Eu, um mamífero

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Eu, um mamífero

1. um escorpião alguns besouros um elefante e uma aranhola uma tartaruga dois sapos dois tigres um tatuí e uma patativa nesta ordem mas não apenas esta .. e um pinguim deixaram um recado

2. o recado vou dizer mas antes quero fazer alguns reconhecimentos: reconheço minha posição de mediação disso que veio a ser um ‘concerto de múltiplas vozes’ reconheço a disposição do meu corpo não é pelos olhos que se escuta nem pelos ouvidos talvez pelos pelos, isso que possuímos o mais próximo das ondas ser onda é a única forma de s u p o r t a r o aprendizado do tempo um do qual não possuímos mais memória

3.

os objetos do mundo diz o poeta walt whitman fluem perpetuamente. “todos estão escritos para mim e eu preciso entender o que dizem” as coisas carregam palavras mas se não são vistas são mudas como toda matéria parece ser

4.

“a desatenção é a primeira etapa da violência” disse o joão moreira sales citando simone weil em texto publicado na revista piauí em dezembro de 2018 ano da destruição do museu nacional do brasil. “nós que vemos o outro nas garras da aflição, nós somos obrigados, primeiro e acima de tudo, a prestar atenção” disse a simone weil

5.

o amigo do joão moreira sales no dia seguinte ao incêndio do museu enviou a foto de um conjunto de besouros e disse que estava pessoalmente arrasado besouros e joaninhas pertencem à ordem coleóptera que significa estojo de asa, porque estes besouros guardam as asas do voo para o interior de rígidas asas externas como quem guarda papel-arroz

by ALCINO LEITE NETO_2018
Photo

6. a palavra que os besouros coleópteros carregam é a fragilidade o joão moreira sales leu a palavra dos besouros mudos os besouros não são mudos eles fizeram o joão escrever um texto de seis grandes páginas na revista piauí no ano em que o museu nacional do brasil foi destruído “quanto a mim diria mesmo que o objeto da responsabilidade é o frágil, o perecível que nos solicita, porque o frágil está, de algum modo, confiado à nossa guarda, entregue ao nosso cuidado” tudo nasce do ato de prestar atenção eis o recado dos besouros.

7. não escutamos as palavras das coisas como walt whitmam nem as palavras dos bichos como joão moreira sales coisificamos bichos e também pessoas assim:

Agora estão mudos

8.

Coisificamos o milho a seringueira, a cana de açúcar e a bananeira coisificamos o rio e o mar a praia de iracema a sabiaguaba as tartarugas e os tatuís

9.

Quanto ao elefante que Viajou milhares de quilômetros Da Índia à Áustria Em meados do século XVI, Cortaram-lhe as patas dianteiras Para usa-las como recipientes Que triste fim, não é? Que triste fim

10.

Confesso, no entanto que não escutei as palavras de alguns bichos o escorpião permanece um enigma exultei com o tigre, chorei com a patativa e o elefante e descobri que o pinguim é animal de sangue mais quente

11. confesso também que não tenho palavras para o tempo penso que vivi mais do que compreendi olhei para o passado algumas vezes e resinifiquei o presente reparei no presente e compreendi um passado subi na pedra rebolada por exu zigzageei na partitura dos bichos e deixei que falassem e por fim recebi eu mesma a minha palavra.

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