Anais do x ciclo de estudos antigos e medievais pt 2

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ESPECTADOR E POETA: OS LUDI E O CLIENTELISMO NOS VERSOS DE MARCIAL Thais Ap. Bassi Soares 1 Renata Lopes Biazotto Venturini 2 (Orientadora) Resumo: o clientelismo foi uma instituição que marcou as relações políticas e sociais no mundo romano. Acredita-se que tenha se originado por conta das diferenças existentes entre patrícios e plebeus. Sua ascensão se deu no período republicano, época marcada por conquistas territoriais, em que um afluxo grande de imigrantes chegava a

urbs, e a cidadania se expandia para as novas fronteiras. A República tardia também marca o período de incremento dos Ludi, espetáculos comemorativos de origem religiosa, que aos poucos passaram a ocupar os espaços públicos de lazer. Neles era possível acompanhar corridas, caçadas, peças teatrais e os conhecidos combates de gladiadores. Os Ludi, estabeleciam um espaço de diálogo entre as camadas dirigentes e as camadas populares, e nas arquibancadas os clientes poderiam aumentar o prestígio de seus patronos. Essas duas instituições do mundo romano se mantiveram no período imperial, onde viveu o poeta Marcos Valério Marcial, que deixou em seus epigramas um rico panorama do cotidiano de Roma. A publicação do Liber Spectaculorum, no ano de 80 d. C., marca o início de suas atividades como poeta na Urbs e também a inauguração do Anfiteatro Flávio, espaço destinado à realização dos Ludi. A partir da análise de alguns epigramas selecionados, busca-se expor o modo de vida na Roma Imperial, pautando as diferenças sociais, simbolizadas pela relação entre patronos e clientes e como elas eram apresentadas nos espaços públicos romanos destinados ao lazer. Palavras-chave: Marcial; Liber Spectaculorum; Clientelismo.

1

Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá, e membro do LEAM –

Laboratório de Estudos Antigos e Medievais. 2

Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História na Universidade Estadual de

Maringá. Coordenadora do Laboratório de Estudos Antigos e Medievais – LEAM.

490


Thais Ap. Bassi Soares

Spectaculorum, escrita em homenagem a

O poeta e sua obra Marcial foi um epigramista latino que

inauguração

do

Anfiteatro

Flávio.

Ela

viveu em Roma no período imperial. Sua

acompanha quase que cronologicamente

obra concentrou todas as tendências e

os espetáculos oferecidos por Tito neste

temas que haviam sido exploradas pelo

edifício.

gênero. Ele escrevia desde descrições de

possivelmente

obras de arte e monumentos até louvor a

incentivada pelo imperador, por conta de

personalidades

seu caráter propagandístico.

influentes,

epitáfios

e

Baptista

Além

celebrações de nascimentos. Contudo suas

(2009)

esta

do

destaca

que

tenha

sido

obra

Liber

Spectaculorum

obras mais conhecidas são marcadas pela

Marcial publicou mais onze livros, contendo

sátira

1172

e

pelo

apelo

ao

ridículo.

(TOIPA,2006, p.111) Nasceu pequena

na

epigramas.

Sua

escrita

é

a

representação autêntica da realidade com Hispânia,

cidade

em

chamada

uma

tudo que nela existe, sejam mudanças

Bílbilis,

políticas e sociais, sejam os costumes,

aproximadamente entre os anos de 38-41,

gostos,

e mudou-se para Roma em 64, onde,

necessidades pessoais do poeta. Porém,

contou com o apoio de Sêneca e Lucano,

Marcial tem a consciência de que deve

até

se

manter boas relações com o poder político,

agravassem, e o autor fosse privado dessa

para que seus versos não sejam alvos de

tutela, levando-o a ficar em silêncio por

censura, ou para que sua atividade seja

quase quinze anos. (BAPTISTA, 2009,

merecedora de um mecenas, semelhante

p.74)

aos que tiveram os ilustres vultos da

que

as

conjunturas

políticas

Durante esse período viveu-se o

hábitos,

e

até

mesmo

as

Antiguidade. ( BAPTISTA, 2009, p. 77).

caos em Roma: a peste, o grande incêndio,

O poeta descreve os costumes

a guerra civil e o poder nas mãos de quatro

romanos,

imperadores:

e

satirizando sua realidade própria realidade.

Vespasiano. Embora em silêncio, Marcial

Para que isso fosse possível, ele escolheu

percebia e absorvia todas as experiências

o

ao seu redor, usando-as, posteriormente

considerado como puro entretenimento,

como base para sua escrita.

mas que, numa tradição anterior havia sido

Galba,

Otão,

Vitélio

atividade

poética,

com

a

obra

seus

vícios

e

epigrama, gênero que à época era

usado No ano de 80 d. C. ele inicia sua

divulgando

como

uma

arma

de

inventiva

pessoal mais ou menos mordaz.

Liber

491


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

O

epigrama

conheceu

suas

constituía

o

elemento

essencial

da

primeiras manifestações na Grécia Antiga

conquista do poder em Roma. (Biazotto,

por volta do século VII a. C., e consistia em

1993, p.27)

pequenas inscrições de um ou dois versos

Patronos

e

clientes

possuíam

sobre material duro. Em indicações breves,

obrigações um para com o outro. O patrono

sob forma de mnemônica mostrava quem

seguia regras de conduta definidas pelas

havia escrito ou a quem era dedicado.

noções de fides 3 e diligentia 4. A primeira

Foram usados nas lápides funerárias ou

designava o crédito que um indivíduo

em homenagens aos deuses. (TOIPA,

possui, assim como seu poder no grupo

2006, p. 110)

social ao qual pertence. A segunda noção

A introdução do epigrama em Roma

faz referência a energia empregada no

teve caráter fúnebre, sendo encontradas

preparo da defesa e a habilidade que

inscrições

possuía para resistir a seus adversários.

nos

túmulos

dos

Cipiões.

Contudo, no século II a. C. , o epigrama

Biazotto (1993), aponta que os clientes

passou a ser utilizado por uma classe de

estavam submetidos a algumas regras,

intelectuais que vivia sob a proteção das

dentre elas a gratia 5 , que expressava o

grandes famílias, desenvolvendo-se, com

reconhecimento pelo patrono e criava um

humor e sarcasmo, temas relacionados aos

vínculo de dependência entre eles. Faziam

prazeres da vida.

O final da República,

parte da clientela, libertos, comerciantes,

agrega aos epigramas os temas do amor,

ex-escravos que mantinham o vínculo com

do

convívio

desenvolvidos

e

da

em

vida

cotidiana,

caráter

anedótico.

(TOIPA, 2006, p. 110) Patronato e Clientelismo em Marcial O clientelismo enquanto instituição surge no período republicano, marcando a forte divisão que existe entre patrícios e plebeus e também a formação da nobilitas.

3

Fides: no sentido próprio o termo pode significar fé,

crença, estando diretamente ligado as questões de ordem religiosa. No âmbito jurídico corresponde a um juramento solene. Pode assumir outros sentidos de fundo moral como lealdade, honestidade, confiança, vinculando-se a relação clientelista. ( BIAZOTTO, 1993, p. 261) 4

Diligentia: no contexto das relações clientelistas indica

uma das virtudes do patronus, capaz de lhe assegurar a

Codificadas no direito romano, as regras

auctoritas. Vincula-se ao cumprimento fiel e escrupuloso

referentes a essa instituição foram sempre

de seus deveres, juntamente com a zelosa administração de seus bens. (BIAZOTTO, 1993, p.260)

respeitadas, e o cidadão romano, em seu

5

quadro de relações pessoais se inseria em

patronus e cria um vínculo de dependência entre eles. (

um modelo de fidelidade recíproca, que

BIAZOTTO, 1993, p. 28)

Gratia: exprime o reconhecimento que o cliente tem pelo

492


Thais Ap. Bassi Soares seus respectivos patroni, e poetas como Em outro epigrama, Marcial retoma a

Marcial e Juvenal. Para Baptista (2009) a obra de

temática: O que foste para Horácio, para Varius e para o

Marcial é visivelmente o reflexo de um conhecimento

concreto

e

pessoal

grande Vírgilio Mecena, (...), Terentius Priscus,

da

saberão o que foste para mim: a fama oral e o

condição de cliente,

meu livro dirão através das idades. É de ti que me vem o talento, é a ti que devo tudo aquilo que

[...] o traço predominante da obra de Marcial é a

pareço capaz: és tu quem me proporciona esse

constante opinião do autor no seu discurso e a

direito ao descanso, próprio de um homem livre.

personalização das situações, parece-nos que é na abordagem do tema da clientela que melhor

(Epigrama XII. 3 . Apud BIAZOTTO, 1993, p. 67)

se aplica esta afirmação: o poeta olha para a sua

O poeta retrata sua própria condição

própria categoria de cliente e reflecte nos seus

ao falar dos clientes, e é desta forma que

versos a realidade da clientela do seu tempo. E, desta forma, sem podermos descurar a parte que

consegue aprofundar uma realidade tão

cabe à persona enquanto criação literária, e o

cara aos seus propósitos. A presença da

distanciamento que deve existir entre esta e o

relação

autor, consideramos que é graças à vivência

eu-cliente-poeta, de

seus

pessoal de Marcial que o tema conhece um

epigramas,

elenco tão diversificado de situações, mas

significativa para amplificar e engrandecer

também um sentimento de descontentamento e

a realidade dos clientes, como a realidade

amargor que não é habitual na sua obra. (

contribuiu

nos

forma

BAPTISTA, 2009, p.529)

dos poetas, obrigados a entregarem-se à

Para além da condição de cliente, o

prática da clientela, por falta de um

que Marcial deseja é um mecenas como os

Mecenas que apóie e financie o seu

que existiam à época de Virgílio. Em um de

trabalho. Assim, o desejo de Marcial em ver

seus epigramas o poeta diz:

cumpridas as obrigações dos patronos para com

Que o nosso século seja superior ao século de nossos

antepassados

e

que

Roma

tenha

engrandecido com a glória de seu chefe, tu te

todos

os

clientes

da

sociedade

imperial é extensível à concretização de uma aspiração pessoal: usufruir de uma

espantas que o gênio do divino Vírgilio nos faça

condição econômica que lhe permita viver

falta e que não encontre ninguém para celebrar

mais desafogada e despreocupadamente

as batalhas com um trompete tão poderoso. Houve Mecenas, e os Vírgilios, ó Flaccus não te faltarão

(...) Que bom falar de Varius e de

Marcus e citar nomes de poetas enriquecidos, cuja enumeração custaria um grande esforço. Eu serei então, um Vírgilio se tu me fizeres os

para se dedicar à escrita. ( BAPTISTA, 2009, p. 530) A entrega do poeta à vida de cliente resulta inegavelmente de uma falta de

MARCIAL,

recursos, comum a uma grande parte da

Epigrama VIII . 55. Apud BIAZOTTO, 1993, p.

sociedade que sofrera as consequências

presentes 67)

de

um

Mecenas...

(

493


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

do principado de Nero. Sem meios para se

escrita, ou pelo menos que amenize a sua

entregar inteiramente à escrita, a clientela

atribulada vida de cliente. E retomando, os

era a forma mais honrosa de um poeta

protegidos poetas do passado, Marcial

ganhar a vida. E a ela Marcial entregou

considera que se lhe forem concedidas as

cerca de três décadas de sua vida, apesar

dádivas de um Mecenas, ele também

do sono e do cansaço que insistentemente

poderá ser como Vírgilio. ( BAPTISTA,

o perseguiam e o prejudicavam na criação

2009, p.532) Os Ludi Romanos

poética (BAPTISTA,2009, p. 530). Em um

Os Ludi 6

de seus epigramas, ele comenta que as

eram o entretenimento

obrigações de cliente o impedem de

público por excelência, realizados nos

produzir mais livros:

circos, anfiteatros e nos teatros, ocorriam

Porque produzi somente um livro durante todo ano, eis-me, douto Potitus, acusado por ti de preguiça. Mas tu poderias mostrar-te mais

sem exceção durante o ano todo. Conta a antiga história Romana, que as únicas

surpreso de me ver produzir um, quando tantas

ocasiões para os espetáculos eram os

vezes jornadas inteiras se perdem para mim (...)

festivais religiosos, celebrados para pedir a

tanto a primeira hora do dia como a quinta, retiram-me por suas obrigações (...) a décima

fertilidade

dos

campos

e

as

vitórias

hora chegou, morto de fadiga, vou banhar-me e

militares, assim como para agradecer aos

tocar meus cem quadrantes. Quando, então,

desejos recebidos.

Potitus, eu encontraria tempo para fazer um livro?

(Epigrama X .70 . Apud BIAZOTTO,

(BAPTISTA, 2009,

p.205) No início do período republicano, os

1993,p. 65)

É certo que Marcial não pretende

dias de espetáculo estavam reduzidos aos

esconder a suas reivindicações sob a

Ludi Maximi Romani, que celebravam a

aparência de uma troca de cortesia, nem

promessa feita aos deuses, pelos generais,

deseja um comportamento semelhante ao

antes de entrar numa batalha. Nestas

de inúmeros clientes, que são insistentes, e cansam o Imperador com pedidos triviais. O seu lamento pessoal e a exposição da sua desassossegada vida, aliada aos

6

Ludi: palavra de origem etrusca que pode assumir dois

sentidos. O primeiro está relacionado com o “ jogo em ação”, ao contrário de iocus que seria o “ jogo de palavras”, a piada. Neste sentido sua tradução no plural

inúmeros pedidos de proteção dirigidos a

como “ jogos” diz respeito aos jogos de caráter religioso e

patronos ilustres, ao imperador Domiciano,

oficial. Uma segunda tradução possível é “ escola”, isto é,

ou à própria Roma, revelam o desejo do

o local onde os

gladiadores

treinavam antes do

espetáculo. Um exemplo seria o Ludus Magnus, uma das

poeta em conseguir um patrono-mecenas,

maiores escolas de gladiadores durante o Império.

que lhe permita dedicar-se apenas à

(GARRAFFONI, 2004, p. 20)

494


Thais Ap. Bassi Soares ocasiões o Estado proporcionava ao povo,

Nero

variados tipos de entretenimento, como o

empreendidas durante a dinastia Flávia. No

canto, as danças e as representações

primeiro epigrama, de uma série de trinta e

teatrais.

três o poeta destaca a grandeza de Roma,

e

falas

acerca

das

melhorias

As mudanças políticas ocasionadas

como a única que ganharia a eternidade, e

pelo final da República e inicio do Império,

pede que sejam esquecidas todas as obras

transformaram os espetáculos em um meio

antes consideradas como maravilhas do

de promoção pessoal, levando-os a ocupar

mundo Não mencione aos bárbaros as maravilhas das

boa parte dos dias do calendário romano.

pirâmides de Menphis, ou vanglorie o trabalho

Dentre as festas realizadas, destacamos os

dos Assírios na Babilônia; não louvem os jônios

Ludi Plebeii, celebradas anualmente desde

afeminados pelo templo de Diana,esqueçam o altar de muitos chifres e não digam nada sobre

o século III a. C.. Elas atuavam como um

Delos, e que os Carios deixem de exaltar com

espaço de organização da plebe frente ao patriciado;

os

Ludi

Apollinares

imoderado louvor, ao próprio céu suspenso o

foram

Mausoléu, no

diante do Anfiteatro de César, um feito em que a

instituídos durante a Segunda Guerra

grandeza é praticada diante de todos. (MARCIAL

Púnica, sob o temor do ataque de Aníbal.

Epigrama 2006, Spec. 1)

Dedicados a Apolo, ocorriam entre 6 e 13 de

julho,

apresentando

espetáculos

circenses, caçadas e corridas equestres; os

Ludi megalenses eram consagrados a Cibele e ocorriam de 4 a 10 de abril, contando também com eventos circenses e

ar vazio. Todo o trabalho cede

7

No segundo epigrama encontrara-se uma referências à estátua de Nero que ficava próxima ao Anfiteatro Flávio, e ao lago artificial que este mesmo imperador mandará construir.

teatrais. (ALMEIDA, 1994, p.70) Na obra de Marcial, o entretenimento público

aparece

de

forma

elogiosa.

7

Barbara pyramidum sileat miracula Memphis, Assyrius iactet Nec Babylona labor,

Buscando a proteção do Imperador, ele

Nec Triuiae templo molles laudentur Iones;

classifica os Ludi como uma manifestação

Dissimulet Delon cornibus ara frequens,

do poder de Roma, e escreve o Liber

Spectaculorum

em

homenagem

a

inauguração do Anfiteatro Flávio, no ano de 80 d. C. É possível encontrar nos epigramas do Liber inúmeras críticas ao governo de

Aëre nec uacuo pendentia Mausolea Iaudibus Immodicis Caris in astra ferant. Ommis Caesareo cedit labor amphiteatro: Unum pro cunctis Fama Ioquetur opus. (SPEC. 1, 2006, p. 1) * As traduções apresentadas referentes aos epigramas do

Liber Spectaculorum são de responsabilidade da autora. Para consultar os originais vide Notas.

495


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Marcial, que viveu sob seu governo,

O terceiro epigrama contempla a

passando por todas as incertezas e a

diversidade

atribulações resgata estas obras como uma

encontravam em Roma, e destaca o

memória de um passado difícil, e que se

caráter cosmopolita da Urbs. Pode ser

encontra agora ao lado de um grande feito

entendida também como uma manifestação

romano, que é o Anfiteatro Flávio. Nele

não explicita do poder de atração do

concentram-se as glórias de Roma e a

Anfiteatro.

desde o Hemo de Orfeu, tem vindo também o sármata, alimentado pelo sangue de seus

silêncio, ele assimilava tudo o que ocorria

cavalos, e aquele que bebe as primeiras águas

ao seu redor, empregando como matéria produções

se

sua cidade? Tem chegado o lavrador trácio

poeta tenha passado muitos anos em

suas

que

bárbaro, César, que não havia espectadores em

Esse epigrama mostra que, embora o

em

pessoas

Que povo vive tão distante? Que povo tão

retomada de uma relativa tranquilidade.

prima

de

do Nilo conhecido, e aquele a quem fustigam as

textuais

primeiras ondas do Oceano mais remoto. Se apressam

posteriores

a

chegar

os

árabes,

vem

apressadamente os sabeos e os cilícios se

Aqui onde o Colosso celeste contempla de perto

embebedam aqui com suas chuvas de açafrão.

as estrelas, e cresce na metade da via os altos

Chegam

andaimes, irradiando dos átrios os tribunais

os

sicambros

com

seus

cabelos

recolhidos em um nó, e os etíopes com seus

orgulhosos do feroz tirano que fazia de toda

cabelos recolhidos de outras formas. As línguas

Roma sua casa. Aqui onde se eleva a augusta

destes povos soam diversas, mas não existe

robustez do belo anfiteatro, estavam os lagos de

mais do que uma, quando proclamam quem é o

Nero. Aqui onde admiramos as termas, obra

verdadeiro pai da pátria. (SPEC. 3 2006, p.37) 9

rapidamente acabada, existiu um imenso campo de casas expropriadas de míseros cidadãos. E onde o pórtico de Claudio projeta suas amplas sombras, vinha a ter fim as últimas construções

ultima pars aulae deficientis erat:

do palácio imperial. Roma foi devolvida a Roma,

reddita Roma sibi est et sunt te praeside, Caesar,

e contigo no trono César, realizam-se os deleites

deliciae populi quae

do povo, assim como se realizavam s de seu

14)

senhor. (Spec. 2 2006, p. 14) 8

9

fuerant domini. (SPEC. 2, 2006, p.

Quae tam seposita est, quae gentes tam Barbara,

Caesar, Ex qua spectator non sit in urbe tua? 8

Hic ubi sidereus propius uidet Astra colossus,

Uenit ab Orpheu cultor Rhodopeius Haemo,

et crescunt media pegmata celsa uia,

Uenit et epoto Samarta pastus équo,

inuidiosa feri radiabant atria regis,

et que prima bibit deprensi flumina Nili,

unaque iam tota stabatin urbe domus,

et quem supremae Tethyos unda ferit.

hic ubi conspicui uenerabilis amphitheatri,

Festinauit Arabs, festinauere Sabaei,

erigitur moles, stagna Neronis erant,

et Cilices nimbis hic maduere suis.

hic ubi miramuruelocia munera thermas,

Crinibus in nodum tortis uenere Sugambri,

abstulerat miseris tecta superbus ager,

Atque aliter tortis crinibus Aethiopes.

Claudia diffusas ubi porticus explicat umbras,

uox diuersa sonat populorum tum tamen uma est,

496


Thais Ap. Bassi Soares Estes

epigramas

bosque semelhante ao das Hespérides,

constituem uma introdução aos que serão

onde Orfeu vivia. O prisioneiro em questão

apresentados durante a leitura da obra.

sofreu o mesmo destino, só que pelas

Para Coleman ( 2006), eles conduzem o

garras de um urso:

leitor

ao

três

primeiros

clímax,

caracterizado

A arena te ofereceu César, um espetáculo

pela

semelhante

descrição dos espetáculos realizados na

bosque

procissão,

onde

–dia, era possível acompanhar nas arenas as execuções, realizadas por meio de encenações com tema mitológico. Por fim, realizavam-se os combates de gladiadores. Os Espetáculos no Liber Spectaculorum Encontra-se nos poemas de Marcial os diversos tipos de espetáculos realizados nos anfiteatros romanos: as execuções, as caçadas e os combates de gladiadores. As execuções eram realizadas por meio de produções mitológicas. Em um de seus

poemas,

Marcial

descreve

a

encenação da Morte de Orpheu, que na

Haviam

animais

depôs contra a história. (SPEC. 24 (21), 2006, p. 174)

também membros das camadas dirigentes

por volta das dez horas da manhã. Ao meio

Hepérides2.

pela ingratidão de um urso. Somente esse fato

promotor do Ludi era saudado. Desfilavam

dia. Após a Pompa, tinham-se as caçadas,

das

pássaros. Mas ele, contudo, morreu dilacerado

o

e os gladiadores que combateriam naquele

contemplou.

ao gado. Sobre o poeta pousavam inúmeros

começavam pela manhã, com a Pompa, de

Ródope1

selvagens de toda espécie que se misturavam

As apresentações nos anfiteatros espécie

que

Rastejou pelas rochas e correu pelo maravilhoso

arena.

uma

ao

10

As caçadas eram realizadas pela manhã, e nelas podia-se assistir a luta entre dois ou mais animais, ou a caça ao animal selvagem. epigráficos

Relatos literários e

desses

espetáculos

se

debruçam sobre a coleção de animais exóticos envolvidos, inclusive herbívoros africanos, como os elefantes, rinocerontes, hipopótamos e girafas; além de ursos e alces das florestas do norte, assim como criaturas estranhas: onagros, avestruzes e gruas.

Os

mais

populares

foram

os

leopardos, leões e tigres. É possível conhecer um pouco mais desse espetáculo 10

Quidquid in Orpheu Rhodope spectasse theatro,

Dicitur, exhibuit, Caesar, harena tibi.

Mitologia foi trucidado pelas bacantes.

Repserunt scopuli mirandeque silua cucurrit,

Para tanto foi erguido no anfiteatro um

Quale fuisse nemus creditor Hesperidium. adfuit inmixtum pecori genus omme ferarum, et supra uatem multa pependit auis,

cum uersus patriae diceris esse pater. (SPEC. 3, 2006, p.

ipse sed ingrato iacuit laceratus ad urso.

37)

haec tantum res est facta. (SPEC. 24 (21), 2006, p. 174)

497


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

numa série de três epigramas que Marcial

chamado Carpóforo, que segundo ele era o

dedica a morte de uma javali prenha, que

melhor dentre todos os outros: Junte toda a glória que teve Meleagro, sua fama

teve seu parto na arena:

é uma pequena parte da de Carpóforo. Ele

Uma mãe javali, ferida gravemente por um dardo,

cravou seus dardos em um urso, é o maior de

experimentou seus últimos instantes de vida.

toda a Acrópole Ártica. Derrubou um leão,

Quão certeira foi a mão que lançou aquele dardo!

assombroso por seu tamanho e digno de uma

Creio que foi a mão de Lucina. Perto da morte,

das proezas de Hércules. Com um só golpe,

experimentou a divindade das duas Dianas: uma

lançado a distância, abateu um veloz leopardo. E

a fez mãe e a outra lhe tirou a vida.SPEC.

quando coletava seus prêmios ele ainda tinha

15(13), 2006,135) 11

forças! (SPEC. 17 (15), 2006, p. 140) 12

Seguindo, têm-se os combates de gladiadores.

Esses

consistiam

nas

apresentações mais esperadas do dia. Realizados no período da tarde, opunham adversários com habilidades equivalentes. Os gladiadores eram treinados em escolas, a mais conhecida é a Ludus Romana, que possuía uma passagem direta ao Coliseu. Eles poderiam alcançar fama e riqueza caso saíssem vitoriosos da arena. É importante

ressaltar

que

estes

eram

guerreiros altamente treinados e de grande valor. Por conta disso procurava-se evitar ferimentos graves ou a morte nas arenas.

O Líber Spectaculorum deve ser entendido como uma rica fonte para o estudo dos espetáculos realizados nas arenas de Roma. Como destaca Coleman (1998), ele é uma importante janela para a mentalidade da época. Marcial, por conta de sua condição de cliente, adota um caráter elogioso em relação aos jogos. Outros autores ao se referir a eles, adotam posturas mais severas,

Marcial

compõe

uma

série

de

epigramas em homenagem a um gladiador

que

o

tempo

empregado na diversão deveria ter outros propósitos. Considerações Finais

Existia uma equipe médica responsável pelo bem estar dos gladiadores.

acreditando

O artigo buscou apresentar um panorama de duas instituições que fizeram 12

Summa tuae, Meleagre, fuit quae gloria famae,

quanta est Carpophori portio, fusus aper! 11

Icta graui telo confossaque uulnere mater,

ille et praecipiti uenabula condidit urso,

sus pariter uitam perdidit atque dedit.

primus in Arctoi qui fuit axé poli,

o quam certa fuit librato dextera ferro!

strauit et ignota spectandum mole leonem,

hanc ego Lucinae credo fuisse manum.

Herculeas pottuit qui decuisse manus,

experta est numen moriens utriusque Dianae,

et uolucrem longo porrexit uulnere pardum

quaque soluta parens quaque perempta fera est. (SPEC. 15 (13), 2006, p135)

praemia cum laudem ferret, at hic pateram.

498


Thais Ap. Bassi Soares parte do cotidiano de Roma: o clientelismo e

os

Ludi.

Através

da

prática

mais distantes, eram a expressão dos

do

costumes e tradições romanas, imersos na

clientelismo foi possível estabelecer redes

violência que emanava dos espetáculos

de confiança, que ligavam as camadas

apresentados nas arenas.

superiores e inferiores por meio da fides.

Sendo assim, consideramos essas

Considerando a grande extensão territorial

duas instituições bases de sustentação do

do Império, essas relações fomentavam

poder imperial, à medida que estimulavam

uma aproximação entre as províncias mais

um espaço de diálogo entre as gentes que

distantes e o poder central, situado na

faziam

capital, Roma.

promovendo sua cultura e reforçando a

Os Ludi por sua vez representavam

parte

soberania

do do

mundo

romano, Imperador.

a força do Império. Levados as regiões

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500


CATARINA DE SENA: RENÚNCIA, DEVOÇÃO E FÉ COMO FORMA DE ESTAR COM E EM DEUS-1347-1380 Thiago Palmeira Machado 1 Maria Cecília Barreto Amorim Pilla (orientadora) 2 Resumo: A concepção de corpo, seu lugar na sociedade, sua presença no imaginário e na realidade, na vida cotidiana e nos momentos excepcionais, sofreu modificações em toda a história, desta maneira o ser humano em todas as suas atividades incluso as espirituais, está determinado e condicionado por seu corpo, que é componente de sua unidade pessoal. Catarina de Siena (1347-1380), mística medieval, manifesta que o sofrimento é o caminho original para a santidade. Seu corpo identifica-se com Cristo sofredor, ferido e castigado. Catarina aceita no ato de não comer, a forma mais sublime da relação com o Senhor, “seu Esposo”. Quem come não consome somente o que o alimento representa em relação ao imaginário, e não somente em seu metabolismo. O homem é aquilo que come, ou aquilo que não come, a partir de suas escolhas alimentares revela seu caráter, sua religião e sua relação com Deus. A pesquisa busca compreender a relação mística (comernão comer) e Deus. Analisa-se assim, sobre como o simples e natural ato de alimentar-se pode se transformar num veículo de encontro com Deus e pergunta-se sobre o ato de não comer, sendo que muitos santos místicos dos séculos XIV e XVI, viram nos sacrifícios e nas mortificações uma forma de comunicar-se com Deus. Nestas premissas se encontra Catarina de Sena. Palavras-chave: Catarina de Sena; Privações alimentares; Ascese.

1

PUC-PR

2

PUC-PR

501


Thiago Palmeira Machado

1 INTRODUÇÃO

ser

corporalmente.

Por

isso

mesmo,

Não existe ser humano sem ser

qualquer ação em favor do homem sempre

corporificado. Por isso, qualquer tentativa

será uma ação corporal; o que nos leva a

de definir o homem deverá tomar em

afirmar: o homem é um ser essencialmente

consideração a sua existência corporal. É a

corporal.

nossa corporalidade que nos individualiza,

O corpo constitui um veículo de

que nos insere na realidade terrestre e nos

relação com o Divino, é por ele que são

permite uma comunicação com o meio

infligidas

ambiente e os outros homens. Os direitos e

buscando

os deveres do homem apenas adquirem

séculos,

validade quando expressos em referência a

mulheres tomam como modelo Cristo, em

corporalidade. Dependem, inclusive, da

particular sua Paixão. Diante disso, vem-

atitude para com o corpo o sentido e o

nos as perguntas: como se preparam para

valor que damos a vida.

essa imitatio Christi e como a realizam?

No

decorrer

da

história

as

práticas

a

imitatio

muitos

de

mortificações

Christi.

místicos

em

Durante especial

da

Por que Jesus Cristo, como modelo, foi

humanidade, os homens valoram o corpo

seguido de diversas maneiras através dos

de diversas formas. As atitudes em relação

séculos?

ao corpo foram geralmente determinadas

A superação do corpo, por meio do

por religiões e sistemas filosóficos. A

jejum,

apreciação ao corpo de alguém nos

aniquilamento da própria vontade, ligou-o

permite tirar conclusões sobre a sua

fortemente à alma,ainda que, de maneira

pessoa: sobre sua situação na sociedade,

invertida, isto é, a elevação de um implica

sobre o relacionamento com os seus

no rebaixamento do outro. O corpo pela

semelhantes. As roupas que cobrem o

sua fragilidade, por suas necessidades e

corpo falam de riqueza, de pobreza e de

por sua finitude, desafia a imortalidade e

cultura, revelam-nos funções sociais e

transcendência da alma. No pensamento

religiosas

interiores.

cristão, principalmente a partir do século II,

Sacerdotes, juízes e militares, muitas vezes

a sexualidade passou a ser a principal

podem ser identificados pelas vestes que

manifestação

cobrem o seu corpo. Além disso, o corpo

devido

revela raça, idade, saúde, doença, sexo.

pensadores cristãos fizeram entre o pecado

Para o homem não existe outra maneira de

original, do livro do Gênesis, e o desejo

ter participação na realidade humana a não

sexual. Esse último teria sido o motivo da

e

disposições

da

a

abstinência

da

sexual,

fragilidade

algumas

do

humana,

associações

que

502


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

perda

da

graça

Deus

e,

paraíso.

Os

autoconhecimento em Deus. Desejosa de

encratitas, seguidores do pensamento de

conhecer Deus em si mesma e a si mesma

Taciano, seita cristã difundida na Síria, no

em Deus, para conseguir tal feito, a

século II, consideravam que a reprodução

sienense, primeiro adentrou em si mesma

alimentava o repetitivo ciclo da morte,

para, depois, sair de si, pois reconheceu

associando, assim, intrinsecamente sexo e

Nele

sepultura.

Criador, Ele é; e ela, como criatura, não é,

consequentemente,

de do

Então, vencer o corpo e suas vis

Evangelho,

toda

no

sua

caminho

e

potencialidade.

no

Como

no seu nada, no seu humano.

demandas era equivalente a vencer a

O pensamento do Nada, Aquele que

morte. Dessa forma nas bases éticas do

é tudo, vem retomado muitas vezes, no

pensamento cristão, o corpo ocupou o

Diálogo também no seu Epistolário, e dá

espaço

as

para perceber que esse princípio se torna o

diretrizes a serem percorridas por aqueles

ponto fundamental de sua doutrina. Assim,

que aspiram a perfeição.

conseguiu vivenciar a Imitatio Cristi no seu

principal,

estabelecendo

Buscamos com esta pesquisa refletir

corpo e no seu espírito. Recebeu, dessa

sobre o papel do alimento na composição

maneira

das atitudes de contenção do corpo e do

compadecimento de Jesus na cruz: os

domínio da vontade. Em primeira instância

estigmas, porém invisíveis, como uma dor

apresentaremos

breve

no lado do peito esquerdo, igualmente

contextualização situando leitor dentro do

sentida quando o soldado romano enfia a

período histórico, da biografia de Catarina

sua lança no peito de Jesus; dor na

de Sena e das reflexões que são realizadas

cabeça, em razão da coroa de espinhos a

sobre o corpo no que tange as privações e

troca do coração de Jesus, com o da

flagelos. Em seguida conceitualizaremos o

sienense, que culmina com o casamento

corpo na perspectiva do Antigo e Novo

espiritual, isto é, na saúde e na alegria,

Testamento,

bases

mais na dor que na alegria. Pois é na

verificaremos como se da a composição

dorque Catarina, na sua nulidade, encontra

das

monacato

o Tudo, de onde advém a sua felicidade.

primitivo e como neste está situado o

Aplicamos, em vista disso, as palavras do

gérmen da mística medieval.

salmista a Catarina: “alargais o caminho a

regras

uma

lançadas alimentares

estas no

Catarina buscou fazer parte da sua existência humana na radicalidade do

meus

os

passos,

sinais

para

visíveis

meus

pés

do

não

resvalarem” ( Sl 18,37) E ainda “eu corro

503


Thiago Palmeira Machado

no caminho dos teus mandamentos, pois tu

Na introdução que fez ao livro,

alargas o meu coração” ( Sl 108,32).

“Êxtase e clausura”, Mary Del Priore (2005)

Catarina vê a lux magna de sua vida e

considera que a crença inabalável que

missão estando no centro Jesus, cruci

algumas

affixus 3.

escolhidas, entre outras tantas, por Deus

mulheres

tinham,

de

serem

para ser suas esposas, “levou algumas

2 CONTEXTUALIZAÇÃO O corpo de Cristo está no centro do

delas a realizarem grandes feitos, também

discurso cristão.A religião cristã é a única

aos olhos dos homens”. Esse é o caso de

em que Deus “se inscreveu na história

Catarina de Sena, que em seu tempo, de

tomando forma humana: é a religião do

angústias

Deus encarnado”. (GÉLIS, 2008, p.23).

estigmas e exerceu junto aos papas

Essa concepção dá estrutura e forma à

Gregório XI e Urbano VI forte influência

uma ânsia pelo estado de perfeição, o que

religiosa, sendo considerada uma das

pode ter levado ao desenvolvimento de

figuras decisivas de aconselhamento de

estratégias para salvação caracterizadas

papas para por fim ao inquietante Cisma da

pelas experiências místicas do final da

Igreja Católica.

e

inquietudes,

recebeu

os

O final da Idade Média europeia é

Idade Média na Europa. Para Jacques Gélis (2008,p.19), a fé

marcado por uma série de contradições.

Cristo

Por um lado a população cresceu, o

contribuíram sobremaneira para a alta

comércio se desenvolveu, novas cidades

consideração que o corpo assumiu ao

surgiram, antigas cidades se revitalizaram.

longo da história ocidental. Por outro lado,

Houve

essa concepção nos revela um paradoxo.

filosofia, nas artes visuais e na literatura.

Se por um lado esse corpo é valorizado

As

como veículo para salvação, por outro ele

arquitetura temos os maravilhosos estilos

deve ser depreciado, na medida em que,

gótico e o românico.

e

a

devoção

ao

corpo

de

quando não controlado, corre o risco de se perder. Há assim uma ambiguidade no discurso cristão em relação ao corpo: enobrecimento e desprezo.

um

florescimento

universidades

cultural

nasceram,

na

e

na

Mas a chegada o século XIV trouxe consigo

uma

série

de

dificuldades.

Esse foi um período de santas, em meio a um contexto histórico de angústias e inquietudes, frágeis mulheres de vida intensamente

3

Expressão utilizada por Catarina em seu livro o Diálogo

que significa que "ela ganhou" isto é, ganhou a Cristo.

espiritual

voltavam

seus

interesses a ações reformadoras. Esse é o

504


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

caso de Catarina de Sena (1347-1380),

Já no final da Antiguidade início da

que entre suas admoestações e sacrifícios

Idade Média, a exemplo de São Bento de

para encontrar-se com Deus em vida,

Nursia no século VI, a fuga para o deserto,

negou-se a alimentar-se, chegando a tomar

a renúncia dos bens materiais, os votos de

por dia somente a Santa Comunhão.

pobreza, castidade, obediência, silêncio,

Catarina nasceu em 1347, em Siena,

oração e trabalho, constituíram-se em

na Toscana italiana. Vigésima quarta filha

exemplos a serem seguidos. E mais tarde,

de Tiago e Lapa Benincasa. Filha de um

junto ao êxtase – a possibilidade de sair

tintureiro bem estabelecido, quando tinha

fora de si, superar o corpo – mostraram-se

seis anos fez voto de virgindade; aos 12

como possibilidades de comunicação entre

anos cortou seus cabelos, no que parece

o sujeito e o divino, como prevê Nunes

ter sido uma tentativa de enfrentar a

Junior (2005), a união entre Deus e a alma

vaidade e tornar-se menos atraente para o

como forma de aumentar a capacidade

casamento,

intelectual.

pois

segundo

João

Alves

Basílio 4, ela se despojou de suas tranças

Assim, o êxtase poderia ser uma

quando sua mãe lhe apareceu com um

forma

do

feminino

pretendente. Aos 15 anos recebeu o hábito

capacidade “limitada” de intelecto, pois ao

das Irmãs da Penitência de São Domingos,

alcançar

e ao chegar aos 20 anos, já tinha se

possibilita

tornado uma figura respeitada em Siena.

racionalidade ausente em seu corpo de

Semanalmente dirigia uma reunião pública

mulher.

o

êxtase, a

transcender esse

aptidão

sua

estado

intelectual,

lhe a

cujo objetivo maior eram as orações.

Segundo Delumeau (1989), em seus

Reunindo em torno de si leigos, religiosos e

estudos sobre o medo na Idade Média

sacerdotes,

formaram

ocidental, as restrições em relação à

uma família que a acompanharia até a sua

mulher datam de longe. Considerada mais

morte aos 33 anos.

próxima da natureza desde antes dos

seus

seguidores

Catarina abraçou a luta contra as

ascetas

cristãos,

ela

foi

definida

em

tentações da carne, escolheu combater a

oposição à natureza masculina racional,

finitude de seu corpo por meio de privações

como mais ligada ao instintivo, ao sonho, à

e penitências extremas, como mortificações

obscuridade. São Paulo vedou às mulheres

e jejuns prolongados.

a palavra nas assembleias, indicando a elas o lugar da submissão aos homens.

4

Tradutor para o português das obras de Santa Catarina

de Sena.

Ligada à figura de Eva, responsável pela

505


Thiago Palmeira Machado

queda do homem no Gênesis, a cultura

representação

cristã acentuou no imaginário medieval,

amantes,

junto à ideia próxima do fim do mundo, a

humanos de Cristo, que ao relacionar sua

valorização da virgindade e da castidade.

interpretação ao Cântico dos Cânticos,

Nesse sentido que Santo Ambrósio

inaugurou acorrente do misticismo afetivo.

considera

o

enfatizando

entre os

dois

aspectos

Assim sendo, esse santo considerava o

recurso, pois a maternidade só traz dores e

êxtase como uma união momentânea entre

aborrecimentos,

o esposo (Cristo) e a esposa (Alma).

mais

estado

como

união

último

virgindade,

casamento

da

vale

divino.

optar Mas,

pela como

Essa entrega se faz por iniciativa do

conciliar essa visão misógina como o

esposo, o Cristo que deseja o encontro,

ensinamento evangélico sobre a igual

que desce à Terra para acolher a alma em

dignidade do homem e da mulher? Assim

seus braços. Há um desejo pelas partes,

se questiona Delumeau (1989, p.317). Para

uma

ele, isso se faz em Santo Agostinho

pensamento, segundo Nunes Junior (2005)

“graças a uma surpreendente distinção:

influenciou a literatura religiosa nos séculos

todo ser humano, declara ele, possui uma

XII ao XIV, período em que viveu Catarina

alma espiritual assexuada e um corpo

de Sena, e outras místicas algumas delas,

sexuado. No indivíduo masculino, o corpo

santas ou tão simplesmente religiosas ou

reflete a alma, o que não é o caso da

leigas. É também nessa época grande

mulher”. São Tomás de Aquino compartilha

florescência da escrita mística feminina.

da mesma concepção ao defender que a

vontade

pelo

encontro.

Esse

Tais como Catarina, muitas dessas

mulher foi criada imperfeita, de corpo e

místicas

deixaram

relatos

de

suas

alma, e isso justifica sua submissão.

experiências, por elas mesmas ou por meio

Em substituição ao casamento, foi

de seus confessores. “Essa expressão

oferecida a possibilidade da união mística.

apaixonada da relação com Deus, na qual

No século XIV, o Mestre Eckart propôs,

a alma busca-o, vorazmente, constitui

segundo Nunes Junior (2005, p.37), em

aquilo que ficou conhecido como amor

relação à essa união, uma transformação

místico”. (NUNES JUNIOR, 2005, p.39).

em Deus, um caminho para a conversão em

Cristo.

a

(1990, p.505), Catarina foi interlocutora de

transubstanciação no ser divino. Já no

pontífices, e a ela se atribui “a tripla

século

Claraval,

auréola, ou coroa”, além de virgem e mártir,

considerava a união mística como a

foi pregadora, colocando em suspenso as

XII,

Um São

aniquilamento,

De acordo com Chiara Frugoni

Bernardo

506


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

proibições paulinas sobre a vedação da

conotação simbólica. A refeição e a partilha

palavra às mulheres. Seus biógrafos, como

do alimento tornou-se uma metáfora da

Raimundo de Cápua e Tomás de Antonio

imagem de Cristo, ela é veículo para

de Sena, enfatizaram a importância de sua

reafirmar o pertencimento ao seu corpo –

missão

estabeleceram

tanto no sentido corpo de Deus como no

associações entre a doutrina da santa e

sentido de comunidade cristã. Incorporar-

analogias que estabeleceu com São João,

se a Cristo foi um desejo para alguns

legitimando assim seus escritos.

místicos entre os séculos XII e XVI na

profética,

Assim, nesse contexto muitas vezes

Europa cristã, dentre os quais Santa

adverso ao feminino, como alcançar o

Catarina de Sena, que embora humilde

respeito, o direito de ser considerada, e a

religiosa leiga dominicana, vivendo em

oportunidade da escolha da vida religiosa?

meio à crise do papado de Avignon (século

Como escapar do destino traçado pelo

XIV) transitou pelo mundo masculino entre

homem?

reis e papas lutando pela unificação de

A

busca

pelo

êxtase,

a

oportunidade de transcender esse corpo

Igreja

biologicamente

advogando a favor da volta do papa para

feminino

pode

ter

se

revestido nessa chance. Mas como chegar

Católica

e

pela

pacificação

Roma.

a esse estado? A negação ao sexo e a

Por

meio

da

imitação

e

a

privação do alimento parecem ter se

consequente incorporação ao corpo de

estabelecido como meios eficazes para

Cristo pelo jejum extremo, fez do sacrifício

esse intuito. O homem é aquilo que come,

uma

ou aquilo que não come, a partir de suas

sacrifícios, adoração às dores e às chagas

escolhas alimentares revela seu caráter,

do Redentor mergulhou em um universo de

sua religião e sua relação com Deus. O

martírio e sofrimento onde a rejeição ao

domínio

relaciona-se

alimento,

de

configuraram-se em uma espécie de nutrir-

da

diretamente

à

vontade experiência

si,

ao

conhecimento dos limites do próprio corpo e ao conhecimento do outro, sendo esse Outro, Deus.

vivência

o

diária.

jejum

Pela

e

a

meditação,

abstinência

se ao contrário, no alimentar-se pela falta. Entre outras atitudes de contenção e de domínio da vontade que se revelam em

O mistério da consagração e as

privações

e

flagelos

negou-se

a

se

palavras de Jesus na Última Ceia – Isto é o

alimentar, buscou privar-se ao máximo do

Meu corpo – transformou o pão em um

alimento. Dessa forma, fez da comida uma

alimento

peça fundamental para a construção do

universal

e

com

uma

forte

507


Thiago Palmeira Machado

caminho

que

a

levaria

para

Deus.

necessários que a alma tem que percorrer

Mostrando-se incapaz de comer, talvez

para que não sofra os enganos dos

tenha reconhecido a finitude de seu corpo,

sentidos. Trata-se de um esforço para

entregando-se completamente à vontade

contornar os limites que o corpo impõe e ir

do Pai.

mais além deles.

3 O CORPO IDENTIFICADO COM

Catarina leva seu corpo aos limites e

CRISTO

a

mística

a

transpassa,

o

sujeito

Tornar-se corpo de Cristo passando

desaparece e se dá uma abertura ao Outro.

por todas as provas sofrida pelo Homem

O desaparecimento do corpo prepara

das dores, eis aspiração mais sublime. A

aquilo que a experiência mística apresenta

tradução corporal da imitação de Cristo

como uma ruptura e desorganização dos

toma

limites, ruptura que faz de Catarina um

então

fenômenos:

a

forma

da

de

diversos

estigmatização

à

receptáculo

dócil

aos

arrombamentos

transverberação, passando pela inscrição

divinos e estabelece o território onde tudo

no coração e por outras marcas que são

isso irá acontecer: o corpo.

sinais de eleição. Mas somente o Criador

Atravessando as fronteiras do corpo,

da alma do e do corpo tem poder de

o místico encontra-se com Outro corpo. E

produzir tal transformação. Através do

este encontro tem como meio a ascese. O

corpo da mística, é exatamente Cristo que

ascetismo será uma atitude que Catarina

se encarna de novo para sofrer, através da

se manterá fiel, ignorante totalmente o

carne da criatura.

amor próprio e se oferecendo a Deus:

Catarina

manifesta

o

sofrimento

como caminho inevitável para a santidade. Seu corpo se identifica com Cristo ao se entregar para a morte. Neste sangrar-se, triturar-se, Catarina assume em seu corpo os significantes do Cristo Crucificado. Trata-se, para ela, de um despojamento do corpo que denota um despojamento total do amor próprio. Ao tomarmos como referência o

Diálogo,

podemos

despojamento

é

ver um

dos

que

este

caminhos

[...]

com

profundo

conhecimento

de

si,

envergonhava-se da própria imperfeição.[...] Por essa

razão

odiava-se

com

santa

justiça,

desprezava-se. [...] Dizia ' Ó eterno Pai, dirijo-me a ti para que castigues meus defeitos neste mundo. E porque, pelas minhas faltas, sou a responsável dos sofrimentos que meu próximo padece,

rogo-te

que

bondosamente

te

desagraves de mim ( 2010, p. 91)

Os discursos de Catarina asseguram que ela fez penitências de um tal modo levou seu corpo aos limites. Fez jejuns com ardor e resistência, chegou ao ponto de não mais comer. Esse desejo de não

508


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

comer é descrito como "uma invasão

CONCLUSÃO

desconhecida" ( 2010, p.92), ela aceita

Diz Emilio de Radius( 1904-1988),

como um castigo necessário, a partir daqui

"Catarina de Sena é mãe e não filha de seu

surge um binômio, o comer e o não comer,

tempo",

Catarina encontra nos jejuns, na privação

mulheres- a chamavam de mãe. Era uma

do alimento, uma forma de se alimentar ao

virgem convicta, fez voto de castidade

contrário.

ainda na infância, mas poucas mulheres

O momento em que se produz a união de Cristo com Catarina é narrado

seus

seguidores-

homens

e

possuíram como ela o sentimento de maternidade.

como um momento de lactação, onde o

Seu

pensamento

e

doutrina

bebê suga do seio 5 materno o leite e

influenciaram gerações, e neste artigo

encontra satisfação e conforto, isto é, a

procuramos

abordar

doçura da experiência mística enche sua

experiência

limite

boca e a deixa sem palavras, a satisfaz

apontamos

três

eixos

que

plenamente.

transversalmente

esta

abordagem:

Catarina ao receber a comunhão

a

mística

do

como

gozo.Assim, percorrem a

ausência, o gozo e o corpo.

(por muito tempo seu único alimento)

A

experiência

mística

é

uma

"sentia durante muitos dias, de modo

experiência inefável, como é expresso

admirável, o gosto, o sabor e o cheiro do

diversas

corpo e do sangue de Cristo" a fusão da

incapacidade de comunicar se faz carne

sienense com Cristo é tamanha que é

em Catarina e em seus esforços ante a

chamada de "esposa de sangue", pois,

impossibilidade de comunicar sem perder

pela meditação, sacrifícios, adoração às

parte da experiência. Neste caso, através

dores e às chagas do Redentor, mergulhou

da voz de Deus, Catarina conta as

em um universo de martírio e sofrimento

dificuldades da narração mística. Apesar da

onde a rejeição ao alimento, o jejum e a

dificuldade em nomear a experiência, a

abstinência

uma

sienense não deixará de expressar os

espécie de nutrir-se ao contrário, no

sentimentos pela qual transita , fará do

alimentar-se pela falta.

indizível um ensinamento e um legado de

configuraram-se

em

vezes

no

Diálogo;

essa

cultura. Podemos observar em Catarina um 5

Alusão ao peito aberto de Cristo na Cruz, este é

assinalado na obra catariana como um lugar de tranquilidade, paz e redenção.

modo de ser feminino em relação a Deus, uma

forma

de

viver

em

Deus

que

509


Thiago Palmeira Machado

ultrapassa o limites do saber e se situa no

Outro o qual o próximo representa uma

sentir

mediação.

um

gozo

sem

mediação,

que

estabelece Outro modo de linguagem,

Sua vida foi repleta de êxtase,

outra forma de significar a presença do

revelações e abstinências. Em sua cidade

divino.

natal, ganhou ainda em vida qualidades Para Catarina, o conhecimento de

referentes

à

imagem

de

uma

santa,

Deus será disposto num cenário diferente

findando por atrair religiosos e leigos assim

dos silogismos, da lógica ou filosofia. O

como

cenário que ela terá como território de sua

purificação espiritual. Exemplos como os

religiosidade será o corpo, um corpo

de Catarina de Sena, são suficientes para

ilimitado que se desorganiza em cada

nos dar uma ideia de como a piedade

experiência, um corpo que é falado por

feminina, pelos mais diferentes motivos,

Deus com uma linguagem que exclui a

foram marcantes a ponto de influenciar de

palavra e que somente é restabelecida pela

maneira

escrita.

contemporâneos. A fama de seus jejuns e

jovens

poetas

positiva,

que

buscavam

politicamente

seus

Se a escrita será um instrumento de

purificações aliados com seus êxtases e

seu cotidiano, o próximo será também sua

milagres que lhe eram atribuídos, como por

referência constante. Deus e o próximo não

exemplo, a conversão de novos fiéis, a

se diferenciam na obra da sienense. O

cura de enfermidades e a conciliação de

conhecimento do próximo é uma abertura a

problemas familiares.

alteridade e implica no conhecimento do

Referências: A BÍBLIA DE JERUSALÉM. 10.ed. Tradução Gilberto da Silva Gorgulho, et al. São Paulo: Paulus, 2001. DE SENA, Santa Catarina. O Diálogo. Tradução Frei João Alves Basílio. São Paulo: Paulus, 2010. FLORS, Juan. Historia de la Espiritulidad. Espiritualidad Católica- Espiritualidad bíblica, de los primeros siglos cristianos y de la Edad Media. Barcelona,1969. LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda, 1972-1973. 2 ed., cor. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985..

510


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

LAWERS, Michel. Santas e anoréxicas: o misticismo em questão. In: BERLIOZ, Jacques. (org.). Monges e Religiosos na Idade Média. Lisboa: Terramar, 1994. LE GOFF, Jacques. TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,2012. NUNES JUNIOR, Ario Borges. Êxtase e Clausura: sujeito místico, psicanálise e estética. São Paulo: Annablume, 2005.

511


A MULHER IDEALIZADA EM TEXTOS DE DOM DINIS E VINÍCIUS DE MORAES Valéria Santos 1 Resumo: A nossa proposta de comunicação tem com objeto de estudo o poema Cântico, de Vinícius de Moraes, considerando a influência recebida do Trovadorismo na forma e no conteúdo de sua obra. O período literário medieval reflete um estilo de vida diferente, um retrato da vida feudal da corte, expressão de um meio culto e refinado, caracterizando a produção de cantigas líricas trovadorescas, as quais, ao longo dos séculos, influenciaram a produção poética ocidental no que se refere à temática do amor. Para o desenvolvimento deste estudo, escolhemos como tema a cantiga de amor, originária da Provença, que trata da mulher idealizada e do amor cortês, sentimento convencional e platônico que consiste no culto à mulher, modelo de beleza e virtude. Vinícius de Moraes, poeta brasileiro, inspirase na temática da cantiga Quero eu en maneira de proençal, de Dom Dinis (1261-1325) no poema Cântico, retomando a concepção de amor cortês, o código de vassalagem amorosa e a cortesia cavalheiresca, ao elevar a mulher a um plano quase divino, concebendo o sentido da sua própria existência, ao ultrapassar os limites da carne e transcender a própria alma. No entanto, esta busca nunca se finda, mostrando-se presente em todo o poema, tal como na cantiga de Dom Dinis. Palavras-chave: poesia; mulher; idealização.

1

UEM

512


Valéria Santos

1.1 TROVADORISMO: O AMOR CORTÊS E A IDEALIZAÇÃO DA MULHER

Junto

com

o

cristianismo,

a

fascinação cultural do mundo antigo é o

O amor cortês é um traço marcante

maior suporte da existência do homem

da poesia a partir do final do século XI, que

medieval e a literatura trovadoresca está

consiste em dedicar em versos, o amor

largamente impregnada dessa influência.

insatisfeito (a coita, dor, sofrimento) a uma

Da

dama inacessível. Ao revelar esse amor, os

trovadoresca recebeu, sobretudo, preceitos

trovadores orientam o seu comportamento

de ordem formal e estética: a descrição dos

de acordo com o rígido código ético do

sintomas do amor, dos seus tormentos, das

amor

pelo

noites mal dormidas, da consumação lenta,

convencionalismo da vida palaciana e com

certas imagens e expressões. Os eróticos

evidentes influências da cultura clássica. O

latinos,

conceito de amor cortês pautava-se no

temperamento medieval, estão realmente

infinito e na plenitude do ser e, por isso,

na raiz do movimento medieval.

cortês,

comprometido

entrava em desacordo com o conceito de

poesia

lírica

embora

latina,

filtrados

a

poesia

através

do

Os elementos da cultura clássica

casamento, na época, realizado como um

presentes

na

negócio. Marido e mulher estabeleciam

trovadores, contudo, não seriam capazes

uma relação primordialmente material e

por si só de formarem a doutrina do amor

terrena.

cortês.

Foi

poesia

dos

necessário

primeiros

juntar-lhes

o

Essa paixão vivida pelo homem, na

princípio do amor platônico, utilizado pela

verdade, trata-se de um fingimento, produto

Igreja cristã que vê no amor uma fonte

da imaginação e inteligência e não da

inesgotável para se atingir o sumo bem, a

sensibilidade. O individualismo presente na

suma beleza.

cultura

trovadoresca

contrariava

os

É

incontestável

a

fortíssima

princípios tradicionais da Igreja, porque a

influência do idealismo cristão na moral

senhora passa a ser o objeto de adoração

trovadoresca, onde há também elementos

do poeta. Assim, a contemplação amorosa

não cristãos. Mas foi a ideia cristã que

da senhora ocupa o centro da vida do

dignificou o sentido mundano das coisas e

trovador, fazendo-o esquecer até o próprio

seres presentificando-se no trovadorismo,

Deus. Este individualismo, estas atitudes

principalmente,

libertárias, no entanto, quase não afetam a

divinizada pelos trovadores, a cantiga de

canção lírica.

amor. Dentro deste aspecto ressalta-se a

no

culto

da

mulher

influência do culto mariano sobre a poesia

513


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

trovadoresca. A Virgem cumpria o papel de

chegava-se ao êxtase e à alegria suprema,

mediadora entre o Céu e a Terra, ouvia as

concepção

súplicas dos fiéis e transmitindo-as ao

necessário que se infiltrou na ética dos

Senhor, resultando em um paralelismo

trovadores, atribuindo- lhe um caráter de

entre a atitude do cristão prostrado aos pés

inexprimível tristeza.

estoico-cristã

do

sacrifício

da Virgem e a do amador ajoelhado aos

É necessário considerar também a

pés da senhora. Na poesia, a Virgem

influência do sentimento de hierarquia

representa o modelo de beleza e de

feudal na formação da doutrina do amor

virtude.

cortês. O comportamento do trovador para

Neste culto de adoração à mulher de

com sua dona deveria ser idêntico a do

classe superior, configura-se a libertação

vassalo para com o seu senhor. Há nos

do homem medieval que, ao diviniza-la,

textos das cantigas de amor a presença da

realiza

vassalagem

um

desvio

consciente

ou

amorosa,

invenção

dos

inconsciente dos ideais da Igreja. Não há

trovadores provençais, que marcou toda a

nisso uma oposição entre o culto da mulher

produção poética lírica. Trata-se da coita

e o culto a Deus. O que ocorre é que

(dor, sofrimento) amorosa, a paixão vivida

humanizando Deus e divinizando a mulher

pelo homem que está a serviço de uma

fica estabelecido um mesmo plano de

dama. O trovador se compraz em viver de

adoração. Há que se considerar também a

um amor insatisfeito, ocasionado pela

questão do interesse pela riqueza da

incorrespondência da mulher, e em analisar

senhora, casada e poderosa, motivos

nos seus pormenores de causa e efeito o

sociais

seu drama passional. A mulher torna-se,

e

financeiros

e

não

motivos

anticatólicos.

assim, a dona inacessível às solicitações

Foi no cristianismo que a cultura trovadoresca

buscou

“o

seu

método

do trovador amante. As cantigas de amor refletem

um

estilo

de

vida

diferente,

psicológico, o gosto da análise interior, o

constituem um retrato da vida feudal da

fino tom das idealizações e por vezes a

corte,

veemência da sua emoção” (LAPA, 1977,

refinado,

p.26).

convencionalismo da vida palaciana e com

Para

os

trovadores

o

caráter

doloroso e interminável da experiência

expressão

de

um

meio

comprometido

culto, pelo

evidentes influxos da cultura clássica.

amorosa constituía-se em um estágio

As influências diversas recebidas

educativo, período de longa provação.

pela cultura trovadoresca garantem-lhes

Somente

um caráter paradoxal e contraditório. Essa

após

penosos

sacrifícios

514


Valéria Santos

dualidade consiste na coexistência de

a alma. Na verdade, a concepção de amor

tendências opostas como “a exaltação da

que Vinícius de Moraes revela aproxima-se

personalidade e proibição das demasias

de uma concepção “romântica” de amor.

(mesura), amor platônico e voluptuosidade

Concepção

goliardesca, delírio ascético e racionalismo

sentimento de vassalagem amorosa, da

burguês” (LAPA, 1977, p.26).

sublimação da mulher como modelo de

1.1 VINÍCIUS, UM TROVADOR

que

se

identifica

com

o

beleza e virtude, o qual, no século XII,

A obra de Vinícius de Moraes é marcada por dois polos distintos que se

recebeu o nome de “amor cortês”. Devido

a

estes

aspectos

que

entrecruzam, o da sensualidade e do

envolvem a concepção de amor cortês,

desejo de transcendência. Essas duas

para o poeta brasileiro, a mulher nunca é

polaridades geram um conflito marcante,

vista como um corpo que apenas oferece

principalmente na primeira fase de sua

prazer. Ao contrário, há a sua divinização e

produção poética. A não resolução desse

glorificação.

conflito gera, entretanto, um “enervamento”

glorificada é a que representa o sentido da

na segunda parte de sua obra o que a

sua própria existência, a que o poeta tanto

torna mais significativa. O desejo de

busca e deve ultrapassar os limites da

transcendência

primeiro

carne e transcender a própria alma. Busca

momento, ainda se mostra presente na

que nunca se finda e se mostra presente

segunda parte de sua obra. O amor se

em seus versos do poema Cântico.

revelado,

num

apresenta como um sentimento que traz a

A

mulher

divinizada

e

A plenitude física na poesia de

dor e o sofrimento, porque há a busca da

Vinícius

transcendência através dele. Da mesma

“indesejável”, porque contraria a concepção

forma que o homem não consegue conciliar

do “amor cortês”, considerando a temática

“corpo-alma”,

do conflito entre a transcendência e a

também

não

obtém

o

equilíbrio na relação “homem-mulher”.

revela-se

“impossível”

ou

sensualidade feminina presente em seus

O poeta não conseguiu dissociar os

textos. E se algumas vezes desmitifica a

aspectos religioso e profano da natureza do

experiência amorosa, não dessacraliza,

amor, mas ele não se apresenta como

porém, o amor. Ao contrário, quanto mais o

poeta de crises religiosas. A religiosidade

poeta se entrega aos sentimentos, maior é

presente em sua obra não é aquela de

a angústia de purificação.

quem se preocupa com o Inferno, mas sim,

1.1LEITURA COMPARATIVA

de quem busca o equilíbrio entre o corpo e

515


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

A cantiga Quer’eu en maneira de

proençal,

de

D.

Dinis

permite-nos

têm

em

comum

características

estabelecer uma leitura comparativa com o

presentes

em

poema Cântico de Vinícius de Moraes,

contemporâneo.

da

para

identificar

poesia

trechos

as

trovadoresca

desse

poema

levantando os aspectos que os dois textos Quer’eu en maneira de proençal

No calmo peito teu. Tu és a estrela

fazer agora un cantar d’amor

Sem nome, és a namorada, és a cantiga

e querrei muit’i loar mha senhor

Do amor, és luz, és lírio, namorada!

a que prez nen fremosura non fal

Tu és todo o esplendor, o último claustro

nen bondade, e mais vos direi en:

Da elegia sem fim, anjo! mendiga

tanto a fez Deus comprida de ben

Do triste verso meu. Ah, fosses nunca

que mais que todas las do mundo val.

Minha, fosses a idéia, o sentimento Em mim, fosses a aurora, o céu da aurora

Ca mha senhor quiso Deus fazer tal

Ausente, amiga, eu não te perderia!

quando a fez, que a fez sabedor

Amada! onde te deixas, onde vagas

de todos o ben e de mui gran valor

Entre as vagas flores? e por que dormes

e con tod(o) est’é mui comunal,

Entre os vagos rumores do mar? Tu

ali u deve; er deu-lhi bon sen

Primeira, última, trágica, esquecida

e des i non lhi fez pouco de bem,

De mim! És linda, és alta! és sorridente

quando non quis que lh’outra foss’igual.

És como o verde do trigal maduro

Ca en mha senhor nunca Deus pôs mal

Teus olhos têm a cor do firmamento

mais pôs i prez e beldad’e loor

Céu castanho da tarde - são teus olhos!

e falar mui ben e riir melhor

Teu passo arrasta a doce poesia

que outra molher, des i é leal

Do amor! prende o poema em forma e cor

muit’,e por esto non sei oj’eu quen

No espaço; para o alto do poente

possa compridamente no seu ben

És o levante, és o Sol! eu sou o gira

falar, ca non-á, tra-lo seu ben, al.

O gira, o girassol! És a soberba

(D. Denis, CV 123, CBN 485)

Também, a jovem rosa purpurina És rápida também, como a andorinha!

CÂNTICO

Doçura! lisa e murmurante ... a água

Não, tu não és um sonho, és a existência

Que corre no chão morno da montanha

Tens carne, tens fadiga e tens pudor

És tu; tens muita emoção; o pássaro

516


Valéria Santos

Do trópico inventou teu meigo nome

De ti, sou teu cantor humilde e terno

Duas vezes, de súbito encantado!

Teu silêncio, teu trêmulo sossego

Dona do meu amor! sede constante

Triste, onde se arrastam nostalgias

Do meu corpo de home! melodia

Melancólicas, ah, tão melancólicas...

Da minha poesia extraordinária!

Amiga, entra de súbito, pergunta

Por

que

me

arrastas?

Por

que

me

Por mim, se eu continuo a amar-te; ri

fascinas?

Esse riso que é tosse de ternura

Por que me ensinas a morrer? teu sonho

Carrega-me em teu seio, louca! sinto

Me leva o verso à sombra e à claridade.

A infância em teu amor! cresçamos juntos

Sou teu irmão, és minha irmã; padeço Como se fora agora, e sempre; demos

Contra esse teu langor; és o penúltimo

Nomes graves às coisas impossíveis

Lirismo! encosta a tua face fresca

Recriemos a mágica do sonho

Sobre o meu peito nu, ouves? é cedo

Lânguida! ah, que o destino nada pode Quanto mais tarde for, mais cedo! a calma É o último suspiro da poesia

título, pretende um canto, um hino de

O mar é nosso, a rosa tem seu nome

louvor à amada. Devemos esclarecer que

E recente mais pura ao seu chamado.

“cântico” se destina cantar uma divindade,

Julieta! Carlota! Beatriz!

no poema, a mulher amada. Desta forma

Oh, deixa-me brincar, choro, e desse

cria-se

pranto

idealização da mulher, um dos códigos do

Que se não brinco, choro, e desse pranto

amor cortês, a idealização poética da dona

Desse pranto sem dor, que é o único amigo

como modelo de beleza e virtude, segundo

Das horas más em que não estás comigo.

os moldes da Provença.

(MORAIS, 1980, p.200)

a

ambientação

poética

de

Na cantiga trovadoresca, a voz lírica louva as qualidades da senhora nas

Na primeira estrofe da cantiga de D. Dinis,

o

trovador

evidencia

a

sua

proposição de fazer um canto de amor em

palavras

prez

(caráter),

fremosura,

bondade, beldad’e loor, comprida de ben (perfeita)/bon

sen

(bom

senso),

leal,

Quer’eu em

qualidades físicas e morais da senhora.

maneira provençal/ fazer agora un cantar

Sua dignidade, virtudes e atributos tornam-

d’amor/ e querrei louvar muit’i loar mia

na superior a qualquer outra: que mais que

senhor. No poema de Vinícius, desde o

todas las do mundo val (vale mais que

louvor

de

sua

senhora:

517


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

todas as mulheres do mundo) e, assim o

poeta, verdadeira concretização poética da

plano a que pertence a senhora é o da

mulher.

mais alta perfeição. Do mesmo modo, no

Nos dois primeiros versos do texto “Não, tu

poema Cântico, estará em primeiro plano a

não és um sonho, és a existência / Tens

figura

ser

carne, tens fadiga e tens pudor” há uma

cantada: Não, tu não és um sonho, és a

individualização que vai sendo quebrada

existência. O eu lírico estabelece uma

até chegar à generalização. O tu que

oposição entre sonho e existência. Nega

sugere o individual é generalizado, quando

que tu fosse sonho e afirma a sua

se torna a estrela/Sem nome. Embora haja

existência e através de um processo de

o artigo definido antes de “estrela”, a

adjetivação passa a definir o tu nos verbos

expressão sem nome que caracteriza a

ter e ser:

estrela é mais forte, sendo intensificada na

da

amada

escolhida

para

“(...) Tu és a estrela Sem nome, és a namorada, és a cantiga Do amor, és luz, és lírio, namorada!

continuidade dos versos que falam de uma namorada. Como nas cantigas de amor, o

Tu és todo o esplendor, o último claustro

eu lírico não identifica a sua amada, ela é

Da elegia sem fim, anjo! mendiga

apenas a cantiga/Do amor.

Do triste verso meu.”

O uso do verbo ter garante as características que o ser humano traz em si como carne, fadiga e pudor. Através do ser, revela-se

a

essência

de

tu:

estrela,

namorada, cantiga, luz, lírio, esplendor, claustro, anjo e mendiga. Embora o poeta tenha afirmado a existência e negado o

sonho, ao mostrar a essência de “tu” composta por elementos não pertencentes à realidade concreta, contradizem-se. Ela é a namorada distante uma vez que também é estrela/Sem nome, é a cantiga /Do amor, que o poeta canta a luz que a envolve, e nunca é tocada, lírio e esplendor. Por pertencer a um ideal e estar distante, ela se torna motivo de dor e sofrimento para o

Durante o processo de construção do texto depreendemos que, ao usar o verbo ter, o poeta construiu uma espécie de fórmula, a partir do pronome “tu”, que reúne todas qualidades do ser amado, tal como registram os versos da cantiga trovadoresca

que

centraliza

na

“mha

senhor” todas as qualidades incomparáveis as de outras mulheres comuns: tanto a fez

Deus comprida de ben/ que mais que todas las do mundo val (tanto que Deus a fez perfeita/ que ela vale mais que todas [as mulheres]

do

mundo).

Tal

Cântico,

trovadores,

em

transforma

a

realidade,

materializando-a

mulher

do

o

como eu

os lírico

sonho em

em seus

versos.

518


Valéria Santos

Confirmando a figura feminina como um ideal o poeta revela seu sentimento:

platônico. A amada arrasta a poesia o que é mais forte que trazer, a poesia vem com ela de qualquer forma e prende o poema

“(...) Ah, fosses nunca Minha, fosses a ideia, o sentimento

em forma e cor. É a repetição da ideia de

Em mim, fosses a aurora,o céu da aurora Ausente, amiga, eu não te perderia!”

que a beleza feminina se concretiza nos

A amada corresponde a um ideal de

versos do poema. Responsável pela poesia

mulher, a “ideia”, o sentimento nele e não

do amor ela configura o poema no espaço,

dele, conceito platônico de mulher.

céu ou papel. Ela é o próprio poema, tanto

A voz lírica da cantiga de D. Dinis

na forma quanto nas ideias e na beleza.

ressalta da personalidade da senhora mais

A ideia vai sendo reafirmada: “No

as qualidades morais do que físicas, nos

espaço; para o alto do poente/ És o

versos. O caráter, a beleza, o louvor, falar

levante, és o Sol! eu sou o gira/ O gira, o

bem, rir melhor e a lealdade , atributos que

girassol.” A mulher como o sol que

não se comparam aos de outra mulher

concretiza o dia, concretiza a poesia. O

comum.

poeta está para a mulher como o girassol

mais pôs i prez e beldade’e loor

está para o sol, a seguir a sua passagem.

e falar mui ben, e riir melhor

Ao falar da amada, o eu lírico continua a

que outra molher; desi é leal

No poema de Vinícius, o processo de busca pelo ideal feminino vai se desenvolvendo por todo o texto, por um processo de exaltação dos atributos físicos, da beleza da amada, tal como na cantiga de amor:

elevá-la, cada vez mais longe só lhe resta admirá-la à distância seguindo, sempre, a trajetória dela. Concluímos que a mulher da cantiga de amor é elevada a um plano superior, inatingível. Sua posição de senhora da

(...)

corte, expressão de um meio culto, refinado

És linda, és alta! és sorridente

e comprometido pelo convencionalismo da

És como o verde do trigal maduro

vida palaciana, torna-se a dama incessível

Teus olhos têm a cor do firmamento

às

Céu castanho da tarde - são teus olhos!”

A

amada

poesia

trovador

amante,

atingindo, muitas vezes, a abstração, na

relacionadas, ela traz a doce poesia? Do

maioria dos textos. Já no texto de Vinicius,

amor! Prende o poema em forma e cor,

o verso: Dona do meu amor! equivale a

verso nos remete, mais uma vez, à cantiga

“Senhora do meu amor”, forma usada

de

mulher

também pelos trovadores no tratamento da

inacessível e o amor convencional e

amada, colocando-a num plano superior

drama

a

do

estão

amor,

e

solicitações

passional,

519


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

inatingível e centro da vida do amante. O

frustração da busca do amor ideal que é

texto demonstra também certa inclinação

compensada pelo fazer poético, brincar

ao platonismo amoroso, quando o eu lírico

equivale a fazer poesia. Expressa o desejo

se posiciona como servo de sua dona,

de “brincar”, ou seja, escrever sobre o seu

rememorando

amor, já que não lhe resta mais nada, nem

a

vassalagem

amorosa

medieval.

mesmo o amor real.

O poeta coloca-se também como cantor da mulher que desperta o amor fraterno e mantém sua postura submissa. Ele sofre não por ela, mas dela: “padeço/ De

ti”,

demonstrando

Desse pranto sem dor, que é o único amigo Das horas más em que não estás comigo.

A postura servil do trovador ao elaborar uma cantiga para exaltar a mulher

consciência de não sofrer por uma mulher

amada dentro da convenção do amor

real, mas sofrer por algo que existe nele,

cortês, pelo exposto, também se verifica no

que pertence à sua fantasia, à figura ideal

poema Cântico, quando o eu lírico também

de uma mulher, é o sofrimento que se

busca um ideal de amor e de mulher, que

transforma

não se confunde com o amor carnal. Essa

poesia,

ele

Que se não brinco, choro, e desse pranto

tem

em

que

Oh, deixe-me brincar, que te amo tanto

verdadeiras

nostalgias melancólicas. No final, o eu lírico passa a revelar todo o seu amor e sofrimento, além da

busca constante causa sofrimento e dor ao poeta, para aplacá-las compõe seus versos e, neles, a mulher e o amor se confundem.

Referências: BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 3 ed. São Paulo: Cultrix, 1981. CUNHA, Helena Parente. VINÍCIUS de Moraes, o Eterno Trovador. Revista Brasileira de

Língua e Literatura – Sociedade Brasileira de Língua e Literatura, página 58, 1983, nº 11. D. DINIS – CANCIONEIRO. Organização, prefácio e notas de Nuno Júdice. Lisboa: Teorema, 1998. LAPA, M. Rodrigues. Lições de Literatura Portuguesa. 9 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1977. FERREIRA. David Mourão in Vinicius de Moraes Poesia Completa e Prosa. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1980. MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 22 ed. São Paulo: Cultrix, 1986.

520


Valéria Santos

MORAES, Vinícius, Vinícius de Moraes Poesia Completa e Prosa. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1980.

521


DO CONVÍVIO À MONARQUIA: CONSTRUÇÃO DO IDEÁRIO DO NOBRE MEDIEVAL Viviane de Oliveira 1 Terezinha Oliveira 2 (orientadora) RESUMO: A proposta do trabalho é evidenciar uma perspectiva do conhecimento medieval a partir da leitura dos tratados Convívio e Monarquia, escritas por Dante Alighieri. O recorte histórico se refere aos séculos XIII-XIV, na Europa Ocidental, momento o qual a nobreza e a educação passaram por uma série de transformações, oriundas, na sua maioria, do crescimento do meio urbano. Essas mudanças provenientes do ambiente urbano fortaleceram o ideal de liberdade e da educação religiosa e, indubitavelmente, influenciaram o surgimento das primeiras universidades. A metodologia utilizada para analisar as obras Convívio e Monarquia é na perspectiva da História Social, apresentada por Marc Bloch, compreendendo assim que o conceito de nobre proposto por Dante Alighieri e a sua finalidade é resultado de diversos fatores, como o contexto e a singularidade do florentino.Dante Alighieri utiliza dos conhecimentos clássicos, como os princípios aristotélicos e erradica a teoria dualista de seu tempo para traçar a perfeição de nobreza por meio do conhecimento. Posterior a essa análise, o poeta erradica esse ideal de nobre à uma nova organização social, propondo a separação dos poderes eclesiásticos e temporais. Portanto, a partir da leitura é possível analisar os embates em torno da elite medieval e as transformações do conhecimento ao longo do tempo, de forma que nos permite questionar os próprios conceito de Homem e Conhecimento que aderimos até o presente momento. Palavras-chave:Dante; Nobre; Conhecimento Medieval.

1UEM 2DFE/PPE/UEM

522


Viviane de Oliveira Introdução

Baixa Idade Média. Franco Jr. o define

O objetivo desse trabalho é evidenciar uma

perspectiva

medieval

a

do

partir

como: Um conservador, alguém que construiu uma utopia

conhecimento

da

leitura

baseada no passado e que sua nostalgia a

das

idealizava. Foi ainda um patriota, apaixonado por

obrasConvívio e Monarquia, escritas por

sua Florença e tendo mesmo forte senso de italianidade. Foi um Grande sábio, conhecedor de

Dante Alighieri. Para isso, apresentamos

quase tudo que sua época possuía. Foi um

uma breve contextualização histórica e

exaltado amante, que cantou um símbolo de

fazemos uma análise comparativa das

beleza

nobre e filósofo para o poeta florentino. Dante Alighieri nasceu em Florença, em 1265. Originário de uma família de baixa nobreza, porém, não abastados financeiramente. Este fato foi crucial para a permanência dos Alighieri em Florença após o insucesso de Monaparti, quando os Guelfos

florentinos

perderam

para

os

Gibelinos de Arezzo, em 1260. Dante casou-se

por

volta

de

1285

com

GemmaDonati, por meio de um contrato matrimonial

estipulado

por

seu

pai

Alighiero, em 1277. Porém, amou e se inspirou em Beatriz, escrevendo Vida Nova, em 1292. Esta obra era um conjunto de prosas e poesias. Após a morte da amada, Dante mergulhou seus escritos na filosofia e posteriormente na política em obras como as que serão comparadas nesse trabalho. Primeiramente

é

necessário

evidenciar que o autor da obra, Dante Alighieri, foi um importante intelectual da

virtude.

Contudo

nenhuma

essas

fórmulas bastam. (FRANCO JR, 2000, p. 121).

obras. A partir desse estudo podemos constar o desenvolvimento do conceito de

e

É incontestável a importância do autor enquanto político, filósofo e poeta. O que Franco Jr. (2000) evidencia em sua obra são as diversas análises que podem ser feitas a partir de uma perspectiva analítica do poeta. Assim, o autor divide seu livro em diversos “perfis” de Dante Alighieri: O florentino, O exilado, O enciclopédico, O esotérico, O amante e O místico. Franco Jr. (2000, p. 121) conclui que nenhuma dessas análises definem o poeta, pois limitar o poeta

florentino

característica

é

a

uma

limitar

determinada “alguém

que

buscava romper os limites. Dante foi o poeta do Absoluto”. Dentro dessa perspectiva analisamos os fatos que levaram Dante a ser um importante intelectual, homem de seu tempo. Segundo Franco Jr. (2000) pouco se sabe a respeito da formação intelectual do

pensador.

Porém,

certamente

ele

cumpriu os estágios básicos da educação medieval, trivium e quadrivium. A formação intelectual de Dante Alighieri pode ser

523


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

considerada autônoma, apesar de não

divisão do poder papal e real, tornou-se

concluir nenhuma academia, o poeta foi

inimigo do Papa Bonifácio VIII, que tinha a

influenciado pelas ordens mendicantes de

pretensão de ocupar Florença. Assim,

Florença,

quando

conhecedor

tornando-se do

método

um

preciso

os

Guelfos

Negros,

os

que

escolástico,

apoiavam o Papa, venceram, Dante foi

procedimento indispensável no ensino das

exilado de Florença. O exílio de Dante

universidades medievais e fundamental

pode ser considerado como um “divisor de

para a escrita de tratados políticos. Franco

águas” em sua vida, tendo sua produção

Jr. (2000) destaca ainda o quão foram

literária impulsionada e escrevendo obras

importantes os incentivos literários de

como a monumental Divina Comédia.

Guido Cavalcanti e as lições que o poeta

Conforme

recebeu de BrunetoLatini, por volta de

extremando pós o exílio sua condenação

1280.

também, até que em 1315, Dante é

Antes de ter se destacado pela sua

a

posição

política

vai

se

considerado herege.

produção literária, Dante obteve destaque

O século XIII, o qual viveu Dante

pela atuação política na cidade de Florença

Alighieri, foi marcado por um período de

(até ser condenado ao exílio em 1302). O

transformação na Europa Ocidental, no

contato de Dante Alighieri com a vida

qual o feudalismo dava mostras de seus

pública se iniciou quando serviu nas

limites

guerras entre as cidades da Península

ascensão

Itálica. Seu contanto mais relevante dentro

Franco Jr. (1986). Foi entre os séculos XII

da política florentina quando participou do

e o XIII que surgiram intensas atividades

conselho especial do Povo e foi membro do

econômicas e intelectuais, um aumento

Conselho dos Cem 3.

demográfico

O envolvimento político de Dante

e,

expansão

concomitante, das

cidades,

acelerado, territorial

registrava-se como

com e

um

aponta

marcante grande

acarretou-lhe vários problemas. Segundo

deslocamento de pessoas e do trabalho, do

Orlandi (1972), ao tomar partido pelos

mundo rural para urbano.

Guelfos Brancos, que apoiavam a tese de

Le Goff (2007) considera o século XIII como o apogeu do Ocidente medieval, pois

3“Concelho

de cem membros com poderes consultivos,

para ele é quando ocorre a ‘urbanização’,

por uma Assembleia Popular que se reunia quatro vezes

trazendo consigo várias transformações

ao ano para confirmar os atos dos cônsules, aprovar os

sociais, econômicas e culturais, inclusive

tratados concluídos, definir funções de cada funcionário

na educação da época, com a criação de

comunal.” (FRANCO JR, 2000, p.20)

524


Viviane de Oliveira escolas urbanas. Neste movimento de

afetou, diretamente, a vida dos florentinos,

urbanização, observa-se a constituição de

especialmente a da família Alighieri.

cidades com vários perfis como as Cidades

Na Toscana essa disputa foi marcada

episcopais, Cidades “grandes”, As Capitais

por dois momentos: Primeiro em 1260

e as Cidades-estados, como é o caso da

quando os gibelinos obtiveram a vitória

Península Itálica.As Cidades-estados, ou

decisiva em Montaperti e as principais

também

se

famílias guelfas foram exiladas, gerando

crescimento

uma profunda crise na estrutura política

demográfico e o fortalecimento econômico

florentina. O segundo momento foi em

das cidades italianas, que levaram sua

1266, em Benevento, com a recuperação

população a se rebelar contra as antigas

da autoridade guelfa e o fim das tropas

autoridades locais. Nessa luta travada

gibelinas. Lewis (2002) ressalta ainda que

pelos habitantes das cidades contra os

em consequência de algumas tentativas de

seus senhores, as comunas conseguiram,

reestabelecer o poder gibelino após a

desde o final do século XI, o direito de

vitória guelfa em Benevento, que Dante

eleger seus próprios dirigentes.

Alighieri foi à batalha de Arezzo em 1289

chamadas

desenvolveram

É

nesse

de

devido

cenário

Comunas, ao

de

grandes

para conter as forças rivais. Podemos

transformações que se encontra Florença,

constatar que se inicia dentro dessas

a tão amada cidade de Dante e é nela

disputas políticas entre dois partidos a vida

também que o autor participa das grandes

ativa de Dante Aliguieri na política de

disputas travadas entre os poderes Papais

Florença, que resultaria em seu exílio.

e os Imperiais. Segundo Franco Jr. (2000),

Além dos embates políticos como o da

desde o século XI, as características

formação

de

dois

grandes

‘partidos’,

papistas dominaram Florença. Segundo o

guelfos e gibelinos, que marcaria Florença

autor, um dos fatos mais marcantes na

por muito tempo, consequentemente, a

história de Florença no período, em tela, foi

vida de Dante Alighieri. Outro fator é o

à famosa disputa entre o Papa (Gregório

marcante desenvolvimento dos centros de

VII) e o imperador (Henrique IV). Nesta

comércio florentino, segundo Franco Jr.

disputa, a condessa florentina Matilde

(2000), quase toda nobreza Florentina era

tomou partido pelo Papa, cristalizando a

de origem feudal, mas à medida que os

posição papista, depois denominada de

comerciantes iam prosperando, a nobreza

Guelfos. Esse posicionamento da condessa

ia perdendo os seus poderes, o comércio

525


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

passou a tomar controle do econômico

na obra Convívio que o poeta evidencia o

florentino.

conceito de intelectual, para ele intelectual

Em 1293, uma nova legislação foi

ou

filósofo

seria

aquele

ligado

aos

imposta pondo fim aos privilégios da

conhecimentos clássicos, um erudito e um

nobreza. Com a Ordenação da Justiça as

nobre, pois essas eram as características

famílias nobres foram excluídas dos cargos

necessárias para ordenar o mundo, ao

públicos e a participação política passou a

menos o de Dante.

ser condicionada à inscrição em uma

Do Convívio à Monarquia:

corporação. Deste modo, segundo Orlandi

O que Dante propõeno Convívio é a

(1972) Dante filiou-se à Corporação dos

utilização dos conhecimentos clássicos,

Boticários para participar da vida ativa da

como os princípios aristotélicos para traçar

cidade.

e

a perfeição de nobreza por meio do saber,

ser

ou seja, a partir da leitura do Convívio é

governada por muitos comerciantes. Isso

possível analisar que para Dante Alighieri o

se torna relevante para nossa pesquisa

conhecimento seria a virtude capaz de

porque a urbanização é um dos grandes

ordenar o mundo. A partir dessa proposta,

motores

analisamos os embates em torno da elite

Essa

legitimava

o

legislação

explicitava

fato

Florença

para

as

de

transformações

na

educação medieval.

medieval e do conhecimento, durante os

Segundo Le Goff (2003), o intelectual

séculos XIII e XIV, momento o qual a

da Idade Media nasceu junto com a

nobreza e a educação passarão por uma

urbanização

O

série de transformações, que partem do:

professor, erudito intelectual, só apareceu

crescente meio urbano fortalecendo o ideal

com o surgimento das cidades.

de liberdade e da educação religiosa até a

na

Europa

Ocidental.

Um homem cujo ofício é escrever ou ensinar, e de preferência as duas coisas a um só tempo, um homem que, profissionalmente, tem uma atividade

formação das primeiras universidades. Como

considerado

anteriormente,

de professor e de erudito, em resumo, um

Dante Alighieri é um homem de seu próprio

intelectual – esse homem só aparecerá com as

tempo. Portanto, a obra Convívio é um

cidades. (LE GOFF, 2003, p. 23)

Mas para compreender o que é o intelectual diferenciar

medieval,

é

a ideia de um

necessário historiador

contemporâneo para com a ideia de Dante Alighieri, um homem do século XII/XIII. É

reflexo da realidade e da necessidade, percebida pelo poeta, no contexto do século XIII e XIV. Essa obra expressa a ideia de intelectual e saber que se disseminava na Europa ocidental. Para entender

esses

conceitos,

o

poeta

526


Viviane de Oliveira Florentino vai diferenciar o Aristocrata do

VII, 2). Podemos compreender que a

verdadeiro Nobre. De acordo com Dante, a

análise do poeta para razão distancia o

aristocracia

verdadeira

homem dos seus sentidos, aproximando a

nobreza se for educada segundo os

ideia à corrente dualista, onde se tem o

parâmetros da filosofia aristotélica.

homem dividido em alma e corpo. Assim,

alcança

a

O Convívio pode ser considerado uma

como uma forte crítica, Dante Alighieri

obra inacabada, pois, como o próprio autor

acredita que os homens vivem mais

afirma, foram previsto quinze tratados. A

segundo os sentidos do que segundo a

escrita fora interrompida depois de se

razão.

concluir o quarto tratado. A causa dessa

Quanto a temporalidade, segundo o

interrupção provavelmente está ligada ao

poeta o pensamento somente se dá

início da produção do tratado Monarquia,

enquanto hábito, o ser humano não pode

visto que a ideia de caráter providencial do

estar

Império Romano em sua legitimidade da

contemplação. Entendido em um sentido

autoridade

a

aristotélico o hábito não está enquanto uma

restauração da instituição temporal para a

disposição, mas uma qualidade da alma

Itália,

humana, que deseja o conhecimento.

imperial,

animada

propondo

com

a

presença

do

o

tempo

Imperador Henrique VII que atravessava a

Podemos

península, já é esboçada ao longo do

considerações

tratado IV no Convívio.

essencialmente

Quando analisamos as investigações realizadas

por

a

que

estado

partir o

da

dessas

poeta

influenciado

é pelo

pensamento medieval. A obra é desenvolvida de forma

evidenciados:

a

metafórica, Dante Alighieri convida o leitor

temporalidade.

Em

a se sentar para um banquete onde ele

primeiro lugar, a defesa da razão surge

elenca aqueles que têm a capacidade de

como do seu pensamento clamado como

se alimentar junto dele. O alimento desse

filosófico. Dante escreve “quando se diz

banquete é o conhecimento filosófico, a

que o homem vive, deve se entender que o

sabedoria, sendo este representado pelas

homem usa a razão. (Conv. II, VII, 2). E

canções do poeta que iniciam cada um dos

depois, citando Boécio acrescenta: “quem

quatro

se desvia da razão e usa somente os

alimento, o poeta trás também o pão, ou

sentidos não vive como homem, mas como

seja, os comentários do poeta que visam

um animal". Vive como um asno.” (Conv. II,

um esclarecimento das canções.

são

racionalidade

e

a

Alighieri,

afirmar,

no

dois

elementos

Dante

todo

tratados.

Acompanhando

esse

527


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Uma das questões, que segundo

qual

o

homem

se

desenvolveu.

É

Dante Alighieri, levaram o desenvolvimento

necessário existir condições de ócio para o

inicial da obra é quanto o conceito de

desenvolvimento

filósofo e filosofia: Quem é o filosofo

conhecimento.

desse

verdadeiro

verdadeiro e o que é a filosofia? Dante

O segundo tratado se inicia com

Alighieri não responde diretamente essas

Dante Alighieri apresentando o ‘prato’ do

perguntas. Para ele todo homem pode ser

banquete ao seu leitor. Ou seja, antes

genericamente chamado de filósofo, pois

mesmo de apresentar suas ideias centrais,

em todos se encontra o desejo de saber

o poeta explica como o tratado deve ser

(Conv. III, XI, 6). Mas essa posição aceita

lido e interpretado. Para Dante Alighieri

no mundo intelectual da época parece não

toda interpretação deve considerar quatro

satisfazer o próprio Dante por completo.

sentidos:

Por isso ele define: O homem não recebe o

anagogico (Conv. II, I 2-15).

literal,

alegórico,

moral

e

nome de filosofo por ter amor ao saber,

O que se deve observar na exposição

quando assim, a filosofia só se encontra ali

de Dante Alighieri é que os quatro sentidos

quase que por acaso (Conv. III, XI, 7-10). A

podem ser considerados como diferentes

Verdadeira filosofia é engrenada pela

níveis de interpretação de um texto. Dessa

honestidade e bondade, com reto desejo e

forma, ao lermos a obra Convívio, como um

reta razão. (Conv. III, XI, 11)

todo,

Como já exposto o Convívio é dividido

compreendemos

discurso

do

poeta.

o

método

um

do claro

em quatro tratados. O Primeiro tratado

desenvolvimento da ideia do autor em

justifica o porquê da obra, seu objetivo e a

diferentes

escolha da língua toscana e não a latim.

retórica, dando-as como base ao seu leitor

Assim,

antes de apresentar sua principal ideia

Dante

Alighieri

restringe

o

conhecimento que leva a perfeição a um seleto

grupo

divinamente,

de

homens

para

designados,

possuir

esses

níveis

de

interpretação

e

centrada no último tratado. No terceiro tratado Dante Alighieri apresenta

uma

exaltação

à

filosofia,

conhecimentos. Para isso ele aponta as

personificada pela amada do poeta, uma

causas de tal restrição. A primeira causa

dama nobre. Explica como nasceu o seu

seria a imperfeição do homem, tanto de

amor pela filosofia e por que é legítimo que

corpo quanto de alma. Outra condição,

esse amor supere qualquer outra forma de

segundo

amor, referindo-se principalmente ao amor

o

poeta,

para

adquirir

o

conhecimento está relacionada ao meio no

carnal

existente

na

personificação

528

de


Viviane de Oliveira Beatriz. O florentino analisa a ideia de intelecto e a chama de mente. Nela, Dante distingue as virtudes do conhecimento e indica que uma que corresponde à alma e a outra à razão. Diferente de muitos estudiosos, do período, o poeta não define o

caminho

para

a

divindade

pelo

conhecimento simplesmente. Para ele, o conhecimento é um dom divino que deve ser utilizado pelo governante ou pelo segmento

dominante

para

conduzir

a

humanidade. Para Bombassaro (2004) essa obra surge como uma defesa da razão. Defesa essa que Dante Alighieri coloca como o último grau de perfeição da alma: “saber que reside nossa suprema felicidade, todos somos por natureza levados a nutrir o desejo dele” (Conv. I, I, 1).Para o autor Dante separa o mundo da razão do mundo sensível e o acesso ao conhecimento filosófico só se conquista por meio do intelecto resistindo ao mundo dos sentidos. O quarto tratado se refere ao real significado da nobreza. O autor critica a nobreza florentina enquanto fundamentada pela

riqueza

herdada

por

seus

antepassados: Procedo dizendo que as riquezas, como o outro

entende-se aqui a degeneração, a qual se opõe à nobreza. (Conv. IV, VIII, 5-6).

Para

o

autor

a

virtude

do

conhecimento é o que legitimaria o nobre. Ainda nesse tratado, o poeta argumenta e apresenta o real papel do nobre com condição primordial individual, de origem divina e que se manifesta por meio de um comportamento virtuoso que conduziria para a verdadeira felicidade. No tratado IV, Dante Alighieri afirma sentir-se frustrado pela incapacidade de resolver uma questão metafísica e busca refúgio no âmbito da ética, e dentro desta, uma questão muito concreta, o conceito de nobreza. Para resolver essa questão, Dante expõem a existência de duas grandes questões: a primeira é a questão da nobreza; a segunda a legitimidade do império. Porém, ambas as questões partem da premissa que todas as atividades humanas relacionadas ao saber estão destinadas aos respectivos homens, tendo base nessas ideias a partir o maior filósofo, Aristóteles. Essas questões que permeiam o tratado IV da obra Convívio são os ‘alicerces’

do

tratado

que

seria

posteriormente escrito por Dante Alighieri,

acreditava, não podem conferir a nobreza. E para

aMonarquia. Essa obra foi escrito em latim,

mostrar a grande distância que as separa, afirmo

diferentemente

que as riquezas não podem tirá-la de quem a possui. Além do mais, não podem conferi-la, uma vez que são naturalmente vis e, por causa de sua

de

outras

que

foram

escritas em italiano. Esse fato é relevante, pois permite perceber o público alvo de

vileza, são contrárias à nobreza. Por vileza

529


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo era encarregado pela Providência de guias a alma

Dante Alighieri: as pessoas do segmento

cristã

dominante, especialmente o alto clero,

também era reconhecido como a língua universal, ou seja, Dante dirigia essa obra para o setor mais alto do século XIII e para os

intelectuais,

universal

uma

propondo monarquia,

na

língua também,

universal. O tratado sobre a Monarquia foi dividido em três livros. O primeiro livro intitula-se a Necessidade da Monarquia. Nele, Dante defende a ideia de que a monarquia é a única que assegura a paz e a ordem no mundo, pois o Monarca é aquele que por providencia divina é, intelectualmente,

capaz

de

guiar

os

homens para a benevolência terrestre, a Paz Universal. Dante (1999, p. 16) aponta essa estima à virtude do conhecimento em passagem do primeiro livro: “Concluamos: torna-se evidente que a perfeição suprema da potência específica do homem reside na faculdade ou na virtude da intelecção”. Kantorowiczexplica essa ideia do poeta florentino: O monarca de Dante não era simplesmente um homem da espada e, com isso, o braço executivo

a

iluminação

supranatural.

(KANTOROWICZ 1998, p. 280-281).

pois, em geral, eram estes que tinham o domínio desta língua. Entretanto, o latim

para

Assim, Dante legitima e distingui o poder do monarca, do poder do papado. Para um, estava determinado, por meio do conhecimento, guiar os homens ao paraíso terrestre

e

Providência

ao

outro

guia-los

por

para

meio o

da

paraíso

celestial. Finalidades diferentes por meio de virtudes diferentes e o único ponto de coincidência entre os dois gládios seria a originalidade de seus poderes. No segundo livro: Como o Povo

Romano obteve legitimamente o encargo da Monarquia e do Império, o poeta afirma que o domínio universal dos romanos não ocorreu em virtude da força, mas sim, pela proeminência divina que interferiu, a partir de

milagres,

comprovar

para

isso,

expansão.

Dante

cita

Para

diversos

‘milagres’ que ajudaram os romanos. No terceiro livro: O Encargo da

Monarquia

e

do

Império

provém

imediatamente de Deus, Dante explicita que

o

poder

do

Imperador

provém

diretamente de Deus, portanto não há necessidade de intermediário, como o Papa. Ou seja, ele propõe uma divisão do

do papado; seu monarca era necessariamente um

poder temporal e do espiritual, que até o

poder

momento

méritos.

filosófico-intelectual Era

por

responsabilidade

seus

próprios

principal

do

imperador, por meio da razão natural e da filosofia moral a que pertencia a ciência legal, guiar a mente humana para a beatitude secular, tal como o papa

era

indissociável

para

a

mentalidade cristã medieval ocidental. Afirmo, então, que o poder temporal não recebe do espiritual nem a existência, nem a faculdade que é

530


Viviane de Oliveira a autoridade, nem mesmo o exercício puro e simples.

Recebem,

aperfeiçoamentos

sim,

do

acidentais:

poder age

espiritual

com

maior

os reis e chefes políticos de forma justa e

eficácia pela luz da graça que Deus, no céu, e a

todos

benção do Sumo Pontífice, na terra, lhe infundem.

exemplo

(DANTE, 1999, p. 98).

Segundo Kanorowicz (1998), Dante apresentou essa tese para se contrapuser aos

canonistas

do

século

XII,

que

apontavam o poder papal superior ao monarca.

Dante

toma

partido

pelos

dualistas, estes já defendiam essa ideia de divisão de poderes, o que o Poeta fez foi se apropriar dessas ideias e aprofunda-las extremamente. Para provar que o poder do monarca estava livre da jurisdição do poder papal,

o

autor

Florentino

propõe

regulamentar o que cabe a Igreja e ao Monarca, distinguindo-os enquanto função, mas não enquanto a meta de organizar o mundo e manter a paz. Ou seja, para distinguir os poderes Dante afirma haver apenas um ponto de coincidência em ambos, sua origem divina. Essa dualidade de fins, não implica que os poderes papais e imperiais eram antíteses ou inimigos, o que Dante propõe é

Imperador ou Monarca mandaria em todos

apenas

a

distinção

da

perfeição

“humana” da “cristã”. Portanto olhar a

Monarquia político

é

como

apenas

reduzir

a

um

tratado

extensão

do

conhecimento de Dante. O que ele propõe é um modelo de governo no qual o Imperador teria o poder supremo. O

agiriam

justamente

monárquico.

conforme

Porém,

o

sem

desconsiderar esse modelo político, é possível perceber que o debate que Dante trava não se restringe meramente a isso. Segundo Kantorowicz (1998), Ao separar o intelecto de sua unidade anterior com a alma e separar as virtudes intelectuais de sua unidade com as virtudes divinamente infundidas, Dante liberou o poder do intelecto livre. Em função da busca da felicidade deste mundo, utilizou-o para unir, em uma só, a comunidade mundial humana composta de todos os homens, cristãos e também não cristãos. (KANTOROWICZ, 1998, p.285)

Conforme a afirmação de Kantorowicz (1998) é possível evidenciar nessa obra a atribuição de um pensamento religioso ao mundo secular e as distintas finalidades do homem no mundo real e no celestial. Porém, ele considera essa dualidade de finalidades dentro de uma proposta de centralidade da comunidade humana, no qual mede suas relações a partir das disputas entre os poderes papal e imperial. Dentro dessa perspectiva, observamos que Dante

não

apresenta

somente

uma

tentativa de reelaborar o papel da Igreja muito

criticada

enquanto

instituição

eclesiástica corrupta -, nem mesmo de legitimar o poder imperial, simplesmente por sua providencia divina. O que o poeta propõe

é

um

modelo

de

sociedade

531


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

unificada, centralizada por dois poderes,

identidade

um designado a guiar a humanidade a

nobrezanasce então por meio da união de

partir do conhecimento e outro por meio da

uma vida política com uma formação

fé. Se percebermos dentro desse embate,

ampla, um caminho pelo qual o homem

as relações humanas medievais também

nobre

como relação de educação, podemos

perfeição de sua natureza.

concluir que Dante apresenta um novo modelo de conhecimento medieval. Uma

passar

peculiar.

para

alcançar

A

a

Um mundo sem nobreza, para Dante, é impensável. Pois é no homem nobre que se realiza a ordem total das coisas.

realizadas nesse trabalho é quanto ao

Segundo o poeta o intelectual não é um

obrasConvívioe

simples intermediário, mas é antes um

do

principais

deve

muito

constatações

papel

das

nobre

nobre

Monarquia.

No

nas primeiro

tratadoDante

homem

“divino”

que

pela

filosofia

Alighieri discute sobre qual a origem da

corresponde ao outro Deus encarnado. A

nobreza no homem, estabelecendo uma

invenção do intelectual por Dante está além

clara diferença entre a nobrezade virtude e

da nobreza de linhagem ou da nobreza de

a hereditária. Segundo Brazarolla (2007),

ofício, é uma nobreza virtuosa de saber

na Germania do século XII uma discussão

essencialmente

desse tipo estaria fora de cogitação, nesse

desenvolvimento urbano.

momento, o termo nobreza tinha outra

inserida

dentro

do

Para compreender melhor a ideia de

concepção. Um homem era nobre caso ele

nobreza

viesse de uma família feudal ou tivesse

pensado

uma nobreza reconhecida pelo soberano.

evidenciar o intelectual, ou melhor, o

Tal

nobre,

detentor do conhecimento durante esse

contudo, não necessariamente detentor de

período. Le Goff (2003: p.23) define o

virtudes.

conceito de intelectual quanto um homem

indivíduo

era

considerado

Considerações Finais permite

compreender

a

proposta de nobreza e a busca por uma adequação entre a preeminência social e a superioridade moral. A partir de uma leitura mais

precisa

dos

tratados

a por

legitimidade Dante,

é

do

império

necessário

medieval dedicado ao conhecimento:

A leitura dos tratados Convívio e

Monarquia

e

de

Dante

Alighieri, percebe-se uma proposta de uma

Anuncia-se na Alta Idade Média, desenvolve-se nas escolas urbanas do século XII, desabrocha a partir do século XIII nas universidades. Designa aquele cujo ofício é pensar e ensinar seu pensamento. Essa aliança da reflexão pessoal e de sua difusão num ensino caracterizava o intelectual.

O intelectual no Ocidente Medieval nasce

junto

com

o

desenvolvimento

532


Viviane de Oliveira urbano. Foi com o desenvolvimento das

O posicionamento de Dante Alighieri,

cidades, principalmente ligado às funções

presente no século XIII, nos permite refletir

comerciais, que o intelectual apareceu na

acerca

forma

se

intelectuais e dirigentes da sociedade. A

instalavam nas cidades nas quais se impôs

realidade onde um dirigente social é

a

forma,

embasado nos mais profundos conceitos

podemos pensar na ideia do intelectual ter

de razão e saber está distante de qualquer

nascido a partir de uma reinvindicação

tipo de comparação ou anacronismo que

profissional, como defende Libera (1999).

poderia ser feito. Contudo, a leitura do

O autor tem um posicionamento singular

tratado e o posicionamento do poeta nos

quando busca diferencia o compreender o

permite ao menos deixar essa provocação:

intelectual medieval e o mediador, portador

qual o lugar e o valor dado conhecimento

de um modelo de vida que se irradiou no

na sociedade contemporânea?

de

divisão

homens de

de

trabalho.

ofício

que

Dessa

exterior das instituições de saber. Então,

dos

conceitos

Ao concluirmos

que

a educação

medieval

mediadores, esse ideal foi ao encontro das

sociais, o modelo proposto por Dante

aspirações

permite

grupos

sociais

não

realizada

homens

graças à atividade de certo número de de

era

de

perceber

nas

que

o

relações valor

do

profissionais que, sem a necessidade do

conhecimento que ele agrega em seu

ofício,

do

tratado é uma das grandes ausências do

A

nosso tempo. Na contemporaneidade, a

partir dessa ideia é que se compreende

educação é vista e estabelecida apenas

que a partir da 'desprofissionalização' do

durante o período e espaço físico escolar

filosofo é que nasce o intelectual medieval.

ou universitário, desenvolvendo diversos

quiseram

aproximar-se

conhecimento disposto pelos filósofos.

Dessa forma, podemos afirmar que a

problemas

educacionais

e

sociais.

ideia de conhecimento em Dante Alighieri

Portanto, essa relação permite apenas

está em transição com os dois principais

formular soluções e métodos para o espaço

movimentos de transformação do próprio

físico de uma entidade educadora e não

conceito de intelectual: o conhecimento

para a sociedade. Dante reconhece essas

filosófico que está cedendo espaço para os

relações

mediadores urbanos e o conhecimento

desordem do mundo para as grandes

universitário,

forças geradoras de poderes de seu tempo.

reproduzido

dentro

próprio ambientes universitários.

dos

Não

tão

e

direciona

o

distintamente

contemporânea

visa

estopim

a

diversas

da

sociedade soluções

533


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

sociais direcionando a desordem do mundo

reflexão do século XIII-XIV, mas sua

para

relação

o

Estado

Laico,

porém,

sem

com

o

tempo

presente

é

reconhecer as relações sociais como os

delicadamente notada nas Universidades,

principais modelos educacionais. Assim, o

instituições

modelo de Dante não cabe apenas uma

relações

educacionais sociais

e

até

nas

presentes.

Referências: ALIGHIERI, Dante. Monarquia. Lisboa: Guimarães Editores, 1999. BOMBASSARO, Luiz Carlos. Dante, o elogio à filosofia no humanismo renascentista. In:

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534


PÔSTERES


JUÍZO FINAL NA IDADE MÉDIA: UM ESTUDO SOBRE O POLÍPTICO DE ROGIER VAN DER WEYDEN (1399-1464) Alisson Guilherme Gonçalves Bella 1 Angelita Marques Visalli 2 (Orientadora) Resumo: A representação do Juízo Final, momento em que Cristo e sua corte celestial ressuscitam os mortos a fim de julgar aqueles que merecem o Céu ou o Inferno, é um tema da religiosidade cristã intrigante e que recebeu diversas interpretações durante a História. Por conseguinte, na BaixaIdade Média, Rogier Van Der Weyden (1399-1464) pintou o políptico do Juízo Final para o Hospices de Beauneencomendado por Guigone de Salins (1403-1470) e seu marido Nicolas Rolin (1376-1462) os fundadores do hospital, encontrado atualmente no museu L’HôtelDieu, nacidade de Beaune, em Borgonha, na França. Através da análiseda obra esta pesquisa pretende entender de que maneira os homens medievais compreendiam o fim dos tempos, partindo da visão escatológica propagada pelo cristianismo e representada em forma de imagem por Rogier Van Weyden. Para tanto, esta pesquisa se divide em dois caminhos: em um primeiro momento, expomos os fundamentos da temporalidade cristã medieval a partir do aspecto de fim dos tempos, vigente nas tradições bíblicas e na teologia medieval, utilizando reflexões de Jacques Le Goff, Jean Delumeaue Hilário Franco Júnior. Após tal análise, apresentamos os resultados parciais sobre imagem e Juízo Final a partir das produções de Peter Burke, Jean-Claude Schmitt, JérômeBaschet entre outros. Palavras-chave: Idade Média; Juízo Final; Imagem.

1

Graduando em História pela Universidade Estadual de Londrina.

2

Professora adjunta do departamento de História da Universidade Estadual de Londrina.

536


Alisson Guilherme Gonçalves Bella Desde a origem do Cristianismo,

vem do “grego eschata, ‘as últimas coisas’”.

religião que nasceu em um período que,

Temos uma diversidade muito grande de

hoje, denominamos de Antiguidade, falava-

interpretações

se em um momento particular da história

acreditava em um fim do mundo. Dentre

da humanidade, em que a mesma se

elas, o cristianismo prega um momento em

reencontraria com Cristo, e Este julgaria

que haveria um julgamento de todos os

todos os homens a partir de suas ações,

homens, o Juízo Final. Este tema provocou

sendo

e

que,

os

bons

receberiam

a

ainda

do

provoca

tempo

em

diversas

que

se

reflexões,

eternidade perfeita no Céu, já os pecadores

discussões e interpretações por parte dos

estariam sentenciados a sofrer no fogo

clérigos e dos leigos. Dentre este imenso

eterno no Inferno. Esta temática cristã,

arcabouço,

herdada

religiosas

representação em forma de imagem do

judaicas, paradoxalmente, falava de um

período medieval, o políptico do Juízo

período

Final, pintado por Rogier Van Der Weyden

das da

interpretações História

da

humanidade

acontecido no futuro. Algo que ainda

destacamos

aqui

uma

(1399-1464) para o Hospices de Beaune.

estava por vir. Isto se dava, pois os

Esta obra foi encomendada pelos

homens de fé recebiam revelações divinas,

fundadores Guigone de Salins (1403-1470)

visões

da

e seu marido Nicolas Rolin (1376-1462),

humanidade. Assim sendo, nos restaram

chanceler de Borgonha. O políptico é

os fragmentos bíblicos para compreender o

composto por nove quadros, no tamanho

que pregavam estes profetas do Antigo e

total de 220 centímetros de altura e 548

Novo Testamento. Paulo, o Apóstolo por

centímetros delargura, pintados entre 1443

exemplo, afirma na Epístola aos Romanos

e 1452, em óleo sobre madeira. Temos ao

que“todos nóscompareceremos ao tribunal

centro São Miguel, de tamanho maior que

de Deus (…). Assim, cada um de nós

os homens, segurando uma balança que os

prestará contas aDeus de si próprio.” (Rm

pesa, rodeado de anjos músicos que tocam

14, 10-12).

trombetas. Ainda no centro, Cristo se

e

Esta

profecias

deste

interpretação

do

futuro

fim

dos

encontra entre um ramo e uma espada,

tempos cristã é, atualmente, chamada de

perto de anjos vestidos de branco, que

escatológica. Segundo Bernhard Töpfer

carregam objetos usados na Via Sacra. Os

(2006. p. 353), em seu verbete Escatologia

homens estão ressuscitando e, nus, são

e Milenarismono Dicionário Temático do

julgados indo para o céu, representado

Ocidente Medieval, o termo escatologia

esplendorosamente em dourado, ou para o

537


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

inferno, escuro e sombrio. Percebemos

pensamento religioso. No medievo, tudo

ainda Maria e João Batista, representados

estava ligado, diretamente, a um plano

no mesmo plano espiritual que Cristo, mas

espiritual mais elevado e a Deus. Assim

abaixo Dele, com suas respectivas mãos

sendo, a partir das Escrituras, ao longo de

unidas, em forma de oração. Mais ao

toda a Idade Média, se criaram e se

fundo,

são

os

doze

recriaram explicações que legitimavam o

e

três

discurso religioso cristão, preponderante no

Feitas

estas

ocidente medieval. Mais do que isso,

primeiras observações, segue abaixo a

existia uma crença no Além, ou seja, uma

imagem do retábulo:

promessa para o futuro após a morte, onde

apóstolos,

representados três

representantes

virgens

do

clero.

aqueles que levaram uma vida virtuosa iriam para o Céu, os pecadores para o Inferno e os que não são santos o bastante para entrar no Céu, mas não são culpados o bastante para ir para o Inferno, iriam, ImagemI– Políptico do Juízo Final. Rogier Van der

após a morte, para um local intermediário

Weyden. Produzido entre 1443 e 1452. Atualmente

no Além, o Purgatório. Partindo deste

encontra-se exposto no museu do L’Hôtel-Dieu, em Beaune, França.

A partir destas observações da imagem, levantamos algumas indagações: de que forma pensavam os medievais para representar este tema religioso de tal maneira?

Quais

seriam

os

impactos

causados pela imagem no fiel que a observasse? Quais eram os discursos católicos acerca da perspectiva religiosa de fim dos tempos? Ao longo deste texto, buscaremos responder estas perguntas a partir da historiografia correspondente à História do Medievo e à Imagem Medieval. Os homens medievais tinham uma mentalidade

totalmente

imbricada

ao

pressuposto, compreendemos que existia uma lógica dualista na crença cristã: o bem e o mal, sendo o Juízo Final o momento responsável por encerrar a espera dos homens, pois chegaria o julgamento de Cristo.

Caberia,

portanto,

ao

homem

escolher qual caminho é o melhor para si aqui na terra, a partir do livre arbítrio fornecido por Deus, de modo que, suas ações terrenas implicariam no julgamento final e, logo, na decisão de Cristo com relação ao futuro eterno dos homens. JérômeBaschet

(2006,

p.

374)

aponta em seu livro A civilização feudal que “o medo do inferno e a esperança no paraíso devem guiar o comportamento de

538


Alisson Guilherme Gonçalves Bella cada um; e a própria organização da

carnais, emoções, pensamentos e ações

sociedade é fundada sobre a importância

dos homens. O que o catolicismo pregava

do outro mundo”. Por conseguinte, é a

era que a carne deveria ser totalmente

justiça divina quem decide o futuro dos

reprimida, para que a alma conseguisse

homens a partir dos seus atos. Mas, cabe a

sobreviver ao mundo e, após isto, ir para o

Igreja,

Céu. Caso contrário a alma seria culpada

estrutura

que

encabeçava

a

sociedade feudal, disseminar este discurso

e, desta maneira, iria para o inferno.

dual. Para Baschet, havia um esforço em

Mas para Le Goff (2006, p. 30) “A

“assegurar os fundamentos teológicos”,

Igreja Católica para incitar os fiéis a

aplicando o discurso moral à realidade dos

trabalhar por sua salvação, apresentava-

homens medievais.

lhes mais medo do inferno do que desejo

Este discurso de um mundo dividido

pelo paraíso. Diante da morte, eles temiam

entre bem e mal era preponderante na

menos

sociedade medieval, de modo que Jacques

inferno.”Havia, portanto, uma insistência

Le Goff (2006, p. 21) analisa, em seu

por parte da Igreja para fazer com que os

Além,no

própria

morte

do

que

o

Temático

homens medievais não só acreditassem

Medieval, que “A preocupação dos homens

nos lugares do Além, como temessem,

e mulheres com o pós-morte ocupava

acima de tudo, o Inferno. Assim sendo,

então um lugar essencial. Tal cuidado não

durante toda a Idade Média, percebemos

concernia

dos

uma diversidade de relatos do Além, onde

indivíduos, mas também à localização de

homens e mulheres de fé, acreditavam

suas vidas futuras”. O cuidado com as

estar sendo transportados para o Inferno,

escolhas que repercutiriam no futuro era

para que deles surgissem novas provas de

constante, pois a Igreja pregava que, o

que o Inferno é real e que os pecadores

Juízo Final poderia ocorrer a qualquer

deveriam temer seu futuro. Isto fez com

momento, e logo, os homens deveriam

que houvessem inúmeras representações,

estar

tal

escritas e imagéticas, do inferno. O escritor

acontecimento. Assim sendo, estando em

e teólogo florentino Dante Alighieri, por

pecado e, sobretudo, sem o sacramento da

exemplo, dedicouum terço de seu poema

confissão,

épico A Divina Comédia expondo o que era

verbete

somente

sempre

os

Dicinário

a

ao

‘estado’

preparados

homens

para

poderiam

ser

culpabilizados por seus pecados cometidos na terra. Estamos tratando, portanto, de uma

constante

vigilância

dos

desejos

o Inferno. Para

Baschet,

o

Inferno

e

o

“espetáculo de horror é convertido em lição

539


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

moral”. Era através do discurso de que

dos homens pecadores, Ele queria se

poucos entrariam no Reino de Deus e a

vingar. Por este motivo, o Juízo Final, o

maioria iria sofrer eternamente que, os

Inferno e o Purgatório ganham ênfase no

clérigos

discurso

impunham

a

ótica

religiosa,

religioso

moral.

O

que

era

pautada, sobretudo, na lógica da salvação.

considerado imoral pela Igreja, também era

A

considerado por Deus,pois a Igreja era a

moralidade

era,

consequentemente,

ditada pela Igreja e, confirmada através da

que

disseminação do medo. Hilário Franco

compreendia melhor. Neste sentido, para

Júnior, em sua obra A Eva Barbada,

Delumeau a Igreja se tornou a “Pastoral do

analisa que

medo”.

Na sua função pedagógica, toda a mitologia cristã ajudava a conservar e a transmitir os valores sociais e morais, bem como a propor

se

aproximava

A

Igreja

mais

Dele

detinha

e

todas

o

as

ferramentas para impor os homens o que era o certo e o que era o errado, de modo

explicações de fenômenos humanos ou naturais

que, aquele que estivesse fora desta regra,

considerados importantes por aquela sociedade

estaria destinado a passar a eternidade no

(...) Por ser ela [a Igreja] a única a conhecer e explicar os textos que davam um sentido à própria vida. (1996, p. 66)

Por

conseguinte,

o

ocidente

Inferno. No Apocalipse João chegou a afirmar que “Quanto aos covardes, porém, e

aos

infiéis,

aos

corruptos,

aos

medieval creditava a Igreja Católica à

assassinos,aos impudicos, aos magos, aos

função de elucidar as escrituras bíblicas.

idólatras e a todos os mentirosos, a sua

Mais do que isso, era através do poder da

porção seencontra no lago ardente de fogo

crença que o catolicismo se espalhou por

e enxofre, que é a segunda morte” (Ap 21,

todo o ocidente, conseguindo ter poder,

8). É deste modo que a pregação católica

sobretudo psicológico, sobre os homens do

se tornou regra, impondo o medo daquilo

período medieval.

que estaria por vir.

A certeza de que, Deus julgaria os homens

A partir desta perspectiva dualista

segundo sua justiça divina, aterrorizava os

entre bem e mal o clero tentou entender o

mesmos. Jean Delumeau (2003a, p. 143),

que era o tempo. Esse dualismo é

em seu livro O Pecado e o Medo, explica

perceptível, apesar de recusado em teoria

que a imagem que se tinha de Deus era a

nos

de que Ele era “infinitamente bom, que,

Escrituras o tempo, para os medievais foi

entretanto, pune terrivelmente”. Logo, a

compreendido como escatológico, ou seja,

imagem de Deus propagada na Idade

a História da humanidade seria linear, de

Média Ocidental, era a de que, por culpa

modo que Deus não interferiria no livre

dogmas

da

igreja.

Através

das

540


Alisson Guilherme Gonçalves Bella arbítrio dos homens, mas ajudaria a

escatológicas”. Em diversas ocasiões se

aqueles que tivessem fé. Quando o mundo

reinterpretaram as Escrituras a fim de

estivesse

descobrir como seria o término do mundo e

tomado

pelo

mal,

acontecimentos, que foram relatados no Apocalipse

de

João,

finalizariam

da História da humanidade.

a

Jean

Delumeau,

em

seu

livro

humanidade, de modo que, haveria um

História do Medo no Ocidente, afirma que

julgamento final, onde Cristo distinguiria “o

existem duas grandes visões escatológicas

joio do trigo”.Baschet explica que

na Idade Média. Para o autor (1996, p.

o tempo cristão é linear, que se desenrola desde o início (a criação do mundo e o Pecado Original) até um fim (o Juízo Final), passando pela

210),

“Uma

pode

ser

qualificada

de

otimista, já que se deixa perceber no

Encarnação, pivô central que alterou o curso

horizonte um longo período de paz no

central da história oferecendo a salvação dos

decorrer do qual Satã será acorrentado no

homens. (2006, p. 315)

portanto, era através da Bíblia que se explicava o tempo para a Igreja Católica no medievo. Sempre crendo em um futuro próximo no Além. Mas o fim dos tempos não tinha data precisa e isto fez com que a Igreja estivesse, a todo o momento, preparando os fiéis para o Juízo Final. Baschet (2006, p. 333) afirma que “O futuro ameaçador da escatologia é uma advertência insistente em favor da salvação da alma em benefício da Igreja que é sua melhor garantia”. O que Baschet explica é que existia uma espécie de estratégia religiosa que buscava sempre adiar o fim do mundo, a partir desta perspectiva

eclesiástica,

controlar

tenções

estabelecendo indivíduos.

coerção

Assim

sendo,

de

modo

a

escatológicas, sobre em

os alguns

períodos da Idade Média, existiam “febres

inferno. A outra é a de coloração bem mais sombria.” A primeira, otimista, se refere a um período pacifico de mil anos. Após este período, Satã seria solto de sua jaula no inferno e levaria a destruição para todo o mundo. Em seguida, iniciar-se-ia o Juízo Final

dos

homens.

Aqueles

que

acreditavam neste tempo de mil anos de paz, o chamaram de millenium. A segunda visão citada por Delumeau provém da interpretação

de

acontecimentos

sinais,

ou

seja,

apocalípticos

da

humanidade como a peste negra, a fome, as guerras e até mesmo o surgimento do anticristo, homem contrario a Cristo, que dominaria o mundo no fim dos tempos. Dentre as variadas discussões e representações do Juízo Final, talvez seja no século XIV onde encontramos um dos períodos em que mais se falou e mais se pintou

o

tema.

Ao

esmiuçar

541

os


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

acontecimentos

deste

as experiências não-verbais ou o conhecimento

século,Baschet

de culturas passadas. (...)imagens nos permitem

explica que

‘imaginar’ o passado de forma mais vívida”

Retornos periódicos da peste negra, efeitos destruidores

das

guerras

companhias,

Grande

e

cisma

das da

(2004, p. 16-17)

grandes

Igreja:

os

Por

conseguinte,

para

a

contemporâneos tinham razão por se sentirem

historiografia, tem sido importante nos

assolados pela Providência e as cores outonais

últimos anos dar mais atenção às imagens.

pintadas por Johan Huizinga não saíram do nada. O pessimismo invade os espíritos e o

No

campo

da

História

Medieval,

a

sentimento de viver em um mundo que agoniza,

mesmapossuía funções que devem ser

que chega a seu fim, se faz mais presente do

levadas em consideração ao usa-la como

que nunca. A obsessão da morte explode em todos os lugares, nas práticas funerárias assim

documento histórico. Isto significa que,

como na literatura e na arte, onde os temas

segundo Jean-Claude Schmitt (2007, p. 42)

macabros, tal como o Triunfo da Morte e, depois,

em seu livro O Corpo das Imagens “a

as Danças macabras ganham destaque. (2006, p. 251-252)

É em meio a este contexto histórico que se insere o políptico do Juízo Final de Rogier Van der Weyden. Esta imagem guarda em si mesma, parte de seu tempo, sendo, portanto um documento histórico. A pesquisa histórica através de imagens é um objeto de estudo que tem ganhado espaço dentro da academia, sobretudo depois

do

surgimento

da

corrente

historiográfica Nova História.A partir da qual foram postos em evidência novos problemas, abordagens e objetos para o campo

da

História.

Neste

sentido,

possibilitou-se o uso variado de fontes históricas e, por conseguinte, as imagens ganharam espaço no campo da pesquisa histórica.Peter Burke comenta em seu livro

Testemunha Ocular que

análise da obra, de sua forma e de sua estrutura é indissociável do estudo do estudo de suas funções. Não há solução de continuidade entre o trabalho de análise e a interpretação histórica.”. Baschet esclarece, na Introdução de seu livro L’image, Foctions et usages des

images dans l’Occident médiéval, o que é a funcionalidade da imagem medieval. Para o autor “Não há imagem na Idade Média que seja uma pura representação. Na maioria das vezes trata-se de um objeto, dando lugar a usos, manipulações, ritos...” (1996, p. 9). Deste modo, a imagem medieval não era simplesmente retratação daquilo que queria ser comunicado na obra. A imagem medieval

vai

além,

suas

funções

se

complexificamà medida que os homens atribuíam diversos significados a ela, pois a

Pinturas, estátuas, publicações e assim por

imagem medieval detinha caráter espiritual

diante permitem a nós, posteridade, compartilhar

e religioso e, logo, conferia-se a mesma, fé

542


Alisson Guilherme Gonçalves Bella e devoção. Esta ligação da imagem com sua funcionalidade JérômeBaschet deu o nome de imagem objeto, conceito que iremos adotar daqui em diante, para darmos andamento à análise da obra de Van der Weyden. Na base do retábulo, percebemos os mortos ressuscitando, através do toque das

A lógica dualista entre bem e mal, já

trombetas de quatro anjos vestidos de

trabalhada neste texto, é percebida neste

vermelho. Ao saírem da terra, homens e

detalhe da obra. Ao olhar para o políptico o

mulheres são pesados por São Miguel. Ao

fiel estava sendo convidado a repensar

longo de todo o quadro, temos sujeitos indo

suas

em direção a porta do Céu e outros indo

representação

para a boca do inferno. Esta cena passa-se

balança segurada por São Miguel foi

na parte inferior da imagem. Os homens

pintada muito maior que os homens, de

que caminham para o Céu, estão de mãos

modo

unidas para o alto, em sinal de obediência

mesmos. Cada elemento, expressão e

e penitência a Deus. Já os que foram

sentimento

sentenciados ao tormento eterno, possuem

mulheres

semblantes de desespero e dor. Estas

suscitaria o temor no fiel, sendo esta a

duas variações são bastante visíveis na

noção de verdade que se vinculava na

balança de São Miguel, onde identificamos

época. A imagem, portanto, tem função

dois homens. O da esquerda possui uma

pedagógica, mas também reforça aquilo

pequena auréola, mantém as mãos unidas

que ensina.

atitudes,

a

sobretudo, da

justiça

aparentar retratado caminhando

ser

porque

a

através

superior

pelos para

da

aos

homens o

e

inferno,

e um dos joelhos está dobrado em sinal de reverência. O homem da direita pesa mais, está desvencilhando suas mãos, perdendo sua auréola e, olhando para a boca do inferno, expressa em seu rosto desespero.

543


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Esta hierarquia destas personagens cristãs é um tema bastante explorado por Jean Delumeau, no livro O que sobrou do

paraíso?,sobretudo no capítulo 11 intitulado Os santos reunidos em torno do cordeiro. Para o autor, não existem regras quanto àaparição de santos e membros do alto clero, nem padrões quanto à hierarquia dos mesmos. O que se repete é Maria, mãe de Cristo e mãe da Igreja e São João Batista. Para o autor, os santos e autoridades eclesiásticas também recebem lugar de prestígio no Céu, de modo que desde o livro Apocalipse os mesmos já eram Pintados como se estivessem num plano

espiritual

algumas

mais

elevado,

personagens

temos

bíblicas

conhecidas. Maria e João Batista estão mais

ao

centro,

perto

de

Cristo,

representados do mesmo tamanho e mais a frente do que os outros sujeitos. Ao fundo, os doze apóstolos são divididos em seis de cada lado da imagem. Atrás dos doze apóstolos, são representadas as virgens, que segundo a tradição Cristã teriam um lugar de honra no Céu, e o Clero,

que

destaque.

na

obra,

Percebemos

também a

recebe

simetria

da

imagem, ao ter o mesmo número de personagens dos dois lados do retábulo.

enunciados, porém sem muita precisão. Segundo Delumeau (2003b, p. 174) “O Apocalipse

contentara-se

com

uma

diversificação bastante sumária: os 24 anciãos, os 144 mil resgatados (...)”. Neste sentido, durante toda a Idade Média, teólogos como Agostinho em Cidade de

Deus,

Honorius

HildegardvonBingenetc

de refletiram

Autun, sobre

quem teria lugar prestigiado no Céu. Mas é com a Legenda Áurea que encontramos uma classificação de elementos celestiais mais próximos as representações do Juízo Final nos séculos XIII e XIV. Voltemos agora nosso olhar para a figura de Cristo. Van der Weyden o representou no centro da obra, sendo o único a estar entre o mundo e o Além. Representado sobre um globo, Cristo está

544


Alisson Guilherme Gonçalves Bella com a mão direita levantada, em sinal de

da

benção. Cristo se encontra entre dois

elementos.

Paixão

de

Cristo

através

destes

objetos: um ramo e uma espada. Isto reforça a ideia de que Cristo era bom e ao mesmo tempo justo e impetuoso, para Delumeau (2003a, p. 143-180), “um deus de olhos de lince”. Se por um lado Jesus voltaria para sanar as injustiças sociais, por outro lado puniria todos aqueles que não seguiram seus mandamentos. Através da análise da obra de Van der Weyden, pretendeu-se estudar o que pensavamos medievais e como tal obra estava inserida dentro deste contexto. Inicialmente, ao falar sobre a ótica dualista, entre bem e mal, percebemos que o cristianismo conseguiu impor no medievo sua

regra

de

conduta.

O

ideal

de

moralidade cristão deveria ser seguido a risca, onde o homem deveria buscar a Nos quadros superiores do políptico,

santidade sem cessar. Isto, obviamente

nos deparamos com as figuras de quatro

provém de uma herança bíblica, mas a

anjos que estão segurando os objetos

disseminação

usados na Via Crucis, ou seja, o trajeto

Escrituras foi tarefa do Cristianismo, e

feito por Jesus carregando a cruz até o

temos no medievo, talvez, um dos períodos

calvário. Estes objetos (a cruz, a coroa de

de maior propagação dos ideários sobre a

espinhos a lança, a esponja embebida de

conduta moral cristã. Aquele que estivesse

vinagre e os chicotes) não são tocados

fora desta regra seria punido e a cólera de

diretamente pelos anjos, mas através de

Deus se voltaria contra ele.

e

reinterpretação

das

um tecido branco. Isto demonstra o quanto

Assim sendo, podemos constatar

foi injusto e impuro, da parte dos judeus, a

que a imagem de Van der Weyden, assim

crucificação.Percebemos a preocupação de

como outras imagens medievais possuíam

Van der Weyden em relembrar o ato final

caráter de elucidação e reafirmação do

545


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

conteúdo a ser exposto pela mesma. Ora, a

sentenciados a segunda morte poderia

obra de Weyden é autoexplicativa, de

suscitar

modo

um

reflexões acerca das ações e escolhas que

a

este fazia. Mas, o fiel também poderia

reafirmar-se dentro do Credo religioso

almejar a santidade dos eleitos a entrar no

católico. O Juízo Final é o marco final da

Céu, e, por conseguinte revigorar sua fé

História humana, e as imagens assim como

em Cristo.

a

suscitar

amedrontamento,

no

fiel

levando-o

até

no

observador,

certamente,

diversos sermões, tinham a função de

Através destes, como muitos outros,

alertar os homens que este momento

elementos iconográficos da obra, bem

poderia estar próximo.

como outras imagens do período medieval,

Cada elemento da obra levava o

o

medo

forçou

os

homens

a

se

espectador a observar o retábulo através

reverenciarem diante dos ideais católicos e,

da emoção. O homem poderia colocar-se

portanto, podemos constatar que a imagem

no

estão

do Juízo Final tinha por objetivo não só

caminhando em direção ao Inferno, por

explicar como seria o fim dos tempos, mas

terem sido rejeitados por Deus, pois seus

amedrontar, a fim de que o observador se

pecadores superaram suas boas ações. O

arrependesse

desespero

conduta.

lugar

dos

pecadores

daqueles

que

que

foram

e

seguisse

uma

nova

Referências: Imagem I – Políptico do Juízo Final de Rogier Van der Weyden, Beaune. Disponível em:http://fr.wikipedia.org/wiki/Nicolas_Rolin#mediaviewer/Fichier:Rogier_van_der_Weyden_ 001.jpg, acesso em: 20/08/2014. BASCHET, Jerôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.

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546


Alisson Guilherme Gonçalves Bella FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Eva Barbada: Ensaios de Mitologia Medieval. São Paulo: Edusp, 1996. LE GOFF, Jacques. Além. IN: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean- Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2002. SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens – ensaios sobre a cultura visual da Idade Média. Bauru: Edusc, 2008. SCHMITT, Jean-Claude et BASCHET, Jérôme. L'image. Fonctions et usages des images

dans l'Occident médiéval. Paris: Le Léopard d'Or, 1996. TÖPFER, Bernhard. Escatologia e Milenarismo. IN: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, JeanClaude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2002.

547


AS PINTURAS DA BASÍLICA DE SÃO FRANCISCO, ASSIS: POSSIBILIDADES DE ANÁLISE A PARTIR DA HISTORIOGRAFIA RECENTE SOBRE AS IMAGENS MEDIEVAIS 1 André Luiz Marcondes Pelegrinelli 2 Angelita Marques Visalli 3 (Orientadora) Resumo: A data de três de outubro de 1226 marcou a morte de Francisco de Assis, na pequena Capela Santa Maria dos Anjos, Porciúncula, foi velado e sepultado na Igreja de São Giorgio, atual Capela do Santíssimo Sacramento na Basílica de Santa Clara. Quatro anos depois, o corpo foi retirado de seu sepulcro e transladado até a majestosa Basílica de São Francisco, igreja-mãe de toda a Ordem, que teve sua construção iniciada no mesmo ano da canonização do poverello, 1228. A igreja-mãe franciscana não se justificava apenas enquanto espaço de reunião ou mesmo túmulo do padroeiro, mas foi um grandioso projeto político, ora refletindo o projeto papal, de grupos espirituais,conventuais, etc. Considerando que, a expansão de fronteiras documentais pela Nova História Cultural levou os historiadores a explorar o terreno das imagens, pretendemos levantar considerações sobre as imagens que estão nessa Basílica. Identificamos três grandes grupos imagéticos na Basílica: imagens narrativas, imagens ornamento e imagens devocionais, em conjunto, pretendemos estabelecer possíveis metodologias e interpretações destas categorias imagéticas a partir da historiografia recente sobre imagens medievais, destacando autores como Jean-Claude Schmitt, Daniel Russo e Jean Claude Bonne. Palavras-chave: Imagética Franciscana ; Basílica de São Francisco; Imagem Medieval

1

Resultado parcial inicial de Trabalho de Conclusão de Curso, sob orientação da Profa. Dra. Angelita Marques Visalli.

2

Graduando em História da Universidade Estadual de Londrina.

3

Professora adjunta ao departamento de História da Universidade Estadual de Londrina.

548


André Luiz Marcondes Pelegrinelli

Após voltar da missão ao Oriente,

serão, por exemplo, os riquíssimos templos

Francisco encarregou a direção da Ordem

barrocos, o trabalho das pinturas da

à Frei Pedro Cattani, que vigário guiou a

Basílica não valia menos: Giotto, Cimabue,

Ordem por muito pouco tempo, morrendo

Pietro

um ano depois. O Capítulo Geral de 1221

trabalharam

nomeou um novo ministro geral, Frei Elias.

italiana. Para Gianfranco Malafariana a

Esse foi o responsável por guiar a Ordem

pequena quantidade de relatos milagrosos

nos delicados anos que se seguiram à

dentro da faustosa Basílica foi interpretado

morte

o

pelos frades contemporâneos como a não

processo de canonização e foi responsável

satisfação do Santo para com a Basílica e

pela

todo o investimento nela (MALAFARINA,

de

Francisco,

encomenda

e

acompanhou projeto

inicial

da

Basílica de Assis.

Lorenzetti,

e

“valiam

outros ouro”

na

que

pintura

2011, p. 12).

Junto ao cuidado de Elias, nesse

A Basílica de Assis é dupla. A Igreja

projeto inicial, uniu-se o apreço de Gregório

Inferior abriga o túmulo do santo, foi

IX para com o santo e sua Basílica, que era

projetada especialmente para que fosse um

papal.

grande sarcófago, recebendo os peregrinos

Diz-nos

a

Legenda

dos

Três

Companheiros:

e especialmente os frades menores. A

“O próprio sumo pontífice não somente honrou o santo a quem amara sumamente enquanto [este] vivia, canonizando-o de maneira maravilhosa, mas

também

enriqueceu

com

sagrados

Igreja Superior, ampla e alta funcionava como Basílica Papal, acolhia as grandes celebrações e os capítulos gerais.

presentes e preciosíssimos ornamentos a igreja construída em sua honra, em cujo fundamento o mesmo senhor papa colocou a primeira pedra.

ricamente

superior

pintadas

e

em

inferior

são

quase

sua

[...] Mandou para a mesma igreja uma cruz de

totalidade: paredes, colunas, abóbodas,

ouro, ornada com pedras preciosas, na qual

todas são preenchidas por narrativas,

estava engastado o lenho da cruz do Senhor, como também ornamentos, vasos e muitas

imagens de santo, estrelas, etc., aqui

coisas pertinentes ao ministério do altar com

realizamos somente considerações iniciais

muitas alfaias preciosas e solenes” (3S, 72)

sobre as imagens figuradas no edifício,

Uma cruz de ouro, pedras preciosas, alfaias

Ambas,

preciosas,

riqueza.

A

Questão

Franciscana centraliza vários dos debates no primeiro século da Ordem dos Frades Menores e não ocupa menor lugar na Basílica. Se ela não é rica em ouro, como

passamos então para a sugestão da divisão desse grande corpus documental em

três

categorias:

imagens-ornamento

imagens-narrativa, e

imagens

devocionais.

549


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

A Basílica de Francisco é acima de

A abertura das capelas laterais destruiu

tudo um projeto político, de poder, e para

boa parte desses ciclos paralelos, mas, em

bem cumprir este fim, a basílica foi

contraponto, as capelas que foram abertas

amplamente preenchida por imagens com

possuem ciclos referentes aos santos

caráter narrativo. Não queremos correr o

padroeiros: Santo Antonio Abade, Santa

risco de simplificar as funções da imagem

Catarina, Santo Stefano, Santo Antonio de

medieval a uma “bíblia dos iletrados”,

Pádua, Maria Madalena, São Martinho, São

fórmula

Pedro , São Nicolau de Bari, São João

ultrapassada,

surgida

da

interpretação equivocada da carta do Papa

Batista;

Gregório Magno à Serenus de Marselha,

também o ciclo da Infância de Cristo e da

ano 600, e que não dá conta das suas reais

Vida de Cristo, respectivamente atribuídos

funções. Apesar disso, nota-se claramente

a Giotto e a Pietro Lorenzetti.

nas

pinturas

destes,

destacamos

A Igreja Superior recebeu dois grandes

pedagógica que se desenrola através da

ciclos: Cenas da Vida de Francisco e

memória e instrução. Um ciclo narrativo

Cenas do Antigo e Novo Testamento, o

não

possuía

primeiro ocupando a parte inferior das

apenas a função de colaborar na ascese

paredes, mais próxima do olhar dos fiéis e

espiritual, mas, ordenar, por exemplo, a

a segunda ocupando a parte de cima,

infância de Cristo em 5 cenas – como fez

dividindo o espaço com vitrais. (Imagem I)

venerado,

uma

além

função

era

narrativas

e,

tampouco

Giotto na Basílica Inferior – implica em criar uma narração que recorda as descrições evangélicas e as ensina. A Igreja Inferior, em seu primeiro projeto possuía dois grandes ciclos narrativos: a Vida de Cristo à esquerdae a Vida de Francisco, à direita, o Mestre de São Francisco, artista do qual não conhecemos muito, projetou um paralelismo entre os ciclos a fim de criar uma identidade e

Imagem I – Basílica Superior. Afrescos dos Ciclos de

correspondência entre a Vida de Cristo e a

Cenas do Antigo e Novo Testamento (cima) e Ciclo da

Vida de Francisco, apresentando-o como

Vida de Francisco (baixo).

um alter Christus.

550


André Luiz Marcondes Pelegrinelli

As atribuições quanto à autoria destes

Menores no pioneiro estudo de Chiara

ciclos são muito questionáveis: Vasari

Frugoni, “Francisco e a invenção dos

atribui o grande ciclo de Cenas do Antigo e

estigmas”, de 1983.

Novo Testamento à Cimabue, mas há

As observações de Frugoni reforçam

registro neste ciclo, por exemplo, da

o discurso de que os historiadores não

atividade de JacopoTorriti e de um outro

devem

artista, Mestre de Isaac. Quanto ao ciclo de

confirmação da informação letrada. Nas

Cenas da Vida de Francisco, a atribuição

hagiografias, a pregação de Francisco

aGiotto e sua oficina é bem aceita no meio

aparece várias vezes, em contraposição, e

dos historiadores.

segundo Frugoni, essa função é esvaziada

O famoso ciclo de Giotto é formado por

nas

procurar

imagens

nas

da

imagens

Basílicae,

em

vinte e oito cenas, consideravelmente bem

lugar,Antonio

conservadas – se levarmos em conta os

verdadeiro

dois grandes terremotos de 1997 – e ocupa

afrescos

uma seqüência linear iniciando próximo do

atividade taumatúrgica de Francisco.

altar, ao lado direito da igreja, como assinala Francastel: propriamente

composições

exaltam

apresentado

pregador se

da

centram

seu

como

Ordem.

muito

o Os

mais

na

Parece haver um claro objetivo ao figurar as ações de Francisco que são mais

“(...) das vinte e oito cenas, apenas três ilustram virtudes

é

a

franciscanas. sete

vezes

As

outras milagres

ligadas a milagres, ao sobrenatural. O santo de Assis foi divinizado a tal ponto

espetaculares, oito vezes cenas honoríficas da vida

que, copiá-lo seria impossível – a começar

do santo, seis vezes aspectos da mística oficial

pela insistência de atenção para com os

romana.” (FRANCASTEL, 1973, p. 337)

O conjunto foi inspirado na Legenda Maior de Boaventura, única hagiografia considerada oficial pela Ordem após o Capítulo Geral da Ordem de 1226, que ordenou a destruição de todas as outras hagiografias, inclusive as anteriormente oficiais, como a Primeira e Segunda Vida de Tomás de Celano. O Ciclo da Vida de Francisco reanimou os estudos de historiadores para com a imagem na Ordem dos Frades

estigmas -, e apresentar outros modelos, como

Santo

Antonio,

tornava

mais

acessível o modelo franciscano e mais que isso, harmonizava os diferentes contrastes e, mesmo “radicalismos” que afloravam nos frades.

Apresentar

um

Francisco

inalcançável era uma ótima estratégia para dar fim à Questão Franciscana: querer copiar em tudo o mestre não seria difícil, mas impossível. Não

aprofundamos

aqui,

mas

merece menção a abóbada da Igreja

551


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Inferior (Imagem II), pintada possivelmente por dois discípulos de Giotto e suas oficinas, que apresentam São Francisco em Glória e a tríade franciscana: Pobreza, Obediência e Castidade. Pensamos essas quatro imagens como narrativas não no sentido de apresentarem a sucessão de “fatos

ocorridos”,

mas

narrarem

a

espiritualidade franciscana, sob a ótica conventualista. O afresco “São Francisco em Glória” narra Francisco envolto em um coro

de

anjos,

é

figurado

jovem,

e

acompanhado da inscrição “Renovai a lei evangélica e preparai o caminho para

Imagem II - Abóbada: Tríade Franciscana e Francisco em

completa salvação celeste”. A “Alegoria da

Glória.

Pobreza”

figura

casamento

Cristo

místico

celebrando da

o

pobreza,

representada como uma jovem moça e à esquerda um jovem se despindo para doar suas vestes. A “Alegoria da Obediência” traz a figura de um frade que ajoelhado se submete a autoridade de outro e recebe o mandato de silêncio. Por fim, a “Alegoria da Castidade” figura uma virgem no alto de uma torre e um jovem sendo purificado ao buscar a castidade.Malafarina (2011, p. 111)

aponta

ferramenta

essa dos

solidificarem franciscanismo.

sua

abóboda

como

conventuais

para

vivencia

do

A imagética franciscana tende, em seus primeiros séculos, a ser inserida em narrativas, não poucos são os ciclos nas paredes de igrejas, távolas, etc. (VISALLI, 2011, p. 228). “Assim com as igrejas góticas se abrem às multidões que se agrupam para ouvir os sermões, as imagens apresentam-se com um caráter público, de disseminação em escala maior. Afinal, o crente pode acompanhar o acontecido: a hagiografia[...] na medida em que a vida do santo é ambientada com direito a testemunho em tempo ‘real’” (VISALLI, 2011, p. 229)

A demanda imagens:

análise dois um

de

ciclos

olhares particular

narrativos

sobre e

um

essas global.

Tomemos o exemplo, já citado, do ciclo narrativo da Infância de Cristo no transepto norte da Basílica Inferior, produzido por

552


André Luiz Marcondes Pelegrinelli

Giotto. A personagem Maria está presente

tampouco

nas cinco cenas que formam o ciclo, o

decorativo, estético,

micro olharsobre cada um dos afrescos permite perceber melhor sua posição em relação

aos

outros

personagens,

sua

presença, gestos, etc., já o olhar global sob todas as cinco imagens permite perceber as diferenças de postura e figuração dessa personagem em cada cena, só assim

de

contemplação,

mas

“[...] os valores decorativos [ornamentais] são percebidos apenas en passant, sem que o olhar se detenha especialmente sobre eles [...] Ele se inscreve, por excelência, na dinâmica dos rituais, nos quais ele é um intensificador ao mesmo tempo sensorial e motor [...] todo ambiente de culto recebia uma decoração, por menor que ela fosse.” (BONNE, 2009, p. 44)

No

latim,

a

família

do

termo

percebemos, por exemplo, a insistência de

ornamento, ornare não remetem somente a

Giotto em figurar Maria com destaque

uma decoração superficial, secundária e

diferente na cena da crucificação: é a única

dispensável, mas são essenciais para que

imagem do ciclo com vestes diferentes, o

um equipamento cumpra plenamente sua

azul celeste é substituído pelo tom de

função. Uma imagem ornamento, na lógica

palha, sugerindo maior frieza e sobriedade

da imagética medieval, só faz sentido e

nessa cena. Além disso, apenas o olhar

oferece toda a sua percepção atrelada ao

global pretende perceber o estranhamento

espaço em que se encontra. Vale lembrar,

de figurar a crucificação como um salto

que é a noção moderna de arte, do

direto da infância de Cristo, ignorando sua

Renascimento, com suas pinturas em tela

atividade

que desterritorializam em muito a noção de

apostólica

ou

mesmo

sua

Ressurreição.

imagem: uma tela não é fixa, pode ocupar

A Basílica não é preenchida apenas

uma sala de estar, um restaurante, uma

por imagens-narrativas, boa parte dos

igreja, um museu, etc. Por mais que os

espaços considerados menos importantes

ícones fossem móveis e utilizados, por

(cantos, arestas, colunas, teto, etc.) são

exemplo,

preenchidos por motivos geométricos, o

subscrever-se em determinadas regiões,

céu etc., aquelas imagens que podemos

com circulação restrita a aquele espaço.

chamar de ornamento. Ao falarmos em

em

Entre

as

procissões,

tendiam

imagens-ornamento

a

na

ornamento, nos servimos da definição de

Basílica

percebemos

Jean-Claude Bonne sobre essa “categoria”

motivos

que

de imagens (BONNE, 2009, p. 44): o

geométrico, natureza, céu estrelado e

ornamento não tem caráter de narração,

bustos de personagens.

tendem

quatro a

se

grandes repetir:

553


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Linhas retas, vértices, quadrados, a

é característica da oficina de Giotto. A

basílica decorada com vários ângulos.

CapelladegliScrovegni, em Pádua, recebeu

Essas pinturas geométricas (Imagem III)

o mesmo cuidado de céu azul estrelado.

dão a ilusão de que as paredes são ainda mais altas, de que existem mais colunas, assim a repetição geométrica em muito faz a Basílica parecermais imponente.

Imagem IV – Ornamentos com motivo de natureza. Igreja Inferior.

Percebemos também o ornamento que

usa

da

efígie

de

personagens,

principalmente nas abóbadas da Igreja Imagem III – Ornamento com motivos geométricos. Igreja

Superior e em alguns detalhes na inferior.

Inferior.

Na Igreja de cima chama a atenção a

Figuras naturais, motivos florais e o

Abóbada dos Doutores da Igreja, com as

céu estrelado lembram o fiel do espaço

imagens de Gregório Magno, Agostinho,

sagrado: o espaço do templo precisava ser

Jerônimo e Ambrósio. Outra abóbada

como um pedaço da esfera celeste na

reúne personagens celestes: São João

terra. As folhagens (Imagem IV), flores, não

Batista, a Virgem Maria, Cristo e anjos

só embelezam esteticamente mas lembram

acompanhando-os

o paraíso, o Jardim do Éden “perdido” por

ainda

Adão

nas

Mateus, Marcos, Lucas e João. O que nos

abóbodas mais altas da Igreja Superior em

permite afirmar que essas efígies são

muito lembram as construções góticas,

ornamentais

altíssimas, que queriam “tocar o céu”. Essa

prática: além de não ocuparem lugar de

técnica, de preencher os tetos com estrelas

destaque dentre as outras imagens, são

e

Eva.

O

céu

estrelado,

é

(Imagem

dedicada

e

não

aos

V).

Outra

Evangelistas:

devocionais?

Sua

554


André Luiz Marcondes Pelegrinelli

visualmente muito distantes do observador

Para

sua

análise,

essencial

é

a altura do chão. Na Igreja de baixo

compreender o conceito de ornamentus

encontramos pequenas efígies, pintadas,

que expusemos a partir de Jean Claude

que mais dão a sensação, ao observador

Bonne, uma vez clara a não banalização

distante, de pequenas esculturas do que

desse tipo de imagens, é preciso se atentar

pinturas, não apresentam características

às suas formas, à sugestão mimética ou

que

não dessas formas e o lugar que ocupam

os

permitam

a

ligar

a

algum

personagem específico.

dentro do prédio em que estão instalados: as estrelas das abóbadas só têm sua função plena se estiverem no teto, as efígies dos doutores são complementadas pela mensagem celeste dos astros que as rodeiam. Como

última

categoria

proposta

nesse estudo inicial, apresentamos as imagens devocionais. Imagens devocionais estão atreladas ao culto. Essas imagens possuem maior caráter de “ser” do que “coisa”. Jean-Claude Schmitt as chamou de imagens-corpo (1996), JérômeBaschet as Imagem V – Abóbada ornamentada com personagens celestes. Igreja Superior.

O ornamento completa e permite a

chama de imagem-objeto (2006). Daniel Russo prefere o conceito mais abrangente, de imagem-presença (2011). A

plena funcionalidade das coisas. Francisco

noção

de

imagem-presença

reconstruir

conceitua as imagens não por si próprias,

igrejas, ainda que essa prática tenha se

mas atreladas a locais e práticas. Não

dado graças à interpretação inicial daquele

bastam

pedido (“Francisco, vai e reconstrói minha

iconográficos, mas outros documentos que

igreja, que como vês está toda em ruínas”),

relatam a prática dos fiéis com relação a

ela se torna importante na espiritualidade

essas

da Ordem. Reconstruir igrejas é permitir

compreender seus usos e funções. Os

seu pleno funcionamento, ornamentá-las

relatos de milagres em torno da imagem

também.

acrescentam práticas ligadas à mesma, ao

iniciou

suas

atividades

ao

apenas

imagens,

seus

que

nos

aspectos

permitem

555


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

mesmo

tempo,

exemplo,

de

a

possibilidade,

movê-la

a

por

faz

ter

possibilidades diferentes de uso, como a de procissão, o que não acontece com os afrescos.Imagens

devocionais

têm

sua

importância crucial garantida não pelo fato de

ser

alguém,

mas

carregarem

possibilidade

de,

através

manifestação

sobrenatural,

de vir

a

uma a

ser

alguém. O

Museu

do

Sacro

Convento

testifica a existência de uma grande quantidade de imagens devocionais móveis na Basílica, entretanto, ao delimitarmos essa pesquisa em imagens nas paredes, o número

diminui

consideravelmente.

Imagem VI – Virgem com o Menino entre São João Batista e São Francisco. Capela de São João Batista. Igreja Inferior.

Essas imagens nos oferecem chaves

É

para pensar a Ordem como um jogo de

comum, seja na igreja Superior ou Inferior,

poder, ou ainda, desde um ponto de vista

umas como espécies de retábulos pintados

cultural,

nas paredes, figurando principalmente a

freqüentavam: desde o papa e os frades

Virgem,

menores até o pobre fiel penitente.

Francisco

e

um

terceiro

personagem, por vezes o comitente da obra.

a

daqueles

que

a

Ao propor três grandes categorias de imagens

O difícil acesso e produção de um

devoção

não

possibilidades

queremos

engessar

de

sobre

visão

as

essas

levantamento completo das imagens na

imagens, mas observações inicias têm

Basílica têm restringido em muito uma

demonstrado a boa funcionalidade destas

análise maior dessas imagens devocionais,

grandes categorias.Com olhar mais atento,

contudo,

sabemos que não há imagem na Basílica

recorrentes

notamos na

que

Basílica

são

mais

Inferior

e

totalmente

dissociada

das

outras

encontramos principalmente imagens da

categorias: elas se completam. Imagens

Virgem que lembram os ícones móveis, as

que narram, ornam, levam à ascese

Virgens entronizadas e/ou com o menino e

espiritual, legitimam poder, reforçam as

uma ou outra imagem do santo ao qual

escolhas espirituais da ordem, enfim, a rica

cada capela se dedica (Imagem VI).

e extensa figuração da Basílica certamente

556


André Luiz Marcondes Pelegrinelli

não preenche todas as possibilidades de

grande parte delas.

uso da imagem no Medievo, mas manifesta

Referências: BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.

BONNE, Jean Claude. Arte e environnement : entre arte medieval e arte contemporânea. In: FONSECA, Celso Silva; RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros; COELHO, Maria Filomena (orgs.). Por uma longa duração:perspectivas de estudos medievais no Brasil. VII Semana de Estudos Medievais. Brasília: Universidade de Brasília, 2010. FRANCASTEL, Pierre. A arte italiana e o papel pessoal de São Francisco. In: ____ A

realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1973.p. 323-340. MALAFARINA, Gianfranco. Assise. La Basilique de Saint François. Paris : Seuil, 2011. RUSSO, Daniel. O conceito de imagem-presença na arte da Idade Média. Revista de História, São Paulo, n. 165, p.37-72, jul./dez. 2011. SCHMITT, Jean Claude. La culture de l’imago. Annales. Historie, Sciences Sociales,51e année. n. 1, p. 3-36, 1996.

TEIXEIRA OFM., Frei Celso Márcio (org.) Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 2008. VISALLI, Angelita Marques; OLIVEIRA, Terezinha (orgs.). Leitura e Imagens da Idade

Média. Maringá/PR: EDUEM, 2011.

557


O ESPAÇO SAGRADO EM DUAS CANTIGAS DE SANTA MARIA DEDICADAS À VIRGEM DE TERENA Carlos Henrique Durlo 1 Resumo: Pesquisando sobre a importância que tem a religiosidade para o homem e a mulher do século XIII, onde o ideal de vida do homem era em sua essência teocêntrico e a relevante importância que teve o catolicismo para o desenvolvimento cultural e social à época, o presente estudo tem por objetivo analisar o culto à Virgem Maria no século XIII a partir das Cantigas de Santa Maria, de Alfonso X, o Rei Sábio, dedicadas ao Santuário de Santa Maria de Terena. A metodologia aplicada consistiu em uma pesquisa bibliográfica e uma análise estrutural, interpretativa e histórica de 12 Cantigas de Santa Maria, escritas em galego-português, da edição organizada por Mettmann (1959-1972), cujas narrativas contam os milagres atribuídos à Virgem Maria no Santuário a ela dedicado em Terena, uma freguesia do conselho de Alandroal, distrito e arquidiocese de Évora. A partir da análise do referido corpus, apresentamos um recorte da pesquisa e a análise das Cantigas 197 e 213, duas das doze cantigas em que nos é revelado o poder da Virgem Maria, Mãe de Deus, face ao poder do mal e da injustiça. Apoiados teoricamente em Spina (1973), Franco Júnior (1990), Lapa (1973), Leão (2011) e Monteiro de Castro (2006), a pesquisa, ainda em fase de finalização, pretende identificar as diferentes formas de culto apresentado nas doze cantigas de Alfonso X, investigando o espaço religioso e delimitando o perfil feminino nesse mesmo corpus, já que é sabida a importância adquirida pela mulher no contexto medieval do século XIII. Palavras-chave: Cantigas de Santa Maria; Alfonso X; Terena.

1

Universidade Estadual de Maringá.

558


Carlos Henrique Durlo

Sabe-se

que

religiosidade

descrevem os milagres que tiveram a

permeia a vida do ser humano, em especial

intervenção de Santa Maria, constituindo-

na Idade Média, onde o ideal de vida do

se num dos mais importantes acervos

homem era, em sua essência, teocêntrico

poéticos de toda a Idade Média. De acordo

(FERREIRA, 1988). A religiosidade do povo

com Ferreira (1988), as cantigas de Santa

medieval, observada por meio das cantigas

Maria, ricas de beleza melódica e rígida de

de romaria, originárias do Ocidente da

paralelismo

Península,

influência

cancioneiro profano por conter notação

religiosa, política e econômica da Igreja

musical. No entanto, apenas parte das

Católica sobre o povo da época, bem como

partituras chegou ao nosso conhecimento.

no culto que era consagrado à Virgem

Além disso, o estilo poético de Alfonso X

Maria nos santuários a ela dedicados, em

influenciou a escrita musical e poética de

especial no de Santa Maria Terena, no

seu neto, D. Dinis, rei de Portugal.

revela

a

a

grande

Alentejo, onde nos são revelados milagres atribuídos a Virgem de Terena.

poético,

distinguem-se

do

A Idade Média é uma época em que a religião tem relevante importância,

Além da religiosidade, a Idade

deste modo, em todas as manifestações

Média Central foi uma das fases mais

artísticas e filosóficas é possível observar a

produtivas da Idade Média, sobretudo, em

presença do mote religioso, tema principal,

sua

manifestação

revelado nas Cantigas de Santa Maria.

trovadoresca e a poesia religiosa de

Assim, o espaço religioso, em especial o do

Alfonso X, (1221 a 1284), as Cantigas de

Santuário de Santa Maria Terena, por meio

Santa Maria.

do culto à Virgem Maria, se torna em nossa

literatura,

como

a

Dom Alfonso X, filho de Fernando III

pesquisa objeto de investigação, tendo em

e de Beatriz de Saboia, foi rei de Castela e

vista a valorização do ser feminino em uma

Leão (1252-1284). Suas realizações no

época em que a mulher é vista com

campo

submissão e inferioridade em relação ao

da

cultura

mereceram-lhe

o

cognome de “o Sábio”. Escreveu em

homem.

castelhano as obras históricas, políticas e

O espaço poético tem a função de

filosóficas e em galego-português a sua

situar a personagem/eu-lírico revelando-a

obra poética. Como músico e poeta, o Rei

ao leitor e a sua significação que se dá no

Sábio deixou-nos uma compilação de mais

gênero narrativo e poético. Santos e

de quatrocentas cantigas, escritas em

Oliveira (2001, p. 74) pontuam essa

galaico-português,

diferença ao afirmarem que:

que

louvam

e

559


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo Nas narrativas literárias, o espaço tende a estar associado a referências internas ao plano ficcional mesmo

que

a

partir

desse

plano

sejam

O escritor torna-se sensível e se cala para que a linguagem se converta em imagem e

estabelecidas relações com espaços extratextuais.

resulte num profundo significado ao leitor.

[...] O texto poético pode eleger a própria palavra

É interessante notar que Santos e Oliveira

como um espaço. O signo verbal não é apenas decodificado

intelectualmente,

mas

também

(2001) compartilham com Blanchot (1987)

sentido em sua concretude. Sobretudo, é possível

a ideia de que o texto poético gera

explorar na poesia escrita, a visualidade da

imagens.

palavra: o signo verbal como imagem.

Santos e Oliveira (2001), no entanto, atentam para a problemática existente com a similaridade estabelecida entre o objeto em si e sua imagem. Para os autores, a poesia estaria inserida na perspectiva de que o objeto é criado pela imagem, sendo que

a

palavra

reproduz

alguma

característica do objeto em si. Blanchot (1987) ao refletir sobre o espaço poético parte de uma visão mais geral do que a estudada pelos autores

O poeta seria aquele que ao ouvir a fala da obra torna-se seu intérprete, mas não consegue fazer brotar o sentido real da palavra. Por isso, é necessário que a obra se torna íntima não só do seu escritor, mas também do seu leitor para que seja considerada uma obra de fato: “o poeta é aquele que ouve uma linguagem sem entendimento” (p. 45). Com relação à fala poética Blanchot (1987, p. 35) postula: A fala poética deixa de ser fala de uma pessoa:

acima citados, na medida em que não toma

nela, ninguém fala e o quefala não é ninguém, mas

o espaço do vocábulo como base do seu

parece que somente a fala “se fala”. A linguagem assume

estudo, mas se volta, inicialmente, para o

então

a

sua

importância;

torna-se

essencial; [...] e é por isso que a fala confiada ao

espaço que a literatura constrói, pois ela é

poeta pode ser qualificada de fala essencial.

solitária e exige certa solidão do leitor. A

O

espaço

poético

período

afirma:

religiosidade de um povo caracterizado

Aquele que vive na dependência da obra, seja para escrevê-la, seja para lê-la, pertence à solidão

liga-se

a

no

respeito disso Blanchot (1987, p. 12) A obra não é acabada nem inacabada: ela é. [...].

medieval

estudado

intensa

pelo teocentrismo, ou seja, Deus era o centro de todas as coisas. O homem

do que só a palavra ser exprime: palavra que a

medieval estava sempre a procura de Deus

linguagem abriga dissimulando-a ou faz aparecer

e

quando se culta no vazio silencioso da obra.

Blanchot (1987) reconhece, assim, que a escrita tem um papel relevante, porque faz eco ao que não pode se calar.

vivia

a

sua

nos

ritos

e

nas

manifestações de forte carga emocional que o aproximava de um mundo divino. Ferreira

(1988)

esclarece

que

560

a


Carlos Henrique Durlo

religiosidade das populações se traduz nas romarias,

as

numerosas

capelas

das

O

estudo

do

espaço

sagrado

medieval e do culto à Virgem apresenta-se

pequenas localidades, aos santuários e

como

também as cidades maiores como Santiago

história religiosa de Portugal no século XIII.

de Compostela, Lisboa, Alentejo, Faro

Além do espaço religioso, um estudo sobre

entre outras.

a posição que a mulher ocupa nas cantigas

De acordo com Baschet (2006), há vários

motivos

levam

contribuição

à

e nas iluminuras que as acompanham será fundamental para traçar um paralelo entre

medieval às promessas e esperanças de

a mulher religiosa e a mulher comum, bem

cura.

são

como a observação do culto mariano que,

estabelecidos desde a Alta Idade Média

nos mais diversos santuários à Virgem

pela existência de túmulos nas igrejas e

dedicados, rompeu os limites geográficos e

pela difusão das relíquias dos santos.

temporais, propiciando, na atualidade, o

espaços

o

inestimável

homem

Os

que

uma

sagrados

Jerusalém, Roma e Santiago de Compostela

são

os

espaços

nosso estudo.

mais

Configurando o estudo do espaço

importantes de peregrinação na Idade

sagrado nas Cantigas de Santa Maria,

Média. A peregrinação a Santiago de

acentuadamente religiosas, tomamos como

Compostela foi favorecida pelos soberanos

exemplo a cantiga 197.

hispânicos, reforçou os reinos e manifestou

Cantiga 197 – Como Santa Maria de

a unidade da cristandade simbolicamente

Terena ressocitou u meno a que matara o

convocada mulçumanos,

para

fazer

existindo,

face portanto,

demo

aos um

A Cantiga 197 é composta por 10

vínculo entre a peregrinação nos espaços

estrofes com 3 versos monorrimos mais um

sagrados e a reconquista do território

verso de rima igual à do estribilho e

(BASCHET, 2006).

apresenta

de

início

um

mote,

um

De acordo com Maleval (1999, p. 23)

argumento que sintetiza toda a narrativa da

o Caminho a Santiago permitira a interação

cantiga. Esse argumento é típico das

entre os trovadores occitanos, mestres na

Cantigas de Alfonso X e, de acordo com

arte de trovar e a tradição poeta autóctone

Torres

ao que certamente se filiam os peculiares

inteligência de síntese do Rei Sábio, ou

“cantos de mulher” desse noroeste da

seja, o artifício de resumir em poucas

Península Ibérica.

palavras, geralmente de um a três versos o

Gonzales

(1990),

resumo da narrativa.

valoriza

a

De acordo com o

561


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

argumento,

a

narrativa

abordará

a

ressurreição de um menino que, ao ser

seguinte forma: É essa a razão de vos contar um tão grande milagre.

morto pelo demônio, é levado à Terena em

Nesta Cantiga, o demônio provoca o

romaria e lá, aos pés da Virgem Maria

mal a um homem rico e que era de paz,

torna à vida: “Como Santa Maria de Terena

cujo filho amava mais do que a outras

ressocitou u meno a que matara o demo.”

pessoas. Durante a narrativa, observa-se

No

estribilho

observa-se

uma

que o “ome de paz” atribui o cuidado de

comparação entre o Bem e o Mal, ou seja,

seu gado ao filho que muito amava. O

entre a Virgem (bem) e o demônio (mal).

demônio, ao aproveitar-se da situação em

Portanto, se o demônio tem poder de fazer

que o menino se encontrava, ou seja,

mal aos homens, aos filhos amados da

sozinho e distante de qualquer pessoa que

Virgem, maior poder tem a Virgem em fazer

o pudesse ajudar e sabendo que grande

o bem: “Como quer que gran poder /; á o

dor causaria ao “ome de paz”, toma

dem’ en fazer mal,/; mayor l’ á en bem

(possui) o menino pra si e o prende,

fazer/; a Reynna spirital.”

afogando-o em um local distante de todos,

Não podemos deixar de observar

levando-o à morte.

que a Virgem Maria é chamada de Rainha

Ao constatar a morte do filho que

espiritual no último verso do estribilho: “a

muito amava, o pai e a mãe grande luto

Reynna spirital.”E a ela são atribuídos

fizeram. Até que o irmão do menino, a

poderes milagrosos. Poder esse de fazer

partir da quinta estrofe, lembra-se da

voltar à vida aquele a quem o demônio

promessa que aquele fizera e diz, no

havia possuído e matado. Dessa forma,

primeiro verso da sexta estrofe: “Meu

não há mal que possa fazer o demônio sem

yrmão prometera por en romaria yr a

que a Virgem Maria possa a vir revertê-lo.

Terenna”.Mas não é a promessa não

Se há o mal, maior é o bem que se pode

cumprida que nos chama a atenção. O que

realizar.

é relevante nessa Cantiga é a causa da

É o poder que a Virgem Maria tem

morte, ou seja, o menino morrera por causa

em fazer o bem que motiva o autor a narrar

de seus pecados e para que este fosse

o fato. O motivo é enfatizado no último

perdoado o irmão irá à Terena e ante a

verso da primeira estrofe: “e porend’ un

Virgem se prostrará, rogando a ela que "a

grand

Sennor que pod' e val" perdoe os pecados

miragre

tal”.Podemos

vos

traduzir

direi

de

razon

esse

verso

da

do menino, prometendo em troca dar ao santuário dez dos porcos que criara:

562


Carlos Henrique Durlo Mais ficad’ ant’ os gollos e a[a] Madre de Deus rogade que lle perdõe todo-los pecados seus, e eu promet’ a as obra dez daquestes porcos

em

especial

com

a

abordagem

da

proximidade do Fim dos Tempos, o pecado

meus,

era sempre a grande causa ou explicação

en tal que por ele rogue a Sennor que pod’ e val.

para os males do corpo e da alma. Dessa

(CSM, 197)

Após rogar à Virgem que ao Senhor levasse seu pedido, o irmão ressuscita. Tal fato pode ser constatado na oitava estrofe: "Por rogo da Virgen Madre Deus ssa oraçon oyu,e o que jazia morto atan toste resurgiu, e des ali adeante daquel mal ren non sentiu; esto fez Santa Maria, que aas coitas non fal". Ao observar o poder do bem sobre o mal, ou seja, o poder atribuído à Virgem Maria em fazer prevalecer o bem sobre aqueles que a ela se voltam e confiam suas orações, todos, ao ouvirem o feito realizado pela poderosa Mãe de Deus, louvam-na por ter ressuscitado dos mortos aquele a quem o demônio matara, desfazendo “seu feito como a agua o sal".A narrativa é encerrada repetindo-se o estribilho que reforça o poder da Virgem Maria sobre o mal. Conclui-se, portanto, que na primeira das doze Cantigas dedicadas ao Santuário de Terena, a temática abordada é o pecado, ou seja, a causa que leva o menino, o filho do “ome bõo”, à morte são os pecados por ele cometidos. É por isso que não podemos nos esquecer de que, no contexto cultural e religioso do século XIII,

forma, para que os pecados fossem perdoados era necessário ir em romaria à Terena rogar a Virgem Mãe de Deus, a Senhora que sobre todo o mal tem o poder de fazer o bem, que devolva a vida ao “meno a que matara” o demônio. As

romarias,

peregrinações, presentes

ou

chamadas

sempre

na

estiveram

religiosidade

popular

e

sempre foram essenciais não só para o catolicismo, mas também para a vida econômica,

social e cultural de uma

sociedade,

em

Feudalismo.

especial

É

a

nesse

partir

contexto

do de

peregrinações que nos deparamos com Terena, colhidas dessa obra ímpar da literatura galego-portuguesa do século XIII. Terena, também conhecida por São Pedro de Terena, cujo Santuário Alfonso X dedica 12 das 427 Cantigas de Santa

Maria, é uma freguesia portuguesa do conselho

de

Alandroal,

distrito

e

arquidiocese de Évora. As origens de Terena, apesar das incertezas

que

a

cercam,

são

muito

antigas, tendo seu primeiro foral concedido no século XIII. Em seu território, o culto à Virgem Maria foi cultivado desde tempos remotos,

possivelmente

por

meio

563

da


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

cristianização de cultos pagãos do império

fora acusado injustamente de matar à

romano, sendo o seu Santuário hoje

própria mulher.

denominado

de

Santuário

de

Nossa

Diferentemente da cantiga anterior, a

Senhora da Boa Nova, homenageado por

Virgem Maria, para livrar seu servo fiel da

Alfonso X.

mão dos inimigos, faz com que o demônio

A origem do Santuário é antiga e

personifique o “ome bõo” e engane a todos

envolto em mitos, julgando-se que possa

os que o perseguiam. Além disso, é a

ser resultado da cristianização de cultos

primeira Cantiga, das doze dedicadas à

pagãos do Império Romano, visto que nas

Terena, em que o autor apresenta o

imediações da vila de Terena subsistem

adultério da esposa do “ome bõo” como

ruínas do templo do deus Endovélico.

razão

Todavia,

mariano,

é

certo

que

as

referências

para já

a

realização

que

este

do

fora

milagre acusado

históricas ao santuário remontam ao século

injustamente de ser o autor da morte da

XIII, uma vez que Alfonso X se refere ao

adúltera.

templo como um lugar honrado, santo e de

O estribilho apresenta a Virgem

muitos milagres realizados pela Virgem

Maria como “a Sennor mui verdadeira”. E

Maria:

quem a ela serve de todos os males é Assi com’ oý dizer a quen m’ aquest’ á contado, en riba d’Aguadiana á um logar muit’ onrrado e Terena chaman y, logar mui sant’ aficado, u muitos miragres faz [a Sennor de dereitura.] (CSM 224).

O espaço sagrado de Terena também se apresenta na Cantiga 213.

Cantiga 213 – Como Santa Maria livrou u ome bõo en Terena de mão de seus emigos que o querian matar a torto, porque ll’ apõyan que matara a ssa moller. Das 12 Cantigas de Alfonso X dedicadas ao Santuário de Terena, a de número 213 é a maior. Composta por 20 estrofes com 3 versos monorrimos mais um verso de rima igual ao estribilho, a Cantiga narra a história de um homem bom que

guardado,

ainda

mais

quando

lhe

imputados injustamente. A Cantiga narra que em Elvas havia um homem chamado de Don Tome e que “sobre tod’ outra cousa amava Santa Maria” e que casado era com uma mulher que julgava ser boa e salva, mas que errara em seu julgar, pois “ela amava mui mais a outros ca non a el[e] amava, e poren quando podia era-lle mui torticeyra’. Observa-se aqui que a esposa é chamada de perversa (torticeyra), pois amava mais à outros homens do que o marido que era “u ome bõo”. Certo dia, saindo o marido para o trabalho, e achando-se a mulher sem

564


Carlos Henrique Durlo

marido, fez “como moller maa”, e com

No decorrer da narrativa, a partir da

outros homens fora se encontrar. Porém,

estrofe de número doze, os homens,

naquela noite, acharam-na morta e ferida

julgando encontrar o “ome bõo” em Terena,

por facadas. Seus parentes, desconfiados

para lá seguiram, mas encontraram o

de que o marido a matara armaram

demônio,

emboscada no intuito de capturá-lo, de

homem bom, à margem da ribeira: “mas o

acordo com as estrofes cinco e seis:

dem’ acharon en forma del na ribeira”. E

Ela fazendo tal vida, ha noite a acharon

um dos que o perseguiam, tentando feri-lo

morta e acuitelada; e seus parentes chegaron, e pois que a morta viron, no marido sospeitaron que a matara a furto e sse fora ssa carreira.

personificado

na

figura

do

com uma flecha, montado em seu cavalo, enganado pelo demônio, caiu com o cavalo na ribeira. Por fim, os homens ao perceberem

Daquest’ o marido dela sol non sabia mandado; e quando chegou a Elvas, foi logo desafiado

que haviam sido enganados pelo “dem’ arteiro”, rogaram ao “ome bõo” que o perdoassem, pois à Virgem Maria é a

dos parentes dela

Senhora cheia de humildade que nos dá

todos, e sen esto recadado

passagem para o paraíso, “que é vida

o ouvera o alcayde; mas fogiu aa fronteira. (CSM,

duradeira”. E encerra o autor, essa longa

213).

No entanto, a “quem serve Santa

narrativa, retomando o estribilho que afirma

Maria, a Sennor mui verdadeira, de toda

que

quem

serve

à

Virgem

Maria

é

cousa o guarda que lle ponnan mentireira”,

guardado por Ela de todos os males e

o homem bom foi à igreja de Terena, como

injustiças, pois é Ela a “Sennor mui

narra a nona estrofe, e ante o altar da

verdadeira”.

Virgem rogou-lhe à Senhora que dos

Ao concluir a análise desta Cantiga

santos é espelho e luz (“Sennor, tu que es

observamos que a temática presente na

dos

narrativa é a justiça. A Virgem Maria, a

santos

espello

e

lumeira”),

não

morresse injustamente: [Ele, pois foi na eigreja, deitou-ss’ enton mui festo ant’ o seu altar e disse: “Madre do Vell’ e Meno, que te does dos coitados, doe-te de mi mesquo, Sennor, tu que es dos santos espello e lumeira;]

senhora da verdade, não permite que seus filhos sejam julgados de forma injusta pelos pecados cometidos por outros, ainda mais o pecado do adultério tão condenado pela Igreja. Dessa forma, aquele homem que era bom e que enganado fora pela sua

565


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

esposa,

pela

Mãe

de

Deus

fora

O estudo do espaço sagrado nas

salvaguardado das mãos de seus inimigos

Cantigas de Santa Maria se justifica,

e da injustiça que provocariam motivados

portanto, pelo fato de que o espaço é uma

pela mentira e pela perversidade da

importante categoria literária na narrativa e

adúltera.

na poesia. A religiosidade, a peregrinação,

Conclui-se que a ideia do espaço

os costumes religiosos e a influência da

religioso era o local por excelência da

Igreja na vida do povo são retratadas

resolução dos problemas e desajustes

nessas cantigas e na cultura popular dos

sociais causados pelo pecado e pela

séculos XIII e XIV.

injustiça. As Cantigas de Santa Maria,

Nas figuras 1 e 2 visualizamos o

acentuadamente religiosas, configuram a

Santuário de Terena (figura 1) e a imagem

ideia

da

do

espaço

sagrado,

conforme

observamos nas duas cantigas analisadas.

Figura 1

Virgem

Maria

(figura

2)

cultuada

naquele santuário:

Figura 2

Referências: BASCHET, Jerônimo. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. FERREIRA, Maria Ema Tarracha. Poesia e prosa medievais. Lisboa: Ulisséia, 1988. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1990.

566


Carlos Henrique Durlo

LAPA, Manuel Rodrigues. Lições de literatura portuguesa – época medieval. 8ª ed. Coimbra: Coimbra Editora Ltda., 1973. LEÃO, Ângela Vaz. Cantigas de Afonso X a Santa Maria: antologia, tradução e comentários. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2011. MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Peregrinação e Poesia. Rio de Janeiro: Ágora da Ilha, 1999. METTMANN, Walter. In: Afonso X, O Sábio. Cantigas de Santa Maria. Editadas por Walter Mettmann. Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis, 1959-1972. MONTEIRO DE CASTRO, Bernardo. As Cantigas de Santa Maria: um estilo gótico na lírica ibérica medieval. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2006. SANTOS, Luís Alberto Brandão; OLIVEIRA, Silvana Pessoa. Sujeito, tempo e espaço

ficcionais: Introdução à Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001. SPINA, Segismundo. Iniciação na Cultura Literária Medieval. Rio de Janeiro: Grifo, 1973. TORRES GONZALES, Francisco. Alfonso X: uma mentalidade de sintesis. Cuadernos de

estudios manchegos. Espanha: Universidade de La Rioja, nº 20, p. 199-207, 1990. ISSN: 0526-2623.

567


A CONCEPÇÃO DE HISTÓRIA PARA POLÍBIOS- UM OLHAR GREGO SOBRE AS CONQUISTAS ROMANAS Diego Regio Giacomassi1 Adriana Mocelim (Orientadora) Resumo Políbios, historiador grego genuíno de Megalópolis, membro da federação Aquéia, participou do conflito romano-macedônio no qual preferiu manter se neutro junto de seu pai Licortas. Porém após a submissão de toda Grécia pelas forças romanas, foi mandado para o exílio em Roma, onde escreveu sua maior obra: Histórias, a qual é dedicada a compreender como e com que Constituição em menos de 53 anos os romanos conseguiram submeter todo o mundo conhecido até então. Além de compreender o contexto histórico vivenciado pelo autor, através da análise de sua obra Histórias, buscouse levantar características que permitam compreender a concepção de História adotada por ele e ainda elementos que caracterizam a expansão romana durante a República. A metodologia empregada consistiu em revisão bibliográfica e análise minuciosa da fonte primária em questão; a obra Histórias. Sob uma posição privilegiada, em uma época caracterizada pelo êxito romano e o declínio grego, Políbios empreende em sua narrativa uma história pragmática, que tem como características o objeto de investigação os fatos políticos, a preocupação em atribuir as causas das vitórias e dos fracassos dos acontecimentos, além de ser útil para o presente e de narrar os feitos como eles realmente ocorreram. Com uma concepção cíclica e aberta da história, no sentido de que a degeneração inevitável das instituições se dá de forma imprevisível, fazendo da história ensinamento, Políbios caracteriza o início da expansão romana na Itália de forma bastante positiva em um breve resumo no começo de sua obra, referindo-se às conquistas como “uma marcha para a grandeza”. Palavras-chave: História; Políbios; Pragmática.

1PUCPR/

PIBIC

568


Diego Regio Giacomassi

Políbios historiador grego genuíno

vida uma educação compatível à sua

de Megalópolis, cidade da Arcádia, nasceu

posição social, envolvido nas questões

aproximadamente em 208 a. C. e morreu

macedônicas e romanas, representante do

no ano de 125 a.C. em consequência de

partido aristocrático junto de seu pai, não

uma queda de cavalo aos 82 anos de

tinha pressa em apoiar um dos lados do

idade. O autor de Histórias obra a qual se

conflito, a terceira Guerra da Macedônia,

possui

terço

fato que proporcionou seu exílio para

em

Roma, pois esta exilava os mais notáveis

escrever a história do período da expansão

das cidades conquistadas para dominá-las

romana na bacia mediterrânea, desde a

definitivamente, assim como procurava, ao

intervenção na Grécia, assim como as

fazer tal ato, beneficiar seus aliados

Guerras Púnicas, até a tomada de Roma

regionais

sobre a Numância em 133 a.C. O tema

componentes do partido democrático

somente

preservado,

cerca

tem

de

imenso

um mérito

principal de sua obra é apresentar as causas do êxito do Estado romano nos 53 anos que revolucionaram o mundo Antigo, 221 a 168 a.C., quando Roma consegue submeter praticamente todo o mundo conhecido até então (CABANES, 2009, p. 74; HARTOG, 2013, p.98) “Como e graças a que governo o Estado romano

que

neste

caso

eram

os

Em 171 Políbios estava entre os adeptos da neutralidade, ao lado de seu pai; em 169, todavia, quando a Confederação, contra opinião de Licortas e talvez do próprio Políbios, decidiu declarar-se a favor dos romanos, ele foi nomeado hiparco, sendo Árcon o seu comandante. (POLÍBIOS, 1985, p.31)

Na época de seu exílio (168 a.C.150 a.C.) Políbios possuía por volta de quarenta anos de idade e, ao contrário de

conseguiu, coisa sem precedentes, estender seu

milhares de gregos exilados para diversos

domínio a quase toda a terra habitada, e isso em

confins do território da grande República,

menos de 53 anos?”1 Para responder a essa pergunta,

Políbio,

estava

bem

situado

na

este ficou na cidade de Roma participando

transversal entre a civilização grega em declínio da

do círculo intelectual de Cipião. Acredita-se

qual ele provinha e a civilização romana em

que a obra Histórias tenha sido escrita no

expansão a qual acabou por aderir, a ponto de se tornar um defensor ferrenho de seus valores. (DOSSÉ, 2012, p. 42)

Políbios

pertencia

natal, mas já sem a obrigação do exílio, em

grupo

diversas viagens que fez nessa “segunda”

aristocrático de Megalópolis envolvido na

fase de sua vida, viagens, algumas, até

política e assuntos militares, filho de

mesmo de volta à Roma, onde certa vez

Licortas,

acompanhou Cipião, comandante romano,

comandante

da

ao

período que esteve fora de sua cidade

Federação

Aquéia, provavelmente recebera em sua

na destruição de Cartago em 146a.C

569


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Políbios

relata

e

vivencia

afirmação- ela agradará somente uma espécie de

a

leitores, e para o grande público posso oferecer

experiência do choque de dois mundos

apenas um texto sem atrativos. (POLÍBIOS, 1996,

culturais, grego e romano, que passavam

p. 373)

por fases distintas, o primeiro em declínio

A escolha de escrever uma história

sendo grande parte da Grécia sobre julgo

política

macedônio, e o outro em franca expansão

preocupação que o autor tem com relação

e prosperidade, já que após as vitórias

à utilidade do conhecimento histórico, para

sobre Cartago Roma passou a ser como

Políbios nenhum outro corretivo é mais

diz Marvin Perry (2002, p. 94), “a única

eficiente que a História para auxiliar os

grande

homens nas dificuldades do presente,

potência

ocidental”.

do

(CABANES,

Mediterrâneo 2009,

p.

74;

DOSSÉ, 2012, p. 42)

muito

tem

haver

com

a

deste modo, ao ater-se aos feitos políticos o autor estaria então dando continuidade

1.1 A história pragmática.

às

obras

de

seus

antecessores

que

Diante de três gêneros distintos de

acreditavam, assim como ele, que era o

história, voltados para interesses e leitores

estudo da História o mais importante e

diferentes, Políbios, ao invés de optar por

único meio para exercer uma vida política

escrever uma história genealógica, para

ativa (AQUINO, 2006, p. 48)

“leitores superficiais”, como ele mesmo afirma,

ou

uma

história

referente

à

colonização e fundação de cidades, que atrai “apreciadores de fatos singulares”, o autor de Histórias escolheu por escrever o gênero pragmático, por este tratar dos feitos políticos dos povos e dos estadistas (AQUINO, 2006, p.48) O gênero genealógico atrai os leitores superficiais; o gênero pertinente à colonização , à fundação de cidades e aos laços de parentesco entre os seus

pois nenhum outro corretivo é mais eficaz para os homens

que

o

conhecimento

do

passado.

Entretanto, não somente alguns, mas todos os historiadores, e não de maneira dúbia mas fazendo dessa idéia o princípio e o fim desse labor, procuram convencer-nos de que a educação e o exercício mais sadios para uma vida política ativa estão no estudo da História, e que o mais seguro e na realidade o único método de aprender a suportar altivamente as vicissitudes da sorte é recordar as calamidades alheias. (POLÍBIOS, 1996, p.41)

Aqui é importante ressaltar que o

habitantes, como diz Éforos em alguma parte de

termo pragmático em história pragmática

sua obra, atrai os curiosos e os apreciadores de

não é definido somente pela utilidade

fatos singulares, enquanto o estudioso de política se interessa pelos feitos dos povos, das cidades e

prática do conhecimento histórico, que o

dos estadistas. Quanto a mim, concentrei a minha

considera um recurso para potencializar as

atenção exclusivamente nestes últimos assuntos, e

possibilidades

como minha obra não trata de qualquer outra coisa- já tive a oportunidade de fazer essa

de

ação

no

presente,

segundo Pedech (1964, p.32), o termo

570


Diego Regio Giacomassi

pragmático história,

foi

que

adicionado

na

à

antiguidade,

palavra tinha

o

significado de “investigação”, para também

autor, para qualquer cidadão de seu tempo (AQUINO, 2006, p. 49; DOSSÉ, 2012, p. 42) Com efeito, a própria singularidade dos eventos

definir os objetos de pesquisa e diferenciar

escolhidos por mim para meu tema será suficiente

dos outros dois tipos de narrativa citados

para desafiar e incitar a totalidade dos leitores,

anteriormente, os quais são associados à

sejam eles jovens ou idosos, a conhecer a minha história pragmática. Pois quem seria tão inútil ou

mitologia e não à narrativa comprometida

indolente a ponto de não desejar saber como e sob

com a verdade. Ou seja, na antiguidade

que

grega, a história em si, séria, não fabulosa, passado.

Tal

opinião

também

de

constituição

os

romanos

submeter quase todo o mundo habitado ao seu

é aquela que atrela-se aos fatos políticos do

espécie

conseguiram em menos de cinqüenta e três anos governo exclusivo- fato nunca antes ocorrido? Ou,

é

em

corroborada por François Dosse citado a

outras

palavras,

quem

seria

tão

apaixonadamente devotado a outros espetáculos ou estudos a ponto de considerar qualquer outro

seguir (AQUINO, 2006, p. 49, 50)

objetivo mais importante que a aquisição desse

O segundo sentido do qualificativo pragmático em

conhecimento? (POLÍBIOS, 1996, p.41)

Políbio é designar uma divisão entre uma história fabulosa- a da filiação com os deuses lendários ou

Para que a história cumpra seu

a das imigrações dos povos e das fundações das

papel no presente, e seja “frutuosa”, não

cidades- e a história séria- a única pertencente à dimensão

pragmática,

pelo

desenvolvimento

basta que o historiador simplesmente

metodológico exigido por ela. (DOSSE, 2012, p.

afirme os acontecimentos como de fato

43)

ocorreram, a narrativa histórica polibeana

Além da utilidade prática, Políbios cita mais duas razões para ater-se ao gênero

pragmático,

primeiramente

a

constante “novidade”, “porque há sempre algo digno de tratamento novo”, ou seja, a história

privilegia

os

acontecimentos

presentes e a segunda razão seria à tamanha importância para o presente do próprio objeto de sua narrativa, o qual é explicar “como e sob que espécie de constituição os romanos conseguiram em menos de cinqüenta e três anos submeter quase

todo

o

mundo

habitado”,

fato

considerado imprescindível, segundo o

deve fornecer elementos que expliquem os fatos ocorridos e hierarquizar suas causas. Todo esse compromisso se vale de um método

demonstrativo

de

provas

denominado apodídico. Utilizando como fonte

suas

próprias

experiências

e

testemunhos recolhidos por ele, através de relatos e outras obras, Políbiosemprega uma pesquisa causal tentando dar conta de uma História geral, preocupada em narrar os diversos acontecimentos nas mais diferentes regiões do mundo conhecido que se interligavam para um único fim, a

571


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

conquista romana (DOSSE, 2012, p. 44,

imaginação criadora, à razão e a uma

42)

vontade Realmente, a simples afirmação de um fato pode interessar-nos

mas

não

nos

traz

benefícios;quando, porém, acrescentamos ao fato a sua causa, o estudo da História torna-se frutuoso. A transposição mental para o nosso tempo de circunstâncias análogas dá nos meios para

fazermos

previsões

a

respeito

dos

acontecimentos futuros, capacitando-nos as vezes a tomar precauções, e às vezes, graças a reproduções de situações, a enfrentar com maior confiança as dificuldades pendentes sobre nós. (POLÍBIOS, 1996, p.415)

Deste modo, sendo as causas os principais

elementos

de

sua

narrativa

histórica, torna-se imprescindível conhecer a teoria causal do método empregado por Políbios na sua busca pela verdade e no real entendimento dos fatos. autor

acredita

possuir

a

caos, e julga censuráveis as pessoas que atribuem à Sorte, ou aos deuses a razão pela qual todas as coisas acontecem. Políbios crê que somente quando não se consegue de modo algum achar as causas dos fatos é que se pode atribuir à vontade dos deuses ou ao destino, como no caso dos acidentes naturais, do contrário, as causas as quais ele procura demonstrar se nas

próprias

categorias

humanas, como afirma François Dosse (2012, p.45) “ao contrário dos fenômenos naturais,

as

causas

estão

ligadas

ao

entendimento” (AQUINO, 2006, p.53) Quanto a mim, por achar censuráveis as pessoas que atribuem eventos na vida pública e incidentes na vida privada à Sorte e ao Destino, desejo expor agora minha opinião a esse respeito, tanto quanto é

pertinente

fazê-lo

numa

obra

puramente

histórica. Realmente, a propósito dos fatos cujas causas não pode de forma alguma ou somente pode com muita dificuldade perceber, devemos talvez ter razões quando procuramos sair da dificuldade atribuindo-os à interveniência divina de um deus ou da Sorte- por exemplo, fenômenos como chuvas ou nevascas excepcionalmente fortes ou contínuas, ou inversamente a destruição de colheitas por secas rigorosas, ou por geadas, ou uma persistente peste epidêmica ou outros eventos análogos cujas as causas não são facilmente perceptíveis. Em face de eventos como esse devemos curvar-nos naturalmente diante da causas eficiente e final podemos descobrir, não

capacidade de discernir a realidade do

encontram

subordinada

opinião popular (...) Mas, em situações cujas

1.2 A teoria das causas. Nosso

estritamente

à

devemos penso eu, atribuí-las à interveniência divina. (POLÍBIOS, 1996, p.540, 541)

Desse modo, de acordo com sua teoria, Políbios distingue os elementos causa, pretexto e começo, que não devem estar de forma alguma em situação de confusão, mas sim de sucessão. Sendo as causas as intenções anteriores à ação, essas subordinam o ato, o início de qualquer coisa (DOSSE, 2012, p. 45) No livro III, ele fala de uma “grande e substancial diferença entre o começo, a causa, e o pretexto”, indicando que “estes últimos [causa e pretexto] são os primeiros termos de toda a série, e o começo o último” (III, 6).7. Nessas noções, a ação humana parece se identificar com o começo (ou início) e, nesse sentido, distingue-se das intenções. As

572


Diego Regio Giacomassi ações são o início na condição de execução de

perguntou-lhe afetuosamente se ele desejava

intenções e planos; estes são, assim, anteriores às

acompanhá-lo na expedição.(...) o pai segurou-lhe

ações, ao início: são efetivamente, suas causas:(

a mão (..) e mandou estender sua mão sobre a

..) As causas são, assim, da ordem do sujeito, da

vítima sacrificada no mesmo tempo e jurar que

ordem interna: “julgamentos”e reflexões, idéias,

jamais seria amigo dos romanos.(POLÍBIOS, 1996,

“sentimentos”e “raciocínios”. No entanto, segundo

p. 142, 143)

P. Pedech, as operações mentais, intelectuais têm, nesse conjunto, domínio; (AQUINO, 54,55)

Como exemplo do trato de sua teoria causal psicológica, Políbios defende como uma das principais causas da segunda Guerra Púnica, o “primeiro passo” que os romanos

deram

para

sua

conquista

mundial, o desejo de desforra de Amílcar, pai de Aníbal, que segundo Políbios, fez seu filho jurar nunca ser amigo dos romanos, causa revelada pelo próprio

Outro exemplo de que as causas são associadas às operações mentais, nosso autor atribui os sucessos de Roma “sobre todo o mundo habitado” à sua própria Constituição que, segundo ele, não impõe somente a forma de governo sobre seus habitantes, mas dela também derivam as idéias e as iniciativas dos atos e costumes dos seus governantes e cidadãos (DOSSÉ, 2012, p. 45) Políbio considera que uma das razoes que

Aníbal, quando este se refugiou, depois de

permitiram a Roma exercer sua potência é a forma de sua Constituição, que inclui, segundo ele, não

perder a Guerra, na corte de Antíocos em

só o regime político, mas também os costumes da

conversa com o rei e que confere-se no

civilização romana. A Constituição em sentido

trecho da obra citado a seguir (DOSSE,

amplo determina a causalidade histórica mais geral. (DOSSÉ, 2012, p. 45)

2012, p.44, 45)

Sendo

Numerosas evidências podem ser encontradas para

comprovar

o

fato

de

Amílcar

haver

contribuído muito para a origem da segunda Guerra Púnica, apesar de ter morrido dez anos

predominantes

as

Constituições

de

todo

causas

sucesso

e

insucesso dos governos na investigação

antes do início da mesma, porém na minha opinião

causal polibeana, é de suma importância

o episódio que vou relatar é bastante para

conhecermos o inevitável processo de

confirmar essa asserção. (..) O cartaginês disse que por ocasião dos preparativos finais para a

degeneração

natural

pelo

qual

elas

expedição de seu pai com um exército contra a

passam, para então compreendermos a

Ibéria, ele mesmo então com nove anos de idade

concepção de história que perpassa a sua

estava de pé nas proximidades de um altar, enquanto Amílcar oferecia sacrifícios a Zeus.

obra

Quando, em face dos presságios favoráveis.

1.3 A teoria de anaciclosepolibeana e a sua

Amílcar havia espargido uma libação aos deuses e

concepção de história

cumprindo os rituais costumeiros ele ordenou às outras pessoas que se afastassem até uma certa distância, e pedindo a Aníbal para aproximar-se e

Políbios

considera

que

as

Constituições estariam submetidas a uma

573


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

lei

natural

inevitável

denominada

presente, a serviço da qual põe-se a

anaciclose, ou seja, a sucessão cíclica dos

história

regimes políticos fadados ao declínio,

história para Políbios torna-se aberta,

retomando a teoria aristotélica, de que as

cognoscível e praticável (AQUINO, 2006,

três

p.63, 64, 65)

formas

primárias

de

governo,

concepção

de

conceber a própria história humana como cíclica, a

degenerariam respectivamente em tirania,

concepção polibeana do ciclo propriedade e

oligarquia e oclocracia (DOSSE, 2012, p.

decadência

dos

regimes

políticos

tem

precisamente a pretensão de tornar aberta a

46)

história, isto é, de torná-la cognoscível e praticável.

As causas dessa lei de sucessão

(AQUINO, 2006, p. 65)

natural de regimes esta associada à própria sucessão de gerações da espécie humana, e, como conseqüência disso, promoveria o esquecimento histórico dos mais novos que não reconheceriam os esforços dos mais velhos para a manutenção do regime, o implicaria

na

impossibilidade

da

estabilidade contínua dos governos, que assim

fatalmente

se

degenerariam.

(AQUINO, 2006 p.61) Porém ao contrário da concepção cíclica

a

Assim, parece-me que, muito mais do que

monarquia, aristocracia e democracia, se

que

pragmática”,

de

Aristóteles,

fixa

e

circular,

Políbios adiciona como causa a esse processo

de

decadência

e

desaparecimento de regimes, os chamados “fatores exógenos” que provocariam o desaparecimento de maneira imprevisível. Com isso, propõe uma flexibilidade para essa “sucessão natural”, assim ela não se torna inevitável, ainda que a decadência e o fim o sejam. Associado à quebra da sequência definida, em conjunto com “a possibilidade da intervenção prática no

Desse modo, ao constituir uma narrativa histórica voltada para a prática política no presente, função que nosso autor atribui à história, não fazendo do destino algo totalmente previsível, mas sim imprevisível na sua teoria de anaciclose, graças

aos

fatores

“exógenos”,

a

concepção de história para nosso autor é “aberta”, “cognoscível” e “praticável” no sentido que para ele o destino não é determinado, ainda que tudo esteja em declínio, mas sim passível, em certa medida, às ações humanas, assim, além da história ser possível de se compreender ela também é fruto das ações dos homens além de instrumento para seus atos. 2

Políbios e a narrativa acerca da

expansão Romana. A expansão romana na Itália teve início após o acordo desfavorável que os romanos fizeram com os gauleses após estes terem saqueado Roma no início do século IV a.C. Primeiramente deflagrando

574


Diego Regio Giacomassi

guerra na região da Itália central, após ter

da grandeza” e que “graças à bravura e à

fortificado suas muralhas depois do saque

boa sorte” os romanos combateram e

sofrido, Roma durante todo o século IV e

venceram os etruscos, depois os celtas e

início do século III esteve ocupada em

os samnitas. Com relação aos conflitos

vencer, e venceu, seus inimigos vizinhos,

com os tarentinos, os romanos “atacaram

estendendo definitivamente seus domínios

então pela primeira vez o resto da Itália não

sobre à Etrúria, Lacio, Campânia e à Itália

como se fosse um território estrangeiro,

Meridional, regiões nas quais combateu

mas como se lhes pertencesse por direito”,

Latinos e Samnitas, os mais ferozes rivais

desse modo, Políbios concluí esse resumo

da expansão (GIORDANI, 1968, p.37, 38;

de

POLÍBIOS, 1996, p. 44,45)

extraordinário, onde podemos atestar na

Depois das conquistas sobre a Itália Meridional, a presença romana inquietou Tarento, metrópole do sul, que em vão tentou fazer com que outros povos itálicos se aliassem contra o lento e seguro domínio romano. Após o descumprimento de Roma sobre um tratado firmado pelas duas cidades, a respeito da não invasão do Adriático, as duas forças entraram em conflito. Pirro, rei de Tarento, deflagrou várias vitórias sobre os romanos, mas sem muito efetivo para continuar o conflito foi obrigado a uma proposta de paz; enquanto este foi disputar a coroa macedônica, Roma dominou a Magna Grécia e sitiou Tarento, sua Metrópole, a qual se rende em 275 a.C. (GIORDANI, 1968, p. 39) Todo esse período relatado, as primeiras conquistas romanas, as quais resultaram numa imensa quantidade de súditos, Políbios refere-se a essas guerras e conquistas como uma “marcha à estrada

êxitos

romanos

como

um

feito

citação a seguir Depois de fazerem uma trégua em condições favoráveis

aos

gauleses

e,

contra

a

sua

expectativa, voltarem aos seus lares e por assim dizer iniciarem a marcha pela estrada da grandeza, os romanos continuaram nos anos subseqüentes a levar a guerra aos seus vizinhos. Após subjugar todos os latinos graças à sua bravura e à boa sorte na guerra, eles combateram primeiro contra os etruscos, em seguida contra os celtas e depois contra os samnitas, cujo território confinava com o dos latinos a leste e ao norte. Algum tempo mais tarde os tarentinos, temendo as conseqüências de sua insolência para com os emissários dos romanos, pleitearam a intervenção de Pirros (isso ocorreu no ano anterior à expedição dos gauleses que foram derrotados em Delfos e então rumaram para a Ásia11). Naquela ocasião os romanos tendo subjugado os etruscos e samnitas e tendo vencido os celtas na Itália em várias batalhas, atacaram então pela primeira vez o resto da Itália não como se um território estrangeiro, mas como se lhes pertencesse por direito. (...) E- feito extraordinário!após haverem subjugado todos esses povos e terem transformado em súditos seus todos os habitantes da Itália à exceção dos celtas, eles empreenderam o cerco a Région, então ocupada por outros romanos.(POLÍBIOS, 1996, p. 45)

575


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Políbios, portanto, como mostrado anteriormente, conquistas

se

refere

romanas

de

às

primeiras

uma

boa sorte na guerra, modo bastante positivo, esperado, já que nosso autor por

forma

mais que tenha sido dominado por Roma,

resumida no início do Livro I da sua obra

tornou-se desde o exílio adepto a ela até o

Histórias, referindo-se a elas como uma

fim de sua vida.

época vencedora, resultado de glórias e

Referências: AQUINO, João Emiliano Fortaleza de. Memória e consciência histórica. Fortaleza. Ed.UECE, 2006. CABANES, Pierre. Introdução à história da Antiguidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. DOSSE, François. A história. São Paulo: Unesp, 2012. GIORDANI, Mario Curtis. História de Roma: Antiguidade Clássica II. 2.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1968. GIORDANI, Mario Curtis. História da Grécia: Antiguidade Clássica I. 3 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1984. HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores vêem. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. PÉDECH, Paul. La méthodehistorique de Polybe. Paris:LesBellesLettres, 1964. PERRY, Marvin. Civilização ocidental: Uma história concisa. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. POLÍBIOS, História. Tradução de Mário da Gama Kury, Brasília, Editora Universidade de Brasíla, 1996.

576


GÊNERO E SEXUALIDADE NOS ESTUDOS DA ANTIGUIDADE ROMANA: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS/METODOLÓGICOS SOBRE A MASCULINIDADE NOS EPIGRAMAS DE MARCIAL (I SEC. D.C) Filipe Cesar da Silva 1 Resumo: A construção do conhecimento histórico tem sido feita por meio de várias fontes de pesquisa. A proposta, neste caso, é investigar e analisar a sociedade romana, os perfis de masculinidades e suas relações sexo-afetivas por meio de uma obra literária da Antiguidade produzida em Roma, no séc. I d.C. A fonte em questão é do autor romano Marcial, que em meados do primeiro século do Principado Romano escreveu “Epigramas Eróticos”. Tal obra será discutida através das discussões de gênero e sexualidade e analisada pela abordagem teórico-metodológica da História Cultural, que vê na fonte literária um importante meio de produção de conhecimento e análise histórica. O intuito é de contribuir com uma nova leitura sobre Marcial e refletir, através de uma perspectiva histórica, o necessário respeito às diversas maneiras de vivenciar a masculinidade e a sexualidade humana. Palavras-chave: Gênero; Sexualidade; Epigramas Eróticos de Marcial.

1Graduando

de História da Universidade do Sagrado Coração – USC. Este texto é parte da pesquisa em nível de

Iniciação Científica: “Homens Romanos: o corpo, o amor e a sexualidade segundo os Epigramas de Marcial”, com orientação da Profa. Dra. Lourdes Conde Feitosa e apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP. A pesquisa está inserida nas discussões desenvolvidas junto à linha de pesquisa História, Gênero

e Relações de Poder do grupo de pesquisa Gênero, Sexualidade e Sociedades, cadastrado no CNPq: http://plsql1.cnpq.br/buscaoperacional/detalhegrupo.jsp?grupo=08157050AHR2CJ.

577


Filipe Cesar da Silva

Introdução: LiteraturaHistória Cultural,

historiador, interessado em compreender o

Representação e as Relações de Gênero

universo mental de mulheres e homens e

Quando iniciamos uma investigação

os

aspectos

sócio-culturais

que

os

histórica, partimos de um tema e buscamos

envolvem. O estabelecimento deste diálogo

nele um recorte temporal. Imediatamente

pôs

passamos a refletir sobre as fontes que

variadas correntes historiográficas, e um

utilizaremos para desenvolver o assunto e

novo olhar sobre a literatura como material

responder às questões pertinentes a ele.

propício à diversas leituras, seja por sua

Refletir sobre quais fontes devemos usar

riqueza de significados para o universo

para a pesquisa historiográfica nunca

cultural,

mereceu tanta atenção como atualmente

experiências e percepções de homens e

(GAFFO, 2013).

mulheres apresentados (CORREIA, 2012;

Feitosa (2005) enfatiza como a expansão

do

ou

pelos

concepções

valores

das

sociais,

GAFFO, 2013). Nas palavras de Pesavento (2006, p.

historiador – que passou a abranger

7) “a literatura é uma fonte para o

objetos

o

historiador privilegiada, [...] porque dará

cotidiano, a língua, a literatura, o mito, a

acesso especial ao imaginário, permitindo-

sexualidade,

lhe enxergar traços e pistas que outras

como o

o

amor,

temático

discussão

do

tais

território

em

inconsciente, os

meios

de

comunicação, entre outros - estimulou a pesquisa de novos documentos, para além dos

oficiais,

como

As obras literárias podem não ser a

literários,

descrição nem mesmo a reprodução real

achados arqueológicos, fontes sonoras,

de uma época, porém, condiciona o

visuais, epigráficas, jornalísticas e etc.

historiador pelo menos uma aproximação e

Situação que possibilita ao historiador

uma tentativa de explicação de uma

interpretar o passado não mais pelo viés

maneira de viver (PARRA, 2010), no caso,

tradicional e dominante, mas em uma

aqui proposto, na Roma Antiga do primeiro

perspectiva

século d.C.

pluralista

escritos

fontes não lhe dariam”.

e

subalterna,

evidenciando pessoas e aspectos até então desconsiderados e excluídos da história.

Nesse

contexto,

a

busca

de

historicidade em testemunhos literários no

Com relação à Literatura, tipo de

estudo da Antiguidade, para além de uma

fonte escolhida para a presente pesquisa,

carência de fontes, revela que estes

sua conversão em fonte histórica tem se

testemunhos não são somente produtos da

efetivado em mudanças no enfoque do

imaginação e ficção, mas que também

578


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

carregam em si indícios que permitem re-

Para

Pesavento

(2006),

as

construir aspectos culturais de uma dada

representações são operações mentais e

sociedade, tornando-se assim, importantes

históricas, que criam sentidos ao mundo,

instrumentos de análise e compreensão

sem

social (SILVA, 2001).

significado. É por meio delas que se age no

elas

este,

em

si,

não

possui

Com o intuito de compreender

mundo, que se constroem identidades.

como Marcial descreve a sociedade do seu

Nesse sentido, a representação fica no

tempo (I sec. d.C) - o universo público e

lugar da realidade, porém, não como uma

privado, os variados segmentos sociais, as

imagem perfeita do real: o representante

múltiplas relações pessoais e interpessoais

não é o representado, ele guarda relações

e, principalmente, as questões relativas à

de semelhança, significado e atributos com

masculinidade, corpo e relações sexo-

este. As representações se expressam nos

afetivas

discursos,

assumindo

acreditamos ser necessário recorrer à

configurações,

as

noção atual do conceito de representação.

concorrentes, estabelecendo relações de

dos

Homens

Romanos

múltiplas

quais

se

tornam

Para Chartier (1990), o conceito de

poder. Assim, a percepção dominante

representação diz respeito ao modo como

acaba ganhando foro de realidade, de

em diferentes lugares e tempos a realidade

verdade, sendo naturalizada.

social

é

construída

de

Ideia reforçada por Darnton (1987, p.

delimitações.

29), na qual a noção de representação se

Esses esquemas intelectuais criam figuras

constituí como a maneira pela qual as

que dotam o presente de sentido. O autor

pessoas comuns organizavam a realidade

também

em

classificações,

divisões

acredita

que

por e

meio

esses

códigos,

suas

mentes

expressando-se

em

padrões e sentidos são compartilhados, e

comportamentos e práticas sociais. Apesar

apesar de poderem ser naturalizados, seus

das representações possuírem expressões

sentidos

são

individuais, estas estariam condicionadas

historicamente construídos e determinados

por um “idioma geral”, em outras palavras:

pelas relações de poder e pelos conflitos

um conjunto de símbolos compartilhados,

de interesses dos grupos sociais. Ou seja,

uma estrutura fornecida por cada cultura

as

que criaria possibilidades de expressões,

podem

mudar,

representações

são

pois

sempre

determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam.

mas também as limitaria. Ademais,

as

representações

permitem aos indivíduos a possibilidade de

579


Filipe Cesar da Silva

darem sentido ao seu mundo, isto é,

relações complexas entre diversas formas

encontrarem a ordenação de suas próprias

de interação humana.

estruturas sociais, na medida em que são construções,

embasadas

realidade

que as relações de gênero não são

vivida, as quais traduzem as posições e

naturais, mas construídas historicamente,

interesses dos atores sociais e que, ao

isto é, “as relações entre homens e

mesmo tempo, descrevem a sociedade tal

mulheres,

como

representações dessas relações estão em

pensam

que

na

Louro (2004, p. 35) também enfatiza

ela

é,

ou

como

gostariam que fosse. (CHARTIER, 1990;

os

discursos

e

as

constantes mudanças”.

DARNTON, 1987; PESAVENTO; 2003). Ou

Gênero é fruto de um processo, e

seja, as representações são mecanismos

seus

criados pelos diferentes grupos, por vezes

variam no tempo e em conformidade com

com o objetivo de imporem sua concepção

as diversidades culturais inerentes a cada

de mundo e seus valores.

contexto (FEITOSA, 2005). Dessa forma, o

Permeadas

pela

socialmente

construídos

do

conceito de gênero nos possibilita a

olhar crítico feminista (FEITOSA, 2005), as

compreensão particular de como homens e

análises de gênero ampliam o campo da

mulheres

discussão e acirram os debates em torno

relacionamento social como pessoas que

da construção dos conceitos de “feminino”

articulam novas respostas para o seu

e “masculino”, apresentando diferentes e

universo, pois os padrões de homem

mesmo

(racional, insensível) e de mulher (sensível,

divergentes

perspectiva

atributos

abordagens

e

trajetórias pelas quais os estudos de

delicada)

gênero

(LOURO,

têm

polemicamente áreas

do

sido utilizados

conhecimento

pensados em

e

diversas

(PEDRO

e

GROSSI, 1998). Scott (1995) destaca que gênero tem que ser redefinido e reestruturado em conjunto com uma visão de igualdade política e social que inclui não só o sexo, mas a classe e a raça. Diante dessa realidade, gênero é uma ferramenta para decodificar e compreender o sentido das

se

estão

desenvolvem

sendo

2004;

num

desconstruídos

CONNELL,

1995;

NOLASCO, 1995). Como bem reflete o estudo gênero é uma categoria útil não apenas à história das mulheres, mas também a outros sujeitos históricos: [...] Ele pode lançar luz sobre a história das mulheres, mas também a dos homens, das relações entre homens e mulheres, dos homens entre si e igualmente das mulheres entre si, além de propiciar um campo fértil de análise das desigualdades e das hierarquias sociais. (FILHO, 2005, p. 129).

580


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Assim, compreende-se que gênero

masculinidade, mas também qualitativa, de

não é apenas o feminino. É também o

várias áreas do saber - História, Educação,

masculino, bem como as diversas formas

Medicina Social, Sociologia, lingüística, nas

de gênero e de sexualidade com as quais

quais novas reflexões, artigos, dissertações

essas duas categorias podem se identificar

e teses começam a constituir o que em

em determinados contextos históricos e

breve será um campo de estudo. É nesse

sociais (FUNARI, FEITOSA, SILVA, 2003;

momento que as masculinidades como

PINTO, 2011).

expressões da dimensão relacional de

Nessa perspectiva, Butler (2003) considera

que

as

diferenças

sexuais

entoadas pelas discussões de gênero não

gênero (que apontam expressões, desafios e desigualdades), são pensadas em um contexto acadêmico e político amplo.

poderiam ser explicadas por uma suposta

A respeito dessas investigações

natureza humana, isto é, apenas entendida

sobre

através dos órgãos genitais, mas que

concorda que “a masculinidade não cai dos

resultam de construções culturais, sociais e

céus. [...] a masculinidade nasce do chão,

históricas.

que significa o contexto social, biológico,

Sob

esta

ótica,

as

noções

de

masculinidade,

Amanda

Rabello

cultural e histórico onde os homens se

"diferença biológica de sexo" e "diferença

inserem,

contexto

no

qual

algumas

cultural de gêneros" não são dados crus,

instituições têm sido fundamentais na

que se impõem, de forma compulsória,

formação de gênero” (RABELLO, 2010, p.

mas, conforme reflete Laqueur (2001),

175).

tanto o "sexo biológico" quanto o "gênero

As relações e as abordagens de

cultural" são idéias informadas por crenças

gênero, entendidas como relacionais, além

científicas, políticas, filosóficas e religiosas,

de não descartarem o masculino, e as

que não resultam de um conhecimento

masculinidades, parte dele, transformando,

especifico, sendo, ao contrário, produções

assim, em centro de reflexão, em tema de

discursivas explicáveis em contextos de

preocupação,

lutas e conflitos em que estão em jogo

(LOPEZ, 2011). É nessa discussão que o

gênero e poder.

presente texto se insere ao evidenciar um

Para Lopez (2011), no Brasil, ao longo

das

últimas

duas

décadas,

estudo

em

com

compreendendo

objeto

foco que,

na

de

pesquisa

masculinidade, no

entanto,

a

assistimos a uma proliferação, não apenas

articulação entre os universos femininos e

quantitativa dos estudos em torno da

masculinos

e

seus

aspectos

afetivos,

581


Filipe Cesar da Silva

físicos e ideológicos são essenciais para a

perfeitos, em um corpo de homem, quando

compreensão de seus respectivos papeis

o calor fosse suficiente para externalizar os

em qualquer tempo histórico em que for

órgãos reprodutivos, ou em um corpo de

analisado (FEITOSA, 2005).

mulher, quando o calor insuficiente fazia os

Construindo o corpo, inventando o sexo:

órgãos permanecerem internos. Os órgãos

Para Laqueur (2001, p. 23), “o sexo

reprodutivos seriam vistos como iguais em

tanto no mundo de sexo único como no de

essência e reduzidos ao padrão masculino.

dois sexos, é situacional; é explicável

Ou seja, ambos, homens e mulheres,

apenas dentro de um contexto da luta

seriam dotados de pênis e testículos. A

sobre gênero e poder”. Em sua detalhada

única diferença é que na mulher esses

pesquisa, o autor observa que houve

órgãos não eram externalizados. Assim,

diferentes formas de interpretar o corpo e

argumentava-se que havia uma ligação

as diferenças entre os sexos no decurso da

entre o útero e o cérebro das mulheres, o

história humana.

que

Ao analisar os discursos sobre o corpo, a

plenamente as faculdades mentais. Este

fisiologia reprodutiva e as relações entre os

esquema que ligava a anatomia corporal

sexos, Laqueur (2001) argumenta que a

aos papéis sociais específicos de cada

partir do século XVIII passa-se a considerar

sexo vai permanecer até o século XVIII.

a existência de um modelo de dois sexos,

Haveria, então, um só corpo e, nas

contrariamente à percepção herdada das

palavras de Laqueur (2001, p. 30), “uma só

sociedades ocidentais da Antiguidade de

carne”.

as

impossibilitaria

de

exercerem

que haveria apenas um sexo biológico,

Mas, é a partir do Renascimento

enquanto o gênero se apresentaria pelo

que se pode perceber um enfraquecimento

menos em duas possibilidades.

desse modelo antigo em prol do surgimento

Neste modelo antigo, de um sexo,

de um modelo que enfatiza a existência de

Laqueur (2001) pontua que homens e

dois sexos distintos. Segundo Laqueur

mulheres não seriam definidos por uma

(2001), as causas dessa transformação

diferença

de

não se restringiriam a meras mudanças

natureza, de biologia, de dois corpos

provocadas pelos progressos da ciência,

distintos, mas, apenas em termos de um

mas têm a ver com um contexto mais

grau

da

amplo de transformações no qual se

quantidade de calor atribuída a cada corpo,

destacam as forças políticas, culturais,

ele se moldaria em termos mais ou menos

cientificas e econômicas.

de

intrínseca

perfeição.

em

termos

Dependendo

582


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Louro (2001, p. 8) leva-nos a refletir que, em nosso corpo, ficam marcadas as diversas

interações

que

produzem

"verdades"

(LOURO, 2001). Portanto, a preocupação temática

enfrentamos e convivemos no ambiente

da sexualidade como um campo de análise

escolar, no contexto familiar e comunitário.

relevante, mostra-se, cada vez mais, como

E

são

um objeto fundamental na busca da

significados pela cultura e, continuamente,

compreensão dos possíveis significados

por ela alterados”.

das relações humanas, consideradas nos

como

encontros

e

que

sublinha

e

saberes

“os

corpos

O corpo, portanto, é tomado como

seus mais variados e complexos sentidos,

objeto de problematização e elemento de

nos diversos contextos históricos sócio-

constante reflexão e cuidado, transformado

culturais.

pelas mais diversas formas de captura e de

O masculino segundo os Epigramas

disciplinamento através do trabalho, das

Eróticos de Marcial: representação e

dores, dos alimentos, da sexualidade e de

análise

uma infinidade de dispositivos do poder (FOUCAULT, 1990).

As datas sobre nascimento e morte de Marco Valério Marcial são imprecisas e

Rago (1998)

sintetiza como a

divergentes

(BIAZZOTO,

2011).

Teria

categoria de gênero permitiu sexualizar as

nascido entre 31 e 41 d.C. em Bílbilis, uma

experiências humanas, fazendo com que

cidade

déssemos conta de que trabalhávamos

chegado em Roma por volta do ano 64,

com

extremamente

mas só se tornaria famoso em 80, período

embora

em que a cidade atraía muitas pessoas em

uma

narrativa

dessexualizadora,

pois

da

Hispania

Terraconense,

e

reconheçamos que o sexo faz parte

busca

constitutiva

publicou os epigramas que comemoram a

de

nossas

experiências,

de

uma

vida

melhor,

raramente este é incorporado enquanto

inauguração

dimensão analítica.

(POSSAMAI, 2010; PARRA, 2010).

Para

Foucault

Flávio

Marcial desempenhava o papel de

sexualidade é um "dispositivo histórico".

“colunista social”. (BIAZZOTO, 2011, p.

Em outras palavras, ela é uma invenção

2592).

social,

historicamente,

p.

anfiteatro

45),

uma

(1999,

de

quando

Eram

vez

que

se

constitui,

incômodas,

a

partir

de

múltiplos

conhecimento

situações mas e

que da

aparentemente revelavam

intimidade

e

o da

discursos sobre o sexo, discursos estes

personalidade das pessoas retratadas, o

que

que as tornava acessíveis ao público e, por

regulam,

normatizam,

instauram

583


Filipe Cesar da Silva

conseguinte, conhecidas. Mesmo sendo

no mais fundo desencanto de trinta e

um veículo para o conhecimento, seus

quatro anos de fadigas e humilhações”.

poemas não escondiam a irreverência, a

Nas palavras de Ribeiro (2010, p. 45):

ousadia, a voluntariedade do conteúdo de

“Marcial tornou-se um cliens, um adulador

seus versos. Na condição de cliente

do rei, que beirava a pobreza e a miséria”.

buscava no patrono um mecenas (LEITE,

Marco Valério Marcial, poeta latino de procedência ibérica, por meio de seus

2003; PIMENTEL, 2004). A vida de Marcial em Roma não foi

15

livros

de

Epigramas

(composto

nada fácil, segundo Ribeiro (2010, p. 45).

aproximadamente entre os anos 80 e 103

Marcial foi a Roma para concluir seus

d.C) consolida o gênero nas letras romanas

estudos e aí permaneceu “seduzido pela

(CAIROLLI,

variedade de impressões que a grande

exaustivamente pelos gregos do período

cidade oferecia à sua vivacidade natural”.

helenístico

Teria levado “a vida dura e humilhante de

principalmente pelos poetas da geração de

adulador e de pedinte”. Bajulou Domiciano,

Catulo, este gênero (epigramático), o único

fez

praticado por Marcial, encontra no autor

seu

cortejo

aos

mesmos

ricos

2009). e

Praticado

introduzido

em

Roma

protetores que Estácio e “terminou por aí

excelente

artífice,

ganhar, com muito desgosto, uma escassa

exemplar

do

comodidade; e por seus epigramas, a

DEZZOTI, 1990; LEITE, 2003; 2007).

celebridade”

tornando-se

gênero

modelo

(CESILA,

2008;

Parra (2010, p. 70) destaca que

Quanto

condição

de

“em Roma, há dois escritores que se

(2010)

que

destacaram no gênero. O primeiro deles é

Marcial, como cliens, devia obrigações aos

Catulo, no primeiro século a.C; o segundo,

poderosos para sua sobrevivência. Seus

Marcial, autor do primeiro e inicio do

rendimentos não eram suficientes e, para

segundo século d.C”. Para Cairolli (2009, p.

sobreviver, dependia de diversos favores

22)

de seus patroni. Pimentel (2004, p. 30)

excelência, o mestre do gênero”.

“bajulador”,

à

afirma

sua Parra

“Marcial

é

o

epigramatista

por

destaca que “Marcial era obrigado a

Os mais de mil e quinhentos

desdizer-se e a contradizer-se”. Teria sido

epigramas de Marcial foram organizados

empurrado para o limbo da fama e do

em 15 livros. Os temas são variados e, em

reconhecimento, sem futuro e com o peso

síntese, tratam do cotidiano da vida em

de um passado embaraçoso: “a vida em

Roma

Roma tornou-se-lhe agreste e revelou-se

1990; PARRA, 2010). Dos variados temas

(BIAZZOTTO,

2011;

DEZZOTI,

584


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

que Marcial trata em sua primorosa obra,

epigramas

Possamai (2010, p. 86) destaca como “nos

complexidade dessas relações:

epigramas de Marcial, podemos ver as críticas que ele fazia aos que não se comportavam de acordo com os preceitos da sociedade, assim como versos em que cantava o amor pederástico, mostrando influência helênica.” homoerotismo é típica da moral romana, segundo Possamai (2010, p.87): “Marcial ridicularizava a efeminação e a passividade homens,

mas

cantava

com

naturalidade o amor aos rapazes. Suas sátiras estão de acordo com os costumes da elite romana de seu tempo, que procuravam conciliar o helenismo com os costumes romanos.” Embora os costumes ancestrais (mos maiorum) estivessem cada vez mais distantes da vida diária dos romanos, eles continuavam a servir como referência para a conduta que se esperava dos elementos que compunham a elite de Para Feitosa (2014), a prática entre dois indivíduos do sexo masculino era moralmente aceitase acontecesse entre um cidadão e um rapaz ainda pueril, imberbe e de estrato social inferior (livre não cidadão, liberto ou escravo), que deveria ser o passivo segundo as prescrições morais da Entretanto,

a

O desrespeito à prática sexual ativa para a aristocracia romana é sugerido em vários textos literários romanos.

No epigrama 46, Marcial

enseja um desonroso comentário ao pênis de Febo que é sugestivo sobre o seu papel sexual: “Te deitas, Febo, com jovens escravos cheios de virilidade e o que neles está firme e potente, amavas

aos

homens,

mas

ignorava

o

teu

minguado papel”. Essa frase põe na berlinda Febo, pois além de insinuar a inoperância de seu membro “frouxo e imperceptível”, sugere a sua sujeição à virilidade dos jovens escravos. (FEITOSA, 2014, no prelo)

O pesquisador Possamai em outro epigrama de Marcial, nos mostra como a crítica era mais acirrada quando a infração aos costumes era praticada abertamente, como no caso de um casamento entre dois homens: O barbudo Calístrato se casou ontem com o robusto Afro, segundo os ritos que se costumam seguir quando uma virgem se casa. Precediamlhes tochas acesas, um véu vermelho lhe cobria o rosto e não faltaram, ó Talásio, deus dos matrimônios, os teus cantos. Também se fixou um dote. Não te parece suficiente, Roma? Ou acaso

Roma (VEYNE, 2008).

época.

vislumbrar

aparece em ti frouxo e imperceptível. Sabia que

A posição do autor com relação ao

nos

permitem

enfatiza

que

os

esperas que Calístrato dê à luz? (POSSAMAI, 2010, p. 86)

O

casamento

romano

era

uma

cerimônia privada, uma festa particular, portanto, nada, além da tradição, impedia um casamento de livre acordo entre dois homens.

(VEYNE,

200).

Segundo

Cantarella (1999, p. 225), os casamentos entre homens, dos quais existem traços nas fontes, eram realizados por uma

585


Filipe Cesar da Silva

minoria, cujo status social permitia provocar

histórico diferente do nosso, no caso aqui

abertamente a opinião pública.

proposto, na antiguidade romana do alto

Algumas considerações: O

que

mais

nos

império (I sec. d.C).

interessa

na

Assim, a partir de uma perspectiva

aplicação do conceito de gênero, corpo e

histórica, o universo masculino deixa de ser

sexualidade são como e de que forma as

generalizável

características biológicas e sexuais são

correspondente

representadas em cada sociedade e em

historicamente

determinado momento histórico. Ou seja, o

2011). No lugar dele, revela-se um vasto

que social e historicamente se construiu

universo de imagens, símbolos e códigos,

sobre os sexos feminino e masculino, pois,

onde a pluralidade das masculinidades

na compreensão de gênero, é no campo

compreende homens que amam mulheres,

das interações sociais que as relações

homens que amam homens e mulheres e

entre os sujeitos são estruturadas e,

homem que amam e desejam homens

consequentemente, marcadas pela relação

assumindo suas relações consigo e com os

social/histórica (LOURO, 2001; SCOTT,

outros, seus desejos, seus prazeres, suas

1995).

relações Através dos saberes da sexualidade,

do corpo, do gênero e do aparato da que

vivências,

de

forma

modos

e

breve,

estereótipos

cristalizados

homoafetivas,

mais

mas

(LOPES,

ainda

se

nas e pelas masculinidades plurais. O intuito foi e é de contribuir com uma nova leitura sobre Marcial e refletir, através de uma perspectiva histórica, o

relacionar com o corpo, a sexualidade e

necessário respeito a diversas maneiras de

como a masculinidade ganha contornos

vivenciar a masculinidade e a sexualidade

diferentes

humana.

pensada

de

aos

não

se

quando

sentidos

outras

identificável

vendo, se (re) inventando como homens,

História cultural, foi possível compreender, mesmo

e

fora

dos

pressupostos atuais e em um contexto

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589


MADALENA EM ASSIS: CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DE SUA IMAGEM NA BASÍLICA, SUAS REPRESENTAÇÕES E CULTO NO MEDIEVO. Giovana Maria Carvalho Martins 1 Angelita Marques Visalli (Orientadora) 2 Resumo: A partir da intenção de discutir sobre as representações de Maria Madalena na Idade Média, direcionamo-nos para uma imagem em específico denominada “Maria Madalena fala com os anjos”, concluída em inícios do século XIV (1307-1308). Trata-se de um afresco feito por Giotto (1267-1337) que está localizado na Capela Santa Madalena, na Basílica Inferior de São Francisco de Assis, na Itália. Para tanto, empregamos o conceito de imagem-objeto de Jérôme Baschet, que, em resumo, aborda as imagens como objetos que participam da dinâmica das relações sociais e considera o lugar e o suporte em que se encontram. Além disto, pretendemos discutir de forma inicial sobre o culto à Madalena durante a Idade Média e as diferentes formas como ela foi apresentada – Maria de Magdala, que testemunhou a ressurreição de Cristo; Maria de Betânia, irmã de Marta e Lázaro e a pecadora anônima que lavou os pés de Cristo e os enxugou com os cabelos -, considerando que, na Idade Média, as três fundiram-se em uma só Madalena no culto ocidental. O estudo contribui para o entendimento da constituição das imagens e de seus “lugares” nos espaços em que estão inseridas, que envolvem também suas práticas devocionais. Palavras-chave: Maria Madalena; Idade Média; Imagem-objeto.

1

Aluna do curso de graduação em História na Universidade Estadual de Londrina (UEL)

2

Professora do departamento de História da Universidade Estadual de Londrina

590


Giovana Maria Carvalho Martins

Pretendemos desenvolver aqui um

Fig. 01 – “Maria Madalena fala com os anjos”,

estudo inicial sobre Maria Madalena e suas

Capela de Santa Madalena, Basílica Inferior de Assis.

representações imagéticas, e, para tanto, escolhemos

como

imagem

principal

a

denominada “Maria Madalena fala com os anjos” – em tradução nossa - feita em inícios do século XIV (1307-1308), localizada na Capela Santa Madalena, na Basílica Inferior

(1307-1308)

Uma

século XII, que relata, entre outras histórias, que “[...]a beata Maria Madalena, desejosa de entregarse à vida de contemplação das coisas do alto, dirigiu-se a um deserto austeríssimo e num lugar preparado pelas mãos dos anjos, permaneceu

1337) e seus ajudantes, que está na parte

incógnita por trinta anos [...]. Todos os dias, nas

superior de uma parede com outras quatro

sete horas canônicas, era elevada pelos anjos ao Céu etéreo [...]. Todos os dias era saciada com

imagens que fazem relação a ela e retratam

iguarias agradabilíssimas até ser levada de volta a

passagens conhecidas de sua vida segundo

seu lugar pelos anjos [...]” (VARAZZE, 2003, p.

os escritos existentes sobre ela. O afresco passagem

da

vida

encontradas

a contida na Legenda Áurea, escrita no

de um afresco pintado por Giotto (1267-

uma

referências

sobre esta passagem retratada no afresco é

de São Francisco de Assis, na Itália. Trata-se

retrata

das

549).

Jacopo

da

de

Varazze

(Tiago

de

personagem que não está nos escritos

Vorágine), em sua “Legenda Áurea”, escrita

bíblicos, que é a elevação de Madalena aos

no século XIII, narra a vida de diversos

céus por anjos (quatro, na imagem). Ela está

santos e santas, e retrata Madalena como

ajoelhada, com as mãos elevadas em

uma

posição de oração, e sua característica mais

Apóstolos”, em referência à sua importância

marcante são os longos cabelos ruivos, além

e destaque entre os apóstolos (visão muito

da ausência de roupas - seu corpo está

difundida

envolto em seus cabelos (figura 1).

refutada posteriormente pelo papa Gregório

figura

sublime,

entre

os

a

“Apóstola

primeiros

dos

cristãos,

I). Segundo Hilário Franco Júnior, que traduziu a Legenda Áurea para o português, “o objetivo imediato de Jacopo de Varazze era fornecer

aos

seus

colegas

de

hábito,

os

dominicanos ou frades pregadores, material para a elaboração

de

teologicamente

seus correto,

sermões. isento

de

Material qualquer

contágio herético, mas também compreensível e

591


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

agradável aos leigos que ouviriam a pregação. Para tanto Jacopo naturalmente utilizou a rica literatura hagiográfica preexistente, mas não se

durante certo tempo, os únicos venerados

mais frequente” (FRANCO JR, 2003, pp. 12-13).

pelos primeiros cristãos) (cf. VAUCHEZ,

na Legenda, ou seja, “a cosmovisão pela qual cada fato, objeto ou pessoa, mais do uma

realidade

em

si,

é

uma

representação, uma imagem, uma figuração, de algo superior [...], com o qual o ser humano não poderia ter contato direto [...]” (FRANCO JR, pp. 16-17) – é desta forma que os santos são representados, incluindo a própria Madalena, tida, portanto, como uma mulher devota, pecadora, que dedicou sua vida

Antiguidade clássica (os mártires foram,

limitou a compilá-la, o que tinha sido até então o

Cabe ressaltar o simbolismo presente

que

iniciando-se pela veneração aos mártires na

à

redenção,

consagrando-se

à

penitência. No

século

XIII,

surgiram

muitas

compilações hagiográficas, sobre a vida de santos. Uma das mais difundidas foi a de Maria Madalena, em cuja narrativa “[...] reúne os vários elementos da tradição que circulavam até então, como as tradições relativas aos padres do deserto, os contatos com a lenda de Santa Maria Egipcíaca, a visão da ex-prostituta penitente, etc.” (SILVA, 2002, p. 18). Para entender a questão dos santos, cabe citar Vauchez, que defende que a invenção do culto aos santos não se deu durante a Idade Média, embora ela o tenha desenvolvido

de

maneira

considerável,

1989, p. 212). Isto aconteceu pois “numa sociedade

ameaçada

de

desintegração,

onde os indivíduos viviam angustiados pela ideia de perderem a as identidade e a sua liberdade, os santos vinham a propósito para restituir a confiança e oferecer perspectivas de salvação ao nível da vida de todos os dias”

(VAUCHEZ,

1989,

p.

212).

Posteriormente, após as perseguições aos primeiros cristãos, o ocidente passava do culto dos mártires ao culto dos bispos, seus organizadores

e

guardiões,

o

oriente

passava a cultuar os santos confessores da fé juntamente com os mártires na época de Constantino (cf. VAUCHEZ, 1989, p. 213). Além

disto,

“enquanto

o

santo

da

Antiguidade tardia era um adepto da vita

passiva que buscava a perfeição na renúncia ao mundo, o Ocidente da alta Idade Média caracterizou-se, sobretudo, por figuras de chefes

religiosos

e

de

fundadores

profundamente empenhados na vida activa”, e no período posterior – entre finais do século VI e finais do VIII, “utilizou-se por vezes o termo ‘hagiocracia’, tantos foram os santos dessa época que estiveram ligados,

592


Giovana Maria Carvalho Martins

por vezes muito estreitamente, ao poder [...]” (VAUCHEZ, 1989, p.214).

Fernanda de Camargo-Moro (2005) atribui seu nome à sua origem: ela seria

Os principais registros relacionados à

natural da cidade de Magdala; portanto,

personagem em questão estão contidos na

Madalena (cf. CAMARGO-MORO, 2005, p.

Bíblia, e cabe ressaltar que ela está presente

53). Silva afirma que, em oposição a outras

na

evangelhos

mulheres mencionadas nas escrituras, ela é

canônicos (além de diversos outros escritos

identificada por seu lugar de origem ao invés

e evangelhos apócrifos, não reconhecidos

de sua referência ser um homem, seja pai ou

como oficiais pela Igreja Católica). Trata-se

marido, que era a forma de designação mais

da “figura feminina mais citada no Novo

utilizada para as mulheres à época (cf.

Testamento - ainda mais que a Virgem”

SILVA, 2002, p. 11).

narrativa

dos

quatro

(SILVA, 2002, p. 09) No

entanto,

Jacopo de Varazze a identifica como detalhes

irmã de Marta e Lázaro, e a associa também,

nestes acerca da vida de Madalena – o que

como a Igreja católica já havia feito antes, à

se sabe é que ela está presente nos

pecadora que lavou os pés de Cristo e os

momentos mais marcantes da vida de Jesus

enxugou com o próprio cabelo, embora em

Cristo, como durante a Paixão, e foi ela a

nenhum dos Evangelhos exista menção ao

primeira a constatar o túmulo de Cristo vazio,

nome desta mulher, referida apenas como

sendo, portanto, a primeira testemunha da

“uma pecadora”. Varazze também aborda

Ressurreição. Jacopo de Varazze, em sua

sobre a representação da Madalena eremita,

“Legenda Áurea”, relaciona “Maria” a “mar

que teria se retirado do convívio social para

amargo”, “iluminadora” e “iluminada”, que

viver em penitência e abstinência no deserto.

seriam os caminhos escolhidos por ela -

A tradição sobre o local em que ela teria

penitência,

vivido foi fixada no século XII, que foi quando

“Madalena”, para ele, pode ser interpretado

“teve início a circulação da legenda segundo

como “fortificada”, “invicta”, “magnífica”, que

a qual Madalena, após aportar na França

seriam as três etapas de sua vida - antes,

proveniente da Palestina com Lázaro, Marta

durante

e outros companheiros, teria se dedicado ao

e

poucos

contemplação

após

sua

VARAZZE, 2003, p. 543).

e

glória.

conversão

(cf.

eremitismo

nas

grutas

de

um

monte

593


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

localizado em Sainte-Baume” (SILVA, 2002,

passava por sérias dificuldades quanto à

p.18).

peste e à fome - e os culpados por tal Para os gnósticos, que “[...] que

situação eram os pecados dos homens. Este

existiram no início da Era Cristã [...],

mesmo pontífice associou Madalena à Maria

centravam-se na mensagem espiritual, no

de Betânia e à pecadora citada por Lucas [cf.

conhecimento

Lc 7, 37-50] – ela se tornou, portanto, “o

interior

e

secreto

[...]

(FERRAZ, 2011, p. 35), a autora Fernanda

exemplo

de

e

(CAMARGO-MORO, 2005, pp. 59-60). Duby

historiadora, defende que “[...] Madalena é

coloca que o papa Gregório afirmou em suas

interpretada como personagem de suma

Homilias, sobretudo na XXXIII, que “‘a

importância,

mulher

Camargo-Moro,

arqueóloga

transmissora

da

sabedoria,

de

perdição

designada

por

do

Lucas

mundo”

como

a

portadora de luz e símbolo do verdadeiro

pecadora, chamada Maria por João, é a

adepto de Jesus” (CAMARGO-MORO, 2005,

mesma que Marcos atesta que foi liberada

p. 54). Grande parte da literatura produzida a

dos sete demônios’” (DUBY, 1996, p. 33,

trata como personagem mística, que traz à

tradução nossa). Foi “assim, partindo-se da

tona muitas dúvidas e controvérsias; trata-se

união dos vários elementos presentes nos

de “[...] uma das mulheres mais importantes

evangelhos canônicos e apócrifos [que]

dos Evangelhos, que passou de discípula

constitui-se uma Madalena venerada na

amada de Jesus para o papel de meretriz

Idade Média, a pecadora arrependida, fruto

[...]” (FERRAZ, 2011, p. 20). Já na tradição

da junção de características provenientes de

cristã, ela “passou a representar o arquétipo

três personagens” (SILVA, 2002, p. 17).

feminino

Sobre os apócrifos, a autora Ramalho

tradicional,

a

transmissora

do

pecado original, que, após ser curada, teria passado

sua

vida

em

penitência

e

arrependimento” (CAMARGO-MORO, 2005, p. 54). Tal visão foi corroborada pelo papa Gregório I (540-604), que usou o exemplo de Maria Madalena para pregar aos fiéis sobre a importância

da

penitência,

do

arrependimento, visto que o povo de Roma

aborda que “com a distinção entre o ‘canônico’ e o ‘apócrifo’, tornou-se ainda mais fácil para os censores religiosos

perpetuarem

determinadas

imagens

bíblicas a partir de um centro de interesse de manipulação coletiva. Vem daí a redução da imagem mítica de Maria Madalena ao símbolo de ‘Eva resgatada’[...]” (RAMALHO, 2011, p. 80).

Já Otero afirma que a influência dos apócrifos no ocidente é enorme, porém

594


Giovana Maria Carvalho Martins

“a

Idade

Média

dispensou-lhes

um

fraco

acolhimento. A Legenda Áurea de Jacopo de Varagine (Varazze) e o Speculum Historiale de

inicialmente de forma indireta, pois seu culto não

era

individual,

sim

realizado

santos

que

estavam

Vicente de Beauvais, ao transcrevê-los quase

juntamente

integralmente, sub ministraram abundante matéria

presentes na ressurreição de Cristo. É

de inspiração para os decoradores das velhas catedrais e para os pincéis de Fra Angelico ou de

aos

e

depois do século XII que seu culto se

Giotto” (OTERO apud BARBAS, p.28).

desenvolve – “assim, a partir da Baixa Idade

A autora Camargo-Moro recorda que

Média, Madalena começará a ganhar mais

Santo Agostinho foi um dos poucos a

popularidade.

enxergá-la como uma das mulheres mais

adoração

importantes dos Evangelhos, distinta das

principalmente pela Igreja e pelos poderes

demais (cf. CAMARGO-MORO, 2005, p. 59).

seculares” (SILVA, 2002, p. 19). O já citado

Porém, como já citado, é uma figura cujas

papa

representações são múltiplas, e autores

cristandade latina a ideia de Madalena como

como Silva (2002) ainda abordam que

sendo as três e “durante a Idade Média,

a Santa Maria Madalena, como o Ocidente a venera, não figura nas Escrituras. De fato, ela é fruto de uma lenta construção, que uniu elementos

O

[...]

foi

Gregório

crescimento

da

sua

estimulado

[...]

mas

difundiu

então

pela

foram pouquíssimos os que duvidaram na hora de aceitar esta proposição” (DUBY,

e personagens distintos. Em um primeiro momento,

1996, p. 33, tradução nossa). Contudo, a

fundiram-se em uma só três mulheres que são

cristandade grega continuou distinguindo

apresentadas nos Evangelhos canônicos: Maria de Magdala, de quem Cristo expulsou sete demônios,

Maria Madalena das outras duas, celebrando

que o seguiu até o Calvário e que testemunhou a

sua festa em 22 de junho e venerando sua

ressurreição; Maria de Betânia, irmã de Marta e

tumba em Éfeso (cf. DUBY, 1996, pp. 33-34).

Lázaro; e a pecadora anônima que lavou os pés de Jesus na casa do fariseu Simão (SILVA, 2002,

Segundo Duby (1996), o culto à santa se

p.15).

difundiu pelo ocidente e, sobretudo, na

Esta figura construída ao longo dos

Inglaterra:

anos “[...] despertou interesse e levou a exegese e a tradição posterior a adicionar muitos outros elementos a esta personagem, tornando-a mais complexa” (SILVA, 2002, p. 11). Da Antiguidade à Idade Média, Maria Madalena foi citada por muitos autores,

“as pegadas mais antigas aparecem no século VIII nesse país, estreitamente relacionado com Roma desde sua recente evangelização e, portanto, com as fontes bizantinas. Seus monastérios bizantinos figuravam então na vanguarda da busca espiritual e

os

missionários

transportaram

ao

saídos

continente

dessas os

abadias

germes

da

devolução madaleniana” (DUBY, 1996, p. 34, tradução nossa).

595


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Para estudar a imagem escolhida de

realização das pinturas junto à construção da

Madalena, cabe abordar também o suporte

basílica de São Francisco em Assis”, que

em que ela se encontra. Com relação à

“iniciou-se

Basílica de São Francisco em Assis, sabe-se

canonização, dois anos após sua morte,

que é formada por dois pavimentos: “o

quando para lá foram transladados seus

inferior, como uma cripta, com planta de cruz

restos [...]” (VISALLI, 2011, p. 206).

latina,

destinado

processo de canonização de Francisco não

especialmente aos frades, e o outro, o

estava inteiramente completo quando as

superior, amplo, delgado e alto, como é

negociações para a construção de uma

característico das igrejas góticas” (VISALLI,

igreja em sua honra se iniciaram – os

2011, p. 206). A Basílica Superior foi

interessados eram a Igreja de Roma, os

decorada com o patrocínio de Nicolau IV – o

Frades Menores, que desejavam celebrar

primeiro papa franciscano - em cerca de

seu santo fundador e a cidade de Assis, que

1290, e grande parte dos afrescos foi pintada

se interessava em tornar-se um lugar de

por Giotto (cf. VISALLI, 2011, p. 207). É no

peregrinação (cf. LUNGHI, 1996, p. 08,

pavimento inferior que se localizam as

tradução nossa). Sobre a arquitetura da

capelas, e entre elas, a Capela de Santa

basílica, cabe ressaltar que sua arquitetura

Maria Madalena – portanto, a forma como

incomum deriva parte do terreno em que ela

suas imagens foram produzidas estava

está

voltada para os interesses dos frades em

inclinada)

especial. A capela foi decorada por Giotto e

“recipiente de relíquias” (cf. LUNGHI, 1996,

seus ajudantes, no início do século XIV. A

p. 10, tradução nossa). A basílica inferior foi

maioria das imagens de Madalena está

profundamente

localizada aí, sendo que no restante da

séculos após sua construção, e

ampla

e

baixa,

Basílica, o que se encontram são imagens dela em meio a outras figuras, como em uma que retrata a cena da crucificação, localizada O primeiro grande investimento na figurada

localizada e

1228,

(uma

parte

de

alterada

ano

de

colina sua

sua

bastante

função

nos

O

de

primeiros

“as razões para estas alterações profundas têm de ser procuradas em ideias antônimas à que inspirou o

programa

iconográfico

da

igreja

superior,

fundada em uma aliança exclusiva entre papado romano e da Ordem dos Frades Menores. As

no transepto norte. construção

em

franciscana

foi

“a

novas formas de vida religiosa entre os leigos que surgiram no final da Idade Média e a demanda por sepulturas privadas ao lado dos túmulos dos novos santos convenceram os frades [...] a relaxar a

596


Giovana Maria Carvalho Martins

proibição anterior sobre o enterro em suas igrejas” (p. 100, tradução nossa).

É provável que as três capelas do transepto

norte

foram

construídas

por

termina com as três lunettes (cf. LUNGHI, 1996, p. 148, tradução nossa). Os afrescos são: “Parede oeste: Cristo e Madalena na casa do

iniciativa dos frades do Convento, e somente

Fariseu, A Ressurreição de Lázaro, na lunette,

depois eles procuraram por patronos para

Madalena recebendo a Santa Comunhão de São Maximo. Parede leste: Noli me tangere, A viagem

sustentar o custo de suas decorações. A

de Madalena a Marselha, na lunette, Ecstasy de

capela de Madalena foi “adquirida” por

Maria Madalena [que é a imagem aqui abordada,

Teobaldo Pontano, que foi Bispo de Assis de

chamada Marie Madeleine s’entretient avec les

anges] . Lunette sobre a entrada: Zózimo Eremita

1296 até sua morte em 1329. A capela

dando uma capa para Madalena” (LUNGHI, 1996,

possui planta quadrada, uma abóbada em

p. 148, tradução nossa).

forma de cruz e é iluminada por uma grande

A

ausência

de

segundo

uma

janela; duas passagens a ligam à capela de

cronológica,

Santo Antônio de Pádua e ao transepto e o

escolha proposital por parte de Giotto, cuja

corpo do Bispo que a patrocinou está

intenção

enterrado no chão. Sobre a decoração nas

verossimilhança às últimas cenas e evitar a

paredes, é importante afirmar que “consiste

impressão de que Madalena, levada aos

em sete cenas da vida de Maria Madalena.

céus, foi “empurrada ao chão pelas cenas

Trata-se do mais antigo ciclo de afrescos

acima” (cf. p. 148, tradução nossa).

era

Lunghi,

ordem foi

emprestar

uma maior

devotados à santa a ser baseado na

Sobre a questão do local onde se

‘Legenda Áurea’ de Jacoppo de Varazze, na

encontra a imagem pesquisada, Baschet

qual as três mulheres mencionadas nos

(1996)

Evangelhos [...] estão unidas em uma só

imprescindível a ser discutida para que

figura” (LUNGHI, 1996, p. 148, tradução

exista um estudo pleno da mesma: “não se

nossa).

poderia estudá-la sem levar em conta o lugar

defende

que

é

uma

questão

A superfície das paredes laterais está

específico (ou lugares) onde ela se inscreve,

dividida em dois níveis por molduras planas

de mesmo que o dispositivo espacial,

com ornamentos geométricos simples, e ao

temporal

contrário do costume, a história relatada

funcionamento” (BASCHET, 1996, pp. 12-

começa na linha inferior na parede oeste,

13). Assim, o autor ainda afirma que “[...] a

continua no mesmo nível na parede oposta e

presença das imagens no lugar onde se

e

ritual

associado

a

seu

597


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

sentimento de compunção que permite o elevar-se

desenvolvem os ritos do cristianismo ou atos

para a adoração de Deus. Esse aspecto afetivo e

importantes da vida social se dá de forma tão

anagógico,

insistente que, mesmo sem ser necessárias,

presente

em

Gregório,

será

desenvolvido depois dele, em particular na teologia da imagem dos séculos XII e XIII, que amplia a

as imagens parecem contribuir para o bom

noção

desenrolar destes atos e ritos” (BASCHET,

de

transitus,

de

passagem

para

as

realidades visíveis através das coisas visíveis. ”

1996, p. 20). A imagem de Madalena

(BASCHET, 1996, p. 08).

escolhida está localizada em uma Basílica e

Mas esta definição, segundo o autor,

seus usos são, conforme já abordado

não é suficiente “para dar conta das

previamente de maneira inicial, específicos

utilizações

do suporte: a Basílica inferior é mais restrita,

(BASCHET, 1996, p. 8), e é neste sentido

e portanto as capelas (e as imagens contidas

que ele faz uso da “imagem-objeto” para

nelas) são direcionadas ao culto mais

buscar entender de maneira apropriada o

privado dos freis da ordem.

sentido da produção das imagens medievais.

Em relação à discussão da questão da

No caso específico de Madalena, como já

imagem, Jérôme Baschet utiliza o conceito

mencionado,

de

produzida no século XIV – época [1250-

“imagem-objeto”,

ornados

e

participando

sempre da

ou

seja,

“objetos

em

uma

situação,

1400]

das

relações

crescimento

dinâmica

que

efetivas

a “[...]

imagem forma

excepcional

das

imagens”

trabalhada um da

tempo

foi de

santidade

sociais e das relações entre os homens e o

feminina: jamais tantas mulheres foram

mundo sobrenatural” (BASCHET, p. 482). O

elevadas aos altares, na maioria das vezes,

mesmo autor também discute que, com o

é verdade, mais pela devoção popular que

papa Gregório Magno (Gregório I), a imagem

pelo veredicto do papado” (DALARUN, 2008,

passou a ser vista como uma substituta do

p. XIII, tradução nossa) – e isto ajuda a

texto, própria para o ensino cristão dos

entender o fato de ela ser retratada da forma

iletrados, mas

como está – penitente, sendo elevada aos

“por outro lado, se ele insiste essencialmente na função de instrução, Gregório abre o caminho para a afirmação de duas outras funções das imagens:

céus – e no meio em que foi pintada – dentro de sua capela na Basílica.

aprender não é apenas descobrir, mas também

Baschet discute também que “não há

recordar, de forma que a imagem tem o papel de

imagem na Idade Média que seja uma pura

alimentar o pensamento das coisas santas; além disso, ela pode comover o espírito, suscitar um

representação”, sendo, em grande parte das

598


Giovana Maria Carvalho Martins

vezes, um “objeto, dando lugar a usos,

nesta época também que “as decorações

manipulações, ritos” (BASCHET, 2006, p. 9).

murais das igrejas, pintadas no mais das

A partir do século XIII, a imagem se torna um

vezes com técnicas de afresco ou a seco

meio de adquirir indulgências; “é então

[...], ampliam-se e generalizam-se até nos

reconhecida, através das orações recitadas

edifícios rurais mais modestos” (BASCHET,

em frente a ela, como um meio de remissão

2006, p. 490). Baschet ainda defende que as

dos pecados [...]” (BASCHET, 2006, p. 9).

imagens medievais não são destinadas

O autor fala de uma “revolução das

somente aos leigos, e são muitas vezes

imagens”, que iniciou-se no século XI (cf.

postas em locais de uso exclusivo do clero.

BASCHET, 2006, p. 500). Passou-se de uma

Há igrejas do século XII em que as pinturas

quase “iconofobia” durante a Alta Idade

murais “concentram-se no coro, onde apenas

Média a uma grande expansão imagética a

os clérigos penetram e cujos muros são

partir

apenas

amplamente dissimulados aos olhares dos

“[...]

a

fiéis” (BASCHET, 2006, p. 496), enquanto as

conquista de novos suportes”, como selos e

áreas de livre circulação dos fiéis são

insígnias metálicas, e o “recurso crescente

decoradas de maneira mais simples, sem

aos antigos suportes” (BASCHET, 2006, p.

representações. Isto refuta a tradicional ideia

490). Isto se deu através de um processo

das imagens como “Bíblia dos iletrados”

histórico tenso e lento após o qual as

(expressão discutida pelo próprio Baschet),

imagens se transformaram em “[...] uma das

visto que seus usos eram muito mais amplos

armas da guerra de conquista que se trava

do

em terras americanas” (BASCHET, 2006, p.

evangelização das massas.

do

período

quantitativamente;

citado, há,

não

portanto,

que Em

481) – ou seja, não há como dissociar a

apenas suma,

recurso queremos

visual

para

ressaltar

o

compreensão do Ocidente medieval das

caráter inicial da pesquisa relatada neste

imagens e de sua importância à época. O

artigo. A continuidade do presente estudo, na

Ocidente, portanto, nos séculos X a XIII,

linha de pesquisa de imagens religiosas

“abre-se às imagens; ele passa de uma

medievais, contribui para o entendimento da

iconicidade restrita a uma iconicidade sem

constituição das imagens e de seus “lugares”

reversas, e transforma-se em um universo de

nos

imagens [...]” (BASCHET, 2006, p. 491). É

espaços estes para os quais se constituíram

espaços

em

que

estão

inseridas,

599


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

e

que

envolvem

relacionadas

ao

práticas

personagem

devocionais que

está

Madalena e seu afresco pintado por Giotto localizado

na

Basílica

de

Assis.

representado nela – no caso, a santa

Referências: BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano 1000 à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006 __________. Introdução: a imagem-objeto. In: SCHMITT, Jean-Claude et BASCHET, Jérôme. L’image. Fonctions et usages des images dans l’Occident médiéval. Paris: Le Léopard d’Or, 1996. Pp. 1-26 (tradução : Maria Cristina C. L. Pereira) BARBAS, Helena. Madalena – História & Mito. Ésquilo: Lisboa, 2008. CAMARGO-MORO, Fernanda de. Arqueologia de Madalena: uma busca histórica da

companheira de Jesus. Rio de Janeiro: Record, 2005, 2ª Ed. DALARUN, Jacques (Org.). “Dieu changea de sexe, pour ainsi dire”: La religion faite femme. Fayard: Paris – Lit Verlag, Münster, 2008 DUBY, Georges. Leonor de Aquitania, María Magdalena. Alianza Editorial: Madrid, 1996. Fig. 01 – Afresco “Marie Madeleine s’entretient ave les anges » Disponívels em : http://www.wga.hu/art/g/giotto/assisi/lower/magdalen/speaking.jpg>. Acesso em 25/08/2014. FERRAZ, Salma. Maria Magdalena: a antiodisseia da discípula amada. In: FERRAZ, Salma (Org.). Maria Madalena: das páginas da Bíblia para a ficção (textos canônicos). Maringá: EDUEM, 2011. JACOPO DE VARAZZE. Legenda Áurea; vida de santos. Tradução: Hilário Franco Jr. São Paulo: Companhia das letras, 2003 LUNGHI, Elvio. The Basilica of St Francis at Assisi. The frescoes by Giotto his precursors and

followers. Londres: Thames and Hudson ltd, 1996. RAMALHO, Christina. A circularidade cultural da imagem mítica de Maria Madalena. In: In: FERRAZ, Salma (Org.). Maria Madalena: das páginas da Bíblia para a ficção (textos

canônicos). Maringá: EDUEM, 2011.

600


Giovana Maria Carvalho Martins

SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da et al. Vida de Santa Maria Madalena – Texto

anônimo do século XIV. Rio de Janeiro: PEM, UFRJ, 2002. VAUCHEZ, André. O Santo. In: LE GOFF, Jacques. (Org.). O Homem Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1989. VISALLI, Angelita Marques. A construção da imagem de Francisco de Assis (1182-1226) no primeiro século franciscano: a experiência religiosa tornada imagem pública. In: OLIVEIRA, Terezinha e VISALLI, Angelita Marques (Orgs). Leituras e imagens da Idade Média. Maringá: EDUEM, 2011.

601


POESIA GOLIÁRDICA E REPRESENTAÇÃO NA CULTURA MEDIEVAL (SÉCULOS XII EXIII) Helena Macedo Ribas 1 Resumo: Durante o período conhecido como Idade Média, existiram diversas manifestações culturais que eram dinâmicas e circulavam entre as regiões de maior trânsito de pessoas, como as cidades. Essas manifestações se davam em espaços mais ou menos específicos, como os trovadores que se apresentavam nas cortes nobiliárquicas, ou os jograis que eram mais comuns nas feiras, e isso determinava, entre outras coisas, as temáticas e o alcance das canções. Temos outro segmento, pouco estudado, que são os goliardos, estudantes das universidades medievais que escreviam em latim, para outros estudantes e doutos, e que tiveram um grande alcance, tanto espacial quanto temporamente. Espacial, pois estes estudantes eram clérigos vagantes de ordens menores e que buscavam o conhecimento e também a diversão nas diferentes localidades por onde passavam; e temporal pela existência de manuscritos desde o século XI até o século XIII, que também se encontram espalhados por localidades diferentes por onde esses clérigos passaram, como as atuais Baviera, Catalunha e a cidade de Cambridge. A presente apresentação visa explorar aspectos da poesia goliárdica medieval, com o objetivo de traçar algumas características da vida errante dos poetas goliardos, e de que forma esse modo de vida, mas também a sociedade e os costumes aos quais estavam inseridossão representados em sua poesia. Palavras Chave:goliardos; Carmina Burana; clérigos vagantes.

1(UFPR

– NEMED)

602


Helena Macedo Ribas

Introdução

pagãos como a mitologia greco-romana

Durante os séculos XII e XIII, a sociedade medieval ocidental inicia um

com valores cristãos, retratando dessa forma suas próprias experiências de vida.

processo de transformações significativas

Além desses temas, o vinho, a

nos âmbitos social e cultural, englobadas

taberna e os jogos compõem suas canções

posteriormente

de

mais divertidas, enquanto todo o seu

“renascimento do século XII”, que consiste

conhecimento da Bíblia e dos clássicos são

em um resgate das obras de grandes

usados

pensadores pagãos e o deslocamento dos

homens da Igreja, com atenção especial às

centros de saber das igrejas para as

patentes mais altas, como os bispos e até

universidades em ascensão, principalmente

mesmo o Pontífice. Em sua maioria, os

em cidades como Paris, Bologna, Viena,

goliardos eram anônimos, porém alguns

etc.

por

nomes são conhecidos por nós, como

importância

representantes importantes do grupo na

com o crescimento da atividade comercial,

sociedade, como Gautier de Chantillôn,

e

intelectual

A

cidade

transformações, como

no

que

chamamos

também ganhando

espaço

de

passa

sociabilidade

e

para

atacar

conhecido

os

e

pecados

dos

respeitado

na

circulação de pessoas importante. Dentro

França, além de outros, como Hugo

desse contexto citadino e “universitário”,

Primas, Pedro de Blois e o Archipoeta,

existiu

inserindo

um

grupo

de

homens

que

em

seus

versos

elementos

expressam uma ruptura ao sistema de

bastante sofisticados, em uma métrica

valores vigente em sua sociedade, e que o

própria e complexa, o que nos permite

fazem através de seu estilo de vida. Esse

supor que esses homens eram letrados,

grupo ficou conhecido como Goliardos, o

com um amplo conhecimento não somente

que, para Villena (VILLENA, 2010: 49)

da Bíblia, mais de outros tipos de obras.

pode significar duas coisas: a primeira é no

Villena aponta que os goliardos formam um

sentido de gula na qual os goliardos seriam

novo

amantes da boa mesa, e o segundo que os

enquadra em nenhum “papel” sedimentado,

relacionam com Golias, o gigante bíblico

como o do burguês, do nobre ou do

derrotado por Davi, e que era “símbolo del

eclesiástico, e que ao criticar as posturas

soberbia y delorgullo” (VILLENA, 2010: 49)

destes grupos, eram vistos como homens

e vagavam de escola em escola cantando

de “mal vivir” (VILLENA, 2010: 50). Pois,

suas canções, a maioria sobre a beleza

para um goliardo, é a experiência de vida

feminina, a primavera, misturando temas

que dita a moral e não o contrário, e tal

segmento

social,

que

não

603

se


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

pensamento

era

inaceitável

para

sua

época.

que os valores sociais estavam caindo e a forma com que a Igreja tenta lidar com

As poesias goliardicas se espalham

essas contradições, e a expressão de

em quatro manuscritos conhecidos por nós,

crítica e satirização do clero endossa essas

e curiosamente preservados em mosteiros.

contradições.

O mais antigo datado do século XI é o

predominantemente mundano e popular,

Carmina Cantabrigensia, encontrado na

esses homens misturam os temas como o

região da atual Inglaterra, assim como o

vinho e o jogo, com as discussões sobre

Carmina Arundeliana, também do século

virtudes e a bondade, expressando uma

Carmina

certa “confusão” que mostra, na visão dos

Rivinpullensia, encontrado na região da

goliardos, o quanto as fronteiras entre o

atual Espanha no século XIII, porém o mais

sagrado e o profano se enevoam e se

extenso cancioneiro goliárdico, o Carmina

fundem.

XI.

Também

existe

o

No

ambiente

tabernário,

Burana, foi encontrado em um mosteiro

Os objetivos principais deste pôster

beneditino na atual Alemanha, contendo

são analisar as canções de cunho lúdico

mais de 200 poemas, a maioria em latim,

tabernário presentes na antologia de Juán

com alguns em médio alto alemão. (SOLA,

Estevez Sola (já citada), compreender a

2006: 9-10) Esses cancioneiros ficaram

visão de mundos dos goliardos, bem como

esquecidos durante séculos, até serem

analisar as representações da sociedade

encontrados por pesquisadores, no caso do

presentes nessas canções. Além disso,

Carmina Burana no século XIX, quando

pensamos que a poesia goliárdica é uma

uma primeira edição foi publicada. Nos

fonte muito importante no que tange a

anos 1930, o nome Carmina Burana ficou

representação de uma cultura medieval

mundialmente conhecido através de uma

ligada ao ambiente letrado, e também na

adaptação para orquestra e coral feita pelo

análise do cânone da cultura e do sistema

alemão Carl Orff, que musicou 23 peças do

de valores vigente, mostrando que havia

cancioneiro, sendo a mais célebre e ainda

resistências, tanto de cunho lúdico como

hoje lembrada a canção “O Fortuna”.

contestatórias, e ambas as nuances são

Objetivos Ao voltarmos nosso olhar para o

percebidas nas canções destes clérigos vagantes.

contexto histórico no qual foi possível que

Materiais e Métodos

os goliardos existissem, entendemos que

A princípio, pensamos em trabalhar com

sua poesia representa as contradições em

alguns conceitos – chave para entender a

604


Helena Macedo Ribas

cultura medieval, especialmente a cultura

espanhol 2, para então prosseguirmos com

popular. Iremos nos valer de dois autores

a análise dos elementos estéticos (métrica,

mais amplamente: Mikhail Bakhtin e Paul

arranjo dos versos, etc) e temáticos. Em

Zumthor, dois teóricos literários. Bakhtin,

seguida, agrupamos os eixos temáticos

apesar de tratar de um período posterior e

mais

focar em um autor renascentista francês,

subtemas são característicos dos eixos

traça

temáticos

um

panorama

extremamente

comuns

nas

poesias,

e

quais

(morais, amorosos e lúdico-

interessante e válido sobre as alegorias

tabernários) e quais subtemas transitam

medievais, definindo assim o “grotesco” a

entre esses eixos, por exemplo. Para

partir de elementos trabalhados por ele que

então,

são encontrados desde a Alta Idade Média,

analisarmos esses temas e sua pertinência

como metáforas com o corpo, a morte e a

dentro do conjunto do manuscrito.

baseados

alimentação. Paul Zumthor, por sua vez,

na

bibliografia,

Resultados

trata de um conceito vital para nós: a

Através desta pesquisa que vem

oralidade. Durante toda a obra, o autor

sendo realizada desde o primeiro ano da

busca exemplificar nas diversas obras

graduação e que tem por objetivo se

literárias medievais os traços de oralidade

transformar

que são seu cerne, entre eles, o Carmina

conclusão de curso, já podemos observar

Burana. Mapear as intervenções populares

alguns

em

ou

Percebemos que a poesia goliárdica possui

voltadas para um extrato especial da

uma característica primordial, que é a

sociedade, como os cavaleiros, é seu

inversão de valores, principalmente nos

principal objetivo, ou seja, tentar ver a vida

poemas lúdico tabernários, que é o foco

por detrás das palavras.

desta pesquisa: o que é mal visto pela

obras

muitas

vezes

eruditas

em

uma

resultados

monografia

de

preliminares.

Dessa forma, nos apoiamos na

sociedade é o comportamento adequado

leitura e crítica da historiografia pertinente

para um goliardo, o que é condenado pelo

ao tema estudado, bem como em materiais

cânone é celebrado por estes clérigos, e o

provenientes dos campos da crítica literária

grande porta voz desta característica é o

e da filologia para nos fornecer um

vinho, bebido em demasia no ambiente da

embasamento teórico para trabalharmos

taberna. Na canção célebre In Taberna

com poesia medieval. O procedimento

Quando Sumus, isso fica extremamente

utilizado é a de leitura da fonte, que em nosso caso se encontra traduzida para o

2

Edição acima citada.

605


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

claro: aquele que bebe e come muito é

Podemos supor que os goliardos

exaltado, o jogo é incentivado, mesmo que

tiveram algum alcance entre o povo mais

o

mas

comum, que cantaram suas canções nas

principalmente, a taberna é um lugar de

feiras e nas festas, e que sua poesia foi

todos.

essencialmente

sujeito

acabe

Todos

nu

em

aqueles

pelo,

que

quiserem

oral,

antes

de

ser

aproveitar a vida de forma “digna”, seja

cristalizada no códice do século XIII, mas

cavaleiro,

camponês,

que por causa da língua e também das

estudante, é bem vindo na taberna, neste

temáticas, cheias de referências a Bíblia, a

mundo

traço

filosofia grega e ao seu panteão, poucos

importante que não deixamos de notar na

poderiam realmente entender do que se

poesia goliárdica é o Carpe Diem, que

tratava; somente aqueles que fossem

anda “de mãos dadas” com a inversão de

letrados, versados no latim e que tivessem

valores, como uma forma correta de viver e

estudado mais ou menos da mesma forma

indo de encontro ao que Villena chama de

como o goliardo estudou é que poderia

“poesia de experiência” (VILLENA, 2010:

entender as referências. Por isso mesmo é

66-76)na qual o poeta, ligado ao mundo

que as poesias lúdico -tabernárias podem

exterior, transmite seus sentimentos e

ter sido as mais difundidas, por conter

percepções dos fatos a sua volta, uma

menos referências e carregarem um tom

percepção individual. Ou seja, mesmo que

satírico. Também existem registros da

recorram a metáforas e citações “cultas” e

recepção de suas sátiras pela Igreja, que

literárias, os goliardos escrevem segundo a

somente tomou providências para frear a

própria experiência, especialmente nos

disseminação

goliárdica

poemas ligados a taberna e a experiências

movimento

perdia

eróticas.

meados do século XIII. Antes disso,

eclesiástico, de

excessos.

Outro

ortodoxia,

“mais sem

uma”

representar

o

significado,

em

provavelmente a poesia goliárdica era vista

Conclusão como

quando

sátira

à

alguma

ameaça. Enfim, a nosso ver, a poesia

códices diferentes, e como sabemos, a produção

de

um

manuscrito

era

encomendada, tratando-se de um grande investimento

que

demandava

não

goliárdica tem uma enorme importância em

recursos, mas pessoas especializadas.

sua época, pois de outra forma não teriam

Além disso, temos certeza que dois dos

sido produzidos não um, mas quatro

códices, incluindo o Carmina Burana, foram

606


mantidos em mosteiros 3, o que pode indicar que seja uma obra produzida pelos monges, mas os especialistas não têm certeza acerca deste fato. Fato é que se trata de uma poesia incomparavelmente bela e complexa, uma fonte muito rica e infelizmente, pouco explorada.

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3

O outro códice é o Carmina Rivipullensia, encontrado no mosteiro de Ripoll, atual Espanha.

607


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

MARTINS,

M.

O

riso,

o

sorriso

e

a

paródia

na

literatura

portuguesa

do

Quatrocentos.Lisboa: Biblioteca Breve, 1987. MONGELLI, LêniaMárcia .Fremosos Cantares. Antologia da lírica medieval galegoportuguesa. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. MONGELLI, Lênia Márcia, VIEIRA, Yara Frateschi. A estética medieval. Cotia: Íbis, 2003. MONGELLI, Lênia Márcia (Org.) .Mudanças e rumos: o Ocidente medieval (sécs. XI-XIII). Cotia: Íbis, 1997. RIQUER, Martin de, VALVERDE, José Maria. Historia de la literatura universal. Barcelona: Editorial Noguer, 1957. Tomo I. ROSENFIELD, KatharinaHolzermayr. A história e o conceito na literatura medieval: problemas de estética. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986. SARAIVA, A. J. Para a história da cultura em Portugal. (2 vols.) Lisboa: Gradiva, 1995. SODRÉ, P. R. O Riso no Jogo e O Jogo do Riso na Sátira Galego-Portuguesa.Vitória: Edufes, 2010. SPINA, S. A lírica trovadoresca. São Paulo: EDUSP, 1996. _______. A cultura literária medieval:uma introdução. São Caetano do Sul: Ateliê Editorial, 1997. VILLENA, L. A. de. Dados, amor y clérigos: El mundo de losgoliardos em laEdad Media europea. Sevilla: Renascimiento, 2010. WADDELL, H. The wandering scholars: the life and art of the Lyric Poets of the Latin Middle Ages. New York: Doubleday&Company, 1955. ZUMTHOR, P. A letra e a voz:a “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

608


ALÉM DO JOGO, VINHO E AMOR: A POESIA GOLIÁRDICA COMO MANIFESTAÇÃO POLÍTICA Jivago Furlan Machado 1 Resumos: Este trabalho tem como objetivo analisar a crítica política existente nos poemas dos goliardos em Carmina Burana, buscando uma ligação entre o pensamento da população das cidades renascentes do século XII e a justificação do poder baseada na teoria apresentada por Georges Duby na obra As três ordens ou o imaginário do feudalismo. A pesquisa foi feita a partir da leitura dos poemas presentes em Carmina Burana buscando possíveis manifestações de críticas que fossem além da trilogia do vinho, amor e jogo, normalmente relacionada aos goliardos. A leitura de obras referentes ao contexto social do século XII, junto com o estudo dos poemas, foi a base da presente investigação. Além disso, foram analisadas algumas obras referentes aos séculos XI e XIII, buscando as condições anteriores ao surgimento das fontes, bem como o período imediatamente posterior, visando compreender as possíveis consequências da manifestação goliarda na sociedade europeia no surgimento das primeiras universidades. A partir do que foi trabalhado, é possível concluir que os goliardos cantavam temas que iam além da trilogia conhecida, estando presentes em suas poesias críticas sutis a respeito de certas práticas da elite da época, algo que representava uma nova visão da sociedade, que estava em um período de constantes mudanças. Seus escritos representam uma renovação do pensamento medieval do século XII. Palavras-chave: goliardo; século XII; hierarquia social

1Universidade

Federal de Santa Maria.

609


Jivago Furlan Machado

A sociedade europeia do século XII

Laon e Gerardo de Cambrai, Duby aponta

foi um período demudança. Mudanças que

os

modificaram profundamente a vida das

sociedade

pessoas da época, seja em aspectos

influências de pensadores cristãos como

físicos, como o ressurgimento das cidades

Agostinho e Dionísio Areopagita nas obras

e do comércio; ou mentais, devido aos

dos bispos. Além das influências teóricas,

efeitos das cruzadas e da interação dos

ele contextualiza os autores, mostrando

novos atores sociais que se desenvolveram

elementos da sociedade da época que

a partir das novas condições. Os goliardos,

influenciaram na construção da ideia das

estudantes que escreviam poesias com

três ordens, como o fim do Império

temáticas

Carolíngio, por exemplo.

referentes

aos

prazeres

fundamentos

da

medieval,

ordenação

da

destacando

as

mundanos, estão entre estes novos atores.

Sendo feita por bispos de famílias

Frutos das escolas do clero, cantavam

nobres, a ideia das três ordens obviamente

temáticas que desafiavam os ensinamentos

favoreceu seus criadores e a casta a que

morais da Igreja, exaltando o vinho, o jogo

pertenciam. Para Duby:

e o amor. Entretanto, muito além das temáticas

citadas,

os

escritos

desses

poetas carregavam fortes críticas políticas, atacando sutilmente membros da elite (alto clero e nobreza) e desafiando, portanto, as justificativas

para

a

manutenção

da

hierarquia social, tão prezada na sociedade medieval. Como era a hierarquia da sociedade medieval?

Basicamente

o

medievo

é

entendido a partir de três grandes grupos sociais: os que rezam, os que combatem e os

que

trabalham.

reis e dos príncipes como que um espelho. Um desses espelhões de metal polido como aqueles de que na época se serviam, reflectindo bastante mal as imagens, mostrando contudo os defeitos, ajudando assim a corrigi-los. O discurso episcopal, ao dirigir-se aos príncipes da terra, tem essa finalidade: lembrar-lhes os seus direitos, os seus deveres e o que não corre direito neste mundo. Incitá-los a agir, a restabelecer a ordem. Ordem cujo modelo o bispo descobre no céu. Discurso político, o discurso dos bispos convida a reformar as relações sociais. É um projeto de sociedade. Na tradição carolíngia, o episcopado é o produtor natural da ideologia”(DUBY, 1994, p. 28).

Partindo da ideia de Duby é possível

apresentada na obra As três ordens ou o

percebe os interesses que embasaram a

imaginário do feudalismode Georges Duby.

definição da hierarquia. Como o próprio

Focando

período

autor coloca, o discurso apresentava um

imediatamente posterior ao ano mil, a partir

projeto de sociedade a ser seguido, um

dos escritos de dois bispos, Adalberão de

modelo que deveria ser aplicado. Esse

análise

definição

sentem-se obrigados a apresentar aos olhos dos

é

sua

Essa

“Na tradição carolíngia, os bispos do século XI

no

610


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

modelo era tratado como algo já existente

verificar a discordância entre o discurso

no plano celeste, era como uma lei natural

que vinha de cima, por parte do alto clero,

(divina) da ordenação das sociedades.

a respeito da organização da sociedade e

Como tinha origem divina, portanto não

dos papéis a serem cumpridos pelas

questionável,

sociedade

pessoas, e a percepção das camadas

respeitada,

menos influentes em relação a isso.

questioná-la seria questionar a decisão de

Através da poesia goliárdica pode-se ter

Deus. Ao escrever sobre o sistema do

acesso

mundo medieval, Noeli Rossatto salienta a

popular, servindo como porta-voz dos

influência platônica no pensamento vigente

pensamentos do povo iletrado que era

no século XII em relação ao mundo natural.

maioria na época. Sendo muitas vezes mal

mundana

“O

a

ordem

deveria

mundo

contemplação

ser

medieval da

da

está

natureza

e

centrado não

na

na sua

explicação. Vários são os modos de contemplá-la.

uma

manifestação

poética

vistos pelas autoridades medievais, os goliardos

viviam

transitando

entre

os

Certo platonismo a trata com base em uma

ambientes educacionais, as cortes, e, na

oposição: o mundo criado (natura naturata) é o

maior

contrário do mundo do Criador (Natura naturans). Outro platonismo supera essa dicotomia e vai

parte

ambientes

do

tempo,

urbanos

tabernas

comerciais,

e

onde

buscar as similitudes entre esses dois mundos ”

tinham contato com diversos tipos de

(ROSSATTO, 2004, p. 17).

pessoas. Esse trânsito dos goliardos era

Sobre esse outro platonismo é que se pode entender a ideia das três ordens como um espelho divino. Na sociedade medieval os costumes das

a

pessoas

eram,

a

princípio,

rigorosamente inspirados nos preceitos cristãos, considerados vontade divina. A ordem social não fugia dessa regra. Tendo em vista o padrão de pensamento vigente no século XI, justificar a hierarquia social com base na vontade divina era algo com grandes chances de ser aceito.Analisar a repercussão dessa ideia de ordem na sociedade de mudanças do século XII é algo extremamente importante por permitir

algo novo, incomum para os padrões da época. Com

as

cidades,

as

feiras

comerciais, as tabernas e os novos tipos de ocupações que surgiam e ressurgiam entre o fim do século XI e início do XII, as antigas estruturas de governo idealizadas por Gerardo e Adalberão não conseguiam mais dar conta de explicar a ordem das coisas. A sociedade havia mudado e sua explicação continuava

a

mesma.

Nesse

sentido,

permitiu-se a erupção de novas ideias, de críticas ao modelo supostamente vigente. É

interessante

ressaltar

que

a

definição da hierarquia baseada nas três

611


Jivago Furlan Machado

ordens nem mesmo no século XI foi

ocorre

são

satiririzações

totalmente exitosa. O próprio Duby deixa

influentes (sejam prelados ou a própria

claro na parte final de sua obra, quando

rainha da Inglaterra) devido, geralmente, a

escreve que alguns teóricos da época

ações que estavam em desacordo com os

interpretavam a sociedade como tendo

costumes

uma quarta ordem, a dos comerciantes

valorizados por elas mesmas. Isso pode

(considerada a mais vil de todas), o que

ser considerado um princípio de desafio à

prova a existência de características que

ordem, caso a boa conduta fosse uma das

fugiam à regra, sendo ela uma tentativa de

justificativas para a manutenção do poder

definir como a realidade deveria ser, não

dessas pessoas.

reflexo dela. Porém, a ideia das três ordens

Mas

cristãos

não

teria

de

pessoas

supostamente

na

poesia

dos

não servia apenas como meta a ser

goliardos uma valorização dos prazeres

seguida, mas também era considerada um

carnais, com objetivos recreativos, sem

espelho

grande

da

sociedade:

segundo

seus

conteúdo

ideológico?

Sim,

teóricos, a sociedade era de fato dividida

valorizava os prazeres, mas certamente

em três funções, três tipos de pessoas

estava carregada de aspectos ideológicos.

diferentes,

Pensando sobre o que fundamentava o

caso

isso

não

estivesse

ocorrendo na prática, algoestava errado,

poder

deveria ser corrigido. Se algum bispo, por

(eclesiásticos

exemplo, resolvesse pegar em armas e ir à

escreviam poesias como a seguinte:

guerra estaria fora da ordem, pois isso é papel dos nobres laicos, dos senhores feudais,

bispos

deveriam

rezar,

não

combater. Sabendo que a ideia das três ordens era algo arbitrário em relação à realidade já no século XI, no XII, quando surgiram os goliardos, isso era ainda mais difícil de ser aceito pelas pessoas. Um prova disso é a poesia goliárdica. Nos escritos goliárdicos, não há, a princípio, menção ou crítica direta à ideia das três ordens. Isso não é citado. O que

das

ordens e

nobres)

dominantes os

goliardos

A MESMA MÃO QUE DÁ PROPINA CB 1 A mesma mão que dá propina faz pecar qualquer cristão, desavenças elimina, a grana chama a razão, os discordantes ela afina, aos conflitos dá solução. os juízos dos prelados Depende dos ducados. Juízes vossa sentença A grana não dispensa! Quando é a grana que impera o direito degenera, ao indigente é negado o direito comprovado; para o rico não falta juiz

612


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo a vender-se por pratas vis;

danosos à alma dos cristãos. Apego ao

para o rico, o juiz bonzinho

dinheiro, portanto, vai contra a ideia de

sempre dá algum jeitinho;

Agostinho. Logo, a justiça da época,

quando é a grana que pleiteia, a sentença nunca é feia. (...)

baseada segundo a poesia nos “ducados

(CARMINA BURANA, 1994, p. 25).

O que será que definia a posição dos poderosos na sociedade? Essa é uma questão que pode ser feita a partir dos escritos acima citados. O goliardo que escreveu

tais

versos

denunciava

a

importância do dinheiro para as decisões dos juízes da época. Valorização do dinheiro que era algo bastante condenado por parte da Igreja (com exceção de Cluny, onde defendiam a riqueza), quase como uma norma de conduta moral, não se apegar a bens materiais era uma regra básica daquela sociedade. Interessante pensar na origem da ideia de desapego à materialidade, origem que é comum à que os bispos da época usavam para defender a ideia das três ordens: Santo Agostinho. Em sua obra A Cidade de Deus, Agostinho expõe alguns exemplo de como o apego aos bens materiais é danoso ao verdadeiro cristão,

sendo

que

este

deveria

se

preocupar mais com os bens espirituais do que com qualquer outra coisa, pois o que é espiritual é eterno e incorruptível, digno de ser buscado, diferente do que é material (seja

dinheiro

e

bens,

ou

prazeres

mundanos), que é finito e corruptível, fonte de desvios de conduta que são vícios

dos prelados”, não estava coerente com os ensinamentos da Igreja, ao menos com as ideias de Santo Agostinho. Indo além, parece que os goliardos escreviam sobre algo mais profundo, um problema estrutural que a incoerência entre os ensinamentos e a prática dos membros do alto clero deixava transparecer. Se a sociedade era em grande parte governada por essas pessoas, qual seria a origem dessa posição? Se a origem do poder do clero era baseada na vontade divina, e a vontade divina previa também o desapego aos bens materiais, por que deveria seguirse apenas parte dessa vontade? Já que os juízes provavelmente eram cristãos, será que

desconheciam

cristianismo

ou

esse

aspecto

do

adequadamente

interpretavam diferente essa parte dos ensinamentos? Atualmente

parece

clara

a

parcialidade da interpretação da vontade divina por parte do alto clero, entretanto não podemos deixar de lado o fato de que os idealizadores das três ordens eram homens de seu tempo, imersos na cultura da época, não visionários que friamente calcularam as consequências de suas ideias na sociedade de modo a mantê-los

613


Jivago Furlan Machado

no

poder

apenas

nova

Pessoas do século XII, os goliardos

de

viveram em um período de transição. O

interpretação a obra de Marilena Chauí é

ambiente hostil à urbanização, da Alta

indispensável:

Idade Média, já não era o único tipo de

justificativa.

Para

com esse

uma problema

“[...] como idéias que parecem resultar do puro esforço intelectual, de uma elaboração teórica objetiva e neutra, de puros conceitos nascidos da

comunidade. Os povos orientais já não apresentavam risco de invasão, os ataques

observação científica e da especulação metafísica,

vikings já haviam ficado para trás e os

sem qualquer laço de dependência com as

muçulmanos estavam sendo combatidos

condições sociais e históricas, são, na verdade, expressões dessas condições reais, porém de

fora da Europa, ou seja, viver refugiado em

modo invertido e dissimulado. Com tais idéias

feudos já não era algo tão necessário como

pretende-se explicar a realidade, sem se perceber

antes, os novos tempos permitiam novos

que são elas que precisam ser explicadas pela realidade ” (CHAUÍ, 1980, p.07).

Pensando na recepção das pessoas em relação à ideia das três ordens, a partir dos escritos de Chauí, pode-se afirmar que parte da sociedade do século XII via as incoerências entre o discurso e a prática da elite, algo que poderia desestabilizar a ordem, que permitia crítica, crítica que se encontra nos escritos de pessoas que circulavam pelos diversos espaços, novos e antigos, da sociedade medieval, como os goliardos. Poetas que além de frequentar ambientes da elite, como as escolas, viviam em contato com vários tipos de pessoas

simples,

com

diferentes

ocupações, a maioria sem poder político de direito,

embora

possuindo

opiniões

políticas,geralmente desconhecidas(já que eram iletradas), mas que tinhamchance de ser registradas indiretamente através dos escritos goliárdicos.

modos de vida. Os feudos ainda existiam, é claro, mas a sociedade urbana florescia como à anos não fazia. A urbanização foi reflexo, entre outras coisas, do comércio, que aumentava gradativamente. Tempos mais pacíficos combinados com um clima favorável à produção agrícola, permitiram que

a

sociedade

aumentasse

demograficamente, que a produção fosse mais variada e em maior quantidade, estimulando as trocas comerciais. As cruzadas foram acontecimentos decisivos para o renascimento urbano e comercial da Europa, pois permitiram aos comerciantes ampliar suas redes de troca e diversificar

os

produtos

a

serem

comercializados. Com novas rotas abertas pelos cruzados, os comerciantes europeus tinham acesso a especiarias orientais com mais facilidade. Não só os povos que vivem onde hoje se localiza a Itália e regiões próximas poderiam dedicar-se de fato ao

614


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

comércio com o oriente, mas muitos outros.

nunca, ultrapassada. A teoria prevê três

O contato com comerciantes árabes já

funções a serem cumpridas, três tipos de

ocorria muito antes das cruzadas, mas não

pessoas que, embora existissem, não

era algo em grande escala se levar em

contemplavam mais a totalidade do real

consideração regiões mais ao norte. Com

social(se é que algum dia o fizera). Com

esse grande fluxo de pessoas indo e vindo

cidades e suas novas ocupações, cada vez

para Jerusalém e suas proximidades, muito

mais existiam funções que não eram

além de batalhas pela terra santa, o

contempladas pelas ideias dos bispos do

contato entre comerciantes muçulmanos e

século

cristãos era intenso. Era possível produzir

Oliveria as mudanças econômicas do

mais, comprar mais e vender mais. Na

século

Europa, essas novas práticas refletiram no

diversos setores:

dia-a-dia

das

pessoas,

que

viam

se

tornarem

grandes

criadas,

a

regiões

os habitantes das comunas adquirem certa força, começam a se organizar para defenderem-se das

mobilidade

conhecimentos

extorsões e das pilhagens dos senhores feudais, fossem estes laicos ou clérigos. O resultado desta organização foi o estabelecimento de acordos (OLIVEIRA, 2005 p.367).

diferentes. Cada vez mais pessoas viviam

atores dessa sociedade de transição. Eram

de

intelectuais, pessoas que para os padrões

não

ferreiros,

de

com

Os goliardos estavam entre os novos

taberneiros,

visões

entre as comunas e os senhores feudais ”

mundo

atividades

e

distantes,

em

alterações expressivas. Com efeito, à medida que

entre pessoas locais com comerciantes e de

outras

entre os diferentes segmentos sociais, verifica-se

aumentou. Era mais frequente o contato viajantes

proporcionaram

vida novo. Também no plano político, na relação

centros

a comércio ou para a terra santa, mais foram

Terezinha

que os homens começam a adquirir um estilo de

comerciais. Com mais gente viajando, seja estradas

XII

Segundo

“Mas não é só no plano das atividades econômicas

as

estruturas físicas das antigas pequenas feiras

passado.

agrícolas,

como

comerciantes

de

da

época

possuíam

conhecimentos

tecidos, vendedores de produtos que antes

restritos

raramente eram requisitados, mas que com

população. Seguindo a ideia de Jacques Le

os novos tempos tornara-se possível.

Goff, deve-se pensar em intelectualidade

Todas essas mudanças acabaram modificando estruturalmente a sociedade europeia medieval. As pessoas pensavam diferente e a justificativa do poder baseada em três ordens parecia, mais do que

para

a

grande

massa

da

medieval diretamente ligada às cidades. “No início foram as cidades. O intelectual da Idade Média – no Ocidente – nasceu com elas. Foi com o desenvolvimento

urbano

ligado

às

funções

comercial e industrial – digamos modestamente artesanal – que ele apareceu, como um desses

615


Jivago Furlan Machado homens de ofício que se instalavam nas cidades nas quais se impôs a divisão do trabalho” (LE GOFF, 2003, p. 29).

Na visão de Le Goff, o intelectual era o

homem

urbano

relacionado

ao

cujo

ofício

trabalho

era

intelectual.

Professores ou alunos, os intelectuais eram pessoas de ofício, com uma atividade definida. Entretanto, é sabido que os goliardos,

de

um

modo

geral,

eram

conhecidos pela vacância, pelo modo de vida

errante,

sem

atividade

produtiva

definida. Letrados que viviam às margens da sociedade urbana, sobrevivendo ora de favores, ora por vínculos familiares. Seu estilo de vida geralmente não estava ligado a cargos ou atividades que possibilitavam estabilidade. Eis o problema. Para os poderosos,

ter

pessoas

letradas,

que

conheciam razoavelmente ambientes da elite (escolas), mas viviam em contato com a população geral, nas tabernas e feiras comerciais, era algo que poderia ser potencialmente subversivo. Não bastasse a sociedade estar mudando em um ritmo maior do que os governantes poderiam acompanhar, ainda existia esse tipo de poeta, que viviam disseminando através de seus

versos,

provavelmente,

ideias seriam

que

antes,

seriamente

repreendidas, mas com os novos tempos eram menos mal vistas. Era possível falar de vinho, jogo e amor. Era possível também satirizar as pessoas poderosas.

Carmina Burana pode ser tratada como um vestígio

que

carrega

informações

referentes à visão que os populares tinham em relação aos poderosos, algo que possibilite, nos dias de hoje, afirmar que algumas

pessoas

percebiam

as

incoerências que estavam por trás dos discursos da elite. Talvez os goliardos representem os primórdios de um novo tipo de conhecimento letrado, fugindo um pouco da antiga tradição teológica. Sabe-se que o século XIII foi o das universidades. Grande mudança na forma que

os

intelectuais

trabalhavam,

a

universidade medieval foi algo novo na história da humanidade. Instituição que veio com as já citadas transformações sociais, a universidade é a consolidação de um período de mudanças anteriores. Não apenas enquanto instituição, mas com novos problemas, novos temas a serem trabalhados, pensados. A intelectualidade medieval

do

século

XIII

tinha

novas

questões para esclarecer. Uma sociedade diferente exigia diferentes explicações. As condições materiais dessa sociedade de universidades do século XIII começam a tomar forma já no século anterior. Não seria a poesia goliárdica uma manifestação primitiva

dessa

nova

forma

nova

de

pensamento? Talvez. Pensando novamente nos escritos dos goliardos enquanto crítica política,

616


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

pode-se encará-los como uma possível

poder com base em teorias, mas em bens

manifestação que carregava implícita as

materiais. O poder dos novos poderosos

ideias de pessoas não letradas da época.

não sendo de origem divina abre espaço

Partindo dessa ideia, é possível por em

para que os poetas cantem desafios aos

evidência

homens de Deus e suas regras.

as

justificativas

para

a

manutenção da hierarquia social. O poder

Denunciando o caráter ultrapassado

exigia justificativas para sua manutenção.

do ensino do século XII, os goliardos

Mas pelo visto em Carmina Burana, essa

podem representar o início da mudança

estrutura que era semelhante à divina

que se consolidou no século seguinte com

permitia

conduta

as universidades. Nesse sentido, Le Goff é

ocorressem por parte dos poderosos, ou

claro quando afirma que “A tradição

esses desvios eram mais uma prova de

goliárdica sempre viva na universidade,

que esse poder, antes material do que

perpetua-se,

divino, não era tão sagrado assim. Ali

agressividade porém com mais segurança”

estavam os poetas cantando os desvios de

(Le GOFF, 2003, p. 137).

que

desvios

de

conduta dos poderosos que se justificavam por

ordem

divina.

Divindade

que

desaprovava tais desvios. estivessem

relacionados

Embora

aos

não

com

se

menos

encontre

nos

escritos dos goliardos uma proposta nova de

Talvez os temas dessas poesias

truculenta,

explicação

da

sociedade,

sua

satirização dos desvios morais da elite

novos

pode ser encarada como ascensão de um

costumes que a vida nas cidades permitia e

pensamento crítico que se consolida no

proporcionava. Lugar onde a ascensão

século

social era mais possível e onde não só os

pensadores

universitários

senhores feudais e bispos tinham poder,

justificativas

diferentes

mas também comerciantes, gente que não

vigente.

seguinte

com

os

juristas

que

para

e

buscam o

poder

tinha origem nobre, que não justificava seu

Referências: AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. A cidade de Deus: (contra os pagãos). Parte I; Introdução de Oscar Paes Leme. 2. ed. – Petrópolis: RJ, Vozes; São Paulo: Federação Agostiniana Brasileira, 1990; CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 3ª ed.. São Paulo: Brasiliense, 1981;

617


Jivago Furlan Machado

DUBY, Georges. As três ordens, ou o imaginário do feudalismo. Tradução de Maria Helena Costa Dias. 2. ed. Lisboa/Portugal: Estampa, 1994; FRANCO JÙNIOR, Hilário. A Idade Média : nascimento do ocidente. 2ª ed.. São Paulo: Brasiliense, 2001; Le GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Tradução de José Rivair de Macedo. Bauru, SP: Edusc, 2005; _____Os Intelectuais na Idade Média. Tradução de Marcos de Castro. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2003; OLIVEIRA, Terezinha . Instituição e Pensamento: a Universidade e a Escolástica. In: LUPI, J.; DAL RI JUNIOR, A.. (Org.). Humanismo medieval: caminhos e descaminhos. 1ed. Ijuí: Unijuí/Fundacione Cassamarca, 2005, v. 1, p. 363-373; ROSSATTO, Noeli Dutra. Natura naturans, natura naturata: o sistema do mundo medieval. In.: Ciência & Ambiente. N. 28. Janeiro/Junho de 2004, nº 28, p. 17 – 28; VERGER, Jacques. Cultura, ensino e sociedade no Ocidente nos século XII e XIII. Tradução de Viviane Ribeiro. Bauru, SP : Edusc, 2001. Fontes: Carmina Burana: Canções de Beuern/ Apresentação de Segismundo Spina, introdução e tradução de Maurice van Woensel. – São Paulo : Ars Poética, 1994.

618


A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA NAS AÇÕES DO MONARCA D. DINIS Lorena Faccin Rosa 1 Resumo: Neste texto apresentamos um estudo sobre a formação educacional do VI rei de Portugal, D. Dinis (09/10/1261 - 07/01/1325). Essa formação educacional foi de cunhofrancês universitária do século XIII. Nós nos propomos a estudar sobre este monarca devido seus grandes feitos como um rei que não foram percebidos em seus antecessores e por ser o primeiro de sua linhagem a ser educado e além disso, educado desde pequeno com o objetivo de que o conhecimento que ele adquirisse fosse aplicado em seu reinado. Fazendo assim de D. Dinis um grande rei pelos seus atos e sua formação. Então, neste trabalho apresentaremos alguns dados sobre a formação de D. Dinis e apontaremos alguns de seus grandes feitos levando sempre em consideração os estudos como influência nos atos do rei como dirigente de uma sociedade. Porém, antes de chegarmos ao nosso tema principal, realizaremos uma contextualização do século XIII enfocando na Universidade Francesa onde alguns anos depois D. Dinis foi educado e também apresentaremos uma biografia do monarca para uma melhor compreensão do texto. O caminho percorrido para a realização dos estudos foi baseadono pressuposto teórico da História Social de Marc Bloch como metodologia. E nosso referencial teórico foi baseado nas Crônicas referentes ao período, como também os historiadores Medievais. Palavras-chave: D. Dinis; História da Educação; Medievo.

1

Universidade Estadual de Maringá.

619


Lorena Faccin Rosa

Introdução

desafios, pois, compreender o presente de

através de um fato histórico e este com o

apresentar os resultados da pesquisa a

presente não é uma tarefa fácil. Sempre

nível de iniciação científica 2 de como o

precisamos assim voltar em fontes teóricas

conhecimento

que

Este

texto

tem

o

universitário

intuito

francês

do

nos

possibilitem

a

tentativa

de

século XIII influenciou nas ações de

compreensão de determinado fato histórico

dirigente da sociedade de D. Dinis. O

e depois trazer para o presente. Por

monarca nasceu no ano de 1261 e faleceu

exemplo essa pesquisa sobre D. Dinis nos

em 1325, sendo assim um homem do

possibilita tanto a compreensão do seu

período medieval. Nessa época estavam

tempo, quanto compreender a importância

ocorrendo

da educação que é presente agora. Ou

grandes

sociedade

e

transformações

a

constituição

na das

seja,

sabemos

que

a

educação

é

universidades nas cidades. A França foi

importante, mais o que comprova isso são

uma

modelos

as pesquisas como essa que apresenta a

daquele período e a mais procurada para

educação como diferencial em um cidadão

formar pessoas nas universidades. D. Dinis

que

foi enviado para a Universidade de Paris

sociedade. Constatamos assim que essa

para estudar, com o intuito de que o estudo

pesquisa é importantíssima para a área da

o distinguisse como rei e assim ocorreu. D.

educação, responsável por formar pessoas.

das

principais

cidades

Dinis é um dos maiores rei já visto,

faz

O

toda

a

caminho

diferença

em

percorrido

uma

para

a

incomparável em sabedoria e em ações

realização desse estudo foi fundamentado

para o bem, ele (RIBEIRO, 1871, p. 23)

pela obra Apologia da História ou Ofício do

Regeu, edificou, lavrou, venceu, Honrou as

Historiador de Marc Bloch que nos propõe

Musas, poetou e leu.

caminhos e formas de estudar história, já

Quando nos propomos a realizar

que ele nos indica a possibilidade de

pesquisas nos campos da História e da

recuperação e uso dos acontecimentos

Historiografia

da

devemos

humanos,

nos

sempre

preparar

grandes

singulares

"[...]

nos

Educação para

aparentemente 2

Essa pesquisa é Orientada pela Prof. Dr. Terezinha

seus por mais

aspectos trás

dos

insípidos

mais

escritos e

as

instituições aparentemente mais desligadas

Oliveira e se iniciou com a atual aluna de mestrado

daqueles que as criaram, são os homens

Mariana Sarache, que foi substituída devido a sua

que a história quer capturar". (BLOCH,

formação na graduação do curso de Pedagogia em

2001. p. 54)

Janeiro de 2014.

620


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Na passagem mencionada podemos

homem medieval estava recluso em feudos

detectar que, para o autor, o objeto e razão

e passou a morar nas cidades para facilitar

da história é o próprio homem. Logo, não

suas relações comerciais, essa adaptação

haveria sentido estudar história se o

gerou necessidades de ler, escrever e

homem não fosse a essência do contexto

calcular para vendas e trocas. Como nos

estudado. Estudar história é estudar o

comprova:

homem, suas conquistas, escolhas, suas atividades, suas invenções. Relacionando este entendimento de história com as ações de D. Dinis podemos destacar um trecho da obra (BLOCH, 2002, p. 60) "Os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais" e

"Com relação ao renascimento urbano, há que se mencionar que o movimento e o desenvolvimento das cidades medievais devem a um conjunto complexo de estímulos e a diversos grupos. Dentre estes estavam os recém-chegados evadidos do campo, das famílias monásticas, os quais estavam prontos a negociar e obter ganhos". (OLIVEIRA, VIANA. 2011, p.317)

Esses

acontecimentos

certamente D. Dinis se parecia mais com

desestabilizaram a sociedade atual, tudo

seu tempo do que com seus pais, levando

que se conhecia como certo já estava

em consideração todas as diferenças de

ultrapassado ou não correspondia o atual,

uma geração para a outra, D. Dinis agiu

então os homens encontraram um jeito de

totalmente diferente do rei anterior, já que

se explicar pela razão, pois a igreja que era

priorizou e sistematizou o desenvolvimento

responsável por isso até este momento já

econômico e social do reino, dedicando-se,

não estava conseguindo sanar a dúvidas,

particularmente ao desenvolvimento da

nem explicar a fase atual e nem o homem

cultura.

em suas instâncias.

Iniciamos portanto nosso texto com

Neste

uma breve contextualização que permitirá

Universidade

um entendimento inicial do que se passava

conhecimento. Um desses conhecimentos

naquele período.

como nos diz Oliveira (2005, p.8) é um

O Século XIII e a Universidade Francesa

cenário que

se

constituiu

transmitiria

a o

saber voltado para as atividades citadinas e

O século XIII especificamente na

mercantis dos mercadores que tinha um

França foi marcado pelo renascimento das

caráter prático, ou seja, as atividades

cidades e das atividades comerciais. O

citadinas comercias definiram um perfil

homem

um

para o saber medievo que deveria ser

camponês do feudo e passou a ser um

transmitido na Universidade pois foi para

comerciante da cidade, ou seja, antes o

realizar essa função que ela foi criada.

medieval

deixou

de

ser

621


Lorena Faccin Rosa

Porém, mesmo que sendo criada a este

pois, dali saiam os doutores do direito, da

intuito a universidade era ampla demais

medicina e da teologia principais ofícios do

para

de

período. Portanto, esta instituição é o

conhecimento, então ela se abre como um

elemento fundamental de formação de um

espaço que além de corresponder o

reino,

período em que está o estuda, estuda os

Universidade,

homens, as novas formas de relações, de

criações do reinado de D. Dinis. Assim,

cultura e etc. Ou seja “A universidade cria,

ainda que a Universidade de Portugal não

deste modo, a possibilidade de os homens

tenha

buscarem, por meio da razão e não

repercussões que a de Paris alcançou,

maisapenas

por

meio

da

a

segundo Mattoso (1994) ela foi uma

explicação

para

a

suas

relações.“

instituição, extremamente importante para

atender

somente

esse

tipo

religião,

aos

moldes foi

atingido

formação

da

da

uma

o

França,

das

esplendor

(OLIVEIRA, 2005, p.6). Ela se consolida

a

identidade

como parte do elemento da cultura e da

portuguesa social e política.

a

primeiras

e

as

nacional

formulação do pensamento intelectual do

D. Dinis e sua formação

homem medieval, em diversas cidades do

D. Dinis nasceu no ano de 1261 e

Ocidente. Além de proporcionar a abertura

assumiu o trono em 1279, com 18 anos,

de portas do conhecimento para todos os

logo após a morte de seu pai D. Afonso III

homens, pois este, era restrito para a igreja

e faleceu em 1325 quando finda seu

e aos nobres.

reinado. Este rei português enfrentou, logo

Essas mudanças nos âmbitos da

de início, a situação de estar a frente de um

economia, da cultura, da política, do pensar

território que necessitava se desenvolver e

e se organizar da França proporcionaram

se libertar da suserania da Espanha. Essa

que esta região se desenvolvesse de tal

unificação só ocorreu com D. Dinis, pois ele

forma que passou a ser considerada uma

conseguiu amainaros problemas com a

das regiões modelo para os homens

igreja herdados pelo seu pai, o rei anterior

medievais

para

a ele. Acreditamos que por este monarca

Portugal que se inspirou na França para

ter tido uma formação francesa deste

unificar seus territórios e constituir um

período apresentado acima, soube utilizar-

reino.

se dessa influência para desenvolver seu

do

Ocidente

inclusive

Já a presença da Universidade nas

reinado.

Incentivou

moralmente

e

cidades do Ocidente representava o motor

financeiramente na cultura, na criação e

do desenvolvimento intelectual e social,

manutenção

da

primeira

Universidade,

622


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

criou a marinha e era conhecido como Rei

obrigações futuras como rei. (SOARES,

Lavrador por se importar e incentivar o

2007, p. 173) D. Dinis estudou na França

desenvolvimento da agricultura. Sob este

durante 16 anos, quando retornou para

aspecto é importante ressaltar que D. Dinis

Portugal foi rodeado de letrados franceses

envolveu-se em todos os aspectos sociais

e portugueses formados em universidades

do seu reino. D. Dinis foi um rei muito

estrangeiras como Lourenço Gonçalves,

estimado

o

também teve como preceptor Ayméric

conheceram e por muitos autores que

D'ebrard, um dos homens mais ilustres do

tiveram a oportunidade de estudá-lo como

período, como podemos comprovar na

comprovamos na citação abaixo.

citação abaixo.

em

vida

pelo

os

que

"porque foi Dom Diniz (segundo de suas obras se

Semelhantes circunstâncias, compreendidas pela

collige) entre todos os do seu tempo o mais

sagaz inteligéncia de D. Afonso, determinaram

excellente Principe, que no mundo houve. E hum

êste monarca a ministrar a seu filho educação

raro exemplo de Nobreza, e Justiça, e Verdade:

esmerada, como a não tinham recebido ainda

virtudes só dignas de hum Real peito;" (MARIZ,

príncipes portugueses. Deu-lhe por aio Gonçalves

1963, p.263)

Magro,

Os

autores

apresentaram

estudados

informações

não

suficientes

sobre a formação de D. Dinis, porém, falam de seus feitos e com os dados que pudemos encontrar relacionamos alguns de seus feitos com a sua formação, que certamente interferiu em todas as suas ações. Ressaltamos que D. Dinis só pode estimular o desenvolvimento do seu reino, fundar a universidade, porque teve uma formação intelectual que valorizava estas questões

como

essências.

Sob

este

aspecto é preciso destacar, no âmbito da educação, que ele só pode agir dessa forma porque o seu pai e avô viram a necessidade de fornecer uma educação diferenciada para ele, pensando nas suas

em

quem

as

qualidades

pessoais

concorriam com as tradições de família, como terceiro neto de Egas Monís. A missão educadora de Lourenço Gonçalves foi continuada por Nuno Martins de Chacim, que teve o cargo de adeantado (fronteiro mór) na Beira e Entre Douro e Minho, e depois o de mordomo- mór de El Rei D. Dinís. (ALMEIDA, 1922, p. 235)

Com

efeito,

acreditamos

que

o

diferencial do seu reinado vem do estudo porque

o

conhecimento

proporcionou

visões, técnicas e formas de escolher suas ações, que sem as quais, acreditamos que Portugal não teria se desenvolvido. Um exemplo é a relação desenvolvida entre ele e a igreja já que D. Dinis limitou os poderes desta sobre o reino, porque possuía argumentos e força política, necessários para tal decisão, algo que não foi detectado nos reinos anteriores. Esse fato poderia ter acontecido por falta de argumento da Igreja

623


Lorena Faccin Rosa

como citado ou também poderia ser que

evolução intelectual adquirindo a instrução

ela aceitava os argumentos do monarca

e o conhecimento. O monarca sabia que

por saber da sua formação universitária e

essa instituição seria crucial para alcançar

que princípios como a ética estavam em

esses objetivos, pois teve um intenso

seu caráter.

contato com a estima cidade francesa e

Outra

evidencia

do

poder

do

conhecia que a França só evoluiu daquela

conhecimento nas ações de D. Dinis, foi a

forma

relevância que ele deu a Universidade,

principalmente por causa da Universidade.

buscando criar no seu território uma

O que podemos constatar é que como o rei

instituição tal como a existente na França

era

(OLIVEIRA,

20).

também quis trazer para sua terra toda a

Consideramos que uma das razões para o

organização francesa, sua cultura, claro

interesse

a

que não descartando a própria de Portugal

Universidade por este monarca incidia no

mais atribuindo novos elementos culturais e

fato de que as mudanças que estavam

trazendo aquela instituição evolutiva que

ocorrendo, na sociedade medieval, exigia a

era a Universidade.

SARACHE, na

criação

2013, e

p.

proteção

formação de novos profissionais como

para

ser

uma

impregnado

Além

região

daquela

disso,

modelo

cultura

tornara-se

ele

muito

médicos, teólogos, advogados, entre todas

dispendioso enviar pessoas para serem

as outras profissões.

formadas em outros países, pois muitas

"A educação que D. Diniz recebeu, graças á illustração de seu pae, produziu os mais prosperos resultados para Portugal. Ponto agora de parte

delas além de não retornarem depois de formadas, as que tinham a intenção de ir e

outros interesses, e fixando a consideração nos do

retornar sofriam os inúmeros riscos das

desinvolvimento intellectual, vemos surgir nos fins

grandes jornadas.

do seculo XIII uma universidade, que proporciona aos portuguezes o grande beneficio de estudos geraes, e lhes permite alargar a esphera da intelligencia e adquirir a instrucção - variada e util -, que até nessa época só um outro individuo privilegiado ia beber fóra da patria. (RIBEIRO, 1871, p.2)

Como podemos observar no trecho

"Pôde D. Dinis, compreendendo a importância da educação científica para o bom governo dos povos,

iniciar

trabalhos

de

a

sociedade

uma

portuguesa

organização

nos

civilizadora,

lançando os fundamentos de uma Universidade; isto é: de uns Estudos seculares, a que pudessem aceder todos quantos o pretendessem" (SOARES, 2007, p. 173).

acima que lemos, o autor destaca que foi

O discurso de D. Dinis era de que

pela educação de D. Dinis que ele se

Portugal precisaria formar seus filhos "em

empenhou na criação da Universidade,

casa". D. Dinis sabia que o conhecimento

buscando que Portugal alcançasse uma

poderia transformar as pessoas e quis que

624


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

essa oportunidade fosse alargada aos seus

extremamente necessária para a formação

súditos, particularmente aqueles vinculados

do homem, sabemos que a partir do

a administração política do reino como

momento em que temos um contato

evidenciamos na citação acima.

profundo com o conhecimento mesmo que

D. Dinis foi um rei que se diferenciou

já sejamos mais maduros cheios de vícios,

de todos os outros reis de Portugal em

nosso interior começa a se modificar e se

todos os seus atos, porém esse diferencial

transformar, certamente que para o bem.

só se deu porque seu pai e seu avô

Porém podemos observar com D. Dinis que

acreditaram

formação

o conhecimento quando apresentado ainda

universitária traria a ele a capacidade para

no processo de formação do ser humano

ter um rei distinto pela sua inteligência e

pode conquistar bens inimagináveis. Se o

sabedoria, ele certamente não poderia

monarca não tivesse tido a experiência

escolher estudar desde pequeno por si

dessa formação talvez ele poderia ter sido

próprio e foi a consciência destes homens

como os outros reis, porém desejavam

que possibilitaram a ele uma preparação

mais para ele e o estudo possibilitou que

contínua

em

assim fosse. O monarca foi destacado

princípios morais e éticos que tornaram D.

pelos seus inúmeros atos que beneficiaram

Dinis um exemplar rei, como podemos

a sociedade em que estava, ele sempre

constatar no trecho abaixo:

pensava no bem comum baseando-se em

que

desde

uma

criança

baseada

" E para que em tudo fosse perfeito, não lhe faltou hum amenissimo engenho, muito affeiçoado ás letras, e sciencias; nas quaes exercitando-se muito na Poesia, foi havido naquele tempo por excellente Poeta; e o primeiro, que em Hespanha, e na vulgar lingua Portugueza, compoz versos, e rimas, como se vê em alguns Poemas, que em louvor de Nossa

princípios éticos. Assim percebemos que o conhecimento é essencial também para a formação de um cidadão. Portanto essa pesquisa para nós pessoas responsáveis por pensar em

se

educação e em educar é de extrema

esquecendo de ser Author de muitas leys justas, e

importância, pois nos mostra como o

Senhora

ainda,

hoje

permanecem.

Não

santas, com que seus subditos se governassem, e

conhecimento

tambem muito dado a cultivar, e aproveitar a terra,

formação

cidadão

cujos lavradores costumava chamar nervos da

comprova como ele ainda é importante já

a justiça devidamente se administrasse. Foi

republica;" (MARIZ, 1963, p. 269)

concluir

com

importante do

medievo

na e

na contemporaneidade. O professor é

Considerações Finais Podemos

do

era

essa

pesquisa que a formação estudantil é

responsável por mediar o conhecimento para o aluno, crendo que este o modificará e sabendo de sua importância. Ele tem que

625


Lorena Faccin Rosa

educar todos acreditando que cada criança

deve sonhar com uma sociedade cheias de

tem o potencial para aprender e atribuir o

D. Dinis.

conhecimento para a vida, pois o professor

Referências: ALMEIDA, Fortunato de. História de Portugal. Desde os tempos Préhistóricos até a aclamação de D. João I (1385). Coimbra, 1922, T. I. BLOCH, Marc. Apologia da História, ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. MATTOSO, José. O Suporte Social da Universidade de Lisboa- Coimbra (1290- 1527).

Revista Penélope, fazer e desfazer a história, Lisboa, nº 13, p. 23-35, 1994. MARIZ, Pedro de. Diálogo de varia história. Lisboa: Na Impressão Régia, 1806, tomo I. OLIVEIRA, Terezinha. As Universidades na Idade Média (séc. XIII). Revista Notandum

Libro 5, São Paulo, 2005. RIBEIRO, José Silvestre. História dos Estabelecimentos Scientificos Literarios e Artisticos

de Portugal nos Sucessivos Reinados da Monarchia. Typographia da Academia Real das Sciencias, Lisboa, 1871. SARACHE, M. V. ; OLIVEIRA, Terezinha . Universidade de Portugal: Constituição cultura e política. Convenit Internacional, São Paulo, v. 13, p. 17-26, 2013 SOARES, F. J. G. L. A universidade em Portugal. Brevíssima resenha histórica acerca da sua génese. PROELIUM- Revista Acadêmica Militar, v. VI, n. 7. 2007. VIANA, Ana Paula dos santos; OLIVEIRA, Terezinha. Um estudo da origem da universidade medieval no século XIII por meio da historiografia. In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO - EDUCERE, 5, 2011, Curitiba. Anais... Curitiba: Pontifícia Universidade Católica do Paraná, 2011. p. 5712-5723.

626


FONTES MEDIEVAIS: A CRÔNICA DE ALFONSO X, O SÁBIO Luiz Augusto Oliveira Ribeiro 1 Jaime Estevão dos Reis 2(Orientador) Resumo: Esta pesquisa fundamenta-se no estudo de fontes medievais, especificamente, a Crónica de Alfonso X, o Sábio, escrita no reinado de seu bisneto Alfonso XI, por volta de 1344. Buscamos compreender o gênero literário das crônicas medievais e sua importância no contexto em que foram escritas. A fonte em questão revela informações importantes para o estudo da história política do reinado de Alfonso X, o Sábio, sobretudo no que se refere ao processo de centralização do poder monárquico. Palavras-chave:Idade Média; Crônica; Alfonso X.

1

UEM

2DHI/PPH-UEM

627


Luiz Augusto Oliveira Ribeiro

O gênero literário crônica é a base de

grande

parte

do

nosso

atual

conhecimento sobre a História Medieval

Temático

perceber

Medieval,

Claude Schmitt. Se pensarmos a História na Idade

a

crônica

Média e buscarmos relacioná-la ao gênero

histórico,

sempre

literário das crônicas, podemos perceber

atentando aos cuidados essenciais de

forte preocupação em registrar os fatos

qualquer

passados e estabelecer uma forma de

enquanto

e

Ocidente

organizado por Jacques Le Goff e Jean-

europeia, neste sentido, se faz necessário compreender

do

documento

documentação

a

qual

nos

propomos a estudar.

transmissão deste passado aos homens

Estudos apontam que a crônica

posteriores. Desta forma, Para conhecer a Idade Média, o medievalista

medieval é um objeto comum a diversas

dispõe de vários tipos de fontes e, entre elas, as

áreas do conhecimento. Em levantamento

fontes narrativas. Alguns desses relatos podem ser

feito acerca das pesquisas no Brasil, ficou

testemunhos ingênuos do que alguém viu ou ouviu. Mas muitos são também obras elaboradas,

evidente que áreas como a Filosofia, Artes,

em que o autor pôs todos os cuidados para

Educação e Letras também se apropriam

transmitir à posteridade a lembrança do passado,

deste tipo de documentação para estudos

próximo ou remoto. Houve na Idade Média, muitos historiadores (GUENÉE, 2006, p. 523).

acerca da Idade Média (GUIMARÃES, 2012). Para este trabalho, priorizamos a

Crónica

de

Alfonso

X,

escrita

provavelmente em 1344. A preocupação inicial

do

autor

foi

a

de

registrar

cronologicamente os feitos dos reis de Castela e Leão, que compreende os reinados de Alfonso X, Sancho IV e Fernando IV. Ao pensarmos e refletirmos acerca da motivação para a escrita da crônica, caímos na necessidade de compreensão de alguns conceitos básicos para o estudo da Idade Média, sendo estes Hi,stória,

Tempo e Rei. Para a melhor compreensão destes conceitos buscamos o Dicionário

Partindo

desse

pressuposto,

podemos compreender aqueles que se propuseram

a

escrever

as

crônicas

medievais como historiadores, no entanto, dentro de uma perspectiva mais ampla, que tem relação direta com o contexto histórico, social, econômico, político e cultural em que viviam. Esses elementos citados são de

grande

influência

no

trabalho

do

historiador até os dias atuais, além de que, as crônicas da Idade Média se propuseram, em sua maioria, a fazer uma história política de legitimação e reafirmação de poder. A questão histórica na Idade Média se caracterizou pela busca dos relatos

628


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

orais, dessa maneira, os homens que se

do Tempo ser um elemento extremamente

propunham a narrar os fatos se baseavam

visível nas crônicas medievais.

em grande parte nas coisas que ouviam, ou

Além da crônica em si, ainda temos

que alguém relatava – grande problema

a compilação de documentos, aqueles que

para

de

se dedicaram à História e buscaram reunir

verossimilhança. É recorrente na Idade

documentos e escritos anteriores à sua

Média

época.

a

necessidade, a

atual,

preocupação

com

os

Crônica

Na

de

Alfonso

X,

documentos/fontes que eram utilizados

encontramos também alguns documentos,

e/ou produzidos, no entanto, não se

nesse sentido há certo relacionamento

encontrava outra forma de legitimar essas

entre

informações a não ser pela aprovação de

resgatada.

reis

muitas vezes foram essas compilações que

ou

príncipes,

que

garantiam

a

a

crônica É

e

a

importante

documentação lembrar

que

permitiram que os documentos chegassem

procedência (GUENÉE, 2006). Durante séculos, a exemplo dele, o historiador teve que escolher entre a história, que era um relato pomposo mas sem muitas datas, e a crônica, onde

até os dias atuais. Como já dito acima, a noção de

o essencial eram as datas, cada uma seguida de

Tempo e História estão intrínsecas no que

breve

diz respeito à produção narrativa, dessa

menção

ocorridos.

E

do como

ou

dos

a

acontecimentos

ambição

de

muitos

historiadores era apreender a história do mundo no

forma, é necessário a compreensão do

todo, da Criação até seu tempo, o modelo mais

conceito de Tempo e a percepção de como

utilizado foi sem dúvida o da crônica universal

ele era encarado pelos homens medievais.

(GUENÉE, 2006, p. 533).

A crônica passou a ser considerada como um dos caminhos para a escrita da História,

seja

por

permitir

maior

abrangência de tempo, ou por trazer modelos

fechados

acontecimentos.

de

Desta

datas

e

maneira,

é

importante refletirmos e analisarmos a crônica também, basicamente, como forma de registro de acontecimentos. Claro que não podemos, em hipótese alguma, deixar de lado as questões de interpretações e

Sendo assim, O tempo da Idade Média é, em primeiro lugar, um tempo de Deus e da terra, depois, dos senhores e dos que estão sujeitos ao senhorio, depois – sem que os tempos precedentes tenham deixado de ser presentes e exigentes – um tempo das cidades e dos mercadores, e, finalmente, um tempo do prícipe e do indíviduo (LE GOFF, 2006, p. 531).

Ao longo da Idade Média, é cada vez mais comum o entrelaçamento do tempo cristão ao tempo cotidiano. Se fizermos um certo resgate histórico, é na Alta Idade Média que o tempo cristão passa a ocupar

inferências espaciais e geográficas, apesar

629


Luiz Augusto Oliveira Ribeiro

seu lugar, este com suas características

desta

litúrgicas, no entanto, aos poucos

descrever e organizar os feitos dos reis.

O tempo linear cristão deu lugar a uma notável atividade historiográfica medieval. Por muito tempo foi dominada pela periodização anual (anais) e

maneira,

pudessem

Rei medieval

O

é

uma

melhor figura

singular, por vezes, se destaca e ganha

pela obsessão da crônica universal. Os eventos

sua legitimação por conta da Igreja e, neste

anotados são intempéries, os signos do céu, os

sentido, se caracteriza como um rei cristão.

tremores de terra, os ataques dos pagãos, irrupção no tempo humano da natureza, do Diabo e dos homens maus (LE GOFF, 2006, p. 535).

Além deste elemento religioso, um rei pode ser reconhecido por suas conquistas e

Como observado acima, o tempo

seus conhecimentos, como é o caso de

historiográfico passa a ser comum a

Alfonso X, grande exemplo de rei sábio (LE

medida que a História torna-se necessária

GOFF, 2006).

para o registro dos feitos e fatos, dessa

A figura do rei passa a dividir espaço

forma, a periodização anual e os registros

no século XII com os códigos jurídicos, que

feitos

passariam a ordenar os espaços do reino,

em

documentos

e

crônicas

influenciaram diretamente na compreensão

além

deste conceito de tempo.

estabelecimento

de

suas

conquistas de

e

regras

o que

Foi comum na Idade Média a

conjuntamente ao Rei, estaria sob vigência

periodização em torno do passado, e,

naquele determinado espaço (LE GOFF,

portanto, o que se vislumbra é que o

2006).

presente era deixado de lado, visto que a

A Crônica de Alfonso X evidencia um

preocupação com o passado se remetia

misto dos conceitos acima apresentados,

diretamente ao futuro e em como seriam

sendo assim, o documento deve ser

lembrados os homens políticos, e as

pensado como a História, que narra os

figuras importantes (LE GOFF, 2006).

feitos de determinado Rei no Tempo.

Baseado

nestes

conceitos

de

Parece-nos básica a compreensão destes

História e Tempo, podemos perceber o

elementos, para que a partir de então

quanto estes estiveram entrelaçados na

possamos pensar o documento dentro de

Idade Média e permaneceram até os

seu contexto histórico, social, político e

nossos dias. Para a História Medieval, foi

econômico.

preciso a sistematização e organização do

Crônica Medieval: o estudo de um gênero

tempo, o gênero Crônica exigiu que se

literário.

dividissem os períodos em anos, para que

Crónica de Alfonso X abrange três reinados:

Alfonso

X,

Sancho

IV

630

e


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Fernando IV. Apresenta-se enquanto um escrito por vezes detalhista, no entanto,

levou a cabo a sua atividade (MIRANDA, 2009, p. 2).

assim como qualquer outra obra, alguns acontecimentos não ficam tão claros e/ou podem ser fruto de uma criação do cronista, sendo assim, é necessário um olhar atento e cuidadoso, afinal, mesmo que algumas partes atendam a um caráter imaginário existe uma relação direta com a realidade vivenciada pelo autor, este cuidado e atenção devem ser ainda mais preservados quando pensamos que o discurso cronístico é, sem dúvida alguma, de legitimação da figura do monarca. Ao

pensarmos

e

discutirmos

a

Crónica enquanto documento histórico, além dos cuidados já citados é preciso a retomada de alguns elementos práticos do trabalho do historiador. Lançando mão de um importante historiador da Antiguidade Moses Finley (1994), elementos como: o autor, ano e local em que foram escritos, estudo dos termos, entre outros são importantes aspectos, que se levados em conta pode tornar o trabalho do historiador mais satisfatório. Deixando por

ora de lado os casos

mais

desesperados, e tendo em conta aquelas obras

Apesar de podermos definir com certa exatidão a data do ordenamento da escrita da crônica – 1344 –, o mesmo não acontece quando se trata do autor deste documento.

Jiménez

Crónica de Alfonso X nos apresenta dois nomes importantes a quem podemos fazer tal atribuição: Fernán Sánchez de Tovar e Fernán Sánchez de Valladolid, no entanto não existe um consenso historiográfico acerca de um desses nomes, além de um destes, é possível que tenha existido colaboradores dos quais influenciaram e participaram ativamente da construção e registro deste documento. Contudo, uma das únicas certezas que temos é que o documento em questão foi mandado escrever pelo então rei de Castela, Alfonso XI – bisneto de Alfonso X. Este monarca teria ocupado a coroa entre os anos de 1312 e 1350 e teria ordenado a escrita da Crônica para o preenchimento de lacunas na História. As crônicas medievais, de modo geral,

chegaram até aos dias de hoje, tudo se complica

historiografia

precisas sobre quem promoveu a escrita e em que

González

(2000) ao refletir e pensar o autor da

cujos testemunhos, mais ou menos antigos, quando não há um "explicit" com as indicações

Manuel

ocupam

grande

acerca

da

parte Idade

da Média

atualmente nas universidades. Como já

momento o fez, ou quando algum redactor não

citado

deixou vestígios, em qualquer ponto da obra em

diversos são os campos que se apropriam

causa, do momento ou das circunstâncias em que

na

introdução

deste

trabalho,

631


Luiz Augusto Oliveira Ribeiro

da crônica como fonte de estudos e

Bernardo

Vasconcelos

e

Sousa

elaboração de conhecimentos, dentre eles

(2007), ao estudar as crônicas medievais

a

portuguesas, levanta pontos importantes

História,

Letras,

Arte,

Educação

e

Filosofia.

que caracterizam esses documentos da

Entre los grandes géneros narrativos medievales el cronístico fue, quizás, el más extendido y el que gozo de mayor auge. Para la moderna

Média,

representam

que

em

uma

sua

história

maioria política

historiografia su particular interés no radica sólo

ressaltando os feitos e conquistas dos reis,

en los sucessos que se relatan, sino también en

além de exaltar a bondade e o poder do

la forma en que la narración se desarrolla, en la manera de reflejar el ambiente cultural en que se

monarca,

a

fim

de

garantir

certa

escribe, em las ideas políticas y religiosas que

legitimação dessa figura importante no

constituyen el trasfondo de la obra (TULIANI,

contexto medieval.

1994, p. 3).

Tuliani

(1994)

ressalta

a

multiplicidade que a crônica medieval tem assumido, para além dos registros dos feitos de “grandes homens”, ela representa toda uma sociedade, sua forma de ver e encarar a realidade, seus aspectos sociais, políticos, econômicos e religiosos, e é essa pluralidade de possibilidades que amplia os campos de estudos para quem se debruça sobre tais documentos. O mesmo autor nos diz ainda que “[...] las crónicas representan la expresión más alta de la influencia del poder político en el relato histórico a través de constantes como la exaltación de las figuras que guían el Estado y de la unidad política y moral de los pueblos dominantes.” (TULIANI, 1994, p. 3), sendo este o significado específico das

Idade

crônicas

Medieval.

no

caso

da

Espanha

Em pesquisas e levantamentos de artigos, percebemos que as crônicas têm sido utilizadas para a compreensão do mundo medieval como um todo, apesar de ser exaltada a figura do rei existem pesquisadores que se debruçam sobre este documento

a

fim

de

compreender

a

cavalaria medieval, as guerras, os conflitos e as conquistas, avaliando seus aspectos sócio-políticos. Para

além

de

conhecer

o

documento, “Antes de iniciar el análisis de la

Crónica,

hay

que

enfrentarse

necessariamente con la existência de todo un conjunto de mensajes simbólicas que son característicos de este tipo de obras y que hay que individualizar, interpretar y filtrar” (TULIANI, 1994, p. 6). É preciso um trabalho pormenorizado e cuidadoso, seja com

os

conceitos

chaves, gerais.

seja

com

Muitas

das

elementos

mais

discussões

abordadas em documentos

632


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

deste gênero na Idade Média trazem

no caso Espanhol, como nas crônicas

questões mais profundas e/ou uma simples

portuguesas. No entanto, existe todo um

descrição de alguns fatos que tomaram

cenário que oferece ao rei, esse foco

proporções diferenciadas.

nestes documentos, uma vez que os

A Crônica Medieval, assim como

serviços para a escrita destes documentos

qualquer documento histórico pressupõe

eram contratados pelo próprio rei (TULIANI,

atenção. Neste sentido,

1994).

[...] requer mais paciência, mais ponderação e a consciência de que pequenos passos podem significar grandes avanços no conhecimento. É

Acima

da

legitimação

entre

os

homens e sobre os homens, os reis

também necessário ter em conta que, perante um

medievais ainda eram considerados como

conjunto mais reduzido de informações directas e

enviados de Deus e desta maneira,

objectivas disponíveis, se torna imperioso alargar a

El reconocimiento de la posición de superioridad

base de consideração de cada texto ‒ os limites

del

linguísticos deixam de constituir qualquer barreira de

operações

lógico-dedutivas

súbditos.

que

pressupostos

e

criteriosamente

é

construída com

aplicada,

essa que

sobre

por

estes

quotidianamente (MIRANDA, 2009, p. 3).

Para além do mero discurso, por

ser

amado,

Reforzar

este

aspecto

ideológico

la

rebeldia

de

coaliciones

nobiliarias

(TULIANI, 1994, p. 7).

ferramenta, trabalhamos

debía

su reinado estuvo constantemente amenazado

acima referíamos. Como sabemos, a crítica textual está

que

interessaba particularmente a Alfonso X, ya que

permitem reconstituir elos perdidos do tipo dos que lachmanniana

implicaba

obedecido, reverenciado y temido por sus

‒ ao mesmo tempo que ganha maior peso o conjunto

rey

Mesmo que o rei não recebesse nenhum tipo de consagração esclesiástica, era

comum

na

Idade

Média

essa

vezes se faz necessário uma análise mais

aproximação à religião e, portanto, a

criteriosa acerca de uma crítica linguística e

justificação de atos e do poder por meio

um estudo pormenorizado de morfologia

destes

das palavras. Estes seriam estudos mais

elemento ideológico foi, sem dúvidas, um

aprofundados

dos mais utilizados pelos reis medievais

e

comprometidos

com

questões de interpretação a um nível

valores

foi

recorrente.

Esse

(NIETO SORIA, 2003).

superior de exigência e de questionamento

A Crônica Medieval se caracteriza

ao documento, a fim de responder a

enquanto importante fonte documental para

algumas problematizações propostas.

o historiador de Idade Média, dessa forma,

Evidencia-se nos documentos desta

muitos pesquisadores se debruçam sobre

natureza a figura de um rei, que por vezes,

as palavras escritas e guardadas a séculos.

tenta ser legitimado nas palavras dos

É

autores. Esta característica é comum tanto

pesquisador

justamente

esse

deve

ter

cuidado que

que

o

buscamos

633


Luiz Augusto Oliveira Ribeiro

ressaltar

em

nossos

resultados

e

além de ser aquilo que foi construído

discussões, o projeto evidencia o estudo de

justamente para a posteridade e, portanto,

fontes medievais, para o nosso caso,

reorganiza suas vivências para a forma

especificamente a Crônica de Alfonso X,

como gostariam de ser lembrados.

mas que nos permite a compreensão de

Inicialmente procuramos trabalhar

toda uma totalidade de pesquisas e de

com três conceitos que para nós nos

busca

pareceu fundamental: História, Tempo e

de

informações

por

aqueles

documentos de ordem política e social.

Rei.

Conclusões

Essa

abordagem

necessária,

A presente pesquisa visou conhecer

auxiliou

compreensão

do

no

rápida,

mas

processo

documento

em

de seu

e sistematizar a Crônica de Alfonso X, além

contexto, portanto, permitiu que os valores

de discutir pontos básicos de análise

atribuídos

documental. Desta maneira, buscamos

respeito e limites aos valores notoriamente

compreender o documento em questão em

encontrados

sua totalidade e assim, poder relacionar e

escreveu a crônica.

ao

documento

no

período

fossem em

que

de se

compreender como tem sido o estudo de

Outra questão discutida foi a forma

fontes desse tipo no campo da História e

de abordagem e do trabalho com o

ciências afins.

documento/fonte, sendo assim, o trabalho

Sabemos que, “os interesses que as

do historiador se faz muito além da simples

crônicas respondem são diversos, o que

leitura de palavras perdidas no tempo, é

eleva a importância dessa documentação

necessário

para a elucidação de modos de viver, de

compreenda as motivações da escrita

desejar ser visto, de pensar, de se

naquele período. Sabe-se o quão difícil

relacionar com a tradição, com o passado e

este trabalho se mostra, mas como nos diz

com o futuro” (GUIMARÃES, 2012, p. 74).

Marc Bloch (2002) em Apologia da História,

Sendo

assim,

a

crônica

é

a

expressão mais profunda dos valores e da

que

se

contextualize

e

“uma palavra, para resumir, domina e ilumina nossos estudos: "compreender".”

forma de pensar do homem medieval, para

Referências: CRÓNICA DE ALFONSO X. (Ed.). Manuel González Jiménez. Murcia: Real Academia Alfonso X el Sabio, 1998.

634


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

GONZÁLEZ JIMÉNEZ, M.. Una nueva edición de la Crónica de Alfonso X. 2000. Disponível em:

http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/cehm_0396-

9045_2000_num_23_1_918 Acessado em: 21/12/2012. GUIMARÃES, Marcella Lopes. Crônicas Ibéricas de Cavaleiros: Escrita, Cultura e Poder no

século

XV.

Revista

Signum,

vol.

14,

n.

1,

2013.

Disponível

em:

http://www.revistasignum.com/signum/index.php/revistasignumn11/article/view/97/94zAcessado em: 10/12/2013. GUIMARÃES, Marcela Lopes. Crônica de um gênero histórico.Revista Diálogos Mediterrânicos

Número

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Maio/2012,

pp.67-78.

Disponível

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http://dialogosmediterranicos.com.br/index.php/RevistaDM.../23/65 Acessado: 17/01/2013. LE GOFF, Jacques./ SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente

Medieval.Vol. I e II. Bauru, SP: Edusc, 2006. MIRANDA, José Carlos. Na Génese da Primeira Crónica Portuguesa.Medievalista. Nº6, Julho

2009.

Disponível

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Acessado em: 10/12/2013. NIETO SORIA, José Manuel. Tiempos y lugares de la « realeza sagrada » en la Castilla de

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Alfonso X el Sabio.Stud. Hist., Hª mediev., 12, 1994, pp.3-23. Disponível em: http://gredos.usal.es/jspui/bitstream/10366/69793/1/La_idea_de_Reconquista_en_un_manu scrito_.pdf Acessado: 01/01/2013.

635


A IMAGEM DE JÚLIO CÉSAR CONSTRUÍDA A PARTIR DAS OBRAS:

DE BELLO GALLICO E DE BELLUM CIVILE Natália de Medeiros Costa 1 Adriana Mocelim de Souza Lima (Orientadora) Resumo: À época em que César iniciou sua trajetória política, Roma era marcada por uma grave crise que tinha suas raízes no período expansionista e que teve grande influência nos eventos posteriores. César, ao tornar-se cônsul no ano de 59 a.C. conquistou o governo da Gália Transalpina, iniciando sua campanha militar na Gália. Suas campanhas deram origem a obra supostamente escrita por César intitulada De Bello Gallico. Com a usurpação do poder por parte de Pompeu no ano de 49 a.C., César da inicio à Guerra Civil quando atravessa o rio Rubicão, escrevendo, posteriormente, os relatos da guerra em sua obra Bellum Civille. O objetivo da presente pesquisa é analisar as duas obras acima citadas, destacando as principais características da personalidade de César, de modo a estabelecer as similaridades e diferenças entre as mesmas. Para tanto, primeiramente fora analisado o contexto histórico no qual se insere César, de modo a compreender o período em que este escreveu os livros. Depois fora realizada a analise das obras, destacando as virtudes que se sobressaíam, de modo a compreender os objetivos que tinha César ao escrever suas duas obras. A virtude que mais destaque possui nos textos são as estratégias militares. César tinha por objetivo ao destacar suas estratégias exaltar sua posição como general. A diferença mais marcante entre as duas obras se encontra no contexto histórico no qual se inserem as duas, sendo que na primeira César ainda precisava afirmar sua figura como general, fato consolidado já na escrita da segunda obra. Palavras-chave: Júlio César; De Bello Gallico; Bello Civille.

1

Pontifícia Universidade Católica do Paraná

636


Natália de Medeiros Costa

O CONTEXTO HISTÓRICO

tomando, em breve período de tempo, o

Júlio César, hábil general romano,

controle de quase todo mediterrâneo, que

conquistador da Gália, vencedor da Guerra

ficou conhecido pelos romanos, segundo

Civil ocorrida em Roma durante os anos de

Grant, como Mare Nostrum (GRANT, 1987,

49 e 48 a.C., teve seus feitos relatados em

p.136). Cartago, antiga colônia de Tiro,

dois livros supostamente por ele escritos, o

com

De Bello Gallico e Bellum Civille, bem como

anteriormente

travado

em outras obras de extrema importância

territorial,

à

para compreender tanto a trajetória de

romana, uma grande potência marítima e

César como o período do fim da República

comercial que expandia seus territórios

Romana. O historiador grego Plutarco

para próximo das fronteiras romanas. A

relata os feitos de César em seu texto

consequência disso fora o choque entre as

intitulado César e o também historiador

duas potências, que ficou conhecida como

Caio Suetônio relata a vida de Júlio César

Guerras Púnicas.

quem

os

era,

romanos época

haviam

uma

guerra

expansionista

em seu texto O Divino Júlio. A presente

Para Roma, a Segunda Guerra

pesquisa tem por objetivo analisar as duas

Púnica fora de fundamental importância

obras de César, De Bello Gallico e Bellum

pois marcara o domínio total de Roma na

Civille, extraindo destas algumas virtudes

Itália após a vitória sobre os povos itálicos.

que se destacam ao longo do texto, de

Nas

modo a obter as similaridades e diferenças

pertenciam a Cartago, Roma iniciou a

entre estes. Para isso, primeiramente fez-

construção de seu império na bacia do

se necessário compreender o período

Mediterrâneo, fundando suas primeiras

histórico

colônias:

no

podendo,

qual

se

encaixa

posteriormente,

César,

entender

os

províncias

Sicília,

anteriormente

Sardenha,

Espanha

Citerior e Espanha Ulterior (GIORDANI,

objetivos que César tinha ao escrever as

1985,

duas obras.

consequências

Roma passa, após praticamente um

que

p.45).

conquistas

para

Inúmeras desse Roma.

foram

as

período

de

Houve

a

século de guerras contra Cartago, no

penetração da cultura helenística, que se

evento que ficou conhecido como Guerras

fez presente tanto na literatura romana,

Púnicas, a um período expansionista,

com a transferência de prisioneiros e reféns

637


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

gregos, como fora o caso de Políbio,

de desocupados, numa cidade que não

quanto na arquitetura, no direito romano e

conseguiria criar empregos para tanta

na religião (GIORDANI, 1985, p. 50;

gente (GIORDANI, 1985, p.50). No intuito de diminuir a grande

CABANES, 2009, p.199). Após o período expansionista, Roma

desigualdade entre patrícios e plebeus,

experimentara um acumulo de riquezas

tem-se

nunca antes visto em sua história, mas

Reforma Agrária desde o ano de 232 a.C.,

esse acumulo não é dividido entre todos,

liderada

pelo contrário, aumenta-se abismo entre as

Flamínio (EYLER, 2014, p.173). Tibério

classes mais altas da sociedade e as mais

Graco elegeu-se tribuno no ano de 133

baixas. Durante as batalhas de conquista, a

a.C. e, assumindo esse cargo, pode

maior parcela das legiões romanas era

executar uma medida deveras radical, que,

recrutada entre os camponeses que, após

segundo Grant (1984), delimitava em 120

voltarem à sua terra natal, viam-se em

hectares a posse das terras públicas

situação bastante difícil, tendo que, para

italianas, ager publicus, que haviam sido

continuar a cultivar suas terras, pedir

conquistadas depois da Segunda Guerra

empréstimos. Se não conseguissem paga-

Púnica, distribuindo o excedente para os

los, teriam suas terras confiscadas (ALBA,

mais pobres (GRANT, 1984, p.157). A

1964, p.97). A situação ainda era agravada

tentativa de Tibério causou revolta dentro

pelo

do

fato

de

terem

os

mais

ricos

a

tentativa

pelo

Senado

de

tribuno

que,

instalação

da

plebe

da Caio

apontando

para

distribuídos entre si o ager publicus, isto é,

ilegalidades nas medidas adotadas por

as terras italianas conquistadas por Roma.

Tibério, acusou-o de tentar tornar-se rei e,

Esses homens ricos passaram a possuir

provocando

grandes latifúndios onde utilizavam mão de

Tibério e lançaram seu corpo ao Tibre

obra escrava, destruindo qualquer chance

(ALBA, 1964, p.106). Seu irmão, Caio

que tinham os pequenos produtores em

Graco, elegeu-se tribuno no ano de 123

competir com os grandes latifundiários. A

a.C., tendo um objetivo comum com

consequência disso, para Giordani (1985),

Tibério:

fora a emigração desses camponeses para

Agrária, como havia tentado Tibério dez

Roma, onde aumentavam a massa urbana

anos antes. Para isso, entendia Caio que

uma

estabelecer

revolta,

em

executaram

Roma

a

638

Lei


Natália de Medeiros Costa

seria necessário enfraquecer o Senado,

Segundo Alba, após o período dos

que, uma vez forte, se oporia firmemente à

reformadores, Roma vivenciara o período

Lei Agrária. Caio então estabeleceu a Lei

dos generais, que, apoiando-se no exército,

Judiciária, que dava aos cavaleiros a

tentaram usurpar o poder. O primeiro a

possibilidade de ter espaço nos tribunais,

realizar tal tentativa fora Caio Mário, que,

no papel de juízes, de modo a indispor a

ao tornar-se cônsul no ano de 107 a.C.

nobreza com a ordem equestre. Para

promoveu

indispor o povo com o Senado, Caio

exército

conseguiu a votação da Lei Frumentária,

organização e armamento aos legionários,

que estabelecia o preço do tribo bem

bem como aceitando, a partir de então, a

abaixo do que era comercializado antes.

admissão

de

Dessa

exército,

visto

forma,

os

pobres

não

seriam

uma

profunda

romano,

reforma

fornecendo

voluntários que,

no nova

pobres

anteriormente,

no a

obrigados a tornarem-se clientes dos mais

admissão dependia da situação econômica

ricos (ALBA, 1964, p.107)

do cidadão. Essa reforma realizada por

Depois de estabelecer essas duas

Mário teve por consequência tanto a

leis, Caio, reeleito tribuno no ano seguinte,

profissionalização do soldado como a

pôs em execução a Lei Agrária, criando

fidelização deste não mais à Roma, mas ao

colônias nas cidades destruídas pelas

seu

guerras de conquista, como Cartago e

reformas de Mário tem relação direta com a

Corinto. Após a tentativa de conceder aos

posterior Guerra Civil e com a queda da

italianos a cidadania romana, o Senado

República Romana (ALBA, 1964, p.107-

incitou as massas contra Caio Graco,

108; GIORDANI, 1985, p.53).

alegando que os novos cidadãos tomariam

general.

Lucio

Segundo

Cornélio

Giordani,

Sila

as

(também

para si os melhores lugares. Este teve um

conhecido como Sula), fora um hábil

fim similar ao seu irmão, Tibério Graco,

general

sendo morto por um de seus escravos no

pertencente a uma família aristocrática

ano de 121 a.C., durante uma revolta

decadente. Este fora enviado à Ásia Menor

contra suas medidas adotadas (ALBA,

afim de combater o rei Mitrídates IV, que

1964,

havia se rebelado contra Roma. Uma vez

p.107;

GIORDANI,

GRANT, 1984, p.163).

1985,

p.52;

e

político

deveras

ambicioso

no Oriente, Sila fora destituído do comando

639


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

depois de uma manobra politica de seus

por um golpe de sorte, o governo da Gália

adversários e fora substituído por Mário.

Transalpina ou Narbonense (situada ao sul

Inconformado, Sila marchou em direção à

da França). Entre os anos de 58 a 51 a.C.,

Roma, expulsando Mário e seus partidários

César empenhou-se em batalhas na Gália,

depois de uma batalha de rua (GIORDANI,

pacificando-a no ano de 51 a.C. (GRANT,

1985, p.54). Mário ainda tentara retornar ao

1984, p.191). Os eventos ocorridos na

poder no ano de 86 a.C., mas morrera no

Guerra da Gália estão descritos no texto de

mesmo ano em que se tornou cônsul pela

Júlio César, o De Bello Gallico, texto

sétima vez. Sila se fez ditador no ano de 83

utilizado como base para a presente

a.C., mas, por razões ainda discutidas

pesquisa.

pelos historiadores, retirou-se da política no

Quando César se tornou cônsul,

ano de 79 a.C., depois de reestabelecer o

recebeu, por consequência, o controle da

poder

a

Gália Citerior e da Ilíria. Quando da morte

destituição do poder dos Tribunos da

do governador da Gália Transalpina, César

Plebe, que, segundo Grant, haviam no

conquistou o direito de governa-la, o que,

passado desafiado o controle do Senado.

para ele, fora um grande golpe de sorte,

As bases estavam estabelecidas para o

pois considerava César ser a Gália um

primeiro Triunvirato, que contaria com

excelente ponto de partida para suas

César, Pompeu e Crasso, bem como para

conquistas militares (GRANT, 1987, p.193).

a posterior Guerra Civil (ALBA, 1964,

Após terminado seu mandato como cônsul,

p.108-109;

César ruma à Gália, onde, segundo seus

senatorial

usando

GIORDANI,

como

1985,

via

p.54-55;

GRANT, 1984, p.174-175). A trajetória política de Júlio César se inicia dentro desse contexto de crise na República Romana. Antes dele, generais à exemplo de Sila e Mário, como dito anteriormente, já haviam tomado o poder para si, mas nenhum o fez de forma mais brilhante que César. Tornou-se cônsul no ano de 59 a.C., mesmo ano que recebe,

relatos detalhados no livro De Bello Gallico, encontra um território dividido em três principais povos [...]A Gália está toda dividida em três partes, das quais uma é habitada pelos belgas, a outra pelos aquitanios, a terceira, pelos que em sua língua se chamam celtas, na nossa gauleses. Diferem todos esses povos uns dos outros, na língua, nos costumes, e nas lei [...] (CÉSAR, livro I, 1941, p.36)

640


Natália de Medeiros Costa

Na Gália César inicia sua jornada

fortaleza de Alésia, onde César o sitiara.

como general habilidoso capaz de, entre os

César

batalha

anos de 58 a 51 a.C., conquistar e pacificar

encarregadas

todo território da Gália. O inicio dessa

durante 4 dias, e, ao final, sai vitorioso. A

guerra se dá quando os helvécios, povo

última revolta gaulesa estava encerrada

bastante belicoso, inicia sua emigração

(GRANT,

com intuito de conquistar toda a região pois

enfrentaria problemas maiores. Pompeu

acreditavam eles ser o povo mais forte e

tomara Roma para si e pretendia subjugar

determinado para faze-lo. Sua emigração

César. A Guerra Civil tinha seu início.

de

1987,

contra

as

socorrer

Vercingetrix

p.199).

Agora

forças

César

poderia se iniciar, segundo César no texto

As brilhantes campanhas de César

De Bello Gallico, por dois caminhos: o

na Gália revelaram o seu talento militar,

primeiro,

dos

mas, para o Senado, segundo aponta Perry

sequanos, muito estreito e de difícil acesso,

(2002), isso foi motivo de suspeitas e

e o segundo pela província romana da

inquietações, pois estes temiam que César

Gália Transalpina. Escolhido os helvécios

utilizasse suas habilidades estratégicas

passar

César

para assumir o controle do Estado romano.

deixaria

Em 53 a.C. Crasso morre em batalha,

atravessar, visto que não era de costume

deixando o Triunvirato com apenas dois

romano permitir que qualquer povo adentre

integrantes, César e Pompeu. Este último,

suas fronteiras (CÉSAR, livro I, 1941, p.38-

temeroso do aumento da popularidade de

40). Dá-se, então inicio ao conflito, mas

César devido às conquistas na Gália e

César, provando ser excelente general,

ávido por ganhar mais poder para si,

consegue anular as forças dos helvécios

segundo analisa Perry (2002), alia-se ao

sem haver muitas baixas para o seu

Senado que, tão logo pôde, convocou

exercito. Após longo período de conflitos na

César a voltar à Roma e colocar-se sobre

Gália, César enfrenta a última revolta dos

comando de Pompeu, que tornara-se, no

Gauleses comandados por Vercingetórix,

ano de 52, cônsul único. César entendeu

da tribo dos Arvernos (Gália Central).

de pronto que, sem tropas, estaria indefeso

Vercingetórix, depois

de auferir grave

a qualquer punição aplicada pelo Senado.

derrota ao exército de César, protege-se na

Decide, então, no ano de 49 a.C., transpor

passando

pela

comunica-lhes

por

província que

território

romana,

não

os

641


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

a fronteira entre a Gália Cisalpina e a Itália,

Pompeu, César esmaga seu exército,

o

fazendo Aenobardo render-se, poupando-o,

Rubicão,

Cabannes

dando

inicio,

(2009),

à

segundo

Guerra

Civil

(CABANNES, 2009, p.201). A marcha pelo

posteriormente,

e

deixando-o

livre

(GRANT, 1987, p.204-206).

Rubicão é descrita por Plutarco

Na Batalha de Farsália, ocorrida em

[...] Enfim, como um impulso do coração, como se abandonasse a reflexão para se lançar no futuro, pronunciou a frase que é prelúdio comum

agosto de 48 a.C., César demonstrara, segundo Grant (1987), todo seu gênio

para aqueles que mergulham em contingências

militar capaz de derrotar o grande general

difíceis e ousada: ‘’Que o dado seja lançado’’, e

Pompeu. A batalha, ocorrida na planície de

apressou-se

para

a

travessia

do

rio

[...]

(PLUTARCO, 2007, p.201).

Os detalhes da Guerra Civil que acometeu Roma durante os anos de 49 e 48 a.C., quando tem-se o fim da guerra quando da derrota de Pompeu na batalha de Farsália, na Grécia, segundo consta nos livros de Giordani (1985) e Grant (1987), são relatados de forma minuciosa no texto supostamente escrito por César, Bellum

Civille. Depois de atravessar o Rubicão, César avançou rapidamente para o centro da Itália, fazendo com que seus inimigos, na maior parte os Senadores mais velhos, segundo Grant (1987), fugissem de Roma com tanta pressa que deixaram para trás suas reservas em tesouro. Uma vez na Itália, César deu aos seus inimigos uma demonstração clemência,

surpreendente coisa

que

não

de havia

demonstrado na luta contra os gauleses. Em batalha contra Aenobardo, aliado de

Tessália fora o placo do maior confronto jamais travado entre romanos, saindo César vencedor, tendo Pompeu fugido para o

Egito,

onde

fora

traiçoeiramente

assassinado pelos políticos egípcios, que ficaram do lado do vencedor. Os aliados de Pompeu foram derrotados Thapsus, África e em Munda,

na

na Espanha. César

consolida, assim, seu poder em Roma, porém, esse poder fora bastante curto, tendo César sido assassinado por um grupo de conjurados republicanos no dia 15 de março de 44 a.C. (GIORDANI, 1985, p.59; GRANT, 1987, p.206). ANÁLISE DOS TEXTOS: DE BELLO GALLICO E BELLUM CIVILLE Como dito anteriormente, durante a leitura e fichamento das duas obras, algumas virtudes se destacaram ao longo do texto. As tabelas abaixo apresentam

642


Natália de Medeiros Costa

essas virtudes, bem como as páginas da fontes

primária

nas

quais

foram

No primeiro texto analisado, livro primeiro

do

Bellum

Civille,

as

encontradas .

características que a mais se sobressaíram

Tabela 1. Virtudes encontradas no livro primeiro do

foram fidelidade e estratégias militares. A

Bellum Civille e as respectivas páginas

virtude da fidelidade, no momento da

VIRTUDE

PÁGINA

Honra

49, 51, 53, 79, 133.

Injustiça

43, 49, 51, 53, 79, 131, 133.

Dignidade

53, 55, 66, 67, 79.

Fidelidade

61, 65, 67, 75, 87, 93, 99, 121, 123, 135.

Piedade

66, 67, 121, 119,

Guerra Civil era de suma importância pois, desde as reformas executadas por Caio Mário no exército romano, o soldado oferecia maior lealdade ao general que à própria Roma. Ao longo do texto, César nos dá alguns exemplos de soldados que mudaram de lado no decorrer da guerra, como se pode notar no trecho [...] Estimulados pela troca de ideias, pedem ao

131. Estratégias Militares

65,

general garantia de vida para Petrio e Afrânio,

70,

77,

para que não venham a dar a impressão de ter

85,

concebido uma ação infame ou ter traído seus

87,89, 91, 93, 95,

camaradas. Assegurado o compromisso, eles

101 até 135.

garantem que passarão imediatamente seus estandartes para o lado de César [...] (CÉSA,

In: CÉSAR. Caio Júlio. Bellum Civile. Tradução de Antônio

livro I, 1999, p.121)

da Silveira Mendonça. São Paulo: Estação Liberdade,

Nota-se que, para se vencer a

1999. Tabela 2. Virtudes encontradas no livro primeiro do De

Bello Gallico e as respectivas páginas

VIRTUDE

PÁGINA

Piedade

47, 48, 52, 53.

Ofensa

43, 44, 49.

Vingança

43 e 44.

Estratégias Militares

40, 42, 43, 44, 48, 49, 50, 51, 57 e 58.

General

59 e 60.

In: CÉSAR. Caio Júlio. De Bello Gallico. Tradução de

guerra civil, César deveria ter legiões de soldados fiéis a ele, que fossem capazes de confiar nele nos momentos mais difíceis. Para aumentar essa confiança, César dá demonstrações de aguçadas estratégias militares, sua virtude mais destacada, bem como de grande intelecto capaz de retirar seus

exércitos

de

uma

situação

de

desvantagem. Isso pode ser notado na seguinte passagem, que faz menção à

Francisco Sotero dos Reis. Rio de Janeiro: Ediouro, SD.

643


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

incrível escapada do exército de César que

o fornecimento de trigo que deveria ser

se encontrava, à ocasião, ilhado no meio

concedido ao exército de César. Quando

do Sícoris e do Cinga, rios que haviam

este sabe da confabulação, repreende

inundado devido ao excesso de chuva

Dunorix, mas, pela lealdade de Diviciaco,

[...] Estimulado por esse entusiasmo e essas palavras, César, bem que receasse expor o exércitos a uma correnteza tão forte, entendeu, contudo, que devia tentar e arriscar. Ordena então que se descartem de todas as centúrias os mais fracos, cuja coragem e vigor físico não pareciam ter condições de aguentar. Deixa-os com uma legião para guarda do acampamento; retira de lá as demais legiões, levemente equipadas, e colocando um grande número de animais rio acima e rio abaixo, passa o exército.

não o condena [...] Manda chamar a Dunorix, repreende-o em presença do irmão, enumerando os agravos que de seu procedimento tinham ele César e a cidade, admoesta-o a evitar toda a suspeita para o futuro, e acrescentando que por amor do irmão, Diviciaco, lhe perdoava o passado, põelhe vigas para saber o que faz e com quem fala [...] (CÉSAR, livro I, 1941, p.48).

As estratégias militares aplicadas

A violência das águas arranca de alguns

por César durante as batalhas na Gália,

soldados as arma; são apanhados e recolhidos

presentes em maior frequência ao longo do

pela cavalaria, no entanto, sem nenhuma baixa. Com o exército são e salvo já do outro lado do rio, César põe a tropa em formação e passa a conduzi-la em três linhas [...]

(CÉSAR,

texto, como pode ser visto na tabela 2, tem seu ápice no seguinte trecho [...] Tendo avançado caminho de três dias,

livro I, 1999, p.111).

recebe aviso de que marchava Ariovisto com

No segundo texto analisado, o livro

todas as tropas a ocupar Vesonção, a maior

primeiro

do

De

Bello Gallico, César

apresenta como características principais a piedade para com os inimigos bem como as estratégias militares, que são marcantes ao longo do texto. A piedade pode ser vista em algumas partes do texto, mas fica bastante clara quando César não pune Dunorix, irmão de Diviciaco, aliado de César e leal à Roma. Dunorix havia se reunido à alguns nobres gauleses para posicionar-se contra a presença romana na

cidade dos sequanos, e havia ganho três jornadas além de suas fronteiras. Entendia César dever a todo custo prevenir tal ocupação: porque havia nesta cidade suma abundâmcia de tudo que é mister para a guerra, e era ela tão fortificada por sua situação, que oferecia a maior possibilidade de fazer prolongar a campanha, porque o rio Dubis, torneando-a como à volta de compasso, a cinge quase toda, e o espaço por ele não compreendido, de cerca de seiscentos pés, é fechado por um alto monte cujas raízes são de um lado, beijadas pelas margens do rio. Fazendo do monte cidadela, prende-o a cidade uma muralha. Para aqui se dirige César a grandes marchas noite e dia, ocupa a praça e

Gália. Para isso, esse grupo havia cortado

644


Natália de Medeiros Costa

guarnece de tropas [...] (CÉSAR, livro I, 1941, p.57-58).

As semelhanças dos dois textos, após a minuciosa analise, extrapolam apenas o estilo literário empregado em ambas,

o

Commentarii, estilo literário

marcado, segundo o autor Paulo Roberto da Silva, não por uma construção literária propriamente dita, mas por notas que servirão, futuramente, para redigir uma história

literária

(SILVA,

2006,

p.22).

Encontra-se semelhanças nos objetivos empregados por César para destacar determinadas virtudes. A fidelidade, por exemplo, é empregada de formas similares e correspondem a um mesmo contexto, de fidelidade dos soldados em relação ao seu general bem como de César para com Roma. Pode-se encontrar, nos dois textos, passagens que ressaltam esse tipo de sentimento.

As

estratégias

militares

também são apresentadas de maneiras similares, exaltando os feitos do general César bem como sua inteligência para criar estratagemas para subjugar o inimigo. Em se tratando de diferenças, a mais marcante dentre elas diz respeito ao contexto histórico no qual elas se inserem, fato que modifica os objetivos para a escrita do texto. Enquanto escrevia o De

Bello Gallico, César ainda

tinha

um

oponente à sua altura, Pompeu, com quem, durante o período de 59 a 52, dividiu o poder

no

que

ficou

conhecido

como

Triunvirato (juntamente com Crasso). Até o momento

César

não

possuía

feitos

militares que se sobressaíssem em relação à Pompeu que, segundo André Alba, já havia triunfado na Hispania contra os partidários

de

Caio

Mário,

havia

contribuído na Itália para derrotar a revolta de escravos liderados por Espártaco e já havia caçado piratas no Mediterrâneo (ALBA, 1964, p.116). Para tornar público seus feitos militares e promover sua imagem como general, César divulga seu texto De Bello Gallico, cuja intenção, segundo

Antônio

Silveira

Mendonça,

responsável pela tradução do Bellum Civille para o português, era a de ‘’lograr, mesmo a contragosto do Senado, solenidades públicas de agradecimento aos deuses, para enciumar e obscurecer Pompeu’’ (MENDONÇA, 1999, p.28). Já o texto escrito posteriormente,

Bellum

Civille,

está

inserido

em

um

contexto histórico bastante diferente do primeiro. César já havia vencido a Pompeu na batalha de Farsália, visto Pompeu morrer após fugir para o Egito e já se tornara senhor de Roma. O problema

645


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

residia no fato de a antiga aristocracia que

caso de Sila. César nessa obra, portanto,

anteriormente

defendia-se

apoiava

Pompeu

lhe

causaria dificuldades nas províncias onde

justificando

seus

atos

(MENDONÇA, 1999, 27-29).

este fora soberano. Nesse cenário ainda

Após a analise, tornou-se mais claro

não totalmente conquistado escreve César

que

sua segunda obra, Bellum Civille, afim de

propagandas

justificar sua revolta armada e distanciar-se

criadas, destacando as virtudes de César

de

em detrimento dos erros e defeitos de seus

outros

generais

que

haviam

anteriormente tomado o poder, como era o

se

tratavam

as

duas

militares

obras

de

minuciosamente

adversários, mais notadamente Pompeu.

Referências: Documentação: CÉSAR, Caio Júlio. A Guerra Civil: Introdução, tradução e notas Antonio da Silveria Mendonça. São Paulo: Estação da Liberdade, 1999. CÉSAR. Caio Júlio. Comentários De Bello Gallico, tradução Francisco Sotero dos Reis. Rio de janeiro: Ediouro, SD. Bibliografia: ALBA, Adré. História Universal de Roma. São Paulo: Mestre Jou, 1964. 316p. CABANNES, Pierre. Introdução à História da Antiguidade. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2009. 255p. EYLER, Flávia Maria Schlee. História Antiga: Grécia e Roma: A Formação do Ocidente. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2014. 230 p. GRANT, Michael. História de Roma. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987. 447p. GIORDANI, Mário Curtis. História de Roma. 16 ed. Petrópolis: Vozes LTDA, 1968. MATYSZAK, Philip. Os Inimigos de Roma: De Aníbal a Átila, o Huno. Barueri, SP: Manoli, 2013. 256p. PERRY, Marvin. Civilização Ocidental: uma história concisa. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

646


Natália de Medeiros Costa

SILVA, Paulo Roberto Souza. A Figura de César, Autor e Personagem, Nos Cmmentarii De

Bello Gallico. 2006. 176 f. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós Graduação em Letras Clássicas), Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. SUETÔNIO E PLUTARCO. Vidas de César. São Paulo: Estação da Liberdade, 2007

647


RELIGIOSIDADE NO SÉCULO XV: O CULTO MARIANO A PARTIR DE OBRAS DE JAN VAN EYCK Rafael Fernandes Speglic1 Angelita Marques Visalli (Orientadora) Resumo: Este trabalho visa analisar aspectos da cultura religiosa medieval a partir de quatro obras: A Madona do Chanceler Rolin (1435, também conhecida como “A Oração Pintada”, atualmente no museu do Louvre, Paris), A Madona de Joris van der Paele (1436, situada no Museu Groeninge, em Bruges), O trítico da Virgem e do Menino (1437, Museu de Dresden), e o Retábulo de Gand (fechado, presente na Catedral de São Bavo, em Gand). As obras citadas, todas de autoria do pintor flamengo Jan Van Eyck (1390-1441), tem em comum, dois marcantes aspectos: a presença e representação dos doadores das obras, e também a presença da Virgem Maria, figura de elevada expressão e importância no Medievo. É atribuída a Van Eyck grande importância na expressão da religiosidade medieval devido à temática de suas obras, e igual importância ao seu lugar de destaque no campo da arte, tendo em vista sua precisa técnica e a invenção da tinta à óleo. Assim, um dos grandes propulsores do Renascimento Europeu. Assim, pretendemos compreender variados aspectos do momento em estudo, tais como: a devoção Mariana, o crescimento da devoção privada e de ordens mendicantes. Ademais, seu lugar na historiografia é de grande relevância para suportar o crescente, mas ainda escasso quadro de estudos apoiados em documentação imagética. Essa importância é catalisada quando nos remetemos ao Medievo, que além de ter na cultura visual sua expressão mais fundamental, possui no íntimo de sua sociedade, e quase integralmente, iletrados. Palavras-chave: Van Eyck; Devoção Mariana; Religiosidade Medieval.

1

Universidade Estadual de Londrina.

648


Rafael Fernandes Speglic O estudo sobre a devoção a Maria

O seguinte trabalho - a partir da

através da representação iconográfica vem

análise de quatro obras especificamente

ao

da

selecionadas do pintor flamengo Jan Van

historiografia atual que tenta preencher as

Eyck- vem tentar compreender o fenômeno

lacunas

da

encontro

de

uma

dentro

tendência

do

tema,

em

devoção

fenômeno dentro do processo ascensional

Nova História já deixou muito clara a

de devoção religiosa privada, surgido a

importância de se dinamizar as fontes

partir

históricas. Ginzburg nos lembra de que “já

importante

LucienFebvre convidava ao exame de

paralela do surto da devoção Mariana e

ervas, formas dos campos, eclipses da lua:

dos movimentos ascéticos.

p.

25).Esta

obstante,requer

tendência,

alguns

XII

no

ainda

ressaltar

este

Medievo. a

É

natureza

As quatro obrasselecionadas para

não

este estudo são: o Retábulo de Gand

cuidados

(Fechado - 1432), a Madona de Joris Van

metodológicos.

der Paele (1436), a Madona do Chanceler

Segundo Jean-Claude Schmitt o historiador

século

inserir

em

novas pesquisas, ideias e perspectivas. A

(1989,

além,

período

questão,

do

mais

no

aproveitamentodo vasto campo aberto para

por que não, então, também as pinturas...?”

e

Mariana

esboçar

Menino (1437). A partir da análise destas

problemáticas, mantendo em mente que a

obras – documentos históricos dentro da

análise da imagem deve sempre considerar

história cultural e do forte crescimento do

a relação dinâmica com a sociedade que a

movimento

produziu. A análise da obra, de sua forma e

procuraremos compreender os movimentos

de sua estrutura é indissociável do estudo

culturais

de suas funções. (2007, p.27, 42)

interligados.

As

deve

interrogar

imagens

e

Rolin (1435) e o Tríptico da Virgem e

estudo

presentes

imagético

nestes

-

contextos

tiveram

A escolha se explica por dois

especial destaque no conjunto da produção

principais motivos. Após várias leituras

de imagens desde o século XII até os

acerca

séculos

as

principalmente a partir da obra de Jaroslav

tema

Pelikan, “Maria através dos séculos: seu

significativamente,

papel na história da cultura.” (2000) tornou-

contribuindo assim na compreensão da

se claro que algum tipo de recorte mais

expressão devocionista no período.

específico

finais

representações aumentaram

do

marianas

de

medievo, acerca

onde

do

da

representação

acerca

da

mariana,

representação

Mariana seria necessário, devido à riqueza

649


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

e variedade do tema. Desta forma, escolhi

contexto em que a imagem se insere,

as imagens da Virgem entronizada com o

investigá-la e destrinchá-la será sempre

menino Jesus. Mas devo agora acrescentar

uma

o surgimento de um segundo motivo.Foi

pessoais.

atividade

intrínseca

de

escolhas

observado que, nas imagens selecionadas

É necessário encerrar a ideia de que

(pelo menos em três das quatro), um

a imagem medieval é uma mera “Bíblia dos

aspecto em comum ligava as três Virgens

Iletrados”.

entronizadas: a presença dos doadores na

populacional do medievo era composta por

própria imagem. Desta forma, surgiu a ideia

iletrados, e consequentemente, usava-se a

de

em

imagem religiosa para representar aquilo

conjunto com o surgimento da devoção

que os fiéis não poderiam ler nas Escrituras

Privada. Além disso, a ideia de se trabalhar

Sagradas. Mas o papel da imagem para o

com a possível clientela é de suma

medievoé muito mais do que representar.

trabalhar

a

devoção

Mariana

É

claro

que

a

maioria

importância para se tentar conhecer o lugar

A imagem medieval comumente traz

sociocultural desta imagem, como nos

consigo a intenção de suscitar algo,

mostrou Ginzburg ao analisar a possível

comover o seu observador, para que este

clientela que haveria encomendado o

possa

Batismo de Cristo, pintado por Piero della

emocionalmente

Francesca.

salvar-se. Ela não deve convencer o fiel de

elevar-se

até

Deus,

daquele

participar

momentume

Gostaria ainda de ressaltar que

que é o próprio Deus, mas sim de que

durante todo o processo de ‘devir’ deste

Deus habita esta imagem, de que a força

estudo, procurei basear minhas decisões e

sobrenatural está presente naquele local ou

escolhas

objeto. A imagem tem o poder de permitira

de

análise

dentro

de

duas

indagações propostas por Baxandall: Até onde podemos penetrar na estrutura das intenções de pintores que viveram em culturas ou períodos históricos distantes do nosso [...]

salvação, a remissão dos pecados;ela se usa

dos

objetos

e

dos

lugares,

e

hibridizando-se a estes,ornamenta o mero

saber se conseguiremos provar ou validar em

objeto, trazendo à cena o sagrado. Este

algum nível nossas explicações (2006, p. 157).

objeto proporciona o fazer dos usos, ritos e

É ainda de Baxandall a ideia de que “não temos conhecedores com autoridade especial” (2006, p. 195-196). É interessante explicar então, que mesmo respeitando diferenças de conhecimento acerca do

manipulações (BASCHET, 1996, p. 3). E este proporcionar é muito importante para o medievo, uma vez que seria somente a partir dos ritos, que o cristão medieval entraria

em

contato

com

o

mundo

650


Rafael Fernandes Speglic sobrenatural, devido àsua incapacidade de

Raros são os momentos que realmente

pensar o abstrato. (VAUCHEZ, 1995, p.

paramos e olhamos para uma imagem –

160).

momento que nos despimos de todo o A

própria

palavra

“imagem”

ao

resto e permitimos que ela penetre no

mesmo tempo em que se hibridiza, também

nosso íntimo, nos elevando a Deus, à

se desvincula do objeto. Hibridiza na

fruição ou mesmo ao nosso interior.

proposta de ‘imagem-objeto’ de Baschet

É

desta

forma

que

devemos

(1996), e desvincula no sentido de não se

entender a relação do homem medieval

prender a materialidade da própria coisa e

com

de negligenciar a dimensão ornamental das

presente, porém fisicamente escasso e que

obras.

na oportunidade, deve-se entregar a ela, a

Ela

também

não

adquire

a

propriedade imóvel do objeto, mas também interessante

imagem.

Como

algo

sempre

Deus e a salvação de sua alma.

é corpo vivo. (Id, p. 5-6). É

a

Cronologicamente falando, é a partir uma

do século XI e até o século XV, que vemos

inversão perceptiva acerca da imagem,

um período de grande florescimento na

quando se põe lado a lado o medievo e os

utilização das imagens, em divergência aos

dias atuais. No medievo, a imagem estava

séculos anteriores, em que o ‘grau de

presente em todas as dimensões da

iconicidade’ foi inferior (BASCHET, 1996,

realidade, de maneira simbólica. Contudo,

p.7). Este fato confirma a ideia de que a

quantitativamente falando, esse universo

Igreja deixara então de temer a idolatria

era muito mais reduzido do que podemos

herética.

imaginar. (Id, p. 15). Atualmente, vivemos

período, mais especificamente no século

em uma era globalizada, com uma mídia

XIII, consolidam-se no seio da sociedade

instantânea e uma publicidade imagética

medieval, as características concernentes à

abusiva. Ou seja, a imagem está presente

cristandade latina dos séculos posteriores.

no

É a “religião das imagens.” (SCHMITT,

nosso

pensar

cotidiano,

de

em

forma

abundantemente quantitativa. Entretanto,

acostumamos com sua presença. Ficamos entorpecidos, sem nos atentar a seu poder de suscitar algo mais. Ela perde desta forma, considerável importância qualitativa.

disso,

neste

mesmo

2007, p. 86).

passa despercebida por nós, como um borrão, tal é o ponto em que nos

Além

Ainda segundo Baschet (2006, p. 485), Nos séculos XII e XIII, a teologia ocidental da imagem valoriza ainda mais o papel espiritual das

imagens,

transitus,

desenvolvendo

processo

pelo

qual

a

noção

de

‘através

da

semelhança das coisas visíveis, somos elevados

651


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo até a contemplação das coisas invisíveis’ [...] o culto não é prestado então à própria imagem, como os idólatras são acusados de fazer, mas à figura representada pela imagem.

De

fato,

esta

consolidação

da

salvar, onde

como uma chama, cortando os laços que o unem à carne e ao pecado. Uma vez purificada a memória, a alma pode apoiar-se nas palavras e nas imagens do texto para tentar elevar-se até o seu criador. (VAUCHEZ, 1995, p. 173)

com o Superior e buscar diretamente sua salvação. Para Visalli, o século XII “é o

mais social do que propriamente cultural. André Vauchez nos lembra de que neste período a sociedade Medieval passava a se distanciar de um período violento e de coações

exteriores,

impregnado

de

violência. Foi neste contexto que “um número crescente de clérigos e de leigos adquiriram esse mínimo de tempo e de distanciamento em relação ao instinto, que torna possível o recolhimento e a reflexão”. (1995, p. 169). A busca da salvação passa a ser então um processo ativo, onde o homem medieval chama para si a responsabilidade de se redimir perante o Criador. Ora, uma busca leva à outra. O cristão que quer se

e

segundo eles, age primeiramente no espírito

buscando assim conectar-se intimamente

É importante ressaltar um aspecto

reflexão

conduz à contemplação [...] A Palavra divina,

mediação dos especialistas da oração,

laicas” (2004, p.1).

buscava

partida para uma meditação que, por etapas,

a

grande século medieval das conquistas

homem

experiência religiosa, fornece um ponto de

ligadas a elas. A partir do século XI, a refutar

o

espirituais, a referência obrigatória de toda

dominicanos, e também às confrarias laicas a

Escritura

O texto bíblico, que continua a ser, para os

religiosas, como os franciscanos e os

passou

a

iluminação.

seu sucesso à ação das crescentes ordens

laica

conhecer

Sagrada.A Bíblia era o alimento espiritual,

cristandade latina deve em grande parte

sociedade

quer

E foi esta percepção do laicado sobre as escrituras que acabou elevando e enaltecendo os aspectos da humanidade de

Cristo.

(VISALLI,

Consequentemente,

2004

duas

p.1).

certezas

fundamentais impregnam a consciência religiosa no Ocidente do século XIII: só se chega a Deus por seu Filho crucificado, e para conquistar a salvação, é preciso assemelhar-se

ao

Cristo.

(VAUCHEZ,

1995, p. 179). Estas

ordens

ascendentes,

que

foram o cerne do movimento ascético passaram a pregar a necessidademoral de se viver uma pobreza absoluta e praticar os ideais do cristianismo primitivo. Estas organizações,

ao

encorajar

o

homem

comum a buscar a salvação por seus próprios esforços, “se constituíram em um dos

fenômenos

mais

dinâmicos

652

da


Rafael Fernandes Speglic religiosidade do período.” (VISALLI, 2004, p.2).

Além do livro difundiram-se também objetos (relicários) pessoais. Juntando-se

O

poder

dos

milagres

também

todos estes relicários com a Bíblia dentro

estava presente naquele momento. O

do espaço íntimo, podemos perceber a

homem

buscava-os

formação de pequenas capelas individuais

constantemente e estavadisposto a vê-los

e o desenvolvimento da devoção privada,

em qualquer fenômeno extraordinário. A

que “no século XIV, ganhara os estratos

hagiografia ainda tentou mostrar que este

sociais mais profundos.” (DUBY, 1990, p.

poder

523).

medieval

miraculoso

subordinado

a

estaria

de

conduta

fato

ascética.

(VAUCHEZ, 1995, p. 161). Desde

o

Dentro

das

Igrejas,

pequenas

capelas privadas surgiam providas com

momento

em

que

seus próprios relicários e mobiliários e

olaicadopassou a se interessar direta e

eram

geralmente

destinadas

a

algum

ativamente pela Bíblia, é fácil compreender

indivíduo e sua família ou grupo especial,

que, como consequência, Ela ganhou o

como as confrarias.

espaço privado. Se o homem medieval

De que forma então este processo

passa a recusar o orador especializado, ele

de privatização religiosa e o movimento

obrigatoriamente passa a levar a Bíblia

ascético se conectam com o crescimento

para dentro de sua casa. Como disse

da devoção Mariana?

Duby, “o cuidado com a alma tornou-se

A partir dos séculos XI e XII, a

cada vez mais individual [...] se libertou

Virgem passa a se igualar a Cristo. Aliás,

pouco a pouco do comunitário, enquanto o

podemos

campo do religioso progressivamente se

quando disse há duzentos anos, que “no

privatizava” (1990, p. 521). É claro queeste

século

processo não concerne a todos os homens

(BASCHET, 2006, p. 473). É de forma

do

paralela

medievo.

As

condições

sociais

e

até

XII, à

concordar Deus

mudou

reforma

comMichelet, de

religiosa

sexo.” e

o

econômicas não devem ser esquecidas. A

fortalecimento da instituição eclesial, que a

maioria dos cristãos com acesso direto ao

Virgem ganha terreno e passa a ser

Livro seriampertencentes às classes mais

considerada onipresente para o universo

abastadas. Desta forma, estemais fácil

cristão. Maria passa a ser associada à

acesso

soberania das figuras divinas. De acordo

ao

meditação privado.

Livro íntima

Sagrado dentro

permitia

do

a

ambiente

com

Baschet,

“é

preciso

tratar

conjuntamente a Virgem e a Igreja, já quea

653


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

partir deste período, a exegese afirma que

recebemos tua misericórdia, oh, Deus!

tudo o que se diz de uma pode ser aplicado

Somente por ela foi possível recebermos o

à outra.” (2006, p. 470). A Igreja, por

Senhor Jesus em nossos lares.” Assim

conceber o corpo cristão, passa a ser vista

exclamava o monge cisterciense Bernardo

como mãe de Cristo, juntamente com a

de Claraval no século XII.

Virgem. Além disso, desde o concílio de

O culto à Virgem é amplificado

Éfeso, em 431, Maria é vista como Mãe de

também pelo sentimento de coletividade,

Deus, do grego“Theotokos”, uma vez que é

próprio do medievo. Esta coesão se

mãe de Cristo e este é igual ao Pai.

difunde

Percebe-se então uma relação de fundição

precisam de um padroeiro. No caso, a

entre a Virgem Maria e a Igreja Católica.

Virgem toma este lugar frequentemente.

Não à toa, muitas imagens passam a

(BASCHET, 2006, p. 500).

aparecer,

representando

Maria

num

no

corpo

social:

as

cidades

Quanto aos milagres mencionados

tamanho muito maior que o comum, dentro

anteriormente,

da e como a própria Igreja.

principalmente a partir do século XII, que

O papel de Mediadora também foi essencial neste processo. Maria foi o

“Era inevitável, sobretudo com relação à Virgem e todos os outros santos, que a devoção popular lhe atribuísse uma infinidade de milagres [...] O

nos elevamos a Ele. A Virgem foi vista

número de milagres atribuídos à Maria aumentou depois da Idade Média, atingindo seu pináculo

como a única criatura capaz de purificar e

nos séculos XIX e XX.” (PELIKAN, 2000, p. 184).

fortalecer os pecados. Somente ela poderia

desse modo pelo processo de mediação entre Cristo e a humanidade. (PELIKAN, 2000, p. 178).Sua feminilidade também é um fator contribuinte. Por ser mulher, seria maisinclinada à compaixão e ao perdão do que o Cristo, homem, que embora mais severo, é também sensível aos apelos da mãe. (VISALLI, 2004, p. 176). “Ela é nossa Mediadora a única por meio de quem nós

período,

de maneira mais intensa.

até os homens. Ou seja, por meio dela, nós

demônio; mas ela só poderia se conduzir

neste

os atribuídos à Maria passam a aparecer

caminho pelo qual o Salvador pode descer

ser um amparo contra as tentações do

é

É curioso perceber ainda o poder da tradição. Pelikan já discorreu sobre o fato de

que

não

encontramos

material

significativo no Novo Testamento. O relato de Maria é muito breve e esparso e não condiz com a força que seu culto adquire posteriormente (2000, p. 24). Mais curioso ainda é perceber que este culto pode provir de um erro da tradução. A expressão grega ‘parthenos’, ‘virgem’,

na

que

foi

verdade

traduzida tem

como

como seu

654


Rafael Fernandes Speglic equivalente

hebraico

o

termo

‘jovem

mulher’. E é importante ressaltar que a

Arte Renascentista, onde a valorização do indivíduo ganhou grande importância.

identificação de Maria como virgem é

A importância da obra de Van Eyck

proveniente do Cristianismo primitivo, fato

provém do fato de que ele, como artista,

este que contribui para a contenção sexual

mas mais ainda como unidade de um corpo

do movimento ascético, modificando toda

social e de uma cultura, estava sujeito ao

uma moral na sociedade cristã.

seu momento histórico. Se sua obra é fruto

Ora, se o processo de privatização,

de uma encomenda, é porque os doadores

leva à religião para o ambiente privado, e

da obra, como Van der Paele, Chanceler

se o surto de devoção Mariana eleva a

Rolin ou JoosVidj, estavam da mesma

Virgem para sentar-se ao lado de Deus,

forma impregnados deste momento.Muito

passaremos então a encontrar uma grande

se atribui a sua qualidade técnica ou sua

expressão de devoção à Virgem, dentro

fama como pintor da corte de Filipe, o Bom,

dos ambientes privados.

mas o fato é que muitos outros pintaram

Jan Van Eyck foi um pintor flamengo

cenas similares no período. É importante

nascido por volta de 1390, tendo falecido

compreender

em 1441. É provavelmente de Maesheyck,

pintava-se quadros daquela forma; que os

na região hoje conhecida como Holanda,

religiosos

ou Países Baixos. Foi pintor da corte de

capelas individuais dentro da própria Igreja,

Filipe,

Borgonha.

ou as tinham dentro de suas grandes

Considera-se que o período em que mais

residências aristocráticas; que o tema de

produziu pinturas marianas tenha sido por

Maria entronizada com o menino Jesus no

volta de 1436.

colo era fundamental para a apreciação e

o

Bom,

duque

de

O fato de que Van Eyck aparece

que

tinham

naquele acesso

a

momento, pequenas

entendimento do corpo cristão. Estudar o

inesperadamente com uma nova forma de

momento

pintar é uma das razões por que alguns

espírito, a devoção, o social – é de suma

historiadores o consideram como o primeiro

importância para se compreender o fruto de

pintor do Protorrenascimento do norte

uma cultura distante.

Europeu.

(ROLF,

1999,

-o

contexto,

os

motivos,

o

p.

A imagem da Virgem entronizada –

406).Considerado o inventor da tinta a óleo,

caso do nosso estudo – é cheia de

Van Eyck ajudou a impulsionar a arte

simbologias. Na maioria dos casos, ela se

medieval para o que conhecemos como

encontra sentada com o menino Jesus no colo, revestida por um manto. Mesmo com

655


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

uma aparência humana frágil,Jesus ainda é

produzida em 1435. A cena representada

visto como aquele que sofreu crucificado.

se passa em um ambiente privado, porém

Por

mais

cheio de símbolos religiosos, que não

severidade ao seu julgamento. O papel de

estariam ali se não fosse a revolução

Mediadora concernente a Maria é de tentar

espiritual do século XII e a consequente

também atenuar este sofrimento. Ademais,

privatização da religiosidade.

esta

lembrança

se

atribui

a imagem do manto não é somente acolhedora,

mas

inclusive

passa

a

sensação de proteger os cristãos, cobrindoSe concordarmos com Pastoureau (1997, p. 164), entenderemos também que o vestuário das épocas antigas é repleto de seja

pelo

tecido,

forma,

maneira de usar ou a cor. Exprime-se, pela vestimenta,

valores,

meditativo e o ruidoso mundo exterior, o gesto da oração e o gesto divino da benção... Tudo isto se encontra reunido, quase que se diria em uma sinopse mística, na Virgem do Chanceler Rolin

os com seu amor materno.

significados,

O celestial e o mundano. O mundo interior

estados

e

níveis

sociais. Desta forma, sem a vestimenta, o homem antigo e medieval perde sua identidade. O traje está ligado ao íntimo... “é sempre mais que o tecido e ornamento, estende-se ao comportamento.” (DUBY, 1990. P. 560)

[...] No entanto, ora aparece a Virgem coroada por um anjo como Rainha do Céu, com o menino Jesus em seu colo, abençoando com a mão direita. O Chanceler levanta os olhos, na quietude do reconhecimento e contempla o grupo celestial. Também o mundo é testemunho deste acontecimento; ou melhor, a aparição acontece no mundo e para o mundo. No terraço, veem-se plantas com flores, como o lírio símbolo da maternidade virginal de Maria [...] A mensagem do quadro é legível, ainda que esteja escondida: Cristo veio ao mundo para libertar o homem do pecado. Nicolas Rolin, repleto da palavra de Deus, é quem transmite esta mensagem. (ROLF, 1999, p. 411).

O

doador

é

Nicolas

de

Rolin,

Chanceler de Borgonha, da corte de Filipe, o Bom. Foi um dos maiores patronos beneficentes da época. A pintura parece transbordar por sua autoridade. É curioso notar, que esta é a única imagem em que a aparição sobrenatural acontece dentro do ambiente de fato privado. Por coincidência, ou não, não existe uma mediação feita por outros santos, como é o caso das próximas A Madona também

do

Chanceler

conhecida

como

Rolin, “A

imagens

que

veremos.

O

Chanceler

assume a mesma proporção física que a

Oração Pintada”, foi 656


Rafael Fernandes Speglic Virgem. É quase como se Rolin quisesse

passa a ideia de que o doador está sendo

representar uma evocação, por meio de

redimido por sua fé. Talvez tenha de fato

suas orações.

sido

assim,

que

van

der

Paele

Também no caso da Madona de

encomendou a obra logo após adoecer. Ele

Joris Van der Paele(1436) trata-se na

havia dedicado sua vida à religião, tendo

realidade de uma visão, da presença do

feito carreira na Cúria Romana. Em 1434,

divino no mundo.

ano da encomenda, voltou à Bruges assumindo a posição de cônego leigo abastado vinculado à principal Igreja da cidade, São Donaciano. É como se o painel encomendado

almejasse

imortalizar

a

memória de van der Paele na Igreja de São Donaciano, uma vez que o cônego não estará presente por mais muito tempo. O trítico da Virgem e do Menino (1437) apresenta algumas diferenças. Em primeiro lugar, sua dimensão é muito pequena. Apenas 33x27 centímetros. Ou seja, um trítico de viagem. No flanco esquerdo, vemos o doador desconhecido e o Arcanjo Miguel. No centro, a Virgem e o Menino e no flanco direito, santa Catarina. Nota-se que o doador está vestido segundo a moda de Borgonha. Não sabemos quem O doador se ajoelha, e perde seu olhar. É quase como se estivesse orando e de repente passasse a refletir sobre algo. Nesse meio tempo, sem que se aperceba, o divino se manifesta ao seu redor. São Jorge o recomenda à Virgem, na presença do santo local, São Donaciano. Não é de fato uma reunião. A imagem na verdade

ele é, mas um escudo é reconhecível, segundo Till-HolgerBorchert, o escudo da família Giustiniani, que foram patrícios genoveses nos séculos XIV e XV e se estabeleceram

como

mercadores

em

Bruges. É curioso perceber que justamente na imagem em que o doador não é classe religiosa, ele encontra-se separado da Virgem.

Não

podemos

abandonar

657

a


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

possibilidade de que tenha sido somente

aqui já disseminadas em pleno século XV.

uma escolha técnica, visto o pequeno

Só essa interiorização explica histórica e

tamanho do trítico. É, na verdade, uma

simbolicamente a presença destes objetos

questão de escolha: acreditar ou não na

dentro de uma residência privada.

coincidência.

No caso desta obra, a representação Mariana

concerne

à

temática

da

Anunciação, localizada na parte central. Já na parte inferior, encontramos os doadores. JoosVidj, a esquerda está acompanhado por São João Batista e sua esposa, Elisabeth Borluut, do lado direito, está junto a São João Evangelista. Não temos aqui uma manifestação sobrenatural no mesmo A próxima e última obra se trata do

ambiente do doador, mas ainda assim,

Retábulo de Gand(1432) fechado. A maior

nota-se a importância da obra. JoosVidj

obra de Van Eyck, em todos os sentidos.

provinha de uma família abastada e

Além de ser considerada sua obra-prima,

influente, pertencente ao patriciado de

dispõe de impressionantes quase 4 metros

Gand. Foi administrador da Igreja de São

de altura, por 2,5 metros fechado. Aberto,

João, a qual ajudou a reformar e da qual

atinge mais de 5 metros de largura. Sabe-

morava ao lado. E foi para esta mesma

se que Van Eyck não executou esta obra

Igreja que planejou esta doação. Em uma

sozinho. Ela foi começada por seu irmão,

obra

Hubert e ainda passou pelas mãos de

importância, pode-se afirmar que Vidj

alguns discípulos da oficina. Mas, foi

queria não só glorificar seu presente, mas

terminada por Van Eyck e atribuída a ele.

também

Próximo vários

objetos

à

janela,

encontramos

alegóricos.

A

garrafa

de

o

murais.

a

virgem

como

de

e

dentro

Gand.

da

Desejou

provavelmente ultrapassar não só todos os retábulos

representam

proporção

imortalizar-se

comunidade

representa a castidade de Maria. A bacia e jarro

gigantesca

existentes,

mas

também

os

Ecclesia. Vale ressaltar que se trata de

Ao cabo de termos analisado estas

outro ambiente privado. Lembremos aqui

imagens, levamos em conta que cada

da já discutida privatização das práticas

artista, é claro, tem suas capacidades e

religiosas, suscitadas desde o século XII e

conhecimentos

individuais.

Mas

não

658


Rafael Fernandes Speglic devemos excluí-lo de seu contexto, ainda

dialogar, por que nos dedicaríamos a uma

que seja considerado um precursor, um

atividade tão difícil e insólita quanto a de

gênio, ou um renegado. Cada cultura

falar sobre quadros? Penso que a crítica

favorece ativamente na formação destas

inferencial é uma prática não só racional

aptidões. Além disso, sempre há de se

como sociável.” (2006, p. 195).

considerar

perspectiva

Finalmente, é possível afirmar que o

individual. Os doadores de um quadro

produto histórico se faz e é percebido a

podem

diferente

partir do indivíduo, de sua perspectiva,

daquela que o artista irá perceber. Os

apesar de sua inserção cultural. Não

observadores nativos podem ter outra

podemos então, projetar afirmações acerca

interpretação,

suas

de detalhes. Como historiadores, o que

próprias interpretações irão divergir. E

podemos fazer é tentar entender porque

distanciando

um

nós

uma imagem com determinada temática

historiadores,

hoje,

estas

pode ser aclamada em uma época, ou

imagens,

e

respeitar

enxergar

uma

sem

talvez

a

coisa

contar pouco ao

não

que mais,

analisar

percebamos

as

ignorada em outra, e tentar entender por

intenções da época, e talvez ainda não

fim, os motivos para que determinada

concordemos entre nós. Como já disse

sociedade possa ter legado específicos

Baxandall, “A história tem um compromisso

produtos culturais.

com a boa crítica. Se não fosse para

Referências: BASCHET, Jérome. Introdução: a imagem objeto. In: SCHMITT, Jean-Claude e BASCHET, Jérôme. L’image. Fonctions et usages des images dans l’Occident Médiéval. Tradução: Maria Cristina C. L. Pereira. Paris: Le Leópard d’Or, 1996. BASCHET, Jérome. A civilização Feudal: do ano 1000 à colonização da América. Tradução: Marcelo Rede. 1ª Ed, São Paulo: Globo, 2006. BAXANDALL, M. Padrões de Intenção: a explicação histórica dos quadros. Tradução: Vera Maria Pereira. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. BORCHERT, Till-Holger. VAN EYCK. Tradução: Jorge Bernardo Boléo. Köln, Taschen, 2010. DUBY, G (org.) História da Vida Privada, 2 : da Europa Feudal à Renascença. Tradução: Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

659


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

GINZBURG, Carlo. Indagações sobre Piero:O Batismo, o Ciclo de Arezzo, a Flagelação. Tradução: Luiz Carlos Cappellano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. (Oficina das Artes, v. 4). PASTOUREAU, Michel. Dicionário das cores do nosso tempo: Simbólica e Sociedade. Tradução: Maria José Figueiredo. Lisboa: Estampa, 1997. PELIKAN, J. Maria através dos séculos:seu papel na história da cultura. Tradição: Vera Camargo Guarnieri. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ROLF, Toman. Él Gótico: Arquitectura, Escultura, Pintura. Tradução: José García Pelegrín e Pablo de laRiestra. NeueStalling: Könemann, 1999. SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Tradução: José Rivair Macedo. Bauru: EDUSC, 2007. VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental: (Século VIII a XIII). Tradução

Lucy

Magalhães.

Rio

de

Janeiro:

Jorge

Zahar,

1995.

VISALLI, A. M. Cantando até que a morte nos salve:estudo sobre laudas italianas dos séculos XIII e XIV. São Paulo: USP, 2004. (Tese de Doutorado).

660


HIBRIDIZAÇÃO: UMA QUESTÃO DE IDENTIDADE DE SÍMBOLO E LITERATURA NA ESCANDINÁVIA MEDIEVAL Rafael M. Oliveira Tiago de Oliveira Veloso Silva

1

Resumo: O engajamento dos estudos sobre o conceito de hibridização cultural, fortemente aliado com estudos sobre religiões do período medieval, principalmente os relacionados com os contatosentre as sociedades pagãs e cristãs da Escandinávia medieval, nos proporciona uma série de informações e dados que podemos analisar a partir de um processo histórico de importantes transformações sócio-culturais da região. Para tanto, eis o interesse de análise de duas fontes de extrema relevância para a construção dessa sociedade, o martelo de Thor e os poemas deBeowulf. Dois importantes resquícios da história escandinava em questão de abrangência cultural e difusão de tradições do período. O primeiro, como um amuleto de forte presença, resistência e adorassão dos deuses do panteão nórdico, principalmente o deus do trovão, em contraste a um dos símbolos mais caracteríticos do cristianismo, a cruz de Cristo. O segundo, uma importante literatura do século VII ou VIII estruturada a partir de lendas, mitologias e tradições nórdicas, mesclada com notáveis referências de teor pagão e, sobretudo, referências cristãs na obra. Dessa forma, o presente trabalho tem como objetivo apresentar em linhas gerais, os contextos históricos que proporcionaram a miscigenação dessas duas culturas e, também, relatar um breve estudo de duas fontes essenciais para a compreensão dessa nova sociedade. Palavras-chave:Era Viking; Hibridização; Religião.

1

Alunos atualmente cursando o 8º semestre de graduação da Universidade de Brasília. 18/08/14.

661


Rafael M. Oliveira Tiago de Oliveira Veloso Silva

Introdução

da segunda em questão. Se o termo for

Uma tentativa de se construir uma

aplicado ao objeto de estudo, a transição

história religiosa pagã, tendo como fonte

entre o paganismo nórdico e o cristianismo

principal o contato entre culturas pagãs e

na Escandinávia Medieval, é possível

cristãs medievais, pode ser feita a partir de

observar que há um choque inicial entre o

análises de objetos, amuletos e literatura

cristianismo,

escandiava desse período, principalmente

paganismo

nas transformações e referências de dois

Mesmo

grandes símbolos dessa cultura,o mítico

comunidade

martelo de Thor e os

Escandinávia (macro) se comportava e

épicos

poemas

deBeowulf.

nórdico,

exterior, cultura

considerando

possuía

Os mitos e lendas da aclamada Era

cultura

cada

dentro

de

o

tradicional.

que

(micro)

diferenças

e

certa

da

maneira

significativas e peculiaridades específicas,

Viking firmaram-se, de certo modo, num

especialmente

período em que o contato e expansão da

exemplos com um grande distanciamento

religião

predominantemente

territorial (como uma aldeia na Noruega e

abusiva em relação à outras práticas

uma na Suécia), ainda existe uma coesão

religiosas, geralmente considerada como

cultural entre os territórios escandinavos

invasora e exclusiva nos âmbitos sociais-

que nos permite analisar de forma geral

religiososcom outras sociedades e culturas

como

medievais.

mesclagementre o paganismo nórdico e o

cristã

era

Este

trabalho

tem

como

princípio analisar essas miscigenações cultural-religiosas utilizando as bases do conceito

de

hibridização

quando

ocorreu

a

analisamos

transição

e

cristianismo. A

hibridização

se

baseia

no

cultural,

conceito de diferença cultural, e não

trabalhando com os dois objetos de estudo

diversidade, conceito trabalhado por Homi

específicos mencionados no início desse

K. Bhabha em seu livro O Local da Cultura,

artigo.

ele mesmo diz: “essa revisão da história da teoria crítica apoia-

Hibridização, Identificação e Identidade A trabalhada

hibridização neste

cultural,

texto,

como

significa

a

miscigenação de duas culturas que por alguma razão entraram em choque e acabaram por criar uma diferente, mas que envolve aspectos tanto da primeira quanto

se, como eu disse, na noção de diferença cultural,

não

de

diversidade

cultural.

A

diversidade cultural é um objeto epistemológico – a cultura como objeto de conhecimento empírico – enquanto a diferença cultural é o processo da

enunciação

da

cultura

como

“conhecível”,

legítimo, adequado à construção de sistemas de identificação cultural”. BAHABHA, ANO, p 63.

662


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

A diferença cultural para Bhabha é

nórdico, mesmo que cada localidade, ou

primordial para a existência da identidade

mesmo, “classe social”, reverenciasse em

e, portanto na sua identificação, pois sem

especial um deus diferente do panteão

esta diferença não há como se identificar,

nórdico,

por exemplo, para alguém se identificar

favorecimento os convinha mais do quê um

como

a

Deus único, visando interesses específicos

existência de uma diferença, alguém não

da região. Ou seja, dentro da Escandinávia

escandinavo,

ser

existia uma formaanterior de identificação

escandinavo não seria um critério de

primordialmenteterritorial e, posteriormente,

identificação, uma vez que todos seriam

uma outra religiosa. Podemos então utilizar

escandinavos. A identidade, então, é o

a entrada do cristianismo na Escandinávia

resultado da identificação de uma ou várias

como um choque cultural, a introdução de

diferenças ou similaridades que ao serem

uma diferença, que seguindo os passos de

contrastados ou agrupados com o restante,

Bhabha,

permitem

formação

escandinavo pois

a

sua

é

necessário

sem

própria

ela,

classificação.

Existem identidades micro (eu e você) e macro

(nós

e

vocês),

e

porque,

significa de

teoricamente,

a

uma

seu

possibilidade nova

forma

da de

identidade, uma religiosa.

estes

A hibridização resultante do choque

agrupamentos são múltiplos e infinitos, e

entre culturas resulta, em sua essência, na

são, sobretudo, dependentes da diferença

gênese de uma nova cultura que contem

cultural.

em si aspectos e práticas mescladas das ShaneMcLeod também fala sobre a

identidade

e

a

identificação

duas em oposição, mas que ao serem

dos

mescladas acabam por gerar uma nova

escandinavos da Era Viking em seu artigo

com particularidades únicas. Esta criação a

KnowThineEnemy: ScandinavianIdentity in

partir da mistura cultural é recorrente em

the Viking Age (2008), ele diz que mesmo

vários,

existindo uma gama de identidades locais,

culturais, onde existe, como o próprio

durante o período em que o cristianismo

Bhabhacoloca,

estava se estabelecendo na Escandinávia,

colonizado, que também pode ser colocado

já existia uma identidade macro, como

como o dominador e o dominado. Um

identificação de reinos, e também se sabe

exemplo pode ser o caso da colonização

que dentro do território escandinavo existia

da América Central e a resultante religiosa

uma concordância em relação a religião,

desse encontro. Atualmente no México, a

conhecida posteriormente como paganismo

Santa de La Muerte é cultuada com vários

se

não

todos, o

os

encontros

colonizador

e

663

o


Rafael M. Oliveira Tiago de Oliveira Veloso Silva

aspectos do culto a santos cristãos, mas a

Escandinávia como forma de um amuleto

própria Santa de La Muerte é o resultado

de proteção, assim como o crucifixo foi e

do sincretismo religioso entre a religião

ainda é utilizado. É possível traçar uma

cristã e a religião Mesoamericana da área.

relação que estes dois amuletos tiveram

Então, como vimos, a hibridização

durante sua co-existência na Escandinávia

cultural leva a criação de uma nova cultura

medieval, e, assim, interpretar que a forma

e, no caso dos escandinavos, a introdução

com que o crucifixo foi utilizado por aquela

do cristianismo levou o desenvolvimento de

sociedade pode ter sido um reflexo de uma

uma Escandinávia “cristã”, que ao mesmo

carga firmemente enraizada da cultura

tempo em que não era pagã nórdica,

pagã, recem rejeitada.

mantinha alguns de seus aspectos, e

Como

colocado

por

mesmo sendo chamada de cristã,não era

SæbjørgWalakerNordeide em seu artigo

inteiramente

a

cultura

Thor’shammer

originalmente

foi

aplicada.

cristã

que

Entretanto,

in

Norway:

symbolofreactionagainstthe

A

Christian

dentro desse sincretismo, as características

cross?,existem dois tipos de martelos de

que são mantidas dentro da nova cultura,

Thor, o martelo mais antigo e o mais novo.

com certeza são os traços que tiveram

O primeiro era um símbolo de martelo

mais

rudimentar conectado a um anel, e tal anel

importância

tradicional,

dentro

mesmo

que

da a

cultura

priori

esta

poderia conter vários outros amuletos ou

importância dos traços e/ou adaptação

pingentes

destes

chaves.

tenham

sido

feitos

inconscientemente.

junto, Já

o

como

um

segundo

molho

de

pode

ser

considerado como o martelo “clássico”,

Amuleto em transformação

cujo estilo é o mais conhecido e difundido

O Martelo de Thor, conhecido pelo

atualmente, com um desenho homônimo

nome de Mjolnir, é um símbolo muito

de um martelo com eventuais desenhos

conhecido atualmente, seja pelo seu uso

e/ou adornos. Além de ser maior que o

religioso (como por exemplo os neo-

antigo,

pagãos), o uso ornamental ou seus usos

“individual”, pois não se conecta a um anel

secundários,

e consequentemente a vários amuletos,

como

por

exemplo

a

apropriação da revista Marvel do deus Thor

ele

também

é

um

amuleto

dando a ele um caráter especial e singular.

e seu martelo. Independente de suas

A análise de Walaker se restringiu

referências hoje, o martelo de Thor já foi

à Noruega, lugar com relativamente poucos

utilizado

aparecimentos do martelo de Thor ou

pelos

povos

pagãos

da

664


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Runestones, mas seus resultados mostram

pagã e, consequentemente, diferenciar-se

que enquanto o martelo de Thor mais

dos outros.

antigo

é

anterior

cristianismo,

o

ao

novo

surgimento martelo

é

do seu

Anne

Pedersen

escreveu

um

excelente trabalho chamado Late Viking

contemporâneo, assim como do crucifixo.

andEarly

Com base nestes fatos, é possível analisar

Questionof Faith (2014), onde é trabalhada

que a cultura pagã da utilização de

a problemática dos acessórios imbutidos

amuletos da Noruega (cultura que, em um

como signos de religião, como por exemplo

contexto geral, é muitíssimo similar aos

broches que continham a cruz como

seus vizinhos) e Escandinávia pode ter tido

símbolo da fé cristã. Pedersen argumenta

um papel protagonista na utilização do

em seu trabalho a questão do martelo de

crucifixo pelos cristãos da Escandinávia

Thor como amuleto e símbolo de uma

medieval.

resistência religiosa que teve seu ápice nos

Entendo que a participação cultural do

uso

de

amuletos

pela

Medieval

Ornaments:

A

séculos IX e X, período de estabelecimento

sociedade

do cristianismo na Escandinávia, e até

escandinava estava tão profundamente

como uma provável função para o culto da

enraizada ao ponto de ser adaptada para

tradição pagã (PEDERSEN, 2014, p. 195).

uma nova religião, seria muito difícil que a

A análise de tumbas e objetos enterrados

outra parte da sociedade, a não cristã,

neste período, onde foram encontrados

deixasse de utilizar os amuletos, então

objetos pagãos, como por exemplo o

porque existem dois tipos de martelos de

martelo de Thor, mostra que ainda existia

Thor? A religião cristã, ao entrar no

uma relutância em abandonar a antiga

território escandinavo, se chocou com a

tradição pagã pela nova tradição cristã, que

religião pagã, fazendo dela uma religião

gradualmente foi-se modificando.

invasora quetransformava e, até, pervertia

Quando o cristianismo entrou na

os costumes e tradições dessa sociedade.

Escandinávia, durante seu período de

Face a esta “invasão cultural”, acredita-se

estabilização, ele coexistiu com as práticas

que os escandiavos que ainda seguiam a

pagãs, que foram aos poucos sendo

antiga religião transformaramo martelo de

abafadas, mas certas práticas culturais

Thor,resignificando o mesmo para não só

estão tão enraizadas na sociedade que não

fornecer proteção como um amuleto mas,

foram esquecidas mesmo com a forte

também, para servir como uma reafirmação

presença cristã que acabou por existir uma

que o usuário era simpatizante da religião

hibridização,

ou

mutação,

do

próprio

665


Rafael M. Oliveira Tiago de Oliveira Veloso Silva

cristianismo dentro do espaço cultural da

cristianidade (Egilsdóttir 2006: 2; Mitchell

Escandinávia,

2006: 3). A dualidade Bem ou Mal foi

onde

algumas

práticas

culturais apenas não se perdem nem

definidida

mudam, ganham um novo significado ou

preceitos

até mesmo o mantém, porém seguindo

características na lendas orais ou escritas

como práticas cristianizada.

germânicas, como podemos observar nos

posteriormente cristãos,

a

partir

impelindo

de tais

poemas de Beowulf.

Literatura como objeto hibridizado Como vimos anteriormente neste

O

poema

épico

Beowulf,

trabalho, a hibridização do paganismo e

considerado como a mais antiga epopéia

cristianismo se estendeu para grande parte

europeia, composto durante o século VII ou

dos

cultura

VIII por um provável poeta anglo, um

escandinava. Assim, como o novo valor

possível monge ou clérigo de sua época, é

cultural que o martelo de Thor tomou com o

uma notável obra que conseguiu mesclar a

contato com a cruz cristã, a literatura

história escandinava e mitologia pagã com

escandinava medieval se formou a base de

elementos cristãos. Apesar de seu enredo

elementos da cultura anglo-saxônica com

simples, as diversas lutas entre o Bem e o

valores morais cristãos, repercuntindo em

Mal – sendo esta a grande influência e

um novo material estruturado a partir das

característica cristã que permeia durante

histórias e lendas germânicas.

toda a obra – representado pelos inimigos e

campos

e

saberes

da

O grande feito dessa hibridização

desafiantes do herói protagonista que

dos contos e poemas escandinavos foram

nomeia a obra. O ideal heroico germânico e

as implementações dos códigos morais e

o fatalismo pagão também são grandes

éticos cristãos. A abordagem mágica nos

características primordias na construção

textos é um grande exemplo disso. Os

dos poemas.

elementos mágicos herdados da cultura

Como

afirma

o

prof.Ms.

João

germânica, os poderes dos grandes deuses

Bittencourt de Oliveira, existem certos

do panteão nórdico, foram incorporados ao

traços do protagonista que definem o herói

Deus cristão e seus santos como milagres,

anglo-saxão, sendo o primordial o traço da

enquanto a magia tratada como usual

lealdade.

nesta cultura era algo a ser reprimida, sendo praticada por feiticeiras e demônios. Essa distinção não ocorria no paganismo “original”,

o

sem

contato

com

a

“Na história de Beowulf, podemos identificar vários traços de caráter que definem o herói anglo-saxônico, a saber: lealdade, força física, coragem, bem como sagacidade, cortesia, e, acima de tudo, o comprometimento com a

666


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo salvação de seu povo. Todos esses traços são evidenciados, principalmente, nas três batalhas que Beowulf tem de enfrentar, ou seja, com

menções à cruz, principal símbolo do Cristianismo. O equilíbrio desses dois elementos,

Grendel, com a mãe de Grendel e como o dragão.”. BITTENCOURT, 2010, p 114.

E neste mesmo artigo, o autor ainda aponta

que

os

conflitos

materiais

e

espirituais de Beowulf definem o caráter religioso

da

personagem,

o

agir

altruísticamente se confunde com o agir para si próprio. O primeiro considerado

os códigos cristãos junto com o ideal heroico

sobremaneira, protagonista transição

ego e a criação e eternização do heroi característica primária dos herois pagãos. Outro

aspecto

muito

importante

encontrado nos poemas deBeowulf para ressaltar o tema estudado neste artigo são as

inúmeras

encontradas

referências na

obra,

bíblicas sobretudo,

passagens e histórias de Caim, Abel e Dilúvio que são claramente tratados nos poemas. Ainda percebemos expressões e algumas alusões ao Deus único, todopoderoso, não comumente a religião pagã, e sim, da cristã. De certa maneira e, principalmente,

em

certos

casos,

o

arquétipo de criação, ação e evolução da protagonista lembra muito o do próprio Cristo.

No

explícitas

entanto, aos

não

inúmeros

citações

símbolos

e

personagens essenciais a cultura cristã, ressalto aqui que não encontramos no texto

transforma,

esses na

desta

poemas

figura

e

ideal

nova

a

para

composição

a de

cultura, uma inegavelmente hibridizada. Conclusão

como característica fundamental para a religião cristã e, o segundo, a exaltação do

germânico,

O contexto histórico em que foi criado

essas

novas

mudanças

sócio-

cultural religiosas diz muito sobre a própria composição

das

transfomações

da

sociedade escandinava medieval, assim como ela acaba tendo uma relação muito íntima com o seu lugar, seus mitos e suas histórias de criação. Uma cultura amplamente difusa e com variadas práticas, no entanto singular em

sua

estrutura,

consegue

fornecer

algumas informações necessárias, mesmo que dispersas, sobre um contato único de duas grandes influências predominantes do período

medieval,

uma

baseada

na

expansão e estabelecimento cristão, e outra

tratada

exoticidade

como

do

o

mundo

barbarismo nórdico

e

que,

portanto, deveria ser dominada. Entretanto, apesar

de

desse

grande

esforço

“colonizador”,o embate não foi unilateral. O choque desses dois povos e de suas culturas

conseguiram

criar

crenças,

667


Rafael M. Oliveira Tiago de Oliveira Veloso Silva

costumes e tradições peculiares e, sem

estudos que podem ser gerados a partir

sombra de dúvidas, primárias na sua

dessa análise, um breve relato e estudo de

composição. Assim,a contribuição deste

uma cultura primariamente nova, uma

trabalho

cultura hibridizada.

tinha

como

objetivo

mostrar,

mesmo que comparado com a gama de

Referências: ANDREEFF, Alexander (2007).Chapter Twelve: Gotlandic Picture Stones, Hybridity and

Material

Culture.In:CORNELL,

Per

Encounters|Materialities|Confrontations,

e

FAHLANDER,

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Fredik

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668


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669


REPRESENTAÇÕES DA CRUCIFICAÇÃO NA BASÍLICA DE SÃO FRANCISCO, EM ASSIS Raquel de Medeiros Deliberador 1 Angelita Marques Visalli (Orientadora) 2 Resumo: Na sociedade do medievo a cultura visual foi fundamental, tanto que consideram ter ocorrido uma “Revolução das Imagens”, na Baixa Idade Média, proporcionando assim o desenvolvimento e propagação de imagens. Os estudos voltados às expressões imagéticas se integram na perspectiva de história cultural, possibilitando uma maior dimensão de compreensão do passado. Nessa pesquisa, nos debruçaremos nas representações da Crucificação realizadas, pelo italiano, Giotto (1267-1337), em um contexto, no qual, a expressão imagética em questão se define como representação da religiosidade no ambiente medieval. Realizando uma breve comparação desta com duas imagens, de mesmo tema, do pintor florentino Cimabue (1240-1302). As imagens escolhidas encontram-se na Basílica de São Francisco, em Assis, principal centro da iconografia franciscana. Assim, este estudo, possibilita maior compreensão sobre a construção da identidade franciscana e sobre a devoção religiosa no período. Para tanto, é utilizado o conceito “imagem-objeto” de Jérôme Baschet e considerado os debates em torno da iconoclastia e desenvolvimento do culto das imagens no ocidente medieval, realizados por Jean Claude Smith e Jérôme Baschet. Desta forma, a imagem deixa de ser considerada - como pregavam na teologia da imagem nos séculos XII e XIII – apenas por sua função didática, a “Bíblia dos iletrados”, agregam-se a ela valores muito além da representação. Podendo, então ser tratada como um verdadeiro documento histórico, um documento imagético, um discurso, carregado de intenções. Assim, devemos analisar as imagens pensando em seus diversos usos, manipulações e ritos. Palavras-chave: Idade Média; Crucificação; Franciscanismo.

1

Aluna do curso de graduação em História na Universidade Estadual de Londrina (UEL)

2

Professora do departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL)

670


Raquel de Medeiros Deliberador

significados agregados à imagem ao longo

Introdução Este estudo se desenvolveu acerca

da Idade Média. J. Baschet defende que a

Cristo

imagem religiosa exerce funções muito

crucificado, tema recorrente no contexto da

além de apenas: ensinar, relembrar e

movimentação

religiosa

comover. Como acreditavam e difundiam

particularmente

no

da

representação

visual

de no

Medievo, de

na teologia da imagem dos séculos XII e

desenvolvimento da Ordem Franciscana.

XIII, por isso, eram definidas como “Bíblia

Centramos a pesquisa no afresco da

dos iletrados”. Graças as essas análises e,

Crucificação realizado por Giotto no século

também, mesmo a definição dos séculos

XIV, provavelmente em 1320. A imagem se

XII e XIII demonstram a característica de

encontra na Basílica de São Francisco, em

objeto da imagem medieval, já que não

Assis, e está localizada na Igreja Inferior,

eram

espaço destinado aos frades. Foi realizada

medieval

uma breve comparação dessa imagem,

manipulações e ritos.

ambiente

apenas

representações,

servia

para

a

diversos

arte usos,

com outras duas pintadas por Cimabue no

A partir do século XIII a imagem

século XIII e que se encontram na Igreja

passa a ser usada nas práticas de

Superior.

indulgência. A imagem pode ser estudada

Buscando maior compreensão sobre

e analisada com base ao que representa,

a devoção religiosa do período e a

para que serve, do que ela é feita, analises

construção

franciscana.

internas, formais e iconográficas. O autor

Portanto, este trabalho discorrerá sobre as

ressalta, ainda, que embora tenha-se a

análises

imagéticos

noção de imagem-objeto no contexto da

realizados por dois importantes artistas,

Idade Média ela não se dissocia nem

com

as

apresenta autonomia em relação ao texto.

intenções da pesquisa, e cujo, o tema é

Para J. Baschet, as imagens possuem

recorrente em seu contexto.

funções que vão além do intencional. Jean-

da de

identidade documentos

localização

privilegiada,

para

Os textos de Jérôme Baschet (1996

Claude

Schmitt

e

Jacques

Le

Goff

e 2006) discorrem sobre a imagem na

confluem com essa ideia também no

Idade Média. O autor apresenta a imagem

âmbito do imaginário.

como objeto, e os diferentes valores e

“Mas nós sabemos cada vez melhor [...] que a vida, quer do homem quer das sociedades, está

671


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

tão ligada a imagens como a realidades mais palpáveis. Essas imagens não se restrigem às que se configuram na produção iconográfica e

contrário disso, já que “a imagem-objeto na Idade Média só possui valor pelo seu

artística: englobam também o universo das

caráter localizado. [...] objeto imaginado,

imagens mentais.” (LE GOFF, 1994, p. 16).

cujo

Ou seja, além das intenções dessas imagens-objeto, elas estavam imbuídas de valores simbólicos e do imaginário, o que pode potencializar as representações e intenções dessas imagens, por exemplo, ao retratar São Francisco como uma figura serena e próxima a Jesus em um momento em que todos estão em desespero, e assim enaltecer em vários âmbitos a figura de São Francisco. “De fato, em se tratando da Cristandade medieval, a noção de ‘imagem’ parece ser de uma

singular

fecundidade

compreendamos

pouco

todos

mesmo os

que

sentidos

correlatos do termo latino imago. Esta noção está, com efeito, no centro da concepção

funcionamento

põe

em

jogo

interferências entre visão corporal e visão espiritual” (BASCHET, 2006, p.522) Com base no estudado de Jean Claude Schmitt e Jérôeme Baschet, sobre o desenvolvimento do culto das imagens, sua

propagação

e

variação,

e

a

iconoclastia no Ocidente medieval, além, de, considerar as funções da imagem, ou seja, vê-la mais do que uma representação, como já a consideravam os teólogos da imagem nos séculos XII e XIII. Mais do que isso,

esse

estudo

imagético

foi

desenvolvido através do conceito “imagemobjeto”, de J. Baschet, considerando então

medieval do mundo e do homem: ela remete não

os

somente

intenções da imagem, como em qualquer

aos

objetos

figurados

(retábulos,

esculturas, vitrais, miniaturas, etc.), mas também às ‘imagens’ da linguagem, metáforas, alegorias,

similitudines, das obras literárias ou da pregação. Ela se refere também à imaginatio, às ‘imagens mentais’ da meditação e da memória, dos sonhos e das visões, tão importantes na

diversos

usos,

ritos,

funções,

e

outro documento histórico. Representações da Crucificação A Basílica de São Francisco, em Assis, apresenta uma subdivisão entre

experiência religiosa do cristianismo e que são

duas alas, a Igreja Inferior e a Igreja

muitas vezes desenvolvidas em íntima relação

Superior. A primeira é um espaço mais

com as imagens materiais que serviam a devoção dos clérigos e dos fiéis.” (SCHMITT,

reservado e restrito aos clérigos, as vezes

2002, pp.592-593).

alguns peregrinos tinham acesso a essa

J. Baschet refuta a ideia da cultura

área restrita, em algumas datas ou eventos

medieval da imago acreditando ser o

importantes. Nela se encontra o túmulo de

672


Raquel de Medeiros Deliberador

São Francisco, então era um forte espaço de culto dentro da Basílica. Nessa Igreja se encontram a maioria das representações de crucificação que existem na Basílica, entre elas foi escolhida somente uma, um afresco do século XIV, do pintor italiano Giotto, que está localizado onde fica o túmulo de São Francisco. No total existem sete dessas imagens sendo que cinco delas estão na Igreja Inferior – duas delas são de madeira. E somente duas estão localizadas na Igreja Superior. Essa

segunda

parte

[Igreja

Superior] é a que permite o acesso aos fiéis leigos, em maioria iletrados, e assim, os que não tiveram acesso direto a bíblia. Seus conhecimentos sobre as escrituras estão baseados em interpretações de

deve banir de seu vocabulário a expressão demasiado frequente de ‘leitura das imagens’. É o percurso diacrônico de um texto escrito ou oral que permite apreender o sentido deste. Ao contrário, o sentido de uma imagem é dado na sincronia de um espaço que é preciso apreender na sua estrutura, na disposição das figuras sobre sua ‘superfície de inscrição’, nas relações ao mesmo tempo formais e simbólicas que elas mantém entre si.” (SCHMITT, p.595, 2002).

Considerando essas relações foram escolhidas todas as duas imagens que representam Cristo crucificado que existem na Igreja Superior, elas se encontram no mesmo ambiente. Cada uma em um braço do transepto. E “conversam” entre si, ao apresentarem uma sequência narrativa. Tratam-se de dois afrescos realizados por Cimabue no século XIII. I. Igreja Inferior

outros, dos clérigos, e das imagens que ilustram

algumas

passagens.

Essas

imagens, estariam articuladas aos textos que constam na Bíblia, por exemplo, a imagem de crucificação, abordada nesse trabalho, é um dos temas chaves dentro dessas representações, já que é um tema reconhecido Evangelho,

pela

maioria

dentro

do

de acordo com SCHMITT

(2002) o texto estaria implícito, mas não por isso deve ser lida como tal. “a imagem, mesmo quando participa de um texto, nunca é um texto a ‘ser lido’ e o historiador

Imagem I – Giotto (1320). Crucificação. Basílica de São Francisco, Assis.

673


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

A imagem principal desse estudo foi

Vale ressaltar que a cruz em que Cristo se

produzida por Giotto, provavelmente em

encontra é representada na forma da letra

1320, está localizada na Basílica de São

“Tau”, em homenagem a São Francisco

Francisco, em Assis, na Igreja Inferior,

que por achar a letra semelhante à cruz

espaço destinado para os frades, o que se

tinha uma afinidade pela letra. Pensando

contrapõe à Igreja Superior destinada aos

as questões básicas Giotto teria produzido

leigos, de forma que a imagem assume um

essa obra para reforçar a devoção dos

caráter

sua

franciscanos e fortalecer a ordem dos

localização, conforme os estudos de J.

frades menores perante os peregrinos que

Baschet, “a imagem-objeto na Idade Média

fossem

só possui valor pelo seu caráter localizado.

Francisco, na cripta em que se encontra

[...] objeto imaginado, cujo funcionamento

seu túmulo.

diferenciado

devido

à

à

põe em jogo interferências entre visão

Basílica

II.

destinada

a

São

Igreja Superior

corporal e visão espiritual” (BASCHET,

Essa

2006, p.522).

reafirmada após ser comparada com outras

A Basílica de São Francisco é o principal

duas obras, também com o tema de

espaço

crucificação, do pintor florentino Cimabue

da

iconografia

franciscana,

análise

da

obra

de

foi

portanto, pode-se deduzir que a obra de

(1240-1320),

Giotto adquire função de legitimação dessa

entre os anos de 1277 e 1280.

ordem dos frades menores, permeada pela

Estão localizadas na Basílica de São

espiritualidade, e não uma função didática

Francisco, em Assis, mas situadas em

como poderia exercer se localizada na

outro

Igreja Superior. Um fator que reforça a

Superior,

intenção de legitimação da Ordem e,

transepto, sendo as últimas obras antes da

portanto, a valorização de São Francisco,

entrada para a nave. Nesses dois afrescos

está no fato de justamente esta obra de

São Francisco é representado ajoelhado e

Giotto,

encostado

dentre

outras

pesquisadas,

local.

provavelmente

Giotto

Se

cada

aos

encontram uma

pés

a

da

produzidas

na

um

cruz,

Igreja

lado

o

do

que

representar São Francisco, Santo Antonio e

comparada a obra de Giotto demonstra a

outros franciscanos como se estivessem

consolidação

da

intencionalidade

presentes na crucificação.

674

de


Raquel de Medeiros Deliberador

legitimação da Ordem também para os leigos.

Imagem III - Cimabue (1277-1280), Crucificação. Imagem II - Cimabue (1277-1280), Crucificação. Basílica de São Francisco, Assis.

Diferente da obra de Giotto - que é voltada para os clérigos, mais “próximos” a São Francisco - nas duas imagens de Cimabue a cruz não é representada no formato da letra “Tau” mas em forma tradicional. Não

membros

a da

representação Ordem

além

de de

outros São

Francisco, sendo ele quem se encontra o mais próximo de Jesus, o único ajoelhado a seus pés e o de aparência mais serena e tranquila. Na primeira obra de Cimabue as expressões dramáticas e a tragicidade são reforçadas pelas cores.

Basílica de São Francisco, Assis

Em contrapartida, o segundo afresco (a Imagem III acima), localizado no transepto norte, encontra-se desbotado e representa o momento logo após a morte de Cristo, no qual percebe-se a figura da Virgem Maria em desmaio, os que estavam em volta estão mais afastados, exceto os soldados que estão mais próximos e com as lanças em punho apontadas para o corpo de Jesus crucificado, em relação à primeira imagem, os que se mantém em posições mais semelhantes

são os

anjos que

sobrevoam em volta de Jesus e São Francisco. Essa segunda imagem, se assemelha a de Giotto,

ao

representar

Virgem

Maria

desmaiada, porém de maneira diferentes, na de Giotto a Virgem está quase deitada, já desmaiada e na de Cimabue ainda está de pé, desmaiando. São Francisco também 675


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

está ajoelhado nas três imagens, mas

imagens ao longo da Idade Média são

nessas duas últimas está mais encurvado

fundamentais

encostando na madeira da cruz abaixo dos

deste

pés de Jesus.

considerar “quem realizou” a imagem, “para

Os dois afrescos de Cimabue são as duas

quem”, e com “qual finalidade” influencia

únicas representações de Cristo crucificado

em seus efeitos e em outros valores e

na Igreja Superior, enquanto na Inferior

funções

existem cinco, sendo duas de madeira.

apresentar em diferentes contextos e/ou

Considerando o caráter localizado e o

diferentes métodos de análise.

conceito de imagem-objeto de J. Baschet,

Nesse caso, pensar que Giotto incluiu os

devemos

notar

que

de

franciscanos como personagens presentes

Cimabue

estão

expostas

mesmo

no momento da crucificação de Cristo em

transepto,

uma

as

seguida

imagens no

que

desenvolvimento

Percebe-se

essa

imagem

que

ao

poderia

uma imagem realizada para um local de

apresentando uma sequência narrativa, o

devoção e peregrinação a São Francisco, e

que demonstra que essas imagens de

próximo ao seu túmulo, possibilita uma

crucificação para os leigos se enquadra

dedução,

numa

seja,

nitidamente há a intenção de valorizar e

representa as passagens bíblicas em forma

legitimar a Ordem dos Frades Menores, e

de imagens.

então, elevar a figura de São Francisco,

didática,

outra,

estudo.

o

e

característica

da

para

ou

quase

evidente,

de

que

Considerações Finais

assumindo um caráter mais espiritualizado

A partir da análise de imagens com o tema

e voltado para os clérigos. E que, ao

recorrente em seu contexto, a crucificação,

contrário, Cimabue realiza duas obras que

feitas por dois importantes artistas e

possuem, como uma de suas funções a

localizada na Basílica de São Francisco,

didática, conforme Baschet (1996) como a

em Assis, pode-se perceber que as noções

“Bíblia dos iletrados” para os fiéis leigos.

de imagem-objeto de J. Baschet, e os

Nota-se também que ambos, os três

estudos

afrescos, pretendem legitimar e elevar a

que

acompanham

o

desenvolvimento e ressignificância das

figura de São Francisco.

676


Raquel de Medeiros Deliberador

Referências: BASCHET, Jérôme. Introdução: a imagem-objeto. In: SCHMITT, Jean-Claude et BASCHET, Jérôme. L`image. Fonctions et usages dans l`Occidente médiéval. Paris: Le Léopard d`Or, 1996. P. 7-26 (tradução: Maria Cristina C. L. Pereira). ________ A civilização feudal: do ano 1000 à colonização da América / Jérôme Baschet; tradução Marcelo Rede; prefácio Jacques Le Goff. – São Paulo: Globo, 2006. pp. 17-33, 481550. GIANFRANC, Malafarina de. Assise, La Basilique Saint-François. Seuil, 2011. Imagem I. Disponível em: <http://www.wga.hu/art/g/giotto/assisi/lower/ceiling/09christ.jpg> Acesso: 01/09/2013. Imagem II. Disponível em: <http://cmontagne.files.wordpress.com/2011/09/cimabue-assisicrucifixion.jpg> Acesso: 22/08/2014 Imagem III. Disponível em: <http://www.epdlp.com/fotos/cimabue1.jpg> Acesso: 22/08/2014 SCHMITT, Jean-Claude. Imagens. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário

temático do ocidente medieval. São Paulo: EDUSC, 2002. 1v. pp. 591-607. PELEGRINELLI, André L. Marcondes. Entre o sofrimento e a salvação – as dores de Maria nas imagens de crucificação de Giotto. pp. 76 – 87. In: Anais VI Seminário de Pesquisa do

PPGHS – XIII Semana de História – I Encontro das Especializações em História da Universidade Estadual de Londrina. 2012.

677


ANÁLISE SOBRE A IDEIA DE BOM GOVERNANTE EM MARCO AURÉLIO E O ESTOICISMO COMO INFLUÊNCIA NO CONTEXTO POLÍTICO ROMANO DO IMPERADOR Stéfani de Almeida Onesko 1

Resumo: O presente trabalho aborda a ideia de bom governante presente no Imperador Marco Aurélio (121-181 d.C), nosso objeto de estudo, conhecido como o imperador-filósofo que adotou como fonte a doutrina estoica e seus princípios, influenciando sua vida como um todo. Enfocamos assim, a relação entre a conduta imperial e a perspectiva filosófica estoica para compreender em que medida as ações políticas do governante repercutem os ideais morais expressos pelo estoicismo. Análise das fontes à luz da historiografia voltada para o nosso objeto de estudo no percurso de sua vida política, privilegiando também o tema do estoicismo, sobretudo no século II d.C. em Roma, com a realização de fichas de leitura e resenhas, leitura de diversas obras, inclusive de outros representantes da filosofia estoica como, por exemplo, Sêneca. Logramos com a pesquisa a influência que o estoicismo estabeleceu na vida política de Marco Aurélio, os princípios e valores morais que constituíram em tomadas de atitude de ordem moral e prática. Práticas estas, que demonstraram o quão significativo tendem a ser nossas influências exteriores, ainda mais quando temos em jogo, como no caso de Marco Aurélio, uma filosofia de vida. Com a nossa pesquisa poderemos explicar melhor a ideia de bom governante segundo a perspectiva estóica.

Palavras-chave:Marco Aurélio; Estoicismo; Política.

1UEM

(Universidade Estadual de Maringá)

678


Stéfani de Almeida Onesko Neste trabalho apresentaremos os

ficando até 180, ano de sua morte. Sua

resultados adquiridos em um ano de

vida é marcada por dois momentos, do

pesquisa, decorrente de um projeto de

nascimento-

iniciação científica (PIC-UEM 2013/2014)

metrópole imperial-,

que ainda se encontra em andamento,

acampamento

sobre a ideia de bom governante presente

confrontos (GUAL, 2005, p. 7). Marco

no Imperador Marco Aurélio e a influência

Aurélio fora o último imperador do que os

do estoicismo no contexto político do

historiadores

imperador. Assim sendo destacaremos no

Idade de Ouro do Império Romano.

eu

uma militar

acomodação

na

e da

morte- um

dos

turbulentos

acostumaram

chamar

de

trabalho a seguir, um pouco da biografia de

Em 161 d.C, Marco Aurélio assume

nosso objeto de estudo, assim como as

o trono após a morte de seu pai, teria 40

influências que o atingiram. Analisaremos

anos de idade, há algum tempo já havia

ainda, as fontes (Meditações e Epístolas

ocupado muitos cargos no Império. Como

Morais à Lucílio) que atestam os modos de

seu pai, nunca lutou pelo posto mais alto

pensar de Marco Aurélio, e em seguida de

de Roma, no entanto, com a experiência

Sêneca, que será crucial para entendermos

imperial

os princípios da filosofia estoica, até porque

desempenhou papeis importantes, assumiu

antecede o Imperador como um grande

seu papel como sucessor do trono.

nome da escola filosófica pertinente. Por

nos

Quando

cargos

que

escreveu

o

mesmo

Meditações,

fim, observaremos algumas das ações

Marco Aurélio deixou de forma clara as

políticas de Marco Aurélio no papel de

influências que contraiu durante sua vida

Imperador de Roma e como elas se

pré-imperador, a partir dos entes queridos

concentram na perspectiva estoica.

com os quais conviveu e os valores

Marco Aurélio e suas influências

retirados dos mesmos. Os entes queridos,

Marco Aurélio, mais conhecido como Imperador

Marco

em

Marco Aurélio necessitava para efetivar sua

121.d.C. Filho de Ânio Vero e Domícia

conduta posteriormente e que acabou

Lucila, foi criado por seu avô, já que seu

entrelaçando-se com os preceitos estóicos.

pai faleceu logo após seu nascimento. Fora

Resumidamente, as principais virtudes,

adotado por Antônio Pio, imperador que o

segundo os estóicos, captadas de seu

antecedeu

com

círculo familiaradvém da descrição e honra

Faustina, filha de Antonino, e após a morte

de seu pai, o caráter e a serenidade de seu

de seu pai adotivo, sucedeu ao trono

avô, a generosidade e piedade de sua

em

Aurélio,

Roma,

nasceu

familiares e amigos, deixaram o legado que

casou-se

679


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

mãe, a educação intelectual herdada de

com

seu bisavô.(AURÉLIO, 2005, p.47-58)

favorável aos ensinamentos da doutrina

que

ele

acabasse

sendo

muito

O imperador fora brindando com

estoica, pelos valores que contemplou em

bons professores particulares de Roma.

entes familiares e amigos e que propôs a si

Com os mesmos, além das lições de

mesmo, e que por fim acabaram se

gramática, retórica e filosofia, aprendeu

encaixando na filosofia adotada por ele.

valores de ordem moral, principalmente a

Foram a partir de toda influência externa e

bondade e a firmeza ética. Entre os

com sua personalidade já desenvolvida que

professores

o

de

Aurélio,

dois

se

mesmo

marcou

nome

na

doutrina

destacaram, Frontão que desejava fazer de

estoica, principalmente pelo papel que

seu aluno um grande orador, dando muita

desempenhou na sociedade. O que marcou

atenção

aluno.

profundamente o mesmo para sempre no

mais

rol dos adeptos da filosofia estoica fora

sucesso para com seu aluno, já que

Meditações, escritos que Marco Aurélio

apresentou a filosofia para Marco Aurélio,

desenvolveu durante expedições militares,

um

já no comando imperial.

Enquanto

ao

lado

isso,

professor

retórico

Rústico

de

do

obteve

filosofia

adepto

da

doutrina estoica.

A reflexão estóica em Meditações

Mas de todas suas influências, seu

Marco Aurélio nos deixou como

pai adotivo (Antonio Pio) aparece como,

herança de seu pensamento Meditações,

talvez, a maior delas. T. Aurélio Antonino,

uma obra escrita no final de sua vida, em

fora tio político, pai adotivo e sogro de

que é possível observar os princípios que o

Marco Aurélio. O mesmo teve um papel

mesmo acreditava serem plausíveis. A obra

fundamental na vida do filho adotivo, tanto

foi escrita em meio à um turbilhão de

em sua conduta imperial quanto na sua

acontecimentos, de batalhas e disputas,

postura como indivíduo. A sua fama se

que Marco Aurélio se ateve em seus 19

circunscrevia à um imperador de caráter

anos de mandato.

humanitário e sensível. Deu-se a entender

A grande essência da obra de Marco

que T.Aurélio Antonino , segundo Gual

Aurélio é a natureza moral, os valores os

(2005, p. 14), tinha uma certa simpatia

princípios que endossam a filosofia, a obra

pelos preceitos da filosofia que seu filho

não é de natureza literária. Foi uma

depois adotaria, o estoicismo.

retomada de consciência, uma verdadeira

As influências que Marco Aurélio captou durante o seu pré-império fizeram

meditação humana sobre a vida e também sobre a morte.

680


Stéfani de Almeida Onesko Em seus escritos podemos observar

A injustiça e a calúnia agiriam de

algumas passagens em que o mesmo

forma muito semelhantes, pelo fato de

procede este exame de consciência e

agirem impiedosamente, até mesmo contra

reflexão sobre as ações humanas, estando

os deuses. Já que é a verdade que os

sempre baseado na doutrina que adotou

estoicos buscam a todo tempo e em todas

para servir-lhe de fonte. Observaremos a

as coisas, a mentira e a injustiça passam a

obra com o intuito de entender inclusive a

ser dois elementos que deve se evitar. A

teoria estóica, base central para nosso

injustiça se comete não só quando se faz

trabalho.

determinada coisa, mas também, quando

Marco Aurélio (2005, p. 60) chamava atenção em seus escritos pela necessidade de

concentrar-se

na

Providência,

nos

se deixa de fazer alguma. A Providência cuidaria das coisas humanas,

asseguraria

ao

homem

de

esclarecimentos e preceitos da natureza,

virtudes muitas felicidades. O homem

pois a única chance para isso, seria em

dotado de virtudes e de razão não teria

vida, não havendo outra. Estes preceitos

medo da morte, pois é da natureza este

incluiriam a responsabilidade das ações.

acontecimento, era preciso encará-lo com

Estas

com

sabedoria e sem temores. Marco Aurélio

seriedade, com sentimento, com autonomia

resume muito bem a morte como uma

e justiça, abandonando a hipocrisia, a

passagem, quando menciona esta frase

aversão

o

“Embarcaste fizeste a viajem, chegaste ao

inconformismo com o destino imposto. As

porto; desembarca!” (AURÉLIO, 2005, p.

pessoas deveriam se apressar na busca

71). E continua refletir em seus escritos:

deveriam

à

ser

razão,

o

realizadas

egoísmo

e

pelo conhecimento e pela reflexão, pois a morte

está

sempre

muito

próxima,

oferecendo assim, um risco quanto ao tempo que ainda se tem para habilitar-se conforme a natureza e no respeito aos

[...] o que é morte e o fato de que, se a olharmos em si mesma e pela força de abstração da reflexão decompusermos em suas partes todas as coisas que se apresentam à imaginação, nela veremos que é apenas uma operação da natureza, e quem se atemoriza com uma operação da natureza é uma criança. (AURÉLIO,

deuses. A reflexão para com os deuses era

2005, p. 63-64)

não no sentido de pedir algo material ou

Em certa medida, essa anulação do

em benefício de si próprio, mas no sentido

sentimento de morte, do temor e medo à

da filosofia, a fim de adquirir força para

ela, pode ser justificado, segundo Gual

evitar o sentimento dos vícios, a dor, o

(2005, p. 11), pelas várias mortes de entes

prazer, enfim todos eles.

queridos que Marco Aurélio presenciou em

681


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

vida, a de seu pai, de sua esposa, de seu

a grande meta. Pois, “tudo que acontece a

irmão e de alguns filhos, além das diversas

cada um é útil ao todo [...] tudo que é útil a

guerras em que participou e se deparou

um homem é útil também aos outros

com milhares de mortes.

homens”.

A ideia da morte, em sua obra,

(AURÉLIO,

Observamos

então,

2005, o

p.

125)

sentido

de

constata-se de forma evidente, até mesmo

comunidade presente na obra Meditações,

como se o autor estivesse pensando na

que vai dar base para entender boa parte

sua mesmo, sendo assim, parecia estar

das ações de Marco Aurélio. Para este

atento e sempre em guarda para com suas

último, pensar em si é o mesmo que pensar

ações.

na comunidade, e o mesmo tentou a partir A alma deveria ser cuidada evitando

das

virtudes

os vícios, os desejos e as paixões,

proporcionou,

caminhando sempre de acordo com os

comunitário.

que

a

atender

filosofia este

lhe

espírito

deuses. A alma não iria de encontro com a

A obra Meditações do Imperador

natureza quando o indivíduo subestimasse

romano Marco Aurélio é um berço de

a razão. A falta de virtudes perturbaria a

princípios estoicos, que nos fazem a partir

alma,

sendo

daí refletir sobre as ações políticas do

cometidos quando algum ato não fosse

Imperador. Mas antes disso, podemos nos

refletido e nem analisado. Para que se

aprofundar mais efetivamente por estes

evitassem os vícios, era necessário se ater

princípios que serão resgatados na obra de

à filosofia estoica, esta sim, possibilitaria ao

Lúcio Aneu Sêneca, Epístolas Morais à

homem viver de acordo com a razão e com

Lucílio, nos auxiliando a entender o

a natureza.

propósito da filosofia estoica de forma a

e

os

erros

acabavam

[...] E, para dizer tudo em uma palavra, tudo que diz respeito ao corpo é como um rio, sempre fluindo; o que pertence à alma é um sonho e

garantir um melhor entendimento sobre a filosofia adotada por Marco Aurélio, nosso

névoa; a vida é uma luta, um exílio em terra

objeto de estudo. Lembrando que Marco

estranha; o renome é esquecimento. Que é,

Aurélio seguiu os passos de Lúcio Aneu

então, que pode guiar-nos? Uma só coisa, apenas uma: a filosofia. (AURÉLIO, 2005, p. 66)

Para o imperador, as coisas que fossem úteis e positivas à Roma, seriam refletidas no mundo, e o Império seria beneficiado. Para o imperador, como para os homens, servir a Pátria e a cidade, seria

Sêneca, e foi seu sucessor para seguir os ditames da doutrina estoica. Os princípios estoicos de acordo com as Epístolas Morais à Lucílio Na obra Epístolas Morais à Lucílio, o objetivo a ser alcançado por Sêneca em

682


Stéfani de Almeida Onesko seus escritos foi direcionar seu amigo

razão e a natureza. Esses três elementos

Lucílio aos caminhos da filosofia estóica e

estariam sempre em harmonia com a

princípios que a mesma abarcava. Mesmo

filosofia

sendo direcionado à um amigo íntimo, a

entrelaçariam.

estoica,

os

mesmos

se

obra está recheada dos princípios morais

Um dos pontos mais marcantes na

da filosofia que nos ajudam a pensar mais

obra se refere ao valor das virtudes

sobre esta doutrina. A moralidade é a

realizadas

essência da obra, contendo exemplos de

independentemente de classe social, de

pessoas

condena

nação, de riqueza e de laços familiares.

determinadas ações ou as que são usadas

Tanto mais valia um escravo incumbido de

como

virtudes e que as praticasse, do que um

diversas, exemplos

a de

quem

admiração

que

por

qualquer

poderiam servir de exemplo. Sêneca, assim

homem

importante

que

como Marco Aurélio, não deram tanto valor

submetesse aos vícios.

indivíduo,

apenas

se

à retórica, mas ao que a terceira geração

A filosofia que prepara o homem

da filosofia estoica julgou e estudou com

para a morte, de acordo com Sêneca

maior intensidade, e, portanto, acabaram

(1986), deve estar de acordo com a vida

por dar mais importância: a moral.

que o mesmo levou enquanto vivo. Se a

Existiam duas naturezas humanas

vida fosse praticada de modo imperfeito,

que poderiam ser seguidas: a inferior, em

pelo menos no momento decisivo, o da

que o homem seguiria os instintos da

morte, o homem deveria procurar viver bem

natureza e não a natureza em si. Nestes

e de acordo com os princípios estoicistas.

instintos se refletem as paixões, dos quais

A filosofia deveria ser vivida, praticada, e

os

não

animais,

que

agem

por

instinto,

apenas

acumulada

como

possuem. Ou, uma superior em que o

conhecimento desprovido de valor moral. A

homem não se deixaria levar por seus

filosofia torna-se para o homem uma

instintos, mas sim e unicamente pela razão,

fortaleza

assemelhando-se aos deuses. A razão na

momentos da vida, seria o grande porto

filosofia estoica, segundo Sêneca (1986), é

seguro para que o homem se preparasse

que deveria imperar sobre as nossas

bem para sua morte. O objetivo da filosofia

vontades naturais e senão eliminá-las, pelo

consistiria em dar forma e estrutura à

menos controlá-las.

nossa alma, em ensinar-nos um rumo na

que

auxilia

nos

diversos

Sêneca constrói três pilares para

vida, em orientar os nossos atos, em

uma vida conforme à filosofia: a virtude, a

apontar-nos o que devemos fazer ou pôr de

683


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

lado, em sentar-se ao leme e fixar a rota de

política do imperador-filósofo, que mais nos

quem flutua à deriva entre escolhos.

interessa, e o ideal de bom governante

Sêneca

defende,

como

Marco

entrelaçado com a doutrina estoica.

Aurélio defenderá posteriormente, uma

Marco Aurélio: sua conduta política em

sociedade humano-divina que abarca o

meio ao estoicismo

mundo inteiro e se constitui em pátria

A partir dos Imperadores Trajano,

comum e casa de todos. Como membros

Adriano

desta sociedade baseada na filosofia, os

acompanhamos um resgate da filosofia,

homens são concidadãos entre si, e o

observando

espírito de dever à comunidade como um

Estoicismo,

todo será muito forte na mesma.

pessoa do Imperador Marco Aurélio. O

Tudo isto que inclui as coisas divinas e as humanas é unidade; somos membros de um grande corpo. A natureza nos tem constituído

e

Antonino com que

no

maior fora

século

II,

ênfase

o

aprofundado

na

estoicismo representado pela total adesão de Marco Aurélio ofertou um horizonte no

mesmos

que diz respeito ao modo de lidar com a

elementos e para o mesmo fim; ela nos fundiu o

vida, servindo de fonte para o imperador-

parentes

ao

engendrarmos

os

amor mútuo e nos fez sociais. Ela estabeleceu a equidade e a justiça. Daí se deduz as admiráveis

filósofo, como um meio de reflexão sob sua

consequências de ordem moral e humana: Por

conduta. O momento que possibilitou essa

seu decreto (a natureza) é mais desgraça danar

análise, essa meditação por parte de Marco

que ser danado; por mando seu as mãos tem de estar dispostas a ajudar. [...] Temos as coisas em

Aurélio, sobre a vida, ocorreu nas suas

comum, pois temos nascido para a comunidade.

expedições militares de acordo com Jean

(SÊNECA, 1986, p.208-209)

Brun (1986,p. 22-23).

A busca pela excelência e pela virtude é evidente em quem adotava a filosofia estóica, tanto em Marco Aurélio quanto em Sêneca, a busca intensa pela perfeição moral era o objetivo a ser traçado. Diante

desta

obra

conseguimos

observar a importância da mesma para observarmos

os

aspectos

teóricos

do

estoicismo e, na outra, as reflexões de Marco Aurélio sobre a sua vida. Com isso já em mente, podemos entender a conduta

Marco Aurélio como imperador, fora criticado pelas pessoas que o mesmo incumbia para ocupar posições relevantes, no exército e na administração imperial. Seu irmão e outros personagens são retratados

pela

exemplos

claros

historiografia, de

como

futilidade

em

comparação com o Imperador. É a partir daí que os conceitos do estoicismo ajudamnos a entender até que ponto os mesmos influenciaram na conduta imperial de Marco Aurélio.

684


Stéfani de Almeida Onesko A História Augusta não deixa de

de excelência, unindo sua postura filosófica

caracterizar como odiosas as figuras de

e

sua

Lúcio Vero, Avídio Cássio, Cómodo e

assassinado a mando do exército contra a

Faustina, que, postas em comparação com

vontade do Imperador.

como

Avídio

fora

este não alegrou ou exultou-se, mas entristeceu-

que diz respeito ao caráter do imperador, considerados

política.

E quando a sua cabeça foi trazida a Antonino,

Aurélio, retratam-se totalmente inversas no eram

posição

se por não ter tido a oportunidade de lhe mostrar

extremistas,

misericórdia, pois disse que tinha a intenção de mantê-lo vivo para que pudesse censurá-lo com

sádicos e monstros, servindo de antítese à

a bondade que lhe tinha mostrado no passado, e

imagem de um príncipe-filósofo. (ALVES,

então poupar-lhe a vida. (SHA, Avídio Cassio,

2010, p.68)

1991 p. 248)

Apesar de ser o oposto do irmão,

A bondade e piedade estão inseridas

Marco Aurélio sempre mostrou para com

nas práticas de Marco Aurélio e também

seu

nos princípios estóicos. Para os retóricos

ente

familiar

afeição

e

respeito.

Faustina, mulher de Marco Aurélio, era

gregos,

retratada como uma mulher infiel ao

posição de intelectual grego e de imperador

marido, desonrosa para com o mesmo.

Romano, ao fazer a conciliação do filósofo

Porém,

de

e governante. Sempre tentou agir de

infidelidade, Marco Aurélio sempre se

maneira razoável para com todos, tentando

manteve tranquilo e imaculado com tais

conter

boatos, não só os de sua mulher, mas com

maliciosas e assim direcioná-los ao bem,

todos os outros. Marco Aurélio procurou

sempre

sempre defender o irmão, e ignorar as

recompensas e na sua capacidade de

infidelidades de sua mulher, reforçando a

perdoar, sempre na tentativa de transmitir a

tolerância e sabedoria que o estoicismo o

bondade

ensinou.

Aurélio, 1991, p. 163)

apesar

destes

rumores

Marco

os

Aurélio

homens

se

em

mostrando

aos

homens.

assume

uma

suas

ações

generoso

(SHA,

nas

Marco

Um dos episódios bem marcantes da

Marco Aurélio sempre teve muito

vida de Marco Aurélio, no qual é evidente a

respeito para com o Senado, mas sempre

benevolência do mesmo diante do aparato

chamava a atenção que para um Senado

espiritual que possuía, pode ser verificado

ter

na rebelião de Avídio Cássio contra Roma.

oportunidade de oferecer aos acusados de

O imperador não se alterou e nem mostrou

determinados atos ilícitos, serem ouvidos

rancor para com Avídio Cássio. Esse

por um juiz que representasse o povo.

episódio serviu para mostrar o seu caráter

(SHA, Marco Aurélio, p. 158-161) “Aurélio

honra

fazia-se

necessário

dar

685

a


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

segue o modelo de governação do Império

uma reflexão, agindo ao acaso e se

como uma aceitação do dever público,

angustiando em muitas situações. No

tendo

que

proteger

concidadãos”(BÉRANGER,

os

seus

homem estoico, haveria um esforço por

1953,

apud

parte do indivíduo a fim de agir com justiça

ALVES, 2010 p.75)

à

A conduta baseada no estoicismo e

serviço

da

dependem

do

confronto

dependem

do

que

Marco

Aurélio

aceitando

passivamente os acontecimentos que não

o orgulho no seio imperial juntam-se ao vitorioso

comunidade, ser

humano

destino),

(no

caso

refletindo

e

obteve sobre os bárbaros e à forma

analisando na busca pela verdade, pela

excepcional como lidou com situações

razão. Marco Aurélio em seus escritos

delicadas. O imperador sempre buscou, de

oportuniza então aos homens, a busca pelo

acordo com o estoicismo, ser firme em

modo mais correto de se viver.

suas atitudes e ordenações. Não só no que diz respeito à uma posição firme, mas em todos os aspectos baseados no estoicismo, na sua postura para com os diversos momentos em que viveu e lidou com os mesmos.

“Em

suma,

Marco

Aurélio

Tenha-se sempre em consideração que o imperador-filósofo nunca teve a intenção de realizar um tratado moral, mas, ao insistir na ideia que o cidadão de uma grande cidade tem ao seu dispor todas as formas naturais da Providência, acaba por transmitir um modelo de «bom homem» e «bom governante». (ALVES, 2010, p. 97)

que

Para Marco Aurélio e para Sêneca,

permanece digno e nobre diante da morte

como fora visto, o homem tem um fim

de familiares, desastres públicos, enganos

social, pois, nasce numa comunidade e

e hipocrisias de cada personagem que

com ela se habilita como um ser racional:

passa por si.” (GUAL, 1977, p. 7-25.)

“Cada ser deve fazer o que está em

assume-se

como

um

guerreiro

Quando buscamos em Marco Aurélio

relação

com

a

sua

constituição.

[…]

o homem ideal, verificamos a busca do

Portanto, o caráter que predomina na

“bom político”, um homem inserido no

constituição do homem é a sociabilidade.”

social, no político, no moral, enfim, nos

(AURÉLIO, 2005, p. 139-140)

diferentes papeis dentro de uma sociedade.

Novamente podemos observar o

Resgatamos, a partir daí, este ideal que o

sentido de comunidade que Marco Aurélio

mesmo se apropriou embasando-se nos

quer inculcar em suas palavras. Já que a

preceitos

a

lei era comum à todos, todos se tornavam

filosofia deveria ser inerente ao homem. No

concidadãos, a unidade só se torna efetiva

homem comum observamos a ação sem

quando a comunidade tem as mesmas

estóicos.

Primeiramente

686


Stéfani de Almeida Onesko predisposições. O ser racional deve se

De acordo com a História Augusta

comprometer à obedecer à lei e ao Estado

(1991),

Marco

Aurélio

- maior, nesse caso o Império, para que

propostas

haja a harmonia entre toda a sociedade. A

necessitados. “Criou várias sábias medidas

filosofia de Marco Aurélio torna o homem

para o apoio do Estado aos pobres […]”

um ser totalmente social, que não visa para

(SHA, Marco Aurélio, 1991, p.161-163) e

se satisfazer a si próprio, mas ao conjunto,

promulgou leis que geriam o dinheiro e

de acordo com o imperador,a dignidade

vendas públicas.”

está na competência de interagir.

1991

para

p.

desenvolveu

ajudar

(SHA,

156-157).

os

mais

Marco Aurélio,

Além

disso,

os

Não há dúvida que Marco Aurélio

escravos, as crianças e as mulheres não

procurava na medida do possível se

ficaram fora do âmbito de humanidade do

encaixar na filosofia que o mesmo adotou,

Imperador.

buscando

os

preceitos

estoicos

nas

realizações das tarefas. Pretendia justiça e a atividade sócio-política. Por mais humano que fosse, não evitou as guerras, pois

Criou instituições de apoio à alimentação infantil como os PueriAurelianiouVerani, e

PuellaeFaustinianae,

as

supervisão

ao

confiando

a

praefectusalimentorum

(consular ou pretoriano), que geria também

entendia que precisava defender o seu

o

povo acima de tudo, pois não podia fugir às

crianças. Os filhos começaram a ter direito à

suas responsabilidades. Segundo Brunt (1974), sua conduta política afasta-se da tirania, já que o mesmo procura praticar

dinheiro

público

referente

a

estas

herança da falecida mãe através do ab intestato

no senatusconsultumOrfitianum,

mas

importância

a

desta

medida

é

impossível de determinar. Na historiografia

uma vida simples e ascética, contrária ao

em geral, existem cerca de 60 exemplos

luxo e prazeres.

sobre a legalidade dos escravos e libertos.

Marco

Aurélio

tinha

repulsa

à

violência, por exemplo, nas batalhas entre os gladiadores, obrigou-os a lutar com armas embotadas para que os mesmos tivessem chance de viver, tentou o máximo possível, limitar os conflitos sangrentos. Segundo, Pimentel (2002, apud ALVES 2010, p. 106) Marco Aurélio, lutou contra os exageros

cometidos

e

os

despendidos nestes jogos públicos.

gastos

(ALVES, 2010, p. 109)

SegundoNoyen

(1955),

Marco

Aurélio fora um protótipo político ideal porque não permaneceu só na teoria da filosofia, mas colocou seus princípios em prática. Alguns princípios que abarcaram Marco Aurélio durante sua passagem política se limitam ao amor e apreço pela verdade e pela justiça; a concepção de uma constituição equilibrada, e de uma

687


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

monarquia que considerava a liberdade do

Observamos primeiramente, a história de

indivíduo. (NOYEN, 1955, p. 372-383)

Marco Aurélio e as influências que o

De acordo com PiereHadot (1992), o

mesmo sofreu durante sua vida porpessoas

imperador mantém-se simples, não foca

ligadas à ele, além das fontes que nos

profundamente os dogmas estóicos, mas

baseiam

cria um modelo de vida, um modelo político

Meditações de Marco Aurélio e Epístolas

onde se idealiza uma sociedade perfeita.

Morais à Lucílio de Sêneca, e por fim o

Conclusão

para

tais

entendimentos,

papel político desempenhado por nosso

Portanto, analisamos um pouco do

objeto de estudo, tendo sempre em mente

conjunto de fatores que constroem nosso

a influência da doutrina estoica nas ações

objeto de estudo na concepção de bom

políticas e morais.

governante a partir dos princípios estoicos.

Referências: ALVES, Sérgio Lourosa. Marco Aurélio e Cómodo, a luz e a sombra: a construção

historiográfica da dinastia Antonina.Lisboa: Universidade de Lisboa, 2010. AURÉLIO, Marco. Meditaciones.Madrid: Editorial Gredos, 2005.225 p. BÉRANGER, J. Recherches sur l’Aspect Ideéologique du Principat. Bâle: 1953. BIRLEY, Anthony Richard.Marcus Aurelius, a Biography.New York: Editora:Barnes & Nobles Books/Routledge, 1999. BRUN, Jean. O Estoicismo. Lisboa: Biblioteca Básica de Filosofia,Edições 70. [1986?]. 116 p. BRUNT, P. A.Marcus Aurelius in His Meditations.Oxford: Society for the Promotion of Roman Studies, 1974. GUAL, Carlos García. Introduccíon de las Meditaciones.Madrid: Editorial Gredos, 1977. HADOT, Piere. La Citadelle Intérieure – Introduction aux Pensées de Marc Aurèle. Paris: EditoraFayard, 1992. NOYEN, P. Marcus Aurelius, The Greatest Practician of Stoicism. Bruxelas: Fondation Universitaire, 1955. PIMENTEL, Maria Cristina. Os Jogos na Roma Antiga. Évora: Universidade de Évora, 2002.

688


Stéfani de Almeida Onesko

ScriptoresHistoriaeAugustae.Trad. David Magie.Cambridge: Harvard University Press, [1991?].493 p. SÊNECA, Lúcio Aneu. Epístolas Morales a Lucilio.Vol I,Madrid: EditorialGredos, 2005. 511 p. SÊNECA, Lúcio Aneu. Epístolas Morales a Lucilio.Vol II,Madrid: EditorialGredos, 2005. 456 p.

689


A CRÔNICA GERAL DE ESPANHA DE 1344: COMO SUPORTE PARA A CONSTRUÇÃO IDEALIZADA DE AFONSO HENRIQUES, REI DE PORTUGAL Willian Brusch 1 Adriana Mocelim (orientadora) Resumo: O reino português surge a partir do processo de emancipação iniciado por Afonso Henriques, na vitória da Batalha de São Mamede em 1128. À frente do Condado ele desempenha um grande papel de busca por apoio político, faz alianças com as autoridades eclesiásticas e nobres. Em 1179 ele é reconhecido como rei Português. Foi objetivo de a presente pesquisa analisar a trajetória do rei Afonso Henriques a partir da Crônica Geral de Espanha de 1344. Através da análise foi possível levantar as virtudes do rei ideal, presentes na descrição. Foi possível assim caracterizar um modelo de “rei ideal” que a obra buscava projetar na realidade do século XIV. O método utilizado nessa pesquisa foi à elaboração do contexto do reinado de Afonso Henriques, a partir de análises de autores de referência para o período. Em seguida foi necessário conhecer o contexto do século XIV, momento de redação da Crônica, assim possibilitando a análise da imagem do rei projetada na obra. Levando em conta sua importante atuação política é que o Conde Pedro Afonso de Barcelos, escrevendo a Crônica Geral da Espanha de 1344, utiliza a descrição da personagem de Afonso Henriques para transmitir às pessoas de seu tempo uma imagem idealizada do monarca, um modelo a ser seguido. São destacadas ao longo do texto virtudes como: a necessidade de ser um bom cristão, ser verdadeiro, praticar a justiça, ser manso, ser nobre, ser piedoso, ser conquistador, ser esforçado, ser leal, além do dever respeito aos fidalgos e seus súditos. Palavras-chave:Afonso Henriques; Crônica de 1344; virtudes.

1PUCPR

690


Willian Brusch MARQUES, 1996, p. 34)

1. Afonso Henriques Portugal nasce à sombra de um bom cavaleiro francês, como cita Veríssimo Serrão (1979), este é D. Henrique.

D.

Raimundo da Borgonha, em 1090 vem para os reinos peninsulares a fim de desposar Urraca única filha legítima de Afonso VI, rei de Leão e Castela. Posteriormente D. Henrique também a mando do duque borgonhês Eudo I, ele se desloca até o reino para casar com D. Teresa filha ilegítima do rei Afonso VI. O Condado Portucalense nasce em grande medida sobre estas relações, pois segundo

Oliveira

Marques

(1996),

Raimundo recebe o condado da Galiza em sua totalidade para o seu governo e proteção, assim atuando com vassalidade a Afonso VI. Então anos mais tarde, mais especificadamente em 1096, talvez por Afonso VI não confiar em D. Raimundo, após seu fracasso em 1094 em Lisboa como aponta Veríssimo Serrão (1979), D. Henrique recebe sobre sua tutela as regiões entre os rios Minho e Douro e ao sul do Douro, graças à demonstração de sua destreza militar,

D.

Henrique

havia

recebido

o

condado em forma de doação, por Afonso VI, em virtude de seu casamento com D. Teresa, mas isso não o desvincula do rei,[...] a doação surgia, porém, garantida pela vassalagem que o marido de D. Teresa devia ao rei leonês e que não lhe custava respeitar na medida em que podia talhar pelas armas a sobrevivência da terra que

lhe

fora

confiada.

(VERÍSSIMO

SERRÃO, 1979, p. 76-77). Com a morte de Raimundo em 1107, e Afonso VI em 1109, o cenário político da península

se

complica,

como

coloca

Oliveira Marques (1996), Urraca herda a coroa de seu pai, mas não o título de imperador, a herdeira se casa com Afonso I de Aragão em 1109, e até o ano de sua morte em 1126 se desenrolam uma série de guerras civis. O Conde D. Henrique morre em 1112, e deixa grande contribuição para independência

posterior

do

Condado

Portucalense perante os outros reinos peninsulares. A partir deste momento D. Teresa desempenha papel de grande

[...] os três territórios fronteiriços do extremo

importância na administração do Condado

ocidental,

Portucalense. Segundo Veríssimo Serrão

que

convinha

colocar

em

mãos

aguerridas e experimentadas, pela sua situação de risco: a Galiza (a norte do Minho), Portugal

(1979) D. Teresa concede forais 2 assim

(entre os rios Minho e Douro) e Coimbra (a sul do Douro).

Raimundo

senhoreou

primeiro

a

totalidade, recebendo Henrique, em 1096, os dois condados mais meridionais. (OLIVEIRA

2

Eram assim designadas as cartas de lei criadoras dos

concelhos. Os direitos e privilégios, de que beneficiariam os habitantes [...] exaravam-se no texto do foral. [...] O

691


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

favorecendo a habitação no condado, e

aponta

também acaba por fazer aliança com

afastamento

galegos visando à redução da influência de

daqueles a quem D. Henrique havia

Urraca sobre estes territórios.

favorecido, já não mais estão nestes

Segundo Mattoso (1997), D. Teresa

Mattoso

(1997),

desta

temos

corte

um

portuguesa,

cargos, o que gera posteriormente um

acaba por ser pressionada, de um lado por

grande

barões portugueses, que desejam manter a

aristocracia que acaba por escolher Afonso

autonomia do Condado Portucalense, e de

Henriques, filho de D. Teresa e D. Henrique

outro

à

para tomar o poder. Em 1128, próximo a

reintegração do condado a Galiza. Por sua

Guimarães se dá o embate entre Afonso

vez os Trava (Nobres Galegos) tomam

Henriques e Fernão Peres de Trava, na

frente às relações com D. Teresa, assim

batalha de São Memede, mas muito além

um '' [...] casamento consolidaria a sua

da vitória de Afonso Henriques, os barões

preponderância na Galiza e resolveria o

portucalenses seriam os responsáveis por

problema da divisão do antigo reino do rei

seu triunfo sobre o Trava e D. Teresa.

Garcia. '' (MATTOSO, 1997, P. 47). Fernão

Refutaram

Peres de Trava acaba por estabelecer

condado por um nobre galego, além da

relações com D. Teresa que desde 1117

possível anexação territorial do condado à

utilizava o titulo de Rainha, nesse sentido:

Galiza como explicita melhor

por

galegos,

que

visam

Desde 1121 que os diplomas oficiais do Condado trazem

a

confirmação

de

um

<<comes

Fernadus>>, ou seja, do galego D. Fernão Peres de Trava, que tão forte papel, não apenas político

mais

também

de

união

íntima,

desempenhou junto de D. Teresa. [...] Não oferece dúvida que o afecto de D. Teresa se traduziu em vários actos que levaram ao domínio senhorial do conde de Trava em terras do Mondego. (VERÍSSIMO SERRÃO, 1979, p. 80)

Em se tratando da relação da nobreza

portucalense

em

1121

como

descontentamento

um

possível

desta

domínio

do

Mattoso

(1997): Quem venceu em São Memede não foi apenas Afonso Henriques, mas em primeiro lugar, os barões

portucalenses,

que

rejeitaram

a

autoridade dos Travas no condado e escolheram o infante para seu chefe. Ao afastarem Fernão Peres, recusavam-se a aceitar a política da alta nobreza galega e do arcebispo de Compostela e proclamavam a inviabilidade de um reino que englobasse a Galiza e Portugal. (MATTOSO, 1977, p. 53)

A batalha de São Memede marca o início do poder de Afonso Henriques sobre

seu principal objetivo seria fixar expressamente as

o condado portucalense, ''mesmo que na

normas reguladoras entre governantes e governados do

política de D. Afonso Henriques não se

concelho. Mas os forais continham numerosas regras a observar em assuntos de natureza privada, oriundas de

vislumbre, [...], a marca da realeza, [...] o

contratos [...].’’(FERREIRA, 1951, p. 82)

692


Willian Brusch pensamento

da

autonomia

define

a

deveria prestar vassalagem a Afonso VII

actuação do herdeiro do conde borgonhês.''

que ‘’ [...] que estava no auge do poderio,

(VERÍSSIMO SERRÃO, 1979, p. 81).

como prova o reconhecimento feito nas

Segundo Mattoso (1997) as relações

Cortes de Leão, a 4 de julho de 1135, do

que Afonso Henriques mantinha com a

título

nobreza

Espanha>>.’’(VERÍSSIMO SERRÃO, 1979,

não

possibilitavam

uma

de

Afonso

VII

de

<<toda

a

autonomia, portanto no ano de 1131, o

p.

infante se estabelece em Coimbra junto ao

reconhecimento

mosteiro de Santa Cruz de Coimbra.

territórios da Península Ibérica, e com o

Temos, portanto uma grande vantagem ao

infante não era diferente. Nesse acordo ''

futuro monarca, um favorecimento perante

Afonso Henriques prometia ao seu senhor

a igreja assim como seu apoio, além de

fidelidade [...], segurança, auxílio militar e

permanecer longe da nobreza nortenha,

conselho. ''(OLIVEIRA MARQUES, 2010, p.

possibilitando um maior controle sobre o

80)

território.

82).

imperador

dos

Possibilitando

necessitava governantes

certa

do dos

calmaria

no

A relação de Afonso Henriques com

norte, Afonso Henriques se volta na luta

seu primo Afonso VII, filho de Raimundo e

contra os muçulmanos, esse era um dos

Urraca, era demasiadamente hostil no

fatores que dava unidade aos reinos

período de 1128 a 1137 como mostra

cristãos, o combate ao ‘’infiel’’. Em 25 de

Oliveira Marques (2010), o infante procura

julho de 1139, comenta Veríssimo Serrão

a expansão do território além da pretensão

(1979), decorre a batalha de Ourique, entre

de autonomia do seu condado perante os

Afonso Henriques e os muçulmanos, no

outros reinos peninsulares, e o título de rei.

entanto não se sabe ao certo quem teria

A

construção

independência

iniciado o ataque. O contingente que o

como mostra Mattoso (1997) se faz através

príncipe português mobilizou, era de alto

de

o

número de guerreiros.Ourique se mostra

desenvolvimento de uma base social forte,

como uma das principais batalhas vencidas

com o apoio de cavaleiros de Coimbra,

por Afonso Henriques, batalha que também

cavaleiros vilãos, comunidades rurais, além

representaria sua afirmação,

medidas

do

da

infante,

como

de segundos filhos de nobres do norte. No ano de 1137 se estabelece a paz de Tui como esclarece Oliveira Marques (2010), neste tratado Afonso Henriques

Afonso Henriques dirigiu um fossado constituído por forças bastantes mais numerosas do que o habitual e que, apesar de ter sido atacado ou de atacar ele próprio um exército considerável, regressou cheio de glória ao território cristão.

693


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo Ourique foi sua primeira grande vitória contra os Mouros. (MATTOSO, 1997, p. 64)

O titulo de rex 3 almejado pelo infante como descreve Ferreira (1951), já era usado por ele antes mesmo do da Batalha de Ourique, em 25 de julho de 1139. As hostilidades com o rei de Leão são retomadas em 1140. Anos mais tarde em 1143 em Zamora se reúnem Afonso Henriques, Afonso VII e o cardeal Guido de Vico, assim se reestabelece a submissão do Infante a Afonso VII, rei de Leão e Castela. O

próximo

passo

de

Afonso

Henriques seria a pretensão de ''obter reconhecimento formal do papa, tanto para o título quanto para o reino. '' (OLIVEIRA MARQUES,

1996,

P.

36).

O

acordo

consistia em se tornar vassalo da Santa Sé e pagar o tributo de quatro onças de ouro por ano, contudo o condado portucalense não é conhecido como reino neste primeiro momento, esta questão só seria resolvida mais de 30 anos depois: À maneira feudal, Afonso I encomendou Portugal a Santa Sé e considerou-se, com todos os seus

os outros governantes peninsulares, além da possibilidade de arrecadação de fundos pela Santa Sé que se encontrava em momento de necessidade. Durante a fragmentação do território muçulmano,nos segundos reinos de taifa 4 como coloca Mattoso (1997), os cristãos se inserem

fortemente

no

processo

de

reconquista 5, o que culminaria com duas grandes conquistas portuguesas, Santarém e Lisboa. A reconquista portuguesa é parte do movimento de Cruzadas, reconhecidas como

''

[...]

expedições

de

carácter

ecuménico que levaram os reis e senhores da Cristandade a acorrer à solicitação do papado parar libertar Lugares Santos [...]'' (VERÍSSIMO SERRÃO, 1979, p. 91). A cidade de Santarém segundo Veríssimo Serrão (1979) é representada como ponto estratégico na luta contra o infiel, além de possuir campos férteis, e ser próxima a Lisboa, cidade que era uma das ambições

de

Afonso

Henriques.

No

primeiro momento são averiguadas as

sucessores, vassalo lígio do papa. Prometeu também pagar, todos os anos, um pequeno tributo de 4 onças de ouro (umas 120 g). [...]

4

Afonso Henriques não tinha direito de dispor de

muçulmanos na península, surgem assim vários reinos

Portugal como se de um reino <<alodial>> se

governantes, e o poder se encontra dividido entre estes

tratasse. (OLIVEIRA MARQUES, 2010, p. 80)

governantes de maior influência.

A

5

aplicação

dessas

medidas

possibilita a autonomia do condado perante

Com a descentralização do poder nos territórios

A Reconquista Cristã se inicia após sua derrota para os

muçulmanos, onde se perdem territórios como Jerusalém, e em quase sua totalidade a Península Ibérica, nesse sentido se inicia o processo de reconquista Cristã, a luta

3

Rei.

contra o infiel, para a recuperação dos territórios perdidos.

694


Willian Brusch [...] era a cidade mais poderosa que os Árabes

possibilidades de conquista, pois se tratava de

uma

cidade

com

grande

detinham na zona ocidental da Península.

poderio

Empório comercial e marítimo, cujas ligações se

defensivo, nesse sentido fica estabelecido

estendiam ao norte da África e à Europa atlântica, constituía uma zona abastada em

o ataque por meio da surpresa militar,

cereais, azeite e vinho, sendo os seus campos

tática que só seria revelada ao contingente

também

de guerreiros no dia. O próximo passo seria o

levantamento

batalha

que

de

incluía

contingente seus

em

pastagens.

(VERÍSSIMO

SERRÃO, 1979, p. 96)

para

Meses

depois

da

conquista

de

melhores

Santarém se inicia o cerco à Lisboa, cerco

cavaleiros, [...] cavaleiros templários e 250

que se concretiza logo depois, no mês de

homens de armas, o Monarca deixou

outubro do mesmo ano como descreve

Coimbra na segunda-feira, 10 de março

Mattoso (1997). O monarca português vê

[...]'' (VERÍSSIMO SERRÃO, 1979, p. 95).

na pregação da Segunda Cruzadas uma

A noite se coloca em prática o plano que

oportunidade

em poucas horas concederia a vitória a

cruzadístico para empreender a conquista

Afonso

de

Henriques,

''

ricos

''As

tranquetas

de

Lisboa,

os

conseguir

cruzados

apoio

‘’[...]

foram

rebentaram, e a guarnição tombou morta.

persuadidos a auxiliar os Portugueses por

As forças vindas do exterior puderam,

um discurso do bispo do Porto, que nesta

enfim, apossar-se da cidade. Foi no dia 15

cidade os recebeu e que fora avisado da

de março de 1147. '' (FERREIRA, 1951, p.

chegada

94). Com o poder sobre Santarém, pode se

Henriques em que lhe pedia que obtivesse

consolidar

a sua ajuda.’’ (MATTOSO, 1997, p. 67)

um

passo

de

extrema

importância tanto para reconquista cristã,

por

uma

carta

de

Afonso

Afonso Henriques acaba por receber

como para consolidação do poder de

grande

Afonso Henriques, e a construção do reino

normandos e escoceses, que estavam a

português.

caminho da segunda cruzada. E graças ao

A reconquista cristã representa um

auxilio

auxílio

de

cruzados

cruzadistíco,

das

ingleses,

expedições

movimento que busca territórios que um dia

convocadas

haviam sido cristãos, e Afonso Henriques

visavam à conquista de Jerusalém, a

desempenha esse papel com afinco, pois

conquista de Lisboa é concretizada.

utilizando desta política lança-se mais uma

Após

pela

a

Cúria

morte

de

Romana,

que

Afonso

VII,

vez ao processo de conquista das cidades

assumea realeza de Leão Fernando II, e

muçulmanas, mas agora em direção a

Sancho III a de Castela, Oliveira Marques

Lisboa que:

(1996) mostra que os dois monarcas

695


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo resistiu-lhe a alcáçova, onde os guerreiros

tentaram travar o avanço português ao sul,

almóadas se refugiaram. O caudilho chamou

com intuito de uma possível partilha das

então em seu auxílio o rei de Portugal, que veio

terras conquistadas, e frear o crescimento

reforçar com suas tropas o cerco da alcáçova. (MATTOSO, 1997, p. 71)

do reino português, mas, Sancho III vem a morrer em 1158. Fernando II, rei de Leão, e o monarca português encontram-se em grande hostilidade de 1160 até 1165, ano em que concretizam uma aliança, que mais tarde se rompe em função das alianças de Fernando II com os Almoádas. Ajudando o lado cristão no processo de reconquistaGeraldo, Sem Pavor, que segundo

Mattoso

(1997)

comanda

cavaleiros vilãos, e junto a eles realiza grandes conquistas a favor de Afonso Henriques, anexa ao seu território uma grande quantia de cidades, como ''[...] Trujillo, Évora, e Cáceres, no ano de 1165, e os castelos de Montanchez, Serpa e Juromenha, em 1166. '' (MATTOSO, 1997, P. 69). Veríssmo Serrão (1979) apresenta que

a

tática

usada

por

Geraldo,

corresponde a invasões surpresa com grandes escadas de madeira, para se infiltrar nas muralhas. Nesse processo Afonso Henriquesconquista, com o auxílio de Geraldo, Sem Pavor, todas as principais cidades que cercam Badajoz. Em 1169, Geraldo faz uma investida a Badajoz, o que possibilita conquista s parcial da cidade. Por fim:

Afonso Henriques chega em auxílio a

Geraldo,

Sem

Pavor,

no

entanto

Fernando II, também se desloca a fim de parar a conquista portuguesa, declara auxílio aos almóadas, além de que por meio de tratados anteriores se declarava soberano sobre esta região. Contudo o Emir vendo que a perda de Badajoz era eminente

buscou

levantar

contingente

parair em auxílio à cidade. Nesse contexto como ressalta Mattoso (1997), Fernando II envia uma carta dizendo sobre seu apoio a alcáçova, esses conseguem abrir as portas da

cidade,

ocorrendo

desta

forma

a

debandada dos portugueses, ‘’[...] Ao fugir, Afonso Henriques partiu uma perna, caiu do cavalo e acabou por ficar prisioneiro. A obtenção

da

liberdade

custou-lhe

a

renúncia às conquistas feitas.’’(OLIVEIRA MARQUES, 2010, p. 83) A partir de então Afonso Henriques se estabelece em Coimbra, se retirando da cidade com menos frequência que em tempos anteriores, em grande medida pelo dano físico que sofrera em Badajoz no ano de 1169.

Porém em 1179 como aponta

Oliveira Marques (1996), Afonso Henriques

[...] Geraldo desencadeou o ataque final a

mediante o pagamento de dois marcos de

poderosa

ouro (equivalente a 460 gramas de ouro)

fortaleza.

Conseguiu

passar

as

muralhas exteriores e entrar na povoação, mas

696


Willian Brusch ao papa Alexandre III, é reconhecido como

dadas a ele por seu pai, ele recebe a vila

rei português, e toda sua extensão de

de Barcelos e o título de Conde. Após seu

terras como reino e não mais como

rompimento

Condado Portucalense, em grande medida

Ximenes, o Conde Pedro Afonso de

um dos grandes objetivos de Afonso

Barcelos, por conta da guerra civil em

Henriques.O monarca falece em oito de

Portugal em razão da sucessão do trono

dezembro de 1185.

português entre D. Dinis e seu filho

2. Análise Crónica Geral da Espanha de 1344

em

1316

com

D.

Maria

herdeiro D. Afonso, se exila em Castela de 1317

a

1322.

O

motivo

do

exílio

No ano de 1285 nasce Pedro

corresponde ao Conde ficar ao lado do

Afonso, filho bastardo de D. Dinis, rei de

irmão Infante D. Afonso, o que levou D.

Portugal. Durante sua infância foi criado na

Dinis a destituir todos os seus bens em

corte, pois a Rainha Isabel desempenhava

Portugal, até o título de Alferes-mor que

papel fundamental na criação também dos

havia recebido em 1317. Seu provável

filhos bastardos do rei, assim como era

terceiro casamento teria sido realizado com

encarregada das alianças de casamento

Tereza Annes de Toledo, dama da Rainha

com outros reinos. Pedro Afonso era

de Castela, D. Brites como aponta Mocelim

primogênito entre os bastardos, usufruindo

(2007).

de certos cargos na corte, próximo ao monarca.

Ao

retornar

de

Castela,

e

se

reconciliar com seu pai, de quem fica ao

Durante sua vida é provável que ele

lado até o fim de sua vida em 1325, recebe

tenha se casado três vezes, em seu

novamente seus títulos e terras. De 1325 a

primeiro casamento como escreve Esteves

1354, o ano de sua morte, o Conde Pedro

(1998), Casa-se com D. Branca, filha de

Afonso de Barcelos se dedica como aponta

um nobre português, o que lhe rendeu

Esteves

muitos bens, pois herdou grande quantia

literária, junto a homens de letras. Assim

de terras, no entanto o casamento se

com influência da historiografia castelhana,

desfez em 1307. Em sua segunda aliança

ele atuou como compilador da Crónica

matrimonial, casa-se com a aragonesa D.

Geral da Espanha de 1344, esta que é uma

Maria

este

das fontes mais importantes em se tratando

casamento que se tornará Conde Pedro

de história medieval na Península Ibérica.

Afonso

1314

A crónica principalmente trata da história

complementando a sequência de terras

do reino castelhano e de seus heróis,

Ximenes, de

e

será

Barcelos,

durante em

(1998),

a

grande

produção

697


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

passando por treze séculos de história,

benefícios,

iniciando com o povoamento da península

promoveu a fundação de outros núcleos

até a reconquista parcial do território

militares para a segurança do reino.’’

cristão.

(MOCELIM, 2013, p. 256)

Segundo

Mocelim

(2007)

na

crónica encontramos uma sobreposição de famílias

nobres

e

atos

fundou

vilas

e

fortalezas,

O monarca português acaba sendo

heroicos,

reconhecido por ser o primeiro a fazer uma

demostrando um favorecimento de certas

administração completa no reino, atingindo

atitudes, como a desvalorização de outras.

desta forma grande prestígio na Península

Como mostra Esteves (1998), as intenções

Ibérica. Algumas medidas em relação ao

do Conde estão além da

poder da nobreza também são tomadas

[...] preocupação com a verdade e com a sequência cronológica na sua apresentação, há uma dimensão moralista que a percorre e que a

em diversos aspectos, a exemplo da

transforma também num manual de educação

investidura de cavaleiro, que passa a ser

para os seus leitores, que podem beneficiar com

concedida somente pelo monarca. No

o conhecimento do Passado. (ESTEVES, 1998, p. 14)

O Conde em sua vida litéraria produz além da Crónica Geral da Espanha de 1344, o Livro de Linhagens, assim como uma série de poesias. Para a análise do trecho da Crónica Geral da Espanha de 1344, relativo ao reino

durante seu governo, assim delimitando-o

de

Afonso

de

Henriques,

primeiramente se faz necessário retomar acontecimentos caracterizam

do

o

século

período

de

XIV, vida

que do

entanto o reino de D. Dinis também possui alguns pontos fracos, no que diz respeito às suas relações familiares. Durante o começo de seu reinado, as relações com seu

irmão,

o

infante

Afonso,

eram

demasiadamente hostis. Segundo Mocelim (2013), Afonso, irmão mais novo de D. Dinis,

se

colocou

como

verdadeiro

sucessor do trono, alegando que no momento do nascimento do irmão o casamento

entre

seus

pais

não

era

a

legítimo. Por esse motivo se desenrolam

Com o estabelecimento de D. Dinis

irmão. Um deles se realiza logo após a

compilador,

e

seus

motivos

para

produção da obra. no trono português, uma série de medidas são tomadas por este monarca, no que diz

grandes confrontos entre o monarca e seu inquirição 6 de 1284, onde o infante Afonso, aliado à nobreza se envolve em revoltas

respeito à justiça, ele ‘’Procurou atender castelos e fortalezas que se encontravam em ruínas, concedeu foros, obrigações e

6

[...] o Infante aliou-se aos nobres nos protestos contra as

decisões régias, instigando parte da nobreza nas revoltas armadas contra o Rei. (MOCELIM, 2013, p. 260)

698


Willian Brusch armadas contra o rei. No entanto as

uma assembleia em Évora para que lhe

relações dos irmãos são apaziguadas após

prestem homenagem, coisa não muito

a revolta de 1299, com o infante se

comum em seu tempo. Mattoso (1997)

tornando submisso ao monarca.

aponta que o monarca português tomaria

O rei português ainda encontraria

uma série de medidas contra os seus

grande dificuldade junto a seu filho, que

irmãos bastardos como a condenação de

não aceitava o tratamento que o pai dava

um deles a morte, acusando-o de traição.

aos filhos bastardos, esse período é

Contra o bastardo Afonso Sanches, que

reconhecido pela guerra civil (1319–1324)

buscou refúgio com Afonso XI, rei de

em que mergulha Portugal. Como coloca

Castela, se estabeleceu uma contenda que

Mattoso (1997), a partir de 1315 as

durou três anos, o confronto terminou com

relações entre D. Dinis e seu filho Afonso

o adoecimento do bastardo, que morreria

se tornam hostis em razão dos benefícios

logo depois em 1329.

que

o

monarca

concede

aos

filhos

Durante seu reinado desfrutou de

bastardos. Nesse sentido se desenrola um

um longo período de paz externa, além de

jogo político de apoio, onde ao lado do

conseguir alianças diplomáticas, como os

infante estão o norte e o centro do reino, o

tratados

rei Dinis tinha parte do sul do reino ao seu

Inglaterra.

lado. A guerra civil teve início em 1319 e

(1997), que as relações matrimoniais de

só acabaria no ano de 1324, e esta era

sua filha com o rei leonês, Afonso XI,

Uma guerra fomentada por alguns nobres despeitados e saudosos de antigos privilégios feudais – que D. Dinis havia cerceado – e

comerciais No

realizados

entanto

conta

com

a

Mattoso

resultaram em uma guerra de 1336 a 1339, entre

os

reinos

português

e

leonês.

também uma guerra querida por Castela e

Principalmente por motivos emocionais, os

Aragão, reinos interessados em enfraquecer

quais sua filha Maria lhe reportava, como o

Portugal no contexto da Península. (MATTOSO, 1997, p. 406)

Por meio do tratado de Santarém em 1324, como apresenta Mattoso (1997), o confronto acaba, garantindo a sucessão do trono a Afonso, que um ano mais tarde, após a morte de D. Dinis, herda a coroa portuguesa. Afonso IV, comorei de Portugal em uma de suas primeiras ações, organiza

desprezo de Afonso XI por ela. A guerra apenas teve fim com a intervenção do rei francês e do papa, momento em que se assinou

a

Paz

de

Sevilha,

com

o

comprometimento de que ambas as partes devolveriam os territórios conquistados. No ano de 1339, os muçulmanos fizeram novas investidas na Península Ibérica mais especificamente em Gilbratar,

699


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

no ano seguinte ocorreu a Batalha do

Henriques,

Salado, como apresenta Mattoso (1997);

Conde D. Henrique, em um breve discurso

[...] em 1340, é o rei do Marrocos que atravessa o estreito com mais de 100 navios e entra vitorioso em Espanha. Prepara-se, aliado aos Granadinos, para prosseguir pelo Norte. A

vemos

a

manifestação

de

explicitando certas características que o seu filho Afonso Henriques deveria seguir Filho, toda a terra que eu leixo, que hedes

Cristandade aflige-se, mormente a mais próxima

Estorga ataaLeõ

do perigo, Castela e Afonso XI, Portugal e

percas dela nẽ hũa cousa, ca eu a tomey cõ

Afonso IV. Os quais, ontem inimigos de morte,

muyto trabalho. Filho, toma esforço do meu

hoje somam esforços de cruzados e amigos. E

coraçõ e sey semlhavel a mỹ. E sey

juntos vencem o Islão na Batalha do Salado (30 de Outubro de 1340). (MATTOSO, 1997, p. 408)

Partindo

dessas

considerações

e ataa Coimbra, non

companheiro aos fidalgos e dalhes todos seus direitos. E aos cõcelhos fazelhes hõrra. E faze de guisa que todos ajam dereyto,

acerca do reino português durante a vida

assy os grandes como os pequenos, e por

do Conde Pedro Afonso de Barcelos,

rogo nẽ por cobiiça, nõ leixes de fazer

vemos uma reação do autor, aos conflitos

justiça. E porem, meu flho, sempre em teu

que estavam assolando este período. Nesse

sentido,

portugueses

a

temos

exemplo uma

dos

situação

reis

coraçõ ama justiça, ca o dia que a leixares de fazer hũu palmo, logo o outro dia ella se afastara de ty hũa braça. E porem, meu

de

filho, ama justiça e averas a beençõ de

instabilidade na península se tratando das

Deus e a graça e bemquerença das gentes.

monarquias, estas que se colocam em um

E non consentas os teus homẽs seer

processo de batalhas por sucessão, e desentendimento

constante

em

suas

sobervosos e atrevidos em mal fazer nem façam a nehũu, ca perderias teu boo preço se

taaes

cousas

castigasses.

[...]

relações, o que caracteriza um processo de

(Crônica Geral da Espanha de 1344 apud

transformação

afirmação

destas

Esteves, 1998, p. 191).

período

reinos

O Conde Pedro Afonso de Barcelos

cristão da península se encontram-se

ao se refirir ao rei Afonso Henriques

desunidos, e em muitas vezes em conflito

caracteriza um ideal de monarca a qual

entre si, gerando uma certa vulnerabilidade

Afonso Henriques deveria se espelhar,

dos

a

assim são apresentados certos passos a

muçulmana

serem seguidos, como fazer honras aos

dentro da península, como na Batalha do

Concelhos, dar atenção especial à justiça

Salado.

para que no futuro possa ter a graça e o

monarquias.

e Neste

territórios,

manifestação

de

os

possibilitando ofensiva

No primeiro momento no trecho

bem querer do povo e de Deus. Vemos

analisado da Crônica, relacionado à Afonso

nesse ponto uma reflexão sobre atitudes tomadas por D. Dinis contra a nobreza,

700


Willian Brusch assim mostrando o que seriam atitudes

de divinização da figura do monarca, como

ideais a serem seguidas nestas relações.

aquele que serve a Deus, é devoto, o que

Entrando

na

vida

do

primeiro

monarca português, Afonso Henriques tem

lhe proporciona boas vitórias com auxílio divino.

uma série de ‘’virtudes’’ que são atribuidas a

ele

pelo

esboçando

compilador

estas

da

‘’virtudes’’

Crônica, de

forma

Outro fator de grande importância no trecho

analisado

na

Crônica

são

as

questões relacionadas à luta contra os

explícita e implícita. Primeiramente Afonso

muçulmanos,

Henriques é colocado como ‘’[...] muy bõo

representa um ideal que durante o período

fidalgo, cõ muytas cõpanhas e muy bem

de compilação se mostra muitas vezes

uisadas pera guerra. [...]’’(Crônica Geral da

deixado de lado. Partindo dessa premissa

Espanha de 1344 apud Esteves, 1998, p.

temos a Batalha do Salado de 1340 que

194). A representação está em torno de

representa grande perigo para os reinos

qualificações do personagem, vemos de

cristãos. Nesse sentido o autor da Crónica

fato que Afonso Henriques, teve grandes

ressalta que o rei Afonso Henriques

campanhas militares, como coloca Mattoso

participou de uma série de investidas

(1997) em 1128 ocorre a Batalha de São

contra os reinos muçulmanos, com sucesso

Memede, batalha que determina opoder

em sua maioria, como na Batalha de

sobre o Condado Portucalense, contra

Ourique em 1139, como coloca Mattoso

Fernão Peres Trava e D. Tereza, se

(1997), não se sabe qual lado teria feito o

desenrola a contenda, com vitória para

primeiro ataque, mas Afonso Henriques

Afonso

em

saiu vitórioso e retornou com glória para

determinados momentos o Conde Pedro

seu povo, após vencer a sua primeira

Afonso

de

batalha de muitas, contra os muçulmanos.

determinadas atribuições para justificar a

Isso representa algo que um dia deu

vitória, como é apresentado no trecho, ‘’[...]

unidade aos reinos peninsulares, a luta

rey dom affonso avya grande devoçõ nas

contra o infiel. Ourique seria a primeira

oraçõoes de Sam Bernardo. E que por esto

vitória sobre o muçulmano, no entanto ele

lhe dava Deus tantas boas andamças

conquista uma grande quantia de cidades,

contra os mouros. [...]’’ (Crônica Geral da

como é representado na Crônica, ‘’[...]

Espanha de 1344 apud Esteves, 1998, p.

tomou este rey dõ Affomso Allanquer, e

201). Analisando as colocações que são

Sintra, e Almadãa, e Palmela. En ẽna era

feitas nesse sentido, temos uma tentativa

de mil [...] anos, tomou este rey Alcaçer e

Henriques. de

No

Barcelos,

entanto utiliza-se

considerados

infiéis,

que

701


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Beja. E ẽna era de mil [...] anos tomou este

a seu ver a solução para todas as divisões

rey dom Affomso Evora, e Elvas, e Moura,

nos reinos peninsulares. Dentre estas

e Serpa.’’ (Crônica Geral da Espanha de

‘’virtudes’’ estão a do bom fidalgo, bem

1344 apud Esteves, 1998, p. 200).

preparado para a guerra, com muita

Uma das questões que a crónica

bravura, bom coração, muito manso, bom

também tenta trabalhar, é com relação à

cristão, esforçado cavaleiro em armas,

mudança no que diz respeito à postura

cavaleiro em força e valente. Como aponta

adotada pelos monarcas na península

Mocelim

ibérica, como se refere o trecho,

peninsulares serve como modelo para

Este rey dom Affonso, ẽ sua mancebia, foy muy bravo e esquivo. Mas despois foy muy manso e mensurado e boo cristãao e fez muyto serviço a

(2013),

a

vida

dos

reis

nobreza que por sua vez também servia como

modelo,

assim

o

rei

é‘’[...]

Deus. E este era o mais esforçado cavalleiro assi

responsável pela ordenação da sociedade,

/ em armas como en força que avya em Espanha

pela garantia do bem comum, pela defesa

nẽ de que os mouros mayor medo avyam. (Crônica Geral da Espanha de 1344 apud

da

cristandade

e

pela

promoção

e

Esteves, 1998, p. 201).

preservação da paz e justiça no reino,

Esse fator de mudança irá se

acima de tudo como exemplo de virtudes

estabelecer como ponto chave, pois é

cavalheirescas aos nobres.‘’ (MOCELIM,

necessário ser um rei ideal, e não nascer

2013, p. 142)

desta forma. Nesse sentido em detrimento

Assim se almeja uma sociedade

dos anseios de seu tempo o Conde Pedro

idealizada pelo autor, que a molda baseado

Afonso de Barcelos, introduz no trecho

em uma série de virtudes.

analisado, ‘’virtudes’’, as quais representam

Referências: ESTEVES, Elisa Nunes. Narrativas da Crónica Geral de Espanha de 1344. Editora Vega, 1998. FERREIRA, Joaquim. História de Portugal. Lisboa. 2ª Edição, Editorial Domingos Barreira, 1951. MATTOSO, José. e SOUZA, Armindo de. História de Portugal: a monarquia feudal (1096 –

1480). Lisboa: Estampa, 1993.

702


Willian Brusch MOCELIM, Adriana. “Segundo Conta a Estoria...” A Crônica Geral de Espanha de 1344

Como Um Retrato Modelar da Sociedade Hispânica Tardo Medieval. 2013. 318 f. Tese de Doutorado, UFPR. 2013. NOGUEIRA, Carlos. O Portugal Medieval: Monarquia e Sociedade. São Paulo: Alameda, 2010. OLIVEIRA MARQUES, A. H. Breve História de Portugal. Lisboa. 2ª Edição. Editora Editorial Presença, 1996. OLIVEIRA MARQUES, A. H. História de Portugal: Das Origens ao Renascimento. Vol. 1. Lisboa. Editora Editorial Presença, 2010. SARAIVA, José Hermano. História Concisa de Portugal. Mem Martins: Publicações Europa-américa, 2007. SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. Vol. 1. Lisboa: Verbo, 1979.

703


ÍNDICE DE AUTORES

ALVES, Luiz Fernando___________________________________________

339

AMATUZZI, Renato Toledo Silva__________________________________

445

ARZANI, Alessando______________________________________________

15

ASSUMPÇÃO, Luis Filipe Bantim de_______________________________

316

BARBOSA, Luiz Pedro da Silva____________________________________ 350 BARRETO, Lívia Lindóia Paes____________________________________

350

BELLA, Alisson Guilherme Gonçalves______________________________

536

BELMAIA, Nathany A. W. ________________________________________

396

BORGES, Maria do Carmo Faustino_______________________________

370

BRITO, Milton Genésio___________________________________________

382

BRUSCH, Willian________________________________________________

602

CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa_______________________________

99

CANDIDO, Maria Regina (Orientadora)_____________________________

99

CORREIA, Eveline Soares________________________________________

204

CORTEZ, Clarice Zamorano______________________________________

139

COSTA, Alex Silva_______________________________________________

32

COSTA, Natália de Medeiros______________________________________

636

CUSTÓDIO, José de Arimathéia Cordeiro___________________________ 228 DAFLON, Eduardo Cardoso_______________________________________ 196 DELIBERADOR, Raquel de Medeiros______________________________

670

DURLO, Carlos Henrique_________________________________________

558

ERZINGER, Tatiane Palmieri______________________________________ 478 EZÍDIO, Camila__________________________________________________ 89 FERRARESE, Lúcio Carlos_______________________________________

307

FIOROT, Juliana Bardella_________________________________________ 263

704


FOGA, César Augusto da Silva____________________________________

126

GIACOMASSI, Diego Regio_______________________________________

568

GOBATO, Douglas Raphael Machado______________________________

171

GODOI, Pamela Wanessa________________________________________

423

GONÇALVES, Jussemar Weiss (Orientadora)_______________________

292

JÚNIOR, Benedito Inácio Ribeiro__________________________________

75

JÚNIOR, José Petrúcio de Farias__________________________________

246

LIMA, Adriana Mocelim de Souza (Orientadora)_____________________

636

MACHADO, Jivago Furlan________________________________________

609

MACHADO, Thiago Palmeira______________________________________ 501 MAFFEI, Talles Henrique P. ______________________________________

468

MARANHÃO, Marcello de Albuquerque_____________________________ 361 MARRONI, Paula Carolina Teixeira________________________________

436

MARTINS, Giovana Maria Carvalho________________________________

590

MENNITI, Danieli________________________________________________

160

MOCELIM, Adriana (Orientadora)__________________________________

568; 690

OLIVEIRA, Claúdia Trindade de___________________________________

150

OLIVEIRA, Keila Mara Fraga Ramos de____________________________

278

OLIVEIRA, Rafael M. ____________________________________________

661

OLIVEIRA, Terezinha (Orientadora)________________________________

61; 522

OLIVEIRA, Viviane_______________________________________________ 522 ONESKO, Stéfani de Almeida_____________________________________

678

PELEGRINELLI, André Luiz Marcondes____________________________

548

PILLA, Maria Cecília Barreto Amorim_______________________________

501

PRUDENTE, Luísa Tollendal______________________________________

331

RAGUSA, Helena________________________________________________ 215 REIS, Jaime Estevão dos (Orientador)______________________________ 307; 468; 627

705


RIBAS, Helena Macedo__________________________________________

602

RIBEIRO, Luiz Augusto Oliveira___________________________________

627

ROSA, Célia Santos da___________________________________________ 114 ROSA, Lorena Faccin____________________________________________

619

ROSSI, Edneia Regina (Orientadora)_______________________________ 204 RUBIM, Sandra Regina Franchi___________________________________

456

SANTOS, Valéria________________________________________________

512

SELVATICI, Monica (Orientadora)_________________________________

396

SILVA, Edilberto Alves___________________________________________

185

SILVA, Filipe Cesar da___________________________________________

577

SILVA, Lisiana Lawson Terra da___________________________________

292

SILVA, Tiago de Oliveira Veloso___________________________________

661

SIQUEIRA, Ana Marcia Alves_____________________________________

47

SOARES, Thaís Ap. Bassi________________________________________

490;

SOUZA, Neila M. ________________________________________________ 412 SPEGLIC, Rafael Fernandes______________________________________

648

VENTURINI, Renata Lopes Biazotto (Orientadora)___________________

171; 490

VIANA, Ana Paula dos Santos_____________________________________ 61 VISALLI, Angelita Marques (Orientadora)___________________________

32; 423; 536; 548; 590; 670

706


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