas, os pequenos cantos em 8mm (...)Nesses tempos onde todos querem conquistar e vender, eu quero celebrar aqueles que sacrificam o sucesso social todos os dias em busca dos invisíveis, do pessoas, coisas que não fazem dinheiro, nem pão (...) Eu sou pela arte que se faz uns com os outros por amizade, por si mesmo (MEKAS, 2001, p. 9, tradução nossa)1.
É a permanência do cinema que essas imagens celebram. E, a um só tempo, são sempre uma proposta de mundo, como nos faz ver Jacques Rancière, quando diz de procedimentos formais que são quase sempre os restos de utopias que visam à redistribuição das formas de expressão sensível coletiva. É nesses termos que se pode apreender que o que interessa a esse tipo de cinema é a criação de uma forma de vida. Como ocorre em ralação a outros cinemas já distantes, tal como o projeto cinematográfico de Dziga Vertov, resultado de uma vontade de se constituir como laço comunitário. “Uma arte que se pensa como capaz de criar, por sua prática, o tecido de novas formas de vida”, diz Rancière.2 Os “Diários” estão sempre nesse movimento de diálogo com o cinema, com as eleições afetuosas de Ivo Lopes. Jonas Mekas, Dziga Vertov, Jean-Claude Bernardet, e tantos e tantos mais, são uma forma de articular espedaçados de imagens e sons que se infiltram uns sobre os outros e reconfiguram ordens de tempos e que ensaiam desconcertantes deslocamentos de contínuos históricos. Entre a permanência e o desaparecimento de modos cinematográficos, entre os cineastas, entre intempestivos, mais que continuidades há infiltrações e desejo de cinema, ininterruptos, que talvez só possam surgir se não houver qualquer renúncia daqueles que estão em permanente vontade de vida. Tal como Didi-Huberman nos ensina ao falar sobre a força dos vagalumes, afirmando que eles só desaparecem quando há uma renúncia, por parte de quem olha. É preciso que cada um faça o seu próprio deslocamento para o saber ver. Porque esses vagalumes do cinema não desaparecem nunca. “Diários” é essa inscrição da recusa na película, é o estado do nômade que nos permite sempre estar acompanhados das pequenas luzes que vagam impertinentes. — 1. MEKAS, Jonas. Déclarations de Paris/Statements from Paris, Les Cahiers de Paris Experimental 2, Paris, 2001. 2. RANCIÈRE, Jacques. Aisthesis: Scènes du régime esthétique de l’art. Paris: Editions Galilée, 2011. 54
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“Diários” trabalha com a imagem impura, com o riscado de pontas de películas. São espécies de filmes que Ivo Lopes faz quando está entre os seus, para olhar o seu arredor, para ficar mais próximo da câmera como matéria de criação. Apesar de seus, os filmes estão sempre no coletivo. As relações entre os que fazem a Alumbramento são totalmente costuradas pelas afinidades com um modo de cinema. Alumbrados, encantados por fazer cinema, desejosos de oferecer uma “Longa Vida ao Cinema Cearense”, este que é o título do curta dirigido pelos Irmãos Pretti, Luiz e Ricardo, que formula uma proposição de cinema a partir de uma citação de Ezra Pound: “Curiosidade. Conselho aos Jovens. Curiosidade”. “Diários”, de certa forma, pode ser entendido como apontamentos, um caderno de notas soltas que pensam o cinema feito entre amigos, lugares, aproximações. Como quem ocupa o lugar dos experimentadores de fluxos da vida, como Jonas Mekas pensou sobre a sua própria produção e a de seus companheiros que fizeram o cinema experimental americano. (...) Eram indivíduos únicos, que pacificamente, tentavam expressar a sua própria verdade cinematográfica por seu próprio tipo de cinema. É desnecessário dizer que, do ponto de vista estético, eles estavam descontentes com o estilo de Hollywood e os temas tratados. Em seus filmes, queriam romper o círculo fechado de “cinema como profissão”. Queriam fazer filmes mais pessoais. (...) Os pequenos orçamentos, as equipes reduzidas, e o lado visualmente e tecnicamente brutos, dadas as condições de filmagens novas e imprevisíveis, impulsionaram os cineastas a liberar seu trabalho das formas visuais e dramáticas convencionais, assim como também os forçou a buscar novos ângulos, e sob uma nova luz. (MEKAS, 2002, p. 23, livre tradução3)4.
— 3. “C’étaient des individus singuliers qui, de manière pacifique, essayaient d’exprimer leur propre vérité cinematographique, en faisant leur propre sorte de cinéma. Inutile de dire que d’un point de vue esthétique ils étaient mécontents du style d’Hollywood et des sujets traités. Dans leurs films, ils voulaient rompre avec le cercle fermé du “cinéma comme profession.”, ils voulaient faire des films de manière plus personnelle. (...) Les petites budgets, les équipes réduites, et le côte visuellement et techniquement brut imposé par les conditions de tournages nouvelles et imprévisibles poussèrent les cinéastes à libérer leur oeuvre des formes visuelles et dramatiques conventionelles, éculées, et aussi les forcèrent à chercher de nouveaux angles, et dans une lumière nouvelle”. 4. MEKAS, Jonas. Le Cinéma de la Nouvelle Génération – Jonas Mekas, Cahieres de Paris Experimental 8, Paris, 2002. 56
Não se trata de tecer comparações entre o “Diários” de Ivo Lopes e outros cineastas, nem de fazer analogias entre movimentos, mas de desterritorizar esses cinemas para transitar no que as obras de diferentes realizadores, como Jonas Mekas, acionam de novos cinemas – apontam na direção de um projeto estético e político implicado na defesa do próprio cinema. Guardar o cinema do do que destrói e destrói o mundo. Não propriamente e somente para reunir o mundo, seus pequenos paraísos familiares e amorosos, mas, assim o fazendo, resistir com o cinema, voltar-se para ele. Cada um dos “Diários” de Ivo Lopes é uma experimentação radical com o cinema em película, onde se pode perceber uma enorme liberdade com o fazer cinema. Exercícios livres, filmes de encontros, de busca por algo que acontece entre a imagem e o mundo, entre a cena qualquer e o que a película pode encontrar em suas variações de cor, de luz, de velocidade, de movimento. Um universo sem decupagem, sem raccords, sem eixo. Uma imagem que transita na relação do corpo do fotógrafo com a imagem em movimento, com a câmera na mão. É, finalmente, um estado de cinema que aprendeu com Robert Bresson, que escreveu para si mesmo, em “Notas sobre o Cinematógrafo”: “dedicar-me às imagens insignificantes (nãosignificantes)”.
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um cinema que nos implica1 janaina de paula “As distâncias somavam a gente para menos” Manoel de Barros
mínimos. acenos. contenções. sinalizações. balbucios. entornos. anotações. inacabamentos. precariedades. generosidades. gaguejos. ausências. pestejamentos. desimportâncias. distrações. fissuras. palpitações. vagarezas. cumprimentos. afetividades. roubos. levezas. fricções. paisagens. prólogos. espantos. docidades. rumores. observações. sensações. pensamentos. fendições. silêncios. fugas. intenções. proximidades. insistências. consistências. acordares. pequenas... Este texto se debruça sobre parte do documentário produzido no Ceará, na última década, cuja vida do realizador está na centralidade da obra. São reflexões que resultaram da minha pesquisa de mestrado, na qual elegi, como campo privilegiado de análise, três obras fílmicas significativas dessa produção recente. Dessas três me atenho aqui sobre duas: Casa da vovó (2008), de Victor de Melo e Cidade Desterro (2009), de Gláucia Soares. Em comum, esses e tantos outros filmes que atravessam a trajetória da Alumbramento trazem aspectos muito singulares da vida dos realizadores. Cada qual, no entanto, a seu modo, é capaz de mobilizar reflexões próprias que problematizam o campo do documentário: a diluição dos limites entre sujeito e objeto, o diálogo com as artes contemporâneas, o caráter ensaístico, instâncias narrativas mais fluidas que se contrapõem a um modelo sensóriomotor, influências de um processo de formação que se constitui atrelado ao — 1. Este texto parte de minha pesquisa de mestrado, realizada entre 2011 e 2013, no PPGCom da UFC, com o título: “Pequenos gestos de afeto: as implicações de si no documentário contemporâneo produzido no Ceará” (2013). 58
campo das artes. Não se trata de uma amostragem da produção cearense e, sim, de obras escolhidas a partir do que podem potencializar de pensamento acerca da vida como obra, dos processos de subjetivação, da composição da memória, dos afetos. Ao dedicar parte deste texto à Casa da vovó, feito inteiramente dentro da casa da avó do realizador cearense Victor de Melo, vem a questão: com que cinema se pode entrar nesse espaço? Que realizador é esse que entra, liga a sua câmera e a direciona para a casa onde nasceu e viveu até os 15 anos? Que casa – este lugar de intimidades, onde se cerram convivências em família, onde aparentemente nos apartamos do mundo, onde nos guardamos – é essa do filme? Que avó é revelada nessa figura que incidentalmente atravessa o quadro? Como esse realizador se coloca nessa obra que diz de um universo tão particular? Mesmo tentando resistir às classificações, esse filme me leva a afirmar, sob todos os riscos, a renovação do documentário, sobretudo, pelo modo como sentimos a presença do realizador, que observa e é observado, e que parece querer abolir mediações. Casa da vovó é o segundo trabalho autoral de Victor de Melo. Aos 17 anos, ele começou a sua formação em audiovisual no Alpendre, uma Organização Não Governamental que trazia como aposta um trabalho educativo atravessado por referências do campo das artes. O acaso de viver nas proximidades da Ong, na Comunidade do Poço da Draga, o levou aos primeiros contatos com as imagens em movimento. Ali, ele constitui uma rede de relações e passa a se interessar especialmente pela fotografia, de inicio fotojornalismo, na sequência fotografia de cinema. O realizador fez parte da primeira turma de alunos da Escola Pública de Audiovisual da Vila das Artes e passou por uma formação em ciclos envolvendo discussões acerca das imagens e a cidade, as narrativas, o corpo e a escrita. O trabalho sobre a casa onde viveu é resultado de uma experiência livre de realização, com quase nenhum recurso técnico ou financeiro – o que vai inseri-lo dentro de um padrão de produção “caseira”, que não é acidental. Victor decide entrar nessa casa de sua infância e adolescência absolutamente sozinho, sem equipe, sem recursos de luz e som, como o fez durante todos esses anos, apontando a sua pequena câmera digital para os objetos, as pessoas, o cotidiano, para o que se desenrola numa típica 59
residência de comunidade (dos que levam uma vida em comum), onde se tem uma matriarca e os parentes em torno dela, na materialidade desse espaço, no barulho que vem da vizinhança. Esse procedimento constitui um olhar de muita proximidade, uma câmera que é quase parte da família, que conhece cada cômodo e, no entanto, não tem a pretensão de construir uma imagem realista, sua intenção não é devassar aquela casa, menos ainda as vidas dos que moram ali. Vemos nesse despojamento um aliado, o rigor formal. Uma investida em planos e situações que se fixam na duração, com pouca ação, acontecimentos menores, derivas. Em Casa da vovó, o realizador é parte daquela casa. O seu cinema vai moldando aquele espaço e os que o habitam. A intensidade da presença das coisas daquela casa que Victor busca com a sua câmera, é uma intensidade da presença dele próprio. A imagem vai se constituindo das relações, de impressões, da memória infantil, das rachaduras na parede, de fotografias desbotadas, do som dissonante da TV. Corpos e objetos se dissolvem na paisagem, nem em primeiro plano, nem no esquecimento, apenas compondo a cena. Não há ênfases, não há dramatizações nos gestos, não há ressentimentos, nem nostalgias. Não há entradas nesse filme que sejam escancaradas. Ele não nos conta a história daquela casa, situando-a, onde fica, quantos cômodos, quem vive ali, quem viveu, o que fazem... Os personagens atravessam o quadro, entram e saem do plano, sem se importar com a presença daquela câmera fixa, sem se apresentarem, carregando isopor, lavando roupa no chão, estendendo-a no varal, fritando a carne do almoço. Plano fixo dentro do quarto. Imagem em branco e preto. No quadro, uma cama de lençóis desalinhados, roupas e livros sobre ela. A menina está sentada sobre a cama, ela chora, soluça, assoa o nariz no canto da blusa. Disfarça, resiste ao nosso olhar. Ela faz movimentos mínimos. Olha, desvia o olhar. Olha uma vez mais, coça a cabeça, carrega na expressão dramática de quem fora repreendida ou contrariada. A câmera a observa “de pé”, na altura de um adulto, complacente. A menina torna a baixar a cabeça, congelada na sua expressão de tristeza. O som é do ambiente exterior aquele quarto, das conversas, da trilha da novela que é reprisada no correr da tarde: “alegria do pecado tomou conta de mim...”. A menina olha mais uma vez e deixa escapar um sorriso (contido).
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A sequência faz sentir o realizador dentro do filme. Não seria possível à presença maquínica, de um olhar estrangeiro, arrancar aquele sorriso, selar uma cumplicidade mediada pelo enquadramento que parece concentrado em consolar aquela menina. A menina e o seu desconsolo é uma imagem que só acontece aos que estão expostos ao risco do real, sequer poderia ser prevista. Foi dada ao filme quase como um gesto de amor, um sorriso, o que veio por acréscimo. Mas estamos diante de uma vida dentro do plano que é devassada, exposta à presença do mundo e de nossos olhares no instante de um choro. O que então não o faz invasivo? É, no nosso entendimento, essa temporalidade difusa, que embaralha infâncias: a das crianças que hoje habitam aquela casa e a do próprio realizador que cresceu ali, de onde retira suas lembranças mais marcantes e alegres. Nesse sentido, o filme vai se abrindo em dualidades, entranhando o campo de uma dimensão do extracampo: a infância do realizador vivida naquela casa. No filme, o extracampo não está fora, mas dentro; faz-se notar por meio de seus rastros, que podem estar no modo como Victor decide filmar de tão perto, afetuosamente, as crianças da casa ou na maneira pela qual ele vai inserindo autorretratos desses primeiros anos de vida. Se, de um lado, a memória de infância é uma das principais articuladoras entre campo e extracampo, poderíamos identificar outras: a persistência da imagem em alguns objetos, referências de uma visualidade que ficou na memória e, sobretudo, no modo como o filme olha para fora, para a comunidade onde aquela casa recoberta de cal se situa. Em Casa da vovó, vários traços daquela localidade, do cotidiano e da cultura comunitária aparecem, sem dúvida, mas por atravessamentos na imagem. Seja na tradição religiosa de cultivar imagens dos santos da devoção, pequenos altares, o rádio ligado no culto, “entregando nas mãos de Deus” os infortúnios da vida. Seja na centralidade, imponência da teledramaturgia brasileira que, na verdade, é cativa em quase todos os lares do país; no filme, a paisagem sonora é cortada de uma ponta a outra pelo discurso incessante da televisão: novela, telejornal, programa policial, desenho animado, “Sessão da Tarde”. A cultura comunitária se revela ainda nessa conformação de família que vai aumentando, filhos e netos, e todo mundo passa a viver sob o mesmo teto. Arriscamos, por fim, uma hipótese: é, sobretudo, nesse risco do desaparecimento, que está o tempo inteiro dado para todos que vivem no Poço da Draga, que o real faz a sua inscrição de maneira mais contundente 61
em Casa da vovó. Nesse sentido, sente-se a presença de um outro extracampo, que tensiona a cena, na forma de uma violência intermitente, ainda que não se faça visível. Então, há um extracampo – a situação de precariedade da comunidade, o risco de remoção para áreas distantes – que ronda e pressiona o que está em campo. É no jogo entre passado e presente, na alternância da cor e do preto e branco, nesse desejo de voltar à casa das origens e marcar esse espaço com a feitura de um filme, na rostidade das crianças e é também na materialidade, no tempo em que a câmera se demora nas rachaduras da parede da edificação, que esse desaparecimento iminente toma corpo no filme. E a avó? Quem é esta senhora que empresta sua “patente” ao filme e, no entanto, mal se deixa ver? Zelita é o seu nome, embora a descoberta se dê somente no final do vídeo, quando sobem as cartelas de dedicatórias e agradecimentos. A sua presença no filme é fugidia, não há a personificação da protagonista. Ela abre e fecha Casa da vovó, mas sem performar, sem que provoque grandes variações na imagem com a sua presença. Na primeira cena do filme, ela está em pé, escorada no portão de entrada da casa, um vestido de corte reto abaixo dos joelhos, óculos de grau, adornando por assim dizer o muro branco que separa fisicamente a sua casa dos limites da rua estreita. De tão estática, a imagem poderia confundir-se com mais uma fotografia das que viriam depois, não fosse o vira-lata rajado que passa pela rua. A figura é de uma típica dona de casa, parada na porta, observando o movimento do mundo, a vizinhança. Poderíamos especular: mulher de origem simples, dona de casa, que criou filhos e netos, que cuida de manter a mesa farta de comida caseira, chão sempre encerado, que gosta de novelas, vai à missa aos domingos, uma verdadeira comandante do lar... Mas o filme não nos dá a ver nada disso, não desse modo explícito. Não há um único diálogo audível entre os frequentadores desta casa, a avó não nos fala, quase nem se deixa ver. Na cena final, ela está sentada no sofá, diante da televisão ligada (cena que retomaremos depois). No entremeio, ela varre o quadro em uma ou outra cena, desestabiliza a narrativa atravessando planos, se deslocando dentro de sua própria casa, indiferente à câmera, entendendo aquilo talvez como mais uma brincadeira com as imagens com as quais o neto tanto se diverte.
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É importante pensar a ausência da fala, do discurso e do diálogo nesse filme, abrindo mão de um dos recursos mais recorrentes no documentário que é a entrevista, deslocando o trabalho desse padrão dominante. Há uma tradição de filmar o idoso, o velho, na perspectiva de imortalizá-lo, dar voz, ouvir o que ele tem a contar do que viveu, guardá-lo do desaparecimento. No filme do Victor essa avó é muito mais imagética, ela está em cada objeto onde o plano perdura: nos ícones religiosos dependurados nas paredes, na TV ligada diuturnamente nas novelas como se nunca tivessem fim, na fritura que salta do fogão ligado, na mesa posta para a hora do almoço. São nessas imagens que se sustenta todo o discurso afetivo do menino diante da sua avó. Casa da vovó não dá a ver tudo. Não se trata de um filme que sai esquadrinhando a espacialidade da casa, não se tem uma visão da sua totalidade, do tamanho, de quantos cômodos tem, da sua posição geográfica na comunidade. São espaços, objetos singulares desta casa que o realizador escolhe para compor a obra: determinado ângulo da cozinha, o varal de roupas no quintal, a mesa de jantar, o portão que dá para a rua, o aparelho de TV, os quadros na parede. Então, não se trata do que a casa é. O que o realizador mostra é que vai constituir o que ela é. Casa da vovó é então muito intensamente atravessado pela questão da memória. Não se trata de conservar uma memória, mas de criá-la. *** Desterro: ação ou efeito de desterrar-se, perder o chão, ausência de um lugar onde se poderia parar... Cidade Desterro é o título do curta-metragem de 15 minutos, realizado em 2009, em que Gláucia Soares assina direção, montagem, quase toda a fotografia e música. Um trabalho que sela a sua própria partida, depois de 11 anos, da cidade de Fortaleza, que a leva para um destino incerto, pondo tudo em suspensão, ausente de chão. Gláucia Soares tem uma trajetória no cinema muito ligada à montagem, mas, no set atuou também como assistente de direção e continuista. Cidade Desterro é o terceiro curta da carioca que nos seus últimos anos vivendo em Fortaleza se dedicou a um trabalho de desenho de políticas públicas, pensando e articulando o projeto da Escola Pública de Audiovisual da Vila das Artes (equipamento público da Prefeitura de Fortaleza), criado em 2006, uma parceria entre a Prefeitura e a Universidade Federal do Ceará, articulado com a Associação Cearense de Cinema e Vídeo. Ela foi a primeira Coordenadora Geral da Escola e realizou Cidade Desterro depois da decisão de deixar o projeto, um outro deslocamento. 64
O filme, nos parece, é um modo de organizar em camadas essas rupturas, essas partidas, ora sobrepondo-as, ora desvelando-as. No curta, ela revisita a decisão de mudar-se do Rio de Janeiro para Fortaleza, 11 anos antes, e retoma o mesmo gesto ao deixar a cidade cearense, se despojando do que guarda de material, levando quase nada, “zerando” o percurso, partindo para uma pequena cidade italiana, Rimini, de que quase nada sabe, terra-natal do companheiro Mauricio, com quem se casou e vai seguir viagem. O filme da Gláucia começa anunciando esta partida. Na primeira cena, ela enquadra com uma câmera fixa o céu azul e narra detalhes do voo que a levará à Roma, é julho de 2009, o bilhete é apenas de ida. A realizadora toma esse filme como uma urgência dessa passagem, como algo que vai ajudá-la a transitar, a operar uma transformação radical na vida, que é sair dessa cidade. O trabalho artístico se constitui como forma de experimentar isso, viver efetivamente essa mudança, como um ritual de partida. Um processo já em andamento, já que quando ela finaliza o filme, já deixou Fortaleza, fez sua última mudança para o Desterro, a pequena fazenda de amigos no município de Canindé (a mais de 100 km da capital cearense), distante da cidade e de uma vida urbana, onde ela se refugia, se apropria do nome que vai batizar o filme, de onde tira o sentido para uma cidade que para ela já é desterro, não mais pertencimento. No nosso entendimento, só é possível acessar o filme da Gláucia se tomarmos dois momentos que são divisores: o processo, a estratégia que ela usa para fazer desse momento um filme, e o que daí resulta. A obra se faz efetivamente antes mesmo de ser filmada, quando ela resolve criar uma maneira de fazer o filme, que pode ser entendido como um dispositivo fílmico. Pois no filme da Gláucia, essa “maquinação”, esse artifício produtor de situações a serem filmadas, que institui condições para que o trabalho aconteça se realiza da seguinte maneira: ela convida oito amigas para que retornem com ela aos oito bairros onde morou em Fortaleza, quase todos próximos do mar, pelos quais não passava havia muito tempo. Uma amiga para cada bairro, uma relação mediada por uma câmera caseira e por uma caixa de sapatos recheada de objetos pessoais com os quais ela resolve “presentear” a cidade. Essas, digamos, combinações são aleatórias, não há necessariamente relação entre essas pessoas e os lugares escolhidos pela realizadora, o critério é retornar às casas onde ela morou, com o propósito de deixar pelos arredores objetos pessoais, provocando situações de retorno àquelas experiências e, com a ajuda das acompanhantes, filmar 65
esse gesto. É nesse sentido que é ritualístico: Gláucia reúne em uma caixa de sapatos coisas pessoais (cartas, discos, peças íntimas, livros, sapatos) para ir abandonando pelo espaço público enquanto as amigas vão filmando essas ações simbólicas de desapego, ao mesmo tempo, demarcações dos territórios onde ela viveu só, casou, descasou, frequentou a feira, sentou na calçada, aguou as plantas, festejou... Ressalte-se que não estamos falando de um dispositivo que é explicitado, a entrada dessas amigas no processo não é previamente acordado. Elas entram no contexto apenas para um encontro em um desses bairros, num local público, para uma “participação” no filme da Gláucia, sem acertos anteriores, só na chegada sabem que produzirão imagens desse gesto de deixar coisas pelo espaço urbano. A participação das pessoas, na verdade, é parte da busca por uma forma de escritura que possa dar conta desse momento, dessa tensão, de um filme que precisava ser feito. Ritualizar o retorno aos bairros em companhia de objetos pessoais, de amigas, pondoas no jogo, enredando-as nesse vivido, deixando que elas interfiram nos trajetos afetivos, foi a primeira aposta de Cidade Desterro. O que vamos ver em seguida, ao tocar o filme, é que essa estratégia de elaboração do trabalho artístico não se efetiva como cinema. Vai se efetivar como modo de produzir o filme, mas não é isso que veremos nas imagens. Quase nada do que foi gerado com esse dispositivo para que o filme se inicie pode ser visto. Desaparece na montagem. Isso diferencia Cidade Desterro de outras proposições entendidas como filme dispositivo, a exemplo de 33 (2004), de Kiko Goifman, quando ele estabelece um período, um percurso e uma estratégia para encontrar sua mãe biológica e o filme se circunscreve a essa busca, ou quando Cao Guimarães, em Rua de Mão Dupla (2004), explicita logo de início que o seu filme é resultado da experiência de trocar pessoas de casas e deixar que elas produzam imagens do que veem da vida intima do outro, além de narrarem o acontecimento. Há um extracampo afetivo no trabalho de Gláucia que está permanentemente tensionando as margens do quadro. Podemos perceber esse tensionamento nas escolhas que ela faz ao usar equipamentos amadores quase sem recursos técnicos, estabelecendo uma proximidade, talvez, reduzindo a interferência da câmera. Quando cria a figura de um narrador e assume a sua presença também como narradora, numa voz off, que vai acionando memórias desses anos capazes de afetá-la e afetar aos que a cercam. Quando filma de muito 66
próximo à materialidade de cartas de teor bem íntimo. Quando reivindica um jeito de filmar e de viver na cidade que é própria de um grupo de artistas, realizadores que produzem e se organizam em coletivos. Avançamos então para o que pode ser entendido como um segundo momento, o que se constitui como filme, e é determinado pela chegada à mesa de montagem. É a Gláucia montadora que prevalece, se ocupa de editar o trabalho com imagens de seus arquivos pessoais, um ou outro registro feito pelas amigas dos objetos sendo largados pelos lugares e um texto quase confessional. Um novo material bruto composto de sua própria errância, das idas solitárias e do que se guardou no tempo vai tecendo o filme. Ficaram para trás a repetição do gesto de ir deixando coisas pela cidade e os momentos compartilhados entre amigas, especialmente os mais ritualísticos como a reunião de parte delas para um banho de mar e a fogueira acesa no Desterro, na qual vão se queimando pertences de cada uma delas. O que se vê no filme é um único personagem, a própria realizadora, retornando aos bairros, em diálogo com fotografias, objetos, referências das casas, imagens em trânsito. A primeira possibilidade de entrada, de acesso ao filme em si, é por uma interferência absolutamente definidora que vem da montagem: Gláucia cria um texto que ela própria lê, na verdade, um texto que será o narrador dessa história e toda e qualquer imagem estará submetida a sua condução. O texto é muito relevante nesse filme, sobretudo porque, além de conduzir a trama, é através dele que podemos perceber de forma mais contundente a presença da Gláucia. Ela constrói a escrita como quem redige uma carta íntima, acena para uma despedida, faz um retrospecto a partir de suas anotações, pequenas digressões, sensações, lembranças. E grava o áudio no quarto. O modo de editar o material fílmico é bastante elucidativo. É uma edição caseira, onde o texto vai se construindo com as imagens, como um arquivo, e as decisões vão sendo tomadas numa lógica processual. O quarto da casa na fazenda Desterro é o local onde a realizadora edita o filme, o microfone é do seu próprio computador, os sons são impregnados de ruídos do entorno, em um tom de voz compassado, lento, em certa medida emotivo. A voz da Gláucia varre o quadro: “Fortaleza que me leva, leve. Aqui eu deixo tudo, entrego tudo ou quase. De Fortaleza, eu levo lembranças vagas, algumas decisões norteadoras, alguns amigos definitivos, o gosto pela terra, o sol de 67
julho, o vento de setembro, uma brisa leve quase sempre, luas e mais luas cheias, um aprender a viver junto, um aprender a viver só, o céu do meio dia, confrontos inúteis, enfrentamentos saudáveis, duas ou três doenças do corpo, uma ou outra ferida na alma, uma paisagem efêmera, um certo sorriso nos lábios e a certeza breve de que nada é para sempre.” A narração, ilustrativa do que ela vai levando na bagagem, corre em descompasso com as imagens do que vai deixando: no quadro, um chão de cerâmica em quadradinhos, uma sala nua do que parece ser uma casa antiga, no centro dessa sala uma caixa de sapatos embrulhadinha em tecido de bolas coloridas, fechada. As mãos da Gláucia, unhas com esmalte em tom café, tomam o plano por inteiro, com uma delas ela posiciona a câmera, com a outra dispõe o primeiro lote de objetos de que pretende desfazer-se. Cartas, uma delas escrita pela mãe, do Rio de Janeiro, em letra arredondada: “minha filha, os únicos retratos que achei que você pudesse lembrar de nós são esses que estou lhe enviando...”. Fotografia da placa de estrada indicando o sentido para Juazeiro do Norte, outra da expressão marcada de um velho homem do sertão, um massageador para as costas, livro de Hilda Hist, outra fotografia de alguém do passado, bilhete escrito em guardanapo de papel. A caixa aberta. CD de uma moça e um violão, a própria Gláucia em pose no set, páginas de um livro aberto: “No meio da escada virei-me para vê-la quem sabe pela última vez. Antônia estava sentada de pernas abertas, a saia azul turquesa enrolada na cintura. Estupefato, quase não acreditei no que vi, mas logo me refiz e fui descendo lentamente as escadas e abrindo a braguilha. Sentei-me nas suas coxas, eu igualzinho a uma tesoura aberta...”. Mais livros, mais poemas, mais músicas, mais fotos, mais textos escritos para a intimidade, um desenho infantil com uma pipa colorida no centro, dedicatórias, fotogramas, par de sandálias em couro, vai e vem das mãos, caixa aberta, fechada, abrindo-se novamente... A cena se encerra no piso vermelho, encerado, nu, sem vestígios daquele entrançado de objetos e lembranças. Cidade Desterro, ao impregnar o documentário de vida, de afetos, de riscos, desinstalam uma visão dominante de que o documentário existe para dar voz ao outro, sustentado na diferenciação entre quem filma e quem é filmado. Não há lugares assim tão estáveis. É o caso de questionar como isso se opera no trabalho da Gláucia. Percebe-se então que o vídeo não abre frestas que permitam ver claramente um único cômodo das casas em que a cineasta morou. O filme também não dá acesso, a partir da disposição do corpo da Gláucia nos planos, de uma imagem mais nítida, um close, uma expressão dessa realizadora que se põe no centro de sua própria obra. 68
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No filme, o instante em que ela contempla uma paisagem da sacada do edifício no centro da cidade é talvez onde mais nitidamente podemos vê-la. Essa é a tensão que o filme traz: ao mesmo tempo em que parece abrir-se para o particular, o mais íntimo, traz consigo uma não explicitude, quase nada é dito. A cena da realizadora olhando a cidade, o pôr do sol recobrindo os prédios, é de um ponto de vista. A câmera toma uma posição de contemplação em relação aos prédios, de dar a ver o que a realizadora observa, a um só tempo em que não se sabe que lugar é esse. A sede da Alumbramento, a produtora que reúne amigos para fazer filmes; o lugar da cena é tão importante, pois não é um lugar qualquer, fica no extracampo, embora seja um lugar fundamental para dizer de um modo de fazer cinema. Câmera-corpo da Gláucia, ela na sacada de um apartamento com vistas para a cidade, mirando seu tenebroso conjunto de arranha-céus. O vento ressoa no movimento de câmera, opera variações na imagem e no som. É um céu esmaecido. Gláucia começa um movimento de câmera, uma espécie de panorâmica conduzida pela rotação do seu próprio corpo, despretensiosa, sem cuidados no enquadramento, trêmula. Na paisagem, algo reconhecível, a torre da Igreja do Pequeno Grande. A câmera continua a girar. Esse giro executa uma rotação de 360° até voltar-se para a Gláucia. Não se encerra assim. Há um corte. Ela entra no quadro pela primeira vez filmada por alguém. Uma das amigas? Gláucia aparece na varanda do prédio, “escamoteada” pelo vidro da porta, em contraluz. Na profundidade de campo, um céu rasgado de vermelho pôr do sol. A moça se movimenta para deixar a varanda, fechar a porta, conduzida pelo narrador que anuncia: “Fortaleza me encantou e eu fui ficando...” Gláucia é magrinha, seu cabelo é longamente rebelde, preso, usa óculos. Ela salta para dentro da sala. Usa vestido na altura dos joelhos, sem mangas, carrega a caixa de sapatos e uma pequena bolsa a tiracolo. Caminha devagar na direção da porta de saída ou de entrada do apartamento. Um lugar que parece vazio, a imagem não nos dá muito sobre ele, apenas uma parede revestida de proteção acústica. Uma casa-estúdio? Ela tranca tudo. Fecha-se o ângulo na placa de número 701. Corte. Gláucia novamente na varanda, uma câmera muito próxima tateando seu cabelo marrom que vai dourando pelo reflexo do sol. Pela primeira vez temos o seu rosto, embora apenas de perfil. Padrão recorrente nas escassas aparições da realizadora. Não há no filme qualquer troca de olhares diretos, um corpo com seus contornos nítidos, um rosto, uma expressão que venha capturar o espectador, o que frustra qualquer 70
desejo de identificação. Satisfação negada para nossa pulsão escópica. São nas mãos que se percebe, além da voz, a sua presença. Gestos rápidos, de deixar objetos, fixar coisas nos arredores das residências. São nos diminutos detalhes que ela vai fazendo suas pequenas aparições: nas unhas roídas e coloridas, nos dreadlocks amarelados pelo sol, no perfil que revela um traço esguio e os óculos de hastes finas, a ponta do vestido preto esvoaçante e em uma câmera muito próxima que vagueia de um lugar a outro. Seria o caso de se perguntar o que estaria em jogo no aparente paradoxo posto no filme entre não se deixar ver - expondo-se apenas em fotografias antigas, na contraluz, sorrateira, riscando as cenas – e um texto que é da ordem das sentimentalidades. Talvez seja seu modo de tentar escapar do risco da super exposição, privilegiando uma certa atmosfera das sensações, abrindo apenas frestas para essa sua passagem que ainda é processo. Há no filme, como o percebemos, uma imagem que sintetiza o que estamos querendo dizer: em Sabiaguaba, um dos últimos endereços da Gláucia - o que mais perto se aproximou de uma vida comunitária, interiorana, casas de portas abertas e hortas nos quintais -, um balanço artesanal, feito de pneu e cordas, preso à árvore, ainda dança, vai e vem apesar de não haver mais ninguém ali. Apenas aquela imagem em branco e preto, poética, e uma interferência sonora instrumental. Vestígios de presença, do vivido, do que está vívido. Já no finalzinho de Cidade Desterro, uma variedade de rostos toma a cena pela primeira vez. Até então o que se via era a foto de alguém espaçada aqui e ali. Essa sequência vem de um corte mais marcado, privilegiando fotografias em branco e preto de um momento muito especial da vida da realizadora, que vão se sobrepondo lentamente, intervindo na velocidade do filme, como se ali pudesse estancar o tempo. É a fotografia como presentificação de um sentimento, embora o retrato em branco e preto já traga em si a ideia da memória. O filme, aliás, a todo momento, põe em relação cinema e fotografia. São dos registros fotográficos de tempos idos que a realizadora vai reconstituindo afetivamente, os onze anos em que viveu em Fortaleza. Na obra, é possível perceber que a imagem fixa vai num contínuo, perdendo o seu caráter de objeto guardado na caixa de sapatos, animando-se como vestígios de uma vida. Ao final, é quase como se pudéssemos estar naqueles lugares. O 71
cinema de certa maneira está sempre questionando os efeitos da fotografia, dando-lhes potência, pensamento e delírio. É dessa memória fotográfica que a realizadora vai inventando um presente, sem se apegar ao que passou. Quando decide fazer um filme sobre sua partida de Fortaleza, transitando pelos bairros, seguindo as coordenadas de um mapa afetivo próprio, Gláucia vai encontrando no trajeto, corpos que compõem uma relação com o seu, capazes de afetá-la, ora aumentando, ora diminuindo a sua força de existir. Avenida Beira-Mar, Rua Antônio Augusto, Rua Torres Câmara, Avenida Senador Robert Kennedy, Rua Paulo Mendes, Alameda das Extremosas, Rua Jaçanã, Rua Visconde de Sabóia. No filme, a circulação de uma cena a outra se faz ao nomear as ruas onde a realizadora viveu. Então, o filme encontra um delicado modo de passagem entre os lugares, um transitar que é feito pelo nome dos logradouros, mas, no entanto, nomeá-los é apenas um modo de trazer à cena a experiência de encontrar sensações, silêncios, intenções, lembranças. Nesse ir e vir, os afectos vão formando combinações singulares, ambíguas, continuamente recriadas. Banca de revistas. Janela aberta para gibis, revistinhas, almanaques e penduricalhos de todas as cores. O dono da banca lê alguma coisa, cabeça baixa, cabelo meio grisalho. O lugar é superfície para mais uma intervenção de colagens, um postal e uma carta, Gláucia vai delicadamente friccionandoos. Ângulo aberto, a banca se mostra por inteiro: Banca 2000. Goteiras denunciam a recente passagem da chuva. O menino escorado no muro observa. Corte. Câmera tateando a parede da Alameda das Extremosas, 157, é de ladrilhos brancos com pequenas curvas em rosa. Nenhuma visão interna, nem pelo gradeado sinuoso dos portões de ferro brancos. Um pagode parece saltar de um rádio: “pode acreditar, eu te fiz chorar...” Mais um corte. Praça da 2000, escorregador em tons de amarelo e vermelho, suporte para mais uma foto de um set de filmagens. Gláucia narra: “Alameda das Extremosas: é o nome da ruazinha sem flores, mas, com muita alma. Pão quentinho, amigos e muitos móveis, feira todas as sextas...”. Fortaleza em Cidade Desterro é horizontalizada. Quase todas as moradias do filme são casas, de muros baixos, de vizinhanças reconhecíveis, de pouco trânsito, de um ritmo mais lento. É uma cidade que vem sumindo da paisagem, embora ainda seja comum a tanta gente, hoje mais verticalizada, encastelada e promotora de esvaziamento do espaço público. No seu filme, a realizadora quer se reconciliar com esse lugar com o qual travou tantos 72
embates, ao resistir a um modo de vida que privilegia os arranha-céus, ao se dedicar a um cinema que não tem o propósito de entrar num circuito e, sim, fazer do ato de filmar um embate com a própria vida. Marcelo Ikeda2 (2011), ao pensar sobre a produção cearense que em comum busca um olhar sobre a cidade, aposta em uma geografia não apenas física, de relevo, mas especialmente humana: “ou seja, a própria ossatura da cidade reflete e é refletida nos modos de ser de quem habita esse espaço. A cidade é um corpo. Um corpo que cai. Um corpo que fala, também através de seus silêncios.” Habitar a cidade no filme da Gláucia é se deixar levar por todas essas relações, as atmosferas, os movimentos que tomam as imagens de um mapa afetivo. A cena derradeira é azul. Pela paisagem que se abre na janela do carro, Gláucia vai se dirigindo rumo a um aeroporto internacional qualquer. As imagens se borram, são trêmulas. Fortaleza, 27 de julho de 2009. Última chamada para o voo 735, Italy.
— 2. Em: IKEDA, Marcelo e LIMA, Dellani. Cinema de garagem: um inventário afetivo sobre o jovem cinema brasileiro do século XXI. Rio de Janeiro: Editoria Pórtico Silvestre, 2011.
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do fundo dos baús para a tela de cinema1 maíra bosi As casas das avós são, tradicionalmente, locais de encontro e onde estão armazenadas verdadeiras relíquias familiares. Das fotografias expostas em destaque na sala de estar às cartas e aos documentos acumulados em armários e gavetas, vestígios de várias gerações costumam estar ali reunidos e conservados. Foi, justamente, em uma visita corriqueira à casa de sua avó, em Fortaleza, que o diretor de Supermemórias, Danilo Carvalho, teve seu interesse despertado pelo Super-8. Na ocasião, em meados dos anos 1990, ele ganhou um rolinho de filme deste formato, rodado por seu tio na década de 1970. Danilo ainda não sabia que aquele seria o primeiro item de uma grande coleção que, anos mais tarde, viria a formar o material bruto do curta-metragem Supermemórias. Entretanto, a ausência de um equipamento de projeção adequado adiou a descoberta das cenas contidas naquele rolinho. Isto porque, apesar de o Super-8 ter sido a tecnologia preferida para uso amador2, entre os anos 1960 e 1980, o formato tornou-se obsoleto com o advento do VHS. Na tentativa de sanar sua curiosidade, Danilo examinou repetidas vezes, contra a luz e com o auxílio de uma lupa, as imagens impressas na estreita película — 1. Esse texto parte da pesquisa de mestrado realizada a partir dos filmes Super-8 que formam o material bruto de Supermemórias. Desenvolvida entre 2014 e 2016, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ, tal pesquisa deu origem à dissertação “Filmes de família e construção de lugares de memória: Estudo de um material Super-8 rodado em Fortaleza e de sua retomada em Supermemórias”. 2. Dados o relativo baixo custo e a facilidade de manuseio das câmeras Super-8. No intervalo das duas décadas em que esteve, em termos, popularizada, essa tecnologia possibilitou a produção de um volume jamais visto até então de filmes amadores e de família. 74
do filme que ganhara. Até que, meses mais tarde, finalmente, ele conseguiu um projetor emprestado e pôde devolver àquelas cenas o seu movimento. Na sessão de “redescoberta”, promovida para sua família, Danilo encantouse por tudo aquilo que envolvia o ritual de projeção Super-8: o barulhinho típico do equipamento em funcionamento, as cores da imagem, as bordas desfocadas do quadro, e, acima de tudo, a reação de seus familiares às cenas exibidas. O diretor percebeu que as imagens projetadas na parede catalisavam um emocionante jogo de rememoração. Entre risos e lágrimas, o pequeno público partilhava lembranças das situações, locais e pessoas que apareciam naquelas cenas. Essa primeira experiência de projeção Super-8 levou Danilo a perceber que os filmes de família produzidos neste formato poderiam representar um manancial de lembranças adormecidas. Afinal, são filmes cuja produção fora motivada, sobretudo, pela possibilidade de reter – na materialidade da imagem – um momento efêmero e especial para que o mesmo pudesse sobreviver ao tempo e ser revisitado no futuro. Paradoxalmente, a obsolescência do formato Super-8 tornou inacessíveis tais imagens, condenando-as ao esquecimento provocado por aquilo que nos convém chamar de exílio técnico. Ou seja, apesar de terem mantidos seus filmes guardados ao longo de décadas, muitas famílias vêem-se, atualmente, impedidas de assisti-los por não possuírem mais um projetor Super-8. Impactado pela sessão promovida para sua família, Danilo viu-se completamente apaixonado pelo Super-8 e pela possibilidade de trazer à tona mais imagens do passado. Decidiu, então, adquirir seu próprio projetor (que também viria a ser o primeiro de muitos) e oferecer sessões para amigos e parentes que ainda possuíssem filmes deste formato. Durante tais projeções, Danilo testemunhou diferentes famílias se emocionarem diante da redescoberta de suas próprias imagens e percebeu processos de rememoração parecidos com aquele de sua própria família ao assistir ao filminho de seu tio. Além disso, o contato com acervos fílmicos Super-8 de outras famílias de Fortaleza permitiu que Danilo notasse inúmeras semelhanças quanto à forma de filmar e aos temas escolhidos (por exemplo, celebrações e viagens). Além disso, o diretor também percebeu que tais filmes não representavam apenas memórias familiares, mas também registros singulares do passado recente da cidade que lhes serviu de pano de fundo. Danilo se viu, então, curioso sobre como os filmes de diferentes famílias poderiam se relacionar. Essa curiosidade, somada à sua intuição 75
de que se poderia acessar uma memória de Fortaleza através de imagens produzidas por seus habitantes, deu início à longa gestação do que viria a ser o curta-metragem Supermemórias. Quando decidiu, enfim, realizar um filme sobre Fortaleza constituído, exclusivamente, por imagens Super-8 oriundas de acervos familiares e amadores dessa cidade, Danilo ainda tinha acesso a poucos filmes deste formato (pertencentes a alguns de seus parentes e amigos). Portanto, o primeiro passo desse processo criativo foi promover uma chamada pública na cidade por filmes de família em Super-8. Através da imprensa local e de materiais especialmente elaborados3 para essa divulgação, Danilo convidou seus conterrâneos à colaboração coletiva com esta obra. Nessa etapa de coleta, Supermemórias tinha como subtítulo Mais uma memória para uma cidade sem lembranças4, deixando claro o incômodo que dava origem à sua produção. Portanto, ao convocar para sua obra imagens familiares pertencentes a habitantes dessa cidade, Danilo chama atenção para uma interface entre memória particular e memória coletiva. Como resultado dessa chamada pública, mais de 40 diferentes famílias atenderam ao convite de Danilo, emprestando-lhe seus acervos de filmes Super-8. Dessa forma, entre os anos de 2007 e 2008, foram reunidos cerca de 400 rolinhos que passaram a compor o material bruto de Supermemórias. Na etapa de coleta, Danilo conheceu grande parte desses doadores e algumas das histórias por trás de cada filmagem. Além disso, o diretor decidiu digitalizar, pessoalmente, todo o material bruto5. Tais fatores foram responsáveis pela relação afetiva que Danilo estabeleceu com os filmes de família recebidos, mesmo antes de iniciar o longo processo de montagem – compartilhado com o montador e amigo Frederico Benevides. Dessa forma, ainda que motivado pelo desejo de construir uma memória para Fortaleza, o diretor assume uma postura bastante pessoal nas escolhas de montagem desse curta, submetendo-as ao seu afeto e às suas lembranças — 3. Os materiais elaborados foram: uma série de seis cartões postais estampando fotogramas de filmes Super-8 da coleção de Danilo (distribuídos em diversos pontos da cidade) e um site com informações sobre o projeto que também funcionava como canal de comunicação com os colaboradores: www. filmesupermemorias.com.br. 4. Que, entretanto, não se tornou o subtítulo do filme. Durante a montagem, Danilo decidiu substituí-la por Cabeça, olho, coração, em referência à célebre declaração do fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson. 5. A digitalização desse material era fundamental para que se pudesse realizar a montagem em uma ilha de edição não-linear, preservando as películas originais. Além disso, a principal contrapartida oferecida aos colaboradores do projeto era uma cópia em DVD dos filmes Super-8 emprestados. 76
particulares. Aqui, cabe destacar que a sequência de abertura e a sequência final de Supermemórias são, inclusive, compostas por imagens extraídas do filme Super-8 que registra o próprio nascimento de Danilo. Cabe frisar que, produzidos, originalmente, para consumo familiar, esses filmes de família Super-8 não têm qualquer compromisso com regras de linguagem cinematográfica. Sua principal característica estética, aliás, é o fato de a câmera se comportar como parte da cena, assumindo o corpo e revelando a participação do cineasta amador no acontecimento filmado – os personagens em cena olham, sorriem, falam para a câmera, interagindo, na verdade, com quem está por trás dela. Portanto, nos filmes que compõem o material bruto de Supermemórias, notamos que a câmera raramente aponta para a paisagem urbana – a não ser, é claro, quando são registros feitos em passeios e viagens. Entretanto, à revelia da intenção do cineasta amador, a imagem de Fortaleza aparece infiltrada nesses filmes de família, ainda que em segundo plano e pelo que vaza do assunto central. O contraste entre algumas cenas desse material fílmico e o aspecto atual da cidade evidencia a velocidade e a intensidade das transformações visuais que Fortaleza vem sofrendo – não raro, suas cenas mostram lugares, construções e até mesmo costumes locais que, ao longo das últimas décadas, transformaram-se ou desapareceram por completo. Portanto, quando lançamos um olhar do futuro para esses filmes do passado, somos capazes de atribuir-lhes valor documental e, inclusive, vislumbrar a memória de Fortaleza em suas imagens. No processo criativo de Supermemórias, a montagem cumpre o papel de deslocar os filmes de família Super-8 de seus contextos originais para que eles ganhem estatuto de testemunhas do passado de Fortaleza e possam, assim, servir como peças à construção de uma memória coletiva. Dessa forma, as imagens retomadas pela montagem de Supermemórias, inevitavelmente, têm seu sentido reelaborado e o contraste com seus respectivos filmes Super-8 originais nos mostra que elas perdem parte daquilo que têm de específico (e particular) em prol da elaboração de uma narrativa pública. Uma das sequências iniciais de Supermemórias, por exemplo, mostra jovens pulando da Ponte dos Ingleses em direção ao mar, onde praticam manobras de carretilha, no que parece ser um fim de tarde qualquer na Praia de Iracema. Entretanto, ao examinarmos os rolos Super-8 originais, descobrimos que eles registram um evento esportivo específico – o Ponte 78: I Campeonato Cearense de Carretilha. Não por acaso, Danilo deixa de fora, justamente, as 77
cenas que identificam o contexto em que se deram essas filmagens originais6 e seleciona aquelas mais “genéricas”, que representam uma prática corriqueira naquele cenário da cidade. Afinal, tais pulos para o mar se relacionam mais com a memória dessa cidade do que um campeonato pontual. Em outra sequência, é a camada sonora7 que nos convida a refletir sobre a montagem de Supermemórias como processo orientado pelo desejo de construir memória. Composta por uma série de cenas que mostram famílias reunidas em varandas e quintais (ou seja, ambientes intermediários entre o espaço público e o espaço privado), a trilha sonora dessa sequência é a cadência ritmada por um triângulo. Na paisagem sonora de Fortaleza, esse som remete aos tradicionais vendedores ambulantes que circulam a pé apregoando, através do toque desse instrumento, a venda de biscoitos conhecidos localmente como “chegadim”. Portanto, quando Danilo decide adicionar às imagens de acontecimentos particulares um som que pertence ao imaginário coletivo dessa cidade, ele complexifica a relação entre memória pessoal e memória coletiva em Fortaleza. Finalmente, cabe destacar que, nos créditos de agradecimentos, Danilo se refere a Supermemórias como um “caleidoscópio afetivo”, o que nos remete, especialmente, à penúltima sequência deste curta. Nela, durante os dois minutos e meio de duração da música Supermemórias love theme8 , há uma sucessão de planos muito curtos de personagens que fotografam, são fotografados ou que olham para e interagem com a câmera. É como se, ao final de sua obra, Danilo conseguisse, simbolicamente, fazer aquilo que, literalmente, seria impossível: contemplar todos os doadores e cineastas amadores dos acervos Super-8 recebidos. Essa sequência funciona, ainda, como uma síntese do processo criativo de Supermemórias, por enfatizar que essa obra se propõe a ser uma miscelânea de memórias particulares, possibilitada pelo gesto de colaboração coletiva. Tal como as miçangas de um caleidoscópio, as imagens desses filmes de família Super-8 poderiam ter sido articuladas de infinitas maneiras. Supermemórias é uma dessas possibilidades e resulta, como vimos, do afeto de seu diretor pela cidade de Fortaleza, por vestígios do passado, pelo formato Super-8 e por aqueles que colaboraram com seu projeto. — 6. Nos filmes Super-8 originais, há imagens dos cartazes, da presença da imprensa do local, do público, dos organizadores, etc. 7. Cabe lembrar que a expressiva maioria de filmes Super-8 reunidos eram mudos. Portanto, coube a Danilo compor praticamente toda a camada sonora de Supermemórias. 8. Composta por Fernando Catatau e gravada, especialmente, para Supermemórias. 78
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sábado à noite1 rodrigo de oliveira Tudo o que se poderia imaginar de um documentário autoral/conceitual que se anuncia como uma “viagem noturna por Fortaleza” está lá, materializado nas imagens de Sábado à Noite. Os planos silenciosos e estáticos em que nada parece acontecer até que se descubra eventualmente uma invenção do cotidiano (uma pessoa que passa, carros que cruzam o quadro, rostos fugidios em lugares estranhos, ruídos e formas diversas), a câmera observadora, destinada à paciência da espera por alguma iluminação natural, alguma manifestação do mundo ao qual se dirigir. Por outro lado, a apreensão surrealista dos indícios mais corriqueiros de realidade (postes de luz que se tornam pontos brancos móveis e indistintos, reflexos das mais variadas naturezas e motivos, o jogo de agitação da imagem quando a câmera passeia dentro de um ônibus). Cada momento desses, no fundo, uma reapresentação, em contexto diferente, de uma mesma idéia de beleza cotidiana que brota “naturalmente” diante do aparato cinematográfico, a golpes extremamente calculados do realizador, numa onda que tem atingido o documentário brasileiro recente (sobretudo dentro do espectro de filmes realizados no projeto DOC-TV, do qual Sábado à Noite faz parte, e que já teve recentemente filmes como Acidente seguindo esta mesma lógica da plasticidade a fórceps). Ao mesmo tempo, sempre que decide embarcar naquilo que parece lhe pertencer muito particularmente, uma idéia posta em cena na primeira seqüência do filme, Sábado à Noite não só consegue produzir imagens de absoluto encanto, como também se veste de um conceito que não nasce de outro lugar que não de sua própria estrutura. É o tal momento da “regra do jogo” que Eduardo Coutinho tanto comenta e que Ivo Lopes Araújo — 1. Publicado originalmente na Revista Contracampo, por ocasião da cobertura diária da 11ª Mostra de Cinema de Tiradentes – www.contracampo.com.br. Agradecemos a autorização da republicação no catálogo. 80
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apresenta na única fala em off dita no filme todo. Estamos na rodoviária de Fortaleza e ouvimos a abordagem de alguém da equipe a um grupo que está saindo dali de carro. A idéia é que a câmera (“de um documentário que vai passar na TV Cultura”) os acompanhe no carro, numa espécie de carona, até onde o motorista for, para que então se aborde um novo carro, e o filme nasça deste passeio involuntário pela cidade. O grupo da rodoviária se nega à carona, mas ali está lançada a idéia de um trabalho de câmera e de som que só se materializa pelo gesto físico, pelo deslocamento anunciado, muito mais pela busca atribulada de imagens e ruídos do que necessariamente no encontro plácido e ocasional com eles. Há, num certo sentido, um desejo de perceber em Fortaleza uma cidade que nunca dorme, jogando-se na idéia de que a madrugada é um espaço tão pleno de movimento quanto o dia (não se começa numa rodoviária à toa). Mas Fortaleza não é São Paulo ou Nova York e quando sua noite dá sinais de cansaço e anuncia claramente que ali se dorme sim, Sábado à Noite começará, por conta própria, a forjar movimento onde antes não havia nenhum. São os únicos momentos de perda de controle da câmera, que está na mão e atua frontalmente sobre (e contra) o que se põe à frente. Persegue pombos que comem coisas da rua, afugentando-os até que alcem vôo e depois se embriaga de uma seqüência de postes numa praça, correndo atrás deles e provocando um efeito de dispersão confusa da luz, muito distante daquela figuração de vídeo-arte dos pontinhos luminosos brancos e dançantes. O momento no qual esta operação aparece mais bem exposta (e que, isolado, é uma das grandes seqüências exibidas na Mostra de Tiradentes até agora) é o longo plano que mostra Danilo Carvalho, o técnico de som do filme, armado de um gravador e um microfone enorme, registrando o ambiente da cidade a partir de uma passarela de rua. Há uma coincidência entre a movimentação física do técnico, que aponta o microfone para diversos pontos do ambiente, e aquilo que ouvimos na banda sonora do filme. Um grupo de pessoas vem atravessando a passarela e, ainda que percebamos que conversam entre si, só ouviremos um resquício desse diálogo uma vez que o técnico, manualmente, desvia o microfone dos carros da rua e aponta-o diretamente para estas pessoas. A interação com a cidade não é passiva, muito pelo contrário: está baseada no contato direto, corpóreo, da equipe com o que a cerca. E então, tendo ficado longos minutos observando aquele jogo de suposta “denúncia” do aparato, Ivo Lopes de Araújo deixará a tela preta e seguirá com o som ambiente ocupando sozinho o espaço do filme. Para onde estará o técnico direcionando seu microfone agora? Em nome daquilo que ouvimos de fato, que outros sons 82
estão sendo deixados de fora por quê não participam do campo de captação do aparelho (e das intenções do realizador)? A tela preta se estende e o filme – tendo nos mostrado literalmente sua produção a fórceps, esforço concentrado, cálculo sobre o acaso – finalmente não nos amarra à apreensão obrigatória de um belo de força centrípeta, que restringe os sentidos, que se fecha no interior da imagem. Pelo contrário, se há alguma beleza na banalidade (mesmo quando a imagem for suprimida e o que ouvirmos for o mesmo som presente diariamente na vida de qualquer cidade grande), seu princípio só pode ser a expansão da experiência perceptiva. É quando retornaremos à luz, desta vez não mais na rua agitada, mas diante do quebra-mar, e aquilo que imaginávamos como puro barulho do trânsito se transformará alquimicamente no som das ondas na praia. Não são muitos os filmes que conseguem, ainda hoje, devolver ao jogo simples de imagem e som uma categoria de revelação sensorial e são mais raros ainda aqueles que, como Sábado à Noite, parecem verdadeiramente nos meter num buraco negro (ou noturno), de onde se saia com a impressão de que nossa relação com o cinema foi verdadeiramente “re-purificada”. E que essa ilusão só dura até o amanhecer.
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modo mar azul1 flávia memória Só se começa de assalto. Na tela, a imagem virá sempre escura e a página parecerá sempre branca, mas elas jamais hão de ser/estar vazias. Os elementos estão e estarão sempre aí, embaralhados por toda a superfície. O curta Azul, de Themis Memória e Luiz Pretti, começa com a irrupção de um acorde e logo os primeiros créditos cortam, com letras brancas, o negrume uniforme da tela. Em seguida, o escuro absorve as palavras e logo outro corte, outro começo é inserido à corrente: um barulho de água corrente se sobrepõe à música enquanto os primeiros frames vão surgindo, lentamente, segundo uma gradação luminosa que nos faz discernir o espaço pouco a pouco. O primeiro plano-sequência é composto não como se apresentasse uma narrativa que avança de forma linear, mas numa espécie de suspensão espaço-temporal, como se forjando uma oscilação estática similar a de um barco ancorado que sobe e desce com a maré. Tanto o enquadramento quanto os movimentos da câmera denotam a flutuação dessa ambiguidade semântica, onde a leve oscilação da objetiva evidencia a marcação rítmica do título, Azul, roçando a moldura vermelha de um pequeno espelho fixado na parede. Assim como o acorde inicial se bifurca entre a música e o barulho da água do chuveiro, este primeiro plano também apresenta uma composição de linhas, luz e cores que vão se desdobrando simetricamente. Partido ao meio entre tons de amarelo e azul, percebemos que no primeiro plano, à direita, a cor amarela se bifurca outra vez em duas tonalidades, diferenciadas pela incidência de luz e sombra; à esquerda, o azul da parede é riscado por feixes de luz e perfurado por um espelho cuja moldura vermelha delimita outra bipartição de luz e sombra. Escapamos de marear com o ritmo oscilante da câmera quando divisamos, dentro do pequeno recorte do espelho, o movimento que cinde o plano em duas velocidades, duas temporalidades — 1. Texto revisitado pela autora especialmente para a publicação no catálogo 84
distintas. Nesse caleidoscópio de encruzilhadas, o choque de perspectivas inebria a onisciência do espectador, retirando-lhe as garantias de um posicionamento confortável sobre o que ver e como ver. Essa disposição sincopada de elementos semi-estáticos (o cenário imóvel e a câmera em movimento) e des-configurados (compostos geométricos oscilando nos recortes de luz e sombra) faz com que o espectador se distancie, se diferencie, seja repelido e colocado em posição de voyeur. O tempo-espaço do filme se reconfigura continuamente, forçando uma percepção tangencial no espectador, que não é chamado a intervir, a completar, reescrever ou reencenar a obra, mas a servir como testemunha. Entretanto, testemunha de quê, de quem? Se admitimos que a mirada do voyeur se caracteriza pelo interesse erótico de excitar-se observando à distância, devemos aceitar então que o testemunho que aqui se realiza não visa uma produção documental, uma comprovação de fatos ou qualquer reivindicação motivada por um tom de denúncia. Se em Azul a insignificância corriqueira dos gestos acontece segundo uma pauta de desejo, seu cunho testemunhal deve permanecer aí, absorto e dinâmico como a imagem de um barco ancorado. Sendo assim, em lugar de buscar um sentido, uma linearidade narrativa capaz de contar uma história, o espectador dispersa o olhar de modo aleatório entre um elemento e outro. Pensando em camadas, a nudez, o desnudar-se e o vestir-se, evocam o jeito intercambiável das peças de roupa, das carícias, das reminiscencias que valoram as interseções de um corpo sobreposto a outro, de um signo sobreposto a uma imagen, de um gesto sobreposto a uma leitura. Modos de vestir, disfarçar, desmembrar. Fluxos que do corpo a imagem não plasma. Quando a distinção entre as cores no primeiro plano se apaga, a personagem cruza o limiar entre os dois cômodos e começa a se olhar em outro espelho. Nesta transição, percebemos que a câmera-voyeur parece tatear um enquadramento, buscar uma nova tomada de posição. Assim como o corpo da protagonista traça um corte nos limites espaciais entre um quadro e outro, ele causa ainda uma quebra no enfoque da objetiva, instaurando uma outra dinâmica, que mais bem é uma (entre-)linha de fuga para outro começo. Se no primeiro plano o espectador olhava como a câmera olhava, agora ambos se fundem e olham desde o mesmo lugar, registrando os movimentos da mesma forma inquieta e a partir do mesmo lugar-esconderijo.
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Depois de se olhar no espelho, a protagonista abre o armário, retira um cabide com uma vestimenta na qual distinguimos o corpo de um homem. O reflexo do espelho que antes retinha seu rosto, agora reflete as roupas que estão dentro do armário. A câmera volta a mover-se, o olhar do espectador volta a transitar entre o amarelo, o azul, os feixes de luz e a pele da protagonista, cujo tom vermelho cruzado por uma faixa branca relembra a moldura que continha, na superfície cristalina do espelho, outras listras, outras linhas. Depois de tentar desajeitadamente seguir os movimentos da protagonista, a câmera parece encontrar um eixo, em que ela reafirma, do alto de um vértice em diagonal, a construção de toda uma simetria no espaço onde se dá o último plano-sequência do filme. Da quina superior do quarto, na convergência angular de dois vetores, similar aos reflexos dos raios que se expandem a partir de um ponto da janela, seguimos testemunhando não só a simetria da geometria abstrata que compõe os planos, mas também um desdobrar-se do ponto de vista da gestualidade. Seduzidos por uma familiar estranheza que não confirma mais que o desejo, usufruímos o deleite despretensioso de quem se entrega ao fluxo de sensações. Entretanto, que visibilidade é esta que o gesto instaura e prolifera? Em Azul, o interesse se desvia do plano narrativo (sem dele sair de todo) para fazer ver que os diferentes pontos de vista de cada um dos quatro planos-sequência do filme observam a rotina e seus encantos a partir de um viés de linhas (enquadramentos) e cores (luz/sombra) que constituem a subjetividade a partir da objetividade, fazendo-nos ver (sentir) que toda afecção, todo ponto de vista surge a partir de uma subjetividade terceira: a do próprio meio. O fato de ir gradualmente percebendo um descolamento entre o ponto de vista da protagonista, dos espelhos, da câmera, é o que distancia e ao mesmo tempo aproxima o espectador, enredando-o num fluxo que instaura modalidades de leitura por interstícios. Falar em subjetividade do meio, então, é testemunhar como o objeto fílmico se constitui no trajeto, ou melhor, na projeção de uma subjetividade que surge no próprio acontecer da exposição, do modo como esta se dá. Considerando então a subjetivação do meio, deixamos de pensar a variação da verdade segundo o sujeito para comprovar a condição sob a qual emerge no sujeito a verdade de uma variação. Falar em comprovar, então, é tentar vestir o corpo, retocar as coisas, é ver nelas uma certa cintilância cristalina. Afinal, se todas as coisas mudam quando submetidas ao fluxo do meio, as paredes conceituais que erigimos também oscilam de acordo com a sombra, mudam 86
de cor, são perfuradas por reflexos cristalinos, radiais. A partir daí, o que significaria então afirmar que a rotina tem seus encantos? Em Pintura – El concepto de diagrama, Deleuze fala de como o regime da cor, na pintura, modula não só a linha, mas também a luz. Matizando o campo do orgânico com o campo das intensidades, podemos supor que a pintura se insinua na modulação da cor e o cinema na modulação da luz, ainda que ambos os regimes extravasem um sobre o outro. Na conferência Paréntesis sobre la génesis del color y el colorismo, ao tratar da teoria do triângulo das cores de Goethe, ele pensa o modo como, para o escritor alemão, a cor surge do “obscurecimento do branco tanto como da iluminação do preto” com o fim de enfatizar o dinamismo da cor. Deleuze afirma que, para Goethe, as cores primárias já não seriam o branco ou o preto, mas o amarelo – que advém do branco escurecido – e o azul – do preto clareado –, sendo que ambas, no ponto de intensificação máxima, tendem ao vermelho. Ao pensar tais estratos de intensificação, Goethe dá a perceber que a diferenciação das cores, ao ser possível através do movimento, da intensificação, não se funda em um senso de oposição – assim como o branco não se opõe ao preto, o amarelo não se opõe ao azul, e o vermelho, que por sua vez é o ponto de fusão comum a ambos, caso com eles se mescle, resultará então em uma quarta tonalidade: o verde. O mais interessante na genealogia das cores proposta pelo triangulo, é que o nascimento das cores se dá segundo uma proliferação contagiante, que se dá no nível do corpo, mas também graças à incidência de abstração luminosa. Sendo assim, percebemos que a materialidade da cor submetida à interferência da volumetria abstrata da luz deforma o campo das imagens de modo a investir a percepção de fluxos, linhas e delineamentos nômades; e que é este circuito da imagem-cristal o encantamento habitual que o filme tenta ofertar ao testemunho do espectador. E nesta oferta, como oferenda, não poderíamos jamais prescindir do corpo, dos signos, das ondas. Mar, marujo, marinheiro, maresia: azul de céu intermitente: nuvem de pensamento revestido em onda: cor-po.
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olhar e repetição1 camila vieira Após se mudar para um casarão antigo e sombrio, uma mulher é tomada pelo pavor e pela solidão, longe do namorado cuja imagem lhe assombra. No decorrer de um tempo que se desdobra pesado, uma poderosa espiral do medo contamina os planos de A Misteriosa Morte de Pérola (2014). O medo instaura-se por duas chaves principais de operação: o jogo de olhares e a repetição. O jogo de olhares Na primeira sequência, o olho fechado de Pérola é filmado com o zoom de uma câmera de vídeo. Suas pálpebras estão cerradas (Fig. 1) e ela dorme, deitada na cama. Quase ao final do filme, o rosto de Pérola é novamente filmado com uma câmera de vídeo. Mas o zoom agora mantém em close o olho aberto de Pérola (Fig. 2). Ela está morta, deitada no piso de madeira de seu casarão. A primeira operação do medo se coloca neste intervalo complexo entre um olho adormecido e um olho morto. O olhar da personagem é mediado pelo sonho e pela finitude. O filme lança ao espectador uma experiência cambiante, nebulosa, difusa, entre o onírico e a morte.
Fig. 1
Fig. 2
— 1. Publicado originalmente na revista Sobrecinema em 17 de dezembro de 2014 – sobrecinemarevista. blogspot.com.br. Agradecemos a autorização da republicação no catálogo. 88
O trânsito entre as duas forças – a potência do sonho e a potência da morte – faz proliferar o medo. Pérola caminha pelas dependências do casarão, guiada pelo abrir e pelo fechar de seu olho, que catapulta diferentes intensidades pelas quais também somos tomados: ela adormece uma ou duas vezes, acorda assustada outras quatro vezes, mergulha em pesadelos que fazem seu mundo girar (como o belo plano em 360º, que põe todo o casarão em torvelinho, ao ruído incessante do pêndulo de um relógio de parede antigo). O jogo de olhares desestabiliza a fronteira entre sonho e morte. É notável como se estabelecem fortes relações entre as personagens – Pérola e o namorado – e as obras de arte, que produzem deslocamentos de sensações ao abrir rachaduras no espaçotempo do filme. O olhar para as obras de arte – as pinturas nas paredes, o filme na televisão – permitem a transfiguração do desejo, que é sempre instável e processual. De que modo as conexões de desejo se multiplicam pelo jogo de olhares no filme? Na primeira cena em que tal jogo acontece (Fig. 3 e 4), Pérola observa o quadro Le déjeuner des canotiers (1881), de Pierre-Auguste Renoir. Ao mesmo tempo em que há leveza e jovialidade no quadro do pintor impressionista, sua composição diagonal enfatiza olhares que não se cruzam e permite figurar a dispersão de uma cena de lazer. No filme, aquele momento de almoço na sacada de um restaurante às margens do rio Sena no quadro de Renoir transfigura-se na imagem registrada em vídeo de um encontro de Pérola com seus amigos no terraço de uma casa (Fig. 5 e 6).
Fig. 3
Fig. 4
Fig. 5
Fig. 6 89
A pintura de Renoir desencadeou em Pérola a recordação de um tempo feliz, que se tornou passado? Aquelas imagens não parecem ser meras lembranças. Na mesma sequência, há algo que burla isso: o namorado filma o encontro de amigos com uma câmera de vídeo (Fig. 7). Talvez nem seja tanto a memória individual de Pérola que está em jogo ali, mas uma produção de imagens pelo olhar de um outro – o namorado. Não podemos ver o rosto desse outro. A presença do namorado ausente irá retornar ao longo do filme mais como fantasma e menos como lembrança. O que há de fantasmagórico na figura do namorado de Pérola? Na primeira parte do filme – “Os Fantasmas da Solidão” –, o rosto do namorado jamais se revela por completo, nos planos diferenciados pela textura pixelada de baixa resolução dos vídeos caseiros. A imagem dele é ocultada, seja pela interposição de algum objeto (Fig. 7) ou por aparecer em forma de sombra (Fig. 8) ou de costas para a cena (Fig. 9). Há algo de estranho neste rosto escondido que irá se desdobrar no filme em forma de uma presença masculina mascarada (Fig. 10), que constantemente aparece, desaparece e reaparece no filme. O homem mascarado aproxima-se do estado do fantasma.
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Fig. 7
Fig. 8
Fig. 9
Fig. 10
O fantasma é real: ele impõe sua presença oculta e paralisa quem o observa. Podemos apontar um crescente movimento de paralisação do rosto e de imobilidade do olhar no filme. O rosto aqui já não é capaz de desvelar a interioridade de um indivíduo, seu caráter, sua personalidade ou identidade. Os personagens são opacos e a ocultação de suas expressões já está anunciada em outro jogo de olhares: no momento em que Pérola aguarda um telefonema e assiste ao filme Les Yeux Sans Visage (1960), de Georges Franju. A jovem do filme de Franju esconde o rosto com uma máscara, após ter sido desfigurada em um acidente. Há um espelhamento entre o rosto-máscara do filme de Franju (Fig. 12) e o rosto imóvel de Pérola (Fig. 11), que também assume uma opacidade por sustentar um olhar paralisado, que quase não pisca.
Fig. 11
Fig. 12
O espelhamento aqui não é simples reprodução. Há uma potência inumana que se captura no rosto de Pérola, a partir da aliança que ela estabelece com o que vê. Já não é mais só Pérola, tampouco apenas a moça do filme de Franju, mas uma contaminação entre os dois estados. Existe um atravessamento de desejo que inventa um rosto-máscara e se vincula ao limite entre sonho e morte no filme. Ao mesmo tempo em que o rosto é siderado pelo artifício da máscara, existe a impossibilidade da construção de uma identidade. O reconhecimento de um rosto criado pelo inumano da máscara – que é simples apagamento da expressividade – é um modo de aproximação da morte. Inventar um rostomáscara é uma forma de trazer à tona uma ausência, de apontar para a desfiguração, para o desaparecimento de si e para o anonimato. O retrato Santa Catarina de Alexandria (1598), do Caravaggio, é o primeiro a ser convocado no filme, pois ali já se encontra uma potência inumana: o olho que nunca pisca. O mesmo olhar paralisado aciona a produção do rosto-máscara do namorado, presente na segunda parte – intitulada “As Dobras da Morte”. 91
Enquadrado por uma moldura e interditado por sua própria forma, o retrato contamina os rostos-máscaras do filme, em que o desejo está prestes a ser bloqueado ou neutralizado pelas distâncias entre Pérola e o namorado. Mas há algo que vai superar as distâncias e levar o desejo a circular e a produzir novas zonas de intensidade. Ainda é preciso voltar ao fantasma... Como lidar com este evento terrível que está condenado a se repetir? O que há de temível nesta imagem espectral que se repete? De que modo o fantasma pode perturbar a ordem das coisas? Repetições A segunda parte de A Misteriosa Morte de Pérola elabora uma inversão ou deslocamento da ocupação dos atores nos espaços. Na primeira parte, Pérola habita o casarão e seu namorado permanece em extracampo – como fantasma mascarado. Na segunda parte, quem habita a casa é o namorado e Pérola torna-se fantasma mascarada, presente nas imagens de vídeo. A estrutura do filme se investe de um trabalho rigoroso de repetições, seja de gestos, situações ou enquadramentos. As repetições jamais retomam o mesmo. Elas procuram apontar para algo que difere e se transforma da primeira para a segunda parte do filme. A coexistência de temporalidades que variam em níveis e graus pela repetição é o segundo modo de operação do medo em A Misteriosa Morte de Pérola. Há o close para o olho fechado e o close para o olho aberto. Imagem do sonho e imagem da morte: as duas experiências coexistem no filme por meio do complexo jogo de olhares, que tratamos no início do texto. Além da visão, outros sentidos são convocados e proliferam repetições para ativar distintos graus do medo. A audição é estimulada pelos constantes distúrbios sonoros: a intensidade dos passos fora de campo, o toque da campainha, o ranger das portas se abrindo e se fechando, o tilintar das chaves, o barulho do despertador, o tique-taque do relógio. Mas é preciso ir além dos dispositivos sonoros que tanto suscitam as forças do imaginário. Há também outros sentidos em jogo: o olfato e o tato. Quando o namorado de Pérola entra no casarão na segunda parte do filme, a primeira relação que ele estabelece é com o colchão (Fig. 14), em que Pérola descansava na primeira parte do filme (Fig. 13). Pelo tato e pelo olfato, ele sente a presença ausente de Pérola. Ele toca e cheira a colcha da cama, perscrutando vestígios da amada que já não se encontra ali. Ele afunda o rosto, embriagado por aquele território afetivo. 92
Fig. 13
Fig. 14
Outra repetição potencializa o sentido tátil na encenação do filme. Na primeira parte, Pérola apoia sua mão sobre a imagem pictórica da figura feminina que ela reproduz em desenho (Fig. 15). Na segunda, o namorado toca o piso de madeira, onde Pérola foi encontrada morta (Fig. 16). Trata-se da repetição de um gesto: a mão espalmada em contato com uma superfície. A leveza da mão de Pérola abre conexão com o gesto pesado da mão do namorado, diante da ausência da figura feminina. As veias da mão dele pulsam na pressão contra o solo.
Fig. 15
Fig. 16
O sentido tátil não é garantia de conforto, nem traz um porto seguro. Ele é o operador do corte, da cisão, de uma cesura, de um golpe, condenado a se repetir. Ele também abre passagem para um instante doloroso que perturba: faz sangrar da mão de Pérola (Fig. 17) à mão do namorado (Fig. 18). Corte e fluxo são indissociáveis na produção do desejo. Cortar não é oposto de escorrer. O sangue que pulsa intensamente nas veias é também o sangue que jorra da mão. 93
Fig. 17
Fig. 18
O contato entre superfícies torna possível o contágio no filme. Diferentes texturas servem de modos de interceptação, de bloqueio: a cortina e a grade na porta são obstáculos entre o fantasma mascarado e Pérola (Fig. 19); a imagem videográfica do monitor da TV se interpõe entre o namorado e Pérola mascarada (Fig. 20). Na primeira parte, Pérola não quer ver o outro: ela tranca as portas, fecha as janelas, cobre as frestas com cortinas. Sua mão espalmada sobre o portão é um gesto de medo – uma confusão entre um “basta” e um “me entrego”. Na segunda parte, o namorado quer ver Pérola: ele filma todos os cômodos vazios da casa, onde ela esteve; ele insiste em rever as imagens gravadas, até encontrar nelas a imagem da amada mascarada. Sua mão espalmada sobre o monitor é um gesto de obsessão – outra confusão entre um “te quero” e um “me entrego”.
Fig. 19 94
Fig. 20
A mão espalmada já está ali no quadro L’Oiseau Mort (1759), de JeanBaptiste Greuze, que aparece como referência no filme: a relação de uma menina com um pássaro morto (Fig. 21). As duas mãos gesticulam de modos distintos na pintura: há o gesto da mão que toca o pássaro e o gesto da outra mão que se retrai. Medo e obsessão são os afetos de uma entrega, relacionada à morte, à perda. No filme, Pérola jaz com o rosto sangrando no chão; o namorado tomba com o golpe de faca no peito.
Fig. 21
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afetados e afetivos denilson lopes Em Doce Amianto de Guto Parente e Uirá dos Reis, não se documenta a realidade nem se trata de dar voz ao excluído. Também estamos longe do Neorrealismo ou de Pedro Costa (para mencionar dois exemplos fortes de uma estética do real no cinema). A encenação da margem é de outra natureza aqui. Para começar, não sabemos onde exatamente acontece o filme. Não há nenhuma aproximação com regionalismo ou mesmo a necessidade de identificar um local preciso ao vermos o apartamento de Amianto, a festa, o restaurante. Mesmo quando vemos a rua, não parece importar em que cidade ou país o filme acontece. O apartamento de Amianto é construído ostensivamente como cenário nada naturalista, com cores fortes. O uso da luz, de objetos como abajour e espelho fazem da casa dela um lugar à parte para uma protagonista que está à margem. Mesmo a natureza é o lugar do artifício. Ao invés da contenção dos gestos, da rarefação dos espaços e do esvaziamento dramático; a interpretação de Deynne Augusto, desde a primeira fala, é afetada (não só a fala). A afetação pode espantar um público desavisado, no entanto, ela será mantida até o final do filme. Amianto não é um personagem qualquer, nem seu cotidiano é definido por repetições e regularidades. Não é à toa que Amianto é identificada por uma interjeição – ó – que repete durante todo o filme. Seu corpo também é um artifício, montado, maquiado, na sucessão de roupas que usa, como peles trocadas. Como se dissesse, nada é mesmo natural, tudo é pose. Como então articular encenação e interpretação? O que une encenação e interpretação, o que dá lugar, solo e mesmo história à personagem seria o camp. Diria que o filme tem mais do que uma sensibilidade; ele tem um imaginário camp, definido pelo excesso, pelo artifício e pela afetação. Camp é um afeto que diz o seu nome, sem medo do sentimentalismo, que gosta de canções românticas (não é à toa aqui a presença do fado, da ópera e 96
da diva como referência de construção da subjetividade) e de melodramas. Não o kitsch (o mau gosto que quer ser bom gosto), nem o trash (o mau gosto que quer continuar sendo mau gosto), mas o camp. O filme, mais do que uma estória de desilusão amorosa, é uma fantasia camp, sem deixar de ser uma narrativa (que me faz lembrar mais Djalma Limongi Batista do que Kenneth Anger), em que, contudo, a encenação e a interpretação não sufocam o afeto, o encontro com o espectador. Há um choro que joga com, mas não reproduz, o melodrama. Há também momentos de humor em que deixamos a possibilidade de rir de Amianto para rir com Amianto. Amianto é um teatro permanente que não teme dizer e buscar o afeto. “Voilá mon coeur”. Eis meu coração é a epígrafe de Leonilson, artista plástico, na linhagem dos exagerados e ternos que inclui Álvares de Azevedo e Cazuza. Coração esse cheio de brilho, maquiagem, não menos real. O afeto é real. Se a leitura é do filme como uma fantasia camp, herdeira de um momento anterior à Revolução Sexual, o que fazer do camp e desse filme hoje em dia? Foi esse um lugar de encontro de caminhos aparentemente tão diversos como o de Guto Parente (com curtas em que a fotografia e a montagem são mais fortes do que o texto e o diálogo) e de Uirá dos Reis, mais vinculado à literatura e à musica. Já que o camp “está vinculado a uma sensibilidade gay, não necessariamente a pessoas gays” (BABUSCIO , 1993, p. 20)1, ele seria uma estratégia envelhecida para fazer chegar elementos do universo gay como fetiches para um público não gay ou para a volta de algo excluído do politicamente correto? Seria uma tentativa de tentar atingir um público mais amplo? A última cena em que a protagonista dança quando é chamada de viado não seria uma forma de evitar o uso bem comportado do camp? São várias as dúvidas e inquietações que o filme me suscitou. Contudo, é bom lembrar que o camp foi uma experiência de uma cultura gay que foi cada vez mais absorvida e exotizada (por exemplo, com transformistas dublando música em programa de auditório de TV). Como vimos, o poeta e militante Nestor Perlongher proclamava, nos anos 80, a morte da louca (bicha afetada, camp) em meio ao pânico da AIDS. A festa bi trans poli pan sexual dos anos 60 e 70 parecia que tinha acabado. Surgem os machos — 1. BABUSCIO, Jack. “Camp and Gay Sensibility”. In: BERGMAN, David (org.). Camp Grounds: Style and Homossexuality. Amherst: University of Massachussetts Press, 1993. 97
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gays, rapazes fortes, de bigode, que se querem masculinos. Depois aparecem os gays “saudáveis”, bem comportados e discretos, que querem se integrar na sociedade, perfeitos para casar, serem responsáveis, bons cidadãos, melhores amigos das heroínas nas comédias românticas. Contudo, outro é o caminho de Amianto, junto com Walt Whitman, evocado no início do filme. Ser singular, não necessariamente excluída; nem vítima. Só, sem cessar de procurar o encontro. Em boa parte do filme, Amianto viaja na sua imaginação, na busca do encanto, do desejo, no desejo de ser desejada. Recusa a fantasia do casamento que se desfaz em plena festa noturna. Seu caminho não será a norma (como em versão da estória romântica de princesa que encontra o príncipe contada no filme), busca que acaba, de toda forma, sendo impossível. O fantasma Blanche, a amiga morta, se despede (Blanche Dubois, conhecida heroína de Tennessee Williams, que sempre dependeu da gentileza dos estranhos, era mais uma encarnação de Mme. Bovary que morre por preferir a fantasia ou não conseguir viver uma vida comum). Ou como Ludwig em filme de Visconti que quer buscar a felicidade no impossível. Já Amianto sobrevive à sua dor. No fim do filme, quem tinha abandonado Amianto retorna. O sexo é real. O afeto é real. A fantasia é real. Amianto diz mais ou menos assim para si mesma: “Preciso mudar o mundo, embora prefira este gozo contigo, meu amor”. Sem grandes gestos, ecoa um tom cético, mas ainda libertário, que aparece na voz de um personagem de Caio Fernando Abreu, que poderia ser um irmão/irmã de Amianto, em “Anotações sobre um Amor Urbano” (em Ovelhas negras): “Não vê que é isso que eles querem que você sinta? medo, culpa, vergonha — eu aceito, eu me contento com pouco — eu não aceito nada nem me contento com pouco — eu quero muito, eu quero mais, eu quero tudo” (1995, p. 205)2.
— 2. ABREU, Caio Fernando. Ovelhas Negras. Porto Alegre: Sulina, 1995. 99
cinema das origens1 fábio andrade Um dos traços comuns a alguns dos filmes mais interessantes da atual safra brasileira em curta metragem é a maneira como eles por vezes testemunham diretores voltando ao que o cinema tem de mais básico, como se um certo processo de aprendizagem se desse em aberto, sem qualquer sombra de avexamento. Seja na obra de Carlosmagno Rodrigues, ou em trabalhos tão distintos como Nem Marcha Nem Chouta, de Helvécio Marins, e O Menino Japonês, de Caetano Gotardo, os filmes se tornam registros de uma pesquisa que reconhece o cinema como uma atividade não-ontológica, onde cada convenção vem embebida dos sentidos definidos em anos de uso pela história, aos quais os diretores se voltam com uma consciência inquisitiva: para que servem estes elementos, e quais eu devo usar para construir meu filme de maneira que ele melhor expresse o que eu desejo expressar? No caso de As Corujas, o retorno é para se colocar no cruzamento fundamental do cinema: entre Georges Méliès e os irmãos Lumière. O retorno, porém, não se dá pela desgastada (e mal ajambrada) chave do “realismo X idealização”, mas sim por certas operações presentes de forma muito marcada nesses cinemas inaugurais, às quais Fred Benevides retorna em busca de certos efeitos. Benevides retoma os dois cinemas fundamentais, mas os percebe mais como caminhos complementares do que opostos na criação. Importa menos o que eles significam historicamente, e mais o que eles são capazes como impulso de expressão, onde as modalidades cinematográficas surgem como as palavras (e aí é ainda mais oportuno que, assim como Guto Parente, Fred Benevides expresse literalmente em seu filme um interesse pelo conceito literário de “transcriação”, de Haroldo de Campos). Da necessidade de se exprimir um sentimento ainda sem tradução no mundo. — 1. Publicado originalmente na revista Cinética em janeiro de 2010 – www.revistacinetica.com.br. Agradecemos a autorização da republicação no catálogo. 100
De Méliès, herda-se um certo fascínio pelas possibilidades do truque cinematográfico, que aqui tomam o coração do filme. Seja pela projeção de Mothlight, de Stan Brakhage, em uma das paredes, por um armário que cai misteriosamente na duração de um plano, ou principalmente pelo fascinante derretimento do verde das árvores no plano final (plano em torno do qual o filme parece gravitar, como se todo o resto fosse uma preparação para ele), As Corujas tem esse encantamento, bastante raro no cinema brasileiro, pela possibilidade do truque como expressão do fantástico (pensemos na ilhamenina de A Ostra e o Vento, de Walter Lima Jr.; ou nos zumbis de Mangue Negro, de Rodrigo Aragão), daquilo que não apenas se manifesta diante da lente; é preciso ser conjurado. Mas, por outro lado, Fred Benevides subverte um outro dado essencial do cinema de Méliès, buscando em Lumière uma referência para a estrutura do filme: a absoluta descontinuidade entre os planos. Pois o truque de Méliès dependia da sensação de continuidade dos cortes cegos, onde o fantástico surgia da imitação do mundo, mas erigido de uma maneira como ele não pode se apresentar. Em Lumière, ao contrário, as situações sobrevivem como bolhas de tempo, desconectadas de qualquer coisa que pudesse vir antes ou depois. As Corujas também não é um filme de continuidade dramática, onde o enfileiramento dos planos em uma linha do tempo produz uma sensação de fluxo; ao contrário, as unidades de dramaturgia geram sentido pelo acúmulo de suas desconexões. Em As Corujas, o diretor filma um mesmo sentimento diversas vezes, como se cada plano fosse uma nova transcriação da mesma matriz, produzindo uma sensação de suspensão que já era marcante em P.F. – episódio assinado por Benevides no longa coletivo Praia do Futuro. O que muda são as intensidades, as modulações internas que – muito como os truques de Méliès – sustentam um encantamento pelo novo que diz o mesmo, e pela reiteração do que ainda não foi dito.
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alegoria, ruína e sonho1 camila vieira Ivo, Já faz algum tempo que Medo do Escuro reverbera em mim, desde aquela exibição surpresa em Fortaleza. Saí da sessão me perguntando o que tinha acabado de ver. Ou melhor, o que tinha acabado de sentir... Acho que teu filme abarca essa capacidade: de nos arrancar das comodidades do entendimento, de alterar nossas percepções, de nos deixar assustados, tal como aquela GAROTA que subitamente vira o rosto para nós com seus grandes olhos cheios de espanto. Por isso, decidi escrever esse texto em primeira pessoa, como um gesto de compartilhar contigo meu próprio assombro. De imediato, teu filme me fascinou pela aposta no artifício, como estratégia de invenção de mundos possíveis no cinema. Percebo que é uma vontade presente em alguns filmes brasileiros contemporâneos – talvez poucos, como Batguano, Doce Amianto, A Misteriosa Morte de Pérola – que tanto admiro por não se contentarem com relações contíguas com um real previamente conhecido e mapeado, mas por serem operadores de experimentações estéticas muito singulares, que instauram outro real ainda sem nome e não temem o risco do desconhecido ou de exceder a cena. Inventar outras articulações no cinema é também criar múltiplos sentidos provisórios. Sinto que Medo do Escuro assume a beleza do alegórico como contraponto ao simbólico. Enquanto as metáforas e os símbolos apontam para unívocas interpretações de mundo, a alegoria possibilita uma proliferação de sentidos, que sempre mudam a cada olhar e criam momentos de interrupção. “Onde o símbolo nos leva, a alegoria nos tira” – essa é uma frase de Benjamin, que — 1. Publicado originalmente na revista Sobrecinema em 9 de fevereiro de 2015 – sobrecinemarevista.blogspot. com.br. Agradecemos a autorização da republicação no catálogo. 102
recordei ao ver o Medo do Escuro. Parece ser preciso sempre voltar ao filme e, a cada nova exibição, buscar outras interpretações. A alegoria é uma resistência ao símbolo. Nada na alegoria é definitivo, assim como as ruínas que povoam teu filme. As imagens das ruínas me evocam provisoriamente uma sensação de fragilidade e desamparo que sobrevoa Fortaleza, com tantos edifícios e ruas abandonadas. Penso nos lugares de memória, destruídos ou largados à própria sorte, em meio à dinâmica predatória de ocupação dos espaços da cidade, que privilegia a construção de grandes empreendimentos e ordenam remoções a seu bel prazer. Como podemos habitar esta cidade? Como podemos criar bolsões de resistência neste cenário apocalíptico? Não sei se existe uma resposta definitiva, mas acredito que ainda podemos nos contentar com o pouco, com o frágil, construindo diferenças com os resquícios que ficam. Tal gesto é o mesmo do CARA que constantemente arrisca voltar às ruas para coletar os restos deixados pelos outros. Na exibição em Tiradentes, compreendi que o CARA é o herói de Medo do Escuro e acredito que somos todos heróis da nossa própria história. Vivemos da coleção destes fragmentos de afetos, de lampejos intermitentes que aparecem e desaparecem – é tão lindo o jogo de espelhos, reflexos do sol e brilho nos corpos do filme. Parecem vislumbres de um possível que nos permitem continuar, a dar mais um passo, a não ceder diante das ameaças. Nos momentos mais críticos, há sempre a queda, mas algo nos impulsiona a recomeçar. Mesmo com o corpo ensanguentado e sem forças, o CARA é carregado pela GAROTA – justo ela que também tinha acabado de ser agredida e expropriada de seus pertences. Nesta morada hostil, talvez não tenhamos força suficiente para combater os poderes. Quem sabe tais instâncias de soberania sejam apenas imagens a impor o medo, a tentar nos imobilizar e arrefecer nossos ânimos? Diante da nova barbárie, é necessário um último ímpeto – o arremesso da lança que despedaça a imagem de SCARFACE. Talvez o impulso ainda esteja guardado no corpo e ele precisa extravasar, colocar-se em movimento. Aquela dança descontrolada do CARA é o transe do Jonnata, mas é também seu, do Uirá, do Vitor e da Thais, que tanto engajam o próprio corpo nesta louca construção musical ao vivo. A dança é da equipe do filme, que apostou neste ímpeto em forma de cinema. A dança é um pouco minha também e de tantos outros espectadores que se deixaram envolver. Posso estar apenas sonhando. Talvez um dia eu veja Medo do Escuro outra vez e delire um pouco mais.
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nada além1 juliano gomes “Impuro e desfigurante é o olhar da vontade. Só quando nada cobiçamos, só quando o nosso olhar nada mais é senão pura observação, é que a alma das coisas, a sua beleza, se nos revela.” Roland Barthes, Fragmentos do Discurso Amoroso
Fábula O Fim de uma Era é o terceiro filme lançado pela Operação Sonia Silk. É constituído por material gravado durante as filmagens de O Uivo da Gaita, de Bruno Safadi, e O Rio nos Pertence, de Ricardo Pretti. A partir desse material foram gravados em áudio fragmentos narrativos por Helena Ignez, Fernando Eiras, Maria Gladys e Otávio Terceiro. Trata-se de uma espécie de filme de sobras; não exatamente um making of, nem mesmo um documentário ou uma ficção. O filme de Bruno Safadi e Ricardo Pretti é uma composição de fábulas, que, dentro da filmografia dos dois e dos teus pares, chega como um acontecimento singular. Nada Há uma dificuldade primeira em falar sobre o filme pois, a rigor, ele não fala sobre nada. Não exatamente sobre nada, mas um filme que não diz nada, ou melhor, um filme que não está preocupado em dizer. O perigo de um impulso retórico, do poder da declaração, do declarar, que se apresenta em alguns dos filmes Pretti+Parente e nos dois primeiros longas de Safadi (parece haver uma relação íntima entre esse impulso e uma certa atitude de cinefilia, ligada a uma ansiedade por filiação), essa pulsão de um falar por si próprio, chega arrefecido no terceiro filme da trilogia. Há uma serenidade aqui, inédita na obra pregressa de ambos, uma tranqüilidade em se avizinhar de uma certa nulidade enunciativa (esta é uma obra que tranquilamente pode ser vista como um grande engodo. Se há algo que se pode chamar de urgência de arte, este filme se localiza no espectro oposto a isso).
— 1. Publicado originalmente na revista Cinética em 25 de janeiro de 2016 – www.revistacinetica.com.br. Agradecemos a autorização da republicação no catálogo. 104
Autoria Talvez o êxito mais palpável da operação estética do desenho de produção do filme seja um tipo de autoria desinflada. Grosso modo, este não parece um filme de nenhum dos dois diretores. Dificilmente se achará a marca sólida de uma autoria, no sentido de uma continuidade da apresentação de elementos e procedimentos. No princípio do projeto, inclusive, este terceiro filme seria dirigido por um terceiro diretor. A estrutura de realização final é resultado de um certo campo de possibilidades e impossibilidades gerada por um estrutura de produção sui generis. O fotógrafo Lucas Barbi habitava o set fazendo planos sobre outra coisa, enquanto os dois outros filmes eram gravados. A posição de Barbi reflete uma estratégia notável: estar junto, mas estar separado, no mesmo lugar, mas fazendo algo outro. Tal tática revela em alguma medida a singularidade da posição do filme, essa possibilidade de uma realização indireta, de algo que é feito, mas que em grande medida se faz só (se há uma reserva permanente de salvação de o que se chama cinema, ela é justamente o involuntarismo – no sentido humano – do registro, das máquinas). Desintenção O Fim de uma Era é a prova cabal do sucesso do desenho de produção da Operação, muito mais que os outros dois. O filme nos afirma, a cada imagem: o cinema não precisa de nada. Se o desejo era produzir filmes baratos, homenagear a estratégia de produção mais rentável da história do cinema narrativo (o filme B – basicamente a pedra fundamental de todo repertório estético do cinema moderno), a radicalização do processo se mostrou como a operação mais singular do conjunto. O mais barato dos três filmes, o filme que se faz depois dos outros, quando tudo acabou, o filme do que sobra, é o que de realmente novo o conjunto apresenta em termos de desenho de produção (a operação dos outros dois parece de condensação de um modelo pré-existente). O êxito aqui parece resultar de uma fração de sem querer. E esse é um dado decisivo. Quando se generaliza a lógica de um público-alvo, de uma hiper- mercantilização de tudo, é um alento um filme que parece não querer nada – talvez nem mesmo o espectador (é preciso o contrário, que nós queiramos o filme). Um filme que, distribuído no circuito comercial brasileiro, não se adequa a nenhum nicho (documentário; filme ensaio; making of), que não exatamente começa nem termina… um antifilme, onde a possibilidade de fruição depende de um apetite para as fugacidades, feito 105
de reaproveitamentos, isto é, de algo que em alguma medida é virtualmente público, de outros. Não há nada que lhe seja particular além da composição que ele realiza (ele é verdadeiramente uma operação). As imagens são de outros filmes, ninguém está ali engajado nela a não ser o câmera, os personagens estão fazendo outra coisa (atuando para outro filme, realizando outra obra). As falas soam como de um outro cinema, outro filme que foi feito e que não foi feito, que representa de fato uma era – há algo de geral no seu poder de evocação que visa um máximo divisor comum entre as idéias de cinema e de amor. Os atores parecem todos de outros filmes, na tela ou no som. Nada lhe soa como próprio. Solidão A estratégia de coletividade do projeto é contraposta por um insistência da figuração da solidão (o que causa um louvável curto-circuito na retórica de uma linha direta entre processo e obra). O que vemos aqui são pessoas sós no quadro. Ou mais: o estado de absorção do olhar de alguém que filme um cena, ou que dorme, é um estado tão radical que nem mesmo nós estamos ali. A insistência desse corpo só, que olha para fora, é a figura desses personagens que são mais sós que a própria solidão, pois nem eles mesmos estão de fato ali. Trata-se de um raro trabalho de observação sobre o trabalho de filmar que o configura como um esquecer-se. Como estar só se não se está consigo mesmo? A solidão mais radical é uma forma de pertencimento essencial a uma coletividade de outra ordem. Maurice Blanchot fala de uma solidão essencial da obra, uma solidão que não é recolhimento, voltada para fora, antídoto radical de toda retórica de coletividade consensual e auto celebratória. Curiosamente, este é um dos filmes que melhor responde uma pergunta fundamental para esta geração: “o que é um coletivo?” Preensão persecutória A forma dessa solidão é esse estado de alguém que está atrás de uma câmera. Alguém que tem um poder (que em alguma medida criou as condições específicas para a filmagem), mas que está em duelo com sua própria falta de poder. Toda gravação é evidência acachapante de uma falta de poder individual – por isso os grandes sets, não raramente, se transformam em grandes duelos pelo poder, e isso imprime. E esse olhar para a cena (que aqui não vemos) é o olhar dessa perseguição, essa perseguição do imaginário, que é fadada ao fracasso, em graus variados. Esse fracasso toma forma de apreensão e melancolia na tela. É esse amor que o filme não cessa de repetir que nunca se realiza, cuja possibilidade de realização já passou, e que sobrou 106
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somente como insistência. O fracasso é o sucesso do que não se quis, é o triunfo da não-vontade, e a tomada cinematográfica é um terreno fértil para essa exploração. O Fim de uma Era é um filme de planos, interessado numa certa dimensão ontológica deles. E um plano é sempre um duelo entre a vontade e seu oposto; uma tomada é uma aposta e um mergulho (plongée). Parentes A concepção do projeto da Operação SS é em si uma ação sobre e na história. A evocação da personagem de Copacabana Mon Amour e da Belair Filmes quer verificar as possibilidades de atualização daquela experiência de Bressane, Sganzerla e sua trupe. Um mínimo de tempo de filmagem e um “máximo” de obras tem hoje um sentido distinto do que na década de 1970. Seria vão e tolo emular strictu sensu as estratégias da dupla inspiradora de mestres. Pretti e Safadi se utilizam da Belair como motivo para refletir sobre uma estética da produção e uma produção de estética hoje. Além disso, é um elemento decisivo do filme a presença de narrativas que evocam um imaginário do cinema clássico americano. Há, no mínimo, esses dois campos de referência para podermos pensar o que de fato se opera. Por uma lado, a herança de um cinema utópico, anárquico, e, de certa maneira impossível, por definição, e, por outro lado, um cinema excessivamente possível, que se tornou um fenômeno comunitário de grandes proporções, que funcionou como mapa afetivo de gerações, mas que se apóia numa experiência de mundo que hoje é insustentável. As matrizes de O Fim de uma Era são, essencialmente, impossíveis de emular. Daí seria possível que sua filiação real, seu regime de criação, seja um cinema do plano que evoca uma tradição, um repertório que liga os Lumière, Michael Snow e Kiarostami, ou mesmo Guerin. Essa preensão persecutória está olhando pra eles, para estes. Além de Sganzerla, Bressane, Ignez, Frances Farmer permanecem-se olhando, sabendo que é impossível filmá-los, mas sua sabedoria é compreender que o que faz a obra é a persistência desse desejo (uma possível definição de amor). O desejo nunca sabe verdadeiramente o que deseja, sempre deseja outra coisa. O sufocamento cinéfilo e a ameaça de uma retórica das intenções (que povoa em graus variados filmes anteriores dos dois diretores) são o inverso desse processo, são um excesso de saber o que se deseja.
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Era? Daí a pergunta: de qual fim, e de qual era se fala? O filme de 2015 tem como premissa um contexto onde tudo acabou: uma experiência como a Belair, naqueles termos, seria absolutamente inviável, assim como um acontecimento como a Hollywood dos anos 1930 também seria. Está tudo acabado. Mas a existência do filme é justamente este “algo a fazer” quando tudo já acabou, quando tudo já está feito. Sua opção é por uma dramaturgia fragmentária de um recomeço incessante. Diante da tragédia consumada, depois do fim, o filme escolhe fazer essa sucessão de fragmentos, de números (curiosamente próximos a estratégias dramatúrgicas dos filmes de entrevista de Coutinho, onde blocos de dramas trágicos, de fábulas sobre a desilusão se sucedem em diferença e repetição: canções, enfim)… números que exercem sua função de suspensão e graça, mas sem recorrer a exercícios de expectativa ou suspense. Não se promete futuros aqui. Um filme que narra esperas (gente parada olhando pra fora do quadro, tirando sonecas) do qual não esperamos nada. O Fim de uma Era é uma espécie de ficção sobre a impossibilidade alegre do cinema. Ele realiza a tarefa obrigatória de toda obra digna desse nome: nos perguntar “o que pode o cinema?”. De certa forma, o filme responde a isso com pedagogia: pessoas que olham, câmeras e luz. É isso que o filme mostra e é disso que ele é feito. Um documento justo sobre um trabalho. Sua extrema superficialidade é a ferramenta de um otimismo da possibilidade de recomeçar a cada instante. A ruína é um jardim. Nada além.
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carta a frances farmer1 ricardo pretti Querida Frances Farmer, Em 1970 você deu o seu último suspiro, em Indianápolis, depois de ter sofrido a maior parte da sua vida abortada pela estupidez, mesquinhez e crueldade sádica da mentalidade provinciana da américa do norte. Talvez tenha sido um grande alívio esse seu último suspiro, o fim de um tormento. O que você nunca soube (e nem poderia saber), e por isso resolvi te escrever 45 anos após a sua morte, é que nesse mesmo ano, alguns jovens estavam realizando alguns dos filmes mais explosivos e alucinados da história do cinema, no Rio de Janeiro. Enquanto você morria, sozinha e incompreendida, há anos sem trabalhar com a sua arte e se refugiando (exilando?) numa igreja católica chamada Santa Joana D’arc, alguns jovens sob a exigência da liberdade criativa e sob o signo da ruptura estavam realizando filmesbombas e vivendo um dos momentos do cinema mais rebeldes e intuitivos em uma produtora-gangue chamada Belair. Essa coincidência de datas me deixou pensando: e se você tivesse tido a chance de conhecer esses jovens da Belair? Se tivesse vindo ao Brasil, logo antes de morrer, trabalhar com eles? Como seria a nossa lembrança de você? Acredito que esses jovens teriam te vingado, teriam amado a sua loucura, teriam te oferecido um baseado incrível e uma caninha da boa pra acompanhar. Consigo te ver numa imagem em 16mm dançando Gonzaga colada ao Grande Otelo enquanto a Helena, incorporando a Sonia Silk, grita o seu pavor pela velhice na tua cara. Consigo enxergar o teu sorriso de bêbada direcionada à Gladys, enquanto Guará nos adverte do Barão. Como seria você abordando os marinheiros com Guará? Como seria você beijando a boca da Helena, da Lilian e do Otoniel? Como seria o teu figurino em — 1. Publicado originalmente em 1º de junho de 2015, no site da Alumbramento Filmes: www.alumbramento.com.br. 110
Cuidado Madame e Copacabana Mon Amour? O que o Julio e o Rogério fariam com você? Posso apenas imaginar (lembro do filme em que Jean Seberg foi filmada pelo Garrel, chamado Les Hautes Solitudes.). Frances, você teria sido o perfeito horror das 1001 maravilhas! Você andando pelas ruas da zona sul carioca e provocando os meninos de rua e algumas donas de casa avulsas (naquele momento as ruas ainda pertenciam ao cinema também). Vir pra cá teria sido a vingança mais incrível que você poderia ter realizado contra a tua mãe e contra todos aqueles que te jogaram no hospício! O terceiro mundo devorando e cagando a norte americana em plena Copacabana. Mas você nunca veio ao Rio. Morreu em Indianapolis, enquanto os jovens se exilaram em Londres. Os filmes da Belair foram censurados aqui no Brasil e permaneceram inéditos por muitos anos (alguns se perderam). Eles estavam numa ditadura muito violenta e vil, talvez não muito diferente do que você viu e viveu. Muitos que ficaram aqui foram parar na prisão, sendo torturados e assassinados, enquanto você (como muitos que ficaram aí) foi parar no hospício sendo lobotomizada e estuprada pelos guardas. Pra onde fugir? Frances, comecei a te amar após ter te visto em um filme, mais nada. Você aparece e canta Aura Lee para uma multidão de homens iletrados num cabaré fuleiro. Todos param a gritaria e se apaixonam, eu também me apaixono, talvez porque você também estivesse apaixonada. Seus olhos não mentem e não mostram pudor, eles dizem que querem o caos, não forjam uma suposta vontade de inocência, não se iludem com as falsas utopias. Mas tem um homem no filme que é idealista, arrogante e vaidoso, quer construir uma sociedade, erguer uma civilização do nada, custe o que custar. Você não precisa de nada disso, você precisa do mundo em estado bruto. A sociedade é para os hipócritas, enquanto o mundo é para os apaixonados. Ele te conquista pra logo depois te largar em nome da ambição. Você some do filme, pra voltar ao final como a filha de si mesma, pois você só é possível na impossibilidade da juventude. A juventude ao final se vinga. Semana passada (03 anos depois) resolvi, finalmente, assistir a outros filmes que você fez naquela velha hollywood. Sei que você odiava esses filmes, sinto que te traí, e isso me dói. Só não me arrependi inteiramente porque pude ver com os meus próprios olhos o que se perdeu em seus olhos. O mundo não estava mais nos seus olhos. Via apenas olhos de ressaca, de quem passou um bom tempo intoxicada por um vazio, usurpada de sua paixão. 111
Por isso tudo estou aqui escrevendo uma carta para você (45 anos depois da tua morte e 80 anos depois do filme que você realmente fez). Mas também te escrevo, pois estou pra lançar nos cinemas três filmes sob o codinome de Operação Sonia Silk. Os filmes se chamam: O uivo da gaita, O Rio nos pertence e O fim de uma era. Fizemos os 3 filmes em duas semanas de filmagem. Foi a nossa maneira de experimentar o impossível dentro do possível que a Belair e você um dia instauraram, pois durante todo esse tempo você também nos acompanhou, a sua voz cantando Aura Lee nos acompanhou, e hoje percebo que fizemos esses filmes com você também, do jeito que deu, pra mantermos a sua chama acesa, e continuar descobrindo, através de você, que a paixão é dos bravos. Foram os seus olhos de paixão que nos ensinaram que o amor atravessa gerações, que o amor é feito de coincidências, mas que é preciso lutar pra mantê-lo vivo. Você lutou e a Belair lutou, ainda que tenham fracassado. Digo isso sem pesar, o fracasso é muito mais apaixonante que o sucesso. O medo do fracasso gera um cinismo tenebroso. Da minha parte posso dizer que ainda estou tentando fracassar, é difícil, mas estou a tentar. Lá no último filme da Operação Sonia Silk dá pra ouvir você, também dá pra ouvir a Helena Ignez e a Maria Gladys. Elas falam de você, Frances. Leandra Leal e Mariana Ximenes, nós a contemplamos em toda beleza e juventude. Três gerações de musas, vocês são completamente diferentes e por isso mesmo fascinante. Um belo encontro esse filme nos ofereceu. Foi a nossa maneira de ter feito você vir ao Rio pra passar um tempo na companhia delas. Se não conseguimos te vingar, espero que estejamos conseguindo te amar. Com todo o coração, Ricardo Pretti PS: “Irmãos humanos que ao redor viveis, não nos olheis com duro coração. Oh, espectador, não nos olhei com duro coração.”
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não estamos sonhando1 roger koza Luiz Pretti é um dos quatro diretores de Estrada para Ythaca e Os monstros, dois filmes-chave no cinema brasileiro contemporâneo. Em Não estamos sonhando, ele não abandona nem o espírito experimental nem certas obsessões ostensivas desses filmes: o lugar e a função do som por um lado e certa relação com homens e nomes seminais da cultura moderna brasileira, neste caso, com o grande arquiteto Lúcio Costa. A leitura de uma entrevista de 1928, dada pelo responsável pelo Plano Piloto de Brasília, antecede a ação que se desenvolverá no filme, pois antes “é necessária uma palavra” para compreender por que “é necessária uma ação”. Do que se trata aqui é de inventar, em poucos minutos, uma forma cinematográfica capaz de registrar um sonho de demolição e desconstrução, uma confrontação direta e lúdica com um mal-estar espiritual e política a propósito de uma arquitetura homogênea e alargada, sem aura, absolutamente pragmática, talvez funcional para as necessidade das populações, mas determinante de um modo de construir, habitar e pensar. Pretti, atrás e na frente da câmera, imagina um ataque sonoro contra os edifícios de seu bairro, depois de levantar-se pela manhã e intuir que o problema arquitetônico não é apenas visual, mas também sonoro. O filme se encerrará com uma afirmação que pode servir como um corolário do texto lido por Pretti, no qual Lúcio Costa adverte sobre o paradoxo entre o impulso pretérito de construir templos e catedrais e o aperfeiçoamento tardio da civilização, do que se infere uma substituição do assombro e do terror frente ao mundo por um domínio absoluto e articulado no culto à riqueza e ao poder. — 1. Publicado originalmente, em fevereiro de 2013, no blog de Roger Koza, Con los ojos abiertos (http://ojosabiertos. otroscines.com/). Agradecemos a autorização da republicação no catálogo. 114
O filme não tem mais que 12 minutos e, nessa escassa duração, exibe várias ideias de mise-en-scène (o já aludido trabalho sonoro e um engenhoso método caseiro para visualizar um ataque e produzir deslizamentos), totalmente orgânicas com o desenvolvimento de seu contundente relato, que pode ser minimalista por sua duração, mas em espírito, é maximalista, pela inquietude de seu diretor. 12 minutos, algumas ideias e muito cinema.
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filmes como oposição a formas de vida: o cinema como sintoma e não cura1 marcelo pedroso Profundamente diferentes entre si, os três filmes ora postados no site do coletivo Alumbramento encontram convergência na experiência de um desconforto expresso com diferentes gradações em torno de universos que lhes são exteriores e que vão, através de arranjos singulares a cada obra, se interiorizar em imagens e sons responsáveis pela criação de zonas de contato entre corpos e espaços – ou entre cineastas e mundo, espectadores e filmes. Essas zonas de contato são muitas vezes incômodas e instáveis pois se inscrevem na dimensão do desafeto – contracorrente de uma das tendências aclamadas do cinema contemporâneo – e não produzem formas de vida mas opõem-se àquelas que desejam escrutinar em sua investida sobre o mundo histórico. O cinema, nestes casos, arde como uma febre, sintoma evidente do mal-estar experimentado, e não se preocupa em buscar remédio, conciliação ou cura. Para falar sobre violência e diferenciar sua manifestação objetiva da subjetiva, Slavoj Zizek recorre ao relato de uma história ocorrida na convulsiva Rússia dos anos que se seguiram à revolução de bolchevique. É a história — 1. Publicado originalmente em 8 de janeiro de 2015, no site da Alumbramento Filmes: www.alumbramento.com. br, por ocasião da disponibilização online dos filmes: Tribuna de honra, Os últimos raios de sol e Filme selvagem. Agradecemos a autorização da republicação no catálogo. 116
do aristocrata Nikolaï Lossky e sua família. Gozando de absoluto conforto material, eles viviam plenamente integrados aos costumes de sua gente, cultivando hábitos tidos como saudáveis e comuns a seus semelhantes. Iam à igreja, eram cordatos com os empregados, distinguiam-se pelos bons modos e dedicavam-se às mais elevadas formas artísticas da época num sincero esforço para refinar o espírito. Uma vida harmoniosamente celebrada em torno de valores positivados como bons. Qual não foi a surpresa de Nikolaï Lossky quando ele e sua família foram sumariamente banidos do país após a deflagração do processo revolucionário. Os Losskys integravam uma lista publicada em 1922 com os nomes de intelectuais que deviam ser proscritos e Nikolaï não aceitava o fato de que seus valores tão universalmente reconhecidos como bons e idoneamente praticados pela família passassem a ser combatidos como se eles houvessem cometido algum crime abominável. Acontece que, pondera Zizek, embora completamente pautado por práticas consideradas boas entre seus pares, o modo de vida dos Losskys era incompatível com o ideal coletivo dos bolcheviques. Tratava-se de um modo de vida gerador de violência subjetiva. Diferente da violência objetiva, aquela que é praticada fisicamente e se materializa em espancamentos, estupros ou assassinatos, a violência subjetiva é sistêmica, está ligada a relações de exploração e dominação e se manifesta até nas formas de coerção mais sutis, comumente exercidas por agentes sociais. No caso dos Losskys, a dimensão subjetiva da violência praticada por seu modo de vida seria assinalada se aceito o pressuposto de que a riqueza que sustentava seus luxuosos bailes de gala era produzida pelo trabalho exaustivo de uma multidão de miseráveis que vivia completamente privada de condições materiais dignas. Ou pelo menos assim pensavam os bolcheviques. Seria um exercício interessante pensar o filme Tribuna de honra (Aline Portugal, Julia de Simone, Marcelo Grabowski, Ricardo Pretti) à luz da perspectiva da violência subjetiva exercida pelo modo de vida ali expresso. Aquele pequeno mundo presente nas imagens, tão fechado sobre si mesmo para os eleitos que podem degustar de seus supostos prazeres, diz respeito, de modo muito particular, à parcela menor da população brasileira isolada pela assimétrica clivagem em que é fundada nossa sociedade. Possivelmente cobiçado por outros setores da população, aquele modo de vida precisa reafirmar seu isolamento, físico e simbólico, também como forma de valorar sua própria existência. 117
É nesses termos que estes eventos desta natureza incorporam noções como as de “exclusivo” ou “vip” – uma reserva de deleites destinados aos sujeitos que podem, seja por descenderem de uma linhagem privilegiada, seja por ingresso adquirido, usufruírem daqueles espaços. Este isolamento dos corpos se constrói, além de pelas claras barreiras físicas, também a partir dos signos distintivos que os revestem: suas roupas – ou, se quisermos atentar para a peça de indumentária especialmente cara ao filme, seus chapeus. Pois é, curiosa ou talvez até ironicamente, através dos chapeus que somos transportados para aquela pequena economia dos prazeres agregadora do Pib fluminense. Como num discreto passe de mágica, passamos a fazer parte do petit comité e passeamos flutuantes por entre os sorrisos e taças que adornam o recinto. O lacre do mundo inviolável e restritivo que administra severamente a circulação dos corpos é rompido pelo gesto dos cineastas. Ao colocar a câmera sobre os chapeus, eles fundam um pacto insólito e controverso: um pacto que visa a gerar imagens não-pactuadas. Uma inusitada arquitetura de fusão maquínica e corporal é então acionada: a engrenagem se move criando personagens-câmera que são ao mesmo tempo condensadores e ativadores de experiências que oscilam entre a presença, a convivência e a observação voyeurística. Precisamente aqui, a dicotomia clássica do documentário pautada pelas imagens-símbolo da mosca na parede e da mosca na sopa deixa de fazer sentido enquanto composição envolvendo instâncias mutuamente excludentes e passa a dar lugar a uma escrita que é simultaneamente ativa e passiva, implícita e explícita. Nesta insuspeita flânerie voyeurística oferecida pelos personagens-chapeu rendados, quantos Nikolaïs Losskys cariocas atravessaram nosso caminho? Quantas madames Losskys tupiniquins nos sorriram com seus vitrificados rostos cirurgiados? Não saberemos, pois não os conheceremos. Estamos ali de carona para um ou dois drinques roubados do chapeu – ou quem sabe um breve lampejo de esperança na vitória de seu cavalo na pista. Durante alguns instantes, tomamos parte daquele mundo, deixamo-nos envolver por ele, nos embriagamos daquele champanhe mesmo sem o experimentar de fato. O cinema não pode e não deve ser um tribunal, mas muitas vezes somos levados a julgar as pessoas que vemos na tela, assim como julgamos as imagens em si e as pessoas que respondem por sua existência (particularmente os realizadores). Qualquer filme coloca quem o faz e quem a ele assiste diante de 118
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um emaranhado caminho de possibilidades e interditos que correspondem àquilo que aceitamos ver ou mostrar, desejamos revelar ou esconder. Tenho a impressão de que essa questão se torna particularmente delicada quando, num documentário como Tribuna de honra, os cineastas não estão implicados com a alteridade expressa nas imagens por uma relação de convergência política ou de afetos. Mostrar ou ocultar se tornam então operações mais do que críticas, consomem além dos sentimentos toda uma racionalidade que tensiona a moral para decidir qual o limite preciso até onde pode ir o gesto de articulação das imagens. Tribuna de honra opta pela sobriedade: os chapeus ciclópicos oferecem um sobrevoo sobre os espaços e as pessoas observadas. A montagem segue o mesmo compasso, respeita a cena, seleciona e justapõe os eventos seguindo uma escala de temperaturas e cores não conflituosas: a mosca parece preferir se recolher à parede. Mas deve haver algo inadmíssivel e insuportável na ideia da retração do inseto – dos cineastas frente ao mundo observado – e é preciso interromper essa aparente calmaria e polidez, fazer ruir as aparências, jogar merda no ventilador como para se livrar de uma asfixia imposta pela contenção da montagem. A represa de sentimentos estoura de alguma forma numa transfiguração alucinada do equino de franja. Se a etiqueta é mesmo a ética da elite, os cineastas finalmente não se curvam a ela. Tão menos comportado é o filme Os últimos raios de sol (Luiz Pretti). Por sua incontinência verbal furiosa, poderia ser visto como o enfant terrible da filmografia do Alumbramento. A profusão de vozes, gritos e espasmos são como sampleados por uma organização de signos que carrega a virulência disruptiva de um rap. Um filme feito sob o signo da revolta e angústia. O homem com a câmera aqui não flana por um baile regado a canapés. Seu retiro é deliberado e introspectivo. Ele está afundado num invólucro de memórias e fantasmas que o atormentam e o libertam. Em Os últimos raios de sol, só resta aflição e desespero, é um filme que assiste à derrocada do próprio cinema e se debate em meio a este colapso, agoniza contemplando um eterno fim e procura entender o que deu, está dando ou sempre dará errado. Se não há saída (do apartamento) e tampouco futuro (para o cinema), o filme convoca para si um arsenal de profecias e gritos trágicos que conclamam à 120
insurgência, à irrequietude, ao imperativo da ação. Há como uma filiação a uma genealogia de vozes e sons que reclamam o isolamento vivido-impostodesejado pelo apartamento como fuga e ataque ao mesmo tempo, lugar também de ferida, recuo e contaminação, cinefilia e conspiração. O céu se torna uma grande ampulheta em que os grãos de areia são a luz que se esvai. Ele é tão indiferente e implacável quanto a multidão adormecida nos apartamentos – então o filme lhe atira pedras. Não se trata apenas de atingi-lo para tirá-lo de um confortável torpor, mas também de devolver impetuosamente a munição de que ele próprio – o filme, o cineasta, o cinema – foi alvo. O olhar panascópico da varanda que se instala sob o clamor da multidão invisível se revela como um espelho de dupla face, que reflete interior e exterior numa mesma figura enigmática e monocular, dedo em riste. Já em Filme selvagem (Pedro Diógenes), deixamos os óculos 3D na entrada da sessão para perceber a imagem tal como ela é, uma miragem. Suas curvas e linhas estão borradas, seria um problema retiniano, da percepção, ou de um mundo desajustado. O alvo é claro, uma vida comum centrada sobre o simulacro, e o filme passa a atacar esse estado de aparências pelo esgarçamento das estruturas visuais. O inimigo é atingido em seu interior, dentro de sua própria fortaleza – não a cidade, mas o shopping – e a narrativa reivindica para si uma faculdade enunciatória que o cinema parece vir abandonando paulatinamente. O Filme selvagem não tem medo de dizer seu nome e nem de dar nome às coisas. Autêntico libelo anarquista, vocifera palavras de ordem dirigidas aos espaços e pessoas que estão dentro e fora da imagem e da tela. Difícil aferir ou supor sua ressonância, mas o filme avança implacável até esbarrar na imagem do mistério que confirma e ao mesmo tempo ameaça sua tese. A docilidade e espontaneidade com que a criança se entrega àquilo que vem sendo agressivamente combatido é uma imagem-sintoma que o filme não pode contornar. O cruzamento entre as dimensões pessoais e socio-estruturais da vida encontra ali seu nó górdio. Para onde vai o alento da música, a quem se dirige? A ternura dos últimos acordes termina em catástrofe, o tiroteio explode num parque de diversões encapsulado – ou definitivamente sepultado.
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formas e desafios do engajamento1 érico araújo lima Em torno de três filmes da produção recente de Pedro Diógenes, seria possível encontrar todo um conjunto de desafios e embates quando se trata de pensar as relações entre cinema e formas de engajamento no real. Isso passa por várias instâncias da tessitura fílmica, desde os modos de inscrever o encontro na cena até as estratégias de solicitar uma relação com o espectador. Poderíamos tomar aqui essas investigações nos seus gestos de tensão com as configurações do mundo e do próprio cinema. Com Retrato de uma paisagem (2012), Filme Selvagem (2014) e Fort Acquario (2016), estaríamos na companhia de uma intensa pesquisa, permeada por enfrentamentos. E se pensamos o caminhar de uma investigação como repleto de bifurcações, trata-se também de considerar cada filme como tentativa de disparar algumas possibilidades de realização, não sem correr alguns riscos nessas travessias. Talvez, justo por isso, tomar esses três gestos fílmicos como uma espécie de tríptico selvagem possa nos ajudar a dimensionar o próprio movimento que uma pesquisa faz em tensão com o mundo e com ela mesma. Comecemos, então, por uma sequência vinda de Retrato de uma paisagem, que parece bastante emblemática das potências do encontro. O mediador que o filme toma para si está em uma loja do centro de Fortaleza, fazendo provocações sobre o valor do trabalho para a vida. Ele usa o microfone do funcionário que tem por tarefa anunciar as ofertas na entrada do local. O ator Tavinho Teixeira interpela as pessoas: “Você gosta do seu trabalho?”. Respostas sempre afirmativas, sorrisos às vezes desconfiados. Ele percorre o espaço, afirma a sua posição: “Não gosto de trabalhar”. Passa a ler os rótulos das marcas dos produtos à venda e a declarar sua rejeição a cada um. E, de — 1. Este texto parte de algumas reflexões já desenvolvidas em outras oportunidades e publicadas na revista Sobrecinema – sobrecinemarevista.blogspot.com.br. 122
repente, uma mulher que trabalha ali chega, o interpela também, pega o microfone e diz: “Com licença, mas aquilo que você odeia, a gente precisa pra poder vender”. Os seres que encontramos, quando filmamos, podem sempre nos desestabilizar, trazer uma outra lógica àquela que trazemos, lançar outro mundo sensível ao mundo sensível que tentamos elaborar na escritura. Temos um corpo que toma um microfone e fura o que o filme vinha tentando inventar como cena, temos um choque de mundos e um momento bastante singular que impõe desafio fundamental para a própria elaboração que o realizador vinha fazendo, para a própria estratégia de aproximação. É uma sequência que levanta a própria questão de como constituir uma relação, de como o filme lida com a dupla dinâmica de propor provocações e tornar-se poroso ao que os seres filmados podem retornar. Retrato de uma paisagem parece, nesse sentido, uma obra que expõe os próprios desafios do percurso de elaborar imagens do encontro, de aproximar-se do outro. E um filme que vai agregando camadas no percurso, com um movimento de aproximação, já explicitado nas primeiras cenas, que nos lançam em sobrevoo pela cidade, seguido depois do mergulho nas pulsações da vida urbana. O discurso, trazido de A revolução urbana, de Lefebvre, acompanha em off esse momento mais distanciado, da câmera que se coloca de cima, observando o concreto e a paisagem mais dura. Quando estamos, junto ao personagem, imersos no corpo urbano, em meio aos seres que habitam o espaço e atravessados pelas forças que o percorrem, é aí que a relação mais arriscada vai ser movimentada. Sempre um jogo, sempre uma surpresa. É difícil, às vezes, encontrar alguém que queira falar, mas com o tempo o dispositivo começa a operar. “Se eu soubesse todas as respostas do mundo, que pergunta você me faria?”, já vai lançando o intercessor. As conversas passam pela satisfação com o trabalho, pelos sonhos, pelo desejo de liberdade. E quando Tavinho pergunta “Você é livre?” ou “O que é liberdade?”, ele parece aqui reverberar a questão e o modo de abordagem da sequência de Crônica de um verão (1961), de Jean Rouch e Edgar Morin, em que duas mulheres também surgiam como intercessoras e perguntavam “Você é feliz?”, abordando pessoas desconhecidas na rua e tentando um diálogo. Nesse sentido, Retrato de uma paisagem parece ter, como método, uma forte orientação moderna, numa tentativa de aproximação que evoca com força uma tradição de documentário dos anos 1960 e 1970, sobretudo quando parecem bem marcadas as distâncias entre o discurso do intercessor e o discurso dos sujeitos filmados. Desafio do 123
encontro, desafio da relação. Em alguns momentos, a tomada de posição do realizador passa por questões de ordem mais global e por uma tentativa de fazer tramas conectivas entre a investigação das vidas cotidianas e as condições mais amplas do mundo social. “A intervenção maciça dos interessados mudaria a situação”, repete em uma sequência o personagem. Ele fala isso para uma pessoa que passa e fala também para o próprio espaço. Mas é sempre, aqui de novo, o desafio do discurso no encontro com as singularidades encontradas no processo. Condição fundamental para o cinema: o intercessor e o próprio dispositivo precisam ser desarranjados, a todo o momento, para que o filme aconteça. Uma maneira selvagem de fazer cinema. Que seria um filme selvagem? Não simplesmente selvagem naquilo que diz sobre o mundo, mas também na sua maneira, na ética e na política de entornar o caldo das imagens e borrar a própria forma cinema. Um filme selvagem dentro do próprio cinema. Prática composicional do desarranjo, do embaralhamento. Se dentro das concepções esquadrinhadoras, selvagem seria aquele que não é “civilizado”, talvez seja possível se apropriar do que é atributo desqualificante para remontar aí uma potência. E a tensão passa a se estabelecer justo com uma forma pré-estabelecida de vida, com estruturas de dominância, com a noção mesma de civilidade. Trata-se de fabricar uma insubordinação com qualquer postura definidora das subjetividades. Partir em direção a uma maneira selvagem de fabricar e montar imagens pode ser uma tensão interna com uma língua estruturante e modeladora. Inventar outros cinemas dentro do cinema, aproximar as imagens em outra toada, compor um arranjo delirante, desgovernante, desmantelante. Porque se toda forma de governo está destinada ao fracasso, como sublinha o texto enunciado a partir de Oscar Wilde ao longo de Filme Selvagem, é no campo mesmo do visível e do audível que se deve evitar qualquer modalidade de governo. O embate aqui é decisivo: existem imagens do poder, classificadoras de uma sensibilidade, e a elas é preciso fazer frente. Desgoverno de uma estética que des-hierarquiza, dis-junta, des-cria. O filme de Pedro Diógenes talvez seja um manifesto cinematográfico em que a crítica a um mundo de consumo, de espetáculo e de governo se dá como operação de imagens que colocam outras imagens em crise, um movimento de descriação de um regime de visibilidade modelador dos corpos, para formular, nesse gesto de desfazimento, uma feitura desviante.
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Existe todo o universo de shopping center e de arranjos capitalistas que surgem na imagem, um mundo onde reinam relações que automatizaram a experiência. Mas o trabalho do cinema é mais do que simplesmente apontar para o desgaste de um apanhado de relações. Para além de uma constatação, é possível atuar num campo de forças sensíveis que intervêm em todo um modo de perceber a experiência do presente. E justo desfazendo uma dimensão de imagens de governo – se pudermos também levar para o campo das visualidades a noção de uma forma-governo –, não se trata também da simples afirmação de outra forma de organização que simplesmente substitua aquilo que é posto em crise. Se no filme anterior, os maiores desafios estavam, sobretudo, no encontro com os sujeitos filmados, dessa vez o risco enfrentado diz respeito aos modos de estabelecer relação com o espectador. Talvez uma questão fundamental na elaboração dessas formas selvagens tenha a ver com a fuga da segurança no próprio discurso, com certo desmantelar do lugar mesmo de enunciação, para instaurar um espaço fundamental de liberdade ao trabalho dos sujeitos do olhar. Uma canção convoca para libertar, viver, amar. Em Filme Selvagem, Hyldon é trazido para estabelecer o diálogo com o filme. Em Retrato de uma paisagem, era Belchior quem vinha para a cena sonora, entoando o homem comum e também uma brecha para outras formas de vida. Retratar uma paisagem passa a ser retratar o homem comum. Esse homem comum cantado em Conheço o meu lugar. A câmera filma os seres ordinários no espaço: os corpos inventam poses, posturas que se constituem como imagem, uma fotografia feita pelo cinema. “O que é que pode fazer o homem comum / neste presente instante senão sangrar? / Tentar inaugurar a vida comovida, / inteiramente livre e triunfante?”. É sempre essa uma questão central: o que é que podemos fazer? É a questão sobre a potência e sobre como fazer a passagem para o ato. Na canção de Hyldon, o lugar de respiro é na sombra de uma árvore. Tanto em um filme como no outro, é marcante o desejo de intervenção no mundo, de tornar urgente o desconforto com lugares. Se em um deles, um personagem é tomado como intercessor para estabelecer as relações entre filme e cidade, no outro a operação se efetua de forma mais intensa na própria mesa de montagem: é esse que passa a ser o lugar da constituição de tensões, desajustes e dissonâncias. “Larga de ser boba e vem comigo. Existe um mundo novo e quero te mostrar”, ouvimos na canção de Hyldon. E o convite que se materializa nas imagens é de um embalo para também 125
acreditar em outros mundos possíveis, não apenas um mundo já projetado e concebido, mas um mundo aberto, indecidível, incerto. Sobretudo um mundo em que a vida possa proliferar. Há como que uma dimensão desejante de ação nos dois filmes, de que os interessados intervenham (lembremos as frases ditas por Tavinho Teixeira em Retrato), de que eles sejam mais inconformados com o próprio trabalho e que mobilizem novos lugares, novas sensibilidades, novos recortes do espaço e do tempo. E o que o cinema pode fazer? O que no encontro é possível desencadear? A questão sobre a potência do cinema e das imagens nunca foi tão urgente. Mas é, sobretudo, a questão de como devolver essas inquietações ao espectador que precisa ser constantemente recolocada em debate. Nesse sentido, Fort Acquario é um filme bastante direto e claro no seu gesto de endereçamento. E seria preciso assumir desde já que falamos aqui do lugar de quem se vê completamente atravessado pelas questões impressas nas imagens do filme. Não se trata aqui de simples identificação ou de reconhecimento, mas de um contágio pela força de conflito que o filme estabelece com o mundo. E essa contaminação pelo embate tem a ver com o espaço urbano de Fortaleza, mas também com uma lógica de organização que perpassa tantos outros projetos pelas cidades brasileiras. Essa escrita do desajuste gera movimento em outros corpos, porque tem justo na simplicidade do gesto a capacidade de mostrar quão ostensiva é a distância entre os discursos das gestões e os modos de habitar trazidos pelas vidas que constituem as práticas desses espaços. O projeto megalomaníaco de construir um Aquário na região da Praia de Iracema em Fortaleza tem uma violência absurda e um deslocamento completo em relação às experiências de toda uma cidade, especialmente dos sujeitos que vivem na região do Poço da Draga, a área mais imediatamente afetada pela obra. Uma série de mobilizações perpassa a história recente da cidade, para resistir à realização do empreendimento. No cinema mesmo, se pensarmos no gesto crítico ao projeto mais amplo que veste o nome de “revitalização”, seria possível lembrar filmes como Proibido pular, de Lucas Coelho, ou Negócio de Macaco, de Victor Furtado. São dois trabalhos de 2012 que, atravessados pelas forças do presente e pelo desejo de espalhar uma inquietação com o mundo, mostram o quanto as tensões com uma perspectiva de desenvolvimento da cidade vem sendo travada incansavelmente. E o cinema vem aqui fazer parte 126
das redes que criam laço na vida coletiva. Se esses filmes, junto ao mais recente Fort Acquario, não cessam de reverberar uma urgência, é porque as batalhas continuam chegando à porta e convocando as formas expressivas da imagem para uma disseminação em meio às formas de luta vividas no mundo. O cinema passa a ser, então, o campo de experimentação de táticas de resistência. O cinema coloca-se contra o espetáculo. E a operação aqui passa por desnaturalizar o que se apresenta ao olhar, tornando tudo difuso e inapreensível como dado. Imagem sobre imagem, rosto sobre rosto. Em Filme Selvagem, tudo borra, tudo passa por uma operação que torna os contornos indiscerníveis e que trabalha as imagens numa perspectiva de mixagem, com efeitos de sobreimpressão e com a criação de vizinhanças entre som e imagem. É preciso percorrer as veredas que o filme vai torcendo. Uma política da imagem se dá também quando a lógica da clareza e da evidência são desconcertadas, e as relações de dominância e de causalidade entre as imagens se perdem num fio de repetição, vertigem e desprolongamento dos movimentos naturais, para torná-los aberrantes. Se o texto vem com grande força marcando um tom e um discurso ao longo da projeção, a própria investigação quebra esse curso, gera a interrupção, faz a imagem desaparecer, a leitura ser subitamente cortada para abrir a fenda no próprio discurso do filme. Tela vermelha. Talvez aí um lampejo de um espaço vazio aberto ao trabalho do espectador, sobretudo quando a palavra marcada é posta em falso. É o próprio cinema que se revela, na sua intermitência, na sua impossibilidade, em cada um desses gestos realizados por Pedro Diógenes. Mas trata-se de uma impossibilidade que é justo o ponto potente para criar o possível. Impossibilidade porque o campo de possíveis não é dado. Esgotar e descriar o cinema, voltar a um ponto de insignificância, de imagens insignificantes, que não tendo significado, abrem-se tanto mais à sensação. As intervenções videográficas instalam crises selvagens no próprio texto lido. Oscar Wilde precisa vir, mas não deve vir solene, enquadrado num gesto canônico. É preciso que o cinema se instaure como campo de experiência em crise com ele mesmo, selvagem com imagens, textos, formas, paradigmas, referências. Sem fito, sem borda, sem sintonia. Um método selvagem de montar, um método selvagem de pensar, imagens de um pensamento selvagem. Fabricar no cinema um filme selvagem, fazer disso um ponto de insubordinação a toda forma de governo, a tudo que tenta estabelecer o bom quadro, a boa forma, o bom comportamento e a vida como campo de restrições. Devirselvagem como uma dimensão política da imagem. 127
Assim como o urbano é lugar do enfrentamento e das contradições, parece ser impossível escapar, na escritura fílmica, também do embate e de uma condição marcada por idas e vindas. Voltemos para Retrato de uma paisagem: compor o retrato envolve perceber como a cidade se movimenta, como os corpos a habitam, como as formas se constituem. Compor o retrato tem a ver com observar os imprevistos da cena, arriscar numa conversa, inventar imagens que tornem visíveis outras possibilidades de sensação. As sobreimpressões que nos momentos iniciais aparecem na imagem talvez digam algo de uma intervenção criadora que compõe o retrato justo na relação necessária entre sujeitos e corpo urbano, que mistura os seres quaisquer entre eles, que embaralha coordenadas e faz da imagem um campo de experimentação da própria vida em comum. Porque seria essa talvez uma busca de fundo que perpassa o filme: como traçar figuras do comum? Aproximar-se do homem comum, na sua vida cotidiana, nos seus desejos, sonhos, nas suas definições sobre a vida. Constituir o comum, na abordagem fílmica que pensa um coletivo, que toma para si uma tarefa política de intervir na cidade, para pensar outras comunidades. Lançarse num espaço comum possível, em que intercessor, realizador e sujeito abordado possam viver a diferença, fundamental para o estar junto na polis. É então que o caráter direto de Fort Acquario encontra tanta potência de reverberação. As fotografias feitas por Victor de Melo são incrustadas pelos modos de viver daqueles que já ocupam e tornam vital aquele espaço. A resposta ao discurso do arquiteto responsável pela obra do Aquário, trazida em off, está nessa maneira mesma de constituir vida em comum, o que já acontece a despeito dos poderes e dos projetos de espetáculo que pretendem reproduzir por aqui as mais recentes novidades tecnológicas. O gesto do filme é simples, porque ele encontra justo naquilo que já está em fluxo no mundo a matéria para operar uma tensão fundamental, para evidenciar um descompasso. Da mesma forma, os materiais que revelam o lado do poder, se pudermos dizer assim, já estavam disponíveis, divulgados publicamente para espalhar a lógica do projeto. Fort Acquario vem, então, contrariar a operação mesma dessa disseminação espetacular, com um trabalho de montagem que não é simplesmente dialético, mas tem muito mais a ver com o contrabando e com o desvio. É como se fosse preciso introduzir um princípio de hackeamento nas imagens do poder, torná-las inoperosas nas suas finalidades primeiras e coabitá-las pelas vidas que elas negam. Devolvidas ao mundo em 128
outras escalas e em descontinuidade com seus projetos, as visualidades institucionais perdem o lastro com seus cálculos. Se em Filme Selvagem, havia alguns procedimentos formais parecidos, especialmente quando se tratava de colocar em fricção certos projetos de mundo, aqui parece que essa pesquisa ganha uma força mais atada à vida de todos os dias, numa contaminação muito intensa com o lugar de onde se parte e no qual se pretende intervir. Filme Selvagem lidava com a tensão pelas sensações videográficas, não sem algum risco de se colocar muito distanciado do universo que era posto em crise. Fort Acquario não pode se permitir essa posição de recuo, e as fotografias utilizadas são emblemáticas de uma intimidade com esse espaço e de uma implicação completa naquilo que está em jogo aí. Ao mesmo tempo, parece que estamos aqui diante de uma reflexividade maior quanto aos limites do próprio cinema: não se trata de despertar consciências ou de mudar o mundo com a imagem, mas de engajar-se junto a uma série de lutas em curso, tornando o filme mais um corpo em processo de disseminação e de contágio com as vidas que resistem. Fort Acquario é gesto que se empenha, de um lado, no embate para pôr em defasagem os discursos do poder, e de outro, no desafio de se fazer em regime de contiguidade com as existências que já ocupam a praia durante todos aqueles domingos de sol em Fortaleza.
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ideias e formas, matéria e memória1 victor guimarães A situação criada por um festival do tamanho de Tiradentes, com seus mais de cem filmes em exibição, é bastante propícia ao jogo – às vezes, inconsciente – da comparação. Especialmente nas sessões de curtas-metragens, a curadoria propõe relações, sugere reverberações de um filme em outro, potencializa ou prejudica a experiência de cada um. Mas para além do desenho proposto por cada sessão (e da pueril necessidade de definir cada obra como melhor ou pior do que as outras), há também aqueles filmes que, mesmo exibidos em dias diferentes, saltam aos olhos e aos ouvidos não apenas por sua potência própria, mas por compartilharem motivos, traços, projetos que os excedem enquanto obras individuais e permitem lançar um olhar menos individualizante sobre o cinema (mas também, inversamente, um olhar mais acurado sobre cada um). A comparação, no entanto, é um exercício que comporta sempre uma boa dose de risco. À primeira vista, o principal problema residiria na possibilidade de não ser específico o suficiente, de não oferecer ao filme aquilo que ele mais pede: tempo e atenção para existir, nem que seja no espaço da sessão, sozinho. Mas se o risco é real, há também algo potencialmente profícuo no gesto comparativo: a análise pode revelar, no cotejo, virtudes e problemas que um olhar centrado apenas em um único filme seria incapaz de trazer à tona. Deter-se – no mesmo movimento crítico – sobre um par de obras pode revelar nuances de uma proposta (a princípio) comum, desvendar forças subterrâneas, descobrir dificuldades insuspeitadas. Em suma: comparar para melhor encontrar o que constitui o plural, mas também para melhor enxergar o singular. — 1. Publicado originalmente na revista Cinética em 8 de fevereiro de 2014 – www.revistacinetica.com.br. Agradecemos a autorização da republicação no catálogo.
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O Porto e Em Trânsito, exibidos na mostra Panorama, partilham de um mesmo território existencial: a cidade contemporânea, com seu afã desenvolvimentista e suas múltiplas contradições (expressas tanto na revitalização da zona portuária carioca figurada pelo primeiro como na demolição do barraco do protagonista que dá início ao segundo). Se o motivo é semelhante, a postura diante dele também é: seja na abordagem observacional de O Porto, seja no embate direto proposto pela ficção de Em Trânsito, o que está em jogo é um olhar profundamente crítico em relação à ideia de progresso, que aponta as contradições do capital para melhor combatê-las com o cinema. Mas se a crítica à iminente transformação urbana – que associa, no capitalismo brasileiro, especulação imobiliária e higienização social – já se tornou uma espécie de tema clichê entre nós (atravessando filmes tão diferentes quanto Um Lugar ao Sol, Avenida Brasília Formosa, Vista Mar, Em busca de um lugar comum, Vigias, O Som ao Redor, Câmara Escura, A Cidade é uma só? ou até Amor, Plástico e Barulho), as maneiras de abordá-la têm sido muito diferentes, com resultados mais ou menos inventivos. Tanto Em Trânsito quanto O Porto dialogam com esse universo de filmes, mas seguem caminhos bastante próprios. E se um clichê é uma imagem que perdeu sua potência de afetação, arrebentá-lo por dentro é tarefa primeira de ambos. O Porto se destaca desse contexto, à primeira vista, por travar um diálogo menos com esse cinema brasileiro recente do que com certa produção experimental contemporânea, que encontra em nomes como Lee Anne Schmitt, Deborah Stratman ou James Benning alguns de seus mais notáveis expoentes. Com um filme como California Company Town (2008), de Schmitt, o filme de Julia de Simone, Clarissa Campolina, Luiz Pretti e Ricardo Pretti partilha um olhar sobre a paisagem devastada pelo capital, uma mirada que se interessa pela arquitetura como vestígio de um processo histórico e político. Com a obraprima In Order Not To Be Here (2002), de Stratman, tem em comum uma verve materialista que procura produzir sentido a partir da espessura mesma dos espaços, de sua reinvenção em imagem e som, em uma rejeição quase total da palavra como veículo de significado. Junto da tela preta que abre o filme, a melodia triste e repetitiva das máquinas de construção nos instala em uma paisagem sonora bastante conhecida da urbe, ao mesmo tempo em que começa a nos transportar para a cidade pósapocalíptica que será a do filme. O som cotidiano é transmutado em gesto de cinema, que encontrará no tratamento material das imagens sua contrapartida visual: os primeiros planos de O Porto conferem à paisagem da região portuária 131
uma aparência aquática, como se uma câmera submarina – vinda de um outro tempo – viesse redescobrir uma arquitetura pretérita, uma Atlântida carioca uma vez perdida e reencontrada na estranheza do olhar. Tradução cinematográfica da letra de Chico Buarque: “E quem sabe, então/O Rio será/Alguma cidade submersa/Os escafandristas virão/Explorar sua casa/Seu quarto, suas coisas/Sua alma, desvãos”. Essa câmera escafandrista encontrará as pichações nos viadutos, as alegorias carnavalescas que se movem lentamente, um vulto que se movimenta sob uma luz no fim de um túnel, as pedras de uma construção abandonada a meio caminho. E então, de súbito, um som eletrônico lentamente se metamorfoseia em funk, e a cidade submersa torna-se luminosa, vibrante – apenas para tornar-se novamente aquática na imagem seguinte (que nos mostra uma placa de 1843, comemorativa do “embelezamento” do antigo Cais do Valongo para a chegada de D. Tereza Cristina). Expõe-se o vestígio de um processo histórico que se repete, na sucessão de mentiras constitutivas de nosso afã civilizatório. A profecia amorosa de Chico encontra sua reinvenção distópica: “Sábios em vão/Tentarão decifrar/O eco de antigas palavras/ Fragmentos de cartas, poemas/Mentiras, retratos/Vestígios de estranha civilização”. Mas O Porto descrê dos discursos, sabe que a tentativa de explicar é fadada ao fracasso, e segue em sua crença decidida em extrair pensamento da concretude da matéria: encontraremos os iates avantajados, novamente o carnaval, o trânsito, os prédios (na panorâmica que conduz da igreja ao edifício envidraçado), à medida que um outro clima sonoro se instala (um grito à base de cordas agudíssimas, um prenúncio de terror fundado em ruídos graves que remetem aos navios) para contaminar a sequência seguinte, que consiste em uma projeção arquitetônica digital do futuro daquela região (sai de cena a “feiura” dos viadutos, chega como presságio a higiene das novas avenidas arborizadas, habitadas por cidadãos de videogame). O travelling final reverte uma imagem tida como fundadora do cinema brasileiro, a vista da Baía de Guanabara de Afonso Segreto: se aquela era um anúncio de um cinema por vir, a despedida do Rio em O Porto é tingida de cores baças, sem esperança de futuro algum. Há, certamente, uma investigação poderosa em jogo no filme: trata-se da acepção godardiana do cinema como “forma que pensa” em sua compreensão mais cristalina e sem concessões, que consegue diversas proezas: a imagemmergulho que torna profundamente estranho o que pareceria corriqueiro; o parêntese funkeiro no lamento melancólico; o festejo da projeção da cidade 132
higiênica contrariado pelo trabalho sonoro que anuncia o desastre iminente do projeto modernizador. Mas há também alguns riscos, dos quais o filme não se desvencilha de todo. Em certos momentos, a atenção detida às coisas em si mesmas esbarra na produção de uma abstração que anula a singularidade do fenômeno visado: quando insiste em demasia sobre motivos semelhantes, quando deixa de nos surpreender em sua repetição (compreensível como projeto, mas não tão potente como forma acabada), O Porto termina por fazer com que o Rio se pareça demais com outras cidades arrasadas pelo capital, ou com uma cidade-capital genérica. Por outro lado, quando não leva o gesto materialista suficientemente a cabo, o filme corre o risco de fazer não com que a concretude não nos diga nada (problema mais recorrente em certo experimentalismo de curta-metragem brasileiro), mas sim com que ela seja facilmente traduzível em palavras, perdendo algo da força de sua ambiguidade vibrante. Em Trânsito, por sua vez, segue uma trilha diametralmente oposta. O filme de Marcelo Pedroso retira toda sua força da aposta estética inversa: em vez da crença na matéria silenciosa como produtora de sentidos, há um investimento na contrainformação direta, no panfleto inflamado e raivoso que não hesita por um só momento em encher-se de verbo, em transformar o cinema em arma discursiva de luta campal. Seu diálogo é com outra vanguarda: a da vasta história da contrainformação fílmica – da cooperativa Cinéma du Peuple a Medvedkine, do Newsreel ao grupo Dziga Vertov, de Masao Adachi a Santiago Álvarez –, que Nicole Brenez têm feito questão de reivindicar como um vasto campo de invenção formal (associada à importância histórica ou política no sentido da disputa ideológica). Em Trânsito postula um estado abertamente colérico e panfletário do cinema (e, na mesma medida, recheado de humor e de sarcasmo), que reenvia aos ciné-tracts de Godard, Garrel, Resnais e outros. Logo no prólogo, delineiam-se as forças em disputa: um plano geral dá conta do pátio de uma imensa fábrica de automóveis, mas revela também os arranhacéus da cidade ao fundo (a produção de carros e a produção da cidade fazem parte da mesma rede). O corte nos transporta diretamente para o interior de um quarto escuro, em que um homem negro, sem camisa e exibindo vistosos dreadlocks, desperta pela manhã com uma chamada no celular: uma gravação típica das campanhas eleitorais brasileiras pede votos para o candidato a prefeito em nome do governador de Pernambuco, Eduardo Campos. O protagonista escuta entediado, fuma, enquanto o filme interrompe a golpes de montagem a fala pasteurizada do governador: trata-se de dinamitar um discurso oficial com as armas do cinema, de acentuar seu ridículo na operação do filme. 133
Enquanto seu barraco é demolido por um trator, o protagonista parte em uma deriva pela cidade: pega um ônibus, entra em uma concessionária de veículos e experimenta o ar-condicionado de um deles, atravessa a pé um grupo de cabos eleitorais uniformizados do tal candidato a prefeito. O homem sem nome é um corpo estranho em uma cidade que não lhe pertence; tudo em sua figura destoa da paisagem higiênica ao redor. Ao deparar-se com uma figura de Eduardo Campos em papelão, o filme os coloca frente a frente sobre um fundo branco, e o homem do povo pode imaginar-se na mesma postura corporal do governador. Sua jornada então se torna onírica: enquanto ouvimos o ufanismo seletivo da presidenta Dilma (“O sucesso do Brasil é também o sucesso da indústria automobilística”) e uma música de tom cômico, vemo-lo transfigurar-se em funcionário da fábrica de automóveis e em proprietário de um carro popular, até que um buraco na estrada interrompe o breve sonho de grandeza. De volta ao fundo branco e ao confronto com a face do poder, o filme lhe concederá a vingança possível: decapitar Eduardo Campos, tomar-lhe a cabeça de papelão tornada máscara que o converte em super-herói, reger com os movimentos dos braços a máquina que ergue e destrói a cidade, tornar-se um maestro improvável da coreografia circular dos automóveis que o saúdam (Holy Motors!) ao final da música grandiloquente. Há algo que urge e demanda vingança no cinema brasileiro contemporâneo – pelo menos desde o percurso quixotesco de Dildu em A Cidade é uma Só? –, e o filme de Pedroso fará da paródia sua principal arma de provocação. Sua força está no embate direto, no dar nome aos bois, no transpor a fratura que separa os corpos do poder dos homens sem importância pela via do excesso. Mas se seu vigor é inegável, há também um risco simétrico ao de O Porto, porém diverso: trata-se aqui da ideia que esbarra na tentação de suplantar a matéria, da contrainformação que corre o risco de ser ainda (apenas) uma informação, da antiga tentação do cinema militante (tal como a concebeu Serge Daney) de transformar a forma cinematográfica em veículo de pensamento fabricado em outro lugar. A demolição do barraco – cuja iconografia remonta à célebre sequência de As Vinhas da Ira (1939), de Ford – está lá, figurada, mas não carrega a potência trágica da imagem que é capaz de nos transformar em sua figuração (e não apenas em sua mensagem). O panfleto é urgente e certeiro, mas é mais forte quando deixa de ser apenas panfleto, quando não permanece essencialmente vinculado ao presente (Eduardo Campos, Pernambuco, Brasil): a regência do maestro negro que paira magicamente sobre a cidade tem a força das imagens eternas, porque singulares.
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Tanto O Porto como Em Trânsito encampam – em seus próprios termos, que não poderiam diferir mais – uma postura firme de enfrentamento e reconfiguração do discurso desenvolvimentista que parece constituir o único horizonte político possível no país atualmente. E se ambos guardam alguns dilemas (são sempre mais fortes quando ferem a previsibilidade de uma forma homogênea, quando encontram na singularidade insubstituível dos gestos de cinema uma chance real de nos colocar em crise), há aqui um notável par de filmes políticos, que exibem um labor estético vigoroso e pulsante. Num momento em que tantos filmes decidem trilhar caminhos semelhantes, que esses dois consigam se impor como formas singulares é motivo de festejo e de esperança.
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paulo emílio, vigo, o porto1 ricardo pretti Paulo Emílio Sales Gomes, em seu livro imprescindível sobre o Jean Vigo e sua obra, resgatou umas anotações feitas pelo próprio Vigo na época da filmagem de A Propósito de Nice, que reproduzo aqui: A. Nice é antes de tudo uma cidade que vive do jogo. B. Tudo nela é feito em função do estrangeiro: 1. Os grandes hotéis etc. etc.; 2. Chegam os estrangeiros; 3. A roleta; 4. Os que vivem dela. C. Os nativos não são, no fundo, mais interessantes que os estrangeiros. D. O conjunto, aliás, está fadado à morte. Refletindo sobre essas anotações e esse grande filme feroz sobre a cidade de Nice que nos serviu de inspiração à época da filmagem do nosso filme O Porto, resolvi fazer uma atualização para o Rio de Janeiro: A. Rio de Janeiro é antes de tudo uma cidade que vive da mídia e do espetáculo. B. Tudo nela é feito em função do estrangeiro: 1. Os grandes hotéis etc. etc.; 2. Chegam os turistas; 3. O balneário; 4. Os que vivem dela. C. Os nativos não são, no fundo, mais interessantes que os estrangeiros. D. O conjunto, aliás, está fadado à morte.
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cinema atual1 (o brasileiro sem dúvida, mas não só) luiz pretti Li essa crítica de Raymond Berner sobre Jean Vigo e seu filme L’Atalante (que na época foi lançado com o título de Le Chaland Qui Passe por razões comerciais) no livro de Paulo Emílio. É um desses textos que podem ser aplicados a qualquer época. De forma muito simples ele fala da nossa maneira de nos relacionar com a arte (seus mistérios), de como acreditamos que ela deva se submeter a um ideal de perfeição que no fundo esconde a caretice instaurada nas nossas posições perante o mundo e, lógico, perante a arte. Me parece que a situação de L’Atalante e a recepção que teve na época não é tão distante da nossa situação atual e da recepção dos filmes feitos por realizadores em seus primeiros longas. Acho que o texto do Berner deixa bem claro o que penso. Ele começa assim: Ora, meu Deus, não é uma obra-prima. Mas nem Chaplin, nem Lubitsch, nem Feyder realizaram uma obra-prima em seu terceiro filme ou, se preferirem, na sua primeira grande produção. E este é mesmo o drama dos jovens de hoje: eles não têm o direito de errar. Antigamente o público, menos educado, menos exigente, sabia se contentar com um mais ou menos: hoje, repleto de uma perfeição mais aparente que real, perfeição na mediocridade, já não admite certo ar de incoerência que às vezes não passa da expressão de um talento não totalmente maduro. Le Chaland Qui Passe, já que temos de chama-lo pelo seu novo nome, é um filme em que o talento explode a todo instante, de um jeito imprevisto, violento, desconcertante. O público fica desorientado por não encontrar ali a atmosfera fácil e perfumada na qual se move sem esforço. E vaia tontamente... — 1. Publicado originalmente em 23 de julho de 2014, no site da Alumbramento Filmes: www.alumbramento.com.br. 138
Houve quem só quisesse enxergar as atrapalhações meio pesada de algumas cenas, a falta de coesão do filme. Os defeitos existem, é incontestável, mas serão assim tão graves que tenhamos de condenar o todo sem apelação? E aí ele termina com: Esperemos que Jean Vigo filme em breve uma nova fita, na qual possa mostrar todas as suas qualidades, firmadas pela experiência. Hoje sabemos que L’Atalante foi o último filme de Vigo e que, ainda assim, isso não impediu que ele (a posteridade) proclamasse seu lugar na história do cinema. Não quero dizer que há Vigos em potencial entre os jovens realizadores aqui no Brasil. O que quero dizer é que a recepção dos filmes revela sempre mais de nós mesmos que dos filmes. Por isso, lhes imploro humildemente (espectadores, historiadores, críticos, curadores, jornalistas e a quem mais interessar): não esperem dos filmes a perfeição, a clareza e a adequação, pois não é disso que eles são feitos. Esperem sim que eles sejam excessivos, desajeitados, impulsivos, pulsantes, inacessíveis, incertos, tateantes, revoltados, instáveis, sensíveis, brutos... E tenham a certeza de que aí também mora a poesia.
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com os punhos cerrados1 fernando oriente O novo longa de Luiz Pretti, Pedro Diogenes e Ricardo Pretti, Com os Punhos Cerrados começa com uma questão posta aos personagens bem como ao espectador: “O que fazer?”. Essa mesma questão também estava presente no início (e a ao longo de toda a duração) dos dois filmes anteriores do trio Estrada para Ythaca (2010) e Os Monstros (2011), esses dois também co-dirigidos por Guto Parente. Esses filmes, bem como o trabalho dos cineastas e do coletivo Alumbramento, partem de uma inquietação social com o momento em que vivemos e com um desconforto em relação ao papel do cinema e da arte que seja capaz de traduzir esses tempos e suas angústias. Com os Punhos Cerrados teve sua estreia mundial no Festival de Locarno 2014, que aconteceu na cidade suíça entre os dias 6 e 16 de agosto. Em ‘Com os Punhos Cerrados’, vemos os diretores, que também interpretam o trio de protagonistas do filme, em um momento divisório, em que o inconformismo com o estado das coisas os abriga a agirem. Eles montam e transmitem uma rádio pirata, com textos e músicas anarquistas, em que atacam a sociedade capitalista e os conceitos engessados e reacionários do Estado e a apatia alienada de uma sociedade perdida entre a obrigação do trabalho e os desígnios consumistas que a vida estabelece para inserir as pessoas em seu jogo monótono. O trabalho dos diretores é construído por meio da autonomia dos planos, que trazem uma relação física e poética entre os personagens, os textos, suas inquietações e as limitações espaciais e políticas que estão contidas nos espaços em que estão confinados. Elementos dramáticos são acrescentados — 1. Publicado originalmente no site Tudo Vai Bem em 28 de agosto de 2014 – www.tudovaibem.com. Agradecemos a autorização da republicação no catálogo. 140
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ao longa como comentários sarcásticos. Primeiro um vilão propositalmente caricato que representa os valores do capitalismo e do pensamento autoritário e moralista da direita brasileira. E, mais interessante ainda, a presença de uma jovem sedutora que é enviada pelo vilão para se infiltrar entre o trio de protagonistas para servir de espiã de suas ações. As cenas com a jovem, que acaba se envolvendo física e emocionalmente com os três personagens centrais é um achado no filme. Os longos planos em que ela permanece em silêncio, observado e escutando o que dizem e fazem, o olhar melancólico da moça, as lágrimas que escorrem de seus olhos são uma potencialização das idéias e das angústias em que vivem os jovens anarquistas. Ela passa de agente alienado a serviço de uma causa canalha a uma mulher que se mostra capaz de entender, se envolver e, principalmente, sentir os significados do discurso e as dores dos jovens. É um colocar-se no mundo o movimento vivido pela jovem interpretado por Samya de Lavor. O filme não prega soluções, não aponta caminhos para conquistas. O que os diretores/personagens fazem são pequenos atos de resistência, são reações necessárias a eterna questão “o que fazer”. Os planos longos, os enquadramentos oblíquos, o excesso de imagens capturadas através de panos, lenços e em meio a objetos de obstruem uma visão limpa dos espaços impulsionam as sensações claustrofóbicas em que as ações e intenções do trio estão condenadas. Os três personagens centrais praticamente não conversam. Dialogam por meio dos textos que lêem, dos olhares que trocam, dos silêncios a que estão inseridos e aos movimentos e ações que se dedicam por uma simples necessidade de ação, de movimento, de seguir adiante. Entre os textos lidos ao longo de Com os Punhos Cerrados estão Antonin Artaud, Elie Faure, Oswald de Andrade, James Joyce, William Powell, além de textos dos próprios cineastas e um discurso seguido de uma poesia lida pelo amigo, poeta e também cineasta Uirá dos Reis, que participa de uma das mais belas cenas do longa. Os textos, a relação dialética entre as palavras lidas com as imagens, silêncios e movimentos (dos personagens e da câmera) constituem uma afirmação do poder dessas palavras em meio à inação a que somos condenados. As possibilidades das significações dessas palavras aumentam a angústia e a dor de viver em um mundo sem possibilidades de auto determinação dos seres.
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Com os Punhos Cerrados, dentro de sua encenação solta, aberta aos espaços e as percepções do espectador, segue a linguagem dos cineastas, presente tanto em seus longas anteriores, quanto em alguns de seus mais significativos curtas. O respeito pelos ambientes a e a relação desses com os personagens e com a câmera são elementos centrais no cinema dos diretores. Outra presença forte no filme, que também era notada em Estrada para Ythaca, é a influência dos filmes que Jean-Luc Godard fez em sua fase política mais radical do final dos anos 60 e primeira metade da década de 70, principalmente nos filmes que Godard fez com o coletivo Dziga Vertov, como Vento do Leste, e Tudo Vai Bem, entre outros. Só que os diretores cearenses atualizam essas influências e a traduzem para os dias de hoje. A necessidade dos personagens fazerem suas vozes, suas palavras e idéias serem ouvidas (via rádio pirata) é a mesma necessidade dos cineastas fazerem existir o seu cinema. A luta sem possibilidades de ser vencida do trio protagonista é como o cinema feito com independência e originalidade pelos irmãos Pretti e Diogenes, bem como por todo o coletivo Alumbramento e outros artistas que produzem esse cinema inquieto e talentoso que não para de apontar caminhos, conquistar espaço e oferecer filmes consistentes e cheios de possibilidades.
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reflexões após a estreia de com os punhos cerrados no festival de locarno1 ricardo pretti Resolvi escrever após a experiência de passar em Locarno o filme Com Os Punhos Cerrados, que dirigi com Luiz e Pedrinho. Pra mim, é uma forma de digerir tudo o que aconteceu, mas também um jeito de exprimir ideias ainda incubadas, com a esperança de brotar alguma coisa. Realizamos este filme com pessoas extraordinárias e profundamente responsáveis por toda a beleza e sentimento que o filme tem. São pessoas feitas de cinema, teatro, poesia, música, pintura, história e muito amor. Fazer um filme, pra gente, é dizer: “quero continuar lutando e amando”. Resolvi escrever sobre esses dias que passei em Locarno mostrando o filme, porque é uma forma de aumentar a proximidade com quem já me sinto próximo. Mostrar um filme pra mim é dizer: “quero ir mais longe com vocês”. Mas também resolvi escrever esse texto pra me aproximar de quem nos apoiou no financiamento coletivo, responsável pela viabilização econômica da finalização de nosso filme (30 mil reais), e que acabou nos proporcionando — 1. Publicado originalmente em 3 de setembro de 2014, no site da Alumbramento Filmes: www.alumbramento.com.br. 144
muitas outras alegrias: troca de e-mails, mensagens no facebook, e mais os desenhos da Clara Moreira e do Filipe Acácio. Seguindo o fluxo, resolvi escrever para os nossos parceiros na pós-produção. Por isso escrevo para o Edson Secco, um artista muito sensível no trabalho com o som, e idem na vida, na política e inevitavelmente no cinema. E escrevo para o Victor Furtado, grande amigo e artista, que nos presenteou um dia e meio na Labocine para fazermos a cor com o Fabio Souza, em conjunto com o Guto e o Ivo. E pra terminar, escrevo para as pessoas que trabalham nas instituições que foram, em parte, responsáveis pela nossa ida a Locarno: MRE, Dragão do Mar, ANCINE e Secult-CE. Essa é a minha maneira de prestar conta com vocês. A faço com toda sinceridade e vontade de trocar. (Escrevo pra quem nem conheço e ainda assim me sinto próximo). São muitas razões pra escrever, e no entanto escrever só me é possível num impulso, consequência de uma inconsequência. Escrevo porque sou livre. No momento em que escrevo estou dentro de um trem escutando “Olha o Menino”, do Caetano Veloso. Proponho pra quem estiver lendo parar um momento e escutar uma música preferida do Caetano. Se permitir uma digressão é sempre bonito, é uma forma de romper com a objetividade. Estou olhando para uma imigrante africana e seus quatro filhos que finalmente dormiram (uns minutos atrás ela enfiou a mão na cara da filha mais nova que chorava-gritava). Logo à frente, uns chineses estão se acalmando, falando um pouco menos e terminando de comer, enquanto isso observo ao lado um casal de jovens italianos que leem livros grossos (storia tradizione e inmagine: san sebastiano al vesuvio). Eles se parecem um pouco comigo e a Julia, que está ao meu lado preparando o seu novo projeto de filme. Ela ajeita fotos de imperadores e imperatrizes portugueses que foram recentemente exumados em São Paulo. Por uma razão não muito clara, essa digressão me faz ter certeza que o cinema é uma experiência coletiva, queira ou não queira. Penso que mesmo uma suposta primeira ideia de um filme, aquela que vem de repente, aparentemente quase sem esforço, é fruto de uma coletividade.
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Mas, ao mesmo tempo, o que torna o cinema especial é que sua coletividade não tem bandeira, não forma uma pátria, nem determina fronteiras. Mostrar o filme numa sala escura, gesto final de um intenso processo coletivo, não se realiza na demarcação de territórios e línguas, mas no universo livre das formas e das ideias. Mostrar um filme é fruto de um desejo coletivo concluído em um espaço de múltiplas dimensões: o cinema. O cinema é livre e sempre será (depois de algum chão percorrido, vejo que o que mais advogamos com ardor esses anos não foi apenas a coletividade, mas a liberdade: o cinema coletivo). O que define o cinema? Sei que ele nunca será uma instituição, antes de tudo, será uma força da imaginação. Sei que ele nunca será uma indústria, pois o cinema sobreviverá pra muito além dela, mesmo tendo nascido dela. Não existe política pública, terrivelmente necessária, que irá diluir o livre fluir das ideias humanas e singulares, das relações terrestres e extraterrestres. Não existe especulação financeira, terrivelmente atroz, capaz de dissipar a força do cinema, a sua poesia. Já fizeram de tudo e continuam fazendo, mas de nada adiantou. A publicidade acha que venceu, os distribuidores e exibidores acham que a publicidade venceu, mas quando eu assisto Zéro de Conduite, do Jean Vigo, numa telinha de avião num voo pra Paris, ou quando eu assisto Amantes Crucificados, do Mizoguchi, num cinema de rua, eu sei que eles não venceram e nunca vencerão. A publicidade é burra e vaidosa, só entende o que é novo, mas não percebe que esse novo é vazio. Um jornalista português taxou o nosso filme de démodé, entendi que para ele o cinema e a política se tornaram propriedade da moda, ditadura do novo. Esse mesmo português disse que João César Monteiro foi responsável pelo divórcio do público português com o cinema português. Nos disse, com bastante certeza, que na época do lançamento do filme Branca de Neve, o jornal nacional da tv portuguesa transmitiu o “escândalo” da estreia de um filme todo em tela preta realizado com financiamento público. Repito o gesto de João César à tv e digo a esse português: “Que se foda o público!” E acrescento: “O cinema é um processo e desejo coletivo, não é propriedade de ninguém, queira ou não queira. Não existe divórcio e não existe a entidade “público”, isso seria um absurdo. Mas o filme continua aí e continuará sendo visto e amado”.
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Mas voltando à exibição do nosso filme. Estamos constantemente procurando com quem dialogar, com quem compartilhar sonhos. Essa procura já nos levou a muitos lugares e já nos colocou em muitas situações. Dessa vez foi a Suíça que encontramos. Um dia antes da estreia, fomos passear no lago Maggiore e demos de cara com um pessoal punk e seus cachorros. Pensamos em convidá-los pro filme, mas lembramos que o ingresso custava 12 francos suíços e que provavelmente eles não teriam condições financeiras. O cinema, de forma geral, se tornou um evento pra elite, realizado por profissionais. Isso me entristece muito. Ainda não sei quem são as pessoas que vão conseguir se relacionar intensamente com o filme. Os mais jovens e os mais velhos são sempre a nossa aposta. Nossos filmes não funcionam muito com adultos, a não ser que eles sejam jovens ou velhos. Mas isso é muito vago. A gente fez esse filme pra nos despertar pra reflexão, pra nos mantermos atentos e fortes. A minha geração sabe muito bem fazer filmes pessoais e isso é muito importante e bonito (e em certa medida uma baita quebra de tabu), mas hoje acredito que também é importante terminar um filme pensando diferente de quando se começou a fazê-lo. Preciso fazer filmes que transforme o meu sentimento/ entendimento pessoal diante do mundo, ao invés de apenas confirmar o que já sou (sabendo que uma coisa não nega a outra, pelo contrário, é uma soma: o pessoal + a pesquisa = matéria prima). Fazer filmes sobre o que já (supostamente) sabemos, e ponto final, é colaborar com os controladores da boa cidadania, é escravizar o pensamento. Um filme deve ser um espanto também. Pra mim é muito importante fazer filmes sobre o que não sei, fazer filmes sobre coisas que as pessoas não sabem. Um filme precisa ter uma região escura. Ou então, gostaria de fazer filmes paradoxais, mas isso é muito difícil. De alguma forma tentamos inserir um paradoxo em Com Os Punhos Cerrados começando o filme com o final, e terminando com dois finais alternativos: eles morrem e eles vivem ao mesmo tempo - e ainda tem o bebê. O paradoxo pra mim é fascinante, mas quase nunca é apreciado, ou sequer percebido (só agora percebo que esse duplo final pode ter vindo do Liberty Valance, do Ford, ao meu ver, um dos filmes mais contraditórios do diretor que melhor fazia filmes contraditórios).
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Locarno é conhecido por advogar filmes de autor, ou seja, filmes que quebram as barreiras das convenções correntes no cinema comercial. Nós participamos de uma sessão chamada Signs of Life que, pelo o que eu entendi, é o lado B dos filmes de autor, filmes que impõem ainda mais dificuldades de se adequarem ao cinema comercial. Além de Com Os Punhos Cerrados, vi mais dois filmes dessa sessão: Fort Buchanan, de Benjamin Crotty, e Los Ausentes, de Nicolás Pereda. E por esses dois exemplos posso dizer que o lado B também está caminhando por um terreno minado por um novo conceito de mercado. Existe um risco muito grande que esses filmes correm: se tornarem previsíveis na invenção de linguagem que propõem, começarem a cumprir uma cartilha do cinema independente, serem caretas no próprio terreno da subversão, domesticarem a liberdade que os filmes pequenos costumam ter. Em suma, esses filmes correm o risco de nascerem enquadrados, de serem obras pré-fabricadas, quando deveriam ser justamente o oposto. Pelos filmes, dá pra perceber que a tentação de se enquadrar é grande, mas ainda são filmes que titubeiam. Às vezes são autênticos e outras vezes parecem conscientes demais de seu lugar no mundo. Às vezes são sensuais, às vezes são blasés. São filmes inteligentes demais pro seu próprio bem, mas burros o suficiente pra se permitirem ingenuidades que trazem um charme ou uma pulsão. Hoje os festivais de cinema estimulam e apoiam toda uma produção de filmes mais arriscados feitos por diretores mais jovens. Os festivais não se contentam mais em apenas exibir os filmes, então eles criam laboratórios de roteiro, de crítica e de realização, articulam com o mercado distribuidor o visionamento de work in progress, forjam micro-mercados para o desenvolvimento de co-produções etc. Os festivais, como todo o resto, precisam se reinventar pra sobreviver. De alguma forma eles também precisam crescer e sofrem os mesmos riscos. É na legitimação desse lugar que os diretores devem ficar mais atentos e fugir, a todo custo, da tentativa de domesticação de seu cinema, que qualquer instituição exige. No final do dia, são esses os maiores riscos que os filmes correm: o de serem domesticados por um novo mercado que dignifique os filmes de autor. Não é à toa que os jovens são os que mais correm esse risco, os mais suscetíveis, os mais colonizáveis. 148
Mas ao mesmo tempo a internacionalização da produção de cinema pode ser extremamente positiva. Eu aprendi muito trabalhando em filmes de outros estados do Brasil, e isso pode servir do mesmo jeito pra outros países. Pra mim não tem porquê existir crise de identidade ao filmar em outra cidade ou país, é mais uma forma de se colocar no desconhecido, pode ser motivo pra uma grande aventura, basta se permitir e deixar o mundo te invadir e ao mesmo tempo invadi-lo (o filme do Gustavo Beck, Inverno de Zeljka, é um ótimo exemplo pra mim). Talvez o exemplo recente mais forte que temos de cineastas que filmam em diferentes países são o Straub e a Huillet (exilados da França por muitos anos, já filmaram até no Egito). Mas tem também o Guerín e o Kiarostami. Indo mais longe, o cinema já tem até o seu próprio Gauguin: Murnau. Existem muitos exemplos que comprovam a força desse gesto. Ao meu ver o cinema profissional e industrial é muito mais responsável pela padronização global do cinema, pela perda de um charme local, pela ausência de mundo nos filmes. Vejo por todo lado essas produções sem personalidade. Filmes feito por bons alunos, onde o importante é tirar uma nota boa, e não (des)aprender realmente alguma coisa. Mas no final das contas, Com Os Punhos Cerrados é um filme absolutamente local. É um filme que só poderia ser feito em Fortaleza. Cada frame do filme está totalmente mergulhado na arte e nos artistas de Fortaleza. Tenho a firme convicção que o filme é único e irreproduzível. Por isso não acredito em crise ou busca de uma identidade nacional. No nosso filme usamos textos e músicas de muitos lugares e épocas diferentes. Do nosso humilde jeito tentamos formular um paideuma, e fazer uma defesa da poética sincrônica! Seguimos a tradição compromissada e rebelde dos irmãos Campos.
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sobre no lugar errado1 luiz pretti
Este filme nasce a partir de um encontro entre cinema e teatro. Um encontro às cegas que gerava um sentimento de ansiedade. Enquanto filmávamos, era sempre incerto o que ia acontecer no momento seguinte, o que nos exigia um estado de alerta constante. Sentíamos a adrenalina de quem se joga no escuro e isso nos atraía para esse filme. Nesse sentido No lugar errado está mais próximo de Estrada para Ythaca que de Os monstros. Mas o que em Ythaca era harmonioso aqui vira choque. Este é um filme de porrada. Porrada pra todos os lados. Vocês precisam imaginar que estão diante de um primeiro encontro, mas que ao invés dos bons modos e da formalidade habituais nesse tipo de situação você tem justamente o oposto: o excesso, a falta de pudor e o descontrole. Mas isso é apenas uma das camadas do filme. O trabalho e esforço que fica para o espectador é o de atentar para as outras, que também estão lá. Elas estão nas entrelinhas, nos intervalos. O filme dá dicas, tenta apontar praquilo que pode passar desapercebido, mas como sempre, em maior ou menor grau, ele depende de quem olha para se realizar. Quero então chamar a atenção para os corpos. Para a rapidez com que eles dialogam. Para o interplay entre eles, no improviso. A memória dos personagens está impressa nos corpos dos atores. Mas além dos corpos do atores em cena, tem também os nossos próprios corpos enquanto diretores que participam desse interplay. Atrás da câmera nos movimentamos constantemente para encontrar o nosso lugar no jogo estabelecido com os atore. Aliás, a palavra movimento pode ser a chave de entrada nesse filme. Os planos são estáticos apenas aparentemente. Nesse sentido No lugar errado está mais próximo de Os monstros que de Estrada para Ythaca. — 1. Texto escrito originalmente como apresentação de uma exibição do filme No Lugar Errado no Cine 104, dentro da Mostra Cinema Estética e Política, realizada pelo Grupo de Pesquisa “Poéticas da Experiência” da UFMG. 150
Mas No lugar errado é uma experiência particular. Foi um filme que nos possibilitou questionar o discurso que vínhamos construindo em nossos filmes anteriores (o Grupo Desvio Experimental nos colocou contra a parede e só temos a agradecer. Ainda estamos tentando assentar a experiência e entender como levá-la adiante). Por outro lado, o filme nos propôs o desafio (muito feliz pra qualquer diretor de cinema) de termos que nos colocar em cena de forma estritamente cinematográfica e ter de lidar com coisas básicas dessa arte como: a delimitação do espaço cênico, movimentação do ator em relação à câmera e vice versa. O teatro foi o nosso pequeno estúdio.
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ensaios sobre a amizade1 andré félix Talvez por ser um filme cercado de expectativas de continuidade de um projeto de cinema (e de uma certa ética), seja esse o que mais reações causou na Semana dos Realizadores de 2011. O filme cria um jogo de personagens muito áspero, que beira ao insuportável, e nisso reside a sua força. Inicialmente poderíamos aproximá-lo do trabalho que o cineasta americano John Cassavetes fez principalmente em filmes como Husbands e Faces. Personagens que parecem estar fora do sistema automático da atuação, improvisos e cenas em que do riso ao choro não há uma mudança no tom da cena. Mas em Cassavetes a grande investigação é o amor, não como sentimento, mas como uma onda (Love Streams), como um encontro do meio orgânico, com um meio inorgânico; aqui o fluxo histérico vai na direção de uma volatilidade do corpo, em que o percurso entre a estridência, a fadiga e o tédio apontam para uma mundanidade sem devir. Um tipo de naturalismo que se aproxima das experiências de Joseph Losey com Harold Pinter em que surge um dos mais belos momentos da imagempulsão. Personagens que carregam uma pulsão elementar, porém no cinema do Losey (assim como nas bases da literatura Naturalista) há que se ter um meio derivado e aqui nesse filme, não há meios de derivação, pois não há cenários. Os quatro personagens nos lançam questões que não nos permite um estudo psicológico preciso. Não fica claro o que os faz tomar certas atitudes, que por vezes são tão incoerentes entre um plano e outro. Aqui talvez haja um diálogo com o cinema de Michael Haneke. Tomemos os filmes Funny Games e A Fita Branca como exemplos. No primeiro de 1997, dois jovens entram na casa — 1. Uma versão deste texto foi publicada originalmente no site Justo Imagens – Ensaios sobre cinema e fotografia em 31 de outubro de 2011 – justoimagens.wordpress.com. Agradecemos a autorização da publicação no catálogo e a cuidadosa revisão do autor para o texto. 152
de uma família burguesa com o argumento de que precisavam de ovos. Dali em diante começa uma sequência de torturas à família sem maiores explicações. No mais recente, um médico sofre um acidente com seu cavalo provocado por uma linha colocada entre duas árvores. No acidente nós vemos tudo: a linha, o cavalo, o dono do cavalo, mas não conseguimos achar a causa, como em Funny Games vemos o ovo, as torturas, mas não vemos o que motivou. Os personagens de No Lugar Errado já habitam um mundo sem deus em que as posturas e atitudes já estão desprovidas de princípios e valores. Utilizam a lógica de que não é amigo o suficiente aquele que tem pudor de colocar uma casca de banana para o outro. Não é à toa que todos os personagens constantemente se revezam caindo, ou deixando objetos cair. Sempre escorregando, ou fazendo o outro escorregar. O cinema feito pelos 4 diretores até então tem como ponto forte a amizade. A comunhão como forma de resistência. Uma aliança, uma irmandade. Nesse filme há uma troca na chave. Talvez seja fundamental perguntar que limites são suportáveis numa amizade? Há amizade aqui, mas não há mais irmandade. É nesse ponto que os diretores chegam à uma investigação intensa sobre os laços que unem as pessoas. Neste filme os laços são ambíguos, na sua maioria nocivos, mas sempre seguidos de uma reafirmação do pacto feito outrora. A cena que se entende como um estupro é modelar: Após o ato, em que tão cruel quanto o estuprador é a omissão dos amigos que observam tudo passivamente, os amigos se despedem, meio que se perdoando, meio que se cumprimentando, como se não existisse marca tão funda que uma amizade não suportasse. São amigos que estão ali mais pra denunciar o momento da queda, que para amparar. Que testam a um nível insuportável o pacto espiritual que uma amizade trava na sua essência. Após dois longa metragens bem recebidos pela crítica e por aqueles que realizam e acompanham o cinema contemporâneo brasileiro, o coletivo de diretores Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti da Alumbramento nos apresenta um filme que aponta para um lugar difícil, árido, habitado pelos artistas que buscam um pacto com o coração das coisas.
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encontro entre o cinema e o teatro no filme ‘no lugar errado’1 RODRIGO: Qual foi o impulso por trás de No Lugar Errado, depois de terem dirigido em conjunto Estrada para Ythaca e Os Monstros? PEDRO: No filme No Lugar Errado o primeiro desafio foi o encontro entre o cinema e o teatro. Encontrar pessoas de outra área, trabalhar em cima de uma coisa que já existia que era a peça na sua versão final, mais dois anos de pesquisa do Grupo Desvio. RICARDO: Esse filme foi pra gente um gesto libertário porque a gente estava vindo de algumas experiências muito intensas, onde encontramos uma certa maneira de se fazer um filme, de como encarar o mundo e como encarar a noção da amizade. Porque os nossos filmes, nascem disso, surgem da nossa amizade e isso está refletido nos filmes. E No Lugar Errado foi uma forma de se libertar desse lugar, se colocar de novo num terreno minado. Tipo assim: Não se contente com respostas fáceis. Seria fácil achar que o mundo seria sempre como em Estrada Para Ythaca. As coisas mudam, se transformam e a gente tinha que encarar isso. E encarar isso foi fazer No Lugar Errado. Esse entendimento de que a gente precisava encarar essa transformação e não se acomodar no que a gente já tinha criado. Ao mesmo tempo essa peça foi montada por um grande amigo. Então também parte da amizade, assim como nos outros filmes. — 1. Entrevista realizada por Rodrigo Fischer, em abril de 2012, com os cineastas Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti. 154
LUIZ: Não é uma coisa que a gente controla, mas de repente surge na vida e você lida com aquilo depois que surgiu. O processo criativo desse filme teve muito de inconsciente. O que a gente estava fazendo, o quanto aquilo dizia da gente, dizia dos nossos filmes ou da nossa amizade, não tínhamos ideia. E foi um turbilhão, um negócio meio louco, tomando porrada dos atores do filme, reagindo da maneira que a gente conseguia. Essa experiência foi totalmente modificadora da nossa maneira de encarar as coisas. Quase como se virasse o jogo. RICARDO: Eu pensei numa imagem que pode ser interessante pra isso. No final do Ythaca, eles estão numa encruzilhada e eles escolhem o caminho. No lugar Errado, é como se eles chegassem numa cerca e estivesse escrito proibido, precaução. Você sabe que vai ser eletrocutado se passar dessa cerca e os personagens resolvem passar. Vamos levar um choque, mas a curiosidade ou alguma outra coisa fez a gente cruzar aquele portão proibido. PEDRO: E abriu um mundo gigantesco. LUIZ: E tem essa vontade de manter na nossa relação esse perigo. Tem que ter alguma incerteza no que a gente está fazendo. Talvez foi de forma inconsciente, mas foi o que mais nos estimulou, saber que a gente ia se deparar com uma coisa inesperada. O teatro, os atores e o medo de lidar com eles. Uma noção de amizade diferente da nossa. Se colocar em risco. RODRIGO: A questão do risco é sempre uma motivação? GUTO: É sim. Essa atração pelo risco, pelo perigo, o fato da gente estar junto, é como se a gente se fortalecesse para enfrentar esses perigos. Eu fico imaginando quantos grandes filmes não acontecem porque o diretor está sozinho e uma hora bate o medo e ele não vai. Escolhe o caminho mais seguro. É o que a gente mais vê no cinema. Um cinema acomodado, covarde. LUIZ: Tem uma coisa que acontece nos três filmes, principalmente nos últimos dois, que é o prazer de enfrentar o público. A gente quer fazer filmes que coloque em xeque o público mesmo, que de alguma forma enfrente o público. Seja através de colocar o free improv nos Monstros ou através daquela relação violenta do No Lugar Errado. Dá um tapa na cara pra ver como as pessoas reagem. 155
GUTO: Melhor do que ser indiferente ao público. É uma vontade desse encontro e que ele seja intenso, nem que seja na porrada. É uma relação com o público que não passa por uma condescendência. Tem que ter fricção. É assim que se cresce, assim que se conhece um ao outro. Essa é uma relação com o público que interessa a gente. RODRIGO: Vai além de comunicar e dialogar né? GUTO: É, compartilhar experiências, sensações, vida, pulsão. RODRIGO: Entrando mais no último filme, No Lugar Errado. Foi um processo diferente dos outros pois nesse já tinha alguma coisa estabelecida, uma peça de teatro. E tem a questão da atuação, já que nos outros vocês atuavam também. Como foi lidar com esses fatores? LUIZ: No caso específico desse filme, o trabalho de corpo é muito intenso e cheio de nuances. Ao meu ver é o corpo que faz a coisa acontecer. É por aí que eu consegui encontrar uma relação com aquelas pessoas, aqueles personagens, aqueles atores. Uma coisa de ação e reação. Podemos até fazer de novo uma comparação com o free improv. Os quatro entram numa espécie de diálogo que é muito sutil, muito rápido. Você não vê nada acontecendo e de repente está tudo acontecendo. Gestos que levam a outros gestos. E às vezes um gesto lá no final que vai revelar um gesto que estava lá no começo. Quase como se tivesse previsto. Eu ainda não sei muito o que levar disso se fosse trabalhar em outro filme com atores. Mas só de experienciar isso... GUTO: É uma circunstância muito específica, um trabalho que os atores já vinham realizando há muito tempo. Eles tinham, apesar de ser tudo improvisado, uma consciência do todo. Muitas vezes num trabalho com ator no cinema isso não acontece por conta da realização que é toda fragmentada. Então a gente tinha que lidar com isso, como a gente tinha que lidar com a linearidade dos acontecimentos. LUIZ: Isso é uma coisa que se a gente tivesse mais conhecimento no momento da filmagem teríamos repensado. Essa é a grande questão desse filme, como é que o cinema se coloca ali? Como o cinema dá conta disso? No nosso caso, como é que a gente, com aquela peça e aqueles corpos, poderia encontrar a melhor maneira de trazer isso pro cinema. Claro que na época a gente já se esforçou muito pra isso. Fizemos uma decupagem 156
que privilegiava a linearidade, por mais que não existisse linearidade dentro da peça. Também fizemos com que os atores ficassem destacados em um círculo de luz e filmamos em P&B. Ou seja, tudo para dar mais vazão aos movimentos, destacar os atores. RICARDO: E a gente também achou importante eliminar muitos elementos pra favorecer apenas o que interessava ser visto. Eliminar cenário, deixar apenas o essencial. Fazer o cinema voltar ao começo dele pra poder lidar com o teatro. PEDRO: E não é qualquer teatro. Era uma peça com um tempo específico, fluida. Difícil usar as convenções do cinema, essa gramática que é de interromper o tempo, de trabalhar as coisas bem fragmentadas. Isso não funcionaria na peça. Ou seria mudar demais na peça aquilo que mais chamou a nossa atenção. LUIZ: E a gente tinha que improvisar com os atores, entrar no ritmo deles. Outra coisa que nos preocupou muito era encontrar uma forma de lidar com o improviso sem cair nos procedimentos do cinema direto. O Cassavetes usava duas câmeras e a gente decidiu usar uma só. Outros cineastas filmam com uma câmera na mão pra acompanhar os atores com mais facilidade. Mas a gente decidiu por uma câmera fixa. Nos colocamos este desafio. E foi uma coisa que a gente decidiu por uma vontade estética mesmo. A gente não queria uma câmera atrás do ator. E eu acho que também deixar uma câmera fixa era uma forma da gente se impor no espaço, limitá-lo. Outra vez o embate, cinema e teatro. RICARDO: Desenquadramentos para tentar tirar a centralidade do palco de teatro e a ideia de um sujeito-espectador que domina a visão do espaço cênico. A câmera fixa não dá conta de um palco e ao mesmo tempo é um palco. Acho que é um encontro porradeiro, mas ainda assim um encontro. RODRIGO: Só pra terminar, qual é o próximo projeto de vocês? RICARDO: A gente tem dois. Um que é O Último trago e outro que a gente chama de Com os punhos cerrados. PEDRO: É o que a gente quer, mas temos que ver. O Último trago, por exemplo, é um filme que a gente precisaria fazer com uma estrutura um pouco maior. Pra isso dependemos de outras coisas. 157
GUTO: Dinheiro. PEDRO: E a gente já tá há um ano tentando conseguir dinheiro e nada. GUTO: O outro filme já é uma ideia mais autônoma, mais barata como os outros filmes que a gente fez. RODRIGO: É isso então galera. Tem só uma última pergunta. Se vocês tivessem que escolher um diretor pra beijar na boca, quem vocês escolheriam? Tem algum cineasta que vocês falariam “esse eu beijaria na boca”. PEDRO: A Sofia Copolla. LUIZ: A Valeria Bruni Tedeschi. RODRIGO: Vocês são caretas, pensei que alguém ia falar Clint Eastwood. RICARDO: Eu ia falar Ida Lupino. GUTO: Mojica. RODRIGO: Valeu galera.
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a volta dos que não foram1 os monstros, de luiz pretti, ricardo pretti, pedro diógenes e guto parente (2011) fábio andrade Há traços em comum suficientes entre Os Monstros e Estrada para Ythaca para transformar a idéia de autoria compartilhada do grupo de diretores em uma autoria conjunta. Em ambos os filmes, existem prerrogativas parecidas, tanto estética - o esvaziamento das atuações; a predominância dos planos gerais; a elasticidade da duração; o rigor na anulação de uma beleza plástica clássica nos quadros - quanto narrativamente. São dois filmes que partem de um luto e que narram o seu trajeto de superação, a ser purgado ao longo da projeção; em ambos, o que parece predominar é o discurso da amizade – em Os Monstros, chegando inclusive próximo de uma idéia de gueto - e isso, somado à nada convencional estrutura de set de Ricardo e Luiz Pretti, Guto Parente e Pedro Diógenes, tem sido suficiente para criar uma relação crítica francamente monótona com as obras. Por sorte, tanto Os Monstros quanto Estrada para Ythaca oferecem muito mais a se explorar do que permite o mínimo esforço para se cavar lides em cadernos culturais, ou o desespero que se dedica tão obstinadamente a procurar a próxima saída para o cinema brasileiro, sem sequer se dar conta do lugar onde se está. Para começar a desconstruir minimamente o discurso quase uníssono em torno do trabalho do grupo, talvez seja necessário voltar ao luto de Estrada para Ythaca, sobre o qual todo o longa será assentado. Pois, embora o luto seja motivado pela morte de um amigo, no filme não é exatamente o amigo morto que é tomado como mola propulsora, mas sim uma fotografia, uma imagem estática que o mostra ainda vivo e em momento de mal fotografada e espontânea felicidade. — 1. Publicado originalmente na revista Cinética em setembro de 2011 – www.revistacinetica.com.br. Agradecemos a autorização da republicação no catálogo. 160
Não à toa, quando o personagem finalmente aparece - na tão comentada citação à obra de Godard e à imagem de Glauber Rocha - ele aparece novamente vivo, em pleno movimento, apontando os caminhos do futuro do filme. É, portanto, uma morte que determina a vida, um luto que age sobre sua própria superação. Mas Estrada para Ythaca evita a todo custo dar a esse luto uma imagem mais abrangente do que aquele breve instantâneo motivador, do qual o filme parte para não mais retornar - e lembremos que, em A Odisséia, Ítaca é o destino na jornada de retorno do herói; é sua casa, seu lugar para voltar após o cansaço da guerra. Tanto Ythaca quanto Os Monstros fazem uma jornada de purificação, como se o cinema – com todas as batalhas perdidas antes de os diretores começarem a filmar – precisasse reencontrar o caminho de casa. Com essa pequena inversão de eixo, Estrada para Ythaca deixa de ser um suposto elogio às belezas da amizade e se firma como uma tentativa de volta àquela primeira imagem, aquele porto-seguro, e à capacidade espantosa da fotografia de congelar um momento – algo que o filme tentará resgatar em vão o tempo todo, fracassando em fixar imagens que são gravadas em inevitável movimento – mas também de conservar uma alegria fugidia que a duração do cinema expõe à ruína do tempo. Por outro lado, se a fotografia é capaz de embalsamar um instante, somente os mortos podem ser embalsamados; o cinema, ao contrário, é vivo, demasiado vivo. Estrada para Ythaca é um filme supostamente melancólico, infiltrado pela franca diversão de se fazer um filme. É uma tentativa de amortecer a incontornável alegria de se estar vivo. É - como indicam as próprias falas - um projeto de fracasso, de ponta a ponta. Os Monstros também parte de um luto, que aqui ganha uma forma de fato fantasmagórica, em uma aparição no banco de uma praça. Se Estrada para Ythaca pode ser visto não só pelo que encena, mas também pelo que compõe a sua encenação, a morte em Os Monstros traz igual eloquência: ela vem por meio de uma canção e de um truque cinematográfico – uma sobreposição que cria um fantasma dentro de um espaço concreto – citando a cena em que uma aparição fantasmagórica de Julie London canta “Cry Me a River”, em The Girls Can’t Help It, de Frank Tashlin. Os Monstros não é tão somente o triunfo - passageiro e de curto alcance, já que as contas continuarão chegando após o filme terminar - da sensibilidade em um mundo que a confina ao gueto, mas também o luto de um grupo por uma modalidade de canção e de cinema que eles reconhecem como belo, pleno e absolutamente impossível.
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A canção remete ao cinema que a transportava - a magia industrial da Hollywood clássica - mas aqui ela não é mais que o fantasma de um amor passado. Mas, mais do que uma negação do classicismo pela modernidade, a relação dos irmãos Pretti e dos primos Parente com a Hollywood clássica se mostra, em Os Monstros, fruto de encantamento, desejo e um palpável assombro. Se em Estrada para Ythaca ainda pairava a impressão de um divórcio consciente do mundo em defesa de um certo tipo de cinema - algo que uma leitura superficial de Os Monstros também não terá dificuldade em encontrar – aqui há uma inversão radical que ressignifica o filme anterior: o maior desejo é justamente o de contar uma história, de transformar qualquer ruído em canção, de moldar o caos com uma estrutura e uma sensibilidade que não apenas se expresse, mas crie sentido e se comunique. E, apesar desse desejo, Os Monstros vem para deixar claro o quanto essa possibilidade já está completamente perdida. Pouco importa que o luto seja pela pouco crível morte de um amigo, ou pela ainda menos crível morte de um relacionamento que nunca conheceremos – a estranheza em ambos os filmes vem também do quanto um recurso de dramaturgia tão eloquente parece deslocado dentro do universo dos diretores; como se a jornada de superação da mais clássica dramaturgia assombrasse tanto como um desejo quanto por algo que não encontra, nesses filmes, seu verdadeiro lugar. Pois, assim como Estrada para Ythaca, Os Monstros é necessariamente formado por suas possibilidades. Mas essas possibilidades são menos questão de produção - de dinheiro, de estrutura, de projeto - e mais de conjuntura histórica. Seus diretores são filhos de seu tempo, e não há retorno possível ao clássico que não o transforme em classicismo, esse reconhecimento moderno de que a única possibilidade de retorno ao passado é se aterrando fortemente no presente, marcando uma diferença que transforma o que é - o clássico - em um “ismo”. Se faz necessária, novamente, a jornada de volta. Pois como retomar as convenções da canção e do cinema hoje, depois de tantos anos de agressão, mau uso e esvaziamento? Como é possível cantar novamente após todo músico de barzinho ter vulgarizado esse “em si” na linha de montagem que reproduz a “sensibilidade coletiva” das canções de um Djavan? Como lidar com a nostalgia de uma época que não se viveu, e que não parece mais cabível na lógica cínica e utilitarista dos dias de hoje? Como se entregar à dramaturgia clássica quando se nasce em uma época em que ela já não parece fazer sentido? O que fazer quando a vida - a arte, as mulheres, a cerveja, as festas, o presente e o futuro - se mostra tão abaixo daquilo que os filmes nos prometiam na infância da modernidade?
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Os Monstros traz suas respostas cicatrizadas em seu próprio corpo. A Hollywood clássica e a aderência às convenções aparecem aqui muito como testemunhas de sua absoluta ineficiência fora de seu lugar e tempo originais – o que transforma o filme em uma inversão da premissa de Aquele Querido Mês de Agosto, no qual o melodrama será retomado após seu lugar e seu sentido original terem sido reencontrados. Não adianta tentar fazer do encanto estrangeiro algo familiar, pois uma cena de jovens gritando “Festa! Festa! Festa!” hoje será ridícula em qualquer lugar, mas um tanto mais ridícula quanto os jovens já não são tão jovens assim, e sua empolgação aparece emoldurada pelo assombro arquitetônico da orla de Fortaleza. Os Monstros tem a claríssima virtude de perceber essa impossibilidade - de subir cada cantada alguns graus em sua escala de patetice - e, novamente, se realizar como crônica de um fracasso, como uma comédia desesperada sobre seu próprio drama de tentativa de existência. Mas enquanto Estrada para Ythaca se tornava, com isso, um filme até certo ponto redundante, defendendo a possibilidade de um certo cinema do qual o filme já era prova mais que concreta de existência, esse esforço narrativo de Os Monstros consegue, mesmo que por estradas acidentadas, uma das grandes qualidades do cinema clássico norte-americano: contar uma história que se dedica a um grupo de personagens, e a partir deles falar sobre o mundo. Mas por mais que as negações e a consciência de suas impossibilidades sejam essenciais, não há arte possível quando se desvia de todas as afirmações. E Os Monstros, fruto dessa saudade infinita, dessa imaginação que recria a beleza de um vaso inteiro, mesmo tendo-o visto pela primeira vez já quebrado, encontra algo que, embora distante daquele paraíso perdido que cantava no banco de uma praça, pulsa como uma possibilidade digna de comprometimento. E se, como bons admiradores de João César Monteiro, é preciso desconstruir 500 anos de História para se encontrar o que realmente é, os diretores exorcizam o luto por um cinema impossível justamente em sua performance de free improv, nessa possibilidade de não só ressoar (mesmo que apenas entre um grupo próximo de amigos), mas de se criar um momento banal, inútil e talvez até infrutífero, mas certamente digno de toda convicção. É ali, nos dois planos finais - quando a câmera sai do tripé e é chamada à dança; quando a granulação do vídeo noturno ganha uma limpidez que clarifica gestos, detalhes e pulsões que se escondiam na longa noite do filme - que Os Monstros deixa de ser um perspicaz, justo e frontal acerto de contas com seu presente e passado, e mergulha de olhos fechados nas possibilidades do futuro. E esse tipo de mergulho é sempre algo excitante e belo de se assistir.
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estrada para ythaca, de guto parente, luiz pretti, pedro diógenes, ricardo pretti1 joão toledo Pode ser extremamente tentador observar o longa metragem dos irmãos Pretti e primos Parente buscando desvendar o manancial referencial do filme, para enquadrá-lo dentro de um contexto e, assim, em tese, compreendê-lo. No entanto, essa tarefa ao mesmo tempo fácil e impossível pode esvaziar o que há de mais particular na criação dos irmãos tornando-o um retalho de pistas que no fundo nunca se somam. Trata-se claramente de uma obra profundamente marcada pelo cinema, por todo ele. E não apenas marcado por uma estética que se pega emprestado como quem adota uma imagem, mas por um pensamento estético que passa por uma política de cinema, por decisões que implicam em toda uma ideologia de seu próprio modus operandi. E isso, essas decisões de uma estética profundamente íntima, mas também sempre política, diluem a idéia da amálgama de referências, pois o filme se torna um filtro transformador, e tudo o que passa por ele perde sua origem e se torna destino. Ainda que seja um longa, o filme se enquadra perfeitamente dentro de questões que permeiam o atual panorama de curtas brasileiros. A idéia de uma produção jovem que parte muito de si, que explora questões que lhe são caras, pessoais, íntimas, que olha pra si, para o seu universo - o que — 1. Publicado originalmente na Revista Filmes Polvo durante a cobertura da 13ª Mostra de Cinema de Tiradentes – www.filmespolvo.com.br. Agradecemos a autorização da republicação no catálogo. 164
implica quase naturalmente uma transição para a frente das câmeras - é comum a toda uma recente produção. Não se trata apenas de um facilitador, mas de um desnudamento fundamental de um cinema que enfim reflete sua realidade, de uma entrega que apenas reflete o quão fortemente pessoal é sua busca. O processo dos personagens no filme não é apenas crível, é verdadeiro. A morte, desculpa narrativa para criar uma espécie de gatilho da odisséia, se justifica apenas no sentido de reforçar a proximidade dos quatro, de torná-los quase um só. E eles viram um só na medida em que se tornam filme, compartilham todo o processo, dividem autoria. Trata-se, de alguma forma, de um filme mais vivido que atuado – pareceme quase certo que as cervejas foram todas tomadas, que não se trata de direção de arte, de construção, mas de processo. E o processo é essa entrega inevitável ao cinema do terceiro mundo, o cinema do precário que é sucata de tudo e é novo ainda assim, que é um mundo tão generoso, mas ao mesmo tempo árido, seco, cujo espaço para se compartilhar não possui qualquer conforto. Sua estética não dá ao espectador nenhum alívio, dá a ele um espaço para sentar no universo dos personagens, na sua paisagem dura, permite que compartilhe da busca com todas as dificuldades inevitáveis de uma aventura pobre. Sua riqueza é saber compreender a potência de seus recursos, e dos detalhes que compõem o trajeto. Nenhuma paisagem ali é pano de fundo, todo o espaço é vivido. Na encruzilhada, onde os personagens precisam optar entre o caminho do desconhecido e o do cinema do terceiro mundo, quase não hesitam e caminham firmes e despreocupados para Ythaca, em direção ao rumo que já estava tomado desde o princípio, ao lugar que não importa, pois seu destino é, ele próprio, trajetória. Ythaca não é fim, não é ponto de chegada, não é conclusão. Ythaca é um sentimento, um encontro talvez. Do início ao fim, de um bar a outro, mesma cerveja, mesma precariedade, o que há de novo ali são todas as experiências, é todo o filme, o que eles descobriram, como se amaram, se perderam, se ferraram, é como foram abduzidos, e como descobriram um caminho, um caminho maravilhoso e único. Aquela encruzilhada onde uma placa aponta para Ythaca só existe para eles, e é só deles a escolha, é só deles a cidade, o bar. O filme é de todos nós.
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roteiro de estrada para ythaca1 Road Movie 01 – INT. BOTECO VAGABUNDO. NOITE Joaquim, Rogério, Alberto e David estão embriagados, bebendo numa mesa de bar (Primeiros planos dos personagens, terminando no David) DAVID Cadê a porra do meu isqueiro?
Os quatro continuam bebendo. Fazem um brinde. ROGÉRIO Aos que estão aqui e aos que se foram.
Eles brindam e viram a bebida. Brindam também um copo vazio ALBERTO (sussurrando para Joaquim) Eu vou andando pra Ítaca. Enquanto David serve bebida para todos, Alberto levanta e sai. Todos continuam bebendo.
CARTELA – TÍTULO DO FILME
David, Rogério e Joaquim continuam bebendo. DAVID Cadê o Alberto?
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JOAQUIM (olhando pra um livro) Disse que ia pra Ítaca. ROGÉRIO Como? JOAQUIM Andando. DAVID Que porra! Tá maluco!? Os quatro se levantam, jogam um dinheiro na mesa e saem. Rogério vai numa mesa próxima onde um bebado de terno dorme e pega a chave do carro dele. 02 – EXT. RUA. NOITE Rogério está na rua com o controle da chave na mão. Três carros estão estacionados. Ele aperta e um dele toca o bib. 03 – INT. CARRO. NOITE Eles procuram Alberto em vários pontos da cidade, até encontra-lo numa estrada erma. Acompanham ele com o carro. Rogério dirige, Joaquim está no banco de passageiro e David no banco de trás, do lado direito. Ele abre o vidro para falar com Alberto. DAVID Ei Alberto, que porra é essa! Entra no carro. ALBERTO Eu vou pra Ítaca. DAVID Tá maluco, entra no carro.
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ALBERTO Eu vou pra Ítaca. JOAQUIM Ei Alberto, entra no carro porra. ROGÉRIO (para Joaquim) Fala pra ele que a gente tá indo pra lá. JOAQUIM Ah? ROGÉRIO (para Joaquim) Fala pra ele que a gente tá indo pra Ítaca. DAVID Ei Alberto, entra aí que a gente vai junto pra lá. ALBERTO (para de andar) Sério? JOAQUIM Sério, entra aí.
David abre a porta de trás e Alberto entra.
04 – EXT. ESTRADA NO MEIO DO NADA. DIA David, Rogério e Alberto acordam de ressaca embaixo de uma árvore no meio da estrada. De muito longe vem Joaquim carregando algo que revela-se uma enorme panela com panelada. Vemos os quatro catando galhos pelo mato próximo à estrada. Os quatro estão em volta da panela, que é aquecida pela fogueira que fizeram. Comem cada um no seu prato e há um prato a mais ao redor da panela. Antes de começar a comer eles viram uma dose de cachaça. 168
Configura-se um ritual. Eles comem em silêncio. Plano da árvore onde eles dormiram e som deles entrando no carro e partindo. 05 – INT. CARRO. DIA Primeiros planos de cada um deles. Primeiro o de Alberto no banco de trás com o chapéu cobrindo os olhos. Depois David, que está ao seu lado no banco de trás. Depois Rogério dirigindo. Depois Joaquim no banco do passageiro, fumando um baseado. Plano conjundo de David e Alberto no banco de trás, entre eles a enorme panela. O som é de Joaquim contando a piada do reduza. Quando termina os dois permanecem em silêncio. Alberto levanta um pouco o chapéu olhando na direção de Joaquim, depois abaixa de novo. Ouvimos um barulho estranho. ROGÉRIO Acho que o pneu furou. 06 – EXT. ACOSTAMENTO DA ESTRADA. DIA Rogério está agachado desparafusando o pneu que está furado. Alberto está ao lado “ajudando”. Enquanto Rogério troca o pneu, Joaquim lê seu livro e fala alguma frase de vez em quando e David está reclamando da sorte. 07 – INT. CARRO. DIA O pneu é trocado e eles seguem viagem. Agora Joaquim dirige, David está no banco do passageiro. Alberto e Rogério estão atrás com a panela no meio. David abre o porta-luvas. Tira um deck de cartas, põe de volta. Tira um case de CDs. Abre, dá uma olhada nos CDs e começa a jogar de um por um pela janela, dizendo “merda” a cada CD jogado.
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Plano de Rogério e Alberto bebendo cachaça no banco traseiro. Plano do asfalto com os CDs sendo jogados. Plano de Joaquim percebendo que está perdido. 08 – EXT. ESTRADA. FIM DE TARDE/QUASE NOITE Os quatro estão próximos ao carro parado no acostamento duma estrada pouco movimentada. DAVID Que merda hein! JOAQUIM Não tem placa nessa porra! Silêncio. ALBERTO É melhor a gente dar um tempo aqui e continuar amanhã. ROGÉRIO Como assim dar um tempo? ALBERTO Dar um tempo porra. ROGÉRIO Dormir aqui? ALBERTO É. ROGÉRIO Pode crer. 170
Joaquim abre o livro (não há luz suficiente para ler) e fecha.
09 – EXT. ACOSTAMENTO. NOITE Iluminados pela luz do farol do carro, os quatro estão sentados no acostamento jogando baralho (um jogo rápido onde quem perde tem que virar um copo de cachaça). Alberto está perdendo várias rodadas seguidas. Eles jogam e conversam. Alberto está loucão e levanta bêbado “botando boneco”. Ele cai no chão sobre as cartas e apaga. Todos estão bastante bêbados. DAVID Caralho. JOAQUIM Acho que já deu. ROGÉRIO É. Vou dormir. Os três levantam-se e saem de quadro. Joaquim volta e aproxima-se de Alberto apagado no acostamento. Ele se abaixa, enfia a mão no bolso de Alberto procurando por seu isqueiro. DAVID (off ) Tá comigo porra. Joaquim aproxima-se um pouco do rosto de Alberto, levanta e sai de quadro. 10 – INT. CARRO. NOITE O farol de um carro que passa na estrada ilumina os rostos de Rogério e David que estão sentados dormindo nos bancos da frente do carro. Joaquim está deitado no banco de trás e vemos apenas suas pernas para cima. 11 – EXT. ACOSTAMENTO. NOITE Vemos a vegetação ao lado do acostamento iluminada por luzes coloridas que passam. O barulho é estranho. 171
Alberto continua deitado no acostamento, iluminado pela luz do farol (ou não). Na medida em que a câmera aproxima-se num zoom aumenta o volume do sonho que ele está tendo. SOM DO SONHO Os cinco com o Amigo numa farra. 12 – EXT. ACOSTAMENTO. DIA Alberto acorda fudido de ressaca jogado no acostamente. Ele levanta e vai mijar. Vai pra algum lugar onde pára e olha uma foto do Júlio. Os quatro ao redor da panela já comendo a panelada. Segunda repetição do ritual. 13 – EXT. AÇUDE. DIA Os quatro tomam banho e divertem-se (bebem) no açude. 14 – EXT. MEIO DO MATO. DIA Rogério está chorando. David aproxima-se dele para consola-lo. Plano geral dos quatro: Joaquim lê frase sobre a morte. Plano dos quatro marchando de forma fúnebre no meio do mato. 15 – INT. CARRO. DIA Plano de Rogério e Joaquim no banco de trás com a panela entre eles. 16 – INT. CARRO. NOITE Os quatro continuam viajando. De repente o carro apaga no meio da estrada. Plano dos quatro olhando perplexos para algo. Seus rostos são iluminados por luzes coloridas. O som é bastante estranho e cada vez mais alto. (Ou 172
sequência de ação picotada). Opção 1: Plano do carro vazio. Todas as luzes do carro se acendem. 17 – EXT. PAISAGENS. DIA/MANHÃ CEDO Vários planos de paisagens. 18 – EXT. MEIO DO MATO. DIA Os quatro acordando nús e sem barbas cobertos por uma gosma estranha e fedorenta. 19 – INT. CARRO. DIA Planos dos quatro em câmera lenta com uma trilha do caralho. 20 – FINAL DO FILME – CHEGADA EM ÍTACA/ENCONTRO COM JÚLIO
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conversa guto parente e pedro diógenes Nosso cenário de encontro é a Casa da Esquina, na cidade de Fortaleza. Pedro Diógenes e Guto Parente estão em processo de pré-produção, junto ao grupo de teatro Bagaceira, para realizar um novo longa, Inferninho. É no contexto de testes de figurino e ensaios com os atores que acontece a conversa que segue. *** Érico Lima: Vocês estão fazendo um filme agora, que é um filme Alumbramento, e são vocês dois dirigindo. E para um primeiro momento dessa conversa, eu pensei em ouvir um pouco vocês sobre certo olhar retrospectivo para essa história de dez anos, tomando por base o presente, esses encontros de vocês hoje. O que disso tudo que vocês atravessaram mobiliza para essas realizações de hoje, inclusive para esse momento em que estamos aqui, na realização do Inferninho? Não só em termos da materialidade dos filmes, mas também no que excede o objeto filme, pensando no que isso implica para o viver mesmo. Pedro Diógenes: A gente tá dirigindo junto, eu e o Guto aqui, e isso em nenhum momento é uma questão, isso em nenhum momento é uma coisa que tem que ser conversada, nem entre a gente nem com a equipe, como se isso fosse algum diferencial de algum novo processo. Porque é justamente por isso: já foi muito realizada essa direção coletiva, de várias formas, exercitada de maneiras diferentes, dentro da nossa trajetória e dos filmes que a gente faz. E no caso, eu e o Guto já fizemos filmes juntos várias vezes, a gente começou, dez anos atrás, fazendo filmes juntos, em um outro tipo de coletivo, sem nem saber que a palavra coletivo era usada dessa forma... Eu acho que isso é uma questão que tá no cerne do Alumbramento e que também se leva para todos os outros trabalhos, todas as configurações, e pra vida, uma coisa de estar se apoiando, de estar junto, tentando criar coisas, junto, tentando viver coisas. Guto Parente: Acho que tem uma coisa de uma formação que torna um modo de realizar, que torna esses aspectos muito naturais, de relações de trabalho ligadas pelo afeto, de você ter um compartilhamento, uma criação 174
coletiva, o que é da nossa formação mesmo, algo que tá muito naturalizado mesmo pra gente. Na Vila das Artes, eu e Pedrinho dirigimos juntos nosso primeiro curta, que foi Cruzamento. O filme foi realizado em dezembro de 2006. Eu acho sempre difícil falar de uma coisa que é tão óbvia pra gente... Excepcional pra gente seria fazer filmes numa estrutura com desconhecidos, numa estrutura maior... dirigir uma minissérie da Globo, por exemplo, isso seria muito estranho (risos). Érico: E ao mesmo tempo, eu fiquei pensando também nessa dimensão do estar junto, não só na dimensão dos diretores, mas no modo de produção mesmo, enquanto equipe. Em que medida essa relação transversal perpassa a equipe como um todo? Pedro: Tem uma coisa que pra mim é fundamental e tem a ver com o fato de a gente, além de ser diretor, ter outra função. Então, você, de certa forma, vive o set ou o fazer cinema por outro lado: você pode ser fotógrafo, eu faço som, o Luiz, o Guto e o Ricardo montam e também já estiveram no set em outras funções. Então, você é equipe e, em outro trabalho, é diretor. Isso faz com que certa hierarquia meio que acabe e você consiga olhar as coisas com essa transversalidade. O filme só se constrói na criação coletiva, de a equipe estar embarcando no filme. A gente não consegue dar conta de tudo e, mais do que isso, a gente quer pessoas que agreguem aos filmes, que potencializem as loucuras dos filmes. Os filmes já são sempre propostas bem aventureiras. E pessoas que embarquem nisso é uma coisa bem importante pra gente. E é sempre um processo muito único, muito próprio, que vem a cada filme. Guto: Existem algumas formações que dizem o que são as coisas: o cinema é isso, fazer um filme é isso. E muitas vezes, a ideia de fazer um filme, de estar fazendo cinema está muito ligada a uma parafernália. E muitas pessoas, quando vão começar a fazer cinema, tentam primeiro atingir isso, aquilo que te dizem que você precisa pra fazer um filme, pra você fazer o seu primeiro filme... Acho que tem muitas escolas e muitas formações em cinema que apontam para esse lugar. E eu acho que, no nosso contexto, na maneira como a gente começou a fazer cinema por aqui, a inexistência de um mercado, a vontade de experimentar, isso foi muito importante. E também a ideia de que a gente vai fazer com o que a gente tiver, a ideia de que a gente pode aprender todas as funções e se ajudar nisso... Isso tudo acabou fazendo com que a gente tivesse um entendimento da realização de cinema que abre muitas possibilidades. 175
Acho que, se for pegar todos esses filmes que a gente fez, todos eles são muito diferentes entre si, muito diferentes no modo de produção. Não é que a gente encontrou um modo de produção e que a gente pode continuar fazendo. Não. É que cada filme é um novo modo de produção, cada filme é uma nova descoberta de como se fazer um filme. E aí, de alguma maneira, eu vejo a Alumbramento como um lugar de ruptura com certa ideia de autoralidade, que é um lugar que o mercado impõe, de um estilo, de uma marca de um autor. Um valor que eu vejo muito grande da nossa loucura é que a gente consegue ser meio autofágico. Cada filme vai devorando o anterior e vai indo para outro lugar. Érico: Acho muito legal isso que você falou sobre a quebra da autoralidade. Fiquei pensando também em como se dá essa dinâmica entre singular e plural no âmbito do coletivo. Porque, ao mesmo tempo, a questão não passa por sufocar as individualidades ou gerar uma homogeneidade. E quando eu penso no que resultou de diferença tanto nas combinações entre vocês quanto nos filmes que cada um faz sozinho, fico pensando em pesquisas, não marcas autorais, que engajam cada um na relação com o cinema. O que cada momento desses permite dar vazão? Pedro: Eu acredito muito na criação coletiva. E no Alumbramento como um coletivo. Nessas duas coisas, é muito importante a reinvenção. Uma das características primordiais de um coletivo precisa ser a constante transformação, porque senão, ele morre. Não é possível juntar algumas pessoas e achar que isso, com essa mesma configuração, com esse mesmo jeito, vai durar para sempre. Porque isso seria justo a morte do coletivo. As pessoas têm suas vidas, suas individualidades. Então, eu acredito muito nessa direção coletiva e nessa reinvenção. O que me move muito a fazer meus filmes, e também os coletivos, é muito o meu redor, o que eu tô vivendo ali muito próximo de mim, o meu cotidiano, as questões da minha cidade, as questões muito pulsantes do meu dia-a-dia. Por isso, eu acho que acabo falando muito de Fortaleza, de coisas que eu tô vivendo. Guto: E é doido porque essa noção da coletividade no cinema é quase uma coisa meio óbvia de se falar, porque o cinema é, essencialmente, coletivo. A gente passou por várias fases, a gente já viveu vários momentos, leu muita coisa escrita sobre os filmes e sobre o Alumbramento e já falou muito... E hoje em dia, eu tento pensar as coisas da forma menos romantizada possível, de uma maneira mais concreta mesmo, na dimensão do acontecimento 176
fílmico, do encontro. Não existe uma coisa por trás, uma ideologia, uma filosofia, um manifesto. Uma coisa que estaria antes e a partir da qual viriam os filmes. Os filmes vão criando e reconfigurando as ideias e o que a gente entende por cinema, o que a gente entende por criação. A gente não parte de um lugar. Não sei, eu penso muito pouco... Eu não me considero uma pessoa que pensa muito sobre o que tá fazendo. Eu acho que eu penso muito mais depois do que antes. Acho que, de modo geral, a gente tem essa pulsão, porque é um aprendizado que vem do fazer. Pedro: É, eu acho que talvez o que seria nossa escolha mais radical seria essa do fazer. Isso começou lá atrás, sem nenhuma estrutura, sem nenhum incentivo. E hoje, com algumas políticas, a gente consegue fazer as duas coisas, ter filme com mais estrutura, ter filme com menos estrutura, reinventar o filme aqui e ali. Fazer filme também sem dinheiro, de um jeito ou de outro. A gente faz, vamo fazer. Tem a ver com as tecnologias, tem a ver com um monte de coisas, mas tem a ver com vontade também. É uma geração de cinéfilos também, todos esses realizadores são pessoas que se apaixonaram pelo cinema, com certeza, vendo filmes. Érico: Dentro dessa questão dos recursos, eu penso que, em determinado momento da trajetória do Alumbramento, passou-se a afirmar mais a importância em disputar um espaço de recursos. Ao mesmo tempo em que é possível fazer filmes com poucos recursos, talvez haja ainda a necessidade de afirmar que o cinema é uma atividade que precisa se financiar também. Como é que vocês percebem essa disputa? Pedro: Eu acho que tem que disputar. E eu acho que uma diferença nossa é também que a gente tem um trabalho paralelo como técnico, o que permite à gente ganhar um dinheiro trabalhando com cinema e, muitas vezes, investir um pouco desse dinheiro que a gente ganha nesses filmes sem dinheiro. Por exemplo, em Com os punhos cerrados, a produção foi o prêmio que o Ricardo ganhou em Brasília de melhor montagem. Mas sempre estamos disputando esse lugar da grana que circula pelo cinema. Porque a gente tá trabalhando há dez anos nisso, e a gente tem o direito de estar trabalhando e ganhando, sobrevivendo com isso. Mas a gente, nesse contexto, também se colocou pra fazer esses filmes urgentes, que não precisam de edital. Porque o edital é uma ótima forma de financiamento, mas é também uma forma de engessamento. Eu acredito que não são todas as ideias que cabem em um edital. Tem filmes que nunca se encaixariam em certos editais. E como 177
a gente está vivendo essa coisa de experimentar, vão surgir ideias que não cabem nos editais, e a gente vai precisar arranjar um jeito de fazer. A gente vai fazer uma vaquinha, às vezes é tirar o dinheiro do próprio bolso, às vezes é pedir ajuda dos amigos. Mas acho que é isso, eu acho que precisamos brigar pra que todo mundo que tá vivendo de cinema possa mesmo viver de cinema, e não precise fazer publicidade pra sobreviver Guto: É, o lance é que não existe filme sem dinheiro, né? Isso é uma balela. Todo filme tem custo, nem que seja o tempo que você poderia estar em um trabalho. As pessoas naquele filme estão botando dinheiro nele, porque poderiam estar fazendo algum trabalho nesse tempo. É dinheiro do próprio bolso ou é esse trabalho voluntário, as pessoas querem estar ali porque acreditam. Mas existe filme de cem reais, existe filme de mil, existe filme de um milhão. Existe filme de todo valor. Quando se fala de filme sem grana, a gente tá falando de filmes com custos muito pequenos, em que a adequação de custos se dá conforme o possível. E eu acho que é isso, pensar formas possíveis tanto de realizar os filmes como de viver mesmo, de pagar as contas. E a gente tem conseguido trabalhar em cinema com projetos que a gente acredita, na montagem, no som, dando aula. A gente vai conseguindo segurar a onda. Ganhar dinheiro com nossos filmes mesmo, até agora muito pouco. Mas é um lugar que tá mudando o tempo todo. Daqui a pouco, pode não ter mais nada. Em uma canetada, pode acabar tudo. E a impressão que eu tenho é que a gente vai continuar fazendo. A gente vai só ter que inventar outra maneira. Ou não, ou então desiste também. Desistir é sempre uma possibilidade, vai trabalhar em outra coisa (risos). Érico: Ainda no sentido de coletivo, eu fiquei pensando em várias dinâmicas de relação entre essa forma de estar junto e um fora. Às vezes, a reunião de amigos pode ser também muito voltada para as questões internas e menos atravessada por outras conexões. E eu tava pensando também no que o Pedrinho falava sobre a relação dele com a cidade, como elemento mobilizador dos filmes. Então, eu perguntaria como é que o Alumbramento se relaciona com a cidade, como é abrir mais esse sentido de coletivo e garantir que ele seja mais atravessado? Pedro: O Alumbramento hoje em dia ficou num contexto que tem integrantes que não moram em Fortaleza. Então, as cidades deles são outras, que são também questões dos filmes deles. O Luiz tá em Belo Horizonte e tá 178
cada vez mais filmando a cidade. O Ricardo fez a Operação Sonia Silk, que é Rio de Janeiro na veia. Então, tem a particularidade desse momento, que é muito diferente de outro momento, lá atrás, quando eu nem fazia parte, quando eram 16 pessoas de várias linguagens, constantemente querendo tensionar a cidade. E daí saem o Livro Livre, o Praia do Futuro, um monte de coisa. Então, eu acho que é muito difícil falar do Alumbramento como uma coisa única. A coisa da cidade tá muito presente, mas até a cidade mudou. Cada um vai falar de uma coisa. E cada um, na sua coisa, também está representando o Alumbramento. E a minha relação com a cidade, nessa dimensão de uma abertura, passa muito pela dimensão de vivência, no sentido de uma curiosidade de estar vendo as peças de teatro, de entender o que tá acontecendo na música, de saber da galera nova lá no curso de cinema da UFC, da galera nova lá na Vila. De alguma forma, tento estar próximo. O Inferninho é um exemplo claro disso. A gente começou a ver as peças do grupo Bagaceira, depois eles chamaram a gente pra fazer alguns vídeos das peças deles, daqui a pouco tão trabalhando em filmes nossos, e hoje em dia tá dando num filme. Guto: Tem uma coisa que tá muito no cerne da política mesmo. Inicialmente, eu acho que existia um encantamento muito grande com o próprio encontro em si, a potência disso, a força criativa disso. Olhando agora, me parece que era o momento muito da força da micropolítica, da afirmação disso. Afirmação da fenda. Acho que as inquietações eram mais nesse lugar. E o próprio gesto de fazer um filme da maneira como tava sendo feito era também um pensamento político. E isso é um lugar de conexão com o outro também. Uma das coisas que a gente viveu depois do Ythaca foi a quantidade de pessoas dizendo que o filme estimulou a fazer cinema. Então, mais do que a obra em si, é tudo isso que ela pode gerar e o que ela representa enquanto escolha de vida, enquanto afirmação de alguma coisa. Em Os monstros, naquela parte final em que a gente toca no apartamento, existem leituras de que aquilo seria se fechar para o mundo. Eu acho que é uma leitura possível. Mas pra mim, mais do que entender que personagens estão em um apartamento, sem um público assistindo, é entender que o próprio filme é um compartilhamento. Se tem uma câmera ali interagindo com aquelas pessoas, é porque a gente tá querendo mostrar aquilo e tá querendo se comunicar com pessoas. Por mais que o filme não encene a relação dos personagens com o público, com o mundo... E é um filme que 179
problematiza muito isso, essa relação com a rejeição, um lugar meio sentido de artistas que fazem uma coisa muito apaixonada, mas não encontram espaço. O personagem lá do Luiz toca, e as pessoas saem do bar. Aquilo ali tem a ver com se juntar e se fortalecer, pra chegar mais longe. Só que é algo que extrapola o filme. É preciso olhar para aquela câmera e entender que ela é um convite, aquela mobilidade da câmera é um outro olhar. Se tinham quatro personagens ali, claramente existe um quinto. E esse quinto é um convite para o olhar. Pedro: É, essa cena de Os monstros, eu sinto como a exposição de algo muito íntimo. Você vai expor para a plateia um ato de criação coletivo muito íntimo, e quem quiser vai ver. Guto: Mas eu acho que existe uma série de mudanças, de reconfigurações e até desse nosso lugar de engajamento, de briga por espaço. É porque, em determinado momento, esse lugar de encontro, de troca, de alguma forma, se satisfaz muito. E a gente vai amadurecendo também, vai lidando com as instituições políticas, com a política nesse lugar mais macro. Todo filme é político, mas eu acho que os últimos filmes que a gente tem feito apontam para um caminho de pensar a macropolítica, de pensar a história, de tratar questões de modo mais amplo. Eu sinto um movimento que possibilita se conectar a mais pessoas, com um público maior. Eu acho que são questões mais palpáveis do cotidiano. Falar de amizade é uma posição política, mas falar, por exemplo, de um sistema de opressão, sobre o que impede esses encontros de acontecerem é outro viés. E eu acho que O último trago é um filme que já tá pensando questões políticas e históricas, que mostram outro campo de interesse, outro desafio. Em Ythaca e Os monstros, a gente tava se colocando muito, era muito a gente ali dentro, não tinha tanto uma construção de personagens. Porque era uma coisa que falava da gente, das nossas questões. Pra mim, foi no Doce Amianto, que eu entendi a existência de um personagem, de personagens, muito por conta dessa troca com o Uirá. No nosso encontro, a Amianto já existia como um personagem muito forte, muito vivo e intenso. E foi um trabalho muito engrandecedor pra mim esse de trabalhar com personagem, de como a forma pode espelhar o que o personagem tá sentindo, de como a forma pode conduzir o personagem, essa relação que é de mão dupla. A forma tanto espelha quanto conduz o personagem. Em um momento, oprime, em outro, enaltece. E esse lugar foi de descoberta grande e me 180
ajudou a entender melhor muitas questões sobre narrativa, construção de personagem... Pedro: Ontem eu tava dando uma entrevista sobre O último trago, e me perguntaram: “e aí, que filme é esse?”. E eu disse que ia começar a descobrir quando o filme chegasse aos olhos lá dos espectadores no Festival de Brasília. Porque, até então, não dá pra saber que filme é esse. E saber que filme é esse não se encerra nunca, porque cada exibição é um contexto, é um clima, é um jeito, tem um filme que passa antes, tem uma energia do festival, tem a pessoa que tá sentada do seu lado. E a gente ficando mais velho (risos), o tempo passando, tem uma coisa legal, que é perceber o quanto esses filmes tão vivos e, de alguma forma, ainda pulsam dentro de algumas pessoas. Recentemente mesmo, no Cine Ceará, alguém chegou pra mim e disse que faz cinema porque viu Os monstros, outra pessoa já me disse que viu Ythaca e ficou com vontade de fazer filme também, viu que podia fazer cinema também. É um sentimento que ouço muito a partir do Doce Amianto e de Medo do Escuro, já de uma galera mais nova. Acho que é uma chama. Guto: A partir de tudo isso que o Pedrinho trouxe, eu pensei numa coisa que é fundamental, a precariedade. O mundo tá dizendo que precariedade é uma coisa ruim. O mundo tá dizendo que, se você não tem, você precisa ter. Existe um padrão de qualidade de estética, de modo de vida, de valor de produção. Ok, você não tem isso: o que você faz com a sua precariedade? Nesses filmes todos, eu vejo uma vontade de transformar essa precariedade em potência, de não negar a precariedade, não tentar esconder. Mas de afirmar. É precário, e precário pode ser massa. Por isso, talvez as pessoas se mobilizem a fazer mais filmes, elas pensam: eu não tenho, e eles também não têm, mas fizeram. A questão vira um pouco outra nesse momento, quando a gente passa a fazer filmes com mais recursos. Pedro: É, agora é como fazer filme com recursos? Como fazer filme com dinheiro e continuar tendo as coisas que a gente trabalhava antes? Como ter uma equipe grande e cronograma, mas não fazer disso um processo engessado? Como ter mais estrutura e conseguir que pessoas estejam ali junto e se sentindo criando, e não num emprego, numa profissão? Quando o dinheiro entra, são outras questões que precisam entrar. Como é que você tá lidando com sua equipe? Você tá sendo só mais um patrão filho da puta, que acha que tá pagando e pode pedir que as coisas sejam do seu 181
jeito? Ou você também está tentando, por mais que dentro desse sistema, tendo uma equipe que tá criando junto? Lógico, que cada um cuidando do que é específico. Então, não é que acabaram as questões, agora que temos recursos. Na verdade, surgem questões muito mais complexas. Érico: Considerando o lugar do espectador, eu queria pensar um pouco mais nessa mostra retrospectiva, que já rolou em Fortaleza em 2014 e agora vai acontecer no Rio. E pensando nesse contexto de uma mostra, como é pensar o encontro desses filmes com o espectador de hoje e como é, pra vocês mesmo, esse reencontro com os filmes, depois de algum tempo? Guto: Na mostra de dezembro de 2014, em Fortaleza, foi muito legal ter visto os filmes, eu vi quase tudo. Eu sou muito crítico, eu tendo a achar que tudo que eu fiz é uma merda. Vai passando o tempo, e eu vou achando que é uma merda... Eu acho muito importante rever pra sair um pouco disso. A experiência de ter revisto Ythaca e Os monstros foi muito foda. Você tem um distanciamento muito grande, você percebe ali, mais do que ninguém, muitas imperfeições, você pensa que faria diferente, mas aquela porra tem um valor muito grande. E é bom ver e confirmar algumas coisas, revalorizar pra si, sabe? Não sei se as pessoas acham que o artista, o diretor, tem uma relação confortável com a própria obra. Mas, pra mim, é super desconfortável. É uma maneira de entender a própria história, de entender os próprios caminhos, o que você tá fazendo hoje. Agora, com o público, não faço a mínima ideia do que é um adolescente que tava caçando Pokémon e entrou no cinema para ver Ythaca (risos). É que tudo tá mudando muito rápido, é muito assustador. Em 2010, era tudo tão diferente, o mundo era muito diferente, a política era diferente. Pedro: Existia uma democracia nesse País... Guto: Pois é, existia uma democracia... Mas o sentimento maior mesmo é de curiosidade, de ver que esses filmes que estão vivos e, a cada exibição, vão continuar vivos. Pedro: Tem essa coisa que pode parecer besta, dos 10 anos, mas é uma história, né? É uma trajetória de relação intensa com o cinema. Lógico que alguns filmes envelhecem, algumas coisas melhoram com isso, outras coisas pioram. Mas tão lá, acho que cada filme foi feito com muita verdade naquele momento. E a última batalha de todas é fazer com que os filmes 182
sejam vistos, o filme chegar ao público. Então, cada possibilidade de exibir o filme é maravilhosa, poder exibir na telona, no cinema, cada mais raro, é uma coisa muito bonita. E essa oportunidade de poder juntar os filmes e ter uma leitura diferente das coisas é super importante. Como foi aqui em Fortaleza há um tempo. E o Rio sempre foi um lugar muito importante pra gente, a Semana dos Realizadores sempre foi muito importante... Guto: O último trago, por exemplo, nasceu lá atrás, em um encontro na Semana dos Realizadores, com a Vania Catani, que chamou a gente pra conversar e disse que queria fazer um filme com a gente. Pedro: E tem esses contextos de encontros mesmo. No lugar errado também foi assim, de um amigo dos gêmeos que foi apresentado pra gente. E No lugar errado, pra mim, foi um filme muito libertador, no sentido de abrir mil caminhos e mostrar que não existe um caminho, a gente tá aqui pra se jogar nas coisas, e cada filme vai ser um filme.
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conversa luiz pretti, ricardo pretti e ivo lopes A conversa que segue tem uma geografia ampla. Luiz Pretti, Ricardo Pretti e Ivo Lopes participaram dessa troca, num encontro virtual, feito por Skype. Cada um estava em uma cidade diferente. Num cruzamento entre Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Airuoca (MG) e Fortaleza, percorremos algumas veredas em torno do cinema, da vida e do tempo. O encontro começa com a presença de Ricardo e Luiz – Ivo chegaria logo mais, trazendo mais alguns ritmos e melodias para essas variações musicais. *** Érico Lima: Pensei em começar essa conversa considerando essa dimensão geográfica mais espalhada, que marca o presente do Alumbramento. Vocês dois estão em outro espaço, já não mais em Fortaleza. Em alguma medida, isso pode criar uma situação de conexão com outras redes, talvez um pouco diferente de quando estava todo mundo do coletivo em um mesmo espaço, ou pelo menos, na mesma cidade. Como vocês acham que essa situação pode, de algum modo, reconfigurar os modos de fazer do coletivo? Ricardo Pretti: Todos os projetos coletivos do Alumbramento, desde o começo, implicavam mais pessoas que não eram só Alumbramento. Mesmo quando eram dez pessoas no coletivo, eram mais parceiros, eram mais diretores. Desde o começo, a proposta, inconsciente ou não – inconsequente também –, era de expandir esse circuito e fazer com que as coisas transbordassem. E nada mais natural que essa expansão fosse para além do Ceará. Inclusive, no Praia do Futuro, já existia a vontade de chamar pessoas de fora. O Ivo chegou a chamar o Helvécio Marins, o Karim Aïnouz, que já não estava no Ceará, o Felipe Bragança, que chegou a fazer o filme. Então, essa relação, na verdade, foi natural. Até hoje ela continua. Eu, pelo menos, não vejo tanto um momento em que o Alumbramento estava mais coeso, e outro momento em que tava menos coeso. Acho que sempre foi muito poroso, muito aberto. As operações eram sempre muito a favor de uma expansão. Luiz Pretti: É, teve só uma fase, ali dos irmãos Pretti e primos Parente, num período de uns três ou quatro anos, em que a gente concentrou mais nossos 184
esforços nos filmes que nasceram ali naquele momento: Ythaca, Os monstros, No lugar errado e Com os punhos cerrados. Naquele momento, acho que a gente ficou mais voltado pra esse coletivo específico, que era um coletivo dentro do Alumbramento. E aí talvez tenha uma sensação de coesão, de que a gente estava mais voltado para nós mesmos. Érico: Talvez a questão não fosse tanto de uma certa dualidade entre estar mais fechado em si mesmo e estar mais aberto. Eu pensaria nesse ponto de conexão que foi Fortaleza, para a articulação do grupo. O que agora surge, quando nem todo mundo está em Fortaleza? Em termos dos modos de produção mesmo, o que é possível para um grupo que se forma a partir de uma cidade, estar agora nessa geografia mais expandida? Considerando, inclusive, que Fortaleza, certamente, foi muito importante para os filmes, como urbano mesmo. Ricardo: Com certeza, pra tudo. Fortaleza é essencial, não existiria Alumbramento sem Fortaleza. Mas é difícil responder isso, acho que é uma coisa que o tempo vai dizer melhor. Luiz: Acho que uma coisa particular pra mim e pro Ricardo é que Fortaleza é uma cidade pra onde a gente foi, né? Nós não somos de lá, é diferente em relação aos outros. Porque pra gente, Fortaleza já é um momento de expansão, é um momento de sair do Rio de Janeiro para encontrar uma coisa nova. Eu sei que o Alumbramento só pode existir naquele contexto específico de Fortaleza, mas ao mesmo tempo, ele já nasce de uma expansão, de uma troca com o fora. Pelo menos, pra mim, porque eu era de fora. Eu caí de paraquedas em Fortaleza, e três meses depois tava criado o Alumbramento. Então, pra mim, é difícil pensar uma coisa separada da outra. Ricardo: Fortaleza pra gente foi uma escolha. A gente não nasceu lá. Só que isso, de alguma forma, tem um pouco a ver com o espírito do Ivo. O Ivo, nesse sentido, foi muito importante. Como ele tinha vindo morar aqui no Rio, voltar pra Fortaleza também foi uma escolha. E ele só voltou pra Fortaleza porque tinha o Ale (Alexandre Veras), tinha o Alpendre. Eu escutava muito ele dizer aqui no Rio: “preciso voltar pra Fortaleza, o Ale tá me chamando, tenho muita coisa pra fazer lá”. E ele voltou pra Fortaleza, aí algum tempo depois, ele falou a mesma coisa pra gente: “vocês precisam vir aqui pra Fortaleza, tem aqui o Alpendre”. Na época também tinha o Sábado à noite pra fazer. E a gente tinha que ir lá pra agitar as coisas. Pra gente, 185
realmente, Fortaleza é muito importante nesse sentido, não é uma coisa simplesmente dada, é uma escolha pra gente. E acho que pra mim e pro Luiz, mais do que pro Ivo, existia muito essa sensação de que Fortaleza era uma cidade a ser desvirginada. Fortaleza simbolizava pra gente um espaço de liberdade criativa. Talvez eu e o Luiz sentimos mais, porque a gente tava no Rio de Janeiro, terra da Rede Globo, da Conspiração Filmes, dessas grandes produtoras. Então, significa muito mais essa liberdade. E também pro Ivo, de outra forma, mas também pra ele. Luiz: Uma coisa que Fortaleza proporcionou foi uma relação com o tempo totalmente outra, especialmente em Sabiaguaba. Não era o tempo da eficácia, em que é preciso responder a uma série de demandas. Ali a gente podia viver com muito pouco e passar um tempo desfrutando o tempo. Talvez essa seja pra mim a base dessa relação de vida e criação, vida e cinema. Porque se você tem tempo pra viver o tempo, as coisas vão acontecer de outra forma. Você não vai fazer um filme porque precisa entregar o filme em determinado momento. Você vai viver aquele lugar, e o filme começa a fazer parte daquele lugar. E aí o filme surge nisso. Érico: Como é que, ao longo dessa trajetória, passa a ser importante pra vocês disputar recursos? Porque por mais que a gente defenda a possibilidade de fazer filmes com poucos recursos, às vezes pode ser complicada a afirmação de que o filme é sem dinheiro, até porque as pessoas precisam sobreviver, mesmo os amigos precisam ser pagos. Ricardo: Pra mim, a disputa passa a existir quando os filmes passam a precisar de dinheiro para a própria produção. Pra mim, e isso é uma questão pessoal, eu só comecei a achar importante disputar, quando eu quis fazer um filme em que eu ia precisar de parceiros que não envolvia, simplesmente, dizer: galera, vamo fazer um filme, quando der pra fazer, no tempo que for possível. Porque nossos filmes eram feitos quando dava pra fazer, com quem queria fazer. O compromisso com o filme era totalmente leve. Mas aí tem certos filmes em que não dá pra fazer isso, por uma série de razões. E eu acho que começa no roteiro, começa no que a gente quer dizer. Começou quando a gente passou a querer colocar nos filmes outras coisas. Se existe uma transição, pra mim ela acontece muito nos filmes. De repente, não interessava simplesmente fazer filmes atravessados pela vida, filmes circunstanciais, como a gente chamava, filmes resultantes das circunstâncias da vida, e mais filmes que surgem de uma vontade de 186
dizer certas coisas, que é quando talvez os filmes começam a ficar mais conscientemente históricos e políticos. Começa com os curtas do Luiz. Acho que Com os punhos cerrados é um passo importante pra isso, porque eu acho que ele traz uma vontade de fazer uma imersão na história, no caso a história do anarquismo. Luiz: Tem uma coisa também que é da ordem da vida mesmo. Em 2006, quando eu morava em Sabiaguaba, o meu custo de vida era mínimo. Hoje em dia, é colossal. Hoje em dia não dá mais, você precisa receber pelo seu trabalho, porque senão, você não vive. Se você continuar a fazer cinema, você precisa receber por isso. É o processo normal de virar adulto, né? (risos). Mas tem uma coisa que é importante falar. Na época do Ythaca, houve uma reação escrota, meio babaca, que dizia: ah, esses meninos, playboys, podem fazer filme sem dinheiro, porque não precisam sobreviver. E nunca foi isso. É importante deixar claro. Aí começaram a desconfiar desse nosso processo, porque a gente não estava pagando os técnicos. Só que assim: primeiro, a gente não tinha técnicos. Segundo, a gente fazia outras coisas pra pagar as nossas contas. E terceiro, o que a gente tava fazendo ali era descobrindo uma maneira de fazer cinema, de poder fazer cinema. Esse tipo de reação revela a estupidez na qual o cinema estava imerso, que deu naquela porra da retomada, em que ninguém podia fazer filme, só quem tinha dinheiro. Só podia fazer filme a Carla Camurati ou sei lá quem. Aí você faz, e as pessoas começam a questionar e querem de novo restabelecer o processo natural. E tudo bem, todo mundo vai passar por isso. Hoje em dia, a gente tá fazendo filmes com dinheiro. Eu só vivo de cinema, porque tem pessoas que ganharam editais e me contratam. Mas tem que ter cuidado pra isso não virar uma amarra, uma prisão, e isso não ser colocado na cabeça dos jovens que mal começaram a fazer cinema e já acham que tem que fazer cinema com dinheiro, porque é a maneira certa. Não é, tem mais de uma maneira. Érico: Tem outra questão que eu queria trazer, que diz respeito ao lugar do espectador. Pensando a relação que um filme tece com os sujeitos que olham. Que tipo de relação seria essa, entre a imagem e o sujeito do olhar? Inclusive, pensando nos filmes de vocês que passam a ter vontade de dizer coisas sobre a experiência histórica ou sobre a política de modo mais direto. Pegando isso que você falou, Ricardo, sobre esse momento em que os filmes ficam mais históricos e mais políticos. Porque, se há, por um lado, o engajamento no tempo histórico e no mundo vivido, há também o desejo de engajar do outro que olha. Na relação 187
com o sujeito do olhar, como vocês pensam essas estratégias de engajamento? Fico pensando muito em Com os punhos cerrados, Não estamos sonhando e Os últimos raios de sol, por exemplo. Luiz: Eu acho que são filmes que querem ser engajados, com certeza. São filmes que acreditam no cinema enquanto meio de comunicação, de atingir o outro, de entrar em contato com o outro. Esses filmes que você falou, especialmente, eles querem estender a mão. Eu penso, principalmente, em Não estamos sonhando. Mas em O mundo é belo, já era isso. Em Cineasta bom é cineasta morto, já era isso. Na verdade, seria mais berrar um pouco, pra ver se alguém escuta. Mas são filmes totalmente feitos com esse intuito de chegar ao mundo. Talvez com a consciência de que o mundo não foi totalmente inserido na diegese do filme, então por isso mesmo, isso teria que ser, de alguma forma, compensado na exibição. O Punhos tenta, de alguma forma, encenar um pouco o mundo, com alguma dificuldade, mas tenta encenar o mundo. Enquanto esses outros filmes partem do íntimo pra tentar chegar ao mundo. Sem dúvida, são filmes com o intuito de se relacionar com o mundo, de botar pra fora tudo aquilo que foi recebido no dia-a-dia. Érico: Sim, e insistindo um pouco nesse engajamento do outro, eu fico pensando também como ele também é imponderável. E talvez um desafio do realizador seria também estar à altura dessa imponderabilidade do engajamento do outro. Por isso, eu fico me perguntando sobre como pode o realizador se investir de uma postura que menos cobra o engajamento do outro do que o convida, talvez. Enfim, fico pensando nessas estratégias que não buscam uma continuidade entre o que inquieta o realizador e o que haveria a ser disparado no espectador. Luiz: Eu sei. Mas pra mim, é uma esperança, não é uma cobrança que o espectador vá se engajar. Nesse momento, Ivo passa a fazer parte da conversa. Luiz: Aproveitando que o Ivo entrou aqui na conversa, se você pega um filme como Sábado à noite, era uma proposta de viver com o espectador um momento outro. Dependia muito do espectador querer embarcar naquele universo, naquele tempo. E sempre depende. O que a gente faz, normalmente, é retirar dos nossos filmes as artimanhas da sedução, certos padrões de dramaturgia, certos padrões estéticos que facilitam a comunicação. Então, se você tirar isso, você precisa de um espectador que 188
queira se engajar. Se você toma um filme, sei lá, da Globo, eles já partem do senso comum, da comunicação. Ivo: É, eles apelam pra isso, pro reconhecimento. Luiz: E a gente também não sabe, a gente não sabe falar direito. Quando você tá aprendendo, você não sabe falar direito. Acho que a gente vai ficando cada vez mais preocupado em aprimorar nossas habilidades de comunicação, fazer com que o espectador queira entrar nessa conversa – o Ivo não, o Ivo vai ficando mais porra louca, se a gente pensar em Medo do Escuro (risos). E ao mesmo tempo, é um processo de educação: o espectador precisa ver vários filmes, pra embarcar mais nessa maneira de se comunicar. E aí de novo, você precisa do engajamento do espectador. Mas eu só acredito no cinema dessa forma. Se o espectador não quer se engajar, então ele não é um espectador pro meu filme. A gente tem a tendência de pensar: ah, o espectador não gosta do filme, ele acha o filme ruim. Na verdade, eu penso o contrário: eu que não gosto do espectador, eu que acho ele ruim. Acho que é legal inverter um pouco essa lógica. A gente está lidando com arte, que depende de engajamento. Eu não estou fazendo entretenimento, para o espectador assistir ao filme, enquanto janta. Ricardo: E nesse sentido, se o espectador é o espectador de televisão, então a gente é contra o espectador. Aí a sedução é porrada. Luiz: A minha esperança é que eu consiga atingir as pessoas com aqueles filmes. Mas quando a gente fala de forma mais abstrata do espectador e do cinema, aí passa a ser uma cobrança. Não quero que os meus filmes sejam uma cobrança, mas eu acho que a gente precisa cobrar um mínimo de engajamento. Aí sim eu falo numa cobrança. Ivo: Pelo menos, provocar, né? De alguma forma, ativar isso, essa vontade. Tem sempre uma coisa, desde que eu conheci os meninos. Se a gente tivesse dado um passo, se a gente tivesse construído alguma coisa, e estivesse seguro, no próximo filme, seria preciso dar um passo além. Você fez um monte de coisa, aprendeu sobre essa aproximação, esse entendimento. Mas o que eu sempre senti é que, quando vocês aprenderam com o filme, vocês podem usar isso no próximo filme, mas vão sempre dar um passo rumo ao desconhecido, rumo ao precipício. Sempre teve uma vontade de risco, de se arriscar e de não ficar só no que já foi aprendido. E isso eu sempre acho 189
muito instigante, é uma vontade de risco mesmo, de aventura. E errar, sem nem saber exatamente onde, porque o erro é um aprendizado também. E isso pra mim sempre foi muito instigante. Enquanto eu via todo mundo querendo aprender os códigos, os modos de seduzir uma grande quantidade de gente, eu sempre via o Luiz e o Ricardo usando de todo conhecimento que tinham, sem esse medo de ser mal interpretado. E acho que aí o cinema se afasta da comunicação, da vontade de dizer uma coisa específica. Érico: Tomando aquela ideia de ser contra o espectador, eu fiquei pensando também em como criar o lugar da relação. Não uma relação que implique comunicação, como bem disse o Ivo. Mas uma dimensão de relação com o outro que, sem passar por artimanhas de sedução ou de domínio de códigos confortáveis, afirme a necessidade do outro para se relacionar. Porque talvez isso tenha a ver com a vida mesmo: de algum modo, a gente está sempre às voltas com a necessidade de se relacionar com o outro. E aí, colocando uma provocação mesmo, eu pensaria também em como evitar uma posição muito distanciada em relação ao outro. Ivo: Dentro dos filmes, eu acho que essa coisa do encontro é muito doido. Quando eu tô fora do âmbito do Alumbramento, vejo algumas pessoas calculando como se comunicar. E eu acho que não, necessariamente, há um encontro aí. Porque não tem gente se expondo. Então, pensando nos filmes da gente, tem um encontro, porque a gente deu um passo quando a gente fez o filme. E o espectador também tem que dar um passo. Quando a gente faz um filme, por mais estranho que seja, a gente dá um passo em direção ao outro. E o outro também tem que dar um passo. A gente vai junto. Eu tô dizendo alguma coisa sobre mim que eu não sei bem o que é, e junto a gente vai chegar a algum lugar. Então, eu acredito nesse encontro. Quando eu penso no Sábado à noite, acho que era um filme que não tinha uma hierarquia de conhecimento cinematográfico, que podia estar aberto a qualquer pessoa. Não importava se era um cinéfilo ou se era uma pessoa que tinha um pouco mais de paciência para contemplar aquelas imagens. Acho que era um filme que poderia estar aberto pra qualquer pessoa, se ela estivesse com vontade de estar ali. E eu acho que isso gera um encontro de fato, e não um entretenimento que gera reconhecimento de códigos. Essa experiência sem as muletas da comunicação gera um encontro de outra ordem, talvez até com mais personalidade. O encontro com um tipo genérico de gente pra mim não é encontro, é acertar um alvo. Érico: Considerando essa mostra retrospectiva que vai acontecer agora na Caixa 190
e a que teve também em Fortaleza, em 2014, como é pra vocês essa reverberação dos filmes nos tempos? Como é que vocês se encontram com eles hoje? E também como vocês acham que esses filmes permanecem vivos na relação com o espectador? Luiz: Cara, o tempo é muito generoso com os filmes. Os filmes ficam melhores. Nem todos, mas a maioria fica melhor. Lá em Fortaleza, vendo Ythaca, eu pude finalmente ver o filme. Não o entorno dele, mas o filme mesmo. E o filme é massa. O filme de fato é bom. Ivo: Para as outras pessoas, é mais difícil de saber. Mas eu acho que, no montante, ver os filmes todos juntos, acho que tem uma coisa muito legal. Eu nem sofro tanto com os erros. Acho que são apostas meio estranhas que a gente fez em determinado momento e que voltam à tona também. E isso é interessante de ver, são marcas do tempo mesmo e da nossa personalidade, do que a gente tava tentando, do que a gente tava vivendo e acreditando naquele momento. A personalidade do filme mesmo. Ricardo: E o filme já não é mais a gente, né? Ivo: A gente já não é mais o filme (risos). Luiz: Acho que, de fato, tendo os filmes em conjunto, eles acabam comentando um ao outro. E isso, em um período curto, você entende melhor. É como quando você pega uma mostra de um cineasta, como fazem: Fassbinder, Godard... Você vendo os filmes em conjunto, é possível ter uma entrada no contexto, na obra, que é massa. Você passa a ter mais peças pra compor um quebra-cabeças. E tem certas coisas que demoram mesmo. Eu não sei quem tem interesse nisso, mas acho que ajuda, acho que é um bom momento de entender melhor, de se debruçar sobre os filmes, de saber mais sobre eles. O espectador que assistir a todos os filmes será recompensado, eu tenho certeza disso (risos). Érico: Ivo, de Sábado à noite a Medo do Escuro, que tipos de convite esses filmes podem ter para o espectador, quando vistos assim numa mesma mostra? Você falou de erro, e eu fico pensando até no erro como errância. Que tipos de errâncias esses filmes convocam nas tuas pesquisas pela cidade? Ivo: O Sábado à noite era pesquisa de locação pro Medo do Escuro (risos). Quando eu penso no Sábado à noite, é muito simples o filme. Tem o que 191
a gente tá vivendo, tem as pessoas com quem a gente estava. E me parece muito menor a ambição do filme. Eu acho que tem a ver muito com a vida. Depois desse tempo, algumas pessoas já não estão. Sábado à noite estava lidando diretamente com questões do cinema, da imagem, da cidade. E aí eu acho que, no Medo do Escuro, tem essa coisa de estar com as pessoas da cidade: Solon, Nataly, Jonnata... Acho que tem esse acúmulo de relações, de parceiros, de aprendizado de um monte de coisa também. Eu acho que os filmes que eu dirigi têm a ver com um acúmulo de coisas que eu tava vivendo e tento colocar na prática: filmar em 16 mm, as coisas que eu tava acreditando e o que eu aprendi nos outros filmes. Érico: Sobre Medo do Escuro, eu lembro muito um debate que rolou em Tiradentes, no dia seguinte à exibição. Se eu estiver recordando bem, Ivo, eu me lembro de você concordando com as referências cinematográficas apontadas em relação ao filme, mas também tendo um gesto de considerar outras dimensões atravessando esse processo, que seriam da ordem desse encontro com as pessoas e com a cidade. E eu fiquei muito interessado nesse gesto de não colocar tanto o primado da cinefilia, mas de destacar também outras forças. E pensando nesses encontros entre vocês três, acho que há muita circulação de referências cinematográficas também. Mas ao mesmo tempo, tem outras coisas que estão batendo à porta nos filmes, pensando especialmente no teu processo, Ivo. Ivo: É, eu tô muito longe de ser cinéfilo. O pouco que eu conheço vem muito do Luiz e do Ricardo. Eu nunca baixei um filme na internet. Até acho que o cinema foi muito uma forma de me aproximar deles. O cinema foi sempre uma possibilidade de encontrar com as pessoas, de poder trocar – e continua sendo. Quando eu penso os filmes, pode até vir uma referência ou outra, muito inconscientemente, os climas, algumas coisas. Tem também uns caras que eu curto, Cronenberg... Mas é muito pouco. Acho que minha vontade de fazer os filmes não parte tanto da cinefilia, ela é mais ativada por esse acúmulo mesmo, acúmulo de outras experiências de fazer cinema com outras pessoas, acúmulo da vontade de outras pessoas. Hoje em dia, eu tenho muita vontade de filmar com os atores de Fortaleza. Acho que é com quem mais eu sinto vontade de fazer cinema. Acho que, no começo lá do Alumbramento, lá na época do Sábado à noite, era também essa vontade de fazer os filmes, de viver os filmes, de se jogar nessa experiência. Vontade que era também da Gláucia, da Rubinha, do Luiz, do Ricardo, do Fred. Então, eu acho que eu sirvo muito como catalisador desses desejos mesmo. No Medo do Escuro, é isso também: eu sou o diretor, mas acho que é um filme 192
com os desejos de muita gente. O tanto que a Thaís tava com vontade de fazer esse filme, o tanto que a Themis tava com vontade, a Nataly, o Jonnata. O Jonnata foi o estopim, eu tava com vontade de fazer um filme com o Jonnata em 16 mm, basicamente. E foram surgindo outras pessoas: Solon, Sílvia Moura, pessoas que sempre me inspiraram, com quem eu já tinha uma relação. E tem a ver com a cidade sempre, porque é sempre onde a gente se encontra, onde a gente tá junto. E eu sou muito presencial mesmo. Ricardo: Assim como eu não vejo esse filme sem a colaboração do Solon, da Thaís, do Jonnata, da Themis, da Nataly, de todo mundo, eu também não vejo esse filme sem algumas poucas, mas fortíssimas, referências, na própria vida do Ivo: o Paradjanov, as músicas da Nico, o próprio Cronenberg, de um lado, Tartarugas Ninjas e Mad Max, de outro. A cinefilia, historicamente, tá muito ligada ao crítico de cinema, então a gente tem certa forma de pensar a cinefilia como um pouco fechada em si própria. Mas tem outro tipo de cinefilia. No caso do Ivo, ele tem menos filmes que viu, mas é uma cinefilia muito voltada pra fora. A gente digere esses filmes e já transforma em experiência de cinema, em forma de pensar a vida. Embora o Ivo não seja esse cinéfilo no sentido tradicional da palavra, acho que ele tem uma cinefilia muito forte no sentido mesmo de filia, de filiação. Ivo: Total. Quando tu fala do Paradjanov, pra mim, é muito claro mesmo. O Vertov também, algumas figuras assim me apresentaram um olhar pro mundo que é realmente uma filiação mesmo. E também tem uma relação muito influenciada pela música. Juntar o Paradjanov com a Nico dá no Medo do Escuro. Essa coisa do som foi sempre muito importante pra mim, desde os primeiros filmes. Eu nunca gostei muito de tratar o som direto como fala, por exemplo. Mas essa relação com o som é muito forte pra mim, a coisa da atmosfera, que eu acho que tem muito a ver com o Cronenberg, também tem muito a ver com música. E outro caminho que me interessa muito é também dos documentários de acompanhamento, de um Wiseman, por exemplo. Acho que é uma cinefilia menos abrangente e variada, e mais concentrada em algumas coisas. Ricardo: O Ivo é o mais cinéfilo de todos nós. Érico: Tem uma coisa que me parece forte no Alumbramenteo, que são também essas variações de encontros, ou de combinações. Pegando a figura da música trazida pelo Ivo, é como se fossem duos, trios, quartetos, coros, solos... Como é que 193
essas diferentes formações vão reverberando nos processos? Ivo: Total. O Medo do Escuro é meio orquestra, né? É tipo uma sinfonia pós-industrial. Luiz: O complicado do cinema é que demora muito, né? Se fosse mais rápido, a gente teria feito ainda mais variações de banda. E no sonho, é que isso acontecesse num nível internacional. Certamente, tem um Alumbramento no Japão. Ivo: Talvez essa seja uma das nossas maiores potências, ter uma produtora meio irresponsável, no sentido mais clássico de uma produtora. Sempre o ponto de partida foi esse de juntar uma galera e explodir. Um pouco de ingenuidade, sobra de tempo e muita vontade. Ricardo: Nesse sentido, a música realmente faz um paralelo bom, porque a forma de organizar um coletivo como o Alumbramento talvez vai ser muito mais encontrada em contextos musicais, como o free jazz ou no cenário punk dos anos 1970. As bandas também se misturavam de modo muito colaborativo de criação. Não que no cinema não tenha. Mas é mais difícil de encontrar. Então, de modo consciente ou não, a gente conseguiu fazer essa organização coletiva de forma mais convicta e mais certeira, muito por conta de uma referência musical mesmo.
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conversa caroline louise A intensidade da realização de mais um filme Alumbramento, Inferninho, marca a temporalidade da conversa a seguir. Caroline Louise remonta uma trajetória criativa de produção, em meio à resolução de uma infinidade de demandas para fazer mais um processo fílmico acontecer. *** Érico Lima: Carol, eu estou sempre tentando começar essas conversas um pouco nesse cruzamento entre o presente e os momentos anteriores do Alumbramento. E tu tá aí agora na correria da produção desse longa novo, o Inferninho, que tem toda uma nova dinâmica de produção, por várias razões. Então, queria entrar um pouco nessa história do Alumbramento um pouco por essa diferença entre esse momento atual e outros processos de produção de que você participou ao longo desse tempo. Caroline Louise: Eu entrei na Alumbramento, quando ela já existia. Eu entrei meio que no meio do tempo de existência até hoje. E quando eu entrei, a Alumbramento estava bem fragilizada nessa parte de produção. Porque vinha de alguns anos em que as pessoas não estavam muito interessadas em assumir essa parte de produção. As pessoas que assumiam já estavam um pouco cansadas. Nem todo mundo tava muito interessado nesse compromisso da burocracia, da organização do dia-a-dia. Acho que, no fim das contas, era todo mundo mais artista do que produtor. E eu acho que isso foi até um dos conflitos que gerou na antiga galera que estava. De início, eu comecei a trabalhar com produção muito com o Luiz, o Ricardo e o Pedrinho. E depois de um tempo, conheci o Ivo, que me fez a proposta de eu entrar e assumir isso. E é bem louco. A gente até tem discutido isso. Eu entrei, tinha a Amanda e a Vivi, que depois saiu. E ficamos eu e a Amanda desde sempre. E isso é uma coisa importante nesse papel da produção: de uma forma, fui eu que entrei como integrante fixa, dentro das seis pessoas, mas eu nunca trabalhei sozinha. Foi muito parceria minha com a Amanda, tanto nos filmes como na organização da empresa, no dia-a-dia. E aí a gente foi aprendendo muito com o tempo. Porque a gente entrou pegando uma produtora, na parte organizacional, muito caótica: os filmes não tinham 195
CPD, não tinham cadastro na Ancine... Tava uma coisa bem loucona. Mas, ao mesmo tempo, a gente também não tinha a experiência de trabalhar em outras produtoras maiores para trazer para a Alumbramento. Então, a gente foi aprendendo na marra, aprendendo e errando. E isso também foi massa. Porque a gente criou esse modelo próprio de fazer – e até agora, a gente vem aprendendo cada vez mais. Os primeiros filmes, com certeza, eram bem diferentes do que a gente tá fazendo hoje. A gente até brincou essa semana: bateu saudade de quando a gente fazia filme de 20 mil reais. Parece que era tudo mais caseiro. Mas, ao mesmo tempo, eu também não sinto saudade de algumas coisas do começo. Com certeza, hoje em dia, a gente consegue falar com muito mais propriedade de algumas coisas e tocar os barcos com muito mais segurança. E também conseguir embarcar nas viagens dos diretores, conseguir realizar as coisas com muito mais segurança. E ao longo dos anos, a gente foi sentindo que algumas loucuras rolam. Tipo Medo do Escuro ou outros filmes que poderiam ser impossíveis em determinados contextos, mas que rolaram da nossa maneira. E o Inferninho é essa loucura, que além de ser da nossa maneira, tá sendo feito junto com um grupo de teatro, que também tem seu modo de trabalhar. A inspiração do projeto veio deles, e tem a gente se apropriando disso também, tem esse encontro. E agora tem esse trabalho com os atores também, uma coisa que não existiu desde sempre na história do Alumbramento. No começo, tinha certa dificuldade de trabalhar com atores profissionais, uma falta de experiência também. Então, passamos a juntar esses atores, numa condição de fazer um filme que é maior do que o orçamento que ele tem... Como fazer isso acontecer? Ele tem várias dificuldades mesmo de estrutura, de orçamento... E como fazer as pessoas embarcarem nessa e comprarem a ideia do filme, sem estar todo mundo se matando no final? (risos). Érico: As produções estão ficando maiores, com mais demandas, mais recursos, mais aspectos pra gerir. Como negociar com essa estrutura que fica maior e, ao mesmo tempo, manter o espírito que sempre foi tão central pra vocês, do ponto de vista dos processos de produção? Carol: Sim, total. O Ale (Alexandre Veras) até nos alertou esses dias que a gente tem dinheiro e que a gente tá fazendo uma coisa maior do que a gente pode. De certa forma, eu concordo. Eu acho que a gente talvez esteja fazendo mais do que o orçamento permitiria (em Inferninho). Mas, 196
ao mesmo tempo, é difícil barrar um processo criativo. Às vezes, a produção tem esse papel de barrar certas coisas onde a gente acha que realmente não dá. Mas tem que ter um diálogo muito forte da gente com os diretores, porque também não faz muito sentido ficar nesse papel de só trabalhar com os números e dizendo até onde vai, até onde não vai. Porque, assim, a nossa parte criativa vai pro lixo. Então, é pensar como estar usando. Fazendo, às vezes, o que não dá, mas dentro das possibilidades, mas também sem barrar esse processo criativo. A gente nota que as coisas tomam uma proporção maior do que a proposta. Eu acho que é meio saber dosar o que rola e o que não rola. E eu acho que os meninos conseguem ter uma consciência de produção muito boa. Eu já trabalhei com outros diretores, com quem nem sempre rola isso. Apesar de eles saberem que estão propondo coisas mais do que o possível, mas eles também sabem ir até certo ponto. E eu acho que isso não é com todo mundo, essa medida. Eles têm uma consciência de produção forte. Até o momento de a gente chegar e dizer que não dá, pra gente rever e pensar como fazer, dentro de uma maneira massa, mas cabendo dentro da produção. Érico: Essa questão da consciência de produção dos diretores me levou a pensar agora em outro aspecto dos processos. Lembrei o que você falou sobre aquele momento em que as pessoas não queriam pegar o trabalho de produção, porque estavam muito interessadas no lugar de artistas e tal... Mas aí fico pensando que a produção, especialmente na formação ligada à Vila, tem um pensamento de criação também. É, como você falava, não tem a ver só com os números, com a burocracia. Carol: Total. A gente estava fazendo agora O último trago e eu considero que o filme é tão meu quanto é do Luiz, do Ricardo e do Pedrinho. Eu tô gestando esse filme há mais cinco anos. E quando eu falo que a galera não tava muito interessada nessa parte burocrática, é porque a galera não queria muito essa parte do dia-a-dia, sabe? É mais cansativo estar aqui na produtora todos os dias, cuidar da documentação, de pagar imposto. Porque, realmente, é uma parte burocrática e é um trabalho mesmo diário. Ao mesmo tempo, é como te falei, a gente não consegue produzir nada junto com eles, se a gente não tiver essa força criativa também. A gente não consegue colocar todo o pensamento deles em prática, se não estiverem todos dialogando na mesma linha. E eu acho que essa é a dificuldade da produção mesmo. Tem alguns tipos de produtores, com quem eu dialogo muito nisso. Mas tem algumas pessoas que têm um trabalho mais centrado 197
e direto em algumas questões, muito focadas ali no que é a produção, a produção executiva, e têm um distanciamento mesmo. Acho que é uma dosagem que vai de filme pra filme, todo processo é diferente. E eu sinto que, em cada um, a gente vai aprendendo alguma coisa. Acho que, de cada filme que a gente sai, a gente consegue dizer que vai carregar pra frente algo que aprendeu. Érico: Observando a produção da Alumbramento, a gente sente que tem uma intensidade e uma simultaneidade muito grandes. É isso: vocês acabaram de fazer O último trago e agora já estão no Inferninho. E ao mesmo tempo em que tão nesses filmes com mais recursos, seguem pensando outros filmes mais urgentes e com menos recursos. Por que é importante também manter essa intensidade de produção? E como é lidar com essa simultaneidade? Carol: Eu acho que isso faz parte mesmo da própria essência do grupo. Como sempre fomos muitos, há essa vontade mesmo de estar criando – e alguns filmes são urgentes. Eu não consigo nem me lembrar de algum momento em que a gente dissesse: “uau, como está tranquilo!”. A gente está sempre cuidando, paralelamente, de três ou quatro coisas ao mesmo tempo. Tanto de coisas que estão sendo finalizadas, quanto coisas acontecendo, quanto projetos pro futuro. De uma forma, eu acho isso bom, porque é isso que move a gente aqui todo dia. É chegar e ver essas coisas rolando: de certa forma, isso é muito instigante. Ao mesmo tempo, é meio aperreante, porque a gente não é uma produtora grande, com várias pessoas trabalhando, cada uma com seu setor. A gente faz das compras de supermercado até a produção executiva de um filme de um milhão. Então, de alguma forma, a gente está fazendo um pouco de tudo. Mas eu não acho isso ruim. Durante uns momentos, a gente fica mais aperreado mesmo. Mas eu acho que isso é da essência do grupo mesmo, são cinco diretores. Então, a todo momento, alguém tem alguma coisa. E aqui a gente consegue estar muito igual, distribuindo eu e a Amanda os trabalhos. Hoje em dia, a Amanda já assume a produção executiva de projetos, que eu não assumo. Então, é legal, porque a gente consegue se dividir, e não fica concentrado em uma pessoa só. E aí a gente vai dialogando em todas as coisas. Mas é muita coisa que acontece mesmo. Érico: O Alumbramento também tem muitos processos que não são só ligados aos filmes. E eu pensei muito no Cine Caolho, por exemplo. Como é que é construir esses outros espaços ligados ao Alumbramento, que são importantes pro coletivo, e que estão também para além da produção dos filmes? 198
Carol: Pra mim, o Cine Caolho é uma das coisas que eu mais gosto de fazer no Alumbramento, é o meu xodó, é como se fosse um filhinho. Eu já tinha começado a trabalhar em algumas coisas de mostras, antes do Cine Caolho, mas com ele, foi a primeira vez que a gente assumiu como um evento nosso. Apesar de que ele já existia há muito tempo, lá na Vila, mas em outro tipo de estrutura. E aí a gente abraçou ele em 2013 como um evento mensal, com organização, com textos. Teve uma organização maior dele. E eu acho muito foda, porque eu me descobri enquanto produtora num coisa que eu curtia muito, que é essa linha da exibição. É uma coisa totalmente diferente da produção dos filmes, mas que é igualmente instigante – ou até mais, às vezes. É bom receber esse retorno das pessoas vendo filmes que não necessariamente são nossos. E ter esse contato com os próprios realizadores. A galera vem muito instigada em mostrar os filmes. É muito massa ver a galera feliz de estar ali. São atividades diferentes da produção de filmes, mas que exigem igualmente da gente e têm igual importância. Ainda mais que o Cine Caolho é um evento mensal. Então, a gente nunca para de trabalhar nele. Termina um, a gente já precisa pensar no outro. É um trabalho constante. E com ele também, tem a coisa da Mostra Alumbramento, que não é produzida por nós. Mas eu tenho o desejo de fazer isso, desde que eu entrei na Alumbramento. A ideia era fazer com que a cidade pudesse ver todos esses filmes reunidos. Eu vinha tentando fazer essa mostra desde 2008. E era difícil porque o cenário da cidade era muito mais fechado. Era muito mais difícil de produzir coisas naquela época. E acho que, hoje em dia, a gente tem muito mais espaço e abertura pra fazer as coisas. As pessoas estão muito mais interessadas. Tinha uma época em que a gente fazia algumas exibições, e eu sentia as salas menos cheias. E agora, com o Cine Caolho, por exemplo, é sempre uma alegria imensa ver a sala lotada. O cenário realmente mudou, as pessoas estão interessadas em ver os filmes, em discutir. Enfim, é mais feliz hoje em dia.
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sim/não1 ricardo pretti Alumbramento, antes de ser uma produtora, é um risco. Um estado permanente de desafio, sempre em vias de transformação, e sempre correndo o perigo de deixar de ser o que é, indefinido, pra ser uma outra coisa, indefinível. Alumbramento é uma recusa de si mesma, ou pelo menos de uma noção de identidade estável. Sempre em vias de extinção e ameaçada, mas também sempre ameaçando. É dessa inconstância que ela se alimenta. É nesse quase-nada (infra-magro) que é quase-tudo onde ela mais se realiza, se sente plena. Alumbramento é uma força bruta de convicção. Por intuição ela renuncia qualquer caminho fácil, ela sacrifica um lugar no mundo mais confortável, pra se constatar inteiramente rebelde e infantil, eternamente curiosa e inocente, mas ao mesmo tempo se permitindo dúvidas e desconfianças, se deixando cair em tentação, sentindo o perigo de estar viva. O seu maior prazer é não fazer sentido em um mundo, que apesar das aparências, faz menos sentido ainda.
— 1. Publicado originalmente em 6 de agosto de 2012, no site da Alumbramento Filmes: www.alumbramento.com.br. 200
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mini bio ————— autores dos textos Alexandre Veras Realizador em audiovisual e co-fundador da ONG Alpendre – Casa de Arte, Pesquisa e Produção, na qual coordenou o Núcleo de Vídeo, os projetos de formação e foi corresponsável pela curadoria do núcleo de Artes Plásticas, que realizou intervenções com artistas de todo o país. Trabalha com vídeo desde 1989 e tem desenvolvido intensa atividade como professor de vídeo, trabalhando com oficinas de vídeo-arte, documentário, vídeo-dança, história e teoria do filme experimental. Vem desenvolvendo pesquisas e produções em vídeoarte, vídeo-dança, imagens projetadas e colaborado em projetos de vídeo e videoinstalações com diversos artistas. De suas produções, destacam-se As Vilas Volantes – O Verbo Contra o Vento e Linz – Quando Todos os Acidentes Acontecem. André Félix Cineasta e pesquisador. Beatriz Furtado Pós-doutorado em Cinema e Arte Contemporânea, pela Universidade Paris III- Sorbonne-Nouvelle, 2011/2012, com bolsa Capes. Doutorado em Sociologia, pela UFC, com bolsa-estágio, Capes, junto ao doutorado em Filosofia da Universidade de Lisboa, Portugal, com tese intitulada “Imagens que Resistem - O Intensivo no cinema de Aleksander Sokurov”. Professora do Programa de PósGraduação em Artes (UFC), em Comunicação (UFC), da linha de pesquisa Fotografia e Audiovisual, e da Graduação em Cinema e Audiovisual, do Instituto de Cultura e Arte (UFC). É do conselho da Escola Pública do Audiovisual, da Prefeitura de Fortaleza, onde tem ministrado cursos regularmente. Coordena o LEEA-Laboratório de Estudos e Experimentação em Audiovisual- grupo de pesquisa sobre cinema e imagem contemporânea. É autora dos livros “Imagens Eletrônicas e Paisagem Urbana” (RelumeDumará), “Cidade Anônima” (Hedra) e “Imagens que Resistem” (Intermeios). Organizou os dois volumes do livro “Imagem Contemporanea” (Hedra, 2009) e, junto com Daniel Lins, o livro “Fazendo Rizoma” (Hedra, 2008). Participou com obras audiovisuais e realizou curadorias de diversas exposições coletivas (“Divercidade”, “Cinema de Pequenos Gestos (des)narrativos”, “Imagens à Superfície”, “Entorno”). Camila Vieira Jornalista, crítica de cinema e realizadora. Doutoranda em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi aluna do Curso de Realização da Escola de Audiovisual da Vila das Artes. Dirigiu os curtas Multidões (2013) e Rua dos Vagalumes (2015). É curadora do Cineclube Delas, no Tempo Glauber (Rio de Janeiro), e integrante do podcast Feito por Elas - ambos projetos com ênfase em filmes dirigidos por mulheres. Escreve críticas de cinema no blog Sobrecinema e no site Verberenas. Celina Hissa Designer e mestre em comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará. No curso de mestrado estabeleceu uma pesquisa sobre modos de produção coletiva em arte a partir da pesquisa de 3 grupos em
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Fortaleza. Desenvolve trabalhos investigando a produção artesanal, dentre eles exposições de arte, design e outros. É fundadora e diretora criativa da Catarina Mina, primeira marca com custos abertos do Brasil, e tenta junto com muitas mãos estabelecer #umaconversasincera projeto lançado em 2015. Recentemente lançou junto com Lívia Salomoni o projeto FIA {oficina de artesãs}. Denilson Lopes Professor associado da Escola de Comunicação da UFRJ (noslined@ bighost.com.br), pesquisador do CNPq e autor de No coração do mundo: paisagens transculturais (Rocco, 2012), A delicadeza: estética, experiência e paisagens (Ed.UnB, 2005), O homem que amava rapazes e outros ensaios (Aeroplano, 2002), entre outros. Organizador, ao lado de Lucia Costigan, de Silviano Santiago y los Estudios Latinoamericanos (Iberoamericana, 2015). Érico Araújo Lima Graduado em Comunicação Social pela UFC, mestre pelo PPGCom da UFC (Fotografia e Audiovisual) e doutorando pelo PPGCom da UFF (Estudos do Cinema e do Audiovisual). Realizou a curadoria da Mostra Dramaturgias do Comum no Cinema Contemporâneo (Vila das Artes, Fortaleza, 2015). Junto a Lara Vasconcelos e Roberta Félix, foi um dos curadores da exposição “Uma mostra sem qualidades”, no MAC Dragão do Mar, em Fortaleza. Escreve críticas no site “Sobrecinema” (sobrecinemarevista.blogspot.com.br). Fábio Andrade Formado em Jornalismo e Cinema pela PUC-Rio e com extensão em roteiro cinematográfico pela School of Visual Arts de Nova York, é crítico de cinema, roteirista, montador e tem o projeto musical Driving Music. Desde 2007, escreve na revista Cinética, assumindo sua editoria em 2010. Já teve textos publicados em revistas como a Filme Cultura e em livros e catálogos de mostras e festivais no Brasil e exterior, como o do Festival de Berlim e o livro comemorativo dos 45 anos do Festival de Brasília. No cinema, tem trabalhos com os diretores Paula Gaitán, Eryk Rocha, Geraldo Sarno e Bruno Safadi. Fernando Oriente Crítico, professor e pesquisador de cinema. É editor e crítico do site de cinema Tudo Vai Bem – www.tudovaibem.com, além de colaborador das revistas Interlúdio e Teorema. Foi um dos editores e críticos do site Cinequanon entre 2007 e 2012. Flávia Memória Possui bacharelado em Direito pela Universidade de Fortaleza (Unifor), título de Mestre em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e título de Mestre em História da Arte pela Universidade Complutense de Madrid em associação com o Museu Reina Sofía. Em 2014, participou da exposição coletiva resultante de um processo de pesquisa no Laboratório de Arte Contemporânea – Incentivo à pesquisa e criação em Artes Visuais, promovido pelo BNB em associação com o Dança no Andar de Cima, com a instalação Chroma Key; participou da exposição coletiva Pedra de Toque, no MCC do Dragão do Mar, e em dezembro e janeiro de 2015 participou da exposição coletiva do Laboratório de Artes Visuais do Porto Iracema das Artes, CDMAC, com a instalação Frontispício.
Janaina de Paula Jornalista, especialista em Audiovisual em Meios Eletrônicos (UFC) e mestre em Comunicação (UFC). João Toledo Roteirista, diretor e montador. Foi mestrando em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG. Escreveu para a revista Filmes Polvo de 2007 a 2014 e já colaborou para diversas publicações, entre revistas, livros de ensaios e catálogos de mostras. Integrou a comissão de seleção do Festival de Curtas de Belo Horizonte de 2011 a 2014. Foi curador da “Mostra Retrospectiva Brian de Palma”, de 2014, pela Caixa Cultural e montador da série de TV “BR14 - A Rota dos Imigrantes” (TV Brasil), e do longametragem de documentário “Como Fotografei os Índios” (contemplado pelo Edital de Desenvolvimento de Roteiros da Prefeitura de São Paulo 2014, em finalização). É codiretor e ator dos longas-metragens “Estado de Sítio” (2011) e “Aliança” (2014), período em que também dirigiu 03 curtas-metragens. É sócio-fundador da Produtora Filmes sem sapato, pela qual roteirizou e dirigiu os curtasmetragens “Como são cruéis os pássaros da alvorada” (2015) e “Teacher” (contemplado pelo Edital Filme em Minas 2013, em finalização). Seu curta-metragem “Como são cruéis os pássaros da alvorada” foi exibido em diversos festivais de cinema brasileiros, como o 19º CinePE, 43º Festival de Gramado, 25º Cine Ceará, 26º Kinoforum, 38º Festival Guarnicê e 17º Festival Kinoarte de Londrina Melhor Fotografia (pelo qual ganhou o prêmio de Melhor Fotografia) e nos internacionais Aesthetica Short Film Festival, na Inglaterra, e Piélagos en Corto, na Espanha. Juliano Gomes É crítico de cinema, diretor e professor. Formado em Cinema, Jornalismo e Publicidade pela PUC-Rio. Doutorando em Tecnologias da Comunicação e Estética pela ECO-UFRJ, onde pesquisou sobre os filmes-diário do artista Jonas Mekas. É redator da Revista Cinética. Tem textos publicados em revistas como a Filme Cultura, em livros e catálogos de mostras e festivais pelo Brasil, além de ter participado de júris e comitês de seleção de festivais no país. Maíra Bosi Cineasta e pesquisadora na área de cinema, com interesse particular pela relação entre filmes de família e memória. Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ, graduada em Comunicação Social pela UFC e formada em Realização Audiovisual pela Escola Pública de Audiovisual da Vila das Artes (Fortaleza). Marcelo Ikeda Professor do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense. Trabalhou na ANCINE entre 2002 e 2010, exercendo diversas funções. Realizou diversos curtas-metragens, entre eles O posto (2005), Eu te amo (2007) e Carta de um jovem suicida (2008). Curador da Mostra do Filme Livre (RJ), crítico de cinema e coautor, com Dellani Lima, do livro Cinema de Garagem: um inventário afetivo do jovem cinema brasileiro do século XXI. Marcelo Pedroso Nasceu em 1979 em Recife. É co-fundador da Símio Filmes, produtora de cinema em Pernambuco. Entre os filmes que realizou estão os longas-metragens Brasil
S/A, Pacific, KFZ-1348 e os curtas Câmara Escura e Em trânsito. Rodrigo Capistrano Professor efetivo da Universidade Federal do Cariri (UFCA), pelo curso de História do Instituto de Estudos do Semiárido. Possui graduação em História pela Universidade Estadual do Ceará e mestrado em Estudos de Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense, onde desenvolveu a dissertação “Formas de resistência: o documentário contemporâneo cearense”. Atualmente desenvolve seu doutorado em História Social pela Universidade Federal do Ceará com a tese provisoriamente intitulada “O cinema e a cidade: representações de Fortaleza na produção audiovisual do coletivo Alumbramento (2006-2011)”. Formado na primeira turma da Escola de Audiovisual, curso de extensão da Universidade Federal do Ceará ligado a Vila das Artes, também é realizador em audiovisual. Rodrigo de Oliveira É crítico de cinema, roteirista e cineasta. Redator da Revista Cinética, é organizador do livro Diário de Sintra – Reflexões sobre o filme de Paula Gaitán (ed. Confraria do Vento, 2009), curador do Festival de Vitória, e roteirista de Exilados do Vulcão, de Paula Gaitán. Em 2011, escreveu, produziu e dirigiu seu primeiro longa de ficção, As Horas Vulgares, lançado comercialmente em 2013. Teobaldo Morto, Romeu Exilado, seu segundo longa-metragem, foi lançado em janeiro de 2015 na competição da Mostra de Cinema de Tiradentes. Roger Koza Crítico de cinema no diário La Voz del Interior (Córdoba), colunista do programa de rádio Invento Argentino e coordenador do programa de televisão El Cinematógrafo (Canal 10 da Universidad Nacional de Córdoba). Programador da mostra Vitrina no Festival Internacional de cinema de Hamburgo (Alemanha), do FICUNAM (México) e diretor artístico do FICIC (Argentina). Em 2009 programou a sessão de cinema latino-americano do Festival de Cine del Sur (Israel). Colaborador das Revistas La Rana (Córdoba), Quid (Buenos Aires), La lectora provisoria (Buenos Aires), Grupo Kane (Buenos Aires), Good News (Córdoba). Publicou “Con los ojos abiertos: crítica de cine de algunas películas recientes”, coleção Vital, Editorial Brujas, Córdoba, 2004, e editou “Cine y Pensamiento: las charlas de Mar del Plata”, Ediciones DA, Buenos Aires, 2007. Uirá dos Reis Poeta, compositor e cineasta esporádico. Victor Guimarães Graduado e mestre em Comunicação Social pela UFMG. Crítico da Revista Cinética, professor do Centro Universitário UNA e um dos coordenadores de programação do Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (2014). Integrante das comissões de seleção do forumdoc.bh (desde 2012) e curador da mostra Políticas do Cinema Moderno, do Cineclube Comum (2013). Tem ensaios publicados em livros, catálogos de festivais e revistas como Doc Online (Portugal), Lumière (Espanha), Imagofagía (Argentina) e La Furia Umana (Itália).
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fichas técnicas / filmes mostra alumbramento A AMIGA AMERICANA (2009) Ficção • HD • 19min • CE/Brasil Sinopse Paris conhece Thais. Elenco Paris Leicester, Thais de Campos, Ian Lopes Araújo Direção, Produção, Roteiro Ricardo Pretti, Ivo Lopes Araújo Fotografia Ivo Lopes Araújo Direção de Arte Lia Damasceno, Themis Memória Edição Guto Parente Som Ricardo Pretti, Pedro Diógenes A MISTERIOSA MORTE DE PÉROLA (2014) Ficção • DCP • 62min • CE/França Sinopse Longe de casa, vivendo sozinha em um apartamento antigo e sombrio, Pérola sente os efeitos de um tempo que passa pesado e mordaz, sendo cada vez mais tomada por nostalgia e medo, solidão e pavor, a um ponto onde sonho, fantasia e realidade perdem suas fronteiras. Direção, Roteiro e Montagem Guto Parente Empresas Produtoras Alumbramento e Tardo Elenco Ticiana Augusto Lima e Guto Parente Produção, Direção de Arte e Figurino Ticiana Augusto Lima Fotografia e Som Guto Parente e Ticiana Augusto Lima Fotografia Adicional Daniel Correia Edição de Som e Mixagem Érico Paiva (Sapão) Trilha Sonora Rodrigo Dario, Simon Fernandes, Uirá dos Reis Consiglieri Montagem Ricardo Pretti Projeto Gráfico Taís Augusto A NOITE (2007) Ficção • Mini-DV • 20min • CE/Brasil Sinopse Às vezes perambulando À noite pela casa Sonhava contigo Mesmo acordado. Direção, Roteiro, Produção, Fotografia, Som e Montagem Ythallo Rodrigues Elenco Ythallo Rodrigues AS CORUJAS (2009) Ficção • Mini-DV • 21min • CE/Brasil Sinopse Em qualquer parte, na noite, estarão as corujas.
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Direção Fred Benevides Elenco Alano de Freitas, Euzébio Zloccowick, Ludovico, Manoel Osdemi Co-produção Maíra Bosi Fotografia Ivo Lopes Araújo, Victor de Melo Roteiro Fred Benevides Edição Danilo Caravalho, Pedro Diógenes Direção de Arte Lia Damasceno, Thais de Campos Montagem Fred Benevides, Guto Parente ÀS VEZES É MAIS IMPORTANTE LAVAR A PIA DO QUE LOUÇA OU SIMPLESMENTE SABIAGUABA (2006) Ficção • Mini-DV • 21min • CE/Brasil Sinopse Eu sou um respirador. Direção, Fotografia, Som, Montagem Irmãos Pretti Elenco Irmãos Pretti ANYMORE (2008) Ficção ou Documentário • Mini-DV • 13min • SP-CE/ Brasil Sinopse Uma despedida. Direção, Produção, Fotografia, Edição e Elenco Mariana Smith Música Yoko Ono ARACATI Sinopse Vale do Jaguaribe, Ceará. Seguindo a rota do vento Aracati, o filme parte do litoral e adentra pelo interior do estado. Nesse percurso, observa a relação entre homem e paisagem, as transformações do espaço e os limites entre natureza e artifício. Direção e Roteiro Aline Portugal e Julia De Simone Produção Caroline Louise, Pedro Diógenes, Julia De Simone e Aline Portugal Direção de Fotografia Victor de Melo Montagem Clarissa Campolina e Luiz Pretti Pesquisa Victor Furtado Som Direto Marco Rudolf Desenho de Som Hugo Silveira e Pedro Aspahan Correção de Cor Damián Benetucci Coordenação de Finalização Frederico Benevides Identidade Visual Taís Augusto Lima Assistente de Produção Amanda Pontes, Érica Sarmet, Victor Furtado
Estagiária de Produção Clara Bastos Assistente de Edição Soni Adílio Colaboração Marcelo Grabowsky, Ricardo Pretti, Rubia Mércia, Vanessa Marques Voz em off Rodrigo Fernandes Elenco João José Gonzaga da Silva José Célio de Assis Ideusuite Bezerra Leonardo de Sá Dutra Cavaleiro Francisco Isac da Silva Alvanir de Almeida Euzébio Zloccowick Produção Mirada Filmes Coprodução Alumbramento CASA DA VOVÓ (2008) Documentário • Mini-DV • 24min • CE/Brasil Direção, Produção, Roteiro e Fotografia Victor de Melo Edição Guto Parente CARTAZ (2008) Ficção • Mini-DV • 6min • CE/Brasil Sinopse Que estranho caminho que tive de percorrer para chegar a ti. Elenco Euzébio Zloccowic e Leon Moreira Direção Irmãos Pretti Figurino e estilista João Zabaleta Roteiro Lia Damasceno Montagem Guto Parente Fotografia Mariana Smith Som Trechos de filmes Direção de Arte Themis Memória e Lia Damasceno CIDADE DESTERRO (2009) Documentário • Mini-DV • 15min • CE/Brasil Sinopse Depois de 11 anos resolvi mudar de Fortaleza. Deixar meus objetos pela cidade e fazer um filme foi a maneira que eu encontrei de dizer adeus. Direção, Roteiro, Produção, Fotografia, Som e Montagem Gláucia Soares Fotografia Ivo, Mariana, Rafaela, Rúbia Mércia COM OS PUNHOS CERRADOS Ficção • HD • 74min • CE/Brasil Sinopse Com Os Punhos Cerrados narra a história de Eugenio, Joaquim e João, que de uma rádio clandestina colocam suas vozes para gritar pela liberdade enquanto planejam
a revolução. Eles invadem as transmissões das rádios tradicionais de Fortaleza com poesias, músicas, citações, arquivos de som e provocações. Certa noite, eles são vistos disfarçados pelas ruas da cidade, em ações que atacam a base constitutiva da sociedade burguesa e capitalista. Aos poucos eles começam a incomodar os poderosos. Franco, empresário influente e magnata do forró, decide destruir a qualquer custo, a rádioe a vida deles. Quando o perigo começa a rondar a rádio, surge Salomé, uma ouvinte bela e misteriosa que quer se unir a eles na revolução. A chegada de Salomé pode transformar o destino de Eugenio, Joaquim e João. Roteiro e Direção Luiz Pretti, Pedro Diogenes e Ricardo Pretti Elenco Luiz Pretti, Pedro Diogenes e Ricardo Pretti, Samya de Lavor, Rodrigo Capistrano, Uirá dos Reis, Guto Parente Assistente de Direção Julia de Simone Produção Executiva Caroline Louise Direção de Produção Amanda Pontes Direção de Fotografia Ivo Lopes Araújo Assistente de Câmera Wanessa Malta Leandro Gomes Som Direto Eduardo Escarpinelli Direção de Arte e figurino Thais de Campos Dayse Barreto Assistente de Arte e figurino Debora Parente Maquiagem Dayse Barreto Montagem Clarissa Campolina Desenho de Som Edson Secco Correção de Cor Guto Parente e Fábio Souza Projeto Gráfico Clara Moreira DIZEM QUE OS CÃES VEEM COISAS (2012) Ficção • HD • 12min • CE/Brasil Sinopse Um presságio. Fragmento de tempo apenas, porque logo o homem gordo, de ventre imenso, saltou dentro da piscina com o copo de uísque na mão. Filme criado a partir do conto homônimo de Moreira Campos Elenco Marco Goulart, Karla Karenina, Guilherme Moreira, Cristina Francescutti, Miguel Filho, Joca Andrade, Rodrigo Fernandes, Tatiana Amorim Direção, Roteiro e Produção Guto Parente Diretor Assistente Fred Benevides Produção Executiva Caroline Louise Direção de Produção Ticiana Augusto Lima Diretor de Fotografia Victor de Melo Som Pedro Diogenes
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Direção de Arte Lia Damasceno, Themis Memória Casting Rafaela Diogenes Montagem Irmãos Pretti Edição de Som e Mixagem Bernardo Uzeda Assistente de Direção Maíra Bosi Assistente de Produção Amanda Pontes Assistente de Câmera Eudes Freitas Assistente de Som Lucas Coelho Assistente de Arte Tiago Fontoura Design Gráfico Casa 202 DOCE AMIANTO (2013) Ficção • HD • 70min • CE/Brasil Sinopse Amianto vive isolada num mundo de fantasia habitado por seus delírios de incontida esperança, onde sua ingenuidade e sua melancolia convivem de mãos dadas. Após sentir-se abandonada por seu amor (O Rapaz), Amianto encontra abrigo na presença de sua amiga morta, Blanche, que a protegerá contra suas dores, ao menos até onde possa. Seu universo interior choca-se com a realidade de um mundo que não a aceita, um mundo ao qual ela não pertence e invariavelmente ela torna a debruçar-se em seus delírios jocosos, misturando realidade e fantasia. Com a ajuda de sua Fada Madrinha, Amianto recolhe forças para continuar existindo na esperança de ser feliz algum dia. Elenco Deynne Augusto, Uirá dos reis, Dario oliveira, Rodrigo Fernandes, Rafaela Diógenes, Reginaldo Dias, Bruno Rafael, Danilo Maia, Valentina Damasceno Direção, Roteiro, Montagem Guto Parente e Uirá dos Reis Produção Guto Parente e Ticiana Augusto Lima Produção Executiva, Direção de Produção Ticiana Augusto Lima Fotografia Guto Parente Som Direto Pedro Diogenes Direção de Arte e Figurino Lia Damasceno Maquiagem Claudemyr Barata Casting e Preparação Rafaela Diógenes Trilha Sonora Original Uirá dos Reis Edição de Som e Mixagem Érico Sapão Assistente de Direção Ticiana Augusto Lima Assistente de Produção Luciana Vieira Assittente de Fotografia Rodrigo Fernandes Assistente de Arte Lígia Aquino
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Still Taís Augusto Cartaz Célio Celestino ESTRADA PARA YTHACA (2010) Ficção • HD • 70min • CE/Brasil Sinopse “Mantenha sempre Ythaca em sua mente. Chegar lá é sua meta final, Mas não tenha pressa na viagem. Melhor que dure vários anos; E ancore na ilha quando você estiver velho, com todas as riquezas que você tiver adquirido no caminho, sem esperar que Ythaca irá enriquecê-lo. Ythaca terá lhe dado a linda viagem. Sem ela você nunca teria partido, E ela não poderia dar-lhe mais... Tão sábio que serás, com todo conhecimento, Já terás entendido o que significa Ythaca.” Konstantínos Kaváfis Direção, Produção, Roteiro, Fotografia, Som, Montagem Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes, Ricardo Pretti Elenco Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes, Ricardo Pretti, Rodrigo Capistrano, Uirá gos Reis, Ythallo Rodrigues Figurino Lia Damasceno, Themis Memória Pre-produção Carol Louise Produção executiva Guto Parente Música original Luiz Pretti Produção musical e Arranjos Uirá Dos Reis Projeto gráfico [casa202] Fernanda Porto & Filipe Acácio EU, TURISTA (2010) Documentário • HD • 18min • CE/Brasil Sinopse Um par de olhos já não basta. Direção, Produção, Fotografia, Som e Montagem Guto Parente FLASH HAPPY SOCIETY (2009) Experimental • HD • 8min • CE/Brasil Sinopse Ficção científica baseada em fatos reais. Direção, Produção, Fotografia, Som, Montagem Guto Parente FORT ACQUARIO (2016) 7 min • CE/Brasil Direção Pedro Diogenes Fotos Victor de Melo Montagem Victor Furtado Finalização de imagem Zack Chinaski Edição de Som e Mixagem Lucas Coelho
GUARDO TUDO NA LEMBRANÇA QUE É PARA NUNCA DESISTIR DCP 2K • 30min • CE/Brasil Sinopse Colagem de fragmentos do processo de feitura do álbum “Fortaleza”, da banda Cidadão Instigado. Direção Ivo Lopes LINZ - QUANDO TODOS OS ACIDENTES ACONTECEM (2013) Ficção • HD • 82min • CE/Brasil Sinopse O acidente é aquilo que se arma como uma contingência, aquilo por onde se perde o controle. O acidente persegue uma disposição para o acaso através de uma atemporalidade, uma espécie de fora da história. Ao mesmo tempo é através do acidente que se pode armar uma saída para uma outra compreensão da história e, principalmente, daquilo que sobra como memória fixa ou monopólio da memória fixa. Como imprevisto, o acidente se coloca numa linha de frente, um confronto, como aquilo que provoca uma aderência ao corpo, para o corpo, atravessa e rasga um corpo possível e se move. Diante de uma mobilidade infinita, porque não é previsível nem planejado, o acidente é todo movediço, circular e tocado por um rodopio incessante, que é também elíptico, rompido, mas também contínuo. Direção e Roteiro Alexandre Veras Elenco Delani Lima, Maria Marlene Menezes Façanha Martin, Maria do Livramento Fiuza de Araújo, Anthony Moraes Almeida, Mateus Jose de Moraes Empresas produtoras Alpendre / Alumbramento Argumento e Roteiro Alexandre Veras e Manoel Ricardo de Lima Direção Alexandre Veras Direção de Fotografia Ivo Lopes Araújo Som direto / Edição de Som / Trilha Danilo Carvalho Preparação de atores Armando Praça Assistência de Direção Luiz Bizerril Direção de Produção Camila Battistetti Direção de Arte e Figurino Euzébio Zloccowki / Thais de Campos Produção Executiva Luana Melgaço Montagem Frederico Benevides Assistência de Produção Executiva Caroline Louise Assistência de Produção / Catering Ioneide Lima Platô Jessé Pereira / Leo Carrero Estagiária de Produção Viviane Rocha Assistência de Montagem Claugeane Costa
Mixagem de Som Érico Sapão 1º Assistente de Câmera Eudes Freitas 2º Assistente de Câmera Romulo de Paula Assistente de Som / Microfonista Marco Rudolf Still Wanessa Malta Making of Victor de Melo Base de Produção Amanda Pontes / Pauline Rodrigues Cenotécnico Chiquinho LONGA VIDA AO CINEMA CEARENSE (2008) Ficção • Mini-DV • 11min • CE/Brasil Sinopse Curiosidade. Um conselho aos jovens. Curiosidade. Elenco Pedro Diógenes, Carol Louise, Mariana Smith, Marco Rudolf, Euzébio Zloccowic, Rodrigo Capistrano, Rúbia Mércia e Hugo Pierot. Direção, Roteiro Irmãos Pretti Produção Maíra Bosi Assistente de direção Ythallo Rodrigues Fotografia Victor de Melo Som Guto Parente e Fred Benevides Montagem Guto Parente Direção de Arte Themis Memória e Thaís de Campos Figurino Themis Memória Maquiagem Lia Damasceno Assistente de Produção Rúbia Mércia MEDO DO ESCURO (2014) Ficção • Digital • 62min • CE/Brasil Sinopse Um homem solitário vaga perdido por uma cidade pósapocalíptica. Direção Ivo Lopes Araújo Elenco Jonnata Doll, Nataly Rocha, Solon Ribeiro, Themis Memória, Uirá dos Reis MEU AMIGO MINEIRO (2012) Ficção • HD • 23min • CE/MG/Brasil Sinopse “Gabito, Tô te esperando pra conhecer minha cidade. Chega aí. Vitim.” Realização, Roteiro, Fotografia e Atuação Gabriel Martins e Victor Furtado Argumento Victor Furtado Elenco Joana de Paula, Natália Bezerra, Luciana Vieira, Lucas Ribeiro
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Produção Caroline Louise Assistente de Produção Amanda Pontes Som Pedro Diogenes Montagem Guto Parente Mixagem Érico Sapão MIÚDOS (2008) Documentário • HD • 13min • CE/Brasil Sinopse Olhar subjetivo para o costume próprio do Ceará de se comer panelada nas primeiras horas da manhã, nos mercados e feiras das cidades. Argumento e Direção Pedro Diógenes Direção de Produção Rúbia Mércia Direção de Fotografia Victor de Melo Som Direto Fred Benevides Direção de Arte Euzébio Zloccowick Assistência de Produção Rodrigo Capistrano Assistência de Direção Ythallo Rodrigues e Guto Parente Edição Guto Parente e Luiz Pretti NÃO ESTAMOS SONHANDO (2012) Ficção • HD-DCP • 12min • BH-CE/Brasil Sinopse Sim, nós faremos um mundo. Não estamos sonhando. Luta a luta o faremos, peça por peça o faremos, pedaço por pedaço o faremos. Não estamos sonhando. Direção, Roteiro, Montagem, Elenco Luiz Pretti Direção de Fotografia Clarissa Campolina Mixagem de Som Gustavo Fioravante NO LUGAR ERRADO (2011) Ficção • 35mm • 70’ • CE-DF-RJ/Brasil Sinopse Durante uma noite o reencontro de quatro amigos será marcado por um jogo de mentiras e verdades com consequências inesperadas. Filme realizado a partir da peça “Eutro” dirigida por Rodrigo Fischer. Direção, Roteiro, Fotografia, Som, Montagem Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes, Ricardo Pretti Dramaturgia, Figurino e Direção de Arte Márcio Minervino, Micheli Santini, Rodrigo Fischer, Súlian Princivalli Elenco Márcio Minervino, Micheli Santini, Rodrigo Fischer, Súlian Princivalli Produtores Irmãos Pretti e Primos Parente, Rodrigo Fischer, Caroline Louise, Vania Catani Produção Alumbramento, Grupo Experimental Desvio e Bananeira Filmes
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Mixagem Érico Sapão Projeto Gráfico Casa 202 - Fernanda Porto e Filipe Acácio O AMOR NUNCA ACABA (2012) Ficção • HD • 20min • CE/Brasil Sinopse Não importa quem Seja Ela - esse alguém Não impossível que ainda vem. Com Rodrigo Fischer, Carol Louise, Lia Damasceno, Milena Pitombeira, Rúbia Mércia, Themis Memória, Verônica Cavalcanti Direção, Produção, Roteiro, Montagem Irmãos Pretti Direção de Produção Caroline Louise Direção de Fotografia Luiz Pretti Direção de Arte e Figurino Lia Damasceno e Themis Memória Som Direto Pedro Diógenes Assistente de Direção Ythallo Rodrigues Assistente de Produção Victor Furtado Edição de Som e Mixagem Bernardo Uzeda Tratamento de Cor Lucas Sander Finalização Lucas Campolina Projeto Gráfico Ernesto Gougain O FIM DE UMA ERA (2014) Drama • HD • 73min Sinopse Eles viveram, atuaram, amaram. Hoje lembram, revivem, transvivem no cinema e na vida. O fim de uma era é o terceiro filme do coletivo Operação Sonia Silk. Direção Bruno Safadi, Ricardo Pretti Roteiro Bruno Safadi, Ricardo Pretti Elenco Fernando Eiras, Jiddu Pinheiro, Leandra Leal, Maria Gladys, Mariana Ximenes Produção Rita Toledo Fotografia Lucas Barbi Montador Luiz Pretti O MUNDO É BELO (2010) Ficção • HD • 08min • CE/Brasil Sinopse Você sentia isso quando era jovem, essa ternura por todas as coisas, um desejo vago? Começa aqui e vai subindo até dar vontade de chorar. Direção, Fotografia, Som, Montagem Luiz Pretti Elenco Themis Memória
O PORTO Sinopse Cais do Vallongo - Cais da Imperatriz - Porto do Rio Porto Maravilha: camadas de uma cidade assombrada pelo progresso. Um porto sobre o outro. Uma cidade sobre a outra. Realização Clarissa Campolina, Julia De Simone, Luiz Pretti, Ricardo Pretti Produção Executiva Julia De Simone Desenvolvimento de Projeto Aline Portugal, Julia De Simone, Marcelo Grabowsky, Ricardo Pretti Edição de Som e Mixagem Pedro Aspahan, Hugo Silveira Trilha Musical Mats Gustafsson, Paal Nilssen Love Finalização Guto Parente Assistência de Produção Érica Sarmet, Ralph Antunes Projeto Gráfico Clara Moreira Produção Mirada Filmes, Alumbramento, Teia+Anavilhana, Toada Filmes Realização Rumos Itaú Cultural O RIO NOS PERTENCE (2013) Ficção • HD • 75min • RJ/CE/Brasil Elenco Leandra Leal, Jiddu Pinheiro, Mariana Ximenes Direção e Roteiro Ricardo Pretti Empresas Produtoras Daza, TB Produções, Alumbramento Empresas Co-Produtoras Canal Brasil, Teleimage Produção Bruno Safadi, Ricardo Pretti, Rita Toledo Fotografia Ivo Lopes Araújo Som Pedro Diogenes Direção de Arte Luísa Horta Montagem Guto Parente e Luiz Pretti Edição de Som Bernardo Uzeda Mixagem Ricardo Cutz O UIVO DA GAITA (2013) Ficção • HD • 72min • RJ/CE/Brasil Elenco Mariana Ximenes, Leandra Leal, Jiddu Pinheiro Direção e Roteiro Bruno Safadi Empresas Produtoras Daza, TB Produções, Alumbramento Empresas Co-Produtoras Canal Brasil, Teleimage Produção Bruno Safadi, Ricardo Pretti, Rita Toledo Fotografia Ivo Lopes Araújo
Som Pedro Diogenes Direção de Arte Luísa Horta Montagem Guto Parente e Luiz Pretti Edição de Som e Mixagem Edson Secco OS MONSTROS (2011) Ficção • HD • 81min • CE/Brasil Sinopse Nenhum homem é um fracasso quando tem amigos. Realização Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diogenes, Ricardo Pretti Elenco Luiz Pretti, Natasha Faria, Pedro Diogenes, Guto Parente, Ythallo Rodrigues, Victor Furtado, Igor Graziano, Aline Silva, Ana Luiza Rios, Ricardo Pretti Elenco (vozes) Eduardo Escarpinelli, Carol Louise, Uirá Dos Reis, Rafaela Diógenes Direção de Produção Carol Louise Assistente de Produção Ticiana Augusto Lima Fotografia Ivo Lopes Araujo, Victor De Melo Som Eduardo Escarpinelli Direção de Arte e Figurino Lia Damasceno, Themis Memória Maquiagem Sonho Claudemyr Barata Tratamento de Imagem Fred Benevides Mixagem Érico Sapão Arte Parede Grupo P&B Projeto Gráfico [casa202] Fernanda Porto & Filipe Acácio ODETE (2012) Ficção • HD • 16min • CE-MG/Brasil Sinopse Odete está presa entre o passado e o futuro. Ela sai em viagem, mas continua imóvel. Ela encara o abismo e se pergunta se sairá viva. Elenco Verônica de Sousa Cavalcanti Direção Clarissa Campolina, Ivo Lopes Araújo, Luiz Pretti Produção Alumbramento Co-produção Teia + Anavilhana Produção Executiva e Direção de Produção Carol Louise Fotografia Ivo Lopes Araújo Montagem Clarissa Campolina, Luiz Pretti Som direto Danilo Carvalho Direção de arte e Figurino Thais de Campos Edição de som e Trilha sonora O Grivo
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PASSOS NO SILÊNCIO (2008) Ficção • 35mm • 17min • CE/Brasil Sinopse Uma professora de alemão e a tradução de um poema. Elenco Thaïs Dahas, Jordão Nogueira Direção, Roteiro, Montagem Guto Parente Diretor Assistente Fred Benevides Produção Ythallo Rodrigues e Rúbia Mércia Fotografia Victor de Melo Som Pedro Diógenes Direção de Arte Thaís de Campos Assistência de Fotografia Leandro Gomes Assitência de Som Gabriel Silveira Assistência de Arte Maíra Bosi RETRATO DE UMA PAISAGEM (2012) Documentário • HD • 34min • CE/Brasil Sinopse Um filme sobre a cidade. Um filme sobre pessoas. Estamos vivendo o começo da era da sociedade urbana. Um novo campo ainda ignorado e desconhecido. E o cenário do futuro ainda não se encontra estabelecido. Argumento, Direção e Som Pedro Diogenes Produção Executiva e Direção de Produção Caroline Louise Assistente de Direção Ythallo Rodrigues Diretor de Fotografia Victor de Melo Assistente de Produção Pauline Rodrigues Assistente de Câmera Cícero Ferreira Voz e Personagem Tavinho Teixeira Figurino e Still Euzebio Zlocckowick Montagem Guto Parente, Luiz Pretti e Ricardo Pretti Pesquisa Victor Furtado Mixagem Danilo Carvalho Correção de Cor Guto Parente Estagiária de Produção Amanda Pontes RUA GOVERNADOR SAMPAIO (2009) Documentário • Mini-DV • 13min • CE/Brasil Sinopse Um dia na Rua Governador Sampaio, no Centro de Fortaleza. Argumento, Direção e Fotografia Victor de Melo Produção Ythallo Rodrigues, Rúbia Mércia
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Assistência de Direção Guto Parente, Pedro Diógenes Som Fred Benevides, Pedro Diógenes Still Wanessa Malta Edição Fred Benevides, Victor de Melo RUMO (2009) Ficção • Mini-DV • 68min • CE/Brasil Sinopse A vida de dois jovens em busca da liberdade e do amor. Em uma constante montagem paralela o filme revela aos poucos a solidão desses dois personagens. Direção, Produção, Fotografia, Som e Montagem Irmãos Pretti Elenco Uirá dos Reis, Thais Dahas e Eduardo Escarpinelli SUPERMEMÓRIAS (2010) Documentário • 35mm • 20min • CE/Brasil Sinopse Um olhar poético sobre a cidade de Fortaleza-CE a partir de registros caseiros e super 8mm das décadas de 60, 70 e 80. Este é um fruto de uma manifestação da cidade no ato de doar sua memórias para uma poesia coletiva. Conduzido por uma série de pequenos filmes caseiros que mostram famílias e lugares que já não são os mesmos. Direção e Roteiro Danilo Carvalho Produção Camila Battistetti Montagem Fred Benevides, Danilo Carvalho Trilha sonora Fernando Catatau, Firmino Holanda, Yuiko Goto, Danilo Carvalho SÁBADO À NOITE (2007) Documentário • DV • 62min • CE/Brasil Sinopse Uma noite de sábado em Fortaleza. Direção, Produção, Fotografia Ivo Lopes Araújo Produção Executiva Ivo Lopes Araújo, Rúbia Mércia e Luiz Carlos Bizerril Som Danilo Carvalho Montagem Alexandre Veras, Ricardo Pretti, Luiz Pretti, Fred Benevides e Ivo Lopes Araújo Edição de Som Ivo Lopes Araújo e Danilo Carvalho
créditos Presidente Interino Michel Temer Ministro da Fazenda Henrique Meirelles Presidente da Caixa Gilberto Occhi Realização Instituto Aguaboa Cultural Curadoria Coletivo Alumbramento Coordenação de Produção Cesar Teixeira Produção Kamille Costa Amanda Pontes Produção Local Fausto Gomes Jr. Organização dos textos Érico Araújo Lima Projeto gráfico Samuel Tomé Assessoria de Comunicação Mônica Marli Revisão dos textos Érico Araújo Lima Amanda Pontes Registro Fotográfico e Videográfico Anderson Damasceno
Textos Alexandre Veras André Félix Beatriz Furtado Camila Vieira Celina Hissa Denilson Lopes Érico Araújo Lima Fábio Andrade Fernando Oriente Flávia Memória Janaina de Paula João Toledo Juliano Gomes Luiz Pretti Maíra Bosi Marcelo Ikeda Marcelo Pedroso Ricardo Pretti Rodrigo Capistrano Rodrigo de Oliveira Roger Koza Uirá dos Reis Victor Guimarães Agradecimentos Coletivo Alumbramento Clara Bastos Michelline Helena Aleques Eiterer Marilia Lima Antônio Kanela Luis Vieira Eduardo Rodrigues Frederico Benevides Jorge Polo Lívia de Paiva Uirá dos Reis
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Mostra Alumbramento Érico Araújo Lima (org) 1ª Edição Agosto/2016 Projeto Gráfico Samuel Tomé Todos os direitos reservados. Distribuição gratuita. Comercialização proibida. Este catálogo, com tiragem de 1000 cópias, foi composto nas fontes Helvetica e Adobe Caslon. Capa em papel Supremo 300g/m2 e miolo em ap 90 g/m². Impresso na gráfica Midiograf.
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