Chicos N. 27 - Julho 2010 e-zine de literatura e idéias de Cataguases – MG Capa
Dedim de prosa
De Gabriel Franco sobre desenho de Altamir Soares
Editores Emerson Teixeira Cardoso José Antonio Pereira
Colaboradores desta edição Antônio Miranda Antônio Perin Donizete Galvão Eltânia André Emanuel Medeiros Fernando Cesário Flausina Márcia da Silva José Vecchi Ronaldo Cagiano Rubens Shirassu Jr
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Neste número, publicamos uma moção de apoio de José Vecchi ao Fernando Cesário em sua carta ao prefeito de Cataguases. Flausina Márcia nos presenteia com uma bela releitura poética de Clarice Lispector, as imagens que ilustram são respectivamente um óleo Giorgio de Chirico e um desenho de Cischiatti. Antônio Perin em um poema lamenta a morte de sua mãe Eltânia André homenageia o cataguasense Vanir Franzini Emanuel Medeiros mais uma vez nos premia com sua ótima poesia Jorge Ariel Madrazo é mais um poeta argentino que conhecemos através da tradução de Ronaldo Cagiano. Donizete Galvão mostra a desumanização e fragmentação à que o homem é submetido na metrópole. José Antonio Pereira traz em Vendedor de pirulitos narra o drama da infância sem futuro. Emerson Teixeira faz uma saborosa e divertida incursão pela adolescência ginasiana dos anos 60. Ronaldo Cagiano num conto premiado mergulha nas ausências de uma solitária casa vazia. Fernando Cesário está lançando seu último livro Os olhos vesgos de Maquiavel, para nosso deleite uma amostra do seu último romance encontra-se aqui. Antônio Miranda a partir de dois livros de ensaios sobre poesia nos propõe uma discussão sobre a poesia contemporânea. Rubens Shirassu Jr tem seu livro Religar as origens resenhado por Rosângela Vieira Rocha.
Sumário
JOSÉ VECCHI e-moção
03
FLAUSINA MÁRCIA DA SILVA Personagens de Clarice
04
ANTÔNIO PERIN Meu último ancestral
07
ELTÂNIA ANDRÉ Vanir: Pássaro noturno
08
EMANUEL MEDEIROS Desterro e outros poemas
10
JORGE ARIEL MADRAZO Em seu planeta e outros poemas
13
DONIZETE GALVÃO Um outro homem inacabado
17
JOSÉ ANTONIO PEREIRA O vendedor de pirulitos
18
EMERSON TEIXEIRA Sob o teu teto um coração juvenil
23
RONALDO CAGIANO Eles não moram mais aqui
26
FERNANDO CESÁRIO Fragmento de Os olhos vesgos de Maquiavel
30
ANTONIO MIRANDA A poesia brasileira, em que direção?
36
RUBENS SHIRASSU JUNIOR Compromisso com o humano na essência – Rosângela Vieira Rocha fala de Religar as origens
38
02
José Vecchi
e-moção Confesso que estou confuso: uma intermitência sonâmbula me assola. Parece um delírio. Sim, devo estar sonhando. Tomei conhecimento de uma carta do escritor Fernando Cesário ao prefeito de Cataguases. Esclareço que, dos meus contatos com pessoas do local, concluí, há algum tempo, que Cataguases havia se desemancipado, vítima, talvez, de uma acefalia, de uma amaurose, ou mesmo de um sono profundo, uma letargia. Mas eis-me a carta a um prefeito. Mineiramente, uai, então estou enganado? Cataguases está emancipada? É de fato um município? Subitamente lembrei-me do livro de Antônio Torres “Carta ao Bispo”, do Gil e da sua entrevada cidadezinha Malhada da Pedra. Um estalo, ôpa, então é isso: uma carta escrita por um escritor, claro, como não pensei nisso antes? É pura ficção. Na dúvida, reli procurando vestígios de realidade. Continuo com dúvidas. Esses escritores fazem essas coisas com a gente, afinal, ninguém sabe ao certo se Capitu traiu Bentinho. Vai ver que isso não é tão importante. Então vou em frente, o missivista é um personagem real, escreveu a missiva, eu li. Os demais personagens... bem, não importa. Coloquei um ponto-final na leitura da carta. Acho mesmo que estou sonhando. E abusando do Chico “... em Macau, Maputo, Meca, Bogotá que sonho é esse de que não se sai em que se vai trocando as pernas e se cai e se levanta noutro sonho...”. Mas, numa brecha, num descuido do meu delírio, registro, humildemente, minha moção eletrônica de apoio ao Gil, digo, ao intento de Fernando Cesário.
JOSÉ VECCHI DE CARVALHO Nasceu em Cataguases (MG) Mora em Viçosa (MG) Coautor de: A casa da Rua Alferes e outras crônicas
Ouça a Carta Aberta ao Prefeito de Cataguases em: http://www.4shared.com/audio/mMy4BoeE/Reunio_Ordinria_03maio2011_-_G.html
03
Flausina Márcia Silva
Personagens de Clarice
I Pergunta se pedra nasce responde que pedra está Nasce Clarice ao estar em Virgínia, Macabéa e GH Outras, Angela ou Cristina saem da pedra Lispector Rumo ao quase humano para salvar vidas, em Nome da ausência de Deus e do desejo de redenção. Vicissitudes v de vida c de culpa s de singular t de tudo d de dado esse de novo? 04
Flausina Márcia Silva Virgínia entrelaçada dupla e só, mal, mal vive um presente atemporal. Tem namorado e cor branca no vestir, sem noivar ou insistir nos vínculos. Virgínia deleita-se com ruídos de prédios em obra passeios erráticos, bambos, sem reflexões ou diálogos, apenas momentos seus Instantes de poder e intimidade de festa, onde lembranças tornam o mundo menos opaco, de sabor fúnebre e grosso Ela nem sabe, sofre de moldagem descabida em irmandades, somente nua, crua e repentina. Cumpre destino de pedra rolada, seixo, limpinha...
Manuscrito de Clarice Lispector
05
Flausina Márcia Silva II Macabéa se acabou Clarice, em asas de fogo Voou, vai eu agora saber se estrela tem hora.
III No meio do alfabeto os esquecidos G e H recomendam paixão segundo Clarice Na parede branca onde é certo executar os insetos Paixão ainda, porque desesperamos sem asco Rabiscamos pelos, asas envernizadas bocas ansiosas mãos muito firmes Para dizer do nada vivemos e somos um pouco menos e mais divinos FLAUSINA MÁRCIA SILVA Nasceu em Cataguases (MG) Mora em Belo Horizonte Autora de entre outros: Vaga Lume e Sua casa minha cruz
06
Antônio Perin
Meu último ancestral
No velório palavras urdidas por tecelões crédulos devotos trançam no burburinho de suas crenças frases que saltam feito fios rompidos tecem uma oração sem fé.
Na colina atrás da velha tecelagem. Caiadas paredes num branco de anil queimam os olhos na quadra barrenta. Ali onde meus avós em ossos se abrigam recebem o corpo de minha mãe tecelã. A mim só resta o choro solitário. ANTÔNIO PERIN Nasceu em Itaobim (MG) Mora em Cataguases (MG)
07
Eltânia André
Vanir: Pássaro noturno Lembro-me de ti, amigo, descendo ladeiras, matadouros, seguindo avenidas, enfrentando labirintos, para encontrar o belvedere próximo à bomba d’agua, e ali edificar teus sonhos, contabilizar teus segredos. Por que não sorves mais uma colherada daquela sopa, que agora esfria no fogão? Tens pressa, amigo, para seguir com o rio que corre nos fundos do quintal? Leva contigo as dores e a velha canção de amor! Deixes o sangue que renovavas à medida que alongava os passos, liberta-te da carga tóxica: avesso do rio. Lembro-me do teu andar despido e tuas mãos entrecruzadas nas costas, enquanto vislumbravas pequenos tesouros às margens dos paralelepípedos. Teu assovio reverbera onde não há mais palavras, nesse lugar inominável chamado ausência.
Mas o amigo, deitado sobre o volumoso diário de su’alma, seguiu o curso metafísico do adeus. Tão enigmática era a leitura, nem mesmo a deusa Jose penetrou o insondável de tua alma.
08
Eltânia André
Enquanto avançavas rumo ao desconhecido na extensa reta à sua frente ao teu lado galopava um menino, para recolher-lhe o corpo. Assim despido, leve, como a hóstia divina, num impulso, alçou seu voo noturno. Voa, pássaro noturno, Tens nas mãos o teu destino: ser ave de junho nesse dia que nunca acaba. Mas sei que enxugas as lágrimas de Jose, Ela ficou sozinha no castelo, ainda não lhe nasceram asas. Lembro-me de ti, meu amigo, daquele raro sorriso que davas ao final do dia, gargalhada austera contra os mistérios da morte. Escuto seu assovio, enquanto todos nós, junto com Jose, maldizemos a noite que caiu sobre teu corpo como um feixe de punhais. E na curva desse Lete em que se transformaram tuas artérias, tudo agora é memória e saudade. Amanhã também direi: lembro-me de ti, pássaro noturno, Ave plural na imensidão do etéreo.
ELTÂNIA ANDRÉ Nasceu em Cataguases (MG) Mora em S. Paulo Autora de: Meu nome agora é Jaque
09
Emanuel Medeiros
Desterro Desterro cumpriu-me e cumpriu-se.
O rio começava atrás de casa (como eu), e foi embora – afluentes. Vento sul, Campo do Manejo, Rita Maria, Rio da Avenida, Miramar, bala queimada, Catecipes, Praia do Muller, procissão do Senhor Morto, Cine Rox, gibis, Grupo Escolar Dias Velho, Chico Barriga D’Água, paixão camuflada pela menina da Rua de Cima – ela nunca soube.) Só enuncio: acumulo – sobrecarregado.
O rio foi embora. Casa demolida, mãe na soleira da porta, pitanga no quintal, regata na Baía Sul, matracas, turíbulos, trapiche da Praia de Fora, gaita-de-boca, groselha, tainha frita, fogão de lenha, beliches, pé de amora.
Perdeu-se o rio: não sei do seu delta. Perdi-me: tiro certeiro na gaivota. A rua pequena, era a maior do mundo – coração.
Desterro inunda-me: outrora/agora.
10
Emanuel Medeiros
Homem diante do mar
Homem diante do mar (instância interrogativa). Precária caravela. E finita: a vida Trapiche: o homem só contempla (desembarcado). No estatuto da memória: ele se interroga, nunca mais a ação. No porto: a rapariga rosada estendeu um lenço. Limo: foram-se a juventude, o trapiche, a rapariga, o lenço. (Mátria: sou apenas um homem diante do mar.) Desterro: instante convertido em sempre. O homem desembarcado só pode viver de memória: diante do mar.
11
Emanuel Medeiros
Hiroshima Na manhã dominical, a bomba de Hiroshima, a bomba, tão clara, exata, cirúrgica. Bomba geométrica, certeira. A bomba vem do céu, mas não é ave. A bomba vem de cima, mas não é Deus. Desce fumegante, a bomba não negocia, a bomba não conversa, célere, impositiva, acerta o alvo, cai, a bomba queima, a bomba dissolve, a bomba dilacera. Alguém nasce no ano em que ela cai, e pensa naquele 1945: a surpresa daqueles milhares de olhos, à espera do lúdico no matinal domingo, parques, igrejas, passeios, visitas familiares, percebendo – sem tempo para a reflexão – a chegada da não-ave, emissária de Tanatos, que cai, cai, na paisagem limpa (cogumelos atômicos). EMANUEL MEDEIROS Nasceu em Florianópolis e mora em Brasília. Autor entre de entre outros: A expiação de Jeruza, Os hippies envelhecidos, Os olhos azuis – Ao sul do efêmero e Cerrado Desterro
12
Jorge Ariel Madrazo
Em seu planeta de liberdade Ela se sente - às vezes - só. Ungida por cálices antigos, por hospitais e terrores marinhos.
Ela oculta o fervor das coxas, os seios oferendados ao decreto do instinto.
Ela, a que preside a velocidade habita as planícies do ar monta potros sem freio nem cabresto.
Ela desdenha todo o limite propício à mutilação.
Deita-se com os reis do planeta.
É desvalida, inédita, implacável.
13
Jorge Ariel Madrazo
Prelúdios Há que acender a dura pedra elevar o grito no bosque onde te cerceiam a língua
Ser um pássaro morto não obstante um pássaro
Porque este rio não corre duas vezes e tampouco tu és o mesmo da primeira vez
Acaso o boi suspeita? cego de um ou outro olho o jugo sobre as pesadas costas que é sua marcha um inferno circular moenda, carrossel, rodar de engrenagens até que flua dourado da pisada a aguardente que amorteça tamanha, antiga e desolada sede?
14
Jorge Ariel Madrazo
Na radiografia teus pulmões: poliedros florescências lactantes sombras grânulos de cereal de arroz de café na insaciada moagem. Irrompe ar no escuro descalçam teus alvéolos para ingressar na mesquita: a mesquinha prisão corporal.
E, translúcido nas trevas, o eclipsado ônix - por assim dizer - o coração, teu outro eu que na sombra acontece dissolvendo bordas de fingida identidade
apagando-te na absurda contraluz insinuando que teu humano porvir
cabe numa radiografia insone
15
Jorge Ariel Madrazo
Frágil equilíbrio
o balançar do branco grão de arroz na beira do prato, o arroz que oscilou até cair sobre ele na mais asseada toalha. Se fosses Marcel
Proust, tal fato bastaria talvez para evocar a infância, e fazer do prato: porcelana de Limoges,
do arroz, madalenas no chá, revestindo assim de eternidade a um dia, como todos, prescindível.
Tradução de Ronaldo Cagiano JORGE ARIEL MADRAZO Nasceu em Buenos Aires-ARG. Autor entre de entre outros: Ordem do dia (1966), A terrinha (1974), Espelhos e desterros (1983), Corpo textual (1987), Cantiga do outro (1992), Janela com Ornella (1992) e A mulher equivocada (2006). Integra a comissão editorial das revistas El perseguidor (Argentina) e Tríplice (Chile).
16
Donizete Galvão
Um outro homem inacabado Nesta cidade impermanente um homem jamais está inteiro. Parte perdeu-se em alguma rodovia, outra sonha com montanhas, água de bica, cachoeiras, maresia. Esta cidade de São Paulo nunca está arrematada, corpo sempre em retalhos, mutantes arquiteturas que não penetram nas veias. Nesta cidade de São Paulo um homem constroi sua casa como uma flor amarela que teima em brotar em zona de perigo. Efêmera, como outras, destinada à demolição. Casca fina e provisória, fraca diante das ventanias, das máquinas e da solidão. Nesta cidade dividida cada homem é estilhaço, entulho jogado na caçamba porque há outro na fila para ocupar o seu espaço. Do livro O homem inacabado, São Paulo, Ed. Portal, 2010
DONIZETE GALVÃO Nasceu em Borda da Mata (MG). Autor entre de entre outros: Azul Navalha, As faces do rio, Do silêncio da pedra, A carne e o tempo, Ruminações, Mundo mudo, O homem inacabado,
17
José Antonio Pereira
O vendedor de pirulitos emprego numa das fiações da
Tiziu é caco de telha Menino encarvoado
cidade. Nem tempo de usufruir as
Negrinho na gíria.
“O capim sobre o coleiro”
primeiras férias, a coitada teve.
Marcelo Benini
Sentia
Além da falta de dinheiro, tinha
que
troças,
aturar
insultos
tudo e
aquilo:
achincalhes
naquelas
horas
de
engasgos, após uma afronta pelas ruas
da
angustia
cidade, e
uma
uma
enorme
desesperada
racistas. A cor da pele fazia a
saudade do colo quente, o abraço
diferença
o
caloroso, o beijo no rosto ainda
Era – E aí
úmido da lágrima, o sorriso largo
Neguinho? Vem cá Tição! Racha
da mãe após algum susto ou tombo
fora Tiziu! Passa aqui Criolim!
desde quando nem falar sabia.
Vó Bastiana sempre dizendo –
Saudade de mãe dói demais da
Paciência meu fio! Desde que o
conta.
mundo é mundo as coisas são
Vó Bastiana agarrou para si as
assim.
responsabilidades da criação do
A vida era difícil. Vieram da roça,
neto.
lá dos lados de Sinimbu. A febre
conseguir a pensão por morte da
amarela levara o pai, não se
filha, a fiação não assinara a
lembra como era a cara dele. Nem
carteira de trabalho, a velha pôs-se
o sobrenome do pai carregava. Era
a
Silva como a mãe.
dividindo o tempo entre a escola e
sim.
Ninguém
chamava pelo nome.
A vó contava
Enquanto
lavar
roupa
lutava
para
para
fora.
Ele
que o pai morrera quando ele mal
carregar
nascera.
bebê,
cabeça, passou a ser chamado de
dormindo numa cesta de taquara
neguinho da trouxa, que acabou
lá na fazenda do doutor Cardoso. A
simplificado para Nêgo-troxa.
mãe?
situação se apertando cada vez
Ainda
Ela
tuberculose,
era
tombou mal
um
vítima
da
arrumara
trouxas
de
roupa
na
A 18
José Antonio Pereira mais, até que ela teve a ideia de
Ela mais o neto, semana sim
fazer pirulitos para fora. Bem, não
semana não, iam até o Armazém
teve a ideia da própria cachola.
Santos,
Uma de suas freguesas de lavagem
comprinhas para o sustento dos
de
um
dois. Achando que os pirulitos
marceneiro é que sugeriu – Este
seria um bom negócio, Vó custou a
menino
fazer
convencer o dono do armazém a
nada... Isto não vai dá certo. Daqui
vender um quarto de saca de
a pouco pega gosto pela vadiagem.
açúcar cristal fiado, com saco e
Aí não tem mais jeito. É só
tudo. Já era freguesa de sacos do
desgosto. Ponha ele pra vender as
armazém.
coisas na rua. Arruma um cesta de
muita
verdura ou de pães. Se bem que já
viravam uma camisa, uma blusa
tá cheio de verdureiro e padeiro
para ela, alguns panos de prato,
andando por aí.
que já vendia, com mais prejuízo
roupas,
casada
crescendo
com sem
Já sei! Ele vai
onde
Os
água
fiava
sacos
umas
depois
sanitária
e
de anil
vender pirulitos.
do que lucro, para suas freguesas
Imediatamente ensinou a receita
de lavagem de roupas, com uns
dos
nem
bordados virava uma toalha de
menos mandou o marido fazer
mesa de uma boniteza que só
alguns tabuleiros para os pirulitos.
vendo.
Fato consumado ainda convenceu
O açúcar ia para o tacho onde com
a coitada da velha a trocar meia
alguns canecões d’água virava uma
dúzia de tábuas furadas por duas
calda espessa mexida sem parar
dúzias de panos de pratos e três
por uma grande colher de pau que
meses
roupa.
mais parecia um remo de cabo
Negócio de fazer inveja a qualquer
curto. Com uma caneca que tinha
mascate turco, até o marido, outro
bem no meio da boca um bico,
mineiro pão duro, bronqueou com
feito a marteladas. Aquela calda
tamanha exploração. Negócio é
grossa era despejada em cônicos
negócio, ranhetou a mulher.
canudos
pirulitos.
de
Sem
lavagem
mais
de
19
José Antonio Pereira de papel manteiga enrolados à
Sua já reduzida freguesia tornara-
mão na noite anterior, encaixados
se presa fácil para o picolezeiro. O
no tabuleiro. Com o tempo tornou-
jeito foi tentar percorrer outros
se hábil em enrolar canudos de
bairros.
papel. Nas noites quentes, quando
pelas cercanias do hospital foi
a molecada brincava na rua de
enxotado pelos ambulantes que
guerra de canudos, ele era o tal.
mercadejavam
Cada um com sua zarabatana feita
mesmo,
com
visitantes dos doentes era renhida.
talos
de
mamoeiros
dos
quintais. Esquecia tudo. Era mais
Parou
um
seguida
menino
feliz
em
meio
à
Na primeira incursão
ali na
na a
porta
disputa
esquina.
apareceu
pelos
Logo
um
do
em
galalau
algazarra das brincadeiras de rua.
ameaçador – Cê não entendeu não
O tabuleiro era uma tábua de dois
criolim?
palmos e meio por um palmo,
não.
trespassadas
da
uma senhora com dois meninos e
grossura de um dedo. Presas por
na cara do ameaçador ele vende
duas fieiras, daquelas de rodar
dois pirulitos. Mal a freguesa deu
pião, que passavam por trás do
as costas, teve todos os pirulitos
pescoço.
afanados,
por
Quanta
furos
vez,
mesmo
Cê não pode ficar aqui
No meio da ameaça surge
foi
posto
a
correr
sabendo o resultado, enfiava o
debaixo de um monte de cascudos.
dedo em algum daqueles buracos.
Filadaputa some daqui. Se te pegar
Desesperava-se, ao vê-lo agarrado.
por aqui de novo te arrebento.
Torcia pra cá, distorcia pra lá e um
Chegou em casa com a cara e a
sorriso de vitória iluminava o
tábua esfoladas. Enquanto a avó
rosto entre gotas de suor frio.
limpava a poeira dos arranhões,
Depois de algum tempo vender
deu-lhe
pirulito
tornara
aventurar-se tão longe de casa e
difícil. A meninada parecia já
ainda se meter em confusão. Não
enjoada da novidade e com o calor
eram os arranhões, limpos com
e o grito – Olha o picolé Sibéria!
pano molhado que o incomodava,
no
bairro
se
uma
bronca
por
José Antonio Pereira o que doía mesmo era a falta de
pirulitos. Como fazia todas as
carinho.
a
vezes que saía, tomou a benção a
engolir o nó na garganta mais uma
vó. No meio do Deus te abençoe já
vez. Em silêncio acalentava-se com
estava
o sorriso da mãe lá no fundo da
responder a inevitável pergunta
memória.
que a vó fazia desde os safanões lá
A
Ter
rotina
de
que
se
forçar
entregar
roupas
na
rua.
Não
queria
na porta do hospital. Já ia longe
continuou, a venda de pirulitos
quando ouviu – Aonde você vai?
pelo bairro só piorava. Ás vezes
Decidira enquanto almoçava que
conseguia vender um só. Sucesso
iria ao campo do flamenguim,
mesmo era só entre as formigas lá
tinha jogo naquela tarde contra o
na cozinha da vó. Domingo voltou
time da fábrica de tecidos. Era
da missa, vó pensativa em frente
garantia de numerosa assistência.
ao fogão, nem se atreveu a falar
Ainda mais que corria na boca do
com ela. Trocou de roupa e foi
povo
limpar o par de congas.
fábrica
Sentado
que
os
eram
empregados
da
ameaçados
de
no degrau da porta da cozinha
demissão se não comparecessem
estranhava a vó parada em frente
aos jogos do time da mesma.
ao velho fogão de lenha. Mal
No terreno baldio em que se descia
pensou
rumo ao campo de futebol, já
em
perguntar
o
que
sucedia, escutou sua voz. Vá lá na
aglomeravam alguns
vizinha
um
dos dois times, algumas mulheres
pouco de sal. Vá e volte num pé só.
num assanhamento só, uns diziam
Em silêncio cada um com seus
que as tais eram mulheres da vida,
pensamentos
o
não tinha a menor ideia do que
almoço. Comeram um angu com
queriam dizer com aquilo. Mais
taioba
A
para diante uns ambulantes já
expressão de cansaço e resignação
vendiam laranjas, pipocas, picolés
da vó o incomodava.
e meio amoitada entre os matos
almoço
pedir
e
emprestado
feijão
arruma
ruminaram sem
a
alho.
Findo o tábua
de
torcedores
brilhavam aqui e acolá garrafas de
José Antonio Pereira cachaças que eram vendidas em
por entre a assistência.
doses servidas em canequinhas
pirulito! Mal começara o segundo
feitas
de
tempo do jogo não restava um
Nem bem chegara já
pirulito na tábua. Nunca vendera
de
tomates.
latas
vendera
de
massa
dois
Olha o
pirulitos.
tanto. A alegria só não foi maior ao
Entusiasmou-se, começou a zanzar
lembrar-se da mão pesada que
entre
que
levara um bom pedaço do lucro.
esperavam a hora de entrar. Olha
Já que estava ali, resolveu ver um
o pirulito!
pouco
os
vários
grupos
Um olhar de zanga do
do
futebol.
Mas
a
pipoqueiro quando um moleque
ansiedade em mostrar para a avó o
trocou
pirulito.
lucro do dia, não o deixou ver
Aberto o portão, todos entravam.
praticamente nada do que ocorria
Tentou passar despercebido, foi
dentro do campo de jogo.
puxado pelo colarinho por uma
por ali até acabar a partida.
mão forte. Cadê a entrada? Negou
saída
com a cabeça, outra mão puxou
estranhavam, os vencedores com
um punhado de pirulitos. Sentiu a
suas provocações e os perdedores
mão afrouxar o colarinho e esticou
com seus palavrões. Na subida do
uma
terreno baldio dois
a
pipoca
carreira
pelo
para
dentro
do
os
Ficou
torcedores
grupos
Na se
se
campo, cheio de medo de outra
desentenderam
sova.
Refeito do susto e com
entre o brilho de facas e canivetes
medo dos homens da entrada,
dois disparos de arma de fogo
decidiu só passar ali por perto na
silenciaram a algazarra.
hora de ir embora. Não percebera
do vendedor de pirulitos encontra-
que a mão que afanou os pirulitos
se com uma das balas, quando
era do mesmo indivíduo que o
tentava se afastar da confusão
segurava pelo colarinho.
passando por cima de um monte
Não se
deu conta, mas pagou um preço bem
mais
alto
pelo
ingresso.
Enquanto a bola corria, ele rodava
definitivamente,
O peito
de lixo. Tombou ali mesmo. JOSÉ ANTONIO PEREIRA Nasceu e mora em Cataguases (MG) Coautor de: A Casa da Rua Alferes e outras crônicas. 22
Emerson Teixeira
Sob o teu teto um coração juvenil Não se via tanta tevê nessa época
e John Weissmiller seria o último e
e a gente não suspeitava o quanto isto
derradeiro Tarzan.
era bom.
Um maluco em São Paulo já antecipava
As relações eram mais
descoladas, porque diretas, havia um
os
sentido de companheirismo que era até
chance ao estrelato àqueles que se
necessário à boa convivência.
propusessem a comer aranhas, ratos e
Ler gibi estava deixando de ser fashion e
baratas vivas.
os filmes de monstros também já não
Para
assustavam tanto assim.
embrulhada devo dizer que faria o
Ninguém
thrash-movies
me
oferecendo
situar
com
Kong
Cataguases. A condição para isso era só
mesmo, ainda era aquele dos anos
uma: teria que passar nos exames de
quarenta com Bruce Cabbot, O Exorcista
admissão e isto eu considerava já “favas
só viria muito depois. E.T. ainda estava
contadas”, com algumas apreensões...
no saco de Spielberg.
Mas não me enganei, nem aos meus
O papo sim, era bom, rolando franco e
pais.
fácil nas ruas, na chuva, na fazenda e
As aulas com Sérgio Leite e Sidnei
exatamente como são hoje, os grupos
Cabral garantiram o resultado.
eram numerosos e heterogêneos: o do
puxadas
futebol, o do som, o do teatro, o da
(porque o Gradim se era exigente em
boemia e o da malandragem pura e
relação
simples.
palavras, pode-se dizer o mesmo no que
Pois é. No que respeitava a mim e a
se tratava ao discurso, à linguagem.)
alguns confrades (vocês podem incluir
uma por dia, duas na quarta e sexta, sete
aí o H. Frade) as fitas de caubóis ainda
por semana, para suprir a falta do
interessavam, mas os extraordinários
sábado e domingo.
épicos com Steve Reeves, Guy Madison e
Escrever Brazil, assim com “zê” podia
Gordon Scott já não tinham tanto espaço
ser possível lá nas aulas de inglês do
Drácula,
King
de à
redação, estrutura
no
nesta
ginásio
conde
ano
melhor
tinha pensado ainda numa entrevista o
nesse
uma
Colégio
Aulas
principalmente gramatical
das
23
Emerson Teixeira
teacher, Joarêz.
Mas nas aulas de
um
achado:
“Meu
quebra-galho
português nunca, never, jamé...
Português”.
Passei eu, passamos nós, passaram eles
outras
também:
elencar e que logo passaram a fazer
O
Zeca,
José
Ricardo
Com
ela
de
terminologias nosso
que
costumava
Junqueira, o Bahiano que nunca foi
parte
bahiano (até hoje tenta nos convencer
nomenclaturas,
que veio lá do vale do Jequitinhonha
narrativo, figuras de linguagens, tempo
com um sucesso, até que relativo) o
cronológico, roteiros e planos, temas.
Toninho Linhares, o Bueno, o Ronaldo
Fez honrosas incursões pela literatura
de Melo e o Emetério.
O restante
pátria e para começar bem, escolheu
dessa turma, eu não sei dizer com
Machado de Assis, “insubstituível em
certeza, mas acho que já estavam lá.
nossas letras”, dele: “O maior pecado
Mas o Gradim mesmo, com toda a
do
assimilamos
universo
escolar:
ambiguidades,
foco
depois do pecado é a publicação do
sua mística, passou em nossa vida de
pecado”.
estudantes como um meteoro: entrou na
Machado é prova do que pode conseguir
sala um dia sobraçando uma biblioteca
em beneficio do indivíduo a força de
inteira, ocupou uma vez o proscênio,
vontade
teve seus cinquenta minutos de fama e
Pobre e desvalido é como autodidata que
saiu por aquela porta e para sempre
galga o mais alto
como
literatura.
uma
experiência
cientifica
malograda, uma profecia não cumprida. Para o seu lugar, nas aulas de
De
Raul
“Ateneu”:
e
ambição
Pompéia a
bem
orientada.
andar de nossa este
advertência
extrato
do
do
ao
pai
português um outro professor, ainda
menino Sérgio ao entregá-lo na porta do
bastante jovem para os padrões da época
terrível internato: “Vais encontrar o
e para nós um ilustre desconhecido:
mundo, prepara-te para a luta”.
Mauro Sergio Fernandes.
Experiência existencial que eu de certo
Apareceu lá com uma apostila que
modo comparava não sem certo exagero
segundo ele teríamos que confeccionar
à minha própria.
juntos. Com certeza já antecipando até
No
literalmente o que se pretende hoje com
Drummond e a engraçada “Quadrilha”;
as
Bandeira e sua Pasárgada idílica; a
mais
modernas
estratégias
pedagógicas: fazer do aluno construtor de sua própria aprendizagem. O nome,
quesito
poesia
o
contato
com
estranheza de Augusto dos Anjos e as 24
Emerson Teixeira
experiências
mais
recentes
do
colocar
o
Djalminha
(Cumbaca)
no
Concretismo.
pequeno elevador de acesso à cantina?
Tudo extraído de um compêndio de
Sei não.
Celso Cunha. Este livro ainda conservo
vez e a voz do pobre vinha lá de baixo, do
como singela lembrança.
fundo, quase ininteligível: “me tirem
Alguns colegas do curso: Mário Lucio
daqui!”.
Oliveira, Chiquinho Piraúba, Manoel
Sobrou pro Zé Luiz que era o mais velho,
Antonio,
do
sobrou pra mim, pro Pachequinho que
“aprisionamento”,
tivemos que nos explicar depois – mas
Márcio, e outros tantos que me esqueço.
só com a presença dos respectivos pais
Mas que podem me voltar à lembrança a
poderíamos voltar lá.
Paulo
Livramento,
Masiero,
do
José
A geringonça desceu de uma
Mas o diretor era boa praça e pôs
qualquer momento da vida, em edição extraordinária.
uma
O fantástico auditório dotado de um
Djalminha, nunca mais eu vi.
palco
para
dramaturgia
No meu
peito
coração
desafinado
um
sobre
o
assunto,
e
o
onde
tomávamos aulas de canto. de
pedra
apertado, temeroso das reprimendas da professora de música que nos ensinava o
EMERSON TEIXEIRA CARDOSO Nasceu e mora em Cataguases (MG) Autor de Símiles Coautor de A casa da Rua Alferes e outras crônicas
hino do colégio, composição de ninguém menos que Ari Barroso. Desafinei no coral e brilhei no futebol. Era goalkeeper, no dizer do técnico Lysis,
o
“chefe”;
posição
alcançada
depois de salvar a pátria do time numa cobrança
de
penalty
violentíssima,
executada com um petardo do Noleto, em treino, substituindo o goleiro até então
titular,
que
não
tinha
comparecido. Não me esqueço também de uma “cana” homérica que tomamos com direito à suspensão.
Foi ideia de quem
25
Ronaldo Cagiano
Eles não moram mais aqui
Voltei para casa com a sensação de uma absoluta solidão “O túnel” Ernesto Sábato
vestindo,
ela
falava
ao
Dudu,
eles
vinham para o lugar que um dia foi deles, e meu sorriso tentava empanar a face
ainda
desfigurada,
a
garganta
...mas aparecem todos
congestionada por hálito e emoção, a
os finais de semana, de bus, van ou
impossibilidade de tantas perguntas,
metrô até chegar ao outro lado da
apenas os filhos ali - um casal, mocinhos
cidade, a imensa ilha cujo mar é o céu
já - e não se lembrariam mais dos
infinito,
da
primeiros choros, as cólicas abreviando
prancheta, com suas enormes asas
as noites, seus corpos buscando afagos
abertas sobre o cerrado.
O sono
enquanto a febre latejava, e agora são
despertado pelo interfone, eu ali,
eles numa sondagem silenciosa e aflita
semiacordado
que
com um olhar-escafandro penetrando o
ainda me prostrava com seu chumbo
insondável do meu coração, bateia no
na manhã ociosa. Eles, pontuais e
aluvião
esperançosos,
meu
mergulhados mais fundo do que nunca
abraço, o beijo, uma festa nos olhos
numa água desconhecida, mas o que são
conspurcando o endereço inóspito.
os filhos senão o barco que lançamos
Antes de entrarem, apesar de terem a
rumo ao mar existencial, lá onde não
chave, bolinavam a campainha num
podemos mais chegar e alcançá-los,
toque prolongado, acho que o pai
onde a fúria da vida impõe suas fadigas e
ainda está dormindo, Bebel, talvez
descaminhos. Sim, fomos filhos um dia,
por temerem invadir a privacidade,
mas em que águas me lancei, que a
era sempre bem cedo, como se não
mesma distância entre mim e seus avós
quisessem
parece multiplicada entre nós, agora
pássaro
da
nascido
madrugada
esperavam
perder
um
o
minuto
do
direito de visita, eu percebia pelo olho mágico a face (e)terna, deve estar se
de
minhas
tristezas,
esses corpos frágeis, tão cedo 26
Ronaldo Cagiano carregando o peso da realidade? Acho
residenciais (pombais que o velho
que jamais soube o que era tudo isso,
Euclides
ainda mais agora, longe do seu tempo
enfileirados como um dominó, as
de febres e choros ensurdecendo a
cigarras de agosto e o pregão de seu
casa, quando esse outono consterna a
canto histriônico, e a urgência de tudo
cidade com a prostração das cores, a
nas coisas, é o que sobra, é o que miro
janela
uma
na estante com a foto da primeira
fronteira que não conheço, os olhos
viagem à praia, ele grudado às minhas
apertados, não querendo ceder lugar
pernas, ela no colo, ali estávamos, no
às
procuram
parapeito do grande belvedere do
procuram e, extenuados, só pescam
Cristo Redentor que dava para a Baía
lembranças no lago turvo de um
de Guanabara, e já não é aquele tempo
tempo que a gente não reconstrói mais
que vejo, é o pranto reprimido que se
pois vai embora como a vida, como
dissipa com o barulho do caminhão de
vão a poeira e a folhagem seca sob o
gás se enviesando sinfônico pelos
telhado escoiceadas pelas chuvas de
setores povoados de siglas e sua
dezembro, esse acúmulo de epidermes
vinheta imutável, a respiração um
mortas, jazigo de guerras conjugais, e
pouco mais forte, ah água que eu
amanhã é domingo, pé de cachimbo,
havia
(e as cidades morrem aos domingos,
chaleira, tudo parece imperfeito, eles
como morre nosso espírito calejado de
me
ausência e silêncios), o apartamento
acomodam-se solenes e calados na
está
é
um
lágrimas,
vazio
fantasmas
para
procuram
como está
Ministérios, caixotes
convite
que
a
esses
detestava
esquecido beijam
habitar),
esquentando quando
chegam,
habitada
por
velha
Esplanada
dos
desconhecessem o lugar, o dia livre, os
inexpugnáveis
albergam
tantos
móveis,
poltrona
na
os
como
passeios,
enquanto
se as
bonecas apodrecem numa gaveta da
segredos, e quando eles entram, são as
cômoda
perguntas de sempre, são os laços
entulhos,
rompidos, são seus olhares inertes
(lembro-me
sobrevoando
cômodos,
brilhando como um cometa, o recebeu
esquadrinhando as retratos sobre a
de minhas mãos – É meu, pai?)
cristaleira, é a alma um pomar de
denuncia que a existência acumula
lacunas e lá embaixo é o asfalto, o
perdas e riscos além das mentiras e
burburinho
ofensas na Vara de família
superquadras
os
de e
carros, seus
as blocos
travestida o
em
autorama do
dia
em
museu
de
enguiçado que
ele,
27
Ronaldo Cagiano – tudo agora parece acabar antes de
nos isolava do mundo e da fugacidade
começar, o abraço deles, demorado e
dos infortúnios que a vida prepararia
insubstituível, ainda penetra minha
sem postergação nem dó, eles ainda
consciência
em
tinham seus heróis enquanto os meus
como
não sobrevieram a 68 e a plena
sempre, como se nunca tivessem saído
efervescência da vida em seus poros, a
de lá e voltassem de férias, mas os
vida, a vida, a vida com suas garras
cadernos, suas caixinhas de pertences,
bisonhas é o que nos cabe, quando
a mochila, as roupas espalhadas, as
tudo já é sem a ilusão e a gente vai
folhas de desenhos coladas na parede,
matando
os deveres por fazer - onde estão?
entressafras de dores inesperadas, de
Braços apascentam a saudade e eu
inventário do pouco que tínhamos.
percebo
realidade,
Agora é mais um fim de semana como
imperturbável, sequestrou seus rostos
outro qualquer, tudo se repete como
de criança. A casa é a mesma, mas a
as folhas exiladas que a cada outono
solidão imperativa os recebe como um
atapetam
estranho.
própria
caminhadas à beira do Lago Paranoá,
terra, já não reconhecem os desenhos
os lanches após as sessões vespertinas
a lápis de cor que ainda adormecem
nos cinemas do shopping, imutável
nas paredes do quarto da empregada.
como o que há de compulsório nas
Onde
que
agendas de trabalho, já não há mais o
ensinou-lhes em nossa ausência as
gibi, nem os brinquedos espalhados
muitas coisas da vida, as sofrências do
na sala ou os desenhos trêmulos
ver?
riscados
brasa,
o
como
quarto
os
que
punhal espera
a
Estrangeiros
andará
Há
um
dona
uma
na
Zenaide,
sombra
pretérita
um
o
a
leão
por
gramado,
batom
no
como
espelho
do
banheiro
pergunta
tem
sonhos). O sol insiste em esconder-se
lágrima
lá, dominado por nuvens negras que
esconsa. Pai, o que é saudade? Ainda
caluniam a paisagem nessa estação
me lembro quando ele a me cravou, à
sem
queima-roupa. E nunca imaginei que
intransponível
um dia seria mais difícil sentir do que
Central, mais suportável que a que
explicar. Naquele tempo os passeios
instaura o deserto íntimo, soberana e
ao Jardim Zoológico se revestiam de
indesviável sentença que parece nunca
tamanha aventura, como se juntos
apartar de nós quando o rio bêbado do
flagrássemos o reino da fantasia que
tempo, veloz e pleno de fúria, irrompe
resposta,
apenas
que uma
não
graça
esboços
as
escurecendo os cômodos. Como a lâmina
(primeiros
dia, nas
atropelada secura
do
de
pela Planalto
Ronaldo Cagiano em
nossas
vidas
como
as
tantas
Ainda me lembro daquelas mãos
enchentes de verão que irrompiam
albergando
como uma tsunami na minha infância
guardando para o último minuto a
em Cataguases. E esse rio imóvel entre
despedida
paredes não conduz a lugar algum,
definitivo que não muito longe dali o
apenas reproduz a cada domingo o
tempo se encarregaria de um dia
ritual
amalgamar.
dos
afastam
colados
antes
de
de
outras
soberania enquanto dissipando parada
rostos
os
vejo
no de
o
afago
pressuroso,
formatada
E
no
os
adeus
chicletes
que
se
recriarem
a
coreografando estruturas no ar, a
despedidas,
última lembrança da estação deixada
pela
janela
altiplano
rumo
ônibus,
até
se
nos degraus da escada, uma rodovia
à
desavergonhada implementando o
se
longo sono.
transformarem num ponto minúsculo
E um ronco do motor, uma trava,
ao longe, um cisco na paisagem do
uma cancela, o asfalto molhado, os
horizonte longínquo.
olhos
Agora
o
apartamento
é
um
inchados,
um
gigante
ruminando a alma e no fundo, no
sarcófago que hiberna outras vidas
fundo
do
cerrado,
(terão vivido a minha exaustão?
enterrar
carregam o minério bruto de outras
dispersão das cinzas em que se
frustrações? dão ouvidos à vizinha
converteram as estrelas de seus
evangélica que tentava salvar os
olhos.
minhas
onde
tentei
dúvidas,
a
homens do mundo e só ofendia a
Ainda me lembro: eles apareciam
gramática?), na vasta planície um
todos os finais de semana, de bus,
vago teor de nuvens, o mofo ampliou
van ou metrô até chegar ao outro
seus
do
lado da cidade, a imensa ilha cujo
condomínio; as janelas - há tempo
mar é o céu infinito, pássaro nascido
fechadas
da prancheta, com suas enormes
mapas
no
-
terraço
denunciam
o
imponderável que há nas coisas. E o olho
mágico
criaturas,
vislumbra
mas
nele
outras
resiste
a
presença invisível de seus rostos, a substância
clara
de
suas
almas.
Brasília já é um deserto onde só resistem as caliandras.
asas abertas sobre o cerrado. Ainda me lembro. Premiado no 23º Concurso de Contos de Araçatuba RONALDO CAGIANO Nasceu em Cataguases (MG) mora em São Paulo Autor entre de entre outros: A palavra Engajada, Dezembro Indigesto.
29
Fernando Cesário
Olhos vesgos de Maquiavel
Fernando
Cesário é a prova indiscutível de que é possível fazer
(excelente) literatura fora dos grandes centros. Com paciência e sem alarde, ele vem construindo uma obra de fôlego: em curva ascendente, lançou Os algozes do sono, em 2000, e Alma de violino (Prêmio Lima Barreto), em 2004, culminando agora com este Olhos vesgos de Maquiavel. Herdeiro dos grandes mestres (e aqui há que se ressaltar o diálogo que estabelece com um Graciliano Ramos de São Bernardo ou um Machado de Assis de Dom Casmurro), sua narrativa é um interessante convite para a autoanálise: o leitor tem na história lida um espelho para suas próprias reflexões. Luiz Ruffato Diferentemente do que o título promete, Maquiavel não é o protagonista deste romance. Tampouco seus olhos vesgos (se é que eram mesmo vesgos). Na verdade, esta é uma história de amor. Uma história terrível, torturada, como todas as histórias de amor. Porém, não é só Bentinho e Capitu que assombram os Olhos vesgos de Maquiavel. Neste romance sobre o amor difícil ecoam diversas outras histórias tortuosas e enciumadas: a de Otelo e Desdêmona, a de Emma Bovary e Rodolphe, a de Charles Swann e Odette, a de Humbert e Lolita. Não passa despercebido a Vicente que Cristine reúne em si muito do temperamento e do charme enlouquecido dessas heroínas fatais. Ele nota isso em cada detalhe: "Nos seus olhos, naqueles olhos, surgiu um estranho brilho, que eu nunca vira: alucinado e insensato". Nelson de Oliveira
30
Fernando Cesário
O abajur Os olhos vagueiam pelo teto,
atropeladas descidas dos tobogãs nos
delineando vultos de mobílias, fasquias
parques de diversão.
da gelosia, toscos pilares nos ângulos
Absorvido, apanho Cristine de memória:
das paredes interiores. As ruas vazias,
debruçado
ventos
Reflexos
contemplar o dia, os espaços vazios, mas
azulosos da lâmpada do poste se fundem
de fato a seguia no pátio, naquele seu
com
enormes
modo gracioso de levemente oscilar a
silêncios, interrompidos, a espaços, por
saia em cada passada, de jogar o vestido
guinchos da coruja no velho sobrado.
ao ritmo dos requebros e das evoluções.
Zurrar de automóveis. Silvo longínquo
Eu a acompanhava, mergulhado na mais
do trem. A enormidade da noite.
mágica e intensa sensação de felicidade,
Cato a janela que se abre para a rua, a
o dia impregnado de cores e de luzes,
cabeceira da cama, os livros alinhados
aquela carinha linda, pupilas inquietas e
nas prateleiras, a quina do guarda-roupa
que refletiam, sem perda, o brilho e o
ocultando o batente da porta. O abajur
colorido
(um ornato meio ridículo, dois aros
firmes e acesos de terneiros soberbos,
metálicos sustentando uma cúpula de
que não perdiam nunca a doçura e a
acrílico transluzente, que tinha sido
leveza. Aqueles ocultos e enigmáticos
presente de Virgínia), em horrendo
traços de beleza. Nos olhos e na maneira
contraste com a arquitetura da casa,
de andar. Minha Cristine! Como fora
avultando
possível que passasse despercebida até
o
espalhando clarão
da
no
luminosidade
folhas. lua.
E
ambiente
leitosa
e
sua
esplendente.
ali?
na
balaustrada,
daquele
fingindo
momento.
Passos
Ao fim, para meu terror e deleite,
Desvendo os reflexos daquele lanço
ela imprevistamente pôs-se ao meu lado,
luminoso incidindo numa espécie de
dois ou três passos à direita. Ficamos
meia-lua que se projeta no forro, na
algum tempo em silêncio, fazendo as
metade da parede e o piso contíguo.
mesmas coisas, repetindo os mesmos
Muitas e muitas vezes, sentado diante da
gestos,
escrivaninha,
ficar
Aquele secreto olhar faiscante e cheio de
pés
vivacidade, que saltava, vígil, sem se
balançando
limito-me o
corpo
sobre
a os
estudando-nos
posteriores da cadeira, indo e vindo,
fixar
indo e vindo, num equilíbrio instável
escorada pelo braço, a saia e a blusa do
que, nalgumas ocasiões, remete-me às
em
parte
mutuamente.
alguma,
a
cabeça 31
Fernando Cesário colégio, lábios carnudos e meio pálidos,
poderia me valer para dar seguimento à
não distintivamente femininos, a uma
conversa.
primeira
vista,
adquiriam
empreitada,
indizível
beleza
rosto
praticamente atalhando quase que para
mas
que
naquele
de
Ela é
não o
me
que
facilitou quero
a
dizer,
sobrenatural magnetismo.
o final da conversa.
Logo de saída, indaguei-lhe, estonteado
Buscando tomar pé, e usando do tom
e estúpido, sobre sua vida, como iam
mais amável que pude lançar mão,
seus
inventar
procurei lhe mostrar minha efusiva
nenhum assunto, nada me cruzava a
discordância e surpresa, recusando-me
mente e, naquela ausência de ação que
a aceitar que uma pessoa jovem como
sua presença me causava, arremessei-
ela, e principalmente de maneiras tão
lhe este chamariz, a fim de que ela o
delicadas, pudesse ter antecedentes tão
agarrasse e me salvasse da imobilidade e
sérios que merecessem alguma forma de
do aprisionamento.
reparo, ou mesmo que devessem ser
Após curto período de reflexão, em que
levados em conta. Sim, eu me alonguei
se mostrava até meio pesarosa e absorta,
neste tema, inserindo um ou outro
pálpebras voltadas para o chão, me
condimento “filosófico” com que minha
respondeu
frase
mente ia me socorrendo, dos quais, é
quase
claro, já nem me recordo mais. Não devo
sumida, que às vezes pensava que muito
ter dito muita bobagem, pois ela parecia
do que lhe sucedia, nos tempos atuais, se
me ouvir atentamente, serenamente.
devia a erros cometidos no passado, ou à
Lembro-me que ela ficou me reparando
maneira
dias,
um tanto obliquamente, o corpo meio
Enquanto
arriado, ombros caídos (atitude que
palavras,
assumiria centenas de outras vezes no
dias.
Não
com
surpreendente
qualquer
consegui
e
como coisa
pronunciava desencostou-se
uma
com
a
consumiu assim. aquelas
voz
seus
devagarinho
da
futuro), no mais completo silêncio.
balaustrada, recuando um meio passo, e
De resto, afirmei-lhe que o passado
passou a olhar na direção da piscina e do
nunca deveria ter tanto peso, tanta
campo de futebol.
significação na vida da gente; nem
Aquela foi uma fala muito ressentida e
mesmo o futuro, que é gerador de
amolada, o que, de certo modo, me
angústias. O presente, sim, é que tinha
encurralou para um ponto inesperado e
força; conceitos dessa natureza, que
ainda mais confuso, posso dizer assim, encurtando bastante o espaço de que eu
32
Fernando Cesário
acabaram lhe despertando um certo
agora, dentro de mim, abriu-se por
sorriso meigo nos lábios, enquanto seus
inteiro a imagem sorridente e calma de
olhos,
seu
fenomenalmente
brilhosos,
rosto.
Há
quanto
tempo!?
É
passaram a saltar pelos meus, buscando
extraordinário!).
entendimentos
E
Como descrever a sensação daquele
continuaram a me examinar daquele
momento? Uma imperiosa fervura... um
jeito torturante e perturbador por longo
frente delírio... ou ainda algo bem mais
tempo, até ir se aprumando aos poucos,
intenso, mas que me faltam palavras
voltando-se de novo para o pátio quase
para descrever. Um mistério! Ora, todos
vazio, onde um pintor lançava mãos de
já experimentamos, na vida, situações
tintas sobre as ripas dos bancos, eivados
semelhantes,
de manchas de musgos e cogumelos, à
mesma
sombra dos oitis.
humanidade inteira e não necessito de
Pode-se encontrar a beleza de uma
ocupar-me
pessoa nos seus cabelos, nos traços do
pormenorizadas acerca deste fenômeno;
rosto,
tantas
conto com a vivência de cada um para
particularidades. Mas ela me fascinava
me fazer compreender. É o bastante. São
especialmente por algo nos olhos. Sim,
recordações deslumbrantes e sedutoras,
por algo nos olhos, que se poderiam
claro,
comparar aos de lince, e não sei se estou
radiantemente feliz e suave, mas é certo
sendo
que, por agora, me emperra a chegada
ou
e
em
lacrimoso
descobertas.
outras
(isto
me
causaria
todos,
natureza
que
de
faço
parte
que
é
com
me
feita
da a
descrições
fazem
sentir-me
arrepios). Mas havia qualquer coisa de
do sono.
extraordinário
A certa altura, sem mais nem menos, me
no
modo
como
me
espreitava.
indagou acerca do significado da oração
Chegaria o dia em que eu compreenderia
“Vamos à História dos Subúrbios” (a
algo muito importante: existem formas
frase é de Machado de Assis, e encerra
de beleza que não são percebidas com
Dom Casmurro) aparecer nos livros
facilidade, que não se revelam nos
sempre
prelúdios e que só são descobertas aos
pergunta, ou melhor, estranhei o fato de
poucos, após frequentes e cotidianas
ela querer saber sobre um assunto
observações, o que as torna menos reais
daquele, o que não é comum entre
grifada.
Eu
estranhei
a
e óbvias e, talvez por isso mesmo, muito mais transcendentes e fascinantes (aqui,
33
Fernando Cesário
pessoas da sua idade, mas admiti que
no chão, e eu apalpando um estranho e
não sabia, que nunca me perguntara
ameno prazer com aquela proximidade
acerca disso. Ela reforçou que a oração
tão grande.
se repetia em todas as edições que
Às vezes, fazia gestos que encenavam a
consultara na biblioteca (tempos depois,
inocência. Nestas horas, acendia-se em
relendo o livro, encontrei a expressão
mim um possante alarme interno, que
também nas primeiras páginas, o que
gritava pela loucura da minha criação
me havia passado despercebido antes;
mental. E aí germinava um peso na
seria o título de alguma obra que o
consciência, uma sensação de culpa...
protagonista, Bentinho, tinha intenção
Noutras
de escrever).
exatamente
Bom, o importante era que, por uma
desenvoltura inimaginável, quase um
razão qualquer, talvez por saber da
despudor e ali eu enxergava um púbis,
minha predileção por aquele autor, e
uma profundidade, um útero (estou
certamente para me adoçar, penso eu,
dizendo minhas impressões ao longo de
fez
em
todo o tempo, e não somente daquela
discussão este assunto. Acima de tudo,
hora). Já trazia consigo a pimenta de
tinha
uma mulher e este conceito tratei, ao
uso
do
expediente
talento
em
de
suas
pôr
abordagens,
vezes, o
entretanto,
contrário
disso:
era uma
preciso reconhecer.
longo de dias e meses, de acentuar e de
Trago até hoje comigo este episódio com
medir quase como se separasse as
tal nitidez, que é de se indagar que
sílabas, ou até mesmo as letras, tal a sua
grandes significados possa ter. Tudo
solidez. Assim mesmo: m-u-l-h-e-r! La
transcorreu
femme.
exato
desse
modo.
Um
acontecimento tão banal não deveria
Depois, no entanto, se abeirava de volta
ocupar
a menina...
tamanho
espaço
em
nossa
mente. Mas ocupa e o certo é que é
É possível isso acontecer, sim, afianço
muito difícil encontrar explicações para
sem medo de errar; está aqui um ser
ocorrências deste tipo.
humano depondo e fazendo uso de toda
Não
aconteceu
naquele
nada
episódio;
só
de a
relevante cena
dela
debruçada sobre o parapeito, ao meu
a
sua
sinceridade
e
franqueza.
É
possível! Não vejo sinais de insanidade nesta minha reação. Aos incrédulos,
lado, as pernas cruzadas, oscilando um pezinho no ar, o bico do sapato apoiado
34
Fernando Cesário
faço lembrar que também deles podem
mando sereno e inexorável. Quer dizer,
emergir comportamentos que outros
meu bom senso até me levava a ver os
tomariam
riscos que aquele estado de coisas
como
um
verdadeiro
disparate.
poderia representar, eu enxergava os
Ao certo, tal embate começou a se
escândalos,
instalar em mim exatamente naquele
desregramentos, pecados de primeira
dia, e nunca me abandonou por inteiro;
plaina, eu enxergava. Mas... enquanto eu
o tema aconteceu de me enchumaçar a
dizia não vou, já estava a passos largos
cabeça em outras e outras ocasiões e,
na sua direção; enquanto repetia comigo
pelos meus cálculos, foi crescendo com o
mesmo não farei, já estava arando o
tempo, à medida em que passei a
terreno. Quanto de nossos julgamentos
perceber “respostas” da parte dela.
recebem ascendência das tentações e das
O que sei de verdade, que se constitui,
volúpias, quanto da serenidade e da
aliás, no mais marcante de tudo, e que
prudência?
as
manchas,
preciso fazer registro desde logo para que não pairem dúvidas sobre meu caráter, é que procurei, sim, reprimir estes sentimentos iniciais. Dou minha palavra. Entretanto, sabe-se também que isso não é tão simples assim, não é caminho desimpedido e de livre curso, pelo menos em se tratando de pessoas
FERNANDO CESÁRIO Nasceu no Rio de Janeiro – Mora em Cataguases Autor entre de entre outros: Algozes do sono, Alma de violino.
com minha têmpera, com meus traços psicofisiológicos, vamos dizer assim. Muitas vezes, sem que saibamos o porquê, atraímos para nós exatamente aquilo
que
nosso
juízo
procura
afugentar, do mesmo modo que um sapo pula,
desarrazoado
e
perdido,
na
direção da mortal presa da serpente. É lei da natureza, é regra, que nosso inconsciente trata de colocar em cena sem que tenhamos qualquer poder de
35
Antonio Miranda
A poesia brasileira, em que direção?
Agora é a vez de Antonio Vicente
Nem Antonio Vicente nem Marcos Siscar
Pietroforte com seu “O Discurso da poesia
pretenderam pautar a análise em termos
concreta – Uma abordagem semiótica”.
conclusivos. O livro de Siscar não é um
Recentemente foi a vez de Marcos Siscar
tratado mas um conjunto de ensaios bem
com “Poesia e Crise – ensaios sobre a poesia
encadeados. Pietroforte pretende estudar a
brasileira”. Há certas confluências entre as
herança do Concretismo mas os exemplos e
obras na medida em que eles abordam o
análises com que esgrima são muito mais
cenário atual da poesia no Brasil e dedicam
amplos,
espaço considerável para o legado da poesia
diferentes,
verbivocovisual e apontam para as questões
vanguardas,
da confluência tecnológica (imagem, som e
desbravadores.
texto
É
numa
plasticidade
virtual
difícil
entrosam do
a
poetas
de
modernismo
dos
mais
análise
cânones às
novas
tradicionais
do
aos
contemporâneo,
amalgamadora).
sobretudo no momento em que ismos e
Ainda estamos lendo o texto de Antonio
escolas estão em retirada, mas continuam
Vicente Pietoforte, de forma adiantada mas
nas raízes. Quando se prega que acabou o
não
uma
conflito de gerações e se reconhece que há
sobretudo
os passadistas e os blogueiros: há os que
conclusiva,
complexidade
na
e
ele
revela
abordagem,
pelo método usado que é mais analítico do
aproximam
que crítico, que focaliza muito a fôrma
espetáculo e os que advogam pela torre de
embora ajude a interpretar a forma da
marfim. Os que apelam para a tecnologia
nossa poesia. Usa instrumentos de precisão
nas instalações e os que usam o corpo nas
que
interpretações. É isso mesmo. Creio até que
requerem
alguma
iniciação
acompanhar o discurso do hermeneuta.
para
a
poesia
da
música
e
do
há mais tolerância dos jovens da geração 36
Antonio Miranda “Y” digital, dos virtuais de videopoemas e
tendências muito doutrinárias (que era o
intervenções urbanas com relação aos
padrão do século passado) para serem mais
poetas vivos de plataformas anteriores — os
inclusivas
remanescentes
os
encontros de poetas precisam também ser
que
mais abrangentes, menos regionalistas e
seguidores
da
do
continuam
Geração
Modernismo,
avançando
45, os
agora
e
dialogais.
Os
festivais
e
na
sectários.
do
óbvio... Mas também é justo e saudável
tropicalismo e da poesia marginal, e até
encontrar grupos entrincheirados em suas
com o cordel e o soneto, do que dos mais
crenças
antigos em relação ao jovens.
Pertencimento a grupos e relações pessoais
Poesia e tecnologia, poesia e periferia,
sempre entram em jogo, fazem parte da
paideuma e celeuma. Hip hop, rap e
logística, mas há mais espaço além do
rapadura.
quadrado em que se vive. E melhor quando
Pode não haver ainda distanciamento para
há janelas.
estudar e entender as novas tendências,
A academia vem ampliando seus horizontes
mas só penetrando em suas camadas
críticos. É óbvio que se concentra mais em
produtivas e reprodutivas é
revisitar
animaverbivocovisualidade,
os
que
será
Louvando
estéticas..
os
as
exceções,
Loggias
autores
é
literárias...
clássicos
e
permitido acompanha-las e até entendê-
permanentes,
las... Favela e condomínio de luxo.
A
detalhes, revisitando obras nas estantes.
escolarização,
a
Nossa
a
inclusão
digital
e
deitar
universidade
olhares está
sobre
saindo
do
elevação, ainda que “gradual” de nosso
ideológico para o estético, do metodológico
nível
único para focos mais interdisciplinares e
de
cultura
desterritorializando
e
cidadania, esta
vêm
questão,
transversais.
Saindo
dos
dogmas
para
deslocando-a dos eixos tradicionais de
novos territórios de observação. Talvez
análise e de hegemonia (editoras, livrarias,
numa
academia,
de
colocar-se antes na posição do outro para o
comunicação). A síntese se dava pela
diálogo do que de enquadrar tudo na
migração, pelo repicar do litoral para
camisa de força estruturalista a priori.
o hinterland, do literal para o literário em
Naquela resposta do Picasso sobre seu
escalas de ressonância e, quando possível,
modo de trabalhar: “eu não busco, eu
de diálogo e reciprocidade. Influências
encontro”. Bússola é importante, se ela não
regionalistas sobre o ponto irradiador,
ficar magnetizada numa única direção...
distribuidoras,
meios
perspectiva
mais
brechtiana
de
agora da periferia para o centro. Falta que alguém trace e mostre para valer este panorama. Algumas revistas mais inclusivas
estão
tentando,
ao
abrirem
espaço para novas vozes em confronto com as consagradas. Algumas antologias deixam de
ser
gremialistas
e
a
serviço
de
ANTONIO MIRANDA Nasceu no Maranhão mora em Brasília). Autor obra extensa em poesia, prosa e teatro Diretor da Biblioteca Nacional de Brasília
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Rubens Shirassu Júnior
Compromisso com o humano na essência Nascido em Presidente Prudente, São Paulo, Rubens Shirassu Júnior é jornalista, escritor, revisor, diagramador e ilustrador, tendo “herdado” o pendor para esses ofícios de seu pai, Rubens Shirassu, autor de radionovelas e produtor de “Cortina de Veludo”, programa radiofônico que mesclava crônicas e canções. É autor de “Oriente-se - Manual de Procedimentos no Japão”, escrito após dois anos de residência naquele país, uma das obras precursoras, no Brasil, na utilização do formato e-book para vendas on-line. Seu conto “O descobrimento de Augusto” foi selecionado para integrar a antologia “Conto Paulista”, publicada pelo SENAC em parceria com a Editora Escrita. Tendo trabalhado em vários veículos de comunicação, a riqueza oriunda de sua formação eclética e suas diversificadas experiências profissionais estão todo o tempo presentes em seu trabalho, de maneira expressa ou latente, revelando a sua principal característica, que, a meu ver, reside na ênfase dada ao humanismo. Leitor assíduo de filosofia e metafísica, escreveu artigos sobre o pensamento de Nietzsche, entre outros. Apaixonado pelo estudo dos mitos, fez comentários sobre as obras de Joseph Campbell acerca dos arquétipos e outros aspectos da mitologia, além de reflexões sobre o trabalho de Carl G. Jung. A necessidade de compreender o ser humano e suas circunstâncias leva Shirassu a escrever e a refletir sobre temas que, embora aparentemente díspares, são intrinsecamente relacionados, quando vistos com profundidade. Este livro reúne artigos, comentários, resenhas e ensaios publicados em jornais e divulgados em sites eletrônicos nas três últimas décadas (1981-2010), sobre temas como filosofia, cultura, sociologia, educação, literatura, teatro, cinema, só
para citar alguns exemplos. Através da leitura desses textos, em sua maioria curtos, pode-se depreender a visão de mundo do autor, comprometida, antes de mais nada, com tudo que é humano, no sentido essencial do termo. No primeiro texto apresentado, “A criança e o brinquedo”, Shirassu Júnior transmite ao leitor a sua preocupação com o fabrico atual dos brinquedos, que gradativamente vem excluindo, segundo ele, o uso da madeira, “matéria ideal pela firmeza e a temperatura, pelo calor natural de seu contato”. Em outro texto, “Camelôs do ego”, critica o fenômeno atual da profusão dos livros de autoajuda no Brasil, que, no seu entendimento, “proliferam como cogumelos depois da chuva”. No último comentário, intitulado “A natureza do mundo”, o autor reflete sobre os valores da cultura brasileira, utilizando o olhar da cultura oriental, na qual transita com desenvoltura, por suas origens e seu conhecimento do Japão. Desnecessário dizer que não seria possível, em um prefácio, mencionar o conteúdo de cada texto. O que me compete é simplesmente convidar o leitor para conhecê-los. Ao final da leitura, percebe-se a unidade desses breves ensaios, escritos com sinceridade e delicadeza. Vale a pena experimentar. ROSÂNGELA VIEIRA ROCHA Escritora, jornalista e professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UNB)
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