Chalet Biester (Português)

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Chalet

Biester


Chalet Biester









Enquadramento e Localização Sintra foi o lugar nostálgico e misterioso referido nos roteiros elaborados por estrangeiros que visitaram Portugal na segunda metade do século XVIII e durante todo o século XIX; o romântico “Glorioso Eden” de Lord Byron; a “amena estância”, de Almeida Garrett; o “ninho de amores [onde] sob as românticas ramagens as fidalgas se abandonavam nos abraços dos poetas (...) os passeios em Seteais ao luar, devagar, sobre a relva pálida, com grandes descansos calados no Penedo da Saudade, vendo o vale. No vão do arco, como dentro de uma pesada moldura de pedra, brilhava, à luz rica da tarde, um quadro maravilhoso, de uma composição quase fantástica, como a ilustração de uma bela lenda de cavalaria e de amor”, como escreveu Eça de Queiróz n’Os Maias; ou a paragem alquímica onde Richard Strauss viu, sem comparação com “a Itália, a Sicília, a Grécia e o Egipto, um verdadeiro jardim de Klingsor – e, lá no alto, o castelo do Santo Graal”. A paisagem da serra de Sintra e as ruínas do antigo convento de Nossa Senhora da Pena maravilharam o rei-consorte Fernando II de Portugal, tendo este decidido adquirir o velho convento, a cerca envolvente, o Castelo dos Mouros e quintas e matas circundantes, onde mandou edificar o Palácio da Pena { fig. 01 }, cuja obra estaria concluída em 1847. Durante o reinado de Carlos I de Portugal, a Família Real ocupou com frequência o palácio, tornando-se a residência predilecta da Rainha D. Amélia. As estadas prolongadas da Família Real, e a abertura das linhas férreas para Sintra, a 2 de Abril de 1887, e para Cascais dois anos depois, contribuíram para o surgimento de um novo tipo de habitação, com planta e programa reduzido. Estas construções não se designavam palácios, mas sim Chalets, pela consciência própria de se tratar de um es-

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{ fig. 01 }


paço de veraneio cuja atitude pressupõe informalidade, inovação cultural da época. O Chalet, inicialmente de propriedade exclusiva da aristocracia que orbitava a corte, foi progressivamente tornando-se no modelo para a burguesia que aspirava a modos de vida correspondentes aos estratos sociais mais elevados. A paisagem cultural de Sintra, classificada como Património Mundial da UNESCO, desde 1995, é hoje um dos mais visitados destinos turísticos do país. Segundo o relatório da UNESCO, “... a paisagem cultural de Sintra, com sua serra, é um extraordinário e singular complexo de parques, jardins, quintas, mosteiros e castelos que criam uma arquitectura popular e culta harmonizada com a abundante e exótica vegetação, criando micro-paisagens de beleza exótica e luxuriante.” Hoje os mais distintos destes estão convertidos em museus ou hotéis, estando acessíveis ao público. acessíveis ao público. Estes edíficios mantiveram a sua beleza ímpar, mas muitos perderam a sua aura de mistério e a sua vocação original como residência particular. Uma das poucas excepções é o Chalet Biester, cujos íngremes telhados negros todos podem vislumbrar quando sobem dirigindo-se ao Palácio da Pena { fig. 02 }, mas que guarda, discreto, os seus segredos, alimentado ao longo dos anos mitos e lendas a seu respeito.

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{ fig. 02 }


O proprietário: Frederico Biester O nome do Chalet perpetua o apelido do seu proprietário original, mas a sua identidade já caiu no esquecimento, dando origem a diversas versões. No entanto, acerca dos nomes dos autores do projecto de arquitectura e das sumptuosas decorações e jardim ficaram registos contemporâneos. Alguns autores apontam como proprietário Ernesto Biester, dramaturgo e empresário teatral ligado ao teatro nacional D. Maria II { fig. 03 }, autor de peças muito em voga no final de oitocentos, como A Mãe dos Pobres ou O Xerez da Viscondessa. Veremos adiante que este é irmão daquele que nos parece ser o legítimo “Biester”. Frederico Biester (Sénior), casado com Maria da

{ fig. 03 }

Luz de Ataíde (Athayde na grafia da época), em 1827, teve três filhas e dois filhos: (João) Ernesto Biester, o dramaturgo (1829-1880) e Frederico Biester “Junior” (1833Maio de 1899). Parece evidente que o proprietário do Chalet terá sido Frederico Biester (Junior), desde logo pelo Monograma pintado na escadaria principal da casa – um flamejante escudo com as inciais “FB” aos pés de uma donzela. Além da correspondência dos dados biográficos, encontramos também o obituário nos jornais sintrenses de então, que referem em Maio de 1899 o falecimento do Sr. Frederico Biester, “proprietário do Chalet Biester”.

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Frederico Biester (Junior) nasce na freguesia dos Mártires em Lisboa a 16 de Fevereiro de 1833, filho de Frederico Biester “honrado negociante da praça de Lisboa” e de Maria da Luz de Ataíde. Casou em 22 de Setembro de 1870 com Amélia de Freitas Chamiço, nascida a 28 de Julho de 1843, filha única do comerciante portuense Fortunato de Oliveira Chamiço Junior, fundador Casa Bancária Fortunato Chamiço Junior & C.ª que daria origem ao Banco Totta. Frederico Biester faleceu em março de 1899, sem filhos, tendo sua esposa herdado a avultada fortuna e o Chalet. Com a morte desta é herdeira sua tia D. Claudina de Freitas Chamiço, herdeira também ela de uma fabulosa fortuna por parte do marido. Dos restantes proprietários até aos actuais, pouco sabemos.

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O Chalet Frederico Biester terá encomendado um projecto para a sua casa de Sintra ao já consagrado arquitecto José Luíz Monteiro, em 1880, tendo confiado a decoração ao pintor e cenógrafo Luigi Manini e ao escultor Leandro Braga. A obra iniciou-se em maio de 1886, tendo terminado em 1890. Recém chegado a Portugal depois da sua formação em Paris e Itália, entre 1873 e 1879, o Chalet Biester foi um dos primeiros projectos de José Luiz Monteiro { fig. 04 }, assumindo grande importância no conjunto da sua obra e no conjunto das experiências românticas e revi-

{ fig. 04 }

valistas da arquitectura portuguesa da época. O carácter excepcional desta construção deve-se, sobretudo, à adopção de uma mistura de neo-gótico e neo-românico aplicada à arquitectura doméstica burguesa do final de século. A concepção arquitectónica surge indissociada da intervenção escultórica e ornamental, cuja relação é valorizada pelo estabelecimento de deliberadas relações visuais e distributivas entre os espaços. Ao que parece, por imposição do proprietário, o Chalet apresenta um conjunto de volumetrias invulgares na arquitectura da região, parece fazer parte de um cenário imaginário, de uma ópera ou de um filme de suspense. Os telhados negros e íngremes remetem-nos para a zona transalpina. Neles sobressaem singelas mansardas e um friso metálico remata-os de forma elegante { fig. 05 }. Estes telhados e a sobriedade das linhas ex-

{ fig. 05 }

teriores contrastam, por vezes, com elementos como a torre, onde se rasgam duas imponentes janelas verticais neo-góticas protegidas por vitrais, também eles neo-góticos e de temática cristã e geométrica. Por outro lado, nas fachadas coexistem harmoniosamente elementos de diversos estilos arquitectóni-

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cos e decorativos. No alçado principal, à direita, ergue-se a torre circular, rasgada por longas janelas neo-góticas e coroada por um telhado cónico. O acesso principal ao edifício é marcado pela existência de um alpendre. No interior da galilé abrem-se dois arcos divididos por uma graciosa coluna. O alpendre é encimado por uma varanda, na qual surgem dois arcos idênticos. O historiador de arte Pedro Dias, no seu livro Marcos da Arte Portuguesa (Pub. Alfa, Lisboa, 1986, n.º 149) dirá: “Uma análise mais detalhada da volumetria permite perceber o contraste algo surpreendente entre o lado que se poderia dizer diurno dos volumes voltados à estrada e o carácter telúrico misterioso dos volumes voltados ao bosque.” No que concerne à organização interior { fig. 6 }, o edifício apresenta a organização típica da época e paradigmática do trabalho de José Luiz Monteiro. A ocupação encontra-se diferenciada por pisos. O piso térreo

{ fig. 6 }

destina-se ao acesso, zona de estar e receber. Vocacionado para a recepção, um grande hall central acolhe e organiza todo o piso social. Um percurso periférico acolhe sequencialmente as sala de recepção e de refeições, e o serviço, oculto, ocupa o piso inferior. As Salas de Estar e Jantar abrem-se em grandes vãos sobre o terraço, complemento da zona de estar, permitindo acesso ao exterior e ao jardim. O primeiro piso, ligado por escadaria de aparato e até um curioso elevador de tracção manual, sem dúvida um dos primeiros ascensores domésticos de Portugal (cujo projecto terá saído do atelier de Gustave Eiffel) acolhe o piso privado, onde encontramos a magnifica capela e os quartos, alguns profusamente decorados, outros com programas decorativos mais discretos. Destes destaca-se ao quarto “en-suite”, ou apartamento do proprietário, à época uma inovação tipológica constituída

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por zona de dormir, casa de banho, e sala de vestir. Aqui podemos disfrutar através de uma janela panorâmica uma ampla vista até ao mar. Esta janela de influência Inglesa, Bay-window (janela panorâmica), é uma atitude que vai integrar a gramática das casas de veraneio, sendo posteriormente introduzida na Casa Portuguesa de Raul Lino, que a explora formalmente. Acima e abaixo deste núcleo temos piso de serviço em meia-cave e os aposentos dos empregado nas águas furtadas, servidos por escada de serviço própria ligando todos os pisos, sendo ainda de destacar um imponente sótão sob o íngreme telhado com um cavername que realça a robusta estrutura de madeira, testemunho do saber-fazer de outros tempos. A descida da escadaria principal à meia-cave faz pressupor um uso nobre de pelo menos parte deste piso, talvez uma sala de refresco para os meses mais quentes. A utilização de grandes janelas panorâmicas, da luz e água corrente, juntamente com as inovações funcionais da planta de grande átrio central ou ainda a introdução do modelo de quarto “en-suite”, fazem desta casa um modelo e evolução na época da sua construção. Hoje fruto das obras de conservação e adaptação a que foi sujeita, esta apresenta-se como uma casa moderna com todas as comodidades da época presente. José Luiz Monteiro escolheu alguns dos melhores artistas para trabalhar e decorar o interior da sua obra, reforçando assim a qualidade do conjunto: o reputado pintor e cenógrafo italiano Luigi Manini, que trabalhou nas obras do Hotel Palácio do Buçaco e ainda como cenógrafo do Real Teatro de São Carlos em Lisboa; Rafael Bordalo Pinheiro (azulejaria); Paul Baudry (frescos); e o mestre decorador no apogeu da sua carreira Leandro Braga (escultura e móveis). Este ultimo terá coordenado os trabalhos de decoração enquadrando a pintura decorativa de Manini. Se dúvidas houvesse sobre a relevância deste nomes, basta referir que o artista entalhador Leandro de Sousa Braga (1839-1897) ganhou notoriedade e reconhecimento nas obras que desenvolveu para a Grande Sala da Câmara dos Pares, actual Assembleia da República, tendo desenvolvido numerosos trabalhos para a família Real, criando peças para o Palácio da Ajuda e para o Palácio de Belém (residência oficial do Presidente da República Portuguesa); e Luigi Manini (1848-1936), pintor e cenógrafo Italiano, mais tarde também arquitecto, ocupava desde 1879 o cargo de cenógrafo no Teatro São Carlos, sendo amigo pessoal de D. Fernando II, foi o responsável pelas belíssimas obras do Palácio Hotel do Buçaco, e pela Quinta da Regaleira em Sintra, esta última, a pedido de Augusto Carvalho Monteiro. Luigi Manini utiliza no interior do Chalet Biester frescos de inspiração medieval combinado com o gótico flamejante, e o estilo próprio da época, mescla da qual saem

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os vitrais multicolores encomendados em França, que dão um colorido clássico ao interior, iluminando também os móveis criados por Leandro Braga. Manini revestiu os amplos espaços com frescos delicados, cuja temática é uma mistura de gótico flamejante e das novas tendências que despertavam na época. Assim, deparamo-nos com pinturas de temática medieval, mas de realização Arte Nova, e em todas as divisões, sobre um fundo uniforme (bege no átrio, cinzento nos salões, verde e azul na capela), encontram-se reproduzidos – com o auxílio de um escantilhão, técnica conhecida como “Stencil” – múltiplos e variados motivos: flores, ramagens, diversos desenhos geometrizantes e figuras várias. Neste contexto, a belissíma escadaria neo-gótica é bem o exemplo da mistura estética que já se salientou: nas paredes laterais, duas figuras, uma jovem vestida de mousselina branca e um bravo cavaleiro, aparecem frente a frente, de forma teatral; na parede frontal, vê-se o cúmplice cúpido. Estas figuras estão enquadradas por uma profusa ramagem, contendo certos elementos neo-clássicos. A melhor e mais original fonte bibliográfica que podemos encontrar, é o artigo “A casa Biester” escrito por José de Figueiredo, publicado nas páginas 13 a 16 do número 4 da revista A Architectura Portugueza, de 1908, que pelo interesse documental e pelo pitoresco da escrita transcrevemos com com ortografia da época: “Em detalhe, toda a construcção é um mimo. Exteriormente, o arco abatido que emmoldura a porta dupla de entrada, arco em que se ergue um balcão coberto, constitue, no seu conjuncto, um motivo delicioso em que [José Luiz] Monteiro affirma, simultaneamente, o seu valor de constructor e de artista. D’uma grande simplicidade, casando-se admiravelmente com a restante fachada de que esse motivo é a parte central e principal, as columnas que, n’elle, entram, sem deixarem de representar a sua funcção structural, de supporte, são d’uma graça e leveza incomparáveis, e a maneira como Monteiro deu a máxima cor, sem volumes excessivos, a esse detalhe da fachada, é tambem uma affirmação, e boa, da sua valia. Internamente, se Monteiro teve a collaboração de Manini e Leandro Braga que, sobretudo na sala de jantar, mostrou quão grande era o seu valor de technico e artista, a sua direcção adivinha-se em toda a parte, ainda mesmo n’um ou n’outro ponto em que a phantasia de Leandro Braga, sentindo-se mais à vontade, se expandiu por isso tambem mais livre e acentuadamente. Desenhador d’um valor que, ainda hoje, é lembrado

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como tal pelos seus companheiros do atelier Pascal, Monteiro, sem prejudicar a visão de Leandro Braga que era o primeiro a respeitar, detalhou até à ultima, sempre que o julgou necessario, qualquer pormenor em que Braga interveio e que Monteiro entendia estar dentro da sua alçada. No resto, Braga, subordinando-se ao plano geral, fez só o que a sua consciencia de artista lhe ditou. E assim, a obra dos dois, se por vezes se funde, funde-se sempre em virtude do esforço consciente de ambos, não trazendo por isso prejuizo a um ou a outro, mas antes dando-lhes mais lustre e gloria. O parque que, como já dissemos, é obra de Nogré, é uma maravilha. Como Polixénes do “Conto d’Inverno” de Shakespeare, que dizia que “a arte que ajuda a natureza é a arte superior porque é, por assim dizer, ainda a natureza”, o sr. Nogré fez o seu jardim Biester no estylo da paysagem, limitando-se sempre que lhe foi possivel, acabar a obra principiada pela natureza, e isso sem esquecer a casa que o jardim tinha de enquadrar. N’esta orientação, traçou-lhe todas as ruas e alamedas de forma a fazer valer, de todos os lados e o melhor possivel, a silhueta geral do edificio. Ora avultando em pittorescos maçissos, ora ondulando, naturalmente, sem outra cobertura além da que lhe dá a herva cuidadosamente aparada, o parque valorisa-se assim com o mesmo principio de sobriedade que caracterisa, na alternação dos espaços nus e decorados, o estylo romanico. E, correndo em todos os sentidos, ao longo das três faces posteriores da casa, que umas vezes quasi desapparece sob a massa dos seus tufos, outras surge desafogada, e ainda outras apparece enquadrada e recortada da folhagem, esta oferece-se, por esta fórma, continuamente, a quem a olha de fóra, como um elemento sempre original e novo. Notas: Na casa Biester, collaboraram as seguintes pessoas: mestre Costa, tendo por encarregado de carpinteiros seu sobrinho Carlos da Costa Soares, ambos de Cintra. Este ultimo, quando aquelle se impossibilitou por doença, substituiu-o como mestre da obra até final, mostrando a sua muita competência. Os estuques são de Domingos Antonio da Silva Meira; a esculptura em madeira de Leandro Braga e a pintura decorativa de Luigi Manini, excepto o arauto que se vê na entrada que é de Baeta, tambem distincto pintor. A guarnição de ferro forjado da grande chaminé da sala de jantar é de José da Quinta, artista serralheiro de grande valor.”

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O Jardim A vegetação exuberante da Serra de Sintra está longe de ser um vestígio da floresta primitiva. De facto, devido às intervenções ao longo dos tempos, como as explorações agrícola, florestal e a utilização da terra para pastagens, a serra encontrava-se, em pleno século XIX, praticamente despida de vegetação. Foi com a chegada do Romantismo a Sintra que a situação se inverteu { fig. 7 }.

{ fig. 7 }

São particularmente notáveis os Parques da Pena e de Monserrate, mandados plantar, respectivamente, pelo Rei D. Fernando II e pelo rico industrial inglês Francis Cook. Nestes parques foram introduzidas centenas de espécies provenientes das mais diversas partes do mundo que, em parte, estão agrupadas por talhões consoante a família ou o género, ou por origem geográfica, reconstituindo paisagens e ambientes de países distantes, em perfeita harmonia e integração com o meio envolvente e a vegetação autóctone, criando a ilusão de fazerem parte da sua própria natureza. Nestes parques históricos, algumas áreas foram valorizadas com a construção de tanques, fontes, lagos e discretos locais de lazer ao gosto romântico e sobretudo com os arranjos paisagísticos conseguidos com a utilização de espécies de grande valor ornamental como fetos arbóreos, rododendros, azáleas e cameleiras, criando ambientes de grande exotismo e beleza. Além de plantas europeias, os parques são particularmente ricos em espécies provenientes de zonas de outros continentes com um clima semelhante ao nosso, como é o caso das originárias das costas ocidental e oriental da América do Norte, das regiões temperadas da América do Sul, da China e do Japão, da África do Sul, do sul da Austrália e da Nova Zelândia.

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É neste contexto que surge o parque do Chalet Biester, peça indissociável do próprio edifício, simultaneamente cenário e enquadramento. É impossível imaginar este Chalet sem o seu jardim, aqui o domínio das forças da natureza sobre o homem manifesta-se como a essência e o espírito do jardim romântico. O seu autor, Nogré, soube aproveitar as extraordinárias condições naturais e as possibilidades cénicas oferecidas por um parque extenso que desce em cascata do Chalet até á Vila. Aqui podemos ver um exemplo paradigmático do jardim romântico do séc. XIX, onde a natureza se manifesta de forma imponente, com inúmeras espécies exóticas oriundas dos vários cantos do mundo, pequenos lagos e árvores centenárias que nos contam histórias de outros tempos. Pouco sabemos de F. Nogret (n. 1846). Sobre ele escreve Francisco Marques de Sousa Viterbo, em 1907, no Artigo “A jardinagem em Portugal”, incluído na publicação da Universidade de Coimbra “O Instituto: Revista Scientifica e Litteraria”: “Em 1887 encarregou-se, por conta e ordem da família Biester Chamiço, da creação do parque na Quinta Velha em Cintra, cujo palacete, em forma de chalet, construído pelo architecto José Luiz Monteiro, é um dos mais notáveis espécimens architectonicos da encantadora estancia. O sr. Nogré continua ao serviço da mesma casa, fazendo rodear de parques e jardins o Sanatório de Santa Anna, em Parede, devido á liberalidade e philantropia de uma bondosa senhora, já fallecida, D. Amélia Biester.” Por esta mesma mesma fonte sabemos que terá nascido em 1846, em França, no departamento des Côtes-du-Nord (Flandres), tendo terminado com 18 anos os estudos especiais na escola de Grand Jouan. Em 1878 veio para Portugal pela mão do Visconde de Condeixa, para a sua propriedade em Sernache onde permaneceu até 1885, data em que rumou a Lisboa “com o fim de fundar aqui um estabelecimento”. Em 1887, segundo Sousa Viterbo, dedicou-se em exclusivo ao Chalet Biester.

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O Arquitecto: José Luiz Monteiro O facto de ter sido o primeiro português a obter uma pós-graduação em arquitectura fora do País, valeu-lhe a consideração e as encomendas das classes mais abastadas do Reino. Foram muitas as solicitações e entre as suas obras mais importantes destacam-se a estação do Rossio { fig. 8 }, o Hotel Avenida Palace, o edifício para a sede do antigo Banco Lisboa e Açores e o Palácio do Con-

{ fig. 8 }

de de Castro Guimarães. Fruto duma época de contrastes e tumultuosas transições entre o Portugal antigo e moderno, entre um pais rural e atrasado e os avanços da industrialização, a obra de José Luiz Monteiro, na ausência de uma linguagem arquitectónica pessoal e no desenvolvimento de um estilo próprio, fica-lhe reconhecida como linha condutora a adopção de princípios rigorosos quanto ao método de projecto e á valorização de determinados aspectos da concepção geral, como por exemplo a organização funcional, a hierarquização dos espaços, a iluminação e a própria implantação. Um dos princípios que repetidamente se destaca na concepção dos seus edifícios, sendo o Chalet Biester disto um exemplo paradigmático, consiste no rigor e na valorização do traçado das plantas, enquanto desenho de arquitectura e enquanto pólo central de todo o desenvolvimento do Projecto. A este proposito o ensino das Belas-Artes de Paris, assente naquilo que foi apelidado de “filosofia da planta”, seguramente contribuiu para esta tendência de José Luiz Monteiro. O próprio sublinha a importância que assumia o desenho da planta no edifício, a qual se pretendia que funcionasse como “chave para a sua perfeita funcionalidade” e simultaneamente, como “geradora do seu total efeito artístico”. Esta inter-relação de componentes funcionais e artísticas, assente na pureza do desenho, permanece

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como constante nos projectos de José Luiz Monteiro, variando as abordagens formais desse mesmo desenho, consoante os diferentes tipos de programas a resolver, os enquadramentos ou as vontades do encomendador. Na sequência desta filosofia e deste método de trabalho, resulta uma outra característica da sua obra que se materializa na colocação e na articulação de volumes resultantes dos traçados das plantas. Sobretudo no que se refere à arquitectura doméstica, e mais particularmente nos chalets, os volumes componentes das várias construções permitem encontrar uma determinante orientação formal, e uma caracterização específica no seu posicionamento relativo. Estes aspectos relacionam-se com a procura de uma correcta hierarquização dos espaços interiores. O gosto pela expressão através do detalhe e do pormenor ressalta também nalguns dos seus projectos, revelando profundo domínio e um vasto conhecimento dos sistemas construtivos utilizados. Na composição dos alçados e no tratamento das fachadas, Monteiro adopta frequentemente uma série de componentes construtivas, em que os tipos e o dimensionamento dos vãos, o balanço e o remate das coberturas sobre os planos de fachada, o tratamento das cornijas, ou a adequada selecção dos materiais de construção, se destacam, conferindo uma personalidade e uma expressão próprias ao conjunto da sua obra. No artigo “As novas construções de Lisboa” escrito em 1905, José Luiz Monteiro expões as múltiplas razões que preocupam a classe profissional dos arquitectos face à fraca qualidade arquitectónica das construções que iam surgindo: o escasso número de profissionais qualificados, a voracidade dos mestres de obras, a ignorância geral dos proprietários e a pretensa sabedoria do cliente rico, “inteligente, viajado, que tem visto muito lá por fora”, constituíam então, como hoje, os principais obstáculos à produção de uma arquitectura culturalmente arejada e que promovesse o avanço qualitativo da sociedade. “É vulgaríssimo ouvir dizer que os edifícios modernos de Lisboa não são arquitectónicos nem de bom gosto; nem ao menos são simplesmente incaracterísticos, o que seria um bem, mas muito pior do que isso, são documentos vivos e palpáveis da ignorância de todas as classes da nossa população em matéria de arte e gosto. tudo isto é, infelizmente, verdade com bem raras excepções, por nosso mal.” O Chalet Biester, como vimos, é uma destas excepções.

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Curiosidades... o filme “Nona Porta” O Chalet Biester foi também palco de uma parte do filme The Ninth Gate (A Nona Porta) de Roman Polanski, tendo como protagonista principal o actor Johnny Depp, no papel de Dean Corso { fig. 9 }, especialista um pouco ganancioso em livros raros, e que a mando de um milionário (Boris Balkan) terá de encontrar três cópias de Os Nove Portais para o Reino das Sombras, de 1666 e supostamente escrito pelo próprio Satanás e por um au-

{ fig. 9 }

tor veneziano de nome Aristide Torchia (possivelmente inspirado na vida de Giordano Bruno). Em Sintra, Dean Corso vai a casa de Victor Fargas, detentor de uma cópia de Os Nove Portais para o Reino das Sombras, e que vivendo com um estilo de aristocrata em decadência no Chalet Biester, vende o que resta da sua extensa colecção de livros para poder comprar comida e pagar os impostos. O filme é uma adaptação do livro The Club Dumas (1993) de Arturo Pérez-Reverte.

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“Sintra é o único lugar do país em que a História se fez jardim. Porque toda a sua legenda converge para aí e os seus próprios monumentos falam menos do passado do que de um eterno presente de verdura. E a memória do que foi mesmo em tragédia desvanece-se no ar ou reverdece numa hera de um muro antigo.” Louvar Amar, Vergílio Ferreira (1916-1996)

§ Bibliografia AAVV (2004), História de Portugal: Dicionário de Personalidades, vol. XVII, Vila do Conde: Quidnovi; Cordeiro, Ferreira Fátima (1990), José Luiz Monteiro na arquitectura da transição do século: monografia, Lisboa: AAP-SRS; DIAS, Pedro (1986), Marcos da Arte Portuguesa, Lisboa: Pub. Alfa; RIBEIRO, Ana Isabel de Melo (2002), Arquitectos portugueses: 90 anos de vida associativa, 18631953, Porto: FAUP; RIBEIRO, José Cardim (1998), Sintra Património da Humanidade, Sintra: Câmara Municipal; STOOP, Anne de (1985), Quintas e Palácios nos arredores de Lisboa, Lisboa: Ed. Civilização; VITERBO, Sousa (1907), A jardinagem em Portugal. Coimbra: O Instituto; VITERBO, Sousa (1988), Dicionário Histórico e Documental dos Arquitectos, Engenheiros e Construtores Portugueses, 2.ª ed., Lisboa: Imprensa Nacional.

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fotografias: FG + SG, Fernando Guerra (excepto figs. 1 a 9) Š imagens e textos: dos autores Sintra, 2013



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