ESPECTADOR E POETA: OS LUDI E O CLIENTELISMO NOS VERSOS DE MARCIAL Thais Ap. Bassi Soares 1 Renata Lopes Biazotto Venturini 2 (Orientadora) Resumo: o clientelismo foi uma instituição que marcou as relações políticas e sociais no mundo romano. Acredita-se que tenha se originado por conta das diferenças existentes entre patrícios e plebeus. Sua ascensão se deu no período republicano, época marcada por conquistas territoriais, em que um afluxo grande de imigrantes chegava a
urbs, e a cidadania se expandia para as novas fronteiras. A República tardia também marca o período de incremento dos Ludi, espetáculos comemorativos de origem religiosa, que aos poucos passaram a ocupar os espaços públicos de lazer. Neles era possível acompanhar corridas, caçadas, peças teatrais e os conhecidos combates de gladiadores. Os Ludi, estabeleciam um espaço de diálogo entre as camadas dirigentes e as camadas populares, e nas arquibancadas os clientes poderiam aumentar o prestígio de seus patronos. Essas duas instituições do mundo romano se mantiveram no período imperial, onde viveu o poeta Marcos Valério Marcial, que deixou em seus epigramas um rico panorama do cotidiano de Roma. A publicação do Liber Spectaculorum, no ano de 80 d. C., marca o início de suas atividades como poeta na Urbs e também a inauguração do Anfiteatro Flávio, espaço destinado à realização dos Ludi. A partir da análise de alguns epigramas selecionados, busca-se expor o modo de vida na Roma Imperial, pautando as diferenças sociais, simbolizadas pela relação entre patronos e clientes e como elas eram apresentadas nos espaços públicos romanos destinados ao lazer. Palavras-chave: Marcial; Liber Spectaculorum; Clientelismo.
1
Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá, e membro do LEAM –
Laboratório de Estudos Antigos e Medievais. 2
Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História na Universidade Estadual de
Maringá. Coordenadora do Laboratório de Estudos Antigos e Medievais – LEAM.
490
Thais Ap. Bassi Soares
Spectaculorum, escrita em homenagem a
O poeta e sua obra Marcial foi um epigramista latino que
inauguração
do
Anfiteatro
Flávio.
Ela
viveu em Roma no período imperial. Sua
acompanha quase que cronologicamente
obra concentrou todas as tendências e
os espetáculos oferecidos por Tito neste
temas que haviam sido exploradas pelo
edifício.
gênero. Ele escrevia desde descrições de
possivelmente
obras de arte e monumentos até louvor a
incentivada pelo imperador, por conta de
personalidades
seu caráter propagandístico.
influentes,
epitáfios
e
Baptista
Além
celebrações de nascimentos. Contudo suas
(2009)
esta
do
destaca
que
tenha
sido
obra
Liber
Spectaculorum
obras mais conhecidas são marcadas pela
Marcial publicou mais onze livros, contendo
sátira
1172
e
pelo
apelo
ao
ridículo.
(TOIPA,2006, p.111) Nasceu pequena
na
epigramas.
Sua
escrita
é
a
representação autêntica da realidade com Hispânia,
cidade
em
chamada
uma
tudo que nela existe, sejam mudanças
Bílbilis,
políticas e sociais, sejam os costumes,
aproximadamente entre os anos de 38-41,
gostos,
e mudou-se para Roma em 64, onde,
necessidades pessoais do poeta. Porém,
contou com o apoio de Sêneca e Lucano,
Marcial tem a consciência de que deve
até
se
manter boas relações com o poder político,
agravassem, e o autor fosse privado dessa
para que seus versos não sejam alvos de
tutela, levando-o a ficar em silêncio por
censura, ou para que sua atividade seja
quase quinze anos. (BAPTISTA, 2009,
merecedora de um mecenas, semelhante
p.74)
aos que tiveram os ilustres vultos da
que
as
conjunturas
políticas
Durante esse período viveu-se o
hábitos,
e
até
mesmo
as
Antiguidade. ( BAPTISTA, 2009, p. 77).
caos em Roma: a peste, o grande incêndio,
O poeta descreve os costumes
a guerra civil e o poder nas mãos de quatro
romanos,
imperadores:
e
satirizando sua realidade própria realidade.
Vespasiano. Embora em silêncio, Marcial
Para que isso fosse possível, ele escolheu
percebia e absorvia todas as experiências
o
ao seu redor, usando-as, posteriormente
considerado como puro entretenimento,
como base para sua escrita.
mas que, numa tradição anterior havia sido
Galba,
Otão,
Vitélio
atividade
poética,
com
a
obra
seus
vícios
e
epigrama, gênero que à época era
usado No ano de 80 d. C. ele inicia sua
divulgando
como
uma
arma
de
inventiva
pessoal mais ou menos mordaz.
Liber
491
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
O
epigrama
conheceu
suas
constituía
o
elemento
essencial
da
primeiras manifestações na Grécia Antiga
conquista do poder em Roma. (Biazotto,
por volta do século VII a. C., e consistia em
1993, p.27)
pequenas inscrições de um ou dois versos
Patronos
e
clientes
possuíam
sobre material duro. Em indicações breves,
obrigações um para com o outro. O patrono
sob forma de mnemônica mostrava quem
seguia regras de conduta definidas pelas
havia escrito ou a quem era dedicado.
noções de fides 3 e diligentia 4. A primeira
Foram usados nas lápides funerárias ou
designava o crédito que um indivíduo
em homenagens aos deuses. (TOIPA,
possui, assim como seu poder no grupo
2006, p. 110)
social ao qual pertence. A segunda noção
A introdução do epigrama em Roma
faz referência a energia empregada no
teve caráter fúnebre, sendo encontradas
preparo da defesa e a habilidade que
inscrições
possuía para resistir a seus adversários.
nos
túmulos
dos
Cipiões.
Contudo, no século II a. C. , o epigrama
Biazotto (1993), aponta que os clientes
passou a ser utilizado por uma classe de
estavam submetidos a algumas regras,
intelectuais que vivia sob a proteção das
dentre elas a gratia 5 , que expressava o
grandes famílias, desenvolvendo-se, com
reconhecimento pelo patrono e criava um
humor e sarcasmo, temas relacionados aos
vínculo de dependência entre eles. Faziam
prazeres da vida.
O final da República,
parte da clientela, libertos, comerciantes,
agrega aos epigramas os temas do amor,
ex-escravos que mantinham o vínculo com
do
convívio
desenvolvidos
e
da
em
vida
cotidiana,
caráter
anedótico.
(TOIPA, 2006, p. 110) Patronato e Clientelismo em Marcial O clientelismo enquanto instituição surge no período republicano, marcando a forte divisão que existe entre patrícios e plebeus e também a formação da nobilitas.
3
Fides: no sentido próprio o termo pode significar fé,
crença, estando diretamente ligado as questões de ordem religiosa. No âmbito jurídico corresponde a um juramento solene. Pode assumir outros sentidos de fundo moral como lealdade, honestidade, confiança, vinculando-se a relação clientelista. ( BIAZOTTO, 1993, p. 261) 4
Diligentia: no contexto das relações clientelistas indica
uma das virtudes do patronus, capaz de lhe assegurar a
Codificadas no direito romano, as regras
auctoritas. Vincula-se ao cumprimento fiel e escrupuloso
referentes a essa instituição foram sempre
de seus deveres, juntamente com a zelosa administração de seus bens. (BIAZOTTO, 1993, p.260)
respeitadas, e o cidadão romano, em seu
5
quadro de relações pessoais se inseria em
patronus e cria um vínculo de dependência entre eles. (
um modelo de fidelidade recíproca, que
BIAZOTTO, 1993, p. 28)
Gratia: exprime o reconhecimento que o cliente tem pelo
492
Thais Ap. Bassi Soares seus respectivos patroni, e poetas como Em outro epigrama, Marcial retoma a
Marcial e Juvenal. Para Baptista (2009) a obra de
temática: O que foste para Horácio, para Varius e para o
Marcial é visivelmente o reflexo de um conhecimento
concreto
e
pessoal
grande Vírgilio Mecena, (...), Terentius Priscus,
da
saberão o que foste para mim: a fama oral e o
condição de cliente,
meu livro dirão através das idades. É de ti que me vem o talento, é a ti que devo tudo aquilo que
[...] o traço predominante da obra de Marcial é a
pareço capaz: és tu quem me proporciona esse
constante opinião do autor no seu discurso e a
direito ao descanso, próprio de um homem livre.
personalização das situações, parece-nos que é na abordagem do tema da clientela que melhor
(Epigrama XII. 3 . Apud BIAZOTTO, 1993, p. 67)
se aplica esta afirmação: o poeta olha para a sua
O poeta retrata sua própria condição
própria categoria de cliente e reflecte nos seus
ao falar dos clientes, e é desta forma que
versos a realidade da clientela do seu tempo. E, desta forma, sem podermos descurar a parte que
consegue aprofundar uma realidade tão
cabe à persona enquanto criação literária, e o
cara aos seus propósitos. A presença da
distanciamento que deve existir entre esta e o
relação
autor, consideramos que é graças à vivência
eu-cliente-poeta, de
seus
pessoal de Marcial que o tema conhece um
epigramas,
elenco tão diversificado de situações, mas
significativa para amplificar e engrandecer
também um sentimento de descontentamento e
a realidade dos clientes, como a realidade
amargor que não é habitual na sua obra. (
contribuiu
nos
forma
BAPTISTA, 2009, p.529)
dos poetas, obrigados a entregarem-se à
Para além da condição de cliente, o
prática da clientela, por falta de um
que Marcial deseja é um mecenas como os
Mecenas que apóie e financie o seu
que existiam à época de Virgílio. Em um de
trabalho. Assim, o desejo de Marcial em ver
seus epigramas o poeta diz:
cumpridas as obrigações dos patronos para com
Que o nosso século seja superior ao século de nossos
antepassados
e
que
Roma
tenha
engrandecido com a glória de seu chefe, tu te
todos
os
clientes
da
sociedade
imperial é extensível à concretização de uma aspiração pessoal: usufruir de uma
espantas que o gênio do divino Vírgilio nos faça
condição econômica que lhe permita viver
falta e que não encontre ninguém para celebrar
mais desafogada e despreocupadamente
as batalhas com um trompete tão poderoso. Houve Mecenas, e os Vírgilios, ó Flaccus não te faltarão
(...) Que bom falar de Varius e de
Marcus e citar nomes de poetas enriquecidos, cuja enumeração custaria um grande esforço. Eu serei então, um Vírgilio se tu me fizeres os
para se dedicar à escrita. ( BAPTISTA, 2009, p. 530) A entrega do poeta à vida de cliente resulta inegavelmente de uma falta de
MARCIAL,
recursos, comum a uma grande parte da
Epigrama VIII . 55. Apud BIAZOTTO, 1993, p.
sociedade que sofrera as consequências
presentes 67)
de
um
Mecenas...
(
493
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
do principado de Nero. Sem meios para se
escrita, ou pelo menos que amenize a sua
entregar inteiramente à escrita, a clientela
atribulada vida de cliente. E retomando, os
era a forma mais honrosa de um poeta
protegidos poetas do passado, Marcial
ganhar a vida. E a ela Marcial entregou
considera que se lhe forem concedidas as
cerca de três décadas de sua vida, apesar
dádivas de um Mecenas, ele também
do sono e do cansaço que insistentemente
poderá ser como Vírgilio. ( BAPTISTA,
o perseguiam e o prejudicavam na criação
2009, p.532) Os Ludi Romanos
poética (BAPTISTA,2009, p. 530). Em um
Os Ludi 6
de seus epigramas, ele comenta que as
eram o entretenimento
obrigações de cliente o impedem de
público por excelência, realizados nos
produzir mais livros:
circos, anfiteatros e nos teatros, ocorriam
Porque produzi somente um livro durante todo ano, eis-me, douto Potitus, acusado por ti de preguiça. Mas tu poderias mostrar-te mais
sem exceção durante o ano todo. Conta a antiga história Romana, que as únicas
surpreso de me ver produzir um, quando tantas
ocasiões para os espetáculos eram os
vezes jornadas inteiras se perdem para mim (...)
festivais religiosos, celebrados para pedir a
tanto a primeira hora do dia como a quinta, retiram-me por suas obrigações (...) a décima
fertilidade
dos
campos
e
as
vitórias
hora chegou, morto de fadiga, vou banhar-me e
militares, assim como para agradecer aos
tocar meus cem quadrantes. Quando, então,
desejos recebidos.
Potitus, eu encontraria tempo para fazer um livro?
(Epigrama X .70 . Apud BIAZOTTO,
(BAPTISTA, 2009,
p.205) No início do período republicano, os
1993,p. 65)
É certo que Marcial não pretende
dias de espetáculo estavam reduzidos aos
esconder a suas reivindicações sob a
Ludi Maximi Romani, que celebravam a
aparência de uma troca de cortesia, nem
promessa feita aos deuses, pelos generais,
deseja um comportamento semelhante ao
antes de entrar numa batalha. Nestas
de inúmeros clientes, que são insistentes, e cansam o Imperador com pedidos triviais. O seu lamento pessoal e a exposição da sua desassossegada vida, aliada aos
6
Ludi: palavra de origem etrusca que pode assumir dois
sentidos. O primeiro está relacionado com o “ jogo em ação”, ao contrário de iocus que seria o “ jogo de palavras”, a piada. Neste sentido sua tradução no plural
inúmeros pedidos de proteção dirigidos a
como “ jogos” diz respeito aos jogos de caráter religioso e
patronos ilustres, ao imperador Domiciano,
oficial. Uma segunda tradução possível é “ escola”, isto é,
ou à própria Roma, revelam o desejo do
o local onde os
gladiadores
treinavam antes do
espetáculo. Um exemplo seria o Ludus Magnus, uma das
poeta em conseguir um patrono-mecenas,
maiores escolas de gladiadores durante o Império.
que lhe permita dedicar-se apenas à
(GARRAFFONI, 2004, p. 20)
494
Thais Ap. Bassi Soares ocasiões o Estado proporcionava ao povo,
Nero
variados tipos de entretenimento, como o
empreendidas durante a dinastia Flávia. No
canto, as danças e as representações
primeiro epigrama, de uma série de trinta e
teatrais.
três o poeta destaca a grandeza de Roma,
e
falas
acerca
das
melhorias
As mudanças políticas ocasionadas
como a única que ganharia a eternidade, e
pelo final da República e inicio do Império,
pede que sejam esquecidas todas as obras
transformaram os espetáculos em um meio
antes consideradas como maravilhas do
de promoção pessoal, levando-os a ocupar
mundo Não mencione aos bárbaros as maravilhas das
boa parte dos dias do calendário romano.
pirâmides de Menphis, ou vanglorie o trabalho
Dentre as festas realizadas, destacamos os
dos Assírios na Babilônia; não louvem os jônios
Ludi Plebeii, celebradas anualmente desde
afeminados pelo templo de Diana,esqueçam o altar de muitos chifres e não digam nada sobre
o século III a. C.. Elas atuavam como um
Delos, e que os Carios deixem de exaltar com
espaço de organização da plebe frente ao patriciado;
os
Ludi
Apollinares
imoderado louvor, ao próprio céu suspenso o
foram
Mausoléu, no
diante do Anfiteatro de César, um feito em que a
instituídos durante a Segunda Guerra
grandeza é praticada diante de todos. (MARCIAL
Púnica, sob o temor do ataque de Aníbal.
Epigrama 2006, Spec. 1)
Dedicados a Apolo, ocorriam entre 6 e 13 de
julho,
apresentando
espetáculos
circenses, caçadas e corridas equestres; os
Ludi megalenses eram consagrados a Cibele e ocorriam de 4 a 10 de abril, contando também com eventos circenses e
ar vazio. Todo o trabalho cede
7
No segundo epigrama encontrara-se uma referências à estátua de Nero que ficava próxima ao Anfiteatro Flávio, e ao lago artificial que este mesmo imperador mandará construir.
teatrais. (ALMEIDA, 1994, p.70) Na obra de Marcial, o entretenimento público
aparece
de
forma
elogiosa.
7
Barbara pyramidum sileat miracula Memphis, Assyrius iactet Nec Babylona labor,
Buscando a proteção do Imperador, ele
Nec Triuiae templo molles laudentur Iones;
classifica os Ludi como uma manifestação
Dissimulet Delon cornibus ara frequens,
do poder de Roma, e escreve o Liber
Spectaculorum
em
homenagem
a
inauguração do Anfiteatro Flávio, no ano de 80 d. C. É possível encontrar nos epigramas do Liber inúmeras críticas ao governo de
Aëre nec uacuo pendentia Mausolea Iaudibus Immodicis Caris in astra ferant. Ommis Caesareo cedit labor amphiteatro: Unum pro cunctis Fama Ioquetur opus. (SPEC. 1, 2006, p. 1) * As traduções apresentadas referentes aos epigramas do
Liber Spectaculorum são de responsabilidade da autora. Para consultar os originais vide Notas.
495
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Marcial, que viveu sob seu governo,
O terceiro epigrama contempla a
passando por todas as incertezas e a
diversidade
atribulações resgata estas obras como uma
encontravam em Roma, e destaca o
memória de um passado difícil, e que se
caráter cosmopolita da Urbs. Pode ser
encontra agora ao lado de um grande feito
entendida também como uma manifestação
romano, que é o Anfiteatro Flávio. Nele
não explicita do poder de atração do
concentram-se as glórias de Roma e a
Anfiteatro.
desde o Hemo de Orfeu, tem vindo também o sármata, alimentado pelo sangue de seus
silêncio, ele assimilava tudo o que ocorria
cavalos, e aquele que bebe as primeiras águas
ao seu redor, empregando como matéria produções
se
sua cidade? Tem chegado o lavrador trácio
poeta tenha passado muitos anos em
suas
que
bárbaro, César, que não havia espectadores em
Esse epigrama mostra que, embora o
em
pessoas
Que povo vive tão distante? Que povo tão
retomada de uma relativa tranquilidade.
prima
de
do Nilo conhecido, e aquele a quem fustigam as
textuais
primeiras ondas do Oceano mais remoto. Se apressam
posteriores
a
chegar
os
árabes,
vem
apressadamente os sabeos e os cilícios se
Aqui onde o Colosso celeste contempla de perto
embebedam aqui com suas chuvas de açafrão.
as estrelas, e cresce na metade da via os altos
Chegam
andaimes, irradiando dos átrios os tribunais
os
sicambros
com
seus
cabelos
recolhidos em um nó, e os etíopes com seus
orgulhosos do feroz tirano que fazia de toda
cabelos recolhidos de outras formas. As línguas
Roma sua casa. Aqui onde se eleva a augusta
destes povos soam diversas, mas não existe
robustez do belo anfiteatro, estavam os lagos de
mais do que uma, quando proclamam quem é o
Nero. Aqui onde admiramos as termas, obra
verdadeiro pai da pátria. (SPEC. 3 2006, p.37) 9
rapidamente acabada, existiu um imenso campo de casas expropriadas de míseros cidadãos. E onde o pórtico de Claudio projeta suas amplas sombras, vinha a ter fim as últimas construções
ultima pars aulae deficientis erat:
do palácio imperial. Roma foi devolvida a Roma,
reddita Roma sibi est et sunt te praeside, Caesar,
e contigo no trono César, realizam-se os deleites
deliciae populi quae
do povo, assim como se realizavam s de seu
14)
senhor. (Spec. 2 2006, p. 14) 8
9
fuerant domini. (SPEC. 2, 2006, p.
Quae tam seposita est, quae gentes tam Barbara,
Caesar, Ex qua spectator non sit in urbe tua? 8
Hic ubi sidereus propius uidet Astra colossus,
Uenit ab Orpheu cultor Rhodopeius Haemo,
et crescunt media pegmata celsa uia,
Uenit et epoto Samarta pastus équo,
inuidiosa feri radiabant atria regis,
et que prima bibit deprensi flumina Nili,
unaque iam tota stabatin urbe domus,
et quem supremae Tethyos unda ferit.
hic ubi conspicui uenerabilis amphitheatri,
Festinauit Arabs, festinauere Sabaei,
erigitur moles, stagna Neronis erant,
et Cilices nimbis hic maduere suis.
hic ubi miramuruelocia munera thermas,
Crinibus in nodum tortis uenere Sugambri,
abstulerat miseris tecta superbus ager,
Atque aliter tortis crinibus Aethiopes.
Claudia diffusas ubi porticus explicat umbras,
uox diuersa sonat populorum tum tamen uma est,
496
Thais Ap. Bassi Soares Estes
epigramas
bosque semelhante ao das Hespérides,
constituem uma introdução aos que serão
onde Orfeu vivia. O prisioneiro em questão
apresentados durante a leitura da obra.
sofreu o mesmo destino, só que pelas
Para Coleman ( 2006), eles conduzem o
garras de um urso:
leitor
ao
três
primeiros
clímax,
caracterizado
A arena te ofereceu César, um espetáculo
pela
semelhante
descrição dos espetáculos realizados na
bosque
procissão,
onde
–dia, era possível acompanhar nas arenas as execuções, realizadas por meio de encenações com tema mitológico. Por fim, realizavam-se os combates de gladiadores. Os Espetáculos no Liber Spectaculorum Encontra-se nos poemas de Marcial os diversos tipos de espetáculos realizados nos anfiteatros romanos: as execuções, as caçadas e os combates de gladiadores. As execuções eram realizadas por meio de produções mitológicas. Em um de seus
poemas,
Marcial
descreve
a
encenação da Morte de Orpheu, que na
Haviam
animais
depôs contra a história. (SPEC. 24 (21), 2006, p. 174)
também membros das camadas dirigentes
por volta das dez horas da manhã. Ao meio
Hepérides2.
pela ingratidão de um urso. Somente esse fato
promotor do Ludi era saudado. Desfilavam
dia. Após a Pompa, tinham-se as caçadas,
das
pássaros. Mas ele, contudo, morreu dilacerado
o
e os gladiadores que combateriam naquele
contemplou.
ao gado. Sobre o poeta pousavam inúmeros
começavam pela manhã, com a Pompa, de
Ródope1
selvagens de toda espécie que se misturavam
As apresentações nos anfiteatros espécie
que
Rastejou pelas rochas e correu pelo maravilhoso
arena.
uma
ao
10
As caçadas eram realizadas pela manhã, e nelas podia-se assistir a luta entre dois ou mais animais, ou a caça ao animal selvagem. epigráficos
Relatos literários e
desses
espetáculos
se
debruçam sobre a coleção de animais exóticos envolvidos, inclusive herbívoros africanos, como os elefantes, rinocerontes, hipopótamos e girafas; além de ursos e alces das florestas do norte, assim como criaturas estranhas: onagros, avestruzes e gruas.
Os
mais
populares
foram
os
leopardos, leões e tigres. É possível conhecer um pouco mais desse espetáculo 10
Quidquid in Orpheu Rhodope spectasse theatro,
Dicitur, exhibuit, Caesar, harena tibi.
Mitologia foi trucidado pelas bacantes.
Repserunt scopuli mirandeque silua cucurrit,
Para tanto foi erguido no anfiteatro um
Quale fuisse nemus creditor Hesperidium. adfuit inmixtum pecori genus omme ferarum, et supra uatem multa pependit auis,
cum uersus patriae diceris esse pater. (SPEC. 3, 2006, p.
ipse sed ingrato iacuit laceratus ad urso.
37)
haec tantum res est facta. (SPEC. 24 (21), 2006, p. 174)
497
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
numa série de três epigramas que Marcial
chamado Carpóforo, que segundo ele era o
dedica a morte de uma javali prenha, que
melhor dentre todos os outros: Junte toda a glória que teve Meleagro, sua fama
teve seu parto na arena:
é uma pequena parte da de Carpóforo. Ele
Uma mãe javali, ferida gravemente por um dardo,
cravou seus dardos em um urso, é o maior de
experimentou seus últimos instantes de vida.
toda a Acrópole Ártica. Derrubou um leão,
Quão certeira foi a mão que lançou aquele dardo!
assombroso por seu tamanho e digno de uma
Creio que foi a mão de Lucina. Perto da morte,
das proezas de Hércules. Com um só golpe,
experimentou a divindade das duas Dianas: uma
lançado a distância, abateu um veloz leopardo. E
a fez mãe e a outra lhe tirou a vida.SPEC.
quando coletava seus prêmios ele ainda tinha
15(13), 2006,135) 11
forças! (SPEC. 17 (15), 2006, p. 140) 12
Seguindo, têm-se os combates de gladiadores.
Esses
consistiam
nas
apresentações mais esperadas do dia. Realizados no período da tarde, opunham adversários com habilidades equivalentes. Os gladiadores eram treinados em escolas, a mais conhecida é a Ludus Romana, que possuía uma passagem direta ao Coliseu. Eles poderiam alcançar fama e riqueza caso saíssem vitoriosos da arena. É importante
ressaltar
que
estes
eram
guerreiros altamente treinados e de grande valor. Por conta disso procurava-se evitar ferimentos graves ou a morte nas arenas.
O Líber Spectaculorum deve ser entendido como uma rica fonte para o estudo dos espetáculos realizados nas arenas de Roma. Como destaca Coleman (1998), ele é uma importante janela para a mentalidade da época. Marcial, por conta de sua condição de cliente, adota um caráter elogioso em relação aos jogos. Outros autores ao se referir a eles, adotam posturas mais severas,
Marcial
compõe
uma
série
de
epigramas em homenagem a um gladiador
que
o
tempo
empregado na diversão deveria ter outros propósitos. Considerações Finais
Existia uma equipe médica responsável pelo bem estar dos gladiadores.
acreditando
O artigo buscou apresentar um panorama de duas instituições que fizeram 12
Summa tuae, Meleagre, fuit quae gloria famae,
quanta est Carpophori portio, fusus aper! 11
Icta graui telo confossaque uulnere mater,
ille et praecipiti uenabula condidit urso,
sus pariter uitam perdidit atque dedit.
primus in Arctoi qui fuit axé poli,
o quam certa fuit librato dextera ferro!
strauit et ignota spectandum mole leonem,
hanc ego Lucinae credo fuisse manum.
Herculeas pottuit qui decuisse manus,
experta est numen moriens utriusque Dianae,
et uolucrem longo porrexit uulnere pardum
quaque soluta parens quaque perempta fera est. (SPEC. 15 (13), 2006, p135)
praemia cum laudem ferret, at hic pateram.
498
Thais Ap. Bassi Soares parte do cotidiano de Roma: o clientelismo e
os
Ludi.
Através
da
prática
mais distantes, eram a expressão dos
do
costumes e tradições romanas, imersos na
clientelismo foi possível estabelecer redes
violência que emanava dos espetáculos
de confiança, que ligavam as camadas
apresentados nas arenas.
superiores e inferiores por meio da fides.
Sendo assim, consideramos essas
Considerando a grande extensão territorial
duas instituições bases de sustentação do
do Império, essas relações fomentavam
poder imperial, à medida que estimulavam
uma aproximação entre as províncias mais
um espaço de diálogo entre as gentes que
distantes e o poder central, situado na
faziam
capital, Roma.
promovendo sua cultura e reforçando a
Os Ludi por sua vez representavam
parte
soberania
do do
mundo
romano, Imperador.
a força do Império. Levados as regiões
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500
CATARINA DE SENA: RENÚNCIA, DEVOÇÃO E FÉ COMO FORMA DE ESTAR COM E EM DEUS-1347-1380 Thiago Palmeira Machado 1 Maria Cecília Barreto Amorim Pilla (orientadora) 2 Resumo: A concepção de corpo, seu lugar na sociedade, sua presença no imaginário e na realidade, na vida cotidiana e nos momentos excepcionais, sofreu modificações em toda a história, desta maneira o ser humano em todas as suas atividades incluso as espirituais, está determinado e condicionado por seu corpo, que é componente de sua unidade pessoal. Catarina de Siena (1347-1380), mística medieval, manifesta que o sofrimento é o caminho original para a santidade. Seu corpo identifica-se com Cristo sofredor, ferido e castigado. Catarina aceita no ato de não comer, a forma mais sublime da relação com o Senhor, “seu Esposo”. Quem come não consome somente o que o alimento representa em relação ao imaginário, e não somente em seu metabolismo. O homem é aquilo que come, ou aquilo que não come, a partir de suas escolhas alimentares revela seu caráter, sua religião e sua relação com Deus. A pesquisa busca compreender a relação mística (comernão comer) e Deus. Analisa-se assim, sobre como o simples e natural ato de alimentar-se pode se transformar num veículo de encontro com Deus e pergunta-se sobre o ato de não comer, sendo que muitos santos místicos dos séculos XIV e XVI, viram nos sacrifícios e nas mortificações uma forma de comunicar-se com Deus. Nestas premissas se encontra Catarina de Sena. Palavras-chave: Catarina de Sena; Privações alimentares; Ascese.
1
PUC-PR
2
PUC-PR
501
Thiago Palmeira Machado
1 INTRODUÇÃO
ser
corporalmente.
Por
isso
mesmo,
Não existe ser humano sem ser
qualquer ação em favor do homem sempre
corporificado. Por isso, qualquer tentativa
será uma ação corporal; o que nos leva a
de definir o homem deverá tomar em
afirmar: o homem é um ser essencialmente
consideração a sua existência corporal. É a
corporal.
nossa corporalidade que nos individualiza,
O corpo constitui um veículo de
que nos insere na realidade terrestre e nos
relação com o Divino, é por ele que são
permite uma comunicação com o meio
infligidas
ambiente e os outros homens. Os direitos e
buscando
os deveres do homem apenas adquirem
séculos,
validade quando expressos em referência a
mulheres tomam como modelo Cristo, em
corporalidade. Dependem, inclusive, da
particular sua Paixão. Diante disso, vem-
atitude para com o corpo o sentido e o
nos as perguntas: como se preparam para
valor que damos a vida.
essa imitatio Christi e como a realizam?
No
decorrer
da
história
as
práticas
a
imitatio
muitos
de
mortificações
Christi.
místicos
em
Durante especial
da
Por que Jesus Cristo, como modelo, foi
humanidade, os homens valoram o corpo
seguido de diversas maneiras através dos
de diversas formas. As atitudes em relação
séculos?
ao corpo foram geralmente determinadas
A superação do corpo, por meio do
por religiões e sistemas filosóficos. A
jejum,
apreciação ao corpo de alguém nos
aniquilamento da própria vontade, ligou-o
permite tirar conclusões sobre a sua
fortemente à alma,ainda que, de maneira
pessoa: sobre sua situação na sociedade,
invertida, isto é, a elevação de um implica
sobre o relacionamento com os seus
no rebaixamento do outro. O corpo pela
semelhantes. As roupas que cobrem o
sua fragilidade, por suas necessidades e
corpo falam de riqueza, de pobreza e de
por sua finitude, desafia a imortalidade e
cultura, revelam-nos funções sociais e
transcendência da alma. No pensamento
religiosas
interiores.
cristão, principalmente a partir do século II,
Sacerdotes, juízes e militares, muitas vezes
a sexualidade passou a ser a principal
podem ser identificados pelas vestes que
manifestação
cobrem o seu corpo. Além disso, o corpo
devido
revela raça, idade, saúde, doença, sexo.
pensadores cristãos fizeram entre o pecado
Para o homem não existe outra maneira de
original, do livro do Gênesis, e o desejo
ter participação na realidade humana a não
sexual. Esse último teria sido o motivo da
e
disposições
da
a
abstinência
da
sexual,
fragilidade
algumas
do
humana,
associações
que
502
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
perda
da
graça
Deus
e,
paraíso.
Os
autoconhecimento em Deus. Desejosa de
encratitas, seguidores do pensamento de
conhecer Deus em si mesma e a si mesma
Taciano, seita cristã difundida na Síria, no
em Deus, para conseguir tal feito, a
século II, consideravam que a reprodução
sienense, primeiro adentrou em si mesma
alimentava o repetitivo ciclo da morte,
para, depois, sair de si, pois reconheceu
associando, assim, intrinsecamente sexo e
Nele
sepultura.
Criador, Ele é; e ela, como criatura, não é,
consequentemente,
de do
Então, vencer o corpo e suas vis
Evangelho,
toda
no
sua
caminho
e
potencialidade.
no
Como
no seu nada, no seu humano.
demandas era equivalente a vencer a
O pensamento do Nada, Aquele que
morte. Dessa forma nas bases éticas do
é tudo, vem retomado muitas vezes, no
pensamento cristão, o corpo ocupou o
Diálogo também no seu Epistolário, e dá
espaço
as
para perceber que esse princípio se torna o
diretrizes a serem percorridas por aqueles
ponto fundamental de sua doutrina. Assim,
que aspiram a perfeição.
conseguiu vivenciar a Imitatio Cristi no seu
principal,
estabelecendo
Buscamos com esta pesquisa refletir
corpo e no seu espírito. Recebeu, dessa
sobre o papel do alimento na composição
maneira
das atitudes de contenção do corpo e do
compadecimento de Jesus na cruz: os
domínio da vontade. Em primeira instância
estigmas, porém invisíveis, como uma dor
apresentaremos
breve
no lado do peito esquerdo, igualmente
contextualização situando leitor dentro do
sentida quando o soldado romano enfia a
período histórico, da biografia de Catarina
sua lança no peito de Jesus; dor na
de Sena e das reflexões que são realizadas
cabeça, em razão da coroa de espinhos a
sobre o corpo no que tange as privações e
troca do coração de Jesus, com o da
flagelos. Em seguida conceitualizaremos o
sienense, que culmina com o casamento
corpo na perspectiva do Antigo e Novo
espiritual, isto é, na saúde e na alegria,
Testamento,
bases
mais na dor que na alegria. Pois é na
verificaremos como se da a composição
dorque Catarina, na sua nulidade, encontra
das
monacato
o Tudo, de onde advém a sua felicidade.
primitivo e como neste está situado o
Aplicamos, em vista disso, as palavras do
gérmen da mística medieval.
salmista a Catarina: “alargais o caminho a
regras
uma
lançadas alimentares
estas no
Catarina buscou fazer parte da sua existência humana na radicalidade do
meus
os
passos,
sinais
para
visíveis
meus
pés
do
não
resvalarem” ( Sl 18,37) E ainda “eu corro
503
Thiago Palmeira Machado
no caminho dos teus mandamentos, pois tu
Na introdução que fez ao livro,
alargas o meu coração” ( Sl 108,32).
“Êxtase e clausura”, Mary Del Priore (2005)
Catarina vê a lux magna de sua vida e
considera que a crença inabalável que
missão estando no centro Jesus, cruci
algumas
affixus 3.
escolhidas, entre outras tantas, por Deus
mulheres
tinham,
de
serem
para ser suas esposas, “levou algumas
2 CONTEXTUALIZAÇÃO O corpo de Cristo está no centro do
delas a realizarem grandes feitos, também
discurso cristão.A religião cristã é a única
aos olhos dos homens”. Esse é o caso de
em que Deus “se inscreveu na história
Catarina de Sena, que em seu tempo, de
tomando forma humana: é a religião do
angústias
Deus encarnado”. (GÉLIS, 2008, p.23).
estigmas e exerceu junto aos papas
Essa concepção dá estrutura e forma à
Gregório XI e Urbano VI forte influência
uma ânsia pelo estado de perfeição, o que
religiosa, sendo considerada uma das
pode ter levado ao desenvolvimento de
figuras decisivas de aconselhamento de
estratégias para salvação caracterizadas
papas para por fim ao inquietante Cisma da
pelas experiências místicas do final da
Igreja Católica.
e
inquietudes,
recebeu
os
O final da Idade Média europeia é
Idade Média na Europa. Para Jacques Gélis (2008,p.19), a fé
marcado por uma série de contradições.
Cristo
Por um lado a população cresceu, o
contribuíram sobremaneira para a alta
comércio se desenvolveu, novas cidades
consideração que o corpo assumiu ao
surgiram, antigas cidades se revitalizaram.
longo da história ocidental. Por outro lado,
Houve
essa concepção nos revela um paradoxo.
filosofia, nas artes visuais e na literatura.
Se por um lado esse corpo é valorizado
As
como veículo para salvação, por outro ele
arquitetura temos os maravilhosos estilos
deve ser depreciado, na medida em que,
gótico e o românico.
e
a
devoção
ao
corpo
de
quando não controlado, corre o risco de se perder. Há assim uma ambiguidade no discurso cristão em relação ao corpo: enobrecimento e desprezo.
um
florescimento
universidades
cultural
nasceram,
na
e
na
Mas a chegada o século XIV trouxe consigo
uma
série
de
dificuldades.
Esse foi um período de santas, em meio a um contexto histórico de angústias e inquietudes, frágeis mulheres de vida intensamente
3
Expressão utilizada por Catarina em seu livro o Diálogo
que significa que "ela ganhou" isto é, ganhou a Cristo.
espiritual
voltavam
seus
interesses a ações reformadoras. Esse é o
504
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
caso de Catarina de Sena (1347-1380),
Já no final da Antiguidade início da
que entre suas admoestações e sacrifícios
Idade Média, a exemplo de São Bento de
para encontrar-se com Deus em vida,
Nursia no século VI, a fuga para o deserto,
negou-se a alimentar-se, chegando a tomar
a renúncia dos bens materiais, os votos de
por dia somente a Santa Comunhão.
pobreza, castidade, obediência, silêncio,
Catarina nasceu em 1347, em Siena,
oração e trabalho, constituíram-se em
na Toscana italiana. Vigésima quarta filha
exemplos a serem seguidos. E mais tarde,
de Tiago e Lapa Benincasa. Filha de um
junto ao êxtase – a possibilidade de sair
tintureiro bem estabelecido, quando tinha
fora de si, superar o corpo – mostraram-se
seis anos fez voto de virgindade; aos 12
como possibilidades de comunicação entre
anos cortou seus cabelos, no que parece
o sujeito e o divino, como prevê Nunes
ter sido uma tentativa de enfrentar a
Junior (2005), a união entre Deus e a alma
vaidade e tornar-se menos atraente para o
como forma de aumentar a capacidade
casamento,
intelectual.
pois
segundo
João
Alves
Basílio 4, ela se despojou de suas tranças
Assim, o êxtase poderia ser uma
quando sua mãe lhe apareceu com um
forma
do
feminino
pretendente. Aos 15 anos recebeu o hábito
capacidade “limitada” de intelecto, pois ao
das Irmãs da Penitência de São Domingos,
alcançar
e ao chegar aos 20 anos, já tinha se
possibilita
tornado uma figura respeitada em Siena.
racionalidade ausente em seu corpo de
Semanalmente dirigia uma reunião pública
mulher.
o
êxtase, a
transcender esse
aptidão
sua
estado
intelectual,
lhe a
cujo objetivo maior eram as orações.
Segundo Delumeau (1989), em seus
Reunindo em torno de si leigos, religiosos e
estudos sobre o medo na Idade Média
sacerdotes,
formaram
ocidental, as restrições em relação à
uma família que a acompanharia até a sua
mulher datam de longe. Considerada mais
morte aos 33 anos.
próxima da natureza desde antes dos
seus
seguidores
Catarina abraçou a luta contra as
ascetas
cristãos,
ela
foi
definida
em
tentações da carne, escolheu combater a
oposição à natureza masculina racional,
finitude de seu corpo por meio de privações
como mais ligada ao instintivo, ao sonho, à
e penitências extremas, como mortificações
obscuridade. São Paulo vedou às mulheres
e jejuns prolongados.
a palavra nas assembleias, indicando a elas o lugar da submissão aos homens.
4
Tradutor para o português das obras de Santa Catarina
de Sena.
Ligada à figura de Eva, responsável pela
505
Thiago Palmeira Machado
queda do homem no Gênesis, a cultura
representação
cristã acentuou no imaginário medieval,
amantes,
junto à ideia próxima do fim do mundo, a
humanos de Cristo, que ao relacionar sua
valorização da virgindade e da castidade.
interpretação ao Cântico dos Cânticos,
Nesse sentido que Santo Ambrósio
inaugurou acorrente do misticismo afetivo.
considera
o
enfatizando
entre os
dois
aspectos
Assim sendo, esse santo considerava o
recurso, pois a maternidade só traz dores e
êxtase como uma união momentânea entre
aborrecimentos,
o esposo (Cristo) e a esposa (Alma).
mais
estado
como
união
último
virgindade,
casamento
da
vale
divino.
optar Mas,
pela como
Essa entrega se faz por iniciativa do
conciliar essa visão misógina como o
esposo, o Cristo que deseja o encontro,
ensinamento evangélico sobre a igual
que desce à Terra para acolher a alma em
dignidade do homem e da mulher? Assim
seus braços. Há um desejo pelas partes,
se questiona Delumeau (1989, p.317). Para
uma
ele, isso se faz em Santo Agostinho
pensamento, segundo Nunes Junior (2005)
“graças a uma surpreendente distinção:
influenciou a literatura religiosa nos séculos
todo ser humano, declara ele, possui uma
XII ao XIV, período em que viveu Catarina
alma espiritual assexuada e um corpo
de Sena, e outras místicas algumas delas,
sexuado. No indivíduo masculino, o corpo
santas ou tão simplesmente religiosas ou
reflete a alma, o que não é o caso da
leigas. É também nessa época grande
mulher”. São Tomás de Aquino compartilha
florescência da escrita mística feminina.
da mesma concepção ao defender que a
vontade
pelo
encontro.
Esse
Tais como Catarina, muitas dessas
mulher foi criada imperfeita, de corpo e
místicas
deixaram
relatos
de
suas
alma, e isso justifica sua submissão.
experiências, por elas mesmas ou por meio
Em substituição ao casamento, foi
de seus confessores. “Essa expressão
oferecida a possibilidade da união mística.
apaixonada da relação com Deus, na qual
No século XIV, o Mestre Eckart propôs,
a alma busca-o, vorazmente, constitui
segundo Nunes Junior (2005, p.37), em
aquilo que ficou conhecido como amor
relação à essa união, uma transformação
místico”. (NUNES JUNIOR, 2005, p.39).
em Deus, um caminho para a conversão em
Cristo.
a
(1990, p.505), Catarina foi interlocutora de
transubstanciação no ser divino. Já no
pontífices, e a ela se atribui “a tripla
século
Claraval,
auréola, ou coroa”, além de virgem e mártir,
considerava a união mística como a
foi pregadora, colocando em suspenso as
XII,
Um São
aniquilamento,
De acordo com Chiara Frugoni
Bernardo
506
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
proibições paulinas sobre a vedação da
conotação simbólica. A refeição e a partilha
palavra às mulheres. Seus biógrafos, como
do alimento tornou-se uma metáfora da
Raimundo de Cápua e Tomás de Antonio
imagem de Cristo, ela é veículo para
de Sena, enfatizaram a importância de sua
reafirmar o pertencimento ao seu corpo –
missão
estabeleceram
tanto no sentido corpo de Deus como no
associações entre a doutrina da santa e
sentido de comunidade cristã. Incorporar-
analogias que estabeleceu com São João,
se a Cristo foi um desejo para alguns
legitimando assim seus escritos.
místicos entre os séculos XII e XVI na
profética,
Assim, nesse contexto muitas vezes
Europa cristã, dentre os quais Santa
adverso ao feminino, como alcançar o
Catarina de Sena, que embora humilde
respeito, o direito de ser considerada, e a
religiosa leiga dominicana, vivendo em
oportunidade da escolha da vida religiosa?
meio à crise do papado de Avignon (século
Como escapar do destino traçado pelo
XIV) transitou pelo mundo masculino entre
homem?
reis e papas lutando pela unificação de
A
busca
pelo
êxtase,
a
oportunidade de transcender esse corpo
Igreja
biologicamente
advogando a favor da volta do papa para
feminino
pode
ter
se
revestido nessa chance. Mas como chegar
Católica
e
pela
pacificação
Roma.
a esse estado? A negação ao sexo e a
Por
meio
da
imitação
e
a
privação do alimento parecem ter se
consequente incorporação ao corpo de
estabelecido como meios eficazes para
Cristo pelo jejum extremo, fez do sacrifício
esse intuito. O homem é aquilo que come,
uma
ou aquilo que não come, a partir de suas
sacrifícios, adoração às dores e às chagas
escolhas alimentares revela seu caráter,
do Redentor mergulhou em um universo de
sua religião e sua relação com Deus. O
martírio e sofrimento onde a rejeição ao
domínio
relaciona-se
alimento,
de
configuraram-se em uma espécie de nutrir-
da
diretamente
à
vontade experiência
si,
ao
conhecimento dos limites do próprio corpo e ao conhecimento do outro, sendo esse Outro, Deus.
vivência
o
diária.
jejum
Pela
e
a
meditação,
abstinência
se ao contrário, no alimentar-se pela falta. Entre outras atitudes de contenção e de domínio da vontade que se revelam em
O mistério da consagração e as
privações
e
flagelos
negou-se
a
se
palavras de Jesus na Última Ceia – Isto é o
alimentar, buscou privar-se ao máximo do
Meu corpo – transformou o pão em um
alimento. Dessa forma, fez da comida uma
alimento
peça fundamental para a construção do
universal
e
com
uma
forte
507
Thiago Palmeira Machado
caminho
que
a
levaria
para
Deus.
necessários que a alma tem que percorrer
Mostrando-se incapaz de comer, talvez
para que não sofra os enganos dos
tenha reconhecido a finitude de seu corpo,
sentidos. Trata-se de um esforço para
entregando-se completamente à vontade
contornar os limites que o corpo impõe e ir
do Pai.
mais além deles.
3 O CORPO IDENTIFICADO COM
Catarina leva seu corpo aos limites e
CRISTO
a
mística
a
transpassa,
o
sujeito
Tornar-se corpo de Cristo passando
desaparece e se dá uma abertura ao Outro.
por todas as provas sofrida pelo Homem
O desaparecimento do corpo prepara
das dores, eis aspiração mais sublime. A
aquilo que a experiência mística apresenta
tradução corporal da imitação de Cristo
como uma ruptura e desorganização dos
toma
limites, ruptura que faz de Catarina um
então
fenômenos:
a
forma
da
de
diversos
estigmatização
à
receptáculo
dócil
aos
arrombamentos
transverberação, passando pela inscrição
divinos e estabelece o território onde tudo
no coração e por outras marcas que são
isso irá acontecer: o corpo.
sinais de eleição. Mas somente o Criador
Atravessando as fronteiras do corpo,
da alma do e do corpo tem poder de
o místico encontra-se com Outro corpo. E
produzir tal transformação. Através do
este encontro tem como meio a ascese. O
corpo da mística, é exatamente Cristo que
ascetismo será uma atitude que Catarina
se encarna de novo para sofrer, através da
se manterá fiel, ignorante totalmente o
carne da criatura.
amor próprio e se oferecendo a Deus:
Catarina
manifesta
o
sofrimento
como caminho inevitável para a santidade. Seu corpo se identifica com Cristo ao se entregar para a morte. Neste sangrar-se, triturar-se, Catarina assume em seu corpo os significantes do Cristo Crucificado. Trata-se, para ela, de um despojamento do corpo que denota um despojamento total do amor próprio. Ao tomarmos como referência o
Diálogo,
podemos
despojamento
é
ver um
dos
que
este
caminhos
[...]
com
profundo
conhecimento
de
si,
envergonhava-se da própria imperfeição.[...] Por essa
razão
odiava-se
com
santa
justiça,
desprezava-se. [...] Dizia ' Ó eterno Pai, dirijo-me a ti para que castigues meus defeitos neste mundo. E porque, pelas minhas faltas, sou a responsável dos sofrimentos que meu próximo padece,
rogo-te
que
bondosamente
te
desagraves de mim ( 2010, p. 91)
Os discursos de Catarina asseguram que ela fez penitências de um tal modo levou seu corpo aos limites. Fez jejuns com ardor e resistência, chegou ao ponto de não mais comer. Esse desejo de não
508
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
comer é descrito como "uma invasão
CONCLUSÃO
desconhecida" ( 2010, p.92), ela aceita
Diz Emilio de Radius( 1904-1988),
como um castigo necessário, a partir daqui
"Catarina de Sena é mãe e não filha de seu
surge um binômio, o comer e o não comer,
tempo",
Catarina encontra nos jejuns, na privação
mulheres- a chamavam de mãe. Era uma
do alimento, uma forma de se alimentar ao
virgem convicta, fez voto de castidade
contrário.
ainda na infância, mas poucas mulheres
O momento em que se produz a união de Cristo com Catarina é narrado
seus
seguidores-
homens
e
possuíram como ela o sentimento de maternidade.
como um momento de lactação, onde o
Seu
pensamento
e
doutrina
bebê suga do seio 5 materno o leite e
influenciaram gerações, e neste artigo
encontra satisfação e conforto, isto é, a
procuramos
abordar
doçura da experiência mística enche sua
experiência
limite
boca e a deixa sem palavras, a satisfaz
apontamos
três
eixos
que
plenamente.
transversalmente
esta
abordagem:
Catarina ao receber a comunhão
a
mística
do
como
gozo.Assim, percorrem a
ausência, o gozo e o corpo.
(por muito tempo seu único alimento)
A
experiência
mística
é
uma
"sentia durante muitos dias, de modo
experiência inefável, como é expresso
admirável, o gosto, o sabor e o cheiro do
diversas
corpo e do sangue de Cristo" a fusão da
incapacidade de comunicar se faz carne
sienense com Cristo é tamanha que é
em Catarina e em seus esforços ante a
chamada de "esposa de sangue", pois,
impossibilidade de comunicar sem perder
pela meditação, sacrifícios, adoração às
parte da experiência. Neste caso, através
dores e às chagas do Redentor, mergulhou
da voz de Deus, Catarina conta as
em um universo de martírio e sofrimento
dificuldades da narração mística. Apesar da
onde a rejeição ao alimento, o jejum e a
dificuldade em nomear a experiência, a
abstinência
uma
sienense não deixará de expressar os
espécie de nutrir-se ao contrário, no
sentimentos pela qual transita , fará do
alimentar-se pela falta.
indizível um ensinamento e um legado de
configuraram-se
em
vezes
no
Diálogo;
essa
cultura. Podemos observar em Catarina um 5
Alusão ao peito aberto de Cristo na Cruz, este é
assinalado na obra catariana como um lugar de tranquilidade, paz e redenção.
modo de ser feminino em relação a Deus, uma
forma
de
viver
em
Deus
que
509
Thiago Palmeira Machado
ultrapassa o limites do saber e se situa no
Outro o qual o próximo representa uma
sentir
mediação.
um
gozo
sem
mediação,
que
estabelece Outro modo de linguagem,
Sua vida foi repleta de êxtase,
outra forma de significar a presença do
revelações e abstinências. Em sua cidade
divino.
natal, ganhou ainda em vida qualidades Para Catarina, o conhecimento de
referentes
à
imagem
de
uma
santa,
Deus será disposto num cenário diferente
findando por atrair religiosos e leigos assim
dos silogismos, da lógica ou filosofia. O
como
cenário que ela terá como território de sua
purificação espiritual. Exemplos como os
religiosidade será o corpo, um corpo
de Catarina de Sena, são suficientes para
ilimitado que se desorganiza em cada
nos dar uma ideia de como a piedade
experiência, um corpo que é falado por
feminina, pelos mais diferentes motivos,
Deus com uma linguagem que exclui a
foram marcantes a ponto de influenciar de
palavra e que somente é restabelecida pela
maneira
escrita.
contemporâneos. A fama de seus jejuns e
jovens
poetas
positiva,
que
buscavam
politicamente
seus
Se a escrita será um instrumento de
purificações aliados com seus êxtases e
seu cotidiano, o próximo será também sua
milagres que lhe eram atribuídos, como por
referência constante. Deus e o próximo não
exemplo, a conversão de novos fiéis, a
se diferenciam na obra da sienense. O
cura de enfermidades e a conciliação de
conhecimento do próximo é uma abertura a
problemas familiares.
alteridade e implica no conhecimento do
Referências: A BÍBLIA DE JERUSALÉM. 10.ed. Tradução Gilberto da Silva Gorgulho, et al. São Paulo: Paulus, 2001. DE SENA, Santa Catarina. O Diálogo. Tradução Frei João Alves Basílio. São Paulo: Paulus, 2010. FLORS, Juan. Historia de la Espiritulidad. Espiritualidad Católica- Espiritualidad bíblica, de los primeros siglos cristianos y de la Edad Media. Barcelona,1969. LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda, 1972-1973. 2 ed., cor. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985..
510
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
LAWERS, Michel. Santas e anoréxicas: o misticismo em questão. In: BERLIOZ, Jacques. (org.). Monges e Religiosos na Idade Média. Lisboa: Terramar, 1994. LE GOFF, Jacques. TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,2012. NUNES JUNIOR, Ario Borges. Êxtase e Clausura: sujeito místico, psicanálise e estética. São Paulo: Annablume, 2005.
511
A MULHER IDEALIZADA EM TEXTOS DE DOM DINIS E VINÍCIUS DE MORAES Valéria Santos 1 Resumo: A nossa proposta de comunicação tem com objeto de estudo o poema Cântico, de Vinícius de Moraes, considerando a influência recebida do Trovadorismo na forma e no conteúdo de sua obra. O período literário medieval reflete um estilo de vida diferente, um retrato da vida feudal da corte, expressão de um meio culto e refinado, caracterizando a produção de cantigas líricas trovadorescas, as quais, ao longo dos séculos, influenciaram a produção poética ocidental no que se refere à temática do amor. Para o desenvolvimento deste estudo, escolhemos como tema a cantiga de amor, originária da Provença, que trata da mulher idealizada e do amor cortês, sentimento convencional e platônico que consiste no culto à mulher, modelo de beleza e virtude. Vinícius de Moraes, poeta brasileiro, inspirase na temática da cantiga Quero eu en maneira de proençal, de Dom Dinis (1261-1325) no poema Cântico, retomando a concepção de amor cortês, o código de vassalagem amorosa e a cortesia cavalheiresca, ao elevar a mulher a um plano quase divino, concebendo o sentido da sua própria existência, ao ultrapassar os limites da carne e transcender a própria alma. No entanto, esta busca nunca se finda, mostrando-se presente em todo o poema, tal como na cantiga de Dom Dinis. Palavras-chave: poesia; mulher; idealização.
1
UEM
512
Valéria Santos
1.1 TROVADORISMO: O AMOR CORTÊS E A IDEALIZAÇÃO DA MULHER
Junto
com
o
cristianismo,
a
fascinação cultural do mundo antigo é o
O amor cortês é um traço marcante
maior suporte da existência do homem
da poesia a partir do final do século XI, que
medieval e a literatura trovadoresca está
consiste em dedicar em versos, o amor
largamente impregnada dessa influência.
insatisfeito (a coita, dor, sofrimento) a uma
Da
dama inacessível. Ao revelar esse amor, os
trovadoresca recebeu, sobretudo, preceitos
trovadores orientam o seu comportamento
de ordem formal e estética: a descrição dos
de acordo com o rígido código ético do
sintomas do amor, dos seus tormentos, das
amor
pelo
noites mal dormidas, da consumação lenta,
convencionalismo da vida palaciana e com
certas imagens e expressões. Os eróticos
evidentes influências da cultura clássica. O
latinos,
conceito de amor cortês pautava-se no
temperamento medieval, estão realmente
infinito e na plenitude do ser e, por isso,
na raiz do movimento medieval.
cortês,
comprometido
entrava em desacordo com o conceito de
poesia
lírica
embora
latina,
filtrados
a
poesia
através
do
Os elementos da cultura clássica
casamento, na época, realizado como um
presentes
na
negócio. Marido e mulher estabeleciam
trovadores, contudo, não seriam capazes
uma relação primordialmente material e
por si só de formarem a doutrina do amor
terrena.
cortês.
Foi
poesia
dos
necessário
primeiros
juntar-lhes
o
Essa paixão vivida pelo homem, na
princípio do amor platônico, utilizado pela
verdade, trata-se de um fingimento, produto
Igreja cristã que vê no amor uma fonte
da imaginação e inteligência e não da
inesgotável para se atingir o sumo bem, a
sensibilidade. O individualismo presente na
suma beleza.
cultura
trovadoresca
contrariava
os
É
incontestável
a
fortíssima
princípios tradicionais da Igreja, porque a
influência do idealismo cristão na moral
senhora passa a ser o objeto de adoração
trovadoresca, onde há também elementos
do poeta. Assim, a contemplação amorosa
não cristãos. Mas foi a ideia cristã que
da senhora ocupa o centro da vida do
dignificou o sentido mundano das coisas e
trovador, fazendo-o esquecer até o próprio
seres presentificando-se no trovadorismo,
Deus. Este individualismo, estas atitudes
principalmente,
libertárias, no entanto, quase não afetam a
divinizada pelos trovadores, a cantiga de
canção lírica.
amor. Dentro deste aspecto ressalta-se a
no
culto
da
mulher
influência do culto mariano sobre a poesia
513
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
trovadoresca. A Virgem cumpria o papel de
chegava-se ao êxtase e à alegria suprema,
mediadora entre o Céu e a Terra, ouvia as
concepção
súplicas dos fiéis e transmitindo-as ao
necessário que se infiltrou na ética dos
Senhor, resultando em um paralelismo
trovadores, atribuindo- lhe um caráter de
entre a atitude do cristão prostrado aos pés
inexprimível tristeza.
estoico-cristã
do
sacrifício
da Virgem e a do amador ajoelhado aos
É necessário considerar também a
pés da senhora. Na poesia, a Virgem
influência do sentimento de hierarquia
representa o modelo de beleza e de
feudal na formação da doutrina do amor
virtude.
cortês. O comportamento do trovador para
Neste culto de adoração à mulher de
com sua dona deveria ser idêntico a do
classe superior, configura-se a libertação
vassalo para com o seu senhor. Há nos
do homem medieval que, ao diviniza-la,
textos das cantigas de amor a presença da
realiza
vassalagem
um
desvio
consciente
ou
amorosa,
invenção
dos
inconsciente dos ideais da Igreja. Não há
trovadores provençais, que marcou toda a
nisso uma oposição entre o culto da mulher
produção poética lírica. Trata-se da coita
e o culto a Deus. O que ocorre é que
(dor, sofrimento) amorosa, a paixão vivida
humanizando Deus e divinizando a mulher
pelo homem que está a serviço de uma
fica estabelecido um mesmo plano de
dama. O trovador se compraz em viver de
adoração. Há que se considerar também a
um amor insatisfeito, ocasionado pela
questão do interesse pela riqueza da
incorrespondência da mulher, e em analisar
senhora, casada e poderosa, motivos
nos seus pormenores de causa e efeito o
sociais
seu drama passional. A mulher torna-se,
e
financeiros
e
não
motivos
anticatólicos.
assim, a dona inacessível às solicitações
Foi no cristianismo que a cultura trovadoresca
buscou
“o
seu
método
do trovador amante. As cantigas de amor refletem
um
estilo
de
vida
diferente,
psicológico, o gosto da análise interior, o
constituem um retrato da vida feudal da
fino tom das idealizações e por vezes a
corte,
veemência da sua emoção” (LAPA, 1977,
refinado,
p.26).
convencionalismo da vida palaciana e com
Para
os
trovadores
o
caráter
doloroso e interminável da experiência
expressão
de
um
meio
comprometido
culto, pelo
evidentes influxos da cultura clássica.
amorosa constituía-se em um estágio
As influências diversas recebidas
educativo, período de longa provação.
pela cultura trovadoresca garantem-lhes
Somente
um caráter paradoxal e contraditório. Essa
após
penosos
sacrifícios
514
Valéria Santos
dualidade consiste na coexistência de
a alma. Na verdade, a concepção de amor
tendências opostas como “a exaltação da
que Vinícius de Moraes revela aproxima-se
personalidade e proibição das demasias
de uma concepção “romântica” de amor.
(mesura), amor platônico e voluptuosidade
Concepção
goliardesca, delírio ascético e racionalismo
sentimento de vassalagem amorosa, da
burguês” (LAPA, 1977, p.26).
sublimação da mulher como modelo de
1.1 VINÍCIUS, UM TROVADOR
que
se
identifica
com
o
beleza e virtude, o qual, no século XII,
A obra de Vinícius de Moraes é marcada por dois polos distintos que se
recebeu o nome de “amor cortês”. Devido
a
estes
aspectos
que
entrecruzam, o da sensualidade e do
envolvem a concepção de amor cortês,
desejo de transcendência. Essas duas
para o poeta brasileiro, a mulher nunca é
polaridades geram um conflito marcante,
vista como um corpo que apenas oferece
principalmente na primeira fase de sua
prazer. Ao contrário, há a sua divinização e
produção poética. A não resolução desse
glorificação.
conflito gera, entretanto, um “enervamento”
glorificada é a que representa o sentido da
na segunda parte de sua obra o que a
sua própria existência, a que o poeta tanto
torna mais significativa. O desejo de
busca e deve ultrapassar os limites da
transcendência
primeiro
carne e transcender a própria alma. Busca
momento, ainda se mostra presente na
que nunca se finda e se mostra presente
segunda parte de sua obra. O amor se
em seus versos do poema Cântico.
revelado,
num
apresenta como um sentimento que traz a
A
mulher
divinizada
e
A plenitude física na poesia de
dor e o sofrimento, porque há a busca da
Vinícius
transcendência através dele. Da mesma
“indesejável”, porque contraria a concepção
forma que o homem não consegue conciliar
do “amor cortês”, considerando a temática
“corpo-alma”,
do conflito entre a transcendência e a
também
não
obtém
o
equilíbrio na relação “homem-mulher”.
revela-se
“impossível”
ou
sensualidade feminina presente em seus
O poeta não conseguiu dissociar os
textos. E se algumas vezes desmitifica a
aspectos religioso e profano da natureza do
experiência amorosa, não dessacraliza,
amor, mas ele não se apresenta como
porém, o amor. Ao contrário, quanto mais o
poeta de crises religiosas. A religiosidade
poeta se entrega aos sentimentos, maior é
presente em sua obra não é aquela de
a angústia de purificação.
quem se preocupa com o Inferno, mas sim,
1.1LEITURA COMPARATIVA
de quem busca o equilíbrio entre o corpo e
515
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
A cantiga Quer’eu en maneira de
proençal,
de
D.
Dinis
permite-nos
têm
em
comum
características
estabelecer uma leitura comparativa com o
presentes
em
poema Cântico de Vinícius de Moraes,
contemporâneo.
da
para
identificar
poesia
trechos
as
trovadoresca
desse
poema
levantando os aspectos que os dois textos Quer’eu en maneira de proençal
No calmo peito teu. Tu és a estrela
fazer agora un cantar d’amor
Sem nome, és a namorada, és a cantiga
e querrei muit’i loar mha senhor
Do amor, és luz, és lírio, namorada!
a que prez nen fremosura non fal
Tu és todo o esplendor, o último claustro
nen bondade, e mais vos direi en:
Da elegia sem fim, anjo! mendiga
tanto a fez Deus comprida de ben
Do triste verso meu. Ah, fosses nunca
que mais que todas las do mundo val.
Minha, fosses a idéia, o sentimento Em mim, fosses a aurora, o céu da aurora
Ca mha senhor quiso Deus fazer tal
Ausente, amiga, eu não te perderia!
quando a fez, que a fez sabedor
Amada! onde te deixas, onde vagas
de todos o ben e de mui gran valor
Entre as vagas flores? e por que dormes
e con tod(o) est’é mui comunal,
Entre os vagos rumores do mar? Tu
ali u deve; er deu-lhi bon sen
Primeira, última, trágica, esquecida
e des i non lhi fez pouco de bem,
De mim! És linda, és alta! és sorridente
quando non quis que lh’outra foss’igual.
És como o verde do trigal maduro
Ca en mha senhor nunca Deus pôs mal
Teus olhos têm a cor do firmamento
mais pôs i prez e beldad’e loor
Céu castanho da tarde - são teus olhos!
e falar mui ben e riir melhor
Teu passo arrasta a doce poesia
que outra molher, des i é leal
Do amor! prende o poema em forma e cor
muit’,e por esto non sei oj’eu quen
No espaço; para o alto do poente
possa compridamente no seu ben
És o levante, és o Sol! eu sou o gira
falar, ca non-á, tra-lo seu ben, al.
O gira, o girassol! És a soberba
(D. Denis, CV 123, CBN 485)
Também, a jovem rosa purpurina És rápida também, como a andorinha!
CÂNTICO
Doçura! lisa e murmurante ... a água
Não, tu não és um sonho, és a existência
Que corre no chão morno da montanha
Tens carne, tens fadiga e tens pudor
És tu; tens muita emoção; o pássaro
516
Valéria Santos
Do trópico inventou teu meigo nome
De ti, sou teu cantor humilde e terno
Duas vezes, de súbito encantado!
Teu silêncio, teu trêmulo sossego
Dona do meu amor! sede constante
Triste, onde se arrastam nostalgias
Do meu corpo de home! melodia
Melancólicas, ah, tão melancólicas...
Da minha poesia extraordinária!
Amiga, entra de súbito, pergunta
Por
que
me
arrastas?
Por
que
me
Por mim, se eu continuo a amar-te; ri
fascinas?
Esse riso que é tosse de ternura
Por que me ensinas a morrer? teu sonho
Carrega-me em teu seio, louca! sinto
Me leva o verso à sombra e à claridade.
A infância em teu amor! cresçamos juntos
Sou teu irmão, és minha irmã; padeço Como se fora agora, e sempre; demos
Contra esse teu langor; és o penúltimo
Nomes graves às coisas impossíveis
Lirismo! encosta a tua face fresca
Recriemos a mágica do sonho
Sobre o meu peito nu, ouves? é cedo
Lânguida! ah, que o destino nada pode Quanto mais tarde for, mais cedo! a calma É o último suspiro da poesia
título, pretende um canto, um hino de
O mar é nosso, a rosa tem seu nome
louvor à amada. Devemos esclarecer que
E recente mais pura ao seu chamado.
“cântico” se destina cantar uma divindade,
Julieta! Carlota! Beatriz!
no poema, a mulher amada. Desta forma
Oh, deixa-me brincar, choro, e desse
cria-se
pranto
idealização da mulher, um dos códigos do
Que se não brinco, choro, e desse pranto
amor cortês, a idealização poética da dona
Desse pranto sem dor, que é o único amigo
como modelo de beleza e virtude, segundo
Das horas más em que não estás comigo.
os moldes da Provença.
(MORAIS, 1980, p.200)
a
ambientação
poética
de
Na cantiga trovadoresca, a voz lírica louva as qualidades da senhora nas
Na primeira estrofe da cantiga de D. Dinis,
o
trovador
evidencia
a
sua
proposição de fazer um canto de amor em
palavras
prez
(caráter),
fremosura,
bondade, beldad’e loor, comprida de ben (perfeita)/bon
sen
(bom
senso),
leal,
Quer’eu em
qualidades físicas e morais da senhora.
maneira provençal/ fazer agora un cantar
Sua dignidade, virtudes e atributos tornam-
d’amor/ e querrei louvar muit’i loar mia
na superior a qualquer outra: que mais que
senhor. No poema de Vinícius, desde o
todas las do mundo val (vale mais que
louvor
de
sua
senhora:
517
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
todas as mulheres do mundo) e, assim o
poeta, verdadeira concretização poética da
plano a que pertence a senhora é o da
mulher.
mais alta perfeição. Do mesmo modo, no
Nos dois primeiros versos do texto “Não, tu
poema Cântico, estará em primeiro plano a
não és um sonho, és a existência / Tens
figura
ser
carne, tens fadiga e tens pudor” há uma
cantada: Não, tu não és um sonho, és a
individualização que vai sendo quebrada
existência. O eu lírico estabelece uma
até chegar à generalização. O tu que
oposição entre sonho e existência. Nega
sugere o individual é generalizado, quando
que tu fosse sonho e afirma a sua
se torna a estrela/Sem nome. Embora haja
existência e através de um processo de
o artigo definido antes de “estrela”, a
adjetivação passa a definir o tu nos verbos
expressão sem nome que caracteriza a
ter e ser:
estrela é mais forte, sendo intensificada na
da
amada
escolhida
para
“(...) Tu és a estrela Sem nome, és a namorada, és a cantiga Do amor, és luz, és lírio, namorada!
continuidade dos versos que falam de uma namorada. Como nas cantigas de amor, o
Tu és todo o esplendor, o último claustro
eu lírico não identifica a sua amada, ela é
Da elegia sem fim, anjo! mendiga
apenas a cantiga/Do amor.
Do triste verso meu.”
O uso do verbo ter garante as características que o ser humano traz em si como carne, fadiga e pudor. Através do ser, revela-se
a
essência
de
tu:
estrela,
namorada, cantiga, luz, lírio, esplendor, claustro, anjo e mendiga. Embora o poeta tenha afirmado a existência e negado o
sonho, ao mostrar a essência de “tu” composta por elementos não pertencentes à realidade concreta, contradizem-se. Ela é a namorada distante uma vez que também é estrela/Sem nome, é a cantiga /Do amor, que o poeta canta a luz que a envolve, e nunca é tocada, lírio e esplendor. Por pertencer a um ideal e estar distante, ela se torna motivo de dor e sofrimento para o
Durante o processo de construção do texto depreendemos que, ao usar o verbo ter, o poeta construiu uma espécie de fórmula, a partir do pronome “tu”, que reúne todas qualidades do ser amado, tal como registram os versos da cantiga trovadoresca
que
centraliza
na
“mha
senhor” todas as qualidades incomparáveis as de outras mulheres comuns: tanto a fez
Deus comprida de ben/ que mais que todas las do mundo val (tanto que Deus a fez perfeita/ que ela vale mais que todas [as mulheres]
do
mundo).
Tal
Cântico,
trovadores,
em
transforma
a
realidade,
materializando-a
mulher
do
o
como eu
os lírico
sonho em
em seus
versos.
518
Valéria Santos
Confirmando a figura feminina como um ideal o poeta revela seu sentimento:
platônico. A amada arrasta a poesia o que é mais forte que trazer, a poesia vem com ela de qualquer forma e prende o poema
“(...) Ah, fosses nunca Minha, fosses a ideia, o sentimento
em forma e cor. É a repetição da ideia de
Em mim, fosses a aurora,o céu da aurora Ausente, amiga, eu não te perderia!”
que a beleza feminina se concretiza nos
A amada corresponde a um ideal de
versos do poema. Responsável pela poesia
mulher, a “ideia”, o sentimento nele e não
do amor ela configura o poema no espaço,
dele, conceito platônico de mulher.
céu ou papel. Ela é o próprio poema, tanto
A voz lírica da cantiga de D. Dinis
na forma quanto nas ideias e na beleza.
ressalta da personalidade da senhora mais
A ideia vai sendo reafirmada: “No
as qualidades morais do que físicas, nos
espaço; para o alto do poente/ És o
versos. O caráter, a beleza, o louvor, falar
levante, és o Sol! eu sou o gira/ O gira, o
bem, rir melhor e a lealdade , atributos que
girassol.” A mulher como o sol que
não se comparam aos de outra mulher
concretiza o dia, concretiza a poesia. O
comum.
poeta está para a mulher como o girassol
mais pôs i prez e beldade’e loor
está para o sol, a seguir a sua passagem.
e falar mui ben, e riir melhor
Ao falar da amada, o eu lírico continua a
que outra molher; desi é leal
No poema de Vinícius, o processo de busca pelo ideal feminino vai se desenvolvendo por todo o texto, por um processo de exaltação dos atributos físicos, da beleza da amada, tal como na cantiga de amor:
elevá-la, cada vez mais longe só lhe resta admirá-la à distância seguindo, sempre, a trajetória dela. Concluímos que a mulher da cantiga de amor é elevada a um plano superior, inatingível. Sua posição de senhora da
(...)
corte, expressão de um meio culto, refinado
És linda, és alta! és sorridente
e comprometido pelo convencionalismo da
És como o verde do trigal maduro
vida palaciana, torna-se a dama incessível
Teus olhos têm a cor do firmamento
às
Céu castanho da tarde - são teus olhos!”
A
amada
poesia
trovador
amante,
atingindo, muitas vezes, a abstração, na
relacionadas, ela traz a doce poesia? Do
maioria dos textos. Já no texto de Vinicius,
amor! Prende o poema em forma e cor,
o verso: Dona do meu amor! equivale a
verso nos remete, mais uma vez, à cantiga
“Senhora do meu amor”, forma usada
de
mulher
também pelos trovadores no tratamento da
inacessível e o amor convencional e
amada, colocando-a num plano superior
drama
a
do
estão
amor,
e
solicitações
passional,
519
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
inatingível e centro da vida do amante. O
frustração da busca do amor ideal que é
texto demonstra também certa inclinação
compensada pelo fazer poético, brincar
ao platonismo amoroso, quando o eu lírico
equivale a fazer poesia. Expressa o desejo
se posiciona como servo de sua dona,
de “brincar”, ou seja, escrever sobre o seu
rememorando
amor, já que não lhe resta mais nada, nem
a
vassalagem
amorosa
medieval.
mesmo o amor real.
O poeta coloca-se também como cantor da mulher que desperta o amor fraterno e mantém sua postura submissa. Ele sofre não por ela, mas dela: “padeço/ De
ti”,
demonstrando
Desse pranto sem dor, que é o único amigo Das horas más em que não estás comigo.
A postura servil do trovador ao elaborar uma cantiga para exaltar a mulher
consciência de não sofrer por uma mulher
amada dentro da convenção do amor
real, mas sofrer por algo que existe nele,
cortês, pelo exposto, também se verifica no
que pertence à sua fantasia, à figura ideal
poema Cântico, quando o eu lírico também
de uma mulher, é o sofrimento que se
busca um ideal de amor e de mulher, que
transforma
não se confunde com o amor carnal. Essa
poesia,
ele
Que se não brinco, choro, e desse pranto
tem
em
que
Oh, deixe-me brincar, que te amo tanto
verdadeiras
nostalgias melancólicas. No final, o eu lírico passa a revelar todo o seu amor e sofrimento, além da
busca constante causa sofrimento e dor ao poeta, para aplacá-las compõe seus versos e, neles, a mulher e o amor se confundem.
Referências: BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 3 ed. São Paulo: Cultrix, 1981. CUNHA, Helena Parente. VINÍCIUS de Moraes, o Eterno Trovador. Revista Brasileira de
Língua e Literatura – Sociedade Brasileira de Língua e Literatura, página 58, 1983, nº 11. D. DINIS – CANCIONEIRO. Organização, prefácio e notas de Nuno Júdice. Lisboa: Teorema, 1998. LAPA, M. Rodrigues. Lições de Literatura Portuguesa. 9 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1977. FERREIRA. David Mourão in Vinicius de Moraes Poesia Completa e Prosa. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1980. MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 22 ed. São Paulo: Cultrix, 1986.
520
Valéria Santos
MORAES, Vinícius, Vinícius de Moraes Poesia Completa e Prosa. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1980.
521
DO CONVÍVIO À MONARQUIA: CONSTRUÇÃO DO IDEÁRIO DO NOBRE MEDIEVAL Viviane de Oliveira 1 Terezinha Oliveira 2 (orientadora) RESUMO: A proposta do trabalho é evidenciar uma perspectiva do conhecimento medieval a partir da leitura dos tratados Convívio e Monarquia, escritas por Dante Alighieri. O recorte histórico se refere aos séculos XIII-XIV, na Europa Ocidental, momento o qual a nobreza e a educação passaram por uma série de transformações, oriundas, na sua maioria, do crescimento do meio urbano. Essas mudanças provenientes do ambiente urbano fortaleceram o ideal de liberdade e da educação religiosa e, indubitavelmente, influenciaram o surgimento das primeiras universidades. A metodologia utilizada para analisar as obras Convívio e Monarquia é na perspectiva da História Social, apresentada por Marc Bloch, compreendendo assim que o conceito de nobre proposto por Dante Alighieri e a sua finalidade é resultado de diversos fatores, como o contexto e a singularidade do florentino.Dante Alighieri utiliza dos conhecimentos clássicos, como os princípios aristotélicos e erradica a teoria dualista de seu tempo para traçar a perfeição de nobreza por meio do conhecimento. Posterior a essa análise, o poeta erradica esse ideal de nobre à uma nova organização social, propondo a separação dos poderes eclesiásticos e temporais. Portanto, a partir da leitura é possível analisar os embates em torno da elite medieval e as transformações do conhecimento ao longo do tempo, de forma que nos permite questionar os próprios conceito de Homem e Conhecimento que aderimos até o presente momento. Palavras-chave:Dante; Nobre; Conhecimento Medieval.
1UEM 2DFE/PPE/UEM
522
Viviane de Oliveira Introdução
Baixa Idade Média. Franco Jr. o define
O objetivo desse trabalho é evidenciar uma
perspectiva
medieval
a
do
partir
como: Um conservador, alguém que construiu uma utopia
conhecimento
da
leitura
baseada no passado e que sua nostalgia a
das
idealizava. Foi ainda um patriota, apaixonado por
obrasConvívio e Monarquia, escritas por
sua Florença e tendo mesmo forte senso de italianidade. Foi um Grande sábio, conhecedor de
Dante Alighieri. Para isso, apresentamos
quase tudo que sua época possuía. Foi um
uma breve contextualização histórica e
exaltado amante, que cantou um símbolo de
fazemos uma análise comparativa das
beleza
nobre e filósofo para o poeta florentino. Dante Alighieri nasceu em Florença, em 1265. Originário de uma família de baixa nobreza, porém, não abastados financeiramente. Este fato foi crucial para a permanência dos Alighieri em Florença após o insucesso de Monaparti, quando os Guelfos
florentinos
perderam
para
os
Gibelinos de Arezzo, em 1260. Dante casou-se
por
volta
de
1285
com
GemmaDonati, por meio de um contrato matrimonial
estipulado
por
seu
pai
Alighiero, em 1277. Porém, amou e se inspirou em Beatriz, escrevendo Vida Nova, em 1292. Esta obra era um conjunto de prosas e poesias. Após a morte da amada, Dante mergulhou seus escritos na filosofia e posteriormente na política em obras como as que serão comparadas nesse trabalho. Primeiramente
é
necessário
evidenciar que o autor da obra, Dante Alighieri, foi um importante intelectual da
virtude.
Contudo
nenhuma
essas
fórmulas bastam. (FRANCO JR, 2000, p. 121).
obras. A partir desse estudo podemos constar o desenvolvimento do conceito de
e
É incontestável a importância do autor enquanto político, filósofo e poeta. O que Franco Jr. (2000) evidencia em sua obra são as diversas análises que podem ser feitas a partir de uma perspectiva analítica do poeta. Assim, o autor divide seu livro em diversos “perfis” de Dante Alighieri: O florentino, O exilado, O enciclopédico, O esotérico, O amante e O místico. Franco Jr. (2000, p. 121) conclui que nenhuma dessas análises definem o poeta, pois limitar o poeta
florentino
característica
é
a
uma
limitar
determinada “alguém
que
buscava romper os limites. Dante foi o poeta do Absoluto”. Dentro dessa perspectiva analisamos os fatos que levaram Dante a ser um importante intelectual, homem de seu tempo. Segundo Franco Jr. (2000) pouco se sabe a respeito da formação intelectual do
pensador.
Porém,
certamente
ele
cumpriu os estágios básicos da educação medieval, trivium e quadrivium. A formação intelectual de Dante Alighieri pode ser
523
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
considerada autônoma, apesar de não
divisão do poder papal e real, tornou-se
concluir nenhuma academia, o poeta foi
inimigo do Papa Bonifácio VIII, que tinha a
influenciado pelas ordens mendicantes de
pretensão de ocupar Florença. Assim,
Florença,
quando
conhecedor
tornando-se do
método
um
preciso
os
Guelfos
Negros,
os
que
escolástico,
apoiavam o Papa, venceram, Dante foi
procedimento indispensável no ensino das
exilado de Florença. O exílio de Dante
universidades medievais e fundamental
pode ser considerado como um “divisor de
para a escrita de tratados políticos. Franco
águas” em sua vida, tendo sua produção
Jr. (2000) destaca ainda o quão foram
literária impulsionada e escrevendo obras
importantes os incentivos literários de
como a monumental Divina Comédia.
Guido Cavalcanti e as lições que o poeta
Conforme
recebeu de BrunetoLatini, por volta de
extremando pós o exílio sua condenação
1280.
também, até que em 1315, Dante é
Antes de ter se destacado pela sua
a
posição
política
vai
se
considerado herege.
produção literária, Dante obteve destaque
O século XIII, o qual viveu Dante
pela atuação política na cidade de Florença
Alighieri, foi marcado por um período de
(até ser condenado ao exílio em 1302). O
transformação na Europa Ocidental, no
contato de Dante Alighieri com a vida
qual o feudalismo dava mostras de seus
pública se iniciou quando serviu nas
limites
guerras entre as cidades da Península
ascensão
Itálica. Seu contanto mais relevante dentro
Franco Jr. (1986). Foi entre os séculos XII
da política florentina quando participou do
e o XIII que surgiram intensas atividades
conselho especial do Povo e foi membro do
econômicas e intelectuais, um aumento
Conselho dos Cem 3.
demográfico
O envolvimento político de Dante
e,
expansão
concomitante, das
cidades,
acelerado, territorial
registrava-se como
com e
um
aponta
marcante grande
acarretou-lhe vários problemas. Segundo
deslocamento de pessoas e do trabalho, do
Orlandi (1972), ao tomar partido pelos
mundo rural para urbano.
Guelfos Brancos, que apoiavam a tese de
Le Goff (2007) considera o século XIII como o apogeu do Ocidente medieval, pois
3“Concelho
de cem membros com poderes consultivos,
para ele é quando ocorre a ‘urbanização’,
por uma Assembleia Popular que se reunia quatro vezes
trazendo consigo várias transformações
ao ano para confirmar os atos dos cônsules, aprovar os
sociais, econômicas e culturais, inclusive
tratados concluídos, definir funções de cada funcionário
na educação da época, com a criação de
comunal.” (FRANCO JR, 2000, p.20)
524
Viviane de Oliveira escolas urbanas. Neste movimento de
afetou, diretamente, a vida dos florentinos,
urbanização, observa-se a constituição de
especialmente a da família Alighieri.
cidades com vários perfis como as Cidades
Na Toscana essa disputa foi marcada
episcopais, Cidades “grandes”, As Capitais
por dois momentos: Primeiro em 1260
e as Cidades-estados, como é o caso da
quando os gibelinos obtiveram a vitória
Península Itálica.As Cidades-estados, ou
decisiva em Montaperti e as principais
também
se
famílias guelfas foram exiladas, gerando
crescimento
uma profunda crise na estrutura política
demográfico e o fortalecimento econômico
florentina. O segundo momento foi em
das cidades italianas, que levaram sua
1266, em Benevento, com a recuperação
população a se rebelar contra as antigas
da autoridade guelfa e o fim das tropas
autoridades locais. Nessa luta travada
gibelinas. Lewis (2002) ressalta ainda que
pelos habitantes das cidades contra os
em consequência de algumas tentativas de
seus senhores, as comunas conseguiram,
reestabelecer o poder gibelino após a
desde o final do século XI, o direito de
vitória guelfa em Benevento, que Dante
eleger seus próprios dirigentes.
Alighieri foi à batalha de Arezzo em 1289
chamadas
desenvolveram
É
nesse
de
devido
cenário
Comunas, ao
de
grandes
para conter as forças rivais. Podemos
transformações que se encontra Florença,
constatar que se inicia dentro dessas
a tão amada cidade de Dante e é nela
disputas políticas entre dois partidos a vida
também que o autor participa das grandes
ativa de Dante Aliguieri na política de
disputas travadas entre os poderes Papais
Florença, que resultaria em seu exílio.
e os Imperiais. Segundo Franco Jr. (2000),
Além dos embates políticos como o da
desde o século XI, as características
formação
de
dois
grandes
‘partidos’,
papistas dominaram Florença. Segundo o
guelfos e gibelinos, que marcaria Florença
autor, um dos fatos mais marcantes na
por muito tempo, consequentemente, a
história de Florença no período, em tela, foi
vida de Dante Alighieri. Outro fator é o
à famosa disputa entre o Papa (Gregório
marcante desenvolvimento dos centros de
VII) e o imperador (Henrique IV). Nesta
comércio florentino, segundo Franco Jr.
disputa, a condessa florentina Matilde
(2000), quase toda nobreza Florentina era
tomou partido pelo Papa, cristalizando a
de origem feudal, mas à medida que os
posição papista, depois denominada de
comerciantes iam prosperando, a nobreza
Guelfos. Esse posicionamento da condessa
ia perdendo os seus poderes, o comércio
525
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
passou a tomar controle do econômico
na obra Convívio que o poeta evidencia o
florentino.
conceito de intelectual, para ele intelectual
Em 1293, uma nova legislação foi
ou
filósofo
seria
aquele
ligado
aos
imposta pondo fim aos privilégios da
conhecimentos clássicos, um erudito e um
nobreza. Com a Ordenação da Justiça as
nobre, pois essas eram as características
famílias nobres foram excluídas dos cargos
necessárias para ordenar o mundo, ao
públicos e a participação política passou a
menos o de Dante.
ser condicionada à inscrição em uma
Do Convívio à Monarquia:
corporação. Deste modo, segundo Orlandi
O que Dante propõeno Convívio é a
(1972) Dante filiou-se à Corporação dos
utilização dos conhecimentos clássicos,
Boticários para participar da vida ativa da
como os princípios aristotélicos para traçar
cidade.
e
a perfeição de nobreza por meio do saber,
ser
ou seja, a partir da leitura do Convívio é
governada por muitos comerciantes. Isso
possível analisar que para Dante Alighieri o
se torna relevante para nossa pesquisa
conhecimento seria a virtude capaz de
porque a urbanização é um dos grandes
ordenar o mundo. A partir dessa proposta,
motores
analisamos os embates em torno da elite
Essa
legitimava
o
legislação
explicitava
fato
Florença
para
as
de
transformações
na
educação medieval.
medieval e do conhecimento, durante os
Segundo Le Goff (2003), o intelectual
séculos XIII e XIV, momento o qual a
da Idade Media nasceu junto com a
nobreza e a educação passarão por uma
urbanização
O
série de transformações, que partem do:
professor, erudito intelectual, só apareceu
crescente meio urbano fortalecendo o ideal
com o surgimento das cidades.
de liberdade e da educação religiosa até a
na
Europa
Ocidental.
Um homem cujo ofício é escrever ou ensinar, e de preferência as duas coisas a um só tempo, um homem que, profissionalmente, tem uma atividade
formação das primeiras universidades. Como
considerado
anteriormente,
de professor e de erudito, em resumo, um
Dante Alighieri é um homem de seu próprio
intelectual – esse homem só aparecerá com as
tempo. Portanto, a obra Convívio é um
cidades. (LE GOFF, 2003, p. 23)
Mas para compreender o que é o intelectual diferenciar
medieval,
é
a ideia de um
necessário historiador
contemporâneo para com a ideia de Dante Alighieri, um homem do século XII/XIII. É
reflexo da realidade e da necessidade, percebida pelo poeta, no contexto do século XIII e XIV. Essa obra expressa a ideia de intelectual e saber que se disseminava na Europa ocidental. Para entender
esses
conceitos,
o
poeta
526
Viviane de Oliveira Florentino vai diferenciar o Aristocrata do
VII, 2). Podemos compreender que a
verdadeiro Nobre. De acordo com Dante, a
análise do poeta para razão distancia o
aristocracia
verdadeira
homem dos seus sentidos, aproximando a
nobreza se for educada segundo os
ideia à corrente dualista, onde se tem o
parâmetros da filosofia aristotélica.
homem dividido em alma e corpo. Assim,
só
alcança
a
O Convívio pode ser considerado uma
como uma forte crítica, Dante Alighieri
obra inacabada, pois, como o próprio autor
acredita que os homens vivem mais
afirma, foram previsto quinze tratados. A
segundo os sentidos do que segundo a
escrita fora interrompida depois de se
razão.
concluir o quarto tratado. A causa dessa
Quanto a temporalidade, segundo o
interrupção provavelmente está ligada ao
poeta o pensamento somente se dá
início da produção do tratado Monarquia,
enquanto hábito, o ser humano não pode
visto que a ideia de caráter providencial do
estar
Império Romano em sua legitimidade da
contemplação. Entendido em um sentido
autoridade
a
aristotélico o hábito não está enquanto uma
restauração da instituição temporal para a
disposição, mas uma qualidade da alma
Itália,
humana, que deseja o conhecimento.
imperial,
animada
propondo
com
a
presença
do
o
tempo
Imperador Henrique VII que atravessava a
Podemos
península, já é esboçada ao longo do
considerações
tratado IV no Convívio.
essencialmente
Quando analisamos as investigações realizadas
por
a
que
estado
partir o
da
dessas
poeta
influenciado
é pelo
pensamento medieval. A obra é desenvolvida de forma
evidenciados:
a
metafórica, Dante Alighieri convida o leitor
temporalidade.
Em
a se sentar para um banquete onde ele
primeiro lugar, a defesa da razão surge
elenca aqueles que têm a capacidade de
como do seu pensamento clamado como
se alimentar junto dele. O alimento desse
filosófico. Dante escreve “quando se diz
banquete é o conhecimento filosófico, a
que o homem vive, deve se entender que o
sabedoria, sendo este representado pelas
homem usa a razão. (Conv. II, VII, 2). E
canções do poeta que iniciam cada um dos
depois, citando Boécio acrescenta: “quem
quatro
se desvia da razão e usa somente os
alimento, o poeta trás também o pão, ou
sentidos não vive como homem, mas como
seja, os comentários do poeta que visam
um animal". Vive como um asno.” (Conv. II,
um esclarecimento das canções.
são
racionalidade
e
a
Alighieri,
afirmar,
no
dois
elementos
Dante
todo
tratados.
Acompanhando
esse
527
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Uma das questões, que segundo
qual
o
homem
se
desenvolveu.
É
Dante Alighieri, levaram o desenvolvimento
necessário existir condições de ócio para o
inicial da obra é quanto o conceito de
desenvolvimento
filósofo e filosofia: Quem é o filosofo
conhecimento.
desse
verdadeiro
verdadeiro e o que é a filosofia? Dante
O segundo tratado se inicia com
Alighieri não responde diretamente essas
Dante Alighieri apresentando o ‘prato’ do
perguntas. Para ele todo homem pode ser
banquete ao seu leitor. Ou seja, antes
genericamente chamado de filósofo, pois
mesmo de apresentar suas ideias centrais,
em todos se encontra o desejo de saber
o poeta explica como o tratado deve ser
(Conv. III, XI, 6). Mas essa posição aceita
lido e interpretado. Para Dante Alighieri
no mundo intelectual da época parece não
toda interpretação deve considerar quatro
satisfazer o próprio Dante por completo.
sentidos:
Por isso ele define: O homem não recebe o
anagogico (Conv. II, I 2-15).
literal,
alegórico,
moral
e
nome de filosofo por ter amor ao saber,
O que se deve observar na exposição
quando assim, a filosofia só se encontra ali
de Dante Alighieri é que os quatro sentidos
quase que por acaso (Conv. III, XI, 7-10). A
podem ser considerados como diferentes
Verdadeira filosofia é engrenada pela
níveis de interpretação de um texto. Dessa
honestidade e bondade, com reto desejo e
forma, ao lermos a obra Convívio, como um
reta razão. (Conv. III, XI, 11)
todo,
Como já exposto o Convívio é dividido
compreendemos
discurso
do
poeta.
o
método
Há
um
do claro
em quatro tratados. O Primeiro tratado
desenvolvimento da ideia do autor em
justifica o porquê da obra, seu objetivo e a
diferentes
escolha da língua toscana e não a latim.
retórica, dando-as como base ao seu leitor
Assim,
antes de apresentar sua principal ideia
Dante
Alighieri
restringe
o
conhecimento que leva a perfeição a um seleto
grupo
divinamente,
de
homens
para
designados,
possuir
esses
níveis
de
interpretação
e
centrada no último tratado. No terceiro tratado Dante Alighieri apresenta
uma
exaltação
à
filosofia,
conhecimentos. Para isso ele aponta as
personificada pela amada do poeta, uma
causas de tal restrição. A primeira causa
dama nobre. Explica como nasceu o seu
seria a imperfeição do homem, tanto de
amor pela filosofia e por que é legítimo que
corpo quanto de alma. Outra condição,
esse amor supere qualquer outra forma de
segundo
amor, referindo-se principalmente ao amor
o
poeta,
para
adquirir
o
conhecimento está relacionada ao meio no
carnal
existente
na
personificação
528
de
Viviane de Oliveira Beatriz. O florentino analisa a ideia de intelecto e a chama de mente. Nela, Dante distingue as virtudes do conhecimento e indica que uma que corresponde à alma e a outra à razão. Diferente de muitos estudiosos, do período, o poeta não define o
caminho
para
a
divindade
pelo
conhecimento simplesmente. Para ele, o conhecimento é um dom divino que deve ser utilizado pelo governante ou pelo segmento
dominante
para
conduzir
a
humanidade. Para Bombassaro (2004) essa obra surge como uma defesa da razão. Defesa essa que Dante Alighieri coloca como o último grau de perfeição da alma: “saber que reside nossa suprema felicidade, todos somos por natureza levados a nutrir o desejo dele” (Conv. I, I, 1).Para o autor Dante separa o mundo da razão do mundo sensível e o acesso ao conhecimento filosófico só se conquista por meio do intelecto resistindo ao mundo dos sentidos. O quarto tratado se refere ao real significado da nobreza. O autor critica a nobreza florentina enquanto fundamentada pela
riqueza
herdada
por
seus
antepassados: Procedo dizendo que as riquezas, como o outro
entende-se aqui a degeneração, a qual se opõe à nobreza. (Conv. IV, VIII, 5-6).
Para
o
autor
a
virtude
do
conhecimento é o que legitimaria o nobre. Ainda nesse tratado, o poeta argumenta e apresenta o real papel do nobre com condição primordial individual, de origem divina e que se manifesta por meio de um comportamento virtuoso que conduziria para a verdadeira felicidade. No tratado IV, Dante Alighieri afirma sentir-se frustrado pela incapacidade de resolver uma questão metafísica e busca refúgio no âmbito da ética, e dentro desta, uma questão muito concreta, o conceito de nobreza. Para resolver essa questão, Dante expõem a existência de duas grandes questões: a primeira é a questão da nobreza; a segunda a legitimidade do império. Porém, ambas as questões partem da premissa que todas as atividades humanas relacionadas ao saber estão destinadas aos respectivos homens, tendo base nessas ideias a partir o maior filósofo, Aristóteles. Essas questões que permeiam o tratado IV da obra Convívio são os ‘alicerces’
do
tratado
que
seria
posteriormente escrito por Dante Alighieri,
acreditava, não podem conferir a nobreza. E para
aMonarquia. Essa obra foi escrito em latim,
mostrar a grande distância que as separa, afirmo
diferentemente
que as riquezas não podem tirá-la de quem a possui. Além do mais, não podem conferi-la, uma vez que são naturalmente vis e, por causa de sua
de
outras
que
foram
escritas em italiano. Esse fato é relevante, pois permite perceber o público alvo de
vileza, são contrárias à nobreza. Por vileza
529
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo era encarregado pela Providência de guias a alma
Dante Alighieri: as pessoas do segmento
cristã
dominante, especialmente o alto clero,
também era reconhecido como a língua universal, ou seja, Dante dirigia essa obra para o setor mais alto do século XIII e para os
intelectuais,
universal
uma
propondo monarquia,
na
língua também,
universal. O tratado sobre a Monarquia foi dividido em três livros. O primeiro livro intitula-se a Necessidade da Monarquia. Nele, Dante defende a ideia de que a monarquia é a única que assegura a paz e a ordem no mundo, pois o Monarca é aquele que por providencia divina é, intelectualmente,
capaz
de
guiar
os
homens para a benevolência terrestre, a Paz Universal. Dante (1999, p. 16) aponta essa estima à virtude do conhecimento em passagem do primeiro livro: “Concluamos: torna-se evidente que a perfeição suprema da potência específica do homem reside na faculdade ou na virtude da intelecção”. Kantorowiczexplica essa ideia do poeta florentino: O monarca de Dante não era simplesmente um homem da espada e, com isso, o braço executivo
a
iluminação
supranatural.
(KANTOROWICZ 1998, p. 280-281).
pois, em geral, eram estes que tinham o domínio desta língua. Entretanto, o latim
para
Assim, Dante legitima e distingui o poder do monarca, do poder do papado. Para um, estava determinado, por meio do conhecimento, guiar os homens ao paraíso terrestre
e
Providência
ao
outro
guia-los
por
para
meio o
da
paraíso
celestial. Finalidades diferentes por meio de virtudes diferentes e o único ponto de coincidência entre os dois gládios seria a originalidade de seus poderes. No segundo livro: Como o Povo
Romano obteve legitimamente o encargo da Monarquia e do Império, o poeta afirma que o domínio universal dos romanos não ocorreu em virtude da força, mas sim, pela proeminência divina que interferiu, a partir de
milagres,
comprovar
para
isso,
expansão.
Dante
cita
Para
diversos
‘milagres’ que ajudaram os romanos. No terceiro livro: O Encargo da
Monarquia
e
do
Império
provém
imediatamente de Deus, Dante explicita que
o
poder
do
Imperador
provém
diretamente de Deus, portanto não há necessidade de intermediário, como o Papa. Ou seja, ele propõe uma divisão do
do papado; seu monarca era necessariamente um
poder temporal e do espiritual, que até o
poder
momento
méritos.
filosófico-intelectual Era
por
responsabilidade
seus
próprios
principal
do
imperador, por meio da razão natural e da filosofia moral a que pertencia a ciência legal, guiar a mente humana para a beatitude secular, tal como o papa
era
indissociável
para
a
mentalidade cristã medieval ocidental. Afirmo, então, que o poder temporal não recebe do espiritual nem a existência, nem a faculdade que é
530
Viviane de Oliveira a autoridade, nem mesmo o exercício puro e simples.
Recebem,
aperfeiçoamentos
sim,
do
acidentais:
poder age
espiritual
com
maior
os reis e chefes políticos de forma justa e
eficácia pela luz da graça que Deus, no céu, e a
todos
benção do Sumo Pontífice, na terra, lhe infundem.
exemplo
(DANTE, 1999, p. 98).
Segundo Kanorowicz (1998), Dante apresentou essa tese para se contrapuser aos
canonistas
do
século
XII,
que
apontavam o poder papal superior ao monarca.
Dante
toma
partido
pelos
dualistas, estes já defendiam essa ideia de divisão de poderes, o que o Poeta fez foi se apropriar dessas ideias e aprofunda-las extremamente. Para provar que o poder do monarca estava livre da jurisdição do poder papal,
o
autor
Florentino
propõe
regulamentar o que cabe a Igreja e ao Monarca, distinguindo-os enquanto função, mas não enquanto a meta de organizar o mundo e manter a paz. Ou seja, para distinguir os poderes Dante afirma haver apenas um ponto de coincidência em ambos, sua origem divina. Essa dualidade de fins, não implica que os poderes papais e imperiais eram antíteses ou inimigos, o que Dante propõe é
Imperador ou Monarca mandaria em todos
apenas
a
distinção
da
perfeição
“humana” da “cristã”. Portanto olhar a
Monarquia político
é
como
apenas
reduzir
a
um
tratado
extensão
do
conhecimento de Dante. O que ele propõe é um modelo de governo no qual o Imperador teria o poder supremo. O
agiriam
justamente
monárquico.
conforme
Porém,
o
sem
desconsiderar esse modelo político, é possível perceber que o debate que Dante trava não se restringe meramente a isso. Segundo Kantorowicz (1998), Ao separar o intelecto de sua unidade anterior com a alma e separar as virtudes intelectuais de sua unidade com as virtudes divinamente infundidas, Dante liberou o poder do intelecto livre. Em função da busca da felicidade deste mundo, utilizou-o para unir, em uma só, a comunidade mundial humana composta de todos os homens, cristãos e também não cristãos. (KANTOROWICZ, 1998, p.285)
Conforme a afirmação de Kantorowicz (1998) é possível evidenciar nessa obra a atribuição de um pensamento religioso ao mundo secular e as distintas finalidades do homem no mundo real e no celestial. Porém, ele considera essa dualidade de finalidades dentro de uma proposta de centralidade da comunidade humana, no qual mede suas relações a partir das disputas entre os poderes papal e imperial. Dentro dessa perspectiva, observamos que Dante
não
apresenta
somente
uma
tentativa de reelaborar o papel da Igreja muito
criticada
enquanto
instituição
eclesiástica corrupta -, nem mesmo de legitimar o poder imperial, simplesmente por sua providencia divina. O que o poeta propõe
é
um
modelo
de
sociedade
531
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
unificada, centralizada por dois poderes,
identidade
um designado a guiar a humanidade a
nobrezanasce então por meio da união de
partir do conhecimento e outro por meio da
uma vida política com uma formação
fé. Se percebermos dentro desse embate,
ampla, um caminho pelo qual o homem
as relações humanas medievais também
nobre
como relação de educação, podemos
perfeição de sua natureza.
concluir que Dante apresenta um novo modelo de conhecimento medieval. Uma
passar
peculiar.
para
alcançar
A
a
Um mundo sem nobreza, para Dante, é impensável. Pois é no homem nobre que se realiza a ordem total das coisas.
realizadas nesse trabalho é quanto ao
Segundo o poeta o intelectual não é um
obrasConvívioe
simples intermediário, mas é antes um
do
principais
deve
muito
constatações
papel
das
nobre
nobre
Monarquia.
No
nas primeiro
tratadoDante
homem
“divino”
que
pela
filosofia
Alighieri discute sobre qual a origem da
corresponde ao outro Deus encarnado. A
nobreza no homem, estabelecendo uma
invenção do intelectual por Dante está além
clara diferença entre a nobrezade virtude e
da nobreza de linhagem ou da nobreza de
a hereditária. Segundo Brazarolla (2007),
ofício, é uma nobreza virtuosa de saber
na Germania do século XII uma discussão
essencialmente
desse tipo estaria fora de cogitação, nesse
desenvolvimento urbano.
momento, o termo nobreza tinha outra
inserida
dentro
do
Para compreender melhor a ideia de
concepção. Um homem era nobre caso ele
nobreza
viesse de uma família feudal ou tivesse
pensado
uma nobreza reconhecida pelo soberano.
evidenciar o intelectual, ou melhor, o
Tal
nobre,
detentor do conhecimento durante esse
contudo, não necessariamente detentor de
período. Le Goff (2003: p.23) define o
virtudes.
conceito de intelectual quanto um homem
indivíduo
era
considerado
Considerações Finais permite
compreender
a
proposta de nobreza e a busca por uma adequação entre a preeminência social e a superioridade moral. A partir de uma leitura mais
precisa
dos
tratados
a por
legitimidade Dante,
é
do
império
necessário
medieval dedicado ao conhecimento:
A leitura dos tratados Convívio e
Monarquia
e
de
Dante
Alighieri, percebe-se uma proposta de uma
Anuncia-se na Alta Idade Média, desenvolve-se nas escolas urbanas do século XII, desabrocha a partir do século XIII nas universidades. Designa aquele cujo ofício é pensar e ensinar seu pensamento. Essa aliança da reflexão pessoal e de sua difusão num ensino caracterizava o intelectual.
O intelectual no Ocidente Medieval nasce
junto
com
o
desenvolvimento
532
Viviane de Oliveira urbano. Foi com o desenvolvimento das
O posicionamento de Dante Alighieri,
cidades, principalmente ligado às funções
presente no século XIII, nos permite refletir
comerciais, que o intelectual apareceu na
acerca
forma
se
intelectuais e dirigentes da sociedade. A
instalavam nas cidades nas quais se impôs
realidade onde um dirigente social é
a
forma,
embasado nos mais profundos conceitos
podemos pensar na ideia do intelectual ter
de razão e saber está distante de qualquer
nascido a partir de uma reinvindicação
tipo de comparação ou anacronismo que
profissional, como defende Libera (1999).
poderia ser feito. Contudo, a leitura do
O autor tem um posicionamento singular
tratado e o posicionamento do poeta nos
quando busca diferencia o compreender o
permite ao menos deixar essa provocação:
intelectual medieval e o mediador, portador
qual o lugar e o valor dado conhecimento
de um modelo de vida que se irradiou no
na sociedade contemporânea?
de
divisão
homens de
de
trabalho.
ofício
que
Dessa
exterior das instituições de saber. Então,
dos
conceitos
Ao concluirmos
que
a educação
medieval
mediadores, esse ideal foi ao encontro das
sociais, o modelo proposto por Dante
aspirações
permite
grupos
sociais
não
realizada
homens
graças à atividade de certo número de de
era
de
perceber
nas
que
o
relações valor
do
profissionais que, sem a necessidade do
conhecimento que ele agrega em seu
ofício,
do
tratado é uma das grandes ausências do
A
nosso tempo. Na contemporaneidade, a
partir dessa ideia é que se compreende
educação é vista e estabelecida apenas
que a partir da 'desprofissionalização' do
durante o período e espaço físico escolar
filosofo é que nasce o intelectual medieval.
ou universitário, desenvolvendo diversos
quiseram
aproximar-se
conhecimento disposto pelos filósofos.
Dessa forma, podemos afirmar que a
problemas
educacionais
e
sociais.
ideia de conhecimento em Dante Alighieri
Portanto, essa relação permite apenas
está em transição com os dois principais
formular soluções e métodos para o espaço
movimentos de transformação do próprio
físico de uma entidade educadora e não
conceito de intelectual: o conhecimento
para a sociedade. Dante reconhece essas
filosófico que está cedendo espaço para os
relações
mediadores urbanos e o conhecimento
desordem do mundo para as grandes
universitário,
forças geradoras de poderes de seu tempo.
reproduzido
dentro
próprio ambientes universitários.
dos
Não
tão
e
direciona
o
distintamente
contemporânea
visa
estopim
a
diversas
da
sociedade soluções
533
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
sociais direcionando a desordem do mundo
reflexão do século XIII-XIV, mas sua
para
relação
o
Estado
Laico,
porém,
sem
com
o
tempo
presente
é
reconhecer as relações sociais como os
delicadamente notada nas Universidades,
principais modelos educacionais. Assim, o
instituições
modelo de Dante não cabe apenas uma
relações
educacionais sociais
e
até
nas
presentes.
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534
PÔSTERES
JUÍZO FINAL NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE O POLÍPTICO DE ROGIER VAN DER WEYDEN (1399-1464) Alisson Guilherme Gonçalves Bella 1 Angelita Marques Visalli 2 (Orientadora) Resumo: A representação do Juízo Final, momento em que Cristo e sua corte celestial ressuscitam os mortos a fim de julgar aqueles que merecem o Céu ou o Inferno, é um tema da religiosidade cristã intrigante e que recebeu diversas interpretações durante a História. Por conseguinte, na BaixaIdade Média, Rogier Van Der Weyden (1399-1464) pintou o políptico do Juízo Final para o Hospices de Beauneencomendado por Guigone de Salins (1403-1470) e seu marido Nicolas Rolin (1376-1462) os fundadores do hospital, encontrado atualmente no museu L’HôtelDieu, nacidade de Beaune, em Borgonha, na França. Através da análiseda obra esta pesquisa pretende entender de que maneira os homens medievais compreendiam o fim dos tempos, partindo da visão escatológica propagada pelo cristianismo e representada em forma de imagem por Rogier Van Weyden. Para tanto, esta pesquisa se divide em dois caminhos: em um primeiro momento, expomos os fundamentos da temporalidade cristã medieval a partir do aspecto de fim dos tempos, vigente nas tradições bíblicas e na teologia medieval, utilizando reflexões de Jacques Le Goff, Jean Delumeaue Hilário Franco Júnior. Após tal análise, apresentamos os resultados parciais sobre imagem e Juízo Final a partir das produções de Peter Burke, Jean-Claude Schmitt, JérômeBaschet entre outros. Palavras-chave: Idade Média; Juízo Final; Imagem.
1
Graduando em História pela Universidade Estadual de Londrina.
2
Professora adjunta do departamento de História da Universidade Estadual de Londrina.
536
Alisson Guilherme Gonçalves Bella Desde a origem do Cristianismo,
vem do “grego eschata, ‘as últimas coisas’”.
religião que nasceu em um período que,
Temos uma diversidade muito grande de
hoje, denominamos de Antiguidade, falava-
interpretações
se em um momento particular da história
acreditava em um fim do mundo. Dentre
da humanidade, em que a mesma se
elas, o cristianismo prega um momento em
reencontraria com Cristo, e Este julgaria
que haveria um julgamento de todos os
todos os homens a partir de suas ações,
homens, o Juízo Final. Este tema provocou
sendo
e
que,
os
bons
receberiam
a
ainda
do
provoca
tempo
em
diversas
que
se
reflexões,
eternidade perfeita no Céu, já os pecadores
discussões e interpretações por parte dos
estariam sentenciados a sofrer no fogo
clérigos e dos leigos. Dentre este imenso
eterno no Inferno. Esta temática cristã,
arcabouço,
herdada
religiosas
representação em forma de imagem do
judaicas, paradoxalmente, falava de um
período medieval, o políptico do Juízo
período
Final, pintado por Rogier Van Der Weyden
das da
interpretações História
da
humanidade
acontecido no futuro. Algo que ainda
destacamos
aqui
uma
(1399-1464) para o Hospices de Beaune.
estava por vir. Isto se dava, pois os
Esta obra foi encomendada pelos
homens de fé recebiam revelações divinas,
fundadores Guigone de Salins (1403-1470)
visões
da
e seu marido Nicolas Rolin (1376-1462),
humanidade. Assim sendo, nos restaram
chanceler de Borgonha. O políptico é
os fragmentos bíblicos para compreender o
composto por nove quadros, no tamanho
que pregavam estes profetas do Antigo e
total de 220 centímetros de altura e 548
Novo Testamento. Paulo, o Apóstolo por
centímetros delargura, pintados entre 1443
exemplo, afirma na Epístola aos Romanos
e 1452, em óleo sobre madeira. Temos ao
que“todos nóscompareceremos ao tribunal
centro São Miguel, de tamanho maior que
de Deus (…). Assim, cada um de nós
os homens, segurando uma balança que os
prestará contas aDeus de si próprio.” (Rm
pesa, rodeado de anjos músicos que tocam
14, 10-12).
trombetas. Ainda no centro, Cristo se
e
Esta
profecias
deste
interpretação
do
futuro
fim
dos
encontra entre um ramo e uma espada,
tempos cristã é, atualmente, chamada de
perto de anjos vestidos de branco, que
escatológica. Segundo Bernhard Töpfer
carregam objetos usados na Via Sacra. Os
(2006. p. 353), em seu verbete Escatologia
homens estão ressuscitando e, nus, são
e Milenarismono Dicionário Temático do
julgados indo para o céu, representado
Ocidente Medieval, o termo escatologia
esplendorosamente em dourado, ou para o
537
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
inferno, escuro e sombrio. Percebemos
pensamento religioso. No medievo, tudo
ainda Maria e João Batista, representados
estava ligado, diretamente, a um plano
no mesmo plano espiritual que Cristo, mas
espiritual mais elevado e a Deus. Assim
abaixo Dele, com suas respectivas mãos
sendo, a partir das Escrituras, ao longo de
unidas, em forma de oração. Mais ao
toda a Idade Média, se criaram e se
fundo,
são
os
doze
recriaram explicações que legitimavam o
e
três
discurso religioso cristão, preponderante no
Feitas
estas
ocidente medieval. Mais do que isso,
primeiras observações, segue abaixo a
existia uma crença no Além, ou seja, uma
imagem do retábulo:
promessa para o futuro após a morte, onde
apóstolos,
representados três
representantes
virgens
do
clero.
aqueles que levaram uma vida virtuosa iriam para o Céu, os pecadores para o Inferno e os que não são santos o bastante para entrar no Céu, mas não são culpados o bastante para ir para o Inferno, iriam, ImagemI– Políptico do Juízo Final. Rogier Van der
após a morte, para um local intermediário
Weyden. Produzido entre 1443 e 1452. Atualmente
no Além, o Purgatório. Partindo deste
encontra-se exposto no museu do L’Hôtel-Dieu, em Beaune, França.
A partir destas observações da imagem, levantamos algumas indagações: de que forma pensavam os medievais para representar este tema religioso de tal maneira?
Quais
seriam
os
impactos
causados pela imagem no fiel que a observasse? Quais eram os discursos católicos acerca da perspectiva religiosa de fim dos tempos? Ao longo deste texto, buscaremos responder estas perguntas a partir da historiografia correspondente à História do Medievo e à Imagem Medieval. Os homens medievais tinham uma mentalidade
totalmente
imbricada
ao
pressuposto, compreendemos que existia uma lógica dualista na crença cristã: o bem e o mal, sendo o Juízo Final o momento responsável por encerrar a espera dos homens, pois chegaria o julgamento de Cristo.
Caberia,
portanto,
ao
homem
escolher qual caminho é o melhor para si aqui na terra, a partir do livre arbítrio fornecido por Deus, de modo que, suas ações terrenas implicariam no julgamento final e, logo, na decisão de Cristo com relação ao futuro eterno dos homens. JérômeBaschet
(2006,
p.
374)
aponta em seu livro A civilização feudal que “o medo do inferno e a esperança no paraíso devem guiar o comportamento de
538
Alisson Guilherme Gonçalves Bella cada um; e a própria organização da
carnais, emoções, pensamentos e ações
sociedade é fundada sobre a importância
dos homens. O que o catolicismo pregava
do outro mundo”. Por conseguinte, é a
era que a carne deveria ser totalmente
justiça divina quem decide o futuro dos
reprimida, para que a alma conseguisse
homens a partir dos seus atos. Mas, cabe a
sobreviver ao mundo e, após isto, ir para o
Igreja,
Céu. Caso contrário a alma seria culpada
estrutura
que
encabeçava
a
sociedade feudal, disseminar este discurso
e, desta maneira, iria para o inferno.
dual. Para Baschet, havia um esforço em
Mas para Le Goff (2006, p. 30) “A
“assegurar os fundamentos teológicos”,
Igreja Católica para incitar os fiéis a
aplicando o discurso moral à realidade dos
trabalhar por sua salvação, apresentava-
homens medievais.
lhes mais medo do inferno do que desejo
Este discurso de um mundo dividido
pelo paraíso. Diante da morte, eles temiam
entre bem e mal era preponderante na
menos
sociedade medieval, de modo que Jacques
inferno.”Havia, portanto, uma insistência
Le Goff (2006, p. 21) analisa, em seu
por parte da Igreja para fazer com que os
Além,no
própria
morte
do
que
o
Temático
homens medievais não só acreditassem
Medieval, que “A preocupação dos homens
nos lugares do Além, como temessem,
e mulheres com o pós-morte ocupava
acima de tudo, o Inferno. Assim sendo,
então um lugar essencial. Tal cuidado não
durante toda a Idade Média, percebemos
concernia
dos
uma diversidade de relatos do Além, onde
indivíduos, mas também à localização de
homens e mulheres de fé, acreditavam
suas vidas futuras”. O cuidado com as
estar sendo transportados para o Inferno,
escolhas que repercutiriam no futuro era
para que deles surgissem novas provas de
constante, pois a Igreja pregava que, o
que o Inferno é real e que os pecadores
Juízo Final poderia ocorrer a qualquer
deveriam temer seu futuro. Isto fez com
momento, e logo, os homens deveriam
que houvessem inúmeras representações,
estar
tal
escritas e imagéticas, do inferno. O escritor
acontecimento. Assim sendo, estando em
e teólogo florentino Dante Alighieri, por
pecado e, sobretudo, sem o sacramento da
exemplo, dedicouum terço de seu poema
confissão,
épico A Divina Comédia expondo o que era
verbete
somente
sempre
os
Dicinário
a
ao
‘estado’
preparados
homens
para
poderiam
ser
culpabilizados por seus pecados cometidos na terra. Estamos tratando, portanto, de uma
constante
vigilância
dos
desejos
o Inferno. Para
Baschet,
o
Inferno
e
o
“espetáculo de horror é convertido em lição
539
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
moral”. Era através do discurso de que
dos homens pecadores, Ele queria se
poucos entrariam no Reino de Deus e a
vingar. Por este motivo, o Juízo Final, o
maioria iria sofrer eternamente que, os
Inferno e o Purgatório ganham ênfase no
clérigos
discurso
impunham
a
ótica
religiosa,
religioso
moral.
O
que
era
pautada, sobretudo, na lógica da salvação.
considerado imoral pela Igreja, também era
A
considerado por Deus,pois a Igreja era a
moralidade
era,
consequentemente,
ditada pela Igreja e, confirmada através da
que
disseminação do medo. Hilário Franco
compreendia melhor. Neste sentido, para
Júnior, em sua obra A Eva Barbada,
Delumeau a Igreja se tornou a “Pastoral do
analisa que
medo”.
Na sua função pedagógica, toda a mitologia cristã ajudava a conservar e a transmitir os valores sociais e morais, bem como a propor
se
aproximava
A
Igreja
mais
Dele
detinha
e
todas
o
as
ferramentas para impor os homens o que era o certo e o que era o errado, de modo
explicações de fenômenos humanos ou naturais
que, aquele que estivesse fora desta regra,
considerados importantes por aquela sociedade
estaria destinado a passar a eternidade no
(...) Por ser ela [a Igreja] a única a conhecer e explicar os textos que davam um sentido à própria vida. (1996, p. 66)
Por
conseguinte,
o
ocidente
Inferno. No Apocalipse João chegou a afirmar que “Quanto aos covardes, porém, e
aos
infiéis,
aos
corruptos,
aos
medieval creditava a Igreja Católica à
assassinos,aos impudicos, aos magos, aos
função de elucidar as escrituras bíblicas.
idólatras e a todos os mentirosos, a sua
Mais do que isso, era através do poder da
porção seencontra no lago ardente de fogo
crença que o catolicismo se espalhou por
e enxofre, que é a segunda morte” (Ap 21,
todo o ocidente, conseguindo ter poder,
8). É deste modo que a pregação católica
sobretudo psicológico, sobre os homens do
se tornou regra, impondo o medo daquilo
período medieval.
que estaria por vir.
A certeza de que, Deus julgaria os homens
A partir desta perspectiva dualista
segundo sua justiça divina, aterrorizava os
entre bem e mal o clero tentou entender o
mesmos. Jean Delumeau (2003a, p. 143),
que era o tempo. Esse dualismo é
em seu livro O Pecado e o Medo, explica
perceptível, apesar de recusado em teoria
que a imagem que se tinha de Deus era a
nos
de que Ele era “infinitamente bom, que,
Escrituras o tempo, para os medievais foi
entretanto, pune terrivelmente”. Logo, a
compreendido como escatológico, ou seja,
imagem de Deus propagada na Idade
a História da humanidade seria linear, de
Média Ocidental, era a de que, por culpa
modo que Deus não interferiria no livre
dogmas
da
igreja.
Através
das
540
Alisson Guilherme Gonçalves Bella arbítrio dos homens, mas ajudaria a
escatológicas”. Em diversas ocasiões se
aqueles que tivessem fé. Quando o mundo
reinterpretaram as Escrituras a fim de
estivesse
descobrir como seria o término do mundo e
tomado
pelo
mal,
acontecimentos, que foram relatados no Apocalipse
de
João,
finalizariam
da História da humanidade.
a
Jean
Delumeau,
em
seu
livro
humanidade, de modo que, haveria um
História do Medo no Ocidente, afirma que
julgamento final, onde Cristo distinguiria “o
existem duas grandes visões escatológicas
joio do trigo”.Baschet explica que
na Idade Média. Para o autor (1996, p.
o tempo cristão é linear, que se desenrola desde o início (a criação do mundo e o Pecado Original) até um fim (o Juízo Final), passando pela
210),
“Uma
pode
ser
qualificada
de
otimista, já que se deixa perceber no
Encarnação, pivô central que alterou o curso
horizonte um longo período de paz no
central da história oferecendo a salvação dos
decorrer do qual Satã será acorrentado no
homens. (2006, p. 315)
portanto, era através da Bíblia que se explicava o tempo para a Igreja Católica no medievo. Sempre crendo em um futuro próximo no Além. Mas o fim dos tempos não tinha data precisa e isto fez com que a Igreja estivesse, a todo o momento, preparando os fiéis para o Juízo Final. Baschet (2006, p. 333) afirma que “O futuro ameaçador da escatologia é uma advertência insistente em favor da salvação da alma em benefício da Igreja que é sua melhor garantia”. O que Baschet explica é que existia uma espécie de estratégia religiosa que buscava sempre adiar o fim do mundo, a partir desta perspectiva
eclesiástica,
controlar
tenções
estabelecendo indivíduos.
coerção
Assim
sendo,
de
modo
a
escatológicas, sobre em
os alguns
períodos da Idade Média, existiam “febres
inferno. A outra é a de coloração bem mais sombria.” A primeira, otimista, se refere a um período pacifico de mil anos. Após este período, Satã seria solto de sua jaula no inferno e levaria a destruição para todo o mundo. Em seguida, iniciar-se-ia o Juízo Final
dos
homens.
Aqueles
que
acreditavam neste tempo de mil anos de paz, o chamaram de millenium. A segunda visão citada por Delumeau provém da interpretação
de
acontecimentos
sinais,
ou
seja,
apocalípticos
da
humanidade como a peste negra, a fome, as guerras e até mesmo o surgimento do anticristo, homem contrario a Cristo, que dominaria o mundo no fim dos tempos. Dentre as variadas discussões e representações do Juízo Final, talvez seja no século XIV onde encontramos um dos períodos em que mais se falou e mais se pintou
o
tema.
Ao
esmiuçar
541
os
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
acontecimentos
deste
as experiências não-verbais ou o conhecimento
século,Baschet
de culturas passadas. (...)imagens nos permitem
explica que
‘imaginar’ o passado de forma mais vívida”
Retornos periódicos da peste negra, efeitos destruidores
das
guerras
companhias,
Grande
e
cisma
das da
(2004, p. 16-17)
grandes
Igreja:
os
Por
conseguinte,
para
a
contemporâneos tinham razão por se sentirem
historiografia, tem sido importante nos
assolados pela Providência e as cores outonais
últimos anos dar mais atenção às imagens.
pintadas por Johan Huizinga não saíram do nada. O pessimismo invade os espíritos e o
No
campo
da
História
Medieval,
a
sentimento de viver em um mundo que agoniza,
mesmapossuía funções que devem ser
que chega a seu fim, se faz mais presente do
levadas em consideração ao usa-la como
que nunca. A obsessão da morte explode em todos os lugares, nas práticas funerárias assim
documento histórico. Isto significa que,
como na literatura e na arte, onde os temas
segundo Jean-Claude Schmitt (2007, p. 42)
macabros, tal como o Triunfo da Morte e, depois,
em seu livro O Corpo das Imagens “a
as Danças macabras ganham destaque. (2006, p. 251-252)
É em meio a este contexto histórico que se insere o políptico do Juízo Final de Rogier Van der Weyden. Esta imagem guarda em si mesma, parte de seu tempo, sendo, portanto um documento histórico. A pesquisa histórica através de imagens é um objeto de estudo que tem ganhado espaço dentro da academia, sobretudo depois
do
surgimento
da
corrente
historiográfica Nova História.A partir da qual foram postos em evidência novos problemas, abordagens e objetos para o campo
da
História.
Neste
sentido,
possibilitou-se o uso variado de fontes históricas e, por conseguinte, as imagens ganharam espaço no campo da pesquisa histórica.Peter Burke comenta em seu livro
Testemunha Ocular que
análise da obra, de sua forma e de sua estrutura é indissociável do estudo do estudo de suas funções. Não há solução de continuidade entre o trabalho de análise e a interpretação histórica.”. Baschet esclarece, na Introdução de seu livro L’image, Foctions et usages des
images dans l’Occident médiéval, o que é a funcionalidade da imagem medieval. Para o autor “Não há imagem na Idade Média que seja uma pura representação. Na maioria das vezes trata-se de um objeto, dando lugar a usos, manipulações, ritos...” (1996, p. 9). Deste modo, a imagem medieval não era simplesmente retratação daquilo que queria ser comunicado na obra. A imagem medieval
vai
além,
suas
funções
se
complexificamà medida que os homens atribuíam diversos significados a ela, pois a
Pinturas, estátuas, publicações e assim por
imagem medieval detinha caráter espiritual
diante permitem a nós, posteridade, compartilhar
e religioso e, logo, conferia-se a mesma, fé
542
Alisson Guilherme Gonçalves Bella e devoção. Esta ligação da imagem com sua funcionalidade JérômeBaschet deu o nome de imagem objeto, conceito que iremos adotar daqui em diante, para darmos andamento à análise da obra de Van der Weyden. Na base do retábulo, percebemos os mortos ressuscitando, através do toque das
A lógica dualista entre bem e mal, já
trombetas de quatro anjos vestidos de
trabalhada neste texto, é percebida neste
vermelho. Ao saírem da terra, homens e
detalhe da obra. Ao olhar para o políptico o
mulheres são pesados por São Miguel. Ao
fiel estava sendo convidado a repensar
longo de todo o quadro, temos sujeitos indo
suas
em direção a porta do Céu e outros indo
representação
para a boca do inferno. Esta cena passa-se
balança segurada por São Miguel foi
na parte inferior da imagem. Os homens
pintada muito maior que os homens, de
que caminham para o Céu, estão de mãos
modo
unidas para o alto, em sinal de obediência
mesmos. Cada elemento, expressão e
e penitência a Deus. Já os que foram
sentimento
sentenciados ao tormento eterno, possuem
mulheres
semblantes de desespero e dor. Estas
suscitaria o temor no fiel, sendo esta a
duas variações são bastante visíveis na
noção de verdade que se vinculava na
balança de São Miguel, onde identificamos
época. A imagem, portanto, tem função
dois homens. O da esquerda possui uma
pedagógica, mas também reforça aquilo
pequena auréola, mantém as mãos unidas
que ensina.
atitudes,
a
sobretudo, da
justiça
aparentar retratado caminhando
ser
porque
a
através
superior
pelos para
da
aos
homens o
e
inferno,
e um dos joelhos está dobrado em sinal de reverência. O homem da direita pesa mais, está desvencilhando suas mãos, perdendo sua auréola e, olhando para a boca do inferno, expressa em seu rosto desespero.
543
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Esta hierarquia destas personagens cristãs é um tema bastante explorado por Jean Delumeau, no livro O que sobrou do
paraíso?,sobretudo no capítulo 11 intitulado Os santos reunidos em torno do cordeiro. Para o autor, não existem regras quanto àaparição de santos e membros do alto clero, nem padrões quanto à hierarquia dos mesmos. O que se repete é Maria, mãe de Cristo e mãe da Igreja e São João Batista. Para o autor, os santos e autoridades eclesiásticas também recebem lugar de prestígio no Céu, de modo que desde o livro Apocalipse os mesmos já eram Pintados como se estivessem num plano
espiritual
algumas
mais
elevado,
personagens
temos
bíblicas
já
conhecidas. Maria e João Batista estão mais
ao
centro,
perto
de
Cristo,
representados do mesmo tamanho e mais a frente do que os outros sujeitos. Ao fundo, os doze apóstolos são divididos em seis de cada lado da imagem. Atrás dos doze apóstolos, são representadas as virgens, que segundo a tradição Cristã teriam um lugar de honra no Céu, e o Clero,
que
destaque.
na
obra,
Percebemos
também a
recebe
simetria
da
imagem, ao ter o mesmo número de personagens dos dois lados do retábulo.
enunciados, porém sem muita precisão. Segundo Delumeau (2003b, p. 174) “O Apocalipse
contentara-se
com
uma
diversificação bastante sumária: os 24 anciãos, os 144 mil resgatados (...)”. Neste sentido, durante toda a Idade Média, teólogos como Agostinho em Cidade de
Deus,
Honorius
HildegardvonBingenetc
de refletiram
Autun, sobre
quem teria lugar prestigiado no Céu. Mas é com a Legenda Áurea que encontramos uma classificação de elementos celestiais mais próximos as representações do Juízo Final nos séculos XIII e XIV. Voltemos agora nosso olhar para a figura de Cristo. Van der Weyden o representou no centro da obra, sendo o único a estar entre o mundo e o Além. Representado sobre um globo, Cristo está
544
Alisson Guilherme Gonçalves Bella com a mão direita levantada, em sinal de
da
benção. Cristo se encontra entre dois
elementos.
Paixão
de
Cristo
através
destes
objetos: um ramo e uma espada. Isto reforça a ideia de que Cristo era bom e ao mesmo tempo justo e impetuoso, para Delumeau (2003a, p. 143-180), “um deus de olhos de lince”. Se por um lado Jesus voltaria para sanar as injustiças sociais, por outro lado puniria todos aqueles que não seguiram seus mandamentos. Através da análise da obra de Van der Weyden, pretendeu-se estudar o que pensavamos medievais e como tal obra estava inserida dentro deste contexto. Inicialmente, ao falar sobre a ótica dualista, entre bem e mal, percebemos que o cristianismo conseguiu impor no medievo sua
regra
de
conduta.
O
ideal
de
moralidade cristão deveria ser seguido a risca, onde o homem deveria buscar a Nos quadros superiores do políptico,
santidade sem cessar. Isto, obviamente
nos deparamos com as figuras de quatro
provém de uma herança bíblica, mas a
anjos que estão segurando os objetos
disseminação
usados na Via Crucis, ou seja, o trajeto
Escrituras foi tarefa do Cristianismo, e
feito por Jesus carregando a cruz até o
temos no medievo, talvez, um dos períodos
calvário. Estes objetos (a cruz, a coroa de
de maior propagação dos ideários sobre a
espinhos a lança, a esponja embebida de
conduta moral cristã. Aquele que estivesse
vinagre e os chicotes) não são tocados
fora desta regra seria punido e a cólera de
diretamente pelos anjos, mas através de
Deus se voltaria contra ele.
e
reinterpretação
das
um tecido branco. Isto demonstra o quanto
Assim sendo, podemos constatar
foi injusto e impuro, da parte dos judeus, a
que a imagem de Van der Weyden, assim
crucificação.Percebemos a preocupação de
como outras imagens medievais possuíam
Van der Weyden em relembrar o ato final
caráter de elucidação e reafirmação do
545
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
conteúdo a ser exposto pela mesma. Ora, a
sentenciados a segunda morte poderia
obra de Weyden é autoexplicativa, de
suscitar
modo
um
reflexões acerca das ações e escolhas que
a
este fazia. Mas, o fiel também poderia
reafirmar-se dentro do Credo religioso
almejar a santidade dos eleitos a entrar no
católico. O Juízo Final é o marco final da
Céu, e, por conseguinte revigorar sua fé
História humana, e as imagens assim como
em Cristo.
a
suscitar
amedrontamento,
no
fiel
levando-o
até
no
observador,
certamente,
diversos sermões, tinham a função de
Através destes, como muitos outros,
alertar os homens que este momento
elementos iconográficos da obra, bem
poderia estar próximo.
como outras imagens do período medieval,
Cada elemento da obra levava o
o
medo
forçou
os
homens
a
se
espectador a observar o retábulo através
reverenciarem diante dos ideais católicos e,
da emoção. O homem poderia colocar-se
portanto, podemos constatar que a imagem
no
estão
do Juízo Final tinha por objetivo não só
caminhando em direção ao Inferno, por
explicar como seria o fim dos tempos, mas
terem sido rejeitados por Deus, pois seus
amedrontar, a fim de que o observador se
pecadores superaram suas boas ações. O
arrependesse
desespero
conduta.
lugar
dos
pecadores
daqueles
que
que
foram
e
seguisse
uma
nova
Referências: Imagem I – Políptico do Juízo Final de Rogier Van der Weyden, Beaune. Disponível em:http://fr.wikipedia.org/wiki/Nicolas_Rolin#mediaviewer/Fichier:Rogier_van_der_Weyden_ 001.jpg, acesso em: 20/08/2014. BASCHET, Jerôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.
Bíblia de Jerusalém.São Paulo: Paulus, 2002. BURKE, Peter. Testemunha Ocular – história e imagem. Bauru: Edusc, 2004. DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo. A culpabilização no Ocidente (séculos 13-18). Bauru: EDUSC, 2003. _____. O que sobrou do paraíso? São Paulo: Companhia das Letras, 2003. _____. História do medo no Ocidente(1300-1800).São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
546
Alisson Guilherme Gonçalves Bella FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Eva Barbada: Ensaios de Mitologia Medieval. São Paulo: Edusp, 1996. LE GOFF, Jacques. Além. IN: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean- Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2002. SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens – ensaios sobre a cultura visual da Idade Média. Bauru: Edusc, 2008. SCHMITT, Jean-Claude et BASCHET, Jérôme. L'image. Fonctions et usages des images
dans l'Occident médiéval. Paris: Le Léopard d'Or, 1996. TÖPFER, Bernhard. Escatologia e Milenarismo. IN: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, JeanClaude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2002.
547
AS PINTURAS DA BASÍLICA DE SÃO FRANCISCO, ASSIS: POSSIBILIDADES DE ANÁLISE A PARTIR DA HISTORIOGRAFIA RECENTE SOBRE AS IMAGENS MEDIEVAIS 1 André Luiz Marcondes Pelegrinelli 2 Angelita Marques Visalli 3 (Orientadora) Resumo: A data de três de outubro de 1226 marcou a morte de Francisco de Assis, na pequena Capela Santa Maria dos Anjos, Porciúncula, foi velado e sepultado na Igreja de São Giorgio, atual Capela do Santíssimo Sacramento na Basílica de Santa Clara. Quatro anos depois, o corpo foi retirado de seu sepulcro e transladado até a majestosa Basílica de São Francisco, igreja-mãe de toda a Ordem, que teve sua construção iniciada no mesmo ano da canonização do poverello, 1228. A igreja-mãe franciscana não se justificava apenas enquanto espaço de reunião ou mesmo túmulo do padroeiro, mas foi um grandioso projeto político, ora refletindo o projeto papal, de grupos espirituais,conventuais, etc. Considerando que, a expansão de fronteiras documentais pela Nova História Cultural levou os historiadores a explorar o terreno das imagens, pretendemos levantar considerações sobre as imagens que estão nessa Basílica. Identificamos três grandes grupos imagéticos na Basílica: imagens narrativas, imagens ornamento e imagens devocionais, em conjunto, pretendemos estabelecer possíveis metodologias e interpretações destas categorias imagéticas a partir da historiografia recente sobre imagens medievais, destacando autores como Jean-Claude Schmitt, Daniel Russo e Jean Claude Bonne. Palavras-chave: Imagética Franciscana ; Basílica de São Francisco; Imagem Medieval
1
Resultado parcial inicial de Trabalho de Conclusão de Curso, sob orientação da Profa. Dra. Angelita Marques Visalli.
2
Graduando em História da Universidade Estadual de Londrina.
3
Professora adjunta ao departamento de História da Universidade Estadual de Londrina.
548
André Luiz Marcondes Pelegrinelli
Após voltar da missão ao Oriente,
serão, por exemplo, os riquíssimos templos
Francisco encarregou a direção da Ordem
barrocos, o trabalho das pinturas da
à Frei Pedro Cattani, que vigário guiou a
Basílica não valia menos: Giotto, Cimabue,
Ordem por muito pouco tempo, morrendo
Pietro
um ano depois. O Capítulo Geral de 1221
trabalharam
nomeou um novo ministro geral, Frei Elias.
italiana. Para Gianfranco Malafariana a
Esse foi o responsável por guiar a Ordem
pequena quantidade de relatos milagrosos
nos delicados anos que se seguiram à
dentro da faustosa Basílica foi interpretado
morte
o
pelos frades contemporâneos como a não
processo de canonização e foi responsável
satisfação do Santo para com a Basílica e
pela
todo o investimento nela (MALAFARINA,
de
Francisco,
encomenda
e
acompanhou projeto
inicial
da
Basílica de Assis.
Lorenzetti,
e
“valiam
outros ouro”
na
que
lá
pintura
2011, p. 12).
Junto ao cuidado de Elias, nesse
A Basílica de Assis é dupla. A Igreja
projeto inicial, uniu-se o apreço de Gregório
Inferior abriga o túmulo do santo, foi
IX para com o santo e sua Basílica, que era
projetada especialmente para que fosse um
papal.
grande sarcófago, recebendo os peregrinos
Diz-nos
a
Legenda
dos
Três
Companheiros:
e especialmente os frades menores. A
“O próprio sumo pontífice não somente honrou o santo a quem amara sumamente enquanto [este] vivia, canonizando-o de maneira maravilhosa, mas
também
enriqueceu
com
sagrados
Igreja Superior, ampla e alta funcionava como Basílica Papal, acolhia as grandes celebrações e os capítulos gerais.
presentes e preciosíssimos ornamentos a igreja construída em sua honra, em cujo fundamento o mesmo senhor papa colocou a primeira pedra.
ricamente
superior
pintadas
e
em
inferior
são
quase
sua
[...] Mandou para a mesma igreja uma cruz de
totalidade: paredes, colunas, abóbodas,
ouro, ornada com pedras preciosas, na qual
todas são preenchidas por narrativas,
estava engastado o lenho da cruz do Senhor, como também ornamentos, vasos e muitas
imagens de santo, estrelas, etc., aqui
coisas pertinentes ao ministério do altar com
realizamos somente considerações iniciais
muitas alfaias preciosas e solenes” (3S, 72)
sobre as imagens figuradas no edifício,
Uma cruz de ouro, pedras preciosas, alfaias
Ambas,
preciosas,
riqueza.
A
Questão
Franciscana centraliza vários dos debates no primeiro século da Ordem dos Frades Menores e não ocupa menor lugar na Basílica. Se ela não é rica em ouro, como
passamos então para a sugestão da divisão desse grande corpus documental em
três
categorias:
imagens-ornamento
imagens-narrativa, e
imagens
devocionais.
549
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
A Basílica de Francisco é acima de
A abertura das capelas laterais destruiu
tudo um projeto político, de poder, e para
boa parte desses ciclos paralelos, mas, em
bem cumprir este fim, a basílica foi
contraponto, as capelas que foram abertas
amplamente preenchida por imagens com
possuem ciclos referentes aos santos
caráter narrativo. Não queremos correr o
padroeiros: Santo Antonio Abade, Santa
risco de simplificar as funções da imagem
Catarina, Santo Stefano, Santo Antonio de
medieval a uma “bíblia dos iletrados”,
Pádua, Maria Madalena, São Martinho, São
fórmula
Pedro , São Nicolau de Bari, São João
ultrapassada,
surgida
da
interpretação equivocada da carta do Papa
Batista;
Gregório Magno à Serenus de Marselha,
também o ciclo da Infância de Cristo e da
ano 600, e que não dá conta das suas reais
Vida de Cristo, respectivamente atribuídos
funções. Apesar disso, nota-se claramente
a Giotto e a Pietro Lorenzetti.
nas
pinturas
destes,
destacamos
A Igreja Superior recebeu dois grandes
pedagógica que se desenrola através da
ciclos: Cenas da Vida de Francisco e
memória e instrução. Um ciclo narrativo
Cenas do Antigo e Novo Testamento, o
não
possuía
primeiro ocupando a parte inferior das
apenas a função de colaborar na ascese
paredes, mais próxima do olhar dos fiéis e
espiritual, mas, ordenar, por exemplo, a
a segunda ocupando a parte de cima,
infância de Cristo em 5 cenas – como fez
dividindo o espaço com vitrais. (Imagem I)
venerado,
uma
além
função
era
narrativas
e,
tampouco
Giotto na Basílica Inferior – implica em criar uma narração que recorda as descrições evangélicas e as ensina. A Igreja Inferior, em seu primeiro projeto possuía dois grandes ciclos narrativos: a Vida de Cristo à esquerdae a Vida de Francisco, à direita, o Mestre de São Francisco, artista do qual não conhecemos muito, projetou um paralelismo entre os ciclos a fim de criar uma identidade e
Imagem I – Basílica Superior. Afrescos dos Ciclos de
correspondência entre a Vida de Cristo e a
Cenas do Antigo e Novo Testamento (cima) e Ciclo da
Vida de Francisco, apresentando-o como
Vida de Francisco (baixo).
um alter Christus.
550
André Luiz Marcondes Pelegrinelli
As atribuições quanto à autoria destes
Menores no pioneiro estudo de Chiara
ciclos são muito questionáveis: Vasari
Frugoni, “Francisco e a invenção dos
atribui o grande ciclo de Cenas do Antigo e
estigmas”, de 1983.
Novo Testamento à Cimabue, mas há
As observações de Frugoni reforçam
registro neste ciclo, por exemplo, da
o discurso de que os historiadores não
atividade de JacopoTorriti e de um outro
devem
artista, Mestre de Isaac. Quanto ao ciclo de
confirmação da informação letrada. Nas
Cenas da Vida de Francisco, a atribuição
hagiografias, a pregação de Francisco
aGiotto e sua oficina é bem aceita no meio
aparece várias vezes, em contraposição, e
dos historiadores.
segundo Frugoni, essa função é esvaziada
O famoso ciclo de Giotto é formado por
nas
procurar
imagens
nas
da
imagens
Basílicae,
em
vinte e oito cenas, consideravelmente bem
lugar,Antonio
conservadas – se levarmos em conta os
verdadeiro
dois grandes terremotos de 1997 – e ocupa
afrescos
uma seqüência linear iniciando próximo do
atividade taumatúrgica de Francisco.
altar, ao lado direito da igreja, como assinala Francastel: propriamente
composições
exaltam
apresentado
pregador se
da
centram
seu
como
Ordem.
muito
o Os
mais
na
Parece haver um claro objetivo ao figurar as ações de Francisco que são mais
“(...) das vinte e oito cenas, apenas três ilustram virtudes
é
a
franciscanas. sete
vezes
As
outras milagres
ligadas a milagres, ao sobrenatural. O santo de Assis foi divinizado a tal ponto
espetaculares, oito vezes cenas honoríficas da vida
que, copiá-lo seria impossível – a começar
do santo, seis vezes aspectos da mística oficial
pela insistência de atenção para com os
romana.” (FRANCASTEL, 1973, p. 337)
O conjunto foi inspirado na Legenda Maior de Boaventura, única hagiografia considerada oficial pela Ordem após o Capítulo Geral da Ordem de 1226, que ordenou a destruição de todas as outras hagiografias, inclusive as anteriormente oficiais, como a Primeira e Segunda Vida de Tomás de Celano. O Ciclo da Vida de Francisco reanimou os estudos de historiadores para com a imagem na Ordem dos Frades
estigmas -, e apresentar outros modelos, como
Santo
Antonio,
tornava
mais
acessível o modelo franciscano e mais que isso, harmonizava os diferentes contrastes e, mesmo “radicalismos” que afloravam nos frades.
Apresentar
um
Francisco
inalcançável era uma ótima estratégia para dar fim à Questão Franciscana: querer copiar em tudo o mestre não seria difícil, mas impossível. Não
aprofundamos
aqui,
mas
merece menção a abóbada da Igreja
551
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Inferior (Imagem II), pintada possivelmente por dois discípulos de Giotto e suas oficinas, que apresentam São Francisco em Glória e a tríade franciscana: Pobreza, Obediência e Castidade. Pensamos essas quatro imagens como narrativas não no sentido de apresentarem a sucessão de “fatos
ocorridos”,
mas
narrarem
a
espiritualidade franciscana, sob a ótica conventualista. O afresco “São Francisco em Glória” narra Francisco envolto em um coro
de
anjos,
é
figurado
jovem,
e
acompanhado da inscrição “Renovai a lei evangélica e preparai o caminho para
Imagem II - Abóbada: Tríade Franciscana e Francisco em
completa salvação celeste”. A “Alegoria da
Glória.
Pobreza”
figura
casamento
Cristo
místico
celebrando da
o
pobreza,
representada como uma jovem moça e à esquerda um jovem se despindo para doar suas vestes. A “Alegoria da Obediência” traz a figura de um frade que ajoelhado se submete a autoridade de outro e recebe o mandato de silêncio. Por fim, a “Alegoria da Castidade” figura uma virgem no alto de uma torre e um jovem sendo purificado ao buscar a castidade.Malafarina (2011, p. 111)
aponta
ferramenta
essa dos
solidificarem franciscanismo.
sua
abóboda
como
conventuais
para
vivencia
do
A imagética franciscana tende, em seus primeiros séculos, a ser inserida em narrativas, não poucos são os ciclos nas paredes de igrejas, távolas, etc. (VISALLI, 2011, p. 228). “Assim com as igrejas góticas se abrem às multidões que se agrupam para ouvir os sermões, as imagens apresentam-se com um caráter público, de disseminação em escala maior. Afinal, o crente pode acompanhar o acontecido: a hagiografia[...] na medida em que a vida do santo é ambientada com direito a testemunho em tempo ‘real’” (VISALLI, 2011, p. 229)
A demanda imagens:
análise dois um
de
ciclos
olhares particular
narrativos
sobre e
um
essas global.
Tomemos o exemplo, já citado, do ciclo narrativo da Infância de Cristo no transepto norte da Basílica Inferior, produzido por
552
André Luiz Marcondes Pelegrinelli
Giotto. A personagem Maria está presente
tampouco
nas cinco cenas que formam o ciclo, o
decorativo, estético,
micro olharsobre cada um dos afrescos permite perceber melhor sua posição em relação
aos
outros
personagens,
sua
presença, gestos, etc., já o olhar global sob todas as cinco imagens permite perceber as diferenças de postura e figuração dessa personagem em cada cena, só assim
de
contemplação,
mas
“[...] os valores decorativos [ornamentais] são percebidos apenas en passant, sem que o olhar se detenha especialmente sobre eles [...] Ele se inscreve, por excelência, na dinâmica dos rituais, nos quais ele é um intensificador ao mesmo tempo sensorial e motor [...] todo ambiente de culto recebia uma decoração, por menor que ela fosse.” (BONNE, 2009, p. 44)
No
latim,
a
família
do
termo
percebemos, por exemplo, a insistência de
ornamento, ornare não remetem somente a
Giotto em figurar Maria com destaque
uma decoração superficial, secundária e
diferente na cena da crucificação: é a única
dispensável, mas são essenciais para que
imagem do ciclo com vestes diferentes, o
um equipamento cumpra plenamente sua
azul celeste é substituído pelo tom de
função. Uma imagem ornamento, na lógica
palha, sugerindo maior frieza e sobriedade
da imagética medieval, só faz sentido e
nessa cena. Além disso, apenas o olhar
oferece toda a sua percepção atrelada ao
global pretende perceber o estranhamento
espaço em que se encontra. Vale lembrar,
de figurar a crucificação como um salto
que é a noção moderna de arte, do
direto da infância de Cristo, ignorando sua
Renascimento, com suas pinturas em tela
atividade
que desterritorializam em muito a noção de
apostólica
ou
mesmo
sua
Ressurreição.
imagem: uma tela não é fixa, pode ocupar
A Basílica não é preenchida apenas
uma sala de estar, um restaurante, uma
por imagens-narrativas, boa parte dos
igreja, um museu, etc. Por mais que os
espaços considerados menos importantes
ícones fossem móveis e utilizados, por
(cantos, arestas, colunas, teto, etc.) são
exemplo,
preenchidos por motivos geométricos, o
subscrever-se em determinadas regiões,
céu etc., aquelas imagens que podemos
com circulação restrita a aquele espaço.
chamar de ornamento. Ao falarmos em
em
Entre
as
procissões,
tendiam
imagens-ornamento
a
na
ornamento, nos servimos da definição de
Basílica
percebemos
Jean-Claude Bonne sobre essa “categoria”
motivos
que
de imagens (BONNE, 2009, p. 44): o
geométrico, natureza, céu estrelado e
ornamento não tem caráter de narração,
bustos de personagens.
tendem
quatro a
se
grandes repetir:
553
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Linhas retas, vértices, quadrados, a
é característica da oficina de Giotto. A
basílica decorada com vários ângulos.
CapelladegliScrovegni, em Pádua, recebeu
Essas pinturas geométricas (Imagem III)
o mesmo cuidado de céu azul estrelado.
dão a ilusão de que as paredes são ainda mais altas, de que existem mais colunas, assim a repetição geométrica em muito faz a Basílica parecermais imponente.
Imagem IV – Ornamentos com motivo de natureza. Igreja Inferior.
Percebemos também o ornamento que
usa
da
efígie
de
personagens,
principalmente nas abóbadas da Igreja Imagem III – Ornamento com motivos geométricos. Igreja
Superior e em alguns detalhes na inferior.
Inferior.
Na Igreja de cima chama a atenção a
Figuras naturais, motivos florais e o
Abóbada dos Doutores da Igreja, com as
céu estrelado lembram o fiel do espaço
imagens de Gregório Magno, Agostinho,
sagrado: o espaço do templo precisava ser
Jerônimo e Ambrósio. Outra abóbada
como um pedaço da esfera celeste na
reúne personagens celestes: São João
terra. As folhagens (Imagem IV), flores, não
Batista, a Virgem Maria, Cristo e anjos
só embelezam esteticamente mas lembram
acompanhando-os
o paraíso, o Jardim do Éden “perdido” por
ainda
Adão
nas
Mateus, Marcos, Lucas e João. O que nos
abóbodas mais altas da Igreja Superior em
permite afirmar que essas efígies são
muito lembram as construções góticas,
ornamentais
altíssimas, que queriam “tocar o céu”. Essa
prática: além de não ocuparem lugar de
técnica, de preencher os tetos com estrelas
destaque dentre as outras imagens, são
e
Eva.
O
céu
estrelado,
é
(Imagem
dedicada
e
não
aos
V).
Outra
Evangelistas:
devocionais?
Sua
554
André Luiz Marcondes Pelegrinelli
visualmente muito distantes do observador
Para
sua
análise,
essencial
é
a altura do chão. Na Igreja de baixo
compreender o conceito de ornamentus
encontramos pequenas efígies, pintadas,
que expusemos a partir de Jean Claude
que mais dão a sensação, ao observador
Bonne, uma vez clara a não banalização
distante, de pequenas esculturas do que
desse tipo de imagens, é preciso se atentar
pinturas, não apresentam características
às suas formas, à sugestão mimética ou
que
não dessas formas e o lugar que ocupam
os
permitam
a
ligar
a
algum
personagem específico.
dentro do prédio em que estão instalados: as estrelas das abóbadas só têm sua função plena se estiverem no teto, as efígies dos doutores são complementadas pela mensagem celeste dos astros que as rodeiam. Como
última
categoria
proposta
nesse estudo inicial, apresentamos as imagens devocionais. Imagens devocionais estão atreladas ao culto. Essas imagens possuem maior caráter de “ser” do que “coisa”. Jean-Claude Schmitt as chamou de imagens-corpo (1996), JérômeBaschet as Imagem V – Abóbada ornamentada com personagens celestes. Igreja Superior.
O ornamento completa e permite a
chama de imagem-objeto (2006). Daniel Russo prefere o conceito mais abrangente, de imagem-presença (2011). A
plena funcionalidade das coisas. Francisco
noção
de
imagem-presença
reconstruir
conceitua as imagens não por si próprias,
igrejas, ainda que essa prática tenha se
mas atreladas a locais e práticas. Não
dado graças à interpretação inicial daquele
bastam
pedido (“Francisco, vai e reconstrói minha
iconográficos, mas outros documentos que
igreja, que como vês está toda em ruínas”),
relatam a prática dos fiéis com relação a
ela se torna importante na espiritualidade
essas
da Ordem. Reconstruir igrejas é permitir
compreender seus usos e funções. Os
seu pleno funcionamento, ornamentá-las
relatos de milagres em torno da imagem
também.
acrescentam práticas ligadas à mesma, ao
iniciou
suas
atividades
ao
apenas
imagens,
seus
que
nos
aspectos
permitem
555
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
mesmo
tempo,
exemplo,
de
a
possibilidade,
movê-la
a
por
faz
ter
possibilidades diferentes de uso, como a de procissão, o que não acontece com os afrescos.Imagens
devocionais
têm
sua
importância crucial garantida não pelo fato de
ser
alguém,
mas
carregarem
possibilidade
de,
através
manifestação
sobrenatural,
de vir
a
uma a
ser
alguém. O
Museu
do
Sacro
Convento
testifica a existência de uma grande quantidade de imagens devocionais móveis na Basílica, entretanto, ao delimitarmos essa pesquisa em imagens nas paredes, o número
diminui
consideravelmente.
Imagem VI – Virgem com o Menino entre São João Batista e São Francisco. Capela de São João Batista. Igreja Inferior.
Essas imagens nos oferecem chaves
É
para pensar a Ordem como um jogo de
comum, seja na igreja Superior ou Inferior,
poder, ou ainda, desde um ponto de vista
umas como espécies de retábulos pintados
cultural,
nas paredes, figurando principalmente a
freqüentavam: desde o papa e os frades
Virgem,
menores até o pobre fiel penitente.
Francisco
e
um
terceiro
personagem, por vezes o comitente da obra.
a
daqueles
que
a
Ao propor três grandes categorias de imagens
O difícil acesso e produção de um
devoção
não
possibilidades
queremos
engessar
de
sobre
visão
as
essas
levantamento completo das imagens na
imagens, mas observações inicias têm
Basílica têm restringido em muito uma
demonstrado a boa funcionalidade destas
análise maior dessas imagens devocionais,
grandes categorias.Com olhar mais atento,
contudo,
sabemos que não há imagem na Basílica
recorrentes
notamos na
que
Basílica
são
mais
Inferior
e
totalmente
dissociada
das
outras
encontramos principalmente imagens da
categorias: elas se completam. Imagens
Virgem que lembram os ícones móveis, as
que narram, ornam, levam à ascese
Virgens entronizadas e/ou com o menino e
espiritual, legitimam poder, reforçam as
uma ou outra imagem do santo ao qual
escolhas espirituais da ordem, enfim, a rica
cada capela se dedica (Imagem VI).
e extensa figuração da Basílica certamente
556
André Luiz Marcondes Pelegrinelli
não preenche todas as possibilidades de
grande parte delas.
uso da imagem no Medievo, mas manifesta
Referências: BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.
BONNE, Jean Claude. Arte e environnement : entre arte medieval e arte contemporânea. In: FONSECA, Celso Silva; RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros; COELHO, Maria Filomena (orgs.). Por uma longa duração:perspectivas de estudos medievais no Brasil. VII Semana de Estudos Medievais. Brasília: Universidade de Brasília, 2010. FRANCASTEL, Pierre. A arte italiana e o papel pessoal de São Francisco. In: ____ A
realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1973.p. 323-340. MALAFARINA, Gianfranco. Assise. La Basilique de Saint François. Paris : Seuil, 2011. RUSSO, Daniel. O conceito de imagem-presença na arte da Idade Média. Revista de História, São Paulo, n. 165, p.37-72, jul./dez. 2011. SCHMITT, Jean Claude. La culture de l’imago. Annales. Historie, Sciences Sociales,51e année. n. 1, p. 3-36, 1996.
TEIXEIRA OFM., Frei Celso Márcio (org.) Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 2008. VISALLI, Angelita Marques; OLIVEIRA, Terezinha (orgs.). Leitura e Imagens da Idade
Média. Maringá/PR: EDUEM, 2011.
557
O ESPAÇO SAGRADO EM DUAS CANTIGAS DE SANTA MARIA DEDICADAS À VIRGEM DE TERENA Carlos Henrique Durlo 1 Resumo: Pesquisando sobre a importância que tem a religiosidade para o homem e a mulher do século XIII, onde o ideal de vida do homem era em sua essência teocêntrico e a relevante importância que teve o catolicismo para o desenvolvimento cultural e social à época, o presente estudo tem por objetivo analisar o culto à Virgem Maria no século XIII a partir das Cantigas de Santa Maria, de Alfonso X, o Rei Sábio, dedicadas ao Santuário de Santa Maria de Terena. A metodologia aplicada consistiu em uma pesquisa bibliográfica e uma análise estrutural, interpretativa e histórica de 12 Cantigas de Santa Maria, escritas em galego-português, da edição organizada por Mettmann (1959-1972), cujas narrativas contam os milagres atribuídos à Virgem Maria no Santuário a ela dedicado em Terena, uma freguesia do conselho de Alandroal, distrito e arquidiocese de Évora. A partir da análise do referido corpus, apresentamos um recorte da pesquisa e a análise das Cantigas 197 e 213, duas das doze cantigas em que nos é revelado o poder da Virgem Maria, Mãe de Deus, face ao poder do mal e da injustiça. Apoiados teoricamente em Spina (1973), Franco Júnior (1990), Lapa (1973), Leão (2011) e Monteiro de Castro (2006), a pesquisa, ainda em fase de finalização, pretende identificar as diferentes formas de culto apresentado nas doze cantigas de Alfonso X, investigando o espaço religioso e delimitando o perfil feminino nesse mesmo corpus, já que é sabida a importância adquirida pela mulher no contexto medieval do século XIII. Palavras-chave: Cantigas de Santa Maria; Alfonso X; Terena.
1
Universidade Estadual de Maringá.
558
Carlos Henrique Durlo
Sabe-se
que
religiosidade
descrevem os milagres que tiveram a
permeia a vida do ser humano, em especial
intervenção de Santa Maria, constituindo-
na Idade Média, onde o ideal de vida do
se num dos mais importantes acervos
homem era, em sua essência, teocêntrico
poéticos de toda a Idade Média. De acordo
(FERREIRA, 1988). A religiosidade do povo
com Ferreira (1988), as cantigas de Santa
medieval, observada por meio das cantigas
Maria, ricas de beleza melódica e rígida de
de romaria, originárias do Ocidente da
paralelismo
Península,
influência
cancioneiro profano por conter notação
religiosa, política e econômica da Igreja
musical. No entanto, apenas parte das
Católica sobre o povo da época, bem como
partituras chegou ao nosso conhecimento.
no culto que era consagrado à Virgem
Além disso, o estilo poético de Alfonso X
Maria nos santuários a ela dedicados, em
influenciou a escrita musical e poética de
especial no de Santa Maria Terena, no
seu neto, D. Dinis, rei de Portugal.
revela
a
a
grande
Alentejo, onde nos são revelados milagres atribuídos a Virgem de Terena.
poético,
distinguem-se
do
A Idade Média é uma época em que a religião tem relevante importância,
Além da religiosidade, a Idade
deste modo, em todas as manifestações
Média Central foi uma das fases mais
artísticas e filosóficas é possível observar a
produtivas da Idade Média, sobretudo, em
presença do mote religioso, tema principal,
sua
manifestação
revelado nas Cantigas de Santa Maria.
trovadoresca e a poesia religiosa de
Assim, o espaço religioso, em especial o do
Alfonso X, (1221 a 1284), as Cantigas de
Santuário de Santa Maria Terena, por meio
Santa Maria.
do culto à Virgem Maria, se torna em nossa
literatura,
como
a
Dom Alfonso X, filho de Fernando III
pesquisa objeto de investigação, tendo em
e de Beatriz de Saboia, foi rei de Castela e
vista a valorização do ser feminino em uma
Leão (1252-1284). Suas realizações no
época em que a mulher é vista com
campo
submissão e inferioridade em relação ao
da
cultura
mereceram-lhe
o
cognome de “o Sábio”. Escreveu em
homem.
castelhano as obras históricas, políticas e
O espaço poético tem a função de
filosóficas e em galego-português a sua
situar a personagem/eu-lírico revelando-a
obra poética. Como músico e poeta, o Rei
ao leitor e a sua significação que se dá no
Sábio deixou-nos uma compilação de mais
gênero narrativo e poético. Santos e
de quatrocentas cantigas, escritas em
Oliveira (2001, p. 74) pontuam essa
galaico-português,
diferença ao afirmarem que:
que
louvam
e
559
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo Nas narrativas literárias, o espaço tende a estar associado a referências internas ao plano ficcional mesmo
que
a
partir
desse
plano
sejam
O escritor torna-se sensível e se cala para que a linguagem se converta em imagem e
estabelecidas relações com espaços extratextuais.
resulte num profundo significado ao leitor.
[...] O texto poético pode eleger a própria palavra
É interessante notar que Santos e Oliveira
como um espaço. O signo verbal não é apenas decodificado
intelectualmente,
mas
também
(2001) compartilham com Blanchot (1987)
sentido em sua concretude. Sobretudo, é possível
a ideia de que o texto poético gera
explorar na poesia escrita, a visualidade da
imagens.
palavra: o signo verbal como imagem.
Santos e Oliveira (2001), no entanto, atentam para a problemática existente com a similaridade estabelecida entre o objeto em si e sua imagem. Para os autores, a poesia estaria inserida na perspectiva de que o objeto é criado pela imagem, sendo que
a
palavra
reproduz
alguma
característica do objeto em si. Blanchot (1987) ao refletir sobre o espaço poético parte de uma visão mais geral do que a estudada pelos autores
O poeta seria aquele que ao ouvir a fala da obra torna-se seu intérprete, mas não consegue fazer brotar o sentido real da palavra. Por isso, é necessário que a obra se torna íntima não só do seu escritor, mas também do seu leitor para que seja considerada uma obra de fato: “o poeta é aquele que ouve uma linguagem sem entendimento” (p. 45). Com relação à fala poética Blanchot (1987, p. 35) postula: A fala poética deixa de ser fala de uma pessoa:
acima citados, na medida em que não toma
nela, ninguém fala e o quefala não é ninguém, mas
o espaço do vocábulo como base do seu
parece que somente a fala “se fala”. A linguagem assume
estudo, mas se volta, inicialmente, para o
então
a
sua
importância;
torna-se
essencial; [...] e é por isso que a fala confiada ao
espaço que a literatura constrói, pois ela é
poeta pode ser qualificada de fala essencial.
solitária e exige certa solidão do leitor. A
O
espaço
poético
período
afirma:
religiosidade de um povo caracterizado
Aquele que vive na dependência da obra, seja para escrevê-la, seja para lê-la, pertence à solidão
liga-se
a
no
respeito disso Blanchot (1987, p. 12) A obra não é acabada nem inacabada: ela é. [...].
medieval
estudado
intensa
pelo teocentrismo, ou seja, Deus era o centro de todas as coisas. O homem
do que só a palavra ser exprime: palavra que a
medieval estava sempre a procura de Deus
linguagem abriga dissimulando-a ou faz aparecer
e
quando se culta no vazio silencioso da obra.
Blanchot (1987) reconhece, assim, que a escrita tem um papel relevante, porque faz eco ao que não pode se calar.
vivia
a
sua
fé
nos
ritos
e
nas
manifestações de forte carga emocional que o aproximava de um mundo divino. Ferreira
(1988)
esclarece
que
560
a
Carlos Henrique Durlo
religiosidade das populações se traduz nas romarias,
as
numerosas
capelas
das
O
estudo
do
espaço
sagrado
medieval e do culto à Virgem apresenta-se
pequenas localidades, aos santuários e
como
também as cidades maiores como Santiago
história religiosa de Portugal no século XIII.
de Compostela, Lisboa, Alentejo, Faro
Além do espaço religioso, um estudo sobre
entre outras.
a posição que a mulher ocupa nas cantigas
De acordo com Baschet (2006), há vários
motivos
levam
contribuição
à
e nas iluminuras que as acompanham será fundamental para traçar um paralelo entre
medieval às promessas e esperanças de
a mulher religiosa e a mulher comum, bem
cura.
são
como a observação do culto mariano que,
estabelecidos desde a Alta Idade Média
nos mais diversos santuários à Virgem
pela existência de túmulos nas igrejas e
dedicados, rompeu os limites geográficos e
pela difusão das relíquias dos santos.
temporais, propiciando, na atualidade, o
espaços
o
inestimável
homem
Os
que
uma
sagrados
Jerusalém, Roma e Santiago de Compostela
são
os
espaços
nosso estudo.
mais
Configurando o estudo do espaço
importantes de peregrinação na Idade
sagrado nas Cantigas de Santa Maria,
Média. A peregrinação a Santiago de
acentuadamente religiosas, tomamos como
Compostela foi favorecida pelos soberanos
exemplo a cantiga 197.
hispânicos, reforçou os reinos e manifestou
Cantiga 197 – Como Santa Maria de
a unidade da cristandade simbolicamente
Terena ressocitou u meno a que matara o
convocada mulçumanos,
para
fazer
existindo,
face portanto,
demo
aos um
A Cantiga 197 é composta por 10
vínculo entre a peregrinação nos espaços
estrofes com 3 versos monorrimos mais um
sagrados e a reconquista do território
verso de rima igual à do estribilho e
(BASCHET, 2006).
apresenta
de
início
um
mote,
um
De acordo com Maleval (1999, p. 23)
argumento que sintetiza toda a narrativa da
o Caminho a Santiago permitira a interação
cantiga. Esse argumento é típico das
entre os trovadores occitanos, mestres na
Cantigas de Alfonso X e, de acordo com
arte de trovar e a tradição poeta autóctone
Torres
ao que certamente se filiam os peculiares
inteligência de síntese do Rei Sábio, ou
“cantos de mulher” desse noroeste da
seja, o artifício de resumir em poucas
Península Ibérica.
palavras, geralmente de um a três versos o
Gonzales
(1990),
resumo da narrativa.
valoriza
a
De acordo com o
561
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
argumento,
a
narrativa
abordará
a
ressurreição de um menino que, ao ser
seguinte forma: É essa a razão de vos contar um tão grande milagre.
morto pelo demônio, é levado à Terena em
Nesta Cantiga, o demônio provoca o
romaria e lá, aos pés da Virgem Maria
mal a um homem rico e que era de paz,
torna à vida: “Como Santa Maria de Terena
cujo filho amava mais do que a outras
ressocitou u meno a que matara o demo.”
pessoas. Durante a narrativa, observa-se
No
estribilho
observa-se
uma
que o “ome de paz” atribui o cuidado de
comparação entre o Bem e o Mal, ou seja,
seu gado ao filho que muito amava. O
entre a Virgem (bem) e o demônio (mal).
demônio, ao aproveitar-se da situação em
Portanto, se o demônio tem poder de fazer
que o menino se encontrava, ou seja,
mal aos homens, aos filhos amados da
sozinho e distante de qualquer pessoa que
Virgem, maior poder tem a Virgem em fazer
o pudesse ajudar e sabendo que grande
o bem: “Como quer que gran poder /; á o
dor causaria ao “ome de paz”, toma
dem’ en fazer mal,/; mayor l’ á en bem
(possui) o menino pra si e o prende,
fazer/; a Reynna spirital.”
afogando-o em um local distante de todos,
Não podemos deixar de observar
levando-o à morte.
que a Virgem Maria é chamada de Rainha
Ao constatar a morte do filho que
espiritual no último verso do estribilho: “a
muito amava, o pai e a mãe grande luto
Reynna spirital.”E a ela são atribuídos
fizeram. Até que o irmão do menino, a
poderes milagrosos. Poder esse de fazer
partir da quinta estrofe, lembra-se da
voltar à vida aquele a quem o demônio
promessa que aquele fizera e diz, no
havia possuído e matado. Dessa forma,
primeiro verso da sexta estrofe: “Meu
não há mal que possa fazer o demônio sem
yrmão prometera por en romaria yr a
que a Virgem Maria possa a vir revertê-lo.
Terenna”.Mas não é a promessa não
Se há o mal, maior é o bem que se pode
cumprida que nos chama a atenção. O que
realizar.
é relevante nessa Cantiga é a causa da
É o poder que a Virgem Maria tem
morte, ou seja, o menino morrera por causa
em fazer o bem que motiva o autor a narrar
de seus pecados e para que este fosse
o fato. O motivo é enfatizado no último
perdoado o irmão irá à Terena e ante a
verso da primeira estrofe: “e porend’ un
Virgem se prostrará, rogando a ela que "a
grand
Sennor que pod' e val" perdoe os pecados
miragre
tal”.Podemos
vos
traduzir
direi
de
razon
esse
verso
da
do menino, prometendo em troca dar ao santuário dez dos porcos que criara:
562
Carlos Henrique Durlo Mais ficad’ ant’ os gollos e a[a] Madre de Deus rogade que lle perdõe todo-los pecados seus, e eu promet’ a as obra dez daquestes porcos
em
especial
com
a
abordagem
da
proximidade do Fim dos Tempos, o pecado
meus,
era sempre a grande causa ou explicação
en tal que por ele rogue a Sennor que pod’ e val.
para os males do corpo e da alma. Dessa
(CSM, 197)
Após rogar à Virgem que ao Senhor levasse seu pedido, o irmão ressuscita. Tal fato pode ser constatado na oitava estrofe: "Por rogo da Virgen Madre Deus ssa oraçon oyu,e o que jazia morto atan toste resurgiu, e des ali adeante daquel mal ren non sentiu; esto fez Santa Maria, que aas coitas non fal". Ao observar o poder do bem sobre o mal, ou seja, o poder atribuído à Virgem Maria em fazer prevalecer o bem sobre aqueles que a ela se voltam e confiam suas orações, todos, ao ouvirem o feito realizado pela poderosa Mãe de Deus, louvam-na por ter ressuscitado dos mortos aquele a quem o demônio matara, desfazendo “seu feito como a agua o sal".A narrativa é encerrada repetindo-se o estribilho que reforça o poder da Virgem Maria sobre o mal. Conclui-se, portanto, que na primeira das doze Cantigas dedicadas ao Santuário de Terena, a temática abordada é o pecado, ou seja, a causa que leva o menino, o filho do “ome bõo”, à morte são os pecados por ele cometidos. É por isso que não podemos nos esquecer de que, no contexto cultural e religioso do século XIII,
forma, para que os pecados fossem perdoados era necessário ir em romaria à Terena rogar a Virgem Mãe de Deus, a Senhora que sobre todo o mal tem o poder de fazer o bem, que devolva a vida ao “meno a que matara” o demônio. As
romarias,
peregrinações, presentes
ou
chamadas
sempre
na
estiveram
religiosidade
popular
e
sempre foram essenciais não só para o catolicismo, mas também para a vida econômica,
social e cultural de uma
sociedade,
em
Feudalismo.
especial
É
a
nesse
partir
contexto
do de
peregrinações que nos deparamos com Terena, colhidas dessa obra ímpar da literatura galego-portuguesa do século XIII. Terena, também conhecida por São Pedro de Terena, cujo Santuário Alfonso X dedica 12 das 427 Cantigas de Santa
Maria, é uma freguesia portuguesa do conselho
de
Alandroal,
distrito
e
arquidiocese de Évora. As origens de Terena, apesar das incertezas
que
a
cercam,
são
muito
antigas, tendo seu primeiro foral concedido no século XIII. Em seu território, o culto à Virgem Maria foi cultivado desde tempos remotos,
possivelmente
por
meio
563
da
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
cristianização de cultos pagãos do império
fora acusado injustamente de matar à
romano, sendo o seu Santuário hoje
própria mulher.
denominado
de
Santuário
de
Nossa
Diferentemente da cantiga anterior, a
Senhora da Boa Nova, homenageado por
Virgem Maria, para livrar seu servo fiel da
Alfonso X.
mão dos inimigos, faz com que o demônio
A origem do Santuário é antiga e
personifique o “ome bõo” e engane a todos
envolto em mitos, julgando-se que possa
os que o perseguiam. Além disso, é a
ser resultado da cristianização de cultos
primeira Cantiga, das doze dedicadas à
pagãos do Império Romano, visto que nas
Terena, em que o autor apresenta o
imediações da vila de Terena subsistem
adultério da esposa do “ome bõo” como
ruínas do templo do deus Endovélico.
razão
Todavia,
mariano,
é
certo
que
as
referências
para já
a
realização
que
este
do
fora
milagre acusado
históricas ao santuário remontam ao século
injustamente de ser o autor da morte da
XIII, uma vez que Alfonso X se refere ao
adúltera.
templo como um lugar honrado, santo e de
O estribilho apresenta a Virgem
muitos milagres realizados pela Virgem
Maria como “a Sennor mui verdadeira”. E
Maria:
quem a ela serve de todos os males é Assi com’ oý dizer a quen m’ aquest’ á contado, en riba d’Aguadiana á um logar muit’ onrrado e Terena chaman y, logar mui sant’ aficado, u muitos miragres faz [a Sennor de dereitura.] (CSM 224).
O espaço sagrado de Terena também se apresenta na Cantiga 213.
Cantiga 213 – Como Santa Maria livrou u ome bõo en Terena de mão de seus emigos que o querian matar a torto, porque ll’ apõyan que matara a ssa moller. Das 12 Cantigas de Alfonso X dedicadas ao Santuário de Terena, a de número 213 é a maior. Composta por 20 estrofes com 3 versos monorrimos mais um verso de rima igual ao estribilho, a Cantiga narra a história de um homem bom que
guardado,
ainda
mais
quando
lhe
imputados injustamente. A Cantiga narra que em Elvas havia um homem chamado de Don Tome e que “sobre tod’ outra cousa amava Santa Maria” e que casado era com uma mulher que julgava ser boa e salva, mas que errara em seu julgar, pois “ela amava mui mais a outros ca non a el[e] amava, e poren quando podia era-lle mui torticeyra’. Observa-se aqui que a esposa é chamada de perversa (torticeyra), pois amava mais à outros homens do que o marido que era “u ome bõo”. Certo dia, saindo o marido para o trabalho, e achando-se a mulher sem
564
Carlos Henrique Durlo
marido, fez “como moller maa”, e com
No decorrer da narrativa, a partir da
outros homens fora se encontrar. Porém,
estrofe de número doze, os homens,
naquela noite, acharam-na morta e ferida
julgando encontrar o “ome bõo” em Terena,
por facadas. Seus parentes, desconfiados
para lá seguiram, mas encontraram o
de que o marido a matara armaram
demônio,
emboscada no intuito de capturá-lo, de
homem bom, à margem da ribeira: “mas o
acordo com as estrofes cinco e seis:
dem’ acharon en forma del na ribeira”. E
Ela fazendo tal vida, ha noite a acharon
um dos que o perseguiam, tentando feri-lo
morta e acuitelada; e seus parentes chegaron, e pois que a morta viron, no marido sospeitaron que a matara a furto e sse fora ssa carreira.
personificado
na
figura
do
com uma flecha, montado em seu cavalo, enganado pelo demônio, caiu com o cavalo na ribeira. Por fim, os homens ao perceberem
Daquest’ o marido dela sol non sabia mandado; e quando chegou a Elvas, foi logo desafiado
que haviam sido enganados pelo “dem’ arteiro”, rogaram ao “ome bõo” que o perdoassem, pois à Virgem Maria é a
dos parentes dela
Senhora cheia de humildade que nos dá
todos, e sen esto recadado
passagem para o paraíso, “que é vida
o ouvera o alcayde; mas fogiu aa fronteira. (CSM,
duradeira”. E encerra o autor, essa longa
213).
No entanto, a “quem serve Santa
narrativa, retomando o estribilho que afirma
Maria, a Sennor mui verdadeira, de toda
que
quem
serve
à
Virgem
Maria
é
cousa o guarda que lle ponnan mentireira”,
guardado por Ela de todos os males e
o homem bom foi à igreja de Terena, como
injustiças, pois é Ela a “Sennor mui
narra a nona estrofe, e ante o altar da
verdadeira”.
Virgem rogou-lhe à Senhora que dos
Ao concluir a análise desta Cantiga
santos é espelho e luz (“Sennor, tu que es
observamos que a temática presente na
dos
narrativa é a justiça. A Virgem Maria, a
santos
espello
e
lumeira”),
não
morresse injustamente: [Ele, pois foi na eigreja, deitou-ss’ enton mui festo ant’ o seu altar e disse: “Madre do Vell’ e Meno, que te does dos coitados, doe-te de mi mesquo, Sennor, tu que es dos santos espello e lumeira;]
senhora da verdade, não permite que seus filhos sejam julgados de forma injusta pelos pecados cometidos por outros, ainda mais o pecado do adultério tão condenado pela Igreja. Dessa forma, aquele homem que era bom e que enganado fora pela sua
565
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
esposa,
pela
Mãe
de
Deus
fora
O estudo do espaço sagrado nas
salvaguardado das mãos de seus inimigos
Cantigas de Santa Maria se justifica,
e da injustiça que provocariam motivados
portanto, pelo fato de que o espaço é uma
pela mentira e pela perversidade da
importante categoria literária na narrativa e
adúltera.
na poesia. A religiosidade, a peregrinação,
Conclui-se que a ideia do espaço
os costumes religiosos e a influência da
religioso era o local por excelência da
Igreja na vida do povo são retratadas
resolução dos problemas e desajustes
nessas cantigas e na cultura popular dos
sociais causados pelo pecado e pela
séculos XIII e XIV.
injustiça. As Cantigas de Santa Maria,
Nas figuras 1 e 2 visualizamos o
acentuadamente religiosas, configuram a
Santuário de Terena (figura 1) e a imagem
ideia
da
do
espaço
sagrado,
conforme
observamos nas duas cantigas analisadas.
Figura 1
Virgem
Maria
(figura
2)
cultuada
naquele santuário:
Figura 2
Referências: BASCHET, Jerônimo. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. FERREIRA, Maria Ema Tarracha. Poesia e prosa medievais. Lisboa: Ulisséia, 1988. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1990.
566
Carlos Henrique Durlo
LAPA, Manuel Rodrigues. Lições de literatura portuguesa – época medieval. 8ª ed. Coimbra: Coimbra Editora Ltda., 1973. LEÃO, Ângela Vaz. Cantigas de Afonso X a Santa Maria: antologia, tradução e comentários. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2011. MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Peregrinação e Poesia. Rio de Janeiro: Ágora da Ilha, 1999. METTMANN, Walter. In: Afonso X, O Sábio. Cantigas de Santa Maria. Editadas por Walter Mettmann. Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis, 1959-1972. MONTEIRO DE CASTRO, Bernardo. As Cantigas de Santa Maria: um estilo gótico na lírica ibérica medieval. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2006. SANTOS, Luís Alberto Brandão; OLIVEIRA, Silvana Pessoa. Sujeito, tempo e espaço
ficcionais: Introdução à Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001. SPINA, Segismundo. Iniciação na Cultura Literária Medieval. Rio de Janeiro: Grifo, 1973. TORRES GONZALES, Francisco. Alfonso X: uma mentalidade de sintesis. Cuadernos de
estudios manchegos. Espanha: Universidade de La Rioja, nº 20, p. 199-207, 1990. ISSN: 0526-2623.
567
A CONCEPÇÃO DE HISTÓRIA PARA POLÍBIOS- UM OLHAR GREGO SOBRE AS CONQUISTAS ROMANAS Diego Regio Giacomassi1 Adriana Mocelim (Orientadora) Resumo Políbios, historiador grego genuíno de Megalópolis, membro da federação Aquéia, participou do conflito romano-macedônio no qual preferiu manter se neutro junto de seu pai Licortas. Porém após a submissão de toda Grécia pelas forças romanas, foi mandado para o exílio em Roma, onde escreveu sua maior obra: Histórias, a qual é dedicada a compreender como e com que Constituição em menos de 53 anos os romanos conseguiram submeter todo o mundo conhecido até então. Além de compreender o contexto histórico vivenciado pelo autor, através da análise de sua obra Histórias, buscouse levantar características que permitam compreender a concepção de História adotada por ele e ainda elementos que caracterizam a expansão romana durante a República. A metodologia empregada consistiu em revisão bibliográfica e análise minuciosa da fonte primária em questão; a obra Histórias. Sob uma posição privilegiada, em uma época caracterizada pelo êxito romano e o declínio grego, Políbios empreende em sua narrativa uma história pragmática, que tem como características o objeto de investigação os fatos políticos, a preocupação em atribuir as causas das vitórias e dos fracassos dos acontecimentos, além de ser útil para o presente e de narrar os feitos como eles realmente ocorreram. Com uma concepção cíclica e aberta da história, no sentido de que a degeneração inevitável das instituições se dá de forma imprevisível, fazendo da história ensinamento, Políbios caracteriza o início da expansão romana na Itália de forma bastante positiva em um breve resumo no começo de sua obra, referindo-se às conquistas como “uma marcha para a grandeza”. Palavras-chave: História; Políbios; Pragmática.
1PUCPR/
PIBIC
568
Diego Regio Giacomassi
Políbios historiador grego genuíno
vida uma educação compatível à sua
de Megalópolis, cidade da Arcádia, nasceu
posição social, envolvido nas questões
aproximadamente em 208 a. C. e morreu
macedônicas e romanas, representante do
no ano de 125 a.C. em consequência de
partido aristocrático junto de seu pai, não
uma queda de cavalo aos 82 anos de
tinha pressa em apoiar um dos lados do
idade. O autor de Histórias obra a qual se
conflito, a terceira Guerra da Macedônia,
possui
terço
fato que proporcionou seu exílio para
em
Roma, pois esta exilava os mais notáveis
escrever a história do período da expansão
das cidades conquistadas para dominá-las
romana na bacia mediterrânea, desde a
definitivamente, assim como procurava, ao
intervenção na Grécia, assim como as
fazer tal ato, beneficiar seus aliados
Guerras Púnicas, até a tomada de Roma
regionais
sobre a Numância em 133 a.C. O tema
componentes do partido democrático
somente
preservado,
cerca
tem
de
imenso
um mérito
principal de sua obra é apresentar as causas do êxito do Estado romano nos 53 anos que revolucionaram o mundo Antigo, 221 a 168 a.C., quando Roma consegue submeter praticamente todo o mundo conhecido até então (CABANES, 2009, p. 74; HARTOG, 2013, p.98) “Como e graças a que governo o Estado romano
que
neste
caso
eram
os
Em 171 Políbios estava entre os adeptos da neutralidade, ao lado de seu pai; em 169, todavia, quando a Confederação, contra opinião de Licortas e talvez do próprio Políbios, decidiu declarar-se a favor dos romanos, ele foi nomeado hiparco, sendo Árcon o seu comandante. (POLÍBIOS, 1985, p.31)
Na época de seu exílio (168 a.C.150 a.C.) Políbios possuía por volta de quarenta anos de idade e, ao contrário de
conseguiu, coisa sem precedentes, estender seu
milhares de gregos exilados para diversos
domínio a quase toda a terra habitada, e isso em
confins do território da grande República,
menos de 53 anos?”1 Para responder a essa pergunta,
Políbio,
estava
bem
situado
na
este ficou na cidade de Roma participando
transversal entre a civilização grega em declínio da
do círculo intelectual de Cipião. Acredita-se
qual ele provinha e a civilização romana em
que a obra Histórias tenha sido escrita no
expansão a qual acabou por aderir, a ponto de se tornar um defensor ferrenho de seus valores. (DOSSÉ, 2012, p. 42)
Políbios
pertencia
natal, mas já sem a obrigação do exílio, em
grupo
diversas viagens que fez nessa “segunda”
aristocrático de Megalópolis envolvido na
fase de sua vida, viagens, algumas, até
política e assuntos militares, filho de
mesmo de volta à Roma, onde certa vez
Licortas,
acompanhou Cipião, comandante romano,
comandante
da
ao
período que esteve fora de sua cidade
Federação
Aquéia, provavelmente recebera em sua
na destruição de Cartago em 146a.C
569
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Políbios
relata
e
vivencia
afirmação- ela agradará somente uma espécie de
a
leitores, e para o grande público posso oferecer
experiência do choque de dois mundos
apenas um texto sem atrativos. (POLÍBIOS, 1996,
culturais, grego e romano, que passavam
p. 373)
por fases distintas, o primeiro em declínio
A escolha de escrever uma história
sendo grande parte da Grécia sobre julgo
política
macedônio, e o outro em franca expansão
preocupação que o autor tem com relação
e prosperidade, já que após as vitórias
à utilidade do conhecimento histórico, para
sobre Cartago Roma passou a ser como
Políbios nenhum outro corretivo é mais
diz Marvin Perry (2002, p. 94), “a única
eficiente que a História para auxiliar os
grande
homens nas dificuldades do presente,
potência
ocidental”.
do
(CABANES,
Mediterrâneo 2009,
p.
74;
DOSSÉ, 2012, p. 42)
muito
tem
haver
com
a
deste modo, ao ater-se aos feitos políticos o autor estaria então dando continuidade
1.1 A história pragmática.
às
obras
de
seus
antecessores
que
Diante de três gêneros distintos de
acreditavam, assim como ele, que era o
história, voltados para interesses e leitores
estudo da História o mais importante e
diferentes, Políbios, ao invés de optar por
único meio para exercer uma vida política
escrever uma história genealógica, para
ativa (AQUINO, 2006, p. 48)
“leitores superficiais”, como ele mesmo afirma,
ou
uma
história
referente
à
colonização e fundação de cidades, que atrai “apreciadores de fatos singulares”, o autor de Histórias escolheu por escrever o gênero pragmático, por este tratar dos feitos políticos dos povos e dos estadistas (AQUINO, 2006, p.48) O gênero genealógico atrai os leitores superficiais; o gênero pertinente à colonização , à fundação de cidades e aos laços de parentesco entre os seus
pois nenhum outro corretivo é mais eficaz para os homens
que
o
conhecimento
do
passado.
Entretanto, não somente alguns, mas todos os historiadores, e não de maneira dúbia mas fazendo dessa idéia o princípio e o fim desse labor, procuram convencer-nos de que a educação e o exercício mais sadios para uma vida política ativa estão no estudo da História, e que o mais seguro e na realidade o único método de aprender a suportar altivamente as vicissitudes da sorte é recordar as calamidades alheias. (POLÍBIOS, 1996, p.41)
Aqui é importante ressaltar que o
habitantes, como diz Éforos em alguma parte de
termo pragmático em história pragmática
sua obra, atrai os curiosos e os apreciadores de
não é definido somente pela utilidade
fatos singulares, enquanto o estudioso de política se interessa pelos feitos dos povos, das cidades e
prática do conhecimento histórico, que o
dos estadistas. Quanto a mim, concentrei a minha
considera um recurso para potencializar as
atenção exclusivamente nestes últimos assuntos, e
possibilidades
como minha obra não trata de qualquer outra coisa- já tive a oportunidade de fazer essa
de
ação
no
presente,
segundo Pedech (1964, p.32), o termo
570
Diego Regio Giacomassi
pragmático história,
foi
que
adicionado
na
à
antiguidade,
palavra tinha
o
significado de “investigação”, para também
autor, para qualquer cidadão de seu tempo (AQUINO, 2006, p. 49; DOSSÉ, 2012, p. 42) Com efeito, a própria singularidade dos eventos
definir os objetos de pesquisa e diferenciar
escolhidos por mim para meu tema será suficiente
dos outros dois tipos de narrativa citados
para desafiar e incitar a totalidade dos leitores,
anteriormente, os quais são associados à
sejam eles jovens ou idosos, a conhecer a minha história pragmática. Pois quem seria tão inútil ou
mitologia e não à narrativa comprometida
indolente a ponto de não desejar saber como e sob
com a verdade. Ou seja, na antiguidade
que
grega, a história em si, séria, não fabulosa, passado.
Tal
opinião
também
de
constituição
os
romanos
submeter quase todo o mundo habitado ao seu
é aquela que atrela-se aos fatos políticos do
espécie
conseguiram em menos de cinqüenta e três anos governo exclusivo- fato nunca antes ocorrido? Ou,
é
em
corroborada por François Dosse citado a
outras
palavras,
quem
seria
tão
apaixonadamente devotado a outros espetáculos ou estudos a ponto de considerar qualquer outro
seguir (AQUINO, 2006, p. 49, 50)
objetivo mais importante que a aquisição desse
O segundo sentido do qualificativo pragmático em
conhecimento? (POLÍBIOS, 1996, p.41)
Políbio é designar uma divisão entre uma história fabulosa- a da filiação com os deuses lendários ou
Para que a história cumpra seu
a das imigrações dos povos e das fundações das
papel no presente, e seja “frutuosa”, não
cidades- e a história séria- a única pertencente à dimensão
pragmática,
pelo
desenvolvimento
basta que o historiador simplesmente
metodológico exigido por ela. (DOSSE, 2012, p.
afirme os acontecimentos como de fato
43)
ocorreram, a narrativa histórica polibeana
Além da utilidade prática, Políbios cita mais duas razões para ater-se ao gênero
pragmático,
primeiramente
a
constante “novidade”, “porque há sempre algo digno de tratamento novo”, ou seja, a história
privilegia
os
acontecimentos
presentes e a segunda razão seria à tamanha importância para o presente do próprio objeto de sua narrativa, o qual é explicar “como e sob que espécie de constituição os romanos conseguiram em menos de cinqüenta e três anos submeter quase
todo
o
mundo
habitado”,
fato
considerado imprescindível, segundo o
deve fornecer elementos que expliquem os fatos ocorridos e hierarquizar suas causas. Todo esse compromisso se vale de um método
demonstrativo
de
provas
denominado apodídico. Utilizando como fonte
suas
próprias
experiências
e
testemunhos recolhidos por ele, através de relatos e outras obras, Políbiosemprega uma pesquisa causal tentando dar conta de uma História geral, preocupada em narrar os diversos acontecimentos nas mais diferentes regiões do mundo conhecido que se interligavam para um único fim, a
571
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
conquista romana (DOSSE, 2012, p. 44,
imaginação criadora, à razão e a uma
42)
vontade Realmente, a simples afirmação de um fato pode interessar-nos
mas
não
nos
traz
benefícios;quando, porém, acrescentamos ao fato a sua causa, o estudo da História torna-se frutuoso. A transposição mental para o nosso tempo de circunstâncias análogas dá nos meios para
fazermos
previsões
a
respeito
dos
acontecimentos futuros, capacitando-nos as vezes a tomar precauções, e às vezes, graças a reproduções de situações, a enfrentar com maior confiança as dificuldades pendentes sobre nós. (POLÍBIOS, 1996, p.415)
Deste modo, sendo as causas os principais
elementos
de
sua
narrativa
histórica, torna-se imprescindível conhecer a teoria causal do método empregado por Políbios na sua busca pela verdade e no real entendimento dos fatos. autor
acredita
possuir
a
caos, e julga censuráveis as pessoas que atribuem à Sorte, ou aos deuses a razão pela qual todas as coisas acontecem. Políbios crê que somente quando não se consegue de modo algum achar as causas dos fatos é que se pode atribuir à vontade dos deuses ou ao destino, como no caso dos acidentes naturais, do contrário, as causas as quais ele procura demonstrar se nas
próprias
categorias
humanas, como afirma François Dosse (2012, p.45) “ao contrário dos fenômenos naturais,
as
causas
estão
ligadas
ao
entendimento” (AQUINO, 2006, p.53) Quanto a mim, por achar censuráveis as pessoas que atribuem eventos na vida pública e incidentes na vida privada à Sorte e ao Destino, desejo expor agora minha opinião a esse respeito, tanto quanto é
pertinente
fazê-lo
numa
obra
puramente
histórica. Realmente, a propósito dos fatos cujas causas não pode de forma alguma ou somente pode com muita dificuldade perceber, devemos talvez ter razões quando procuramos sair da dificuldade atribuindo-os à interveniência divina de um deus ou da Sorte- por exemplo, fenômenos como chuvas ou nevascas excepcionalmente fortes ou contínuas, ou inversamente a destruição de colheitas por secas rigorosas, ou por geadas, ou uma persistente peste epidêmica ou outros eventos análogos cujas as causas não são facilmente perceptíveis. Em face de eventos como esse devemos curvar-nos naturalmente diante da causas eficiente e final podemos descobrir, não
capacidade de discernir a realidade do
encontram
subordinada
opinião popular (...) Mas, em situações cujas
1.2 A teoria das causas. Nosso
estritamente
à
devemos penso eu, atribuí-las à interveniência divina. (POLÍBIOS, 1996, p.540, 541)
Desse modo, de acordo com sua teoria, Políbios distingue os elementos causa, pretexto e começo, que não devem estar de forma alguma em situação de confusão, mas sim de sucessão. Sendo as causas as intenções anteriores à ação, essas subordinam o ato, o início de qualquer coisa (DOSSE, 2012, p. 45) No livro III, ele fala de uma “grande e substancial diferença entre o começo, a causa, e o pretexto”, indicando que “estes últimos [causa e pretexto] são os primeiros termos de toda a série, e o começo o último” (III, 6).7. Nessas noções, a ação humana parece se identificar com o começo (ou início) e, nesse sentido, distingue-se das intenções. As
572
Diego Regio Giacomassi ações são o início na condição de execução de
perguntou-lhe afetuosamente se ele desejava
intenções e planos; estes são, assim, anteriores às
acompanhá-lo na expedição.(...) o pai segurou-lhe
ações, ao início: são efetivamente, suas causas:(
a mão (..) e mandou estender sua mão sobre a
..) As causas são, assim, da ordem do sujeito, da
vítima sacrificada no mesmo tempo e jurar que
ordem interna: “julgamentos”e reflexões, idéias,
jamais seria amigo dos romanos.(POLÍBIOS, 1996,
“sentimentos”e “raciocínios”. No entanto, segundo
p. 142, 143)
P. Pedech, as operações mentais, intelectuais têm, nesse conjunto, domínio; (AQUINO, 54,55)
Como exemplo do trato de sua teoria causal psicológica, Políbios defende como uma das principais causas da segunda Guerra Púnica, o “primeiro passo” que os romanos
deram
para
sua
conquista
mundial, o desejo de desforra de Amílcar, pai de Aníbal, que segundo Políbios, fez seu filho jurar nunca ser amigo dos romanos, causa revelada pelo próprio
Outro exemplo de que as causas são associadas às operações mentais, nosso autor atribui os sucessos de Roma “sobre todo o mundo habitado” à sua própria Constituição que, segundo ele, não impõe somente a forma de governo sobre seus habitantes, mas dela também derivam as idéias e as iniciativas dos atos e costumes dos seus governantes e cidadãos (DOSSÉ, 2012, p. 45) Políbio considera que uma das razoes que
Aníbal, quando este se refugiou, depois de
permitiram a Roma exercer sua potência é a forma de sua Constituição, que inclui, segundo ele, não
perder a Guerra, na corte de Antíocos em
só o regime político, mas também os costumes da
conversa com o rei e que confere-se no
civilização romana. A Constituição em sentido
trecho da obra citado a seguir (DOSSE,
amplo determina a causalidade histórica mais geral. (DOSSÉ, 2012, p. 45)
2012, p.44, 45)
Sendo
Numerosas evidências podem ser encontradas para
comprovar
o
fato
de
Amílcar
haver
contribuído muito para a origem da segunda Guerra Púnica, apesar de ter morrido dez anos
predominantes
as
Constituições
de
todo
causas
sucesso
e
insucesso dos governos na investigação
antes do início da mesma, porém na minha opinião
causal polibeana, é de suma importância
o episódio que vou relatar é bastante para
conhecermos o inevitável processo de
confirmar essa asserção. (..) O cartaginês disse que por ocasião dos preparativos finais para a
degeneração
natural
pelo
qual
elas
expedição de seu pai com um exército contra a
passam, para então compreendermos a
Ibéria, ele mesmo então com nove anos de idade
concepção de história que perpassa a sua
estava de pé nas proximidades de um altar, enquanto Amílcar oferecia sacrifícios a Zeus.
obra
Quando, em face dos presságios favoráveis.
1.3 A teoria de anaciclosepolibeana e a sua
Amílcar havia espargido uma libação aos deuses e
concepção de história
cumprindo os rituais costumeiros ele ordenou às outras pessoas que se afastassem até uma certa distância, e pedindo a Aníbal para aproximar-se e
Políbios
considera
que
as
Constituições estariam submetidas a uma
573
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
lei
natural
inevitável
denominada
presente, a serviço da qual põe-se a
anaciclose, ou seja, a sucessão cíclica dos
história
regimes políticos fadados ao declínio,
história para Políbios torna-se aberta,
retomando a teoria aristotélica, de que as
cognoscível e praticável (AQUINO, 2006,
três
p.63, 64, 65)
formas
primárias
de
governo,
concepção
de
conceber a própria história humana como cíclica, a
degenerariam respectivamente em tirania,
concepção polibeana do ciclo propriedade e
oligarquia e oclocracia (DOSSE, 2012, p.
decadência
dos
regimes
políticos
tem
precisamente a pretensão de tornar aberta a
46)
história, isto é, de torná-la cognoscível e praticável.
As causas dessa lei de sucessão
(AQUINO, 2006, p. 65)
natural de regimes esta associada à própria sucessão de gerações da espécie humana, e, como conseqüência disso, promoveria o esquecimento histórico dos mais novos que não reconheceriam os esforços dos mais velhos para a manutenção do regime, o implicaria
na
impossibilidade
da
estabilidade contínua dos governos, que assim
fatalmente
se
degenerariam.
(AQUINO, 2006 p.61) Porém ao contrário da concepção cíclica
a
Assim, parece-me que, muito mais do que
monarquia, aristocracia e democracia, se
que
pragmática”,
de
Aristóteles,
fixa
e
circular,
Políbios adiciona como causa a esse processo
de
decadência
e
desaparecimento de regimes, os chamados “fatores exógenos” que provocariam o desaparecimento de maneira imprevisível. Com isso, propõe uma flexibilidade para essa “sucessão natural”, assim ela não se torna inevitável, ainda que a decadência e o fim o sejam. Associado à quebra da sequência definida, em conjunto com “a possibilidade da intervenção prática no
Desse modo, ao constituir uma narrativa histórica voltada para a prática política no presente, função que nosso autor atribui à história, não fazendo do destino algo totalmente previsível, mas sim imprevisível na sua teoria de anaciclose, graças
aos
fatores
“exógenos”,
a
concepção de história para nosso autor é “aberta”, “cognoscível” e “praticável” no sentido que para ele o destino não é determinado, ainda que tudo esteja em declínio, mas sim passível, em certa medida, às ações humanas, assim, além da história ser possível de se compreender ela também é fruto das ações dos homens além de instrumento para seus atos. 2
Políbios e a narrativa acerca da
expansão Romana. A expansão romana na Itália teve início após o acordo desfavorável que os romanos fizeram com os gauleses após estes terem saqueado Roma no início do século IV a.C. Primeiramente deflagrando
574
Diego Regio Giacomassi
guerra na região da Itália central, após ter
da grandeza” e que “graças à bravura e à
fortificado suas muralhas depois do saque
boa sorte” os romanos combateram e
sofrido, Roma durante todo o século IV e
venceram os etruscos, depois os celtas e
início do século III esteve ocupada em
os samnitas. Com relação aos conflitos
vencer, e venceu, seus inimigos vizinhos,
com os tarentinos, os romanos “atacaram
estendendo definitivamente seus domínios
então pela primeira vez o resto da Itália não
sobre à Etrúria, Lacio, Campânia e à Itália
como se fosse um território estrangeiro,
Meridional, regiões nas quais combateu
mas como se lhes pertencesse por direito”,
Latinos e Samnitas, os mais ferozes rivais
desse modo, Políbios concluí esse resumo
da expansão (GIORDANI, 1968, p.37, 38;
de
POLÍBIOS, 1996, p. 44,45)
extraordinário, onde podemos atestar na
Depois das conquistas sobre a Itália Meridional, a presença romana inquietou Tarento, metrópole do sul, que em vão tentou fazer com que outros povos itálicos se aliassem contra o lento e seguro domínio romano. Após o descumprimento de Roma sobre um tratado firmado pelas duas cidades, a respeito da não invasão do Adriático, as duas forças entraram em conflito. Pirro, rei de Tarento, deflagrou várias vitórias sobre os romanos, mas sem muito efetivo para continuar o conflito foi obrigado a uma proposta de paz; enquanto este foi disputar a coroa macedônica, Roma dominou a Magna Grécia e sitiou Tarento, sua Metrópole, a qual se rende em 275 a.C. (GIORDANI, 1968, p. 39) Todo esse período relatado, as primeiras conquistas romanas, as quais resultaram numa imensa quantidade de súditos, Políbios refere-se a essas guerras e conquistas como uma “marcha à estrada
êxitos
romanos
como
um
feito
citação a seguir Depois de fazerem uma trégua em condições favoráveis
aos
gauleses
e,
contra
a
sua
expectativa, voltarem aos seus lares e por assim dizer iniciarem a marcha pela estrada da grandeza, os romanos continuaram nos anos subseqüentes a levar a guerra aos seus vizinhos. Após subjugar todos os latinos graças à sua bravura e à boa sorte na guerra, eles combateram primeiro contra os etruscos, em seguida contra os celtas e depois contra os samnitas, cujo território confinava com o dos latinos a leste e ao norte. Algum tempo mais tarde os tarentinos, temendo as conseqüências de sua insolência para com os emissários dos romanos, pleitearam a intervenção de Pirros (isso ocorreu no ano anterior à expedição dos gauleses que foram derrotados em Delfos e então rumaram para a Ásia11). Naquela ocasião os romanos tendo subjugado os etruscos e samnitas e tendo vencido os celtas na Itália em várias batalhas, atacaram então pela primeira vez o resto da Itália não como se um território estrangeiro, mas como se lhes pertencesse por direito. (...) E- feito extraordinário!após haverem subjugado todos esses povos e terem transformado em súditos seus todos os habitantes da Itália à exceção dos celtas, eles empreenderam o cerco a Région, então ocupada por outros romanos.(POLÍBIOS, 1996, p. 45)
575
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Políbios, portanto, como mostrado anteriormente, conquistas
se
refere
romanas
de
às
primeiras
uma
boa sorte na guerra, modo bastante positivo, esperado, já que nosso autor por
forma
mais que tenha sido dominado por Roma,
resumida no início do Livro I da sua obra
tornou-se desde o exílio adepto a ela até o
Histórias, referindo-se a elas como uma
fim de sua vida.
época vencedora, resultado de glórias e
Referências: AQUINO, João Emiliano Fortaleza de. Memória e consciência histórica. Fortaleza. Ed.UECE, 2006. CABANES, Pierre. Introdução à história da Antiguidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. DOSSE, François. A história. São Paulo: Unesp, 2012. GIORDANI, Mario Curtis. História de Roma: Antiguidade Clássica II. 2.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1968. GIORDANI, Mario Curtis. História da Grécia: Antiguidade Clássica I. 3 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1984. HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores vêem. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. PÉDECH, Paul. La méthodehistorique de Polybe. Paris:LesBellesLettres, 1964. PERRY, Marvin. Civilização ocidental: Uma história concisa. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. POLÍBIOS, História. Tradução de Mário da Gama Kury, Brasília, Editora Universidade de Brasíla, 1996.
576
GÊNERO E SEXUALIDADE NOS ESTUDOS DA ANTIGUIDADE ROMANA: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS/METODOLÓGICOS SOBRE A MASCULINIDADE NOS EPIGRAMAS DE MARCIAL (I SEC. D.C) Filipe Cesar da Silva 1 Resumo: A construção do conhecimento histórico tem sido feita por meio de várias fontes de pesquisa. A proposta, neste caso, é investigar e analisar a sociedade romana, os perfis de masculinidades e suas relações sexo-afetivas por meio de uma obra literária da Antiguidade produzida em Roma, no séc. I d.C. A fonte em questão é do autor romano Marcial, que em meados do primeiro século do Principado Romano escreveu “Epigramas Eróticos”. Tal obra será discutida através das discussões de gênero e sexualidade e analisada pela abordagem teórico-metodológica da História Cultural, que vê na fonte literária um importante meio de produção de conhecimento e análise histórica. O intuito é de contribuir com uma nova leitura sobre Marcial e refletir, através de uma perspectiva histórica, o necessário respeito às diversas maneiras de vivenciar a masculinidade e a sexualidade humana. Palavras-chave: Gênero; Sexualidade; Epigramas Eróticos de Marcial.
1Graduando
de História da Universidade do Sagrado Coração – USC. Este texto é parte da pesquisa em nível de
Iniciação Científica: “Homens Romanos: o corpo, o amor e a sexualidade segundo os Epigramas de Marcial”, com orientação da Profa. Dra. Lourdes Conde Feitosa e apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP. A pesquisa está inserida nas discussões desenvolvidas junto à linha de pesquisa História, Gênero
e Relações de Poder do grupo de pesquisa Gênero, Sexualidade e Sociedades, cadastrado no CNPq: http://plsql1.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=08157050AHR2CJ.
577
Filipe Cesar da Silva
Introdução: LiteraturaHistória Cultural,
historiador, interessado em compreender o
Representação e as Relações de Gênero
universo mental de mulheres e homens e
Quando iniciamos uma investigação
os
aspectos
sócio-culturais
que
os
histórica, partimos de um tema e buscamos
envolvem. O estabelecimento deste diálogo
nele um recorte temporal. Imediatamente
pôs
passamos a refletir sobre as fontes que
variadas correntes historiográficas, e um
utilizaremos para desenvolver o assunto e
novo olhar sobre a literatura como material
responder às questões pertinentes a ele.
propício à diversas leituras, seja por sua
Refletir sobre quais fontes devemos usar
riqueza de significados para o universo
para a pesquisa historiográfica nunca
cultural,
mereceu tanta atenção como atualmente
experiências e percepções de homens e
(GAFFO, 2013).
mulheres apresentados (CORREIA, 2012;
Feitosa (2005) enfatiza como a expansão
do
ou
pelos
concepções
valores
das
sociais,
GAFFO, 2013). Nas palavras de Pesavento (2006, p.
historiador – que passou a abranger
7) “a literatura é uma fonte para o
objetos
o
historiador privilegiada, [...] porque dará
cotidiano, a língua, a literatura, o mito, a
acesso especial ao imaginário, permitindo-
sexualidade,
lhe enxergar traços e pistas que outras
como o
o
amor,
temático
discussão
do
tais
território
em
inconsciente, os
meios
de
comunicação, entre outros - estimulou a pesquisa de novos documentos, para além dos
oficiais,
como
As obras literárias podem não ser a
literários,
descrição nem mesmo a reprodução real
achados arqueológicos, fontes sonoras,
de uma época, porém, condiciona o
visuais, epigráficas, jornalísticas e etc.
historiador pelo menos uma aproximação e
Situação que possibilita ao historiador
uma tentativa de explicação de uma
interpretar o passado não mais pelo viés
maneira de viver (PARRA, 2010), no caso,
tradicional e dominante, mas em uma
aqui proposto, na Roma Antiga do primeiro
perspectiva
século d.C.
pluralista
escritos
fontes não lhe dariam”.
e
subalterna,
evidenciando pessoas e aspectos até então desconsiderados e excluídos da história.
Nesse
contexto,
a
busca
de
historicidade em testemunhos literários no
Com relação à Literatura, tipo de
estudo da Antiguidade, para além de uma
fonte escolhida para a presente pesquisa,
carência de fontes, revela que estes
sua conversão em fonte histórica tem se
testemunhos não são somente produtos da
efetivado em mudanças no enfoque do
imaginação e ficção, mas que também
578
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
carregam em si indícios que permitem re-
Para
Pesavento
(2006),
as
construir aspectos culturais de uma dada
representações são operações mentais e
sociedade, tornando-se assim, importantes
históricas, que criam sentidos ao mundo,
instrumentos de análise e compreensão
sem
social (SILVA, 2001).
significado. É por meio delas que se age no
elas
este,
em
si,
não
possui
Com o intuito de compreender
mundo, que se constroem identidades.
como Marcial descreve a sociedade do seu
Nesse sentido, a representação fica no
tempo (I sec. d.C) - o universo público e
lugar da realidade, porém, não como uma
privado, os variados segmentos sociais, as
imagem perfeita do real: o representante
múltiplas relações pessoais e interpessoais
não é o representado, ele guarda relações
e, principalmente, as questões relativas à
de semelhança, significado e atributos com
masculinidade, corpo e relações sexo-
este. As representações se expressam nos
afetivas
discursos,
assumindo
acreditamos ser necessário recorrer à
configurações,
as
noção atual do conceito de representação.
concorrentes, estabelecendo relações de
dos
Homens
Romanos
–
múltiplas
quais
se
tornam
Para Chartier (1990), o conceito de
poder. Assim, a percepção dominante
representação diz respeito ao modo como
acaba ganhando foro de realidade, de
em diferentes lugares e tempos a realidade
verdade, sendo naturalizada.
social
é
construída
de
Ideia reforçada por Darnton (1987, p.
delimitações.
29), na qual a noção de representação se
Esses esquemas intelectuais criam figuras
constituí como a maneira pela qual as
que dotam o presente de sentido. O autor
pessoas comuns organizavam a realidade
também
em
classificações,
divisões
acredita
que
por e
meio
esses
códigos,
suas
mentes
expressando-se
em
padrões e sentidos são compartilhados, e
comportamentos e práticas sociais. Apesar
apesar de poderem ser naturalizados, seus
das representações possuírem expressões
sentidos
são
individuais, estas estariam condicionadas
historicamente construídos e determinados
por um “idioma geral”, em outras palavras:
pelas relações de poder e pelos conflitos
um conjunto de símbolos compartilhados,
de interesses dos grupos sociais. Ou seja,
uma estrutura fornecida por cada cultura
as
que criaria possibilidades de expressões,
podem
mudar,
representações
são
pois
sempre
determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam.
mas também as limitaria. Ademais,
as
representações
permitem aos indivíduos a possibilidade de
579
Filipe Cesar da Silva
darem sentido ao seu mundo, isto é,
relações complexas entre diversas formas
encontrarem a ordenação de suas próprias
de interação humana.
estruturas sociais, na medida em que são construções,
embasadas
realidade
que as relações de gênero não são
vivida, as quais traduzem as posições e
naturais, mas construídas historicamente,
interesses dos atores sociais e que, ao
isto é, “as relações entre homens e
mesmo tempo, descrevem a sociedade tal
mulheres,
como
representações dessas relações estão em
pensam
que
na
Louro (2004, p. 35) também enfatiza
ela
é,
ou
como
gostariam que fosse. (CHARTIER, 1990;
os
discursos
e
as
constantes mudanças”.
DARNTON, 1987; PESAVENTO; 2003). Ou
Gênero é fruto de um processo, e
seja, as representações são mecanismos
seus
criados pelos diferentes grupos, por vezes
variam no tempo e em conformidade com
com o objetivo de imporem sua concepção
as diversidades culturais inerentes a cada
de mundo e seus valores.
contexto (FEITOSA, 2005). Dessa forma, o
Permeadas
pela
socialmente
construídos
do
conceito de gênero nos possibilita a
olhar crítico feminista (FEITOSA, 2005), as
compreensão particular de como homens e
análises de gênero ampliam o campo da
mulheres
discussão e acirram os debates em torno
relacionamento social como pessoas que
da construção dos conceitos de “feminino”
articulam novas respostas para o seu
e “masculino”, apresentando diferentes e
universo, pois os padrões de homem
mesmo
(racional, insensível) e de mulher (sensível,
divergentes
perspectiva
atributos
abordagens
e
trajetórias pelas quais os estudos de
delicada)
gênero
(LOURO,
têm
polemicamente áreas
do
sido utilizados
conhecimento
pensados em
e
diversas
(PEDRO
e
GROSSI, 1998). Scott (1995) destaca que gênero tem que ser redefinido e reestruturado em conjunto com uma visão de igualdade política e social que inclui não só o sexo, mas a classe e a raça. Diante dessa realidade, gênero é uma ferramenta para decodificar e compreender o sentido das
se
estão
desenvolvem
sendo
2004;
num
desconstruídos
CONNELL,
1995;
NOLASCO, 1995). Como bem reflete o estudo gênero é uma categoria útil não apenas à história das mulheres, mas também a outros sujeitos históricos: [...] Ele pode lançar luz sobre a história das mulheres, mas também a dos homens, das relações entre homens e mulheres, dos homens entre si e igualmente das mulheres entre si, além de propiciar um campo fértil de análise das desigualdades e das hierarquias sociais. (FILHO, 2005, p. 129).
580
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Assim, compreende-se que gênero
masculinidade, mas também qualitativa, de
não é apenas o feminino. É também o
várias áreas do saber - História, Educação,
masculino, bem como as diversas formas
Medicina Social, Sociologia, lingüística, nas
de gênero e de sexualidade com as quais
quais novas reflexões, artigos, dissertações
essas duas categorias podem se identificar
e teses começam a constituir o que em
em determinados contextos históricos e
breve será um campo de estudo. É nesse
sociais (FUNARI, FEITOSA, SILVA, 2003;
momento que as masculinidades como
PINTO, 2011).
expressões da dimensão relacional de
Nessa perspectiva, Butler (2003) considera
que
as
diferenças
sexuais
entoadas pelas discussões de gênero não
gênero (que apontam expressões, desafios e desigualdades), são pensadas em um contexto acadêmico e político amplo.
poderiam ser explicadas por uma suposta
A respeito dessas investigações
natureza humana, isto é, apenas entendida
sobre
através dos órgãos genitais, mas que
concorda que “a masculinidade não cai dos
resultam de construções culturais, sociais e
céus. [...] a masculinidade nasce do chão,
históricas.
que significa o contexto social, biológico,
Sob
esta
ótica,
as
noções
de
masculinidade,
Amanda
Rabello
cultural e histórico onde os homens se
"diferença biológica de sexo" e "diferença
inserem,
contexto
no
qual
algumas
cultural de gêneros" não são dados crus,
instituições têm sido fundamentais na
que se impõem, de forma compulsória,
formação de gênero” (RABELLO, 2010, p.
mas, conforme reflete Laqueur (2001),
175).
tanto o "sexo biológico" quanto o "gênero
As relações e as abordagens de
cultural" são idéias informadas por crenças
gênero, entendidas como relacionais, além
científicas, políticas, filosóficas e religiosas,
de não descartarem o masculino, e as
que não resultam de um conhecimento
masculinidades, parte dele, transformando,
especifico, sendo, ao contrário, produções
assim, em centro de reflexão, em tema de
discursivas explicáveis em contextos de
preocupação,
lutas e conflitos em que estão em jogo
(LOPEZ, 2011). É nessa discussão que o
gênero e poder.
presente texto se insere ao evidenciar um
Para Lopez (2011), no Brasil, ao longo
das
últimas
duas
décadas,
estudo
em
com
compreendendo
objeto
foco que,
na
de
pesquisa
masculinidade, no
entanto,
a
assistimos a uma proliferação, não apenas
articulação entre os universos femininos e
quantitativa dos estudos em torno da
masculinos
e
seus
aspectos
afetivos,
581
Filipe Cesar da Silva
físicos e ideológicos são essenciais para a
perfeitos, em um corpo de homem, quando
compreensão de seus respectivos papeis
o calor fosse suficiente para externalizar os
em qualquer tempo histórico em que for
órgãos reprodutivos, ou em um corpo de
analisado (FEITOSA, 2005).
mulher, quando o calor insuficiente fazia os
Construindo o corpo, inventando o sexo:
órgãos permanecerem internos. Os órgãos
Para Laqueur (2001, p. 23), “o sexo
reprodutivos seriam vistos como iguais em
tanto no mundo de sexo único como no de
essência e reduzidos ao padrão masculino.
dois sexos, é situacional; é explicável
Ou seja, ambos, homens e mulheres,
apenas dentro de um contexto da luta
seriam dotados de pênis e testículos. A
sobre gênero e poder”. Em sua detalhada
única diferença é que na mulher esses
pesquisa, o autor observa que houve
órgãos não eram externalizados. Assim,
diferentes formas de interpretar o corpo e
argumentava-se que havia uma ligação
as diferenças entre os sexos no decurso da
entre o útero e o cérebro das mulheres, o
história humana.
que
Ao analisar os discursos sobre o corpo, a
plenamente as faculdades mentais. Este
fisiologia reprodutiva e as relações entre os
esquema que ligava a anatomia corporal
sexos, Laqueur (2001) argumenta que a
aos papéis sociais específicos de cada
partir do século XVIII passa-se a considerar
sexo vai permanecer até o século XVIII.
a existência de um modelo de dois sexos,
Haveria, então, um só corpo e, nas
contrariamente à percepção herdada das
palavras de Laqueur (2001, p. 30), “uma só
sociedades ocidentais da Antiguidade de
carne”.
as
impossibilitaria
de
exercerem
que haveria apenas um sexo biológico,
Mas, é a partir do Renascimento
enquanto o gênero se apresentaria pelo
que se pode perceber um enfraquecimento
menos em duas possibilidades.
desse modelo antigo em prol do surgimento
Neste modelo antigo, de um sexo,
de um modelo que enfatiza a existência de
Laqueur (2001) pontua que homens e
dois sexos distintos. Segundo Laqueur
mulheres não seriam definidos por uma
(2001), as causas dessa transformação
diferença
de
não se restringiriam a meras mudanças
natureza, de biologia, de dois corpos
provocadas pelos progressos da ciência,
distintos, mas, apenas em termos de um
mas têm a ver com um contexto mais
grau
da
amplo de transformações no qual se
quantidade de calor atribuída a cada corpo,
destacam as forças políticas, culturais,
ele se moldaria em termos mais ou menos
cientificas e econômicas.
de
intrínseca
perfeição.
em
termos
Dependendo
582
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Louro (2001, p. 8) leva-nos a refletir que, em nosso corpo, ficam marcadas as diversas
interações
que
produzem
"verdades"
(LOURO, 2001). Portanto, a preocupação temática
enfrentamos e convivemos no ambiente
da sexualidade como um campo de análise
escolar, no contexto familiar e comunitário.
relevante, mostra-se, cada vez mais, como
E
são
um objeto fundamental na busca da
significados pela cultura e, continuamente,
compreensão dos possíveis significados
por ela alterados”.
das relações humanas, consideradas nos
como
encontros
e
que
sublinha
e
saberes
“os
corpos
O corpo, portanto, é tomado como
seus mais variados e complexos sentidos,
objeto de problematização e elemento de
nos diversos contextos históricos sócio-
constante reflexão e cuidado, transformado
culturais.
pelas mais diversas formas de captura e de
O masculino segundo os Epigramas
disciplinamento através do trabalho, das
Eróticos de Marcial: representação e
dores, dos alimentos, da sexualidade e de
análise
uma infinidade de dispositivos do poder (FOUCAULT, 1990).
As datas sobre nascimento e morte de Marco Valério Marcial são imprecisas e
Rago (1998)
sintetiza como a
divergentes
(BIAZZOTO,
2011).
Teria
categoria de gênero permitiu sexualizar as
nascido entre 31 e 41 d.C. em Bílbilis, uma
experiências humanas, fazendo com que
cidade
déssemos conta de que trabalhávamos
chegado em Roma por volta do ano 64,
com
extremamente
mas só se tornaria famoso em 80, período
embora
em que a cidade atraía muitas pessoas em
uma
narrativa
dessexualizadora,
pois
da
Hispania
Terraconense,
e
reconheçamos que o sexo faz parte
busca
constitutiva
publicou os epigramas que comemoram a
de
nossas
experiências,
de
uma
vida
melhor,
raramente este é incorporado enquanto
inauguração
dimensão analítica.
(POSSAMAI, 2010; PARRA, 2010).
Para
Foucault
Flávio
Marcial desempenhava o papel de
sexualidade é um "dispositivo histórico".
“colunista social”. (BIAZZOTO, 2011, p.
Em outras palavras, ela é uma invenção
2592).
social,
historicamente,
p.
anfiteatro
45),
uma
(1999,
de
quando
Eram
vez
que
se
constitui,
incômodas,
a
partir
de
múltiplos
conhecimento
situações mas e
que da
aparentemente revelavam
intimidade
e
o da
discursos sobre o sexo, discursos estes
personalidade das pessoas retratadas, o
que
que as tornava acessíveis ao público e, por
regulam,
normatizam,
instauram
583
Filipe Cesar da Silva
conseguinte, conhecidas. Mesmo sendo
no mais fundo desencanto de trinta e
um veículo para o conhecimento, seus
quatro anos de fadigas e humilhações”.
poemas não escondiam a irreverência, a
Nas palavras de Ribeiro (2010, p. 45):
ousadia, a voluntariedade do conteúdo de
“Marcial tornou-se um cliens, um adulador
seus versos. Na condição de cliente
do rei, que beirava a pobreza e a miséria”.
buscava no patrono um mecenas (LEITE,
Marco Valério Marcial, poeta latino de procedência ibérica, por meio de seus
2003; PIMENTEL, 2004). A vida de Marcial em Roma não foi
15
livros
de
Epigramas
(composto
nada fácil, segundo Ribeiro (2010, p. 45).
aproximadamente entre os anos 80 e 103
Marcial foi a Roma para concluir seus
d.C) consolida o gênero nas letras romanas
estudos e aí permaneceu “seduzido pela
(CAIROLLI,
variedade de impressões que a grande
exaustivamente pelos gregos do período
cidade oferecia à sua vivacidade natural”.
helenístico
Teria levado “a vida dura e humilhante de
principalmente pelos poetas da geração de
adulador e de pedinte”. Bajulou Domiciano,
Catulo, este gênero (epigramático), o único
fez
praticado por Marcial, encontra no autor
seu
cortejo
aos
mesmos
ricos
2009). e
Praticado
introduzido
em
Roma
protetores que Estácio e “terminou por aí
excelente
artífice,
ganhar, com muito desgosto, uma escassa
exemplar
do
comodidade; e por seus epigramas, a
DEZZOTI, 1990; LEITE, 2003; 2007).
celebridade”
tornando-se
gênero
modelo
(CESILA,
2008;
Parra (2010, p. 70) destaca que
Quanto
condição
de
“em Roma, há dois escritores que se
(2010)
que
destacaram no gênero. O primeiro deles é
Marcial, como cliens, devia obrigações aos
Catulo, no primeiro século a.C; o segundo,
poderosos para sua sobrevivência. Seus
Marcial, autor do primeiro e inicio do
rendimentos não eram suficientes e, para
segundo século d.C”. Para Cairolli (2009, p.
sobreviver, dependia de diversos favores
22)
de seus patroni. Pimentel (2004, p. 30)
excelência, o mestre do gênero”.
“bajulador”,
à
afirma
sua Parra
“Marcial
é
o
epigramatista
por
destaca que “Marcial era obrigado a
Os mais de mil e quinhentos
desdizer-se e a contradizer-se”. Teria sido
epigramas de Marcial foram organizados
empurrado para o limbo da fama e do
em 15 livros. Os temas são variados e, em
reconhecimento, sem futuro e com o peso
síntese, tratam do cotidiano da vida em
de um passado embaraçoso: “a vida em
Roma
Roma tornou-se-lhe agreste e revelou-se
1990; PARRA, 2010). Dos variados temas
(BIAZZOTTO,
2011;
DEZZOTI,
584
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
que Marcial trata em sua primorosa obra,
epigramas
Possamai (2010, p. 86) destaca como “nos
complexidade dessas relações:
epigramas de Marcial, podemos ver as críticas que ele fazia aos que não se comportavam de acordo com os preceitos da sociedade, assim como versos em que cantava o amor pederástico, mostrando influência helênica.” homoerotismo é típica da moral romana, segundo Possamai (2010, p.87): “Marcial ridicularizava a efeminação e a passividade homens,
mas
cantava
com
naturalidade o amor aos rapazes. Suas sátiras estão de acordo com os costumes da elite romana de seu tempo, que procuravam conciliar o helenismo com os costumes romanos.” Embora os costumes ancestrais (mos maiorum) estivessem cada vez mais distantes da vida diária dos romanos, eles continuavam a servir como referência para a conduta que se esperava dos elementos que compunham a elite de Para Feitosa (2014), a prática entre dois indivíduos do sexo masculino era moralmente aceitase acontecesse entre um cidadão e um rapaz ainda pueril, imberbe e de estrato social inferior (livre não cidadão, liberto ou escravo), que deveria ser o passivo segundo as prescrições morais da Entretanto,
a
O desrespeito à prática sexual ativa para a aristocracia romana é sugerido em vários textos literários romanos.
No epigrama 46, Marcial
enseja um desonroso comentário ao pênis de Febo que é sugestivo sobre o seu papel sexual: “Te deitas, Febo, com jovens escravos cheios de virilidade e o que neles está firme e potente, amavas
aos
homens,
mas
ignorava
o
teu
minguado papel”. Essa frase põe na berlinda Febo, pois além de insinuar a inoperância de seu membro “frouxo e imperceptível”, sugere a sua sujeição à virilidade dos jovens escravos. (FEITOSA, 2014, no prelo)
O pesquisador Possamai em outro epigrama de Marcial, nos mostra como a crítica era mais acirrada quando a infração aos costumes era praticada abertamente, como no caso de um casamento entre dois homens: O barbudo Calístrato se casou ontem com o robusto Afro, segundo os ritos que se costumam seguir quando uma virgem se casa. Precediamlhes tochas acesas, um véu vermelho lhe cobria o rosto e não faltaram, ó Talásio, deus dos matrimônios, os teus cantos. Também se fixou um dote. Não te parece suficiente, Roma? Ou acaso
Roma (VEYNE, 2008).
época.
vislumbrar
aparece em ti frouxo e imperceptível. Sabia que
A posição do autor com relação ao
nos
permitem
enfatiza
que
os
esperas que Calístrato dê à luz? (POSSAMAI, 2010, p. 86)
O
casamento
romano
era
uma
cerimônia privada, uma festa particular, portanto, nada, além da tradição, impedia um casamento de livre acordo entre dois homens.
(VEYNE,
200).
Segundo
Cantarella (1999, p. 225), os casamentos entre homens, dos quais existem traços nas fontes, eram realizados por uma
585
Filipe Cesar da Silva
minoria, cujo status social permitia provocar
histórico diferente do nosso, no caso aqui
abertamente a opinião pública.
proposto, na antiguidade romana do alto
Algumas considerações: O
que
mais
nos
império (I sec. d.C).
interessa
na
Assim, a partir de uma perspectiva
aplicação do conceito de gênero, corpo e
histórica, o universo masculino deixa de ser
sexualidade são como e de que forma as
generalizável
características biológicas e sexuais são
correspondente
representadas em cada sociedade e em
historicamente
determinado momento histórico. Ou seja, o
2011). No lugar dele, revela-se um vasto
que social e historicamente se construiu
universo de imagens, símbolos e códigos,
sobre os sexos feminino e masculino, pois,
onde a pluralidade das masculinidades
na compreensão de gênero, é no campo
compreende homens que amam mulheres,
das interações sociais que as relações
homens que amam homens e mulheres e
entre os sujeitos são estruturadas e,
homem que amam e desejam homens
consequentemente, marcadas pela relação
assumindo suas relações consigo e com os
social/histórica (LOURO, 2001; SCOTT,
outros, seus desejos, seus prazeres, suas
1995).
relações Através dos saberes da sexualidade,
do corpo, do gênero e do aparato da que
vivências,
de
forma
modos
e
breve,
estereótipos
cristalizados
homoafetivas,
mais
mas
(LOPES,
ainda
se
nas e pelas masculinidades plurais. O intuito foi e é de contribuir com uma nova leitura sobre Marcial e refletir, através de uma perspectiva histórica, o
relacionar com o corpo, a sexualidade e
necessário respeito a diversas maneiras de
como a masculinidade ganha contornos
vivenciar a masculinidade e a sexualidade
diferentes
humana.
pensada
de
aos
não
se
quando
sentidos
outras
identificável
vendo, se (re) inventando como homens,
História cultural, foi possível compreender, mesmo
e
fora
dos
pressupostos atuais e em um contexto
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589
MADALENA EM ASSIS: CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DE SUA IMAGEM NA BASÍLICA, SUAS REPRESENTAÇÕES E CULTO NO MEDIEVO. Giovana Maria Carvalho Martins 1 Angelita Marques Visalli (Orientadora) 2 Resumo: A partir da intenção de discutir sobre as representações de Maria Madalena na Idade Média, direcionamo-nos para uma imagem em específico denominada “Maria Madalena fala com os anjos”, concluída em inícios do século XIV (1307-1308). Trata-se de um afresco feito por Giotto (1267-1337) que está localizado na Capela Santa Madalena, na Basílica Inferior de São Francisco de Assis, na Itália. Para tanto, empregamos o conceito de imagem-objeto de Jérôme Baschet, que, em resumo, aborda as imagens como objetos que participam da dinâmica das relações sociais e considera o lugar e o suporte em que se encontram. Além disto, pretendemos discutir de forma inicial sobre o culto à Madalena durante a Idade Média e as diferentes formas como ela foi apresentada – Maria de Magdala, que testemunhou a ressurreição de Cristo; Maria de Betânia, irmã de Marta e Lázaro e a pecadora anônima que lavou os pés de Cristo e os enxugou com os cabelos -, considerando que, na Idade Média, as três fundiram-se em uma só Madalena no culto ocidental. O estudo contribui para o entendimento da constituição das imagens e de seus “lugares” nos espaços em que estão inseridas, que envolvem também suas práticas devocionais. Palavras-chave: Maria Madalena; Idade Média; Imagem-objeto.
1
Aluna do curso de graduação em História na Universidade Estadual de Londrina (UEL)
2
Professora do departamento de História da Universidade Estadual de Londrina
590
Giovana Maria Carvalho Martins
Pretendemos desenvolver aqui um
Fig. 01 – “Maria Madalena fala com os anjos”,
estudo inicial sobre Maria Madalena e suas
Capela de Santa Madalena, Basílica Inferior de Assis.
representações imagéticas, e, para tanto, escolhemos
como
imagem
principal
a
denominada “Maria Madalena fala com os anjos” – em tradução nossa - feita em inícios do século XIV (1307-1308), localizada na Capela Santa Madalena, na Basílica Inferior
(1307-1308)
Uma
século XII, que relata, entre outras histórias, que “[...]a beata Maria Madalena, desejosa de entregarse à vida de contemplação das coisas do alto, dirigiu-se a um deserto austeríssimo e num lugar preparado pelas mãos dos anjos, permaneceu
1337) e seus ajudantes, que está na parte
incógnita por trinta anos [...]. Todos os dias, nas
superior de uma parede com outras quatro
sete horas canônicas, era elevada pelos anjos ao Céu etéreo [...]. Todos os dias era saciada com
imagens que fazem relação a ela e retratam
iguarias agradabilíssimas até ser levada de volta a
passagens conhecidas de sua vida segundo
seu lugar pelos anjos [...]” (VARAZZE, 2003, p.
os escritos existentes sobre ela. O afresco passagem
da
vida
encontradas
a contida na Legenda Áurea, escrita no
de um afresco pintado por Giotto (1267-
uma
referências
sobre esta passagem retratada no afresco é
de São Francisco de Assis, na Itália. Trata-se
retrata
das
549).
Jacopo
da
de
Varazze
(Tiago
de
personagem que não está nos escritos
Vorágine), em sua “Legenda Áurea”, escrita
bíblicos, que é a elevação de Madalena aos
no século XIII, narra a vida de diversos
céus por anjos (quatro, na imagem). Ela está
santos e santas, e retrata Madalena como
ajoelhada, com as mãos elevadas em
uma
posição de oração, e sua característica mais
Apóstolos”, em referência à sua importância
marcante são os longos cabelos ruivos, além
e destaque entre os apóstolos (visão muito
da ausência de roupas - seu corpo está
difundida
envolto em seus cabelos (figura 1).
refutada posteriormente pelo papa Gregório
figura
sublime,
entre
os
a
“Apóstola
primeiros
dos
cristãos,
I). Segundo Hilário Franco Júnior, que traduziu a Legenda Áurea para o português, “o objetivo imediato de Jacopo de Varazze era fornecer
aos
seus
colegas
de
hábito,
os
dominicanos ou frades pregadores, material para a elaboração
de
teologicamente
seus correto,
sermões. isento
de
Material qualquer
contágio herético, mas também compreensível e
591
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
agradável aos leigos que ouviriam a pregação. Para tanto Jacopo naturalmente utilizou a rica literatura hagiográfica preexistente, mas não se
durante certo tempo, os únicos venerados
mais frequente” (FRANCO JR, 2003, pp. 12-13).
pelos primeiros cristãos) (cf. VAUCHEZ,
na Legenda, ou seja, “a cosmovisão pela qual cada fato, objeto ou pessoa, mais do uma
realidade
em
si,
é
uma
representação, uma imagem, uma figuração, de algo superior [...], com o qual o ser humano não poderia ter contato direto [...]” (FRANCO JR, pp. 16-17) – é desta forma que os santos são representados, incluindo a própria Madalena, tida, portanto, como uma mulher devota, pecadora, que dedicou sua vida
Antiguidade clássica (os mártires foram,
limitou a compilá-la, o que tinha sido até então o
Cabe ressaltar o simbolismo presente
que
iniciando-se pela veneração aos mártires na
à
redenção,
consagrando-se
à
penitência. No
século
XIII,
surgiram
muitas
compilações hagiográficas, sobre a vida de santos. Uma das mais difundidas foi a de Maria Madalena, em cuja narrativa “[...] reúne os vários elementos da tradição que circulavam até então, como as tradições relativas aos padres do deserto, os contatos com a lenda de Santa Maria Egipcíaca, a visão da ex-prostituta penitente, etc.” (SILVA, 2002, p. 18). Para entender a questão dos santos, cabe citar Vauchez, que defende que a invenção do culto aos santos não se deu durante a Idade Média, embora ela o tenha desenvolvido
de
maneira
considerável,
1989, p. 212). Isto aconteceu pois “numa sociedade
ameaçada
de
desintegração,
onde os indivíduos viviam angustiados pela ideia de perderem a as identidade e a sua liberdade, os santos vinham a propósito para restituir a confiança e oferecer perspectivas de salvação ao nível da vida de todos os dias”
(VAUCHEZ,
1989,
p.
212).
Posteriormente, após as perseguições aos primeiros cristãos, o ocidente passava do culto dos mártires ao culto dos bispos, seus organizadores
e
guardiões,
o
oriente
passava a cultuar os santos confessores da fé juntamente com os mártires na época de Constantino (cf. VAUCHEZ, 1989, p. 213). Além
disto,
“enquanto
o
santo
da
Antiguidade tardia era um adepto da vita
passiva que buscava a perfeição na renúncia ao mundo, o Ocidente da alta Idade Média caracterizou-se, sobretudo, por figuras de chefes
religiosos
e
de
fundadores
profundamente empenhados na vida activa”, e no período posterior – entre finais do século VI e finais do VIII, “utilizou-se por vezes o termo ‘hagiocracia’, tantos foram os santos dessa época que estiveram ligados,
592
Giovana Maria Carvalho Martins
por vezes muito estreitamente, ao poder [...]” (VAUCHEZ, 1989, p.214).
Fernanda de Camargo-Moro (2005) atribui seu nome à sua origem: ela seria
Os principais registros relacionados à
natural da cidade de Magdala; portanto,
personagem em questão estão contidos na
Madalena (cf. CAMARGO-MORO, 2005, p.
Bíblia, e cabe ressaltar que ela está presente
53). Silva afirma que, em oposição a outras
na
evangelhos
mulheres mencionadas nas escrituras, ela é
canônicos (além de diversos outros escritos
identificada por seu lugar de origem ao invés
e evangelhos apócrifos, não reconhecidos
de sua referência ser um homem, seja pai ou
como oficiais pela Igreja Católica). Trata-se
marido, que era a forma de designação mais
da “figura feminina mais citada no Novo
utilizada para as mulheres à época (cf.
Testamento - ainda mais que a Virgem”
SILVA, 2002, p. 11).
narrativa
dos
quatro
(SILVA, 2002, p. 09) No
entanto,
Jacopo de Varazze a identifica como detalhes
irmã de Marta e Lázaro, e a associa também,
nestes acerca da vida de Madalena – o que
como a Igreja católica já havia feito antes, à
se sabe é que ela está presente nos
pecadora que lavou os pés de Cristo e os
momentos mais marcantes da vida de Jesus
enxugou com o próprio cabelo, embora em
Cristo, como durante a Paixão, e foi ela a
nenhum dos Evangelhos exista menção ao
primeira a constatar o túmulo de Cristo vazio,
nome desta mulher, referida apenas como
sendo, portanto, a primeira testemunha da
“uma pecadora”. Varazze também aborda
Ressurreição. Jacopo de Varazze, em sua
sobre a representação da Madalena eremita,
“Legenda Áurea”, relaciona “Maria” a “mar
que teria se retirado do convívio social para
amargo”, “iluminadora” e “iluminada”, que
viver em penitência e abstinência no deserto.
seriam os caminhos escolhidos por ela -
A tradição sobre o local em que ela teria
penitência,
Já
vivido foi fixada no século XII, que foi quando
“Madalena”, para ele, pode ser interpretado
“teve início a circulação da legenda segundo
como “fortificada”, “invicta”, “magnífica”, que
a qual Madalena, após aportar na França
seriam as três etapas de sua vida - antes,
proveniente da Palestina com Lázaro, Marta
durante
e outros companheiros, teria se dedicado ao
e
há
poucos
contemplação
após
sua
VARAZZE, 2003, p. 543).
e
glória.
conversão
(cf.
eremitismo
nas
grutas
de
um
monte
593
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
localizado em Sainte-Baume” (SILVA, 2002,
passava por sérias dificuldades quanto à
p.18).
peste e à fome - e os culpados por tal Para os gnósticos, que “[...] que
situação eram os pecados dos homens. Este
existiram no início da Era Cristã [...],
mesmo pontífice associou Madalena à Maria
centravam-se na mensagem espiritual, no
de Betânia e à pecadora citada por Lucas [cf.
conhecimento
Lc 7, 37-50] – ela se tornou, portanto, “o
interior
e
secreto
[...]
(FERRAZ, 2011, p. 35), a autora Fernanda
exemplo
de
e
(CAMARGO-MORO, 2005, pp. 59-60). Duby
historiadora, defende que “[...] Madalena é
coloca que o papa Gregório afirmou em suas
interpretada como personagem de suma
Homilias, sobretudo na XXXIII, que “‘a
importância,
mulher
Camargo-Moro,
arqueóloga
transmissora
da
sabedoria,
de
perdição
designada
por
do
Lucas
mundo”
como
a
portadora de luz e símbolo do verdadeiro
pecadora, chamada Maria por João, é a
adepto de Jesus” (CAMARGO-MORO, 2005,
mesma que Marcos atesta que foi liberada
p. 54). Grande parte da literatura produzida a
dos sete demônios’” (DUBY, 1996, p. 33,
trata como personagem mística, que traz à
tradução nossa). Foi “assim, partindo-se da
tona muitas dúvidas e controvérsias; trata-se
união dos vários elementos presentes nos
de “[...] uma das mulheres mais importantes
evangelhos canônicos e apócrifos [que]
dos Evangelhos, que passou de discípula
constitui-se uma Madalena venerada na
amada de Jesus para o papel de meretriz
Idade Média, a pecadora arrependida, fruto
[...]” (FERRAZ, 2011, p. 20). Já na tradição
da junção de características provenientes de
cristã, ela “passou a representar o arquétipo
três personagens” (SILVA, 2002, p. 17).
feminino
Sobre os apócrifos, a autora Ramalho
tradicional,
a
transmissora
do
pecado original, que, após ser curada, teria passado
sua
vida
em
penitência
e
arrependimento” (CAMARGO-MORO, 2005, p. 54). Tal visão foi corroborada pelo papa Gregório I (540-604), que usou o exemplo de Maria Madalena para pregar aos fiéis sobre a importância
da
penitência,
do
arrependimento, visto que o povo de Roma
aborda que “com a distinção entre o ‘canônico’ e o ‘apócrifo’, tornou-se ainda mais fácil para os censores religiosos
perpetuarem
determinadas
imagens
bíblicas a partir de um centro de interesse de manipulação coletiva. Vem daí a redução da imagem mítica de Maria Madalena ao símbolo de ‘Eva resgatada’[...]” (RAMALHO, 2011, p. 80).
Já Otero afirma que a influência dos apócrifos no ocidente é enorme, porém
594
Giovana Maria Carvalho Martins
“a
Idade
Média
dispensou-lhes
um
fraco
acolhimento. A Legenda Áurea de Jacopo de Varagine (Varazze) e o Speculum Historiale de
inicialmente de forma indireta, pois seu culto não
era
individual,
sim
realizado
santos
que
estavam
Vicente de Beauvais, ao transcrevê-los quase
juntamente
integralmente, sub ministraram abundante matéria
presentes na ressurreição de Cristo. É
de inspiração para os decoradores das velhas catedrais e para os pincéis de Fra Angelico ou de
aos
e
depois do século XII que seu culto se
Giotto” (OTERO apud BARBAS, p.28).
desenvolve – “assim, a partir da Baixa Idade
A autora Camargo-Moro recorda que
Média, Madalena começará a ganhar mais
Santo Agostinho foi um dos poucos a
popularidade.
enxergá-la como uma das mulheres mais
adoração
importantes dos Evangelhos, distinta das
principalmente pela Igreja e pelos poderes
demais (cf. CAMARGO-MORO, 2005, p. 59).
seculares” (SILVA, 2002, p. 19). O já citado
Porém, como já citado, é uma figura cujas
papa
representações são múltiplas, e autores
cristandade latina a ideia de Madalena como
como Silva (2002) ainda abordam que
sendo as três e “durante a Idade Média,
a Santa Maria Madalena, como o Ocidente a venera, não figura nas Escrituras. De fato, ela é fruto de uma lenta construção, que uniu elementos
O
[...]
foi
Gregório
crescimento
da
sua
estimulado
[...]
mas
difundiu
então
pela
foram pouquíssimos os que duvidaram na hora de aceitar esta proposição” (DUBY,
e personagens distintos. Em um primeiro momento,
1996, p. 33, tradução nossa). Contudo, a
fundiram-se em uma só três mulheres que são
cristandade grega continuou distinguindo
apresentadas nos Evangelhos canônicos: Maria de Magdala, de quem Cristo expulsou sete demônios,
Maria Madalena das outras duas, celebrando
que o seguiu até o Calvário e que testemunhou a
sua festa em 22 de junho e venerando sua
ressurreição; Maria de Betânia, irmã de Marta e
tumba em Éfeso (cf. DUBY, 1996, pp. 33-34).
Lázaro; e a pecadora anônima que lavou os pés de Jesus na casa do fariseu Simão (SILVA, 2002,
Segundo Duby (1996), o culto à santa se
p.15).
difundiu pelo ocidente e, sobretudo, na
Esta figura construída ao longo dos
Inglaterra:
anos “[...] despertou interesse e levou a exegese e a tradição posterior a adicionar muitos outros elementos a esta personagem, tornando-a mais complexa” (SILVA, 2002, p. 11). Da Antiguidade à Idade Média, Maria Madalena foi citada por muitos autores,
“as pegadas mais antigas aparecem no século VIII nesse país, estreitamente relacionado com Roma desde sua recente evangelização e, portanto, com as fontes bizantinas. Seus monastérios bizantinos figuravam então na vanguarda da busca espiritual e
os
missionários
transportaram
ao
saídos
continente
dessas os
abadias
germes
da
devolução madaleniana” (DUBY, 1996, p. 34, tradução nossa).
595
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Para estudar a imagem escolhida de
realização das pinturas junto à construção da
Madalena, cabe abordar também o suporte
basílica de São Francisco em Assis”, que
em que ela se encontra. Com relação à
“iniciou-se
Basílica de São Francisco em Assis, sabe-se
canonização, dois anos após sua morte,
que é formada por dois pavimentos: “o
quando para lá foram transladados seus
inferior, como uma cripta, com planta de cruz
restos [...]” (VISALLI, 2011, p. 206).
latina,
destinado
processo de canonização de Francisco não
especialmente aos frades, e o outro, o
estava inteiramente completo quando as
superior, amplo, delgado e alto, como é
negociações para a construção de uma
característico das igrejas góticas” (VISALLI,
igreja em sua honra se iniciaram – os
2011, p. 206). A Basílica Superior foi
interessados eram a Igreja de Roma, os
decorada com o patrocínio de Nicolau IV – o
Frades Menores, que desejavam celebrar
primeiro papa franciscano - em cerca de
seu santo fundador e a cidade de Assis, que
1290, e grande parte dos afrescos foi pintada
se interessava em tornar-se um lugar de
por Giotto (cf. VISALLI, 2011, p. 207). É no
peregrinação (cf. LUNGHI, 1996, p. 08,
pavimento inferior que se localizam as
tradução nossa). Sobre a arquitetura da
capelas, e entre elas, a Capela de Santa
basílica, cabe ressaltar que sua arquitetura
Maria Madalena – portanto, a forma como
incomum deriva parte do terreno em que ela
suas imagens foram produzidas estava
está
voltada para os interesses dos frades em
inclinada)
especial. A capela foi decorada por Giotto e
“recipiente de relíquias” (cf. LUNGHI, 1996,
seus ajudantes, no início do século XIV. A
p. 10, tradução nossa). A basílica inferior foi
maioria das imagens de Madalena está
profundamente
localizada aí, sendo que no restante da
séculos após sua construção, e
ampla
e
baixa,
Basílica, o que se encontram são imagens dela em meio a outras figuras, como em uma que retrata a cena da crucificação, localizada O primeiro grande investimento na figurada
localizada e
1228,
(uma
parte
de
alterada
ano
de
colina sua
sua
bastante
função
nos
O
de
primeiros
“as razões para estas alterações profundas têm de ser procuradas em ideias antônimas à que inspirou o
programa
iconográfico
da
igreja
superior,
fundada em uma aliança exclusiva entre papado romano e da Ordem dos Frades Menores. As
no transepto norte. construção
em
franciscana
foi
“a
novas formas de vida religiosa entre os leigos que surgiram no final da Idade Média e a demanda por sepulturas privadas ao lado dos túmulos dos novos santos convenceram os frades [...] a relaxar a
596
Giovana Maria Carvalho Martins
proibição anterior sobre o enterro em suas igrejas” (p. 100, tradução nossa).
É provável que as três capelas do transepto
norte
foram
construídas
por
termina com as três lunettes (cf. LUNGHI, 1996, p. 148, tradução nossa). Os afrescos são: “Parede oeste: Cristo e Madalena na casa do
iniciativa dos frades do Convento, e somente
Fariseu, A Ressurreição de Lázaro, na lunette,
depois eles procuraram por patronos para
Madalena recebendo a Santa Comunhão de São Maximo. Parede leste: Noli me tangere, A viagem
sustentar o custo de suas decorações. A
de Madalena a Marselha, na lunette, Ecstasy de
capela de Madalena foi “adquirida” por
Maria Madalena [que é a imagem aqui abordada,
Teobaldo Pontano, que foi Bispo de Assis de
chamada Marie Madeleine s’entretient avec les
anges] . Lunette sobre a entrada: Zózimo Eremita
1296 até sua morte em 1329. A capela
dando uma capa para Madalena” (LUNGHI, 1996,
possui planta quadrada, uma abóbada em
p. 148, tradução nossa).
forma de cruz e é iluminada por uma grande
A
ausência
de
segundo
uma
janela; duas passagens a ligam à capela de
cronológica,
Santo Antônio de Pádua e ao transepto e o
escolha proposital por parte de Giotto, cuja
corpo do Bispo que a patrocinou está
intenção
enterrado no chão. Sobre a decoração nas
verossimilhança às últimas cenas e evitar a
paredes, é importante afirmar que “consiste
impressão de que Madalena, levada aos
em sete cenas da vida de Maria Madalena.
céus, foi “empurrada ao chão pelas cenas
Trata-se do mais antigo ciclo de afrescos
acima” (cf. p. 148, tradução nossa).
era
Lunghi,
ordem foi
emprestar
uma maior
devotados à santa a ser baseado na
Sobre a questão do local onde se
‘Legenda Áurea’ de Jacoppo de Varazze, na
encontra a imagem pesquisada, Baschet
qual as três mulheres mencionadas nos
(1996)
Evangelhos [...] estão unidas em uma só
imprescindível a ser discutida para que
figura” (LUNGHI, 1996, p. 148, tradução
exista um estudo pleno da mesma: “não se
nossa).
poderia estudá-la sem levar em conta o lugar
defende
que
é
uma
questão
A superfície das paredes laterais está
específico (ou lugares) onde ela se inscreve,
dividida em dois níveis por molduras planas
de mesmo que o dispositivo espacial,
com ornamentos geométricos simples, e ao
temporal
contrário do costume, a história relatada
funcionamento” (BASCHET, 1996, pp. 12-
começa na linha inferior na parede oeste,
13). Assim, o autor ainda afirma que “[...] a
continua no mesmo nível na parede oposta e
presença das imagens no lugar onde se
e
ritual
associado
a
seu
597
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
sentimento de compunção que permite o elevar-se
desenvolvem os ritos do cristianismo ou atos
para a adoração de Deus. Esse aspecto afetivo e
importantes da vida social se dá de forma tão
anagógico,
insistente que, mesmo sem ser necessárias,
já
presente
em
Gregório,
será
desenvolvido depois dele, em particular na teologia da imagem dos séculos XII e XIII, que amplia a
as imagens parecem contribuir para o bom
noção
desenrolar destes atos e ritos” (BASCHET,
de
transitus,
de
passagem
para
as
realidades visíveis através das coisas visíveis. ”
1996, p. 20). A imagem de Madalena
(BASCHET, 1996, p. 08).
escolhida está localizada em uma Basílica e
Mas esta definição, segundo o autor,
seus usos são, conforme já abordado
não é suficiente “para dar conta das
previamente de maneira inicial, específicos
utilizações
do suporte: a Basílica inferior é mais restrita,
(BASCHET, 1996, p. 8), e é neste sentido
e portanto as capelas (e as imagens contidas
que ele faz uso da “imagem-objeto” para
nelas) são direcionadas ao culto mais
buscar entender de maneira apropriada o
privado dos freis da ordem.
sentido da produção das imagens medievais.
Em relação à discussão da questão da
No caso específico de Madalena, como já
imagem, Jérôme Baschet utiliza o conceito
mencionado,
de
produzida no século XIV – época [1250-
“imagem-objeto”,
ornados
e
participando
sempre da
ou
seja,
“objetos
em
uma
situação,
1400]
das
relações
crescimento
dinâmica
que
efetivas
a “[...]
imagem forma
excepcional
das
imagens”
trabalhada um da
tempo
foi de
santidade
sociais e das relações entre os homens e o
feminina: jamais tantas mulheres foram
mundo sobrenatural” (BASCHET, p. 482). O
elevadas aos altares, na maioria das vezes,
mesmo autor também discute que, com o
é verdade, mais pela devoção popular que
papa Gregório Magno (Gregório I), a imagem
pelo veredicto do papado” (DALARUN, 2008,
passou a ser vista como uma substituta do
p. XIII, tradução nossa) – e isto ajuda a
texto, própria para o ensino cristão dos
entender o fato de ela ser retratada da forma
iletrados, mas
como está – penitente, sendo elevada aos
“por outro lado, se ele insiste essencialmente na função de instrução, Gregório abre o caminho para a afirmação de duas outras funções das imagens:
céus – e no meio em que foi pintada – dentro de sua capela na Basílica.
aprender não é apenas descobrir, mas também
Baschet discute também que “não há
recordar, de forma que a imagem tem o papel de
imagem na Idade Média que seja uma pura
alimentar o pensamento das coisas santas; além disso, ela pode comover o espírito, suscitar um
representação”, sendo, em grande parte das
598
Giovana Maria Carvalho Martins
vezes, um “objeto, dando lugar a usos,
nesta época também que “as decorações
manipulações, ritos” (BASCHET, 2006, p. 9).
murais das igrejas, pintadas no mais das
A partir do século XIII, a imagem se torna um
vezes com técnicas de afresco ou a seco
meio de adquirir indulgências; “é então
[...], ampliam-se e generalizam-se até nos
reconhecida, através das orações recitadas
edifícios rurais mais modestos” (BASCHET,
em frente a ela, como um meio de remissão
2006, p. 490). Baschet ainda defende que as
dos pecados [...]” (BASCHET, 2006, p. 9).
imagens medievais não são destinadas
O autor fala de uma “revolução das
somente aos leigos, e são muitas vezes
imagens”, que iniciou-se no século XI (cf.
postas em locais de uso exclusivo do clero.
BASCHET, 2006, p. 500). Passou-se de uma
Há igrejas do século XII em que as pinturas
quase “iconofobia” durante a Alta Idade
murais “concentram-se no coro, onde apenas
Média a uma grande expansão imagética a
os clérigos penetram e cujos muros são
partir
apenas
amplamente dissimulados aos olhares dos
“[...]
a
fiéis” (BASCHET, 2006, p. 496), enquanto as
conquista de novos suportes”, como selos e
áreas de livre circulação dos fiéis são
insígnias metálicas, e o “recurso crescente
decoradas de maneira mais simples, sem
aos antigos suportes” (BASCHET, 2006, p.
representações. Isto refuta a tradicional ideia
490). Isto se deu através de um processo
das imagens como “Bíblia dos iletrados”
histórico tenso e lento após o qual as
(expressão discutida pelo próprio Baschet),
imagens se transformaram em “[...] uma das
visto que seus usos eram muito mais amplos
armas da guerra de conquista que se trava
do
em terras americanas” (BASCHET, 2006, p.
evangelização das massas.
do
período
quantitativamente;
citado, há,
não
portanto,
que Em
481) – ou seja, não há como dissociar a
apenas suma,
recurso queremos
visual
para
ressaltar
o
compreensão do Ocidente medieval das
caráter inicial da pesquisa relatada neste
imagens e de sua importância à época. O
artigo. A continuidade do presente estudo, na
Ocidente, portanto, nos séculos X a XIII,
linha de pesquisa de imagens religiosas
“abre-se às imagens; ele passa de uma
medievais, contribui para o entendimento da
iconicidade restrita a uma iconicidade sem
constituição das imagens e de seus “lugares”
reversas, e transforma-se em um universo de
nos
imagens [...]” (BASCHET, 2006, p. 491). É
espaços estes para os quais se constituíram
espaços
em
que
estão
inseridas,
599
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
e
que
envolvem
relacionadas
ao
práticas
personagem
devocionais que
está
Madalena e seu afresco pintado por Giotto localizado
na
Basílica
de
Assis.
representado nela – no caso, a santa
Referências: BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano 1000 à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006 __________. Introdução: a imagem-objeto. In: SCHMITT, Jean-Claude et BASCHET, Jérôme. L’image. Fonctions et usages des images dans l’Occident médiéval. Paris: Le Léopard d’Or, 1996. Pp. 1-26 (tradução : Maria Cristina C. L. Pereira) BARBAS, Helena. Madalena – História & Mito. Ésquilo: Lisboa, 2008. CAMARGO-MORO, Fernanda de. Arqueologia de Madalena: uma busca histórica da
companheira de Jesus. Rio de Janeiro: Record, 2005, 2ª Ed. DALARUN, Jacques (Org.). “Dieu changea de sexe, pour ainsi dire”: La religion faite femme. Fayard: Paris – Lit Verlag, Münster, 2008 DUBY, Georges. Leonor de Aquitania, María Magdalena. Alianza Editorial: Madrid, 1996. Fig. 01 – Afresco “Marie Madeleine s’entretient ave les anges » Disponívels em : http://www.wga.hu/art/g/giotto/assisi/lower/magdalen/speaking.jpg>. Acesso em 25/08/2014. FERRAZ, Salma. Maria Magdalena: a antiodisseia da discípula amada. In: FERRAZ, Salma (Org.). Maria Madalena: das páginas da Bíblia para a ficção (textos canônicos). Maringá: EDUEM, 2011. JACOPO DE VARAZZE. Legenda Áurea; vida de santos. Tradução: Hilário Franco Jr. São Paulo: Companhia das letras, 2003 LUNGHI, Elvio. The Basilica of St Francis at Assisi. The frescoes by Giotto his precursors and
followers. Londres: Thames and Hudson ltd, 1996. RAMALHO, Christina. A circularidade cultural da imagem mítica de Maria Madalena. In: In: FERRAZ, Salma (Org.). Maria Madalena: das páginas da Bíblia para a ficção (textos
canônicos). Maringá: EDUEM, 2011.
600
Giovana Maria Carvalho Martins
SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da et al. Vida de Santa Maria Madalena – Texto
anônimo do século XIV. Rio de Janeiro: PEM, UFRJ, 2002. VAUCHEZ, André. O Santo. In: LE GOFF, Jacques. (Org.). O Homem Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1989. VISALLI, Angelita Marques. A construção da imagem de Francisco de Assis (1182-1226) no primeiro século franciscano: a experiência religiosa tornada imagem pública. In: OLIVEIRA, Terezinha e VISALLI, Angelita Marques (Orgs). Leituras e imagens da Idade Média. Maringá: EDUEM, 2011.
601
POESIA GOLIÁRDICA E REPRESENTAÇÃO NA CULTURA MEDIEVAL (SÉCULOS XII EXIII) Helena Macedo Ribas 1 Resumo: Durante o período conhecido como Idade Média, existiram diversas manifestações culturais que eram dinâmicas e circulavam entre as regiões de maior trânsito de pessoas, como as cidades. Essas manifestações se davam em espaços mais ou menos específicos, como os trovadores que se apresentavam nas cortes nobiliárquicas, ou os jograis que eram mais comuns nas feiras, e isso determinava, entre outras coisas, as temáticas e o alcance das canções. Temos outro segmento, pouco estudado, que são os goliardos, estudantes das universidades medievais que escreviam em latim, para outros estudantes e doutos, e que tiveram um grande alcance, tanto espacial quanto temporamente. Espacial, pois estes estudantes eram clérigos vagantes de ordens menores e que buscavam o conhecimento e também a diversão nas diferentes localidades por onde passavam; e temporal pela existência de manuscritos desde o século XI até o século XIII, que também se encontram espalhados por localidades diferentes por onde esses clérigos passaram, como as atuais Baviera, Catalunha e a cidade de Cambridge. A presente apresentação visa explorar aspectos da poesia goliárdica medieval, com o objetivo de traçar algumas características da vida errante dos poetas goliardos, e de que forma esse modo de vida, mas também a sociedade e os costumes aos quais estavam inseridossão representados em sua poesia. Palavras Chave:goliardos; Carmina Burana; clérigos vagantes.
1(UFPR
– NEMED)
602
Helena Macedo Ribas
Introdução
pagãos como a mitologia greco-romana
Durante os séculos XII e XIII, a sociedade medieval ocidental inicia um
com valores cristãos, retratando dessa forma suas próprias experiências de vida.
processo de transformações significativas
Além desses temas, o vinho, a
nos âmbitos social e cultural, englobadas
taberna e os jogos compõem suas canções
posteriormente
de
mais divertidas, enquanto todo o seu
“renascimento do século XII”, que consiste
conhecimento da Bíblia e dos clássicos são
em um resgate das obras de grandes
usados
pensadores pagãos e o deslocamento dos
homens da Igreja, com atenção especial às
centros de saber das igrejas para as
patentes mais altas, como os bispos e até
universidades em ascensão, principalmente
mesmo o Pontífice. Em sua maioria, os
em cidades como Paris, Bologna, Viena,
goliardos eram anônimos, porém alguns
etc.
por
nomes são conhecidos por nós, como
importância
representantes importantes do grupo na
com o crescimento da atividade comercial,
sociedade, como Gautier de Chantillôn,
e
intelectual
A
cidade
transformações, como
no
que
chamamos
também ganhando
espaço
de
passa
sociabilidade
e
para
atacar
conhecido
os
e
pecados
dos
respeitado
na
circulação de pessoas importante. Dentro
França, além de outros, como Hugo
desse contexto citadino e “universitário”,
Primas, Pedro de Blois e o Archipoeta,
existiu
inserindo
um
grupo
de
homens
que
em
seus
versos
elementos
expressam uma ruptura ao sistema de
bastante sofisticados, em uma métrica
valores vigente em sua sociedade, e que o
própria e complexa, o que nos permite
fazem através de seu estilo de vida. Esse
supor que esses homens eram letrados,
grupo ficou conhecido como Goliardos, o
com um amplo conhecimento não somente
que, para Villena (VILLENA, 2010: 49)
da Bíblia, mais de outros tipos de obras.
pode significar duas coisas: a primeira é no
Villena aponta que os goliardos formam um
sentido de gula na qual os goliardos seriam
novo
amantes da boa mesa, e o segundo que os
enquadra em nenhum “papel” sedimentado,
relacionam com Golias, o gigante bíblico
como o do burguês, do nobre ou do
derrotado por Davi, e que era “símbolo del
eclesiástico, e que ao criticar as posturas
soberbia y delorgullo” (VILLENA, 2010: 49)
destes grupos, eram vistos como homens
e vagavam de escola em escola cantando
de “mal vivir” (VILLENA, 2010: 50). Pois,
suas canções, a maioria sobre a beleza
para um goliardo, é a experiência de vida
feminina, a primavera, misturando temas
que dita a moral e não o contrário, e tal
segmento
social,
que
não
603
se
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
pensamento
era
inaceitável
para
sua
época.
que os valores sociais estavam caindo e a forma com que a Igreja tenta lidar com
As poesias goliardicas se espalham
essas contradições, e a expressão de
em quatro manuscritos conhecidos por nós,
crítica e satirização do clero endossa essas
e curiosamente preservados em mosteiros.
contradições.
O mais antigo datado do século XI é o
predominantemente mundano e popular,
Carmina Cantabrigensia, encontrado na
esses homens misturam os temas como o
região da atual Inglaterra, assim como o
vinho e o jogo, com as discussões sobre
Carmina Arundeliana, também do século
virtudes e a bondade, expressando uma
Carmina
certa “confusão” que mostra, na visão dos
Rivinpullensia, encontrado na região da
goliardos, o quanto as fronteiras entre o
atual Espanha no século XIII, porém o mais
sagrado e o profano se enevoam e se
extenso cancioneiro goliárdico, o Carmina
fundem.
XI.
Também
existe
o
No
ambiente
tabernário,
Burana, foi encontrado em um mosteiro
Os objetivos principais deste pôster
beneditino na atual Alemanha, contendo
são analisar as canções de cunho lúdico
mais de 200 poemas, a maioria em latim,
tabernário presentes na antologia de Juán
com alguns em médio alto alemão. (SOLA,
Estevez Sola (já citada), compreender a
2006: 9-10) Esses cancioneiros ficaram
visão de mundos dos goliardos, bem como
esquecidos durante séculos, até serem
analisar as representações da sociedade
encontrados por pesquisadores, no caso do
presentes nessas canções. Além disso,
Carmina Burana no século XIX, quando
pensamos que a poesia goliárdica é uma
uma primeira edição foi publicada. Nos
fonte muito importante no que tange a
anos 1930, o nome Carmina Burana ficou
representação de uma cultura medieval
mundialmente conhecido através de uma
ligada ao ambiente letrado, e também na
adaptação para orquestra e coral feita pelo
análise do cânone da cultura e do sistema
alemão Carl Orff, que musicou 23 peças do
de valores vigente, mostrando que havia
cancioneiro, sendo a mais célebre e ainda
resistências, tanto de cunho lúdico como
hoje lembrada a canção “O Fortuna”.
contestatórias, e ambas as nuances são
Objetivos Ao voltarmos nosso olhar para o
percebidas nas canções destes clérigos vagantes.
contexto histórico no qual foi possível que
Materiais e Métodos
os goliardos existissem, entendemos que
A princípio, pensamos em trabalhar com
sua poesia representa as contradições em
alguns conceitos – chave para entender a
604
Helena Macedo Ribas
cultura medieval, especialmente a cultura
espanhol 2, para então prosseguirmos com
popular. Iremos nos valer de dois autores
a análise dos elementos estéticos (métrica,
mais amplamente: Mikhail Bakhtin e Paul
arranjo dos versos, etc) e temáticos. Em
Zumthor, dois teóricos literários. Bakhtin,
seguida, agrupamos os eixos temáticos
apesar de tratar de um período posterior e
mais
focar em um autor renascentista francês,
subtemas são característicos dos eixos
traça
temáticos
um
panorama
extremamente
comuns
nas
poesias,
e
quais
(morais, amorosos e lúdico-
interessante e válido sobre as alegorias
tabernários) e quais subtemas transitam
medievais, definindo assim o “grotesco” a
entre esses eixos, por exemplo. Para
partir de elementos trabalhados por ele que
então,
são encontrados desde a Alta Idade Média,
analisarmos esses temas e sua pertinência
como metáforas com o corpo, a morte e a
dentro do conjunto do manuscrito.
baseados
alimentação. Paul Zumthor, por sua vez,
na
bibliografia,
Resultados
trata de um conceito vital para nós: a
Através desta pesquisa que vem
oralidade. Durante toda a obra, o autor
sendo realizada desde o primeiro ano da
busca exemplificar nas diversas obras
graduação e que tem por objetivo se
literárias medievais os traços de oralidade
transformar
que são seu cerne, entre eles, o Carmina
conclusão de curso, já podemos observar
Burana. Mapear as intervenções populares
alguns
em
ou
Percebemos que a poesia goliárdica possui
voltadas para um extrato especial da
uma característica primordial, que é a
sociedade, como os cavaleiros, é seu
inversão de valores, principalmente nos
principal objetivo, ou seja, tentar ver a vida
poemas lúdico tabernários, que é o foco
por detrás das palavras.
desta pesquisa: o que é mal visto pela
obras
muitas
vezes
eruditas
em
uma
resultados
monografia
de
preliminares.
Dessa forma, nos apoiamos na
sociedade é o comportamento adequado
leitura e crítica da historiografia pertinente
para um goliardo, o que é condenado pelo
ao tema estudado, bem como em materiais
cânone é celebrado por estes clérigos, e o
provenientes dos campos da crítica literária
grande porta voz desta característica é o
e da filologia para nos fornecer um
vinho, bebido em demasia no ambiente da
embasamento teórico para trabalharmos
taberna. Na canção célebre In Taberna
com poesia medieval. O procedimento
Quando Sumus, isso fica extremamente
utilizado é a de leitura da fonte, que em nosso caso se encontra traduzida para o
2
Edição acima citada.
605
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
claro: aquele que bebe e come muito é
Podemos supor que os goliardos
exaltado, o jogo é incentivado, mesmo que
tiveram algum alcance entre o povo mais
o
mas
comum, que cantaram suas canções nas
principalmente, a taberna é um lugar de
feiras e nas festas, e que sua poesia foi
todos.
essencialmente
sujeito
acabe
Todos
nu
em
aqueles
pelo,
que
quiserem
oral,
antes
de
ser
aproveitar a vida de forma “digna”, seja
cristalizada no códice do século XIII, mas
cavaleiro,
camponês,
que por causa da língua e também das
estudante, é bem vindo na taberna, neste
temáticas, cheias de referências a Bíblia, a
mundo
traço
filosofia grega e ao seu panteão, poucos
importante que não deixamos de notar na
poderiam realmente entender do que se
poesia goliárdica é o Carpe Diem, que
tratava; somente aqueles que fossem
anda “de mãos dadas” com a inversão de
letrados, versados no latim e que tivessem
valores, como uma forma correta de viver e
estudado mais ou menos da mesma forma
indo de encontro ao que Villena chama de
como o goliardo estudou é que poderia
“poesia de experiência” (VILLENA, 2010:
entender as referências. Por isso mesmo é
66-76)na qual o poeta, ligado ao mundo
que as poesias lúdico -tabernárias podem
exterior, transmite seus sentimentos e
ter sido as mais difundidas, por conter
percepções dos fatos a sua volta, uma
menos referências e carregarem um tom
percepção individual. Ou seja, mesmo que
satírico. Também existem registros da
recorram a metáforas e citações “cultas” e
recepção de suas sátiras pela Igreja, que
literárias, os goliardos escrevem segundo a
somente tomou providências para frear a
própria experiência, especialmente nos
disseminação
goliárdica
poemas ligados a taberna e a experiências
movimento
perdia
eróticas.
meados do século XIII. Antes disso,
eclesiástico, de
excessos.
Outro
ortodoxia,
“mais sem
uma”
representar
o
significado,
em
provavelmente a poesia goliárdica era vista
Conclusão como
já
quando
sátira
à
alguma
ameaça. Enfim, a nosso ver, a poesia
códices diferentes, e como sabemos, a produção
de
um
manuscrito
era
encomendada, tratando-se de um grande investimento
que
demandava
não
só
goliárdica tem uma enorme importância em
recursos, mas pessoas especializadas.
sua época, pois de outra forma não teriam
Além disso, temos certeza que dois dos
sido produzidos não um, mas quatro
códices, incluindo o Carmina Burana, foram
606
mantidos em mosteiros 3, o que pode indicar que seja uma obra produzida pelos monges, mas os especialistas não têm certeza acerca deste fato. Fato é que se trata de uma poesia incomparavelmente bela e complexa, uma fonte muito rica e infelizmente, pouco explorada.
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3
O outro códice é o Carmina Rivipullensia, encontrado no mosteiro de Ripoll, atual Espanha.
607
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
MARTINS,
M.
O
riso,
o
sorriso
e
a
paródia
na
literatura
portuguesa
do
Quatrocentos.Lisboa: Biblioteca Breve, 1987. MONGELLI, LêniaMárcia .Fremosos Cantares. Antologia da lírica medieval galegoportuguesa. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. MONGELLI, Lênia Márcia, VIEIRA, Yara Frateschi. A estética medieval. Cotia: Íbis, 2003. MONGELLI, Lênia Márcia (Org.) .Mudanças e rumos: o Ocidente medieval (sécs. XI-XIII). Cotia: Íbis, 1997. RIQUER, Martin de, VALVERDE, José Maria. Historia de la literatura universal. Barcelona: Editorial Noguer, 1957. Tomo I. ROSENFIELD, KatharinaHolzermayr. A história e o conceito na literatura medieval: problemas de estética. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986. SARAIVA, A. J. Para a história da cultura em Portugal. (2 vols.) Lisboa: Gradiva, 1995. SODRÉ, P. R. O Riso no Jogo e O Jogo do Riso na Sátira Galego-Portuguesa.Vitória: Edufes, 2010. SPINA, S. A lírica trovadoresca. São Paulo: EDUSP, 1996. _______. A cultura literária medieval:uma introdução. São Caetano do Sul: Ateliê Editorial, 1997. VILLENA, L. A. de. Dados, amor y clérigos: El mundo de losgoliardos em laEdad Media europea. Sevilla: Renascimiento, 2010. WADDELL, H. The wandering scholars: the life and art of the Lyric Poets of the Latin Middle Ages. New York: Doubleday&Company, 1955. ZUMTHOR, P. A letra e a voz:a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
608
ALÉM DO JOGO, VINHO E AMOR: A POESIA GOLIÁRDICA COMO MANIFESTAÇÃO POLÍTICA Jivago Furlan Machado 1 Resumos: Este trabalho tem como objetivo analisar a crítica política existente nos poemas dos goliardos em Carmina Burana, buscando uma ligação entre o pensamento da população das cidades renascentes do século XII e a justificação do poder baseada na teoria apresentada por Georges Duby na obra As três ordens ou o imaginário do feudalismo. A pesquisa foi feita a partir da leitura dos poemas presentes em Carmina Burana buscando possíveis manifestações de críticas que fossem além da trilogia do vinho, amor e jogo, normalmente relacionada aos goliardos. A leitura de obras referentes ao contexto social do século XII, junto com o estudo dos poemas, foi a base da presente investigação. Além disso, foram analisadas algumas obras referentes aos séculos XI e XIII, buscando as condições anteriores ao surgimento das fontes, bem como o período imediatamente posterior, visando compreender as possíveis consequências da manifestação goliarda na sociedade europeia no surgimento das primeiras universidades. A partir do que foi trabalhado, é possível concluir que os goliardos cantavam temas que iam além da trilogia conhecida, estando presentes em suas poesias críticas sutis a respeito de certas práticas da elite da época, algo que representava uma nova visão da sociedade, que estava em um período de constantes mudanças. Seus escritos representam uma renovação do pensamento medieval do século XII. Palavras-chave: goliardo; século XII; hierarquia social
1Universidade
Federal de Santa Maria.
609
Jivago Furlan Machado
A sociedade europeia do século XII
Laon e Gerardo de Cambrai, Duby aponta
foi um período demudança. Mudanças que
os
modificaram profundamente a vida das
sociedade
pessoas da época, seja em aspectos
influências de pensadores cristãos como
físicos, como o ressurgimento das cidades
Agostinho e Dionísio Areopagita nas obras
e do comércio; ou mentais, devido aos
dos bispos. Além das influências teóricas,
efeitos das cruzadas e da interação dos
ele contextualiza os autores, mostrando
novos atores sociais que se desenvolveram
elementos da sociedade da época que
a partir das novas condições. Os goliardos,
influenciaram na construção da ideia das
estudantes que escreviam poesias com
três ordens, como o fim do Império
temáticas
Carolíngio, por exemplo.
referentes
aos
prazeres
fundamentos
da
medieval,
ordenação
da
destacando
as
mundanos, estão entre estes novos atores.
Sendo feita por bispos de famílias
Frutos das escolas do clero, cantavam
nobres, a ideia das três ordens obviamente
temáticas que desafiavam os ensinamentos
favoreceu seus criadores e a casta a que
morais da Igreja, exaltando o vinho, o jogo
pertenciam. Para Duby:
e o amor. Entretanto, muito além das temáticas
citadas,
os
escritos
desses
poetas carregavam fortes críticas políticas, atacando sutilmente membros da elite (alto clero e nobreza) e desafiando, portanto, as justificativas
para
a
manutenção
da
hierarquia social, tão prezada na sociedade medieval. Como era a hierarquia da sociedade medieval?
Basicamente
o
medievo
é
entendido a partir de três grandes grupos sociais: os que rezam, os que combatem e os
que
trabalham.
reis e dos príncipes como que um espelho. Um desses espelhões de metal polido como aqueles de que na época se serviam, reflectindo bastante mal as imagens, mostrando contudo os defeitos, ajudando assim a corrigi-los. O discurso episcopal, ao dirigir-se aos príncipes da terra, tem essa finalidade: lembrar-lhes os seus direitos, os seus deveres e o que não corre direito neste mundo. Incitá-los a agir, a restabelecer a ordem. Ordem cujo modelo o bispo descobre no céu. Discurso político, o discurso dos bispos convida a reformar as relações sociais. É um projeto de sociedade. Na tradição carolíngia, o episcopado é o produtor natural da ideologia”(DUBY, 1994, p. 28).
Partindo da ideia de Duby é possível
apresentada na obra As três ordens ou o
percebe os interesses que embasaram a
imaginário do feudalismode Georges Duby.
definição da hierarquia. Como o próprio
Focando
período
autor coloca, o discurso apresentava um
imediatamente posterior ao ano mil, a partir
projeto de sociedade a ser seguido, um
dos escritos de dois bispos, Adalberão de
modelo que deveria ser aplicado. Esse
análise
definição
sentem-se obrigados a apresentar aos olhos dos
é
sua
Essa
“Na tradição carolíngia, os bispos do século XI
no
610
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
modelo era tratado como algo já existente
verificar a discordância entre o discurso
no plano celeste, era como uma lei natural
que vinha de cima, por parte do alto clero,
(divina) da ordenação das sociedades.
a respeito da organização da sociedade e
Como tinha origem divina, portanto não
dos papéis a serem cumpridos pelas
questionável,
sociedade
pessoas, e a percepção das camadas
respeitada,
menos influentes em relação a isso.
questioná-la seria questionar a decisão de
Através da poesia goliárdica pode-se ter
Deus. Ao escrever sobre o sistema do
acesso
mundo medieval, Noeli Rossatto salienta a
popular, servindo como porta-voz dos
influência platônica no pensamento vigente
pensamentos do povo iletrado que era
no século XII em relação ao mundo natural.
maioria na época. Sendo muitas vezes mal
mundana
“O
a
ordem
deveria
mundo
contemplação
ser
medieval da
da
está
natureza
e
centrado não
na
na sua
explicação. Vários são os modos de contemplá-la.
uma
manifestação
poética
vistos pelas autoridades medievais, os goliardos
viviam
transitando
entre
os
Certo platonismo a trata com base em uma
ambientes educacionais, as cortes, e, na
oposição: o mundo criado (natura naturata) é o
maior
contrário do mundo do Criador (Natura naturans). Outro platonismo supera essa dicotomia e vai
parte
ambientes
do
tempo,
urbanos
tabernas
comerciais,
e
onde
buscar as similitudes entre esses dois mundos ”
tinham contato com diversos tipos de
(ROSSATTO, 2004, p. 17).
pessoas. Esse trânsito dos goliardos era
Sobre esse outro platonismo é que se pode entender a ideia das três ordens como um espelho divino. Na sociedade medieval os costumes das
a
pessoas
eram,
a
princípio,
rigorosamente inspirados nos preceitos cristãos, considerados vontade divina. A ordem social não fugia dessa regra. Tendo em vista o padrão de pensamento vigente no século XI, justificar a hierarquia social com base na vontade divina era algo com grandes chances de ser aceito.Analisar a repercussão dessa ideia de ordem na sociedade de mudanças do século XII é algo extremamente importante por permitir
algo novo, incomum para os padrões da época. Com
as
cidades,
as
feiras
comerciais, as tabernas e os novos tipos de ocupações que surgiam e ressurgiam entre o fim do século XI e início do XII, as antigas estruturas de governo idealizadas por Gerardo e Adalberão não conseguiam mais dar conta de explicar a ordem das coisas. A sociedade havia mudado e sua explicação continuava
a
mesma.
Nesse
sentido,
permitiu-se a erupção de novas ideias, de críticas ao modelo supostamente vigente. É
interessante
ressaltar
que
a
definição da hierarquia baseada nas três
611
Jivago Furlan Machado
ordens nem mesmo no século XI foi
ocorre
são
satiririzações
totalmente exitosa. O próprio Duby deixa
influentes (sejam prelados ou a própria
claro na parte final de sua obra, quando
rainha da Inglaterra) devido, geralmente, a
escreve que alguns teóricos da época
ações que estavam em desacordo com os
interpretavam a sociedade como tendo
costumes
uma quarta ordem, a dos comerciantes
valorizados por elas mesmas. Isso pode
(considerada a mais vil de todas), o que
ser considerado um princípio de desafio à
prova a existência de características que
ordem, caso a boa conduta fosse uma das
fugiam à regra, sendo ela uma tentativa de
justificativas para a manutenção do poder
definir como a realidade deveria ser, não
dessas pessoas.
reflexo dela. Porém, a ideia das três ordens
Mas
cristãos
não
teria
de
pessoas
supostamente
na
poesia
dos
não servia apenas como meta a ser
goliardos uma valorização dos prazeres
seguida, mas também era considerada um
carnais, com objetivos recreativos, sem
espelho
grande
da
sociedade:
segundo
seus
conteúdo
ideológico?
Sim,
teóricos, a sociedade era de fato dividida
valorizava os prazeres, mas certamente
em três funções, três tipos de pessoas
estava carregada de aspectos ideológicos.
diferentes,
Pensando sobre o que fundamentava o
caso
isso
não
estivesse
ocorrendo na prática, algoestava errado,
poder
deveria ser corrigido. Se algum bispo, por
(eclesiásticos
exemplo, resolvesse pegar em armas e ir à
escreviam poesias como a seguinte:
guerra estaria fora da ordem, pois isso é papel dos nobres laicos, dos senhores feudais,
bispos
deveriam
rezar,
não
combater. Sabendo que a ideia das três ordens era algo arbitrário em relação à realidade já no século XI, no XII, quando surgiram os goliardos, isso era ainda mais difícil de ser aceito pelas pessoas. Um prova disso é a poesia goliárdica. Nos escritos goliárdicos, não há, a princípio, menção ou crítica direta à ideia das três ordens. Isso não é citado. O que
das
ordens e
nobres)
dominantes os
goliardos
A MESMA MÃO QUE DÁ PROPINA CB 1 A mesma mão que dá propina faz pecar qualquer cristão, desavenças elimina, a grana chama a razão, os discordantes ela afina, aos conflitos dá solução. os juízos dos prelados Depende dos ducados. Juízes vossa sentença A grana não dispensa! Quando é a grana que impera o direito degenera, ao indigente é negado o direito comprovado; para o rico não falta juiz
612
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo a vender-se por pratas vis;
danosos à alma dos cristãos. Apego ao
para o rico, o juiz bonzinho
dinheiro, portanto, vai contra a ideia de
sempre dá algum jeitinho;
Agostinho. Logo, a justiça da época,
quando é a grana que pleiteia, a sentença nunca é feia. (...)
baseada segundo a poesia nos “ducados
(CARMINA BURANA, 1994, p. 25).
O que será que definia a posição dos poderosos na sociedade? Essa é uma questão que pode ser feita a partir dos escritos acima citados. O goliardo que escreveu
tais
versos
denunciava
a
importância do dinheiro para as decisões dos juízes da época. Valorização do dinheiro que era algo bastante condenado por parte da Igreja (com exceção de Cluny, onde defendiam a riqueza), quase como uma norma de conduta moral, não se apegar a bens materiais era uma regra básica daquela sociedade. Interessante pensar na origem da ideia de desapego à materialidade, origem que é comum à que os bispos da época usavam para defender a ideia das três ordens: Santo Agostinho. Em sua obra A Cidade de Deus, Agostinho expõe alguns exemplo de como o apego aos bens materiais é danoso ao verdadeiro cristão,
sendo
que
este
deveria
se
preocupar mais com os bens espirituais do que com qualquer outra coisa, pois o que é espiritual é eterno e incorruptível, digno de ser buscado, diferente do que é material (seja
dinheiro
e
bens,
ou
prazeres
mundanos), que é finito e corruptível, fonte de desvios de conduta que são vícios
dos prelados”, não estava coerente com os ensinamentos da Igreja, ao menos com as ideias de Santo Agostinho. Indo além, parece que os goliardos escreviam sobre algo mais profundo, um problema estrutural que a incoerência entre os ensinamentos e a prática dos membros do alto clero deixava transparecer. Se a sociedade era em grande parte governada por essas pessoas, qual seria a origem dessa posição? Se a origem do poder do clero era baseada na vontade divina, e a vontade divina previa também o desapego aos bens materiais, por que deveria seguirse apenas parte dessa vontade? Já que os juízes provavelmente eram cristãos, será que
desconheciam
cristianismo
ou
esse
aspecto
do
adequadamente
interpretavam diferente essa parte dos ensinamentos? Atualmente
parece
clara
a
parcialidade da interpretação da vontade divina por parte do alto clero, entretanto não podemos deixar de lado o fato de que os idealizadores das três ordens eram homens de seu tempo, imersos na cultura da época, não visionários que friamente calcularam as consequências de suas ideias na sociedade de modo a mantê-los
613
Jivago Furlan Machado
no
poder
apenas
nova
Pessoas do século XII, os goliardos
de
viveram em um período de transição. O
interpretação a obra de Marilena Chauí é
ambiente hostil à urbanização, da Alta
indispensável:
Idade Média, já não era o único tipo de
justificativa.
Para
com esse
uma problema
“[...] como idéias que parecem resultar do puro esforço intelectual, de uma elaboração teórica objetiva e neutra, de puros conceitos nascidos da
comunidade. Os povos orientais já não apresentavam risco de invasão, os ataques
observação científica e da especulação metafísica,
vikings já haviam ficado para trás e os
sem qualquer laço de dependência com as
muçulmanos estavam sendo combatidos
condições sociais e históricas, são, na verdade, expressões dessas condições reais, porém de
fora da Europa, ou seja, viver refugiado em
modo invertido e dissimulado. Com tais idéias
feudos já não era algo tão necessário como
pretende-se explicar a realidade, sem se perceber
antes, os novos tempos permitiam novos
que são elas que precisam ser explicadas pela realidade ” (CHAUÍ, 1980, p.07).
Pensando na recepção das pessoas em relação à ideia das três ordens, a partir dos escritos de Chauí, pode-se afirmar que parte da sociedade do século XII via as incoerências entre o discurso e a prática da elite, algo que poderia desestabilizar a ordem, que permitia crítica, crítica que se encontra nos escritos de pessoas que circulavam pelos diversos espaços, novos e antigos, da sociedade medieval, como os goliardos. Poetas que além de frequentar ambientes da elite, como as escolas, viviam em contato com vários tipos de pessoas
simples,
com
diferentes
ocupações, a maioria sem poder político de direito,
embora
possuindo
opiniões
políticas,geralmente desconhecidas(já que eram iletradas), mas que tinhamchance de ser registradas indiretamente através dos escritos goliárdicos.
modos de vida. Os feudos ainda existiam, é claro, mas a sociedade urbana florescia como à anos não fazia. A urbanização foi reflexo, entre outras coisas, do comércio, que aumentava gradativamente. Tempos mais pacíficos combinados com um clima favorável à produção agrícola, permitiram que
a
sociedade
aumentasse
demograficamente, que a produção fosse mais variada e em maior quantidade, estimulando as trocas comerciais. As cruzadas foram acontecimentos decisivos para o renascimento urbano e comercial da Europa, pois permitiram aos comerciantes ampliar suas redes de troca e diversificar
os
produtos
a
serem
comercializados. Com novas rotas abertas pelos cruzados, os comerciantes europeus tinham acesso a especiarias orientais com mais facilidade. Não só os povos que vivem onde hoje se localiza a Itália e regiões próximas poderiam dedicar-se de fato ao
614
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
comércio com o oriente, mas muitos outros.
nunca, ultrapassada. A teoria prevê três
O contato com comerciantes árabes já
funções a serem cumpridas, três tipos de
ocorria muito antes das cruzadas, mas não
pessoas que, embora existissem, não
era algo em grande escala se levar em
contemplavam mais a totalidade do real
consideração regiões mais ao norte. Com
social(se é que algum dia o fizera). Com
esse grande fluxo de pessoas indo e vindo
cidades e suas novas ocupações, cada vez
para Jerusalém e suas proximidades, muito
mais existiam funções que não eram
além de batalhas pela terra santa, o
contempladas pelas ideias dos bispos do
contato entre comerciantes muçulmanos e
século
cristãos era intenso. Era possível produzir
Oliveria as mudanças econômicas do
mais, comprar mais e vender mais. Na
século
Europa, essas novas práticas refletiram no
diversos setores:
dia-a-dia
das
pessoas,
que
viam
se
tornarem
grandes
criadas,
a
regiões
os habitantes das comunas adquirem certa força, começam a se organizar para defenderem-se das
mobilidade
conhecimentos
extorsões e das pilhagens dos senhores feudais, fossem estes laicos ou clérigos. O resultado desta organização foi o estabelecimento de acordos (OLIVEIRA, 2005 p.367).
diferentes. Cada vez mais pessoas viviam
atores dessa sociedade de transição. Eram
de
intelectuais, pessoas que para os padrões
não
ferreiros,
de
com
Os goliardos estavam entre os novos
taberneiros,
visões
entre as comunas e os senhores feudais ”
mundo
atividades
e
distantes,
em
alterações expressivas. Com efeito, à medida que
entre pessoas locais com comerciantes e de
outras
entre os diferentes segmentos sociais, verifica-se
aumentou. Era mais frequente o contato viajantes
proporcionaram
vida novo. Também no plano político, na relação
centros
a comércio ou para a terra santa, mais foram
Terezinha
que os homens começam a adquirir um estilo de
comerciais. Com mais gente viajando, seja estradas
XII
Segundo
“Mas não é só no plano das atividades econômicas
as
estruturas físicas das antigas pequenas feiras
passado.
agrícolas,
como
comerciantes
de
da
época
possuíam
conhecimentos
tecidos, vendedores de produtos que antes
restritos
raramente eram requisitados, mas que com
população. Seguindo a ideia de Jacques Le
os novos tempos tornara-se possível.
Goff, deve-se pensar em intelectualidade
Todas essas mudanças acabaram modificando estruturalmente a sociedade europeia medieval. As pessoas pensavam diferente e a justificativa do poder baseada em três ordens parecia, mais do que
para
a
grande
massa
da
medieval diretamente ligada às cidades. “No início foram as cidades. O intelectual da Idade Média – no Ocidente – nasceu com elas. Foi com o desenvolvimento
urbano
ligado
às
funções
comercial e industrial – digamos modestamente artesanal – que ele apareceu, como um desses
615
Jivago Furlan Machado homens de ofício que se instalavam nas cidades nas quais se impôs a divisão do trabalho” (LE GOFF, 2003, p. 29).
Na visão de Le Goff, o intelectual era o
homem
urbano
relacionado
ao
cujo
ofício
trabalho
era
intelectual.
Professores ou alunos, os intelectuais eram pessoas de ofício, com uma atividade definida. Entretanto, é sabido que os goliardos,
de
um
modo
geral,
eram
conhecidos pela vacância, pelo modo de vida
errante,
sem
atividade
produtiva
definida. Letrados que viviam às margens da sociedade urbana, sobrevivendo ora de favores, ora por vínculos familiares. Seu estilo de vida geralmente não estava ligado a cargos ou atividades que possibilitavam estabilidade. Eis o problema. Para os poderosos,
ter
pessoas
letradas,
que
conheciam razoavelmente ambientes da elite (escolas), mas viviam em contato com a população geral, nas tabernas e feiras comerciais, era algo que poderia ser potencialmente subversivo. Não bastasse a sociedade estar mudando em um ritmo maior do que os governantes poderiam acompanhar, ainda existia esse tipo de poeta, que viviam disseminando através de seus
versos,
provavelmente,
ideias seriam
que
antes,
seriamente
repreendidas, mas com os novos tempos eram menos mal vistas. Era possível falar de vinho, jogo e amor. Era possível também satirizar as pessoas poderosas.
Carmina Burana pode ser tratada como um vestígio
que
carrega
informações
referentes à visão que os populares tinham em relação aos poderosos, algo que possibilite, nos dias de hoje, afirmar que algumas
pessoas
percebiam
as
incoerências que estavam por trás dos discursos da elite. Talvez os goliardos representem os primórdios de um novo tipo de conhecimento letrado, fugindo um pouco da antiga tradição teológica. Sabe-se que o século XIII foi o das universidades. Grande mudança na forma que
os
intelectuais
trabalhavam,
a
universidade medieval foi algo novo na história da humanidade. Instituição que veio com as já citadas transformações sociais, a universidade é a consolidação de um período de mudanças anteriores. Não apenas enquanto instituição, mas com novos problemas, novos temas a serem trabalhados, pensados. A intelectualidade medieval
do
século
XIII
tinha
novas
questões para esclarecer. Uma sociedade diferente exigia diferentes explicações. As condições materiais dessa sociedade de universidades do século XIII começam a tomar forma já no século anterior. Não seria a poesia goliárdica uma manifestação primitiva
dessa
nova
forma
nova
de
pensamento? Talvez. Pensando novamente nos escritos dos goliardos enquanto crítica política,
616
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
pode-se encará-los como uma possível
poder com base em teorias, mas em bens
manifestação que carregava implícita as
materiais. O poder dos novos poderosos
ideias de pessoas não letradas da época.
não sendo de origem divina abre espaço
Partindo dessa ideia, é possível por em
para que os poetas cantem desafios aos
evidência
homens de Deus e suas regras.
as
justificativas
para
a
manutenção da hierarquia social. O poder
Denunciando o caráter ultrapassado
exigia justificativas para sua manutenção.
do ensino do século XII, os goliardos
Mas pelo visto em Carmina Burana, essa
podem representar o início da mudança
estrutura que era semelhante à divina
que se consolidou no século seguinte com
permitia
conduta
as universidades. Nesse sentido, Le Goff é
ocorressem por parte dos poderosos, ou
claro quando afirma que “A tradição
esses desvios eram mais uma prova de
goliárdica sempre viva na universidade,
que esse poder, antes material do que
perpetua-se,
divino, não era tão sagrado assim. Ali
agressividade porém com mais segurança”
estavam os poetas cantando os desvios de
(Le GOFF, 2003, p. 137).
que
desvios
de
conduta dos poderosos que se justificavam por
ordem
divina.
Divindade
que
desaprovava tais desvios. estivessem
relacionados
Embora
aos
não
com
se
menos
encontre
nos
escritos dos goliardos uma proposta nova de
Talvez os temas dessas poesias
truculenta,
explicação
da
sociedade,
sua
satirização dos desvios morais da elite
novos
pode ser encarada como ascensão de um
costumes que a vida nas cidades permitia e
pensamento crítico que se consolida no
proporcionava. Lugar onde a ascensão
século
social era mais possível e onde não só os
pensadores
universitários
senhores feudais e bispos tinham poder,
justificativas
diferentes
mas também comerciantes, gente que não
vigente.
seguinte
com
os
juristas
que
para
e
buscam o
poder
tinha origem nobre, que não justificava seu
Referências: AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. A cidade de Deus: (contra os pagãos). Parte I; Introdução de Oscar Paes Leme. 2. ed. – Petrópolis: RJ, Vozes; São Paulo: Federação Agostiniana Brasileira, 1990; CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 3ª ed.. São Paulo: Brasiliense, 1981;
617
Jivago Furlan Machado
DUBY, Georges. As três ordens, ou o imaginário do feudalismo. Tradução de Maria Helena Costa Dias. 2. ed. Lisboa/Portugal: Estampa, 1994; FRANCO JÙNIOR, Hilário. A Idade Média : nascimento do ocidente. 2ª ed.. São Paulo: Brasiliense, 2001; Le GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Tradução de José Rivair de Macedo. Bauru, SP: Edusc, 2005; _____Os Intelectuais na Idade Média. Tradução de Marcos de Castro. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2003; OLIVEIRA, Terezinha . Instituição e Pensamento: a Universidade e a Escolástica. In: LUPI, J.; DAL RI JUNIOR, A.. (Org.). Humanismo medieval: caminhos e descaminhos. 1ed. Ijuí: Unijuí/Fundacione Cassamarca, 2005, v. 1, p. 363-373; ROSSATTO, Noeli Dutra. Natura naturans, natura naturata: o sistema do mundo medieval. In.: Ciência & Ambiente. N. 28. Janeiro/Junho de 2004, nº 28, p. 17 – 28; VERGER, Jacques. Cultura, ensino e sociedade no Ocidente nos século XII e XIII. Tradução de Viviane Ribeiro. Bauru, SP : Edusc, 2001. Fontes: Carmina Burana: Canções de Beuern/ Apresentação de Segismundo Spina, introdução e tradução de Maurice van Woensel. – São Paulo : Ars Poética, 1994.
618
A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA NAS AÇÕES DO MONARCA D. DINIS Lorena Faccin Rosa 1 Resumo: Neste texto apresentamos um estudo sobre a formação educacional do VI rei de Portugal, D. Dinis (09/10/1261 - 07/01/1325). Essa formação educacional foi de cunhofrancês universitária do século XIII. Nós nos propomos a estudar sobre este monarca devido seus grandes feitos como um rei que não foram percebidos em seus antecessores e por ser o primeiro de sua linhagem a ser educado e além disso, educado desde pequeno com o objetivo de que o conhecimento que ele adquirisse fosse aplicado em seu reinado. Fazendo assim de D. Dinis um grande rei pelos seus atos e sua formação. Então, neste trabalho apresentaremos alguns dados sobre a formação de D. Dinis e apontaremos alguns de seus grandes feitos levando sempre em consideração os estudos como influência nos atos do rei como dirigente de uma sociedade. Porém, antes de chegarmos ao nosso tema principal, realizaremos uma contextualização do século XIII enfocando na Universidade Francesa onde alguns anos depois D. Dinis foi educado e também apresentaremos uma biografia do monarca para uma melhor compreensão do texto. O caminho percorrido para a realização dos estudos foi baseadono pressuposto teórico da História Social de Marc Bloch como metodologia. E nosso referencial teórico foi baseado nas Crônicas referentes ao período, como também os historiadores Medievais. Palavras-chave: D. Dinis; História da Educação; Medievo.
1
Universidade Estadual de Maringá.
619
Lorena Faccin Rosa
Introdução
desafios, pois, compreender o presente de
através de um fato histórico e este com o
apresentar os resultados da pesquisa a
presente não é uma tarefa fácil. Sempre
nível de iniciação científica 2 de como o
precisamos assim voltar em fontes teóricas
conhecimento
que
Este
texto
tem
o
universitário
intuito
francês
do
nos
possibilitem
a
tentativa
de
século XIII influenciou nas ações de
compreensão de determinado fato histórico
dirigente da sociedade de D. Dinis. O
e depois trazer para o presente. Por
monarca nasceu no ano de 1261 e faleceu
exemplo essa pesquisa sobre D. Dinis nos
em 1325, sendo assim um homem do
possibilita tanto a compreensão do seu
período medieval. Nessa época estavam
tempo, quanto compreender a importância
ocorrendo
da educação que é presente agora. Ou
grandes
sociedade
e
transformações
a
constituição
na das
seja,
sabemos
que
a
educação
é
universidades nas cidades. A França foi
importante, mais o que comprova isso são
uma
modelos
as pesquisas como essa que apresenta a
daquele período e a mais procurada para
educação como diferencial em um cidadão
formar pessoas nas universidades. D. Dinis
que
foi enviado para a Universidade de Paris
sociedade. Constatamos assim que essa
para estudar, com o intuito de que o estudo
pesquisa é importantíssima para a área da
o distinguisse como rei e assim ocorreu. D.
educação, responsável por formar pessoas.
das
principais
cidades
Dinis é um dos maiores rei já visto,
faz
O
toda
a
caminho
diferença
em
percorrido
uma
para
a
incomparável em sabedoria e em ações
realização desse estudo foi fundamentado
para o bem, ele (RIBEIRO, 1871, p. 23)
pela obra Apologia da História ou Ofício do
Regeu, edificou, lavrou, venceu, Honrou as
Historiador de Marc Bloch que nos propõe
Musas, poetou e leu.
caminhos e formas de estudar história, já
Quando nos propomos a realizar
que ele nos indica a possibilidade de
pesquisas nos campos da História e da
recuperação e uso dos acontecimentos
Historiografia
da
devemos
humanos,
nos
sempre
preparar
grandes
singulares
"[...]
nos
Educação para
aparentemente 2
Essa pesquisa é Orientada pela Prof. Dr. Terezinha
seus por mais
aspectos trás
dos
insípidos
mais
escritos e
as
instituições aparentemente mais desligadas
Oliveira e se iniciou com a atual aluna de mestrado
daqueles que as criaram, são os homens
Mariana Sarache, que foi substituída devido a sua
que a história quer capturar". (BLOCH,
formação na graduação do curso de Pedagogia em
2001. p. 54)
Janeiro de 2014.
620
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Na passagem mencionada podemos
homem medieval estava recluso em feudos
detectar que, para o autor, o objeto e razão
e passou a morar nas cidades para facilitar
da história é o próprio homem. Logo, não
suas relações comerciais, essa adaptação
haveria sentido estudar história se o
gerou necessidades de ler, escrever e
homem não fosse a essência do contexto
calcular para vendas e trocas. Como nos
estudado. Estudar história é estudar o
comprova:
homem, suas conquistas, escolhas, suas atividades, suas invenções. Relacionando este entendimento de história com as ações de D. Dinis podemos destacar um trecho da obra (BLOCH, 2002, p. 60) "Os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais" e
"Com relação ao renascimento urbano, há que se mencionar que o movimento e o desenvolvimento das cidades medievais devem a um conjunto complexo de estímulos e a diversos grupos. Dentre estes estavam os recém-chegados evadidos do campo, das famílias monásticas, os quais estavam prontos a negociar e obter ganhos". (OLIVEIRA, VIANA. 2011, p.317)
Esses
acontecimentos
certamente D. Dinis se parecia mais com
desestabilizaram a sociedade atual, tudo
seu tempo do que com seus pais, levando
que se conhecia como certo já estava
em consideração todas as diferenças de
ultrapassado ou não correspondia o atual,
uma geração para a outra, D. Dinis agiu
então os homens encontraram um jeito de
totalmente diferente do rei anterior, já que
se explicar pela razão, pois a igreja que era
priorizou e sistematizou o desenvolvimento
responsável por isso até este momento já
econômico e social do reino, dedicando-se,
não estava conseguindo sanar a dúvidas,
particularmente ao desenvolvimento da
nem explicar a fase atual e nem o homem
cultura.
em suas instâncias.
Iniciamos portanto nosso texto com
Neste
uma breve contextualização que permitirá
Universidade
um entendimento inicial do que se passava
conhecimento. Um desses conhecimentos
naquele período.
como nos diz Oliveira (2005, p.8) é um
O Século XIII e a Universidade Francesa
cenário que
se
constituiu
transmitiria
a o
saber voltado para as atividades citadinas e
O século XIII especificamente na
mercantis dos mercadores que tinha um
França foi marcado pelo renascimento das
caráter prático, ou seja, as atividades
cidades e das atividades comerciais. O
citadinas comercias definiram um perfil
homem
um
para o saber medievo que deveria ser
camponês do feudo e passou a ser um
transmitido na Universidade pois foi para
comerciante da cidade, ou seja, antes o
realizar essa função que ela foi criada.
medieval
deixou
de
ser
621
Lorena Faccin Rosa
Porém, mesmo que sendo criada a este
pois, dali saiam os doutores do direito, da
intuito a universidade era ampla demais
medicina e da teologia principais ofícios do
para
de
período. Portanto, esta instituição é o
conhecimento, então ela se abre como um
elemento fundamental de formação de um
espaço que além de corresponder o
reino,
período em que está o estuda, estuda os
Universidade,
homens, as novas formas de relações, de
criações do reinado de D. Dinis. Assim,
cultura e etc. Ou seja “A universidade cria,
ainda que a Universidade de Portugal não
deste modo, a possibilidade de os homens
tenha
buscarem, por meio da razão e não
repercussões que a de Paris alcançou,
maisapenas
por
meio
da
a
segundo Mattoso (1994) ela foi uma
explicação
para
a
suas
relações.“
instituição, extremamente importante para
atender
somente
esse
tipo
religião,
aos
moldes foi
atingido
formação
da
da
uma
o
França,
das
esplendor
(OLIVEIRA, 2005, p.6). Ela se consolida
a
identidade
como parte do elemento da cultura e da
portuguesa social e política.
a
primeiras
e
as
nacional
formulação do pensamento intelectual do
D. Dinis e sua formação
homem medieval, em diversas cidades do
D. Dinis nasceu no ano de 1261 e
Ocidente. Além de proporcionar a abertura
assumiu o trono em 1279, com 18 anos,
de portas do conhecimento para todos os
logo após a morte de seu pai D. Afonso III
homens, pois este, era restrito para a igreja
e faleceu em 1325 quando finda seu
e aos nobres.
reinado. Este rei português enfrentou, logo
Essas mudanças nos âmbitos da
de início, a situação de estar a frente de um
economia, da cultura, da política, do pensar
território que necessitava se desenvolver e
e se organizar da França proporcionaram
se libertar da suserania da Espanha. Essa
que esta região se desenvolvesse de tal
unificação só ocorreu com D. Dinis, pois ele
forma que passou a ser considerada uma
conseguiu amainaros problemas com a
das regiões modelo para os homens
igreja herdados pelo seu pai, o rei anterior
medievais
para
a ele. Acreditamos que por este monarca
Portugal que se inspirou na França para
ter tido uma formação francesa deste
unificar seus territórios e constituir um
período apresentado acima, soube utilizar-
reino.
se dessa influência para desenvolver seu
do
Ocidente
inclusive
Já a presença da Universidade nas
reinado.
Incentivou
moralmente
e
cidades do Ocidente representava o motor
financeiramente na cultura, na criação e
do desenvolvimento intelectual e social,
manutenção
da
primeira
Universidade,
622
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
criou a marinha e era conhecido como Rei
obrigações futuras como rei. (SOARES,
Lavrador por se importar e incentivar o
2007, p. 173) D. Dinis estudou na França
desenvolvimento da agricultura. Sob este
durante 16 anos, quando retornou para
aspecto é importante ressaltar que D. Dinis
Portugal foi rodeado de letrados franceses
envolveu-se em todos os aspectos sociais
e portugueses formados em universidades
do seu reino. D. Dinis foi um rei muito
estrangeiras como Lourenço Gonçalves,
estimado
o
também teve como preceptor Ayméric
conheceram e por muitos autores que
D'ebrard, um dos homens mais ilustres do
tiveram a oportunidade de estudá-lo como
período, como podemos comprovar na
comprovamos na citação abaixo.
citação abaixo.
em
vida
pelo
os
que
"porque foi Dom Diniz (segundo de suas obras se
Semelhantes circunstâncias, compreendidas pela
collige) entre todos os do seu tempo o mais
sagaz inteligéncia de D. Afonso, determinaram
excellente Principe, que no mundo houve. E hum
êste monarca a ministrar a seu filho educação
raro exemplo de Nobreza, e Justiça, e Verdade:
esmerada, como a não tinham recebido ainda
virtudes só dignas de hum Real peito;" (MARIZ,
príncipes portugueses. Deu-lhe por aio Gonçalves
1963, p.263)
Magro,
Os
autores
apresentaram
estudados
informações
não
suficientes
sobre a formação de D. Dinis, porém, falam de seus feitos e com os dados que pudemos encontrar relacionamos alguns de seus feitos com a sua formação, que certamente interferiu em todas as suas ações. Ressaltamos que D. Dinis só pode estimular o desenvolvimento do seu reino, fundar a universidade, porque teve uma formação intelectual que valorizava estas questões
como
essências.
Sob
este
aspecto é preciso destacar, no âmbito da educação, que ele só pode agir dessa forma porque o seu pai e avô viram a necessidade de fornecer uma educação diferenciada para ele, pensando nas suas
em
quem
as
qualidades
pessoais
concorriam com as tradições de família, como terceiro neto de Egas Monís. A missão educadora de Lourenço Gonçalves foi continuada por Nuno Martins de Chacim, que teve o cargo de adeantado (fronteiro mór) na Beira e Entre Douro e Minho, e depois o de mordomo- mór de El Rei D. Dinís. (ALMEIDA, 1922, p. 235)
Com
efeito,
acreditamos
que
o
diferencial do seu reinado vem do estudo porque
o
conhecimento
proporcionou
visões, técnicas e formas de escolher suas ações, que sem as quais, acreditamos que Portugal não teria se desenvolvido. Um exemplo é a relação desenvolvida entre ele e a igreja já que D. Dinis limitou os poderes desta sobre o reino, porque possuía argumentos e força política, necessários para tal decisão, algo que não foi detectado nos reinos anteriores. Esse fato poderia ter acontecido por falta de argumento da Igreja
623
Lorena Faccin Rosa
como citado ou também poderia ser que
evolução intelectual adquirindo a instrução
ela aceitava os argumentos do monarca
e o conhecimento. O monarca sabia que
por saber da sua formação universitária e
essa instituição seria crucial para alcançar
que princípios como a ética estavam em
esses objetivos, pois teve um intenso
seu caráter.
contato com a estima cidade francesa e
Outra
evidencia
do
poder
do
conhecia que a França só evoluiu daquela
conhecimento nas ações de D. Dinis, foi a
forma
relevância que ele deu a Universidade,
principalmente por causa da Universidade.
buscando criar no seu território uma
O que podemos constatar é que como o rei
instituição tal como a existente na França
era
(OLIVEIRA,
20).
também quis trazer para sua terra toda a
Consideramos que uma das razões para o
organização francesa, sua cultura, claro
interesse
a
que não descartando a própria de Portugal
Universidade por este monarca incidia no
mais atribuindo novos elementos culturais e
fato de que as mudanças que estavam
trazendo aquela instituição evolutiva que
ocorrendo, na sociedade medieval, exigia a
era a Universidade.
SARACHE, na
criação
2013, e
p.
proteção
formação de novos profissionais como
para
ser
uma
impregnado
Além
região
daquela
disso,
modelo
cultura
tornara-se
ele
muito
médicos, teólogos, advogados, entre todas
dispendioso enviar pessoas para serem
as outras profissões.
formadas em outros países, pois muitas
"A educação que D. Diniz recebeu, graças á illustração de seu pae, produziu os mais prosperos resultados para Portugal. Ponto agora de parte
delas além de não retornarem depois de formadas, as que tinham a intenção de ir e
outros interesses, e fixando a consideração nos do
retornar sofriam os inúmeros riscos das
desinvolvimento intellectual, vemos surgir nos fins
grandes jornadas.
do seculo XIII uma universidade, que proporciona aos portuguezes o grande beneficio de estudos geraes, e lhes permite alargar a esphera da intelligencia e adquirir a instrucção - variada e util -, que até nessa época só um outro individuo privilegiado ia beber fóra da patria. (RIBEIRO, 1871, p.2)
Como podemos observar no trecho
"Pôde D. Dinis, compreendendo a importância da educação científica para o bom governo dos povos,
iniciar
trabalhos
de
a
sociedade
uma
portuguesa
organização
nos
civilizadora,
lançando os fundamentos de uma Universidade; isto é: de uns Estudos seculares, a que pudessem aceder todos quantos o pretendessem" (SOARES, 2007, p. 173).
acima que lemos, o autor destaca que foi
O discurso de D. Dinis era de que
pela educação de D. Dinis que ele se
Portugal precisaria formar seus filhos "em
empenhou na criação da Universidade,
casa". D. Dinis sabia que o conhecimento
buscando que Portugal alcançasse uma
poderia transformar as pessoas e quis que
624
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
essa oportunidade fosse alargada aos seus
extremamente necessária para a formação
súditos, particularmente aqueles vinculados
do homem, sabemos que a partir do
a administração política do reino como
momento em que temos um contato
evidenciamos na citação acima.
profundo com o conhecimento mesmo que
D. Dinis foi um rei que se diferenciou
já sejamos mais maduros cheios de vícios,
de todos os outros reis de Portugal em
nosso interior começa a se modificar e se
todos os seus atos, porém esse diferencial
transformar, certamente que para o bem.
só se deu porque seu pai e seu avô
Porém podemos observar com D. Dinis que
acreditaram
formação
o conhecimento quando apresentado ainda
universitária traria a ele a capacidade para
no processo de formação do ser humano
ter um rei distinto pela sua inteligência e
pode conquistar bens inimagináveis. Se o
sabedoria, ele certamente não poderia
monarca não tivesse tido a experiência
escolher estudar desde pequeno por si
dessa formação talvez ele poderia ter sido
próprio e foi a consciência destes homens
como os outros reis, porém desejavam
que possibilitaram a ele uma preparação
mais para ele e o estudo possibilitou que
contínua
em
assim fosse. O monarca foi destacado
princípios morais e éticos que tornaram D.
pelos seus inúmeros atos que beneficiaram
Dinis um exemplar rei, como podemos
a sociedade em que estava, ele sempre
constatar no trecho abaixo:
pensava no bem comum baseando-se em
que
desde
uma
criança
baseada
" E para que em tudo fosse perfeito, não lhe faltou hum amenissimo engenho, muito affeiçoado ás letras, e sciencias; nas quaes exercitando-se muito na Poesia, foi havido naquele tempo por excellente Poeta; e o primeiro, que em Hespanha, e na vulgar lingua Portugueza, compoz versos, e rimas, como se vê em alguns Poemas, que em louvor de Nossa
princípios éticos. Assim percebemos que o conhecimento é essencial também para a formação de um cidadão. Portanto essa pesquisa para nós pessoas responsáveis por pensar em
se
educação e em educar é de extrema
esquecendo de ser Author de muitas leys justas, e
importância, pois nos mostra como o
Senhora
ainda,
hoje
permanecem.
Não
santas, com que seus subditos se governassem, e
conhecimento
já
tambem muito dado a cultivar, e aproveitar a terra,
formação
cidadão
cujos lavradores costumava chamar nervos da
comprova como ele ainda é importante já
a justiça devidamente se administrasse. Foi
republica;" (MARIZ, 1963, p. 269)
concluir
com
importante do
medievo
na e
na contemporaneidade. O professor é
Considerações Finais Podemos
do
era
essa
pesquisa que a formação estudantil é
responsável por mediar o conhecimento para o aluno, crendo que este o modificará e sabendo de sua importância. Ele tem que
625
Lorena Faccin Rosa
educar todos acreditando que cada criança
deve sonhar com uma sociedade cheias de
tem o potencial para aprender e atribuir o
D. Dinis.
conhecimento para a vida, pois o professor
Referências: ALMEIDA, Fortunato de. História de Portugal. Desde os tempos Préhistóricos até a aclamação de D. João I (1385). Coimbra, 1922, T. I. BLOCH, Marc. Apologia da História, ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. MATTOSO, José. O Suporte Social da Universidade de Lisboa- Coimbra (1290- 1527).
Revista Penélope, fazer e desfazer a história, Lisboa, nº 13, p. 23-35, 1994. MARIZ, Pedro de. Diálogo de varia história. Lisboa: Na Impressão Régia, 1806, tomo I. OLIVEIRA, Terezinha. As Universidades na Idade Média (séc. XIII). Revista Notandum
Libro 5, São Paulo, 2005. RIBEIRO, José Silvestre. História dos Estabelecimentos Scientificos Literarios e Artisticos
de Portugal nos Sucessivos Reinados da Monarchia. Typographia da Academia Real das Sciencias, Lisboa, 1871. SARACHE, M. V. ; OLIVEIRA, Terezinha . Universidade de Portugal: Constituição cultura e política. Convenit Internacional, São Paulo, v. 13, p. 17-26, 2013 SOARES, F. J. G. L. A universidade em Portugal. Brevíssima resenha histórica acerca da sua génese. PROELIUM- Revista Acadêmica Militar, v. VI, n. 7. 2007. VIANA, Ana Paula dos santos; OLIVEIRA, Terezinha. Um estudo da origem da universidade medieval no século XIII por meio da historiografia. In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO - EDUCERE, 5, 2011, Curitiba. Anais... Curitiba: Pontifícia Universidade Católica do Paraná, 2011. p. 5712-5723.
626
FONTES MEDIEVAIS: A CRÔNICA DE ALFONSO X, O SÁBIO Luiz Augusto Oliveira Ribeiro 1 Jaime Estevão dos Reis 2(Orientador) Resumo: Esta pesquisa fundamenta-se no estudo de fontes medievais, especificamente, a Crónica de Alfonso X, o Sábio, escrita no reinado de seu bisneto Alfonso XI, por volta de 1344. Buscamos compreender o gênero literário das crônicas medievais e sua importância no contexto em que foram escritas. A fonte em questão revela informações importantes para o estudo da história política do reinado de Alfonso X, o Sábio, sobretudo no que se refere ao processo de centralização do poder monárquico. Palavras-chave:Idade Média; Crônica; Alfonso X.
1
UEM
2DHI/PPH-UEM
627
Luiz Augusto Oliveira Ribeiro
O gênero literário crônica é a base de
grande
parte
do
nosso
atual
conhecimento sobre a História Medieval
Temático
perceber
Medieval,
Claude Schmitt. Se pensarmos a História na Idade
a
crônica
Média e buscarmos relacioná-la ao gênero
histórico,
sempre
literário das crônicas, podemos perceber
atentando aos cuidados essenciais de
forte preocupação em registrar os fatos
qualquer
passados e estabelecer uma forma de
enquanto
e
Ocidente
organizado por Jacques Le Goff e Jean-
europeia, neste sentido, se faz necessário compreender
do
documento
documentação
a
qual
nos
propomos a estudar.
transmissão deste passado aos homens
Estudos apontam que a crônica
posteriores. Desta forma, Para conhecer a Idade Média, o medievalista
medieval é um objeto comum a diversas
dispõe de vários tipos de fontes e, entre elas, as
áreas do conhecimento. Em levantamento
fontes narrativas. Alguns desses relatos podem ser
feito acerca das pesquisas no Brasil, ficou
testemunhos ingênuos do que alguém viu ou ouviu. Mas muitos são também obras elaboradas,
evidente que áreas como a Filosofia, Artes,
em que o autor pôs todos os cuidados para
Educação e Letras também se apropriam
transmitir à posteridade a lembrança do passado,
deste tipo de documentação para estudos
próximo ou remoto. Houve na Idade Média, muitos historiadores (GUENÉE, 2006, p. 523).
acerca da Idade Média (GUIMARÃES, 2012). Para este trabalho, priorizamos a
Crónica
de
Alfonso
X,
escrita
provavelmente em 1344. A preocupação inicial
do
autor
foi
a
de
registrar
cronologicamente os feitos dos reis de Castela e Leão, que compreende os reinados de Alfonso X, Sancho IV e Fernando IV. Ao pensarmos e refletirmos acerca da motivação para a escrita da crônica, caímos na necessidade de compreensão de alguns conceitos básicos para o estudo da Idade Média, sendo estes Hi,stória,
Tempo e Rei. Para a melhor compreensão destes conceitos buscamos o Dicionário
Partindo
desse
pressuposto,
podemos compreender aqueles que se propuseram
a
escrever
as
crônicas
medievais como historiadores, no entanto, dentro de uma perspectiva mais ampla, que tem relação direta com o contexto histórico, social, econômico, político e cultural em que viviam. Esses elementos citados são de
grande
influência
no
trabalho
do
historiador até os dias atuais, além de que, as crônicas da Idade Média se propuseram, em sua maioria, a fazer uma história política de legitimação e reafirmação de poder. A questão histórica na Idade Média se caracterizou pela busca dos relatos
628
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
orais, dessa maneira, os homens que se
do Tempo ser um elemento extremamente
propunham a narrar os fatos se baseavam
visível nas crônicas medievais.
em grande parte nas coisas que ouviam, ou
Além da crônica em si, ainda temos
que alguém relatava – grande problema
a compilação de documentos, aqueles que
para
de
se dedicaram à História e buscaram reunir
verossimilhança. É recorrente na Idade
documentos e escritos anteriores à sua
Média
época.
a
necessidade, a
atual,
preocupação
com
os
Crônica
Na
de
Alfonso
X,
documentos/fontes que eram utilizados
encontramos também alguns documentos,
e/ou produzidos, no entanto, não se
nesse sentido há certo relacionamento
encontrava outra forma de legitimar essas
entre
informações a não ser pela aprovação de
resgatada.
reis
muitas vezes foram essas compilações que
ou
príncipes,
que
garantiam
a
a
crônica É
e
a
importante
documentação lembrar
que
permitiram que os documentos chegassem
procedência (GUENÉE, 2006). Durante séculos, a exemplo dele, o historiador teve que escolher entre a história, que era um relato pomposo mas sem muitas datas, e a crônica, onde
até os dias atuais. Como já dito acima, a noção de
o essencial eram as datas, cada uma seguida de
Tempo e História estão intrínsecas no que
breve
diz respeito à produção narrativa, dessa
menção
ocorridos.
E
do como
ou
dos
a
acontecimentos
ambição
de
muitos
historiadores era apreender a história do mundo no
forma, é necessário a compreensão do
todo, da Criação até seu tempo, o modelo mais
conceito de Tempo e a percepção de como
utilizado foi sem dúvida o da crônica universal
ele era encarado pelos homens medievais.
(GUENÉE, 2006, p. 533).
A crônica passou a ser considerada como um dos caminhos para a escrita da História,
seja
por
permitir
maior
abrangência de tempo, ou por trazer modelos
fechados
acontecimentos.
de
Desta
datas
e
maneira,
é
importante refletirmos e analisarmos a crônica também, basicamente, como forma de registro de acontecimentos. Claro que não podemos, em hipótese alguma, deixar de lado as questões de interpretações e
Sendo assim, O tempo da Idade Média é, em primeiro lugar, um tempo de Deus e da terra, depois, dos senhores e dos que estão sujeitos ao senhorio, depois – sem que os tempos precedentes tenham deixado de ser presentes e exigentes – um tempo das cidades e dos mercadores, e, finalmente, um tempo do prícipe e do indíviduo (LE GOFF, 2006, p. 531).
Ao longo da Idade Média, é cada vez mais comum o entrelaçamento do tempo cristão ao tempo cotidiano. Se fizermos um certo resgate histórico, é na Alta Idade Média que o tempo cristão passa a ocupar
inferências espaciais e geográficas, apesar
629
Luiz Augusto Oliveira Ribeiro
seu lugar, este com suas características
desta
litúrgicas, no entanto, aos poucos
descrever e organizar os feitos dos reis.
O tempo linear cristão deu lugar a uma notável atividade historiográfica medieval. Por muito tempo foi dominada pela periodização anual (anais) e
maneira,
pudessem
Rei medieval
O
é
uma
melhor figura
singular, por vezes, se destaca e ganha
pela obsessão da crônica universal. Os eventos
sua legitimação por conta da Igreja e, neste
anotados são intempéries, os signos do céu, os
sentido, se caracteriza como um rei cristão.
tremores de terra, os ataques dos pagãos, irrupção no tempo humano da natureza, do Diabo e dos homens maus (LE GOFF, 2006, p. 535).
Além deste elemento religioso, um rei pode ser reconhecido por suas conquistas e
Como observado acima, o tempo
seus conhecimentos, como é o caso de
historiográfico passa a ser comum a
Alfonso X, grande exemplo de rei sábio (LE
medida que a História torna-se necessária
GOFF, 2006).
para o registro dos feitos e fatos, dessa
A figura do rei passa a dividir espaço
forma, a periodização anual e os registros
no século XII com os códigos jurídicos, que
feitos
passariam a ordenar os espaços do reino,
em
documentos
e
crônicas
influenciaram diretamente na compreensão
além
deste conceito de tempo.
estabelecimento
de
suas
conquistas de
e
regras
o que
Foi comum na Idade Média a
conjuntamente ao Rei, estaria sob vigência
periodização em torno do passado, e,
naquele determinado espaço (LE GOFF,
portanto, o que se vislumbra é que o
2006).
presente era deixado de lado, visto que a
A Crônica de Alfonso X evidencia um
preocupação com o passado se remetia
misto dos conceitos acima apresentados,
diretamente ao futuro e em como seriam
sendo assim, o documento deve ser
lembrados os homens políticos, e as
pensado como a História, que narra os
figuras importantes (LE GOFF, 2006).
feitos de determinado Rei no Tempo.
Baseado
nestes
conceitos
de
Parece-nos básica a compreensão destes
História e Tempo, podemos perceber o
elementos, para que a partir de então
quanto estes estiveram entrelaçados na
possamos pensar o documento dentro de
Idade Média e permaneceram até os
seu contexto histórico, social, político e
nossos dias. Para a História Medieval, foi
econômico.
preciso a sistematização e organização do
Crônica Medieval: o estudo de um gênero
tempo, o gênero Crônica exigiu que se
literário.
dividissem os períodos em anos, para que
Crónica de Alfonso X abrange três reinados:
Alfonso
X,
Sancho
IV
630
e
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Fernando IV. Apresenta-se enquanto um escrito por vezes detalhista, no entanto,
levou a cabo a sua atividade (MIRANDA, 2009, p. 2).
assim como qualquer outra obra, alguns acontecimentos não ficam tão claros e/ou podem ser fruto de uma criação do cronista, sendo assim, é necessário um olhar atento e cuidadoso, afinal, mesmo que algumas partes atendam a um caráter imaginário existe uma relação direta com a realidade vivenciada pelo autor, este cuidado e atenção devem ser ainda mais preservados quando pensamos que o discurso cronístico é, sem dúvida alguma, de legitimação da figura do monarca. Ao
pensarmos
e
discutirmos
a
Crónica enquanto documento histórico, além dos cuidados já citados é preciso a retomada de alguns elementos práticos do trabalho do historiador. Lançando mão de um importante historiador da Antiguidade Moses Finley (1994), elementos como: o autor, ano e local em que foram escritos, estudo dos termos, entre outros são importantes aspectos, que se levados em conta pode tornar o trabalho do historiador mais satisfatório. Deixando por
ora de lado os casos
mais
desesperados, e tendo em conta aquelas obras
Apesar de podermos definir com certa exatidão a data do ordenamento da escrita da crônica – 1344 –, o mesmo não acontece quando se trata do autor deste documento.
Jiménez
Crónica de Alfonso X nos apresenta dois nomes importantes a quem podemos fazer tal atribuição: Fernán Sánchez de Tovar e Fernán Sánchez de Valladolid, no entanto não existe um consenso historiográfico acerca de um desses nomes, além de um destes, é possível que tenha existido colaboradores dos quais influenciaram e participaram ativamente da construção e registro deste documento. Contudo, uma das únicas certezas que temos é que o documento em questão foi mandado escrever pelo então rei de Castela, Alfonso XI – bisneto de Alfonso X. Este monarca teria ocupado a coroa entre os anos de 1312 e 1350 e teria ordenado a escrita da Crônica para o preenchimento de lacunas na História. As crônicas medievais, de modo geral,
chegaram até aos dias de hoje, tudo se complica
historiografia
precisas sobre quem promoveu a escrita e em que
González
(2000) ao refletir e pensar o autor da
cujos testemunhos, mais ou menos antigos, quando não há um "explicit" com as indicações
Manuel
ocupam
grande
acerca
da
parte Idade
da Média
atualmente nas universidades. Como já
momento o fez, ou quando algum redactor não
citado
deixou vestígios, em qualquer ponto da obra em
diversos são os campos que se apropriam
causa, do momento ou das circunstâncias em que
na
introdução
deste
trabalho,
631
Luiz Augusto Oliveira Ribeiro
da crônica como fonte de estudos e
Bernardo
Vasconcelos
e
Sousa
elaboração de conhecimentos, dentre eles
(2007), ao estudar as crônicas medievais
a
portuguesas, levanta pontos importantes
História,
Letras,
Arte,
Educação
e
Filosofia.
que caracterizam esses documentos da
Entre los grandes géneros narrativos medievales el cronístico fue, quizás, el más extendido y el que gozo de mayor auge. Para la moderna
Média,
representam
que
em
uma
sua
história
maioria política
historiografia su particular interés no radica sólo
ressaltando os feitos e conquistas dos reis,
en los sucessos que se relatan, sino también en
além de exaltar a bondade e o poder do
la forma en que la narración se desarrolla, en la manera de reflejar el ambiente cultural en que se
monarca,
a
fim
de
garantir
certa
escribe, em las ideas políticas y religiosas que
legitimação dessa figura importante no
constituyen el trasfondo de la obra (TULIANI,
contexto medieval.
1994, p. 3).
Tuliani
(1994)
ressalta
a
multiplicidade que a crônica medieval tem assumido, para além dos registros dos feitos de “grandes homens”, ela representa toda uma sociedade, sua forma de ver e encarar a realidade, seus aspectos sociais, políticos, econômicos e religiosos, e é essa pluralidade de possibilidades que amplia os campos de estudos para quem se debruça sobre tais documentos. O mesmo autor nos diz ainda que “[...] las crónicas representan la expresión más alta de la influencia del poder político en el relato histórico a través de constantes como la exaltación de las figuras que guían el Estado y de la unidad política y moral de los pueblos dominantes.” (TULIANI, 1994, p. 3), sendo este o significado específico das
Idade
crônicas
Medieval.
no
caso
da
Espanha
Em pesquisas e levantamentos de artigos, percebemos que as crônicas têm sido utilizadas para a compreensão do mundo medieval como um todo, apesar de ser exaltada a figura do rei existem pesquisadores que se debruçam sobre este documento
a
fim
de
compreender
a
cavalaria medieval, as guerras, os conflitos e as conquistas, avaliando seus aspectos sócio-políticos. Para
além
de
conhecer
o
documento, “Antes de iniciar el análisis de la
Crónica,
hay
que
enfrentarse
necessariamente con la existência de todo un conjunto de mensajes simbólicas que son característicos de este tipo de obras y que hay que individualizar, interpretar y filtrar” (TULIANI, 1994, p. 6). É preciso um trabalho pormenorizado e cuidadoso, seja com
os
conceitos
chaves, gerais.
seja
com
Muitas
das
elementos
mais
discussões
abordadas em documentos
632
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
deste gênero na Idade Média trazem
no caso Espanhol, como nas crônicas
questões mais profundas e/ou uma simples
portuguesas. No entanto, existe todo um
descrição de alguns fatos que tomaram
cenário que oferece ao rei, esse foco
proporções diferenciadas.
nestes documentos, uma vez que os
A Crônica Medieval, assim como
serviços para a escrita destes documentos
qualquer documento histórico pressupõe
eram contratados pelo próprio rei (TULIANI,
atenção. Neste sentido,
1994).
[...] requer mais paciência, mais ponderação e a consciência de que pequenos passos podem significar grandes avanços no conhecimento. É
Acima
da
legitimação
entre
os
homens e sobre os homens, os reis
também necessário ter em conta que, perante um
medievais ainda eram considerados como
conjunto mais reduzido de informações directas e
enviados de Deus e desta maneira,
objectivas disponíveis, se torna imperioso alargar a
El reconocimiento de la posición de superioridad
base de consideração de cada texto ‒ os limites
del
linguísticos deixam de constituir qualquer barreira de
operações
lógico-dedutivas
súbditos.
que
pressupostos
e
criteriosamente
é
construída com
aplicada,
essa que
sobre
por
estes
quotidianamente (MIRANDA, 2009, p. 3).
Para além do mero discurso, por
ser
amado,
Reforzar
este
aspecto
ideológico
la
rebeldia
de
coaliciones
nobiliarias
(TULIANI, 1994, p. 7).
ferramenta, trabalhamos
debía
su reinado estuvo constantemente amenazado
acima referíamos. Como sabemos, a crítica textual está
que
interessaba particularmente a Alfonso X, ya que
permitem reconstituir elos perdidos do tipo dos que lachmanniana
implicaba
obedecido, reverenciado y temido por sus
‒ ao mesmo tempo que ganha maior peso o conjunto
rey
Mesmo que o rei não recebesse nenhum tipo de consagração esclesiástica, era
comum
na
Idade
Média
essa
vezes se faz necessário uma análise mais
aproximação à religião e, portanto, a
criteriosa acerca de uma crítica linguística e
justificação de atos e do poder por meio
um estudo pormenorizado de morfologia
destes
das palavras. Estes seriam estudos mais
elemento ideológico foi, sem dúvidas, um
aprofundados
dos mais utilizados pelos reis medievais
e
comprometidos
com
questões de interpretação a um nível
valores
foi
recorrente.
Esse
(NIETO SORIA, 2003).
superior de exigência e de questionamento
A Crônica Medieval se caracteriza
ao documento, a fim de responder a
enquanto importante fonte documental para
algumas problematizações propostas.
o historiador de Idade Média, dessa forma,
Evidencia-se nos documentos desta
muitos pesquisadores se debruçam sobre
natureza a figura de um rei, que por vezes,
as palavras escritas e guardadas a séculos.
tenta ser legitimado nas palavras dos
É
autores. Esta característica é comum tanto
pesquisador
justamente
esse
deve
ter
cuidado que
que
o
buscamos
633
Luiz Augusto Oliveira Ribeiro
ressaltar
em
nossos
resultados
e
além de ser aquilo que foi construído
discussões, o projeto evidencia o estudo de
justamente para a posteridade e, portanto,
fontes medievais, para o nosso caso,
reorganiza suas vivências para a forma
especificamente a Crônica de Alfonso X,
como gostariam de ser lembrados.
mas que nos permite a compreensão de
Inicialmente procuramos trabalhar
toda uma totalidade de pesquisas e de
com três conceitos que para nós nos
busca
pareceu fundamental: História, Tempo e
de
informações
por
aqueles
documentos de ordem política e social.
Rei.
Conclusões
Essa
abordagem
necessária,
A presente pesquisa visou conhecer
auxiliou
compreensão
do
no
rápida,
mas
processo
documento
em
de seu
e sistematizar a Crônica de Alfonso X, além
contexto, portanto, permitiu que os valores
de discutir pontos básicos de análise
atribuídos
documental. Desta maneira, buscamos
respeito e limites aos valores notoriamente
compreender o documento em questão em
encontrados
sua totalidade e assim, poder relacionar e
escreveu a crônica.
ao
documento
no
período
fossem em
que
de se
compreender como tem sido o estudo de
Outra questão discutida foi a forma
fontes desse tipo no campo da História e
de abordagem e do trabalho com o
ciências afins.
documento/fonte, sendo assim, o trabalho
Sabemos que, “os interesses que as
do historiador se faz muito além da simples
crônicas respondem são diversos, o que
leitura de palavras perdidas no tempo, é
eleva a importância dessa documentação
necessário
para a elucidação de modos de viver, de
compreenda as motivações da escrita
desejar ser visto, de pensar, de se
naquele período. Sabe-se o quão difícil
relacionar com a tradição, com o passado e
este trabalho se mostra, mas como nos diz
com o futuro” (GUIMARÃES, 2012, p. 74).
Marc Bloch (2002) em Apologia da História,
Sendo
assim,
a
crônica
é
a
expressão mais profunda dos valores e da
que
se
contextualize
e
“uma palavra, para resumir, domina e ilumina nossos estudos: "compreender".”
forma de pensar do homem medieval, para
Referências: CRÓNICA DE ALFONSO X. (Ed.). Manuel González Jiménez. Murcia: Real Academia Alfonso X el Sabio, 1998.
634
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
GONZÁLEZ JIMÉNEZ, M.. Una nueva edición de la Crónica de Alfonso X. 2000. Disponível em:
http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/cehm_0396-
9045_2000_num_23_1_918 Acessado em: 21/12/2012. GUIMARÃES, Marcella Lopes. Crônicas Ibéricas de Cavaleiros: Escrita, Cultura e Poder no
século
XV.
Revista
Signum,
vol.
14,
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1,
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Disponível
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http://www.revistasignum.com/signum/index.php/revistasignumn11/article/view/97/94zAcessado em: 10/12/2013. GUIMARÃES, Marcela Lopes. Crônica de um gênero histórico.Revista Diálogos Mediterrânicos
–
Número
2
–
Maio/2012,
pp.67-78.
Disponível
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http://dialogosmediterranicos.com.br/index.php/RevistaDM.../23/65 Acessado: 17/01/2013. LE GOFF, Jacques./ SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente
Medieval.Vol. I e II. Bauru, SP: Edusc, 2006. MIRANDA, José Carlos. Na Génese da Primeira Crónica Portuguesa.Medievalista. Nº6, Julho
2009.
Disponível
em:
http://www.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA6/PDF6/PDF-miranda.pdf
–
Acessado em: 10/12/2013. NIETO SORIA, José Manuel. Tiempos y lugares de la « realeza sagrada » en la Castilla de
los siglos XII al XV. Annexes des CLCHM, v. 15, 2003. P. 263 – 284. Disponível em: http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/issue/cehm_0396-9045_2003_hos_15_1 Acessado em: 10/12/2013. SOUSA, Bernando Vasconcelos e. Medieval Portuguese Royal Chronicles. Topics in a
Discourse of Identity and Power. E-Journal of Portuguese Hitory, v. 5, n. 2. 2007. P. 1-7. Disponível
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http://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/html/issue10/pdf/bs ousa.pdf - Acessado em 06/09/2013. TULIANI, Maurizio. La idea de Reconquista en un manuscrito de la Crónica General de
Alfonso X el Sabio.Stud. Hist., Hª mediev., 12, 1994, pp.3-23. Disponível em: http://gredos.usal.es/jspui/bitstream/10366/69793/1/La_idea_de_Reconquista_en_un_manu scrito_.pdf Acessado: 01/01/2013.
635
A IMAGEM DE JÚLIO CÉSAR CONSTRUÍDA A PARTIR DAS OBRAS:
DE BELLO GALLICO E DE BELLUM CIVILE Natália de Medeiros Costa 1 Adriana Mocelim de Souza Lima (Orientadora) Resumo: À época em que César iniciou sua trajetória política, Roma era marcada por uma grave crise que tinha suas raízes no período expansionista e que teve grande influência nos eventos posteriores. César, ao tornar-se cônsul no ano de 59 a.C. conquistou o governo da Gália Transalpina, iniciando sua campanha militar na Gália. Suas campanhas deram origem a obra supostamente escrita por César intitulada De Bello Gallico. Com a usurpação do poder por parte de Pompeu no ano de 49 a.C., César da inicio à Guerra Civil quando atravessa o rio Rubicão, escrevendo, posteriormente, os relatos da guerra em sua obra Bellum Civille. O objetivo da presente pesquisa é analisar as duas obras acima citadas, destacando as principais características da personalidade de César, de modo a estabelecer as similaridades e diferenças entre as mesmas. Para tanto, primeiramente fora analisado o contexto histórico no qual se insere César, de modo a compreender o período em que este escreveu os livros. Depois fora realizada a analise das obras, destacando as virtudes que se sobressaíam, de modo a compreender os objetivos que tinha César ao escrever suas duas obras. A virtude que mais destaque possui nos textos são as estratégias militares. César tinha por objetivo ao destacar suas estratégias exaltar sua posição como general. A diferença mais marcante entre as duas obras se encontra no contexto histórico no qual se inserem as duas, sendo que na primeira César ainda precisava afirmar sua figura como general, fato consolidado já na escrita da segunda obra. Palavras-chave: Júlio César; De Bello Gallico; Bello Civille.
1
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
636
Natália de Medeiros Costa
O CONTEXTO HISTÓRICO
tomando, em breve período de tempo, o
Júlio César, hábil general romano,
controle de quase todo mediterrâneo, que
conquistador da Gália, vencedor da Guerra
ficou conhecido pelos romanos, segundo
Civil ocorrida em Roma durante os anos de
Grant, como Mare Nostrum (GRANT, 1987,
49 e 48 a.C., teve seus feitos relatados em
p.136). Cartago, antiga colônia de Tiro,
dois livros supostamente por ele escritos, o
com
De Bello Gallico e Bellum Civille, bem como
anteriormente
travado
em outras obras de extrema importância
territorial,
à
para compreender tanto a trajetória de
romana, uma grande potência marítima e
César como o período do fim da República
comercial que expandia seus territórios
Romana. O historiador grego Plutarco
para próximo das fronteiras romanas. A
relata os feitos de César em seu texto
consequência disso fora o choque entre as
intitulado César e o também historiador
duas potências, que ficou conhecida como
Caio Suetônio relata a vida de Júlio César
Guerras Púnicas.
quem
os
era,
romanos época
já
haviam
uma
guerra
expansionista
em seu texto O Divino Júlio. A presente
Para Roma, a Segunda Guerra
pesquisa tem por objetivo analisar as duas
Púnica fora de fundamental importância
obras de César, De Bello Gallico e Bellum
pois marcara o domínio total de Roma na
Civille, extraindo destas algumas virtudes
Itália após a vitória sobre os povos itálicos.
que se destacam ao longo do texto, de
Nas
modo a obter as similaridades e diferenças
pertenciam a Cartago, Roma iniciou a
entre estes. Para isso, primeiramente fez-
construção de seu império na bacia do
se necessário compreender o período
Mediterrâneo, fundando suas primeiras
histórico
colônias:
no
podendo,
qual
se
encaixa
posteriormente,
César,
entender
os
províncias
Sicília,
anteriormente
Sardenha,
Espanha
Citerior e Espanha Ulterior (GIORDANI,
objetivos que César tinha ao escrever as
1985,
duas obras.
consequências
Roma passa, após praticamente um
que
p.45).
conquistas
para
Inúmeras desse Roma.
foram
as
período
de
Houve
a
século de guerras contra Cartago, no
penetração da cultura helenística, que se
evento que ficou conhecido como Guerras
fez presente tanto na literatura romana,
Púnicas, a um período expansionista,
com a transferência de prisioneiros e reféns
637
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
gregos, como fora o caso de Políbio,
de desocupados, numa cidade que não
quanto na arquitetura, no direito romano e
conseguiria criar empregos para tanta
na religião (GIORDANI, 1985, p. 50;
gente (GIORDANI, 1985, p.50). No intuito de diminuir a grande
CABANES, 2009, p.199). Após o período expansionista, Roma
desigualdade entre patrícios e plebeus,
experimentara um acumulo de riquezas
tem-se
nunca antes visto em sua história, mas
Reforma Agrária desde o ano de 232 a.C.,
esse acumulo não é dividido entre todos,
liderada
pelo contrário, aumenta-se abismo entre as
Flamínio (EYLER, 2014, p.173). Tibério
classes mais altas da sociedade e as mais
Graco elegeu-se tribuno no ano de 133
baixas. Durante as batalhas de conquista, a
a.C. e, assumindo esse cargo, pode
maior parcela das legiões romanas era
executar uma medida deveras radical, que,
recrutada entre os camponeses que, após
segundo Grant (1984), delimitava em 120
voltarem à sua terra natal, viam-se em
hectares a posse das terras públicas
situação bastante difícil, tendo que, para
italianas, ager publicus, que haviam sido
continuar a cultivar suas terras, pedir
conquistadas depois da Segunda Guerra
empréstimos. Se não conseguissem paga-
Púnica, distribuindo o excedente para os
los, teriam suas terras confiscadas (ALBA,
mais pobres (GRANT, 1984, p.157). A
1964, p.97). A situação ainda era agravada
tentativa de Tibério causou revolta dentro
pelo
do
fato
de
terem
os
mais
ricos
a
tentativa
pelo
Senado
de
tribuno
que,
instalação
da
plebe
da Caio
apontando
para
distribuídos entre si o ager publicus, isto é,
ilegalidades nas medidas adotadas por
as terras italianas conquistadas por Roma.
Tibério, acusou-o de tentar tornar-se rei e,
Esses homens ricos passaram a possuir
provocando
grandes latifúndios onde utilizavam mão de
Tibério e lançaram seu corpo ao Tibre
obra escrava, destruindo qualquer chance
(ALBA, 1964, p.106). Seu irmão, Caio
que tinham os pequenos produtores em
Graco, elegeu-se tribuno no ano de 123
competir com os grandes latifundiários. A
a.C., tendo um objetivo comum com
consequência disso, para Giordani (1985),
Tibério:
fora a emigração desses camponeses para
Agrária, como havia tentado Tibério dez
Roma, onde aumentavam a massa urbana
anos antes. Para isso, entendia Caio que
uma
estabelecer
revolta,
em
executaram
Roma
a
638
Lei
Natália de Medeiros Costa
seria necessário enfraquecer o Senado,
Segundo Alba, após o período dos
que, uma vez forte, se oporia firmemente à
reformadores, Roma vivenciara o período
Lei Agrária. Caio então estabeleceu a Lei
dos generais, que, apoiando-se no exército,
Judiciária, que dava aos cavaleiros a
tentaram usurpar o poder. O primeiro a
possibilidade de ter espaço nos tribunais,
realizar tal tentativa fora Caio Mário, que,
no papel de juízes, de modo a indispor a
ao tornar-se cônsul no ano de 107 a.C.
nobreza com a ordem equestre. Para
promoveu
indispor o povo com o Senado, Caio
exército
conseguiu a votação da Lei Frumentária,
organização e armamento aos legionários,
que estabelecia o preço do tribo bem
bem como aceitando, a partir de então, a
abaixo do que era comercializado antes.
admissão
de
Dessa
exército,
visto
forma,
os
pobres
não
seriam
uma
profunda
romano,
reforma
fornecendo
voluntários que,
no nova
pobres
anteriormente,
no a
obrigados a tornarem-se clientes dos mais
admissão dependia da situação econômica
ricos (ALBA, 1964, p.107)
do cidadão. Essa reforma realizada por
Depois de estabelecer essas duas
Mário teve por consequência tanto a
leis, Caio, reeleito tribuno no ano seguinte,
profissionalização do soldado como a
pôs em execução a Lei Agrária, criando
fidelização deste não mais à Roma, mas ao
colônias nas cidades destruídas pelas
seu
guerras de conquista, como Cartago e
reformas de Mário tem relação direta com a
Corinto. Após a tentativa de conceder aos
posterior Guerra Civil e com a queda da
italianos a cidadania romana, o Senado
República Romana (ALBA, 1964, p.107-
incitou as massas contra Caio Graco,
108; GIORDANI, 1985, p.53).
alegando que os novos cidadãos tomariam
general.
Lucio
Segundo
Cornélio
Giordani,
Sila
as
(também
para si os melhores lugares. Este teve um
conhecido como Sula), fora um hábil
fim similar ao seu irmão, Tibério Graco,
general
sendo morto por um de seus escravos no
pertencente a uma família aristocrática
ano de 121 a.C., durante uma revolta
decadente. Este fora enviado à Ásia Menor
contra suas medidas adotadas (ALBA,
afim de combater o rei Mitrídates IV, que
1964,
havia se rebelado contra Roma. Uma vez
p.107;
GIORDANI,
GRANT, 1984, p.163).
1985,
p.52;
e
político
deveras
ambicioso
no Oriente, Sila fora destituído do comando
639
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
depois de uma manobra politica de seus
por um golpe de sorte, o governo da Gália
adversários e fora substituído por Mário.
Transalpina ou Narbonense (situada ao sul
Inconformado, Sila marchou em direção à
da França). Entre os anos de 58 a 51 a.C.,
Roma, expulsando Mário e seus partidários
César empenhou-se em batalhas na Gália,
depois de uma batalha de rua (GIORDANI,
pacificando-a no ano de 51 a.C. (GRANT,
1985, p.54). Mário ainda tentara retornar ao
1984, p.191). Os eventos ocorridos na
poder no ano de 86 a.C., mas morrera no
Guerra da Gália estão descritos no texto de
mesmo ano em que se tornou cônsul pela
Júlio César, o De Bello Gallico, texto
sétima vez. Sila se fez ditador no ano de 83
utilizado como base para a presente
a.C., mas, por razões ainda discutidas
pesquisa.
pelos historiadores, retirou-se da política no
Quando César se tornou cônsul,
ano de 79 a.C., depois de reestabelecer o
recebeu, por consequência, o controle da
poder
a
Gália Citerior e da Ilíria. Quando da morte
destituição do poder dos Tribunos da
do governador da Gália Transalpina, César
Plebe, que, segundo Grant, haviam no
conquistou o direito de governa-la, o que,
passado desafiado o controle do Senado.
para ele, fora um grande golpe de sorte,
As bases estavam estabelecidas para o
pois considerava César ser a Gália um
primeiro Triunvirato, que contaria com
excelente ponto de partida para suas
César, Pompeu e Crasso, bem como para
conquistas militares (GRANT, 1987, p.193).
a posterior Guerra Civil (ALBA, 1964,
Após terminado seu mandato como cônsul,
p.108-109;
César ruma à Gália, onde, segundo seus
senatorial
usando
GIORDANI,
como
1985,
via
p.54-55;
GRANT, 1984, p.174-175). A trajetória política de Júlio César se inicia dentro desse contexto de crise na República Romana. Antes dele, generais à exemplo de Sila e Mário, como dito anteriormente, já haviam tomado o poder para si, mas nenhum o fez de forma mais brilhante que César. Tornou-se cônsul no ano de 59 a.C., mesmo ano que recebe,
relatos detalhados no livro De Bello Gallico, encontra um território dividido em três principais povos [...]A Gália está toda dividida em três partes, das quais uma é habitada pelos belgas, a outra pelos aquitanios, a terceira, pelos que em sua língua se chamam celtas, na nossa gauleses. Diferem todos esses povos uns dos outros, na língua, nos costumes, e nas lei [...] (CÉSAR, livro I, 1941, p.36)
640
Natália de Medeiros Costa
Na Gália César inicia sua jornada
fortaleza de Alésia, onde César o sitiara.
como general habilidoso capaz de, entre os
César
batalha
anos de 58 a 51 a.C., conquistar e pacificar
encarregadas
todo território da Gália. O inicio dessa
durante 4 dias, e, ao final, sai vitorioso. A
guerra se dá quando os helvécios, povo
última revolta gaulesa estava encerrada
bastante belicoso, inicia sua emigração
(GRANT,
com intuito de conquistar toda a região pois
enfrentaria problemas maiores. Pompeu
acreditavam eles ser o povo mais forte e
tomara Roma para si e pretendia subjugar
determinado para faze-lo. Sua emigração
César. A Guerra Civil tinha seu início.
de
1987,
contra
as
socorrer
Vercingetrix
p.199).
Agora
forças
César
poderia se iniciar, segundo César no texto
As brilhantes campanhas de César
De Bello Gallico, por dois caminhos: o
na Gália revelaram o seu talento militar,
primeiro,
dos
mas, para o Senado, segundo aponta Perry
sequanos, muito estreito e de difícil acesso,
(2002), isso foi motivo de suspeitas e
e o segundo pela província romana da
inquietações, pois estes temiam que César
Gália Transalpina. Escolhido os helvécios
utilizasse suas habilidades estratégicas
passar
César
para assumir o controle do Estado romano.
deixaria
Em 53 a.C. Crasso morre em batalha,
atravessar, visto que não era de costume
deixando o Triunvirato com apenas dois
romano permitir que qualquer povo adentre
integrantes, César e Pompeu. Este último,
suas fronteiras (CÉSAR, livro I, 1941, p.38-
temeroso do aumento da popularidade de
40). Dá-se, então inicio ao conflito, mas
César devido às conquistas na Gália e
César, provando ser excelente general,
ávido por ganhar mais poder para si,
consegue anular as forças dos helvécios
segundo analisa Perry (2002), alia-se ao
sem haver muitas baixas para o seu
Senado que, tão logo pôde, convocou
exercito. Após longo período de conflitos na
César a voltar à Roma e colocar-se sobre
Gália, César enfrenta a última revolta dos
comando de Pompeu, que tornara-se, no
Gauleses comandados por Vercingetórix,
ano de 52, cônsul único. César entendeu
da tribo dos Arvernos (Gália Central).
de pronto que, sem tropas, estaria indefeso
Vercingetórix, depois
de auferir grave
a qualquer punição aplicada pelo Senado.
derrota ao exército de César, protege-se na
Decide, então, no ano de 49 a.C., transpor
passando
pela
comunica-lhes
por
província que
território
romana,
não
os
641
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
a fronteira entre a Gália Cisalpina e a Itália,
Pompeu, César esmaga seu exército,
o
fazendo Aenobardo render-se, poupando-o,
Rubicão,
Cabannes
dando
inicio,
(2009),
à
segundo
Guerra
Civil
(CABANNES, 2009, p.201). A marcha pelo
posteriormente,
e
deixando-o
livre
(GRANT, 1987, p.204-206).
Rubicão é descrita por Plutarco
Na Batalha de Farsália, ocorrida em
[...] Enfim, como um impulso do coração, como se abandonasse a reflexão para se lançar no futuro, pronunciou a frase que é prelúdio comum
agosto de 48 a.C., César demonstrara, segundo Grant (1987), todo seu gênio
para aqueles que mergulham em contingências
militar capaz de derrotar o grande general
difíceis e ousada: ‘’Que o dado seja lançado’’, e
Pompeu. A batalha, ocorrida na planície de
apressou-se
para
a
travessia
do
rio
[...]
(PLUTARCO, 2007, p.201).
Os detalhes da Guerra Civil que acometeu Roma durante os anos de 49 e 48 a.C., quando tem-se o fim da guerra quando da derrota de Pompeu na batalha de Farsália, na Grécia, segundo consta nos livros de Giordani (1985) e Grant (1987), são relatados de forma minuciosa no texto supostamente escrito por César, Bellum
Civille. Depois de atravessar o Rubicão, César avançou rapidamente para o centro da Itália, fazendo com que seus inimigos, na maior parte os Senadores mais velhos, segundo Grant (1987), fugissem de Roma com tanta pressa que deixaram para trás suas reservas em tesouro. Uma vez na Itália, César deu aos seus inimigos uma demonstração clemência,
surpreendente coisa
que
não
de havia
demonstrado na luta contra os gauleses. Em batalha contra Aenobardo, aliado de
Tessália fora o placo do maior confronto jamais travado entre romanos, saindo César vencedor, tendo Pompeu fugido para o
Egito,
onde
fora
traiçoeiramente
assassinado pelos políticos egípcios, que ficaram do lado do vencedor. Os aliados de Pompeu foram derrotados Thapsus, África e em Munda,
na
na Espanha. César
consolida, assim, seu poder em Roma, porém, esse poder fora bastante curto, tendo César sido assassinado por um grupo de conjurados republicanos no dia 15 de março de 44 a.C. (GIORDANI, 1985, p.59; GRANT, 1987, p.206). ANÁLISE DOS TEXTOS: DE BELLO GALLICO E BELLUM CIVILLE Como dito anteriormente, durante a leitura e fichamento das duas obras, algumas virtudes se destacaram ao longo do texto. As tabelas abaixo apresentam
642
Natália de Medeiros Costa
essas virtudes, bem como as páginas da fontes
primária
nas
quais
foram
No primeiro texto analisado, livro primeiro
do
Bellum
Civille,
as
encontradas .
características que a mais se sobressaíram
Tabela 1. Virtudes encontradas no livro primeiro do
foram fidelidade e estratégias militares. A
Bellum Civille e as respectivas páginas
virtude da fidelidade, no momento da
VIRTUDE
PÁGINA
Honra
49, 51, 53, 79, 133.
Injustiça
43, 49, 51, 53, 79, 131, 133.
Dignidade
53, 55, 66, 67, 79.
Fidelidade
61, 65, 67, 75, 87, 93, 99, 121, 123, 135.
Piedade
66, 67, 121, 119,
Guerra Civil era de suma importância pois, desde as reformas executadas por Caio Mário no exército romano, o soldado oferecia maior lealdade ao general que à própria Roma. Ao longo do texto, César nos dá alguns exemplos de soldados que mudaram de lado no decorrer da guerra, como se pode notar no trecho [...] Estimulados pela troca de ideias, pedem ao
131. Estratégias Militares
65,
general garantia de vida para Petrio e Afrânio,
70,
77,
para que não venham a dar a impressão de ter
85,
concebido uma ação infame ou ter traído seus
87,89, 91, 93, 95,
camaradas. Assegurado o compromisso, eles
101 até 135.
garantem que passarão imediatamente seus estandartes para o lado de César [...] (CÉSA,
In: CÉSAR. Caio Júlio. Bellum Civile. Tradução de Antônio
livro I, 1999, p.121)
da Silveira Mendonça. São Paulo: Estação Liberdade,
Nota-se que, para se vencer a
1999. Tabela 2. Virtudes encontradas no livro primeiro do De
Bello Gallico e as respectivas páginas
VIRTUDE
PÁGINA
Piedade
47, 48, 52, 53.
Ofensa
43, 44, 49.
Vingança
43 e 44.
Estratégias Militares
40, 42, 43, 44, 48, 49, 50, 51, 57 e 58.
General
59 e 60.
In: CÉSAR. Caio Júlio. De Bello Gallico. Tradução de
guerra civil, César deveria ter legiões de soldados fiéis a ele, que fossem capazes de confiar nele nos momentos mais difíceis. Para aumentar essa confiança, César dá demonstrações de aguçadas estratégias militares, sua virtude mais destacada, bem como de grande intelecto capaz de retirar seus
exércitos
de
uma
situação
de
desvantagem. Isso pode ser notado na seguinte passagem, que faz menção à
Francisco Sotero dos Reis. Rio de Janeiro: Ediouro, SD.
643
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
incrível escapada do exército de César que
o fornecimento de trigo que deveria ser
se encontrava, à ocasião, ilhado no meio
concedido ao exército de César. Quando
do Sícoris e do Cinga, rios que haviam
este sabe da confabulação, repreende
inundado devido ao excesso de chuva
Dunorix, mas, pela lealdade de Diviciaco,
[...] Estimulado por esse entusiasmo e essas palavras, César, bem que receasse expor o exércitos a uma correnteza tão forte, entendeu, contudo, que devia tentar e arriscar. Ordena então que se descartem de todas as centúrias os mais fracos, cuja coragem e vigor físico não pareciam ter condições de aguentar. Deixa-os com uma legião para guarda do acampamento; retira de lá as demais legiões, levemente equipadas, e colocando um grande número de animais rio acima e rio abaixo, passa o exército.
não o condena [...] Manda chamar a Dunorix, repreende-o em presença do irmão, enumerando os agravos que de seu procedimento tinham ele César e a cidade, admoesta-o a evitar toda a suspeita para o futuro, e acrescentando que por amor do irmão, Diviciaco, lhe perdoava o passado, põelhe vigas para saber o que faz e com quem fala [...] (CÉSAR, livro I, 1941, p.48).
As estratégias militares aplicadas
A violência das águas arranca de alguns
por César durante as batalhas na Gália,
soldados as arma; são apanhados e recolhidos
presentes em maior frequência ao longo do
pela cavalaria, no entanto, sem nenhuma baixa. Com o exército são e salvo já do outro lado do rio, César põe a tropa em formação e passa a conduzi-la em três linhas [...]
(CÉSAR,
texto, como pode ser visto na tabela 2, tem seu ápice no seguinte trecho [...] Tendo avançado caminho de três dias,
livro I, 1999, p.111).
recebe aviso de que marchava Ariovisto com
No segundo texto analisado, o livro
todas as tropas a ocupar Vesonção, a maior
primeiro
do
De
Bello Gallico, César
apresenta como características principais a piedade para com os inimigos bem como as estratégias militares, que são marcantes ao longo do texto. A piedade pode ser vista em algumas partes do texto, mas fica bastante clara quando César não pune Dunorix, irmão de Diviciaco, aliado de César e leal à Roma. Dunorix havia se reunido à alguns nobres gauleses para posicionar-se contra a presença romana na
cidade dos sequanos, e havia ganho três jornadas além de suas fronteiras. Entendia César dever a todo custo prevenir tal ocupação: porque havia nesta cidade suma abundâmcia de tudo que é mister para a guerra, e era ela tão fortificada por sua situação, que oferecia a maior possibilidade de fazer prolongar a campanha, porque o rio Dubis, torneando-a como à volta de compasso, a cinge quase toda, e o espaço por ele não compreendido, de cerca de seiscentos pés, é fechado por um alto monte cujas raízes são de um lado, beijadas pelas margens do rio. Fazendo do monte cidadela, prende-o a cidade uma muralha. Para aqui se dirige César a grandes marchas noite e dia, ocupa a praça e
Gália. Para isso, esse grupo havia cortado
644
Natália de Medeiros Costa
guarnece de tropas [...] (CÉSAR, livro I, 1941, p.57-58).
As semelhanças dos dois textos, após a minuciosa analise, extrapolam apenas o estilo literário empregado em ambas,
o
Commentarii, estilo literário
marcado, segundo o autor Paulo Roberto da Silva, não por uma construção literária propriamente dita, mas por notas que servirão, futuramente, para redigir uma história
literária
(SILVA,
2006,
p.22).
Encontra-se semelhanças nos objetivos empregados por César para destacar determinadas virtudes. A fidelidade, por exemplo, é empregada de formas similares e correspondem a um mesmo contexto, de fidelidade dos soldados em relação ao seu general bem como de César para com Roma. Pode-se encontrar, nos dois textos, passagens que ressaltam esse tipo de sentimento.
As
estratégias
militares
também são apresentadas de maneiras similares, exaltando os feitos do general César bem como sua inteligência para criar estratagemas para subjugar o inimigo. Em se tratando de diferenças, a mais marcante dentre elas diz respeito ao contexto histórico no qual elas se inserem, fato que modifica os objetivos para a escrita do texto. Enquanto escrevia o De
Bello Gallico, César ainda
tinha
um
oponente à sua altura, Pompeu, com quem, durante o período de 59 a 52, dividiu o poder
no
que
ficou
conhecido
como
Triunvirato (juntamente com Crasso). Até o momento
César
não
possuía
feitos
militares que se sobressaíssem em relação à Pompeu que, segundo André Alba, já havia triunfado na Hispania contra os partidários
de
Caio
Mário,
já
havia
contribuído na Itália para derrotar a revolta de escravos liderados por Espártaco e já havia caçado piratas no Mediterrâneo (ALBA, 1964, p.116). Para tornar público seus feitos militares e promover sua imagem como general, César divulga seu texto De Bello Gallico, cuja intenção, segundo
Antônio
Silveira
Mendonça,
responsável pela tradução do Bellum Civille para o português, era a de ‘’lograr, mesmo a contragosto do Senado, solenidades públicas de agradecimento aos deuses, para enciumar e obscurecer Pompeu’’ (MENDONÇA, 1999, p.28). Já o texto escrito posteriormente,
Bellum
Civille,
está
inserido
em
um
contexto histórico bastante diferente do primeiro. César já havia vencido a Pompeu na batalha de Farsália, visto Pompeu morrer após fugir para o Egito e já se tornara senhor de Roma. O problema
645
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
residia no fato de a antiga aristocracia que
caso de Sila. César nessa obra, portanto,
anteriormente
defendia-se
apoiava
Pompeu
lhe
causaria dificuldades nas províncias onde
justificando
seus
atos
(MENDONÇA, 1999, 27-29).
este fora soberano. Nesse cenário ainda
Após a analise, tornou-se mais claro
não totalmente conquistado escreve César
que
sua segunda obra, Bellum Civille, afim de
propagandas
justificar sua revolta armada e distanciar-se
criadas, destacando as virtudes de César
de
em detrimento dos erros e defeitos de seus
outros
generais
que
haviam
anteriormente tomado o poder, como era o
se
tratavam
as
duas
militares
obras
de
minuciosamente
adversários, mais notadamente Pompeu.
Referências: Documentação: CÉSAR, Caio Júlio. A Guerra Civil: Introdução, tradução e notas Antonio da Silveria Mendonça. São Paulo: Estação da Liberdade, 1999. CÉSAR. Caio Júlio. Comentários De Bello Gallico, tradução Francisco Sotero dos Reis. Rio de janeiro: Ediouro, SD. Bibliografia: ALBA, Adré. História Universal de Roma. São Paulo: Mestre Jou, 1964. 316p. CABANNES, Pierre. Introdução à História da Antiguidade. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2009. 255p. EYLER, Flávia Maria Schlee. História Antiga: Grécia e Roma: A Formação do Ocidente. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2014. 230 p. GRANT, Michael. História de Roma. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987. 447p. GIORDANI, Mário Curtis. História de Roma. 16 ed. Petrópolis: Vozes LTDA, 1968. MATYSZAK, Philip. Os Inimigos de Roma: De Aníbal a Átila, o Huno. Barueri, SP: Manoli, 2013. 256p. PERRY, Marvin. Civilização Ocidental: uma história concisa. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
646
Natália de Medeiros Costa
SILVA, Paulo Roberto Souza. A Figura de César, Autor e Personagem, Nos Cmmentarii De
Bello Gallico. 2006. 176 f. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós Graduação em Letras Clássicas), Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. SUETÔNIO E PLUTARCO. Vidas de César. São Paulo: Estação da Liberdade, 2007
647
RELIGIOSIDADE NO SÉCULO XV: O CULTO MARIANO A PARTIR DE OBRAS DE JAN VAN EYCK Rafael Fernandes Speglic1 Angelita Marques Visalli (Orientadora) Resumo: Este trabalho visa analisar aspectos da cultura religiosa medieval a partir de quatro obras: A Madona do Chanceler Rolin (1435, também conhecida como “A Oração Pintada”, atualmente no museu do Louvre, Paris), A Madona de Joris van der Paele (1436, situada no Museu Groeninge, em Bruges), O trítico da Virgem e do Menino (1437, Museu de Dresden), e o Retábulo de Gand (fechado, presente na Catedral de São Bavo, em Gand). As obras citadas, todas de autoria do pintor flamengo Jan Van Eyck (1390-1441), tem em comum, dois marcantes aspectos: a presença e representação dos doadores das obras, e também a presença da Virgem Maria, figura de elevada expressão e importância no Medievo. É atribuída a Van Eyck grande importância na expressão da religiosidade medieval devido à temática de suas obras, e igual importância ao seu lugar de destaque no campo da arte, tendo em vista sua precisa técnica e a invenção da tinta à óleo. Assim, um dos grandes propulsores do Renascimento Europeu. Assim, pretendemos compreender variados aspectos do momento em estudo, tais como: a devoção Mariana, o crescimento da devoção privada e de ordens mendicantes. Ademais, seu lugar na historiografia é de grande relevância para suportar o crescente, mas ainda escasso quadro de estudos apoiados em documentação imagética. Essa importância é catalisada quando nos remetemos ao Medievo, que além de ter na cultura visual sua expressão mais fundamental, possui no íntimo de sua sociedade, e quase integralmente, iletrados. Palavras-chave: Van Eyck; Devoção Mariana; Religiosidade Medieval.
1
Universidade Estadual de Londrina.
648
Rafael Fernandes Speglic O estudo sobre a devoção a Maria
O seguinte trabalho - a partir da
através da representação iconográfica vem
análise de quatro obras especificamente
ao
da
selecionadas do pintor flamengo Jan Van
historiografia atual que tenta preencher as
Eyck- vem tentar compreender o fenômeno
lacunas
da
encontro
de
uma
dentro
tendência
do
tema,
em
devoção
fenômeno dentro do processo ascensional
Nova História já deixou muito clara a
de devoção religiosa privada, surgido a
importância de se dinamizar as fontes
partir
históricas. Ginzburg nos lembra de que “já
importante
LucienFebvre convidava ao exame de
paralela do surto da devoção Mariana e
ervas, formas dos campos, eclipses da lua:
dos movimentos ascéticos.
p.
25).Esta
obstante,requer
tendência,
alguns
XII
no
ainda
ressaltar
este
Medievo. a
É
natureza
As quatro obrasselecionadas para
não
este estudo são: o Retábulo de Gand
cuidados
(Fechado - 1432), a Madona de Joris Van
metodológicos.
der Paele (1436), a Madona do Chanceler
Segundo Jean-Claude Schmitt o historiador
século
inserir
em
novas pesquisas, ideias e perspectivas. A
(1989,
além,
período
questão,
do
mais
no
aproveitamentodo vasto campo aberto para
por que não, então, também as pinturas...?”
e
Mariana
esboçar
Menino (1437). A partir da análise destas
problemáticas, mantendo em mente que a
obras – documentos históricos dentro da
análise da imagem deve sempre considerar
história cultural e do forte crescimento do
a relação dinâmica com a sociedade que a
movimento
produziu. A análise da obra, de sua forma e
procuraremos compreender os movimentos
de sua estrutura é indissociável do estudo
culturais
de suas funções. (2007, p.27, 42)
interligados.
As
deve
interrogar
imagens
e
Rolin (1435) e o Tríptico da Virgem e
estudo
presentes
imagético
nestes
-
contextos
tiveram
A escolha se explica por dois
especial destaque no conjunto da produção
principais motivos. Após várias leituras
de imagens desde o século XII até os
acerca
séculos
as
principalmente a partir da obra de Jaroslav
tema
Pelikan, “Maria através dos séculos: seu
significativamente,
papel na história da cultura.” (2000) tornou-
contribuindo assim na compreensão da
se claro que algum tipo de recorte mais
expressão devocionista no período.
específico
finais
representações aumentaram
do
marianas
de
medievo, acerca
onde
do
da
representação
acerca
da
mariana,
representação
Mariana seria necessário, devido à riqueza
649
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
e variedade do tema. Desta forma, escolhi
contexto em que a imagem se insere,
as imagens da Virgem entronizada com o
investigá-la e destrinchá-la será sempre
menino Jesus. Mas devo agora acrescentar
uma
o surgimento de um segundo motivo.Foi
pessoais.
atividade
intrínseca
de
escolhas
observado que, nas imagens selecionadas
É necessário encerrar a ideia de que
(pelo menos em três das quatro), um
a imagem medieval é uma mera “Bíblia dos
aspecto em comum ligava as três Virgens
Iletrados”.
entronizadas: a presença dos doadores na
populacional do medievo era composta por
própria imagem. Desta forma, surgiu a ideia
iletrados, e consequentemente, usava-se a
de
em
imagem religiosa para representar aquilo
conjunto com o surgimento da devoção
que os fiéis não poderiam ler nas Escrituras
Privada. Além disso, a ideia de se trabalhar
Sagradas. Mas o papel da imagem para o
com a possível clientela é de suma
medievoé muito mais do que representar.
trabalhar
a
devoção
Mariana
É
claro
que
a
maioria
importância para se tentar conhecer o lugar
A imagem medieval comumente traz
sociocultural desta imagem, como nos
consigo a intenção de suscitar algo,
mostrou Ginzburg ao analisar a possível
comover o seu observador, para que este
clientela que haveria encomendado o
possa
Batismo de Cristo, pintado por Piero della
emocionalmente
Francesca.
salvar-se. Ela não deve convencer o fiel de
elevar-se
até
Deus,
daquele
participar
momentume
Gostaria ainda de ressaltar que
que é o próprio Deus, mas sim de que
durante todo o processo de ‘devir’ deste
Deus habita esta imagem, de que a força
estudo, procurei basear minhas decisões e
sobrenatural está presente naquele local ou
escolhas
objeto. A imagem tem o poder de permitira
de
análise
dentro
de
duas
indagações propostas por Baxandall: Até onde podemos penetrar na estrutura das intenções de pintores que viveram em culturas ou períodos históricos distantes do nosso [...]
salvação, a remissão dos pecados;ela se usa
dos
objetos
e
dos
lugares,
e
hibridizando-se a estes,ornamenta o mero
saber se conseguiremos provar ou validar em
objeto, trazendo à cena o sagrado. Este
algum nível nossas explicações (2006, p. 157).
objeto proporciona o fazer dos usos, ritos e
É ainda de Baxandall a ideia de que “não temos conhecedores com autoridade especial” (2006, p. 195-196). É interessante explicar então, que mesmo respeitando diferenças de conhecimento acerca do
manipulações (BASCHET, 1996, p. 3). E este proporcionar é muito importante para o medievo, uma vez que seria somente a partir dos ritos, que o cristão medieval entraria
em
contato
com
o
mundo
650
Rafael Fernandes Speglic sobrenatural, devido àsua incapacidade de
Raros são os momentos que realmente
pensar o abstrato. (VAUCHEZ, 1995, p.
paramos e olhamos para uma imagem –
160).
momento que nos despimos de todo o A
própria
palavra
“imagem”
ao
resto e permitimos que ela penetre no
mesmo tempo em que se hibridiza, também
nosso íntimo, nos elevando a Deus, à
se desvincula do objeto. Hibridiza na
fruição ou mesmo ao nosso interior.
proposta de ‘imagem-objeto’ de Baschet
É
desta
forma
que
devemos
(1996), e desvincula no sentido de não se
entender a relação do homem medieval
prender a materialidade da própria coisa e
com
de negligenciar a dimensão ornamental das
presente, porém fisicamente escasso e que
obras.
na oportunidade, deve-se entregar a ela, a
Ela
também
não
adquire
a
propriedade imóvel do objeto, mas também interessante
imagem.
Como
algo
sempre
Deus e a salvação de sua alma.
é corpo vivo. (Id, p. 5-6). É
a
Cronologicamente falando, é a partir uma
do século XI e até o século XV, que vemos
inversão perceptiva acerca da imagem,
um período de grande florescimento na
quando se põe lado a lado o medievo e os
utilização das imagens, em divergência aos
dias atuais. No medievo, a imagem estava
séculos anteriores, em que o ‘grau de
presente em todas as dimensões da
iconicidade’ foi inferior (BASCHET, 1996,
realidade, de maneira simbólica. Contudo,
p.7). Este fato confirma a ideia de que a
quantitativamente falando, esse universo
Igreja deixara então de temer a idolatria
era muito mais reduzido do que podemos
herética.
imaginar. (Id, p. 15). Atualmente, vivemos
período, mais especificamente no século
em uma era globalizada, com uma mídia
XIII, consolidam-se no seio da sociedade
instantânea e uma publicidade imagética
medieval, as características concernentes à
abusiva. Ou seja, a imagem está presente
cristandade latina dos séculos posteriores.
no
É a “religião das imagens.” (SCHMITT,
nosso
pensar
cotidiano,
de
em
forma
abundantemente quantitativa. Entretanto,
acostumamos com sua presença. Ficamos entorpecidos, sem nos atentar a seu poder de suscitar algo mais. Ela perde desta forma, considerável importância qualitativa.
disso,
neste
mesmo
2007, p. 86).
passa despercebida por nós, como um borrão, tal é o ponto em que nos
Além
Ainda segundo Baschet (2006, p. 485), Nos séculos XII e XIII, a teologia ocidental da imagem valoriza ainda mais o papel espiritual das
imagens,
transitus,
desenvolvendo
processo
pelo
qual
a
noção
de
‘através
da
semelhança das coisas visíveis, somos elevados
651
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo até a contemplação das coisas invisíveis’ [...] o culto não é prestado então à própria imagem, como os idólatras são acusados de fazer, mas à figura representada pela imagem.
De
fato,
esta
consolidação
da
salvar, onde
como uma chama, cortando os laços que o unem à carne e ao pecado. Uma vez purificada a memória, a alma pode apoiar-se nas palavras e nas imagens do texto para tentar elevar-se até o seu criador. (VAUCHEZ, 1995, p. 173)
com o Superior e buscar diretamente sua salvação. Para Visalli, o século XII “é o
mais social do que propriamente cultural. André Vauchez nos lembra de que neste período a sociedade Medieval passava a se distanciar de um período violento e de coações
exteriores,
impregnado
de
violência. Foi neste contexto que “um número crescente de clérigos e de leigos adquiriram esse mínimo de tempo e de distanciamento em relação ao instinto, que torna possível o recolhimento e a reflexão”. (1995, p. 169). A busca da salvação passa a ser então um processo ativo, onde o homem medieval chama para si a responsabilidade de se redimir perante o Criador. Ora, uma busca leva à outra. O cristão que quer se
e
segundo eles, age primeiramente no espírito
buscando assim conectar-se intimamente
É importante ressaltar um aspecto
reflexão
conduz à contemplação [...] A Palavra divina,
mediação dos especialistas da oração,
laicas” (2004, p.1).
buscava
partida para uma meditação que, por etapas,
a
grande século medieval das conquistas
homem
experiência religiosa, fornece um ponto de
ligadas a elas. A partir do século XI, a refutar
o
espirituais, a referência obrigatória de toda
dominicanos, e também às confrarias laicas a
Escritura
O texto bíblico, que continua a ser, para os
religiosas, como os franciscanos e os
passou
a
iluminação.
seu sucesso à ação das crescentes ordens
laica
conhecer
Sagrada.A Bíblia era o alimento espiritual,
cristandade latina deve em grande parte
sociedade
quer
E foi esta percepção do laicado sobre as escrituras que acabou elevando e enaltecendo os aspectos da humanidade de
Cristo.
(VISALLI,
Consequentemente,
2004
duas
p.1).
certezas
fundamentais impregnam a consciência religiosa no Ocidente do século XIII: só se chega a Deus por seu Filho crucificado, e para conquistar a salvação, é preciso assemelhar-se
ao
Cristo.
(VAUCHEZ,
1995, p. 179). Estas
ordens
ascendentes,
que
foram o cerne do movimento ascético passaram a pregar a necessidademoral de se viver uma pobreza absoluta e praticar os ideais do cristianismo primitivo. Estas organizações,
ao
encorajar
o
homem
comum a buscar a salvação por seus próprios esforços, “se constituíram em um dos
fenômenos
mais
dinâmicos
652
da
Rafael Fernandes Speglic religiosidade do período.” (VISALLI, 2004, p.2).
Além do livro difundiram-se também objetos (relicários) pessoais. Juntando-se
O
poder
dos
milagres
também
todos estes relicários com a Bíblia dentro
estava presente naquele momento. O
do espaço íntimo, podemos perceber a
homem
buscava-os
formação de pequenas capelas individuais
constantemente e estavadisposto a vê-los
e o desenvolvimento da devoção privada,
em qualquer fenômeno extraordinário. A
que “no século XIV, ganhara os estratos
hagiografia ainda tentou mostrar que este
sociais mais profundos.” (DUBY, 1990, p.
poder
523).
medieval
miraculoso
subordinado
a
estaria
de
conduta
fato
ascética.
(VAUCHEZ, 1995, p. 161). Desde
o
Dentro
das
Igrejas,
pequenas
capelas privadas surgiam providas com
momento
em
que
seus próprios relicários e mobiliários e
olaicadopassou a se interessar direta e
eram
geralmente
destinadas
a
algum
ativamente pela Bíblia, é fácil compreender
indivíduo e sua família ou grupo especial,
que, como consequência, Ela ganhou o
como as confrarias.
espaço privado. Se o homem medieval
De que forma então este processo
passa a recusar o orador especializado, ele
de privatização religiosa e o movimento
obrigatoriamente passa a levar a Bíblia
ascético se conectam com o crescimento
para dentro de sua casa. Como disse
da devoção Mariana?
Duby, “o cuidado com a alma tornou-se
A partir dos séculos XI e XII, a
cada vez mais individual [...] se libertou
Virgem passa a se igualar a Cristo. Aliás,
pouco a pouco do comunitário, enquanto o
podemos
campo do religioso progressivamente se
quando disse há duzentos anos, que “no
privatizava” (1990, p. 521). É claro queeste
século
processo não concerne a todos os homens
(BASCHET, 2006, p. 473). É de forma
do
paralela
medievo.
As
condições
sociais
e
até
XII, à
concordar Deus
mudou
reforma
comMichelet, de
religiosa
sexo.” e
o
econômicas não devem ser esquecidas. A
fortalecimento da instituição eclesial, que a
maioria dos cristãos com acesso direto ao
Virgem ganha terreno e passa a ser
Livro seriampertencentes às classes mais
considerada onipresente para o universo
abastadas. Desta forma, estemais fácil
cristão. Maria passa a ser associada à
acesso
soberania das figuras divinas. De acordo
ao
meditação privado.
Livro íntima
Sagrado dentro
permitia
do
a
ambiente
com
Baschet,
“é
preciso
tratar
conjuntamente a Virgem e a Igreja, já quea
653
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
partir deste período, a exegese afirma que
recebemos tua misericórdia, oh, Deus!
tudo o que se diz de uma pode ser aplicado
Somente por ela foi possível recebermos o
à outra.” (2006, p. 470). A Igreja, por
Senhor Jesus em nossos lares.” Assim
conceber o corpo cristão, passa a ser vista
exclamava o monge cisterciense Bernardo
como mãe de Cristo, juntamente com a
de Claraval no século XII.
Virgem. Além disso, desde o concílio de
O culto à Virgem é amplificado
Éfeso, em 431, Maria é vista como Mãe de
também pelo sentimento de coletividade,
Deus, do grego“Theotokos”, uma vez que é
próprio do medievo. Esta coesão se
mãe de Cristo e este é igual ao Pai.
difunde
Percebe-se então uma relação de fundição
precisam de um padroeiro. No caso, a
entre a Virgem Maria e a Igreja Católica.
Virgem toma este lugar frequentemente.
Não à toa, muitas imagens passam a
(BASCHET, 2006, p. 500).
aparecer,
representando
Maria
num
no
corpo
social:
as
cidades
Quanto aos milagres mencionados
tamanho muito maior que o comum, dentro
anteriormente,
da e como a própria Igreja.
principalmente a partir do século XII, que
O papel de Mediadora também foi essencial neste processo. Maria foi o
“Era inevitável, sobretudo com relação à Virgem e todos os outros santos, que a devoção popular lhe atribuísse uma infinidade de milagres [...] O
nos elevamos a Ele. A Virgem foi vista
número de milagres atribuídos à Maria aumentou depois da Idade Média, atingindo seu pináculo
como a única criatura capaz de purificar e
nos séculos XIX e XX.” (PELIKAN, 2000, p. 184).
fortalecer os pecados. Somente ela poderia
desse modo pelo processo de mediação entre Cristo e a humanidade. (PELIKAN, 2000, p. 178).Sua feminilidade também é um fator contribuinte. Por ser mulher, seria maisinclinada à compaixão e ao perdão do que o Cristo, homem, que embora mais severo, é também sensível aos apelos da mãe. (VISALLI, 2004, p. 176). “Ela é nossa Mediadora a única por meio de quem nós
período,
de maneira mais intensa.
até os homens. Ou seja, por meio dela, nós
demônio; mas ela só poderia se conduzir
neste
os atribuídos à Maria passam a aparecer
caminho pelo qual o Salvador pode descer
ser um amparo contra as tentações do
é
É curioso perceber ainda o poder da tradição. Pelikan já discorreu sobre o fato de
que
não
encontramos
material
significativo no Novo Testamento. O relato de Maria é muito breve e esparso e não condiz com a força que seu culto adquire posteriormente (2000, p. 24). Mais curioso ainda é perceber que este culto pode provir de um erro da tradução. A expressão grega ‘parthenos’, ‘virgem’,
na
que
foi
verdade
traduzida tem
como
como seu
654
Rafael Fernandes Speglic equivalente
hebraico
o
termo
‘jovem
mulher’. E é importante ressaltar que a
Arte Renascentista, onde a valorização do indivíduo ganhou grande importância.
identificação de Maria como virgem é
A importância da obra de Van Eyck
proveniente do Cristianismo primitivo, fato
provém do fato de que ele, como artista,
este que contribui para a contenção sexual
mas mais ainda como unidade de um corpo
do movimento ascético, modificando toda
social e de uma cultura, estava sujeito ao
uma moral na sociedade cristã.
seu momento histórico. Se sua obra é fruto
Ora, se o processo de privatização,
de uma encomenda, é porque os doadores
leva à religião para o ambiente privado, e
da obra, como Van der Paele, Chanceler
se o surto de devoção Mariana eleva a
Rolin ou JoosVidj, estavam da mesma
Virgem para sentar-se ao lado de Deus,
forma impregnados deste momento.Muito
passaremos então a encontrar uma grande
se atribui a sua qualidade técnica ou sua
expressão de devoção à Virgem, dentro
fama como pintor da corte de Filipe, o Bom,
dos ambientes privados.
mas o fato é que muitos outros pintaram
Jan Van Eyck foi um pintor flamengo
cenas similares no período. É importante
nascido por volta de 1390, tendo falecido
compreender
em 1441. É provavelmente de Maesheyck,
pintava-se quadros daquela forma; que os
na região hoje conhecida como Holanda,
religiosos
ou Países Baixos. Foi pintor da corte de
capelas individuais dentro da própria Igreja,
Filipe,
Borgonha.
ou as tinham dentro de suas grandes
Considera-se que o período em que mais
residências aristocráticas; que o tema de
produziu pinturas marianas tenha sido por
Maria entronizada com o menino Jesus no
volta de 1436.
colo era fundamental para a apreciação e
o
Bom,
duque
de
O fato de que Van Eyck aparece
que
tinham
naquele acesso
a
momento, pequenas
entendimento do corpo cristão. Estudar o
inesperadamente com uma nova forma de
momento
pintar é uma das razões por que alguns
espírito, a devoção, o social – é de suma
historiadores o consideram como o primeiro
importância para se compreender o fruto de
pintor do Protorrenascimento do norte
uma cultura distante.
Europeu.
(ROLF,
1999,
-o
contexto,
os
motivos,
o
p.
A imagem da Virgem entronizada –
406).Considerado o inventor da tinta a óleo,
caso do nosso estudo – é cheia de
Van Eyck ajudou a impulsionar a arte
simbologias. Na maioria dos casos, ela se
medieval para o que conhecemos como
encontra sentada com o menino Jesus no colo, revestida por um manto. Mesmo com
655
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
uma aparência humana frágil,Jesus ainda é
produzida em 1435. A cena representada
visto como aquele que sofreu crucificado.
se passa em um ambiente privado, porém
Por
mais
cheio de símbolos religiosos, que não
severidade ao seu julgamento. O papel de
estariam ali se não fosse a revolução
Mediadora concernente a Maria é de tentar
espiritual do século XII e a consequente
também atenuar este sofrimento. Ademais,
privatização da religiosidade.
esta
lembrança
se
atribui
a imagem do manto não é somente acolhedora,
mas
inclusive
passa
a
sensação de proteger os cristãos, cobrindoSe concordarmos com Pastoureau (1997, p. 164), entenderemos também que o vestuário das épocas antigas é repleto de seja
pelo
tecido,
forma,
maneira de usar ou a cor. Exprime-se, pela vestimenta,
valores,
meditativo e o ruidoso mundo exterior, o gesto da oração e o gesto divino da benção... Tudo isto se encontra reunido, quase que se diria em uma sinopse mística, na Virgem do Chanceler Rolin
os com seu amor materno.
significados,
O celestial e o mundano. O mundo interior
estados
e
níveis
sociais. Desta forma, sem a vestimenta, o homem antigo e medieval perde sua identidade. O traje está ligado ao íntimo... “é sempre mais que o tecido e ornamento, estende-se ao comportamento.” (DUBY, 1990. P. 560)
[...] No entanto, ora aparece a Virgem coroada por um anjo como Rainha do Céu, com o menino Jesus em seu colo, abençoando com a mão direita. O Chanceler levanta os olhos, na quietude do reconhecimento e contempla o grupo celestial. Também o mundo é testemunho deste acontecimento; ou melhor, a aparição acontece no mundo e para o mundo. No terraço, veem-se plantas com flores, como o lírio símbolo da maternidade virginal de Maria [...] A mensagem do quadro é legível, ainda que esteja escondida: Cristo veio ao mundo para libertar o homem do pecado. Nicolas Rolin, repleto da palavra de Deus, é quem transmite esta mensagem. (ROLF, 1999, p. 411).
O
doador
é
Nicolas
de
Rolin,
Chanceler de Borgonha, da corte de Filipe, o Bom. Foi um dos maiores patronos beneficentes da época. A pintura parece transbordar por sua autoridade. É curioso notar, que esta é a única imagem em que a aparição sobrenatural acontece dentro do ambiente de fato privado. Por coincidência, ou não, não existe uma mediação feita por outros santos, como é o caso das próximas A Madona também
do
Chanceler
conhecida
como
Rolin, “A
imagens
que
veremos.
O
Chanceler
assume a mesma proporção física que a
Oração Pintada”, foi 656
Rafael Fernandes Speglic Virgem. É quase como se Rolin quisesse
passa a ideia de que o doador está sendo
representar uma evocação, por meio de
redimido por sua fé. Talvez tenha de fato
suas orações.
sido
assim,
já
que
van
der
Paele
Também no caso da Madona de
encomendou a obra logo após adoecer. Ele
Joris Van der Paele(1436) trata-se na
havia dedicado sua vida à religião, tendo
realidade de uma visão, da presença do
feito carreira na Cúria Romana. Em 1434,
divino no mundo.
ano da encomenda, voltou à Bruges assumindo a posição de cônego leigo abastado vinculado à principal Igreja da cidade, São Donaciano. É como se o painel encomendado
almejasse
imortalizar
a
memória de van der Paele na Igreja de São Donaciano, uma vez que o cônego não estará presente por mais muito tempo. O trítico da Virgem e do Menino (1437) apresenta algumas diferenças. Em primeiro lugar, sua dimensão é muito pequena. Apenas 33x27 centímetros. Ou seja, um trítico de viagem. No flanco esquerdo, vemos o doador desconhecido e o Arcanjo Miguel. No centro, a Virgem e o Menino e no flanco direito, santa Catarina. Nota-se que o doador está vestido segundo a moda de Borgonha. Não sabemos quem O doador se ajoelha, e perde seu olhar. É quase como se estivesse orando e de repente passasse a refletir sobre algo. Nesse meio tempo, sem que se aperceba, o divino se manifesta ao seu redor. São Jorge o recomenda à Virgem, na presença do santo local, São Donaciano. Não é de fato uma reunião. A imagem na verdade
ele é, mas um escudo é reconhecível, segundo Till-HolgerBorchert, o escudo da família Giustiniani, que foram patrícios genoveses nos séculos XIV e XV e se estabeleceram
como
mercadores
em
Bruges. É curioso perceber que justamente na imagem em que o doador não é classe religiosa, ele encontra-se separado da Virgem.
Não
podemos
abandonar
657
a
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
possibilidade de que tenha sido somente
aqui já disseminadas em pleno século XV.
uma escolha técnica, visto o pequeno
Só essa interiorização explica histórica e
tamanho do trítico. É, na verdade, uma
simbolicamente a presença destes objetos
questão de escolha: acreditar ou não na
dentro de uma residência privada.
coincidência.
No caso desta obra, a representação Mariana
concerne
à
temática
da
Anunciação, localizada na parte central. Já na parte inferior, encontramos os doadores. JoosVidj, a esquerda está acompanhado por São João Batista e sua esposa, Elisabeth Borluut, do lado direito, está junto a São João Evangelista. Não temos aqui uma manifestação sobrenatural no mesmo A próxima e última obra se trata do
ambiente do doador, mas ainda assim,
Retábulo de Gand(1432) fechado. A maior
nota-se a importância da obra. JoosVidj
obra de Van Eyck, em todos os sentidos.
provinha de uma família abastada e
Além de ser considerada sua obra-prima,
influente, pertencente ao patriciado de
dispõe de impressionantes quase 4 metros
Gand. Foi administrador da Igreja de São
de altura, por 2,5 metros fechado. Aberto,
João, a qual ajudou a reformar e da qual
atinge mais de 5 metros de largura. Sabe-
morava ao lado. E foi para esta mesma
se que Van Eyck não executou esta obra
Igreja que planejou esta doação. Em uma
sozinho. Ela foi começada por seu irmão,
obra
Hubert e ainda passou pelas mãos de
importância, pode-se afirmar que Vidj
alguns discípulos da oficina. Mas, foi
queria não só glorificar seu presente, mas
terminada por Van Eyck e atribuída a ele.
também
Próximo vários
objetos
à
janela,
encontramos
alegóricos.
A
garrafa
de
o
murais.
a
virgem
como
de
e
dentro
Gand.
da
Desejou
provavelmente ultrapassar não só todos os retábulos
representam
proporção
imortalizar-se
comunidade
representa a castidade de Maria. A bacia e jarro
gigantesca
existentes,
mas
também
os
Ecclesia. Vale ressaltar que se trata de
Ao cabo de termos analisado estas
outro ambiente privado. Lembremos aqui
imagens, levamos em conta que cada
da já discutida privatização das práticas
artista, é claro, tem suas capacidades e
religiosas, suscitadas desde o século XII e
conhecimentos
individuais.
Mas
não
658
Rafael Fernandes Speglic devemos excluí-lo de seu contexto, ainda
dialogar, por que nos dedicaríamos a uma
que seja considerado um precursor, um
atividade tão difícil e insólita quanto a de
gênio, ou um renegado. Cada cultura
falar sobre quadros? Penso que a crítica
favorece ativamente na formação destas
inferencial é uma prática não só racional
aptidões. Além disso, sempre há de se
como sociável.” (2006, p. 195).
considerar
perspectiva
Finalmente, é possível afirmar que o
individual. Os doadores de um quadro
produto histórico se faz e é percebido a
podem
diferente
partir do indivíduo, de sua perspectiva,
daquela que o artista irá perceber. Os
apesar de sua inserção cultural. Não
observadores nativos podem ter outra
podemos então, projetar afirmações acerca
interpretação,
suas
de detalhes. Como historiadores, o que
próprias interpretações irão divergir. E
podemos fazer é tentar entender porque
distanciando
um
nós
uma imagem com determinada temática
historiadores,
hoje,
estas
pode ser aclamada em uma época, ou
imagens,
e
respeitar
enxergar
uma
sem
talvez
a
coisa
contar pouco ao
não
que mais,
analisar
percebamos
as
ignorada em outra, e tentar entender por
intenções da época, e talvez ainda não
fim, os motivos para que determinada
concordemos entre nós. Como já disse
sociedade possa ter legado específicos
Baxandall, “A história tem um compromisso
produtos culturais.
com a boa crítica. Se não fosse para
Referências: BASCHET, Jérome. Introdução: a imagem objeto. In: SCHMITT, Jean-Claude e BASCHET, Jérôme. L’image. Fonctions et usages des images dans l’Occident Médiéval. Tradução: Maria Cristina C. L. Pereira. Paris: Le Leópard d’Or, 1996. BASCHET, Jérome. A civilização Feudal: do ano 1000 à colonização da América. Tradução: Marcelo Rede. 1ª Ed, São Paulo: Globo, 2006. BAXANDALL, M. Padrões de Intenção: a explicação histórica dos quadros. Tradução: Vera Maria Pereira. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. BORCHERT, Till-Holger. VAN EYCK. Tradução: Jorge Bernardo Boléo. Köln, Taschen, 2010. DUBY, G (org.) História da Vida Privada, 2 : da Europa Feudal à Renascença. Tradução: Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
659
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
GINZBURG, Carlo. Indagações sobre Piero:O Batismo, o Ciclo de Arezzo, a Flagelação. Tradução: Luiz Carlos Cappellano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. (Oficina das Artes, v. 4). PASTOUREAU, Michel. Dicionário das cores do nosso tempo: Simbólica e Sociedade. Tradução: Maria José Figueiredo. Lisboa: Estampa, 1997. PELIKAN, J. Maria através dos séculos:seu papel na história da cultura. Tradição: Vera Camargo Guarnieri. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ROLF, Toman. Él Gótico: Arquitectura, Escultura, Pintura. Tradução: José García Pelegrín e Pablo de laRiestra. NeueStalling: Könemann, 1999. SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Tradução: José Rivair Macedo. Bauru: EDUSC, 2007. VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental: (Século VIII a XIII). Tradução
Lucy
Magalhães.
Rio
de
Janeiro:
Jorge
Zahar,
1995.
VISALLI, A. M. Cantando até que a morte nos salve:estudo sobre laudas italianas dos séculos XIII e XIV. São Paulo: USP, 2004. (Tese de Doutorado).
660
HIBRIDIZAÇÃO: UMA QUESTÃO DE IDENTIDADE DE SÍMBOLO E LITERATURA NA ESCANDINÁVIA MEDIEVAL Rafael M. Oliveira Tiago de Oliveira Veloso Silva
1
Resumo: O engajamento dos estudos sobre o conceito de hibridização cultural, fortemente aliado com estudos sobre religiões do período medieval, principalmente os relacionados com os contatosentre as sociedades pagãs e cristãs da Escandinávia medieval, nos proporciona uma série de informações e dados que podemos analisar a partir de um processo histórico de importantes transformações sócio-culturais da região. Para tanto, eis o interesse de análise de duas fontes de extrema relevância para a construção dessa sociedade, o martelo de Thor e os poemas deBeowulf. Dois importantes resquícios da história escandinava em questão de abrangência cultural e difusão de tradições do período. O primeiro, como um amuleto de forte presença, resistência e adorassão dos deuses do panteão nórdico, principalmente o deus do trovão, em contraste a um dos símbolos mais caracteríticos do cristianismo, a cruz de Cristo. O segundo, uma importante literatura do século VII ou VIII estruturada a partir de lendas, mitologias e tradições nórdicas, mesclada com notáveis referências de teor pagão e, sobretudo, referências cristãs na obra. Dessa forma, o presente trabalho tem como objetivo apresentar em linhas gerais, os contextos históricos que proporcionaram a miscigenação dessas duas culturas e, também, relatar um breve estudo de duas fontes essenciais para a compreensão dessa nova sociedade. Palavras-chave:Era Viking; Hibridização; Religião.
1
Alunos atualmente cursando o 8º semestre de graduação da Universidade de Brasília. 18/08/14.
661
Rafael M. Oliveira Tiago de Oliveira Veloso Silva
Introdução
da segunda em questão. Se o termo for
Uma tentativa de se construir uma
aplicado ao objeto de estudo, a transição
história religiosa pagã, tendo como fonte
entre o paganismo nórdico e o cristianismo
principal o contato entre culturas pagãs e
na Escandinávia Medieval, é possível
cristãs medievais, pode ser feita a partir de
observar que há um choque inicial entre o
análises de objetos, amuletos e literatura
cristianismo,
escandiava desse período, principalmente
paganismo
nas transformações e referências de dois
Mesmo
grandes símbolos dessa cultura,o mítico
comunidade
martelo de Thor e os
Escandinávia (macro) se comportava e
épicos
poemas
deBeowulf.
nórdico,
exterior, cultura
considerando
possuía
Os mitos e lendas da aclamada Era
cultura
cada
dentro
de
o
tradicional.
que
(micro)
diferenças
e
certa
da
maneira
significativas e peculiaridades específicas,
Viking firmaram-se, de certo modo, num
especialmente
período em que o contato e expansão da
exemplos com um grande distanciamento
religião
predominantemente
territorial (como uma aldeia na Noruega e
abusiva em relação à outras práticas
uma na Suécia), ainda existe uma coesão
religiosas, geralmente considerada como
cultural entre os territórios escandinavos
invasora e exclusiva nos âmbitos sociais-
que nos permite analisar de forma geral
religiososcom outras sociedades e culturas
como
medievais.
mesclagementre o paganismo nórdico e o
cristã
era
Este
trabalho
tem
como
princípio analisar essas miscigenações cultural-religiosas utilizando as bases do conceito
de
hibridização
quando
ocorreu
a
analisamos
transição
e
cristianismo. A
hibridização
se
baseia
no
cultural,
conceito de diferença cultural, e não
trabalhando com os dois objetos de estudo
diversidade, conceito trabalhado por Homi
específicos mencionados no início desse
K. Bhabha em seu livro O Local da Cultura,
artigo.
ele mesmo diz: “essa revisão da história da teoria crítica apoia-
Hibridização, Identificação e Identidade A trabalhada
hibridização neste
cultural,
texto,
como
significa
a
miscigenação de duas culturas que por alguma razão entraram em choque e acabaram por criar uma diferente, mas que envolve aspectos tanto da primeira quanto
se, como eu disse, na noção de diferença cultural,
não
de
diversidade
cultural.
A
diversidade cultural é um objeto epistemológico – a cultura como objeto de conhecimento empírico – enquanto a diferença cultural é o processo da
enunciação
da
cultura
como
“conhecível”,
legítimo, adequado à construção de sistemas de identificação cultural”. BAHABHA, ANO, p 63.
662
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
A diferença cultural para Bhabha é
nórdico, mesmo que cada localidade, ou
primordial para a existência da identidade
mesmo, “classe social”, reverenciasse em
e, portanto na sua identificação, pois sem
especial um deus diferente do panteão
esta diferença não há como se identificar,
nórdico,
por exemplo, para alguém se identificar
favorecimento os convinha mais do quê um
como
a
Deus único, visando interesses específicos
existência de uma diferença, alguém não
da região. Ou seja, dentro da Escandinávia
escandinavo,
ser
existia uma formaanterior de identificação
escandinavo não seria um critério de
primordialmenteterritorial e, posteriormente,
identificação, uma vez que todos seriam
uma outra religiosa. Podemos então utilizar
escandinavos. A identidade, então, é o
a entrada do cristianismo na Escandinávia
resultado da identificação de uma ou várias
como um choque cultural, a introdução de
diferenças ou similaridades que ao serem
uma diferença, que seguindo os passos de
contrastados ou agrupados com o restante,
Bhabha,
permitem
formação
escandinavo pois
a
sua
é
necessário
sem
própria
ela,
classificação.
Existem identidades micro (eu e você) e macro
(nós
e
vocês),
e
porque,
significa de
teoricamente,
a
uma
seu
possibilidade nova
forma
da de
identidade, uma religiosa.
estes
A hibridização resultante do choque
agrupamentos são múltiplos e infinitos, e
entre culturas resulta, em sua essência, na
são, sobretudo, dependentes da diferença
gênese de uma nova cultura que contem
cultural.
em si aspectos e práticas mescladas das ShaneMcLeod também fala sobre a
identidade
e
a
identificação
duas em oposição, mas que ao serem
dos
mescladas acabam por gerar uma nova
escandinavos da Era Viking em seu artigo
com particularidades únicas. Esta criação a
KnowThineEnemy: ScandinavianIdentity in
partir da mistura cultural é recorrente em
the Viking Age (2008), ele diz que mesmo
vários,
existindo uma gama de identidades locais,
culturais, onde existe, como o próprio
durante o período em que o cristianismo
Bhabhacoloca,
estava se estabelecendo na Escandinávia,
colonizado, que também pode ser colocado
já existia uma identidade macro, como
como o dominador e o dominado. Um
identificação de reinos, e também se sabe
exemplo pode ser o caso da colonização
que dentro do território escandinavo existia
da América Central e a resultante religiosa
uma concordância em relação a religião,
desse encontro. Atualmente no México, a
conhecida posteriormente como paganismo
Santa de La Muerte é cultuada com vários
se
não
todos, o
os
encontros
colonizador
e
663
o
Rafael M. Oliveira Tiago de Oliveira Veloso Silva
aspectos do culto a santos cristãos, mas a
Escandinávia como forma de um amuleto
própria Santa de La Muerte é o resultado
de proteção, assim como o crucifixo foi e
do sincretismo religioso entre a religião
ainda é utilizado. É possível traçar uma
cristã e a religião Mesoamericana da área.
relação que estes dois amuletos tiveram
Então, como vimos, a hibridização
durante sua co-existência na Escandinávia
cultural leva a criação de uma nova cultura
medieval, e, assim, interpretar que a forma
e, no caso dos escandinavos, a introdução
com que o crucifixo foi utilizado por aquela
do cristianismo levou o desenvolvimento de
sociedade pode ter sido um reflexo de uma
uma Escandinávia “cristã”, que ao mesmo
carga firmemente enraizada da cultura
tempo em que não era pagã nórdica,
pagã, recem rejeitada.
mantinha alguns de seus aspectos, e
Como
colocado
por
mesmo sendo chamada de cristã,não era
SæbjørgWalakerNordeide em seu artigo
inteiramente
a
cultura
Thor’shammer
originalmente
foi
aplicada.
cristã
que
Entretanto,
in
Norway:
symbolofreactionagainstthe
A
Christian
dentro desse sincretismo, as características
cross?,existem dois tipos de martelos de
que são mantidas dentro da nova cultura,
Thor, o martelo mais antigo e o mais novo.
com certeza são os traços que tiveram
O primeiro era um símbolo de martelo
mais
rudimentar conectado a um anel, e tal anel
importância
tradicional,
dentro
mesmo
que
da a
cultura
priori
esta
poderia conter vários outros amuletos ou
importância dos traços e/ou adaptação
pingentes
destes
chaves.
tenham
sido
feitos
inconscientemente.
junto, Já
o
como
um
segundo
molho
de
pode
ser
considerado como o martelo “clássico”,
Amuleto em transformação
cujo estilo é o mais conhecido e difundido
O Martelo de Thor, conhecido pelo
atualmente, com um desenho homônimo
nome de Mjolnir, é um símbolo muito
de um martelo com eventuais desenhos
conhecido atualmente, seja pelo seu uso
e/ou adornos. Além de ser maior que o
religioso (como por exemplo os neo-
antigo,
pagãos), o uso ornamental ou seus usos
“individual”, pois não se conecta a um anel
secundários,
e consequentemente a vários amuletos,
como
por
exemplo
a
apropriação da revista Marvel do deus Thor
ele
também
é
um
amuleto
dando a ele um caráter especial e singular.
e seu martelo. Independente de suas
A análise de Walaker se restringiu
referências hoje, o martelo de Thor já foi
à Noruega, lugar com relativamente poucos
utilizado
aparecimentos do martelo de Thor ou
pelos
povos
pagãos
da
664
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Runestones, mas seus resultados mostram
pagã e, consequentemente, diferenciar-se
que enquanto o martelo de Thor mais
dos outros.
antigo
é
anterior
cristianismo,
o
ao
novo
surgimento martelo
é
do seu
Anne
Pedersen
escreveu
um
excelente trabalho chamado Late Viking
contemporâneo, assim como do crucifixo.
andEarly
Com base nestes fatos, é possível analisar
Questionof Faith (2014), onde é trabalhada
que a cultura pagã da utilização de
a problemática dos acessórios imbutidos
amuletos da Noruega (cultura que, em um
como signos de religião, como por exemplo
contexto geral, é muitíssimo similar aos
broches que continham a cruz como
seus vizinhos) e Escandinávia pode ter tido
símbolo da fé cristã. Pedersen argumenta
um papel protagonista na utilização do
em seu trabalho a questão do martelo de
crucifixo pelos cristãos da Escandinávia
Thor como amuleto e símbolo de uma
medieval.
resistência religiosa que teve seu ápice nos
Entendo que a participação cultural do
uso
de
amuletos
pela
Medieval
Ornaments:
A
séculos IX e X, período de estabelecimento
sociedade
do cristianismo na Escandinávia, e até
escandinava estava tão profundamente
como uma provável função para o culto da
enraizada ao ponto de ser adaptada para
tradição pagã (PEDERSEN, 2014, p. 195).
uma nova religião, seria muito difícil que a
A análise de tumbas e objetos enterrados
outra parte da sociedade, a não cristã,
neste período, onde foram encontrados
deixasse de utilizar os amuletos, então
objetos pagãos, como por exemplo o
porque existem dois tipos de martelos de
martelo de Thor, mostra que ainda existia
Thor? A religião cristã, ao entrar no
uma relutância em abandonar a antiga
território escandinavo, se chocou com a
tradição pagã pela nova tradição cristã, que
religião pagã, fazendo dela uma religião
gradualmente foi-se modificando.
invasora quetransformava e, até, pervertia
Quando o cristianismo entrou na
os costumes e tradições dessa sociedade.
Escandinávia, durante seu período de
Face a esta “invasão cultural”, acredita-se
estabilização, ele coexistiu com as práticas
que os escandiavos que ainda seguiam a
pagãs, que foram aos poucos sendo
antiga religião transformaramo martelo de
abafadas, mas certas práticas culturais
Thor,resignificando o mesmo para não só
estão tão enraizadas na sociedade que não
fornecer proteção como um amuleto mas,
foram esquecidas mesmo com a forte
também, para servir como uma reafirmação
presença cristã que acabou por existir uma
que o usuário era simpatizante da religião
hibridização,
ou
mutação,
do
próprio
665
Rafael M. Oliveira Tiago de Oliveira Veloso Silva
cristianismo dentro do espaço cultural da
cristianidade (Egilsdóttir 2006: 2; Mitchell
Escandinávia,
2006: 3). A dualidade Bem ou Mal foi
onde
algumas
práticas
culturais apenas não se perdem nem
definidida
mudam, ganham um novo significado ou
preceitos
até mesmo o mantém, porém seguindo
características na lendas orais ou escritas
como práticas cristianizada.
germânicas, como podemos observar nos
posteriormente cristãos,
a
partir
impelindo
de tais
poemas de Beowulf.
Literatura como objeto hibridizado Como vimos anteriormente neste
O
poema
épico
Beowulf,
trabalho, a hibridização do paganismo e
considerado como a mais antiga epopéia
cristianismo se estendeu para grande parte
europeia, composto durante o século VII ou
dos
cultura
VIII por um provável poeta anglo, um
escandinava. Assim, como o novo valor
possível monge ou clérigo de sua época, é
cultural que o martelo de Thor tomou com o
uma notável obra que conseguiu mesclar a
contato com a cruz cristã, a literatura
história escandinava e mitologia pagã com
escandinava medieval se formou a base de
elementos cristãos. Apesar de seu enredo
elementos da cultura anglo-saxônica com
simples, as diversas lutas entre o Bem e o
valores morais cristãos, repercuntindo em
Mal – sendo esta a grande influência e
um novo material estruturado a partir das
característica cristã que permeia durante
histórias e lendas germânicas.
toda a obra – representado pelos inimigos e
campos
e
saberes
da
O grande feito dessa hibridização
desafiantes do herói protagonista que
dos contos e poemas escandinavos foram
nomeia a obra. O ideal heroico germânico e
as implementações dos códigos morais e
o fatalismo pagão também são grandes
éticos cristãos. A abordagem mágica nos
características primordias na construção
textos é um grande exemplo disso. Os
dos poemas.
elementos mágicos herdados da cultura
Como
afirma
o
prof.Ms.
João
germânica, os poderes dos grandes deuses
Bittencourt de Oliveira, existem certos
do panteão nórdico, foram incorporados ao
traços do protagonista que definem o herói
Deus cristão e seus santos como milagres,
anglo-saxão, sendo o primordial o traço da
enquanto a magia tratada como usual
lealdade.
nesta cultura era algo a ser reprimida, sendo praticada por feiticeiras e demônios. Essa distinção não ocorria no paganismo “original”,
o
sem
contato
com
a
“Na história de Beowulf, podemos identificar vários traços de caráter que definem o herói anglo-saxônico, a saber: lealdade, força física, coragem, bem como sagacidade, cortesia, e, acima de tudo, o comprometimento com a
666
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo salvação de seu povo. Todos esses traços são evidenciados, principalmente, nas três batalhas que Beowulf tem de enfrentar, ou seja, com
menções à cruz, principal símbolo do Cristianismo. O equilíbrio desses dois elementos,
Grendel, com a mãe de Grendel e como o dragão.”. BITTENCOURT, 2010, p 114.
E neste mesmo artigo, o autor ainda aponta
que
os
conflitos
materiais
e
espirituais de Beowulf definem o caráter religioso
da
personagem,
o
agir
altruísticamente se confunde com o agir para si próprio. O primeiro considerado
os códigos cristãos junto com o ideal heroico
sobremaneira, protagonista transição
ego e a criação e eternização do heroi característica primária dos herois pagãos. Outro
aspecto
muito
importante
encontrado nos poemas deBeowulf para ressaltar o tema estudado neste artigo são as
inúmeras
encontradas
referências na
obra,
bíblicas sobretudo,
passagens e histórias de Caim, Abel e Dilúvio que são claramente tratados nos poemas. Ainda percebemos expressões e algumas alusões ao Deus único, todopoderoso, não comumente a religião pagã, e sim, da cristã. De certa maneira e, principalmente,
em
certos
casos,
o
arquétipo de criação, ação e evolução da protagonista lembra muito o do próprio Cristo.
No
explícitas
entanto, aos
não
inúmeros
há
citações
símbolos
e
personagens essenciais a cultura cristã, ressalto aqui que não encontramos no texto
transforma,
esses na
desta
poemas
figura
e
ideal
nova
a
para
composição
a de
cultura, uma inegavelmente hibridizada. Conclusão
como característica fundamental para a religião cristã e, o segundo, a exaltação do
germânico,
O contexto histórico em que foi criado
essas
novas
mudanças
sócio-
cultural religiosas diz muito sobre a própria composição
das
transfomações
da
sociedade escandinava medieval, assim como ela acaba tendo uma relação muito íntima com o seu lugar, seus mitos e suas histórias de criação. Uma cultura amplamente difusa e com variadas práticas, no entanto singular em
sua
estrutura,
consegue
fornecer
algumas informações necessárias, mesmo que dispersas, sobre um contato único de duas grandes influências predominantes do período
medieval,
uma
baseada
na
expansão e estabelecimento cristão, e outra
tratada
exoticidade
como
do
o
mundo
barbarismo nórdico
e
que,
portanto, deveria ser dominada. Entretanto, apesar
de
desse
grande
esforço
“colonizador”,o embate não foi unilateral. O choque desses dois povos e de suas culturas
conseguiram
criar
crenças,
667
Rafael M. Oliveira Tiago de Oliveira Veloso Silva
costumes e tradições peculiares e, sem
estudos que podem ser gerados a partir
sombra de dúvidas, primárias na sua
dessa análise, um breve relato e estudo de
composição. Assim,a contribuição deste
uma cultura primariamente nova, uma
trabalho
cultura hibridizada.
tinha
como
objetivo
mostrar,
mesmo que comparado com a gama de
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Material
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669
REPRESENTAÇÕES DA CRUCIFICAÇÃO NA BASÍLICA DE SÃO FRANCISCO, EM ASSIS Raquel de Medeiros Deliberador 1 Angelita Marques Visalli (Orientadora) 2 Resumo: Na sociedade do medievo a cultura visual foi fundamental, tanto que consideram ter ocorrido uma “Revolução das Imagens”, na Baixa Idade Média, proporcionando assim o desenvolvimento e propagação de imagens. Os estudos voltados às expressões imagéticas se integram na perspectiva de história cultural, possibilitando uma maior dimensão de compreensão do passado. Nessa pesquisa, nos debruçaremos nas representações da Crucificação realizadas, pelo italiano, Giotto (1267-1337), em um contexto, no qual, a expressão imagética em questão se define como representação da religiosidade no ambiente medieval. Realizando uma breve comparação desta com duas imagens, de mesmo tema, do pintor florentino Cimabue (1240-1302). As imagens escolhidas encontram-se na Basílica de São Francisco, em Assis, principal centro da iconografia franciscana. Assim, este estudo, possibilita maior compreensão sobre a construção da identidade franciscana e sobre a devoção religiosa no período. Para tanto, é utilizado o conceito “imagem-objeto” de Jérôme Baschet e considerado os debates em torno da iconoclastia e desenvolvimento do culto das imagens no ocidente medieval, realizados por Jean Claude Smith e Jérôme Baschet. Desta forma, a imagem deixa de ser considerada - como pregavam na teologia da imagem nos séculos XII e XIII – apenas por sua função didática, a “Bíblia dos iletrados”, agregam-se a ela valores muito além da representação. Podendo, então ser tratada como um verdadeiro documento histórico, um documento imagético, um discurso, carregado de intenções. Assim, devemos analisar as imagens pensando em seus diversos usos, manipulações e ritos. Palavras-chave: Idade Média; Crucificação; Franciscanismo.
1
Aluna do curso de graduação em História na Universidade Estadual de Londrina (UEL)
2
Professora do departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL)
670
Raquel de Medeiros Deliberador
significados agregados à imagem ao longo
Introdução Este estudo se desenvolveu acerca
da Idade Média. J. Baschet defende que a
Cristo
imagem religiosa exerce funções muito
crucificado, tema recorrente no contexto da
além de apenas: ensinar, relembrar e
movimentação
religiosa
comover. Como acreditavam e difundiam
particularmente
no
da
representação
visual
de no
Medievo, de
na teologia da imagem dos séculos XII e
desenvolvimento da Ordem Franciscana.
XIII, por isso, eram definidas como “Bíblia
Centramos a pesquisa no afresco da
dos iletrados”. Graças as essas análises e,
Crucificação realizado por Giotto no século
também, mesmo a definição dos séculos
XIV, provavelmente em 1320. A imagem se
XII e XIII demonstram a característica de
encontra na Basílica de São Francisco, em
objeto da imagem medieval, já que não
Assis, e está localizada na Igreja Inferior,
eram
espaço destinado aos frades. Foi realizada
medieval
uma breve comparação dessa imagem,
manipulações e ritos.
ambiente
apenas
representações,
servia
para
a
diversos
arte usos,
com outras duas pintadas por Cimabue no
A partir do século XIII a imagem
século XIII e que se encontram na Igreja
passa a ser usada nas práticas de
Superior.
indulgência. A imagem pode ser estudada
Buscando maior compreensão sobre
e analisada com base ao que representa,
a devoção religiosa do período e a
para que serve, do que ela é feita, analises
construção
franciscana.
internas, formais e iconográficas. O autor
Portanto, este trabalho discorrerá sobre as
ressalta, ainda, que embora tenha-se a
análises
imagéticos
noção de imagem-objeto no contexto da
realizados por dois importantes artistas,
Idade Média ela não se dissocia nem
com
as
apresenta autonomia em relação ao texto.
intenções da pesquisa, e cujo, o tema é
Para J. Baschet, as imagens possuem
recorrente em seu contexto.
funções que vão além do intencional. Jean-
da de
identidade documentos
localização
privilegiada,
para
Os textos de Jérôme Baschet (1996
Claude
Schmitt
e
Jacques
Le
Goff
e 2006) discorrem sobre a imagem na
confluem com essa ideia também no
Idade Média. O autor apresenta a imagem
âmbito do imaginário.
como objeto, e os diferentes valores e
“Mas nós sabemos cada vez melhor [...] que a vida, quer do homem quer das sociedades, está
671
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
tão ligada a imagens como a realidades mais palpáveis. Essas imagens não se restrigem às que se configuram na produção iconográfica e
contrário disso, já que “a imagem-objeto na Idade Média só possui valor pelo seu
artística: englobam também o universo das
caráter localizado. [...] objeto imaginado,
imagens mentais.” (LE GOFF, 1994, p. 16).
cujo
Ou seja, além das intenções dessas imagens-objeto, elas estavam imbuídas de valores simbólicos e do imaginário, o que pode potencializar as representações e intenções dessas imagens, por exemplo, ao retratar São Francisco como uma figura serena e próxima a Jesus em um momento em que todos estão em desespero, e assim enaltecer em vários âmbitos a figura de São Francisco. “De fato, em se tratando da Cristandade medieval, a noção de ‘imagem’ parece ser de uma
singular
fecundidade
compreendamos
pouco
todos
mesmo os
que
sentidos
correlatos do termo latino imago. Esta noção está, com efeito, no centro da concepção
funcionamento
põe
em
jogo
interferências entre visão corporal e visão espiritual” (BASCHET, 2006, p.522) Com base no estudado de Jean Claude Schmitt e Jérôeme Baschet, sobre o desenvolvimento do culto das imagens, sua
propagação
e
variação,
e
a
iconoclastia no Ocidente medieval, além, de, considerar as funções da imagem, ou seja, vê-la mais do que uma representação, como já a consideravam os teólogos da imagem nos séculos XII e XIII. Mais do que isso,
esse
estudo
imagético
foi
desenvolvido através do conceito “imagemobjeto”, de J. Baschet, considerando então
medieval do mundo e do homem: ela remete não
os
somente
intenções da imagem, como em qualquer
aos
objetos
figurados
(retábulos,
esculturas, vitrais, miniaturas, etc.), mas também às ‘imagens’ da linguagem, metáforas, alegorias,
similitudines, das obras literárias ou da pregação. Ela se refere também à imaginatio, às ‘imagens mentais’ da meditação e da memória, dos sonhos e das visões, tão importantes na
diversos
usos,
ritos,
funções,
e
outro documento histórico. Representações da Crucificação A Basílica de São Francisco, em Assis, apresenta uma subdivisão entre
experiência religiosa do cristianismo e que são
duas alas, a Igreja Inferior e a Igreja
muitas vezes desenvolvidas em íntima relação
Superior. A primeira é um espaço mais
com as imagens materiais que serviam a devoção dos clérigos e dos fiéis.” (SCHMITT,
reservado e restrito aos clérigos, as vezes
2002, pp.592-593).
alguns peregrinos tinham acesso a essa
J. Baschet refuta a ideia da cultura
área restrita, em algumas datas ou eventos
medieval da imago acreditando ser o
importantes. Nela se encontra o túmulo de
672
Raquel de Medeiros Deliberador
São Francisco, então era um forte espaço de culto dentro da Basílica. Nessa Igreja se encontram a maioria das representações de crucificação que existem na Basílica, entre elas foi escolhida somente uma, um afresco do século XIV, do pintor italiano Giotto, que está localizado onde fica o túmulo de São Francisco. No total existem sete dessas imagens sendo que cinco delas estão na Igreja Inferior – duas delas são de madeira. E somente duas estão localizadas na Igreja Superior. Essa
segunda
parte
[Igreja
Superior] é a que permite o acesso aos fiéis leigos, em maioria iletrados, e assim, os que não tiveram acesso direto a bíblia. Seus conhecimentos sobre as escrituras estão baseados em interpretações de
deve banir de seu vocabulário a expressão demasiado frequente de ‘leitura das imagens’. É o percurso diacrônico de um texto escrito ou oral que permite apreender o sentido deste. Ao contrário, o sentido de uma imagem é dado na sincronia de um espaço que é preciso apreender na sua estrutura, na disposição das figuras sobre sua ‘superfície de inscrição’, nas relações ao mesmo tempo formais e simbólicas que elas mantém entre si.” (SCHMITT, p.595, 2002).
Considerando essas relações foram escolhidas todas as duas imagens que representam Cristo crucificado que existem na Igreja Superior, elas se encontram no mesmo ambiente. Cada uma em um braço do transepto. E “conversam” entre si, ao apresentarem uma sequência narrativa. Tratam-se de dois afrescos realizados por Cimabue no século XIII. I. Igreja Inferior
outros, dos clérigos, e das imagens que ilustram
algumas
passagens.
Essas
imagens, estariam articuladas aos textos que constam na Bíblia, por exemplo, a imagem de crucificação, abordada nesse trabalho, é um dos temas chaves dentro dessas representações, já que é um tema reconhecido Evangelho,
pela
maioria
dentro
do
de acordo com SCHMITT
(2002) o texto estaria implícito, mas não por isso deve ser lida como tal. “a imagem, mesmo quando participa de um texto, nunca é um texto a ‘ser lido’ e o historiador
Imagem I – Giotto (1320). Crucificação. Basílica de São Francisco, Assis.
673
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
A imagem principal desse estudo foi
Vale ressaltar que a cruz em que Cristo se
produzida por Giotto, provavelmente em
encontra é representada na forma da letra
1320, está localizada na Basílica de São
“Tau”, em homenagem a São Francisco
Francisco, em Assis, na Igreja Inferior,
que por achar a letra semelhante à cruz
espaço destinado para os frades, o que se
tinha uma afinidade pela letra. Pensando
contrapõe à Igreja Superior destinada aos
as questões básicas Giotto teria produzido
leigos, de forma que a imagem assume um
essa obra para reforçar a devoção dos
caráter
sua
franciscanos e fortalecer a ordem dos
localização, conforme os estudos de J.
frades menores perante os peregrinos que
Baschet, “a imagem-objeto na Idade Média
fossem
só possui valor pelo seu caráter localizado.
Francisco, na cripta em que se encontra
[...] objeto imaginado, cujo funcionamento
seu túmulo.
diferenciado
devido
à
à
põe em jogo interferências entre visão
Basílica
II.
destinada
a
São
Igreja Superior
corporal e visão espiritual” (BASCHET,
Essa
2006, p.522).
reafirmada após ser comparada com outras
A Basílica de São Francisco é o principal
duas obras, também com o tema de
espaço
crucificação, do pintor florentino Cimabue
da
iconografia
franciscana,
análise
da
obra
de
foi
portanto, pode-se deduzir que a obra de
(1240-1320),
Giotto adquire função de legitimação dessa
entre os anos de 1277 e 1280.
ordem dos frades menores, permeada pela
Estão localizadas na Basílica de São
espiritualidade, e não uma função didática
Francisco, em Assis, mas situadas em
como poderia exercer se localizada na
outro
Igreja Superior. Um fator que reforça a
Superior,
intenção de legitimação da Ordem e,
transepto, sendo as últimas obras antes da
portanto, a valorização de São Francisco,
entrada para a nave. Nesses dois afrescos
está no fato de justamente esta obra de
São Francisco é representado ajoelhado e
Giotto,
encostado
dentre
outras
pesquisadas,
local.
provavelmente
Giotto
Se
cada
aos
encontram uma
pés
a
da
produzidas
na
um
cruz,
Igreja
lado
o
do
que
representar São Francisco, Santo Antonio e
comparada a obra de Giotto demonstra a
outros franciscanos como se estivessem
consolidação
da
intencionalidade
presentes na crucificação.
674
de
Raquel de Medeiros Deliberador
legitimação da Ordem também para os leigos.
Imagem III - Cimabue (1277-1280), Crucificação. Imagem II - Cimabue (1277-1280), Crucificação. Basílica de São Francisco, Assis.
Diferente da obra de Giotto - que é voltada para os clérigos, mais “próximos” a São Francisco - nas duas imagens de Cimabue a cruz não é representada no formato da letra “Tau” mas em forma tradicional. Não
há
membros
a da
representação Ordem
além
de de
outros São
Francisco, sendo ele quem se encontra o mais próximo de Jesus, o único ajoelhado a seus pés e o de aparência mais serena e tranquila. Na primeira obra de Cimabue as expressões dramáticas e a tragicidade são reforçadas pelas cores.
Basílica de São Francisco, Assis
Em contrapartida, o segundo afresco (a Imagem III acima), localizado no transepto norte, encontra-se desbotado e representa o momento logo após a morte de Cristo, no qual percebe-se a figura da Virgem Maria em desmaio, os que estavam em volta estão mais afastados, exceto os soldados que estão mais próximos e com as lanças em punho apontadas para o corpo de Jesus crucificado, em relação à primeira imagem, os que se mantém em posições mais semelhantes
são os
anjos que
sobrevoam em volta de Jesus e São Francisco. Essa segunda imagem, se assemelha a de Giotto,
ao
representar
Virgem
Maria
desmaiada, porém de maneira diferentes, na de Giotto a Virgem está quase deitada, já desmaiada e na de Cimabue ainda está de pé, desmaiando. São Francisco também 675
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
está ajoelhado nas três imagens, mas
imagens ao longo da Idade Média são
nessas duas últimas está mais encurvado
fundamentais
encostando na madeira da cruz abaixo dos
deste
pés de Jesus.
considerar “quem realizou” a imagem, “para
Os dois afrescos de Cimabue são as duas
quem”, e com “qual finalidade” influencia
únicas representações de Cristo crucificado
em seus efeitos e em outros valores e
na Igreja Superior, enquanto na Inferior
funções
existem cinco, sendo duas de madeira.
apresentar em diferentes contextos e/ou
Considerando o caráter localizado e o
diferentes métodos de análise.
conceito de imagem-objeto de J. Baschet,
Nesse caso, pensar que Giotto incluiu os
devemos
notar
que
de
franciscanos como personagens presentes
Cimabue
estão
expostas
mesmo
no momento da crucificação de Cristo em
transepto,
uma
as
seguida
imagens no
que
desenvolvimento
Percebe-se
essa
imagem
que
ao
poderia
uma imagem realizada para um local de
apresentando uma sequência narrativa, o
devoção e peregrinação a São Francisco, e
que demonstra que essas imagens de
próximo ao seu túmulo, possibilita uma
crucificação para os leigos se enquadra
dedução,
numa
seja,
nitidamente há a intenção de valorizar e
representa as passagens bíblicas em forma
legitimar a Ordem dos Frades Menores, e
de imagens.
então, elevar a figura de São Francisco,
didática,
outra,
estudo.
o
e
característica
da
para
ou
quase
evidente,
de
que
Considerações Finais
assumindo um caráter mais espiritualizado
A partir da análise de imagens com o tema
e voltado para os clérigos. E que, ao
recorrente em seu contexto, a crucificação,
contrário, Cimabue realiza duas obras que
feitas por dois importantes artistas e
possuem, como uma de suas funções a
localizada na Basílica de São Francisco,
didática, conforme Baschet (1996) como a
em Assis, pode-se perceber que as noções
“Bíblia dos iletrados” para os fiéis leigos.
de imagem-objeto de J. Baschet, e os
Nota-se também que ambos, os três
estudos
afrescos, pretendem legitimar e elevar a
que
acompanham
o
desenvolvimento e ressignificância das
figura de São Francisco.
676
Raquel de Medeiros Deliberador
Referências: BASCHET, Jérôme. Introdução: a imagem-objeto. In: SCHMITT, Jean-Claude et BASCHET, Jérôme. L`image. Fonctions et usages dans l`Occidente médiéval. Paris: Le Léopard d`Or, 1996. P. 7-26 (tradução: Maria Cristina C. L. Pereira). ________ A civilização feudal: do ano 1000 à colonização da América / Jérôme Baschet; tradução Marcelo Rede; prefácio Jacques Le Goff. – São Paulo: Globo, 2006. pp. 17-33, 481550. GIANFRANC, Malafarina de. Assise, La Basilique Saint-François. Seuil, 2011. Imagem I. Disponível em: <http://www.wga.hu/art/g/giotto/assisi/lower/ceiling/09christ.jpg> Acesso: 01/09/2013. Imagem II. Disponível em: <http://cmontagne.files.wordpress.com/2011/09/cimabue-assisicrucifixion.jpg> Acesso: 22/08/2014 Imagem III. Disponível em: <http://www.epdlp.com/fotos/cimabue1.jpg> Acesso: 22/08/2014 SCHMITT, Jean-Claude. Imagens. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário
temático do ocidente medieval. São Paulo: EDUSC, 2002. 1v. pp. 591-607. PELEGRINELLI, André L. Marcondes. Entre o sofrimento e a salvação – as dores de Maria nas imagens de crucificação de Giotto. pp. 76 – 87. In: Anais VI Seminário de Pesquisa do
PPGHS – XIII Semana de História – I Encontro das Especializações em História da Universidade Estadual de Londrina. 2012.
677
ANÁLISE SOBRE A IDEIA DE BOM GOVERNANTE EM MARCO AURÉLIO E O ESTOICISMO COMO INFLUÊNCIA NO CONTEXTO POLÍTICO ROMANO DO IMPERADOR Stéfani de Almeida Onesko 1
Resumo: O presente trabalho aborda a ideia de bom governante presente no Imperador Marco Aurélio (121-181 d.C), nosso objeto de estudo, conhecido como o imperador-filósofo que adotou como fonte a doutrina estoica e seus princípios, influenciando sua vida como um todo. Enfocamos assim, a relação entre a conduta imperial e a perspectiva filosófica estoica para compreender em que medida as ações políticas do governante repercutem os ideais morais expressos pelo estoicismo. Análise das fontes à luz da historiografia voltada para o nosso objeto de estudo no percurso de sua vida política, privilegiando também o tema do estoicismo, sobretudo no século II d.C. em Roma, com a realização de fichas de leitura e resenhas, leitura de diversas obras, inclusive de outros representantes da filosofia estoica como, por exemplo, Sêneca. Logramos com a pesquisa a influência que o estoicismo estabeleceu na vida política de Marco Aurélio, os princípios e valores morais que constituíram em tomadas de atitude de ordem moral e prática. Práticas estas, que demonstraram o quão significativo tendem a ser nossas influências exteriores, ainda mais quando temos em jogo, como no caso de Marco Aurélio, uma filosofia de vida. Com a nossa pesquisa poderemos explicar melhor a ideia de bom governante segundo a perspectiva estóica.
Palavras-chave:Marco Aurélio; Estoicismo; Política.
1UEM
(Universidade Estadual de Maringá)
678
Stéfani de Almeida Onesko Neste trabalho apresentaremos os
ficando até 180, ano de sua morte. Sua
resultados adquiridos em um ano de
vida é marcada por dois momentos, do
pesquisa, decorrente de um projeto de
nascimento-
iniciação científica (PIC-UEM 2013/2014)
metrópole imperial-,
que ainda se encontra em andamento,
acampamento
sobre a ideia de bom governante presente
confrontos (GUAL, 2005, p. 7). Marco
no Imperador Marco Aurélio e a influência
Aurélio fora o último imperador do que os
do estoicismo no contexto político do
historiadores
imperador. Assim sendo destacaremos no
Idade de Ouro do Império Romano.
eu
uma militar
acomodação
na
e da
morte- um
dos
turbulentos
acostumaram
chamar
de
trabalho a seguir, um pouco da biografia de
Em 161 d.C, Marco Aurélio assume
nosso objeto de estudo, assim como as
o trono após a morte de seu pai, teria 40
influências que o atingiram. Analisaremos
anos de idade, há algum tempo já havia
ainda, as fontes (Meditações e Epístolas
ocupado muitos cargos no Império. Como
Morais à Lucílio) que atestam os modos de
seu pai, nunca lutou pelo posto mais alto
pensar de Marco Aurélio, e em seguida de
de Roma, no entanto, com a experiência
Sêneca, que será crucial para entendermos
imperial
os princípios da filosofia estoica, até porque
desempenhou papeis importantes, assumiu
antecede o Imperador como um grande
seu papel como sucessor do trono.
nome da escola filosófica pertinente. Por
nos
Quando
cargos
que
escreveu
o
mesmo
Meditações,
fim, observaremos algumas das ações
Marco Aurélio deixou de forma clara as
políticas de Marco Aurélio no papel de
influências que contraiu durante sua vida
Imperador de Roma e como elas se
pré-imperador, a partir dos entes queridos
concentram na perspectiva estoica.
com os quais conviveu e os valores
Marco Aurélio e suas influências
retirados dos mesmos. Os entes queridos,
Marco Aurélio, mais conhecido como Imperador
Marco
em
Marco Aurélio necessitava para efetivar sua
121.d.C. Filho de Ânio Vero e Domícia
conduta posteriormente e que acabou
Lucila, foi criado por seu avô, já que seu
entrelaçando-se com os preceitos estóicos.
pai faleceu logo após seu nascimento. Fora
Resumidamente, as principais virtudes,
adotado por Antônio Pio, imperador que o
segundo os estóicos, captadas de seu
antecedeu
com
círculo familiaradvém da descrição e honra
Faustina, filha de Antonino, e após a morte
de seu pai, o caráter e a serenidade de seu
de seu pai adotivo, sucedeu ao trono
avô, a generosidade e piedade de sua
em
Aurélio,
Roma,
nasceu
familiares e amigos, deixaram o legado que
casou-se
679
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
mãe, a educação intelectual herdada de
com
seu bisavô.(AURÉLIO, 2005, p.47-58)
favorável aos ensinamentos da doutrina
que
ele
acabasse
sendo
muito
O imperador fora brindando com
estoica, pelos valores que contemplou em
bons professores particulares de Roma.
entes familiares e amigos e que propôs a si
Com os mesmos, além das lições de
mesmo, e que por fim acabaram se
gramática, retórica e filosofia, aprendeu
encaixando na filosofia adotada por ele.
valores de ordem moral, principalmente a
Foram a partir de toda influência externa e
bondade e a firmeza ética. Entre os
com sua personalidade já desenvolvida que
professores
o
de
Aurélio,
dois
se
mesmo
marcou
nome
na
doutrina
destacaram, Frontão que desejava fazer de
estoica, principalmente pelo papel que
seu aluno um grande orador, dando muita
desempenhou na sociedade. O que marcou
atenção
aluno.
profundamente o mesmo para sempre no
mais
rol dos adeptos da filosofia estoica fora
sucesso para com seu aluno, já que
Meditações, escritos que Marco Aurélio
apresentou a filosofia para Marco Aurélio,
desenvolveu durante expedições militares,
um
já no comando imperial.
Enquanto
ao
lado
isso,
professor
retórico
Rústico
de
do
obteve
filosofia
adepto
da
doutrina estoica.
A reflexão estóica em Meditações
Mas de todas suas influências, seu
Marco Aurélio nos deixou como
pai adotivo (Antonio Pio) aparece como,
herança de seu pensamento Meditações,
talvez, a maior delas. T. Aurélio Antonino,
uma obra escrita no final de sua vida, em
fora tio político, pai adotivo e sogro de
que é possível observar os princípios que o
Marco Aurélio. O mesmo teve um papel
mesmo acreditava serem plausíveis. A obra
fundamental na vida do filho adotivo, tanto
foi escrita em meio à um turbilhão de
em sua conduta imperial quanto na sua
acontecimentos, de batalhas e disputas,
postura como indivíduo. A sua fama se
que Marco Aurélio se ateve em seus 19
circunscrevia à um imperador de caráter
anos de mandato.
humanitário e sensível. Deu-se a entender
A grande essência da obra de Marco
que T.Aurélio Antonino , segundo Gual
Aurélio é a natureza moral, os valores os
(2005, p. 14), tinha uma certa simpatia
princípios que endossam a filosofia, a obra
pelos preceitos da filosofia que seu filho
não é de natureza literária. Foi uma
depois adotaria, o estoicismo.
retomada de consciência, uma verdadeira
As influências que Marco Aurélio captou durante o seu pré-império fizeram
meditação humana sobre a vida e também sobre a morte.
680
Stéfani de Almeida Onesko Em seus escritos podemos observar
A injustiça e a calúnia agiriam de
algumas passagens em que o mesmo
forma muito semelhantes, pelo fato de
procede este exame de consciência e
agirem impiedosamente, até mesmo contra
reflexão sobre as ações humanas, estando
os deuses. Já que é a verdade que os
sempre baseado na doutrina que adotou
estoicos buscam a todo tempo e em todas
para servir-lhe de fonte. Observaremos a
as coisas, a mentira e a injustiça passam a
obra com o intuito de entender inclusive a
ser dois elementos que deve se evitar. A
teoria estóica, base central para nosso
injustiça se comete não só quando se faz
trabalho.
determinada coisa, mas também, quando
Marco Aurélio (2005, p. 60) chamava atenção em seus escritos pela necessidade de
concentrar-se
na
Providência,
nos
se deixa de fazer alguma. A Providência cuidaria das coisas humanas,
asseguraria
ao
homem
de
esclarecimentos e preceitos da natureza,
virtudes muitas felicidades. O homem
pois a única chance para isso, seria em
dotado de virtudes e de razão não teria
vida, não havendo outra. Estes preceitos
medo da morte, pois é da natureza este
incluiriam a responsabilidade das ações.
acontecimento, era preciso encará-lo com
Estas
com
sabedoria e sem temores. Marco Aurélio
seriedade, com sentimento, com autonomia
resume muito bem a morte como uma
e justiça, abandonando a hipocrisia, a
passagem, quando menciona esta frase
aversão
o
“Embarcaste fizeste a viajem, chegaste ao
inconformismo com o destino imposto. As
porto; desembarca!” (AURÉLIO, 2005, p.
pessoas deveriam se apressar na busca
71). E continua refletir em seus escritos:
deveriam
à
ser
razão,
o
realizadas
egoísmo
e
pelo conhecimento e pela reflexão, pois a morte
está
sempre
muito
próxima,
oferecendo assim, um risco quanto ao tempo que ainda se tem para habilitar-se conforme a natureza e no respeito aos
[...] o que é morte e o fato de que, se a olharmos em si mesma e pela força de abstração da reflexão decompusermos em suas partes todas as coisas que se apresentam à imaginação, nela veremos que é apenas uma operação da natureza, e quem se atemoriza com uma operação da natureza é uma criança. (AURÉLIO,
deuses. A reflexão para com os deuses era
2005, p. 63-64)
não no sentido de pedir algo material ou
Em certa medida, essa anulação do
em benefício de si próprio, mas no sentido
sentimento de morte, do temor e medo à
da filosofia, a fim de adquirir força para
ela, pode ser justificado, segundo Gual
evitar o sentimento dos vícios, a dor, o
(2005, p. 11), pelas várias mortes de entes
prazer, enfim todos eles.
queridos que Marco Aurélio presenciou em
681
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
vida, a de seu pai, de sua esposa, de seu
a grande meta. Pois, “tudo que acontece a
irmão e de alguns filhos, além das diversas
cada um é útil ao todo [...] tudo que é útil a
guerras em que participou e se deparou
um homem é útil também aos outros
com milhares de mortes.
homens”.
A ideia da morte, em sua obra,
(AURÉLIO,
Observamos
então,
2005, o
p.
125)
sentido
de
constata-se de forma evidente, até mesmo
comunidade presente na obra Meditações,
como se o autor estivesse pensando na
que vai dar base para entender boa parte
sua mesmo, sendo assim, parecia estar
das ações de Marco Aurélio. Para este
atento e sempre em guarda para com suas
último, pensar em si é o mesmo que pensar
ações.
na comunidade, e o mesmo tentou a partir A alma deveria ser cuidada evitando
das
virtudes
os vícios, os desejos e as paixões,
proporcionou,
caminhando sempre de acordo com os
comunitário.
que
a
atender
filosofia este
lhe
espírito
deuses. A alma não iria de encontro com a
A obra Meditações do Imperador
natureza quando o indivíduo subestimasse
romano Marco Aurélio é um berço de
a razão. A falta de virtudes perturbaria a
princípios estoicos, que nos fazem a partir
alma,
sendo
daí refletir sobre as ações políticas do
cometidos quando algum ato não fosse
Imperador. Mas antes disso, podemos nos
refletido e nem analisado. Para que se
aprofundar mais efetivamente por estes
evitassem os vícios, era necessário se ater
princípios que serão resgatados na obra de
à filosofia estoica, esta sim, possibilitaria ao
Lúcio Aneu Sêneca, Epístolas Morais à
homem viver de acordo com a razão e com
Lucílio, nos auxiliando a entender o
a natureza.
propósito da filosofia estoica de forma a
e
os
erros
acabavam
[...] E, para dizer tudo em uma palavra, tudo que diz respeito ao corpo é como um rio, sempre fluindo; o que pertence à alma é um sonho e
garantir um melhor entendimento sobre a filosofia adotada por Marco Aurélio, nosso
névoa; a vida é uma luta, um exílio em terra
objeto de estudo. Lembrando que Marco
estranha; o renome é esquecimento. Que é,
Aurélio seguiu os passos de Lúcio Aneu
então, que pode guiar-nos? Uma só coisa, apenas uma: a filosofia. (AURÉLIO, 2005, p. 66)
Para o imperador, as coisas que fossem úteis e positivas à Roma, seriam refletidas no mundo, e o Império seria beneficiado. Para o imperador, como para os homens, servir a Pátria e a cidade, seria
Sêneca, e foi seu sucessor para seguir os ditames da doutrina estoica. Os princípios estoicos de acordo com as Epístolas Morais à Lucílio Na obra Epístolas Morais à Lucílio, o objetivo a ser alcançado por Sêneca em
682
Stéfani de Almeida Onesko seus escritos foi direcionar seu amigo
razão e a natureza. Esses três elementos
Lucílio aos caminhos da filosofia estóica e
estariam sempre em harmonia com a
princípios que a mesma abarcava. Mesmo
filosofia
sendo direcionado à um amigo íntimo, a
entrelaçariam.
estoica,
os
mesmos
se
obra está recheada dos princípios morais
Um dos pontos mais marcantes na
da filosofia que nos ajudam a pensar mais
obra se refere ao valor das virtudes
sobre esta doutrina. A moralidade é a
realizadas
essência da obra, contendo exemplos de
independentemente de classe social, de
pessoas
condena
nação, de riqueza e de laços familiares.
determinadas ações ou as que são usadas
Tanto mais valia um escravo incumbido de
como
virtudes e que as praticasse, do que um
diversas, exemplos
a de
quem
admiração
que
por
qualquer
poderiam servir de exemplo. Sêneca, assim
homem
importante
que
como Marco Aurélio, não deram tanto valor
submetesse aos vícios.
indivíduo,
apenas
se
à retórica, mas ao que a terceira geração
A filosofia que prepara o homem
da filosofia estoica julgou e estudou com
para a morte, de acordo com Sêneca
maior intensidade, e, portanto, acabaram
(1986), deve estar de acordo com a vida
por dar mais importância: a moral.
que o mesmo levou enquanto vivo. Se a
Existiam duas naturezas humanas
vida fosse praticada de modo imperfeito,
que poderiam ser seguidas: a inferior, em
pelo menos no momento decisivo, o da
que o homem seguiria os instintos da
morte, o homem deveria procurar viver bem
natureza e não a natureza em si. Nestes
e de acordo com os princípios estoicistas.
instintos se refletem as paixões, dos quais
A filosofia deveria ser vivida, praticada, e
os
não
animais,
que
agem
por
instinto,
apenas
acumulada
como
possuem. Ou, uma superior em que o
conhecimento desprovido de valor moral. A
homem não se deixaria levar por seus
filosofia torna-se para o homem uma
instintos, mas sim e unicamente pela razão,
fortaleza
assemelhando-se aos deuses. A razão na
momentos da vida, seria o grande porto
filosofia estoica, segundo Sêneca (1986), é
seguro para que o homem se preparasse
que deveria imperar sobre as nossas
bem para sua morte. O objetivo da filosofia
vontades naturais e senão eliminá-las, pelo
consistiria em dar forma e estrutura à
menos controlá-las.
nossa alma, em ensinar-nos um rumo na
que
auxilia
nos
diversos
Sêneca constrói três pilares para
vida, em orientar os nossos atos, em
uma vida conforme à filosofia: a virtude, a
apontar-nos o que devemos fazer ou pôr de
683
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
lado, em sentar-se ao leme e fixar a rota de
política do imperador-filósofo, que mais nos
quem flutua à deriva entre escolhos.
interessa, e o ideal de bom governante
Sêneca
defende,
como
Marco
entrelaçado com a doutrina estoica.
Aurélio defenderá posteriormente, uma
Marco Aurélio: sua conduta política em
sociedade humano-divina que abarca o
meio ao estoicismo
mundo inteiro e se constitui em pátria
A partir dos Imperadores Trajano,
comum e casa de todos. Como membros
Adriano
desta sociedade baseada na filosofia, os
acompanhamos um resgate da filosofia,
homens são concidadãos entre si, e o
observando
espírito de dever à comunidade como um
Estoicismo,
todo será muito forte na mesma.
pessoa do Imperador Marco Aurélio. O
Tudo isto que inclui as coisas divinas e as humanas é unidade; somos membros de um grande corpo. A natureza nos tem constituído
e
Antonino com que
no
maior fora
século
II,
ênfase
o
aprofundado
na
estoicismo representado pela total adesão de Marco Aurélio ofertou um horizonte no
mesmos
que diz respeito ao modo de lidar com a
elementos e para o mesmo fim; ela nos fundiu o
vida, servindo de fonte para o imperador-
parentes
ao
engendrarmos
os
amor mútuo e nos fez sociais. Ela estabeleceu a equidade e a justiça. Daí se deduz as admiráveis
filósofo, como um meio de reflexão sob sua
consequências de ordem moral e humana: Por
conduta. O momento que possibilitou essa
seu decreto (a natureza) é mais desgraça danar
análise, essa meditação por parte de Marco
que ser danado; por mando seu as mãos tem de estar dispostas a ajudar. [...] Temos as coisas em
Aurélio, sobre a vida, ocorreu nas suas
comum, pois temos nascido para a comunidade.
expedições militares de acordo com Jean
(SÊNECA, 1986, p.208-209)
Brun (1986,p. 22-23).
A busca pela excelência e pela virtude é evidente em quem adotava a filosofia estóica, tanto em Marco Aurélio quanto em Sêneca, a busca intensa pela perfeição moral era o objetivo a ser traçado. Diante
desta
obra
conseguimos
observar a importância da mesma para observarmos
os
aspectos
teóricos
do
estoicismo e, na outra, as reflexões de Marco Aurélio sobre a sua vida. Com isso já em mente, podemos entender a conduta
Marco Aurélio como imperador, fora criticado pelas pessoas que o mesmo incumbia para ocupar posições relevantes, no exército e na administração imperial. Seu irmão e outros personagens são retratados
pela
exemplos
claros
historiografia, de
como
futilidade
em
comparação com o Imperador. É a partir daí que os conceitos do estoicismo ajudamnos a entender até que ponto os mesmos influenciaram na conduta imperial de Marco Aurélio.
684
Stéfani de Almeida Onesko A História Augusta não deixa de
de excelência, unindo sua postura filosófica
caracterizar como odiosas as figuras de
e
sua
Lúcio Vero, Avídio Cássio, Cómodo e
assassinado a mando do exército contra a
Faustina, que, postas em comparação com
vontade do Imperador.
como
Avídio
fora
este não alegrou ou exultou-se, mas entristeceu-
que diz respeito ao caráter do imperador, considerados
política.
E quando a sua cabeça foi trazida a Antonino,
Aurélio, retratam-se totalmente inversas no eram
posição
se por não ter tido a oportunidade de lhe mostrar
extremistas,
misericórdia, pois disse que tinha a intenção de mantê-lo vivo para que pudesse censurá-lo com
sádicos e monstros, servindo de antítese à
a bondade que lhe tinha mostrado no passado, e
imagem de um príncipe-filósofo. (ALVES,
então poupar-lhe a vida. (SHA, Avídio Cassio,
2010, p.68)
1991 p. 248)
Apesar de ser o oposto do irmão,
A bondade e piedade estão inseridas
Marco Aurélio sempre mostrou para com
nas práticas de Marco Aurélio e também
seu
nos princípios estóicos. Para os retóricos
ente
familiar
afeição
e
respeito.
Faustina, mulher de Marco Aurélio, era
gregos,
retratada como uma mulher infiel ao
posição de intelectual grego e de imperador
marido, desonrosa para com o mesmo.
Romano, ao fazer a conciliação do filósofo
Porém,
de
e governante. Sempre tentou agir de
infidelidade, Marco Aurélio sempre se
maneira razoável para com todos, tentando
manteve tranquilo e imaculado com tais
conter
boatos, não só os de sua mulher, mas com
maliciosas e assim direcioná-los ao bem,
todos os outros. Marco Aurélio procurou
sempre
sempre defender o irmão, e ignorar as
recompensas e na sua capacidade de
infidelidades de sua mulher, reforçando a
perdoar, sempre na tentativa de transmitir a
tolerância e sabedoria que o estoicismo o
bondade
ensinou.
Aurélio, 1991, p. 163)
apesar
destes
rumores
Marco
os
Aurélio
homens
se
em
mostrando
aos
homens.
assume
uma
suas
ações
generoso
(SHA,
nas
Marco
Um dos episódios bem marcantes da
Marco Aurélio sempre teve muito
vida de Marco Aurélio, no qual é evidente a
respeito para com o Senado, mas sempre
benevolência do mesmo diante do aparato
chamava a atenção que para um Senado
espiritual que possuía, pode ser verificado
ter
na rebelião de Avídio Cássio contra Roma.
oportunidade de oferecer aos acusados de
O imperador não se alterou e nem mostrou
determinados atos ilícitos, serem ouvidos
rancor para com Avídio Cássio. Esse
por um juiz que representasse o povo.
episódio serviu para mostrar o seu caráter
(SHA, Marco Aurélio, p. 158-161) “Aurélio
honra
fazia-se
necessário
dar
685
a
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
segue o modelo de governação do Império
uma reflexão, agindo ao acaso e se
como uma aceitação do dever público,
angustiando em muitas situações. No
tendo
que
proteger
concidadãos”(BÉRANGER,
os
seus
homem estoico, haveria um esforço por
1953,
apud
parte do indivíduo a fim de agir com justiça
ALVES, 2010 p.75)
à
A conduta baseada no estoicismo e
serviço
da
dependem
do
confronto
dependem
do
que
Marco
Aurélio
aceitando
passivamente os acontecimentos que não
o orgulho no seio imperial juntam-se ao vitorioso
comunidade, ser
humano
destino),
(no
caso
refletindo
e
obteve sobre os bárbaros e à forma
analisando na busca pela verdade, pela
excepcional como lidou com situações
razão. Marco Aurélio em seus escritos
delicadas. O imperador sempre buscou, de
oportuniza então aos homens, a busca pelo
acordo com o estoicismo, ser firme em
modo mais correto de se viver.
suas atitudes e ordenações. Não só no que diz respeito à uma posição firme, mas em todos os aspectos baseados no estoicismo, na sua postura para com os diversos momentos em que viveu e lidou com os mesmos.
“Em
suma,
Marco
Aurélio
Tenha-se sempre em consideração que o imperador-filósofo nunca teve a intenção de realizar um tratado moral, mas, ao insistir na ideia que o cidadão de uma grande cidade tem ao seu dispor todas as formas naturais da Providência, acaba por transmitir um modelo de «bom homem» e «bom governante». (ALVES, 2010, p. 97)
que
Para Marco Aurélio e para Sêneca,
permanece digno e nobre diante da morte
como fora visto, o homem tem um fim
de familiares, desastres públicos, enganos
social, pois, nasce numa comunidade e
e hipocrisias de cada personagem que
com ela se habilita como um ser racional:
passa por si.” (GUAL, 1977, p. 7-25.)
“Cada ser deve fazer o que está em
assume-se
como
um
guerreiro
Quando buscamos em Marco Aurélio
relação
com
a
sua
constituição.
[…]
o homem ideal, verificamos a busca do
Portanto, o caráter que predomina na
“bom político”, um homem inserido no
constituição do homem é a sociabilidade.”
social, no político, no moral, enfim, nos
(AURÉLIO, 2005, p. 139-140)
diferentes papeis dentro de uma sociedade.
Novamente podemos observar o
Resgatamos, a partir daí, este ideal que o
sentido de comunidade que Marco Aurélio
mesmo se apropriou embasando-se nos
quer inculcar em suas palavras. Já que a
preceitos
a
lei era comum à todos, todos se tornavam
filosofia deveria ser inerente ao homem. No
concidadãos, a unidade só se torna efetiva
homem comum observamos a ação sem
quando a comunidade tem as mesmas
estóicos.
Primeiramente
686
Stéfani de Almeida Onesko predisposições. O ser racional deve se
De acordo com a História Augusta
comprometer à obedecer à lei e ao Estado
(1991),
Marco
Aurélio
- maior, nesse caso o Império, para que
propostas
haja a harmonia entre toda a sociedade. A
necessitados. “Criou várias sábias medidas
filosofia de Marco Aurélio torna o homem
para o apoio do Estado aos pobres […]”
um ser totalmente social, que não visa para
(SHA, Marco Aurélio, 1991, p.161-163) e
se satisfazer a si próprio, mas ao conjunto,
promulgou leis que geriam o dinheiro e
de acordo com o imperador,a dignidade
vendas públicas.”
está na competência de interagir.
1991
para
p.
desenvolveu
ajudar
(SHA,
156-157).
os
mais
Marco Aurélio,
Além
disso,
os
Não há dúvida que Marco Aurélio
escravos, as crianças e as mulheres não
procurava na medida do possível se
ficaram fora do âmbito de humanidade do
encaixar na filosofia que o mesmo adotou,
Imperador.
buscando
os
preceitos
estoicos
nas
realizações das tarefas. Pretendia justiça e a atividade sócio-política. Por mais humano que fosse, não evitou as guerras, pois
Criou instituições de apoio à alimentação infantil como os PueriAurelianiouVerani, e
PuellaeFaustinianae,
as
supervisão
ao
confiando
a
praefectusalimentorum
(consular ou pretoriano), que geria também
entendia que precisava defender o seu
o
povo acima de tudo, pois não podia fugir às
crianças. Os filhos começaram a ter direito à
suas responsabilidades. Segundo Brunt (1974), sua conduta política afasta-se da tirania, já que o mesmo procura praticar
dinheiro
público
referente
a
estas
herança da falecida mãe através do ab intestato
no senatusconsultumOrfitianum,
mas
importância
a
desta
medida
é
impossível de determinar. Na historiografia
uma vida simples e ascética, contrária ao
em geral, existem cerca de 60 exemplos
luxo e prazeres.
sobre a legalidade dos escravos e libertos.
Marco
Aurélio
tinha
repulsa
à
violência, por exemplo, nas batalhas entre os gladiadores, obrigou-os a lutar com armas embotadas para que os mesmos tivessem chance de viver, tentou o máximo possível, limitar os conflitos sangrentos. Segundo, Pimentel (2002, apud ALVES 2010, p. 106) Marco Aurélio, lutou contra os exageros
cometidos
e
os
despendidos nestes jogos públicos.
gastos
(ALVES, 2010, p. 109)
SegundoNoyen
(1955),
Marco
Aurélio fora um protótipo político ideal porque não permaneceu só na teoria da filosofia, mas colocou seus princípios em prática. Alguns princípios que abarcaram Marco Aurélio durante sua passagem política se limitam ao amor e apreço pela verdade e pela justiça; a concepção de uma constituição equilibrada, e de uma
687
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
monarquia que considerava a liberdade do
Observamos primeiramente, a história de
indivíduo. (NOYEN, 1955, p. 372-383)
Marco Aurélio e as influências que o
De acordo com PiereHadot (1992), o
mesmo sofreu durante sua vida porpessoas
imperador mantém-se simples, não foca
ligadas à ele, além das fontes que nos
profundamente os dogmas estóicos, mas
baseiam
cria um modelo de vida, um modelo político
Meditações de Marco Aurélio e Epístolas
onde se idealiza uma sociedade perfeita.
Morais à Lucílio de Sêneca, e por fim o
Conclusão
para
tais
entendimentos,
papel político desempenhado por nosso
Portanto, analisamos um pouco do
objeto de estudo, tendo sempre em mente
conjunto de fatores que constroem nosso
a influência da doutrina estoica nas ações
objeto de estudo na concepção de bom
políticas e morais.
governante a partir dos princípios estoicos.
Referências: ALVES, Sérgio Lourosa. Marco Aurélio e Cómodo, a luz e a sombra: a construção
historiográfica da dinastia Antonina.Lisboa: Universidade de Lisboa, 2010. AURÉLIO, Marco. Meditaciones.Madrid: Editorial Gredos, 2005.225 p. BÉRANGER, J. Recherches sur l’Aspect Ideéologique du Principat. Bâle: 1953. BIRLEY, Anthony Richard.Marcus Aurelius, a Biography.New York: Editora:Barnes & Nobles Books/Routledge, 1999. BRUN, Jean. O Estoicismo. Lisboa: Biblioteca Básica de Filosofia,Edições 70. [1986?]. 116 p. BRUNT, P. A.Marcus Aurelius in His Meditations.Oxford: Society for the Promotion of Roman Studies, 1974. GUAL, Carlos García. Introduccíon de las Meditaciones.Madrid: Editorial Gredos, 1977. HADOT, Piere. La Citadelle Intérieure – Introduction aux Pensées de Marc Aurèle. Paris: EditoraFayard, 1992. NOYEN, P. Marcus Aurelius, The Greatest Practician of Stoicism. Bruxelas: Fondation Universitaire, 1955. PIMENTEL, Maria Cristina. Os Jogos na Roma Antiga. Évora: Universidade de Évora, 2002.
688
Stéfani de Almeida Onesko
ScriptoresHistoriaeAugustae.Trad. David Magie.Cambridge: Harvard University Press, [1991?].493 p. SÊNECA, Lúcio Aneu. Epístolas Morales a Lucilio.Vol I,Madrid: EditorialGredos, 2005. 511 p. SÊNECA, Lúcio Aneu. Epístolas Morales a Lucilio.Vol II,Madrid: EditorialGredos, 2005. 456 p.
689
A CRÔNICA GERAL DE ESPANHA DE 1344: COMO SUPORTE PARA A CONSTRUÇÃO IDEALIZADA DE AFONSO HENRIQUES, REI DE PORTUGAL Willian Brusch 1 Adriana Mocelim (orientadora) Resumo: O reino português surge a partir do processo de emancipação iniciado por Afonso Henriques, na vitória da Batalha de São Mamede em 1128. À frente do Condado ele desempenha um grande papel de busca por apoio político, faz alianças com as autoridades eclesiásticas e nobres. Em 1179 ele é reconhecido como rei Português. Foi objetivo de a presente pesquisa analisar a trajetória do rei Afonso Henriques a partir da Crônica Geral de Espanha de 1344. Através da análise foi possível levantar as virtudes do rei ideal, presentes na descrição. Foi possível assim caracterizar um modelo de “rei ideal” que a obra buscava projetar na realidade do século XIV. O método utilizado nessa pesquisa foi à elaboração do contexto do reinado de Afonso Henriques, a partir de análises de autores de referência para o período. Em seguida foi necessário conhecer o contexto do século XIV, momento de redação da Crônica, assim possibilitando a análise da imagem do rei projetada na obra. Levando em conta sua importante atuação política é que o Conde Pedro Afonso de Barcelos, escrevendo a Crônica Geral da Espanha de 1344, utiliza a descrição da personagem de Afonso Henriques para transmitir às pessoas de seu tempo uma imagem idealizada do monarca, um modelo a ser seguido. São destacadas ao longo do texto virtudes como: a necessidade de ser um bom cristão, ser verdadeiro, praticar a justiça, ser manso, ser nobre, ser piedoso, ser conquistador, ser esforçado, ser leal, além do dever respeito aos fidalgos e seus súditos. Palavras-chave:Afonso Henriques; Crônica de 1344; virtudes.
1PUCPR
690
Willian Brusch MARQUES, 1996, p. 34)
1. Afonso Henriques Portugal nasce à sombra de um bom cavaleiro francês, como cita Veríssimo Serrão (1979), este é D. Henrique.
D.
Raimundo da Borgonha, em 1090 vem para os reinos peninsulares a fim de desposar Urraca única filha legítima de Afonso VI, rei de Leão e Castela. Posteriormente D. Henrique também a mando do duque borgonhês Eudo I, ele se desloca até o reino para casar com D. Teresa filha ilegítima do rei Afonso VI. O Condado Portucalense nasce em grande medida sobre estas relações, pois segundo
Oliveira
Marques
(1996),
Raimundo recebe o condado da Galiza em sua totalidade para o seu governo e proteção, assim atuando com vassalidade a Afonso VI. Então anos mais tarde, mais especificadamente em 1096, talvez por Afonso VI não confiar em D. Raimundo, após seu fracasso em 1094 em Lisboa como aponta Veríssimo Serrão (1979), D. Henrique recebe sobre sua tutela as regiões entre os rios Minho e Douro e ao sul do Douro, graças à demonstração de sua destreza militar,
D.
Henrique
havia
recebido
o
condado em forma de doação, por Afonso VI, em virtude de seu casamento com D. Teresa, mas isso não o desvincula do rei,[...] a doação surgia, porém, garantida pela vassalagem que o marido de D. Teresa devia ao rei leonês e que não lhe custava respeitar na medida em que podia talhar pelas armas a sobrevivência da terra que
lhe
fora
confiada.
(VERÍSSIMO
SERRÃO, 1979, p. 76-77). Com a morte de Raimundo em 1107, e Afonso VI em 1109, o cenário político da península
se
complica,
como
coloca
Oliveira Marques (1996), Urraca herda a coroa de seu pai, mas não o título de imperador, a herdeira se casa com Afonso I de Aragão em 1109, e até o ano de sua morte em 1126 se desenrolam uma série de guerras civis. O Conde D. Henrique morre em 1112, e deixa grande contribuição para independência
posterior
do
Condado
Portucalense perante os outros reinos peninsulares. A partir deste momento D. Teresa desempenha papel de grande
[...] os três territórios fronteiriços do extremo
importância na administração do Condado
ocidental,
Portucalense. Segundo Veríssimo Serrão
que
convinha
colocar
em
mãos
aguerridas e experimentadas, pela sua situação de risco: a Galiza (a norte do Minho), Portugal
(1979) D. Teresa concede forais 2 assim
(entre os rios Minho e Douro) e Coimbra (a sul do Douro).
Raimundo
senhoreou
primeiro
a
totalidade, recebendo Henrique, em 1096, os dois condados mais meridionais. (OLIVEIRA
2
Eram assim designadas as cartas de lei criadoras dos
concelhos. Os direitos e privilégios, de que beneficiariam os habitantes [...] exaravam-se no texto do foral. [...] O
691
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
favorecendo a habitação no condado, e
aponta
também acaba por fazer aliança com
afastamento
galegos visando à redução da influência de
daqueles a quem D. Henrique havia
Urraca sobre estes territórios.
favorecido, já não mais estão nestes
Segundo Mattoso (1997), D. Teresa
Mattoso
(1997),
desta
temos
corte
um
portuguesa,
cargos, o que gera posteriormente um
acaba por ser pressionada, de um lado por
grande
barões portugueses, que desejam manter a
aristocracia que acaba por escolher Afonso
autonomia do Condado Portucalense, e de
Henriques, filho de D. Teresa e D. Henrique
outro
à
para tomar o poder. Em 1128, próximo a
reintegração do condado a Galiza. Por sua
Guimarães se dá o embate entre Afonso
vez os Trava (Nobres Galegos) tomam
Henriques e Fernão Peres de Trava, na
frente às relações com D. Teresa, assim
batalha de São Memede, mas muito além
um '' [...] casamento consolidaria a sua
da vitória de Afonso Henriques, os barões
preponderância na Galiza e resolveria o
portucalenses seriam os responsáveis por
problema da divisão do antigo reino do rei
seu triunfo sobre o Trava e D. Teresa.
Garcia. '' (MATTOSO, 1997, P. 47). Fernão
Refutaram
Peres de Trava acaba por estabelecer
condado por um nobre galego, além da
relações com D. Teresa que desde 1117
possível anexação territorial do condado à
utilizava o titulo de Rainha, nesse sentido:
Galiza como explicita melhor
por
galegos,
que
visam
Desde 1121 que os diplomas oficiais do Condado trazem
a
confirmação
de
um
<<comes
Fernadus>>, ou seja, do galego D. Fernão Peres de Trava, que tão forte papel, não apenas político
mais
também
de
união
íntima,
desempenhou junto de D. Teresa. [...] Não oferece dúvida que o afecto de D. Teresa se traduziu em vários actos que levaram ao domínio senhorial do conde de Trava em terras do Mondego. (VERÍSSIMO SERRÃO, 1979, p. 80)
Em se tratando da relação da nobreza
portucalense
em
1121
como
descontentamento
um
possível
desta
domínio
do
Mattoso
(1997): Quem venceu em São Memede não foi apenas Afonso Henriques, mas em primeiro lugar, os barões
portucalenses,
que
rejeitaram
a
autoridade dos Travas no condado e escolheram o infante para seu chefe. Ao afastarem Fernão Peres, recusavam-se a aceitar a política da alta nobreza galega e do arcebispo de Compostela e proclamavam a inviabilidade de um reino que englobasse a Galiza e Portugal. (MATTOSO, 1977, p. 53)
A batalha de São Memede marca o início do poder de Afonso Henriques sobre
seu principal objetivo seria fixar expressamente as
o condado portucalense, ''mesmo que na
normas reguladoras entre governantes e governados do
política de D. Afonso Henriques não se
concelho. Mas os forais continham numerosas regras a observar em assuntos de natureza privada, oriundas de
vislumbre, [...], a marca da realeza, [...] o
contratos [...].’’(FERREIRA, 1951, p. 82)
692
Willian Brusch pensamento
da
autonomia
define
a
deveria prestar vassalagem a Afonso VII
actuação do herdeiro do conde borgonhês.''
que ‘’ [...] que estava no auge do poderio,
(VERÍSSIMO SERRÃO, 1979, p. 81).
como prova o reconhecimento feito nas
Segundo Mattoso (1997) as relações
Cortes de Leão, a 4 de julho de 1135, do
que Afonso Henriques mantinha com a
título
nobreza
Espanha>>.’’(VERÍSSIMO SERRÃO, 1979,
não
possibilitavam
uma
de
Afonso
VII
de
<<toda
a
autonomia, portanto no ano de 1131, o
p.
infante se estabelece em Coimbra junto ao
reconhecimento
mosteiro de Santa Cruz de Coimbra.
territórios da Península Ibérica, e com o
Temos, portanto uma grande vantagem ao
infante não era diferente. Nesse acordo ''
futuro monarca, um favorecimento perante
Afonso Henriques prometia ao seu senhor
a igreja assim como seu apoio, além de
fidelidade [...], segurança, auxílio militar e
permanecer longe da nobreza nortenha,
conselho. ''(OLIVEIRA MARQUES, 2010, p.
possibilitando um maior controle sobre o
80)
território.
82).
imperador
dos
Possibilitando
necessitava governantes
certa
do dos
calmaria
no
A relação de Afonso Henriques com
norte, Afonso Henriques se volta na luta
seu primo Afonso VII, filho de Raimundo e
contra os muçulmanos, esse era um dos
Urraca, era demasiadamente hostil no
fatores que dava unidade aos reinos
período de 1128 a 1137 como mostra
cristãos, o combate ao ‘’infiel’’. Em 25 de
Oliveira Marques (2010), o infante procura
julho de 1139, comenta Veríssimo Serrão
a expansão do território além da pretensão
(1979), decorre a batalha de Ourique, entre
de autonomia do seu condado perante os
Afonso Henriques e os muçulmanos, no
outros reinos peninsulares, e o título de rei.
entanto não se sabe ao certo quem teria
A
construção
independência
iniciado o ataque. O contingente que o
como mostra Mattoso (1997) se faz através
príncipe português mobilizou, era de alto
de
o
número de guerreiros.Ourique se mostra
desenvolvimento de uma base social forte,
como uma das principais batalhas vencidas
com o apoio de cavaleiros de Coimbra,
por Afonso Henriques, batalha que também
cavaleiros vilãos, comunidades rurais, além
representaria sua afirmação,
medidas
do
da
infante,
como
de segundos filhos de nobres do norte. No ano de 1137 se estabelece a paz de Tui como esclarece Oliveira Marques (2010), neste tratado Afonso Henriques
Afonso Henriques dirigiu um fossado constituído por forças bastantes mais numerosas do que o habitual e que, apesar de ter sido atacado ou de atacar ele próprio um exército considerável, regressou cheio de glória ao território cristão.
693
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo Ourique foi sua primeira grande vitória contra os Mouros. (MATTOSO, 1997, p. 64)
O titulo de rex 3 almejado pelo infante como descreve Ferreira (1951), já era usado por ele antes mesmo do da Batalha de Ourique, em 25 de julho de 1139. As hostilidades com o rei de Leão são retomadas em 1140. Anos mais tarde em 1143 em Zamora se reúnem Afonso Henriques, Afonso VII e o cardeal Guido de Vico, assim se reestabelece a submissão do Infante a Afonso VII, rei de Leão e Castela. O
próximo
passo
de
Afonso
Henriques seria a pretensão de ''obter reconhecimento formal do papa, tanto para o título quanto para o reino. '' (OLIVEIRA MARQUES,
1996,
P.
36).
O
acordo
consistia em se tornar vassalo da Santa Sé e pagar o tributo de quatro onças de ouro por ano, contudo o condado portucalense não é conhecido como reino neste primeiro momento, esta questão só seria resolvida mais de 30 anos depois: À maneira feudal, Afonso I encomendou Portugal a Santa Sé e considerou-se, com todos os seus
os outros governantes peninsulares, além da possibilidade de arrecadação de fundos pela Santa Sé que se encontrava em momento de necessidade. Durante a fragmentação do território muçulmano,nos segundos reinos de taifa 4 como coloca Mattoso (1997), os cristãos se inserem
fortemente
no
processo
de
reconquista 5, o que culminaria com duas grandes conquistas portuguesas, Santarém e Lisboa. A reconquista portuguesa é parte do movimento de Cruzadas, reconhecidas como
''
[...]
expedições
de
carácter
ecuménico que levaram os reis e senhores da Cristandade a acorrer à solicitação do papado parar libertar Lugares Santos [...]'' (VERÍSSIMO SERRÃO, 1979, p. 91). A cidade de Santarém segundo Veríssimo Serrão (1979) é representada como ponto estratégico na luta contra o infiel, além de possuir campos férteis, e ser próxima a Lisboa, cidade que era uma das ambições
de
Afonso
Henriques.
No
primeiro momento são averiguadas as
sucessores, vassalo lígio do papa. Prometeu também pagar, todos os anos, um pequeno tributo de 4 onças de ouro (umas 120 g). [...]
4
Afonso Henriques não tinha direito de dispor de
muçulmanos na península, surgem assim vários reinos
Portugal como se de um reino <<alodial>> se
governantes, e o poder se encontra dividido entre estes
tratasse. (OLIVEIRA MARQUES, 2010, p. 80)
governantes de maior influência.
A
5
aplicação
dessas
medidas
possibilita a autonomia do condado perante
Com a descentralização do poder nos territórios
A Reconquista Cristã se inicia após sua derrota para os
muçulmanos, onde se perdem territórios como Jerusalém, e em quase sua totalidade a Península Ibérica, nesse sentido se inicia o processo de reconquista Cristã, a luta
3
Rei.
contra o infiel, para a recuperação dos territórios perdidos.
694
Willian Brusch [...] era a cidade mais poderosa que os Árabes
possibilidades de conquista, pois se tratava de
uma
cidade
com
grande
detinham na zona ocidental da Península.
poderio
Empório comercial e marítimo, cujas ligações se
defensivo, nesse sentido fica estabelecido
estendiam ao norte da África e à Europa atlântica, constituía uma zona abastada em
o ataque por meio da surpresa militar,
cereais, azeite e vinho, sendo os seus campos
tática que só seria revelada ao contingente
também
de guerreiros no dia. O próximo passo seria o
levantamento
batalha
que
de
incluía
contingente seus
em
pastagens.
(VERÍSSIMO
SERRÃO, 1979, p. 96)
para
Meses
depois
da
conquista
de
melhores
Santarém se inicia o cerco à Lisboa, cerco
cavaleiros, [...] cavaleiros templários e 250
que se concretiza logo depois, no mês de
homens de armas, o Monarca deixou
outubro do mesmo ano como descreve
Coimbra na segunda-feira, 10 de março
Mattoso (1997). O monarca português vê
[...]'' (VERÍSSIMO SERRÃO, 1979, p. 95).
na pregação da Segunda Cruzadas uma
A noite se coloca em prática o plano que
oportunidade
em poucas horas concederia a vitória a
cruzadístico para empreender a conquista
Afonso
de
Henriques,
''
ricos
''As
tranquetas
de
Lisboa,
os
conseguir
cruzados
apoio
‘’[...]
foram
rebentaram, e a guarnição tombou morta.
persuadidos a auxiliar os Portugueses por
As forças vindas do exterior puderam,
um discurso do bispo do Porto, que nesta
enfim, apossar-se da cidade. Foi no dia 15
cidade os recebeu e que fora avisado da
de março de 1147. '' (FERREIRA, 1951, p.
chegada
94). Com o poder sobre Santarém, pode se
Henriques em que lhe pedia que obtivesse
consolidar
a sua ajuda.’’ (MATTOSO, 1997, p. 67)
um
passo
de
extrema
importância tanto para reconquista cristã,
por
uma
carta
de
Afonso
Afonso Henriques acaba por receber
como para consolidação do poder de
grande
Afonso Henriques, e a construção do reino
normandos e escoceses, que estavam a
português.
caminho da segunda cruzada. E graças ao
A reconquista cristã representa um
auxilio
auxílio
de
cruzados
cruzadistíco,
das
ingleses,
expedições
movimento que busca territórios que um dia
convocadas
haviam sido cristãos, e Afonso Henriques
visavam à conquista de Jerusalém, a
desempenha esse papel com afinco, pois
conquista de Lisboa é concretizada.
utilizando desta política lança-se mais uma
Após
pela
a
Cúria
morte
de
Romana,
que
Afonso
VII,
vez ao processo de conquista das cidades
assumea realeza de Leão Fernando II, e
muçulmanas, mas agora em direção a
Sancho III a de Castela, Oliveira Marques
Lisboa que:
(1996) mostra que os dois monarcas
695
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo resistiu-lhe a alcáçova, onde os guerreiros
tentaram travar o avanço português ao sul,
almóadas se refugiaram. O caudilho chamou
com intuito de uma possível partilha das
então em seu auxílio o rei de Portugal, que veio
terras conquistadas, e frear o crescimento
reforçar com suas tropas o cerco da alcáçova. (MATTOSO, 1997, p. 71)
do reino português, mas, Sancho III vem a morrer em 1158. Fernando II, rei de Leão, e o monarca português encontram-se em grande hostilidade de 1160 até 1165, ano em que concretizam uma aliança, que mais tarde se rompe em função das alianças de Fernando II com os Almoádas. Ajudando o lado cristão no processo de reconquistaGeraldo, Sem Pavor, que segundo
Mattoso
(1997)
comanda
cavaleiros vilãos, e junto a eles realiza grandes conquistas a favor de Afonso Henriques, anexa ao seu território uma grande quantia de cidades, como ''[...] Trujillo, Évora, e Cáceres, no ano de 1165, e os castelos de Montanchez, Serpa e Juromenha, em 1166. '' (MATTOSO, 1997, P. 69). Veríssmo Serrão (1979) apresenta que
a
tática
usada
por
Geraldo,
corresponde a invasões surpresa com grandes escadas de madeira, para se infiltrar nas muralhas. Nesse processo Afonso Henriquesconquista, com o auxílio de Geraldo, Sem Pavor, todas as principais cidades que cercam Badajoz. Em 1169, Geraldo faz uma investida a Badajoz, o que possibilita conquista s parcial da cidade. Por fim:
Afonso Henriques chega em auxílio a
Geraldo,
Sem
Pavor,
no
entanto
Fernando II, também se desloca a fim de parar a conquista portuguesa, declara auxílio aos almóadas, além de que por meio de tratados anteriores se declarava soberano sobre esta região. Contudo o Emir vendo que a perda de Badajoz era eminente
buscou
levantar
contingente
parair em auxílio à cidade. Nesse contexto como ressalta Mattoso (1997), Fernando II envia uma carta dizendo sobre seu apoio a alcáçova, esses conseguem abrir as portas da
cidade,
ocorrendo
desta
forma
a
debandada dos portugueses, ‘’[...] Ao fugir, Afonso Henriques partiu uma perna, caiu do cavalo e acabou por ficar prisioneiro. A obtenção
da
liberdade
custou-lhe
a
renúncia às conquistas feitas.’’(OLIVEIRA MARQUES, 2010, p. 83) A partir de então Afonso Henriques se estabelece em Coimbra, se retirando da cidade com menos frequência que em tempos anteriores, em grande medida pelo dano físico que sofrera em Badajoz no ano de 1169.
Porém em 1179 como aponta
Oliveira Marques (1996), Afonso Henriques
[...] Geraldo desencadeou o ataque final a
mediante o pagamento de dois marcos de
poderosa
ouro (equivalente a 460 gramas de ouro)
fortaleza.
Conseguiu
passar
as
muralhas exteriores e entrar na povoação, mas
696
Willian Brusch ao papa Alexandre III, é reconhecido como
dadas a ele por seu pai, ele recebe a vila
rei português, e toda sua extensão de
de Barcelos e o título de Conde. Após seu
terras como reino e não mais como
rompimento
Condado Portucalense, em grande medida
Ximenes, o Conde Pedro Afonso de
um dos grandes objetivos de Afonso
Barcelos, por conta da guerra civil em
Henriques.O monarca falece em oito de
Portugal em razão da sucessão do trono
dezembro de 1185.
português entre D. Dinis e seu filho
2. Análise Crónica Geral da Espanha de 1344
em
1316
com
D.
Maria
herdeiro D. Afonso, se exila em Castela de 1317
a
1322.
O
motivo
do
exílio
No ano de 1285 nasce Pedro
corresponde ao Conde ficar ao lado do
Afonso, filho bastardo de D. Dinis, rei de
irmão Infante D. Afonso, o que levou D.
Portugal. Durante sua infância foi criado na
Dinis a destituir todos os seus bens em
corte, pois a Rainha Isabel desempenhava
Portugal, até o título de Alferes-mor que
papel fundamental na criação também dos
havia recebido em 1317. Seu provável
filhos bastardos do rei, assim como era
terceiro casamento teria sido realizado com
encarregada das alianças de casamento
Tereza Annes de Toledo, dama da Rainha
com outros reinos. Pedro Afonso era
de Castela, D. Brites como aponta Mocelim
primogênito entre os bastardos, usufruindo
(2007).
de certos cargos na corte, próximo ao monarca.
Ao
retornar
de
Castela,
e
se
reconciliar com seu pai, de quem fica ao
Durante sua vida é provável que ele
lado até o fim de sua vida em 1325, recebe
tenha se casado três vezes, em seu
novamente seus títulos e terras. De 1325 a
primeiro casamento como escreve Esteves
1354, o ano de sua morte, o Conde Pedro
(1998), Casa-se com D. Branca, filha de
Afonso de Barcelos se dedica como aponta
um nobre português, o que lhe rendeu
Esteves
muitos bens, pois herdou grande quantia
literária, junto a homens de letras. Assim
de terras, no entanto o casamento se
com influência da historiografia castelhana,
desfez em 1307. Em sua segunda aliança
ele atuou como compilador da Crónica
matrimonial, casa-se com a aragonesa D.
Geral da Espanha de 1344, esta que é uma
Maria
este
das fontes mais importantes em se tratando
casamento que se tornará Conde Pedro
de história medieval na Península Ibérica.
Afonso
1314
A crónica principalmente trata da história
complementando a sequência de terras
do reino castelhano e de seus heróis,
Ximenes, de
e
será
Barcelos,
durante em
(1998),
a
grande
produção
697
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
passando por treze séculos de história,
benefícios,
iniciando com o povoamento da península
promoveu a fundação de outros núcleos
até a reconquista parcial do território
militares para a segurança do reino.’’
cristão.
(MOCELIM, 2013, p. 256)
Segundo
Mocelim
(2007)
na
crónica encontramos uma sobreposição de famílias
nobres
e
atos
fundou
vilas
e
fortalezas,
O monarca português acaba sendo
heroicos,
reconhecido por ser o primeiro a fazer uma
demostrando um favorecimento de certas
administração completa no reino, atingindo
atitudes, como a desvalorização de outras.
desta forma grande prestígio na Península
Como mostra Esteves (1998), as intenções
Ibérica. Algumas medidas em relação ao
do Conde estão além da
poder da nobreza também são tomadas
[...] preocupação com a verdade e com a sequência cronológica na sua apresentação, há uma dimensão moralista que a percorre e que a
em diversos aspectos, a exemplo da
transforma também num manual de educação
investidura de cavaleiro, que passa a ser
para os seus leitores, que podem beneficiar com
concedida somente pelo monarca. No
o conhecimento do Passado. (ESTEVES, 1998, p. 14)
O Conde em sua vida litéraria produz além da Crónica Geral da Espanha de 1344, o Livro de Linhagens, assim como uma série de poesias. Para a análise do trecho da Crónica Geral da Espanha de 1344, relativo ao reino
durante seu governo, assim delimitando-o
de
Afonso
de
Henriques,
primeiramente se faz necessário retomar acontecimentos caracterizam
do
o
século
período
de
XIV, vida
que do
entanto o reino de D. Dinis também possui alguns pontos fracos, no que diz respeito às suas relações familiares. Durante o começo de seu reinado, as relações com seu
irmão,
o
infante
Afonso,
eram
demasiadamente hostis. Segundo Mocelim (2013), Afonso, irmão mais novo de D. Dinis,
se
colocou
como
verdadeiro
sucessor do trono, alegando que no momento do nascimento do irmão o casamento
entre
seus
pais
não
era
a
legítimo. Por esse motivo se desenrolam
Com o estabelecimento de D. Dinis
irmão. Um deles se realiza logo após a
compilador,
e
seus
motivos
para
produção da obra. no trono português, uma série de medidas são tomadas por este monarca, no que diz
grandes confrontos entre o monarca e seu inquirição 6 de 1284, onde o infante Afonso, aliado à nobreza se envolve em revoltas
respeito à justiça, ele ‘’Procurou atender castelos e fortalezas que se encontravam em ruínas, concedeu foros, obrigações e
6
[...] o Infante aliou-se aos nobres nos protestos contra as
decisões régias, instigando parte da nobreza nas revoltas armadas contra o Rei. (MOCELIM, 2013, p. 260)
698
Willian Brusch armadas contra o rei. No entanto as
uma assembleia em Évora para que lhe
relações dos irmãos são apaziguadas após
prestem homenagem, coisa não muito
a revolta de 1299, com o infante se
comum em seu tempo. Mattoso (1997)
tornando submisso ao monarca.
aponta que o monarca português tomaria
O rei português ainda encontraria
uma série de medidas contra os seus
grande dificuldade junto a seu filho, que
irmãos bastardos como a condenação de
não aceitava o tratamento que o pai dava
um deles a morte, acusando-o de traição.
aos filhos bastardos, esse período é
Contra o bastardo Afonso Sanches, que
reconhecido pela guerra civil (1319–1324)
buscou refúgio com Afonso XI, rei de
em que mergulha Portugal. Como coloca
Castela, se estabeleceu uma contenda que
Mattoso (1997), a partir de 1315 as
durou três anos, o confronto terminou com
relações entre D. Dinis e seu filho Afonso
o adoecimento do bastardo, que morreria
se tornam hostis em razão dos benefícios
logo depois em 1329.
que
o
monarca
concede
aos
filhos
Durante seu reinado desfrutou de
bastardos. Nesse sentido se desenrola um
um longo período de paz externa, além de
jogo político de apoio, onde ao lado do
conseguir alianças diplomáticas, como os
infante estão o norte e o centro do reino, o
tratados
rei Dinis tinha parte do sul do reino ao seu
Inglaterra.
lado. A guerra civil teve início em 1319 e
(1997), que as relações matrimoniais de
só acabaria no ano de 1324, e esta era
sua filha com o rei leonês, Afonso XI,
Uma guerra fomentada por alguns nobres despeitados e saudosos de antigos privilégios feudais – que D. Dinis havia cerceado – e
comerciais No
realizados
entanto
conta
com
a
Mattoso
resultaram em uma guerra de 1336 a 1339, entre
os
reinos
português
e
leonês.
também uma guerra querida por Castela e
Principalmente por motivos emocionais, os
Aragão, reinos interessados em enfraquecer
quais sua filha Maria lhe reportava, como o
Portugal no contexto da Península. (MATTOSO, 1997, p. 406)
Por meio do tratado de Santarém em 1324, como apresenta Mattoso (1997), o confronto acaba, garantindo a sucessão do trono a Afonso, que um ano mais tarde, após a morte de D. Dinis, herda a coroa portuguesa. Afonso IV, comorei de Portugal em uma de suas primeiras ações, organiza
desprezo de Afonso XI por ela. A guerra apenas teve fim com a intervenção do rei francês e do papa, momento em que se assinou
a
Paz
de
Sevilha,
com
o
comprometimento de que ambas as partes devolveriam os territórios conquistados. No ano de 1339, os muçulmanos fizeram novas investidas na Península Ibérica mais especificamente em Gilbratar,
699
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
no ano seguinte ocorreu a Batalha do
Henriques,
Salado, como apresenta Mattoso (1997);
Conde D. Henrique, em um breve discurso
[...] em 1340, é o rei do Marrocos que atravessa o estreito com mais de 100 navios e entra vitorioso em Espanha. Prepara-se, aliado aos Granadinos, para prosseguir pelo Norte. A
vemos
a
manifestação
de
explicitando certas características que o seu filho Afonso Henriques deveria seguir Filho, toda a terra que eu leixo, que hedes
Cristandade aflige-se, mormente a mais próxima
Estorga ataaLeõ
do perigo, Castela e Afonso XI, Portugal e
percas dela nẽ hũa cousa, ca eu a tomey cõ
Afonso IV. Os quais, ontem inimigos de morte,
muyto trabalho. Filho, toma esforço do meu
hoje somam esforços de cruzados e amigos. E
coraçõ e sey semlhavel a mỹ. E sey
juntos vencem o Islão na Batalha do Salado (30 de Outubro de 1340). (MATTOSO, 1997, p. 408)
Partindo
dessas
considerações
e ataa Coimbra, non
companheiro aos fidalgos e dalhes todos seus direitos. E aos cõcelhos fazelhes hõrra. E faze de guisa que todos ajam dereyto,
acerca do reino português durante a vida
assy os grandes como os pequenos, e por
do Conde Pedro Afonso de Barcelos,
rogo nẽ por cobiiça, nõ leixes de fazer
vemos uma reação do autor, aos conflitos
justiça. E porem, meu flho, sempre em teu
que estavam assolando este período. Nesse
sentido,
portugueses
a
temos
exemplo uma
dos
situação
reis
coraçõ ama justiça, ca o dia que a leixares de fazer hũu palmo, logo o outro dia ella se afastara de ty hũa braça. E porem, meu
de
filho, ama justiça e averas a beençõ de
instabilidade na península se tratando das
Deus e a graça e bemquerença das gentes.
monarquias, estas que se colocam em um
E non consentas os teus homẽs seer
processo de batalhas por sucessão, e desentendimento
constante
em
suas
sobervosos e atrevidos em mal fazer nem façam a nehũu, ca perderias teu boo preço se
taaes
cousas
nõ
castigasses.
[...]
relações, o que caracteriza um processo de
(Crônica Geral da Espanha de 1344 apud
transformação
afirmação
destas
Esteves, 1998, p. 191).
período
reinos
O Conde Pedro Afonso de Barcelos
cristão da península se encontram-se
ao se refirir ao rei Afonso Henriques
desunidos, e em muitas vezes em conflito
caracteriza um ideal de monarca a qual
entre si, gerando uma certa vulnerabilidade
Afonso Henriques deveria se espelhar,
dos
a
assim são apresentados certos passos a
muçulmana
serem seguidos, como fazer honras aos
dentro da península, como na Batalha do
Concelhos, dar atenção especial à justiça
Salado.
para que no futuro possa ter a graça e o
monarquias.
e Neste
territórios,
manifestação
de
os
possibilitando ofensiva
No primeiro momento no trecho
bem querer do povo e de Deus. Vemos
analisado da Crônica, relacionado à Afonso
nesse ponto uma reflexão sobre atitudes tomadas por D. Dinis contra a nobreza,
700
Willian Brusch assim mostrando o que seriam atitudes
de divinização da figura do monarca, como
ideais a serem seguidas nestas relações.
aquele que serve a Deus, é devoto, o que
Entrando
na
vida
do
primeiro
monarca português, Afonso Henriques tem
lhe proporciona boas vitórias com auxílio divino.
uma série de ‘’virtudes’’ que são atribuidas a
ele
pelo
esboçando
compilador
estas
da
‘’virtudes’’
Crônica, de
forma
Outro fator de grande importância no trecho
analisado
na
Crônica
são
as
questões relacionadas à luta contra os
explícita e implícita. Primeiramente Afonso
muçulmanos,
Henriques é colocado como ‘’[...] muy bõo
representa um ideal que durante o período
fidalgo, cõ muytas cõpanhas e muy bem
de compilação se mostra muitas vezes
uisadas pera guerra. [...]’’(Crônica Geral da
deixado de lado. Partindo dessa premissa
Espanha de 1344 apud Esteves, 1998, p.
temos a Batalha do Salado de 1340 que
194). A representação está em torno de
representa grande perigo para os reinos
qualificações do personagem, vemos de
cristãos. Nesse sentido o autor da Crónica
fato que Afonso Henriques, teve grandes
ressalta que o rei Afonso Henriques
campanhas militares, como coloca Mattoso
participou de uma série de investidas
(1997) em 1128 ocorre a Batalha de São
contra os reinos muçulmanos, com sucesso
Memede, batalha que determina opoder
em sua maioria, como na Batalha de
sobre o Condado Portucalense, contra
Ourique em 1139, como coloca Mattoso
Fernão Peres Trava e D. Tereza, se
(1997), não se sabe qual lado teria feito o
desenrola a contenda, com vitória para
primeiro ataque, mas Afonso Henriques
Afonso
em
saiu vitórioso e retornou com glória para
determinados momentos o Conde Pedro
seu povo, após vencer a sua primeira
Afonso
de
batalha de muitas, contra os muçulmanos.
determinadas atribuições para justificar a
Isso representa algo que um dia deu
vitória, como é apresentado no trecho, ‘’[...]
unidade aos reinos peninsulares, a luta
rey dom affonso avya grande devoçõ nas
contra o infiel. Ourique seria a primeira
oraçõoes de Sam Bernardo. E que por esto
vitória sobre o muçulmano, no entanto ele
lhe dava Deus tantas boas andamças
conquista uma grande quantia de cidades,
contra os mouros. [...]’’ (Crônica Geral da
como é representado na Crônica, ‘’[...]
Espanha de 1344 apud Esteves, 1998, p.
tomou este rey dõ Affomso Allanquer, e
201). Analisando as colocações que são
Sintra, e Almadãa, e Palmela. En ẽna era
feitas nesse sentido, temos uma tentativa
de mil [...] anos, tomou este rey Alcaçer e
Henriques. de
No
Barcelos,
entanto utiliza-se
considerados
infiéis,
que
701
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Beja. E ẽna era de mil [...] anos tomou este
a seu ver a solução para todas as divisões
rey dom Affomso Evora, e Elvas, e Moura,
nos reinos peninsulares. Dentre estas
e Serpa.’’ (Crônica Geral da Espanha de
‘’virtudes’’ estão a do bom fidalgo, bem
1344 apud Esteves, 1998, p. 200).
preparado para a guerra, com muita
Uma das questões que a crónica
bravura, bom coração, muito manso, bom
também tenta trabalhar, é com relação à
cristão, esforçado cavaleiro em armas,
mudança no que diz respeito à postura
cavaleiro em força e valente. Como aponta
adotada pelos monarcas na península
Mocelim
ibérica, como se refere o trecho,
peninsulares serve como modelo para
Este rey dom Affonso, ẽ sua mancebia, foy muy bravo e esquivo. Mas despois foy muy manso e mensurado e boo cristãao e fez muyto serviço a
(2013),
a
vida
dos
reis
nobreza que por sua vez também servia como
modelo,
assim
o
rei
é‘’[...]
Deus. E este era o mais esforçado cavalleiro assi
responsável pela ordenação da sociedade,
/ em armas como en força que avya em Espanha
pela garantia do bem comum, pela defesa
nẽ de que os mouros mayor medo avyam. (Crônica Geral da Espanha de 1344 apud
da
cristandade
e
pela
promoção
e
Esteves, 1998, p. 201).
preservação da paz e justiça no reino,
Esse fator de mudança irá se
acima de tudo como exemplo de virtudes
estabelecer como ponto chave, pois é
cavalheirescas aos nobres.‘’ (MOCELIM,
necessário ser um rei ideal, e não nascer
2013, p. 142)
desta forma. Nesse sentido em detrimento
Assim se almeja uma sociedade
dos anseios de seu tempo o Conde Pedro
idealizada pelo autor, que a molda baseado
Afonso de Barcelos, introduz no trecho
em uma série de virtudes.
analisado, ‘’virtudes’’, as quais representam
Referências: ESTEVES, Elisa Nunes. Narrativas da Crónica Geral de Espanha de 1344. Editora Vega, 1998. FERREIRA, Joaquim. História de Portugal. Lisboa. 2ª Edição, Editorial Domingos Barreira, 1951. MATTOSO, José. e SOUZA, Armindo de. História de Portugal: a monarquia feudal (1096 –
1480). Lisboa: Estampa, 1993.
702
Willian Brusch MOCELIM, Adriana. “Segundo Conta a Estoria...” A Crônica Geral de Espanha de 1344
Como Um Retrato Modelar da Sociedade Hispânica Tardo Medieval. 2013. 318 f. Tese de Doutorado, UFPR. 2013. NOGUEIRA, Carlos. O Portugal Medieval: Monarquia e Sociedade. São Paulo: Alameda, 2010. OLIVEIRA MARQUES, A. H. Breve História de Portugal. Lisboa. 2ª Edição. Editora Editorial Presença, 1996. OLIVEIRA MARQUES, A. H. História de Portugal: Das Origens ao Renascimento. Vol. 1. Lisboa. Editora Editorial Presença, 2010. SARAIVA, José Hermano. História Concisa de Portugal. Mem Martins: Publicações Europa-américa, 2007. SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. Vol. 1. Lisboa: Verbo, 1979.
703
ÍNDICE DE AUTORES
ALVES, Luiz Fernando___________________________________________
339
AMATUZZI, Renato Toledo Silva__________________________________
445
ARZANI, Alessando______________________________________________
15
ASSUMPÇÃO, Luis Filipe Bantim de_______________________________
316
BARBOSA, Luiz Pedro da Silva____________________________________ 350 BARRETO, Lívia Lindóia Paes____________________________________
350
BELLA, Alisson Guilherme Gonçalves______________________________
536
BELMAIA, Nathany A. W. ________________________________________
396
BORGES, Maria do Carmo Faustino_______________________________
370
BRITO, Milton Genésio___________________________________________
382
BRUSCH, Willian________________________________________________
602
CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa_______________________________
99
CANDIDO, Maria Regina (Orientadora)_____________________________
99
CORREIA, Eveline Soares________________________________________
204
CORTEZ, Clarice Zamorano______________________________________
139
COSTA, Alex Silva_______________________________________________
32
COSTA, Natália de Medeiros______________________________________
636
CUSTÓDIO, José de Arimathéia Cordeiro___________________________ 228 DAFLON, Eduardo Cardoso_______________________________________ 196 DELIBERADOR, Raquel de Medeiros______________________________
670
DURLO, Carlos Henrique_________________________________________
558
ERZINGER, Tatiane Palmieri______________________________________ 478 EZÍDIO, Camila__________________________________________________ 89 FERRARESE, Lúcio Carlos_______________________________________
307
FIOROT, Juliana Bardella_________________________________________ 263
704
FOGA, César Augusto da Silva____________________________________
126
GIACOMASSI, Diego Regio_______________________________________
568
GOBATO, Douglas Raphael Machado______________________________
171
GODOI, Pamela Wanessa________________________________________
423
GONÇALVES, Jussemar Weiss (Orientadora)_______________________
292
JÚNIOR, Benedito Inácio Ribeiro__________________________________
75
JÚNIOR, José Petrúcio de Farias__________________________________
246
LIMA, Adriana Mocelim de Souza (Orientadora)_____________________
636
MACHADO, Jivago Furlan________________________________________
609
MACHADO, Thiago Palmeira______________________________________ 501 MAFFEI, Talles Henrique P. ______________________________________
468
MARANHÃO, Marcello de Albuquerque_____________________________ 361 MARRONI, Paula Carolina Teixeira________________________________
436
MARTINS, Giovana Maria Carvalho________________________________
590
MENNITI, Danieli________________________________________________
160
MOCELIM, Adriana (Orientadora)__________________________________
568; 690
OLIVEIRA, Claúdia Trindade de___________________________________
150
OLIVEIRA, Keila Mara Fraga Ramos de____________________________
278
OLIVEIRA, Rafael M. ____________________________________________
661
OLIVEIRA, Terezinha (Orientadora)________________________________
61; 522
OLIVEIRA, Viviane_______________________________________________ 522 ONESKO, Stéfani de Almeida_____________________________________
678
PELEGRINELLI, André Luiz Marcondes____________________________
548
PILLA, Maria Cecília Barreto Amorim_______________________________
501
PRUDENTE, Luísa Tollendal______________________________________
331
RAGUSA, Helena________________________________________________ 215 REIS, Jaime Estevão dos (Orientador)______________________________ 307; 468; 627
705
RIBAS, Helena Macedo__________________________________________
602
RIBEIRO, Luiz Augusto Oliveira___________________________________
627
ROSA, Célia Santos da___________________________________________ 114 ROSA, Lorena Faccin____________________________________________
619
ROSSI, Edneia Regina (Orientadora)_______________________________ 204 RUBIM, Sandra Regina Franchi___________________________________
456
SANTOS, Valéria________________________________________________
512
SELVATICI, Monica (Orientadora)_________________________________
396
SILVA, Edilberto Alves___________________________________________
185
SILVA, Filipe Cesar da___________________________________________
577
SILVA, Lisiana Lawson Terra da___________________________________
292
SILVA, Tiago de Oliveira Veloso___________________________________
661
SIQUEIRA, Ana Marcia Alves_____________________________________
47
SOARES, Thaís Ap. Bassi________________________________________
490;
SOUZA, Neila M. ________________________________________________ 412 SPEGLIC, Rafael Fernandes______________________________________
648
VENTURINI, Renata Lopes Biazotto (Orientadora)___________________
171; 490
VIANA, Ana Paula dos Santos_____________________________________ 61 VISALLI, Angelita Marques (Orientadora)___________________________
32; 423; 536; 548; 590; 670
706