Serie tarzan 03 tarzan e as feras

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EDGAR RICE BURROUGHS

TARZAN E AS FERAS

The Beasts of Tarzan © Copyright 2010 Edgar Rice Burroughs Publicado originalmente em 1914 Traduzido por Medeiros e Albuquerque Versão para E-Book sem fins lucrativos Cultura Digital / Sebo Digital osebodigital.blogspot.com


ÍNDICE CAPÍTULO 1: Sequestrado ............................................................................................... 3 CAPÍTULO 2: Abandonado............................................................................................ 12 CAPÍTULO 3: Animais ameaçados ................................................................................. 22 CAPÍTULO 4: Sheeta...................................................................................................... 33 CAPÍTULO 5: Mugambi ................................................................................................. 43 CAPÍTULO 6: Uma tripulação horrenda......................................................................... 53 CAPÍTULO 7: Traído ..................................................................................................... 63 CAPÍTULO 8: A dança da morte .................................................................................... 73 CAPÍTULO 9: Cavalheirismo ou perversidade ................................................................ 83 CAPÍTULO 10: O sueco ................................................................................................. 93 CAPÍTULO 11: Tambudza ........................................................................................... 103 CAPÍTULO 12: Um patife negro .................................................................................. 112 CAPÍTULO 13: Fuga .................................................................................................... 122 CAPÍTULO 14: Sozinha na selva .................................................................................. 130 CAPÍTULO 15: Descendo o rio Ugambi....................................................................... 139 CAPÍTULO 16: Na escuridão da noite .......................................................................... 148 CAPÍTULO 17: No tombadilho do Kincaid.................................................................. 156 CAPÍTULO 18: Paulvitch planeja vingança ................................................................... 165 CAPÍTULO 19: Os destroços do Kincaid ..................................................................... 176 CAPÍTULO 20: A Ilha da Selva..................................................................................... 180 CAPÍTULO 21: A lei da selva........................................................................................ 191 SÉRIE TARZAN .......................................................................................................... 204


CAPÍTULO 1: Sequestrado — Todo o caso está envolto em mistério — disse d’Arnot. Estou certo que nem a polícia nem os agentes especiais do quadro geral têm a menor idéia de como foi realizado. Somente sabem, como qualquer pode saber, que Nikolas Rokoff se evadiu. John Clayton, Lorde Greystoke — que tinha sido “Tarzan dos Macacos” — ficou em silêncio no apartamento do seu amigo, tenente Paul d’Arnot, em Paris, olhando pensativo para a ponta do sapato. Na sua mente revolviam-se muitas recordações, avivadas pela evasão do seu inimigo do presídio militar francês para o qual fora condenado à prisão perpétua, graças ao depoimento do homem-macaco. Lembrou-se até a que extremos Rokoff tinha chegado para conseguir a sua morte, e compreendeu que tudo o que o homem já tinha feito não seria nada em comparação do que desejaria, e planejaria agora que se encontrava de novo em liberdade. Tarzan recentemente tinha levado a mulher e o filho para Londres a fim de fugirem dos dissabores e perigos da estação chuvosa na sua vasta propriedade de Uziri — a terra dos guerreiros selvagens Waziri, cujos amplos territórios o homem-macaco, em outros tempos, tinha governado. Atravessara a Mancha para fazer uma breve visita ao seu velho amigo, porém a notícia da evasão do russo já anuviara o seu passeio, tanto que, embora acabasse de chegar, já estava pensando em voltar imediatamente para Londres. — Não é que receie por mim. Paul — disse por fim. — Muitas vezes no passado consegui antepor obstáculos aos planos de Rokoff contra a minha vida; mas agora há outras considerações. A não ser que me engane ele terá mais pressa em vingar-se de mim por meio de minha esposa ou de meu filho do que diretamente, pois sem dúvida compreende que de nenhuma outra


maneira poderia me infligir maior angústia. Preciso voltar para junto deles imediatamente, e ficar com eles até que Rokoff seja recapturado ou morto. Enquanto os dois falavam em Paris, outros dois estavam conversando numa pequena choupana nos arredores de Londres. Ambos eram homens morenos e mal-encarados. Um era barbado, mas o outro, em cujo rosto havia a palidez causada por uma longa encarceração, somente tinha uma pequena barba. Era este que estava falando: — Precisas tirar essa barba, Alexis, disse ao seu companheiro. — Com a barba serias reconhecido imediatamente. Precisamos separar-nos dentro duma hora, quando nos encontrarmos novamente no tombadilho do Kincaid, espero que tenhamos conosco dois hóspedes ilustres que pouco imaginam a agradável viagem que lhes arranjamos. — Dentro de duas horas devo estar a caminho de Dover com um deles, e até amanhã de noite, se seguires as minhas instruções com cuidado, chegarás com o outro, contanto que, naturalmente, ele volte para Londres tão rapidamente como penso. — Deverá haver tanto lucro como prazer, além de outras coisas boas, para recompensar os nossos esforços, meu caro Alexis. Graças à estupidez dos franceses, eles foram a tais extremos para esconder o fato da minha evasão durante tantos dias que tenho tido ampla oportunidade para calcular cada detalhe da nossa pequena aventura com tanto cuidado que vejo pouca probabilidade de haver o menor embaraço para arruinar os nossos planos. E agora, adeus, e sê feliz. Três horas depois um mensageiro subiu os degraus da escada que dava para o apartamento do tenente Paul d’Arnot. — Um telegrama para Lorde Greystoke, disse ao criado que atendeu ao chamado. — Ele está aqui?


O homem respondeu que sim e, assinando o recibo do telegrama, levou-o para Tarzan, que já se estava preparando a fim de partir para Londres. Tarzan rasgou o envelope, e enquanto lia empalideceu. — Leia, Paul, disse passando a folha de papel a d’Arnot. Já chegou. O francês tomou o telegrama e leu: “Jack raptado devido à cumplicidade do novo criado. Venha imediatamente. Jane”. Quando Tarzan saltou do automóvel que o tinha ido buscar na estação e subiu os degraus da sua casa na cidade, foi recebido na porta por uma mulher com olhos enxutos, porém quase louca. Rapidamente, Jane Porter Clayton contou tudo o que pôde descobrir a respeito do rapto do menino. A ama estava passeando com a criança no carrinho, para apanhar sol, na calçada que ficava defronte da casa, quando um táxi fechado parou na esquina da rua. A mulher prestara pouca atenção ao veículo, notando apenas que não descarregara nenhum passageiro, mas ficara parado junto ao meio-fio com o motor funcionando, como se estivesse esperando algum passageiro da residência diante da qual tinha parado. Quase imediatamente o novo criado, Carl, viera correndo da casa de Greystoke, dizendo que a patroa da moça desejava falar com ela por um momento, e que ela podia deixar o pequeno Jack a seus cuidados até que voltasse. A mulher afirma que não teve a menor desconfiança até que, chegando à porta da casa, se lembrou de avisar o homem para não virar o carrinho a fim de que o sol não batesse nos olhos da criança. Quando se virou para o avisar, ficou um tanto surpreendida, ao notar que o homem estava levando o carrinho para a esquina. Ao mesmo tempo viu a porta do táxi abrir-se e uma cara morena aparecer durante um minuto na abertura.


Intuitivamente, percebeu o perigo que a criança corria, e com um grito precipitou-se pelos degraus abaixo e sobre o passeio em direção do táxi, para dentro do qual Carl enfiava a criança entregando-a ao tipo moreno. No momento em que alcançava o veículo, Carl pulou para dentro ao lado do seu companheiro, batendo a porta. Ao mesmo tempo o motorista procurou dar saída à sua máquina, mas era evidente que alguma coisa se tinha desarranjado, como se as engrenagens se recusassem a mover-se, e a demora com isto, enquanto punha a alavanca em marcha-ré recuando o carro algumas polegadas antes de partir novamente, deu tempo para que a ama se achasse ao lado do táxi. Pulando no estribo, procurou arrancar a criança dos braços do estranho, e aí, gritando e lutando, ficou nesta posição, mesmo depois de ter o táxi partido; e não foi senão quando o carro tinha passado a residência de Greystoke a toda a velocidade, que Carl, com uma grande pancada no rosto, conseguiu atirá-la na calçada. Os seus gritos atraíram criados e membros de famílias das residências próximas, assim como da casa de Greystoke. Lady Greystoke presenciou a corajosa luta da moça, e ela mesma tinha feito todo o possível para alcançar o veículo em movimento, mas já era tarde. Nada mais sabiam senão isto, e Lady Greystoke nem sonhava com a possível identidade do homem responsável pelo rapto até que seu marido lhe contou a fuga de Nikolas Rokoff do presídio francês onde julgava que estivesse preso. Enquanto Tarzan e sua esposa estavam combinando o melhor modo de agir, o telefone tocou na biblioteca à sua direita. Tarzan atendeu pessoalmente. — Lorde Greystoke? perguntou a voz dum homem. — Sim.


— Seu filho foi raptado — continuou a voz, — e somente eu posso auxiliá-lo a reavê-lo. Conheço todo o plano daqueles que o levaram. De fato, fiz parte do mesmo, e ia receber uma parte da recompensa, mas agora estão querendo enganar-me, e para ficar quite com eles auxiliá-lo-ei a reaver o seu filho sob a condição de que não me processe pela minha parte no crime. Que diz? — Se me levar onde está escondido o meu filho, — respondeu o homem-macaco, — não terá nada a recear de mim. — Está bem, respondeu o outro. Mas tem de vir sozinho ao meu encontro, pois já não é pouco que eu tenha de me pôr em suas mãos. Não posso correr o risco de permitir que outros saibam a minha identidade. — Onde e quando posso encontrá-lo? — perguntou Tarzan. O outro deu o nome e a direção dum botequim à beira-mar em Dover — um lugar freqüentado por marinheiros. — Venha hoje — concluiu ele — mais ou menos às 10 horas da noite. Não seria aconselhável chegar mais cedo. Seu filho ficará em segurança neste meio tempo, e então poderei levá-lo em segredo para o lugar onde está escondido. Porém venha sozinho, e não notifique a Scotland Yard de modo algum, pois conheço-o bem e estarei à sua espera. Caso qualquer outro o acompanhe, ou caso veja algum indivíduo suspeito que possa ser agente de polícia, não irei ao seu encontro e a sua última oportunidade de reaver o seu filho terá desaparecido. E sem mais palavras o homem cortou a conversa. Tarzan resumiu esta conversa à esposa, que lhe pediu que a deixasse acompanhá-lo; ele porém recusou: podia resultar daí que o homem cumprisse a ameaça de negar-se a auxiliá-los caso Tarzan não fosse sozinho. Dito isto, separaram-se, ele a fim de seguir apressadamente para Dover, ela, disposta a esperá-lo em casa, até que soubesse do resultado da sua missão.


Nem um nem outro podiam imaginar o que ambos teriam de passar antes de se encontrarem de novo. Mas por que antecipar? Durante dez minutos, depois que o homem-macaco a tinha deixado, Jane Clayton caminhou ansiosamente, pisando os tapetes de seda da biblioteca. O seu coração de mãe sangrava vendo roubado o seu primogênito. Seu espírito atormentava-se entre esperanças e temores. Embora a razão lhe dissesse que tudo estaria bem se Tarzan fosse sozinho, de acordo com o que dissera o misterioso desconhecido, a sua intuição não lhe permitia pôr de lado a suspeita de grandes perigos, tanto para o marido como para o filho. Quanto mais pensava no assunto, mais convencida ficava de que o recado telefônico poderia ser somente um pretexto para que eles ficassem inativos até que o menino fosse bem escondido ou retirado da Inglaterra. Ou poderia ser que aquilo fosse simplesmente uma cilada para fazer Tarzan cair em poder do implacável Rokoff. Ao acudir-lhe este pensamento, ela estacou, os olhos arregalados de terror. E semelhante idéia passou logo de suspeita a convicção. Olhou para o grande relógio, que marcava os minutos, no canto da biblioteca. Era já muito tarde para tomar o trem de Dover, em que Tarzan devia ir. Havia porém outro mais tarde, que a levaria até o porto do Canal, a tempo de chegar ao lugar que o desconhecido designara ao marido. Chamando a criada e o chofer deu-lhes rápidas instruções. Dez minutos depois, através das ruas movimentadas, estava a caminho da estação da Estrada de Ferro. Eram 9 horas e 45 minutos da noite quando Tarzan chegou ao esquálido bar da praia de Dover. Ao transpor, porém, a sala nauseabunda, uma figura embuçada passou por ele e disse-lhe baixinho: — Venha.


O homem-macaco voltou-se e seguiu para um beco mal iluminado, a que o costume dera as honras de rua. Uma vez aí, conduziu-o o desconhecido, guiando-o pelo escuro, até próximo do cais, onde grandes pilhas de fardos, caixas e barris faziam sombras profundas. — Onde está o menino? — perguntou Greystoke, estacando. — Naquele pequeno vapor cujas luzes poderá ver ali. Na

escuridão

Tarzan

procurava

distinguir

os

traços

do

companheiro, porém não o reconheceu. Não lhe parecia que já o tivesse visto. Se houvesse adivinhado que o seu guia era Alexis Paulvitch, teria compreendido que só havia traição no coração desse homem. Compreenderia qual o perigo que o ameaçava no caminho a cada passo. — Ele agora está sem guarda — continuou o russo. — Aqueles que o levaram se acham completamente certos de não poderem ser descobertos, e com exceção de dois dos tripulantes, aos quais já dei bastante “whisky” para sossegá-los durante algumas horas, não há ninguém a bordo do Kincaid. Podemos ir a bordo, retirar a criança e voltar sem o menor receio. Tarzan concordou. — Vamos então tratar disso. O guia conduziu-o para uma pequena embarcação amarrada ao cais. Os dois homens embarcaram e Paulvitch remou rapidamente em direção ao vapor. A fumaça negra, que saía da chaminé, nada sugeriu a Tarzan naquele momento. Todo o seu pensamento estava concentrado na esperança de que dentro de alguns momentos teria de novo o filho nos braços. No costado do vapor encontraram uma escada de corda pendurada, e por esta os dois homens subiram furtivamente. Uma vez no tombadilho, dirigiram-se apressadamente à ré, onde o russo apontou uma escotilha. — O menino está escondido ali — disse ele. — É melhor que o senhor mesmo desça para buscá-lo, porque assim ele não terá medo e não


chorará, o que sucederia caso se encontrasse nos braços de um estranho. Eu ficarei de guarda aqui. Tarzan estava tão ansioso por salvar o filho, que não prestou a menor atenção às condições esquisitas em que se encontrava o Kincaid: o tombadilho estava deserto, mas as máquinas funcionavam e o volume de fumaça que saía da chaminé indicava que o vapor estava pronto a zarpar. Ele, porém, não reparou em nada disso. Com a idéia de que dentro de um instante iria abraçar aquele precioso corpozinho, o homem-macaco desceu na escuridão. Mal tinha, porém, largado a borda da escotilha a pesada tampa tornou a fechar-se com grande barulho por cima da sua cabeça. Imediatamente teve consciência de que fora vítima de uma cilada e que, longe de salvar o filho, ele mesmo tinha caído nas mãos dos seus inimigos. Embora procurasse logo alcançar a escotilha e levantar a tampa, não o conseguiu. Riscando um fósforo, explorou o que o cercava, descobrindo que um pequeno compartimento tinha sido feito em uma divisão no porão, sendo a escotilha acima da sua cabeça o único meio de entrar ou sair. Era evidente que este compartimento tinha sido preparado com o único fim de servir-lhe de prisão. Não havia nada no compartimento. Nenhuma outra pessoa. Se a criança estava a bordo do Kincaid devia achar-se presa em outro lugar. Durante mais de vinte anos, da infância à mocidade, o homemmacaco tinha vagueado pelos seus esconderijos selvagens no mato, sem companhia humana de qualquer natureza. Aprendera no período mais impressionável da vida a aceitar os prazeres e as tristezas como os animais se arranjam com os deles. Diante disso, não se irritou nem lastimou a sorte, mas ficou esperando com paciência o que lhe poderia ainda acontecer, sem entretanto


deixar de fazer o possível para livrar-se. Por isso, pôs-se a examinar a prisão com todo o cuidado, experimentando as pesadas pranchas que formavam as paredes, e medindo a distância da escotilha, que lhe ficava por cima da cabeça. Enquanto estava assim ocupado, ouviu de repente a vibração das máquinas e o barulho da hélice. O vapor estava zarpando! Para onde e para que destino o levaria? No momento em que estes pensamentos lhe passavam pelo cérebro, ouviu, dominando o barulho das máquinas, alguma coisa que lhe fez correr pelo corpo um calafrio de terror. Claro e agudo, ressoou no tombadilho, por cima de sua cabeça, o grito de uma mulher assustada.


CAPÍTULO 2: Abandonado Quando Tarzan e o guia desapareceram nas sombras do escuro cais a figura de uma mulher coberta com um véu desceu apressadamente o estreito beco até a entrada da espelunca de onde aqueles acabavam de sair. Aí parou e olhou em redor de si. Como se estivesse satisfeita por ter enfim chegado ao lugar que desejava, entrou corajosamente no interior do antro. Mais ou menos vinte marinheiros meio embriagados e vagabundos do cais encararam admirados a recém-chegada, um espetáculo realmente estranho — uma mulher ricamente trajada ali, naquele meio. Aproximou-se rapidamente da criada, que a encarava também, com um ar de inveja e cólera. — Viu aqui um homem alto, bem trajado, não faz ainda um minuto? — perguntou ela. Esse homem deve ter-se encontrado aqui com outro e saído juntos. A moça respondeu confirmando essas indicações, mas não podia dizer que caminho os dois tinham seguido. Um marinheiro, que se aproximara para ouvir a conversa, informou que, momentos antes, quando ia entrar no bar, vira dois homens saírem, caminhando em direção do cais. — Indique-me a direção, disse a mulher, pondo uma moeda na mão dele. O rapaz conduziu-a, e juntos, caminharam apressadamente para o cais, ao longo do qual, através da água, viram um pequeno bote que se aproximava da sombra de um vapor próximo. — Lá estão — disse baixinho o homem. Dez libras se encontrar um bote e me levar àquele vapor disse a mulher. Precisamos então andar depressa se quisermos alcançar o Kincaid, antes que parta, pois está pronto há três horas e somente à espera daquele passageiro. Estive falando com um dos tripulantes há meia hora.


Enquanto dizia isto ele a conduzia até a extremidade do cais, onde sabia que havia outro bote amarrado. Ajudando então a mulher a embarcar, ela entrou também, e partiram. No costado do vapor o homem exigiu o pagamento. A mulher, mesmo sem contar a quantia exata, pôs-lhe algumas notas na mão que ele lhe estendia. Um simples olhar convenceu o rapaz que tinha sido mais que bem recompensado. Ajudou-a então a subir a escada, mantendo o bote perto do costado do vapor, para o caso de que esse passageiro tão generoso desejasse ser reconduzido mais tarde para terra. Mas logo o rumor das máquinas e o ranger do cabo de aço no guincho denunciaram-lhe que a âncora do Kincaid estava sendo levantada, e um minuto depois ouviu o rumor do revolver da hélice, e viu o pequeno vapor afastar-se vagarosamente no canal. No momento em que se dispunha a voltar para terra, ouviu o grito de uma mulher no tombadilho do vapor. — Isto é que se chama má sorte — disse ele. — Poderia ter ganho todo o pacote de notas que ela levava. Quando Jane Clayton chegou no tombadilho do Kincaid encontrou o vapor aparentemente abandonado. Não havia sinal nenhum daqueles que buscava, nem de qualquer pessoa a bordo, e, assim, começou a procurar o marido e o filho, que esperava encontrar imediatamente. Rápida, caminhou em direção do camarote, que ficava metade por cima e metade por baixo do tombadilho. Enquanto se precipitava pela pequena escada abaixo, que dava para o camarote principal, ao lado do qual estavam os pequenos camarotes ocupados pelos oficiais, não percebeu que uma das portas diante dela se fechara subitamente. Atravessou toda a extensão da sala principal, e, voltando pra atrás, parou diante de cada porta para escutar, experimentando furtivamente cada trinco.


Tudo era silêncio, total e completo silêncio. As palpitações do seu coração agitado pareciam-lhe à imaginação superexcitada encher o vapor com o seu alarma fulminante. Uma a uma as portas se lhe abriram, patenteando-lhe somente interiores vazios. Absorta como estava, não notou a repentina atividade no vapor, o ressoar das máquinas e a vibração da hélice. Tinha chegado à última porta à direita. Quando a empurrou, viu-se de repente agarrada por um robusto homem trigueiro, que a puxou apressadamente para dentro do camarote sem ar e nauseabundo. O choque repentino do susto, que o ataque inesperado lhe causou, fez-lhe soltar um grito agudo e estridente. O homem pôs-lhe subitamente a mão sobre a boca. — Não faça isso, antes que estejamos mais afastados da terra, minha querida — disse ele. — Então poderá gritar à vontade. Lady Greystoke virou-se para olhar a cara barbada, que se achava tão perto da dela. O homem afrouxou os dedos sobre os lábios da senhora. — Nikolas Rokoff! — exclamou ela, com um gemido de terror, reconhecendo-o, e encolhendo-se. — O seu admirador dedicado — replicou o russo, com uma pequena reverência. — Meu filho? — indagou ela em seguida, não prestando atenção alguma ao galanteio. — Onde está meu filho? Dê-me. Como pode ser tão cruel? Não é possível que seja tão inteiramente sem misericórdia e compaixão! Diga-me: onde está ele? Está a bordo deste navio? Por favor, se um coração lhe bate dentro do peito, leve-me onde está meu filho! — Se fizer o que se lhe mandar nenhum mal lhe acontecerá — respondeu Rokoff. Mas lembre-se que é por sua própria culpa que a senhora está aqui. Veio a bordo por sua livre vontade; deve suportar as conseqüências. “Nunca pensei”, disse ele de si para si, “que eu tivesse tanta sorte”.


Subiu depois ao tombadilho, tendo o cuidado de fechar antes a porta do camarote com a chave. Durante vários dias Jane não mais o viu. A verdade é que Nikolas Rokoff era tão mau marinheiro que os mares enfurecidos, que o Kincaid encontrou desde o princípio da viagem, o obrigaram a ficar na cabina com um tremendo enjôo. Durante esse tempo a única pessoa que penetrava no camarote da senhora era um sueco mal-educado, o imundo cozinheiro do Kincaid, que lhe trazia as refeições. Chamava-se Sven Anderssen, e seu único orgulho consistia em que o seu sobrenome se escrevia com dois ss. Era alto magro, com um bigode comprido e amarelo, feições doentias e unhas imundas. Ao vê-lo com o polegar sujo enterrado no ensopado morno, que parecia, pela freqüência, constituir o melhor da sua arte culinária, a pobre moça perdia logo todo o apetite. Os seus pequenos olhos azuis, muito juntos, nunca olhavam para os dela diretamente. A sua aparência era de velhaco, que até encontrava expressão no seu modo de andar como um gato. A tudo isto juntava-se uma impressão sinistra: a comprida e fina faca que sempre lhe estava à cinta, presa por uma corda suja, que lhe segurava o avental imundo. Aparentemente era apenas o instrumento de sua profissão; a moça estava porém convencida de que pouco precisaria para vê-la funcionar mais perniciosamente. A maneira como ele a tratava era sempre rabugenta; Jane, porém, nunca deixou de ir ao seu encontro com um sorriso amável e uma palavra de agradecimento quando trazia a comida, embora muitas vezes jogasse fora a maior parte dela pela vigia, logo que a porta se fechava atrás dele. Durante os dias de angústia, que se seguiram à encarceração de Jane Clayton, somente esta pergunta existia no seu cérebro — onde estariam encerrados o marido e o filho? Tinha razões para crer que o filho estivesse a bordo do Kincaid, e que ainda vivia. O que não sabia era se a Tarzan sucedia o mesmo, depois de ter sido atraído para bordo da embarcação maldita.


Conhecia, naturalmente o ódio profundo que o russo nutria pelo inglês, e só lhe acudia um motivo para explicar o fato de ter aquele trazido a este para bordo; liquidá-lo de um modo mais seguro, para vingar-se de ter-se Tarzan oposto aos planos favoritos de Rokoff, e por ter sido afinal o responsável de que o russo tivesse ido parar numa prisão francesa. Tarzan estava deitado na sua cela escura, ignorando que sua mulher estivesse prisioneira no camarote, que lhe ficava quase por cima da cabeça. O mesmo sueco, que servia Jane, trazia-lhe suas refeições, mas embora por várias vezes Tarzan tivesse procurado travar conversa com ele, nunca fora bem sucedido. Esperava descobrir, por meio desse rapaz, se o filho estava a bordo do Kincaid, mas a qualquer pergunta sobre este ou outro assunto semelhante o rapaz dava somente uma resposta: — Acho que logo vai haver muito vento. Por isso, depois de várias tentativas, Tarzan desistiu. Durante algumas semanas que pareceram meses aos dois prisioneiros, o vapor seguiu para um lugar que eles ignoravam. Certa vez o Kincaid parou para tomar carvão, mas logo depois continuou a viagem, que parecia nunca mais acabar. Rokoff somente tinha visitado Jane Clayton uma vez, desde que a trancara no pequeno camarote. Emagrecera e tinha os olhos encovados, por causa do longo enjôo que sofrera. O objeto da sua visita era obter de Jane um cheque nominal de grande soma, em retribuição da garantia de sua segurança pessoal e volta para a Inglaterra. — Quando o senhor me desembarcar em qualquer porto civilizado, com meu filho e meu marido — respondeu ela, pagar-lhe-ei em ouro duas vezes a quantia que pede; antes disso, porém, não obterá de mim um centavo nem a promessa dum centavo, sob quaisquer outras condições.


— Há de me dar o cheque que lhe peço — replicou ele com fúria — ou então nem você, nem seu filho, nem seu marido, nenhum dos três jamais pisará qualquer porto civilizado ou não. — Não tenho confiança no senhor. Que garantia posso eu ter de que não tomará o meu dinheiro e depois fará o que lhe convier comigo e os meus, sem cumprir sua promessa? — Há de acabar por fazer o que lhe exijo — disse ele, voltando-se para sair do camarote. — Lembre-se que seu filho está em meu poder. Se por acaso ouvir um choro atroz de criança que está sendo torturada, poderá consolar-se sabendo que o sofrimento dela é devido à sua obstinação porque essa criança será o seu filho. — Não faria uma coisa destas — exclamou a moça. — Não faria — não poderia ser tão cruel. — Não sou eu que sou cruel, é a senhora — replicou ele — porque consente que por uma miserável soma de dinheiro ele não deixe de sofrer. A ameaça surtiu efeito. Jane encheu um cheque de grande valor e deu-o a Nikolas Rokoff, que se retirou do camarote com um sorriso de satisfação nos lábios. No dia seguinte abriu-se a escotilha que ficava por cima da cela de Tarzan. Quando este olhou para cima viu a cabeça de Paulvitch no quadrado de luz acima dele. — Suba! — ordenou o russo. — Lembre-se, porém, que será fuzilado se fizer um único movimento para me atacar a mim ou a qualquer outro a bordo deste vapor. O homem-macaco pulou agilmente para o tombadilho, onde viu, a certa distância, parados, meia dúzia de marinheiros armados de carabinas e revólveres. Defronte, estava Paulvitch. Tarzan olhou em volta, à procura de Rokoff, pois tinha certeza de que este devia estar a bordo; não viu porém nenhum sinal dele.


— Lorde Greystoke, — começou o russo — o seu prolongado e desenfreado intrometimento com Rokoff e os seus planos tem afinal trazido sua família a esta situação infeliz. Só a si mesmo deve agradecer. Como pode imaginar, o Sr. Rokoff despendeu grande soma de dinheiro para custear esta expedição, e, como o senhor é a causa única da mesma, ele naturalmente conta consigo para reembolsá-lo. Ainda mais, posso dizer-lhe que unicamente se aceder aos justos pedidos do Sr. Rokoff é que poderá desviar as conseqüências mais desagradáveis para sua mulher e seu filho, e ao mesmo tempo conservar a sua própria vida e reconquistar a liberdade. — Qual é a quantia? — perguntou Tarzan. — E que segurança me dá de cumprir o acordo ajustado? Tenho, como sabe, muita razão para não me fiar em dois canalhas como você e Rokoff. — Não está em condições de proferir insultos — disse o russo, corando. — Não tem, é certo, nenhuma garantia de que cumprirei o nosso acordo, a não ser a minha palavra; tem, porém, diante de si a prova de que podem liquidá-lo se não encher o cheque que exigimos. A não ser que seja mais tolo do que suponho, deve saber que nada nos causaria maior prazer do que dar ordens a estes homens para o fuzilarem. Se não o fazemos, é porque temos outros planos para castigá-lo, e esses planos ficariam inteiramente malogrados se morresse. Responda-me a uma pergunta — disse Tarzan. Meu filho está a bordo deste vapor? Não — respondeu Alexis Paulvitch. — Seu filho está bem guardado em outro lugar, mas não será morto, salvo se você se recusar a concordar com as nossas justas exigências. Caso se torne necessário matá-lo, não haverá motivo para não matar também a criança, porque uma vez que tenha desaparecido aquele que desejamos castigar por intermédio do menino, este só poderia ser para nós constante embaraço. Vê, portanto, que somente


poderá salvar a vida de seu filho salvando a sua própria, e só poderá salvar a sua dando-nos o cheque que pedimos. — Muito bem — replicou Tarzan, pois bem sabia que aqueles homens eram capazes de cumprir qualquer ameaça que Paulvitch tivesse feito e sempre havia alguma esperança de que, cedendo às suas exigências, pudesse salvar o menino. Não lhe parecia possível que o deixassem viver depois que houvesse assinado o cheque. Estava, porém, resolvido a dar-lhes uma lição de que nunca mais se esqueceriam, e talvez levasse Paulvitch consigo para a eternidade. Sentia somente que não fosse Rokoff. — Qual é a quantia? — perguntou, sacando do bolso o livro de cheques e a caneta tinteiro. Paulvitch mencionou uma soma enorme. Tarzan mal podia conter um sorriso. A cobiça do bandido ia ser a causa do seu desastre, ao menos no negócio do resgate. De propósito, Tarzan hesitou, regateando sobre a quantia; mas Paulvitch não transigiu. Finalmente, o homem-macaco encheu o cheque com a quantia que lhe pediam, quantia aliás superior à que possuía no banco. Ao voltar-se para entregar ao outro o pedaço de papel, que não valia nada para o russo, aconteceu olhar através do estibordo do Kincaid. Com grande surpresa viu que o vapor estava a poucos passos de terra. Quase até a beira da água existia uma densa selva, por trás da qual havia um planalto coberto de floresta. — É aqui que vai ser posto em liberdade — disse Paulvitch, que lhe notara a direção do olhar. O plano de Tarzan para tirar imediata vingança física do russo desapareceu ao pensar que a terra que ali estava era o continente africano. Sabia que, se o abandonassem aí, sem dúvida poderia encontrar o caminho para a civilização com relativa facilidade. Paulvitch tomou o cheque.


— Tire a sua roupa — disse ele ao homem-macaco. — Aqui não precisará dela. Tarzan hesitou. Paulvitch apontou para os marinheiros armados. Então o inglês despiu-se vagarosamente. Arriaram um bote, e, ainda bem guardado, foi o homem-macaco levado para a praia. Meia hora depois os marinheiros voltaram ao Kincaid, que já se estava preparando para partir de novo. Tarzan deteve-se sobre aquele estreito pedaço de praia, olhando a saída do vapor. Eis que na amurada do navio aparece um vulto a chamar alto, para atrair-lhe a atenção. O homem-macaco começava a ler uma nota que um dos marinheiros lhe entregara, quando o pequeno bote, que o levara à praia já se dispunha a regressar ao vapor. Aos gritos que partiam do tombadilho ergueu a cabeça. Viu então um homem de barba negra, que se ria para ele, escarnecendo dele, enquanto segurava acima da cabeça o vulto de uma criança. Tarzan já ia atirar-se com ímpeto às ondas, em direção do vapor que zarpava; vendo, porém, a inutilidade de seu ato, parou à beira da água. Ficou, porém, com o olhar preso no Kincaid, acompanhando-o, até que o navio desapareceu por trás do cabo saliente da costa. Da selva que ficava atrás dele olhos ferozes, rajados de sangue, olhavam-no por baixo de sobrancelhas cabeludas. Pequenos macacos nos cimos das árvores guinchavam e guinchavam; além, na floresta, ouvia-se o rugido de um leopardo. Mas John Clayton, Lorde Greystoke, ficou ainda sem ouvir e sem ver, sofrendo as ânsias de profundo arrependimento pela oportunidade que


perdera, por ter sido tão tolo em acreditar numa simples declaração do primeiro tenente do seu arqui-inimigo. — Resta-me, ao menos, — pensou ele — o consolo de saber que Jane está a salvo em Londres. Graças a Deus, ela não caiu também nas garras daqueles canalhas. Atrás dele o vulto cabeludo cujos olhos maus o tinham vigiado, como o gato olha para o camundongo, arrastava-se traiçoeiramente em sua direção. Onde estavam os sentidos treinados do homem-macaco? Onde estava o seu ouvido agudo? Onde estava o seu olfato sobrenatural?


CAPÍTULO 3: Animais ameaçados Vagarosamente Tarzan abriu o bilhete que o marinheiro lhe tinha posto na mão, e leu-o. A princípio essas linhas pouca impressão lhe causaram nos sentidos, amortecidos de tristeza; mas, afinal, todo o horror do terrível plano de vingança desdobrou-se em sua imaginação. “Isto lhe explicará (dizia o bilhete) a natureza exata das minhas intenções relativas a você e ao seu filho. Quando você nasceu era um macaco. Vivia nu no mato. Nós fizemos com que você voltasse aos seus; mas seu filho subirá um passo acima do pai. É a lei invariável da evolução. O pai era um animal, mas o filho será um homem. Ele dará mais um passo na escala ascendente do progresso: não será nenhum bicho-do-mato, porém usará uma tanga e argolas de cobre nos tornozelos, e talvez uma argola no nariz, porque vai ser criado por homens — uma tribo de canibais. Eu poderia ter matado você; mas isto teria diminuído o justo castigo que merece. Morto, você não poderia sofrer com a notícia da sorte de seu filho. Vivo, e num lugar de onde não pode fugir, para procurá-lo ou socorrê-lo, terá um sofrimento muito pior do que a morte, e isso durante todos os anos de sua vida, pensando sempre nos horrores da existência do seu filho. Isso constituirá a melhor parte do seu castigo por ter ousado opor-se a N. R. P. S. — O saldo do seu castigo será o que vai acontecer à sua mulher, e que não digo aqui, mas deixo à sua imaginação”. Ao acabar de ler o bilhete, um pequeno barulho atrás dele fê-lo tornar a si, apavorado com as terríveis realidades que o cercavam. Instantaneamente os seus sentidos despertaram, e ele voltou a ser Tarzan dos Macacos. Voltou-se; era já um animal ameaçado, tendo o instinto da própria conservação. Fez frente resolutamente a um enorme macaco, já prestes a se precipitar sobre ele.


Os dois anos que tinham decorrido desde que Tarzan saíra da floresta virgem com a companheira salva por ele, pouco lhe haviam alterado a força extraordinária que o tornara o senhor invencível das selvas. As suas grandes propriedades em Uziri haviam ocupado muito do seu tempo e atenção; aí tinha encontrado ampla largueza para o uso prático e a conservação das suas forças quase sobrenaturais. Mas achando-se, como se achava, nu e desarmado, para ter de combater um animal cabeludo, com um pescoço taurino, como o que agora o enfrentava, era uma prova a que o homem-macaco mal se teria abalançado em qualquer período da sua existência selvagem. Mas não havia outra alternativa. Era forçoso enfrentar o animal enfurecido, embora tivesse apenas as armas com que a natureza o dotara. Por cima do ombro do macaco, Tarzan podia ver agora as cabeças e os ombros de talvez mais de uma dúzia destes poderosos precursores do homem primitivo. Ele sabia, entretanto, que havia pouca probabilidade de que, juntos, o atacassem. Não está no raciocínio dos antropóides pesar com justeza ou apreciar exatamente o valor da ação coletiva contra um inimigo. Se eles soubessem agir assim, já se teriam tornado desde muito os senhores absolutos dos seus esconderijos, tal o poder de destruição que existe nos seus formidáveis músculos e dentes ferozes. Com um ronco surdo, o animal se atirou sobre Tarzan. Mas o homem-macaco tinha descoberto, entre outras coisas, nos lugares freqüentados por homens civilizados, certos métodos científicos de guerrear, que são desconhecidos aos habitantes da floresta. Poucos anos antes teria respondido à força bruta também com a simples força bruta.


Mas agora agiu de outro modo. Desviou-se para um lado, furtando o corpo ao arremesso do bruto e atirando-lhe com toda a força um pontapé na boca do estômago. Com um grito, ao mesmo tempo de raiva e de angústia, o grande antropóide se dobrou vencido pela dor e caiu no chão; mas imediatamente procurou levantar-se. Antes porém que pudesse erguer-se, o inimigo de pele branca tinhase virado e pulado em cima dele. Foi como se houvesse caído dos ombros do lorde inglês o último pedaço do manto superficial de civilização. Mais uma vez era ele o animal da selva virgem regozijando-se no conflito sangrento com a sua espécie. Mais uma vez era Tarzan, filho de Kala, a macaca. Os seus dentes fortes e brancos se cravaram no pescoço cabeludo do inimigo, enquanto procurava a veia jugular. Dedos poderosos afastavam os dentes fortes da fera, ou fechados batiam com a força dum martelo na cara monstruosa, salpicada de espuma, do adversário. Ao redor deles o resto da tribo dos macacos contemplava, gozando a luta, rosnando uns sons surdos de aprovação quando pedaços sangrentos de couro branco ou pele cabeluda eram rasgados por um ou por outro dos contendores. Mas calaram-se, entre admirados e espectantes, quando viram o grande macaco branco cavalgar as costas do rei deles, e, com os músculos de aço, tensos, por baixo dos sovacos do antagonista, subjugá-lo, calcando com toda a força de suas mãos as costas e o grosso cachaço do macaco, de forma que este somente podia rosnar em agonia, revolvendo-se sobre o espesso tapete de capim. Como Tarzan tinha subjugado o enorme Terkaz muitos anos antes, quando se preparava para partir à procura de entes humanos da sua própria


espécie e cor, assim também agora subjugou este outro grande macaco com o mesmo processo de luta que descobrira por acaso durante o outro combate. O pequeno círculo de ferozes antropóides ouvia o ranger do pescoço do seu rei, que estrebuchava entre gemidos de agonia e urros hediondos. Súbito, ouviu-se um estalo como o de uma árvore que se quebra com a fúria do vento. A cabeça do macaco descaiu para a frente, o pescoço frouxo contra o grande peito cabeludo. Os urros e os gemidos cessaram. Os olhos dos espectadores — olhos como os dos porcos — iam e vinham do corpo imóvel de seu chefe ao daquele outro macaco branco, que se erguia ao lado do vencido. Admiravam-se de que o rei não se levantasse também e não matasse esse orgulhoso estrangeiro. Viram o que tinha chegado havia pouco colocar um pé sobre o pescoço do corpo imóvel a seus pés, e, sacudindo a cabeça para trás, soltar um grito selvagem, como o dos macacos, quando acabam de matar alguém. Compreenderam então que o seu rei estava morto, e bem morto. Através da selva repercutiram as notas horríveis do grito de vitória. Os macacos nos cumes das árvores cessaram de guinchar. Os pássaros de cantos ásperos e plumagens brilhantes estavam quietos. De longe, vinham, como um eco, o urro do leopardo e o rouco rugido do leão. Tarzan voltou olhos interrogativos para o pequeno grupo de macacos diante dele, e sacudiu a sua cabeça como se quisesse jogar para trás a pesada cabeleira, que lhe caía pelo rosto — velho hábito que datava dos dias em que os cabelos, ásperos e negros, lhe caíam sobre os ombros, e às vezes lhe tapavam os olhos. O homem-macaco sabia que podia ser imediatamente atacado por outro macaco, que se julgasse em melhores condições para disputar o posto de rei da sua tribo. Entre os seus próprios macacos sabia que não era raro que


um estrangeiro, depois de ter despachado o rei, assumisse o lugar de chefe da tribo. Se não os acompanhasse, eles se retirariam vagarosamente, para mais tarde brigarem entre si pela supremacia real. Que podia ser o rei deles, se quisesse, tinha a certeza; mas não via nenhuma vantagem em assumir as obrigações, às vezes enfadonhas, daquela posição. Um dos macacos mais novos, um enorme bruto, com grandes músculos, avançou ameaçadoramente para mais perto do homem-macaco. Com os dentes à mostra, pronto para a luta, soltou um ronco surdo. Tarzan, rígido como uma estátua, acompanhava-lhe com o olhar todos os movimentos. Caso se voltasse contra ele, arriscava-se a precipitar os acontecimentos. Talvez pudesse também fazer o valente fugir. Tudo dependia da coragem que manifestasse o jovem macaco. Ficou, pois, completamente quieto, mas em guarda. Bem podia ser que o macaco, de acordo com o costume dos da sua espécie, se aproximasse apenas do objeto da sua atenção, roncando horrivelmente e mostrando os dentes. E foi o que sucedeu, tal como Tarzan tinha previsto. Poderia ser um blefe real, disfarçando as suas intenções, para que em dado momento se atirasse sobre o inimigo sem que nada fizesse prever a agressão. Enquanto o bruto rodeava Tarzan, este se voltava vagarosamente, conservando os olhos sempre fitos nos olhos do seu antagonista. Pareceu-lhe que o jovem macaco não se julgava capaz de superar o seu antigo rei. Contudo, seria bom não confiar demais nesta suposição. Tarzan viu que o animal era de proporções maravilhosas, com uma estatura de mais de sete pés. Os seus grandes braços cabeludos alcançavam quase o chão, quando ficava ereto, e as suas presas, agora bem chegadas à face de Tarzan, eram excepcionalmente longas e agudas. Como os outros da sua tribo, era diferente em varias qualidades inferiores dos macacos da mocidade de Tarzan.


A princípio o homem-macaco experimentou certa esperança, à vista dos corpos cabeludos dos antropóides, de que por algum estranho capricho da sorte tinha regressado mais uma vez à sua própria tribo. Mas um exame mais minucioso convenceu-o de que estes eram de outra espécie. Entretanto, o macaco ameaçador continuava a rodar incerto em volta do homem-macaco. Era um rodar parecido com o dos cães quando outro cão estranho se chega para o meio deles. Ocorreu a Tarzan a idéia de verificar se a linguagem da sua própria tribo era idêntica à desta outra família. Falou então ao bruto na linguagem da tribo de Kerchak. — Quem és tu? — perguntou ele. — Por que ameaças Tarzan dos Macacos? O bruto cabeludo mostrou a sua surpresa. — Eu sou Akut — respondeu o outro na mesma linguagem simples e primitiva, tão baixa na escala das línguas faladas, que, como Tarzan tinha pensado, era idêntica à daquela tribo em que tinha passado os primeiros vinte anos da sua vida. — Eu sou Akut — repetiu o macaco. — Molak está morto. Eu sou o rei. Vai-te embora ou eu te matarei! — Viste com que facilidade eu matei Molak — respondeu Tarzan. — Assim eu poderia te matar também se quisesse ser rei. Mas Tarzan dos Macacos não quer ser o rei da tribo de Akut. Somente o que ele deseja é viver em paz neste país. Sejamos amigos. Tarzan dos Macacos pode auxiliar-te e tu podes ajudar Tarzan dos Macacos. — Não pode matar Akut — replicou o outro. — Ninguém é tão forte como Akut. Se não tivesse matado Molak, Akut tê-lo-ia feito, pois Akut estava pronto para ser rei. Como única resposta o homem-macaco se atirou sobre o grande bruto, que durante a conversa diminuíra um pouco a sua vigilância.


Num abrir e fechar de olhos o homem segurou o pulso do grande macaco, e antes que o outro pudesse agarrar-se com ele, tinha-o voltado, pulando-lhe sobre as largas costas. Ambos caíram, mas tão bem executado tinha sido o plano de Tarzan, que, antes que tocassem o chão, o homem empregou sobre Akut o mesmo golpe que tinha quebrado o pescoço de Molak. Devagar, fez-lhe sentir a pressão dos seus músculos, e tal como antigamente tinha dado a Kerchak a oportunidade de render-se continuando a viver, assim também agora quis proceder com Akut — no qual via um possível aliado de grande força e recursos. Propôs-lhe viver amigavelmente com ele ou morrer como acabava de ver sucumbir o seu rei até então invencível. — Ka-goda? — murmurou Tarzan ao macaco, inteiramente subjugado. Era a mesma pergunta que murmurara a Kerchak, e que na linguagem dos macacos quer dizer: “Rende-se?”. Akut lembrou-se dos estalos que ouvira quando o grosso pescoço de Molak estava a partir-se, e estremeceu. Custava-lhe renunciar à autoridade de rei. Por isso, mais uma vez, lutou para se livrar; porém um aperto mais forte e torturante nas vértebras, fêlo articular um agonizante “ka-goda!” Tarzan afrouxou um pouco a pressão dos dedos. — Poderás ainda ser rei, Akut — disse ele. — Tarzan já te disse que não deseja ser rei. Se alguém te negar esse direito, Tarzan dos Macacos te auxiliará na luta. O homem-macaco levantou-se e Akut vagarosamente se pôs de pé. Sacudindo a cabeça redonda e, rosnando amuadamente, dirigiu-se aos cambaleios em direção da sua tribo, olhando para um e para outro dos maiores macacos que receava lhe disputassem o seu lugar de chefe.


Mas nenhum se opôs. Ao contrário, afastavam-se ao passo que ele se ia aproximando. Todo o grupo sumiu-se na floresta, e Tarzan ficou mais uma vez só na praia. O homem-macaco sentia fortes dores nas feridas que lhe fizera Molak; como, porém, desde muito se habituara ao sofrimento físico, suportou-o com a calma e o ânimo dos animais bravios, que lhe tinham ensinado a levar a vida selvagem da mesma maneira que todos os que nasceram para ela. A sua primeira necessidade, logo o verificou, era arranjar armas de ataque e defesa, pois o seu encontro com os macacos, e os sons distantes das vozes selvagens de Numa, o leão e Sheeta, a pantera, o avisavam de que a vida não lhe ia ser nenhuma vida de descanso indolente e tranqüila. Cumprir-lhe-ia voltar à antiga existência de morticínio e constante perigo. Ser caçador ou caça. Animais medonhos o espreitariam, como o tinham espreitado outrora; dia e noite, teria que manter-se em contínua vigilância, lançando mão das rudes armas que pudesse fabricar com os materiais que lhe fornecesse a floresta. Na praia descobriu um rochedo saliente. Com muito trabalho conseguiu quebrar uma lasca estreita, de mais ou menos doze polegadas de comprimento por 1/4 de polegada de grossura. Uma das pontas da pedra serviu-lhe para fabricar uma faca tosca e grosseira. Com essa arma, dirigiu-se para a floresta procurando uma árvore de certa qualidade de madeira que conhecia. Desta cortou um galho pequeno e reto, no qual fez uma ponta. Cavou então um pequeno buraco redondo na superfície do tronco derribado, colocou dentro do buraco alguns pedaços de casca seca, picados em miúdos fragmentos, enfiou nele a ponta do pau aguçado, e, cavalgando o tronco da árvore girou a delgada vara rapidamente entre as palmas das mãos. Depois de algum tempo uma tênue fumaça começou a sair do pequeno monte de cascas, e pouco depois elevou-se uma chama. Colocando


alguns galhos maiores e paus por cima do pequeno fogo, Tarzan conseguiu uma pequena fogueira na cavidade da árvore seca. Dentro desta cavidade introduziu a lâmina da faca de pedra; quando esta ficava aquecida ele a retirava, umedecendo ligeiramente o gume da pedra. Na superfície do lugar umedecido um pequeno floco de matéria vidrosa rachava e se escamava. Assim, vagarosamente, o homem-macaco começou a operação tediosa de conseguir um gume fino para a sua faca de caça. Grande foi o seu contentamento quando conseguiu obter uma lâmina cortante de duas polegadas, com a qual talhou um arco grande e flexível, um cabo para a sua faca, um grosso varapau, e uma boa quantidade de flechas. Estas ele escondeu numa árvore alta ao lado dum pequeno riacho, onde construiu uma plataforma com uma coberta de folhas de palmeira. Quando todas estas coisas ficaram prontas, já escurecia, e Tarzan tinha fome. Vira, durante o breve passeio que fizera na floresta, que à pequena distância do riacho havia um bebedouro muito freqüentado, onde, pela lama pisada em ambas as margens, era evidente que animais de toda qualidade e em grande número aí vinham beber. O homem-macaco dirigiu-se em silêncio para esse lugar, esgueirando-se por entre as árvores e os galhos com a graça e facilidade de um macaco. Se não fossem os cuidados que lhe pesavam no coração, teria ficado contente em voltar à antiga vida livre da mocidade. Mesmo assim, com esses cuidados e apreensões, voltou Tarzan aos pequenos hábitos e costumes da vida antiga, que, em verdade, tinham mais força na sua natureza do que o verniz que a civilização, nos últimos três anos da sua vida com os homens brancos, tinha espalhado levemente sobre ele — verniz que apenas disfarçava a rudez do animal que fora Tarzan dos Macacos. Se os seus pares da Câmara dos Lordes pudessem vê-lo agora teriam erguido, horrorizados, as suas nobres mãos.


Silencioso, encolheu-se nos galhos baixos dum grande gigante da floresta que se achava perto dos rastros e com os olhos penetrantes e os ouvidos atentos, ficou alerta para a selva distante, da qual sabia que tinha afinal de sair o seu jantar. E não teve de esperar muito tempo. Mal se tinha acomodado numa posição confortável, as pernas maleáveis e musculosas bem encolhidas por baixo dele, como a pantera encolhe os quartos traseiros, preparando-se para o bote, Bara, a corça, veio-se chegando elegantemente para beber. Mas Bara não vinha só. Atrás do gracioso gamo, vinha também outro animal, que a corça, nem via nem pressentia pelo olfato, mas cujos movimentos eram visíveis a Tarzan dos Macacos, devido à elevada posição em que se achava. Ele ainda não podia distinguir exatamente a natureza da coisa que se movia traiçoeiramente pela selva, atrás da corça; estava, porém, convencido de que era algum grande animal de presa, que perseguia Bara. Numa, talvez, ou Sheeta, a pantera. Em todo caso, Tarzan via que a sua refeição ia escapar-se-lhe das mãos, a não ser que Bara apressasse os passos em direção ao bebedouro. Enquanto estes pensamentos passavam pela mente de Tarzan, devia a corça ter ouvido algum rumor à retaguarda pois estacou repentinamente por um instante, tremendo, e de ouvido atento. Com um pulo, correu diretamente em direção do rio e de Tarzan, com a intenção de fugir pelo raso riacho e passar para a margem oposta. A pequena distância dela vinha Numa, o leão. Tarzan podia vê-lo claramente agora. Bara ia passar por baixo do homem-macaco. Poderia fazêlo? Mas enquanto ele perguntava isto a si mesmo, o homem esfomeado atirou-se do seu poleiro em cima das costas da assustada corça.


Mais um instante e Numa estaria sobre ambos. Se, portanto, o homem-macaco quisesse jantar aquela noite, e no dia seguinte, tinha de agir com rapidez. Mal tocara no couro liso da corça, o peso repentino fez o animal cair de joelhos. Tarzan agarrou-o pelos chifres, um em cada mão, e, com um rápida puxão, torceu o pescoço do animal, até sentir quebrarem-se-lhe as vértebras nas mãos. O leão rugia agora raivoso atrás dele. Tarzan atirou a corça por cima do ombro e, agarrando-lhe a perna dianteira com os dentes fortes, pulou para um dos galhos mais baixos, que estavam por cima da sua cabeça. Com ambas as mãos agarrou o galho, e, no instante em que Numa saltou sobre a corça, ele pondo-se de pé, suspendeu rapidamente a presa, furtando-a ao alcance das unhas cruéis do animal. Houve um ruído embaixo quando o leão caiu novamente em terra. Tarzan dos Macacos, carregando o seu jantar mais para cima, pô-lo em segurança num galho mais alto, olhou para baixo com uma cara risonha, fitando os olhos amarelos e brilhantes do animal selvagem, que olhava para ele. Com ar de zombaria mostrou-lhe Tarzan a presa que lhe havia roubado. Com a tosca faca de pedra cortou um bife gostoso da parte traseira, e enquanto o grande leão passeava rosnando, de um lado para outro, por baixo dele, Lorde Greystoke se repastou à vontade, e jamais teve no melhor dos seus clubes de Londres uma refeição tão saborosa. O sangue quente da presa sujava-lhe as mãos e a cara acariciandolhe as narinas com o cheiro que o carnívoro selvagem mais aprecia. Ao terminar a refeição, acomodou o resto da carcaça em uma forquilha alta da árvore onde tinha jantado e, como Numa ainda o vigiasse, embaixo, sedento de vingança, continuou em seu abrigo no cume da árvore, onde dormiu até o dia seguinte, quando o sol já estava alto.


CAPÍTULO 4: Sheeta Os dias que se seguiram foram ocupados por Tarzan em completar as suas armas e explorar a selva. Encordoou o arco com tendões da corça que lhe servira de jantar na primeira tarde, e embora preferisse uma tripa de Sheeta para esse fim, estava satisfeito. Esperaria até achar oportunidade que lhe permitisse matar um destes grandes gatos. Trançou também uma comprida corda de embira — corda igual à que tinha usado muitos anos antes para atormentar o mal-humorado Tublat, e que mais tarde se tinha tornado uma arma muito eficiente na mão habilidosa do pequeno menino-macaco. Fez uma bainha e um cabo para a sua faca de caça e uma aljava para as flechas; e do couro de Bara um cinto e uma tanga. Partiu então a explorar os arredores da estranha terra onde se achava. Que não era a sua velha costa conhecida do oeste do continente da África, sabia-o pelo fato de nascer o sol nas águas do mar que ficava diante da selva. Que não era também a costa leste da África tinha igualmente certeza, pois sabia que o Kincaid não tinha passado pelo Mediterrâneo, pelo Canal de Suez, pelo Mar Vermelho, nem tampouco tivera tempo para passar pelo Cabo da Boa Esperança. Não tinha, por tudo isso, nenhuma idéia de onde se achava. Às vezes conjeturava se o vapor teria atravessado o grande oceano Atlântico para depositá-lo em alguma praia selvagem da América do Sul. Mas a presença de Numa, o leão fê-lo compreender que isto não podia ser. Quando Tarzan seguia sozinho pela selva em marcha paralela à praia, sentiu um grande desejo de ter alguma companhia. Aos poucos, começou a arrepender-se de não se ter associado aos macacos. Não tinha visto nenhum deles desde o primeiro dia, quando o influxo da civilização ainda o dominava.


Agora ele se parecia mais com o antigo Tarzan e, embora avaliasse o pouco que poderia haver de comum entre ele e os grandes antropóides, ainda assim estes eram melhores que qualquer outra companhia. Caminhando vagarosamente, às vezes no chão e outras vezes nos galhos baixos das árvores, apanhando uma fruta de vez em quando, ou virando um tronco derrubado à procura de grandes vermes, que ainda achava tão saborosos como antigamente, Tarzan tinha andado uma milha ou mais quando a sua atenção foi atraída pelo cheiro de Sheeta, que o vento lhe trazia. Agora, Sheeta, a pantera, era uma presa que Tarzan estava bem satisfeito de encontrar, pois tinha em mente não somente utilizar-se da tripa resistente do grande gato para o seu arco, como também para fazer uma nova aljava e uma tanga de pedaços do seu couro. Portanto, se o homem-macaco tinha andado descuidado até aí, tornou-se de então em diante furtivo e silencioso. Ligeiro e calado, deslizou pela floresta atrás do gato selvagem, perseguindo-o. Quando se viu perto de Sheeta, descobriu que a pantera por seu lado, estava também perseguindo caça para si. Ao mesmo tempo chegou-lhe às narinas, soprado da direita por uma brisa suave, o cheiro forte de um bando de grandes macacos. A pantera tinha subido numa grande árvore, quando Tarzan a avistou, além disso, por baixo dela estava a tribo de Akut acampada numa pequena clareira. Alguns cochilavam recostados aos troncos das árvores, enquanto outros vagueavam revirando pedaços de cascas de árvores por baixo dos quais encontravam vermes e besouros, que achavam saborosos. Akut era o que se achava mais perto de Sheeta. O grande gato estava encolhido sobre um galho grosso, oculto aos olhos do macaco pela folhagem espessa, esperando pacientemente que o antropóide chegasse ao alcance do seu pulo.


Tarzan cuidadosamente alcançou posição na mesma árvore em que estava a pantera, mas um pouco acima dela. Teria preferido usar o seu laço, porém a folhagem em volta do gato grande impedia a possibilidade de uma laçada certa com a corda. Akut achava-se agora muito perto da árvore onde a morte o esperava. Sheeta vagarosamente firmou as patas traseiras no galho que estava mais abaixo dela, e com um grito horrível lançou-se sobre o grande macaco. Ao mesmo tempo, e dando também um pulo, outro animal de caça saltou-lhe em cima, soltando um grito esquisito e selvagem que se misturou com o dela. Quando Akut, assustado, olhou em volta de si, viu a pantera quase em cima dele, e já nas costas da fera o macaco branco que o tinha vencido no outro dia, perto do mar. Os dentes do homem-macaco estavam fortemente cravados no pescoço de Sheeta. O braço direito daquele apertava o pescoço desta, enquanto a mão esquerda, segurando a faca de pedra, caía em poderosas pancadas sobre a paleta esquerda da pantera. Akut mal teve tempo de pular para um lado, a fim de não ficar preso por baixo destes monstruosos lutadores da selva. Com enorme estrondo caíram ambos por terra a seus pés. Sheeta urrava, rosnava e berrava horrivelmente; o macaco branco agarrava-se, porém, com firmeza e em silêncio ao corpo inquieto da sua presa. Com firmeza e sem remorso a faca de pedra enterrava-se no seu couro, cada vez mais fundo, até que, com uma estocada final e um grito agonizante, a grande gata rolou para o lado, e com um derradeiro movimento espasmódico dos músculos, quedou-se imóvel, morta. Então o homem-macaco levantou a cabeça, fincando um pé sobre o cadáver da pantera, e mais uma vez, através da selva, ouviu-se o seu grito selvagem de vitória.


Akut e os companheiros ficaram imóveis, olhando com admiração assustada para o corpo de Sheeta e para o vulto do homem que a tinha matado. Tarzan foi o primeiro a falar. Tinha salvado a vida de Akut; e como conhecia os limites do intelecto do macaco, sabia que precisava tornar bem claro o seu plano ao antropóide, se dele quisesse tirar o proveito que visava. — Eu sou Tarzan dos Macacos, — disse ele — poderoso caçador, poderoso lutador. Ao lado da grande água poupei a vida de Akut quando poderia tê-lo morto e ficado rei da tribo de Akut. Agora salvei Akut dos dentes dilacerantes de Sheeta. Quando Akut ou a tribo de Akut estiver em perigo, podem chamar a Tarzan assim — e o homem macaco soltou um grito horrível com o qual a tribo de Kerchak estava habituada a chamar os seus membros ausentes em ocasiões de perigo. E continuou: — Mas quando ouvirem também chamar Tarzan assim, que se lembrem do que fez por Akut, e venham ao seu encontro com toda a rapidez. Será como Tarzan diz? — Huh! — afirmou Akut, e esta exclamação foi unanimemente confirmada pelos membros da sua tribo. Em seguida, recomeçaram a comer como se nada tivesse acontecido, e com eles comeu também John Clayton, Lorde Greystoke. Este reparou que Akut ficava sempre perto dele, e muitas vezes o olhava com admiração estranha nos seus pequenos olhos rajados de sangue. Certa vez fez até uma coisa que Tarzan, durante todo o tempo que tinha passado entre os macacos nunca tinha visto um macaco fazer: escolheu um pedaço de raiz bem tenro e deu-o a Tarzan. Quando a tribo caçava, o corpo luzidio do homern-macaco confundia-se com os corpos castanhos e cabeludos dos seus companheiros.


Muitas vezes, eles se roçavam, mas os macacos já aceitavam a presença do outro como sendo natural, de forma que para eles Tarzan era tão macaco como o próprio Akut. Se ele se chegava para perto de uma fêmea com o filho, ela lhe mostrava os seus dentes ferozes e soltava um rosnar de mau agouro. De vez em quando algum truculento macaco jovem rosnava também, se Tarzan se aproximava enquanto ele estava comendo. Nisto, porém, o tratamento não era diferente daquele que davam a qualquer outro membro da tribo. Tarzan por sua parte achava-se bem acomodado com estes progenitores ferozes e cabeludos do homem primitivo. Pulava com ligeireza para fora do alcance de cada fêmea ameaçadora, pois tal é o costume dos macacos, se não estão com um dos seus ataques ocasionais de raiva bestial; rosnava também para os macacos novos e ferozes mostrando-lhes os seus dentes da mesma forma. Assim, voltou facilmente aos costumes da sua vida antiga e nem parecia já que se tivesse associado com semelhantes criaturas. Durante quase uma semana vagueou pela selva com os seus novos amigos, em parte devido ao desejo de ter companhia e em parte por um bem calculado plano para imprimir-se indelevelmente na memória dos macacos, a qual não é de grande retenção. Tarzan, por sua experiência passada, sabia que lhe seria de muita vantagem ter uma tribo destes poderosos e terríveis animais prontos a atender ao seu chamado. Quando se convenceu de que tinha conseguido até certo ponto fixar a sua identidade na memória deles, decidiu retornar às suas explorações. Com este fim, partiu um dia cedo em direção ao norte, e, marchando sempre paralelamente à praia, caminhou até o anoitecer. Quando, no dia seguinte, o sol se levantou viu que este se elevava quase à sua direita; já não era, pois, em sua frente sobre o mar, como dantes.


Por isso concluiu que a praia se dirigia para oeste. Durante todo o segundo dia continuou a sua excursão. Quando queria andar depressa, passava pelo meio das árvores da floresta com a rapidez de um esquilo. Naquela tarde o sol mergulhou diretamente no mar, do lado oposto à terra. Então o homem-macaco descobriu a verdade de que tinha suspeitado. Rokoff tinha-o colocado numa ilha. Ele devia ter previsto esse fato! Se havia qualquer plano que tornasse mais crítica a sua posição, esse tinha de ser o adotado pelo russo. Que outra coisa poderia ser mais terrível que deixá-lo durante toda a vida na dúvida, em uma ilha deserta? Rokoff teria por certo navegado diretamente para o continente, onde seria relativamente fácil para ele achar os meios de entregar o pequeno Jack à gente cruel e selvagem, que, como ele ameaçara em sua carta, trataria da criação do pequeno. Tarzan estremeceu ao pensar quanto o filho deveria sofrer em tal meio, mesmo se caísse nas mãos de indivíduos cujas intenções fossem das melhores. O homem-macaco tinha tido experiência suficiente com os selvagens de baixa categoria da África para saber que mesmo aí se podem encontrar as virtudes mais rudes de caridade e humanidade: porém, a vida aí era, nas melhores condições, unicamente uma série de terríveis privações, perigos e sofrimentos. Havia ainda a pavorosa sorte que aguardava a criança quando chegasse a ser homem. Os costumes horríveis que fariam parte da sua criação seriam por si sós suficientes para apartá-lo para sempre do convívio com os da sua própria raça e da sua pátria. Um canibal! O seu filho, um selvagem comedor de gente! Era horrível imaginar semelhante hipótese.


Os dentes limados, o nariz rachado, o rosto horrivelmente retalhado! Tarzan soltou um gemido. Se ao menos pudesse sentir a garganta daquele russo demoníaco entre os seus dedos de aço! E Jane! Que tormentos de dúvida, medo e incerteza devia estar sofrendo! Sentiu que o seu estado era infinitamente menos terrível que o dela, pois ele ao menos sabia que uma das suas queridas afeições estava em segurança em casa, enquanto ela não tinha idéia alguma do lugar onde se achariam seu marido e seu filho. Era bom para Tarzan que não adivinhasse a verdade, pois tal conhecimento lhe teria aumentado cem vezes o sofrimento. Enquanto caminhava vagarosamente pela selva, a mente absorvida nestes tristes pensamentos, chegou aos seus ouvidos um barulho estranho, como alguma coisa que arranhava e que ele não podia explicar. Cuidadosamente caminhou em direção de onde partia o ruído. Viu então o que era: uma enorme pantera presa por baixo duma árvore caída. Quando Tarzan se aproximou o animal virou-se, rosnando, esforçando-se para se libertar; porém, o tronco da árvore sobre as costas e os galhos embaraçados segurando-lhe as pernas não o deixavam mexer-se senão poucas polegadas em qualquer direção. O homem-macaco parou diante do gato indefeso, e colocou uma flecha no arco para desferi-la contra o animal que de outra forma morreria de fome. Quando, porém, já ia esticar o arco, uma idéia repentina fê-lo deter-se. Para que roubar à pobre criatura a vida e a liberdade, quando seria tão fácil restituir-lhe ambas! Tinha certeza, pela maneira como a pantera movia todos os membros, na luta vã para reconquistar a liberdade, que a sua espinha não estava quebrada, bem como nenhum dos seus membros.


Afrouxando, pois, a corda, repôs a flecha na aljava e, atirando o arco sobre o ombro, aproximou-se do animal prisioneiro. A pantera ronronava brandamente, como fazem os próprios gatos quando estão contentes e satisfeitos. Era na linguagem de Sheeta o melhor indício para um avanço amigável, que Tarzan podia fazer. O animal cessou de rosnar e encarou o homem-macaco. Para levantar o grande peso da árvore, era necessário chegar ao alcance daquelas compridas e fortes garras, e quando a árvore tivesse sido removida o homem estaria completamente à mercê do animal. Mas o medo era uma coisa desconhecida para Tarzan dos Macacos. Tendo assim decidido, agiu prontamente. Sem hesitar, penetrou pelo meio dos galhos embaraçados ao lado da pantera, a qual, rosnando ainda amistosa e conciliadoramente, voltou a cabeça para Tarzan, fitando-o firmemente — como quem indaga. Os dentes compridos estavam à mostra, porém, mais em defesa que ameaçadores. Tarzan pôs um ombro por baixo do tronco da árvore. Sua perna nua roçava contra o pêlo sedoso do gato tão perto estava o homem do grande animal. Vagarosamente Tarzan estendeu os seus fortes músculos. A

grande

árvore,

com

seus

galhos

trançados

ergueu-se

gradualmente de sobre a pantera, que, sentindo o peso diminuir, ligeiramente saiu de baixo. Tarzan deixou então recair a árvore, e os animais se viraram a fim de olhar um para o outro. Um sorriso terrível pairava nos lábios do homem-macaco, pois sabia que tinha arriscado a vida para livrar este habitante selvagem da selva. Não lhe teria causado surpresa, se o gato lhe tivesse pulado em cima no instante em que foi solto. Mas o gato não fez isto. Ao contrário, ficou a alguns passos da árvore, vendo o homem-macaco sair do labirinto de galhos caídos.


Uma vez fora, Tarzan estava a menos de três passos da pantera. Poderia ter subido nos galhos mais altos das árvores do lado oposto, pois Sheeta não pode subir às alturas a que pode subir o homem-macaco; porém alguma coisa, talvez um espírito de bravata, o levou a aproximar-se da pantera, como se quisesse descobrir se qualquer sentimento de gratidão atraía o animal à sua amizade. Quando se aproximou, porém, do poderoso gato, este pulou prudentemente para um lado. O homem-macaco roçou então por ele. Estava a um palmo da goela gotejante. Não querendo interromper o caminho, continuou Tarzan a andar pela floresta. A pantera seguiu então atrás dele, como um cão que acompanha o dono. Durante muito tempo, Tarzan não poderia dizer se o animal o estava seguindo por impulso de seus sentimentos amistosos ou simplesmente porque o espreitava para quando tivesse fome. Teve, porém, finalmente de acreditar que era o primeiro incentivo o que inspirava a ação do animal. Dias depois, o cheiro de uma corça fez que Tarzan subisse a uma árvore, e quando deixou cair o laço em volta do pescoço do animal, chamou Sheeta, emitindo um som semelhante aos que fazia antes, para apaziguar as suspeitas dela. Mas o som desta vez foi um pouco mais alto e mais agudo, igual ao que tinha ouvido às panteras depois que matavam algum animal, quando andavam caçando aos pares. Quase imediatamente houve um estalido no mato próximo, e o corpo comprido e flexível do seu estranho companheiro apareceu. À vista do corpo de Bara e sentindo o cheiro de sangue, a pantera soltou um grito agudo, e momentos depois dois animais se estavam alimentando, lado a lado, com a tenra carne da corça. Durante vários dias este estranho par vagueou pela selva. Quando um dos dois matava qualquer animal, chamava o outro, e assim comiam fartamente, muitas vezes.


Em certa ocasião, quando estavam jantando a carcaça de um javali, que Sheeta tinha matado, Numa, o leão, sério e terrível, irrompeu do mato trançado, bem perto deles. Com um urro de cólera e ameaçador, atirou-se para afastá-los da presa. Sheeta pulou para dentro de um mato próximo, enquanto Tarzan subia para os galhos baixos duma árvore pendente. Aqui o homem-macaco desatou a sua corda de embira, que trazia enrolada no pescoço, e quando Numa ficou parado sobre o corpo do javali com a cabeça erguida em atitude de desafio, Tarzan atirou o laço sinuoso em volta do pescoço coberto de juba, puxando logo a corda com um movimento repentino. Ao mesmo tempo que gritava, chamando Sheeta, ia ele içando o leão para a árvore, até que só as patas traseiras ficaram tocando no chão. Ligeiro, amarrou a corda num grosso galho e quando a pantera, atendendo ao chamado, apareceu novamente, Tarzan desceu da árvore, ao lado de Numa, que se debatia furioso, e com a comprida e aguda faca atirouse a ele de um lado, enquanto Sheeta, por outro lado, atacava também o leão. A pantera rasgou e despedaçou Numa do lado direito, enquanto o homem-macaco afundava a faca de pedra do outro lado, de forma que, antes que o rei dos animais pudesse partir a corda com as suas garras, ficou pendurado, morto e inofensivo, no laço. Então reboou pela selva um grito simultâneo de duas gargantas selvagens: o grito de vitória do macaco e o da pantera, unidos num só grito horrível e medonho. Quando as últimas notas desapareceram num lamento continuado e trêmulo, mais ou menos vinte guerreiros pintados, arrastando a sua comprida canoa de guerra para a praia, pararam para escutar, e olharem fixamente na direção da selva.


CAPÍTULO 5: Mugambi Depois de ter percorrido toda a costa da ilha, e feito várias explorações no interior, Tarzan se convencera de que era ali o único ente humano. Não achou em parte alguma sinal de que homens tivessem estado, mesmo temporariamente, na ilha, embora não ignorasse que a vegetação viçosa dos trópicos apaga tudo, até o mais permanente dos monumentos humanos. Isso acontece tão rapidamente que era bem possível que se enganasse em suas conclusões. No dia seguinte à morte de Numa, Tarzan e Sheeta se encontraram com a tribo de Akut. À vista da pantera os grandes macacos fugiram, mas depois de algum tempo Tarzan conseguiu chamá-los de novo. Ocorreu-lhe que seria ao menos uma experiência interessante tentar reconciliar estes inimigos hereditários. Ele bendizia qualquer coisa que lhe ocupasse o tempo e a mente, distraindo-o dos pensamentos tristes que o preocupavam sempre que ficava sem fazer nada. Para comunicar o seu plano aos macacos não era demasiadamente difícil, apesar do seu vocabulário limitado. Mas gravar no pequeno e malvado cérebro de Sheeta, a idéia de que teriam de caçar associados, era uma tarefa quase além das forças do homem-macaco. Tarzan, entre as suas outras armas, possuía um varapau comprido e grosso. Depois de amarrar a corda em volta do pescoço da pantera serviu-se deste instrumento para convencer o animal impertinente de que não devia atacar as grandes criaturas cabeludas e varonis, que se tinham aproximado, quando viram para que servia a corda ao redor do pescoço de Sheeta. Duas vezes a pantera se virou contra Tarzan, rosnando para o homem-macaco; este, porém, bateu-lhe com força no focinho sensível, inculcando-lhe desta forma um respeitável receio do pau e dos macacos que estavam atrás de Tarzan.


Seria uma questão a debater se a causa original da sua amizade para Tarzan ainda estava de qualquer forma bem presente na memória da pantera. É de crer, entretanto, que essa razão primária, auxiliada e incitada pelo hábito dos últimos dias, tinha concorrido muito para obrigar o animal a tolerar um tratamento das mãos do homem-macaco, que o teria atirado sobre a garganta de qualquer outra criatura. Haveria também outra força compulsória: a da vontade do homem executando a sua poderosa influência sobre esta criatura de baixa categoria. Era essa de fato a prova mais forte da supremacia de Tarzan sobre Sheeta e os outros animais da selva, que haviam, há tempos, caído sob o seu domínio. Seja como for, durante alguns dias, o homem, a pantera e os grandes macacos vaguearam pelos seus esconderijos selvagens, lado a lado, matando juntos e repartindo as presas uns com os outros. De todo o bando feroz e selvagem nenhum, porém, era mais terrível que o poderoso animal de pele lisa, que tinha sido poucos meses antes uma figura familiar em muitos salões londrinos. Às vezes, os animais se separavam para seguir as suas próprias inclinações por uma hora ou um dia. Foi numa destas ocasiões, quando o homem-macaco, depois de vaguear por entre as árvores em direção à praia, se estendeu ao sol quente sobre a areia, que na pequena iminência de um cabo próximo um par de olhos penetrantes o descobriram. Por momentos o dono dos olhos contemplou admirado a figura do homem branco selvagem aquecendo-se aos raios daquele sol quente e tropical. Em seguida, voltou-se, fazendo sinal para alguém que estava atrás. Logo outro par de olhos fixou-se, igualmente, no homem-macaco. Não parou aí: outro e outro, vinte ou mais guerreiros selvagens, horrivelmente enfeitados, estavam deitados sobre os ventres ao longo da crista do cume, vigiando o estranho de pele branca.


Como estavam a favor do vento, o cheiro deles não foi sentido pelo homem-macaco, o qual não percebeu também o avanço cuidadoso deles pela beira do promontório e por baixo do fértil capim, em direção da praia areenta onde Tarzan estava. Eram indivíduos grandes, todos eles, com os seus toucados bárbaros e as caras grotescamente pintadas, muitos ornamentos de metal e penas magnificamente coloridas, que lhes aumentavam a aparência selvagem e feroz. Uma vez ao pé do cume, levantaram-se cautelosamente e dobrados quase pelo meio, avançaram silenciosamente para o homem branco que não dera pela presença deles. Traziam nas mãos as suas pesadas clavas de guerra, que agitavam de modo ameaçador. O sofrimento moral que os tristes pensamentos causavam a Tarzan teve o efeito de amortecer-lhe as faculdades penetrantes e perceptíveis, o que permitiu que os selvagens avançassem até quase perto dele, antes que Tarzan percebesse que não estava mais sozinho na praia. Mas seu espírito e seus músculos estavam acostumados a agir tão prontamente em conjunto, ao menor alarme, que num salto pôs-se de pé, encarando os seus inimigos, logo que verificou que havia alguma coisa atrás dele. Quando rapidamente se pôs de pé os guerreiros saltaram sobre ele com as clavas levantadas e soltando gritos selvagens. Mas o primeiro caiu logo morto a um golpe do comprido e grosso varapau do homem-macaco; e, rápido, a flexível e vigorosa figura saltou para o meio deles, batendo a torto e a direito, com tal fúria, poder e precisão, que trouxe um verdadeiro pânico às fileiras dos negros. Recuaram um pouco, mas não fugiram. Reuniram-se então em confabulação a pequena distância do homem-macaco, que ficou parado com os braços cruzados e um meio sorriso nos lábios, olhando firme para eles. Durou pouco esta trégua. Avançaram mais uma vez sobre ele, brandindo as


suas pesadas lanças. Estavam entre Tarzan e a selva, num pequeno semicírculo. Ao homem-macaco parecia difícil escapar à carga final quando todas as grandes lanças fossem atiradas simultaneamente contra ele, pois ainda que tentasse fugir não havia outro caminho senão varando as fileiras dos selvagens. A sua situação era, na verdade, bem crítica, quando uma idéia lhe ocorreu, iluminando-lhe o rosto com um largo e tranqüilo sorriso. Os guerreiros estavam ainda a pequena distância, avançando vagarosamente e fazendo, como é costume, um barulho horrível com os seus gritos selvagens e o bater dos pés nus sobre o chão, enquanto pulavam numa fantástica dança de guerra. Foi então que o homem-macaco levantou a sua voz, soltando uma série de gritos selvagens e terríveis. Os negros pararam de repente. Olharam uns para os outros, intrigados, pois eram gritos tão horríveis, que o que eles faziam nem se ouvia. Nenhuma garganta humana poderia emitir aquelas notas bestiais. Teriam disso certeza se com os seus próprios olhos não houvessem visto o homem branco abrir a boca para soltar aqueles horríveis gritos. Mas hesitaram só por um momento. De comum acordo continuaram o seu avanço fantástico sobre a sua presa. Nesse momento, porém, um estalido na selva, atrás deles, os fez parar novamente, e quando viraram para olhar na direção deste novo barulho, surgiu aos seus olhos assustados uma cena que gelaria o sangue de homens ainda mais corajosos do que os Wagambis. Pulando da vegetação entrelaçada da beira da selva irrompeu a enorme pantera, com os olhos chamejantes e os dentes à mostra. Atrás dela vinham poderosos macacos cabeludos caminhando rapidamente, meio eretos sobre as pernas curtas e tortas, os braços compridos tocando no chão, com os nós dos dedos duros sustentando o peso dos seus corpos enquanto se balançavam, no seu avançar grotesco.


Os animais de Tarzan acudiam em resposta ao seu chamado. Antes que os Wagambis pudessem recuperar o sangue frio, a terrível horda avançou sobre eles de um lado e Tarzan dos Macacos, do outro. Pesadas lanças foram jogadas e poderosas clavas de guerra brandidas, e embora alguns macacos caíssem para nunca mais se levantar, da mesma forma também caíram os Wagambis. Os dentes cruéis e as garras dilacerantes de Sheeta rompiam e rasgavam as carnes negras. Os poderosos dentes amarelos de Akut acharam a jugular de mais de um selvagem de pele lisa, e Tarzan dos Macacos parecia estar ao mesmo tempo em toda parte, incitando os seus ferozes aliados e matando muitos com a sua comprida e fina faca. Em um momento os negros tinham-se dispersado para salvar as suas vidas, mas dos vinte que se arrastaram pelos lados cobertos pela grama do promontório, somente um guerreiro conseguiu escapar à horda, que lhe tinha matado os companheiros. Esse era Mugambi, chefe dos Wagambis de Ugambi. Quando desapareceu no meio de vegetação embaraçada e viçosa sobre o cume, somente os olhos penetrantes do homem-macaco viram a direção da sua fuga. Deixando à sua matilha, para se satisfazer, a carne das suas vítimas — carne que ele não podia comer — Tarzan dos Macacos perseguiu o único sobrevivente da sangrenta luta. Pouco além do cume avistou o negro, correndo aos pulos na direção duma comprida canoa de guerra. Silencioso como a sombra, o homem-macaco correu atrás do negro aterrorizado. Na mente do homem branco nasceu um plano novo, despertado pela vista da canoa de guerra. Se estes homens tinham aportado àquela ilha, vindos de outra ilha, ou do continente, porque não utilizar a sua embarcação, a fim de encaminhar-se para o país do qual tinham vindo? Evidentemente era um país habitado, tendo sem dúvida comunicação ocasional com o continente, se não fosse mesmo o próprio continente da África.


Uma mão pesada caiu sobre o ombro de Mugambi que se escapava, antes que percebesse que estava sendo perseguido. Quando se virou para lutar com o seu assaltante, dedos de gigante apertaram-lhe os pulsos e atiraram-no por terra, cavalgando-lhe Tarzan o corpo, antes que ele pudesse defender-se. Na linguagem da Costa Ocidental, Tarzan falou ao homem: — Quem és tu? — perguntou ele. — Mugambi, chefe dos Wagambis — respondeu o negro. — Pouparei a tua vida — disse Tarzan — se prometer ajudar-me a deixar esta ilha. Que responde? — Eu te auxiliarei — respondeu Mugambi. — Mas agora, que mataste todos os meus guerreiros, não sei se eu mesmo posso deixar teu país, pois não haverá ninguém para manejar os remos, e sem remadores não podemos atravessar o mar. Tarzan levantou-se, permitindo que o prisioneiro ficasse de pé. Este era um exemplar magnífico da raça negra — um corpo igual em estatura ao do homem branco que o encarava. — Vem comigo — disse o homem-macaco, e voltou para trás na direção de onde podiam ouvir o rosnar e grunhir da matilha que se regalava. Mugambi acompanhou-o. — Eles nos matarão — disse o negro. — Penso que não — replicou Tarzan. São meus amigos. O negro ainda hesitou, receoso de aproximar-se das terríveis criaturas que se estavam regalando com os corpos dos seus guerreiros, mas Tarzan forçou-o a acompanhá-lo, e logo os dois saíram da selva, mostrandose claramente. À vista dos homens, os animais olharam para cima, rosnando ameaçadoramente. Mas Tarzan entrou no meio deles, puxando pela mão o trêmulo Wagambi. Como tinha ensinado os macacos a aceitarem Sheeta, assim também os ensinou a adotar Mugambi, e com muito mais facilidade. Mas


Sheeta não podia compreender que, tendo sido chamada para devorar os guerreiros de Mugambi, não lhe fosse permitido proceder da mesma forma com Mugambi. Todavia, como já estava satisfeita, contentou-se em andar à volta do selvagem cheio de terror, rosnando baixo e ameaçadoramente, com os olhos flamejantes e malignos fixos no negro. Mugambi, de sua parte, agarrara-se a Tarzan; o homem-macaco mal podia conter um sorriso pela condição miserável a que o medo o tinha reduzido. Finalmente o homem branco tomou a pantera pelo pescoço, e puxando-a para bem perto do Wagambi, dava-lhe uma forte pancada sobre o nariz cada vez que ela rosnava para o estranho. À vista disso — um homem espancando com as mãos desarmadas um dos seres mais implacáveis e ferozes da fauna carnívora da floresta — os olhos de Mugambi quase lhe saltavam das órbitas, tão grande o seu espanto. Tomou-se de respeito pelo grande homem branco que o tinha feito prisioneiro. Era mesmo mais do que respeito: quase adoração. A educação de Sheeta progrediu tão bem que em pouco tempo Mugambi deixou de ser o objeto da sua atenção faminta, e o negro sentia-se um pouco mais tranqüilo na sua companhia. Dizer

que

Mugambi

estava

inteiramente

satisfeito

ou

despreocupado nestas novas condições, não seria bem a verdade. Os seus olhos rolavam sempre apreensivos de um para outro lado, quando acontecia ora, um, ora outro do bando feroz chegar perto dele. Pode-se mesmo dizer que a maior parte do tempo o que mais se via dele era principalmente o branco dos olhos. Juntos, Tarzan e Mugambi, com Sheeta e Akut, ficaram de emboscada para apanhar a corça, e quando, a uma palavra do homem-macaco os quatro pularam sobre o animal assustado, o negro teve a certeza que a


pobre criatura morrera de susto antes mesmo de ter sido tocada por qualquer dos grandes animais. Mugambi preparou fogo e cozinhou a sua porção da caça. Mas Tarzan, Sheeta e Akut rasgaram as deles, cruas, com os dentes agudos, rosnando entre si, quando algum parecia querer tomar a parte do outro. Não era, afinal de contas, estranho que os modos do homemmacaco se parecessem mais com os dos animais, do que com os dos negros selvagens. Somos, todos nós, escravos do hábito e quando a necessidade de instruir-nos em hábitos superiores deixa de existir em nós, caímos natural e facilmente nos modos e costumes, que existem dentro de nós atavicamente. Mugambi, desde criança, não tinha comido carne que não estivesse cozida; ao passo que Tarzan, por seu lado, nunca tinha experimentado comida cozida de qualquer espécie até chegar quase à idade adulta; só nos últimos três ou quatro anos é que passara a comer carne cozida. Não foi somente o hábito de quase toda a sua vida que o incitou a comê-la crua. Foi também o desejo de seu paladar. Para ele carne cozida era carne estragada, em comparação com a carne suculenta e sumarenta duma caça recente e quente ainda de vida. Que pudesse comer com prazer carne crua, que ele mesmo enterrara semanas antes, e que chegasse a apreciar roedores e bichos nojentos, parece a nós outros, que temos sido sempre civilizados, um fato revoltante. Mas, se nós tivéssemos aprendido em criança a comer estas coisas, e tivéssemos visto todos em torno de nós comê-las também, não nos pareceriam agora mais nojentas do que muitas das nossas maiores gulodices, que um canibal selvagem africano olharia com repugnância e às quais torceria o nariz. Há, por exemplo, uma tribo nas vizinhanças do Lago Rudolph, que não come nem carneiro nem gado, embora os seus vizinhos façam isso todos os dias. Próximo existe outra tribo que se regala com carne de burro — o que


parece um costume revoltante às tribos que a cercam e que não seriam capazes de fazer isso. Quem poderá dizer que é bom comer caracóis, ostras, pernas de rãs, mas é nojento comer bichos e besouros? Por acaso ostras cruas, patas de bois e rabos, são menos revoltantes que a carne limpa e tenra duma corça, que se acaba de matar? Tarzan ocupou-se nos dias seguintes em tecer uma vela de cascas de árvore com a qual ia equipar a canoa. Desanimara de poder ensinar os macacos a manejar os remos, embora conseguisse fazer alguns deles embarcarem na frágil embarcação, enquanto ele e Mugambi remavam por dentro do recife, onde a água estava calma. Durante estes passeios tinham colocado remos nas mãos dos macacos, para os fazer imitar os movimentos dele e de Mugambi. Mas era-lhes tão difícil concentrarem muito tempo a atenção em qualquer coisa, que logo percebeu que levariam semanas de paciente treinamento, antes que pudessem fazer qualquer uso efetivo de sua aprendizagem, caso realmente a adquirissem. Havia, contudo, uma exceção: era Akut. Desde o princípio demonstrou real interesse por esse novo esporte. Mostrou um grau de inteligência muito mais alto que o obtido por qualquer dos da tribo. Ele parecia compreender a utilidade dos remos, e quando Tarzan notou esse fato esforçou-se para explicar na pobre linguagem do antropóide como os remos podiam ser usados com vantagem. Por Mugambi soube Tarzan que o continente ficava a pouca distância da ilha. Concluiu que os guerreiros Wagambis se tinham aventurado longe demais em sua frágil embarcação, e, apanhados pela maré forte e um vento rijo de terra, foram arrastados até perderem esta de vista. Depois de remarem uma noite inteira, pensando que iam na direção do continente, viram a ilha ao levantar do sol, e, ainda supondo que fosse o continente, saudaram-


na com alegria. O próprio Mugambi só soube que era uma ilha quando Tarzan lho disse. O chefe dos Wagambis estava em dúvida, quanto ao êxito da vela, pois nunca tinha visto usar tal artifício. O seu país era situado muito acima do largo rio de Ugambi, e essa fora a primeira ocasião que ele e alguns de sua tribo fizeram caminho para o oceano. Tarzan, contudo, estava certo de que, se apanhasse bom vento de oeste, poderia fazer navegar a pequena embarcação na direção do continente. Em todo caso, decidiu que seria preferível morrer no caminho a ficar indefinidamente na ilha que, de resto, não figurava em nenhum mapa geográfico, à qual não havia por isso probabilidade alguma de vir algum navio. Foi assim que, quando na boa direção soprou o primeiro vento favorável, deu ele início à viagem, levando consigo uma tripulação, a mais estranha e mais selvagem de que jamais se teve notícia. Mugambi e Akut foram com ele. Com ele foram também Sheeta, a pantera, e uma dúzia de grandes macacos da tribo de Akut.


CAPÍTULO 6: Uma tripulação horrenda A canoa de guerra com a sua carga selvagem movia-se vagarosamente, na direção da abertura do recife pela qual deveria passar, a fim de alcançar o alto mar. Tarzan, Mugambi e Akut manejavam os remos, pois a proximidade da praia fazia que o vento do oeste embatesse ainda frouxo na pequena vela. Sheeta encolhia-se na proa aos pés do homem-macaco, pois parecera melhor a Tarzan conservar sempre o bicho feroz afastado dos outros membros da companhia quanto fosse possível, porque não seria necessário grande provocação para fazê-lo lançar-se à garganta de qualquer, mesmo do homem branco, a quem ele evidentemente considerava como o seu chefe. Na popa estava Mugambi, e defronte dele acaçapava-se Akut. Entre Akut e Tarzan, os doze macacos cabeludos estavam sentados de cócoras pestanejando, e voltando de vez em quando os olhos com saudades para a praia. Tudo foi bem até que a canoa transpôs o recife. A partir daí a brisa bateu na vela, fazendo com que a rude embarcação jogasse sobre as ondas, que aumentavam cada vez mais com o afastamento da praia. A agitação da canoa fez com que os macacos ficassem cheios de terror. Primeiramente se mostraram inquietos e começaram a se queixar e choramingar. Com dificuldade Akut sossegou-os durante algum tempo; mas quando uma grande onda bateu na embarcação simultaneamente com uma pequena rajada de vento, o terror deles excedeu todos os limites, e pondo-se imediatamente de pé, quase viraram a canoa antes que Akut e Tarzan, juntos, pudessem sossegá-los. Finalmente a calma foi restabelecida, e os macacos acostumaram-se aos estranhos movimentos da sua embarcação. Acabaram por não dar mais trabalho algum. A viagem daí por diante se fez sem novidade, o vento continuou firme, e depois de dez horas de navegação, as sombras longínquas da costa


apareceram pela proa, diante dos olhos penetrantes do homem-macaco. Era escuro demais para distinguir se tinham se aproximado da foz do Ugambi. Por isso Tarzan entrou pelo recife, no porto mais próximo, para esperar a madrugada. Assim que a embarcação tocou na praia rodou de bordo, e virou, com toda a sua tripulação, lutando todos como loucos para alcançar a terra firme. Outra onda os rolou repetidas vezes; mas todos conseguiram arrastar-se para a praia, e um momento depois a feia embarcação era também atirada ao lado deles. Durante o resto da noite os macacos acocoraram-se bem juntos uns dos outros para se aquecerem, enquanto Mugambi fez perto deles uma fogueira junto da qual se agacharam para buscar calor. Tarzan e Sheeta, apesar de tudo, eram de outra opinião, pois nem um nem outro temiam a noite na selva, e o desejo forte da fome fez com que ambos partissem para o escuro da floresta, à procura de caça. Caminhavam, lado a lado, quando havia lugar para os dois andarem juntos. Nos outros casos, andavam separados, um atrás e outro na frente. Foi Tarzan que primeiro sentiu o cheiro da carne — um búfalo — e logo os dois se aproximaram, sorrateiramente, do animal que dormia no meio de um bambuzal, perto de um rio. Eles foram-se chegando cada vez mais para perto do búfalo. Sheeta ia pela direita e Tarzan pela esquerda. Tinham já várias vezes caçado juntos, de forma que sabiam trabalhar de comum acordo. Tinham um modo de rosnar baixo, que lhes servia como sinal. Por um momento ficaram bem quietos perto da presa. De repente, a um sinal do homem-macaco, Sheeta lançou-se sobre as grandes costas do búfalo, enterrando os fortes dentes no pescoço do bicho. Instantaneamente o bruto pôs-se de pé, saltando, com um berro de dor e raiva; ao mesmo tempo


Tarzan precipitou-se sobre o seu lado esquerdo com a faca de pedra, ferindoo repetidamente na paleta. Uma das mãos do homem-macaco agarrou a crina grossa quando o bruto se pôs a correr como um louco no meio do bambuzal. Sheeta agarrou-se ferozmente ao pescoço e às costas da vítima mordendo-a bem fundo, procurando alcançar-lhe a espinha. O bruto, berrando sempre, arrastou por uns cem metros os seus dois antagonistas selvagens, até que finalmente a lâmina da faca de Tarzan encontrou-lhe o coração. Com um berro final tombou de cabeça para baixo sobre a terra. Então Tarzan e Sheeta regalaram-se até ficarem satisfeitos. Depois da refeição os dois se encolheram juntos um do outro. A cabeça do homem descansava sobre um dos flancos mosqueados da pantera. Logo depois da aurora acordaram e comeram de novo. Voltaram então à praia, a fim de que Tarzan pudesse conduzir o resto da caça ao bando. Quando acabaram a refeição os brutos puseram-se a dormir. Tarzan e Mugambi partiram à procura do rio Ugambi. Mal tinham andado cem metros chegaram de repente perto de um rio, que o negro logo reconheceu como sendo aquele pelo qual ele e os seus guerreiros tinham descido para o mar quando fizeram a sua mal afortunada expedição. Os dois seguiram o rio até o oceano. Descobriram que desembocava em uma baía que não distava mais de uma milha do ponto da praia em que a canoa tinha sido arremessada na véspera. Tarzan ficou satisfeito com a descoberta, pois sabia que na vizinhança de um grande rio encontraria decerto indígenas, e de alguns destes tinha alguma esperança de obter notícias de Rokoff e da criança, pois tinha quase certeza que o russo se livraria do menino tão depressa quanto possível, depois de ter-se livrado de Tarzan. Este e Mugambi empurraram a canoa para o mar. Era uma façanha bem difícil, por causa da arrebentação das ondas que se atiravam


continuamente sobre a praia. Mas afinal conseguiram o que desejavam e puseram-se a remar pela costa, na direção da foz do Ugambi. Aí sentiram considerável dificuldade em forçar a entrada contra a corrente e a vazante da maré; mas aproveitando-se dos remansos, conseguiram ao pôr do sol chegar a um ponto quase defronte do lugar onde tinham deixado a dormir o bando dos animais. Amarrando bem a embarcação a um galho pendente, caminharam os dois para a selva, onde se encontraram logo com alguns dos macacos comendo fruta, um pouco além do bambuzal onde tinha caído o búfalo. Sheeta não aparecia, e nem voltou naquela noite. Tarzan pensou que ela estivesse vagueando, à procura dos da sua própria espécie. Cedo, no dia seguinte, o homem-macaco conduziu o bando para o rio, e enquanto caminhava emitia uma série de gritos agudos. Logo, de muito longe e fracamente veio um grito como resposta, e meia hora depois o corpo flexível de Sheeta apareceu de um salto no lugar em que os do bando estavam embarcando com cuidado na canoa. O grande animal, com as costas arcadas e rosnando como um gato contente, roçou-se contra o homem-macaco. A uma palavra deste, pulou agilmente para o seu primitivo lugar na proa da canoa. Quando todos estavam em seus lugares, descobriram que faltavam dois dos macacos de Akut, e embora tanto o macaco-rei como Tarzan os chamassem durante quase uma hora, não responderam. Não foi possível esperá-los mais. A canoa partiu sem eles. Como estes dois que faltavam eram precisamente os que tinham manifestado menos desejo de acompanhar a expedição, e os que mais tinham sofrido de susto durante a viagem, Tarzan concluiu que tinham preferido fugir a viajar de novo na canoa. Quando o bando já aproava para a beira do rio, pouco depois do meio-dia, à procura de comida, um selvagem magro e nu observou-os durante algum tempo por detrás do abrigo de ramos que margeavam as bordas do rio.


Pouco depois desapareceu, rio acima, antes que qualquer dos que iam na canoa o descobrisse. Pulou, como um veado, ao longo da vereda estreita, até que ansioso de transmitir as notícias entrou a correr por uma aldeia indígena, algumas milhas acima do ponto, no qual Tarzan e seu bando tinham parado para caçar. — Outro homem branco vem aí! — gritou para o chefe que estava agachado diante da entrada de sua choupana circular. — Outro homem branco, e com ele muitos guerreiros. Vêm numa grande canoa de guerra para matar e roubar, como fez aquele outro de barba negra que acaba de nos deixar. Kaviri pôs-se logo de pé. Ele tinha tido bem recentemente uma prova do que valiam os homens brancos, e seu coração de selvagem estava cheio de amargura e ódio. Minutos depois se ouvia o barulho dos tambores de guerra na aldeia, chamando os caçadores da floresta e os lavradores dos campos. Sete canoas de guerra foram descidas e guarnecidas por guerreiros com as caras pintadas e as cabeças cobertas de penas. Lanças compridas enchiam os rudes barcos de guerra, que deslizavam silenciosamente, impelidos por músculos gigantescos que retesavam as peles de ébano resplandecentes. Em caminho, não rufaram mais os tambores, nem tocaram a trombeta indígena. Kaviri era um guerreiro astuto e estava disposto a não correr perigos inúteis. Desceria silenciosamente com as suas sete canoas sobre a do homem branco, e antes que as espingardas desse pudessem infligir algum dano ao seu povo teria vencido o inimigo pela força do número. A canoa de Kaviri ia na frente das outras, a pequena distância, quando ao fazer uma curva rápida do rio, arrebatada pela correnteza, chegou de repente perto daquilo que Kaviri procurava. Tão perto estavam as duas canoas, que o negro somente teve tempo de notar a cara branca na proa da embarcação. Antes que as duas


embarcações se tocassem já os homens estavam de pé, gritando como diabos loucos, apontando suas longas lanças contra os tripulantes da outra canoa. Mas um momento depois, quando Kaviri pôde verificar a natureza da tripulação que guarnecia a canoa do homem branco, teria dado certamente todas as contas e arame de ferro que possuía para estar a salvo, em sua aldeia distante. Mal se tinham abordado as duas embarcações quando os macacos horrorosos de Akut se levantaram, rosnando e gritando, no fundo da canoa, e, com os braços compridos e cabeludos bem estendidos, tiraram as lanças ameaçadoras das mãos dos guerreiros de Kaviri. Os negros foram acometidos de terror, mas não havia outra coisa a fazer senão combater. Rapidamente as outras canoas de guerra desceram sobre as duas embarcações. As tripulações estavam ansiosas para lutar, pois julgavam que os seus inimigos eram homens brancos e remadores indígenas. Juntaram-se ao redor da embarcação de Tarzan. Mas quando viram a natureza do inimigo, todas menos uma viraram de bordo, remando rapidamente rio acima. A que ficou achegara-se muito perto da embarcação do homem-macaco antes que a tripulação percebesse que os seus companheiros estavam lutando contra demônios em vez de homens. Quando as duas canoas se tocaram Tarzan disse algumas palavras baixinho a Sheeta e Akut, de forma que antes que os guerreiros atacantes pudessem retirar-se, saltou-lhes em cima, com um grito de fazer gelar o sangue nas veias, uma enorme pantera, e pela outra extremidade da canoa subiu um grande macaco. De um lado a pantera fez um estrago horrível, com as suas poderosas garras e dentes compridos e agudos, enquanto Akut na outra extremidade afundava os seus dentes caninos amarelos nos pescoços daqueles que lhe chegavam ao alcance, atirando os negros cheios de terror para fora da canoa enquanto ele abria caminho para o centro dela.


Kaviri estava tão ocupado com os demônios que tinham entrado em sua própria embarcação que não podia oferecer nenhum auxílio aos guerreiros da outra. Um diabo branco gigantesco tinha arrancado a lança de Kaviri como se este, o poderoso selvagem, fosse um recém-nascido. Monstros cabeludos estavam subjugando os seus homens que lutavam, e um negro, também chefe como ele, estava lutando ombro a ombro com o bando horroroso que se lhe opunha. Kaviri lutou corajosamente contra o seu antagonista, pois sentia que a morte já o estava chamando, e assim o menos que podia fazer era vender a sua vida tão caro quanto fosse possível; logo, porém, se convenceu que o seu maior esforço era completamente inútil contra os músculos e agilidade daquela sobre-humana criatura, a qual, por fim, agarrando-o pelo pescoço, o derrubou no fundo da canoa. A cabeça de Kaviri começou a girar. Os objetos dançavam-lhe confusos e obscuros diante dos olhos. Sentiu uma grande dor no peito e, acreditando chegada a sua última hora, perdeu os sentidos. Quando abriu os olhos, viu com muita surpresa que não estava morto. Jazia fortemente amarrado, no fundo da sua própria canoa. Uma grande pantera estava sentada, olhando para ele. Kaviri estremeceu e fechou os olhos outra vez, esperando que o animal feroz saltasse sobre ele e acabasse de vez com a sua miséria e o seu terror. Depois dum momento, como verificasse que nenhum dente dilacerante se lhe tinha cravado no corpo trêmulo, mais uma vez arriscou-se a abrir os olhos. Além da pantera, viu ajoelhado perto dele o gigante branco, que o tinha subjugado. O homem estava manejando um remo, enquanto, logo atrás, Kaviri viu alguns dos seus próprios guerreiros ocupados no mesmo trabalho. Atrás deles, de cócoras, estavam diversos macacos cabeludos.


Tarzan, vendo que o chefe tinha recobrado os sentidos, dirigiu-lhe a palavra: — Os teus guerreiros dizem-me que és o chefe de um povo numeroso e que o teu nome é Kaviri. — Sim, respondeu o negro. — Por que me atacaste? Eu vim em paz. — Também o outro homem branco veio em paz há três meses, respondeu Kaviri; e depois de lhe termos trazido como presentes um cabrito, mandioca e leite, ele nos atacou com as suas espingardas e matou muitos de minha gente. Só então se foi embora, levando todos os nossos cabritos e muitos dos nossos rapazes e mulheres. — Eu não sou igual a esse outro homem branco, replicou Tarzan. Não te haveria feito mal se não me tivesses atacado. Dize-me como era a cara desse homem mau. Eu estou procurando um que foi também perverso comigo. Talvez seja o mesmo. — Era um homem mal-encarado, com uma grande barba negra; era muito, muito ruim — sim, muito ruim. — Não havia uma criança branca com ele? perguntou Tarzan, com o coração ansioso, enquanto esperava a resposta do negro. — Não — replicou Kaviri — a criança branca não estava na companhia desse homem — estava na companhia dos outros. — Dos outros! exclamou Tarzan — Que outros? — Com aqueles que o homem branco muito ruim estava perseguindo; havia um homem branco, uma mulher e uma criança, com seis carregadores Mosulas. Eles subiram o rio três dias antes de o fazer também o homem branco muito ruim. Penso que estavam fugindo dele. Um homem branco, uma mulher, e uma criança! Tarzan ficou perplexo. A criança deveria ser o seu filho Jack; mas quem poderiam ser a mulher e o homem? Seria possível que um dos companheiros de Rokoff


tivesse conspirado com alguma mulher — que houvesse acompanhado o russo — para roubar-lhe a criança? Se assim era, eles tinham sem dúvida resolvido levar a criança de novo para a civilização, e aí requererem uma recompensa ou conservarem prisioneiro o menino, para negociarem depois o seu resgate. Mas agora que Rokoff tinha conseguido persegui-los no interior, pelo rio selvagem acima, ele talvez os alcançaria, a não ser que, como era mais provável, fossem capturados e mortos pelos mesmos canibais mais acima do Ugambi, aos quais (Tarzan agora estava convencido) era intenção de Rokoff entregar a criança. Enquanto Tarzan falava a Kaviri, as canoas tinham subido seguidamente rio acima na direção da aldeia do chefe. Os guerreiros de Kaviri manejavam os remos nas três canoas lançando de soslaio olhares de pavor aos seus horríveis passageiros. Três dos macacos de Akut haviam sido mortos no combate, mas restavam ainda, com Akut, oito dos medonhos animais, e havia Sheeta, a pantera, Tarzan e Mugambi. Os guerreiros de Kaviri estavam certos de nunca ter visto uma tripulação tão horrível. Esperavam a qualquer momento que esses animais pulassem para cima deles e os dilacerassem. De fato, tudo quanto Tarzan, Mugambi e Akut procuravam evitar era que estes brutos mal-humorados mordessem os corpos nus e brilhantes que roçavam de vez em quando contra eles com os movimentos dos remadores, cujo próprio medo incitava as feras. No acampamento de Kaviri demorou-se Tarzan apenas o tempo suficiente para comer o que os negros lhe forneceram, e arranjar com o chefe uma dúzia de homens que manejassem os remos da canoa. Kaviri consentira e conformava-se de boa mente com qualquer pedido que o homem-macaco lhe pudesse fazer, pois assim apressava a retirada do bando horrível. Mas era mais fácil prometer homens do que fornecê-los, pois quando o seu povo soube das suas intenções, aqueles que


ainda não tinham fugido ganharam sem perda de tempo a floresta, de modo que, quando Kaviri se virou para indicar os que deviam acompanhar Tarzan, viu com espanto que era o único membro da sua tribo que se achava na aldeia. Tarzan não pôde deixar de sorrir. — Eles não parecem sentir grande desejo de nos acompanhar — disse Tarzan; — mas fica quieto aqui, Kaviri, e logo verás teu povo acorrer para o teu lado. Então o homem-macaco levantou-se e, chamando o seu bando, mandou que Mugambi ficasse com Kaviri, e desapareceu na selva com Sheeta e os macacos. Durante meia hora, o silêncio da floresta foi apenas interrompido pelos sons costumeiros da vida fértil que ainda mais aumentam a sua triste solidão. Kaviri e Mugambi ficaram sozinhos na aldeia cercada de estacas, esperando. Súbito, de grande distância, veio um barulho horrível. Mugambi reconheceu o esquisito rugido do homem-macaco. Imediatamente de diferentes pontos do mato se levantaram outros gritos, pontuados de vez em quando pelo urro terrível duma pantera faminta.


CAPÍTULO 7: Traído Os dois selvagens, Kaviri e Mugambi, de cócoras diante da entrada da choupana de Kaviri entreolharam-se. Kaviri mal disfarçava o pavor. — Que é? — murmurou. — É Tarzan e suas feras — respondeu Mugambi. — Mas o que estão fazendo não sei, a não ser que estejam devorando o teu povo que fugiu. Kaviri estremeceu e voltou os olhos com terror na direção da selva. Em toda a sua longa vida na floresta selvagem nunca tinha ouvido barulho tão pavoroso e terrível. Os sons aproximavam-se cada vez mais, e agora de mistura com os gritos assustados de mulheres, de crianças e de homens. Durante vinte longos minutos os gritos horríveis continuaram, até que pareciam bem pertinho da estacada. Kaviri levantou-se para fugir. Mas Mugambi segurou-o, pois tal tinha sido a ordem de Tarzan. Um momento mais, e uma horda de indígenas amedrontados saiu correndo da selva, buscando a proteção das suas choupanas, correndo como carneiros assustados; atrás deles, enxotando-os, como podiam ser enxotadas ovelhas, vinham Tarzan, Sheeta e os horríveis macacos de Akut. Tarzan parou diante de Kaviri com o seu antigo sorriso nos lábios. — O teu povo voltou, disse ele. Agora podes escolher aqueles que têm de me acompanhar e remar na minha canoa. Tremendo, Kaviri ordenou que o seu povo saísse das suas choupanas. Mas ninguém atendeu às ordens do chefe. — Dize-lhes, explicou Tarzan, que se não vierem mandarei as minhas feras atrás deles. Kaviri fez o que o outro lhe dissera, e num instante toda a população da aldeia saiu das choupanas. Com os olhos assustados, essas criaturas selvagens, que vagueavam na rua da aldeia, olhavam para um e outro lado.


Kaviri designou logo uma dúzia de guerreiros para acompanhar Tarzan. Os pobres homens ficaram quase brancos de terror à idéia de terem de ficar tão perto da pantera e dos macacos, no estreito limite das canoas. Quando, porém, Kaviri lhes explicou que não havia meio de escapar e que Tarzan os perseguiria com a sua horda horrível se tentassem fugir ao seu dever, decidiram-se finalmente a marchar, tristes, para o rio e tomaram os seus lugares na canoa. Foi com um suspiro de alívio que o chefe viu a tripulação desaparecer na curva de um promontório, a pequena distância, rio acima. Durante três dias o estranho conjunto avançou cada vez mais para o centro do país selvagem que fica de cada lado do quase desconhecido rio Ugambi. Três dos doze guerreiros desertaram durante aquele tempo, mas como alguns dos macacos tinham finalmente aprendido o manejo dos remos, Tarzan não ficou desanimado com essa falta. Poderia ter viajado muito mais rapidamente por terra, mas acreditava não poder assim conservar reunida a sua própria tripulação selvagem. Parecia-lhe de mais vantagem guardá-los embarcados. Duas vezes por dia, desembarcavam para caçar e comer. De noite dormiam sobre a margem ou em alguma das numerosas ilhotas que pontilhavam o rio. Os indígenas fugiam alarmados diante deles, isso fazia com que só achassem aldeias desertas no seu caminho. Tarzan estava ansioso para abordar alguns dos selvagens que moravam nas margens do rio, mas até então isso não lhe tinha sido possível. Finalmente decidiu continuar por terra, sozinho, deixando os seus companheiros seguir de canoa. Explicou a Mugambi o que tinha em mente, e disse a Akut que obedecesse às ordens do negro. — Eu os encontrarei outra vez dentro de poucos dias. Agora vou adiante para saber o que aconteceu ao homem branco muito mau que eu procuro.


Na parada seguinte Tarzan foi à praia, mas não avistou mais os seus animais. As primeiras poucas aldeias que encontrou estavam desertas, demonstrando que as notícias da chegada do seu bando tinham viajado rapidamente. Ao anoitecer encontrou, porém, um grupo distante de choupanas, cobertas de palha, e cercadas por uma tosca estacada, dentro da qual havia mais ou menos duzentos indígenas. As mulheres estavam preparando a refeição da noite, quando Tarzan dos Macacos apareceu por cima deles nos galhos de uma grande árvore que ficava sobre a estacada. O homem-macaco não sabia como podia entrar em comunicação com este povo sem assustá-lo ou despertar nele o seu amor selvagem de combater. Não tinha agora desejo algum de brigar, pois estava empenhado em uma missão muito mais importante que a de guerrear com cada tribo que por acaso encontrasse. Por fim, acudiu-lhe um plano. Como estava escondido, e não podia ser visto pelos que estavam embaixo, soltou alguns grunhidos roucos, imitando os da pantera. Todos os olhos imediatamente se voltaram para cima em direção à folhagem da árvore. Estava, porém, escurecendo, e nada podiam ver através da folhagem que abrigava o homem-macaco. Tarzan deixou-se cair no chão, fora da estacada, e, com a ligeireza de um veado, correu rapidamente em volta até o portão da aldeia. Aí bateu nas estacas amarradas com cipó, gritando aos indígenas na sua própria linguagem que era um amigo e desejava apenas comida e abrigo para aquela noite. Tarzan conhecia bem a natureza do homem negro. Sabia que o grunhido e os gritos de Sheeta na árvore, por cima deles, fariam que todos


ficassem nervosos, e que o seu bater no portão da estacada, depois do escurecer, aumentaria ainda mais o terror deles. Por isso o não responderem ao seu chamado não foi motivo de surpresa para ele, pois os indígenas ficam receosos de qualquer voz que lhes vem à noite, de fora das estacadas, atribuindo-a sempre a algum demônio ou outro visitante sobrenatural. Continuou, porém, a chamar. — Deixem-me entrar, meus amigos! gritou. Sou um homem branco que persegue o homem branco muito mau que passou por aqui há poucos dias. Venho castigá-lo pelos pecados que cometeu contra mim e contra vocês. Se duvidarem de minha amizade, eu a provarei trepando na árvore, que fica por cima da aldeia, e enxotarei Sheeta para a selva, antes que ela possa pular no meio de vocês; caso não prometam dar entrada e me tratar como amigo, deixarei Sheeta devorá-los a todos. Durante um momento, houve ainda silêncio. Mas a voz de um velho elevou-se finalmente no silêncio da rua da aldeia. — Se você é realmente um homem branco e amigo, te deixaremos entrar; mas primeiro é necessário que enxote Sheeta. — Muito bem, replicou Tarzan. Escuta, e ouvirá Sheeta fugir. O homem-macaco voltou ligeiro para a árvore, e desta vez fez um grande barulho ao passar por entre os galhos, ao mesmo tempo que rosnava ameaçadoramente como faz a pantera, a fim de que os selvagens acreditassem que o grande animal ainda estava lá. Quando alcançou um ponto bem por cima da rua da aldeia sacudiu a árvore com violência, gritando alto para a pantera que fugisse, pois, do contrário, morreria. E pontuava a própria voz com os gritos de um animal enraivecido. A seguir correu para o lado oposto da árvore e para dentro da selva, batendo contra os troncos das árvores no caminho, imitando os grunhidos da pantera, que diminuíam enquanto ela parecia afastar-se cada vez mais.


Alguns minutos depois, Tarzan voltou para o portão da aldeia, chamando os indígenas. — Enxotei Sheeta, disse alto. Agora, deixem-me entrar como prometeram. Durante algum tempo houve o barulho de uma discussão acalorada dentro da estacada, mas por fim, meia dúzia de guerreiros vieram abrir o portão, olhando ansiosamente e com receio quanto à natureza da criatura que deveriam encontrar aí. Não ficaram muito satisfeitos quando viram um homem branco, quase nu; mas quando Tarzan os acalmou, confirmando a sua amizade, abriram um pouco mais a barreira e o deixaram entrar. Quando o portão se tornou a fechar, recobraram os selvagens a confiança. Tarzan, que caminhava pela rua da aldeia na direção da choupana do chefe, viu-se logo cercado por uma porção de homens, mulheres e crianças, todos curiosos por saber quem era o homem branco. Pelo chefe soube que Rokoff tinha subido o rio uma semana antes. Disseram-lhe mais que ele tinha chifres na testa, e era acompanhado por mil demônios. O chefe disse ainda que o homem branco muito mau tinha ficado um mês nessa aldeia. Embora nenhuma destas declarações concordasse com a de Kaviri, que lhe dissera que o russo somente tinha saído da aldeia do chefe três dias antes e que os que o acompanhavam eram menos do que o número agora indicado, Tarzan não ficou admirado com essas contradições, pois estava habituado ao estranho funcionamento das inteligências selvagens. O que mais o interessava era saber que estava na pista certa, em direção ao interior. Nestas circunstâncias, Rokoff não lhe poderia escapar. Depois de várias horas de interrogações e contra-interrogações, o homem-macaco soube que alguns dias antes outro bando tinha precedido o russo — três brancos; um homem, uma mulher e um menino, com diversos Mosulas.


Tarzan explicou ao chefe que o seu grupo o seguiria numa canoa, provavelmente no dia seguinte, e mesmo que ele seguisse adiante deles o chefe devia recebê-los com amizade e sem nenhum receio, pois Mugambi tomaria cuidado que não molestassem o povo do chefe, se fossem bem recebidos. — E agora, concluiu, vou deitar-me debaixo desta árvore para dormir. Estou muito cansado. Não deixem ninguém me perturbar. O chefe ofereceu-lhe uma choupana, mas Tarzan, por suas experiências em moradias indígenas, preferiu ficar ao relento, e, além disso, tinha seus planos que poderiam ser melhor executados se ficasse debaixo da árvore. Deu como razão desse seu desejo a possibilidade de Sheeta voltar, e depois dessa explicação o chefe concordou em deixá-lo dormir debaixo da árvore. A Tarzan sempre lhe pareceu de bom aviso deixar nos indígenas a impressão de que possuía alguns poderes sobrenaturais. Poderia ter entrado na aldeia com facilidade sem bater ao portão, mas acreditava que um desaparecimento repentino e inexplicável quando estava pronto para deixá-los causaria uma impressão mais duradoura sobre as suas mentes infantis, e assim logo que a aldeia ficou adormecida, levantou-se e, pulando nos galhos da árvore acima dele, desapareceu na misteriosa escuridão da selva. Durante o resto da noite o homem-macaco passou rapidamente por entre a folhagem de cima e do meio da floresta. Quando era fácil, preferia os galhos mais altos das grandes árvores, pois aí o caminho estava bem iluminado pela lua; mas tão acostumados se achavam todos os seus sentidos ao severo mundo do seu nascimento que lhe era possível fazer seu caminho mesmo nas sombras densas, perto do chão, movendo-se com facilidade e rapidez. Ninguém, em qualquer cidade, andando por qualquer rua, poderia caminhar com segurança maior ou com um décimo de velocidade do ágil homem-macaco, pelos labirintos escuros.


Ao amanhecer, parou para comer, e depois dormiu durante diversas horas, continuando de novo a caminhar até mais ou menos ao meio-dia. Duas vezes encontrou-se com indígenas e embora tivesse muita dificuldade em aproximar-se deles, conseguiu de ambas as vezes tranqüilizarlhes os receios e intenções guerreiras, e soube que estava na pista do russo. Dois dias depois, ainda seguindo o Ugambi, chegou a uma grande aldeia. O chefe, sujeito mal-encarado, com os dentes aguçados, que muitas vezes denunciam o canibal, recebeu-o com amizade aparente. O homem-macaco estava agora bem fatigado e, pois, determinara descansar durante oito ou dez horas, para tornar-se vigoroso e forte quando alcançasse Rokoff, como tinha certeza que o alcançaria dentro de muito pouco tempo. O chefe disse-lhe que o homem branco barbado havia deixado a sua aldeia na manhã anterior, e que sem dúvida Tarzan poderia alcançá-lo em pouco tempo. O outro bando, o chefe não o tinha visto, nem dele ouvira falar. Foi, pelo menos, o que ele informou. Tarzan não gostou da aparência nem dos modos do selvagem, que parecia, embora fingindo amizade, ter um certo desprezo por aquele homem branco, quase nu, que vinha sem companheiros e não lhe oferecia presentes. Precisava, porém, do descanso e da comida que a aldeia lhe oferecia com menos esforço que a selva, assim como não sabia o que fosse medo do homem, animal, ou demônio, encolheu-se na sombra duma choupana e logo adormeceu. Mal tinha deixado o chefe, quando este chamou dois dos seus guerreiros, a quem murmurou algumas instruções. Momentos depois os corpos lisos e negros estavam correndo ao longo do caminho do rio, riacho acima, na direção do leste. Na aldeia o chefe manteve tranqüilidade completa. Não permitiria que ninguém se aproximasse do visitante que dormia, nem que cantassem ou


falassem em voz alta. Era extremamente solícito, com medo que o seu hóspede fosse perturbado. Três horas mais tarde diversas canoas apareceram silenciosamente no Ugambi. Eram impelidas rapidamente para a frente pelos músculos poderosos das suas tripulações negras. Sobre a margem do rio estava o chefe, com a lança levantada em posição horizontal acima da cabeça, como se isso indicasse de algum modo um sinal combinado, com os que estavam dentro das canoas. Tal era realmente o fim desta sua atitude. Ela significava que o estrangeiro branco ainda dormia sossegadamente dentro da aldeia. Na proa de duas das canoas estavam os mensageiros que o chefe tinha mandado três horas antes. Era evidente que haviam sido despachados para seguir e trazer de volta este bando, e que o sinal feito da margem era o que tinham combinado antes de deixar a aldeia. Dentro de poucos momentos as embarcações chegaram à margem do rio. Os guerreiros indígenas saltaram, e com eles meia dúzia de homens brancos. Eram sujeitos mal-humorados e carrancudos, tais como o homem barbado mal-encarado que os dirigia. — Onde está o homem branco que os teus mensageiros dizem achar-se aqui? — Perguntou ao chefe. — Por aqui bwana, respondeu o indígena. — Cuidadosamente tenho guardado silêncio na aldeia para que ele pudesse dormir até que chegasses. Não sei se é aquele que procura fazer-te mal, mas ele me perguntou várias vezes por tua vinda e a tua partida. Parece-se muito com aquele que descreveste, isto é, com o homem que julgavas seguro no país que chamavas Ilha da Selva. Se não me tivesses contado essa história eu não o teria reconhecido, e então ele poderia ter te perseguido e matado. Se for amigo, nenhum mal lhe será feito; mas ser for inimigo, gostaria muito que me dessem uma carabina e alguma munição.


— Fizeste bem — replicou o homem branco — e terás uma carabina e munição, quer ele seja amigo, quer inimigo, contanto que fiques ao meu lado. — Ficarei ao teu lado, bwana — disse o chefe — e agora vem ver o estrangeiro, que dorme na minha aldeia. Assim dizendo, virou-se e indicou o caminho para a choupana, na sombra da qual Tarzan dormia sossegadamente. Atrás dos dois homens, vinham os outros guerreiros brancos; mas os dedos indicadores levantados do chefe e do seu companheiro conservaramnos a todos em absoluto silêncio. Quando dobraram o canto da choupana, pisando cuidadosamente na ponta dos pés, um sorriso cruel surgiu nos lábios do branco ao avistar o grande corpo do homem-macaco que dormia. O chefe fitou o outro, como quem indaga. O branco acenou com a cabeça, para indicar que o chefe não se tinha enganado em suas suspeitas. Virou-se então para os que estavam atrás dele e, apontando para o homem que dormia, fez um sinal para que o agarrassem e amarrassem. Imediatamente uma dúzia de brutos atiraram-se sobre Tarzan surpreendido, e tão rápido o fizeram que este, antes que pudesse fazer o menor esforço para escapar, se viu subjugado e amarrado. Deitado no chão, de costas, os seus olhos se voltando para os que lhe ficavam perto caíram sobre a face maligna de Nikolas Rokoff. Um sorriso de escárnio franzia os lábios do russo, o qual disse, chegando bem perto de Tarzan: — Porco! — gritou. — Ainda não aprendeste o bastante para te afastares de Nikolas Rokoff? E, batendo-lhe com o pé na cara:


— Isto é para a tua recepção — disse. — Hoje à noite, antes que os meus amigos etíopes te comam, eu te direi o que já aconteceu à tua mulher e a teu filho, e quais os outros planos que tenho para o futuro deles.


CAPÍTULO 8: A dança da morte Pela vegetação luxuriante e emaranhada da selva um grande corpo flexível caminhava sinuosamente e em silêncio completo sobre as suas patas macias. Somente

dois

pontos

brilhantes

de

reflexos

esverdeados

resplandeciam de vez em quando, à luz da lua equatorial que, uma vez ou outra, aparecia no alto da folhagem suavemente agitada pelo vento da noite. Às vezes o animal parava, com o nariz no ar, farejando, procurando. Outras vezes, uma exploração breve e rápida pelos galhos que lhe roçavam a cabeça faziam-no demorar-se um pouco em sua viagem firme para leste. Às suas narinas sensíveis chegava o cheiro sutil de muitas criaturas tenras de quatro pés, provocando-lhe o apetite ao queixo cruel e caído. Mas, firmemente, continuou seu caminho, resistindo às solicitações do apetite, que em outras ocasiões teriam feito que os seus músculos possantes, cobertos de pêlo, se atirassem em alguma garganta macia. Toda aquela noite a criatura prosseguiu o seu caminho solitário, parando somente no dia seguinte, para abater uma presa, que dilacerou aos pedacinhos, devorando e rosnando. Estava escurecendo quando ela chegou à estacada que cercava uma grande aldeia indígena. Como a sombra da morte, rodeou silenciosa a aldeia, com o nariz no chão, parando por fim perto da estacada, onde se encontravam os fundos de várias choupanas. Aí o animal farejou por alguns momentos e, então, virando a cabeça para um lado, escutou com as orelhas em pé. O que ele ouviu não era nenhum som que pudesse ser percebido por ouvidos humanos, mas unicamente pelos órgãos delicados e afinados do animal. Uma maravilhosa transformação ocorreu naquela massa de ossos e


músculos que um momento antes estava imóvel à semelhança de uma escultura de bronze. Como se estivesse colocada sobre molas de aço, que de repente se tivessem soltado, subiu ligeira e silenciosamente para cima da estacada, pulando, furtivamente, como um gato, para dentro do espaço escuro entre a parede e os fundos de uma choupana próxima. Além, na rua da aldeia, as mulheres preparavam braseiros e traziam panelas cheias de água, pois uma grande festa ia ser celebrada dentro de algumas horas. Ao redor de um grosso poste perto do centro das fogueiras em círculo, um pequeno grupo de guerreiros negros estava conversando, com os seus corpos pintados de azul, branco e amarelo em largas listras grotescas. Grandes círculos de cor eram feitos em torno dos olhos e lábios, dos peitos e barrigas. Das suas cabeleiras cobertas de barro saíam penas alegres e pedaços de arame compridos e direitos. A aldeia estava se preparando para a festa, enquanto numa choupana que ficava ao lado da cena da orgia que se apresentava, a vítima fadada a satisfazer aqueles apetites bestiais estava esperando o fim. E que fim! Tarzan dos Macacos, retesando os seus poderosos músculos, torceu os laços que o prendiam; mas estes tinham sido reforçados muitas vezes a pedido do russo. Nem os fortes músculos do homem-macaco podiam remover aquele obstáculo. A Morte! Tarzan tinha fitado a horrível caçadora cara a cara muitas vezes, sorrindo. E sorriria outra vez, ainda nessa noite, quando soubesse que o seu fim estava próximo. Mas agora os seus pensamentos não se detinham nele mesmo. Estava naqueles outros — os entes queridos, que sofreriam com a sua morte mais do que ele mesmo. Jane nunca saberia como ele tinha morrido. Por isso ele agradecia a Deus; sobretudo por estar certo de que ela, ao menos, estava em segurança no


centro da maior cidade do mundo, entre amáveis e queridos amigos que fariam tudo para aliviar a sua miséria. Mas, e o menino? Tarzan retorceu-se todo ao recordar-se dele. Seu filho! E agora ele — o poderoso Senhor da Selva — ele, Tarzan, Rei dos Macacos, o único em todo o mundo capaz de achar e salvar seu filho dos horrores, que a mente má de Rokoff tinha planejado, via-se enlaçado como uma criatura tola e muda. Ia morrer dentro em poucas horas, e com ele desapareceria a última esperança de socorrer a criança. Rokoff veio visitá-lo, afrontá-lo e insultá-lo várias vezes durante a tarde, mas não conseguiu arrancar nenhuma palavra de queixa nem um murmúrio de dor dos lábios do cativo gigante. Acabou desistindo, reservando a sua intensa alegria para o último momento, quando — pouco antes das lanças selvagens dos canibais tornarem para sempre o objeto do seu ódio incapaz de maior sofrimento — ele então revelaria ao seu inimigo onde se achava a mulher que este julgava em segurança na Inglaterra. A noite tinha caído sobre a aldeia, e o homem-macaco podia ouvir os preparativos que faziam para a tortura e a festa. A dança da morte que ele já podia visualizar mentalmente, pois já a tinha assistido muitas vezes. Agora, ia ser a figura central amarrado ao poste. A tortura da morte lenta, enquanto os guerreiros em volta o cortassem em pedaços com habilidade infernal, que mutilava sem fazer perder os sentidos, não lhe infundia horror. Estava acostumado a sofrer, a ver sangue, a presenciar mortes cruéis. Mas o desejo de viver não era menos forte nele, e até que o último alento de vida se apagasse, alimentaria ainda uma esperança. Se relaxassem a vigilância somente por um momento, ele sabia que a sua mente astuta e os enormes músculos de que era dotado achariam um meio de escapar — fuga e vingança.


Enquanto estava deitado, pensando furiosamente em qualquer possibilidade de salvação, veio-lhe às narinas sensíveis um odor familiar. Imediatamente todas as faculdades da sua mente despertaram. Os seus ouvidos treinados perceberam fora, por trás da choupana onde estava, um som que era imperceptível para os outros. Os seus lábios se moveram, e ainda que deles nenhum som tivesse saído dos que pudessem ser percebidos por ouvidos humanos, além das paredes da sua prisão, mesmo assim sabia que aquele que estava lá fora o ouviria. Ele já sabia quem era. Suas narinas lhe disseram tão claramente como se os seus olhos lhe revelassem a presença de um velho amigo que encontrasse em plena luz do dia. Um instante depois ouviu o som macio de um corpo coberto de pêlo e patas almofadadas, escalando a parede de fora, atrás da choupana, arranhando e separando os paus que a forravam. Pelo buraco feito desta maneira passou um grande animal. Era Sheeta, a pantera. O animal farejou em volta do homem caído, choramingando um pouco. Havia um limite para a comunicação que se podia fazer entre os dois. Tarzan não tinha a certeza de que Sheeta entendia tudo que procurava comunicar-lhe. Que o homem estava amarrado e sem defesa, Sheeta podia, naturalmente, ver; mas que isto sugerisse à mente da pantera a idéia de qualquer mal ao seu dono, Tarzan não podia adivinhar. O que teria trazido o animal até ali? Fosse o que fosse era de bom agouro. Mas quando Tarzan experimentou fazer Sheeta roer as cordas, o grande animal não parecia compreender o que era preciso praticar, e, em vez disto, pôs-se a lamber os pulsos e os braços do prisioneiro. Alguém, porém, estava se aproximando da choupana. Sheeta rosnou baixinho e agachou-se em um canto, no escuro. Evidentemente o


visitante nada percebeu, pois imediatamente entrou na choupana. Era um guerreiro selvagem, alto e nu. Aproximou-se de Tarzan e espetou-o com uma lança; dos lábios do homem-macaco saiu um som esquisito e sobrenatural, e logo pulou da escuridão um aríete de morte vestido de pêlo... O grande animal bateu em cheio sobre o peito do selvagem pintado, enterrando as garras agudas na carne negra e afundando os grandes dentes amarelos na garganta de ébano. Houve um horrível grito de angústia e terror do negro, e, misturado com ele, o desafio hediondo da pantera. Fez-se então silêncio — silêncio em que só se ouvia o rasgar de carnes sangrentas e o trincar de ossos humanos por entre poderosas mandíbulas. O barulho produzira repentino silêncio lá fora na aldeia. Em seguida, ouviu-se o som de vozes em consulta. Vozes agudas, cheias de medo, em tons profundos e baixos de autoridade, enquanto o chefe falava. Tarzan e a pantera ouviram os passos de muitos homens que se aproximavam, e então, para surpresa de Tarzan, o grande gato levantou-se de cima do corpo de sua vítima, e saiu silenciosamente da choupana pela abertura por onde tinha entrado. O homem ouviu-lhe o arrastar macio do corpo quando passou por cima da estacada. Reinou de novo o silêncio. Do lado oposto da choupana ouviu Tarzan os selvagens que chegavam para investigar. Tinha pouca esperança que Sheeta voltasse, pois se esta tivesse a idéia de defendê-lo contra os que chegavam, teria ficado a seu lado, quando ouviu os selvagens se aproximarem. Tarzan conhecia como era estranha a inteligência da poderosa carnívora da selva e quão diabolicamente às vezes se mostrava em face de morte certa, e outras vezes quão tímida parecia à menor provocação. Não havia dúvida que alguma nota dos negros que se aproximavam, trêmulos de


medo, tinha inspirado uma nota igual no sistema nervoso da pantera, fazendoa fugir ocultamente pela selva, com o rabo entre as pernas. O homem encolheu os ombros. Fosse o que fosse! Ele esperava morrer, e, afinal de contas, que poderia ter feito Sheeta senão matar dois ou três dos seus inimigos antes que uma carabina nas mãos de um dos brancos a tivesse matado. Ah! Se a pantera pudesse tê-lo soltado! Ah! Então as coisas se passariam de modo diferente. O caso ia, porém, além da compreensão de Sheeta. O animal partira e Tarzan tinha de perder a esperança definitivamente. Os indígenas estavam agora na entrada da choupana olhando timidamente para o interior escuro. Dois, na frente, seguravam tochas acesas na mão esquerda e lanças na direita. Apoiavam-se medrosamente contra os que estavam atrás, que por sua vez estavam a empurrá-los para a frente. Os gritos da vítima da pantera, misturados com os da grande fera, tinham trabalhado poderosamente os seus pobres nervos, e agora o silêncio horrível do interior escuro parecia ainda mais agourento que os gritos pavorosos. Logo um daqueles que estavam sendo empurrados para dentro contra a sua vontade, achou um meio de saber a natureza exata do perigo que os ameaçava do interior. Com um movimento ligeiro jogou a tocha acesa no centro da choupana. Imediatamente tudo ficou iluminado. Havia a figura do prisioneiro branco, ainda seguramente amarrado como da última vez que o viram, e no centro da choupana uma outra figura igualmente sem movimento, com a garganta e o peito horrivelmente rasgados e mutilados. O que viram os selvagens que estavam nas primeiras filas inspirou mais terror às suas almas supersticiosas do que o teria feito a vista da própria Sheeta.


Viam somente o resultado de um ataque feroz a um dos seus companheiros, mas não lhe atinavam com a causa; as suas mentes sobrecarregadas de medo estavam prontas a atribuir o terrível trabalho a causas sobrenaturais. Foi um pavor. Com este pensamento retrocederam, gritando, da choupana, fazendo cair aquela que ficava diretamente por trás deles. Durante uma hora Tarzan ouviu somente o murmúrio de vozes excitadas na outra extremidade da aldeia. Evidentemente os selvagens estavam querendo levantar os seus fracos ânimos, a fim de invadir novamente a choupana, pois de vez em quando soltavam um grito selvagem, tal como o fazem os guerreiros, para sustentar a sua coragem no campo de batalha. Afinal dois dos homens brancos entraram primeiro, carregando tochas e espingardas. Tarzan não se admirou de ver que nem um nem outro era Rokoff. Teria apostado a sua alma que nenhum poder na terra poderia ter tentado aquele grande covarde a encarar a desconhecida ameaça da choupana. Quando os indígenas viram que os homens brancos não tinham sido atacados entraram também calados, cheios de terror, enquanto olhavam o corpo mutilado do companheiro. Os brancos procuraram em vão obter uma explicação de Tarzan; mas a todas as suas perguntas ele somente sacudia sorrindo a cabeça. Por fim, chegou Rokoff. Este empalideceu quando os seus olhos deram com o corpo sangrento no chão, rindo para ele, a cara fixa numa máscara de morte de horror atroz. — Neula! — disse ao chefe. Vamos acabar com este demônio antes que tenha uma oportunidade de repetir a mesma coisa com outros da nossa gente. O chefe deu ordens para que Tarzan fosse levantado e levado ao poste; mas decorreram vários minutos antes que pudesse persuadir alguns dos homens a tocar no prisioneiro.


Por fim, quatro dos guerreiros mais jovens arrastaram Tarzan brutalmente para fora da choupana. Mais ou menos vinte negros empurraram então o prisioneiro aos murros pela rua abaixo e amarraram-no ao poste, no centro do círculo de fogueiras e panelas. Quando por fim, todo amarrado, parecia completamente indefeso, sem a menor esperança de socorro, Rokoff recobrou a sua coragem, a qual só aparecia quando não havia perigo algum. Aproximou-se do homem-macaco, e, apanhando uma lança das mãos de um dos selvagens, foi o primeiro a espetar a vítima indefesa. O sangue corria pela pele lisa do gigante; mas este não demonstrava nenhum sinal de dor. O seu sorriso de desprezo parecia enfurecer ainda mais o russo, o qual, proferindo injúrias, saltou sobre o indefeso cativo dando-lhe na cara com os punhos fechados e atirando-lhe barbaramente pontapés nas pernas. Por fim, levantou a pesada lança para enterrá-la no generoso coração do prisioneiro. Mas Tarzan dos Macacos sorria com desprezo. Antes, porém, que Rokoff pudesse enterrar a arma, o chefe saltou sobre ele, afastando-o da sua pretendida vítima. — Pare, homem branco! — gritou ele. — Se nos roubares este prisioneiro e impedires assim a nossa dança da morte, tu mesmo terás de tomar o seu lugar. A ameaça conseguiu impedir que o russo fizesse mais agressões ao prisioneiro. Ficou um pouco afastado, atirando sempre insultos ao seu inimigo. Disse a Tarzan que ele mesmo ia comer-lhe o coração. Aumentou os horrores da vida futura que aguardava o filho de Tarzan, e afirmou-lhe que a sua vingança alcançaria também Jane Clayton. — Julgas que tua mulher está a salvo na Inglaterra? — disse Rokoff. — Idiota! Ela está agora nas mãos de um tipo de baixa classe, longe


da segurança de Londres e da proteção dos seus amigos. Não era minha intenção dizer-te isto antes que eu pudesse levar-te à Ilha da Selva e aí te dar a prova da sua sorte. Mas agora que vais padecer a pior morte possível que um homem branco pode sofrer, quero que estas palavras sobre o destino da tua mulher aumentem os tormentos que te devem martirizar antes que o último golpe de lança te livre da tua tortura. A dança tinha começado e os gritos dos guerreiros em volta sustaram outras tentativas de Rokoff para atormentar a sua vítima. Os selvagens, pulando, com as chamas tremulantes refletindo-se nos seus corpos pintados, faziam um círculo em torno da vítima, atada ao poste. Na memória de Tarzan surgiu uma cena semelhante: quando ele salvara d’Arnot de uma situação bem parecida com a sua, no último momento, antes que o derradeiro golpe de lança lhe acabasse com o sofrimento. Quem havia agora ali para salvá-lo? Em todo o mundo não havia ninguém capaz de livrá-lo do tormento e da morte. A idéia de que estes demônios humanos o devorariam quando a dança estivesse acabada não lhe causou, porém, o menor sentimento de horror ou desgosto. Não lhe aumentou os sofrimentos como teria aumentado os de outro homem branco qualquer, pois durante toda a sua vida, Tarzan tinha visto os animais da selva devorarem a carne das suas presas. Não tinha ele mesmo lutado, há muitos anos, em Dum-Dum, braço a braço com um grande macaco, fazendo assim que os macacos de Kerchak o respeitassem graças à morte que infligira ao famoso Tublat? Os dançadores estavam agora pulando mais perto dele. As lanças começavam a tocar-lhe o corpo com as primeiras picadas horríveis que antecederam outras piores. Não demoraria, porém, muito tempo, a sua agonia. O homemmacaco ansiava pela última estocada que poria fim à sua miséria.


Mas de repente, lá longe, no labirinto da selva, ecoou um grito agudo. Os dançarinos pararam por alguns instantes. Dos lábios do homem branco, fortemente amarrado, rompeu um grito, como em resposta ao que se ouvira, mais terrível, porém, do que o que viera da floresta. Durante alguns minutos, os negros se conservaram imóveis, hesitando. Mas a instâncias de Rokoff e do chefe, pularam para perto de Tarzan, a fim de acabar com a dança e com a vítima. Antes, porém, que outra lança tocasse no corpo moreno, um vulto escuro, de olhos esverdeados, chispando ódio e ferocidade, saltou da porta da choupana onde Tarzan tinha estado preso, e Sheeta, a pantera, apareceu rosnando ao lado do chefe dos negros. Os negros e os brancos ficaram trespassados de terror, ao fixarem os olhos nos dentes caninos da fera. Somente Tarzan dos Macacos viu o que estava saindo do interior escuro da choupana.


CAPÍTULO 9: Cavalheirismo ou perversidade Da portinhola do seu camarote no Kincaid, Jane Clayton tinha visto o marido ser levado à praia verdejante da Ilha da Selva. O vapor mais uma vez seguiu o seu caminho. Durante vários dias ela não viu ninguém senão Sven Anderssen, o cozinheiro taciturno e repulsivo do Kincaid. Perguntou-lhe um dia o nome da praia na qual o marido tinha sido colocado. — Penso que vai ventar logo mais, e bastante — respondeu o sueco. Foi só isto que pôde ouvir dele. Chegara quase à conclusão de que ele do inglês não conhecia mais do que isto. Deixou portanto de importuná-lo pedindo-lhe informações. Nunca, entretanto, deixou de cumprimentá-lo amavelmente ou agradecer-lhe as refeições horríveis e nauseabundas que lhe trazia. Três dias após a partida do lugar onde Tarzan tinha sido abandonado, o Kincaid fundeou na foz de um grande rio, e logo Rokoff veio ao camarote de Jane Clayton. — Chegamos minha querida — disse ele com um volver de olhos traiçoeiros. — Venho oferecer-lhe segurança, liberdade e conforto. Tomei-me de simpatia pelo seu sofrimento, e procurarei ser o mais agradável possível. Seu marido foi um bruto — sabe isto melhor do que eu, porque o achou nu na selva, vagando com os animais selvagens que eram os seus companheiros. Esse não é o meu caso: sou um cavalheiro, não somente de sangue nobre, mas criado como deve ser um homem de qualidade. Ofereço-lhe, querida Jane, o amor de um homem culto e a companhia de uma pessoa de cultura, uma pessoa polida. De cultura e polidez deve ter sentido muita falta em suas relações com esse pobre macaco, com quem, devido à sua leviandade de menina, casou tão descuidadamente. Amo-a, Jane. Basta que diga uma palavra e nenhuma tristeza mais a afligirá. Seu filho lhe será restituído são e salvo.


Fora, à porta, Sven Anderssen parou um pouco trazendo a refeição do meio-dia para Lady Greystoke. Na extremidade do pescoço, comprido e fino, a cabeça lhe inclinava-se para um lado, e os olhos, muito próximos um do outro, semicerraclos. Toda a sua atitude era de um escutador clandestino. Inclinado para a frente — até o bigode comprido, amarelo e escasso parecia descrever uma curva sorrateira. Quando Rokoff acabou de fazer o estranho pedido, e aguardava ansioso a resposta, o olhar de surpresa e o rosto de Jane Clayton revelaram um imenso desgosto. — Eu não me teria admirado, Sr. Rokoff — disse estremecendo — se tivesse tentado forçar-me a submeter-me aos seus maus desejos. Nunca, porém, imaginei que seria tão estúpido em supor que eu, mulher de John Clayton, me submeteria voluntariamente ao seu capricho, mesmo para salvar a minha vida. Sabia que era um canalha, Sr. Rokoff; mas, até agora não o tinha julgado imbecil. Os olhos de Rokoff diminuíram. O rubor da humilhação tingiu-lhe a palidez das faces. Deu um passo na direção da moça, ameaçadoramente. — Veremos depois quem de nós dois é o tolo — sibilou ele, entre dentes — quando eu a tiver dobrado à minha vontade e a sua plebéia obstinação de americana lhe tiver custado tudo o que mais ama — até a vida do seu filho — pois, pelos ossos de São Pedro, eu não farei o que planejei quanto ao maroto de seu marido, mas cortarei o seu coração, diante dos seus próprios olhos. Há de aprender o que significa insultar Nikolas Rokoff. Jane Clayton deu-lhe as costas, enfastiada. — De que serve — disse ela — discorrer sobre os abismos a que a sua natureza vingativa possa chegar? Não poderá demover-me nem por ameaças, nem por ações. O meu filho não pode julgar ainda por si, mas eu, sua mãe, posso prever que caso ele chegue a ser homem, de boa vontade sacrificará a sua vida pela honra de sua mãe. Amando-o como o amo, eu não


compraria a sua vida à custa de tal sacrifício. Se eu fizesse uma coisa destas, ele detestaria a minha memória até o dia de sua morte. Rokoff estava agora furioso, vendo que não conseguira infundir medo à moça. Sentia apenas ódio por ela, mas a sua mente doentia tinha concebido a idéia de que se ele pudesse forçá-la a ceder a seus pedidos, em troca da própria vida e da do filho, a sua vingança seria completa, quando pudesse ostentar a mulher de Lorde Greystoke nas capitais da Europa como sua amante. Mais uma vez chegou-se para perto dela. Tinha as feições convulsas de raiva e desejo. Como um animal feroz, avançou para ela, e apertando-lhe com os dedos fortes a garganta, atirou-a para trás sobre o leito. No mesmo instante a porta do camarote abriu-se ruidosamente. Rokoff, voltando-se, deu de rosto com o cozinheiro sueco. Nos olhos usualmente sorrateiros do rapaz havia agora uma expressão de estupidez completa. Ocupou-se em arranjar a refeição de Lady Greystoke sobre a mesinha, a um lado do seu camarote. O russo olhou fixamente para ele. — Com que ousadia — gritou — entra aqui sem licença? Saia! O cozinheiro fitou os seus olhos azuis nos de Rokoff, e sorriu, sem expressão. — Penso que vai ventar logo mais, e bastante —- disse e voltou a arranjar de novo as travessas sobre a mesinha. — Saia, ou o atirarei pela porta afora, miserável estúpido! gritou Rokoff, dando um passo ameaçador na direção do sueco. Anderssen continuou a sorrir alvamente para ele, mas a mão, que parecia um presunto, empunhou disfarçadamente o cabo duma faca comprida e fina, que pendia da corda gordurosa que lhe prendia o avental imundo. Rokoff notou, porém, o movimento e estacou repentinamente. Voltou-se então para Jane Clayton.


— Espero até amanhã — disse — para que reconsidere a sua resposta à minha oferta. Todos serão mandados para terra sob qualquer pretexto, menos nós dois, a criança e Paulvitch. Assistirá então à morte do seu filho. Estas palavras foram ditas em francês, para que o cozinheiro não compreendesse a sinistra ameaça, que acabava de dirigir à moça. Quando acabou de falar, retirou-se brutalmente do camarote. Nem mesmo se voltou para o homem que o tinha interrompido no seu intento. Quando ele desapareceu, Sven Anderssen virou-se para Lady Greystoke. A expressão tola com que ocultava os seus pensamentos tinha desaparecido, cedendo lugar a uma expressão de astúcia e esperteza. — Está com certeza pensando que tenho sido um imbecil — disse ele. — Não é tanto assim. Eu conheço o francês. Jane Clayton olhou para ele admirada. — Compreendeste então tudo que ele disse? — Perfeitamente — respondeu Anderssen, sorrindo. — Ouviste o que estava acontecendo aqui e vieste proteger-me? — Tem sido tão boa para mim — explicou o sueco. — Ele me trata como cachorro vagabundo. Estou disposto a ajudá-la. Espere e eu a auxiliarei. Tenho estado na Costa Ocidental muitas vezes. — Mas como pode ajudar-me, Sven, quando todos esses homens estão contra nós? — Penso — disse Sven Anderssen — que vai ventar logo mais, e bastante. — E voltando-se, saiu do camarote. Embora Jane Clayton duvidasse da capacidade do cozinheiro, e do auxílio que este lhe pudesse prestar, sentiu-se, todavia, profundamente grata pelo que ele já tinha feito. A idéia de que, entre estes inimigos tinha um amigo, foi o primeiro raio de conforto que lhe veio aliviar a carga das suas miseráveis apreensões durante a longa viagem do Kincaid.


Ela não viu mais Rokoff naquele dia, nem nenhuma outra pessoa, até que Sven lhe trouxe a refeição da tarde. Procurou fazê-lo conversar a respeito dos seus planos para auxiliá-la, mas a única coisa que pôde tirar dele foi a sua profecia usual quanto ao estado futuro do vento. Parecia que o cozinheiro tinha voltado repentinamente ao seu habitual estado de estupidez profunda. Contudo, quando ele ia sair do camarote com as travessas vazias, murmurou baixinho: — Fique vestida e enrole-se nos seus cobertores. Virei buscá-la logo mais. E dispunha-se a sair. Mas Jane reteve-o pelo braço: — Meu filho? Não posso ir sem ele! — Faça o que lhe digo e não discuta — disse Anderssen meio zangado. — Estou ajudando-a. Não me atrapalhe. Quando ele partiu, Jane atirou-se ao leito completamente desorientada. Que devia fazer? Suspeitas quanto às intenções do sueco, vieram-lhe ao cérebro. Não poderia ficar em piores condições em poder dele? Viu, porém, que essa era uma idéia louca. Não estaria em piores condições na própria companhia do diabo, do que com Nikolas Rokoff, pois o diabo ao menos tem a reputação de ser cavalheiro. Jurou uma dúzia de vezes que não sairia do Kincaid sem seu filho. Conservou-se vestida muito tempo além da sua hora habitual de deitar-se, envolta nos seus cobertores bem enrolados e amarrados com uma corda grossa, quando por volta da meia-noite ouviu um arranhar furtivo na porta. Atravessou rapidamente o quarto e puxou o trinco. A porta abriuse sem barulho, para deixar entrar a figura embuçado do sueco. Num braço levava um embrulho — evidentemente os seus cobertores. A outra mão, levantada num movimento de quem pede silêncio, erguia o dedo indicador aos lábios.


— Leve isto — disse ele, chegando-se bem para perto da moça. — Não faça barulho quando vir o que é. É o seu filho. Mãos ligeiras arrebataram o embrulho da mão do cozinheiro, braços da mãe abraçaram a criança que dormia, enquanto lágrimas quentes de alegria corriam pelas faces de Jane, e o seu corpo todo estremecia com a emoção do momento. — Venha! — disse Anderssen. — Não temos tempo a perder. Pegou a trouxa dela, e, já do lado de fora da porta do camarote, a trouxa dele também. Conduziu-a então para o costado do vapor, preparou a escada de corda, e desceu por ela, segurando a criança, enquanto Jane descia também para o bote que os esperava embaixo. Momentos depois, cortada a corda que segurava o pequeno bote ao costado do vapor, inclinou-se para os remos, e, procurando a escuridão, seguiu pelo rio Ugambi acima. Anderssen remava como se tivesse a certeza para onde ia. Quando, depois de meia hora, a lua apareceu por entre as nuvens, deparou-se à esquerda com a foz de um afluente que entrava no Ugambi. Para este estreito canal o sueco virou a proa do pequeno bote. Jane Clayton estava perguntando a si mesma se o homem sabia para onde se dirigia. Ignorava que, na sua qualidade de cozinheiro, ele viera, a remos naquele mesmo dia, por este riacho até uma pequena aldeia, onde havia negociado com os indígenas os víveres que estes tinham à venda. Nessa ocasião combinara os detalhes do seu plano para a aventura que estava agora mesmo iniciando. Embora fosse lua cheia, a superfície do pequeno rio estava completamente às escuras. As árvores grandes pendiam sobre as margens estreitas, formando um grande arco no centro do rio. Dos galhos, graciosamente inclinados, pendiam cipós, e enormes trepadeiras subiam em profusão pelos ramos mais altos, caindo em curvas quase até a tranqüila superfície da água.


Uma ou outra vez a superfície do rio era repentinamente agitada diante deles por um enorme crocodilo, assustado pelo movimento dos remos. Outras vezes, soprando e roncando, uma família de hipopótamos mergulhava de um banco de areia para o fundo fresco e seguro. Da selva espessa de cada lado vinham os gritos estranhos da noite — a voz rouca da hiena, o rosnar da pantera, o urro profundo e terrível do leão. E com eles sons estranhos e sobrenaturais que à moça, não podendo atribuí-los a qualquer ladrão da noite, mais terríveis pareciam, devido ao seu mistério. Na popa do bote ia ela sentada, com o filho apertado ao peito, e esse entezinho tenro e indefeso fazia-a mais feliz nessa noite do que os muitos dias que ela tinha passado a bordo. Conquanto não soubesse para onde ia, nem, tampouco, a sorte que a aguardava, sentia-se ao menos, naquele momento, contente e agradecida, por poder apertar o filho nos braços, embora fosse por tão pouco tempo. Esperava ansiosa que amanhecesse, para contemplar mais uma vez o rostinho alegre do seu pequeno Jack de olhos negros. Muitas vezes procurou forçar os olhos a verem através da escuridão da noite, ainda que fosse apenas um rápido momento, aqueles traços queridos, mas somente um fraco esboço do rosto infantil recompensou os seus esforços. Então, mais uma vez, ela abraçava o embrulhinho tépido, aconchegando-o ao seu coração palpitante. Deviam ser quase três horas da manhã quando Anderssen atracou o bote em uma praia diante de um espaço, onde se podia avistar imperfeitamente, à fraca luz da lua, um grupo de choupanas indígenas rodeadas por uma cerca de espinhos. O sueco chamou várias vezes, antes que pudesse obter resposta da aldeia. Só lhe responderam porque era esperado, tão receosos são os indígenas das vozes que saem da escuridão da noite. Depois de ajudar Jane Clayton a


desembarcar com a criança, amarrou o bote a um pequeno arbusto, e apanhando os cobertores, conduziu-a para a cerca. No portão da aldeia foram recebidos por uma mulher do chefe que Anderssen tinha pago para auxiliá-lo. Ela os levou para a choupana do chefe, mas dizendo-lhe Anderssen que eles dormiriam do lado de fora, no chão, ela os deixou livres de agir como quisessem. O sueco, depois de explicar, com o seu modo rápido, que sem dúvida as choupanas eram sujas e cheias de vermes, estendeu os cobertores de Jane no chão para ela, e a uma pequena distância os seus, deitou-se para dormir. Decorreu algum tempo antes que a moça pudesse achar uma posição confortável sobre o chão duro, mas por fim, com a criança na curva do braço, adormeceu vencida pelo cansaço. Quando acordou já era dia claro. Ao redor dela havia um grupo de indígenas curiosos. A maior parte eram homens, pois entre os aborígenes é o varão que possui a curiosidade na sua forma mais exagerada. Instintivamente Jane Clayton puxou a criança para mais perto dela, embora visse logo que os negros não tinham intenção alguma de fazer o menor mal nem a ela nem à criança. De fato, um deles ofereceu-lhe uma cuia cheia de leite — cuia suja e enfumaçada, com a antiga nata de leite coalhado, de muito tempo, empastada em camadas por dentro. Mas a boa intenção comoveu profundamente a moça. Seu rosto iluminou-se por momentos com um daqueles quase esquecidos sorrisos radiantes que tinham ajudado a fazer a sua beleza famosa, tanto em Baltimore, como em Londres. Tomou a cuia em uma das mãos, evitando causar o menor desgosto a quem lhe fazia a gentil oferta, levou-a aos lábios, embora vencendo a custo a náusea que a assaltou ao aproximar a cuia fedorenta das suas narinas.


Foi Anderssen que veio em seu auxílio; tomando-lhe a cuia das mãos, bebeu uma boa porção, e devolveu-a ao indígena com um presente de contas azuis. O sol já estava brilhando, e embora a criança ainda dormisse, Jane mal podia conter o seu desejo impaciente de lançar ao menos um breve olhar ao rosto querido. Os indígenas tinham-se retirado por ordem do seu chefe, que agora ficou falando com Anderssen, um pouco afastado dela. Enquanto ponderava se era aconselhável perturbar o sono da criança, levantar o cobertor que agora lhe protegia o rosto dos raios do sol, notou que o cozinheiro conversava com o chefe na linguagem dos negros. Que homem maravilhoso! Até a véspera, considerava-o ignorante e estúpido, e agora, nessas últimas vinte e quatro horas, estava vendo que ele falava não somente o inglês, mas o francês e até o dialeto primitivo da CostaOcidental. Julgara-o um velhaco, cruel e indigno de confiança; mas tanto quanto podia julgar, ele tinha provado ser o contrário disso tudo. Quase não lhe parecia crível que ele pudesse servi-la assim, por motivos puramente cavalheirescos. Devia haver alguma intenção ou plano ulterior. Pensando nisto, olhou para ele, e estremeceu, observando-lhe os olhos muito juntos, os traços repulsivos das feições. Estava convencida que nenhum sentimento elevado poderia ocultar-se atrás dum tão repugnante exterior. Mas quando estava assim pensando, e hesitando também se seria prudente descobrir o rosto da criança, ouviu um pequeno arrulho que saía do pequeno embrulho aconchegado ao colo, e então um grande contentamento alegrou o seu coração. A criança estava acordada! Agora ela poderia beijá-la à vontade. Descobriu rápido o rosto da criança. Anderssen, que lhe acompanhava todos os movimentos, viu-a vacilar, segurando a criança com os braços afastados e


olhando horrorizada as facezinhas bochechudas e os olhinhos brilhantes. Ouviu-lhe entĂŁo um grito doloroso. Os joelhos de Jane vergaram e ela caiu desmaiada no chĂŁo.


CAPÍTULO 10: O sueco Quando os guerreiros, apinhados ao redor de Tarzan e Sheeta, viram bem que era uma pantera, uma verdadeira pantera, que tinha interrompido a dança da morte, animaram-se um pouco, pois diante de todas estas lanças mesmo a poderosa Sheeta estaria condenada. Rokoff incitava o chefe para mandar os lanceiros atirarem as suas lanças, e o negro ia naquele instante dar a ordem, quando os seus olhos passaram além de Tarzan, seguindo o olhar do homem-macaco. Com um grito de terror o chefe fez meia volta e fugiu na direção do portão da aldeia, e quando o povo olhou para ver a causa do seu susto, todos também fugiram — pois descendo sobre eles, com os seus corpos enormes exagerados pelo reflexo da claridade da lua e da fogueira, vinham os hediondos macacos de Akut. No instante em que os indígenas viraram para fugir, o grito selvagem do homem-macaco soou acima dos gritos dos negros e, em resposta, Sheeta e os macacos saltaram rosnando atrás dos fugitivos. Alguns dos guerreiros voltaram-se para combater com os seus bravios antagonistas, mas sucumbiram todos ante a fúria diabólica dos animais ferozes. Outros foram arrastados na fuga. Só quando a aldeia se esvaziou e o último dos negros desapareceu na selva, foi que Tarzan pôde chamar de novo o seu bando para seu lado. Descobriu, porém, com grande pesar, que a nenhum deles, nem mesmo a Akut, que era mais ou menos inteligente, podia fazer compreender o seu desejo de que o soltassem das amarras que o atavam ao poste. Naturalmente, no fim de algum tempo, a idéia acabaria por filtrar-se através dos seus crânios espessos; mas, entrementes, muitas coisas poderiam acontecer! — Os negros poderiam voltar, reforçados, para retomarem a aldeia; os brancos poderiam matá-los todos com as suas carabinas, ocultos pelas árvores em volta; ele mesmo podia morrer de fome, antes que os macacos,


pouco inteligentes, chegassem a compreender que desejava que roessem as cordas para ele as arrebentar. Quanto a Sheeta — essa compreendia menos do que os macacos; mas Tarzan admirava-se da inteligência maravilhosa que este animal tinha evidenciado. Que sentia afeição verdadeira por ele não havia dúvida, pois agora que os negros tinham sido derrotados, ela andava vagarosamente em volta do poste, roçando-se nas pernas do homem-macaco e arrulhando como uma criança que está contente. Que tinha ido por sua própria vontade buscar o resto do bando para salvá-lo, Tarzan não pôde duvidar. A sua Sheeta era uma verdadeira jóia entre os animais. A ausência de Mugambi consternou bastante o homem-macaco, que procurou saber de Akut o que tinha acontecido ao negro. Receava que os animais, livres da sua presença, pudessem ter caído sobre o homem para devorá-lo; mas a todas as perguntas, o grande macaco se limitava a responder apontando para trás na direção do lugar por onde eles tinham saído da selva. Tarzan passou a noite ainda amarrado ao poste. Pela madrugada os seus receios foram confirmados, ao avistar os vultos nus de alguns negros movendo-se sorrateiramente pelo mato, à volta da floresta que cercava a aldeia. Os negros estavam voltando. Com o amanhecer recobrariam ânimo para fazer uma carga sobre os animais que os tinham expulsado das suas moradias. O resultado do encontro parecia certo, se os selvagens pudessem subjugar o seu terror supersticioso, pois contra o grande número deles, e suas lanças compridas e flechas envenenadas, não se podia esperar que a pantera e os macacos pudessem sobreviver a uma carga verdadeiramente séria. Que os negros estavam preparando uma carga, tornou-se evidente alguns minutos depois, quando começaram a mostrar-se em grande número, dançando e pulando, enquanto sacudiam as suas lanças e berravam insultos ferozes e gritos guerreiros na direção da aldeia.


Tarzan sabia que estas manobras continuariam até que os negros tivessem atingido um estado de coragem, suficiente para sustentá-los durante uma pequena carga na direção da aldeia, e embora duvidasse que eles a alcançassem na primeira tentativa, acreditava que na segunda ou terceira entrariam pelo portão. O resultado não poderia ser senão o extermínio dos defensores corajosos, porém, desarmados e indisciplinados, de Tarzan. Como tinha adivinhado, a primeira carga só levou os guerreiros que berravam a uma pequena distância no campo aberto — sendo necessário um grito agudo e estranho do homem-macaco para fazê-los voltar correndo para a selva. Durante meia hora pularam e gritaram para se encorajarem, voltando afinal mais uma vez à carga. Desta vez vieram até o portão da aldeia, mas quando Sheeta e os hediondos macacos investiram contra eles — os negros, gritando com terror, fugiram novamente para a selva. Repetiram, todavia, ainda uma vez, as danças e os gritos. Desta vez Tarzan não duvidava que entrassem na aldeia e completassem o trabalho que um punhado de homens brancos resolvidos teria conseguido na primeira tentativa. Ter estado tão perto da salvação e nada ter conseguido só porque não pôde fazer os seus pobres amigos selvagens compreenderem precisamente o que desejava que fizessem, irritava-o sobremodo, mas não tinha coragem de culpá-los. Tinham feito, o mais que podiam, e agora estava certo que, sem dúvida, morreriam ali com ele num esforço inútil para defendêlo. Os negros já se estavam preparando para a carga. Alguns tinham avançado até uma pequena distância, em direção da aldeia, e dispunham-se os outros a segui-los. Dentro em pouco toda a horda selvagem estaria correndo sobre eles.


Tarzan só tinha um pensamento: a criança, que devia estar em algum lugar do deserto implacável. O seu coração estalava de dor com a idéia de que não poderia mais procurar nem salvar o filho. Isto, e a evocação do sofrimento de Jane, era o que pesava sobre o seu selvagem espírito, nestes instantes que considerava os últimos de sua vida. Socorro, tudo que ele podia esperar, tinha chegado no momento do seu aperto — e falhara. Não havia nada mais que esperar. Os negros já estavam a meio caminho quando a atenção de Tarzan foi atraída pelos gestos de um dos macacos. O animal olhava para uma das choupanas. Tarzan seguiu esse olhar. Teve um infinito alívio quando viu o corpo forte de Mugambi correndo em sua direção. O enorme negro ofegava de cansaço. Quando o primeiro selvagem chegou ao portão da aldeia, a faca do indígena cortava a última das cordas que ainda amarravam Tarzan ao poste. Na rua, jaziam os corpos dos selvagens que tinham caído diante do bando na véspera. De um deles Tarzan apanhou uma lança e um pau, e com Mugambi a seu lado e o bando de macacos rosnando em volta, encontrou-se com os indígenas quando estes transpuseram o portão. Feroz e terrível foi a batalha que se seguiu, sendo afinal os selvagens derrotados; mais pelo terror, talvez, à vista de um negro e um branco brigando em companhia de uma pantera e dos enormes macacos ferozes de Akut, do que devido à incapacidade deles de subjugar a pequena força que se lhes opunha. Tendo caído nas mãos de Tarzan um prisioneiro, o homem-macaco interrogou-o para saber o que tinha acontecido a Rokoff e os seus companheiros. Tendo-lhe prometido a liberdade pela informação, o negro contou tudo o que sabia acerca dos movimentos do russo.


Parece que, cedo, naquela manhã, o seu chefe tinha procurando persuadir os brancos a voltarem com ele para a aldeia e com suas carabinas destruir o bando feroz que se tinha apoderado da mesma; mas Rokoff parecia ter mais medo do gigantesco homem branco e dos seus estranhos companheiros, do que os próprios negros. Por preço algum consentiu em voltar ou aproximar-se da aldeia. Em vez disto levou o seu bando apressadamente para o rio, onde roubaram muitas canoas que os negros tinham escondido aí. Quando pela última vez o viram com os seus companheiros estavam eles remando com toda a força rio acima, com os seus carregadores da aldeia de Kaviri, manejando os remos. Assim, mais uma vez, Tarzan dos Macacos com o seu bando hediondo começou novamente a procurar o filho e a perseguir o seu raptor. Durante dias fatigantes seguiram por uma parte do país quase desabitado somente para chegar à triste conclusão de que estavam seguindo uma pista errada. O pequeno bando tinha ficado reduzido. Três dos macacos de Akut tinham morrido na luta na aldeia. Agora, com Akut, havia cinco grandes macacos; e com eles, Sheeta, Mugambi e Tarzan. O homem-macaco não ouviu mais boatos a respeito dos três que tinham precedido Rokoff — o homem branco a mulher e a criança. Quem eram o homem e a mulher não podia adivinhar; mas a idéia de que a criança fosse o seu filho bastava para conservá-lo sempre na pista. Tinha certeza de que Rokoff estava seguindo estes três, e assim sabia que enquanto ele pudesse seguir o rastro do russo, ganharia tempo para conseguir arrebatar seu filho dos perigos e horrores que o ameaçavam. Retrocedendo, depois de ter perdido a pista de Rokoff, Tarzan a achou novamente num ponto onde o russo tinha deixado o rio e entrado no mato na direção do norte. Ele só podia explicar esta mudança admitindo que a criança tivesse sido levada pelos dois que agora a tinham em seu poder.


Em nenhum lugar, entretanto, ao longo do caminho, pôde receber informação definitiva que pudesse assegurá-lo positivamente de que estava na pista da criança. Nem um só indígena dos que interrogara tinha visto ou ouvido falar deste bando, embora quase todos tivessem estado em contato direto com o russo ou falado com outros em tais condições. Foi com dificuldade que Tarzan pôde achar meios de comunicar-se com os indígenas, pois quando estes viam os seus companheiros, fugiam precipitadamente para o mato. A sua única alternativa era ir adiante do seu bando e armar uma emboscada para algum selvagem que porventura se achasse sozinho na selva. Um dia, enquanto estava assim ocupado em perseguir um selvagem suspeito, encontrou um negro no ato de atirar uma lança contra um rapaz branco ferido, que se agachava por trás de umas árvores, ao lado do caminho. Tarzan reconheceu logo esse rapaz branco, pois já o tinha visto muitas vezes. No fundo da sua memória estavam implantados aqueles traços repulsivos — os olhos muito próximos um do outro, a expressão de velhaco, o bigode amarelo e decaído. Ocorreu-lhe logo que este rapaz não estava entre aqueles que haviam acompanhado Rokoff na aldeia onde Tarzan tinha estado prisioneiro. Ele os tinha visto todos, e este rapaz não estava lá. Somente poderia haver uma explicação — era ele quem tinha fugido diante do russo com a mulher e a criança, e a mulher era Jane Clayton. Agora compreendia a significação das palavras de Rokoff. O homem-macaco empalideceu ao fitar os olhos no rosto branco e marcado de vícios do sueco. Na testa de Tarzan sobressaía-lhe o largo vinco vermelho que assinalava a cicatriz, onde, anos antes, Terkaz lhe fendera a fonte na batalha feroz em que ele conquistara o direito de ser considerado o rei dos macacos de Kerchak.


O homem era a sua presa, o negro não a ganharia. Com este pensamento pulou sobre o selvagem ferindo-o com a lança antes que este pudesse alcançar o seu alvo. O negro, sacando a sua faca, voltou-se para combater este novo inimigo, enquanto o sueco, no mato, assistia a um duelo, como nunca sonhara ver — um homem branco, seminu, lutando com um negro também seminu, braço a braço, com as armas rudes do homem primitivo, no princípio da luta, e depois com as mãos e os dentes como os brutos, dos quais haviam saído os seus antepassados. A princípio, Anderssen não reconheceu o branco; depois, porém, recordou-se de que já tinha visto aquele gigante, e seus olhos ficaram cheios de surpresa, imaginando que este animal, que rosnava e dilacerava, talvez fosse o bem trajado cavalheiro inglês, que tinha estado prisioneiro a bordo do Kincaid. Um nobre inglês! Ele soubera da identidade dos prisioneiros do Kincaid por Lady Greystoke durante a sua fuga pelo Ugambi. Antes, bem como os outros membros da tripulação do vapor, não sabia quem eram os dois. A luta tinha acabado. Tarzan foi forçado a matar o seu antagonista, porque este não quisera entregar-se. O sueco viu o homem branco levantar-se ligeiro ao lado do cadáver do inimigo e, colocando-lhe um pé sobre o pescoço partido, levantar a voz no desafio horrível do macaco vitorioso. Anderssen estremeceu. Então Tarzan virou-se para ele. Nas feições contraídas, no aspecto cruel, nos olhos cinzentos o sueco viu a vontade de matar. — Onde está a minha mulher? — perguntou asperamente o homem-macaco. — Onde está a criança?


Anderssen queria responder, mas um repentino acesso de tosse o engasgou. Uma flecha atravessara-lhe o pulmão, e quando tossiu o sangue do órgão ferido golfou-lhe de repente da boca e das narinas. Tarzan aguardou que a crise passasse. Como uma estátua de bronze — fria, dura e sem misericórdia — fitou ameaçadoramente o homem indefeso, esperando arrancar dele a informação de que precisava para então o matar. Logo que a tosse e a hemorragia cessaram, o homem ferido procurou falar novamente. Tarzan ajoelhou-se, aproximando o ouvido dos lábios que se moviam fracamente. — A mulher e a criança? — repetiu. — Onde estão? Anderssen apontou para o rastro acima. — O russo apanhou-as — murmurou. — Como vieste aqui? — continuou Tarzan. — Por que não estás com Rokoff? — Eles nos apanharam — replicou Anderssen, numa voz tão baixa, que o homem-macaco mal podia distinguir as palavras. — Eles nos apanharam. Eu lutei, mas os meus homens fugiram. Então me pegaram quando fui ferido. Rokoff ordenou que me deixassem aqui, às hienas. Isto era pior do que me matar. Ele levou a sua mulher e seu filho. — Que estavas fazendo com eles? Para onde os conduzias? — perguntou Tarzan, e, com fúria, saltando sobre o rapaz, com olhos ferozes a lhe chisparem ódio e vingança: Que mal fizeste à minha mulher ou à criança? Fala depressa antes que eu te mate! Faze as pazes com Deus! Dize-me tudo, ou eu te rasgarei em pedaços com as mãos e os dentes. Já viste que sou capaz de fazer isto! Um olhar de grande surpresa apareceu no rosto de Anderssen. — Por quê? — murmurou. — Eu não os maltratei. Pelo contrário, procurei salvá-los do russo. Sua mulher foi boa para mim no Kincaid, e eu


ouvia às vezes a criança chorar. Tenho também mulher e filho em Cristiânia e eu não podia ver por mais tempo sua mulher e seu filho separados e nas mãos de Rokoff. Era somente isto. Por acaso lhe parece que estou aqui para fazerlhe mal? — continuou depois duma pausa, apontando para a flecha cravada no peito. Na voz e na expressão do homem havia algo de sincero que convenceu Tarzan da verdade das suas afirmações. O que mais o impressionava era o fato de que Anderssen evidentemente parecia mais magoado que assustado. Sabia que ia morrer, por isso as ameaças de Tarzan tinham pouco efeito sobre ele; mas era evidente o seu desejo de que o inglês soubesse a verdade e não lhe atribuísse o pensamento que suas palavras e modos tinham indicado. O homem-macaco ajoelhou-se então ao lado do sueco. — Sinto muito — disse ele. — Esperava encontrar somente canalhas na companhia de Rokoff. Vejo que me enganei. Vamos deixar o resto para depois; agora tratemos do que é mais urgente: levá-lo imediatamente daqui, a fim de lhe cuidar das feridas. Precisamos tê-lo de pé outra vez, o mais depressa possível. O sueco, sorrindo, sacudiu a cabeça: — Vá adiante, e procure sua mulher e seu filho. Eu já estou quase morto; mas. . . — hesitou — Não gosto de pensar nas hienas. Por favor, me mate... Tarzan estremeceu. Um momento antes tinha estado a ponto de matar aquele homem. Agora não lhe tiraria a vida como não o faria aos seus melhores amigos. Levantou a cabeça do sueco nos seus braços para mudar e aliviar a sua posição. Mais uma vez vieram um acesso de tosse e a terrível hemorragia. Quando terminou Anderssen ficou com os olhos fechados.


Tarzan pensou que ele estava morto. Mas de repente ele levantou os olhos para os do homem-macaco, suspirou e disse num murmúrio muito fraco e baixo: — Penso que vai ventar logo, e bastante. E morreu.


CAPÍTULO 11: Tambudza Tarzan cavou um túmulo raso para o cozinheiro do Kincaid, em cujo peito, sem embargo de um exterior repugnante, tinha batido um coração generoso. Era somente isto que podia fazer na selva cruel, pelo homem que tinha dado a vida em solidariedade ao seu filho e mulher. Então Tarzan continuou mais uma vez a perseguição de Rokoff. Agora, que tinha certeza de que a mulher que o precedera era em verdade Jane, e que ela tinha caído novamente nas mãos do russo, parecia-lhe que com toda a velocidade incrível dos seus músculos ligeiros e ágeis ele se movia como uma lesma. Foi com dificuldade que conservou a pista, pois havia nesse ponto muitos caminhos através da selva atravessando-a e retrocedendo, abrindo-se em encruzilhadas e com ramificações em todos os sentidos, pelos quais haviam passado inúmeros indígenas, indo e vindo. O cheiro dos homens brancos era prejudicado pelo dos carregadores indígenas que os tinham acompanhado e, além disso, havia ainda o de outros indígenas e animais selvagens. Era bastante confuso; mas Tarzan continuou sem esmorecer, requintando o sentido da visão sobre o do olfato, de forma que melhor pudesse conservar a pista certa. Mas, apesar de toda a sua diligência, sobreveio a noite justamente quando lhe pareceu que seguia uma pista errada. Sabia que o seu bando lhe seguiria a pista, e por isso teve o cuidado de fazê-la o mais distinta possível, roçando muitas vezes contra os cipós e trepadeiras que margeavam o caminho da selva e deixando de outros modos o seu odor perfeitamente perceptível. Com a noite começou a cair uma chuva forte, e ele não teve outro remédio senão esperar, sob o abrigo duma grande árvore, que rompesse a manhã; mas a madrugada não trouxe interrupção alguma à chuva torrencial.


Durante uma semana o sol ficou oculto, por grossas nuvens, enquanto chuvas violentas e tempestades de vento apagavam os últimos restos do odor que Tarzan procurava constantemente, embora em vão. Durante todo este tempo não viu nenhum sinal de indígenas, nem dos de seu próprio bando, os quais ele receava lhe teriam talvez perdido a pista durante a terrível tempestade. Como o lugar lhe era estranho, não pôde conhecer com exatidão o caminho, uma vez que não tivera nem o sol nem a lua ou as estrelas para orientá-lo. Quando finalmente o sol rompeu as nuvens na manhã do sétimo dia, o homem-macaco estava quase louco. Pela primeira vez na sua vida, Tarzan dos Macacos tinha estado perdido na selva. Que fosse essa a ocasião em que tal lhe acontecesse, parecialhe por demais cruel. Em algum lugar, nesta terra selvagem, sua mulher e seu filho estavam nas garras do bandido Rokoff. Que martírios horríveis não teriam suportado durante aqueles sete dias terríveis nos quais a natureza se tinha oposto aos esforços dele para encontrá-los! Tarzan conhecia o russo, em cujo poder eles estavam. Conheciao tão bem, que não pôde duvidar que o homem, enraivecido por Jane lhe ter escapado uma vez, e sabendo que Tarzan podia estar próximo, no seu rastro, cumpriria sem perda de tempo qualquer vingança que a sua mente corrompida pudesse conceber. Mas agora que o sol brilhava novamente, o homem-macaco ainda não sabia que direção deveria seguir. Sabia que Rokoff tinha deixado o rio para perseguir Anderssen; mas ignorava se ele continuaria na direção do interior ou voltaria ao Ugambi. O homem-macaco viu que o rio, no ponto onde o tinha deixado, estava ficando estreito e rápido, tanto que julgava que não podia ser navegável nem por canoas para qualquer distância considerável na direção do seu


manancial. Contudo, se Rokoff não tinha voltado ao rio, em que direção tinha prosseguido? Pela direção da fuga de Anderssen com Jane e a criança, Tarzan estava convencido que o russo tinha resolvido intentar o tremendo feito de atravessar o continente até Zanzibar. Teria mesmo Rokoff ousado empreender uma viagem tão perigosa? O medo poderia obrigá-lo a fazer a tentativa agora que conhecia a qualidade do bando terrível que estava na sua pista, e não ignorava que Tarzan dos Macacos o estava seguindo, para saciar a vingança que ele bem merecia. Finalmente o homem-macaco decidiu continuar para o nordeste, na direção da África Oriental Alemã, até que encontrasse indígenas de que pudesse obter informação a respeito do lugar onde se achava Rokoff. No segundo dia, depois que cessou a chuva, chegou a uma aldeia indígena, cujos habitantes fugiram para o mato quando o viram. Mas Tarzan os perseguiu, e depois de uma breve corrida conseguiu alcançar um guerreiro jovem. O rapaz estava tão assustado que não pôde se defender, deixando cair as armas e atirando-se ao chão, com os olhos muito abertos, fitos em Tarzan. Com muita dificuldade tranquilizou o homem-macaco os receios do rapaz, conseguindo dele uma explicação coerente quanto à causa do seu inexplicável terror. Tarzan soube então que um bando de homens brancos tinha passado pela aldeia alguns dias antes. Estes homens tinham-lhes comunicado a próxima chegada de um terrível diabo branco que os perseguira, prevenindo assim os indígenas contra o mesmo e o bando horrível de demônios que o acompanhava. O negro reconheceu Tarzan como o diabo branco pelas descrições dadas por aqueles e pelos seus criados negros. Atrás dele esperava o selvagem ver uma horda de demônios disfarçados como macacos e panteras.


Nisto tudo Tarzan viu a mão astuta de Rokoff, que estava procurando tornar-lhe a viagem o mais difícil possível, predispondo os indígenas contra ele, incutindo-lhes um medo supersticioso. O indígena contou ainda a Tarzan que o homem branco que comandava a expedição tinha-lhes prometido uma recompensa fabulosa se matassem o diabo branco. Isto pretendiam eles fazer, caso a oportunidade se apresentasse; mas no momento que viram Tarzan, o sangue se lhes tinha tornado em água, como os carregadores dos homens brancos lhes tinham dito que aconteceria. Verificando que o homem-macaco não fazia nenhuma tentativa para prejudicá-lo, o indígena recobrou finalmente o ânimo, e, a pedido de Tarzan, acompanhou o diabo branco à aldeia, chamando pelo caminho os companheiros, para que voltassem também, pois o diabo branco prometia não lhes fazer mal se regressassem imediatamente e lhe respondessem às suas perguntas. Um por um foram os negros regressando à aldeia; mas que os seus receios não estavam inteiramente dissipados era evidente pelos olhares apreensivos que constantemente lançavam ao homem-macaco. O chefe achava-se entre os primeiros que regressaram à aldeia, e como era com ele que Tarzan estava ansioso por falar, não perdeu tempo em entabular conversa com o negro. Este era baixo e gordo, com uma cara extraordinariamente grosseira e abjeta, e tinha os braços como os de macaco. Sua expressão denotava falsidade. Somente o terror supersticioso produzido nele pelas histórias postas nos seus ouvidos pelos brancos e negros do bando do russo impedia-o de saltar sobre Tarzan com os seus guerreiros e matá-lo aí mesmo, pois ele e o seu povo eram inveterados canibais. Mas o receio de que o branco pudesse ser um diabo de verdade, e que, na selva atrás dele, os seus demônios ferozes


esperavam para executar o que ele lhes mandasse, impediu-o de pôr os seus desejos em ação. Tarzan interrogou demoradamente o negro, e comparando as suas declarações com as do jovem guerreiro com quem primeiro falara, soube que Rokoff e o seu safari haviam se retirado amedrontados em direção da Costa Oriental. Muitos dos carregadores do russo já tinham desertado. Naquela mesma aldeia tinha ele enforcado cinco por tentativa de deserção e roubo. A julgar, todavia, pelo que os Waganwazans souberam de alguns negros do russo, que não recearam desvendar os planos de Rokoff, era evidente que este não viajaria grande distância, antes que o último dos seus carregadores, cozinheiros, portadores de barracas, transportadores de carabinas, askaris e mesmo o seu feitor, o tivessem abandonado, deixando-o à mercê da floresta impiedosa. M’gamuazam negou que houvesse qualquer mulher ou criança entre o bando de brancos; mas Tarzan tinha certeza de que ele estava mentindo. Várias vezes o homem-macaco falou sobre o assunto de diversas maneiras, mas não pôde surpreender o canibal velhaco numa contradição direta de sua declaração original, isto é, não havia mulheres nem crianças com o bando. Tarzan pediu comida ao chefe, e depois de uma longa discussão com ele, conseguiu obter uma refeição. Experimentou então fazer com que alguns outros da tribo falassem, especialmente o jovem que ele tinha capturado na selva; mas a presença de M’gamuazam fez com que eles se calassem. Finalmente, convencido que esta gente sabia muito mais do que lhe tinha contado acerca do lugar onde se achava o russo e o destino de Jane e da criança, Tarzan decidiu ficar toda a noite entre eles, na esperança de descobrir mais alguma coisa de importância.


Quando disse ao chefe o que tinha decidido fazer, ficou um tanto surpreso em ver a mudança repentina da atitude do mesmo para com ele. De aparente desgosto e suspeita M’gamuazam tornou-se um hospedeiro delicado e solícito. Instalou o homem-macaco na melhor choupana da aldeia, da qual expulsou a esposa mais velha, acomodando-se ele, o chefe, temporariamente, na choupana duma das suas consortes mais jovens. Se Tarzan tivesse adivinhado que uma recompensa principesca tinha sido oferecida aos negros, caso eles conseguissem matá-lo, teria compreendido mais cedo a mudança repentina da atitude de M’gamuazam. Se conseguisse que o gigante branco dormisse despreocupadamente numa das suas próprias choupanas, muito facilitaria o negócio de ganhar a recompensa; por isso apressou-se o chefe em sugerir a Tarzan que, estando sem dúvida muito cansado depois das suas viagens, se retirasse cedo aos confortos da choupana nada convidativa. O homem-macaco que detestava dormir dentro de uma choupana indígena, decidira todavia ali dormir esta noite, na esperança de que pudesse persuadir um dos homens mais jovens a conversar com ele diante do fogo que ardia no centro da choupana cheia de fumaça, e daquele obter as verdades que procurava. Assim Tarzan aceitou o convite do velho M’gamuazam, insistindo, contudo, que preferia compartilhar uma choupana com alguns dos jovens a fim de não expulsar a velha mulher do chefe para o frio do relento. A velha desdentada sorriu com esta sugestão, e como o plano ainda melhor servia ao intento do chefe, pois lhe permitiria cercar Tarzan com um bando de assassinos escolhidos, consentiu prontamente, e logo Tarzan foi instalado numa choupana perto do portão da aldeia. Como ia haver uma festa naquela noite, em honra de um bando de caçadores recém-chegados, Tarzan ficou sozinho na choupana, pois os jovens, como M’gamuazam explicou, teriam de tomar parte nas danças.


Logo que viu o homem-macaco seguramente instalado na armadilha, M’gamuazam reuniu ao redor de si os jovens guerreiros que escolheu para passar a noite com o diabo branco. Nenhum deles demonstrou muito entusiasmo pelo plano, pois que no fundo dos seus corações supersticiosos existia um medo exagerado do estranho gigante branco; mas como a palavra de M’gamuazam era lei entre o seu povo, nenhum ousou recusar cumprir as ordens do chefe. Enquanto M’gamuazam explicava o seu plano em voz baixa aos selvagens, agachados ao redor dele, a velha desdentada, que Tarzan não quisera expulsar da choupana, rodeou várias vezes os conspiradores, ostensivamente, sob pretexto de renovar o fornecimento de lenha para a fogueira em volta da qual os homens se achavam agachados, realmente para ouvir do que tratavam. Tarzan tinha dormido talvez umas duas horas apesar do barulho selvagem dos que se divertiam, quando os seus sentidos penetrantes foram repentinamente despertados por um movimento suspeito e clandestino na choupana onde estava deitado. Do fogo só restavam algumas brasas, que acentuavam ainda mais a escuridão que enchia o interior da choupana nauseabunda, mas os sentidos treinados do homem-macaco o avisavam da presença de alguém que se arrastava silenciosamente em sua direção. Duvidava que fosse algum dos seus companheiros de choupana que voltasse da festa, pois ainda ouvia os gritos selvagens dos dançarinos e o barulho dos tambores lá fora, na rua da aldeia. Quem poderia ser, que tanto se esforçava para encobrir a sua chegada? Quando o vulto chegou ao seu alcance, o homem-macaco saltou rapidamente para o outro lado da choupana e empunhou a lança. — Quem é — perguntou ele — que se arrasta na direção de Tarzan dos Macacos, como um leão faminto na escuridão?


— Silêncio, bwana! — respondeu uma velha voz rachada. — É Tambudza, cuja choupana você não quis aceitar, para não enxotar de sua casa uma velha, nem expô-la ao frio da noite. — Que é que Tambudza quer de Tarzan dos Macacos? — Você foi bom para mim, para quem ninguém é bom agora, e vim avisá-lo em recompensa da sua bondade, respondeu a velha. — Avisar-me de quê? — M’gamuazam escolheu os jovens que têm de dormir na choupana com você — explicou Tambudza. — Eu estava perto quando ele estava falando com eles, e ouvi-o dar as suas instruções. Quando a dança estiver para acabar, de manhã, eles entrarão na choupana. Se você estiver acordado, fingirão que vêm dormir, mas se estiver dormindo, é ordem de M’gamuazam que o matem. Se não estiver dormindo, esperarão sossegadamente ao seu lado até que você durma, e então todos cairão em cima de você para matá-lo. M’gamuazam quer ganhar a recompensa que o homem branco lhe ofereceu. — Eu tinha esquecido da recompensa — disse Tarzan, como falando consigo mesmo, e acrescentou: — Como é que M’gamuazam espera receber a recompensa, se os homens brancos, que são os meus inimigos, saíram do país e ele não sabe para onde foram? — Oh, eles não foram para longe — respondeu Tambudza. — M’gamuazam sabe onde estão acampados. Os seus mensageiros poderiam facilmente alcançá-los, pois eles caminham vagarosamente. — Onde estão? — perguntou Tarzan. — Você quer ir até onde eles estão? — perguntou Tambudza em vez de responder. — Quero — confirmou Tarzan. — Não posso dizer-lhe onde estão, de forma que você pudesse sozinho ir até lá, mas posso guiá-lo, bwana.


Devido ao interesse de ambos na conversa, nem um nem outro tinha reparado em um pequeno vulto que entrara na escuridão da choupana atrás deles, nem o viram quando tornou a sair silenciosamente. Era o pequeno Buulaos, o filho do chefe com uma das suas mulheres mais jovens — um maroto vingativo e degenerado, que odiava Tambudza, e estava sempre procurando oportunidade de espiá-la e contar a menor falta ao pai. — Venha, então — disse Tarzan — vamos partir. Isto Buulaos não ouviu, porque já estava correndo pela rua da aldeia acima, indo ao encontro do pai, que estava bebendo cerveja indígena e apreciando as evoluções dos dançarinos frenéticos. Tarzan e Tambudza saíram ocultamente da aldeia e desapareceram na escuridão da selva. Mas, na mesma direção, embora por outro caminho, saíram também dois mensageiros. Quando Tarzan e a velha já se achavam bastante longe da aldeia, para poder falar um pouco alto um com o outro, Tarzan perguntou à velha se ela tinha visto na aldeia uma mulher branca e uma criança. — Sim, bwana — respondeu Tambudza. — Havia uma mulher com eles e uma criança — uma criança branca, que morreu de febre aqui em nossa aldeia, e eles a enterraram.


CAPÍTULO 12: Um patife negro Quando Jane Clayton recobrou os sentidos, viu Anderssen inclinado sobre ela, com a criança nos braços. Quando os seus olhos deram com eles, uma expressão de tristeza e horror cobriu-lhe o rosto inteiramente. — Que tem? — perguntou ele. — Está doente? — Onde está meu filho? — gritou ela, sem lhe responder às perguntas. Anderssen ofereceu-lhe a criança, mas Jane sacudiu a cabeça. — Não é meu — disse ela. — Bem sabes que não é o meu. És um diabo como o russo. Os olhos azuis de Anderssen dilataram-se de surpresa. — Não é seu! — exclamou ele. — Pois não me disse que a criança que estava a bordo do Kincaid era seu filho? — Mas não é este — respondeu Jane com tristeza. — O outro, onde está o outro? Haveria então dois? Eu não sabia que havia a bordo duas crianças. — Não havia lá outra criança. Pensei que este era o seu filho. Sinto muito. Anderssen ficou espantado, sem saber o que pensar de tudo isso. A Jane pareceu que ele era sincero nos seus protestos de ignorância a respeito da verdadeira identidade da criança. Esta começou logo a tagarelar e pular nos braços do sueco, estendendo ao mesmo tempo as mãozinhas na direção da moça. Jane não pôde resistir ao gesto da criança. Soluçando baixinho, pôsse de pé e tomou-a nos braços. Durante alguns minutos ela chorou silenciosamente com o rosto enterrado no vestidinho sujo da criança. Ao convencer-se de que a criança não era o seu queridinho Jack, entrou a pensar que, afinal, bem podia ser que


algum milagre houvesse ocorrido para tirar o seu filho das mãos de Rokoff, no último instante antes da partida do Kincaid da Inglaterra. A pobre mãe considerou também a súplica deste enjeitadinho desamparado no meio dos horrores da selva selvagem. Foi este pensamento, mais do que qualquer outro, que lhe infundiu no coração de mãe um sentimento de piedade para com este anjinho inocente, que não tinha culpa nenhuma da sua desgraça e do seu desapontamento. — Não tens idéia de quem seja esta criança? — perguntou ela a Anderssen. O homem sacudiu a cabeça: — Não sei — disse ele. — Se não é o seu filho, eu não sei de quem possa ser. Rokoff disse que era o seu, e pensei que ele dizia a verdade. E agora? Que iremos fazer dele? Não posso voltar para o Kincaid. Rokoff me mandaria matar; mas a senhora pode voltar. Eu a acompanharei até ao mar, e então alguns destes negros a levarão a bordo. — Não! Não! — gritou Jane. — Por nada deste mundo. Preferiria morrer a cair de novo nas mãos daquele homem. Não, não. Levaremos esta pobre criança conosco. Se Deus quiser, ele nos salvará de um modo ou de outro. Resolveram então continuar a fuga através da selva, levando com eles meia dúzia de Mosulas, para carregar mantimentos e as barracas, que Anderssen tinha escondido dentro do pequeno bote. Os dias e as noites de tortura, que a jovem senhora sofria, entrelaçavam-se de tal modo num longo e horrível pesadelo, que logo perdeu a noção do tempo. Se tinham vagado por dias ou anos, não podia dizer. O único prazer naquela eternidade de horror e sofrimento, era a criancinha, cujas mãozinhas tinham já cerrado fortemente seus dedinhos macios em volta do seu coração de mãe.


De algum modo o pequenino tomou o lugar do outro e preencheu o vácuo dolorido que o sonho do próprio filho lhe tinha deixado. Nunca poderia ser igual, naturalmente; mas, assim mesmo, dia após dia, ela sentiu que o seu amor de mãe estava acolhendo o enjeitado cada vez mais. Às vezes ficava sentada, de olhos fechados, a conjeturar que, afinal, bem podia ser que a criança, que ela trazia aconchegada ao peito, fosse realmente o seu próprio filho. Durante algum tempo a fuga foi extremamente lenta. De quando em quando eram informados pelos indígenas que passavam reunidos da costa em expedições de caça, que Rokoff ainda não tinha atinado com a direção da fuga. Isto, e o desejo de fazer a viagem o mais suave possível para uma senhora tão delicadamente criada, fizeram com que Anderssen só avançasse vagarosamente em caminhadas curtas e fáceis, com muito descanso. O sueco insistiu em carregar a criança quando viajavam, esforçando-se o mais que podia, para que Jane Clayton conservasse as suas forças. Ficara muito acabrunhado quando descobriu o erro acerca da identidade da criança, mas tendo-se a pobre senhora convencido de que as intenções do companheiro eram realmente nobres, não mais permitiu que ele se exprobrasse pelo erro que de maneira alguma poderia ter evitado. No fim de cada dia Anderssen arranjava um abrigo confortável para Jane e a criança! A sua barraca estava sempre colocada no lugar mais favorável. A cerca de espinhos ao redor era a mais forte e mais inexpugnável que os Mosulas podiam construir. A sua comida era a melhor que os parcos mantimentos e a carabina do sueco podiam fornecer, mas o que lhe impressionava mais era a consideração e cortesia delicadas com que ele sempre a tratava. Que tal nobreza de caráter pudesse existir por baixo de um exterior tão repulsivo, não deixava de ser motivo de admiração para ela. Até que enfim


a dignidade inata do homem, e a sua bondade e simpatia haviam modificado o juízo de Jane acerca do caráter de Anderssen. Tinham eles começado a progredir um pouco mais na fuga quando receberam o aviso de que Rokoff estava somente a alguns dias de marcha, e que tinha por fim descoberto a direção dos fugitivos. Anderssen voltou então para o rio, comprando uma canoa de um chefe, cuja aldeia ficava a pouca distância do Ugambi, na margem de um tributário. Daí em diante o pequeno grupo de fugitivos seguiu pelo Ugambi acima, e tão rápida tinha se tornado a fuga, que eles não mais recebiam notícias dos seus perseguidores. Quando já não era possível navegar na canoa, abandonaram a embarcação e internaram-se na floresta. Aí as marchas tornaram-se muito difíceis, vagarosas e perigosas. No segundo dia, depois de deixar o Ugambi, a criança caiu com febre. Anderssen sabia qual seria o fim, mas não teve a coragem de dizer a verdade a Jane Clayton, pois tinha notado que a jovem já amava a criança quase tanto como se esta fosse realmente o seu filho. Como o estado da criança não permitia que eles progredissem mais, Anderssen se afastou um pouco do caminho principal que estava seguindo e fez o acampamento à margem de um pequeno rio. Aqui Jane dedicou todos os momentos em cuidar do entezinho sofredor; e como se a sua tristeza e ansiedade não fossem suficientes, sobreveio um outro golpe com o aviso repentino, que lhes trouxe um dos carregadores Mosulas que tinham ido explorar a selva adjacente, isto é, que Rokoff e o seu bando estavam acampados bem perto deles, e lhes tinham evidentemente seguido a pista até este pequeno recanto que a todos parecera um excelente esconderijo. Esta informação somente poderia significar uma coisa, e esta era que eles precisariam levantar o acampamento e fugir, não obstante o estado


grave em que se encontrava a criança. Jane Clayton conhecia bastante o caráter do russo, para ter a certeza de que este a separaria da criança no momento em que os tornasse a encontrar, mas sabia também que a separação seria morte imediata para a criança. Enquanto caminhava para a frente, através da vegetação e quase encobertos pelo mato, os carregadores Mosulas foram desertando um por um. Os homens tinham sido bastante fiéis em sua devoção e lealdade, enquanto não havia perigo de serem alcançados pelo russo e o seu bando. Mas tinham ouvido tantas coisas acerca da crueldade de Rokoff, que se haviam acostumado a pensar nele com terror mortal, e agora que sabiam que se aproximava dos fugitivos, os seus corações tímidos não os fortaleciam mais, e, tão rápido quanto possível, desertaram. Mas Anderssen e a moça ainda progrediam. O sueco foi adiante, para abrir um caminho pelo mato, pois a vereda estava completamente coberta. Nessa marcha foi necessário à jovem senhora carregar a criança. Caminharam o dia inteiro. À tarde, porém, verificaram que tinham errado o rumo. Logo atrás deles ouviram o barulho de um safari, que avançava pela vereda que eles tinham preparado, e agora servia aos seus perseguidores. Quando lhes pareceu evidente que, dentro em pouco, seriam alcançados, Anderssen escondeu Jane atrás duma árvore grande, cobrindo a moça e a criança com mato. — Há uma aldeia, cerca de uma milha mais adiante — disse ele. — Os Mosulas, antes de desertarem, me disseram onde era situada. Farei todo o possível para desviar o russo do nosso rastro, e a senhora poderá então continuar até a aldeia. Penso que o chefe tem sido bom para os brancos — a julgar pelo que os Mosulas me disseram. Em todo caso, só nos resta este recurso. Peça ao chefe que mande conduzi-la outra vez à aldeia dos Mosulas, onde, passado algum tempo, deverá aparecer um vapor na foz do Ugambi.


Então estará salva. Adeus, senhora, e que Deus a acompanhe é o que lhe desejo. — Mas aonde vai, Sven? — perguntou Jane. Por que não se esconde aqui, para voltar depois à praia comigo? — Eu preciso dizer ao russo que a senhora morreu, a fim de que ele não a procure mais — disse Anderssen, e sorriu. — Por que não me acompanhas depois de lhe teres dito isto? insistiu a senhora. Anderssen sacudiu a cabeça. — Penso que não poderei acompanhar mais ninguém depois de dizer ao russo que a senhora está morta. — Não me queres dizer que julgas que ele te matará? perguntou Jane, posto que, no íntimo, bem sabia que era isto exatamente que faria Rokoff em vingança de ter sido logrado pelo sueco. Anderssen, sem responder à pergunta, aconselhou a moça a guardar silêncio e apontou para o caminho que acabavam de percorrer. — Já não me importa a vida — murmurou Jane Clayton. — Eu não te deixarei morrer, para me salvar, se eu puder evitá-lo de qualquer modo. Dáme o teu revólver. Posso usá-lo, e juntos podemos defender-nos até acharmos alguma maneira de escapar. — Isto não adianta, senhora — respondeu Anderssen. — Eles nos aprisionariam a ambos, e então eu não poderia fazer mais nada. Pense na criança, e o que aconteceria se caísse nas mãos de Rokoff, mais uma vez. Em benefício dela precisa fazer o que digo. Leve a minha carabina e a munição podem ser-lhe úteis. Enfiou a carabina para baixo do abrigo de Jane, e afastou-se. Ela acompanhou-o com o olhar, viu-o dirigir-se ao encontro do safari do russo, que chegava. Logo, uma curva no caminho escondeu-o de todo.


O primeiro impulso de Jane foi segui-lo. Com a carabina ela podia ser-lhe útil, e, ainda mais, ela não podia suportar a idéia de ficar sozinha, ali naquela terrível floresta, sem um amigo para auxiliá-la. Começou a arrastar-se para fora do abrigo, com a intenção de correr atrás de Anderssen o mais ligeiro que pudesse. Puxando a criança para perto de si fitou os olhos no pequeno rosto inocente. Com as facezinhas extremamente vermelhas, a criança ardia em febre. Com um suspiro de terror Jane Clayton saiu do abrigo, deixando aí a carabina. Anderssen, Rokoff e o grande perigo a que estava exposta já não existiam para ela. O que lhe passava pelo cérebro, louco de terror, era a idéia horrível de que essa criança indefesa estava doente com a terrível febre da selva, e que ela, Jane, não podia fazer nada para aliviar os seus sofrimentos — sofrimentos que decerto chegariam. O seu único pensamento era achar alguém capaz de auxiliá-la, alguma mulher que tivesse sido mãe — e, com este pensamento, veio-lhe à lembrança a aldeia da qual Anderssen tinha falado. Se ainda pudesse alcançála! Não havia tempo a perder. Como um antílope assustado, lançou-se a correr pelo caminho, na direção que Anderssen lhe tinha indicado. De longe, chegaram-lhe aos ouvidos gritos repentinos de homens, o barulho de tiros, e depois o silêncio. Julgou que Anderssen tinha encontrado o russo. Meia hora mais tarde chegava ela, exausta, a uma pequena aldeia com casas cobertas de capim. Imediatamente viu-se cercada por homens, mulheres e crianças. Indígenas ávidos, curiosos e excitados fizeram-lhe cem perguntas, nenhuma das quais ela entendia, nem respondia.


O mais que podia fazer era apontar, chorando, para a criança, que também chorava lastimosamente nos seus braços, e repetir diversas vezes: — Febre, febre, febre. Os negros não lhe entendiam as palavras, mas adivinharam a causa da sua aflição e logo uma mulher jovem a levou para dentro de uma choupana e com várias outras pôs-se a fazer tudo que podia para minorar o sofrimento da criança. Chamado o médico feiticeiro, fez este uma pequena fogueira, na qual cozinhou uma mistura estranha numa pequena panela de barro, fazendo passes por cima e murmurando melodias estranhas e monótonas. Mergulhou depois o rabo duma zebra por dentro da mistura, e com alguns murmúrios e fórmulas mágicas, salpicou gotas do líquido sobre o rosto da criança. Depois que ele se retirou as mulheres sentaram-se em volta, e gemeram, lamentaram tanto que Jane supôs que ficaria louca; mas, sabendo que faziam tudo isto por bondade dos seus corações, suportou o horripilante pesadelo daquelas horas terríveis de sofrimento mudo e paciente. Devia ser quase meia-noite quando ouviu um repentino rumor na aldeia: eram os indígenas que discutiam, mas ela não pôde entender as palavras. Depois ouviu passos que se aproximavam da choupana onde estava sentada diante de um fogo vivo, com a criança no colo. O pequenino, muito quieto agora, tinha as pálpebras meio levantadas, mostrando os olhos horrivelmente vidrados. Jane Clayton fitou o rostinho com os olhos cheios de medo. Não era seu filho — não era seu sangue e sua carne — mas como já trazia entranhado no coração esse entezinho querido e indefeso, seu coração, privado do seu próprio filho, tinha-se inclinado para o pequeno enjeitado sem nome, e dera-lhe todo o amor que lhe tinha sido negado durante as compridas e amargas semanas do seu cativeiro a bordo do Kincaid.


Viu que o fim estava próximo, e embora tremesse à idéia da sua perda, esperava que a morte viesse rápida para acabar com os sofrimentos da pequena vítima. Os passos que ouvia fora da choupana pararam diante da porta. Houve um colóquio aos cochichos, e um momento depois M’gamuazam, o chefe da tribo, entrou na cabana. Ainda não o tinha visto, porque as mulheres tinham tomado conta dela logo que penetrou na aldeia. M’gamuazam era um selvagem mal-encarado, com todos os sinais de degeneração brutal estampados na cara bestial. A Jane Clayton ele parecia mais gorila do que homem. Procurou conversar com ela, mas sem resultado; finalmente chamou alguém que estava do lado de fora. Em resposta ao seu chamado entrou outro negro — um homem de aparência muito diversa da de M’gamuazam, tão diferente, de fato, que Jane Clayton concluiu imediatamente que ele era de uma outra tribo. Este homem serviu de intérprete, e logo à primeira pergunta que M’gamuazam lhe fez, concluiu Jane que o selvagem procurava arrancar-lhe informações por algum motivo oculto. Parecia-lhe esquisito que ele se interessasse tanto por ela e por seus planos, assim de repente, e sobretudo pelo destino de sua viagem. Não vendo motivo algum para calar a informação ela contou a verdade: mas quando lhe perguntou se esperava encontrar-se com o marido no fim da viagem, ela sacudiu negativamente a cabeça. Ele então lhe comunicou o fim de sua visita: — Acabo de saber, por alguns homens que moram nas margens da grande água, que seu marido a seguiu pelo Ugambi durante vários dias, quando por fim alguns indígenas e derrotaram e o mataram. Comunico-lhe isto para que não perca mais o seu tempo em uma tão grande viagem, com a esperança de encontrar afinal seu marido; aconselho-a que, em vez disto, regresse para a costa.


Jane agradeceu a M’gamuazam pela sua bondade, embora o coração lhe ficasse amargurado com o sofrimento deste novo golpe. Ela, que tinha sofrido tanto, já se achava conformada com os tormentos mais agudos da desgraça, pois os sentidos já se lhe haviam embotado. Com a cabeça baixa, ficou a olhar fixamente, mas sem ver, o rosto da criança que trazia ao colo. M’gamuazam retirou-se da choupana. Algum tempo depois ouviu ela o barulho de alguém que entrava na cabana. Umas das mulheres que se achavam sentadas a um canto atirou um pedaço de lenha, sobre as brasas quase apagadas. Com a chama repentina, iluminou-se o interior da choupana, como por milagre. As chamas revelaram então ao olhar espantado de Jane Clayton que a criança estava morta. Um nó subiu-lhe à garganta, sufocando-a, a cabeça pendeu entristecida sobre o cadáver da criancinha, que apertou ainda mais de encontro ao peito. Por momentos o silêncio na choupana foi completo. Uma mulher indígena começou a chorar demasiadamente. Um homem tossiu perto de Jane Clayton, pronunciando seu nome. Com um salto levantou os olhos, encarando o rosto satânico de Nikolas Rokoff.


CAPÍTULO 13: Fuga Durante um momento Rokoff ficou olhando para Jane Clayton com desprezo; depois os seus olhos caíram sobre o pequeno fardo que ela trazia ao colo. Jane tinha puxado uma ponta do cobertor para o rosto da criança, de modo que, para quem não conhecia a verdade, parecia que esta se achava dormindo. — Incomodou-se sem necessidade — disse Rokoff — para trazer esta criança a esta aldeia. Se tivesse tratado dos seus próprios interesses, eu mesmo a teria trazido aqui. Teria se poupado aos perigos e cansaço da viagem. Devo agradecer-lhe, porém, ter-me livrado dos incômodos de cuidar de uma criança pequena em viagem. Esta é a aldeia para a qual a criança era destinada desde o princípio. M’gamuazam a criará cuidadosamente, fazendo dela um bom canibal, e se porventura a senhora voltar à civilização sem dúvida lhe dará o que pensar quando comparar o luxo e conforto da sua vida, à vida que o seu filho estará levando na aldeia de M’gamuazam. Mais uma vez agradeçolhe por tê-la trazido aqui. Agora, peço-lhe que a entregue, a fim de que eu possa dá-la aos que a vão criar. E Rokoff estendeu os braços para tomar a criança, com um sorriso sinistro e vingativo nos lábios. Viu, porém, com surpresa, Jane Clayton levantar-se e, sem uma palavra de protesto, entregar-lhe o pequeno embrulho. — Eis aqui a criança — disse ela. — Graças a Deus ela está fora do seu alcance. Compreendendo o sentido destas palavras, Rokoff puxou o cobertor do rosto da criança, para ter a confirmação dos seus receios. Jane Clayton fitou-o bem, para examinar-lhe a expressão. Tinha estado perplexa durante vários dias, cogitando no que faria Rokoff ao descobrir a identidade da criança. Todas as suas dúvidas, porém, desapareceram quando viu a cólera terrível do russo ao verificar que era outra


a criança e que no último momento o seu melhor desejo de vingança tinha sido frustrado por uma força maior. Atirando o corpo da criança novamente nos braços de Jane Clayton, Rokoff bateu fortemente com o pé no chão, e agitou no ar o punho fechado, praguejando horrivelmente. Por fim, parou diante da jovem senhora, e encarando-a de muito perto, trovejou: — Está rindo-se de mim? Pensa que me venceu, hein? Eu lhe mostrarei como tenho mostrado a esse miserável macaco a quem chama seu “marido”, o que significa intrometer-se nos planos de Nikolas Rokoff. — Já que me roubou a criança e eu não posso fazer dela o filho de um chefe canibal, vou fazer da senhora a mulher dum canibal, e isto eu o farei. Se julgou que ia arrancar com estas palavras qualquer sinal de terror a Jane Clayton, enganou-se miseravelmente. O cérebro e os nervos da pobre senhora estavam amortecidos de tantos choques e sofrimentos. Com surpresa, um sorriso fraco mas quase alegre aflorou aos lábios de Jane. Estava ela pensando, com o coração agradecido, que este cadáver não era o do seu pequeno Jack, e que Rokoff evidentemente não sabia a verdade. Gostaria de lhe dizer isto mesmo, mas não seria aconselhável. Se ele continuasse a acreditar que essa criança fora realmente o filho dela, tanto mais seguro estaria o verdadeiro Jack, onde quer que estivesse. Naturalmente, não tinha idéia alguma do lugar onde o seu filho se achava — nem mesmo sabia se ainda vivia. Era bem possível. Era também provável que, sem o conhecimento de Rokoff, o seu Jack tivesse sido substituído por aquela criança por um dos companheiros do russo, e bem podia ser que seu filho pudesse estar a salvo, entre amigos, em Londres, onde havia muitos, que de boa vontade teriam pago qualquer resgate que o falso conspirador pudesse pedir, para restituir o filho de Lorde Greystoke.


Em tudo isto tinha ela pensado cem vezes, desde que descobriu que a criança que Anderssen lhe tinha colocado nos braços aquela noite no Kincaid não era o seu Jack. Não, o russo nunca deveria saber que este não era o seu filho. Bem sabia ela que a sua posição era sem esperança. Com Anderssen e seu marido mortos, não havia ninguém que soubesse onde ela se achava, e, portanto, pudesse socorrê-la. Compreendera que a ameaça de Rokoff não era brincadeira. Que faria ou tentasse fazer, tudo que havia prometido, ela tinha disso toda certeza; mas na pior hipótese somente isso queria dizer que ela se livraria um pouco mais cedo da angústia horrorosa, que estava suportando. Precisava achar um meio de acabar com a vida antes que o russo a fizesse ainda sofrer mais. Agora o que desejava era tempo para pensar e preparar o seu plano. Sentiu que não podia tomar a horrível resolução antes de se lhe esgotar toda e qualquer possibilidade de fuga. Não queria viver sem a companhia do seu filho. Por mais fraca que fosse a sua esperança, custava-lhe admitir que tivesse chegado a sua última hora; era-lhe, porém, forçoso encarar a horrível realidade, isto é, optar por uma destas duas alternativas: — Nikolas Rokoff de um lado e o suicídio de outro. — Retire-se! — disse ela para o russo. — Retire-se e deixe-me em paz com o meu filho. Não lhe bastam ainda as tristezas e angústias que me tem causado? Que mal lhe fiz, para que assim persista em me atormentar? — Está sofrendo pelos pecados do macaco que escolheu, quando podia ter tido o amor de um cavalheiro como Nikolas Rokoff, — replicou ele. — Mas de que serve discutir? Enterraremos a criança aqui; depois irá comigo para o meu acampamento. Amanhã eu a trarei de volta e entregá-la-ei ao seu novo marido — o belo M’gamuazam. Venha! Estendeu os braços para a criança. Jane, que estava agora de pé, voltou-se para ele.


— Eu mesma o sepultarei, disse ela. — Mande alguns homens cavarem uma sepultura fora da aldeia. Rokoff estava ansioso para acabar com tudo isto e voltar ao acampamento com a sua vítima. Julgou ver na apatia da moça uma resignação à sua sorte. Saindo da choupana, fez um sinal para que ela o seguisse e momentos depois, com os seus homens, conduziu Jane para fora da aldeia, onde, debaixo duma grande árvore, os negros cavaram uma sepultura rasa. Embrulhando carinhosamente o pequenino cadáver em um cobertor, Jane deitou-o com ternura na cova, e, virou a cabeça para não ver a terra cair sobre o pequeno morto, murmurou uma oração ao lado do túmulo do pequenino desconhecido, ao qual havia dado um lugar no seu coração de mãe. Depois, com os olhos enxutos, mas com o coração a sangrar, levantou-se e seguiu o russo pela escuridão da floresta, ao longo do caminho tortuoso coberto de folhagem que saía da aldeia de M’gamuazam, o canibal, até ao acampamento de Nikolas Rokoff, o diabo branco. Ao lado deles, nos bosques impenetráveis que margeavam o caminho, formando um arco de folhagem tão denso que encobria a lua, a jovem senhora podia ouvir os passos surdos e abafados, quase imperceptíveis, de grandes animais, e os berros horríveis de leões que andavam à caça. Os selvagens acenderam fachos, que agitavam de ambos os lados, para espantar as feras. Rokoff pediu-lhes que se apressassem, e pelo tom severo de sua voz, Jane Clayton percebeu que estava transtornado de medo. Os rumores da noite e da selva recordavam a Jane os dias e noites que tinha passado numa floresta semelhante com o seu deus das selvas — o destemido e invencível Tarzan dos Macacos. Nesse tempo não lhe vinha à mente nenhum pensamento de medo, embora os barulhos da selva fossem novos para ela, e o urro do leão lhe tivesse parecido o som mais horrível da terra.


Quão diferente não seria agora se soubesse que ele estava em algum lugar aí na selva, procurando-a! Então, de verdade, haveria alguma coisa que lhe desse o gosto de viver, e teria razão para acreditar que o seu socorro estava perto. — Mas Tarzan estava morto! Parecia não haver lugar na morte para aquele grande corpo e aqueles músculos poderosos. Se tivesse sido Rokoff que lhe contasse a morte do marido, ela saberia ser mentira. Mas não havia razão, pensava, para que M’gamuazam a enganasse. Ignorava que o russo tinha falado com o selvagem poucos minutos antes de contar-lhe o chefe a sua história. Finalmente chegaram à rude boma que os selvagens de Rokoff tinham feito em volta do acampamento. Aqui encontraram eles tudo em alvoroço. Jane não sabia o que isso significava, mas viu que Rokoff estava muito zangado, e, pela conversa que pôde entender, compreendeu que tinha havido mais deserções enquanto ele estivera ausente, e que os desertores tinham levado a maior parte dos mantimentos e das munições, Quando acabou de desabafar a sua raiva sobre os que ficaram, Rokoff voltou para onde estava Jane sob a guarda de dois dos seus marinheiros brancos. Agarrou-a grosseiramente pelo braço e começou a puxála para a sua barraca. Ela debatia-se, lutando desesperadamente para livrar-se, enquanto os dois marinheiros ficaram de parte, rindo-se de tão raro espetáculo. Rokoff não hesitou em usar métodos brutais quando descobriu que ia ter dificuldade em alcançar os seus desígnios. Rapidamente esbofeteou Jane Clayton, que afinal, meio tonta, foi levada para dentro da barraca. O empregado de Rokoff, que tinha acendido a lâmpada, desapareceu a uma palavra do patrão. Jane caíra no chão. Rapidamente, porém, os seus olhos correram em volta do interior da barraca, notando cada detalhe de sua arrumação e conteúdo. O russo abaixou-se para levantá-la.


Os olhos de Jane Clayton fixaram-se no revólver que ele trazia no cinto. Seu primeiro pensamento foi ver se conseguia apoderar-se dessa arma. Fingiu porém que perdera novamente os sentidos; mas por entre as pálpebras meio fechadas esperou melhor oportunidade. Esta chegou logo. Um barulho na porta da barraca fez com que ele voltasse a cabeça. A coronha do revólver estava a menos de uma polegada ao alcance da mão de Jane. Com um movimento rápido como o relâmpago, ela tirou-lhe a arma da cintura. No mesmo instante Rokoff virou-se percebendo logo o perigo. Ela não ousou atirar com receio de que o tiro chamasse a atenção dos que estavam fora da barraca; e por considerar que morto Rokoff, ela cairia em mãos nada melhores do que as dele. A lembrança dos dois brutos que ficaram a rir-se quando Rokoff lhe batera, ainda estava bem viva na sua memória. Quando a cara enraivecida e cheia de medo do eslavo se virou para ela, Jane Clayton levantou o pesado revólver, e com toda a sua força deu uma terrível pancada entre os olhos do russo, o qual, sem dizer uma palavra, caiu, inerte e sem sentidos. A moça ficou de pé ao lado dele, livre, ao menos por momentos, da luxúria do monstro. Fora da barraca, mais uma vez ouviu o barulho que tinha distraído a atenção de Rokoff. O que seria, ela não sabia; mas, receando que o criado voltasse e descobrisse o que se havia passado, caminhou rapidamente para a mesinha onde estava colocada uma lâmpada a óleo, e apagou a chama nauseabunda. Na completa escuridão do interior, estacou imóvel por momentos, para se acalmar e planejar o que em seguida lhe cumpria fazer para reconquistar a liberdade.


Ao redor dela estava um acampamento de inimigos. Além destes inimigos um grande espaço enegrecido de selva selvagem, povoado de horríveis animais ferozes e animais humanos ainda mais horríveis. Havia pouca ou nenhuma esperança que ela pudesse sobreviver mesmo por poucos dias aos perigos constantes que a esperavam aí; mas a experiência que já tinha adquirido através de tantos perigos, e a idéia de que, em algum lugar no mundo, uma criancinha estava sem dúvida naquele mesmo momento chorando por ela, fizeram com que se resolvesse a executar o que lhe parecia impossível, isto é, atravessar aquela terra de martírios à procura do mar e da obscura esperança do socorro que pudesse encontrar aí. A barraca de Rokoff estava colocada quase no centro da boma. Ao redor estavam as tendas e abrigos dos seus companheiros brancos e dos indígenas. Para passar por entre estes e achar saída através da boma, parecialhe uma tarefa por demais cheia de obstáculos insuperáveis para lhe merecer a menor consideração, mas não havia outro caminho. Ficar na barraca até que fosse descoberta, seria, perder tudo que tinha arriscado para ganhar a sua liberdade, e, por isso, com passos silenciosos e todos os sentidos alertas, chegou ao fundo da barraca, a fim de encetar a primeira parte da aventura. Apalpando ao longo da parte traseira da barraca, descobriu que não existia nenhuma abertura. Voltou então para perto do russo, em cujo cinto os seus dedos encontraram o cabo duma comprida faca de caça, e com esta fez um buraco na parte traseira da barraca. Silenciosamente, saiu. Com imenso alívio viu que o acampamento estava aparentemente adormecido. À luz fraca e trêmula das fogueiras que se extinguiam, viu uma única sentinela, que estava cochilando de cócoras no lado oposto da estacada. Conservando a barraca entre ambos, Jane atravessou por entre os pequenos abrigos dos carregadores indígenas, até além da boma.


Lá fora, da escuridão da espessa floresta, chegaram-lhe aos ouvidos os urros dos leões, os rugidos das hienas, e os inumeráveis rumores sem nome da floresta à noite. Jane hesitou um momento, tremendo. A idéia dos animais lá fora na escuridão era horrível. Contudo, sacudindo corajosamente a cabeça, investiu contra a cerca de espinhos ferindo as mãos delicadas. Embora estivessem feridas e ensangüentadas, trabalhou sem parar até fazer uma abertura pela qual pudesse passar. Finalmente viu-se do lado de fora da estacada. Atrás dela ficava uma sorte pior do que a morte, pelas mãos de seres humanos. Diante dela ficava uma morte quase certa — mas era apenas a morte — repentina e misericordiosa — e honrosa. Sem um tremor e sem arrependimento, fugiu do acampamento, e um momento depois a selva tinha-se fechado misteriosa em volta dela.


CAPÍTULO 14: Sozinha na selva Tambudza, conduzindo Tarzan dos Macacos na direção do acampamento do russo, movia-se vagarosamente ao longo do caminho tortuoso da selva, pois era velha e as suas pernas estavam endurecidas pelo reumatismo. Assim foi que os mensageiros, despachados por M’gamuazam para avisar Rokoff que o gigante branco estava em sua aldeia e que ele seria morto naquela noite, chegaram ao acampamento do russo antes que Tarzan e sua velha guia tivessem percorrido metade da distância. Os mensageiros encontraram o acampamento do homem branco em alvoroço. Rokoff tinha sido descoberto naquela manhã desacordado e ensangüentado dentro da sua barraca. Quando recobrou os sentidos e soube que Jane Clayton tinha fugido, a sua raiva foi sem limite. Correndo pelo acampamento com a sua espingarda, tentou matar os sentinelas indígenas que tinham deixado a jovem senhora escapar à sua vigilância; mas vários dos outros brancos, conhecendo que eles já estavam numa posição difícil, devido às numerosas deserções que a crueldade de Rokoff tinha causado, pegaram-no e desarmaram-no. Entretanto, chegaram os mensageiros de M’gamuazam; apenas acabaram de contar a sua história, dispôs-se Rokoff a partir com eles para a sua aldeia. Eis senão quando, outros mensageiros, ofegando de cansaço pela corrida através da floresta, chegaram esbaforidos acercando-se da claridade da fogueira, gritando que o grande gigante branco tinha escapado de M’gamuazam e já estava em caminho para vingar-se dos seus inimigos. Imediatamente houve grande confusão dentro da boma. Os negros que pertenciam ao grupo de Rokoff, ficaram amedrontados quando souberam da proximidade do gigante branco que caçava na selva com um bando feroz de macacos e panteras.


Antes que os brancos assentassem no que havia de fazer, o receio supersticioso dos indígenas fez com que estes fugissem para a selva — tanto os seus próprios carregadores assim como os mensageiros de M’gamuazam; — mas, apesar da pressa com que fugiram, não deixaram de levar com eles todos os artigos de valor que encontraram. Rokoff e os sete marinheiros brancos ficaram assim abandonados no meio do mato. O russo, conforme seu costume, zangou-se com os seus companheiros, culpando-os pelos acontecimentos que antecederam a situação, quase sem esperança, em que se encontravam agora; mas os marinheiros não estavam dispostos a aturar os seus insultos e as suas pragas. No meio da altercação um dos marinheiros puxou um revólver e atirou no russo, errando, porém, o alvo. Mas esse gesto de rebeldia assustou de tal modo a Rokoff que ele fugiu, correndo para a sua barraca. Nessa corrida, os seus olhos, por acaso, distinguiram além da boma, na orla da floresta, alguma coisa que estarreceu de pavor o seu vil coração, e tanto que ele quase esqueceu o terror dos sete homens, dos quais vinha fugindo e cujo ódio e vingança estavam prestes a explodir, liquidando-o. O que ele viu foi a enorme figura de um homem branco, seminu, saindo da selva. Arremessando-se para dentro da barraca, o russo não parou na fuga, mas continuou através da lona que ficava na retaguarda, aproveitando-se do corte que Jane Clayton tinha feito na véspera. Tarzan penetrou no acampamento pelo lado oposto, enquanto Rokoff desaparecia na selva. Quando o homem-macaco entrou na boma com a velha Tambudza ao seu lado, os sete marinheiros reconhecendo-o, voltaram-se e fugiram em direção oposta. Tarzan viu que Rokoff não estava no meio deles, e por isso deixou-os fugir. — O seu negócio era com o russo, que esperava encontrar em sua barraca. Quanto aos marinheiros, tinha certeza que a selva lhes exigiria


a expiação dos seus pecados, e sem dúvida não se enganava, pois os seus olhos foram os últimos a ver qualquer um deles. Encontrando a barraca de Rokoff vazia, Tarzan ia à procura do russo quando Tambudza sugeriu que a partida do homem branco só poderia ser em conseqüência de ter ele recebido aviso de M’gamuazam de que Tarzan estava em sua aldeia. — Sem dúvida apressou-se em ir lá — raciocinou a velha. — Se quiser encontrá-lo, vamos voltar imediatamente. Tarzan pensou que provavelmente seria isso mesmo; por isso não gastou tempo em localizar a pista do russo; mas, em vez disto, partiu rapidamente na direção da aldeia de M’gamuazan, deixando Tambudza caminhar vagarosamente no seu rastro. A sua única esperança era que Jane ainda estivesse em poder de Rokoff. Se assim fosse, seria apenas uma hora ou pouco mais, até que pudesse arrancá-la das mãos do russo. Sabia agora que M’gamuazam era traiçoeiro e que, por certo, teria de lutar para recuperar sua esposa. Gostava que Mugambi, Sheeta, Akut, e o resto do bando estivessem com ele, pois bem sabia que sozinho não seria fácil livrar Jane das garras de dois patifes como Rokoff e o velhaco M’gamuazam. Com surpresa, não encontrou nenhum sinal nem de Rokoff nem de Jane na aldeia, e como não podia confiar na palavra do chefe, não gastou tempo em perguntas inúteis. Tão repentino e inesperado foi o seu regresso, e tão rapidamente tinha ele desaparecido na selva depois de saber que aqueles que procurava não estavam entre os Waganwazans, que o velho M’gamuazan não teve tempo de evitar a sua partida. Balançando-se

pelas

árvores,

voltou

apressadamente

ao

acampamento abandonado, que tão recentemente tinha deixado, pois bem sabia que era ali o lugar mais lógico para descobrir a pista de Rokoff e Jane.


Chegando à boma, rodeou cuidadosamente o lado externo da estacada, até uma abertura na cerca de espinhos, onde notou indícios de que alguma coisa tinha passado recentemente para a selva. O seu agudo olfato dizia-lhe que ambas as pessoas que procurava tinham fugido do acampamento nesta direção. Momentos depois já tinha a certeza de estar na pista daqueles a quem buscava. Muito adiante dele uma jovem mulher, tomada de medo, andava furtivamente ao longo de um caminho estreito freqüentado por animais, receosa de que, a cada momento, tivesse de enfrentar algum animal ou homem igualmente selvagem. Sem estar muito certa de que estivesse palmilhando em direção do grande rio, ela chegou inesperadamente a um lugar conhecido. Para um lado do caminho, debaixo de uma grande árvore, estava um pequeno monte de mato frouxamente empilhado. Até a hora da sua morte aquele pedacinho de selva ficaria impresso indelevelmente na sua memória. Era o lugar onde Anderssen a tinha escondido — onde ele entregou a Deus a sua vida, num esforço inútil para salvá-la de Rokoff. À vista disto, lembrou-se da carabina e munição que ele lhe aconselhara a levar no último momento. Até então ela os tinha esquecido completamente. Trazia ainda na mão o revólver que tinha arrancado do cinto de Rokoff; mas essa arma só poderia conter, no máximo, seis balas que não eram suficientes para fornecer-lhe comida e proteção na grande viagem para o mar. Com a respiração presa procurou por baixo do pequeno monte, mal ousando esperar que o tesouro ainda estivesse onde o tinha deixado; mas, com imenso alívio e alegria, a sua mão imediatamente encontrou o cano da pesada arma e logo depois a bandola de balas. Ao colocar a arma no ombro, ao sentir o peso da grande espingarda, a pobre senhora experimentou uma repentina sensação de


segurança. Foi com novo alento e uma esperança de sucesso quase assegurado que, mais uma vez, se pôs a caminho. Aquela noite dormiu na forquilha de uma árvore, como Tarzan lhe tinha dito tantas vezes que costumava fazer. No dia seguinte, muito cedo, prosseguiu na viagem. Ao escurecer, quando ia atravessar um pequeno trecho limpo, ficou assustada ao ver um enorme macaco saindo da selva ao lado oposto. O vento estava soprando diretamente na direção do animal. Jane não perdeu tempo em pôr-se contra o vento a fim de não ser percebida pela enorme criatura: escondeu-se num bosque fechado e ficou alerta segurando a carabina pronta para uso imediato. Vagarosamente o monstro avançou, farejando o chão de vez em quando, como se estivesse seguindo um rastro. Mal dera, porém, o animal uma dúzia de passos, outro macaco saiu da selva, e depois outro e mais outro, até cinco desses animais ferozes. A moça continuava, estarrecida, agachada no seu esconderijo, com a pesada carabina pronta para o que desse e viesse. Com grande consternação sua viu que os macacos estacionavam na clareira. Formavam um pequeno grupo, e ficaram olhando para trás, como se estivessem à espera de outros de seu bando. Jane esperou imóvel que eles prosseguissem seu caminho, pois bem sabia que, a qualquer momento, algum pequeno ruído lhes poderia dar sinal de sua presença, e então de que serviria a proteção da sua carabina contra aqueles músculos gigantescos, aqueles dentes enormes? Os seus olhos moviam-se entre os macacos e a orla da selva, para onde eles estavam olhando, até que por fim percebeu porque haviam parado. Estavam sendo perseguidos. Disto teve ela a certeza, quando viu o corpo vigoroso e flexível de uma pantera sair silenciosamente da selva no ponto de onde os macacos tinham saído momentos antes.


Ligeiro, o animal atravessou a clareira, na direção dos antropóides. Jane admirou-lhe a aparente indolência, e grande foi a sua surpresa ao ver a pantera chegar bem perto dos macacos, que pareciam inteiramente indiferentes à sua presença, e assentar-se de cócoras entre eles começando a lamber-se e alisar o pêlo, o que ocupa a maior parte das horas aproveitáveis da vida dos felinos. Se a jovem senhora se admirou de ver estes inimigos naturais confraternizando, foi com ainda mais terror que viu um guerreiro alto, musculoso, sair do mesmo lugar e juntar-se ao grupo de animais selvagens. Logo que viu o homem, pareceu-lhe que ele ia ser despedaçado; e já se preparava para levar a carabina ao ombro, a fim de fazer o que pudesse para evitar a morte horrível do homem. Com assombro, viu, porém, que ele parecia estar conversando com os animais — dando-lhes ordens. Logo todo o bando atravessou a clareira e desapareceu na selva do outro lado. Com um suspiro, misto de incredulidade e alívio, Jane Clayton levantou-se e fugiu do terrível bando que acabava de passar, enquanto meia milha atrás dela um outro indivíduo, seguindo o mesmo rastro, ficou gelado de terror atrás de um cupinzeiro, quando o horrível bando passou bem perto dele. Este era Rokoff, que tinha reconhecido os membros do horrível grupo como sendo os aliados de Tarzan dos Macacos. Logo, portanto, que os animais desapareceram, levantou-se e fugiu pela selva tão ligeiro quanto podia correr, a fim de pôr a maior distância possível entre ele e estes terríveis animais. Assim aconteceu que quando Jane Clayton chegou à beira do rio, pelo qual esperava flutuar até o oceano e alcançar a liberdade, Nikolas Rokoff estava apenas a pequena distância, na sua retaguarda.


Junto da margem do rio viu ela uma grande embarcação puxada quase fora da água e amarrada fortemente a uma árvore próxima. Isto, pensou, resolveria a questão de transporte para o mar, se pudesse fazer flutuar a enorme e pesada embarcação. Desamarrando a corda com a qual estava presa à árvore, Jane empurrou com frenesi a proa do pesado barco, mas foi o mesmo que se tentasse empurrar a terra fora da sua órbita. Já estava quase exausta, quando lhe ocorreu que seria melhor experimentar fazer a embarcação sair carregando a popa com pedras e depois balançar a proa de trás para diante, ao longo da margem, até a embarcação escorregar para dentro do rio. Não havia, porém, nem pedras, nem rochedos à mão; ao longo da margem, achou uma quantidade de lenha amontoada e depositada pelo rio num lugar um pouco mais para cima. Esta ela ajuntou e empilhou bem na popa da canoa, até que finalmente, com imenso alívio, viu a proa desprenderse aos poucos da lama que ficava à margem e a popa flutuar vagarosamente com a correnteza até ficar, mais uma vez, presa a pequena distância um pouco mais abaixo. Jane começou então a correr para trás e para frente, da proa à popa, para que o barco se desprendesse novamente. Quando o sucesso do seu plano estava próximo de se realizar, ficou tão absorta nos seus esforços que não notou o vulto de um homem que estava por baixo de uma enorme árvore à beira da selva, de onde ela acabava de sair. Ele a vigiava com um sorriso cruel e malicioso no rosto trigueiro. Finalmente quando faltava pouco para a canoa se soltar da lama e da margem, Jane viu que podia acabar de empurrá-la para o rio com o auxílio de um dos remos que estavam no fundo da tosca embarcação. Com esta idéia, apanhou um deles e mergulhou-o no fundo do rio perto da margem, quando os seus olhos, por acaso, se levantaram até a beira da selva. E um grito de


terror irrompeu-lhe dos lábios ao reconhecer o vulto do homem que olhava para ela. Era Rokoff. Este vinha correndo em sua direção, gritando que esperasse ou ele atiraria — mas como estava completamente desarmado, era difícil saber como poderia cumprir a sua ameaça. Jane Clayton nada sabia das várias desgraças que tinham acontecido ao russo desde que fugira da sua barraca; por isso, julgou que os seus companheiros estavam próximos. Contudo, não era sua intenção cair novamente nas garras desse homem. Preferiria morrer imediatamente. Mais um minuto e a canoa ficaria solta. Uma vez na correnteza do rio, estaria fora do alcance de Rokoff, pois não havia outra canoa na beira do rio e nenhum homem, e muito menos o covarde Rokoff — teria coragem de nadar naquelas águas cheias de crocodilos, num esforço para apanhá-la. Rokoff, da sua parte, estava mais interessado em salvar-se a si próprio do que qualquer outra coisa. Com muita satisfação renunciaria a qualquer desígnio que ainda pudesse ter para com Jane Clayton, caso esta lhe permitisse compartilhar este modo de fuga que tinha descoberto. Prometeria seja o que for que ela desejasse se o recolhesse a bordo da embarcação; mas não julgava que fosse necessário fazer isto. Viu que podia facilmente alcançar a proa antes que a mesma deixasse a praia, e então não seria necessário fazer promessas de qualquer espécie. Já estava até antegozando os dias e as noites de vingança que teria enquanto a embarcação se dirigisse vagarosamente na direção do oceano. Jane Clayton, trabalhando furiosamente para empurrar a canoa, julgou que o conseguiria, pois com um pequeno desvio a embarcação passou ligeiramente para a correnteza, justamente no momento em que Rokoff


procurava colocar a mão na proa. Mas os dedos do russo perderam o alvo, por menos de meia dúzia de polegadas. A moça quase caiu com a reação do horrível esforço mental, físico e nervoso, sob a qual tinha trabalhado, durante os últimos minutos. Mas, graças a Deus, estava finalmente livre! Enquanto rezava uma prece silenciosa, de agradecimento, viu, porém, uma expressão repentina de triunfo clarear os traços do russo que estava rogando pragas, e ao mesmo instante, se atirou repentinamente ao chão, agarrando com toda a força alguma coisa que se insinuava pela lama e para a água. Jane Clayton abaixou-se, com os olhos esbugalhados e tomada de espanto, no fundo da canoa quando compreendeu que no último momento o sucesso tinha falhado, e que, mais uma vez, ela estava em poder do maligno Rokoff. A coisa que o homem tinha visto e agarrado era a ponta da corda, com a qual a embarcação tinha sido amarrada à árvore.


CAPÍTULO 15: Descendo o rio Ugambi No meio do caminho, entre o Ugambi e a aldeia dos Waganwazans, Tarzan encontrou o bando que caminhava vagarosamente ao longo da sua antiga pista. Mugambi estava longe de pensar que o bando havia passado tão perto da pista do russo e da companheira do seu patrão selvagem. Parecia incrível que dois seres humanos chegassem tão perto deles sem que tivessem sido descobertos por alguns dos animais maravilhosamente espertos a alertas; mas Tarzan mostrou a pista dos dois que ele tinha seguido, e em certos pontos o negro poderia ver que o homem e a mulher deveriam ter estado escondidos quando o bando passou por eles, vigiando cada movimento das ferozes criaturas. Tinha ficado claro a Tarzan, desde o princípio que Jane e Rokoff não estavam viajando juntos. A pista demonstrava claramente que a jovem senhora tinha estado, a princípio, a considerável distância diante do russo. Quanto mais o homem-macaco prosseguia ao longo do rastro tanto mais claro lhe parecia que Rokoff estava rapidamente alcançando a sua presa. No princípio havia o rastro de animais selvagens sobre as pegadas de Jane Clayton; e por cima de todos eles o rastro de Rokoff demonstrou que ele tinha passado por ali depois que os animais tinham deixado as suas marcas no chão. Mas, depois, havia cada vez menos pegadas de animais entre as de Jane e as do russo. Ao chegar ao rio, o homem-macaco ficou ciente de que Rokoff não podia ter estado mais que algumas cem jardas atrás da moça. Julgou então que eles deveriam estar agora pouco adiante e, com um leve tremor de esperança, tornou rapidamente à frente do seu bando. Balançando-se celeremente pelas árvores, saiu na margem do rio, no mesmo lugar onde Rokoff tinha alcançado Jane, quando esta procurava lançar na água a embarcação.


Na lama, ao longo da margem, o homem-macaco viu as pegadas dos dois que procurava; mas não havia nem embarcação nem gente, nem, à primeira vista, qualquer sinal do rastro deles. Era evidente que tinham impelido para o rio uma canoa indígena e embarcado nela. Quando o homem-macaco olhou ligeiramente pelo rio abaixo, através dos ramos das árvores pendentes, viu ao longe, numa curva que lhe obstruía a vista, uma embarcação, na popa da qual estava o vulto de um homem. Justamente quando o bando de animais avistou o rio, viram eles o seu chefe correr agilmente, pulando de pedra em pedra, pela margem do terreno pantanoso que se estendia entre eles e um pequeno promontório que se erguia justamente onde o rio fazia uma curva para dentro. Para segui-lo, era necessário aos pesados macacos e a Sheeta darem uma grande volta. Mugambi seguiu atrás deles tão rapidamente quanto possível, na retaguarda do grande chefe branco. Uma viagem de meia hora através do terreno pantanoso e sobre o promontório levou Tarzan, por um pequeno atalho, à curva do rio, onde viu a embarcação na correnteza, e na popa Nikolas Rokoff. Jane não estava com o russo. Ao ver seu inimigo a larga cicatriz sobre a testa do homem-macaco ficou escarlate, e saiu dos lábios de Tarzan o grito horrível e brutal do macaco. Rokoff estremeceu quando o alarme estranho e terrível chegou aos seus ouvidos. Agachando-se no fundo da canoa os seus dentes começaram a bater de medo. Acompanhava com os olhos o homem, que temia mais do que tudo sobre a face da terra. Viu que Tarzan corria rapidamente para a beira da água. Embora o russo soubesse que estava a seguro do seu inimigo, o simples fato de o ver de longe fez que ele se tomasse de um terror covarde e


trêmulo, que se transformou em uma histeria frenética quando viu o gigante branco mergulhar nas águas do rio. Com braçadas firmes e poderosas o homem-macaco nadou na direção da embarcação. Rokoff apanhou então um dos remos que estavam no fundo da canoa, e com olhos cheios de terror mais fixos no vulto que o perseguia, fez todo o esforço possível para aumentar a velocidade da canoa pouco manejável. Entretanto, do lado oposto, um borbulhar sinistro, não visto por nenhum dos dois homens, movia-se firmemente na direção do nadador seminu. Tarzan tinha alcançado finalmente a popa da embarcação, e com a mão estendida para cima agarrou o alcatrate. Rokoff ficou estarrecido de medo, sem se poder mover, com os olhos fixos no rosto do seu Nêmesis. Nesse momento uma agitação repentina na água, atrás do nadador, chamou-lhe a atenção. Ele viu o movimento das águas e sabia o que o causava. No mesmo instante Tarzan sentiu uma queixada poderosa ferrarlhe na perna direita. Tentou desvencilhar-se subindo para um dos bordos da canoa. Os seus esforços seriam bem sucedidos se esta interrupção inesperada não tivesse despertado o cérebro maligno do russo para uma ação imediata visando ao mesmo tempo a liberdade e a vingança. Como uma cobra venenosa Rokoff pulou para a popa da canoa e com o pesado remo desfechou vigorosa pancada na cabeça de Tarzan. Os dedos do homem-macaco desprenderam-se do alcatrate. Houve uma pequena luta na superfície, um reboliço na água, um pequeno redemoinho, e uma porção de bolhas afloraram e desfizeram-se na corrente, designando assim o lugar onde Tarzan dos Macacos, Senhor da Selva, desapareceu da vista dos homens por baixo das águas turvas do Ugambi escuro e amaldiçoado.


Trêmulo de medo, Rokoff deixou-se cair no fundo da embarcação. Por momentos não pôde gozar da boa fortuna que, mais uma vez, lhe sorrira; tinha ainda diante dos olhos a visão de um homem branco debatendo-se nas águas e depois desaparecendo na superfície do rio. Aos poucos, tudo que isto significava foi despertando na mente do russo, e então um sorriso cruel de alívio e triunfo aflorou-lhe aos lábios; mas foi de pouca duração, pois justamente quando se estava congratulando por essa inesperada liberdade para prosseguir na viagem para a costa sem ser molestado, um grande barulho levantou-se da margem do rio. Quando os seus olhos procuraram os autores de tal barulho viu de pé, na praia, fitando-o com os olhos fulgurantes de ódio, uma pantera cercada pelos medonhos macacos de Akut, e à frente do bando um gigante negro, sacudindo o pulso para ele, ameaçando-o com uma morte terrível. O pesadelo daquela fuga pelo Ugambi com o horrível bando de feras a segui-lo pela margem dia após dia, agora juntos, outras vezes perdidos nos labirintos da selva, para aparecer novamente sobre o seu rastro, medonhos, inexoráveis, terríveis, reduziu o russo, de homem forte e robusto, a um homem magro, com cabelos brancos, tomado de terror, antes que pudesse ver a baía e o oceano. Ele tinha passado por aldeias bem populosas. Várias vezes alguns guerreiros tinham subido em suas canoas para interceptar-lhe a passagem; mas sempre o horrível bando tinha aparecido, amedrontando os indígenas, que fugiam da margem, internando-se na selva. Durante a fuga não mais vira sinal de Jane Clayton. Nem uma vez os seus olhos tornaram a vê-la desde aquele momento à beira do rio, quando agarrava a corda amarrada à proa da embarcação. E ele que pensara que ela estava novamente em seu poder! Que teria acontecido? Talvez a moça tivesse sido presa por guerreiros de uma das várias aldeias, por onde teria sido forçada a passar no


seu caminho para o mar. Enfim, ao menos, ele estava livre da maioria dos seus inimigos humanos. Mas, como gostaria de tê-los ainda uma vez na terra dos vivos, se pudesse livrar-se da constante ameaça dos horríveis animais que o perseguiam com inexorável persistência, gritando e rosnando para ele, cada vez que o avistavam! De todos eles o que lhe causava maior pavor era a pantera — com os seus olhos flamejantes e com a sua face demoníaca, cujas presas se abriam para ele de dia, e cujos olhos vermelhos brilhavam perversamente através da escuridão da noite. A vista da foz do Ugambi trouxe a Rokoff alguma esperança, pois, aí, sobre as águas amarelas da baía, flutuava o Kincaid ancorado. Ele tinha ordenado que o pequeno vapor partisse para receber carvão enquanto ele subia o rio, deixando Paulvitch tomando conta. Ao avistar o navio, Rokoff chorou de alívio, pois o vapor tinha voltado a tempo de salvá-lo. Remou furiosamente na direção do vapor, erguendo-se e agitando o remo, gritando alto para atrair a atenção dos que estavam a bordo. Mas embora gritasse, os seus gritos não tiveram nenhuma resposta do tombadilho da embarcação silenciosa. Na praia, atrás dele, lá estava, seguindo-lhe os movimentos, o bando impertinente. — Ainda aqui — pensou — estes demônios com aparência de homens poderiam achar uma maneira de alcançá-lo, mesmo sobre o tombadilho do vapor, a não ser que tivesse alguém lá para repeli-los com armas. Que poderia ter acontecido àqueles que ele tinha deixado no Kincaid? Onde estava Paulvitch? Seria possível que o vapor estivesse abandonado, e que, apesar de tudo, ele, Rokoff, se visse condenado a ser vencido pela horrível sorte da qual tinha escapado durante tantos dias e noites terríveis? A essa idéia, estremeceu como alguém sobre cuja fronte a morte já pusera o seu dedo viscoso.


Contudo não deixou de remar com força na direção do vapor. Finalmente, depois do que lhe parecia uma eternidade, a proa da embarcação bateu contra o costado do Kincaid. Do vapor pendia uma escada de corda; mas quando o russo começou a subir para o tombadilho, ouviu um grito ameaçador e olhando para cima, deu com o cano frio e implacável de uma carabina. Depois que Jane Clayton, com a carabina apontada para o peito de Rokoff, tinha conseguido afastá-lo até que a embarcação em que ela se refugiou alcançasse o meio do Ugambi, além do alcance do homem, ela ganhara tempo, remando na correnteza mais forte do canal. Durante longos dias e noites fatigantes conservou a sua embarcação na parte do rio onde podia avançar com mais rapidez; durante as horas mais quentes do dia deixava a correnteza levá-la, ficando deitada no fundo da canoa, com o rosto protegido do sol por uma grande folha de palmeira. Somente desta maneira é que descansou na viagem; a maior parte do tempo continuamente procurou aumentar a marcha da embarcação manejando o pesado remo. Rokoff, ao contrário, tinha usado pouca ou nenhuma inteligência em sua fuga ao longo do Ugambi, tanto que a maior parte das vezes a sua embarcação tinha ficado à mercê da correnteza; pois quase sempre procurou ficar perto da margem oposta àquela ao longo da qual o bando horrível das feras o perseguia e ameaçava. Assim foi que, embora partindo pouco tempo depois da moça, esta chegou à baía duas horas antes dele. Quando avistou o vapor ancorado na água tranqüila, o coração de Jane Clayton bateu ligeiramente com esperança e agradecimento; mas quando chegou mais próximo à embarcação e viu que era o Kincaid, o seu prazer tornou-se em grande receio.


Era tarde demais, contudo, para voltar, pois a correnteza, que a tinha trazido para junto do vapor, era forte demais para os seus músculos. Não poderia conduzir a pesada embarcação contra a correnteza. O único recurso que lhe restava era tentar alcançar a praia sem ser percebida por aqueles que estavam a bordo do Kincaid, ou implorar-lhes clemência — de outra forma seria levada para o alto-mar. Sabia que a praia não lhe seria de grande utilidade, pois ignorava em que lugar ficava a boa aldeia Mosula, à qual Anderssen a tinha levado através da escuridão da noite, por ocasião da sua fuga do Kincaid. Com Rokoff ausente do vapor, era possível oferecer aos marinheiros uma grande recompensa para que a levassem ao porto civilizado mais próximo. Valia a pena tentar, se pudesse alcançar o vapor. A correnteza continuava a conduzi-la rio abaixo, e era com muita dificuldade que podia dirigir a embarcação para onde estava o Kincaid. Tendo conseguido aproximar-se do vapor verificou com surpresa que os tombadilhos pareciam estar desertos, pois não viu nenhum sinal de vida a bordo. A embarcação aproximava-se cada vez mais da proa do vapor, sem que ela ouvisse a voz do vigia de bordo. Jane compreendeu que seria afastada para longe do vapor e a não ser que de bordo arriassem um bote para salvá-la, seria levada para o alto-mar pela correnteza. Gritou, pois, por auxílio, mas não obteve nenhuma resposta. Freneticamente Jane manejou o remo para levar a embarcação ao longo do costado do vapor. Houve um momento em que julgou perder o alvo por alguns pés, mas felizmente a canoa passou logo abaixo da proa do vapor e Jane conseguiu agarrar a corrente da âncora, sendo quase puxada da canoa pela força da correnteza. Viu então que do costado do navio pendia uma escada de corda.


Soltar a corrente e tentar subir a escada quando a canoa passasse por baixo não lhe parecia praticável; mas ficar agarrada à corrente da âncora parecia-lhe igualmente inútil. Afinal conseguiu fazer a canoa resvalar vagarosamente até ficar por baixo da escada. Um momento depois, com a carabina sobre os ombros, subiu com toda a segurança ao tombadilho abandonado. A sua primeira tarefa foi explorar o vapor e isto ela fez com a carabina pronta para uso imediato, caso se lhe deparasse qualquer ameaça a bordo do Kincaid. Não demorou em descobrir a causa do aparente abandono do vapor: na proa, encontrou os marinheiros encarregados de vigiar o vapor, num sono profundo de embriaguez. Com um estremecimento de repugnância, subiu ao tombadilho e da melhor maneira possível fechou a escotilha por cima das cabeças da guarda sonolenta. Em seguida, procurou alimento; uma vez satisfeita, acomodou-se no tombadilho, resolvida a impedir a entrada de quem quer que fosse a bordo do Kincaid, sem primeiramente concordar com as suas exigências. Decorrida uma hora, mais ou menos, sem que nada aparecesse sobre a superfície da água, viu ela chegando, pelo rio abaixo, uma canoa, na qual lhe pareceu que estava sentado um vulto humano. Alguns minutos depois, e ela reconheceu nesse vulto a pessoa de Rokoff. Quando este procurou abordar o vapor, encontrou pela frente o cano de uma carabina. Reconhecendo o russo a pessoa que lhe impedia a subida, ficou furioso, amaldiçoando, praguejando, ameaçando; mas, reconhecendo que estas táticas não assustavam nem demoviam a moça, finalmente começou a suplicar e prometer. Jane só tinha uma resposta para todas as suas propostas, e esta era que nada a persuadiria a consentir que Rokoff subisse para o vapor. Que ela


faria o que ameaçava baleando-o caso persistisse no seu intento de abordar o vapor, ele tinha a certeza. Desta maneira, como não havia outra alternativa, o grande covarde voltou novamente para a sua embarcação e, com o risco iminente de ser levado para o alto-mar, conseguiu desembarcar a uma grande distância, do lado oposto àquele onde o bando de animais estava rosnando e berrando. Jane Clayton sabia que Rokoff, sozinho e sem auxílio, não podia fazer a sua embarcação pesada voltar pela correnteza acima para o Kincaid e, assim, não receava um outro ataque da parte dele. No bando horrível que lá estava na praia, julgou ela reconhecer como sendo o mesmo que tinha passado perto dela na selva, alguns dias antes, pois lhe parecia improvável que houvesse mais de um bando tão estranho; mas não podia imaginar o que o teria trazido até a foz do rio. Ao cair da noite a jovem ficou repentinamente assustada com os gritos do russo do lado oposto do rio; e um momento depois, mais ainda se assustou ao ver aproximar-se do vapor um bote, no qual, tinha certeza, vinham os outros membros da tripulação do Kincaid que faltavam, isto é, patifes refinados e perversos.


CAPÍTULO 16: Na escuridão da noite Quando Tarzan dos Macacos compreendeu que estava seguro pelas enormes mandíbulas de um crocodilo, não se desesperou nem se resignou à sua sorte, como qualquer homem comum teria feito. Em vez disto, aspirando fortemente, encheu os pulmões com grande quantidade de ar antes que o enorme réptil o puxasse para o fundo do rio e então, com toda a força dos seus grandes músculos, lutou com o monstro. Mas fora do seu elemento, o homem-macaco sentia-se com enorme inferioridade para desvencilhar-se do inimigo. Os pulmões de Tarzan já estavam quase arrebentando por falta de oxigênio. O seu corpo resvalava ao lado da carapaça viscosa do crocodilo. O homem-macaco procurou cravar-lhe a sua faca de pedra no couro rijo. Seus esforços, porém, serviam apenas para exacerbar a ferocidade do crocodilo. Tarzan compreendeu que tinha chegado ao limite de suas forças e sentiu que o seu corpo ia sendo puxado para o fundo do rio. Tudo em volta dele era escuro como um poço, e silencioso como um túmulo. Durante alguns momentos os dois ficaram assim lutando, até que uma convulsão repentina do crocodilo, um tremor de todo o corpo e finalmente a imobilidade do monstro fizeram Tarzan compreender que ele estava morto. A faca tinha afinal encontrado um lugar vulnerável no corpo escamoso do bruto. Com as pernas vacilantes, e às apalpadelas, o homem-macaco compreendeu que estava preso em uma gruta subterrânea grande o bastante para acomodar uma dúzia ou mais de outros animais enormes, como aquele que o tinha arrastado até ali. O seu primeiro pensamento foi, naturalmente, de sair da gruta; mas parecia-lhe improvável que pudesse regressar à superfície do rio e depois às margens. Poderia haver voltas e curvas na parte mais estreita da passagem, ou, o que mais receava, poderia encontrar outro dos habitantes da caverna.


Mesmo que alcançasse a superfície do rio, havia ainda o perigo de ser novamente atacado antes que pudesse alcançar a margem. Enchendo de novo os pulmões com o ar abafado e nauseabundo da câmara, Tarzan dos Macacos mergulhou no buraco escuro que ele não pudera ver, mas tateara com os pés. A perna que fora agarrada pelo crocodilo estava bastante ferida, mas o osso não estava quebrado, nem os músculos ou tendões bastante machucados, para impedir-lhe os movimentos. Contudo, sofria horrivelmente: as dores eram atrozes. Mas Tarzan dos Macacos estava acostumado a suportar a dor; verificou, pois, com alegria, que o uso das suas pernas não estava muito prejudicado pelos dentes agudos do monstro. Rapidamente, arrastou-se e nadou pela passagem, que se inclinava para baixo e depois para cima, abrindo-se por fim no fundo do rio a poucos pés da margem. Quando o homem-macaco chegou à superfície, viu as cabeças de dois outros grandes crocodilos a pequena distância, que se dirigiam para ele. Com esforço sobre-humano o homem agarrou-se aos galhos pendentes de uma árvore próxima. E não foi sem tempo, porquanto mal se viu suspenso do galho, ouviu duas bocas abertas estalarem ameaçadoramente por baixo dele. Durante alguns minutos Tarzan descansou na árvore que fora a sua salvação. Os seus olhos examinaram o rio, tanto quanto lhe permitia o tortuoso canal, mas não viu nenhum sinal do russo ou da sua embarcação. Após breve descanso, que aproveitou para amarrar a perna ferida, saiu em perseguição da canoa em que viajava o seu inimigo. Com grande pesar, verificou, porém, que a sua perna estava muito mais machucada do que pensava, e que essa circunstância lhe dificultava seriamente a marcha. Era com enorme dificuldade que podia agora caminhar.


À mente de Tarzan veio a lembrança do que lhe contara a velha negra, Tambudza. Quanto esta lhe narrara a morte da criança, acrescentara que a mulher branca, embora entristecida, lhe tinha dito em segredo, que a criança não era seu filho. Tarzan não atinava com o motivo que teria levado Jane a ocultar a sua identidade e a da criança; a única explicação que podia dar era que, apesar de tudo, a mulher branca que tinha acompanhado o filho e o sueco para o interior da selva não era Jane. Quanto mais meditava neste problema, mais firmemente se convencia de que o seu filho estava morto, mas sua mulher estava salva em Londres, e ignorava ainda a horrível sorte do seu primogênito. Parecia-lhe então errônea a interpretação que dera à ameaça sinistra de Rokoff; tinha, pois carregado inutilmente o peso de uma dupla apreensão, ao menos assim pensou o homem-macaco. Com este pensamento, sentiu pesar-lhe menos no coração a tristeza que a morte do seu filho lhe tinha causado. E que morte cruel! Até o animal selvagem que era o verdadeiro Tarzan, habituado aos sofrimentos e horrores da selva, estremecia quando imaginava a sorte horrível da inocente criança. Enquanto caminhava a muito custo na direção da costa, ocupavalhe a mente a idéia dos crimes horríveis que o russo tinha cometido contra os seus entes queridos, e a grande cicatriz que tinha na fronte tornava-se vermelha e saliente, como lhe sucedia sempre que se enraivecia. Era tão grande a sua cólera, que às vezes ele próprio se assustava com os rugidos irreprimíveis de ódio, que lhe irrompiam da garganta a ponto de até os pequenos animais da selva correrem assustados para os seus esconderijos. Ah! se ele pudesse colocar suas mãos no russo! Duas vezes, no caminho para a costa, indígenas guerreiros correram ameaçadoramente das suas aldeias para evitar que ele continuasse no seu


caminho; mas quando o horrível grito do homem-macaco lhes soava nos ouvidos, e o grande gigante branco se atirava aos berros para cima deles, voltavam as costas e fugiam para a selva, e só saíam dali depois que ele tinha se afastado. Embora lhe parecesse que caminhava morosamente, Tarzan chegou à baía quase ao mesmo tempo que a canoa que conduzia Rokoff, isto é, pouco depois do escurecer, no mesmo dia em que Jane Clayton e o russo chegaram ao Kincaid. A escuridão caiu tão pesadamente sobre o rio e a selva que o cercava, que Tarzan, cujos olhos estavam acostumados a ver no escuro, não podia reconhecer nada, nem mesmo a poucas jardas dele. A sua idéia era de examinar a praia naquela noite para descobrir sinais do russo e da mulher, que tinha certeza deveria ter precedido Rokoff pelo Ugambi abaixo. Que o Kincaid, ou outro vapor, estivesse ancorado a cem jardas dele, era o que não podia imaginar, pois não havia nenhuma luz a bordo. No momento em que ia começar a pesquisa, a sua atenção foi atraída repentinamente, pelo que não havia percebido — o mergulhar cauteloso de remos na água, a alguma distância da praia, mais ou menos do lado oposto ao ponto onde estava. Imóvel como uma estátua, ficou escutando o barulho quase imperceptível dos remos na água. Pouco depois, aos ouvidos treinados do homem-macaco chegou outro rumor que interpretou como o arranhar de pés calçados de couro sobre os degraus de uma escada de vapor. Enquanto assim permanecia imóvel, procurando varar com os olhos a escuridão da noite, chegou-lhe o barulho de tiros e logo depois o grito de uma mulher. Ferido como estava, e ainda com a memória bem fresca de sua recente e horrível experiência, Tarzan dos Macacos não hesitou, ao ouvir aquele grito assustado de mulher, no ar quieto da noite. De um pulo, atirou-se à água, e com poderosas braçadas nadou para onde lhe parecia ter partido o


grito, embora pudesse ainda ter por companheiros os horríveis moradores de um rio equatorial. A canoa que tinha atraído a atenção de Jane, quando estava de guarda sobre o tombadilho do Kincaid, tinha sido também percebida pelo russo que se achava em uma das margens do rio. Aos gritos de Rokoff a embarcação aproximou-se do lugar onde ele estava, e após breve conferência, virou novamente de bordo, na direção do Kincaid. Antes porém que pudesse cobrir metade da distância entre a praia e o vapor, do tombadilho deste uma carabina fez fogo sobre ela, atingindo um dos marinheiros que ia na proa, o qual caiu na água. Como a canoa continuasse a avançar, agora mais devagar, a carabina de Jane atirou à água outro membro do grupo. A canoa retirou-se então para a praia, onde ficou até a madrugada. O bando selvagem que rosnava na praia, do lado oposto, tinha sido dirigido, na sua perseguição, pelo guerreiro negro Mugambi, chefe dos Wagambis. Só ele sabia quem era amigo ou inimigo do seu chefe perdido. Caso eles pudessem ter alcançado ou a canoa ou o Kincaid, teriam liquidado qualquer outra pessoa que aí tivessem encontrado. Mugambi sabia alguma coisa dos acontecimentos que precederam o desembarque de Tarzan na Ilha da Selva e a perseguição dos brancos pelo Ugambi. Sabia também que o chefe selvagem procurava a esposa e o filho, que tinham sido roubados pelo homem branco malvado, ao qual tinham seguido para o interior e agora, de volta, para o mar. Julgava que o homem malvado tinha matado o grande gigante branco que ele, Mugambi, tinha aprendido a respeitar e estimar, como nunca estimara os maiores chefes do seu próprio povo. E assim, no peito selvagem de Mugambi havia o desejo ardente de alcançar o russo, a fim de vingar-se da morte do homem-macaco. Quando viu a canoa descer o rio, apanhar Rokoff, e em seguida partir na direção do Kincaid, compreendeu que somente com o auxílio de


uma canoa é que poderia transportar os animais do bando, para o lugar onde seria possível castigar o seu inimigo. Assim, mesmo antes de Jane Clayton fazer o primeiro disparo contra a canoa de Rokoff, os animais de Tarzan desapareceram na selva. Depois que o russo e os seus homens — isto é, Paulvitch e os marinheiros do Kincaid, encarregados de proverem de carvão o navio — se retiraram para fugir à fuzilaria, Jane compreendeu que isso seria apenas uma trégua aos seus cuidados e apreensões. Determinou, pois fazer uma última tentativa corajosa para conquistar a liberdade, e ver-se livre das ameaças do malvado Rokoff. Com esta idéia, entrou em negociações com os dois marinheiros que tinha aprisionado na escotilha da proa, e tendo conseguido o reconhecimento deles aos seus planos, sob pena de morte, caso tentassem alguma traição, soltou-os quando começou a escurecer. Com o revólver pronto a fazer-se obedecer, deixou-os subir um por um examinando-os cuidadosamente para ver se traziam armas escondidas, enquanto eles ficavam com as mãos para o ar. Verificando que não estavam armados, mandou-os cortar o cabo que prendia o Kincaid à ancora, pois o seu plano era nada menos do que deixar o vapor flutuar à mercê das águas, até o alto-mar, confiando o seu destino à misericórdia das ondas, que ela tinha certeza seriam menos cruéis do que Nikolas Rokoff, se este a capturasse de novo. Havia também a probabilidade de poder o Kincaid ser avistado por algum vapor, que o socorresse. E como o navio estava bem provido de mantimentos e água, e o período de tempestades já houvesse terminado, tinha ela toda a razão de esperar pelo bom êxito do seu plano. A noite estava escura. Nuvens pesadas passavam baixo sobre a selva e o rio. Era, pois, uma noite propícia aos fins que Jane tinha em vista.


Os seus inimigos não podiam ver a atividade a bordo do vapor nem tampouco o rumo que ele tomaria quando a correnteza o levasse para o oceano. Antes do amanhecer a maré vazante teria levado o Kincaid na direção da corrente de Benguela que corre para o norte, ao longo da costa da África, e, como estava soprando o vento do sul, Jane esperava estar longe e fora de vista da foz do Ugambi, antes que Rokoff soubesse da partida do vapor. De pé, ao lado dos marinheiros que trabalhavam, a jovem senhora soltou um suspiro de alívio, vendo partir-se o último fio do cabo a que estava preso o vapor. Com os dois prisioneiros ainda sujeitos à influência coerciva da sua carabina, ela mandou-os para o convés, com a intenção de prendê-los novamente na proa; atendendo, porém, aos seus rogos e promessas de lealdade, e vendo que eles podiam ser úteis, permitiu que ficassem em cima, no tombadilho. Durante alguns minutos o Kincaid andou rapidamente, levado pela correnteza; mas, pouco depois parou no meio do rio: tinha encalhado em um banco de areia, que cortava o canal cerca de um quinto de milha do mar. Aí ficou algum tempo, até que, ajudado pela correnteza, se foi safando aos poucos, virando de bordo; desprendendo-se afinal, completamente, pôs-se de novo a caminho do mar. Nesse instante, justamente quando Jane Clayton se congratulava consigo mesma por ver que o vapor estava livre mais uma vez, ouviu ela, partindo mais ou menos do ponto onde estava ancorado o Kincaid, o barulho de tiros e o grito de uma mulher — agudo, penetrante, angustioso. Os marinheiros julgaram que esses tiros com certeza anunciavam a chegada do seu chefe, e como não lhes agradava o plano que os consignara ao convés de um navio abandonado, começaram a conspirar sobre o modo de vencer a jovem e chamar Rokoff e os seus companheiros para liberta-los.


Parecia que a sorte os ajudava, pois com os estrondos das armas, a atenção de Jane Clayton distraiu-se dos seus ajudantes, e, em vez de vigiá-los como pretendia, correu para a proa do Kincaid, para observar melhor o que se passava na escuridão. Vendo-a

distraída,

os

dois

marinheiros

arrastaram-se

sorrateiramente, por trás de Jane. O arranhar, porém, dos sapatos de um deles no tombadilho assustou a moça que se voltou imediatamente. Mas, era tarde. Os dois homens saltaram sobre ela e atiraram-na ao chão. Jane viu, então, o vulto de um homem que escalava o costado do Kincaid. Depois de todo o seu trabalho, a sua luta heróica pela liberdade tinha falhado. Com um soluço abafado ela rendeu-se.


CAPÍTULO 17: No tombadilho do Kincaid Quando Mugambi voltara para a selva com o bando de animais tinha em mente um plano. Era obter uma embarcação na qual pudesse transportar os animais de Tarzan até o costado do Kincaid. E não levou muito tempo em achar o que procurava. Ao escurecer deparou-se com uma canoa amarrada à margem de um pequeno tributário do Ugambi, num ponto onde ele tinha a certeza que iria achá-la. Sem perda de tempo, reuniu os seus selvagens companheiros dentro da embarcação e empurrou-a para a correnteza. Mas com tanta pressa ele se tinha apoderado da canoa, que não reparara que ela já estava ocupada. Um vulto agachado, que dormia no fundo da canoa, tinha escapado inteiramente à sua vista, na densa escuridão da noite. Logo que começaram a navegar, o grunhido selvagem de um dos macacos atraiu a sua atenção para uma figura trêmula, que se agachava e tremia entre ele e o grande macaco. Mugambi, admirado, viu que era uma mulher indígena. Com dificuldade conseguiu que o macaco não se atirasse à garganta da mulher, a acalmou os receios desta. Disse ela que tinha fugido da aldeia, para não se casar com um velho a quem odiava; para não passar a noite no mato, ela se refugiara na canoa, que encontrara à beira do rio. Mugambi não desejava a sua presença, mas, para não perder tempo em voltar com ela à praia, o negro permitiu que ela ficasse na canoa. A embarcação, à força de remos, começou a deslizar pela correnteza abaixo, na direção do Kincaid. Foi com dificuldade que Mugambi pôde distinguir a forma escura do vapor. Ao aproximar-se do navio ficou admirado de ver que este parecia recuar à medida que a canoa avançava. Afinal verificou que o vapor estava navegando pela correnteza abaixo. Justamente quando ia incitar o seu bando a


maiores esforços, para alcançar o vapor, surgiu-lhe repentinamente pela proa outra embarcação. No mesmo instante os tripulantes da outra canoa descobriram a proximidade do bando de Mugambi, mas, a princípio, não reconheceram a natureza da horrenda tripulação. Um homem, na proa da canoa que ia chegando, chamou à fala os tripulantes da embarcação de Mugambi. Como resposta, chegou-lhe aos ouvidos o rosnar ameaçador da pantera e o homem descobriu que o estavam fitando os olhos flamejantes de Sheeta, que se tinha levantado com as suas patas dianteiras sobre a proa da canoa, pronta a voltarse sobre o pessoal da outra embarcação. Imediatamente Rokoff viu o perigo que o aguardava e mais aos seus companheiros. Rápido, deu ordem para atirar sobre os tripulantes da outra canoa. Foi este tiroteio e o grito da indígena amedrontada, na canoa de Mugambi, que Tarzan e Jane ouviram. Antes que os remadores, mais vagarosos e menos hábeis, da canoa de Mugambi pudessem forçar a voga e passar-se para a outra canoa, os outros viraram ligeiramente pela correnteza abaixo, remando, para salvar as suas vidas, na direção do Kincaid, que lhes estava agora visível. O vapor, depois de bater no banco de areia, soltou-se outra vez para dentro do redemoinho, que se movia vagarosamente, e se estendia pela correnteza acima, perto da praia ao sul do Ugambi, onde fazia novamente outro círculo antes de ganhar a correnteza inferior a cem jardas ou mais para baixo. Desta maneira o Kincaid estava devolvendo Jane Clayton diretamente às mãos dos seus inimigos. Quando Tarzan se atirou ao rio, o vapor não lhe era visível, nem ele poderia imaginar que um vapor estivesse tão próximo. Deixou-se, pois, guiar pelos sons que lhe vinham das duas canoas.


Enquanto nadava, acudiam-lhe vivas as recordações das águas traiçoeiras do Ugambi, e um estremecimento repentino sacudiu o corpo do gigante. Mas embora sentisse por duas vezes alguma coisa roçar-lhe as pernas, no fundo lamacento do rio, nada o agarrou. De repente esqueceu-se completamente dos crocodilos, ao ver com grande admiração aparecer-lhe pela frente a massa escura de um navio onde esperava achar o rio aberto. Tão próximo estava que, com mais algumas braçadas, a sua mão estendida tocou no costado do vapor. Quando o ágil homem-macaco saltou por cima da amurada do vapor, chegou aos seus ouvidos o barulho de uma luta do outro lado do tombadilho. Silenciosamente, correu através do espaço intermediário. A lua estava agora alta, e conquanto o céu estivesse ainda cheio de nuvens, podiam-se distinguir na sombra os objetos. Os seus olhos penetrantes viram os vultos de dois homens lutando com uma mulher. Que esta era a mulher que tinha acompanhado Anderssen para o interior ele o ignorava embora o suspeitasse. De uma coisa tinha agora a certeza: é que este era o tombadilho do Kincaid, sobre o qual o acaso o tinha conduzido. Gastou, porém, pouco tempo em especulação inútil, pois havia uma mulher em perigo, que estava sendo maltratada por dois patifes, e isto era o bastante para o homem-macaco pôr em ação os seus fortes músculos, sem mais investigação. O primeiro aviso que os dois marinheiros tiveram de que havia outra pessoa pronta para a luta, foi a queda de uma mão poderosa sobre o ombro de cada um. Como se estivessem nas garras de uma grande roda, viram-se retirados repentinamente de cima da sua presa.


— Que quer dizer isto? — perguntou ele, em voz baixa, aos dois agressores. Ao som daquela voz a jovem levantou-se rápida e com um pequeno grito de alegria saltou na direção do seu salvador. — Tarzan! — exclamou ela. O homem-macaco atirou os dois marinheiros ao tombadilho, onde eles rolaram, atordoados, amedrontados, indo cair dentro dos embornais do lado oposto, e com uma exclamação de incredulidade tomou a jovem nos braços. Foram breves, contudo, os momentos para a sua saudação. Mal se tinham os dois reconhecido, quando as nuvens, abrindo-se no céu, deixaram ver os vultos de meia dúzia de homens que subiam pelo costado do Kincaid, para o tombadilho. À frente do bando estava o russo. Quando os raios vivos da lua equatorial iluminaram o tombadilho, viu ele que estava diante de Lorde Greystoke. Gritou então ordens histéricas aos seus companheiros para que atirassem sobre os dois. Tarzan empurrou Jane para dentro do camarote, junto do qual eles tinham parado, e com um pulo rápido foi sobre Rokoff. Dois dos homens que estavam atrás do russo levantaram as suas carabinas e atiraram sobre o homem-macaco; mas os outros estavam ocupados de outra maneira — pois pela escada acima, na sua retaguarda, vinha subindo um bando horrível. Na frente vinham cinco macacos rosnando, animais enormes, parecidos com homens, com os dentes à mostra e babando; após eles, um enorme guerreiro negro, com a comprida lança brilhando ao luar. Atrás deste vinha uma outra criatura, e de todo o bando era esta que eles mais receavam. Sheeta, a pantera, com as presas a mostra e os olhos flamejantes, fitando-os com ódio e cobiça de sangue.


Os tiros desfechados contra Tarzan erraram o alvo, e ele teria saltado sobre Rokoff se o grande covarde não se tivesse escapulido por entre os seus companheiros, fugindo aterrorizado e aos gritos em direção ao castelo de proa. Mas a atenção de Tarzan fora distraída para os dois homens que estavam em sua frente, e por isso não pôde perseguir o russo. Ao redor dele os macacos e Mugambi estavam lutando com os outros marinheiros. Fugindo à ferocidade terrível dos animais, os homens correram logo em todas as direções — aqueles que ainda podiam correr, pois os grandes dentes dos macacos de Akut e as garras dilacerantes de Sheeta já tinham feito mais de uma vítima. Contudo, quatro deles escaparam e desapareceram no castelo de proa, onde esperavam entrincheirar-se contra novo ataque. Aí encontraram Rokoff; e, enraivecidos pela deserção no momento de perigo, e também pelo tratamento brutal com que era o seu costume tratá-los, aproveitaram-se da oportunidade que se lhes apresentava para vingar-se em parte do patrão odiado. Sem atender-lhe aos rogos de pedidos humildes, eles o atiraram para fora, sobre o tombadilho, entregando-o à mercê dos ferozes animais dos quais acabavam de escapar. Tarzan viu o homem sair do castelo de proa, viu-o e reconheceu nele o seu inimigo; mas alguém o viu também tão depressa quanto ele. Era Sheeta. Com as presas sedentas de sangue o poderoso animal marchou silenciosamente em direção do homem amedrontado. Quando Rokoff viu quem lhe vinha ao encontro, encheu o espaço com os seus gritos de socorro, e com os joelhos a lhe vergarem de terror, ficou como paralisado, prevendo a morte horrível que vinha a seu encontro.


Tarzan caminhou também em direção ao russo, já forjando no cérebro um plano de vingança. Até que enfim tinha nas mãos o assassino de seu filho. Era seu o direito de vingar-se. Da primeira vez, Jane fizera que ele suspendesse o castigo quando procurava vingar-se por suas próprias mãos, dando a Rokoff a morte que este merecia há tanto tempo; mas desta vez ninguém o faria recuar. Os seus dedos crisparam-lhe espasmodicamente quando se aproximou do russo, que tremia de pavor. Ao ver que Sheeta ia tomar o seu lugar, roubando-lhe a vítima do seu grande ódio, Tarzan falou zangado com a pantera. Mas suas palavras, como se tivessem quebrado o feitiço que paralisava o russo, fizeram que este ficasse ativo de repente; com um grito ele voltou-se e fugiu na direção da ponte. Atrás dele, porém, pulou Sheeta, a pantera, sem atender à voz de advertência de seu mestre. Tarzan ia correr atrás dos dois, quando sentiu que lhe tocavam levemente no braço. Voltando-se, viu Jane ao seu lado. — Não me deixes — murmurou ela. — Eu tenho medo. Ao redor dela estavam os macacos horríveis de Akut. Alguns já se aproximavam até da moça, com os dentes à mostra e gritos ameaçadores. O homem-macaco ordenou que eles recuassem. Tinha-se esquecido que estes eram animais, e não podiam distinguir entre os amigos e inimigos. A sua natureza selvagem tinha sido despertada pela recente batalha com os marinheiros, e agora toda a carne, a não ser a do bando, era carne para eles. Tarzan voltou-se de novo na direção do russo, resignado por ter de ceder à fera o prazer de vingança pessoal a não ser que Rokoff pudesse escapar às garras de Sheeta; mas isto lhe pareceu impossível. O russo tinha corrido até a extremidade da ponte, onde agora estava tremendo e com olhos


arregalados encarando o animal que caminhava vagarosamente em sua direção. A pantera arrastava-se com a barriga no chão, rosnando coisas estranhas. Rokoff estava como petrificado, com os olhos a lhe saltarem das órbitas, a boca aberta, e um suor frio de terror a lhe escorrer pela testa. No tombadilho, estavam os grandes antropóides, que o impediam de escapar naquela direção. De fato, nesse mesmo instante, um dos brutos estava escalando a amurada a fim de dirigir-se para o lado do russo. Diante deste estava a pantera, silenciosa e agachada. Rokoff não se podia mexer. Os joelhos tremiam-lhe, a voz saía-lhe em sons inarticulados; soltando um grito agudo, caiu de joelhos — e Sheeta saltou-lhe em cima, atirando-o de costas no chão. Quando os dentes da fera começaram a dilacerar a garganta e o peito da sua vítima, Jane Clayton virou-se com horror; mas o mesmo não fez Tarzan dos Macacos, em cujos lábios aflorou um sorriso frio de satisfação. A cicatriz da testa, que era escarlate, empalideceu até ficar da cor natural da sua pele requeimada. Rokoff lutou furiosa mas inutilmente com a fera que o tinha colhido. Por todos os seus crimes inumeráveis foi afinal castigado com aquela morte horrível. A pedido de Jane, Tarzan aproximou-se de Sheeta, para arrancar das garras o cadáver do russo e dar ao que dele restava enterro decente e humano; mas o grande gato levantou-se rosnando de modo tão selvagem, que, para não ter que matar o seu amigo da selva, Tarzan viu-se forçado a abandonar-lhe o que restava do seu inimigo. Toda aquela noite, Sheeta, a pantera, repastou-se sobre os restos informes daquele que tinha sido Nikolas Rokoff. A ponte do Kincaid estava escorregadia de sangue. Ao luar fulgurante dos trópicos o grande animal


regalou-se até ao romper do sol, no dia seguinte, quando somente restavam do grande inimigo de Tarzan ossos roídos e quebrados. Do bando do russo, todos foram contratados, menos Paulvitch. Quatro estavam prisioneiros no castelo de proa. Os outros tinham sido mortos. Com esta tripulação preparou-se Tarzan para partir, e com o conhecimento do segundo em comando, que por acaso foi um dos sobreviventes, planejou ir à procura da Ilha da Selva; mas com o amanhecer sobreveio uma ventania do oeste que agitou tanto o mar que o segundo do Kincaid não se aventurava a partir. Todo aquele dia o vapor ficou abrigado na foz do rio; e, conquanto à noite a ventania diminuísse, julgaram preferível esperar a claridade do dia antes de intentar a navegação do canal tortuoso para o mar. Sobre o tombadilho do vapor o bando selvagem vagou sem impedimento ou empecilho durante o dia, pois logo aprenderam por meio de Tarzan e Mugambi que eles não podiam maltratar ninguém a bordo do Kincaid; mas à noite ficaram presos embaixo, no convés. A alegria de Tarzan foi sem igual quando Jane lhe comunicou que a criança que tinha morrido na aldeia de M’gamuazam não era seu filho. Quem poderia ser aquela pobre criança, ou o que teria acontecido ao filho deles, não podiam imaginar, e tendo Rokoff e Paulvitch desaparecido, não haveria maneira alguma de descobrir. Havia, contudo, uma certa sensação de alívio por verem que ainda podiam ter esperança. Até que recebessem uma prova concreta da morte do filho, sempre haveria a animá-los um resquício de esperança. O que lhes parecia evidente é que o seu pequeno Jack não tinha sido trazido para bordo do Kincaid. Anderssen teria sabido se assim fosse; ele, porém, assegurara a Jane muitas vezes que o pequeno que trouxera ao seu camarote na noite em


que a auxiliara a fugir do navio era a única criança que tinha estado a bordo do Kincaid desde que este esteve ancorado em Dover.


CAPÍTULO 18: Paulvitch planeja vingança Enquanto Jane e Tarzan estavam parados no tombadilho do vapor, contando um ao outro, os detalhes das várias aventuras pelas quais tinham passado desde que saíram de Londres, um observador oculto na margem do rio, olhava para eles com as sobrancelhas franzidas. Arquitetava um plano pelo qual pudesse obstar a fuga do inglês e da sua senhora, pois enquanto funcionasse o cérebro vingativo de Alexander Paulvitch, ninguém que tivesse despertado o ódio do russo poderia julgar-se inteiramente salvo. Engendrou plano sobre plano, mas a todos desprezou ou por impraticáveis ou por indignos da vingança que os seus males pediam. E rejeitando todos os seus planos, Paulvitch chegava sempre à mesma conclusão: nada poderia fazer enquanto as águas do Ugambi o separassem do objeto do seu ódio. Como poderia atravessar o rio cheio de crocodilos? O lugar mais próximo, onde poderia encontrar uma canoa, era a aldeia mosula, e Paulvitch não tinha certeza se o Kincaid ainda estaria ancorado no rio quando voltasse, caso pudesse atravessar a selva até a aldeia distante e voltar com uma canoa. Mas não havia outro recurso; e assim, convencido que somente desta maneira podia alcançar a sua presa, Paulvitch, lançando mais um olhar rancoroso aos dois vultos no tombadilho do Kincaid, afastou-se do rio. Andando ligeiro pela densa selva, pensando unicamente no seu ídolo — a vingança — esqueceu até seu terror do mundo selvagem pelo qual estava passando. Frustrado e vencido a cada volta da roda da fortuna, Paulvitch ainda era tão cego que imaginava que sua maior felicidade consistia na continuação das conspirações e maldades que tinham causado a desgraça dele e de Rokoff, e infligido a este último, finalmente, uma morte horrível.


Enquanto caminhava, tropeçando pela selva, em direção à aldeia mosula, cristalizou-se no seu cérebro um plano que parecia mais praticável do que qualquer dos outros que já tinha arquitetado. Iria de noite ao costado do Kincaid, e, uma vez a bordo, procuraria os membros da tripulação do vapor que tinham sobrevivido aos terrores desta horrível expedição, e iria alistá-los numa tentativa de arrancar o navio a Tarzan e às suas feras. No camarote havia armas e munições ocultas, num lugar secreto e na mesa do camarote existia uma daquelas máquinas infernais, cuja construção lhe tinha ocupado muito do tempo, quando desempenhava um cargo de confiança dos niilistas em sua terra natal. Isso fora antes que ele os tivesse vendido à policia de Petrogrado. E Paulvitch alegrou-se ao recordar a denúncia que tinha saído dos lábios de um dos seus antigos companheiros, antes que o pobre diabo expiasse os seus pecados políticos na ponta de uma corda de linho. Mas era na máquina infernal em que ele agora pensava. Esta podia ser-lhe então muito útil se lhe pudesse pôr as mãos em cima. Dentro da caixa de madeira de lei, oculta na mesa do camarote, estava o material destrutivo suficiente para acabar, em um segundo, com todos os seus inimigos a bordo do Kincaid. Paulvitch lambeu os lábios de alegria, e deu às suas pernas cansadas maior velocidade, a fim de não chegar tarde demais ao vapor, para conseguir os seus desígnios. Isso dependia, naturalmente, de surpreender o Kincaid antes da partida. O russo compreendeu que nada poderia ser feito à luz do dia. Somente na escuridão da noite poderia aproximar-se do costado do vapor, pois se fosse pressentido por Tarzan ou Lady Greystoke tudo estaria perdido. A ventania que soprava era, pensava ele, a causa da demora da partida do Kincaid; se continuasse a ventar até o anoitecer, então todas as


esperanças estavam a seu favor, pois bem sabia que havia pouca probabilidade do homem-macaco tentar navegar pelo tortuoso canal do Ugambi enquanto a escuridão pousava sobre a superfície da água, ocultando os muitos bancos de areia e as numerosas ilhas pequenas que estão espalhadas em toda a extensão da foz do rio. Já tinha passado do meio-dia quando Paulvitch chegou à aldeia mosula, à margem do tributário do Ugambi. Aí foi recebido com suspeita e inimizade pelo chefe indígena, pois todos que se punham em contato com Rokoff ou Paulvitch tinham sido vítimas, de algum modo, da avidez, crueldade, ou cobiça dos dois russos. Quando Paulvitch pediu emprestado uma canoa, o chefe murmurou uma resposta rabugenta e mandou o homem branco retirar-se da aldeia. Cercado por guerreiros mal-encarados, que resmungavam e pareciam estar à espera de algum pretexto para atravessá-lo com suas lanças ameaçadoras, só restava ao russo retirar-se. Uma dúzia de homens guerreiros o conduziram à entrada da clareira, prevenindo-o que nunca mais aparecesse nas vizinhanças da aldeia. Sopitando a cólera, Paulvitch dirigiu-se para a selva: mas, uma vez fora de vista dos guerreiros, estacou o passo e pôs-se a escutar atentamente. Pôde ainda ouvir as vozes da escolta, que regressava à aldeia. Quando se certificou de que eles já estavam longe, arrastou-se pelo mato até a margem do rio, resolvido a arranjar uma canoa de qualquer maneira. A sua própria vida dependia de chegar ao Kincaid e aliciar os sobreviventes da tripulação, para que o ajudassem no seu plano, pois ficar abandonado ali no meio dos perigos da selva africana, onde ele tinha granjeado a inimizade dos indígenas, equivalia, bem o sabia, a uma sentença de morte. O desejo de vingança servia-lhe de poderoso incentivo para incitálo a entrar na zona do perigo, a fim de pôr em execução o seu plano.


Escondeu-se, pois, entre o mato, à beira do pequeno rio, procurando com olhos ávidos algum sinal de uma pequena canoa, que pudesse ser manejada por um único remador. Não teve de esperar muito tempo: uma das pequenas embarcações, que os Mosulas constroem para seu uso, apareceu dentro em pouco, no meio do rio. Dirigia-a um rapaz remando vagarosamente, auxiliado pela correnteza. Quando chegou ao canal, o rapaz deixou que a correnteza indolente levasse por si só a embarcação enquanto permanecia inerte no fundo da canoa. Completamente ignorante da presença do inimigo invisível à beira do rio, a piroga deslizava vagarosamente pela correnteza abaixo, enquanto Paulvitch a seguia ao longo do caminho da selva poucas jardas atrás. Uma milha abaixo da aldeia, o negro mergulhou o remo na água e dirigiu a embarcação para a margem. Paulvitch exultou de alegria com o acaso que levara o rapaz para o mesmo lado do rio em que se achava, e não para o lado oposto, onde teria ficado fora do seu alcance. Igualmente indolentes eram os movimentos do rapaz ao puxar a embarcação para baixo de uma grande árvore, que se abaixava para dar um beijo de despedida na água que se retirava, acariciando-a com suas folhas verdes. Como uma cobra, no meio da folhagem traiçoeira, estava o russo malévolo. Seus olhos cruéis e astutos seguiam com alegria a canoa cobiçada, medindo ao mesmo tempo a estatura do rapaz, para o caso de tornar-se necessário um encontro físico com o negro. Somente a extrema necessidade levaria Alexander Paulvitch a um conflito pessoal; mas era a extrema necessidade que o incitava agora a agir. Havia tempo bastante tempo para chegar ao Kincaid ao anoitecer. Seria que o negro não queria sair da embarcação? Paulvitch remexia-se e impacientava-se. O rapaz bocejava e continuava dentro da canoa, examinando


com irritante gravidade as flechas de sua aljava, experimentando o arco e a lâmina da faca de caça, enfiada na sua tanga. Mais uma vez ele se estendeu, bocejando, olhou para a margem do rio, sacudindo os ombros, e deitou-se no fundo da canoa para um sono breve, antes de entrar na selva atrás da presa que tinha vindo caçar. Paulvitch soergueu-se um pouco, e com os músculos tesos ficou olhando para a sua descuidada vítima. As pálpebras do rapaz decaíram e fecharam-se. Pouco depois, o peito arfava-lhe suavemente, com as respirações profundas do sono. Tinha chegado a hora! O russo arrastou-se mais perto. Um galho estalou com o seu peso e o rapaz remexeu-se no seu sono. Paulvitch sacou do revólver e apontou-o para o negro. Este continuava imóvel, imerso em profundo sono. O homem branco chegou-se ainda para mais perto: precisava ter certeza de que não erraria o tiro. Inclinou-se sobre o Mosula, aproximando cada vez mais do peito incauto da vítima o aço frio do revólver, detendo-se afinal à distância de algumas polegadas por cima do coração que batia com força. No rosto do rapaz estampava-se a juventude, e um sorriso entreabrialhe os lábios imberbes. Paulvitch fez um gesto de desprezo e pressionou o dedo sobre o gatilho do revólver. Houve uma grande detonação. Um pequeno furo apareceu por cima do coração do rapaz adormecido — um pequeno furo de bordas negras de carne queimada com pólvora. O pobre Mosula soergueu-se, na posição de quem se senta. Os lábios risonhos distenderam-se ao choque nervoso de uma rápida agonia, e o corpo recaiu, sem força, para trás, no mais profundo dos sonos, do qual nunca mais se acorda. O assassino pulou rapidamente para dentro da embarcação, arrastou para uma das bordas o cadáver e, com um empurrão, atirou-o ao rio. A água borbulhou em redor, e, imediatamente, do fundo lamacento, emergiu um corpo escuro e escamoso.


A canoa cobiçada estava agora em poder do homem branco — mais selvagem do que o pobre habitante da selva cuja vida acabava de tirar. Desatando a corda que prendia a canoa à árvore e apanhando o remo, Paulvitch entregou-se ao trabalho de conduzir a embarcação, a toda velocidade, na direção do Ugambi. Tinha anoitecido quando a proa da embarcação ensanguentada entrou na correnteza do rio maior. O russo se esforçava para ver através da escuridão, buscando devassar as espessas sombras que se estendiam entre ele e o ancoradouro do Kincaid. O vapor ainda estaria ancorado nas águas do Ugambi? Ou o homem-macaco teria prosseguido viagem, aventurando-se com a tempestade? Enquanto a canoa deslizava veloz pela correnteza, dirigia o russo estas perguntas a si mesmo, e outras mais, relativas à vida que o aguardaria se por acaso o Kincaid já tivesse partido, deixando-o entregue aos horrores bárbaros da selva selvagem. Na escuridão parecia ao remador que ele estava voando sobre a água, parecendo-lhe que o vapor já tinha deixado o ancoradouro e que já tinha passado do lugar onde horas antes estivera o Kincaid. Súbito, numa volta do rio, avistou, longe, a luz trêmula de uma lanterna do vapor. Alexander Paulvitch mal pôde conter uma exclamação de triunfo. O Kincaid ainda não tinha partido! Cessou de remar no momento em que viu o lume brilhante de esperança adiante dele. Silenciosamente, flutuou pelas águas lamacentas do Ugambi abaixo, mergulhando de vez em quando o remo brandamente na correnteza, a fim de guiar a rude embarcação para o costado do vapor. Enquanto se aproximava, foi-se aos poucos acentuando diante dele, na escuridão da noite, o vulto do vapor. Não havia movimento nenhum a bordo. Paulvitch chegou, sem ser visto, próximo ao costado do Kincaid.


Somente o arranhar momentâneo da proa da canoa contra as tábuas do vapor quebrou o silêncio da noite. Trêmulo e nervoso, o russo ficou sem se mexer durante alguns minutos, mas não lhe veio de cima nenhum rumor indicativo de que lhe tinham notado a chegada. Furtivamente, impulsionou a embarcação para a frente, até que as escoras do gurupés lhe ficaram diretamente por cima da cabeça. E ele mal podia alcançá-las. Amarrou a canoa, e começou a guindar-se cautelosamente pelo costado acima. Um momento depois, punha ele, cuidadosamente, os pés no tombadilho. Lembranças do bando horrendo que estava no vapor causavamlhe tremores frios ao longo da espinha; mas a sua própria vida dependia do sucesso desta aventura, e assim procurou fortalecer-se para enfrentar as dificuldades que lhe deparavam. Nenhum som ou sinal de vigia no tombadilho do vapor. Paulvitch arrastou-se silenciosamente na direção do castelo da proa. Tudo em silêncio. A escotilha estava levantada. Paulvitch olhou para baixo, e viu um dos membros da tripulação do Kincaid lendo à luz de uma lanterna enfumaçada, pendente do teto, na sala de descanso da tripulação. Conhecia bem esse homem — um assassino carrancudo, com quem ele contava para a execução do plano que tinha concebido. Vagarosamente o russo abaixou-se, ganhando pela abertura os degraus da escada que conduzia ao castelo da proa. Conservou por instantes os olhos sobre o homem que estava lendo, a fim de avisá-lo que se calasse, logo que o homem levantasse os olhos que se arregalaram um momento ao reconhecerem o antigo aliado de Rokoff. — Oh! diabos! — exclamou ele. — De onde vieste? Nós todos pensávamos que estavas liquidado e que já tinhas ido para onde devias ir há muito tempo. Sua Alteza ficará muito satisfeito se te vir.


Paulvitch aproximou-se do marinheiro com um sorriso benigno nos lábios, e a mão direita estendida num cumprimento, como se fossem amigos velhos que não se viam há muito tempo. O marinheiro recusou a mão estendida, e não retribuiu ao sorriso do outro. — Eu venho auxiliar-vos — explicou Paulvitch. — Venho auxiliarvos a vos livrardes do inglês e das suas feras. Podemos entrar furtivamente enquanto dormem, isto é, Greystoke, sua mulher, e aquele patife do negro Mugambi. Depois será fácil acabar com as feras. Onde estão? — Estão embaixo — respondeu o marinheiro; mas deixa-me dizerte, Paulvitch, que não tem direito de fazer com que nos revoltemos contra o inglês. Já estávamos fartos de ti e daquele outro bandido, que já está morto; e se não me engano, também não demorará muito a encontrar com ele no inferno; ambos sempre nos trataram como se fôssemos cachorros. — Quer dizer que vai se voltar contra mim? — perguntou Paulvitch. O outro confirmou; e depois de uma pequena pausa, durante a qual uma idéia pareceu ter-lhe ocorrido, prosseguiu: — A não ser que — disse ele — me recompenses bem para deixarte sair antes que o inglês te encontre aqui. — Não tenciona fazer que eu volte para a selva, não é? — perguntou Paulvitch. — Eu morreria lá numa semana. — Mas ainda assim teria alguma probabilidade de viver — respondeu o marinheiro. — Aqui, não terá nenhuma. Se eu acordasse os meus companheiros eles provavelmente arrancariam o seu coração antes que o inglês pudesse acudir-te. Tem muita sorte por ser eu e não algum outro, o único homem acordado neste momento. — Está louco? — disse Paulvitch. — Não sabe que o inglês mandará enforcar todos vocês tão logo esteja em um lugar onde tenha a lei à seu lado, acha que ele não mandará prende-los?


— Não, ele não fará uma destas coisas — respondeu o marinheiro. — Ele já disse que nenhum de nós é culpado, senão você e Rokoff — eu e os outros fomos apenas instrumentos dos dois. Durante meia hora o russo suplicou ou ameaçou. Às vezes, estava a ponto de chorar, outras vezes prometia ao rapaz recompensas fabulosas ou o devido castigo. Mas o outro que era teimoso, fez-lhe ver que só havia duas alternativas: ou consentir em ser entregue imediatamente a Lorde Greystoke ou entregar-lhe, para poder sair do Kincaid sem ser molestado, todo o dinheiro e objetos de valor existentes em seu poder e no seu camarote. — É preciso que decida agora — rosnou o homem — pois desejo deitar-me. Escolhe logo: ou sua Alteza ou a selva. — Irá se arrepender disto — disse o russo. — Cala a boca — admoestou-o o marinheiro. — Se você se acha muito esperto, talvez eu possa mudar de idéia, e prender-te aqui. Paulvitch não tinha desejo algum de cair nas mãos de Tarzan dos Macacos; e conquanto os terrores da selva o apavorassem, eram, em sua opinião, infinitamente preferíveis à morte certa, que, bem sabia, o aguardaria nas mãos do homem-macaco. — Há alguém dormindo no meu camarote? perguntou ele. — Não — informou o marinheiro, sacudindo a cabeça. — Lorde e Lady Greystoke estão no camarote do comandante. O primeiro oficial está no camarote dele, e não há ninguém no seu. — Então vou lá buscar tudo o que tenho de valor — disse Paulvitch. — Eu te acompanharei para que não faça qualquer coisa de esperto — disse o marinheiro. E seguiu o russo pela escada até o tombadilho. À entrada do camarote o marinheiro parou para vigiar, permitindo que Paulvitch penetrasse sozinho. Aí, reuniu o russo os poucos objetos que lhe pertenciam e que iriam assegurar-lhe a retirada de bordo. Enquanto estava


parado ao lado da pequena mesa sobre a qual ele os tinha empilhado, procurou atinar com algum plano que lhe assegurasse a vitória, ou, pelo menos, exterminasse os seus inimigos. Lembrou-se então da pequena caixa negra que estava oculta em um lugar secreto por baixo do fundo falso da mesa onde a sua mão descansava. O rosto do russo iluminou-se com um ar sinistro de satisfação malévola quando, abaixando-se, passou a mão por baixo do fundo da mesa e retirou do seu esconderijo o que procurava. Tinha acendido a lanterna que pendia do teto a fim de que pudesse ver os objetos que lhe pertenciam. Aos raios da lanterna, examinou a caixa negra, procurando nervoso o fecho que abria a tampa. Esta, uma vez levantada, revelou dois compartimentos: num deles havia um mecanismo semelhante ao de um relógio pequeno e uma pequena bateria de duas pilhas. Um fio ligava o mecanismo a um dos pólos da bateria, e do outro pólo, passando para o outro compartimento, um segundo fio voltava diretamente para o mecanismo. O que havia dentro do segundo compartimento não era visível, pois estava tampado e parecia betumado com asfalto. No fundo da caixa, ao lado do mecanismo, havia uma chave, que Paulvitch retirou e ajustou ao mecanismo, para dar-lhe corda. Foi girando vagarosamente a chave, abafando o rumor da operação com algumas peças de roupa postas por cima da caixa. Todo este trabalho, fizera-o sempre de ouvido atento a qualquer barulho que pudesse indicar que o marinheiro ou outra qualquer pessoa se estivesse aproximando do camarote; mas ninguém veio interromper o seu trabalho. Quando acabou de dar corda ao maquinismo, o russo acertou o ponteiro de um pequeno relógio ao lado do dispositivo, tornou a fechar cuidadosamente a tampa da caixa negra, e repôs a máquina no seu esconderijo, por baixo da mesa.


Um sorriso sinistro aflorou aos lábios barbados do homem quando, reunindo o que era de valor, apagou a lâmpada, e saiu do camarote para junto do marinheiro que o esperava. — Aqui estão as minhas coisas — disse o russo; agora deixa-me ir embora. — Primeiramente vou passar-te uma revista nos bolsos — replicou o marinheiro. Pode ter esquecido neles alguma coisa, que não te seja de utilidade na selva, mas que servirá a um pobre marinheiro em Londres. Ah! eu não dizia? — exclamou, retirando um pacote de notas de banco do bolso interno do casaco de Paulvitch. O russo fez uma carranca, praguejando; mas como não ganharia nada em resistir, resignou-se ao confisco, sabendo que o marinheiro nunca chegaria a Londres para gozar o resultado do seu roubo. Foi com dificuldade que Paulvitch conteve um grande desejo de comunicar-lhe o castigo que a sorte lhe reservava, bem como aos outros membros do Kincaid; mas receando despertar suspeitas no rapaz, atravessou o tombadilho e desceu em silêncio para dentro da canoa. Minutos depois, estava ele remando em direção da praia, engolido pela escuridão da noite, e antevendo os terrores da existência horrível que o aguardava, — tão horrível que fora preferível não ter fugido à morte certa no alto-mar, a suportar tudo o que lhe estava reservado. O marinheiro, depois de certificar-se que Paulvitch tinha realmente partido, voltou ao castelo da proa, onde escondeu os objetos roubados e foi deitar-se na cama, enquanto no camarote, que pertencera ao russo, girava continuamente, no silêncio da noite, o pequeno mecanismo dentro da caixa negra, que encerrava, para as pessoas que dormiam a bordo do malafortunado Kincaid, a vingança do russo vencido.


CAPÍTULO 19: Os destroços do Kincaid Logo depois do amanhecer, Tarzan estava no tombadilho observando as condições do tempo. O vento acalmava. O céu estava sem nuvens. Todas as condições pareciam favoráveis para iniciar a viagem de volta à Ilha da Selva, onde iam deixar as feras. E depois, para casa. O homem-macaco despertou o oficial e deu instruções para o Kincaid partir o mais cedo possível. Os outros membros da tripulação, confiantes na palavra de Lorde Greystoke de que não seriam processados pela parte que haviam tomado nas infâmias dos dois russos, apressaram-se contentes para tratar das suas várias obrigações. As feras, livres da prisão do porão, vagavam pelo tombadilho, não sem um certo mal-estar da tripulação que tinha ainda bem presente à memória o quadro vivo da ferocidade desses animais, no conflito com aqueles que tinham morrido debaixo dos seus grandes dentes e de suas garras. Mesmo agora, pareciam desejar ainda a carne macia de outras presas. Sob os olhos vigilantes de Tarzan e Mugambi, entretanto, Sheeta e os macacos de Akut refrearam os seus desejos, tanto que os homens trabalhavam no tombadilho entre eles, com muito mais segurança do que imaginavam. Finalmente o Kincaid desceu o Ugambi e ganhou as águas cintilantes do Atlântico. Tarzan e Jane Clayton olharam para a praia coberta de relva, que desaparecera na esteira do vapor. Desta vez, o homem-macaco deixava a sua terra natal sem um único pensamento de tristeza. Nenhum vapor que navegasse os sete mares poderia tê-lo levado da África, para continuar a busca pelo filho, com menos pressa, pois o Kincaid se movia vagarosamente, mal podendo mexer-se aos olhos impacientes do pai despojado. Mas o vapor avançava, mesmo quando parecia estar parado, e logo os morros baixos da Ilha da Selva surgiram bem visíveis no horizonte.


No camarote de Alexander Paulvitch, o relógio dentro da caixa negra batia sem parar; de segundo a segundo, um pequeno braço que saía da periferia de uma das rodas se aproximava cada vez mais de outro pequeno braço que saía do ponteiro que Paulvitch tinha acertado Quando estes dois braços tocassem um no outro, o bater do mecanismo acabaria para sempre. Jane e Tarzan estavam na ponte, olhando para a ilha. Os homens contemplavam-na também, vendo-a surgir aos poucos no horizonte. As feras tinham procurado a sombra da cozinha, onde estavam deitadas, dormindo. Tudo estava calmo, e reinava paz no vapor e sobre as águas. De repente, o teto do camarote voou pelos ares. Uma nuvem de fumaça apareceu sobre o Kincaid, ao mesmo tempo em que uma explosão violenta sacudiu o vapor de popa à proa. Instantaneamente houve um pandemônio a bordo. Os macacos de Akut, assustados pelo barulho, corriam para todos os lados, rosnando e grunhindo. Sheeta pulava freneticamente, dando vazão ao seu terror em gritos horríveis que amedrontavam a tripulação do Kincaid. Mugambi, também, estava tremendo. Somente Tarzan dos Macacos e sua mulher conservavam-se calmos. Passado o primeiro instante de terror, o homem-macaco dirigiu-se para o meio das feras, tranqüilizando-as, falando com elas em tom baixo e amável, alisando-lhes os corpos felpudos, tranquilizando-as como só ele podia fazer, dando-lhes a compreender que o perigo imediato já tinha passado. Um rápido exame demonstrou que o maior perigo, agora, era o incêndio, pois as chamas começavam a devorar avidamente a madeira lascada do camarote despedaçado, e já tinham achado uma entrada no tombadilho de baixo por um grande rombo que ali se abrira com a explosão. Por um milagre, nenhum dos membros do pessoal de bordo tinha sido alcançado pela explosão, cuja origem parecia a todos um mistério — todos, menos um — o marinheiro que sabia que Paulvitch tinha estado a


bordo do Kincaid e penetrara no seu camarote, na véspera. Esse adivinhou logo a verdade; mas a prudência selou-lhe os lábios. Sem dúvida, as coisas não correriam muito bem para o homem que permitira ao inimigo de todos eles subir a bordo do vapor, nas horas de vigilância da noite, dando-lhe tempo para que pudesse armar uma máquina infernal, a fim de levá-los todos para o outro mundo. Por isso, o homem decidiu guardar consigo este segredo. Enquanto as chamas avançavam, tornou-se claro a Tarzan que a explosão tinha espalhado alguma substância altamente inflamável sobre o madeiramento, pois a água que saía da bomba parecia espalhar as chamas em vez de apagá-las. Quinze minutos depois da explosão grandes nuvens negras de fumaça estavam saindo do porão do vapor condenado. As chamas tinham alcançado a casa das máquinas, e o vapor não andava mais em direção da praia. A sua sorte era tão certa como se as águas já se tivessem aberto para lhe tragar os restos queimados e negros de fumaça. — É inútil ficar a bordo mais tempo — observou o homemmacaco à sua companheira. — Não temos certeza de que não haverá outras explosões, e como não podemos esperar salvar o navio, o que nos resta a fazer é descermos para os botes sem mais perda de tempo, e desembarcar. Não havia, de fato, outra alternativa. Somente os marinheiros podiam levar bagagem, pois o incêndio, que ainda não chegara ao castelo da proa, tinha consumido tudo na vizinhança do camarote que a explosão não tinha destruído. Dois botes foram abaixados, e como o mar estava calmo o desembarque foi feito com relativa facilidade. Ávidas e ansiosas, as feras de Tarzan aspiraram o ar familiar da sua ilha natal quando os pequenos botes chegaram à praia, e mal as quilhas tocaram na areia, Sheeta e os macacos de Akut saltaram pela proa, correndo imediatamente na direção da selva.


Um sorriso de tristeza curvou os lábios do homem-macaco quando os viu partir. — Adeus, meus amigos — murmurou ele. — Vocês foram meus bons e fiéis aliados, e sentirei muita falta de vocês. — Eles voltarão, não é, querido? — perguntou Jane Clayton, que estava ao seu lado. — Talvez sim e talvez não — replicou o homem-macaco. — Eles não têm estado à vontade, desde que foram forçados a aceitar tantos seres humanos em sua companhia. Apenas Mugambi e eu os aceitamos da forma como são, porque ambos somos apenas meio homens. Mas você e os membros da tripulação são civilizados demais para as minhas feras. É de vocês que elas estão fugindo. Sem dúvida sentem que não podem confiar em si próprios, à vista de alimento tão bom, sem ceder à tentação de provarem um bocado por engano. Jane riu-se. — Acho que elas estão fugindo de você — disse ela. — Está sempre ralhando com elas, para que não façam alguma coisa, e acho que não compreendem por que motivo não devem fazer. São como crianças, sem dúvida, encantadas com esta oportunidade de fugir à disciplina paterna. Se voltarem, espero, porém, que não venham de noite. — Ou com fome? — disse, sorrindo, Tarzan. Durante duas horas, depois de desembarcar, os náufragos ficaram contemplando o vapor que tinham abandonado. Súbito ouviram fracamente o som de uma segunda explosão: o Kincaid inclinou-se rapidamente, afundando dentro de poucos minutos. A causa da segunda explosão era mais explicável do que a primeira; o oficial atribuiu-a à explosão das caldeiras, alcançadas finalmente pelas chamas; mas o que tinha causado a primeira explosão continuava um mistério para os náufragos.


CAPÍTULO 20: A Ilha da Selva O primeiro cuidado de Tarzan e seus companheiros foi procurar água fresca e construir o acampamento, pois todos imaginaram que o período de existência na ilha poderia estender-se por meses, ou até anos. Tarzan sabia onde havia água, e imediatamente conduziu o bando para lá. Aí, os homens começaram a construir abrigos e móveis toscos, enquanto Tarzan foi para a selva à procura de alimento, deixando o fiel Mugambi e a mulher Mosula para cuidarem de Jane, cuja guarda nunca confiaria a qualquer membro da tripulação. Lady Greystoke sofreu muito mais do que qualquer dos náufragos. O golpe nas suas esperanças e ao seu coração de mãe, já cruelmente lacerado, foi para ela mais cruel que as privações anteriores. Parecia-lhe que agora, talvez nunca mais viesse a saber o que tinha acontecido ao seu primogênito. Que poderia fazer para descobrir onde ele estava, ou melhorar-lhe a existência — existência que à sua imaginação naturalmente se apresentava sob as formas mais horríveis? Durante algumas semanas o bando dividiu o tempo entre as várias obrigações que tinham sido distribuídas a cada um. Uma sentinela diurna foi mantida desde madrugada até o pôr do sol sobre uma colina perto do acampamento, num promontório de rochas que ficava defronte o mar. Aí, pronta para ser acesa, foi acumulada uma grande pilha de galhos secos, enquanto de um poste alto, fincado no chão, flutuava um sinal de socorro, improvisado de uma camisa vermelha que pertencia ao oficial do Kincaid. Mas nenhum ponto no horizonte, de vela ou fumaça, recompensou os olhos cansados que, nessa vigília interminável, sem esperança, investigavam diariamente a vasta extensão do oceano. Foi Tarzan quem sugeriu, finalmente, a idéia de construírem uma embarcação que os levasse de novo ao continente. Ele podia ensinar-lhes


como se fabricavam ferramentas rudes. Todos aceitaram a idéia, e ficaram ansiosos de pôr mãos à obra, para começar o trabalho. Passado, porém, algum tempo e quando os trabalhos já estavam muito adiantados, começaram entre os operários as disputas e discórdias. De modo que agora, além dos outros perigos, havia descontentamento e suspeita. Mais do que nunca, Tarzan receava deixar agora Jane entre os brutos da tripulação do Kincaid; mas precisava caçar, pois nenhum outro podia voltar com tanta caça quanto ele. Às vezes Mugambi o auxiliava; mas a lança e as flechas do negro não eram tão certeiras como a corda e a faca do homem-macaco. Finalmente os homens abandonaram o trabalho, indo para a selva aos pares, para explorar e caçar. Todo este tempo não avistaram Sheeta nem Akut e os outros grandes macacos, embora Tarzan os tivesse encontrado às vezes na selva enquanto caçava. Enquanto as coisas iam de mal a pior no acampamento dos náufragos do Kincaid, sobre a costa leste da Ilha da Selva, outro acampamento era levantado na costa do norte. Aí, numa pequena enseada, estava um pequeno navio, o Cowrie, cujos tombadilhos poucos dias antes foram encharcados de sangue dos seus oficiais e outros membros de sua tripulação, pois o Cowrie tivera pouca sorte quando recebeu a bordo homens como Gust e Momula, o Maori, e aquele demônio Kai Shang, de Fachan. Havia ainda outros, também, dez ao todo — a canalha dos portos do mar do sul; mas Gust e Momula e Kai Shang eram os cabeças diabólicos do bando. Eram eles que tinham incitado a revolta da guarnição, a fim de se apoderarem da remessa de pérolas, que constituía a riqueza da carga do Cowrie.


Fora Kai Shang que assassinara o comandante quando este dormia no seu camarote, enquanto Momula, o Maori, atacava o oficial da guarda. Gust, como era seu costume, achara meios de delegar aos outros o direito de matar. Não que tivesse escrúpulos, mas porque zelava muito pela sua própria segurança pessoal. Há sempre algum perigo para o assassino, pois as suas vítimas poucas vezes estão dispostas a se deixar matar sem reação. Às vezes até chegam ao ponto de inverter o resultado contra o assassino. Era esta possibilidade de reação que levava Gust a ceder aos seus companheiros o direito que eles se atribuíam sobre a vida alheia. Mas agora que o serviço já estava feito, o sueco pretendia adquirir a posição do supremo comando entre os amotinados. Chegou mesmo ao ponto de se apoderar de certas peças de roupa que pertenciam ao comandante assassinado do Cowrie — peças que ainda conservavam as divisas e as insígnias da autoridade. Este fato desagradou a Kai Shang, que não suportava nenhuma autoridade e não pretendia submeter-se ao predomínio de um vulgar marinheiro sueco. As sementes de discórdia já haviam sido, portanto, plantadas no acampamento dos amotinados do Cowrie, situado ao norte da Ilha da Selva. Mas Kai Shang entendeu que devia agir com cautela; pois, de todo o bando, somente Gust possuía suficiente conhecimento de navegação, para tirá-los do Atlântico Sul e dar volta ao cabo, a fim de alcançarem águas mais agradáveis, onde pudessem achar um mercado para aquela riqueza mal ganha, e sem serem interrogados. Na véspera de avistarem a Ilha da Selva e descobrirem a pequena baía cercada de terras onde o Cowrie estava ancorado, avistara a sentinela a fumaça e as chaminés de um navio de guerra. A possibilidade de serem descobertos e terem de entrar em comunicação com um navio de guerra, não agradou a nenhum deles, e por isso se ocultaram durante alguns dias até que o perigo já tivesse passado.


Gust não desejava agora aventurar-se ao mar outra vez. Era até possível, conjeturou ele, que aquele vapor estivesse mesmo à procura deles. Kai Shang contraveio que isto não podia ser, visto como era impossível que qualquer ser humano, a não ser eles mesmos, pudesse ter conhecimento do que havia acontecido a bordo do Cowrie. Mas Gust não se deixava persuadir. No seu coração malvado nutria um plano, que lhe pudesse duplicar a parte que lhe tocara no roubo. Somente ele podia manobrar o Cowrie; portanto, sem ele, os outros não podiam sair da Ilha da Selva. Mas o que poderia impedir Gust, dispondo de homens suficientes para manobrar o navio, de abandonar Kai Shang, Momula e metade da tripulação, quando se lhe deparasse ensejo favorável? Era por esta oportunidade que Gust esperava. Algum dia chegaria o momento em que Kai Shang, Momula e três ou quatro dos outros estariam ausentes do acampamento explorando e caçando. O sueco deu tratos ao cérebro para atinar com algum plano que pudesse afastar do vapor ancorado aqueles que tinha decidido abandonar. Para este fim organizou várias excursões de caça: mas sempre o diabo parecia avisar a alma de Kai Shang, porquanto este nunca ia caçar senão na companhia de Gust. Um dia Kai Shang falou secretamente com Momula, dizendo-lhe os motivos por que suspeitava da lealdade do sueco. Momula ofereceu-se para ir imediatamente enterrar uma faca no coração do traidor. É verdade que Kai Shang fundava apenas a sua suspeita contra Gust na própria astúcia natural da sua alma de velhaco — suspeitava apenas das intenções de Gust, imaginando o que ele mesmo gostaria de fazer contra aquele, caso tivesse à mão meios necessários para isso. Mas não teve coragem de deixar Momula matar o sueco, única pessoa com quem eles contavam para libertá-los daquela dificuldade. Decidiram, entretanto, que não seria bom nem tentar assustar Gust, para que


acedesse aos seus desejos. Assentado isto, o Maori procurou o comandante, nomeado por si mesmo, do bando de piratas. Quando Momula tocou no assunto da partida imediata, Gust mais uma vez contrapôs a sua primitiva objeção de que o navio de guerra poderia estar vigiando o mar diretamente no seu caminho do sul, esperando que eles tentassem alcançar outras águas. Momula zombou dos receios do companheiro, demonstrando que, como ninguém a bordo de qualquer navio de guerra sabia do recente motim, não havia razão para que eles fossem suspeitos. — Ah! — exclamou Gust. — É justamente aí que você está errado. É por isso que você deve se sentir feliz em ter ao seu lado um homem educado como eu, para te dizer o que deve fazer. É um pobre negro ignorante, Momula, e por isso não conhece nada do rádio. — Eu não sou ignorante! — exclamou o Maori, pondo-se logo de pé e levando a mão ao cabo da faca. — Eu estou brincando — explicou o sueco. — Nós somos velhos amigos, Momula; não podemos brigar; pelo menos agora, que Kai Shang está planejando roubar todas as pérolas. Se ele pudesse achar um homem para dirigir o Cowrie, nos abandonaria de um momento para o outro. Toda essa conversa acerca de sair daqui, é justamente porque ele tem algum plano na cabeça, para se livrar de nós. — Mas e o rádio? — perguntou Momula. — Que tem o rádio com a nossa permanência aqui? — Oh, sim — respondeu Gust, coçando a cabeça. Ele perguntava a si mesmo se o Maori seria realmente tão estúpido para acreditar na mentira impossível que iria lhe dizer. — Oh, sim! Como sabe, todo o navio de guerra tem a bordo o que se chama de aparelho de rádio, o que permite à gente falar com outros vapores a muitas milhas de distância, e permite ouvir tudo que se diz nos outros vapores. Agora já pode perceber o que aconteceu: quando


estavam brigando a bordo do Cowrie, gritando e fazendo barulho, aquele navio de guerra, que estava ao sul de nós, ouviu tudo que estava se passando a bordo. Naturalmente eles podem não ter identificado o nome do vapor, mas ouviram o bastante para saber que a tripulação de algum vapor se havia revoltado, matando seus oficiais. Portanto, eles ficarão aqui, para revistar todo vapor que avistarem durante algum tempo, e pode ser que não estejam muito longe agora. Enquanto dizia ao outro estas coisas, o sueco procurava assumir um ar de tranqüilidade para que o Maori não ficasse desconfiado quanto a verdade das declarações que lhe acabava de fazer. Momula ficou algum tempo silencioso, olhando para Gust. Finalmente, levantou-se. — Você é um grande mentiroso — disse ele. — Se não conseguir nos tirar daqui amanhã, nunca mais terá oportunidade para mentir, porque ouvi dois homens dizerem que gostariam de enterrar uma faca no seu coração e que se os prendesse por mais tempo neste buraco, eles executariam esse desejo. — Pergunte a Kai Shang se não existe, de fato, o rádio — replicou Gust. — Ele te dirá que existe e que os vapores podem se comunicar uns com os outros a muitas milhas de distância. E dize aos dois homens que desejam matar-me que, se fizerem isto, eles não poderão gozar a parte que lhes coube do roubo, porque somente eu posso conduzi-los com segurança a qualquer porto. Momula foi então conversar com Kai Shang e perguntou-lhe se existia o tal aparelho de rádio, por meio do qual os vapores podiam conversar uns com os outros a grande distância. Kai Shang disse-lhe que sim, que havia esse aparelho.


Momula ficou embaraçado; mas ele queria deixar a ilha, e estava disposto a aventurar-se ao alto-mar, preferindo os seus perigos a ficar por mais tempo ali, sofrendo o tédio do acampamento. — Se tivéssemos outra pessoa que soubesse dirigir um navio! — disse Kai Shang. Naquela tarde Momula fora caçar com dois outros Maoris. Achavam-se na direção do sul, e não muito longe do acampamento, quando foram surpreendidos pelo som de vozes que vinham da selva. Eles sabiam que nenhum de seus homens os havia precedido, e como todos estavam convencidos de que a ilha era desabitada, amedrontaramse e tiveram vontade de fugir, supondo que o lugar era mal-assombrado — possivelmente pelos espíritos dos oficiais assassinados do Cowrie. Mas Momula era ainda mais curioso do que supersticioso, e assim refreou o seu desejo de fugir ao que lhe parecia sobrenatural. Fazendo um sinal para que os companheiros lhe seguissem o exemplo, caiu de mãos e joelhos no chão, arrastando-se furtivamente pela selva na direção de onde vinham as vozes das pessoas invisíveis que falavam. Pouco adiante, à entrada de uma clareira, estacou, soltando um grande suspiro de alívio, pois viu claramente dois homens de carne e osso, que conversavam um com o outro, sentados sobre o tronco de uma árvore caída. Um era Schneider, oficial do Kincaid e o outro um marinheiro chamado Schmidt. — Eu acho que podemos fazer isto — dizia Schneider ao companheiro. — Uma boa canoa não seria difícil de construir, e três de nós, em um dia, podíamos remá-la até o continente, caso o vento fosse favorável e o mar razoavelmente calmo. Não vale a pena esperarmos que os homens construam uma canoa bastante grande para levar todo o bando; além disso, eles estão descontentes e enjoados de trabalhar como escravos o dia inteiro. Não temos obrigação de salvar o inglês. Ele que cuide de si, e que se arranje


como puder. — Calou-se um momento, encarando o outro para notar o efeito das suas palavras, e, em seguida acrescentou: — Mas podíamos levar a mulher. Seria pena deixarmos uma mulher tão bonita como ela em um lugar abandonado como esta ilha. Schmidt olhou para cima e sorriu. — Então é isto que está pensando? — perguntou ele. — Por que não disse logo? Quanto ganharei se te ajudar nesse plano? — Ela deve nos pagar bem para auxiliá-la a voltar para a civilização — explicou Schneider. — Digo-te o que farei: combinarei com dois para me ajudarem. Ficarei com a metade e eles podem dividir a outra metade — tu e algum outro, quem quer que seja. Estou farto deste lugar; quanto mais cedo puder ver-me livre daqui, melhor. Então, que acha? — Aceito — replicou Schmidt. — Eu não saberia chegar sozinho ao continente e sei que nenhum dos outros rapazes saberia também. Você é o único que conhece alguma coisa de navegação e com quem se pode tratar. Momula, o Maori, ouviu atentamente a conversa. Sabia um pouco de cada língua que se fala sobre os mares, e tinha viajado muitas vezes em vapores ingleses. Ergueu-se, penetrou na clareira. Schneider e o companheiro deram um pulo como se um espírito se houvesse levantado diante deles, e levaram a mão aos seus revólveres. Momula ergueu a mão direita, com a palma à mostra, como sinal das suas intenções pacíficas. — Eu sou um amigo — disse ele. — Ouvi toda a conversa, mas não tenham receio porque não revelarei o que disseram. Posso auxiliá-los, e vocês também podem auxiliar-me. — E, dirigindo-se a Schneider. — Você pode dirigir um navio, mas não tem navio. Nós temos um, mas não temos ninguém para dirigi-lo. Se quiser vir conosco, sem nada perguntar, deixaremos levar o navio para onde quiser, depois que nos tiver desembarcado num certo porto, cujo nome diremos mais tarde. Podem levar a mulher a que há pouco se referiram. Nós também nada perguntaremos. Concordam?


Schneider desejava mais algumas informações e obteve tantas quantas Momula julgou conveniente dar-lhe. Então o Maori lhe sugeriu que falasse com Kai Shang. Os dois membros do bando do Kincaid seguiram Momula e seus dois companheiros até um ponto na selva próximo ao acampamento dos amotinados. Então Momula disse-lhes que se escondessem enquanto procurava Kai Shang, tendo tido antes o cuidado de avisar aos seus outros companheiros para tomarem conta dos dois marinheiros caso estes mudassem de idéia e tentassem escapar. Schneider e Schmidt estavam virtualmente prisioneiros, embora não o soubessem. Pouco depois Momula regressou com Kai Shang, a quem ele tinha narrado ligeiramente os detalhes do encontro que tivera na selva. O chinês falou muito tempo com Schneider, até que se convenceu de que este era, realmente, tão velhaco como ele mesmo e que o rapaz estava ansioso para deixar a ilha. Não fossem estes dois fatos, haveria pouca probabilidade de que Schneider fosse digno de confiança de se ver investido no comando do Cowrie; além disso, Kai Shang sabia que sempre acharia meios de fazer o homem sujeitar-se aos seus desejos futuros. Schneider e Schmidt regressaram ao próprio acampamento radiantes de alegria. Agora finalmente tinham um plano praticável de deixarem a ilha, e tinham embarcação em condições de navegar. Não haveria mais trabalho forçado na construção de uma canoa problemática, nem haveria necessidade de arriscar as suas vidas numa embarcação rudemente construída, que era bem capaz de ir ao fundo antes que alcançasse o continente. Também, iam ter auxílio para capturar a mulher, ou mulheres, porque quando Momula soube que havia uma mulher de cor no outro acampamento, insistiu para que ela fosse trazida juntamente com a mulher branca.


Quando Kai Shang e Momula voltaram ao acampamento, levavam a convicção de que eles não precisavam mais de Gust. Caminharam diretamente para a barraca na qual supunham que o encontrariam àquela hora do dia, pois conquanto fosse mais agradável permanecerem todos a bordo do Cowrie, haviam mutuamente decidido que estariam mais seguros se fizessem o acampamento na praia. Cada um sabia que no coração dos outros havia bastante traição, de modo que se tornava perigoso para qualquer deles desembarcar deixando os outros de posse do Cowrie. Somente a dois ou três homens era permitido ir a bordo do navio ao mesmo tempo a não ser que todos os outros estivessem lá também. Quando os dois caminhavam na direção da barraca de Gust, o Maori passou a mão pela lâmina da sua comprida faca. O sueco teria ficado bastante intrigado se tivesse visto o gesto do companheiro ou pudesse ler o que se estava passando no cérebro cruel do negro. Aconteceu que Gust estava naquele momento na barraca ocupada pelo cozinheiro, a qual ficava a pouca distância da sua própria. Por acaso, olhara Gust para fora da barraca do cozinheiro no mesmo instante que Kai Shang e Momula se aproximavam da entrada da barraca dele, e notara que os seus movimentos pareciam furtivos, não denotando intenções amigáveis ou benignas. Além disso, justamente quando os dois entravam para dentro da barraca, Gust viu a comprida faca que Momula ocultava atrás das costas. O sueco arregalou os olhos, sentindo ao mesmo tempo um estranho arrepio nas raízes do cabelo. E empalideceu, sem saber o que pensar; mas, adivinhando as intenções dos companheiros, saiu rapidamente da barraca do cozinheiro. Como se tivesse ouvido a conspiração dos dois, ele sabia que Kai Shang e Momula tinham vindo para matá-lo.


O fato de ser somente ele quem poderia dirigir o Cowrie tinha sido até então a sua salvação. Era evidente que acontecera alguma coisa, que ele ignorava, mas que impelia agora os dois a quererem eliminá-lo. Gust correu, sem parar, até a praia, internando-se na selva. Tinha medo da selva, cujos rumores estranhos eram para ele verdadeiramente horrorosos. Mas, se tinha medo da selva, tinha muito mais medo ainda de Kai Shang e Momula. Os perigos da selva eram mais ou menos incertos, enquanto que o perigo que o ameaçava às mãos dos seus companheiros era constante, podendo, de um momento para outro, tornar-se realidade, com algumas polegadas de aço frio, ou um pedaço de corda leve. Ele tinha visto Kai Shang estrangular um homem em Pai-Sha num beco escuro atrás do estabelecimento de Loo Kai. Receava, por isto, mais a corda de Kai Shang do que a faca do Maori; mas, como quer que fosse, era para ele grande perigo ficar ao alcance de qualquer um deles. Escolheu, portanto, a selva impiedosa.


CAPÍTULO 21: A lei da selva No acampamento de Tarzan, por meio de ameaças e promessa de recompensas, o homem-macaco tinha finalmente conseguido construir, quase que por completo, o casco de uma grande embarcação, auxiliando ele e Mugambi, com as próprias mãos, o trabalho dos marinheiros, quando não andavam pela floresta em busca de carne para alimento do pessoal. Schneider, o oficial, tinha-se queixado do trabalho, até que, finalmente, deixou abertamente de trabalhar, internando-se na selva com Schmidt, sob pretexto de irem caçar. Disse que precisava descansar, e Tarzan para não agravar ainda mais a vida no acampamento, a qual já se ia tornando insuportável, consentiu que os dois homens partissem para a caça. No dia seguinte, porém, Schneider fingiu arrepender-se do seu procedimento e voltou a trabalhar com animação. O mesmo fez Schmidt simulando boa vontade, o que muito alegrou Lorde Greystoke, por ver que finalmente os homens compreendiam a necessidade do trabalho que lhes era pedido e das suas obrigações para com os outros do bando. Foi, pois, com uma sensação de alívio que ele saiu ao meio-dia para caçar, na floresta, uma manada de pequenos veados que Schneider dissera ter visto na véspera indo para o sudoeste. O homem-macaco encaminhou-se para lá, varando facilmente a folhagem entrelaçada da floresta. Enquanto se aproximava do norte, meia dúzia de homens malencarados caminhavam furtivamente pela selva, como quem se prepara para praticar alguma ação criminosa. Julgavam eles que estavam caminhando sem serem percebidos; mas, atrás deles, quase desde o momento em que haviam deixado o acampamento, um homem alto seguia-lhes a pista. Nos olhos desse homem havia ódio e receio, e, ao mesmo tempo, grande curiosidade. Por que Kai Shang, Momula e


os outros iriam assim furtivamente para o sul? Que esperavam encontrar lá? Gust sacudiu perplexo a cabeça. Iria descobrir. Ele os seguiria, surpreenderia os seus planos, e então, se pudesse, iria frustrá-los de boa vontade. Julgou, primeiramente, que eles o procuravam; mas, pensando melhor, viu que isto não podia ser, pois que eles tinham feito tudo para o enxotarem do acampamento. Nunca Kai Shang ou Momula se dariam ao trabalho de matá-lo, ou a qualquer outro, a não ser para roubar; como Gust não tinha dinheiro, era evidente que estavam procurando outra pessoa. Dentro em pouco, o grupo que ele seguia parou, ocultando-se todos na folhagem, à beira do rastro da caça, que tinham acompanhado. Gust para observar melhor, trepou nos galhos duma árvore, atrás deles, tendo o cuidado de esconder-se bem entre as folhas, de modo que não pudesse ser percebido pelos seus antigos companheiros. Não esperou muito tempo. Pouco depois, viu um homem branco, estranho, que se aproximava cautelosamente do lado do sul. À vista do recém-chegado, Momula e Kai Shang levantaram-se dos seus esconderijos e o cumprimentaram. Gust não pôde ouvir o que se conversaram, mas viu que o homem voltara na direção de onde tinha vindo. Era Schneider. Chegando ao acampamento, dirigiu-se para o lado oposto e apareceu correndo esbaforido. Nervoso, gritou para Mugambi: — Rápido! Aqueles seus macacos apanharam Schmidt e o matarão se não correrem em seu auxílio. Sigam o rastro de caça mais ou menos uma milha para o sul. Eu ficarei aqui, pois estou muito cansado da corrida que dei. Não posso voltar com vocês, e o oficial do Kincaid atirou-se no chão ofegando como se estivesse exausto. Mugambi hesitou. Tinha ordem de guardar as duas mulheres. Não sabia o que fazer. Jane Clayton, que ouvira a história de Schneider, juntou os seus rogos aos do oficial:


— Vá, Mugambi, vá depressa — disse ela. — Ficaremos bem aqui. O senhor Schneider ficará conosco. Vá, Mugambi. O pobre rapaz precisa ser salvo. Schmidt que estava escondido no mato, à beira do acampamento, achou graça. Mugambi, obedecendo às ordens de sua patroa, conquanto ainda duvidoso da prudência do seu ato, correu na direção do sul, com Jones e Sullivan atrás dele. Logo que ele desapareceu Schmidt levantou-se e correu na direção do norte. Alguns minutos depois, a face de Kai Shang, de Fachan, apareceu à margem da clareira. Schneider viu o chinês, e indicou-lhe que podia agir. Jane Clayton e a mulher Mosula estavam sentadas à entrada da barraca da primeira, com as costas para os patifes que estavam se aproximando. O primeiro sinal que tiveram da presença de estranhos no acampamento, foi o aparecimento repentino de meia dúzia de patifes ao redor delas. — Venham! — disse Kai Shang às duas mulheres, ordenando-lhes que se levantassem e o seguissem. Jane Clayton ergueu-se de um salto, e olhou para Schneider, que estava de pé, atrás dos recém-chegados com um sorriso nos lábios. Ao lado dele estava Schmidt. Imediatamente a moça compreendeu que tinha sido vítima de uma conspiração. — Que quer dizer isto? — perguntou ela dirigindo-se ao primeiro oficial. — Quer dizer que encontramos um navio, e podemos agora dizer adeus à Ilha da Selva — replicou o homem. — Por que mandou Mugambi e os outros para a selva? — perguntou ela. — Eles não vêm conosco — somente a senhora e eu, e a mulher Mosula.


— Venha! — repetiu Kai Shang, e agarrou Jane Clayton pelo pulso. O Maori agarrou também a mulher negra pelo braço e quando esta quis gritar, deu-lhe um soco na boca. Mugambi correu pela selva na direção do sul. Jones e Sullivan iam muito atrás. Correu cerca de uma milha sem ver nenhum sinal do homem que tinha desaparecido ou de qualquer dos macacos de Akut. Finalmente, parou e chamou, como ele e Tarzan estavam acostumados a chamar os grandes antropóides. Não obteve resposta. Jones e Sullivan chegaram perto do guerreiro negro quando este ainda estava soltando o seu grito estranho. Por mais de meia milha o negro procurou, chamando de vez em quando. Finalmente, percebeu a verdade; e então, como um coelho assustado, voltou-se regressando a correr para o acampamento. Chegando aí percebeu num momento que eram fundados os seus receios. Lady Greystoke e a mulher Mosula tinham partido. E Schneider também. Quando Jones e Sullivan se juntaram a Mugambi ele quase os matou, tal a sua raiva, julgando-os também conspiradores; mas eles conseguiram convencê-lo de que nada sabiam da conspiração. Enquanto estavam meditando sobre o lugar provável onde se achariam as mulheres e o seu raptor, bem como o fim para que Schneider as tinha afastado do acampamento, Tarzan desceu dos galhos de uma árvore e atravessou a clareira na direção deles. Os seus olhos penetrantes viram imediatamente que havia acontecido alguma coisa de anormal. Quando ouviu a história de Mugambi, seus queixos entraram a bater de raiva e uma ruga lhe franziu a testa. Que esperaria obter o oficial raptando Jane Clayton de um acampamento em uma pequena ilha, na qual ele não podia escapar à vingança


de Tarzan? O homem-macaco não podia acreditar que o sujeito fosse tão tolo; e então começou a lobrigar uns longes de verdade. Schneider só teria praticado semelhante coisa porque tinha a certeza de que havia um meio de fugir da Ilha da Selva com os seus prisioneiros. Mas por que levara também a mulher negra? Ele devia ter cúmplices, um dos quais desejava a indígena. — Vamos! — disse Tarzan. — Só temos uma coisa a fazer: seguirlhes a pista. Quando acabou de falar, um vulto alto e desairoso saiu da selva, ao norte do acampamento, caminhando ao encontro dos quatro homens. Nenhum deles podia pensar que qualquer outro ser humano, a não ser os do seu próprio acampamento, habitasse as praias da Ilha da Selva. Era Gust. Ele foi diretamente ao ponto em discussão. — As suas mulheres foram raptadas — disse ele. — Se quiserem vê-las novamente, venham depressa comigo. Se não nos apressarmos o Cowrie terá partido, antes que cheguemos ao seu ancoradouro. — Quem é você? — perguntou Tarzan. — Que sabe do rapto da minha mulher e da mulher negra? — Eu ouvi Kai Shang e Momula, o Maori, conspirarem com dois homens do seu acampamento. Eles me expulsaram do acampamento e queriam matar-me. Agora vou ajustar contas com eles. Venham. Gust conduziu os quatro homens do Kincaid, a passo rápido, pela selva, na direção do norte. Chegariam ainda a tempo? Mais alguns minutos e eles iriam verificar. Quando finalmente o pequeno grupo saiu da selva fechada, e os homens viram diante deles a baía e o oceano, pareceu-lhes que a sorte tinha sido excessivamente cruel para com eles, pois o Cowrie já estava navegando e se movia vagarosamente, para fora do porto, demandando o alto-mar.


Que iriam fazer? O peito largo de Tarzan arfava com a força das suas emoções. O último golpe parecia ter-lhe sido desfechado e se alguma vez na sua vida Tarzan pudesse perder a esperança, seria agora que via o navio levando a esposa para algum destino horrível, movendo-se graciosamente sobre as águas encrespadas, tão perto, e ao mesmo tempo tão horrivelmente longe. Ele ficou em silêncio olhando para o navio. Viu-o tomar a direção do leste e finalmente desaparecer na curva do promontório. Para onde? Não sabia. E Tarzan caiu sentado, enterrando o rosto nas mãos. Foi depois do escurecer que os cinco homens voltaram para o acampamento, na praia do leste. A noite era quente e abafada. Nenhuma brisa agitava a folhagem das árvores ou encapelava a superfície do oceano que parecia um espelho. Tarzan nunca tinha visto o grande Atlântico tão sossegado. Estava parado à beira da praia, olhando para o mar na direção do continente, a alma cheia de tristeza e desespero, quando da selva, por trás do acampamento, chegou-lhe o lamento duma pantera. Havia

uma

nota

conhecida

no

grito

estranho.

Quase

mecanicamente Tarzan voltou a cabeça e respondeu ao grito. Um momento depois, o vulto de Sheeta surgiu maciamente à frouxa claridade da praia. Não havia lua, mas o céu estava recamado de estrelas. Silenciosamente a fera se aproximou do homem. Havia já muito tempo que Tarzan não via o seu velho companheiro de combates; mas o rosnar suave era suficiente para certificá-lo de que o animal ainda se lembrava dos laços que os tinham unido a ambos no passado. O homem-macaco deixou os dedos cair sobre o pêlo do animal, e quando Sheeta se esfregou contra a sua perna, ele lhe acariciou e alisou a cabeça, enquanto os seus olhos continuaram fitos na escuridão das águas. Súbito, estremeceu. Que era aquilo? Forçou ainda mais a vista. Voltou-se e chamou em voz alta os homens que estavam fumando, sentados


nos seus cobertores, no acampamento. Acorreram todos; mas Gust hesitou ao ver a natureza do companheiro de Tarzan. — Olhem! — gritou Tarzan. — Uma luz! A luz de um navio! Deve ser o Cowrie paralisado pela calmaria. — E, com uma exclamação de renovada esperança: — Podemos ainda alcançá-los! A nossa canoa nos levará até lá facilmente. Gust advertiu: — Eles estão bem armados. Nós não poderíamos assaltar o navio com cinco homens somente. — Há seis agora, — replicou Tarzan, apontando para Sheeta, — e podemos ter ainda mais em meia hora. Sheeta equivale a vinte homens, e os outros, que posso reunir, juntarão ao menos cem à nossa força combatente. Você não os conhece. O homem-macaco voltou-se, levantou a cabeça na direção da selva, e soltou dos lábios, por diversas vezes, o grito horroroso do macaco que chama os companheiros. Logo da selva veio um grito em resposta, e outro e mais outro. Gust estremeceu. Em meio de que criaturas a sorte o tinha jogado? Não eram Kai Shang e Momula preferíveis a este grande gigante branco que alisava com a mão o pêlo de uma pantera e chamava os animais da selva? Em poucos minutos os macacos de Akut vieram rompendo com estrondo, do mato para a praia, enquanto os cinco homens lutavam com o vulto pouco manejável do casco da embarcação. Com esforços hercúleos conseguiram trazê-la até a beira da água. Os remos dos dois pequenos botes do Kincaid, que tinham sido levados à praia pelo vento, na mesma noite que o pessoal desembarcou, e haviam sido utilizados para sustentar a lona das barracas, foram logo requisitados. Quando Akut e os seus companheiros chegaram à praia, tudo estava pronto para o embarque. Mais uma vez o bando horrendo entrou ao serviço do seu chefe, e


tomaram os seus lugares na embarcação. Os quatro homens, pois não houve meio de convencer Gust a acompanhar o pessoal, pegaram nos remos, enquanto alguns dos macacos seguiram o seu exemplo; logo a embarcação desajeitada começou a mover-se vagarosamente na direção da luz, que levantava e descia suavemente com a ondulação do mar. Um marinheiro sonolento, vigiava preguiçosamente o tombadilho do Cowrie, enquanto no camarote, embaixo, Schneider andava de um lado para outro discutindo com Jane Clayton. A moça tinha achado um revólver na gaveta de uma mesa, no quarto onde estivera presa, e ameaçava agora o oficial com a arma. A mulher Mosula estava ajoelhada atrás dela, enquanto Schneider passeava diante da porta, ameaçando, rogando e prometendo, mas tudo sem resultado. Súbito, do tombadilho em cima, veio um grito de alarme, e em seguida, um tiro. Nesse instante Jane Clayton descuidou-se da sua vigilância, erguendo os olhos para a clarabóia do camarote. Simultaneamente Schneider saltou em cima dela. A primeira suspeita que o vigia teve de que havia outra embarcação em redor de mil milhas do Cowrie foi quando ele viu a cabeça e os ombros de um homem aparecerem sobre o costado do navio. Imediatamente, pondo-se de pé, soltou um grito e apontou o revólver para o intruso. Foi este grito e o estampido subseqüente do revólver que desviaram a atenção de Jane Clayton. No tombadilho, ao sossego que reinara até esse momento, sucedeu um pandemônio horrível. Os membros da tripulação do Cowrie correram para cima armados com revólveres, cutelos e as facas compridas que muitos deles usavam habitualmente; mas o alarma fora dado tarde demais. Já os animais estavam no tombadilho do navio, com Tarzan, Mugambi e os dois homens da tripulação do Kincaid. Dando de rosto com as horríveis feras, a coragem dos amotinados vacilou e fugiu. Os que tinham revólver atiraram às


cegas e correram buscando um lugar seguro. Alguns subiram pelos mastros, mas os macacos de Akut estavam mais acostumados a isso do que eles. Soltando gritos de terror, eles foram puxados dos seus altos poleiros. Os animais, sem o comando de Tarzan, que tinha ido à procura de Jane, desencadearam toda a fúria da sua natureza selvagem sobre os miseráveis que lhes caíam nas garras. Sheeta, neste conflito, já tinha sentido os seus grandes dentes afundar numa veia jugular, e divertia-se em despedaçar um cadáver quando viu Kai Shang descer a escada para refugiar-se no seu camarote. Com um grito agudo Sheeta foi atrás dele — um grito que despertou outro, igualmente estranho, na garganta do chinês aterrorizado. Kai Shang alcançou o seu camarote uma fração de segundo antes da pantera, e pulando para dentro bateu a porta — mas era tarde. O grande corpo de Sheeta caiu contra a porta antes que fechasse, e um momento depois Kai Shang falava ininteligivelmente, gritando, subido em um leito superior. Com um salto macio Sheeta pulou atrás da sua vítima. Instantes depois, os maus dias de Kai Shang, de Fachan, estavam terminados e Sheeta devorava gulosamente sua carne dura e fibrosa. Mal se passara um momento, depois que Schneider pulara sobre Jane Clayton, tirando-lhe o revólver da mão, quando a porta do camarote se abriu e apareceu um homem seminu, que silenciosamente caminhou até ao fundo do camarote. Schneider sentiu mãos musculosas apertarem-lhe a garganta. Voltando a cabeça, para ver quem o atacava, deu de rosto com o homem-macaco. Cruelmente os dedos de Tarzan apertaram a garganta do oficial. Este queria gritar, implorar, mas não conseguia soltar nenhuma palavra. Os olhos saltavam-lhe das órbitas enquanto ele lutava para se libertar daquelas garras, respirar, viver ainda.


Jane Clayton tentou afrouxar as mãos do marido, procurando tirálas de sobre a garganta do homem moribundo: mas Tarzan sacudiu a cabeça. — Nunca mais — exclamou ele, tranquilamente. — Tenho concedido a vida a muitos patifes. Somente para depois sofrer e fazer você sofrer, devido à minha misericórdia. Desta feita vamos liquidar de vez este patife — para termos a certeza de que ele nunca mais nos prejudicará ou a qualquer outro. — E, com um puxão repentino, torceu o pescoço do oficial traidor. Ouviu-se um estalo, e o corpo do desgraçado logo amoleceu, sem movimento, nas mãos do homem-macaco. Com um gesto de nojo Tarzan atirou o corpo para um lado, e voltou para o tombadilho, seguido por Jane e a mulher Mosula. A batalha aí já havia terminado. Somente Schmidt e Momula e dois outros sobreviveram de toda a tripulação do Cowrie, porque haviam se refugiado no castelo da proa. Os demais tinham morrido, horrivelmente e como mereciam, sob os dentes e garras das feras de Tarzan. De manhã, os primeiros raios do sol iluminaram os destroços da cena medonha, que se havia passado no tombadilho do mal-afortunado Cowrie; mas desta vez o sangue que lhe tingia o assoalho branco era o de traidores e bandidos e não o de inocentes. Tarzan fez vir para fora os homens que tinham se escondido no castelo da proa, e sem promessas de imunidade de castigo forçou-os a auxiliar as manobras do navio sob pena de morte imediata. Tinha-se levantado com o sol um vento forte. Com as velas estendidas o Cowrie partiu para a Ilha da Selva, onde, algumas horas depois, Tarzan apanhou Gust e disse adeus a Sheeta e aos macacos de Akut; pois ele desembarcou aí as feras, para que estas continuassem a sua vida selvagem e natural de que tanto gostavam; e não perderam um momento; desapareceram logo nas profundidades frescas da sua selva querida.


Que eles ignoravam que Tarzan ia deixá-los, parece o mais provável — a não ser talvez o mais inteligente, Akut, o único que ficou na praia quando o pequeno bote regressou ao navio, levando o seu amo selvagem. E enquanto os seus olhos puderam alcançar, Jane e Tarzan, no tombadilho, viram o vulto solitário do macaco felpudo, imóvel, na praia, batida pelo rebentar das ondas da Ilha da Selva. Três dias mais tarde o Cowrie encontrou o navio de guerra Shorewater, e pelo rádio Lorde Greystoke logo estabeleceu ligação com Londres. Dentro em pouco recebia ele uma notícia que encheu de alegria o seu coração e o de sua mulher: — o pequeno Jack estava salvo, e com boa saúde, na casa de Lorde Greystoke. Mas somente ao chegar a Londres foi que eles souberam os detalhes das circunstâncias memoráveis que tinham conservado a criança ilesa. Rokoff, receando levar a criança para bordo do Kincaid durante o dia, tinha-a escondido num antro vil, onde as crianças sem nome eram guardadas. Sua intenção era levá-la para o navio quando escurecesse. O seu aliado e secretário Paulvitch, fiel aos longos anos de ensino do seu astuto chefe, aprendera finalmente a traição e avidez, que sempre tinham distinguido o seu superior. Calculando o resgate enorme que poderia ganhar se devolvesse a criança ilesa, divulgara o segredo do parentesco à mulher que mantinha o asilo das crianças enjeitadas. Por intermédio dessa mulher arranjou a substituição por uma outra criança, prevendo muito bem que Rokoff jamais descobriria a peça que acabavam de lhe pregar. A mulher prometeu ficar com a criança até que Paulvitch voltasse para a Inglaterra, mas também ela, por sua vez, foi tentada a trair o seu cargo pela atração do ouro, e assim abriu negociações com os advogados de Lorde Greystoke para a restituição da criança.


Esmeralda, a velha ama negra estava de férias na América, por ocasião do rapto do pequeno Jack. A pobre ama, que atribuíra à sua ausência a causa dessa calamidade, tinha voltado e identificado positivamente a criança. O resgate foi pago, e dez dias depois de ter sido roubado, o futuro Lorde Greystoke foi restituído a casa do seu pai. E assim o último e o maior dos muitos crimes de Nikolas Rokoff, somente malogrou pela traição que ele tinha ensinado ao seu único amigo, como ainda resultou da morte do patife, e trouxe para Lorde e Lady Greystoke uma tranqüilidade de espírito que eles nunca teriam experimentado enquanto um resquício de vida animasse o corpo do russo e o seu cérebro maligno estivesse livre para tramar novas crueldades contra eles. Rokoff estava morto, e embora a sorte de Paulvitch fosse desconhecida, tinham motivos para acreditar que ele tivesse sucumbido aos perigos da selva, onde o tinham visto pela última vez — instrumento perverso do seu chefe. E assim, pelo que sabiam, eles estariam livres para sempre da ameaça destes dois homens — os únicos inimigos que Tarzan teve ocasião de temer, porque lhe armavam golpes covardes, ferindo-o na pessoa daqueles a quem amava. Foi uma reunião feliz de amigos a que se ajuntou na casa dos Greystoke no dia em que Lorde Greystoke e sua esposa desembarcaram do tombadilho do Shorewater, para pisar de novo o solo inglês. Acompanhando-os estavam Mugambi e a mulher Mosula, que ele tinha encontrado no fundo da canoa naquela noite, à margem do pequeno tributário do Ugambi. A mulher tinha preferido ficar com o seu novo patrão a voltar para sua terra, onde a esperava o casamento a que ela tinha escapado.


Tarzan propôs-lhes que fossem habitar as suas vastas fazendas africanas na terra dos Waziris, para onde embarcariam na primeira oportunidade. Provavelmente, ainda os veremos todos lá, vivendo a vida selvagem da selva e em meio das grandes planícies onde Tarzan dos Macacos prefere viver. Quem sabe? AS AVENTURAS DE TARZAN CONTINUAM NO LIVRO O FILHO DE TARZAN.


SÉRIE TARZAN Tarzan dos Macacos

(Tarzan of the Apes, 1912)

A Volta de Tarzan

(The Return of Tarzan, 1913)

Tarzan e as Feras

(The Beasts of Tarzan, 1914)

O Filho de Tarzan

(The Son of Tarzan, 1915)

Tarzan e as Jóias de Opar

(Tarzan and the Jewels of Opar, 1916)

Tarzan e os Contos da Selva

(Jungle Tales of Tarzan, 1917)

Tarzan, o Indomável

(Tarzan, The Untamed, 1919)

Tarzan, o Terrível

(Tarzan, The Terrible, 1921)

Tarzan e o Leão de Ouro

(Tarzan and the Golden Lion, 1922)

Tarzan e os Homens Formigas

(Tarzan and the Ant Men, 1924)

Tarzan, o Rei da Selva

(Tarzan, Lord of the Jungle, 1927)

Tarzan e o Império Perdido

(Tarzan and the Lost Empire, 1929)

Tarzan no Centro da Terra

(Tarzan at the Earth's Core, 1930)

Tarzan, o Invencível

(Tarzan, The Invincible, 1930)

Tarzan Triunfante

(Tarzan Triumphant, 1932)

Tarzan e a Cidade de Ouro

(Tarzan and the City of Gold, 1932)

Tarzan e o Homem Leão

(Tarzan and the Lion Man, 1933)

Tarzan e os Homens Leopardos

(Tarzan and the Leopard Men 1935)

A Busca de Tarzan

(Tarzan's Quest, 1935)

Tarzan, o Magnífico

(Tarzan, The Magnificent, 1936)

Tarzan e a Cidade Proibida

(Tarzan and the Forbidden City, 1938)

Tarzan e a Legião Estrangeira

(Tarzan and the Foreign Legion, 1947)

Tarzan e o Louco

(Tarzan and the Madman, 1964)

Tarzan e os Malditos

(Tarzan and the Castaways, 1965)



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