publicação realizada mediante contemplação do autor no
PRÊMIO ARTE E CULTURA INCLUSIVA - EDIÇÃO ALBERTINA BRASIL 2011
Copyright © 2014 Paulo Emílio Azevedo All rigths reserved. Todos os direitos desta edição reservados ao autor. Capa: Bruno Pimentel Francisco/Juliana Estevão (in memorian) Projeto gráfico e diagramação: Bruno Pimentel Francisco Assessoria técnica: Aline Fuly Revisão: Alessandra Archer Fotos: Gorka Bravo, Jamilson de Almeida, Márcio Graffiti, Mireia Reig e Patrícia Blasón Ilustrações: Maria Eugênia Salcedo Texto e idealização: Paulo Emílio Azevedo 1ª edição em março de 2014. Azevedo, Paulo Emílio. Notas Sobre Outros Corpos Possíveis / Paulo Emílio Azevedo. Rio de Janeiro, 2014. 92 p., e-book. ISBN 978-85-908835-1-7
Todos os direitos reservados ao autor. E-mail do autor: fundacaopaz.educacaoecultura@gmail.com
Para Éverton e Clarita, o mais especial dos homens; a mais gentil das mulheres
5 Everton Vianna Š Gorka Bravo
INTENSO: assim foi meu primeiro encontro com Paulo Azevedo. Ele de Macaé, interior de RJ. Eu de Campinas, interior de SP. Estávamos em Porto Alegre, capital do RS, para um evento sobre dança e educação. Acabávamos de nos apresentar e tínhamos a sensação de já nos conhecermos. Desde então, foram poucos os encontros, mas sempre com a mesma INTENSIDADE. Paulo Azevedo é um grande contador de histórias! Como todo bom contador é, acima de tudo, um exímio COLECIONADOR de histórias, e isso só é possível quando se vive INTENSAMENTE. Para ele, fração de segundo é eternidade. Quando começa a narrar, com sua presença plena e suas palavras prenhes, o tempo se materializa. Neste e-book, Paulo se ocupa de contar mais uma história: a história da DI. Sua narrativa mescla palavras, imagens e cores.
Prefácio
Ao invés de apresentar um RG que define e formata, DI propôs uma interrogação que perguntava e, ao perguntar, colocava o espectador em movimento, chamando-o à ação. Era impossível assistir a um espetáculo da DI sem sair mexido, revelam vários depoimentos. INTENSOS sentimentos. DI não questionou quem eram os “outsiders nem os estabelecidos” (ELIAS). DI buscou o que Paulo intitulou SENSIBILIDADE ESTÉTICA e assim produziu sua dança, deixou marcas e fez história. Rememorar, narrar e contar a trajetória da DI e sobretudo os percursos de seus diferentes protagonistas encerra um ciclo e propõe uma reflexão a todos nós, artistas, educadores, leitores, cidadãos. Boas leituras! Márcia Strazzacappa
Aprofundando as investigações sobre corpo e diversidade, buscou-se ao longo do texto tecer considerações sobre questões que incidem diretamente sobre o reconhecimento de outras e múltiplas estéticas disponíveis.
© Márcio Graffiti
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Refutando a tese homogeneizante dos corpos pares, perfeitos, sublimes, legítimos, corpos-almas ou não corpos, pensar a diversidade e sua contemporaneidade (no reconhecimento de outras corporeidades) pode ser mais um acento ao desenvolvimento de potências, portanto, material a ser furtado por criadores que perscrutam o diálogo com a diferença.
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Distanciando-se do apelo sentimental que, em geral, ainda reza parte nada desprezível das propostas e olhares sobre a participação de pessoas com deficiências em cena, foi relevante trazer a referência de uma experiência que pudesse contribuir nesse debate.
No texto, os elementos que se apresentam seguirão disponíveis para outras composições, vale dizer numa só palavra, presentes para ousar a limitação como possibilidade distinta na produção estética - uma tarefa crítica sobre a performance da superação. Apesar de tantas questões à parte de uma suposta originalidade do caminho adotado na reflexão, pretende-se, sobretudo, ser mais uma contribuição ao embate sobre o dilema das categorias inclusão-exclusão. Não obstante, debruçou-se sobre outro campo analítico: a hierarquia valorativa dos corpos. 10
Apresentamos ao leitor a
DI,
companhia com foco nas artes do corpo,
oriunda da cidade de MacaĂŠ/RJ que encerrou suas atividades em meados do ano de 2011. 11
.“Procedimento II, urbano” (2008)
Três de suas criações, apresentadas em formatos e contextos distintos servirão de referência ao texto
.“Procedimentos de 1 pseudópodo” (2009) .“Gudubik” (2011)
© Gorka Bravo
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um 1º desafio
gue e se s riaçõe sinou s en de suas c desta o n cia o tos periên os elemen lançament ico, do x e a e t u s o lúd E é osto q partir d avés do p , flitos o n d r o t n a c a a e n ensi nder tratégia d etido tivos prom tra ão a que apre s r e i m o u o c g se ou com vo e ação cena criati nstruindo ontar o d public o uso da o o e c d De m se ap jogo e roveitoso. abrigando sível pudes idade de p , n ss muito dia a dia qual o se ve a nece arte pelo a , u n s o da por fomo olhar, ireções. H ximação o d sim e no a o s c r d a i p t í o s a l o nd po ra nte difere ela primei nsação, se estabelecid da r e para u s o a q t pela o limi car a nfron provo nto e não rcurso; co bretudo, n ue força, e o e sq sentim smo um p mbém, e, s ça, ou mai istencial, e r a t o ass ção isso m ário, mas cial. F ar o vício o s sta a r o o n t p i m a g u i l s a a im e um para sub e um nça d prese fundador levância d re to um a do pela ”. a lusiva c c fi i n t i “ s ju ão l; a aç socia
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Deste modo, a resposta foi pela busca de uma percepção artística do projeto, onde o entendimento de outro protagonismo gerasse mobilidade: um trânsito primeiramente de si... Depois, do outro e do outro... E do outro. O que pudemos presenciar foi uma re(a)presentação da alteridade, a reconstrução de uma dada performance e a desconstrução dos imaginários sociais reificados, engessados, endurecidos, mas não, por isso, sem brechas a receber e se aproximar das diferenças. Esse lugar foi cavado ali, nos subterrâneos, no interior do Estado do Rio de Janeiro, cavado e erguido cotidianamente, sem milagres: sensações derivadas dos processos corpo-a-corpo, nos estranhamentos revelados pelos encontros, encontros que coloriram a convivência e iluminaram outras representações ao redor do tema. Eis que surge a voz no corpo dos atores sociais.
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“...Vencer a visão de coitado” Maurício Muros
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Iury Reis e Maurício Muros © Jailson de Almeida
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e isso nem deveria ser tão importante
A DI cia de dança foi a primeira companhia brasileira, tendo em seu elenco artistas com deficiências a apresentar uma obra coreográfica no Festival Brasil Move Berlim, na Alemanha, no ano de 2009. Esse dado poderia receber menor valor, não fosse o fato do que realmente representou este corte naquele contexto, abrindo espaço para outras companhias com elencos pares, mais que isso ampliando a percepção de um projeto tão consistente. Chegou a hora de descortinar esta cena que precisou um dia ser interrompida para que se preservasse o talento afetivo gerado e reconhecido por anos de trabalho, quiçá a principal característica desta experiência. 17
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Voltamos...
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Pra contar essa hist贸ria!
© Márcio Graffiti
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PercepçãoExperiência CampoÍmparDa SensibilidadeDaDiferença
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uma primeira memória [Pode-se dizer que a percepção (refiro-me à percepção) do que um dia ficou conhecida pelas iniciais D.I. foi iniciada em 1997, a partir de longas conversas com o amigo Hildemar de M. Barbosa - presidente do Centro de Vida Independente (cvi-Macaé). Por telefone, durante meu estado de convalescência (proveniente de um acidente de carro), fui convidado por ele para um dia visitar o cvi e desenvolver alguma ação com as pessoas que frequentavam a instituição...] [Todavia, esse primeiro encontro somente ocorreu no início do ano de 1998, quando me encontrei em melhor momento de recuperação. Mas, as bases para decididamente ir a campo neste terreno da diferença foi preparada naquelas longas conversas, quando muito aprendi com Hil. Tratava-se de outro entendimento sobre a vida; sobre o corpo que teimava em querer movimentar para...]
A seguir, estão descritas parte das representações coletivas e das sensações oriundas deste primeiro encontro. 23
© arquivo familiar
Da esq. p/ dir.: Hildemar, Geraldinho (fisioterapeuta), o autor e seu afilhado Luiz Otávio. Registro datado em 01/02/1998 – aniversário do autor: a primeira vez em que houve um encontro entre Hildemar e o autor; desde meados de 1997, o contato era somente realizado por telefone.
Tentei entender o que devia fazer, não sabia... Somente havia duas memórias pra iniciar aquela aula (que não sei bem se era uma aula): a primeira era a lembrança de ter realizado um breve estágio na faculdade com a prática do futsal para deficientes físicos; o que não servia muito pra aquele momento. A outra, o próprio desconhecimento do que significava a minha presença naquele espaço; dito de outra forma, estava perto do risco. E, de fato, isso já me provocava. Segui...
Eliane, Francisco, Maurício, Aline, Hamilton, Marli, Cristiano Aprígio, Cristiano Vitchello, Cristiano Oliveira, Milton, Kátia, Éverton, Pedro, Alexandrino, César e outros que, por curiosidade, visitavam a ampla sala de piso frio com um mini palco ao fundo, localizado na Rua Conde de Araruama, 543, no centro da cidade de Macaé/RJ. 25
[As primeiras intenções sobre a realização de um trabalho voluntário estão motivados por diversos fatores: caridade, oportunidade de aprendizado, assistência, culpa, altruísmo, doação, identificação, tempo livre dedicado à... Talvez, no princípio era isso mesmo, mas já era mais...] [Indaguei-me, impondo-me, ainda, como distinto em relação a eles: o que fazem aqui? O que esperam de mim? Querem uma orientação? O que desejam dispersos pela sala? Querem dançar, é isso? Pois, que dancem!] [Nada propus de modo ordenado, apenas fiquei testando os CDs no velho equipamento de som pra ganhar tempo e refazer o plano de aula. Com tanta poeira no equipamento, a música dava pequenos saltos e arrancava gargalhadas de alguns mais sensíveis ao ritmo, como Cristiano Aprígio.]
O corpo, esse outro corpo que não precisa se contrapor como regra social e dicotômica à mente/razão, apresentou-se ao improviso, uma catarse brotava daquilo que, de fato, é vivo, orgânico, visceral. Aprígio fez par com Oliveira, mas cada um era um em si; territórios sem fronteiras que se sentem, que se agem mas que não precisam, necessariamente, tocar para justificar que se conectam pela pele; eles sublimaram a pele. Era outra coisa que transbordava como pulso, sensação; era uma energia, sim era isso: uma energia. E se Deus existe, ele estava encarnado no corpo dos Cristianos. 26
PoisQueDancem TransbordaComoPulso SensaçãoÉUmaEnergia
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Os encontros se sucederam semanalmente, sugerindo que, sem pressa, os mesmos pudessem avançar para se tornar um projeto de investigação cênica, dada a riqueza presente na comunicação. Comunicação pelo gesto e movimento; comunicação que como nos ensina Davi Le Breton (2009) é aberta e se amplifica para outras interpretações, se comparada à objetividade que permeia a linguagem propriamente dita. E foi assim, participando de tal experiência, que no dia 1º de abril de 1999 foi fundada esta companhia, nas dependências do cvi-Macaé. Para melhor compreensão do leitor, o seu desenvolvimento e percurso estão descritos em três fases bem delimitadas, as quais coincidem com as mudanças de nome da própria companhia até chegar ao termo “DI”.
Sabemos que 1º de abril não é o dia da mentira, mas do despertar, do nascimento de um novo ano 28
Aproximações 29
A 1ª fase ou “dança-terapia” está compreendida no período de 1999 a 2001. Pode-se afirmar que foi um módulo agregador de afetos, teimosias, tentativas e aproximações de modo geral. Fiel aos ideais da instituição mantenedora, esta 1ª formação recebeu o nome de cvi´n dance. Não houve nenhum processo criativo nesse período que mereça ser comentado com virtuosismo correspondente. Por outro lado, alguns participantes, dentre eles Aprígio, Maurício, Oliveira e Pedro, destacavam-se com ofertas de elementos diferenciados a ser potencializados numa próxima fase. Outro dado relevante desta fase foi o acontecimento de dois importantes eventos: o workshop ministrado por Beth Caetano em 1999 e a realização do 1º Encontro Nacional de Dança para Pessoas com Deficiências, em 2000, destacada a participação da mestra Angel Vianna. Ambos os eventos foram sediados em Macaé através do cvi, e seus intercâmbios apontaram direções, conflitos e buscas.
fase 01 Seguimos...
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A 2ª fase ou “laboratório” pode ser visualizada do ano de 2002 a 2006. Nesta segunda formação o nome do grupo passou a ser Dança Inclusiva em projeto. Dois são os motivadores desta mudança:
fase 02
primeiramente, Dança Inclusiva, porque esta era a forma ou a necessidade de distinção de mais uma taxonomia, por sua vez para enquadrar o gênero de dança que envolvia em cena pessoas com e sem deficiências – vale citar que nesta fase, diferentemente da primeira, o número de pessoas (ditas normais ou sem deficiências aparentes) que se interessou em compartilhar o projeto aumentou significativamente; se na 1ª fase eles serviram de apoio, na 2ª se aproximaram pelo despertar de algo... Nasciam outras relações de convivência ou como dizia Hildemar: “O preconceito é vizinho da ignorância, da distância. Tem que todo mundo se aproximar”; e, em projeto, pois mesmo aceitando o enquadramento, aqui ousaria dizer o engavetamento, havia uma desconfiança e inquietação frequentes por esta taxinomia à parte; excludente para incluir? Se já estávamos em experimentação, mergulhados pelo processo, no corpo-a-corpo, pela abertura; como poderíamos estar fechados? 33
Apesar dos avanços na forma de exposição pública do processo, mais o conhecimento sobre tal topografia do movimento e corpos plurais ou ímpares, como lembra a colega Tereza Taquechel*, esta fase não foi ainda o melhor momento para citar em que houve uma criação de maior referência. Todavia, é neste período que se apresentam as bases para a investigação cênica porvir. Nestes experimentos, dois destaques: a coreografia “Um” dentro do concerto “O Heterohomogênico” (2002) e os procedimentos (I, II e resultado) denominados “Pseudópodos” que ocupam todo o período delimitado. Foi a partir desta última pesquisa que a companhia recebeu o prêmio Além dos Limites, através do projeto Com a Cabeça na Roda, pela FUNARTE, no ano de 2006.
*Tereza Taquechel é coreógrafa da Cia Pulsar
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Dança Inclusiva em projeto: segunda formação da companhia. Apresentação no Teatro Municipal de Macaé em evento artístico com a coreografia “Um” in “O Heterohomogênico”, com Maurício Muros (perfil) e João Batista (frente)
© Jailson de Almeida
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O que significa receber um prêmio de âmbito nacional pela pesquisa que se realiza? Muito! Estando no interior do Estado, sem recursos disponíveis e com a onipresença de uma amálgama de descréditos, o que isso representa? Um pouco mais!! Reconhecido, lado a lado, por gente grande? Mais ainda... É aí que um salto (in)surge para afirmar uma dada percepção de que não é pra desistir!!! Pseudópodos - termo adotado na Biologia para caracterizar a locomoção de seres invertebrados - os falsos pés - foi o roteiro sugerido para trazer descobertas das mais variadas formas de se mover. Os laboratórios revelaram também ou fundamentalmente o uso de materiais cênicos que se confundiam com a noção de corpo, dada a extensão da prática dialógica: skate, pneu, carrinho de controle remoto, cadeira de rodas. Registrou-se uma produção aberta de jogos cênicos a explorar. Apesar de breve, deve ser sublinhada as participações de Filipe Itagiba e João Carlos Silva nesta fase, sendo a maturidade de ambos fundamental no estímulo à criabilidade dos demais. Ainda assim, ressalvas para Carla Bazane e Maurício Muros.
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objetos utilizados nos procedimentos em Pseud贸podos
漏 Mireia Reig
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“Vocês são uns experimentalistas, eu tô até agora pensando no que vi” Hamilton Assunção/ músico (Grupo Harmonia Enlouquece)
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“Lágrimas do inconsciente, essa é a expressão que me vem” Luciano Vidigal/ator e cineasta
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“Ensaiado nos mínimos detalhesw artístico, contemporâneo... Vocês estão prontos pra qualquer palco, pra qualquer público” Carlinhos de Jesus/coreógrafo
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A última crítica apontada auxiliou como mais um norte ao processo, pois, se os experimentos estavam visualizados na ordem do artístico, do contemporâneo, prontos pra qualquer palco, pra qualquer público... Portanto, ficou sugerido que não se podia mais adiar o risco de aproximar-se da composição de tocar a “obra”: é assim que se inicia a 3ª fase do grupo, compreendida entre o ano de 2007 até pouco antes do encerramento de suas atividades, em 2011. Cabe destacar neste período a maturidade alcançada por Bruno Martins, Aline Santos e Rafael da Matta. O período denominado “sensibilidade estética” é caracterizado pelo avanço das particularidades e desafios lançados nas fases anteriores, sobretudo, o entendimento do que não se queria mais da 1ª e o que podia se aprofundar da 2ª: outro olhar se apresentara como protagonista. Desta autocrítica constante surge o termo D.I. Mas o que isso queria nos “indizer”?
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Outro capĂtulo 42
fase 03
Ora, se era “Dança Inclusiva” e isso nos incomodava há tempos, justamente porque fechava a compreensão sobre a grandeza desses autores de si, bem como restringia a recepção do processo criativo por outras vias não adestradas, então manteve-se apenas as iniciais no nome: D. I. Posto de ponta-cabeça o conceito anterior (Dança inclusiva), lançamos esta experiência à abertura ou a uma
Definição Infinita! 43
Quero só por hoje ser compreendido na 1ª pessoa: Não há nada mais perverso do que a INCLUSÃO, ou a legitimação desta pressuposta “cultura do bem”, a partir de um antídoto social distribuído como assistência a bocas desesperadas e corpos docilizados, submissos, controlados pelo Estado, sua tutela e diversas organizações não governamentais ao redor do mundo. Isso é uma forma de “agalinhamento”, manobra para destituir, ou melhor, não desvelar a potência do ser humano, domesticando-o pela sobrevivência e condicionando-o à alienação e parte de uma paisagem. Essas formas de reflexão/ação e intervenções políticas que no fundo são estratégias de violência predatória compõem parte de uma cultura do atraso que precisa ser EXCLUÍDA. Matem-nas dentro de si, primeiramente.
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Passada a catarse, voltamos... Mais que uma definição, são infinitas definições, ou não há definição, mas perguntas: Diferença Igualdade? Dança Imperfeita? Diálogos Ímpares? Distintas Inteligências? Díspares Indivíduos?
DIversidade, talvez? É notável que este seja o traço mais genuíno do corpo, independentemente de condicionar e convencionar este corpo a uma nação ou identidade em particular. Talvez não caberia a ideia de nos indagar sobre um “corpo brasileiro” (o que é um corpo brasileiro?), mas, quiçá, de perscrutar as possíveis matizes de um “corpo constantemente estrangeiro”, porvir, desnacionalizado (sem que, necessariamente, seja perdida sua pátria íntima); um corpo à margem, e que na ordem do não traduzível, bizarro, atravessou o espelho do estigma, do espetáculo, da aberração, dos freak shows, da monstruosidade, da assistência... Até chegar a este debate que segue aberto. Ora, cabe então perguntar à próxima página:
...
Parte dessas provocações, bem como da metodologia utilizada no desenvolvimento do processo criativo fez com que o autor pudesse ser contemplado pela 2ª edição do prêmio Rumos Educação, Cultura e Arte (2008-10), promovido no âmbito do Instituto Itaú Cultural, sendo nesta edição o único educador em todo o Estado do Rio de Janeiro a receber tal mérito. 45
Que dança é essa?
Que corpo é esse? 46
© Patrícia Blasón
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[... Quando nasci eu já tinha um irmão. Logo, aprendi a respeitá-lo como meu irmão mais velho. Não importava o fato dele ter uma deficiência, eu o respeitava como meu irmão mais velho...] [...Sempre quando via a Branca de Neve e os sete anões, acreditava que eles eram os sete heróis da Branca de Neve. Depois dos 11 anos, comecei a entender que eles não podiam ser mais heróis, porque eram anões...] (memórias de um relato da jornalista Fernanda Freitas, in Seminário INARTE, Lisboa, Portugal, abril de 2013)
A questão que orienta este texto pode, de antemão, estar no cerne das relações sobre a normalidade e/ou seu contraponto, o bizarro, a loucura. Isso, claro se pudéssemos tão objetivamente definir “bizarro” e mesmo “loucura”, em novos tempos de barbárie. A hipótese, no entanto, que se estrutura, condiciona que as práticas da expressão artística que se derivam no corpo podem sugerir novas representações sociais sobre o tema; sendo, por este motivo, a “estética” um dispositivo, seria possível dizer uma política, para evidenciar outras formas de emponderamento no sujeito. Mas, também sabemos que esta hipótese pode estar carregada de sofismas. O ser apresentado é anão, gordo, surdo, mudo, cego, autista, na postura pejorativa da palavra são “aleijados”; outrora tem corpo aparentemente de aço; super-homens? Somente se visualizados na perspectiva nietzscheniana (prometo retomar em seguida este ponto). Depois, neste mar em movimento como poética da existência, são popularmente “surtados”, mas nenhum deles está localizado numa zona de insensibilidade, tampouco podem ser categorizados na chancela ou apólice da carência. Adiante, estaríamos frente a frente com outra narrativa, a potência. O ser apresentado está para além da sua deficiência genética ou limitação adquirida; ou esta mesma limitação há de se tornar outro referencial estético disponível à criação; de novo potência. Além da Biopolítica em Michel Foucault (HARDT & NEGRI, 2005), da Thanatopolítica em Giorgio Agamben (2012), o desafio imposto a nós e aqui exposto pode estar quiçá na concepção de uma Erospolítica. Mas, faltaria neste momento fôlego ao autor para sustentar o argumento de tarefa tão ousada e divina. Todavia, o que se pode traduzir é que há uma presença constante da afetividade; ela, condutora de boa parte dessa experiência que em algum ins-
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tante pode ter se confundido e se misturado na “proxemia” (MAFFESSOLI, 2002) que revelou o cimento desta mesma afetividade. Nesse desafio, faz-se finalmente oportuno aproximar-se de que dança compõe a narrativa deste texto. Seja no palco, na rua ou em outros lugares, indaga-se: sobre que dança está esse corpo dançando? A resposta é o não encerramento da questão. Nem o sacro, nem o profano, nem o milagre, nem a terapia, nem o virtuosismo como engenharia da superação... Voltamos a Nietzsche como prometido evocando ao célebre “Assim falava Zaratustra” (2002). O SUPER-HOMEM em Nietzsche é justamente o inverso do que se propõe a performance da superação; pilotis para a legitimação dos processos e políticas inclusivas, com foco na concessão e não no reconhecimento; tratam-se de políticas de assistência. A superação da qual trata Nietzsche está inclinada para o instante em sublimar o niilismo; este que nega a realidade, o presente e projeta idealisticamente a fuga como arquétipo de uma metafísica cristã ou de um futuro. Qual futuro? Na sequência da reflexão, faz-se preciso analisar mesmo que brevemente dois tipos de super-homem que aparecem em cena: o primeiro, representado por aquele que
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busca idealizar um homem e corpos perfeitos, frustrando aqueles que não o tem, por sua vez a todos; haja visto que essa busca pelo ideal em corpo ideal (que pode se confundir com felicidade) não existe em tal plenitude - aí está uma pista, nada desprezível, para entendermos num outro momento a ideia de “representação alienada”; o outro super-homem, este presente em Nietzsche, pleiteia a visualização e ação de um homem que busca a reinvenção de si diariamente e que faz do ”conflito” que pode, então, ser a própria limitação, o argumento do seu êxito. Essa última personagem propõe um projeto de consciência de si e de uma transformação contínua, em movimento; ousaria dizer a reconexão com o devir que a dicotomia socrático-platônica deixou de fora, apagando o corpo. Aquele primeiro super-homem é a projeção de um homem em Deus, não sendo agente de seu voo; este, segundo, é a presença de um homem, quase divino (justamente porque é super-homem, é sensível, poético, ético e frágil, mas forte) que projeta em si próprio a responsabilidade de sua vida e morte. Aquele está ausente de si e é carregado por uma ilusão coreográfica; este dança e dança, bem como fazem os deuses e demônios no corpo de Nietzsche. Desse modo, toda tentativa de enquadrar esta
dança e este corpo que dança seriam mais formas de estabelecer territórios e não é sobre essa epígrafe que nos abrigamos. A possibilidade são de fato possibilidades; nem ouro, nem prata, todavia, nem necessariamente bronze; pode ser areia, lata, água, lixo, húmus. Talvez possa ser húmus, mesmo que pareça ser nada humilde o próximo parágrafo. Estamos propondo ir além do freak show, da exotização e hipnose do pranto que servem a subterfúgios de análises pobres sobre a “diferença” (cabe aqui uma alusão à J. Derrida em artigo tão bem colocado no texto do professor Paulo Duque Estrada, 2010); é na “desconstrução” que percebemos tal diferença; sem aquela temida reatividade característica dos super-corpos que esmaguem essas notas sobre outros corpos possíveis. Todos os corpos são possíveis, basta querer senti-los. Mas voltando ao húmus, estamos na busca por si, por um projeto de consciência de si e do corpo que teima em dizer que dança. Estamos falando, sobretudo, do próprio homem, em voltar a ser humano; em voltar à sensação, ao corpo. Nem o deficiente/o carente ou o coitado, nem a superação/milagre ou homens não homens. Não é a busca pelo corpo legítimo, aquele objetivado na adesão subjetiva do corpo à produção de um ethos
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corporal homogeneizador – estamos (e aqui me apresento como militante) em busca do reconhecimento do corpo real, nos argumentos de Pierre Bourdieu (1977), que se represente além da ordem de um corpo alienado com vergonha de si e/ou que se esconda (ou que os escondam) nos abrigos, nas instituições, nas casas, aparelhagens dos hospitais e clínicas e/ ou no fundo do palco para justificar a participação. Ao contrário, que justamente se perceba como agente a provocar outros postulados imagéticos, estéticos e práticas dançáveis. Ele, esse outro corpo possível, que lembremos já não é mais “o outro”, está em cena e se move, quase em silêncio, quase sem se mover. Então sobre que dança estamos dançando? Como afirmar em duas ou três linhas tal pergunta se quiçá ela ainda nem começou a existir. E, será que há de haver? Hoje, que já não é mais hoje, o que se pode afirmar é que ela (a dança) não quer estar mais condicionada, marcada como inclusiva, mas em busca, infinitamente em busca e em transformação. Parte de um projeto orgânico e vital... Respira, respira, respira, respira e caminha; depois cai e/ou se arrasta nesse palco repleto de riscos, no sabor de viver e do saber compartilhar a experiência.
À medida que avançávamos sobre os desafios, percebeu-se que o horizonte que nos tocava, aquilo que nos passava, a “experiência” em si, nos termos benjaminianos (1994), afirmou-se através do “olhar”. Era a maneira de olhar - cada vez mais distante da forma e da fôrma; e mais próxima do acidente, do risco - que produziu a transformação em cada fase. Nesta passagem foi fundamental a ressignificação do “paradigma do sentir”.
Impôs-se como desafio construir ou desconstruir uma dança para um corpo e não um corpo para uma dança. Um corpo ou uma dança que se localiza no “entre”, sempre em movimento, no porvir. É dessa diferença que estamos nos reportando, ou seja, na busca por um corpo aberto...
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para experimentações, valorizando as vivências e reconhecendo as distintas inteligências dos intérpretes, a partir de múltiplas ações integradas
© Patrícia Blasón
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que se comunique à formulação de outros espaços-tempos
© Márcio Grafitti
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através de uma práxis e um olhar que se refaça fora dos “esquemas inclusivos”
© Márcio Grafitti
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Retornando ao processo criativo, três propostas cênicas marcaram esta fase, as quais têm como elementos comuns as seguintes características: do ssignifican re ; lo e b o , o simples ir e fazer d a tr x e r o p elo a busca nceito de b o c o te n e constantem
ntal perime x e r e t o cará e sobre t a b e d oluir o o em ev ã ç a p u a preoc télenitude es p a u s a n trabalho nhando, re, expor o ndo e subli p la e m v e s re , e ”; d o rocesçã o desafio ial deste p de “supera c n s a re v e if ro d p s o a ação com tica, fora d rio, a limit á s s e c e n o quand estético. so/produto
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Procedimento 2 urbano 56
Š Gorka Bravo
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Festival Dies de Danza, Barcelona/Espanha, 2008 © Gorka Bravo
Esta criação surge de uma necessidade expoente de trazer parte das investigações para o ambiente urbano; a rua. Para isso, dentre os procedimentos disponíveis, entendeu-se que aquele que mais se aproximava deste repertório era o procedimento II, por isso “procedimento II, urbano”. O que apareceu de elemento diferenciado nesta adaptação palco-rua foi o uso de um cajón e a interatividade com o público conduzido pela montagem de um quebra-cabeça na cena final. Tratava-se de um quadradinho colorido de borracha utilizado pra bebês engatinharem, cuja referência se faz pela observação do autor no desenvolvimento do seu filho quando tinha menos de um ano de idade. As sensações derivadas por tal interatividade - além dos elementos já utilizados (pneu, bola, carrinho de controle remoto, cadeira de rodas e skate) – propiciaram uma ampliação dos canais de transmissão-recepção artista-público, gerando, por sua vez, outros diagnósticos e referências estéticas no uso das paisagens urbanas como suporte técnico e potencial criativo. A medição do que acaba de ser citado pode ser avaliada em festivais de diferentes cidades/países: Panorama (Rio); Dies de Dansa (Barcelona); Visões Urbanas (São Paulo), entre tantos outros. A seguir, estão registradas algumas destas representações por parte do público; situadas as dimensões da performance ou uma intervenção urbana, propriamente dita. 58
Trabajar en un escenario público con personas con otras capacidades tiene un riesgo muy particular. Llegar por un lado a dar visibilidad a unas personas con un sensibilidad especial y por otro lado construir una propuesta artística atractiva y de solidez tiene merito. Para nosotros, que recibimos la propuesta de DI fue toda una agradable sorpresa. La calidad artística y la sensibilidad demostrada por estos artistas cautivo a un público exigente y generoso. La atención y la tensión manifiesta del público presente que agradeció esta propuesta tan arriesgada. Una aventura que con orgullo recuerda uno cuando echa la mirada hacia atrás, un recuerdo especial de un momento especial. Juan Eduardo López, director de Dies de Dansa/Espanha
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“A poesia pouco a pouco envolve a todos... Belíssimo” (traduzido) Marine Budin/produtora cultural (França)
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Procedimentos de 1 pseud贸podo 61
© Patrícia Blasón
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Um pneu velho, no centro do palco, rodeado pelos demais intérpretes que sugeriam um voo coletivo de paraquedas - esta era a cena final. Faltou mencionar, no entanto, que sentado no pneu se equilibrando levemente, eis que se encontrava Everton; contraponto ao seu primeiro imaginário (pesado, grande, imenso), que agora faz do palco seu quintal. O que também pode ser narrado é que esta cena revela parte dos bastidores da construção da obra, característica muito presente na forma de compor para esta companhia e seu elenco. A observação sobre a sua conversão cênica, isto é, deslocar uma pessoa sentada num pneu para fazer dela uma cena (artística) que encerra uma apresentação de aproximadamente 50 minutos, surgiu em mais uma, entre tantas possibilidades lúdicas apreendidas dos intervalos dos ensaios. O que se registra aqui é que, além dos laboratórios, as aulas, as pesquisas de campo, os diários etc. que compuseram parte da metodologia adotada; os intervalos serviram como fontes de grande importância ao processo. Mais a frente, ao mencionar o protagonismo de Everton, veremos outra vez a confirmação sobre a relevância desta observação. Esta relação entre o intérprete e o pneu foi sendo processada, desde 2005, até ganhar a notoriedade e o status de indispensável na apresentação desta criação especificamente. 63
O espetáculo que estreou no festival Brasil Move Berlim (2009) foi composto por seis cenas delimitadas a partir da apresentação dos objetos em cena e/ou as “pontes” entre eles. Foram assim expostas: prólogo; cena 01/ cadeira; cena 02/ skate; cena 03/ carrinho; cena 04/ bola; cena 05/ ponte e cena 06/pneu.
Mediando as relações e afetos gerados estava presente o próprio palco, sempre, forrado com linóleo branco. A espacialidade disponível fazia lembrar uma caixa de brinquedos, iluminada por figuras geométricas, cujos jogos e estratégias lançadas por estas mediações viam por algumas vezes algo transbordar da caixa. Cabe ressalvas para o belo desenho de luz de Aurélio Oliosi.
Todavia, apesar do princípio lúdico que orientou a criação, o que estava em cena ou em jogo era também uma encenação sobre determinado conflito estético, onde o corpo que dança revelava como epicentro questões para o mundo através do político; outras gramáticas políticas (AZEVEDO, 2006). 64
“É nesta caixa de brinquedos que eu sou uma criança. A criança que é despertada em mim”. Rafael da Mata/Intérprete-criador
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Everton Vianna © Patrícia Blasón
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e mais desafios
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lise
de
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Seguir o processo de experimentação tendo que, no entanto, customizar a investigação dos procedimentos num formato coreográfico de 50 minutos. Pode-se dizer que foi a partir desse momento que se potencializou o aparecimento de novos sentidos, trajetos, musicalidades e interações, em que os objetos e os corpos em inter-ação contínua observavam e concomitantemente participavam de um jogo que pretendia dissecar as possibilidades de cada contato sem, todavia, produzir formas finitas de relacionamento entre os envolvidos na experiência.
2-
Manter a presença do lúdico, sem que a presença do intérprete fosse, necessariamente, infantilizada. Havia uma compreensão de que, ao despertar a criança presente nos envolvidos, pudéssemos ingressar num percurso não pretendido de uma adaptação deste lúdico ao universo supostamente infantilizado, justamente quando este por vezes se encontra climatizado numa atmosfera limitadora do entendimento das ricas possibilidades presentes neste universo.
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3-
Primar mais uma vez pelo lúdico, podendo o jogo disposto no “tabuleiro” servir a contribuir para outras produções imagéticas sobre a diferença. Também assim, projetando metáforas sobre a ressignificação da primeira função dos objetos, neste momento já corpos. Foi assim que, por exemplo, uma cadeira de rodas se transformou numa asa delta durante a primeira cena. Ao dispensar a função tradicional da cadeira, projetou-se no espaço-tempo a representação de outro corpo, de outro objeto e para outra mobilidade. O movimento e a imagem libertam, por assim dizer, numa só palavra ou expressão, uma dimensão lúdico-política. É aí que o homem voa!
“Eu estou muito emocionado, porque esse trabalho me fez voltar à infância de uma forma muito verdadeira pra mim... É lindo”. Arnaldo Alvarenga/historiador da dança
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Gudubik
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© Márcio Grafitti
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Após esta página, e, portanto, diferentemente das demais criações citadas, não haverá críticas disponíveis sobre a “obra”. Por que? Complexo, mas fácil de entender: Em meados de 2011 essa criação precisou forçadamente ser concluída fora de seu tempo de maturação. Patrocínio, edital, prestação de contas, mídias, incomunicabilidades, conflitos vazios, pobreza das relações afetivas. O resultado? Nada de relevante, salvo a exceção do próprio processo e a ousadia da ideia que descrevo a seguir. Não é incomum ouvir no meio artístico que é mais saboroso o processo do que essencialmente o produto. No caso específico desta criação, a máxima pode ser compreendida no seu ato fundador, mas também na sua literalidade: muitos laboratórios geraram proposições interessantíssimas que, em geral, acessavam diálogos entre arte e tecnologia mista. © Márcio Graffiti
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[Em 2007, ao sonhar com uma provocação lançada pelo líder do grupo Harmonia Enlouquece, Hamilton Assunção, quando ele disse: “cara, eu tô viajando depois que vi vocês. Fiquei imaginando numas bolhas gigantes, numa cortina com cores... E aí o que vem depois disso?” não poderia imaginar o quão aterrorizante seria o pesadelo que estava por viver anos depois... Hamilton se referia sobre o que ele assistiu dos resultados gerados pelos procedimentos apresentados no Encontro Nacional Além dos Limites, em Brasília, naquele ano. O norte da investigação foi lançado em 2007 e, quando achei que desfrutaria do sonho, os horizontes mudaram as direções. Esse posso dizer que foi o momento em que a experiência aqui descrita se encerrou de fato, e se iniciou em seguida a tutela da produção, a corrida contra o tempo, e não mais o tempo que passava em nós.]
“Sonic” executa footworks na projeção da obra de “Amora” © Márcio Graffiti
Na iluminação e vídeo, combinando rudimentos de dispersão em projetores hi-tech com canhões de luz (aqueles bem amassados em suas latarias) dispostos nas mãos dos intérpretes; os cabos de alta tensão banhando a cena como se fossem tentáculos ou sinapses de um cérebro coletivo. Por fim, muitas luzes de LED, como se estivessem sugerindo uma emergência porvir ou um pedido de socorro, berro, pranto, desespero. Muito estudo de óptica - quantos e quantos ensaios dedicados a experimentar detalhes. Os nortes da experimentação se mantiveram como prioridade, cabe situar, o espírito dessa composição ou o pré-requisito do processo.
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Na música, testando ruídos, sonoridades mais melódicas, ora a busca pela ambiência lúdica (com destaque inicial para a investigação em Coco Rosie), outrora por alucinações metais, bases e eletrônicos (com percepção aguçada ao minimalismo de Stephan Bodzin). Por fim, a presença do pianista Antônio Neto com obras de sua autoria, John Cage (“Dream”) e Chopin (“Nocturne opus 9 n.2”).
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Na dança, coreografismos com rajadas de improvisações individuais que se conectavam, sobretudo, com as possibilidades geradas pelos recursos audiovisuais. Dentre tantos cruzamentos, vale destacar a performance do b.boy Keltison Cruz “Sonic”, fazendo uso da imagem animada por Filipe Itagiba sobre a obra de Arthur Amora - parte do catálogo virtual do Museu da Imagem do Inconsciente.
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Então, do que se tratara esta criação?
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A criança, o artista e o louco. Essas três personagens habitaram a interface imaginativa dessa “instalação” chamada Gudubik, termo turco que justamente quer situar algo difícil de definir, tão inclassificável quanto o bizarro, tão impossível quanto o indizível, tão infinito quanto a dança. As três personagens olhadas sem as epígrafes da moral institucionalizante traduzem o que há de mais fiel à criação; o ato fundador de inventar narrativas e de ficcionalizar o mundo, ousando-o, exagerando-o e interrogando-o. E, talvez seja por esse motivo que o lúdico atravessou todo o processo e se fez cada vez mais presente. É preciso recorrer a mais um texto de Hildemar ouvido por telefone, ainda em 1997: o legal é esse desequilíbrio, o desequilíbrio como movimento, o melhor movimento. É se aproximar desse outro corpo. O legal é isso, testar essas coisas, essas peças que estão soltas. Porque no dia da apresentação já tá tudo lá pronto. Aí deixa os caras lá se virarem e vai pra praia dar um mergulho. O mergulho para Hil nunca lhe foi parte da recusa de viver (mesmo que tenha sido este o ato causador de sua lesão medular), mas um ato libertador sobre a recusa de não deixar de aprofundar tantas questões. Hildemar, o otimista, aquele que muito antes das políticas de acessibilidade avançarem já sabia que um dia poderia voltar a andar... Voar, ele sempre voou.
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Bruno Santos “B.boy Pequeno” em ação © Patrícia Blasón
Lembrei-me dos rostos tristes e dos abraços apertados daqueles que viram a projeção de si por um instante ser interrompida - Bruno Santos “Gigante”, “Sonic”, Gleidson Mota “2 way”, Everton Vianna “Tom”... Todos eles estavam ali com as lágrimas contidas quando souberam do encerramento da companhia. Trágico? Depende de como se encara e se enxerga tudo isso, e é necessário dizer TUDO, porque de fato foi mesmo muito intenso... Um dia por vez, todos os dias. Mas, como nos ensina o filósofo Martín Fierro “o tempo é a tardança do que se espera”. Então, seguir é também a sequência desta projeção de si... No dia 07 de agosto de 2011 o ciclo da DI companhia de dança foi encerrado e cabe quase tardiamente um agradecimento ao fotógrafo e videomaker Márcio Graffiti: sem você seria impossível ter concluído esta instalação.
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Gleydson Dias “2 way” executa um freeze no “jogo dos quadrados”, apresentação final de Gudubik no Teatro do SESI Macaé/RJ, 2011 © Márcio Graffiti
Olhando para a foto ao lado, pode-se pensar muitas coisas: um breu, uma luz no fim da última cena se apagando lentamente, mas também se acendendo para outra direção, o equilíbrio/desequilíbrio e, obviamente, o ponto de partida e de retorno. Depois de sair para o mundo, abrir pautas, ampliar voos, voltamos ao mesmo ponto de onde tudo um dia começou soprando esta história: Macaé. Mas, diferentemente do start, cada um ali havia atravessado, a sua maneira, uma experiência que os tornava únicos e, certamente, mais ricos do que quando iniciaram. Outros, no entanto, somente revelaram-se cada vez mais pobres sobre o entendimento da experiência... Voltamos aos mais enriquecidos: esses talvez não precisassem mais de uma companhia, grupo ou instituição para lhes dar voz; eles, seus corpos, passaram a ser a melhor das grandes variáveis de suas respectivas vozes pra ecoar o movimento. Esses sublimaram o dilema de ser incluídos pra se tornarem, de fato, protagonistas de uma história e de si mesmos. Muito além das pequenas vaidades dos homens, esse é o tema que mais interessa.
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Os protagonistas
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© Patrícia Blasón
Everton Vianna, Tom A história de Everton pode ser repetida 99 vezes, afinal, 100 é desprezível, justamente porque é sem... Valor pra ele. Era mais um dia de ensaio, entre tantos. No intervalo, ouviu-se uma ladainha que parecia narrar um jogo de futebol: “Vai Everton, vai, você consegue, continua... 23, 24.. 31, 32, 33...” Everton estava no centro da roda fazendo embaixadinhas e ali permaneceu; tinha total controle da técnica corporal. Ele seguia e todos respondiam em coro: “Vamos Everton... 61, 62...81,82,83...” O que perfaz a noção de espetáculo? O corpo, a bola, o centro, a plateia? Tudo isso junto? Everton não parecia estar preocupado com o que dizem se ele conseguirá ou não; e o que, de fato, é isso que ele deve conseguir? Que mediação externa é essa que nos domestica à produção? Everton nos ensina que há outro tempo-espaço a se explorar: “92...97, 98,99...” Everton chuta a bola pro alto e caminha em sua marcha peculiar. Mediante a perplexidade, alguém o indaga: “Pra onde você vai Everton?”, ele responde calmamente: “Vou beber água”. O que mais pode-se dizer do Everton, além de vê-lo, ouvi-lo, tocá-lo, senti-lo, comer e beber ao seu lado com o prazer compartilhado desta hora sagrada, este divino social. Everton é um protagonista! 81
Maurício Muros, Maurício A percepção da autonomia que se faz através do movimento é diferenciada na história de vida de Maurício, que nasceu com talidomida. Maurício domina a cena com tranquilidade e cadência, entende a importância do seu lugar; um lugar que, como ele ressalta, é conquista dele, dos seus pés e de um controle corporal distinto que apoia todo o seu peso na região cervical e cabeça. A dança, o movimento, as potencialidades desenvolvidas no conjunto de atividade deram-lhe uma projeção que até então ele desconhecia – no dia em que ele conseguiu pela 1ª vez pôr sua camisa sozinho com apoio da maçaneta de uma porta que ele fez de cabide, o mundo se abriu como janela. Mais que isso, Maurício se compreendeu como sujeito através desta experiência corporal, refutando o “coitadismo” que ele abrigou em si como flanelinha e em instituições. Página virada: Maurício é casado, mostra-se um paizão e conduz com maestria o seu papel, afinal sabe bem para onde os aplausos o conduzem. Maurício é um protagonista! © Patrícia Blasón
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Rafael da Mata, Rafinha O que dizer das pessoas especiais, além da formulação “especial/deficiente”? Rafinha, nos ensaios, entrava quieto, mantinha-se calado por longo tempo, até que, de repente, conduzia uma genialidade através de sua performance, fazendo-nos lembrar Baudelaire, quando disse que “a dança é poesia feita de braços e pernas”. Essa mesma performance fez com que o jovem se destacasse entre tantos intérpretes que fizeram o mesmo papel que ele antes; mas Rafinha fazia do palco uma caixa de brinquedos, alegrando a “casa” com sua doçura, que não era docilidade, com sua molecagem, que não era descompromisso; e, sobretudo com seu sonho que perfazia os caminhos de uma viagem recheada de surpresas. Um dia ele pareceu desistir, ficou confuso, foi sujar as mãos de graxa, casou-se e teve um filho. Parou? Não, deu um tempo pra digerir tantas mudanças... Ele segue sonhando e, certamente, encantará a muitos. Rafinha é um protagonista!
© Patrícia Blasón
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Aprígio é a experiência em si. O som é o motor que faz seu corpo entrar em desequilíbrio; desequilíbrio como o melhor movimento, já sabemos. O acidente, o risco, o incontrolável, o que não se pode disciplinar por completo, tampouco punir, o que sobra. A beleza está contida nesse elemento que transborda, que não se pode segurar, está pra além, pro infinito. Pra onde ele vai? Onde ele está? O que ele sente? Como se move? Estas questão são inevitáveis de fazer quando estamos diante desta potência que é Aprígio. Mas estas questões seguem sem respostas, como assim deve seguir o intraduzível do que enxerga o daltônico ao ver o arco-íris. Aprígio some por um tempo, mas não é abandono, é busca. Depois, volta rindo com o balanço de um pagode em suas pernas. É assim, é algo no ar. Músico, dançarino, sambista, jogador. Por que sua foto aparece ilustrada por uma pipa? Em breve, ele estará de volta à cena, voando sempre. Aprígio é um protagonista! 84
© http://daniname.wordpress.com/2010/10/14/pipas/
Cristiano Aprígio, Aprígio
quero terminar As tantas questões aqui sugeridas não ditam verdades, mas certamente têm dentre suas motivações apresentar outros contrapontos a tantas verdades legitimadas que servem de longa data aos parâmetros para a formulação de políticas públicas no Brasil; as políticas de assistência confundidas como políticas sociais. Em seu célebre texto “As paixões ordinárias”, Davi Le Breton (ibid), ao explicitar sobre “as crianças selvagens” nos deixa uma série de evidências para refletirmos que apesar de toda a sua plasticidade ao ambiente, contexto e cultura, o homem, quando nasce (nos seus primeiros anos de existência), é o mais desprovido dos animais. Dito de outra forma, é um ser que já nasce com deficiências. Portanto, o que diferenciará em grande parte a construção da alteridade, tal técnica e ou imitação prestigiosa (como nos ensina M. Mauss, 1974) é a presença do outro. É atra85
vés do outro que o homem se potencializa – este tema da alteridade discutirei em outra publicação adiante. Logo, não lhes parece inócuo e iníquo estabelecer que alguns são deficientes e outros não (mirando sobre aqueles uma acusação, uma dó ou uma assistência e consequentemente uma alienação de suas potencialidades) como forma de legitimar poderes e não poderes sobre o “peso” que tem seus corpos. Afinal, quais corpos pesam mais e por que?, parafraseando J. Butler (2010)? O texto apresentado, tomando como referência a experiência da DI cia. de dança quis somente abrir o horizonte destas reflexões, pois sobre os corpos que dançam, ainda há muito a viver. Primeiramente, pode ser que o desafio se paute em “trair” uma noção fechada da dança disposta e condicionada numa ética cultural, como nos lembra o professor Sérgio P. Andrade (2012).
Essa sociedade que nos consome e vice-versa é feita de gente, de afetos e de imperfeições; está em constante (des)construção nos argumentos derridarianos... Desse modo, por que ainda legitima-se a ideia de atletas/para-atletas (e que bom que não há para-artistas)? Silenciosamente, há uma sutileza na objetivação da desfiliação daqueles cujos corpos estão expostos na carne, haja vista que o corpo dito “perfeito” é um corpo-espírito. É esse mecanismo seletivo do acesso, do afeto, que vai gerando uma hierarquia valorativa dos corpos, alienando, por sua vez, os que se encontram no chão desta pirâmide; aqueles que se tornam alvos das políticas de inclusão – os corpos estão marcados. Mas, onde, ou melhor dizendo, que outros mecanismos podem ao menos sujar esta lógica que reproduz na contemporaneidade modelos clássicos de repartição analítica? Dirão os mais otimistas: na Arte. Pode ser, mas pode parecer e também perecer-se na Arte. Arte não é milagre, não é salvação e pode também ser droga e berço nazista pra justificar eugenias (COHEN, 1992). Portanto, sem um projeto emancipatório que permita ao sujeito, por 86
um lado a tomada de consciência de suas potencialidades, por outro o fomento de sua criatividade, e num terceiro vetor a construção de outros espaços-tempos para estar, reconhecer, agir, experimentar... Se assim não puder a arte, ela pode não servir a penetrar por estas brechas e linhas de fuga, para não deixar de citar Deleuze e Guattari (1997). Chega uma hora em que é necessário redimensionar o uso dos poderes; a arte pode fazer isso. A DI veio pra se afirmar e dizer em despedida: “Nós fomos maiores que tudo isso, nada nos enquadrou”. Para que mais exemplos? Trata-se de genuinamente transformar o desastre em arte. Quero terminar: espero que sejam responsabilizados os nazistas e parasitas, autores do desastre. A GENTE começa tudo de novo. Currículo? Besteira. A experiência segue em movimento, sempre dançando... A D.I. cumpriu seu papel e inscreveu sua história no mundo.
Referências bibliográficas AZEVEDO, Paulo Emílio Machado de. 2006. Novas gramáticas políticas: a experiência do hip hop no CRIAM de Campos dos Goytacazes. Campos/RJ: UENF. ANDRADE, Sérgio Pereira. 2012. E-feitos de outra ética cultural na dança. Caderno Imagem. Revista POLÊMICA, v.11, n.4. BENJAMIN. Walter. 1994. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Obras escolhidas in Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense. BOURDIEU, Pierre. 1977. Remarques provisoires sur la perception sociale du corps. In: Actes de la recherhe en sciénces sociales. Vol. 14, avril, pp 51-54 BUTLER, Judith. 2010. Corpos que pesam: Sobre os limites discursivos do “sexo”. In: Louro, Guacira Lopes (Org.) O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora, p.151-172. CASTRO, Edgardo. 2012. Introdução a Giorgio Agamben: uma arqueologia da potência. Belo Horizonte: Autêntica Editora. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. 1997. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34. DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar. 2010. Derrida e o pensamento da desconstrução: o redimensionamento do sujeito. São Leopoldo/RS: Cadernos IHU ideias, ano 8, nº 143 HARDT, Michael; NEGRI, 2005. Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record. LE BRETON, D. 2009. As paixões ordinárias. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, cap.1. MAFFESSOLI, Michel. 1981. A violência totalitária: ensaio de antropologia política. Rio de Janeiro: Zahar. MAUSS, Marcel. 1974. Técnicas corporais. In: MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia. Trad. Mauro W. B. de Almeida. São Paulo: EPU/EDUSP. NIETZSCHE, Friedrich. 2002. Assim falava Zaratustra. Trad. José Mendes de Souza. E.books Brasil.
Filme COHEN, Peter. Arquitetura da destruição. Suécia: Versátil Home Vídeo e Mostra Internacional de Cinema, 1992.
Leitura complementar DEBORD, Guy. 1997. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto. DOUGLAS, Mary. 1966. Pureza e Perigo: ensaio sobre as noções de Poluição e Tabu. Lisboa: Edições 70. GARDNER, Howard. 1983. Estruturas da Mente – a Teoria das Inteligências Múltiplas. São Paulo: Ed. Artes Médicas Sul. FOUCAULT, Michel. 2007. Microfísica do Poder. São Paulo: Ed. Graal. ________________. 2000. Os Anormais. São Paulo: Ed. Martins Fontes. ________________. 1977. Vigiar e Punir. Petrópolis: Ed. Vozes. PLATÃO. 2005. O banquete. 3ª ed. Rio de Janeiro: Difel.
88 © Patrícia Blasón
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Paulo Emílio Azevedo é
© Hiago V. Azevedo
professor, Mestre em Políticas Sociais e Doutorando em Ciências Sociais. O seu trabalho atravessa eixos da cadeia produtiva e do pensamento nos campos da Educação e da Cultura. Recebeu diversos prêmios, como “Rumos Educação, Cultura e Arte” (Instituto Itaú Cultural, 2008); “Klauss Vianna” (FUNARTE, 2010) e “Arte e Cultura Inclusiva” (Escola Brasil/MINC, 2011. Este é o seu sétimo livro, sendo o sexto publicado; além do qual vale o destaque para “Palavra projétil, poesias além da escrita”, (2013) e “Meninos que não criam permanecem no C.R.I.A.M.” (2008), fruto de sua dissertação de Mestrado. Atuou em diversos países como artista, educador, conferencista e na direção de grupos culturais, cabendo ressalvas sobre sua idealização/coordenação no projeto “Micropolíticas do corpo” (Territoire de la Danse, França, 2011). Representou o Brasil no WCPRC (Prêmio Nobel dos Direitos das Crianças no Mundo) na Suécia, 2007. Idealizador do sarau Tagarela, sendo um dos introdutores da prática e pesquisa do SLAM-POETRY no Estado do Rio de Janeiro, desde 2006. Seus dois atuais projetos são: Cia GENTE (redes de protagonismos e criação) e Fundação PAz, dedicado a suas publicações.
ISBN 978-85-908835-1-7