Anais do x ciclo de estudos antigos e medievias pt 1

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Angelita Marques Visalli Pamela Wanessa Godoi André Luiz Marcondes Pelegrinelli (Org.)

ANAIS X CICLO DE ESTUDOS ANTIGOS E MEDIEVAIS XIII JORNADA DE ESTUDOS ANTIGOS E MEDIEVAIS V JORNADA INTERNACIONAL DE ESTUDOS ANTIGOS E MEDIEVAIS Saberes e Fazeres

Londrina - 2014 Universidade Estadual de Londrina


Reitora Prof. Drª Berenice Quinzani Jordão Vice-Reitor Prof. Dr. Ludoviko Carnasciali dos Santos Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Prof. Dr. Amauri Alcindo Alfieri Pró-Reitor de Extensão Prof. Dr. Sérgio de Melo Arruda Diretora do Centro de Letras e Ciências Humanas Prof. Drª Mirian Donat Chefe do Departamento de História Prof. Drª Angelita Marques Visalli Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História Social Prof. Dr. Francisco César Alves Ferraz Coodenador da Especialização em Religiões e Religiosidades Prof. Dr. Richard Gonçalves André Coordenador da Especialização em Patrimônio e História Maria Renata da Cruz Duran


Apoio:

Edição: André Luiz Marcondes Pelegrinelli Capa: Raquel M. Deliberador Imagens de Capa: "A matron shows how to treat wine and conserve it properly." - British Library, London. "Preparação para a festa." - Mosaico. - II a. C. Museu do Louvre, França.


Catalogação na publicação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) C568a Ciclo de Estudos Antigos e Medievais (10. : 2014 : Londrina, PR) Anais [do] X Ciclo de Estudos Antigos e Medievais, [da] XIII Jornada de Estudos Antigos e Medievais, [da] V Jornada Internacional de Estudos Antigos e Medievais / Angelita Marques Visalli, Pamela Wanessa Godoi, André Luiz Marcondes Pelegrinelli (org.). – Londrina : Universidade Estadual de Londrina, 2014. 706 p. : il. Tema central: Saberes e fazeres. Inclui bibliografia e índice. ISBN: 978-85-7846-293-2 1. História antiga – Congressos. 2. Idade Média – História – Congressos. I. Visalli, Angelita Marques. II. Godoi, Pamela Wanessa. III. Pelegrinelli, André Luiz Marcondes. IV. Jornada de Estudos Antigos e Medievais (13. : 2014 : Londrina, PR). V. Jornada Internacional de Estudos Antigos e Medievais (5. : 2014 : Londrina, PR). VI. Título. VII. Título: Anais [da] XIII Jornada de Estudos Antigos e Medievais. VIII. Título: Anais [da] V Jornada Internacional de Estudos Antigos e Medievais. IX. Título: Saberes e fazeres. CDU 93


Coordenação Geral Profa. Dra. Angelita Marques Visalli (UEL) Profa. Dra. Monica Selvatici (UEL) Profa. Dra. Terezinha Oliveira (UEM)

Comissão Organizadora Docentes:

Discentes:

Profa. Dra. Angelita Marques Visalli (UEL)

Alex Silva Costa

Profa. Dra. Monica Selvatici (UEL) Profa. Dra. Terezinha Oliveira (UEM) Profa. Dra. (Unicamp)

Renata

C.

Barbosa

Profa. Dra. Edméia Ribeiro (UEL)

Alisson Guilherme Gonçalves Bella André Luiz Marcondes Pelegrinelli Giovana Maria Carvalho Martins Pamela Wanessa Godoi Raquel Medeiros Deliberador

Profa. Dra. Ana Heloísa Molina (UEL)

Comissão Científica Prof. Dr. Pedro Paulo Funari (Unicamp) Profa. Dra. Renata Cerqueira Barbosa (Unicamp) Profa. Dra. Edméia Ribeiro (UEL) Profa. Dra. Ana Heloisa Molina (UEL) Prof. Dr. Julio Cesar Magalhães de Oliveira (USP) Prof. Dr. Jaime Estevão dos Reis (UEM) Prof. Dr. Mario Jorge da Motta Bastos (UFF) Profa. Dra. Adriana Maria de Souza Zierer (UFMA)


SUMÁRIO PREFÁCIO_______________________________________________________________________11

APRESENTAÇÃO__________________________________________________________________12

COMUNICAÇÕES_________________________________________________________________14 LEONARDO BRUNI E A ESCRITA DA HISTÓRIA DO POVO FLORENTINO Alessandro Arzani__________________________________________________________ 15 “ENTÃO

LHE FORAM GRAVADOS NÃO NO CORPO, MAS NO CORAÇÃO”: UMA ANÁLISE SOBRE A INTENCIONALIDADE DOS DISCURSOS HAGIOGRÁFICOS MEDIEVAIS SOBRE A ESTIGMATIZAÇÃO DE FRANCISCO DE ASSIS

Alex Silva Costa____________________________________________________________32 ESTRATÉGIAS

DE APROPRIAÇÃO E ATUALIZAÇÃO DE FORMAS LITERÁRIAS TRADICIONAIS NO ROMANTISMO PORTUGUÊS: A BALADA E O ROMANCE

Ana Marcia Alves Siqueira__________________________________________________ 47 FIDELIDADE: A PROPOSTA PEDAGÓGICA DE DHUODA Ana Paula dos Santos Viana__________________________________________________61 ESTUDOS QUEER E ANTIGUIDADE: O CASO DOS GALLI DE CIBELE REPRESENTADOS POR MARCIAL Benedito Inácio Ribeiro Júnior________________________________________________75 O PAPEL HISTÓRICO DA SUMA CONTRA OS GENTIOS DA FILOSOFIA MEDIEVAL Camila Ezídio______________________________________________________________ 89 NICOLAU E DAMASCO E CAIO OTÁVIO: ENTRE REDES SOCIAIS E DISCURSOS Carlos Eduardo da Costa Campos_____________________________________________ 99 UM ESTUDO DO ESPAÇO SAGRADO E DO ESPAÇO PROFANO EM DUAS CANTIGAS DE AMIGO Célia Santos da Rosa_______________________________________________________ 114 A RECONQUISTA DA HISPÂNIA: MITO GÓTICO E GUERRA SANTA César Augusto da Silva Foga_________________________________________________126


AS CANTIGAS

DE

LOUVOR

DE

D. AFONSO X

E O ESPAÇO SAGRADO: ESTUDO DO TEXTO E DA

IMAGEM

Clarice Zamorano Cortez____________________________________________________139 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES COM RELAÇÃO À PARTICIPAÇÃO FEMININA NA VIDA RELIGIOSA NA ALTA IDADE MÉDIA Cláudia Trindade de Oliveira_________________________________________________150 RE(A)PRESENTAÇÕES DAS DOMINAS: A MATRONA NO PRINCIPADO ROMANO Daniel Menniti__________________________________________________________160 DECADENTISMO, ESGATOLOGIA APOCALÍPTICA E A CRISE IMPERIAL NO SÉCULO III Douglas Raphael Machado Gobato__________________________________________171 UM PEQUENO TRATADO DE PUERICULTURA E PEDAGOGIA NO “LIVRO DE EVAST E BLANQUERNA” DE RAMÓN LLULL. UMA PERCEPÇÃO DA INFÂNCIA NO SÉCULO XIII Edilberto Alves da Silva___________________________________________________ 185 UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DO CAMPO DA HISTÓRIA MEDIEVAL NO BRASIL Eduardo Cardoso Daflon____________________________________________________196 UMA

REFLEXÃO DOS FAZERES FEMININOS MEDIEVAIS DENTRO DO UNIVERSO DA MULHER CONTEMPORÂNEA

Evelline Soares Correia; Edneia Regina Rossi__________________________________204 DO

ACOLHIMENTO À HOSTILIDADE: ENTRE OS SÉCULOS XV E XVI

A

EXCLUSÃO DOS CONVERSOS DA

ESPANHA

E DE

PORTUGAL

Helena Ragusa____________________________________________________________215 DINHEIRO, PARA QUE DINHEIRO? José de Arimathéia Cordeiro Custódio________________________________________228 O GÊNERO EPIDÍTICO NOS IMPERADOR

SÉCULOS

IV

E

V: A RETÓRICA

DO ELOGIO E DO ACONSELHAMENTO AO

José Petrúcio de Farias Júnior______________________________________________ 246 A ATUAÇÃO DO BISPO MARTINHO DE BRAGA NA ORGANIZAÇÃO DA IGREJA GALEGA: AS RELAÇÕES COM O REINO SUEVO E A RELIGIOSIDADE POPULAR (SEGUNDA METADE DO SÉCULO VI) Juliana Bardella Fiorot_____________________________________________________263


O MILAGRE DA VIDA APRESENTADO EM DUAS CANTIGAS DE SANTA MARÍA: ESTUDO DO TEXTO E DA IMAGEM

Keila Mara Fraga Ramos de Oliveira__________________________________________278 A RAINHA E O CORO EM SOCIEDADE GREGA

AGAMÊMNON:

FORMAS DE PENSAR A PRESENÇA DA MULHER NA

Lisiana Lawson Terra da Silva_______________________________________________292 PERSUASÃO: INDEPENDÊNCIA E CENTRALIZAÇÃO DE GUILHERME, O CONQUISTADOR, NAS FONTES ANGLO-NORMANDAS DO SÉCULO XI Lúcio Carlos Ferrarese_____________________________________________________307 O DISCURSO DE XENOFONTE E A REPRESENTAÇÃO DE AGESILAU II, NO SÉCULO IV A. C. Luis Filipe Bantim de Assumpção___________________________________________ 316 AS LEIS MATRIMONIAIS NAS SITE PARTIDAS DE AFONSO X, O SÁBIO Luísa Tollendal Prudente___________________________________________________331 O RETRATO DO ARTISTA MEDIEVAL: TEXTO E IMAGEM

SOBRE

AUTORIA E A POLIFONIA DO

ROMAN

DE LA

ROSE

EM

Luiz Fernando Alves_______________________________________________________339 PROPRIEDADES MORFOSSINTÁTICAS DOS VERBOS ESTATIVOS: UM OLHAR SOBRE O SISTEMA VERBA LATINO Luiz Pedro da Silva Barbosa________________________________________________350 DA ESCRAVIDÃO ANTIGA À MODERNA: UM SEGREDO EM CERVANTES? Marcello de Albuquerque Maranhão_________________________________________361 A CANÇÃO DE ROLANDO: UM LEGADO MEDIEVAL ENTRE HISTÓRIA E FICÇÃO Maria do Carmos Faustino Borges___________________________________________370 UM TOQUE DE CULTURA LATINA NA MÚSICA NORDESTINA: LEITURA DA ARS AMATORIA Milton Genésio de Brito__________________________________________________382 PÁSCOA CRISTÃ E JUDAICA: ESTRUTURA E HISTÓRIA DE LONGA DURAÇÃO Nathany A. W. Belmaia___________________________________________________396 NOBREZA E RELAÇÕES DE PARENTESCO: IDENTIDADES SOCIAIS NO SÉCULO XIII Neila M. de Souza________________________________________________________ 412


RAINERUS: O COPISTA DE CAMBRAI E OS ARTISTAS NO MEDIEVO Pamela Wanessa Godoi___________________________________________________423 A SISTEMATIZAÇÃO DO SABER E DO FAZER ORDEM DE CAVALARIA, DE RAMON LLULL

DO CAVALEIRO:

UMA

ANÁLISE DA OBRA

O LIVRO

DA

Paula Carolina Teixeira Marroni_____________________________________________436 CULTURA ALIMENTAR E SAÚDE PREVENTIVA NA CATALUNHA DO SÉCULO XIII: AS REGRAS DE SAÚDE A JAIME II DE ARNAU DE VILANOVA (1308) Renato Toledo Silva Amatuzzi_____________________________________________ 445 IMAGEM

DE DOM SEBASTIÃO COMO ELEMENTO EDUCATIVO: ICONOGRÁFICA – SÉCULO XVI

REPRESENTAÇÃO

MENTAL E

Sandra Regina Franchi Rubim_______________________________________________ 456 MOEDA E PODER NO PENSAMENTO DE NICOLÁS DE ORESME Talles Henrique P. Maffei__________________________________________________468 UMA

INVESTIGAÇÃO REFLEXIVA SOBRE A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO NA UNIVERSIDADE MEDIEVAL

Tatiane Palmieri Erzinger__________________________________________________ 478 ESPECTADOR E POETA: OS LUDI E O CLIENTELISMO NOS VERSOS DE MARCIAL Thais Ap. Bassi Soares____________________________________________________ 490 CATARINA DE SENA: RENÚNCIA, 1347-1380

DEVOÇÃO E FÉ COMO FORMA DE ESTAR COM E EM

DEUS –

Thiago Palmeira Machado; Maria Cecília Barreto Amorim Pilla____________________501 A MULHER IDEALIZADA DE DOM DINIS E VINÍCUS DE MORAES Valéria Santos_________________________________________________________ 512 DO CONVÍVIO À MONARQUIA: CONSTRUÇÃO DO IDEÁRIO DO NOBRE MEDIEVAL Viviane de Oliveira_____________________________________________________522 PÔSTERES___________________________________________________________________________535 JUÍZO FINAL NA IDADE MÉDIA: UM (1399-1464)

ESTUDO SOBRE O POLÍPTICO DE

ROGIER VAN DER W EYDEN

Alisson Guilherme Gonçalves Bella_________________________________________ 536


AS PINTURAS DA BASÍLICA DE SÃO FRANCISCO, ASSIS: POSSIBILIDADES DE ANÁLISE A PARTIR DA HISTORIOGRAFIA RECENTE SOBRE AS IMAGENS MEDIEVAIS

André Luiz Marcondes Pelegrinelli__________________________________________548 O ESPAÇO SAGRADO EM DUAS CANTIGAS DE SANTA MARIA DEDICADAS À VIRGEM DE TERRENA Carlos Henrique Durlo_____________________________________________________558 A CONCEPÇÃO DE HISTÓRIA PARA POLÍBIOS – UM OLHAR GREGO SOBRE AS CONQUISTAS ROMANAS Diego Regio Giacomassi___________________________________________________568 GÊNERO

E SEXUALIDADE NOS ESTUDOS DA ANTIGUIDADE ROMANA: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS/METODOLÓGICOS SOBRE A MASCULINIDADE NOS EPIGRAMAS DE MARCIAL (I SÉC. D.C.)

Filipe Cesar da Silva_______________________________________________________577 MADALENA

EM ASSIS: CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DE SUA IMAGEM NA REPRESENTAÇÕES E CULTO NO MEDIEVO

BASÍLICA,

SUAS

Giovana Maria Carvalho Martins____________________________________________590 POESIA GOLIÁRDICA E REPRESENTAÇÃO NA CULTURA MEDIEVAL (SÉCULOS XII E XIII) Helena Macedo Ribas____________________________________________________602 ALÉM DO JOGO, VINHO E AMOR: A POESIA GOLIÁRDICA COMO MANIFESTAÇÃO POLÍTICA Jivago Furlan Machado___________________________________________________609 A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA NAS AÇÕES DO MONARCA D. DINIS Lorena Faccin Rosa_______________________________________________________ 619 FONTES MEDIEVAIS: A CRÔNICA DE ALFONSO X, O SÁBIO Luiz Augusto Oliveira Ribeiro_______________________________________________ 627 A IMAGEM DE JÚLIO CÉSAR CONSTRUÍDA A PARTIR DAS OBRAS: DE BELLO GALLICO E DE BELLUM CIVILE Natália de Medeiros Costa_________________________________________________636 RELIGIOSIDADE NO SÉCULO XV: O CULTO MARIANO A PARTIR DE OBRAS DE JAN VAN EYCK Rafael Fernandes Speglic_________________________________________________ 648 HIBRIDIZAÇÃO: UMA MEDIEVAL

QUESTÃO DE IDENTIDADE DE SÍMBOLO E LITERATURA NA

ESCANDINÁVIA

Rafael M. Oliveira; Tiago de Oliveira Veloso Silva_______________________________661


REPRESENTAÇÕES DA CRUCIFICAÇÃO NA BASÍLICA DE SÃO FRANCISCO, EM ASSIS. Raquel de Medeiros Deliberador____________________________________________ 670 ANÁLISE

SOBRE A IDEIA DE BOM GOVERNANTE EM MARCO INFLUÊNCIA NO CONTEXTO POLÍTICO ROMANO DO IMPERADOR

AURÉLIO

E O ESTOICISMO COMO

Stéfani de Almeida Onesko_________________________________________________678 A CRÔNICA GERAL DE ESPANHA DE 1344: COMO SUPORTE PARA A CONSTRUÇÃO IDEALIZADA DE AFONSO HENRIQUES, REI DE PORTUGAL Willian Brusch_____________________________________________________________690

ÍNDICE DE AUTORES_____________________________________________________________704


PREFÁCIO O X Ciclo de Estudos Antigos e Medievais, a XIII Jornada de Estudos Antigos e

Medievais e a V Jornada Internacional de Estudos Antigos e Medievais, realizada na Universidade Estadual de Londrina, entre os dias 09 e 12 de setembro, do ano corrente, é uma atividade regular promovida por grupos de pesquisas cadastrados no CNPq: pelo grupo

Cultura Medieval, Transformação Social e Educação nas épocas Antiga e Medieval e pelo grupo interinstitucional denominado Grupo de Estudos em Antiga e Medieval do Paraná e

Santa Catarina. São três Grupos que congregam, em torno do estudo da Antiguidade e da Idade Média, pesquisadores da Universidade Estadual de Maringá, da Universidade Estadual de Londrina, da Universidade Federal de Santa Catarina, da Universidade Tuiuti do Paraná, por alunos da Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá e por alunos de diversos cursos de Graduação em Ciências Humanas da mesma Universidade. Esses Grupos reúnem estudiosos de diversos níveis de formação e campos do conhecimento como Educação, História, Filosofia, Letras, Teologia, Direito, Artes Plásticas, Música, Literatura, Lingüística, Estudos das Imagens e Ciências Naturais. O objetivo geral deste Evento é propiciar aos alunos de graduação em Pedagogia, História, Filosofia, Letras e áreas afins, aos professores do ensino básico, bem como aos alunos da Pós-Graduação, especialmente os do Mestrado em Educação, o acesso às pesquisas acerca da Antiguidade e da Medievalidade. Com isso pretende-se promover debates acerca das fontes sobre as épocas Antiga e Medieval e das possibilidades de acesso a elas no Brasil, bem como acerca das influências éticas e culturais que essas duas épocas históricas exerceram e exercem sobre a contemporaneidade ocidental. Nesta edição, em especial, cujo tema central é

Saberes e Fazeres, buscamos novos interlocutores nos campos da arqueologia e da iconografia, com o fito de explicitar, por meio dos debates, as possibilidades e a relevância de pesquisas no âmbito da cultura material nessas duas temporalidade da história. Nesse sentido, a realização da XIII Jornada de Estudos Antigos e Medievais, X Ciclo de

Estudos Antigos e Medievais e V Jornada Internacional de Estudos Antigos e Medievais certamente consolidará a atuação dos Grupos, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Londrina e do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Estadual de Maringá, assim como das nossas Instituições junto à comunidade científica nacional e internacional.

Profa. Dr.ª Terezinha Oliveira Coordenadora Geral do X CEAM / XIII JEAM / V JIEAM Universidade Estadual de Maringá

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APRESENTAÇÃO Nossos eventos X Ciclo de Estudos Antigos e Medievais e a XIII Jornada de Estudos Antigos e Medievais/V Jornada Internacional de Estudos Antigos e Medievais vêm mais uma vez confirmar uma feliz trajetória. Para esta edição dos eventos propomos o tema “Saberes e Fazeres” porque pensamos em chamar a atenção para os vários aspectos da vida do homem antigo e medieval: seu cotidiano, suas elaborações sobre o mundo e o lugar que ocupavam. Buscamos evidenciar o pensamento do homem sobre sua existência e os desafios da vida no social, a criação de fórmulas para lidar com o que é rotineiro e o que se apresenta como extraordinário, assim como as práticas cotidianas e aquelas fora do comum. Buscamos, assim, a partir de tema abrangente, oportunizar participação de pesquisadores de diferentes campos de estudo, favorecendo um intercâmbio de conhecimento que tem como última intenção compreender melhor esse “outro” do passado com o qual nos identificamos tanto e que, por outro lado, provoca-nos profundo estranhamento. Apresentamos aqui os textos dos trabalhos inscritos em nosso Ciclo de Estudos Antigos e Medievais realizado em 2014 em Londrina. Tivemos a grata satisfação de receber trabalhos de qualidade em diferentes estágios de maturação: doutores, mestres, doutorandos, mestrandos e graduandos apresentaram reflexões ora amadurecidas, frutos de trabalhos já concluídos, ora em andamento. A quantidade de trabalhos inscritos nos aponta um quadro estimulante: cinqüenta e nove, entre pesquisas realizadas nas instituições do Paraná e em outros estados. Para isso cremos que a continuidade dos eventos ao longo dos quase vinte anos contribuiu bastante. Essa vitrine de trabalhos de pesquisa é um estímulo importante para os interessados em refletir sobre os períodos, além de se constituir em espaço privilegiado para a troca de experiências. Gostamos muito do ambiente agregador que promovemos e que só se torna real com o mesmo propósito do conjunto dos participantes. Os pesquisadores percorrem a partir da história, filosofia, educação e das letras, o universo religioso e literário, a vida econômica, política, o cotidiano, enfim, e com abordagens múltiplas que consideram as relações de parentesco e de gênero, o alimento do corpo e do espírito, os discursos e os fazeres.

12


Nosso contentamento, ainda, ao perceber a riqueza da documentação apresentada nos trabalhos, algumas já bastante conhecidas, mas que se apresentam a partir de novos olhares, outras pouco difundidas fora do estreito circuito dos seus pesquisadores, além das discussões historiográficas. A particularidade do crescimento das pesquisas que se fundamentam em documentação imagética é para nós uma grande satisfação. A publicação dos anais em formato de livro digital (e-book) online permite uma mais efetiva extensão universitária e circulação destes estudos, para tal, este e-book está hospedado nos portais da ISSUU (issuu.com/ciclodeestudosantigosemedievais)

e

Calaméo (pt.calameo.com/accounts/3848232). Desejamos aos leitores momentos de esclarecimento, aprendizado e fruição.

Profa. Dr.a Angelita Marques Visalli Coordenadora Geral do X CEAM / XIII JEAM / V JIEAM Universidade Estadual de Londrina

13


COMUNICAÇÕES


LEONARDO BRUNI E A ESCRITA DA HISTÓRIA DO POVO FLORENTINO Alessandro Arzani 1

Resumo: O período convencionalmente chamado de Renascimento (séc. XIV – XVI) é reconhecido como um momento de grandes transformações culturais na Europa. Florença é epicentro desse processo que muda a história e Leonardo Bruni, ao escrever a história de Florença, muda o modo como se escrevia a história. Nascido na cidade de Arezzo (c. 1369), a 70 km de Florença, Leonardo Bruni estudou direito e depois se tornou um especialista em estudos clássicos. Por muitos anos foi chancellor de Florença e escreveu sua célebre Historiarum Florentini populi libri XII, que passou a ser reconhecida como marco na historiografia ocidental, por apresentar um padrão de escrita distinto daquele recorrente em diversas regiões da Europa na Idade Média. Sua História do povo florentino parte desde a fundação de Florença até os dias mais próximos exaltando os “valores republicamos”. A princípio sua obra não representou nada de estrondoso à literatura de sua época, mas seu estilo não passou despercebido aos estudiosos no último século, que o chamaram de “o primeiro historiador moderno”. Além dos paralelos que podem ser estabelecidos entre a escrita da história na perspectiva de Bruni e a historiografia moderna e contemporânea, é fundamental refletir essencialmente sobre o que sua obra representou para a história de seu tempo. Por isso, propõe-se neste artigo uma análise da história escrita por Leonardo Bruni com o intuito de compreender os principais aspectos do seu paradigma historiográfico.

Palavras-chave: Leonardo Bruni; Historiografia; Renascimento

1

Acadêmico da UFRGS.

15


Alessandro Arzani

convencionalmente

Florentini populi libri XII, recebeu o favor

chamado de Renascimento (séc. XIV –

dos Medici e foi restabelecido ao cargo de

XVI) é reconhecido como um momento de

chancellor do Estado, onde permaneceu

grandes

até o fim de sua vida (BURKE, 1908).

O

período

transformações

culturais

na

Europa. Florença é o epicentro desse

Sua História do povo florentino

processo que muda a história e Leonardo

chama

a

atenção

hoje

Bruni, ao escrever a história de Florença,

características

muda o modo como se escrevia a história.

reconstrói a história do povo da região da

particulares.

por

suas

Nela

ele

Nascido na cidade de Arezzo (c.

Toscana desde a fundação de Florença,

1369), a 70 km de Florença, Leonardo

pelos romanos, até os dias mais próximos

Bruni começou a estudar Direito e mais

exaltando os “valores republicamos”. A

tarde, sob a proteção de Salutato e a

princípio a obra de Bruni não representou

influência

do

constantinopolitano

nada de estrondoso à literatura de sua

Chrysoloras,

passou

a

época,

dedicar-se

ao

mas

seu

estilo

não

passou

estudo dos clássicos. Em 1405 conseguiu

despercebido devido aos contrastes com a

com a ajuda de seu amigo Poggio um

escrita da história daquele período.

posto de secretário apostólico sob o Papa

Durante o último século preponderou

Inocêncio VII. Por vários anos permaneceu

a discussão acerca da relação entre o

em Roma auxiliando também aos papas

Medievo

Gregório XII e Alexandre V. Em 1410, foi

Burckhardt (1955) sustentou a tese de que

eleito Chancellor da República de Florença,

o Renascimento representava uma ruptura

mas rejeitou o ofício depois de poucos

com o mundo precedente. Por outro lado,

meses, retornando a corte papal como

Konrad

secretário

nenhuma ruptura entre os dois períodos e

de

João

XXIII,

a

quem

e

o

Burdach

(1935)

Em 1415, Bruni retorna a Florença, onde

Renascimento era preciso retroceder ao

passou o resto de seus dias até 1444. Ele

ano 1000. Semelhantemente instauram-se

dedicou boa parte de sua vida ao estudo

indagações sobre rupturas e continuidades

dos

no estilo historiográfico de Leonardo Bruni.

a

escrita.

Produziu

biografias de Dante e Petrarca, assim como importantes

traduções

falar

de

Burckhardt (1955) viu a historiografia

Aristóteles,

de Bruni mais como um regresso do que

Platão, Plutarco, Demóstenes, etc. Como

como um “progresso” e não escondeu sua

Historiarum

preferência pelo estilo de cronistas como

reconhecimento

pelo

de

se

notava

destacou

e

para

não

Jocab

acompanhou no Concílio de Constança.

clássicos

que

Renascimento.

seu

16


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Giovanni Villani (1276-1348). “Regresso”

Por isso, propõe-se neste artigo

que Edmund Fryde (1983) interpretou como

análises da história escrita por Leonardo

uma revisitação à historiografia clássica.

Bruni com o intuito de compreender os

Para Bernard Guenée (1973, pp. 997-

principais aspectos do seu paradigma

1016) 2, Bruni foi o último historiador

historiográfico.

medieval; para Emilio Santini (1910, pp. 3-

II A principal consideração de Ianziti

173), por outro lado, ele foi o primeiro dos Ianziti

(1997, p. 87) é a validade da equiparação

buscou nos escritos de Bruni as raízes da

de Bruni como o primeiro historiador

historiografia moderna em seu livro Whiting

moderno. Ele parte da análise que leva em

history in Renaissance Italy (2012), mas

contar o modelo de pesquisa de Bruni e os

negou o emprego dos termos “primeiro

modelos epistemológicos levantados pelos

historiador moderno” ou “último historiador

acadêmicos do século XX. Isso inclui a

medieval” ao aretino em um de seus artigos

seguinte questão: seria Bruni realmente

(1997). No mesmo volume da revista

“moderno” ou teria sido ele apenas uma

Parergon, John Ward (1997, pp. 104-105)

construção da história recente em busca

insere a obra de Leonardo Bruni no centro

por precursores? E ainda: Se Bruni não foi

de sua interrogação acerca das origens

o primeiro historiador moderno, teria sido

medievais da historiografia moderna por

ele o último historiador medieval, como

meio da análise da relação entre “crônica”

sugeriu Bernard Guenée? A despeito da

e “história”. Ao destacar a extraordinária

consideração adquirida nos estudos da

variedade

historiográfica

historiografia do Renascimento no último

medieval, Ward estabelece correção não

século, a História de Bruni só conseguiu o

com o padrão “moderno”, mas com o

status de obra inovadora muito depois de

mundo pós-moderno, que questiona as

sua publicação 3.

historiadores

estruturas

modernos.

da

prática

paradigmáticas

Gary

ao

redor.

Todavia, além desses paralelos entre a

Um dos primeiros a reconsiderar a

História

do

povo

florentino

foi

o

escrita da história na perspectiva de Bruni e a historiografia moderna e contemporânea, é fundamental refletir essencialmente sobre

3

Ianziti apontou como, além de Burckhardt, Muratori não

apresentou apreço pela obra de Bruni e hesitou em publicá-la em seu Rerum italicarum scriptores (25 vols.;

o que sua obra representou para a história

Milan, 1723-1751). Mas Muratori publicou as crônicas de

de seu tempo.

Villani em 13 volumes (1728) e 14 (1729), o que rendia a este último maior prestígio segundo seus critérios

2

Cf. Também GUENÉE, 1980.

(IANZITI, 1997, p. 88).

17


Alessandro Arzani

medievalista Gaetano Salvemini (1873-

versão de Santini sobre Bruni como um

1957). Em um dos seus antigos trabalhos –

desinteressado buscador da verdade. Os

Magnati e popolani in Firenze dal 1280-

métodos críticos de Bruni são considerados

1295 (Florença, 1899) – Salvemini faz uma

um subproduto do que ele dizia ser a

menção especial de Bruni, louvando-o por

defesa

ter estabelecido uma acurada imagem das

Florença. Baron (1988. 1,44) argumenta

instituições

que historiadores de outras cidades da

florentinas

medievais.

de

Salvemini explicou também os itens dessa

Itália

reavaliação:

articular

apurada

ele

como

demonstra Bruni

a

procede

forma e

sua

valores

também

florentinos

republicanos

foram

uma

comissionados

propaganda

como

de

Bruni

oficial

começaram

a e a

afinidade com os métodos conhecidos pela

trabalhar fora de um desejo pessoal e um

historiografia moderna. Ele definitivamente

sentimento patriota.

não via Bruni como um escritor comum e

Em síntese, há uma tendência em

seu julgamento influenciou decisivamente a

destacar

como

evidências

inclusão da História de Bruni na nova

“modernidade” a metodologia crítica, a

edição do Rerum italicarum scriptores, cujo

extinção

editor foi Emilio Santini.

estabelecimento

do

da

anacronismo, de

uma

o

adequada

Santini pensa, na verdade, como se

distância entre o presente e o passado,

estivesse lidando com um trabalho do

preocupação com autenticidade, atitude

século XIX. Ele viu Bruni como alguém que

secularizada diante das causas e o fator

tinha

narrativas

humano da história, enfatizando noções

anteriores sujeitando-as à crítica da fonte.

como origem nacional, liberdade, anatomia

Como analisou Anna Maria Cabrini (1990,

anti-imperial e outros paradigmas como uso

pp. 248-249 apud IANZITI, 1997, p. 89),

próprio de fontes e documentação, cultivo

Santini parece ter ido longe demais ao

da objetividade histórica em vez de uma

tentar ler “modernidade” nos métodos de

explicação transcendental (GREEN, 1972.

Bruni.

pp. 6-7).

a

tarefa

de

corrigir

Segundo Ianziti (1997) o fator que

Segundo John O. Ward (1997, p.

mais explica essa imagem de “primeiro

105), a perspectiva folclórica do período

historiador moderno” foi sua incorporação à

medieval

tese de “humanismo cívico” de Hans Baron

insistam sobre a modernidade destes

(FUBINI, 1992, pp. 541-574). Baron (1955.

aspectos da historiografia, devido ao vício

pp. 51-54, 465) aceita por completo a

da

faz

excessiva

com

que

distinção

historiadores

entre

padrão

18


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

medieval e a renascença da escrita da

também é uma codificação dos fatos e das

história. Desse modo, é necessário atentar

datas que, na sua forma medieval, se

para as propriedades do modelo de escrita

distingue mal dos anais.

da história no período medieval para se

Atentando para essas proposições,

aprender sobre o caráter da obra de

Bernard Guenée (1973) faz uma análise

Leonardo Bruni.

das propriedades da “escrita histórica”

A escrita da história na Idade Média

representada nos textos classificados como

circulava essencialmente em torno de

história, anais e crônicas na Idade Média.

“gêneros” como anais, crônicas e história.

Ele aponta que a compreensão medieval

Embora seja amplamente contestável a

da diferença entre ‘história’ e ‘anais-

hipótese

crônicas’ foi de apenas um grau: cronistas

dessas

três

categorias

representarem gêneros de fato. M. R.. P.

seguiam

McGuire (1967, p. 51 apud GUENÉE, 1973,

historiadores, sendo relativamente livres da

p. 998) considerava os anais como obras

tirania

de compiladores contemporâneos, em sua

análises de fatos por reinos, assuntos,

maioria

anotavam

materiais consanguíneos. Guenée (1973, p.

brevemente, em ordem cronológica, os

1009) considerou que na Idade Média não

eventos que consideravam importantes. As

houve nenhum avanço em direção à crítica

crônicas respeitavam a ordem cronológica,

das causas, pois a história era uma

mas davam mais detalhes, tratando do

disciplina

passado e do presente e seus autores

figuras menores, monges retirados do

eram frequentemente conhecidos. Mas

mundo, homens obscuros, desajeitados,

McCGuire é o primeiro a reconhecer que

medíocres: história era uma profissão

crônicas e anais se confundem geralmente

marginalizada.

e que as crônicas assumem muitas vezes o

Renascimento italiano a renovação da

caráter de histórias stricto sensu, quando

antiga noção de orador como historiador

seus autores precisam as causas dos

suplantou

eventos e formulam os juízos.

cronológica.

anônimos,

que

B. Lacroix (1971, pp. 34-38 apud

séries do

anuais,

anual,

marginal.

o

Inglaterra,

enquanto

reagrupavam

Historiadores

Mas

império França

suas

eram

apenas

da e

no

narrativa Alemanha

GUENÉE, 1973, p. 998) a história é um

foram, para Ward (1997), três regiões que

gênero

da

poderiam reivindicar durante a Idade Média

historiografia; os anais são uma simples

um espaço especial na transmissão dos

codificação dos fatos e das datas; a crônica

deveres dos monarcas cristãos e da ideia

literário

por

excelência

19


Alessandro Arzani

de sucessão imperial que constituiu a

‘significação literal’ que não era o mesmo

essência

que o seu significado superior 4.

da

civilização

como

foi

compreendida no tempo. Nessas regiões,

Outro termo comum para escritos

trabalharam

históricos na Idade Média é Gesta. Depois

para dotar o passado de significado. Por

da primeira edição de Gesta Regum em

outro

Itália

1120 A.D., William of Malmsbury volta a

historiadores trabalharam em um nível mais

escrever o Gesta Pontificum, mantendo o

local e que se teria dificuldade para

controle dos eventos do reino inglês

encontrar lá alguém como Gergory de

apenas pelo sentido de entradas analíticas,

Tours, Beda, William de Malmesbury, Otto

que redigiu em três livretos. Um tempo

de Freising, Matthew

depois ele pode ter percebido que o termo

historiadores lado

eclesiásticos na

Espanha

e

na

Paris, Froissart e

“crônica” teria apelo reduzido e por isso

outros. Louis Green (1972) vê Otto de

preferiu “gesta”. William tinha em mente a

Freising e Giovanni Villani como suficientes

diferença entre crônica e história ou gesta.

polos contrastantes para a mudança da

A primeira foi uma palavra para matérias de

visão de mundo medieval para a “moderna”

entradas analíticas, a última representa a

e considera o fato de que todas as crônicas

matéria prima voltada para algum propósito

medievais

o

retórico. A diferença se relaciona ao que

julgamento de Deus se manifestar na

Cícero chamou ‘annalium confectio’ (De or.

história é suficiente e definitivo para a

2.12.52) por um lado, e ‘exaedificatio... in

historiografia medieval. Neste sentido é

rebus et verbis’ (De or. 2.14.63) por outro, o

pertinente dizer que havia em amplas

último sendo o nível no qual escritores

correntes da escrita da história medieval

tornam ‘exornatores rerum’ em vez de

em seus diversos gêneros, um fundamento

narratores (2.12.54).

tomam

Agostiniano,

por

que

a

Na perspectiva de John O. Ward, o

interpretação bíblica da história. É preciso

que se chama historiografia medieval,

compreender que a visão medieval dos

enquanto precursores das práticas pós-

fatos foi multifocal. Como a Bíblia – que era

modernas,

a

única

histórica

que

certo

interpretatio –

“eventos”

privilegiava

de

significância tinham

uma

é

seu

enorme

alcance

e

variedade (1997, p. 122). Inclui não apenas o alcance completo das práticas retóricas e variedades 4

metafóricas,

mas

Cf. Hugo of St. Victor Didascalicon VI.3 cf. (TAYLO,

1961).

20


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

desconcertante alcance de tópicos, formas

as cores que diferenciam a forma de escrita

e gêneros: vernacular chansons de geste 5,

medieval (WARD, 1997, p. 123).

os poemas de romance e textos tais como

Mas em certo momento outro padrão

Nibelungenlied, obras em latim como

de interpretação e construção da história

Alexandreis de Walter of Chatillon ou o

passa a ser apresentado, ainda que seja

Waltharius 6, obras de extremo alcance

repleto de elementos e técnicas conhecidas

como a Historia Regum Britanniae de

no

mundo

medieval.

Neste

cenário

Draco

desponta a obra de Leonardo Bruni.

Normanicus de Etienne de Rouen, a linha

Quanto à reviravolta da história em questão

das cônicas inglesas e segundo William de

no Quattrocento, Riccardo Fubini (1980

Malmesbury, a linha de Latim e biografias

apud IANZITI, 1997, p. 93) apontou que o

vernaculares

abismo entre o primeiro livro de Bruni e o

Geoffrey

of

Monmouth

e

ou

narrativas

o

do

reino

desenvolvida na França capetiana 7.

estoque popular de lendas herdadas pelos

A mais indicativa da qualidade da historiografia

o

de

Florença

não

deveria ser visto como o resultado de

pelo

“repentina iluminação do espírito crítico”.

pensamento de Joaquim de Fiore. Os oito

As bases dessas transformações estão

melhor

é

medievais

esforço

profético,

medieval

cronistas

exemplificado

Chronica

foram

estabelecidas no contexto anterior de

dedicados ao futuro e ao fim do mundo. É

retorno ao estudo dos clássicos e de uma

o desejo de desenvolver uma visão da

depressão eclesiástica notada nas crônicas

história que incluía o futuro que coloca a

italianas

historiografia

pontificado de Clemente V (1304-1315)

livros

das

medieval

de

Otto

aparte.

Em

Joaquim, encontra-se a plena fruição da

especialmente

em

torno

do

(MENACHE, 2006) 9.

crença medieval na verdade absoluta que

O exame crítico de Bruni e sua

não é manifestada na narrativa histórica

reformulação da história sobre as bases

bruta. É a verdade fundada na Bíblia, que

dos

requer consumada arte e habilidade para

sobreviventes

deduzir de sua primária manifestação 8. São

compreensivelmente

vestígios

literário

e

têm

arqueológico impressionado

tanto

quanto

os

exemplos clássicos do criticismo histórico 5

Cf. POLACK, 1982.

6

Cf. FLEISCHMAN, 1983, 278.

7

Cf. SPIEGEL, 1993.

8

humanista em seu trabalho. Gene Brucker (1977) caracterizou o trabalho de Bruni como a passagem de

Cf. WEST, D.C. West; ZIMDARS-SWARTZ, S., 1983,

cap. 4.

9

Cf. WITT, 2001.

21


Alessandro Arzani

valores corporativos das últimas comunas

justificar uma situação. Naquele contexto

medievais para mais individuais, atitudes

seu escrito justificou uma posição contra a

políticas profissionalizadas em associação

proteção imperial.

à

emergência

do

Estado

Territorial

Em sua narrativa, “os fundadores de

Florentino. De acordo com Brucker uma

Florença eram colonos romanos que Lúcio

série de eventos do século XIV, incluindo o

Sila enviara para Faesulae” (BRUNI, 2001.

Grande Cisma e a ascensão e queda da

p. 9). Receberam aquelas terras como

hegemonia Visconti, criou um vacuum de

recompensa

poder e submeteu mudanças internas

Florença é retratada como a cidade que se

consequentes

livra dos “vícios” que lhe vinham da velha

cujas

principais

por

cidade,

nova elite governante. A nova oligarquia

restaurando em seu próprio benefício as

praticava uma abordagem mais direta de

boas “virtudes” que eram próprias das

governo e começa a desenvolver as

origens de Roma. Em suma, a então capital

estruturas

da Toscana é, desde o princípio, a nova

com

novos

Roma.

elemento

essencialmente republicana.

e

aglutinar

da

uma

recuperando

quadros profissionais, mas faltava um legitimador

Mas

modo

prestados.

características eram a formação de uma

administrativas

desse

serviços

Roma,

e

pré-imperial,

Não havia nenhuma base legal ou

estrutura social. Ianziti (1997, p. 94) destaca que a

teoria moral para o poder de Florença

característica distintiva da História do povo

clamar o exercício sobre uma larga fatia de

florentino não é algum suposto alinhamento

um

com os métodos críticos da historiografia

importante. A cidade tinha capturado uma

dos séculos XIX e XX. A crítica de Bruni às

oportunidade; conveniência política ganhou

lendas da cidade não são ditadas por

a supremacia contra moral e escrúpulos

alguma preocupação abstrata por descobrir

legais. Segundo Ianziti (1997), se a História

a verdade sobre o passado; ela brota da

de Bruni não tem uma dedicatória explícita,

necessidade de projetar uma versão de

ela pode informalmente ter sido dedicada à

cidade do passado que corresponderá aos

oligarquia florentina.

requisitos

de

formação

seu trabalho um caráter oficial, conectado

governista.

A

História de Bruni está

com recente ascensão de Florença da

destinada a fazer mais que simplesmente

condição de um comune medieval a um

refletir

território

sobre

prioridades

uma

novos

políticas.

nova

conjuntos Também

de

procura

território

fértil

político

e

estrategicamente

Ele reconhece em

com

reivindicações

históricas do status de Estado soberano.

22


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Em última instância, a obra do

romanas legitimavam sua questão por um

aretino, é um relato da extraordinária

extenso espaço no cenário italiano. Mas na

ascensão

Sua

História isso muda. Bruni ainda vê Florença

narrativa minimiza o valor do Império e da

como fundada pelos romanos, mas a

Igreja. Igreja e Império não são concebidos

reivindicação de cidade não é apresentada

como exclusivos portadores da significação

sobre esta base. Pelo contrário, Roma e

histórica. O foco de Bruni sobre o Estado

seu

moderno difere historicamente dos antigos

inimigos

padrões do século XIV, tais como os

Florença.

apresentados

Albertino

representada como aquela que sufocou e

Mussato ou Ferreto dei Ferreti. Estes

impediu o desenvolvimento de Florença

últimos podem muito bem ter tentado

(IANZITI, 1997) 10.

para

predominância.

nas

obras

de

Império

seguir os ditames formais da historiografia clássica;

no

E

do

além

ambicioso disso,

como rival,

Roma

é

Enquanto em Roma viveu um povo livre em que o governo conformava-se pelo

escrever história baseada na concepção de

colegiado de magistraturas republicanas

uma história universal. Com Bruni, o que

(cônsules, ditadores, tribunos militares), a

conta não é a trama dos objetivos das

cidade

instituições divinamente sancionados com

cidadãos

missões universais e mandatos. Bruni em

gloriosos. Neste período as conquistas de

vez disso articula o prático, preocupações

Roma se espalharam pelo mundo todo.

diárias

florentina

Desde que, entretanto, à época de Júlio

empenhada em esculpir para si mesma

César e a seguir Augusto, “Roma desistiu

uma identidade e um futuro (IANZITI,

de sua liberdade dando lugar ao imperium”,

1997).

atribuindo o poder estatal a uma pessoa, o

uma

continuaram

naturais

apresentados

a

de

entanto,

são

política

cresceu

em

poderio

distinguiram-se

por

e

seus feitos

A versão de Bruni da história da

germe da doença contaminou a cidade,

Toscana explora a vitalidade das origens

pois, com “o desaparecimento da liberdade,

etruscas, mas também lança Roma no rol

vai-se também a virtude”. O Império

de antagonistas. O retrato que ele ofereceu

Romano, pois, na caracterização de Bruni,

no seu Livro I da História do povo florentino

se mostra como “flagelo da cidadania e

é

ele

terror do mundo”. O desfecho não poderia

apresentou no seu Laudatio florentinae

ser outro mais vergonhoso (PIRES, 2006,

urbis dez anos antes. No seu trabalho mais

1981).

radicalmente

diferente

da

que

antigo, Bruni argumentou que as origens

10

Cf. WATKINS, 1978. p. 33.

23


Alessandro Arzani

Fubini (1980) destaca que Bruni capta o ponto chave do clamor de Florença por soberania. O direito de declarar e fazer guerra, crescer através de conquistas militares, investir em funcionários com pelo reconhecimento de autoridade. A queda do Império

Romano

garantiu

a

Florença

encontrar sua posição própria como capital da Toscana. Bruni faz uma conexão entre o Estado moderno da Toscana e aquele de antes da dominação romana. Ele divorcia a moderna política Florentina de qualquer dependência

da

antiga

Roma

e

seu

Império. O domínio romano é um infeliz parêntesis na História de Bruni que impediu a expansão da Toscana. Seu objetivo era elaborar um pano de fundo histórico e racional para a existência da soberania da Toscana como sua capital em Florença. Isso fez com que Bruni mudasse os padrões das narrativas da história antiga do ponto

de

vista

romano

perspectiva

para

uma

etrusco-florentina

(IANZITI,1997). Como sintetiza F. M. Pires (2006, P. 79), na narrativa de Bruni o Povo, que antes vivia curvado sob sujeição servil a príncipes e seus acólitos, agora, “provado o mel da

guerreira” (arma fortitudoque). Ambos esses modos de atuação respondem pelo mesmo princípio, qual seja, instaurar o reino da “liberdade”, pois, os feitos guerreiros do Povo de Florença [...].

Eric Cohrane (1981, p. 3) reconhece que Bruni se inspira em modelos antigos, principalmente a História Romana de Tito Lívio e em certa medida também na

História da Guerra do Penepoleso de Tucídides. Arnaldo Momigliano (2004, p. 38) apontou que Tucídides não era muito familiar aos renascentistas, que deviam levar mais em consideração a Políbio. Edmund Fryde (1983) destacou ainda mais a herança metodológica tucidideana na obra historiográfica de Leonardo Bruni, mas Gary Ianziti (1997) persiste na alegação de que Bruni inova a partir do modelo de Tito Lívio. Segundo reescreve

a

pela

Bruni

perspectiva

fachada para a busca de vestígios da civilização dos perdedores. Bruni teria mudado o padrão da narrativa da fundação e antiga história de Florença. Sob este prisma tal “desconstrução” que Bruni faz da narrativa de Lívio seria significante em primeiro

“senhor de si mesmo e, assim erigido em dignidade,

possibilidade

quais diretrizes de conduta consolidam o fortalecimento

história

(1997),

etrusca. A retórica de Lívio seria como uma

liberdade”, princípio de “crescimento forte”, tornara-se agente criador de honra”. Pelo que o historiador aponta

Ianziti

lugar de

porque uma

sustenta

história

a

secular

deitando fora a moldura de Roma e seu

citadinas,

subsequente Império. Em segundo lugar,

“aconselhamento e diligência” (consilium et industria); no

porque ele pressupõe outro ponto de

do

Povo:

na

interioridade

inter-relacionamento

exterior,

das

ações

“determinação

e

força

vantagem que vê os eventos previamente

24


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

vistos apenas pelos olhos romanos. Em

“memoráveis e importantes quanto aqueles

terceiro lugar, porque ao relativizar Lívio,

grandiosos acontecimentos da antiguidade

Bruni torna sua escrita da história falível e

que lemos e admiramos tanto”.

repetível. De modo que ele procurou de fato

não

imitar,

mas

mostrar

Udo Klee (1990, pp. 30,41,44;38,39

uma

apud PIRES, 2006. p. 60) fez uma análise

alternativa a Lívio. Sua intenção teria sido

exegética da obra de Leonardo Bruni e

fazer para os florentinos o que Lívio fez

destaca alguns traços tucidideanos. Um

para os Romanos. Desse modo, Bruni é

deles é o comentário à passagem sobre os

tomado como um reinventor da escrita da

primeiros

história, que ajusta os requisitos de uma

(Commentaria tria de primo Bello Punico),

nova configuração sociopolítica. Mas essa

em que Bruni lembra tradições fabulosas

perspectiva parece ignorar o trabalho de

tocantes aos ciclopes e lestrigões (A guerra

Udo Klee, que só aparece em uma rápida

dos Penepolésios e Atenieneses VI.2,1),

citação de Ianziti no seu livro Whiting

mas os dois historiadores estão advertidos

history in Renaissance Italy (2012, p. 58)

acerca das incertezas da História. Além

quando o assunto é Cicero; e nem uma vez

disso,

em seu artigo para a revista Parargon de

“paralelismos”

1997.

historiadores; estabelece proximidades de

ocupantes

ele

detecta textuais

da

Sicília

também entre

os

os dois

Atentando à análise de Klee, mas

pensamentos e formulações, que permitem

ignorando a de Ianziti, F. M. Pires (2006, p.

arrazoar plausivelmente ou “demonstrar

61) sustenta que o objetivo desse tipo de

pela mais alta probabilidade” de que Bruni

história contempla a “memorização da

se orientou pelo ateniense.

grandeza de poderio político e militar que

Segundo F. M. Pires (2006), as

os feitos dos homens projetam: ao ápice da

semelhanças entre a narrativa da história

grandeza consumada por atenienses e

de Bruni e de Tucídides corrige a tese de

espartanos na Guerra do Peloponeso [em]

Hans Baron quanto à criação do senso

suprema

pelos

moderno de consciência histórica de Bruni.

florentinos em suas guerras contra “o todo-

De acordo com Baron, quando a cidade

poderoso duque de Milão e o agressivo rei

resistiu à conquista imperial do Duque de

Ladislau”, tanto que, se aquela guerra

Milão, na virada do século, Bruni toma

antiga

a

consciência da grandiosidade de Florença,

antecederam (Tróia, Medas), agora as

por poderio estatal mais fulgor civilizatório.

conquistas

A cidade os devia fundamentalmente ao

grandeza

superava de

alcançada

todas Florença

as

que

eram

tão

25


Alessandro Arzani

espírito de “humanismo cívico e liberdade republicana” consolidado justo naquela ocasião. Klee (1990, pp. 30,41,44;38,39 apud PIRES, 2006. p. 62), no entanto, argumenta enraízam

que no

os

nexos

princípio

de

que

assim

“liberdade”

política o estímulo que promove uma civilização esplendorosa remetiam antes a uma (cons) ciência histórica firmada já por Tucídides em vários momentos de sua obra:

ela

aparece

prefigurada

na

“Arqueologia”, depois veiculada no discurso dos

atenienses

expressamente

em

Esparta,

teorizada

no

e

é

“Discurso

fúnebre” de Péricles. E desse modo, Klee (1990, pp. 30,41,44;38,39 apud PIRES, 2006. p. 46) conclui que a teoria da história de

Bruni

não

é

algo

original,

mas

completamente dependente de Tucídides. O aspecto frágil da posição de Udo Klee é que ela acaba por desprezar a força das circunstâncias em que vivia Bruni procurando as bases paradigmáticas em um lugar distante do passado ignorando a capacidade criativa do escritor em função do ambiente social de sua época. Ainda que sejam evidentes os entrecruzamentos

da análise exegética de Klee. E, assim, talvez único pecado de Ianziti tenha sido não ter prestado atenção aos traços tucidideanos na obra de Bruni, que em nenhum momento contradizem a inspiração com que o autor aretino constrói a história do popolo livre de Florença. Leonardo

Bruni

mérito

de

antiga

para construir

pertinente

recorrer à

tem, à

o

historiografia

um

sua

então,

paradigma

época. Ullman

(1955. pp. 321-344) destaca na

sua

escrita os informes factuais às fontes originais;

perspectiva

secularizante

e

descarte

histórica de

lendas

fictícias e similares tradições miraculosas; veredito

entre

causabilidade humanos.

relatos motivacional

Mas a

conflitantes; dos

atos

análise de sua obra

não é apenas elogios. Não quero dar a impressão de que ele fosse um historiador perfeito. Seu método analítico, herdado de suas fontes, não se coaduna com a concepção moderna. Há, do ponto de vista das tendências recentes, uma ênfase demasiada na guerra. Disso tudo resulta que, a despeito de sua suposta tendência retórica, longos trechos da obra, especialmente quando ele segue Villani, são áridos e de leitura tediosa (1955, p. 343).

Fryde (1983. pp. 5-12) também

de sua obra e o caráter investigativo de

destaca o evidente interesse pela verdade

Tucídedes, não há nenhuma razão para

histórica, a busca por evidências, a solução

minimizar o desempenho da estratégia de

de problemas. O exame das origens das

Bruni

adaptação

cidades que aparece na escrita de Bruni

histórica para a República de Florença.

afasta-se das tradições míticas de suas

Aliás, essa é uma das principais limitações

fundações

em

reconstruir

uma

e

valorizam-se

mais

causalidade. 26

a


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Valorizando escritor,

as

Cochrane

habilidades

(1981,

pp.

do 4;20)

acesso privilegiado; e o primeiro esboço na tradição

ocidental

que

dominou

a

considera que Bruni faz uma verdadeira

historiografia europeia desde então, com

revolução no pensamento e na escrita da

sua divisão tripartite - Antiga, Medieval e

história. Mas nem por isso deixa de notar

Moderna.

que Bruni carrega algumas heranças das

Mas a concepção de “moderno” de

crônicas, conjugando-as ao “espírito do

Bruni

Humanismo”

modelos

sustentada hoje a historiografia. Segundo

novo

e

Hankins,

transformador na história. Mas Cochrane

sua

antigos

e

recorrendo

aos

produzindo

algo

(1981, p. 7) também destaca que Bruni ignorou

a

família;

econômicos;

as

os

guildas;

interesses a

natureza

corporativa do regime florentino; dividiu artificialmente a sociedade florentina em três

classes

sociais;

confundiu

as

ideologias e ignorou os conflitos. Em

História

sua de

análise Bruni,

introdutória

Hankins

a

(2001)

reconhece todos os méritos apontados pelos seus precedentes, tais como o entendimento que ele tinha dos homens e seus atos; erudição e poderosa imaginação histórica; domínio das fontes da história latina e grega que o capacitou a se desvencilhar das lendas exuberantes que se

tinham

desenvolvido

acerca

da

fundação de Florença e a recusa aos mitos cívicos

consagrados

em

reverenciadas

crônicas medievais como as de Giovanni Villani,

conclusões

fundamentadas

em

documentos derivados dos arquivos papais e oficiais florentinos, a que Bruni tinha

é

muito

distinta

concepção

entretanto,

dessa

do

que

é

moderno

imprescindivelmente

é,

secular.

Vários comentadores já observaram que na história de Bruni a ascensão e a queda da liberdade política toma o lugar que as fortunas da

Cristandade

enquanto

mantinham

anteriormente

princípio organizador na primeva

historiografia cristã e na medieval. A Divina Providência não é mais o primeiro motor dos fatos humanos. Os seres humanos mesmos fazem sua própria história. É por esta razão, e não por qualquer grande avanço formal ou técnico que Bruni é corretamente denominado o primeiro historiador moderno (2001, p. xviii).

A

admissão

da

expressão

“historiador moderno”, ainda que com o esclarecimento facilmente compreende

de

posta

Hankins, de

lado

simplesmente

pode

ser

quando

se

que

Bruni

oferece um paradigma historiográfico no

Quattrocento. Desse modo, se Bruni é um historiador moderno, o é na sua própria concepção de moderno; ou seja, conforme a inovação renascentista de sua época, bem distante da modernidade do século XIX. Muito menos caberia chamá-lo de pósmoderno, como insinua John Ward. Bruni faz mesmo a história de seu tempo. Apresenta um paradigma que inova ao 27


Alessandro Arzani

retornar

às

bases

clássicas

da

Considerações finais

historiografia.

Em suma, é ainda justo admitir que a

Não muito depois de sua morte sua

obra Historiarum Florentini populi libri XII de

História foi disponibilizada em uma versão

Leonardo Bruni é um marco para a

vernacular

historiografia no Ocidente. Não se trata,

de

Donato

Acciaiuoli,

em

1476 11. Esta versão o transformou no

todavia,

principal inspirador da historiografia oficial

historiador moderno ou o último historiador

em

medieval, mas de reconhecer que seu

outros

centros

italianos

(Milão,

de

considerá-lo

Veneza), assim como menos diretamente

paradigma

no Norte da Europa (Inglaterra e França) 12.

narrativa no mínimo diferenciada.

O que tocou os contemporâneos e

Tal

historiográfico

o

diferenciação

primeiro

oferece é

uma

produto

da

imitadores não foi o aspecto crucial muito

combinação de elementos conhecidos da

afamado mais tarde, mas o modo como o

escrita de seu tempo e sua “inovação” é

trabalho exemplificava a possibilidade de

dependente

uma história secular baseada sobre um

historiografia,

entendimento claro da política como uma

contraditório. Mas para ser “novo” não é

arena de responsabilidade e criatividade

necessário ser creatio ex nihilo. Desse

humanas.

surpreendentemente

modo, Bruni ao mesmo tempo em que se

Maquiavel (1988, p. 6) destacou a História

inspira na historiografia antiga, escreve em

do povo florentino de Bruni como seu guia

conexão com seu mundo e seu tempo,

para escrever sua própria Storia Fiorentine,

oferecendo, assim, uma razão histórica

dedicada aos Medici em 1520.

para a existência de um Estado Toscano

Não

das o

bases que

clássicas

poderia

da

parecer

soberano com sua capital em Florença. 11

Publicada em Veneza em fevereiro de 1476, como

Historia fiorentina: cf. Edler de Roover (1953, 107. Apud IANZITI, 1997).

Sua

narrativa

não

recorre

à

divina

providência para explicar o drama humano

The 1476 edition also included Poggio Bracciolini's

através dos séculos; nem à Bíblia como

Historia fiorentina in the translation of his son Jacopo. No

parâmetro interpretativo para identificar as

12

final dos anos de 1470 e início de 1480 surgiram também obras inspiradas em Veneza e Milão. Estas incluíam: Marcantonio Sabellico's Rerum venetorum ab urbe condita

libri XXXIII, e Giorgio Merula's Antiquitates Vicecomitum. Isso foi suficiente para convencer a Ianziti de que essas

causalidades dos eventos narrados. Como

a

principal

inovação

no

paradigma de Bruni, tem se firmado: buscar

obras inspiravam um tipo de historiografia oficial segundo

explicações e interpretações de modo

este novo estilo italiano. Sou a influência na Inglaterra e

crítico para os eventos históricos sem

na França, Cf. Denys Hay (1952).

prestar

(1904).

Auguste Molinier

continência

aos

parâmetros

28


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

religiosos. O estilo de Bruni não só exalta a

investigação crítica, tenha feito com que

liberdade a ser celebrada pelos florentinos

preterido por alguns até o século XIX,

quanto a manifesta na retórica empregada

quando

em sua escrita da história. Talvez este

evidência.

sua

obra

emerge

com

mais

caráter artístico, ainda que conjugado à

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31


“ENTÃO LHE FORAM GRAVADOS NÃO NO CORPO, MAS NO CORAÇÃO”: UMA ANÁLISE SOBRE A INTENCIONALIDADE DOS DISCURSOS HAGIOGRÁFICOS MEDIEVAIS SOBRE A ESTIGMATIZAÇÃO DE FRANCISCO DE ASSIS Alex Silva Costa 1 Angelita Marques Visalli 2 (Orientadora) Resumo: O trabalha analisa a intencionalidade dos discursos hagiográficos franciscanos sobre a estigmatização de Francisco de Assis nas obras Vita Prima (1C),Legenda Maior

(LM), O Espelho da Perfeição (SP), dentre outras. Em 1224, na solidão montanhosa do Monte Alverne na Itália Central, Francisco de Assis teria se personificado na figura de Cristo ao receber as chagas do Crucificado. Os discursos das narrativas hagiográficas franciscanas evidenciam a preocupação dos autores em demonstrar que o santo era a representação terrena e humana do próprio Cristo.Nas mesmas é descrito que ambos seriam uma só pessoa, o milagre significaria a grande similitude iconográfica de Francisco no Cristo crucificado. O local social de quem produz o discurso hagiográfico e a intenção de materializar a personificação cristológica constituem o nosso objeto de reflexão. Palavras-Chaves: São Francisco; Representação; Cristo.

1

Mestrando do Programa de Pós Graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina-UEL (PR),

bolsista Capes.

2

Professora adjunta ao Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina.

32


Alex Silva Costa

Introdução

propunha uma mensagem acessível a

Ao longo dos séculos XIII e XIV a

todos, enobrecendo a língua vulgar, já que

representação cristológica de Francisco de

não tinha formação de clérigo. Assim, a sua

Assis foi destacada no imaginário medieval

originalidade

tanto por meio de hagiografias quanto pelo

vontade de levar uma vida pobre e errante,

uso de imagens. Uma das razões obvias

a exemplo de Cristo, numa recusa da

que legitimaria essa representação seriam

posse de bens não só pessoais, mas

as chagas que o santo possuía em seu

igualmente comunitária.

corpo e seu estilo de vida, onde era

fundamental

Destacamos

a

na

forma

evangelizar

imitação do Cristo.

impressionou a sociedade medieval pela prática

da

Francisco

humildade,

de

de

presente a prática do evangelho e a Sua identificação com o filho de

de

que

residiria

Assis

pobreza

e

Deus não seria somente corporal, seria

obediência, esta é conhecida como tríade

escatológica

de

franciscana, são preceitos fundamentais do

de mudança. Entre estas,

movimento franciscano. Desta forma, os

renovação,

em

sua

mensagem

podemos destacar a questão da pobreza

membros

amplamente discutida: para alguns frades

primitivo eram convidados a praticar a

do franciscanismo moderado a pobreza era

mendicância

uma virtude, para Francisco de Assis um

manuais, essa atitude, criticava de maneira

modo de vida. O Cristo era pobre, não se

indireta a luxúria e o poderio econômico da

regozijava de bens materiais, pregava a

Igreja Católica. Os desdobramentos dessa

doação, a fraternidade, a união, o cuidado

nova atitude cristã que foi aceita pelo

aos fracos e oprimidos, ações descritas no

papado, apesar de sofrer interferências do

Evangelho que o santo italiano fez questão

mesmo, são imensos e refletiram na

de cumpririnexoravelmente, pois queria

sociedade cristã medieval, pois a cada dia

seguir a mensagem do Cristo e colocá-la

aumentava o número de jovens que

em prática.

renunciavam à riqueza e ao conforto de

Para André Vauchez (1995, p.142143) Francisco de Assis seguia uma tradição

cristã

e

ao

movimento e

a

realizar

franciscano trabalhos

suas famílias para viver uma vida de penitente.

tempo

Além disso, é importante exprimir

sintetizava as aspirações dos movimentos

que o sucesso desta nova atitude cristã

religiosos

uma

deveu-se também à sua implantação no

fidelidade total à Igreja. O pobre de Assis

meio urbano eágrande personalidade de

anteriores,

mesmo

do

mantendo

33


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

seu fundador que teve a graça de receber

pois às vezes materializam os discursos,

em seu corpo no ano de 1224 os sagrados

conferido um sentido concreto ao abstrato.

estigmas do Cristo Crucificado, fato que o

Por

levou a ser chamado de Alter Christus, o

somente as formas como foi representada

Outro Cristo. E será sobre a formulação

a estigmatização, mas o sentido que lhe foi

dos

a

conferido pelos seus agentes propagadores

personificação do santo italiano na figura

e pela sociedade cristã medieval. Pois as

do

“imagens significam muito mais do que um

discursos Cristo

hagiográficos

Crucificado

sobre

que

iremos

isso

é

desenvolver uma reflexão sobre o exercício

simples

da

conhecimento

escrita

e

a

intencionalidade

e

materialização dos discursos dominantes. Vários

hagiógrafos,

estudiosos,

artistas e admiradores de Francisco de Assis potencializaram ao longo do medievo

meio

importante

de

observar

não

disseminação

religioso.

Eram

do

por

si

mesmas, agentes, a que eram atribuídos milagres, e também objetos de cultos” (BURKE, 2004, p. 62). Nesse estudo temos como objeto de

tanto na escrita hagiográfica quanto nas

análise

representações

valor

escritas a partir do séc. XIII, entre elas, a

simbólico da estigmatização. Por isso é

Vita Prima (1C) escrita em 1228 e a Vita

interessante

dessas

Secunda (2C) de 1247 de Tomás de

representações, uma vez que sob a

Celano, a Legenda Maior (LM) de São

perspectiva de Roger Chartier entende-se

Boaventura escrita em 1263, A Legenda

por

de

dos Três Companheiros (3S) de autoria dos

símbolos que são produto de reflexos dos

Freis Leão, Rufino e Ângelo,O Espelho da

interesses dos grupos que os forjam, e as

Perfeição (SP) atribuída a Frei Leão, I

imagens

Fioretti (Fior), dentre outras.

iconográficas

analisar

representação

são

o

um

o

nível

conjunto

fundamentais

para

se

construir o sentido do real, já que a “representação

é

instrumento

de

um

as

Essas fundamental

hagiografias

franciscanas

hagiografias

são

de

importância

para

se

conhecimento mediato que faz ver um

compreender a intenção dos discursos

objeto ausente através da sua substituição

hagiográficos que demonstram por meio da

por uma imagem capaz de reconstituí-lo

escrita a representação cristológica de

em memória e de figurá-lo tal como ele é.”

Francisco de Assis durante o período

(CHARTIER, 1990, p. 20).

medieval. Por meio da escrita hagiográfica

As

imagens

funcionam

como

identificamos que as diferentes construções

complementação e reforço para o dizível,

narrativas advêm das posições sociais e

34


Alex Silva Costa

religiosas que os hagiógrafos ocupavam no

humanas do sagrado e ambiciona torná-las

período estudado.

exemplares para o resto da humanidade”

Desta forma, é notório entender o

(DOSSE, 2009, p. 137). Durante o medievo

pensamento de Michel de Certeau ao

os textos hagiográficos “eram importantes

destacar que “o estudo histórico está muito

veículos para a propagação de concepções

mais

uma

teológicas, modelos de comportamento,

fabricação específica e coletiva do que ao

padrões morais e valores” (SILVA, 2012, p.

estatuto de efeito de uma filosofia pessoal

01).

ligado

ao

complexo

de

ou à ressurgência de uma ‘realidade’

Essa

preocupação

deve

estar

passada. É o produto de um lugar”

presente nas fontes franciscanas porque as

(CERTEAU, 1982, p.72).

“dissensões dentro da Ordem dos Frades

E

para

estudarmos

a

Menores no século XIII acabaram, afinal,

materialidade

dos

por nos privar de fontes dignas de total

período

confiança sobre a vida do fundador da

medieval e no imaginário cristão, utilizamos

Ordem” ( LE GOFF, 2007, p. 49). André

estudos de Michel Foucault, no qual

Vauchez

destaca os silêncios e omissões dos

semelhante sobre as biografias de São

discursos, além da ênfase, que a produção

Francisco, para ele são numerosas e

de um discurso é ao mesmo tempo

prolixas, mas:

intencionalidade discursos

e

hagiográficos

“controlado,

selecionado,

no

organizado

e

redistribuído por um certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento

aleatório,

esquivar

pesada

temível

materialidade”

e

sua

O termo hagiografia relativo às palavras gregas: hagios: santo, grafia: escrita, remete a textos que relatam a vida revelações.

pensamento

A sua utilização como fontes coloca aos historiadores graves problemas. Todas, com efeito,

foram

redigidas

posteriormente

à

canonização de Francisco pelo papado, a qual teve lugar em 1228, dois anos após a sua morte. Tomar à letra e encadear todos os episódios que figuram nas vidas medievais de S. Francisco, como fizeram certos autores modernos, constitui

biográficas escritas pelo grupo moderado

Franciscana

visões,

um

Segundo Le Goff todas as fontes

A produção Hagiográfica

santos,

traz

pois um contra-senso (VAUCHEZ,1994, p.245).

(FOUCAULT, 2004, p. 08-09).

dos

nos

Esse

“gênero literário privilegia as encarnações

do franciscanismo primitivo têm como principal referência as obras de Tomás de Celano, que as compôs a pedido de altas personalidades eclesiásticas. Isso porque Tomás de Celano, além da Vita Prima

35


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

escreveu a Vita Secunda, e vários outros

todos os escritos anteriores relativos ao

escritos sobre São Francisco. A respeito da

santo. O objetivo dessa medida era impedir

primeira enfatiza que:

que os frades tivessem outra referência

[...] essa vida, muito bem informada, silencia todo traço de dissensão dentro da Ordem, seja entre a Ordem e a cúria romana, faz o elogio de Frei

Boaventura, que na época era o Ministro-

Elias, então muito poderoso, e se inspira nos

Geral da Ordem do Frades Menores. Ao

modelos historiográficos tradicionais (LE GOFF,

impor esta medida a obra tinha que ser tida

2007, p.55).

para

André

Vauchez

os

problemas internos da ordem colocaram variações nos textos porque os autores testemunhavam a partir de seus interesses e visões formativas, ou mesmo pela situação

conflituosa

do

tempo

vivido.

Quanto à parcialidade de quem escreve e de

biográfica que não fosse a escrita por São

seus

encomendadores,

exemplifica

dizendo que essa situação:

como única vida canônica. Le Goff critica essa decisão e expõe: Ao tomar essa medida a Ordem contrariava os desejos do próprio santo que em seu testamento pedia que zelassem pela autenticidade de sua vida, dos documentos. E ainda obrigou-lhes a ter obediência com relação as suas palavras para que nada se acrescentasse e nem nada cortassem, basta ver o que declarou em seu Testamento: “O Ministro-Geral e todos os outros ministros e os custódios estão obrigados, por obediência, a não acrescentar

nada

nem

nada

cortar

destas

É bem visível nas variações que apresentam as

palavras. Antes, tenham este texto sempre consigo

duas primeiras biografias oficiais, obras do

junto com a Regra, leiam também estas palavras”

franciscano Tomás de Celano. Enquanto na

(LE GOFF, 2007, p.52).

primeira, o irmão Elias de Cortona (comanditário da obra com o papa Gregório IX) ocupa um certo lugar e é apresentado sob uma luz favorável, a

Para André Vauchez a intenção de São Boaventura ao escrever a Legenda

sua ação e as suas relações com S. Francisco

Maior era a de restabelecer a unidade e a

são evocadas em termos nitidamente mais

concórdia no seio da ordem. Pois observa

discretos na segunda. É que entretanto esta personagem

contestada

fora

obrigada

a

que o mesmo era Ministro-Geral da Ordem

abandonar a direção da ordem e reunira-se ao

(1257-1274) quando da publicação da obra.

imperador Frederico II em luta contra o papado

Ainda para o mesmo autor, devemos dar

(VAUCHEZ, 1994, p. 246-247).

Atentemos agora a outra fonte utilizada, a Legenda Maior (LM) de São Boaventura. A mesma fora aprovada pelo capítulo geral de 1263, e o de 1266 tomou a decisão de proibir aos frades qualquer outra leitura sobre a vida do santo. Além disso, ordenou que os frades destruíssem

atenção às recordações de Frei Leão, Frei Rufino e Frei Ângelo que teriam relatado por escrito, após 1224, por medo de ver caída

no

esquecimento

a

verdadeira

imagem daquele a quem tinham amado e seguido: Inquietos com a evolução da ordem sublinhavam sobretudo o espírito de pobreza do fundador, a

36


Alex Silva Costa desconfiança de que tinha dado testemunho face aos estudos e o seu apego apaixonado aos valores evangélicos. Ignora-se qual foi a forma

celebração

do

sétimo

centenário

do

nascimento do santo em 1882 como

exata desta preciosa recolha a que se chama o

prefácio dessa revisão, além da edição, na

Florilégio de Greccio e os especialistas ainda

mesma ocasião, da encíclica Auspicatum

hoje

discutem

organização transmitido

o

seu

interna. em

dois

conteúdo

Mais

o

textos

e

a

sua

essencial

foi

compostos

em

meados do séc. XIII: A Legenda dos Três

Companheiros e a Lenda (denominada) de Perúsia, que se revestem efetivamente de uma importância particular (VAUCHEZ, 1994, p. 246).

concessun, de Leão XIII. Mas para o autor o “autêntico ponto de partida da busca do verdadeiro

São

Francisco

é

a

obra

fundamental do protestante Paul Sabatier, em 1894” (LE GOFF, 2007, p.54).

Para Le Goff a Legenda escrita por

Para André Vauchez, Paul Sabatier

São Boaventura é quase inútil como fonte

pôs em causa a autenticidade até então

da vida de São Francisco, e de um modo

incontestada das biografias oficiais (I e II

ou de outro, deve ser controlada por

Celano, Legenda Major) e suscitou um

documentos mais seguros,já que:

grande escândalo ao escrever uma vida de

Em rigor, com todo o seu trabalho de pacificador, São

Boaventura,

apesar

de

sua

profunda

veneração a São Francisco e de se basear em

Perfeição, no qual julgava ter encontrado a

fontes anteriores autênticas, realizou uma obra que

vida mais antiga do poverello. Para ele a

ignora as exigências da ciência histórica moderna,

“hipótese de Sabatier era falsa, mas teve o

por ser tendenciosa e fantasista (LE GOFF, 2007, p.53).

A polêmica em torno dos discursos das hagiografias franciscanas é tão grande que

S. Francisco inspirada no Espelho de

fora

necessário

aguardar

alguns

séculos segundo André Vauchez para que:

mérito de suscitar pesquisas que permitem hoje aos historiadores avançar sobre um terreno menos minado” (VAUCHEZ, 1994, p.247). Essas discursões fazem parte da

[...] se redescobrisse o texto da Lenda de Perúsia,

“Questão

assim como outras biografias de S. Francisco

disputa pela memória de Francisco de

compostas

no

franciscanos

início

do

‘espirituais’-

século istó

é

XV

pelos

hostis

ao

Franciscana”onde

uma

Assis por meio dos Conventuais e dos

relaxamento e às atenuações das exigências da

Espirituais, apesar de identificarmos que

regra em matéria de pobreza- como é o caso do

cada discurso hagiográfico em particular

Espelho de Perfeição (VAUCHEZ, 1994, p.246).

Para Le Goff as exigências da crítica histórica moderna levaram no fim do século XIX a uma revisão do São Francisco tradicional.

Poder-se-ia

considerar

a

atende à necessidade de formar seu ponto de vista, por exemplo, a escrita formativa e tendenciosa

de

São

Boaventura

na

Legenda Maior (LM) para os Conventuais, refletimos que não há como se apresentar

37


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

necessariamente a verdadeirade vida de Francisco de Assis, o real é inatingível, o que existe são diferentes “pontos de vistas” que

se

enquadram

em

necessidades

doutrinarias que brigam pela evocação de uma memória coletiva. Boaventura

descreve

na

por volta de 1205, Francisco ao passar pelas ruínas da antiga igreja de São Damião que estava prestes a ruir de tão coloca-se

de

joelho

diante

do

crucifixo de estilo românico (Crucifixo de São Damião) quando: De

joelhos

diante

do

Crucificado,

sentiu-se

confortado imensamente em seu espírito e seus olhos se encheram de lágrimas ao contemplar a cruz. Subitamente, ouviu uma voz que vinha da cruz e lhe falou por três vezes: ‘Francisco vai e restaura a minha casa. Vês que ela está em ruínas’ (LM, 1997, p.469).

Esta mensagem é tida como a gênese da admiração de Francisco de Assis pelo Senhor Crucificado, pode ser considerado um dos marcos iniciais da busca

do

jovem

amor doloroso e jubiloso; um amor que faz chorar e cantar ao mesmo tempo. Este é um aspecto pouco lembrado por aqueles que insistem na compaixão dolorosa de Francisco ao Crucificado. O mesmo êxtase de sofrimento e de alegria ao estigmatização (ASSELDONK, 1989, p.19).

Legenda Maior (LM), escrita em 1263, que

velha

no Crucificado, uma verdadeira ferida ou êxtase de

mesmo tempo, o Santo o viverá por ocasião da

A Representação Cristológica São

de compaixão, isto é, uma perfeita e íntima alegria

Francisco

pela

sua

identificação com o filho de Deus. Por isso Van Optato Asseldonk, na obra O Crucifixo

de São Damião visto e vivido por São Francisco destaca que é muito importante notar que: [...] o primeiro contato pessoal com o crucificado

Tomás de Celano na sua Vita

Secunda (2C) descreve o encontro de Francisco de Assis com o Crucifixo de São Damião como um momento de conexão divina, pois teria se comunicado com Deus; além disso, destaca que a imagem do crucificado teria marcado para sempre a vida apostólica do santo, pois: A tremer, Francisco espantou-se não pouco e ficou de fora de si com o que ouviu. Tratou de obedecer e se entregou todo à obra (...). Desde essa época, domina-o enorme compaixão pelo Crucificado, e podemos julgar piedosamente que os estigmas da paixão desde então lhe foram

gravados não no corpo, mas no coração(2C, 1997, p.294, grifo nosso).

No Crucifixo de São Damião o Cristo é representado de maneira glorificada porque já está ressuscitado, com o corpo ereto sobre a cruz e não pregado na mesma.

Apresenta-se

com

os

olhos

abertos observando o que acontece a sua frente, referência àquele que tudo enxerga e de quem nada se esconde. Além disso, o Crucifixo possui uma interpretação Joanina bastante presente em sua simbologia, por

de São Damião, para Francisco chamado pelo

exemplo, o Cristo na cruz representando a

nome Cristo ‘vivo’ (que fala!), foi ao mesmo tempo

luz do mundo.

um contato cheio de consolação ou alegria divina e

38


Alex Silva Costa

Em setembro de 1224 na solidão

de muitos modos: levava sempre Jesus no

montanhosa do Monte Alverne, na Itália

coração,

Central, acontece o episódio milagroso da

ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos,

estigmatização de Francisco de Assis. Ele

Jesus em todos os outros membros” (1C,

estava em retiro espiritual em honra a São

1997, p.263).

Miguel Arcanjo quando recebeu de maneira milagrosa de

um serafim alado os

estigmas do Cristo crucificado.

Jesus

na

boca,

Jesus

nos

Segundo Santo Agostinho a força do amor é tão grande que transforma o amante na imagem do amado, desta

que

mesma forma, em O Espelho da Perfeição

Francisco tentava descobrir o significado

(Sp) Francisco é descrito como grande

daquela visão, o espírito do santo estava

amante do filho de Deus, fiel servidor e

muito ansioso para compreender o seu

perfeito imitador de Cristo, pois “sentia que

sentido, pois sua “inteligência ainda não

estava completamente transformado em

tinha chegado a nenhuma clareza, mas seu

Cristo pela virtude da santa humildade e

coração estava inteiramente dominado por

desejava

aquela visão, quando, em suas mãos e pés

resplandecesse em seus frades acima de

começaram a aparecer, como vira pouco

todas as demais” (Sp, 1997, p.927, grifo

antes no homem crucificado, as marcas de

nosso).

Tomás

de

Celano

relata

quatro cravos” (1C, 1997, p.246). Essa narração

descrita

como

milagrosa

foi

que

esta

mesma

virtude

Por isso é notório destacar que o episódio

da

estigmatização

seria

um

relatada em 1228 por Tomás de Celano na

elemento legitimador dessa transformação,

obra Vita Prima (1C), e por essa ser a

essa noção é altamente explorada nos

primeira fonte hagiográfica escrita sobre o

discursos hagiográficos, observe o relato

santo, é tida como exemplo e referência

de Tomás de Celano que tenta justificar a

para as obras posteriores.

autenticidade do milagre, “brilhava nele

Os discursos hagiográficos apontam

uma representação da cruz e da paixão do

que o santo italiano chegou ao extremo de

Cordeiro imaculado, que lavou os crimes

sua identificação e busca por Cristo e seu

do mundo, parecendo que tinha sido tirado

evangelho, por essa razão é tido como o

havia a pouco tempo da cruz, tendo as

grande imitador do “cordeiro de Deus”. Nas

mãos e os pés atravessados pelos cravos e

hagiografias estudadas é apontado como o

o lado por uma lança” (1C, 1997, p.260). O

Alter Cristus, ou seja, o Outro Cristo, o

filho de Deus se tornaria concreto na

“segundo”, pois Francisco “possuía Jesus

pessoa de Francisco de Assis com os

39


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

estigmas,

ele

seria

a

representação

Cristo e suas atitudes, queria tanto se

humana do Cristo crucificado, o Espelho de

aproximar do filho de Deus que acabou

Cristo. Seria aquele que definitivamente

tornando-se a própria representação do

mudaria o percurso da igreja não só pelas

Cristo

suas ações, mas também agora por aquilo

estigmas que possuía em seu santo corpo.

que representava.

Isto se constitui em mais um elemento

crucificado

com

os

sagrados

Dos

importante para o sucesso da sua Ordem

Sacrossantos Estigmas de S. Francisco e

Mendicante e do Franciscanismo, pois

de suas Considerações (Csd) mais uma

atingiu o nível das representações sociais

evidência de que para o imaginário cristão

do imaginário cristão medieval, já que:

É

relatado

na

fonte

medieval Francisco de Assis após a estigmatização teria se tornado imagem e semelhança do Cristo crucificado:

A conexão entre o franciscanismo e o evangelismo que caracteriza os movimentos religiosos do período é evidente. O próprio Francisco foi o primeiro a receber a impressão das marcas da

E estando nessa admiração, foi-lhe revelado, por

crucificação em seu corpo, tornando-se não

aquele

divina

somente um religioso que se inspira, mas aquele

providência aquela visão lhe era mostrada em tal

que imita e presentifica o Cristo. Desse modo, a

forma, para que ele compreendesse que, não por

experiência franciscana tem sido alvo da reflexão

martírio corporal mas por incêndio mental, devia

de estudiosos da imagem que percebem a

ser todo transformado na expresssa similitude do

importância do aparecimento e proliferação das

Cristo crucificado (Csd, 1997, p. 1210-1211).

imagens do crucificado aliadas àquelas do geral

Paul

das imagens religiosas (VISALLI, 2013, p. 86).

que

lhe

aparecia,

Sabatier

que

por

esclarece

que

Francisco se liga a tradição apostólica durante os “últimos anos de sua vida, em que renova em seu corpo a paixão de Cristo. Há no paroxismo do amor divino

ineffabilia (coisa inefáveis) que longe de poder contar ou fazer compreender, só se pode lembrá-las a si mesmo” (SABATIER, 2006, p. 311). Segundo “Francisco

Le

termina

Goff sua

é

quando

caminhada

à

imitação de Cristo, é o ‘servo crucificado do Senhor Crucificado’, senti-se confirmado em sua missão pelos estigmas” (LE GOFF, 2007, p.89). Francisco de Assis imitava o

Por isso os estudos iconográficos do período medieval sobre a representação da estigmatização de Francisco de Assis são cruciais

para

a

compreensão

da

personificação do santo italiano no filho de Deus, uma vez que as imagens reforçam a presentificação

de

sua

identificação

corporal (física) com o Cristo, reforçando assim,

o

discurso

das

hagiografias

franciscanas, se considerarmos que: Se a Igreja medieval conferiu um papel às imagens no culto e na devoção, foi porque as imagens, mas do que a palavra dos pregadores (a leitura dos livros não sendo acessível senão a uma pequena minoria), exercia sobre a imaginação dos fiéis uma

40


Alex Silva Costa ação decisiva considerada benéfica (SCHMITT, 2007, p.355).

Esses

níveis

de

representação

aliados à materialização dos discursos hagiográficos

reforçaram

o

ideal

cristológico de imitação de Francisco de Assis, uma vez que é necessário “observar imagens

dos

primeiros

séculos

franciscanos e refletir sobre o tratamento dado

por

ilustradores,

pintores

e

hagiógrafos à relação dos frades menores com a figuração” (VISALLI, 2013, p.85). Até porque após o discurso ser consolidado: [...] todo o sistema dos crivos que analisa a

uma forma de ‘doutrinação’ no sentido original do termo, a comunicação de doutrinas religiosas” (BURKE, 2004, p.59). Na Legenda dos Três Companheiros

(3S), é descrito de forma particular que o próprio Deus “querendo mostrar ao mundo inteiro o fervor do amor e a perene memória da paixão de Cristo que Francisco trazia

em

seu

coração,

honrou-o

magnificamente, ainda em vida, com a admirável prerrogativa de um singular privilégio” (3S, 1997, p. 694). Na

mesma

fonte

temos

como

sequência das representações para fazê-la oscilar,

condicionamento da verdade dos sagrados

para detê-la, desenvolvê-la, e reparti-la num

estigmas a grande quantidade de milagres

quadro

permanente,

todas

essas

querelas

constituídas pelas palavras e pelo discurso, pelos

que o santo realizara tanto em vida como

pelas

após sua morte, os sinais do crucificado

equivalências são agora abolidas a ponto de ser

seriam elementos legitimadores de sua

caracteres

e

pela

classificação,

difícil reencontrar a maneira como esse conjunto pôde funcionar (FOUCAULT, 2007. p. 418).

Pensando

nessa

perspectiva,

percebemos que as análises prévias sobre um discurso podem ratificar ou negar uma posição quando, na verdade, deveriam refletir a fundo sobre suas verdadeiras intencionalidades. Não fora por acaso que os seguidores do santo ao logo do tempo utilizaram

a

estigmatização

como

um

elemento singular, uma graça única e como um grande exemplo de transcendência humana,

e

em

alguns

casos,

como

doutrinação na sua ordem religiosa, pois entendemos

que

“a

iconografia

era

importante na época porque imagens era

santidade: A verdade inegável desses estigmas manifestou-a Deus claramente não só na vida e na morte, pelo que deles se podia ver e palpar, mas também depois de sua morte pelos muitos milagres em várias partes do mundo. Por causa desses milagres,

muitos

que

não

haviam

julgado

retamente acerca do homem de Deus, pondo em dúvida seus estigmas, chegaram a tanta certeza, que, se antes haviam sido seus detratores, pela bondade atuante de Deus e compelidos pela verdade, tornaram-se dele fidelíssimos devotos e defensores (3S, 1997, p. 695).

Temos ainda em Dos Sacrossantos

Estigmas de S. Francisco e de suas Considerações (Csd) a descrição que o amor devotíssimo de Francisco na pessoa de Cristo e na sua paixão era tão grande

41


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

“que todo ele se transformara em Jesus

em discussão a interpretação mística e

pelo amor e pela compaixão” (Csd, 1997,

escatológica que São Boaventura teria

p.1210). E ainda é enfatizado na Quarta

dado a esse fenômeno sobrenatural, pois:

consideração dos sacrossantos estigmas

Demonstram uma vontade de apresentar o Pobre de

que fora “o verdadeiro amor de Cristo que

Assis

como

um

“segundo

(alter

Cristo”

Christus), cuja santidade e conformidade com o

transformou perfeitamente S. Francisco em

seu divino mestre eram comprovadas por essas

Deus

chagas

e

na

vera

imagem

de

Cristo

da

São Boaventura na Legenda Maior

e

textos

hagiográficos,

e

também

a

1995, p.132).

No entanto, Francisco de Assis ao estigmatizado

experiência

do

em

contato

1224 das

teve

a

sagradas

chagas do crucificado em seu corpo. Por

Deus era o seu servo Francisco, que foi achado

meios

digno de ser amado por Cristo, imitado por nós, e

franciscanos ele recebe a alcunha de ser a

admirado pelo mundo inteiro. Pois enquanto viveu entre os homens, imitou a pureza dos anjos,

dos

discursos

hagiográficos

representação terrena de Cristo, e se

tornado-se um exemplo para os seguidores de

tornou o primeiro estigmatizado da História.

Cristo.

Francisco por meio dos estigmas constitui-

Mas

o

que

nos

confirma

nesses

sentimentos é a prova irrefutável de sua verdade: o selo que fez dele a imagem do Deus vivo, isto é,

se em um exemplo vivo do Cristo por ter

do Cristo crucificado, o selo impresso em seu

presentificado em seu corpo as chagas do

corpo, não por uma força natural nem por algum

crucificado.

recurso humano, mas pelo poder admirável do Espírito do Deus vivo (LM, 1997, p.462).

No entanto, para André Vauchez o

fenômeno dos estigmas seriam “vestígios de

confusos

destino espiritual e no da sua ordem (VAUCHEZ,

ser

algum dia a convicção de que esse mensageiro de

relatos-

grandeza de Deus-Trindade, no seu próprio

carregando o selo do Deus vivo” (Ap 7,12).

extraordinária santidade, chegaremos sem dúvida

Os

revelação impressionante, centrada na infinita

selo, vi outro anjo subindo ao nascente

sua

senão

Francisco de um serafim portador de uma

evangelista São João: “Ao abrir-se o sexto

de

difícil,

dimensão teofânica, a saber, o aparecimento a

do outro amigo do esposo, o apóstolo e

perfeição

É

iconografia primitiva da cena, ressaltam a sua

Deus vivo, conforme a predicação verídica

a

estigmatização.

antigos

que sobe do oriente carregando o selo do

considerando

divina.

contraditórios- das raras testemunhas e dos mais

(LM), relata que Francisco prefigura o anjo

[...]

origem

impossível, saber o que realmente ocorreu quando

crucificado” (Csd, 1997, p.1214).

E acrescenta ainda que:

de

uma

Francisco

identificação com

o

física

Cristo

de

São

crucificado”

(VAUCHEZ, 1995, p. 132). Coloca ainda

Este fato impulsionou e fundamentou a representação cristológica de Francisco nas fontes hagiográficas ao longo do tempo, tanto que o Padre Antônio Vieira em seu sermão sobre as chagas de São Francisco enfatiza: se queres conhecer o

42


Alex Silva Costa

santo,

então,

“vesti

tereis

nos indagarmos sobre sua encomendada,

Francisco”, da mesma forma, faça-se o

quem era seu autor, a mando de quem a

contrário

escreve e para quem escreve, e com qual

“desvesti

Cristo

e

Francisco

e

tereis

Cristo”.

objetivo. Por isso compreende-se que “por Considerações Finais

mais que o discurso seja aparentemente

hagiografias

bem pouca coisa, as interdições que o

franciscanas escritas na Idade Média

atingem revelam logo, rapidamente, sua

Central teve como autores, homens ligados

ligação com o desejo e com o poder”

diretamente ao Movimento Franciscano.

(FOUCAULT, 2004, p. 10).

A

maioria

das

São Boaventura, Ministro-Geral da Ordem

O presente estudo vem ao encontro

(1257-1274) e Tomás de Celano (frade

das

franciscano),

Franciscanismo,

por

exemplo,

escreveram

discussões

atuais

sobre

pois

o

pensa

a

suas obras sob encomenda da Igreja. A

representação

Vita Prima (1C) de Tomás de Celano foi

importante

feita sob encomenda do papa Gregório IX

institucionalização

em virtude da canonização do santo em

fundada por Francisco de Assis (Ordem

por outro lado, a Legenda Maior

1228;

como de

um

elemento

legitimação da

ordem

e

religiosa

dos Frades Menores).

(LM) fora encomendada a São Boaventura

Por

fim,

o

Frades Menores e em 1263 a obra foi

máximo da personificação de Francisco de

aprovada em Narbone, quando o autor,

Assis na figura de Jesus Cristo. É ponto

enquanto Ministro-Geral, tentava resolver

alto de sua transcendência humana e

os

religiosa,

principalmente

sobre

abrandamento

dos

da um

Ordem, possível

princípios

do

teria

sido

é

o

da

estigmatização

internos

1224

milagre

por meio do Capítulo Geral da Ordem dos

conflitos

de

grande

estágio

para

alguns

admiradores sua apoteose. O peregrino de Assis

torna-se

segundo

os

discursos

franciscanismo primitivo por meio dos

hagiográficos “imagem e semelhança do

conventuais, enfatizando em sua escrita

Cristo crucificado”.

hagiográfica, uma doutrinação para sua Ordem. Por isso devemos ficar atentos à

Este fato revela a importância de estudar

as

narrativas

hagiográficos

sobre

relação aos discursos e intencionalidades

estigmatização,

de cada escrita hagiográfica. E refletir

identificação

sobre as circuntâncias da sua produção, e

transformações

uma

corporal que

o vez

e

discursos

milagre

da

que,

essa

potencializou a

as

representação

43


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

cristólogica do santo causou na expressão

religiosas

sobre

a

personificação

de

religiosa e no imaginário cristão medieval,

Francisco de Assis na figura do Cristo

reforçando assim, as práticas e crenças

crucificado.

Referências : Fontes Primárias:

Legenda Maior (LM)eLegenda Menor (Lm), São Boaventura; tradução Frei Romano Zago, O.F.M. Vita Prima (1C) e Vita Secunda (2C) de São Francisco,Tomás de Celano; Tradução: Frei José Carlos Pedroso.Dos Sacrossantos Estigmas de S. Francisco e de

suas Considerações (Csd); Tradução: Durval de Morais. Legenda dos Três Companheiros (3S); tradução: Frei Roque Biscione, O.F.M. O Espelho da Perfeição (Sp); tradução: Frei José Jerônimo Leite, O.F.M.IN- Escritos e biografias de São Francisco de Assis/Crônicas e

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44


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45


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

_______________________. Os Mártires Franciscanos nas Imagens da Franceschina (1474): A Exacerbação Da Violência Como Signo De Santidade. II Encontro Nacional de Estudos da Imagem (12, 13 e 14 de maio) Londrina-PR, 2009 (anais).

46


ESTRATÉGIAS DE APROPRIAÇÃO E ATUALIZAÇÃO DE FORMAS LITERÁRIAS TRADICIONAIS NO ROMANTISMO PORTUGUÊS: A BALADA E O ROMANCE Ana Marcia Alves Siqueira 1 Resumo: Influenciados por Herder, escritores românticos de diferentes países buscaram inspiração nos tempos de origem do país e na tradição do povo, como forma de valorização e resgate da alma nacional. Em Portugal, Alexandre Herculano e Almeida Garrett produziram obras filiadas ao medievo, tanto pela apropriação de temas muito difundidos no período, quanto pela atualização de formas literárias tradicionais de origem popular. Embora a fonte e os objetivos fossem semelhantes, a produção de cada escritor tomou caminhos diversos, cujos desenvolvimentos buscamos discutir nesse estudo que visa analisar - a partir da temática tradicional da separação do casal apaixonado e consequente pacto de fidelidade - como as transformações e recriações do tema e as consequências dele advindas estão diretamente ligadas ao modo como cada escritor, herdeiro da tradição portuguesa, mesclou-a, ou não, às influências e modelos propostos pelas tendências europeias em voga no Romantismo. Consideramos também que estas diferenças estão diretamente relacionadas às pesquisas sobre as formas literárias medievais empreendidas pelos dois escritores. Assim, a análise comparativa salientou que enquanto Herculano recria baladas e poemas, de feição gótica e sombria, ou contos filiados ao heroísmo e fantástico medieval, Almeida Garrett reúne em seu Romanceiro, trovas e romances de ambientação mais amena e popular, cujas finalizações podem ser tristes ou alegres, mas nunca chegam ao sombrio ou macabro. Palavras-chave: balada; romance; pacto de fidelidade.

1 Universidade Federal do Ceará

47


Ana Marcia Alves Siqueira O Romantismo português foi essencialmente

1. O pacto de fidelidade e o medievo

medievalista. Simplesmente, essa tendência não

Influenciados por Herder, escritores

se manifestou com grande força no aspecto que

românticos de diferentes nacionalidades

agora nos interessa. Foram “góticos” o teatro e a balada, mas não o romance, com excepção de

buscaram inspiração nos tempos de origem

Castilho, por vezes Herculano, e pouco mais.

do país e na tradição do povo, como forma de valorização e resgate da alma nacional. Em

Portugal,

Alexandre

Herculano

e

Almeida Garrett produziram obras filiadas ao medievo, tanto pela apropriação de temas muito difundidos no período, quanto pela

atualização

de

formas

literárias

tradicionais de origem popular. O

aspecto

mais

conhecido

e

estudado da obra de Herculano, por ser considerado seu introdutor em Portugal, é o romance histórico, inspirado em lendas medievais,

devido,

especialmente,

ao

desenvolvimento de estudos histográficos sobre o medievo que despertaram seu interesse por fatos e personagens pouco conhecidas. Ao lado de seu incansável trabalho de historiador e organizador da memória nacional, a criação literária serviu como um modo de relembrar o passado mítico e lendário de Portugal, às vezes em uma configuração mais sombria, mas sem ferir sua concepção de historiografia. A respeito da preocupação com o passado histórico, com as raízes medievais de Portugal e também com a literatura de feição gótica, por parte dos românticos, assinala Maria Leonor Machado de Sousa

Embora o autor não dê muito relevo ao gótico em seus romances – o que não impede que haja um clima de tensão e mistério provocado pelas descrições de ambientes

tétricos,

melancólicos

e

silenciosamente solitários, como em Eurico,

o presbítero e O monge de Cister, – ele está presente nos contos inspirados em relatos e manuscritos medievais e na poesia, especialmente nas versões que fez das mais conhecidas baladas macabras europeias

publicadas

na

Panorama,

entre

e

1837

Revista 1839,

e

posteriormente no volume Poesias, de 1850. A motivadora

temática dessas

tradicionalmente baladas,

presente

também em diversos romances coligidos no Romanceiro, publicado entre 1828 e 1853 por Almeida Garrett, é a separação do casal apaixonado, após realizar um pacto de amor e fidelidade. Este juramento pode ocasionar consequências terríveis para

o

casal,

quando

resulta

em

transgressão e traição ou, pelo contrário, pode encerrar uma prova de fidelidade ao superar a separação ou a morte.

(1978, p. 168):

48


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Na Idade Média, popularizaram-se histórias de amor históricas ou lendárias 2,

Na campa do cavaleiro / Nasce um triste pinheral;/ E na campa da princesa / Um saudoso canavial./

imortalizadas pela literatura que, ao longo

Manda a dona do castelo / Todas as canas

dos

cortar;/

séculos,

conservaram-se

como

paradigmas de um modelo de amor ideal,

Mas as canas das raízes / tornavam a rebentar: / E a noite a castelhana / As ouvia suspirar.

mítico, além da separação entre vivos e

(GARRETT, 1963, p.19-20, v.3).

mortos. O motivo simbólico das plantas

e em “Rosalinda”:

nascidas

nos

túmulos

dos

amantes,

Na cova de Rosalinda / Nasce árvore real,/ E na cova do almirante / Nasceu um lindo rosal./

entrelaçando-se como meio de resistência

El-rei, assim que tal soube, / Mandou-os logo

a

cortar, /

separação

imposta

em

vida,

está

presente em manifestações literárias de nacionalidades

diversas.

A

resistência

dessas plantas a todas as tentativas de destruição simboliza a perenidade e a volta ao meio natural perfeito e harmônico, diferente

da

imperfeição

do

E que os fizessem em lenha / Para no lume queimar. / Cortados e recortados, /tornavam a rebentar: / E o vento que os encostava,/ E eles iam-se abraçar. (GARRETT, 1963, p.112, v.2).

O amor é a força motriz a unir os

mundo

casais em forma de plantas que resistem

humano. Na perfeição imanente à criação

às ações humanas, funcionando como uma

natural estão presentes os conceitos de

espécie

justiça e de reparação necessárias ao

perseguidores.

reequilíbrio do mundo.

de

castigo

para

seus

De forma um pouco mais elaborada,

O tema da separação mesclado ao

o motivo das plantas é complementado

motivo das plantas, por exemplo, está

pelo nascimento de animais em “O Conde

presente

no

Romanceiro,

primeira

coletânea de romances tradicionais do

Nilo”, e também é complementado por uma explicação de seu simbolismo:

Romantismo português que, segundo seu

Morto é o conde Nilo, / A infanta já a expirar /

autor, buscava “popularizar o estudo da

Abertas estão as covas, / Agora os vão enterrar: /

nossa

literatura

primitiva,

dos

seus

Ele, no adro da igreja, / A infanta, ao pé do altar./ De um nascera um cipestre,/ E do outro um

documentos mais antigos e mais originais”

laranjal;/

(GARRETT, 1963, v. 2, p. 4). A primeira

Um crescia, outro crescia, / Co´as pontas se iam

destas composições é “A Peregrina”:

beijar./ El-rei, apenas tal soube,/ Logo os mandara cortar./

2 Histórias como a de Tristão e Isolda, ou Pedro e Inês de

Um deitava sangue vivo, / O outro sangue real;/

Castro que superaram a morte. Ver a esse respeito

De um nascera uma pomba,/Dooutro um pombo

História do amor no Ocidente, de ROUGEMONT (2003).

torcaz./

49


Ana Marcia Alves Siqueira Senta-se el-rei a comer, / Na mesa lhe iam pousar:/ – Mal haja tanto querer, / E mal haja tanto amar!/

recriadas

por

Herculano

apresentam

separar!

desenvolvimento da temática, todavia, o

A temática da separação do casal apaixonado,

plena

de

ressonâncias

reapropriações ao longo dos

e

séculos,

adquire uma importância maior no contexto do Romantismo português, visto que esta sempre

esteve

presente

na

história

portuguesa, desde a necessidade de ir combater

castelhanos

ou

mouros

ao

embarque nas naus para conquistas de além mar. Com efeito, nem sempre o casal resiste às contingências da separação. A longa espera é mais difícil para a jovem que aguarda, sem notícias, na incerteza da sobrevivência do amado. Assim, florescem, concomitante às histórias de fidelidade marcadas pelo simbolismo da perenidade amor

verdadeiro,

produções

apresentando diferentes configurações e desenlaces diante da quebra do pacto de fidelidade. O já citado Romanceiro (1963) reúne outros exemplos do pacto de amor e fidelidade com desenrolar distintos, às vezes, felizes, como “A Bela Infanta” e “Noiva arraiana”, outras nem tanto, como exemplificam, “O Cordão de oiro” e “Bernal francês”.

certa

também

Nem na vida nem na morte / Nunca os pude (GARRETT, 1963, p.10-11, v.3 )

do

De modo semelhante, as baladas variedade

no

desenlace da trama tende sempre, devido à influência germânica, para o sobrenatural maligno

manifestado

segundo

a

necessidade de cumprimento do pacto ou restabelecimento da justiça por meio do castigo e da reparação do mal infringido. A partir da consideração de que as recriações de Herculano e de Garrett, sobre

a

temática

supracitada,

estão

diretamente ligadas ao modo como cada escritorreapropria-se

do

imaginário

medieval no contexto da escola literária romântica, este estudo busca analisar a maneira

como

os

dois

escritores

manipulam e reorganizam essa informação apropriando-se

de

formas

poéticas

similares originárias do medievo, a saber: a balada e o romance. 2. A Balada e o romance: formas e origens complexas De

acordo

com

o

dicionário

etimológico, balada é palavra derivada do provençal ballada, com o significado de ‘dança’,

“peça

musical,

outrora

acompanhada de canto e dança” (CUNHA, 1999, p. 93), e do francês com o sentido de “pequeno poema narrativo de assunto lendário ou fantástico” (idem, ibidem),

50


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

usado em português somente a partir do

De maneira similar, Miguel Alarcão, no E-dicionário de termos literários (2014),

século XVII. Segundo Moisés (2000, p.53), o

salienta a importância da oralidade na

termo “balada” está ligado a duas formas

composição,

execução,

líricas.

perpetuação

dessas

A primeira, definida pela origem

transmissão

e

composições,

folclórica, popular ou tradicional, não é

considerando o contexto da gênese destas,

monopólio de nenhuma nacionalidade, está

em

disseminada por toda a Europa desde a

acrescenta o argumento de que, aliado ao

Idade Média: entre os gregos, anglo-

desconhecimento, até meados do séc. XV,

saxões,

da

eslavos,

balcânicos,

romenos,

que

a

oralidade

fixação

predominava.

tipográfica,

as

E

baladas

finlandeses e ibéricos. É caracterizada por

apresentam

ser um canto narrativo, que trata de um

razoavelmente estanque, mas passível de

único episódio, de assunto melancólico,

ser veiculado com alguma liberdade,para

histórico ou sobrenatural e também por

explicar a frequente existência de variantes

apresentar uma forma mista, variada, que

dispersas no tempo e no espaço.

aglutina elementos da poesia dramática, lírica

e

narrativa.

Outra

Para

um

núcleo

complementar

narrativo

a

definição,

característica

Moisés (2000, p.55) esclarece: “Note-se,

destacada diz respeito à presença de um

ainda que, tanto em Português como em

processo

dramático

resposta,

ou

pergunta

e

Espanhol, o termo “romance” ou “rimance”

viabilizando

o

equivale,

desdobramento da fabulação desenvolvida

popular.”

em

torno

de

de

diálogo, um

personagem,

cuja

na

esse

texto para manter a tensão e o mistério.

apresentação

ainda

discorre

sobre

Média,

à

balada

Outros autores também concordam a

conclusão é adiada até a finalização do Moisés

Idade

respeito: de

Correia

(1992),

pesquisa

na

sobre

os

a

romances portugueses de origem ligada ao

polêmica acerca da autoria individual ou

ciclo carolíngio, reconhece a utilização do

coletiva da balada folclórica, considerando

termo “balada” para composições poético-

mais plausível a tese da dupla autoria, pois

narrativas nomeadas por romances em

a composição individual, baseada nos

Portugal. Sousa (1978) é mais enfática ao

valores e expectativas do povo, torna-se

afirmar que o termo "romance" (poético) é

uma produção coletiva ao longo do tempo,

correspondente, na literatura peninsular, à

visto que a transmissão oral modifica,

balada

recria continuamente a produção original.

cantado e transmitido pela tradição oral,

européia,

“curto

poema

épico

51


Ana Marcia Alves Siqueira

habitualmente usado para contar histórias

rimas: ababbcbc ou ababbccdcd. No envoi,

antigas e tétricas” (SOUSA, 1978, p.50).

as rimas organizavam-se em bcbc ou

Por sua vez, Carla Escarduça, autora do

ccdcd. As vinte e duas baladas presentes

verbete Romanceiro, do E-dicionário de

no

termos

Resende,

literários,

salienta

a

Cancioneiro a

Geral

de

despeito

Garcia

de

de

pequenas

correspondência entre romance e balada,

diferenciações, filiam-se a este segundo

como tipos de um mesmo gênero: “o

tipo (FERNANDES, 2011, p.14).

romanceiro

constitui

o

representante

As

definições

apresentadas,

poético-narrativo da balada europeia na

juntamente com uma breve análise das

Península Ibérica, apresentando, contudo,

coletâneas publicadas desde a baixa Idade

características próprias em relação às viser

Média, revelam a complexidade inerente à

dinamarquesas, às bilinas russas ou às

mescla de características e formas entre

baladas

estas

escocesas

e

inglesas.”

(ESCARDUÇA, 2014). O

segundo

enumerado,

composições

de

tradição

popular, bem como a dificuldade de se tipo

origem

de

balada

PereFerré (2013) chama a atenção

circulação erudita, apresenta forma fixa e

para o fato de o Romanceiro ser herdeiro

subdivide-se em balada primitiva e balada

da

propriamente dita. A primeira, surgida no

medieval e de florescer juntamente com

século XIV, “graças a Phillipe de Vitry

outros

postulam

as

francesa

estabelecer a origem destas.

e

(conforme

de

duas

Règres

de

irregularidade

folclórico

gêneros

formal

da

narrativos

europeu.

epopeia

de

Salienta

fundo

ainda

a

laseconderhétorique, de autor anônimo,

dificuldade de definição de um gênero

publicadas entre 1411 e 1432)” (MOISÉS,

“nascido

2000, p.55). Configurava-se em três oitavas

castelhanas” e do contato com cantares

com rimas em ababbccb e cada estrofe

narrativos breves europeus, introduzidos na

finalizando com os mesmos versos. Já a

Península Ibérica por jograis, assumindo

“balada propriamente dita” alcançou o

estilos e formas diversos desde seu início

apogeu no século XV com François Villon,

no século XIV até atingir certa estabilização

Cristine de Pisan e Charles d´Orléans. Era

no século XV.

sob

o

declínio

das

gestas

composta de três oitavas ou décimas,

Outra explicação para a semelhança

seguidas de um envoi de quatro ou cinco

entre as duas formas é a hipótese de a

versos. Cada estrofe termina pelo mesmo

gênese do romanceiro vir da divulgação,

verso e utiliza o seguinte esquema de

assimilação e/ou recriação de baladas

52


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

europeias, especialmente as de origem

de

francesa.

modificadas paulatinamente em um lento

Assim,

paulatinamente,

as

gesta

ou

baladas

europeias

alterações sofridas ao longo de séculos no

processo

aspecto formal resultou no distanciamento

própria da poesia tradicional, perfazendo

da estrutura baladística 3, aproximando-a a

uma ação continuada e ininterrupta de

alguns elementos mais caracterizadores

reprodução e reinvenção de variantes –,

das composições orais na península: o

aponta para o caráter dinâmico das formas

verso

advindas da oralidade e desqualifica a

em

métrica

heptassílaba

e

a

transmissão

recriadora,

visão da tradição como uma herança

assonância única. Diante

de

das

do

exposto,

podemos

estabelecer que balada e romance são composições

cristalizada,

inerte

que

deveria

ser

registrada para não ser perdida. Geralmente a recriação é realizada

poético-narrativas

pertencentes ao mesmo gênero nascido

por

em meio há variadas influências: a poesia

colaboração de artistas eruditos também

épica,

trovas

pode ser vista como parte deste processo.

históricos,

Como dissemos, a partir do Romantismo,

cantares de temas bíblicos, clássicos,

teve início o interesse pela pesquisa das

folclóricos

canções

jogralescas,

de

gesta,

acontecimentos

artistas

anônimos;

contudo,

a

líricos.

Nesse

sentido,

memórias coletivas e produção tradicional

nos

seus

versos

do povo, retomando o romance, ou balada

díspares,

peninsular, em sua dupla vertente: por um

testemunhando os assuntos favoritos de

lado, o processo de criação, apropriação e

uma grande parte da população das

tradicionalização prosseguiu naturalmente,

épocas

de

ou

encontraremos construções

em

temáticas

que

foram

criadas

e

transmitidas. A análise das hipóteses sobre a origem do gênero – derivação dos cantares

geração

em

geração,

por

outro,

começaram a florescer obras dedicadas à compilação de versões, fixando-as, com maior

ou

menor

fidelidade,

em

letra

impressa. Garrett e Herculano participaram 3 Essa estrutura é formada pelo metro de balada, que designa, nos países de língua inglesa, quatro formas fixas utilizadas em baladas populares. A unidade métrica utilizada é o pé, composto por um grupo de sílabas

de modo diverso nesse processo. 3. O romanceiro garrettiano e a balada gótica de Herculano: faces de um

contendo uma sílaba acentuada e uma ou mais átonas.

mesmo projeto

As quatro formas tradicionais de metro de balada

A Influência do romantismo alemão,

recorrem, em língua inglesa, a estrofes de quatro versos

iniciado pelo movimento Sturm undDrang,

com esquema de rimas abcb. (BRITTO, 2008, p. 26).

53


Ana Marcia Alves Siqueira

sob a égide de poetas e escritores como

Novamente em Portugal, o escritor buscou

Schiller e Goethe, propagou o culto da

trazer para o público lusitano as inovações

imaginação,

românticas, a literatura de feição “negra” 4

aliando

misticismo

e

sensibilidade à melancolia, ao mistério e à paixão. Sob as influências

e

O caminho escolhido por Herculano

germânica, o excesso de subjetividade

constitui um amálgama entre a utilização

resulta também na apreciação da morte e

da tradição nacional, por exemplo, a forma

do sombrio, relacionado ao aspecto lúgubre

métrica tradicional-popular lusitana e de

da vida, ao culto da noite, ao gosto pelo

sua musicalidade e a novidade trazida pela

satanismo.

configuração “negra” revelada nas baladas

Ou

seja,

o

inglesa

(SOUSA, 1978) conhecida no exílio.

Romantismo

originado na Alemanha e na Inglaterra

de origem alemã e inglesa.

apresenta também outra faceta: o fascínio

O autor aventurou-se, pois, a recriar,

pelo maligno e sua origem, pela beleza trai-

em português, célebres baladas macabras,

çoeira e seus encantos –característica

como “Afonso e Isolina”, versão de uma

fartamente

ultra-

composição de Lewis publicada, em 1835,

romântica, no romance noir e no gótico.

no Repositório Litterário, e“Leonor”, de

Conforme explica Mário Praz (1996), a

Bürger, presente na terceira parte da obra

beleza,

romântica,

Poesia, de 1850. Estas recriações, cuja

recebe realce mesmo do que parece

temática é o pacto de amor eterno entre o

contrariá-la – é a estética do horrível que

casal, tendem pelo sentimento trágico da

propicia a união entre a beleza, o prazer e

vida, pela reflexão sobre bem e mal e a

a sedução com seu outro aspecto: a

intervenção

corrupção, o horrível ou demoníaco.

desdobramento

presente

sob

Em Herculano

a

sua

na

poesia

perspectiva

juventude,

filiou-se

ao

Alexandre movimento

do

sobrenatural

do

enredo,

no

evitando,

porém, a exposição marcante do horrível macabro de caráter mais germânico.

romântico, em parte, graças a seu contado

Estes

poemas

constituem

um

com a Marquesa de Alorna, precursora do

material significativo para a apreciação da

Romantismo

originalidade

em

Portugal

com

suas

traduções de obras inglesas e alemãs. Ela

enquanto

da

intérprete

criação de

herculiana,

uma

tradição

o incentivou a estudar alemão e descobrir escritores da língua, como Schiller e

4 Expressão cunhada por Sousa (1978) para nomear a

Goethe, fato favorecido pelo período de

mescla de características do horror, de ambientação

exílio

gótica,

na

Inglaterra

e

na

França.

sombria

e

aterrorizante

utilizadas

concomitantemente por escritores portugueses.

54


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

estrangeira e adaptador desta aos modos

e cinco quadras em que a criterioso ajuste

tradicionais

dos

portugueses.

Consideramos

diálogos,

realizado

por

meio

da

que o autor arquitetou nessas composições

escolha de palavras e soluções sonoras,

o

uso

diálogo

criativo

estabelecendo trabalho

de

e

independente,

autonomia tradução,

de

onomatopeias

apesar

do

corresponde

preferindo,

em

balada.

O

à

e

aliterações,

estrutura

resultado

é

narrativa

da

harmônico

e

decorrência, o termo versão para esta

surpreendente, pois o ritmo e a cadência

produção.

da poesia tradicional portuguesa estão

O original de Gottfried A. Bürger,

presentes juntamente com o conteúdo

Lenore, conta a história da jovem Leonor

sobrenatural e sombrio fiel ao original, mas

que, desespera pelo não retorno do amado

um pouco modificado ao modo lusitano

após a guerra, blasfema contra Deus,

mais religioso ao enfatizar a necessidade

preferindo a morte a viver sem seu amor.

de castigo pela blasfêmia. A composição

Misteriosamente,

de Bürger 5, ao final,refere-se ao coração

à

noite,

o

amado

Guilherme retorna, mas, ao longo de uma

partido,

vertiginosa cavalgada repleta de paisagens

revelam os trechos a seguir:

escuras

e

misteriosas,

da

referência

constante do cavaleiro à morte, do mistério e de descrições de espectros e fantasmas horripilantes, ele revela que viera atender seu pedido para acompanhá-lo ao mundo dos mortos. Este poema apresenta trinta e duas oitavas organizadas em uma estrutura baladística, pautada no diálogo e na progressão narrativa vertiginosa, utilizando muitas interjeições, exclamações, pausas e onomatopeias; perfeitas

organizadas

cruzadas

e

em

rimas

emparelhadas

(ababccbb). Em sua versão, “Leonor”, Herculano preferiu utilizar a estrutura tradicional mais

apesar

do

Hochbäumtesich,

castigo. wildschnob

Conforme der

Rapp’

Alça-se e arqueja o ginete UndsprühteFeuerfunken; Ígneas faíscas lançou, Undhui!

war’sunterihrhinab

E debaixo de seus pés Verschwundenundversunken. Abriu-se a terra, e o tragou. Geheul! Geheul aus hoher Luft, GewinselkamaustieferGruft. Dos covaes surgem phantasmas LenorensHerzmitBebenFeio urrar os ares corta: Rang

zwischenTod

und

Leben.

Bate incerto o coração Da donzela semimorta. 5 Livre tradução nossa da última estrofe citada acima: Bem dançando ao luar/ Girando em círculos/ Os espíritos de uma dança em cadeia/ E, assim, uivou:/ Paciência!

comum da oralidade lusitana: a quadra com

Paciência! Quando o coração está partido./ Com Deus no

métrica em redondilha maior. São sessenta

céu não se zangue!/ De seu corpo estás livre;/ Deus tenha misericórdia de sua alma.

55


Ana Marcia Alves Siqueira NuntanztenwohlbeiMondenglanz

do ausente após um longo período sem

Ao redor danças de espectros

notícias.

RundumherumimKreise

A

jovem

enamorada,

Em remoinho passavam.

considerando que somente a morte poderia

Die GeistereinenKettentanz Canto de medonhas

justificar tanta demora, considera-se livre

vozes Undheulten

diese

Weise:

do juramento e aceita um novo amor. Segundo

Era o canto que cantavam: “Geduld!Geduld! Wenn’sHerzauchbricht! MitGottimHimmelhadrenicht! Leibesbistduledig;

Não fosses com Deus audaz. Gottsei

der

do

Romanceiro(GARRETT, 1963), a situação

Seelegnädig!

inconstância da mulher, exemplificada em “O cordão de oiro”: Deixou estrada direita, / Por atalhos se metera;/

Teu corpo pertence á terra (BÜRGER, 2010, p. 34).

poemas

pode ser vista como uma lição irônica da

Affligeste? Oh, tem paciência! Des

os

Inda não é meia-noite,/ À sua porta batera./

Á tua alma o

– Quem bate à minha porta,/ Quem bate com

ceu dê paz.

tanta pressa?/ – É um soldado, senhora,/ Que vos traz novas

(HERCULANO, 1850, p.317).

da guerra.

A sensibilidade alemã descreve o

(GARRETT, 1963, p. 98-99).

coração partido da jovem como o motivo

O pobre soldado apaixonado é

que a fizera se revoltar contra Deus,

dispensado pelo amante da esposa que o

embora não devesse ter feito. Por seu

enxota: “Amigo, vindes errado / Co’as

turno, Herculano prefere realçar o castigo

vossas novas da guerra: / Deixai-nos

atentando para a aflição vivida por ela

dormir em paz, /Que bem precisamos

como castigo pela blasfêmia.

dela.” (GARRETT, 1963, p.99). Em vez de

O elemento sobrenatural, quando

se vingar da traição, o soldado parte

surge nos romances portugueses não

lembrando-se da advertência do capitão

estão voltados para o macabro, mas a um

sobre a necessidade de ele rever a esposa

castigo ou recompensa ligado ao maravilho

antes do final da guerra. O encerramento

cristão. A título de exemplo, citamos o

do poema se dá com a fina ironia do

romance “Nau Catarineta”, no qual o

capitão: “Pois tua mulher tem primos,/ E tu

sobrenatural é a manifestação do diabo

vinhas com dó dela!...” (GARRETT, 1963,

tentando a alma do marinheiro. Outrossim,

p.99).

como a história da construção do reino está

Outra maneira de fabulação do tema

ligada a guerras com castelhanos ou

se dá quando a mulher é inocente por ser

mouros e conquistas ultramarinas, são

levada contra sua vontade a transgredir o

muito comunscomposições sobre o retorno

juramento, como em “A noiva arraiana”: “–

56


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Qu´é de minha dama, tia, / Que aqui ficou a

rudeza das mãos e memórias por onde

chorar? / – Tua dama faz hoje a boda, /

passou” (1963, v.1, p.25). Dessa forma

Amanhã se vai casar.” (GARRETT, 1963,

haviam procedido Scott, Percy e Burns,

p. 64). A justiça feita pelo guerreiro não tem

modelos imediatos do poeta no exterior.

drama ou sangue, ele leva a noiva da festa,

De

modo

semelhante

pensava

deixando para os traiçoeiros a boda e o

Herculano, que buscava inovar a literatura

jantar:

portuguesa – Pagar devia co’a vida / Quem me queria

unindo

a

tradição

literária

popular, a erudita e a história nacional às

enganar, Quando te deram por morto/ Nessas terras de

novidades artísticas apreciadas no período

além mar.

de exílio. A diferença maior entre os dois

Mas que fiquem com a boda / E bem lhes preste

escritores, além das escolhas formais –

o jantar,

recolha de romances orais com pequenas

Que os meus primeiros amores / Ninguém moshá-de quitar.

intervenções ou versões recriadas de

(GARRETT, 1963, p.65)

baladas ou reinterpretações de temas

Transcrito

ao

gosto

tradicional

português nos romances analisados, o tema da quebra do pacto de fidelidade, ligado

ao

considerado

motivo

da

morto,

volta

do

será

amor

também

inspiração da grande obra dramática de Almeida Garrett, Frei Luís de Sousa com todas as nuances trágicas implicadas e erudição característica. Porém, em seu

Romanceiro, Garrett acreditava ser preciso divulgar

as

primitivas

fontes

poéticas

portuguesas, os romances em verso, as lendas em prosa porque, a partir deste resgate, a poesia nacional haveria de ressuscitar “verdadeira e legítima”, despida da influência clássica. Nesse processo, os pequenos retoques ou reformulações se justificavam,

porque

era

necessário

aprimorar a poesia “informe e mutilada pela

históricos – está justamente na adesão à literatura de feição negra, à concessão ao horrível e ao sobrenatural dosadas em pequenas pinceladas. Assim, romances

de

modo

portugueses

similar

aos

analisados,

Herculano escreveu, de lavra própria, a balada “A volta do proscrito” em que o protagonista vive a mesma situação do soldado de “O cordão de oiro”, porém, com tons mais sombrios e melancólicos, pois, mesmo durante a viagem de volta, o rapaz já teme não encontrar seu lugar ou sua antiga

vida:

“Esperança,

e

somente

esperança / Cabe aquelle que os mares correu, / Quem lhe diz que inda não o esqueceu / A donzela por quem suspirou?” (HERCULANO, 1850, p. 203). A tristeza confirma-se e o viajante retorna ao mar:

57


Ana Marcia Alves Siqueira

“Conta-se que o seu amor fora trahido, /(...)

sobrenaturais. A quebra deste, portanto,

Sobre a proa outra vez indo assentar-se. /

resultaria em uma punição tão terrível e

Não

imutável como a morte.

entoou

um

hinno

de

alegria.”

(HERCULANO, 1850, p. 207).

Assim, Isolina ao jurar:

O tema, comum em um país voltado para o mar, foi recriado por Herculano de outra

maneira,

horripilante

de

inspirado Matthew

na

criação

Lewis

(2014)

publicada no romance The monk. A versão do divulgador da literatura negra em Portugal reconstrói em seu poema o mesmo

clima

encetado

pela

de

tensão

revelação

e

mistério

do

espectro

horrível que vem para cobrar o juramento feito; todavia as descrições de vermes escapando espectros

da

cabeça

saudando

os

do

cadáver noivos

e

com

caveiras repletas de sangue, presentes na versão inglesa, foram suprimidas 6. Herculano privilegia a permanência do amor para além da morte e, em especial, a atmosfera misteriosa e sagrada de um juramento de fidelidade que, ao utilizar referências à permanência alémtúmulo ou à força mágica do amor sem fim, desencadeava

a

instauração

de

abertura

para

a

acontecimentos

6 “…The worms, They crept in, and the worms, They crept out,/ And sported his eyes and his temples about, / While

– Affonso não te arrecêes / Não tens que te arrecear: / Juro amar-te vivo ou morto,/ Mais ninguem me ha de gozar./ Tua sombra me apareça /Se eu quebrar o juramento, / Comigo se ponha á meza / No dia do casamento; / Ali declare em voz alta / Que o seu direito requer: / Para o sepulchro me arraste, / Gritando – és minha mulher. (HERCULANO, 1836, p. 117-118).

acaba por instaurar o sobrenatural por força de suas palavras. O fantasma de Afonso,

inexoravelmente,

volta

para

impedir Isolina de se casar com outro e também para cumprir a vontade desta proferida em juramento sagrado. Destarte, Isolina não é punida somente por sua traição,

mas

também

para

que

seja

cumprido o castigo imaginado por ela mesma: Tu me convidaste á boda, / O teu convite acceitei;/ Palavras que me hasdictado / Palavras são que u direi./

the Spectre addressed Imogine…” (LEWIS, 2014). (Livre tradução nossa: “[...Os vermes, eles rastejaram para

Meu fantasma aqui declara / Que o seu direito

dentro/, E os vermes, eles rastejaram para fora,/ E

requer:/

desviaram pelos olhos e pelas têmporas, Enquanto o

Para a cova me acompanha, / Vem, vem, que és

Espectro dirigia-se a Imoguene...].

minha mulher./

58


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo Com a torpe mão arrasta / A infiel que em vão bradava:/ Nenhum d'elles já se via / Seu clamor inda

exemplo dos espectros e fantasmas de

soava...

Bürger –, o gótico inglês, inspirado em

(HERCULANO, 1836, p. 120)

Lewis e Scott com seus castelos, ruínas e

Apesar da atmosfera horripilante e sobrenatural, a métrica em redondilha maior e o ritmo das quadras com rimas cruzadas, nos versos pares, imprimem a musicalidade

e

a

dicção

da

poesia

tradicional portuguesa à balada herculiana. Com

estas

análises

pudemos

demonstrar a proposição de que sob a influência de Herculano, em seu trabalho de

exposição do horripilante e do fúnebre – a

divulgação

da

literatura

negra,

o

Romantismo português misturou o horror da literatura alemã, com tendência à

construção de uma atmosfera soturna, misteriosa e triste sem, no entanto, perder as características de sua tradição popular de raízes medievais. Por sua vez, Almeida Garrett seguiu o caminho da recolha de produções populares mais distantes das produções eruditas, embora um estudo atento também revele as influências de modelos

externos

de

autores

pré-

românticos europeus, ajustados sutilmente a sua produção.

Referências: ALARCÃO, Miguel. Balada. In: CEIA, Carlos (Org.) E-dicionário de termos literários. Disponível em: http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&lin k_id=132&Itemid=2. Acesso em 20 de março de 2014. BRITTO, Paulo Henrique. A tradução para o português do metro de balada inglês.

Fragmentos. N0 34, p. 25-33, Florianópolis, Jan-Jun, 2008. BÜRGER, Gottfried A. Lenore. In: COLEN, Érico e DRUMOND, Luana. Das tempestades:

a poesia alemã do Sturm undDrang. Edição bilíngue. Belo Horizonte: FALE/ UFMG, 2010. CORREIA, João David Pinto. Os romances carolíngios da tradição oral portuguesa. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1992. CUNHA, Antônio Geraldo. Dicionário etimológico. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. ESCARDUÇA, Carla Sofia Caneiro. Romanceiro. In:CEIA, Carlos (Org.) E-dicionário de

termos literários. Disponível em: http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&

59


Ana Marcia Alves Siqueira

task=viewlink&link_id=339&Itemid=2. Acesso em 20 de agosto de 2013. FERNANDES, Geraldo Augusto. O amor pela forma no Cancioneiro Geral de Garcia de

Resende. Tese. (Doutorado em Letras). Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011. FERRÉ, Pere. Romanceiro velho e tradicional. Disponível em: http://www.attambur.com/ Recolhas/romanceiro.htm. Acesso em 20 de agosto de 2013. GARRETT, João B. S. L. de Almeida. Romanceiro. Lisboa: Fundação Nacional para Alegria no Trabalho/ Gabinete de Etnografia, 1963, 3v. (Edição revista por Fernando de Castro P. de Lima). HERCULANO, Alexandre. Poesias. Lisboa: Viúva Bertrand e Filhos, 1850. _______. Afonso e Isolina. In: CASTILHO, Antônio Feliciano de (Org.). A noite do castelo: e

os ciúmes do bardo, poemas seguidos da Confissão de Amélia traduzida de Mlle. Delfine Gay. Lisboa: Typografia lisbonense, 1836, p. 117-121. LEWIS, Matthew G. The monk. Disponível em: http://www.gutenberg.org/files/601/601-h/ 601-h.htm. Acesso em 10 julho de 2014. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 10ª. Ed. São Paulo: Cultrix, 2000. PRAZ, Mário. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica.Trad. de PhiladelphoMenezees. Campinas: Editora da Unicamp, 1996. ROUGEMONT, Denis. História do amor no ocidente. 2a.ed., Trad. Paulo Brandi e Ethel B. Cachapuz. São Paulo: Ediouro, 2003. SOUSA, Maria Leonor Machado. A literatura “negra” ou de terror em Portugal(séculos XVIII

e XIX). Lisboa: Novaera, 1978.

60


FIDELIDADE: A PROPOSTA PEDAGÓGICA DE DHUODA Ana Paula dos Santos Viana 1 Terezinha Oliveira 2 (Orientadora) Resumo: Este texto pauta-se no âmbito da história da educação medieval. Com base na análise da obra La educación cristiana de mi hijo, escrita por Dhuoda, uma mãe de origem germânica, nobre, que viveu no século IX no período da dinastia carolíngia, apresentamos um estudo acerca deste Manual como projeto de educação. A sua proposta pedagógica é de natureza cristã escolástica, na qual procura conservar os princípios aristocráticos da sua linhagem. Nesse sentido, procuramos evidenciar que a concepção de fidelidade para autora é um preceito essencial na formação do nobre do século IX, uma vez que este necessita viver em sociedade para garantir sua existência física e moral. Desse modo, destacamos que para Dhuoda a concepção de fidelidade, bem como do lugar que ocupa em proposta educacional para o nobre do período, tem como referência as relações feudovassálicas e a concepção aristotélica de virtude moral, de hábito. A autora valoriza a educação, por isso compõe o Manual com regras, conselhos, citações bíblicas e explicita qual é modelo a ser seguido pelo filho em sua formação. Assim, a retomada de seu escrito constitui-se em uma dupla aprendizagem: de um lado a recuperação de um manual pedagógico; por outro, a importância da história já que proporciona o conhecimento de valores éticos e morais, essencialmente humanos no curso da história, como é o caso da fidelidade. Como a perspectiva de análise é a de que o objeto faz parte da totalidade representada pela sociedade feudal no século IX, optamos pelo método da História Social. Palavras-chave: Dhuoda; Fidelidade; Projeto de educação.

1

Profª Me– UniCesumar

2

Professora adjunta ao departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá.

61


Ana Paula dos Santos Viana

Escrito

em

Úzes,

entre

30

de

uma cultura e erudição fundamentada em

novembro de 841 e 2 de fevereiro de 843.

alguns pensadores da Antiguidade e na

Dhuoda dedicou-se a escrever o Manual,

principal fonte moral para a época, a Bíblia.

La educación Cristiana de mi hijo, para

Nesse sentido, a preocupação dessa mãe

orientar a formação de seu primogênito,

cristã expressa uma questão, a nosso ver,

Guilherme, quando este completara 16

importante:

anos. Ao redigi-lo procura ensinar a seu

condicionada às ações praticadas pelos

filho os valores morais, os comportamentos

homens na terra, às suas ações cotidianas.

e as virtudes necessárias a sua educação.

O bem deve ser praticado em vida, em

(NUNES, 1995).

palavras,

a

formação

em

humana

está

pensamentos

e,

Afirmamos, desse modo, que nossa

sobremaneira, em atitudes. O bem não

análise será encaminhada pelo viés da

deve ser exterior à pessoa, mas, sim, fazer

História Social 3. É esse o caminho que

parte dela, o que funcionaria como uma

almejamos percorrer para atingir o objetivo

segunda pele [segunda natureza], ou seja,

estabelecido: mostrar que a questão da

aquilo que nos “habituamos” a fazer, cujo

fidelidade e sua relação com a educação

conceito [hábito] pode ser encontrado nas

na Idade Média estão permeadas pelo

formulações aristotélicas.

processo histórico do século IX. Dessa forma, estudaremos as formulações de Dhuoda

considerando

seu

processo

1.Como já vimos, há duas espécies de excelência: a intelectual e a moral. Em grande parte a excelência intelectual deve tanto o seu nascimento quanto o seu crescimento à instrução (por isto ela requer experiência e tempo); quanto à excelência

histórico e educativo. A obra de Dhuoda evidencia sua preocupação com a formação aristocrática de seu filho, pautada na conduta cristã. Este anseio faz com que ela apresente

moral, ela é produto do hábito, razão pela qual seu nome é derivado [...] da palavra “habito”. É evidente, portanto, que nenhuma das várias formas de excelência moral se constitui em nós por natureza, pois nada que existe por natureza pode ser alterado pelo hábito. Por exemplo, a pedra, que por natureza se move para baixo, não pode ser

De acordo com a historiografia, essa tendência surgiu

habituada a mover-se para cima; tampouco o fogo

com a Revista dos Annales fundada por Marc Bloch e

pode ser habituado a mover-se para baixo, nem

Lucien Febvre em 1929, na França. Os autores

qualquer outra coisa que por natureza se comporta

propunham o tratamento da história como problema, cuja

de certa maneira pode ser habituada a comportar-

análise

se de maneira diferente. Portanto, nem por

3

deveria

contemplar

diferentes

campos

do

conhecimento, como a Sociologia, a Antropologia, a

natureza

Literatura e outros. Esses conhecimentos, aliados aos

excelência moral é engendrada em nós, mas a

saberes

natureza nos dá a capacidade de recebê-la, e esta

produzidos

na

sociedade,

possibilitariam,

segundo eles, compreender as situações do presente.

nem

capacidade

se

contrariamente

aperfeiçoa

à

com

natureza

o

a

hábito.

62


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo (ARISTÓTELES, Ética..., L. II, c. 1, §1103b, grifo nosso).

Sendo

assim,

honra/honestidade,

respeito,

caridade

e

outras

virtudes que Dhuoda aconselha seu filho a praticar são hábitos a ser desenvolvidos. É preciso agir de forma honesta, respeitosa e caridosa para que sejam criados nos homens

os

hábitos

dessas

esta

perspectiva

Observa-se

virtudes. no

pensamento aristotélico, segundo o qual o hábito

é

uma

intencionalmente,

ação

praticada

caracterizando

o

comportamento da pessoa. É,

pois,

nessa

perspectiva

que

compreendemos a fidelidade apresentada por

Dhuoda

como

virtude,

ou

seja,

Guilherme não nasceu de posse dela. Com base

no

Manual

e

no

pensamento

aristotélico, consideramos que, para o período em tela, é preciso ensinar a fidelidade para que o outro aprenda a ser fiel.

Desse

modo,

ela

pode

ser

compreendida como virtude e, ao mesmo tempo, como um preceito educativo, pois implica um processo de ensino e de aprendizagem que a transforme em hábito e, por conseguinte, requer que a pessoa aja de forma intencional para que ela delineie seu comportamento. Ao se apoiar na permanência desses conhecimentos, Dhuoda procura, por um lado, educar Guilherme e, por outro,

mostrar a realidade posta pela crise do Império Carolíngio e os princípios do sistema feudal. Cumpre explicitar, então, que a época e o texto da autora expressam um valoroso movimento histórico. Estamos nos referindo à realidade política do Império Carolíngio. De acordo com Magne (1991), na sucessão de Carlos Magno (742-814) ascende

ao

trono

seu

único

filho

sobrevivente, Luís, o Piedoso (778-840). Ele foi coroado pelo próprio pai, em 813. Luís, o Piedoso, diferentemente de seu pai que

promoveu

reformas

em

diversas

esferas (civil, religiosa, educativa), torna-se submisso à Igreja. Nesse sentido, “Luis abandona o seu povo e cuida apenas dos interesses aristocracia

da

Igreja,

carolíngia

descontentamento”.

provocando um

na

significativo

(GUIZOT

apud

OLIVEIRA, 2009, p. 33). Luís, o Piedoso, teve três filhos do primeiro casamento: Lotário, Pepino I e Luís, o Germânico. Contradizendo sua própria constituição (Ordinatio imperii – promulgada em julho de 817 que declara o império uno e indivisível), fragmenta seu império entre seus filhos. Ao primeiro (por ser o primogênito) coube a coroa imperial, Pepino

e

Luís

tornaram-se

reis

da

Aquitânia e da Baviera, respectivamente. Embora pareça contraditória, foi mantida a “[...]

unidade

do

império:

os

reinos

63


Ana Paula dos Santos Viana

constituíam

meras

unidades

administrativas, e os reis continuavam

território enfrentou migrações nômades, apressando assim, o fim deste Império.

sujeitos em tudo ao imperador”. (MAGNE,

É, então, nesse cenário conflituoso

1991, p. 18). Essa partilha representa a

que Dhuoda escreve ao seu primogênito,

primeira divisão do Império.

recomendando-lhe, como nobre, ser fiel a

A segunda divisão ocorreu quando, ao enviuvar, Luís o Piedoso casa-se com

Deus, a seu pai e ao seu rei Carlos, o Calvo.

Judite, a filha de um conde bávaro. Dessa

A

virtude

fidelidade

apresentada

o Calvo. Com o nascimento deste e com a

enfática, na terceira parte do Manual. O

morte de Pepino I, o Imperador considera

conteúdo desta parte revela o quanto esta

justo doar o reino a Carlos o Calvo. Esta

mãe estava imbuída dos valores que

decisão causa revolta entre os irmãos, pois

deveriam permear a vida dos homens

este último, por ser do segundo casamento

nobres que estavam a serviço do rei.

era considerado bastardo pela tradição

Encontramos aqui a essência educacional

carolíngia. Essa situação desencadeou, em

de

25 de junho de 841, a trágica batalha de

evidenciada,

Fontanet ou Fontenoy (MAGNE, 1991).

momentos principais, que, de fato, formam

Posteriormente a esta, Luís, o Germânico e

um todo: primeiramente, a fidelidade a

Carlos, o Calvo proclamam a junção de

Deus, para, no segundo momento, alcançar

seus

a fidelidade ao pai e, no terceiro, ao seu rei

interesses.

conhecida

como

Essa

aliança

ficou

Juramento

de

Estrasburgo 4. Ambos almejavam conquistar a paz no território franco para, com isso, preservarem a unidade do povo carolíngio estabelecida por Carlos Magno. Contudo, além da situação fratricida, parte do

Dhuoda,

manuscrito, a

nosso

a ver,

de

é

união nasceu em 813 o quarto filho, Carlos,

seu

por

da

forma

fidelidade, em

três

e senhor Carlos, o Calvo. Te invito, pues, queridíssimo hijo Guillermo, que em primer lugar ames a Dios, como ya tienes escrito arriba; a continuación, ama, teme y honra a tu padre; recuerda que de él te viene tu condición en el mundo. Has de saber que desde os tiempos antiguos, los que amaron a los padres y les fueron sinceramente obedientes merecieron recibir por éstos la bendición divina. (DHUODA, 1995, p. 84).

4

Após a batalha de Fontenay, sem produzir, segundo

Magne (1991, p. 18), resultados definitivos, Luís, o

A prioridade divina que os cristãos atribuem à fidelidade é explicada pelos

Germânico e Carlos, o Calvo, decidiram estreitar ainda

fundamentos do Cristianismo: Deus é o

mais sua aliança. A 24 de fevereiro de 842, em

Criador, de onde tudo se origina. Para

Estrasburgo, perante suas tropas, tomaram o solene compromisso de amparar-se mutuamente em tudo.

Nunes (1995, p. 148), “Dhuoda tinha a

64


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

convicção profunda do cristão lúcido e

conhecimento e na prática fiel da doutrina

fervoroso, de que somos criados para

de Cristo.

Deus, e de que só nele o nosso coração

Caso Guilherme não possuísse ou

pode encontrar repouso, como dizia Sto.

não fizesse uso desta virtude, deveria ser

[sic] Agostinho.” Para o autor, esta mãe

castigado. Para ela, ao ser fiel ao pai ele se

concebia

o

um

campo

beneficiaria nas relações sociais, teria a

de

muitos

oportunidade de uma vida próspera e, com

aprendizados, caso fossem ensinados e

isso, ela atingiria a finalidade de seu

praticados de forma una e indissociável. A

escrito: a formação nobre e cristã do filho.

pedagógico,

mundo um

como

espaço

terra é para ela uma passagem, um estágio da natureza humana que um dia poderá chegar à esfera celeste se a pessoa, com base nos fundamentos do Criador, souber se

apropriar

dos

encontrados.

conhecimentos

É

um

campo

nela de

experimentação, cujas experiências, provas e

tribulações

potencializam

um

[...] y que yo, Dhuoda, hijo mio Guillermo, viéndome muy lejos de ti, y por ello angustiada y totalmente deseosa de ayudarte, te dirijo este opúsculo escrito em mi nombre para que sea leído como modelo em tu formación [...]. (DHUODA, 1995, p. 51). Tú, pues, hijo mio Guillermo, presta atención a mis consejos, observa y obedece las ordenes de tu

padre y no seas sordo a los mandatos de los santos Padres; léelos con frecuencia, guárdalos en

lo profundo de tu corazón, para que creciendo

aprendizado para o convívio social e para o

siempre en el bien se multipliquen los años de tu

caminho da salvação.

vida. Pues, quienes bendicen y defienden a Dios,

Tudo procede de Deus, segundo Dhuoda.

Diante

das

tribulações

que

obedecen a los padres y cumplen generosamente sus mandatos, ésos herdarán la tierra. (DHUODA, 1995, p. 83, grifo da autora).

Guilherme por ventura passe neste mundo,

Por prezar a formação de seu filho, a

ele deve recorrer ao ser supremo em

autora ensina o respeito, a honra, a leitura

oração, pois é Ele quem concede a

e a oração como quatro aprendizados

redenção para a salvação do corpo e da

indissociáveis da formação que lhe está

alma.

oferecendo e que convergem para a sua De acordo com Nunes, Dhuoda tinha

integridade

física

e

espiritual.

Ela

consciência de que só em Cristo os

compreende que, praticando essas quatro

homens encontrariam a verdadeira luz e,

instâncias de seu projeto de educação, o

por isso, cuidou de orientar o filho pela

ser divino poderia conceder-lhe, além dos

trilha da autêntica vida cristã, ressaltando

bens espirituais, o bem na terra. Tais

que a fidelidade ao pai e ao senhor só

ensinamentos sãos vistos em São Máximo

estaria assegurada quando consolidada no

(579/80-662), que procura propagar a

65


Ana Paula dos Santos Viana

caridade e a paz aos seus para construir

Dhuoda afirma que é em suas atitudes que

uma sociedade voltada para o bem comum.

o filho manifestará sua nobre linhagem,

Observamos que a preocupação de

pois, a seu ver, são as atitudes que

Dhuoda com a integridade física e espiritual

revelam a origem da pessoa. Explica que

do filho é encontrada desde o início do

servir a Carlos, o Calvo, foi uma “escolha”

Manual, quando ela lhe pede que o tenha

do pai, Bernardo, guiado por Deus. Por

como um espelho em que possa se mirar

isso, Guilherme deve desempenhar seu

diariamente. Assim como o espelho permite

serviço não apenas lhe sendo agradável,

ao homem conhecer a si mesmo pelo

mas com toda a dedicação corporal e

reflexo fiel/exato da realidade externa, a

espiritual.

obra dessa mãe cumpre o papel de refletir

experimentaria

o interior dos homens e, de modo especial,

segura.

de seu filho. Ao contrário das águas do rio que conduziram Narciso a seu fim, porque este se deixou fascinar por sua beleza externa,

o

espelho

de

Dhuoda

está

orientado para conduzir o primogênito à salvação,

priorizando

as

virtudes

que

favorecem a perfeição. Observamos que dentre as virtudes

Com a

essa

atitude,

fidelidade

ele

sincera

e

Tienes a Carlos como señor, porque Dios, como creo, y tu padre Bernardo lo han elegido, para que tu le sirvas ya desde los primeiros años de tu juventud com todas tus fuerzas; ten en cuenta que has salido de una família elevada y noble por ambos padres; no le sirvas sólo por ser agradable a tus ojos, sino también conforme a tu inteligência, tanto mediante el cuerpo como mediante el alma; guárdale em todo acontecimiento una fidelidad provechosa, leal y segura. (DHUODA, 1995, p. 86, grifo nosso).

a fidelidade e, por conseguinte, seu ensino

[...] te ruego que lo que tienes los conserves

constituem o principal objetivo da proposta

fielmente con el cuerpo y con la mente mientras

pedagógica de Dhuoda, a qual é de natureza cristã escolástica, pois essas são tratadas tanto pelos autores cristãos quanto pelos laicos 5. Com essa união de saberes, Dhuoda procura conservar os princípios aristocráticos de sua linhagem. Na advertência sobre a conduta a ser adotada diante do seu rei e senhor,

tengas vida. Creemos que te será de gran utilidad para ti y para tus familiares el crecer em el camino empreendido.[...] [...] Lee las máximas y las vidas de los santos padres anteriores y hallarás cómo y en qué medida debes servir a tu senõr y serle fiel em cualquer circunstancia.

Cuando

lo

hayas

descubierto,

observa com detalle sus ordenes para cumplirlas con fidelidad. Tem em cuenta también y estudia a quienes ló sirven con celo y fidelidad, y aprende de ellos la normas de comportamiento; haciendo tuyo su ejemplo, con el favor y la protección divina, te

5

Em nossa dissertação de mestrado (VIANA, 2014)

abordamos acerca dessa influência do pensamento filosófico no Manual de Dhuoda.

será más fácil cumplir cuanto antes te he recordado. (DHUODA, 1995, p. 87-88, grifos nossos).

66


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Com isso, a autora destaca a

recitar orações por si, por sua família, por

importância do conhecimento para praticar

seu senhor e pelos familiares deste.

a fidelidade: o ato de ler é um aspecto

Reitera que somente a fidelidade nas

pedagógico importante em sua obra, pois

ações juntamente com a constante oração

seria o primeiro passo para chegar à

poderia

apropriação

adversidades que poderia encontrar em

dos

ensinamentos

nela

contemplados. A leitura deveria fazer parte

ajudá-lo

a

passar

pelas

tempos conturbados como aquele.

do cotidiano de Guilherme porque lhe daria

De sua perspectiva, Guilherme deve

condições de aprender todo conhecimento

dirigir-se não só aos mais velhos, mas

já propagado pelos doutores da Igreja, da

também aos mais jovens que amam a

Bíblia e dos demais autores que balizam a

Deus e adquirem sabedoria porque é na

erudição de sua educadora e mãe. O

flor da juventude que a velhice retira sua

caminho da leitura e da ação o auxiliaria a

força. Na incerteza da escolha de um

compreender a seriedade em cumprir com

conselho,

suas

descendentes daqueles antigos que, com a

obrigações

perante

seu

senhor,

Carlos, o Calvo. Efectivamente, en la lectura santa encontrarás lo que hay que rezar y lo que se há de evitar, lo que hay que prevenir, lo que hay que buscar, o lo que

ajuda

de

cumpre Deus,

descobrir

sabem

os

ministrar

um

conselho útil para si e para seus senhores. Para isso, se ele atingir a idade madura,

debes cuidar en todas las cosas. [...] Sobre la

deverá se prevenir contra as pessoas

asiduidad de la oración nos advirte el Apóstol

desonestas e escolher as de bem; fugir dos

cuando dice: Orad sin interrupción. [...] Todo lo que hagas de bueno en esta vida, eso precisamente

maus, apoiar-se nos bons e não nos

intercederá incesantemente por ti ante el Señor.

covardes ou coléricos. Por isso, ela pede

[...] Por ello te exhorto a que tu espíritu se

ao filho que tome cuidado, vigie, fuja dos

mantenga vigilante y presto, y siempre puro y limpio, en una lectura y uma oración la más digna posible. (DHUODA, 1995, p. 155, grifo da autora).

malévolos,

imprudentes

e

una-se

às

pessoas honestas que buscam o bem,

Por considerar que os hábitos e as

àqueles que por sincera sujeição às

ações na terra são o que conduzem ou não

vontades de seus senhores, ao oferecerem

ao caminho celeste, Dhuoda reitera a

um bom conselho, mereçam receber de

importância de ser fiel a Deus, explicando

Deus e do mundo uma digna e grande

que a maneira propícia para atingir tal

recompensa. (NUNES, 1995).

intento é a das orações. Por isso, procura

Dando continuidade à sua proposta

convencer Guilherme a orar a qualquer

educativa, no que tange à conduta diante

hora e em todo momento: ele deveria

do rei, Dhuoda observa que o servidor

67


Ana Paula dos Santos Viana

dedicado deve pedir conselhos e, para isso, precisa ser dócil e humilde e saber pedi-los a quem os possa dar. Para bem servir ao senhor é necessário receber sábios

conselhos

experientes,

de

pois

pessoas

quem

se

mais aplicar

a sus intereses, mediante una fiel ejecución, tanto com la mente como com el cuerpo [...]. Acuérdate de David respecto a Jonátan, hijo del rey Saúl, quien, respecto a su padre y al hijo y también a sus descendientes, no solo en vida sino también después de la morte de aquellos, fue un verdadero defensor fiel y leal en todo o momento. (DHUODA, 1995, p. 94).

coerentemente na busca da sabedoria

A autora salienta que, no que tange

conquistará as bênçãos de Deus, os

à disponibilidade do filho para servir Carlos,

favores dos homens e agradará fielmente

o Calvo, e a todos os seus parentes, sua

em todas as coisas ao senhor. (NUNES,

dedicação

1995).

tenacidade, valentia, desprendimento e Com efeito, ser fiel no cumprimento

deveria

ser

norteada

pela

fidelidade de corpo e de alma. Essas

dos deveres implica uma lealdade ampla

atitudes

deveriam

que deve se estender aos nobres parentes,

somente por Guilherme, mas por todas as

nascidos na linhagem real. Guilherme,

pessoas

como todos aqueles que estavam a serviço

promovesse

do poder real, deveria servi-los fielmente

permeado por conflitos. Não cometendo

com todas as forças. Para tanto, Dhuoda

infidelidade com seus senhores, auxiliando

roga a Deus que ilumine e inspire todos

as pessoas, honrando-os com palavras e

para promover a paz, reger, proteger e

atitudes, esforçando-se por ser caritativo e

governar o mundo e o povo, com base no

por respeitar devidamente os sacerdotes,

serviço do Altíssimo e dos santos, assim

Guilherme poderia ter uma vida digna,

como “[...] defender os súditos dos ataques

próspera e feliz.

do

ser

adotadas

Império, a

paz

para

não

que

naquele

se

tempo

das tropas inimigas que irrompiam de todos

Evidentemente, Dhuoda analisa a

os lados, e unificar firmemente em Cristo a

fidelidade, as ações dos seres humanos e

santa

suas condições morais de acordo com os

Igreja

de

Deus

na

verdadeira

religião”. (NUNES, 1995, p. 147).

conhecimentos laicos e os fundamentos do

Respeta, ama, venera y estima a los ilustres y distinguidos parientes y cercanos de tu senõr de regia

potestad,

sea

su

ilustre

origen

por

cristianismo

interligados

às

relações

sociais. Por isso, podemos entender que

ascendencia paterna o por la dignidad del

suas reflexões podem nos ensinar algo

matrimonio, en el supuesto que merezcas alcanzar

sobre

ser

un

servidor

útil,

juntamente

con

los

compañeros de armas em el palácio real, imperial o donde sea; y en cualquier asunto que concierna

a

natureza

possibilidade

de

humana, se

formar

sobre

a

pessoas

conscientes, que se preocupem com o bem

68


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

comum, sem negligenciar suas aspirações

prática

pessoais. As bem-aventuranças retomadas

circunstância.

por Dhuoda estão relacionadas, em última instância,

à

existência

princípios

cristãos

e

à

conforme vida

os

terrena

encaminhada por ações cotidianas que permitem chegar à vida eterna. Ao aconselhar o filho na execução de seus deveres, ela revela qual era o ideal de

homem

daquele

contexto:

ser

cavalheiro, fiel ao rei e exímio guerreiro. “Recurre siempre a este pequeño libro. Sé siempre, joven noble, fuerte y valiente em Cristo. ” (DHUODA, 1995, p. 181). Esse

dessa

virtude

em

qualquer

Busca, guarda y observa com fidelidad los ejemplos de los hombres ilustres [...] para agradar fielmente a Dios y al mundo y hayan perseverado. Pues donde se há dicho que hay que tener en la mano y llevar escritos sobre la frente los nombres de los doce Patriarcas y tener siempre los ojos adelante y atrás, se refiere a las virtudes. Ellos las practicaron asiduamente mientras vivían en este mundo, estaban delante de Dios creciendo y fortaleciéndose, siempre tendiam hacia lo más alto, y se hacían cada vez más prudentes por la fe y la inteligencia;

con

palabras

y

com

hechos

completaron uma tarea digna, y nos lo han transmitido como ejemplo, para que lo busquemos y

lo

pongamos

en

práctica

en

qualquier

circunstancia. (DHUODA, 1995, p. 109-110).

ideal deveria ser buscado por Guilherme na

Percebe-se que Dhuoda aconselha

relação com seu senhor. Com o intuito de

ao filho seguir com fidelidade os exemplos

ensiná-lo a se aproximar desse modelo, ela

dos doze apóstolos, que com palavras

lembra a atitude de Davi para com Jonatas,

proferidas e atos tornaram-se exemplos de

filho do rei Saul. Davi, não só em vida, mas

prudência e inteligência na preservação da

também após a morte deles, foi seu exímio

cultura cristã. São os exemplos retirados

defensor,

e

daqueles que devotam a fé em Deus que

lealdade em todo o momento. Portanto,

podem ensinar Guilherme a traduzir suas

ousamos inferir que Davi serve de símbolo

palavras em ações, o que revelaria a

da fidelidade bíblica.

virtude da fidelidade tão almejada por

prestando-lhes

fidelidade

O exemplo dos personagens bíblicos (como

os

doze

apóstolos)

revela

Dhuoda para a formação dele. É nesse

a

sentido que ela considerava a fidelidade

preservação da fé transmitida por eles à

como reguladora das relações entre os

humanidade. A leitura, nesse quesito, é um

homens: como virtude ela seria não apenas

elemento essencial para que Guilherme

proferida pelo juramento de fidelidade do

conserve os ensinamentos contidos em

vassalo ao seu senhor, como também

seus escritos, sobretudo os relativos à

traduzida em suas ações cotidianas na

fidelidade, pois os atos de buscar, guardar

corte.

e observar compõem os estágios para a

69


Ana Paula dos Santos Viana

Para

Dhuoda,

e

nos séculos VIII e IX, por meio de dois

autoridade é um dom divino, por isso

atos: a recomendação e o juramento de

Guilherme deve respeito a Deus, ao pai e

fidelidade.

deve também servir aos seus senhores

anteriormente a esses séculos, quem se

fielmente,

comportamento

recomendava, o futuro vassalo, colocava

depende sua vida. Nas ações do filho está

as mãos juntas entre as mãos da pessoa a

a

da

quem se submetia em troca de favores.

linhagem e dos bens da família. Com isso,

Para o autor, o duplo gesto das mãos

ela manifesta uma dupla percepção: a do

constituía o ato da recomendação tanto do

embate político que assolava a dinastia e o

pobre e humilde quanto do rico e guerreiro

Império carolíngio e, em correlação com

ao senhor, um rei ou um nobre. Já o

esta, a de que a prática da fidelidade

juramento

apresentava-se

de

posteriormente. Na segunda metade do

sobrevivência. Provavelmente, Carlos, o

século VIII e no IX, acrescentou-se à

Calvo, manteria vivos somente os nobres

recomendação o novo ato de juramento de

que lhe consagrassem essa virtude.

fidelidade, ou seja, a promessa de ser fiel,

pois

possibilidade

desse de

toda

honra

preservação

como

forma

No

primeiro,

de

que

fidelidade,

existia

surgiu

Considerando essas circunstâncias

apoiada em um juramento em que se

é que nos propomos a compreender a

recorria a Deus e se tocava em uma

proposta pedagógica contida no Manual de

relíquia ou evangeliário.

Dhuoda, com destaque para a questão da fidelidade.

Ao abordá-la, o fizemos com

Ganshof (1968, p. 54) cita o Manual de Dhuoda como exemplo da noção de

base no duplo aspecto que a permeia: o

fidelidade:

das relações feudo-vassálicas, derivada

igualmente por uma atitude positiva, tal

dos

dos

como o mostram, por exemplo, algumas

fundamentos cristãos. Esse percurso foi

das citadas passagens do manual de

importante porque pudemos observar que

Dhuoda.” O excerto contido em sua obra é

os preceitos educativos que permeiam a

retirado do terceiro capítulo do Manual,

obra dessa autora estão em conformidade

onde Dhuoda ensina a reverência e a

com as circunstâncias daquela sociedade.

advertência que ele deveria ter para com

costumes

nômades,

e

o

Sociedade esta em que se encontra

“[...]

esta

manifesta-se

seu senhor.

o laço jurídico da subordinação de um

Os ensinamentos ali contemplados

homem livre a um senhor. Segundo Nunes

revelam a noção de fidelidade da autora, a

(1995), este laço jurídico estabelecia-se,

concepção

virtuosa

com

a

qual

ela

70


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

pretendia formar seu filho e que pode ser

seu rei. Ou seja, o objetivo de Dhuoda, ao

considerada a essência de seu escrito.

ensinar a virtude da fidelidade para a

Nessa parte, ela sintetiza os deveres, as

salvação do corpo e da alma de Guilherme,

exortações, as precauções, a maneira de

encontra respaldo na própria mentalidade

bem

da época.

servir,

de

cumprir

com

seu

compromisso na corte, a importância da

Considerando o contexto do século

leitura, enfim, a fidelidade tanto no modo de

IX,

agir (corpo) quanto no de pensar (alma). A

expressa

noção de fidelidade apresentada por ela

Carolíngio,

revela seu conhecimento do processo de

respeito à unidade social.

vassalagem

unidade, uma sociedade não sobrevive, ou

ao

qual

Guilherme

se

submetera.

compreendemos a

que

a

fidelidade

fragilidade

do

especialmente

no

Império que

diz

Sem uma

seja, a ausência dela propicia um processo

Desse modo, jurar fidelidade é estar

de dissolução. Foi o que detectamos no

em profunda comunhão com Deus, pois é

escrito de Dhuoda: o quadro histórico do

por meio de suas palavras (ao tocar nas

qual ela foi partícipe caracteriza-se pelo

sagradas escrituras) que o vassalo se torna

processo de fragmentação do Império

fiel ao seu senhor. Por isso, Dhuoda insiste

Carolíngio e, portanto, pela falta de unidade

tanto em seus ensinamentos no tocante à

social. Cada filho de Luís, o Piedoso,

fidelidade de Guilherme, exortando-o a

almejava satisfazer interesses próprios e

tributar respeito, durante toda a vida, a

não

Deus, ao pai e a seu senhor, Carlos, o

ocasionando essa ausência ou tornando-a

Calvo. Nesse sentido, ela chama atenção

cada vez mais evidente.

do primogênito para a importância da

os

do

Império

como

um

todo,

Em face do frágil processo de

perfeição pessoal, para a obediência a

unidade

social,

Deus, ao pai e ao seu senhor, isto é, o

fidelidade como fundamento da educação

respeito ao Pai eterno, ao pai carnal e ao

pretendida para Guilherme, justamente por

pai institucional, e para as obrigações

prezar uma formação íntegra, unitária para

políticas para com seu senhor.

ele.

Assim,

por

Dhuoda

serve-se

perceber

que

da

essa

Entendemos, assim, que Guilherme,

fragilidade poderia influenciar seu convívio

ao se tornar vassalo de Carlos, o Calvo,

social, a autora procurou redigir o Manual

estaria conservando a homenagem de boa

com o seguinte objetivo: “[...] desde la

fé, ou seja, estaria se comprometendo de

primera línea de este pequeño libro, hasta

corpo e alma a manter fidelidade para com

la última sílaba del mismo, reconoce que

71


Ana Paula dos Santos Viana

todo há sido escrito para tu salvación”

Obviamente, os homens do século

(DHUODA, 1995, p. 169), ou em outras

XXI não são os mesmos do século IX.

palavras “[...] para que sea leído como

Contudo, o equilíbrio e os princípios de

modelo de tu formación” (DHUODA, 1995,

humanidade

p. 51).

fundamentais para a organização de uma Observamos, com base nos autores

sociedade.

elencados, que, no contexto em tela, da

Com

e

coletividade

ainda

base

em

todos

a

respeito

do

são

esses

fidelidade devotada ao rei, Carlos, o Calvo,

ensinamentos

dependeria a existência física e moral dos

Manual, consideramos que a virtude da

homens.

fidelidade,

Por

isso,

ela

deu

tanta

entendida

como

teor

do

preceito

importância a ensinar ao filho que ele

educativo, é um meio para se desenvolver

deveria devotar respeito [e fidelidade] ao

a educação integral dos sujeitos. Nessa

pai, pois a prática dessa virtude lhe

perspectiva, podemos ensinar e aprender

proporcionaria a felicidade terrena e a

que o bem comum (os interesses coletivos)

benção divina. “[...] amar y ser fiel en todo a

é essencial para o desenvolvimento e a

tu señor y progenitor Bernardo [...] Tú, hijo,

organização da sociedade. Os homens, na

honra a tu padre, y reza continuamente por

perspectiva de Dhuoda e do pensamento

él, para que [...] puedas viver mucho

filosófico, precisam ser ensinados e, como

tiempo” 6. (DHUODA, 1995, p. 81). Esta

a própria autora ressalta, isso implica a

seria a unidade à qual Guilherme deveria

necessidade

aderir ao se apropriar da virtude da

pessoa mais experiente que os instrua em

fidelidade: ser fiel a Deus, ao pai e ao

todos os sentidos. Nesse processo, estão

senhor.

inclusos os valores morais, éticos, sociais e

Os homens que não aprendessem a ser

fiéis

ao

seu

senhor,

aos

da

intervenção

de

outra

os conhecimentos escolares.

seus

Essas reflexões levam-nos a pensar

pensamentos e às suas ações e não

nas questões e problemas educacionais da

conseguissem ter equilíbrio, agindo de

contemporaneidade. Isto não significa que

modo brutalizado e imprudente, trariam

estamos transpondo o debate desta mãe

prejuízos a si e aos seus.

do século IX para o século XXI, o que seria incoerente,

inapropriado

e

anacrônico.

Todavia, temos a convicção de que os 6

“[...] amar e ser fiel em tudo a seu senhor e progenitor Bernardo [...] Tu, filho, honra a teu pai, e reza continuamente por ele, para que [...] possas viver muito tempo”. (DHUODA, 1995, p. 81, tradução nossa).

exemplos e as formulações de autores de outros tempos históricos nos auxiliam a

72


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

aprender e a refletir. Desse modo, estudar

formação do nobre cristão é algo que deve

as experiências dos homens de outro

ser entendido num determinado tempo e

tempo constitui uma oportunidade para

espaço. A fidelidade, nesse sentido, foi o

refletir sobre nossos embates, na medida

fio condutor da análise dessa relação no

em que nos leva a pensar como estamos

tempo, pois, como a preocupação de

compreendendo

esses

Dhuoda era com a formação íntegra do ser

embates. Aprender, por sua vez, pressupõe

humano, ela mostra em seu Manual a

ensino, ou seja, auxilia-nos a ensinar ao

necessidade de os homens serem fieis em

outro o que é o ser humano, a identificar as

todas as instâncias. O ofício de educar não

relações que os homens estabelecem entre

pressupõe apenas o acúmulo do saber,

si e com o seu entorno.

mas abrange um processo essencial para a

Por

fim,

e

resolvendo

reiteramos

esta

constituição e o desenvolvimento do sujeito

pesquisa sobre a relação necessária entre

e, por conseguinte, da sociedade. Isso

fidelidade, educação e tempo histórico foi

demanda, do responsável pela educação,

realizada da perspectiva da história da

sabedoria para formar pessoas fiéis ao

educação.

conhecimento.

Ponderamos,

que

portanto,

que

tratar da importância da educação para a

Referências ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985. DHUODA. La Educación cristiana de mi hijo. Pamplona: Editora Eunate, 1995. GANSHOF, F. L. Que é feudalismo? Lisboa: Europa América, 1968. MAGNE, Augusto. O mais antigo documento da Língua Francesa: ensaios sobre a parte francesa dos Juramentos de 842. Petrópolis: Vozes, 1991. NUNES, Ruy. O dever da fidelidade no manual de Dhuoda. In: SOUZA, J. A. C. R. (Org.).

O reino e o sacerdócio: o pensamento político na Alta Idade Média. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. OLIVEIRA, T. Um olhar da História da Educação no Educar Medievo: um Diálogo, um Manual e uma Imagem. Revista Internacional d’Humanitatis, Barcelona, n. 16, p. 27-38, mai/ago 2009. Disponível em: <http://www.hottopos.com/rih16/tere.pdf >. Acesso em: 15 ago. 2014.

73


Ana Paula dos Santos Viana

VIANA, Ana Paula dos Santos. A virtude da fidelidade como preceito educativo em

Dhuoda. 167 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Maringá. Maringá, 2014.

74


ESTUDOS QUEER E ANTIGUIDADE: O CASO DOS GALLIDE CIBELE REPRESENTADOS POR MARCIAL Benedito Inácio Ribeiro Júnior 1 Resumo: O principal objetivo deste texto é apresentar uma reflexão sobre os corpos dos eunucos no Principado Romano, especificamente dos gallirepresentados nos epigramas de Marcial. Fruto de uma pesquisa, em nível de mestrado, que, calcada nos pressupostos metodológicos da análise crítica de discurso e nas propostas da queertheory, procura entender como os discursos literários produzidos em Roma entre os anos de 80 e 121 d. C. normatizou os corpos dos eunucos e como que os estes desestabilizaram ou reiteraram as normas de gênero.A análise desses dados vem mostrando que entender a Antiguidade Clássica somente em noções de homem/mulher, masculino/feminino pode ser redutor e excluir da narrativa histórica sujeitos que ultrapassam tais noções. Desse modo, este texto se divide em três tópicos: 1) apresentação da pesquisa, seus principais objetivos, suas fontes e seu ferramental teórico-metodológico; 2) exposição dos resultados parciais do estudo referentes aos escritos de Marcial e suas interlocuções com a historiografia sobre o tema e, por fim; 3) análise da representação dos galli na documentação epigramática. Palavras-chave: galli; história do corpo na antiguidade; estudos queer.

1Universidade

Estadual Paulista (UNESP-Assis), Bolsista CAPES

75


Benedito Inácio Ribeiro Júnior

Introdução Para

os

recaem sobre os nossos próprios corpos. O da

excerto firma uma necessidade, assim

sexualidade,

como Fernando Cândido da Silva também

gênero e corpo têm se tornado um campo

enunciou (SILVA, 2011), de um estudo do

profícuo de estudos. Isso se observa pela

passado que seja imbricado às demandas

publicação de livros e artigos, pelas teses e

do presente. Este texto pretende trabalhar

dissertações defendidas nos programas de

a

pós-graduação espalhados pelo país e

reunidos na obra Epigrammata, escritos por

também

colóquios

Marcial provavelmente entre os anos de 80

científicos. Não fugiu a essa assertiva o XII

e 104 d. C.,com o intuito de pensar a

Ciclo de Debates em História Antiga:

Antiguidade

Olhares do Corpo, organizado pelo LHIA e

erudição e do saber institucionalizado, mas

pelo IFCS e sediado na UFRJ, em

como uma forma de compreender

novembro de 2002. Os pesquisadores lá

historicizar nossas posturas diante do

reunidos demonstraram como a temática

corpo e da nossa própria subjetividade.

Antiguidade,

pesquisadores

temas

em

como

congressos

e

ainda desperta questões pertinentes para

partir

dessa

perspectiva

Clássica

para

os

textos

além

da e

Fruto dos resultados parciais de uma

abordagem das sociedades antigas, bem

pesquisa em nível de mestrado

como a variedade de perspectivas em que

reflexões que serão aqui apresentadas

o tema pode ser trabalhado. Ao publicarem

surgiram do estudo dos epigramas de

algumas das discussões lá acontecidas, os

Marcial por da AnáliseCrítica de Discurso 3

organizadores afirmaram:

e do ferramental teórico e conceitual dos

“Olhar para o corpo é procurar decifrar uma outra linguagem que fale da sociedade, de sua dinâmica, de seus conflitos e de suas mazelas. Um dos desafios do historiador da Antiguidade é

2

, as

estudos queer. Assim, apresentaremos primeiramente a pesquisa; depois faremos algumas considerações sobre as práticas

indagar, pesquisar, criticar e fazer nascer a História Antiga do diálogo entre o antigo e o moderno, ou, se preferir, entre antigos e modernos” (BUSTAMANTE, LESSA & THEML,

2Pesquisa intitulada Para além da heteronormatividade:

uma análise dos eunucos representados por Estácio,

2008, p. 7).

Marcial

Com essas colocações podemos entender

que

pensar

o

corpo

e

Suetônio

(Roma,

80-121

d.

C.).

desenvolvida junto ao Núcleo de Estudos Antigos e

na

Medievais (NEAM, UNESP-Assis), sob a orientação

Antiguidade exige um diálogo com o que

da dra. Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi, com

vivenciamos hoje, com as representações,

financiamento da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

as práticas e as relações de poder que

(CAPES). 3

A partir de agora referida somente como ACD.

76


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

de escrita, distribuição e consumo dos

os seres humanos enquanto homens e

textos de Marcial; e terminaremos com uma

mulheres, machos e fêmeas. (BUTLER,

análise das representações dos sacerdotes

2003, p. 23).

de Cibele encontradas em tais textos.

coerentes

Reconstruir malha discursiva que normalizava

os

corpos

dos

eunucos

e

“Para os corpos serem fazerem

sentido

[…]

é

necessário um sexo estável, expresso por um

gênero

estável,

que

é

definido

romanos é o principal objetivo da pesquisa.

oposicional e hierarquicamente por meio da

Para isso, foram escolhidas as Silvae, de

prática

Estácio; os epigramas reunidos na obra

heterossexualidade. ” (BUTLER, 2003, p.

Epigramatta, de Marcial; e a biografia de

261).

Nero, escrita por Suetônio. Devido à

indivíduos, o passado em termos de gênero

diversidade

sobre

é conferir uma identidade minimamente

eunucos contida nas obras, acredita-se que

estável ao modelo oposicional masculino-

elas tenham um potencial de relativizar e

feminino, sendo que a base para tal

questionar concepções sobre o passado

identificação

romano construídas por uma cultura e uma

anatômico.

historiografia heteronormativas.

confundem-se num ciclo de reificação que

de

representações

compulsória Logo,

entender

acaba Assim,

da

o

mundo,

sendo sexo

o e

os

sexo gênero

Aqui, para que se evite confusões ou

é possibilitado por uma visão de mundo e

mal entendidos, é necessário esclarecer

um conhecimento calcados no pressuposto

que

de uma heterossexualidade natural ou a-

quando

usa-se

o

termo

hetenormatividade tem-se em mente as

histórica.

reflexões de Judith Butler, a pensadora

Para a pesquisa, a figura do eunuco

mais influente no que nas duas últimas

surge como uma aposta política para

décadas chamou-se de queertheory. Para

desorganizar

ela, o conceito de heteronormatividade

gêneros,

remete à grade de inteligibilidade cultural

naturalidade

por meio da qual os corpos, gêneros e

também

desejos

são

naturalizados,

heteronormatividade. Com Michel Foucault

também

para

caracterizar

usando-o o

modelo

(1988)

a

estrutura

desarticulando da entendida percebemos

binária a

dos

noção

de

heterossexualidade, aqui que

a

como própria

discursivo/epistemológico hegemônico da

sexualidade possui sua historicidade, que

inteligibilidade do gênero. Ou seja: a forma

ela é um dispositivo que foi produzido na

como compreendemos, seja no âmbito

modernidade, com conceitos, discursos e

acadêmico-científico ou no senso comum,

elementos

bastante

específicos,

não

77


Benedito Inácio Ribeiro Júnior

possuindo

valor

epistemológico

para

romano tendem a ser heteronormativas.

sociedades

anteriores

XIX.

Propõe-se um olhar e uma metodologia

Segundo Thomas Lacqueur (2001), desde

queer, procurando vislumbrar diversidades

o II século a.C até o início da modernidade

e

há uma visão médica de que havia apenas

sociedade romana. Extinguir da análise

um sexo anatômico, mesmo havendo dois

histórica

corpos:

mulher

heterossexualidade é um dos intentos do

possuía um pênis invertido, mal formado,

estudo, pois, para Croucher (2005), a

que ficaria dentro do corpo; os ovários

preocupação dos estudos queer não é

equivaliam aos testículos e somente no

“homossexualizar” o passado ou difundir

século XIX é que se pensa num termo

discursos

próprio para designá-los em contraposição

heterossexualidade, mas sim problematizar

aos testículos (LAQUEUR, 2001, p. 17-19).

qualquer concepção heteronormativa em

De acordo com GertHekma (1995, p. 244)

relação ao passado. Assim, o ataque deve

o conceito de homossexual, definindo um

ser à heterossexualidade como regime

indivíduo com uma identidade, desejo e

político e como pressuposto para estudo do

práticas sexuais próprias só emerge em

passado

1869. Assim sendo, não é possível pensar

social/sexual.

interpretava-se

ao

século

que

a

em sexualidade dos romanos nos séculos I e

II,

nem

tampouco

em

homo

ou

multiplicidades o

de

olhar

naturalizante

de

e

existências

não

na

sobre

intolerância

enquanto

à

prática

De acordo com esta proposta, não se

considera

gênero

como

construto

heterossexualidade. Logo, quando aqui se

cultural sobre um sexo anatômico, mas

propõe um combate à heteronormatividade

gênero é entendido como performance,

- entendida como um regime que regula

como normas regulatórias que produzem e

corpos, gêneros e desejos, naturalizando o

materializam corpos dentro de uma lógica

sujeito heterossexual e taxando como

binária, oposicional e heteronormativa. Nas

anormal qualquer indivíduo que escape a

palavras

esse

regime

de

Butler,

“estes

esquemas

(homossexuais,

travestis,

regulatórios não são estruturas intemporais,

transgêneros,

drag-

mas critérios historicamente revisáveis que

queens/kings)- não se afirma que os

produzem e submetem os corpos que

romanos eram heteronormativos, pois suas

pesam” (2001, p. 168). Neste sentido, tais

concepções acerca do corpo e do sexo

normas

eram muito diferentes das nossas, mas sim

sexo/gênero/desejo em corpos e lhe dá o

que nossas interpretações sobre passado

efeito de naturalidade, de fisiologia e extra-

transexuais,

materializam

o

esquema

78


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

também

ocuparem o entre-lugar, os corpos dos galli

serão objetos deste textos: são elas que

são indispensáveis para desidentificar as

tornam

de

normas regulatórias pelas quais a diferença

reconhecimento e inteligibilidade somente

sexual é materializada. Em suma, não

dentro desta lógica de gênero (homem-

existiria homem ou mulher, mas efeitos de

mulher,

naturalização de corpos.

discursividade.

Estas

esses

normas

corpos

passíveis

masculino-feminino),

caracterizando-os

como

corpos

que

importam/pesam. Se

No que tange propriamente aos textos antigos analisados, recorre-se aos

este

sexo

possui

sua

métodos da ACD. Partindo das noções

historicidade e discursividade, logo ele não

foucaultianas sobre o discurso, Fairclough

existe em si, mas ele se dá pela construção

entende que ele é prática social que

do sujeito. Para isso, como qualquer outra

constrói sujeitos, objetos e conceitos:

forma de criação de identidades, o sujeito sexuado só emerge por meio de forças de exclusão

e

de

repúdio,

criando

exteriores/territórios para aqueles que não são sujeitos de uma sexualidade inteligível

“o discurso é um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de representação […] o discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado.” (2001, p. 90-

(BUTLER, 2001, p. 155-156). Assim, a

91).

aposta de Butler é justamente nesses

Com isso, Fairclough defende que o

corpos

que

são

como

discurso constrói as identidades sociais e

abjeção da norma heterossexual, que

as posições de sujeito, as relações sociais

burlam e, ao mesmo tempo, são o limite

entre as pessoas e os sistemas de

das identidades sexuais, denunciando a

pensamento e crença (Idem, p. 92). É

discursividade

elaborada assim o que autor denominou de

e

materializados

as

fissuras

da

performatividade de gênero (2003, p. 46;

concepção

2001, p. 155). Sugerimos então, seguindo

subdividindo a análise em três etapas: a

as observações de Judith Butler (2001, p.

prática

156), o conceito de desidentificação: os

construção e significação do mundo),

eunucos, por ocuparem este exterior de

prática discursiva (produção, distribuição e

abjeção do esquema masculino/homem-

consumo de discursos escritos ou falados)

feminino/mulher, podem desestabilizá-lo.

e o texto (escrito ou falado, uma forma

Por não estarem em nenhum dos polos

específica de apresentação dos discursos)

(macho ou fêmea), mas justamente por

(Idem, p. 102-131).

tridimensional

social

(relações

do

discurso,

humanas

de

79

a


Benedito Inácio Ribeiro Júnior

Então, a análise das fontes aqui

Marcial.

apontadas dá-se seguinte forma: 1) estudo

Marco Valério Marcial, nasceu por

das relações sociais e culturais, instituições,

volta de 39 d.C. na cidade de Bílbilis,

ideologias e hegemonias que compõem a

região

vida social dos autores; 2) as maneiras

formação de alto nível em letras. Mudou-se

pelas quais estes textos são produzidos,

para Roma na década de 60. De volta à

distribuídos

procurando

sua terra natal, faleceu entre 102 e 104

entender, como quer Fairclough (Idem, p.

(CITRONI, 2006, 873-874; PARRA, 2010, p.

115), a intertextualidade e a historicidade

64-68). Sua vida assemelha-se bastante

inerentes a estes processos; e, finalmente,

com

3) analisar os textos propriamente ditos,

sobrevivência em Roma com sua atividade

buscando

suas

literária, sendo “[...] essencialmente um

especificidades e estruturas, não visando a

cliente. Seus rendimentos não alcançam os

reconstituição dos significados que teriam

padrões

sido ali empregados, mas compreendendo

romanos. Assim, vive e sobrevive em

o texto como uma gama de sentidos

Roma como poeta e usufrui dos diversos

diversos,

favores

e

consumidos

compreender

sobrepostos,

contraditórios,

aberto a múltiplas leituras e que o sentido

da

a

atual

de

de

Espanha,

Estácio:

riqueza

obtidos

onde

mantém

estipulados

de

teve

seus

sua

pelos

patroni.”

(BIAZOTTO, 1993: p. 93).

depende não só da construção do texto,

De seus mais de 1500 epigramas,

mas também de suas interpretações (Idem,

foram selecionados aqui alguns dos que

p. 102-105). O estudo não compreende

tratam do objeto de estudo aqui proposto,

esses três aspectos como um esquema,

os galli. Dividido em quinze livros, os

mas como diretrizes que possibilitam a

epigramas

interpretação das fontes.

aproximadamente entre 80 e 102/104 e

de

epigramas: a prática discursiva

comportamentos sociais, valendo-se de

De acordo com Zélia de Almeida

linguagem realista, irônica e picante, ligada

Cardoso, “o estudo de uma literatura,

ao entretenimento e à diversão (BIAZOTTO,

portanto, deve ser precedido de uma coleta

1993, p. 46; CITRONI, 2006, 882). Seus

de informações sobre a época em que ela

poemas

nasceu e floresceu” (2003, p. IX). Desse

bastante elaborada da sociedade romana,

modo,

breves

retratando os mais diversos tipos de

considerações sobre os epigramas de

indivíduos: beberrões, gulosos, avarentos,

fará

trazem

variados

escritos

tratam

tópico

mais

foram

Escrita, publicação e distribuição dos

este

dos

Marcial

uma

temas

e

representação

80


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo Inicialmente

hipócritas, esposas devotadas ou não,

ajuda

de

seus

pertenciam ou quem, no caso específico de se tratar de uma inscrição funerária, ali repousava.

especialmente a família dos Sênecas. Em

Progressivamente,

80, encontra a oportunidade de publicar

qual descreve e louva os jogos promovidos pelo imperador. Em por volta de 85, publica os Xeniae os Apophoreta, destinado a representar e acompanhar as Saturnais e que hoje formam os livros XII e XIV. Nos próximos

anos

Marcial

publica

sucessivamente doze livros, levando o epigrama ao seu mais alto grau de perfeição, definindo de uma vez por todas as normas para o gênero. Dedicado à adulação,

depois

do

assassinato

de

Domiciano em 96 Marcial não vê mais possibilidades de se manter por meio da atividade literária e também não vê mais lugar para si em Roma. Volta à Bíbilis e publica seu último livro entre 101 e 102 (PIMENTEL, 2001, p. 9-15). Mas o gênero epigramático foi criado muito antes de Marcial elevá-lo à sua melhor elaboração. Ele surgiu na Grécia, no século VII a.C.

epigrama

foi

inscrito num monumento (PIMENTEL, 2001, p. 15).

Flaviano (o Coliseu) e ofereceu jogos que

ambiente que publica o Liberspetaculis, no

o

por meio do epitáfio poético ou do poema votivo

imperador Tito, que inaugurou o Anfiteatro

Foi neste

porém,

conquistando o terreno da literatura, sobretudo

seus poemas quando tem o apoio do

gente de todo o império.

em

dedicava ou a quem eram dedicados, a quem

conterrâneos,

duraram 100 dias, trazendo para Roma

inscrição

dados, de forma concisa e breve, sobre quem os

Ao chegar em Roma, Marcial contou a

uma

material duro, objecto ou monumento, e fornecia

“homossexuais”, exibicionistas, delatores. com

designava

Os primeiros epigramas literários foram atribuídos a Simónides de Ceo, entre os séculos VI e V a.C. Depois, autores como

Eurípides,

Platão,

Aristóteles,

Calímaco e Meleagro se enveredaram, uns mais, outros menos, pelos caminhos da escrita epigramática. Já no século III a.C. os temas se largam: fala-se do amor, das festas, do vinho, descreve-se objetos de arte, começa-se a trazer dedicatórias de amor ou desafeto. Em Roma, no final da República e início do Império, o cotidiano e o caráter anedótico e mordaz se juntam a essa miscelânea de temas, além de serem inclusos assuntos políticos. Na língua latina foram escritos por Catulo, Licínio Calvo, entre outros. Os versos já vão além do dístico elegíaco: passam pelo hexâmetro, o hendecassílabo falécio, o trímetro jâmbico (PIMENTEL, 2001, p. 15-19). Marcial, ao tomar contato com o gênero, transforma seus temas e sua forma. Representa todo tipo de indivíduo, cria um clima de cumplicidade em intimidade com o

81


Benedito Inácio Ribeiro Júnior

leitor e leva à perfeição a técnica do final

vendidos. (MARCIAL, 2001, p. 50-52).

inesperado. Na verdade, Marcial utiliza

Com as breves considerações sobre

todas as tendências criadas até o seu

a formação do gênero e

tempo,

um

características de Marcial e sua escrita,

representação crítica da vida no Império

este texto finalmente debruçar-se-á sobre a

Romano (PIMENTEL, 2001, 17-18).

documentação

cria

outras

e

desenvolve

O próprio Marcial, ao se defender

antiga

as

para

pensar

as

questões acima propostas. Os galli: religião, gênero e

das críticas de um tal Cláudio que o acusa de não ser um bom poeta, contrapõe seus

experiências corporais

epigramas ao galiambo, verso de seis pés

Na

sociedade

romana

imperial,

cantados pelos gallinos rituais de Cibele e

segundo Pedro Paulo Abreu Funari (2003,

Átis. Lê-se no epigrama 86, livro II:

p. 167-172), o corpo passa a ser um

[…] nunca uso a futilidade grega que o eco repete,

literárias, arquitetônicas e parietais devido

nem o elegante Átis me dita ogaliambo de débil delicadeza,

a processos de valorização do indivíduo e

nem por isso, Clássico, sou um mau poeta.

do individualismo ocorridos pelo impacto

(MARCIAL, 2001, p. 125).

No primeiro livro, o poeta reúne a boa dose de informações sobre como publicava e fazia circular seus epigramas. Logo

elemento importante nas representações

no

apresenta

primeiro e

se

epigrama louva,

ele

dizendo

se ser

conhecido já no mundo todo.No epigrama seguinte,

faz

epigramas.

propaganda Estes

codex(pergaminho) uolumen(papiro)

eram e

e

que

seus em

não

de

anuncia

seu

bibliopola/librarius, uma espécie de livreiro que comprava os manuscritos e vendia cópias dele, sem haver lucro para o autor em relação à venda de cada cópia. No epigrama 3 ele faz referência à uma tenda no bairro de Argileto, onde seus livros eram

causado pelas colonizações e pelo fim do regime republicano (século I a.C.). Mas o vocábulo corpo, em latim

corpus, tem suas raízes em momento anterior.

no

grego,

língua

que

influenciou em demasia a literatura e o vocabulário latinos, havia uma separação entre o corpo em sua materialidade, soma, e a alma, todemas. Interessante é notar que o vocábulo soma gerou o conceito de “registro”

ou

representação,

somatídzo(FUNARI, 2003, p. 167). No que tange

ao

latim,

corpus

significa

a

materialidade do corpo e também se opõe ao animus ou anima que podem significar alma/espírito. Se nos debruçarmos sobre o sânscrito e o védico, línguas que formam o

82


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

latim falado no Império e influenciam a

deusa Cibele:

construção do vocábulo corpus, vemos que

Embora sejas mais efeminado que um eunuco frouxo,

a palavra pode se relacionar à ação e ao

e mais mole que o amante de Celenas [Átis],

fazer, uma vez que a tradução literal de

porquem uiva o Galo castrado que a grande Mãe

klip(sânscrito) é fazer, e de krpa(védico)é

[Cibele] inspira,[…] Se tens licença para te sentares nos bancos dos

forma, corpo ou beleza (FUNARI, 2003, p.

cavaleiros,

167). Ainda segundo Funari, também é

hei-de ver, Dídimo: não a tens para os dos maridos

importante levar em conta que corpus pode significar também um conjunto de livros (corpus ominisromani iuris), um grupo de pessoas

ou

uma

corporação

(corpus

fabrorum et nauiculorum), ou a parte principal de algo (corpus orationisenervatur) (Idem, p. 169). Assim, corpo/corpus

percebemos pode

significar

que tanto

a

materialidade quanto a representação de tal materialidade. Podemos considerar que essas concepções estão presentes na raiz das interpretações do corpo na sociedade greco-romana. Tido o cuidado de mapear as formas pelas quais o vocábulo circulava em Roma, é hora de entrarmos na análise da representação dos corpos dos galli feitas por Marcial. No

Livro

V,

epigrama

41,

percebemos que o cidadão romano Dídimo tem sua masculinidade desqualificada e para isso o epigramatista se vale da figura

(MARCIAL, 2000, p. 81).

Vê-se nesse trecho que Dídimo é relacionado à efeminação e à moleza ou falta de virilidade, ao mesmo tempo que o autor nos indica que ele não tem poder para tornar-se marido. Nesse sentido, compreende-se que Dídimo não pode cumprir a função de pater famílias, não podendo fornecer herdeiros ou cidadãos que futuramente seriam responsáveis pela manutenção da urbs. Este elemento é essencial para se pensar como os romanos vinculavam as ideias de cidadania, corpo e masculinidade: somente um cidadão pleno poderia gozar de seus direitos políticos e em

Roma

a

cidadania

se

vinculava

fortemente ao ser homem (FEITOSA, 2008, p. 119-135). Logo, Marcial faz Dídimo transitar entre o eunuco e a ordem equestre, permitindo-nos pensar o corpo do eunuco como uma figura que serve de referência para se pensar o masculino em

do eunuco, de Átis 4 e dos sacerdotes da deusa castra Átis para que ele sirva somente a ela. 4. Humano amante da deusa Cibele. Com ciúmes e

Dessa forma, os sacerdotes culto de Cibele também

medo de perder seu namorado para outra humana, a

se castram para servir à deusa. Estes são os galli.

83


Benedito Inácio Ribeiro Júnior Que tens que ver, ó galo Bético, com sorvedoiros

Roma, delimitando-a como o extremo limite

de mulher?

do que seria ser homem ou mulher. Mas

Esta língua deve lamber, a meio, os homens.

também, não podemos afirmar que Dídimo

Por que razão te foi cortado, com um caco de Samos, o membro,

é homem, uma vez que não pode cumprir

se tão agradável te era, Bético, a rata?

com sua obrigação de marido, provedor da

O que se te deve castrar é a cabeça: embora,

prole romana e um cidadão como os seus

pelo membro, sejas galo, frustras, no entanto, os ritos de Cibele: és homem

pares.

pela boca.

Outro epigrama (45, Livro II) de

(MARCIAL, 2001, p. 159).

Marcial que pode nos ajudar em tal reflexão é o seguinte: Cortaste o teu membro, que não endireitava, Glipto. Pateta, para que precisavas do ferro? Já eras

Aqui Marcial também coloca a figura do gallusBético - provável alusão à região da Bética, na Hispânia – e o seu corpo

eunuco.

castrado a serviço da construção discursiva

(MARCIAL, 2001, p. 113.)

de

Podemos

interpretar

que

aqui

também o sexo/gênero é indefinido ou não identificado. O homem debochado pelas palavras de Marcial decide amputar sua genitália mesmo já não atendendo ao pressuposto de virilidade que o homem deveria carregar. Não havia necessidade de tornar-se eunuco pois Glipto não usava seu pênis para aquilo que o autor julgava necessário. Isso nos faz pensar que havia sim a possibilidade, como defende Renato Pinto,do homem intervir em seu corpo para poder habitar outras possibilidades de existência, não se localizando nas noções polarizadas

de

macho-fêmea/masculino-

feminino (PINTO, 2011, p. 189-201). O 81º epigrama do Livro III nos fornece

outro

gallipodem gênero:

exemplo

transgredir

de as

como

os

normas

de

uma

imagem

de

homem.

Ao

desqualificar moralmente o personagem praticar

do

sexo

oral

em

mulheres

(cunnumlingere), o que seria marca de passividade em relação às mulheres, o epigramatista

coloca

implicitamente

a

imagem do homem ativo como exemplo. Além disso, cabe ressaltar no segundo verso é invocada também a possibilidade de Bético mantar práticas homoeróticas. A coerência

exigida

entre

ser

homem

(portador do órgão genital) e o comando (ser ativo nas relações sociais, políticas e sexuais) se fissura pois, quando se vê sem a possibilidade de penetrar com o pênis, recorre à prática da cunilíngua. Para pensar as questões religiosas no Principado Romano, os escritos de Marcial também se mostram como uma fonte propícia. Encontramos no Livro III o epigrama 24 que narra o sacrifício de um

84


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

bode a Baco feito por um camponês, sob a

Por fim, selecionamos o epigrama 2

tutela de um arúspice etrusco. Quando, por

do Livro IX, em que Marcial narra as

sugestão do arúspice, o camponês corta os

aventuras

testículos do animal aparece nele uma

desqualificando-o por se entregar demais

hérnia, podendo significar um mau agouro.

às amantes em detrimento das suas

No

obrigações com os clientes e os amigos.

mesmo

momento

o

camponês

a

arranca acreditando ser isso que prescrevia os rituais antigos. O epigrama termina assim: […] Assim, tu, que há pouco eras um arúspice etrusco, és agora um

amorosas

de

Lupo,

No final deste epigrama, lê-se: […] Anda agora, Cibele, e mutila os maricas desgraçados,este sim, este vergalho é que merecia as tuas facas. (MARCIAL, 2001, p. 101).

Para Parra, este epigrama liga o

[arúspice galo, já que, ao degolares um bode, te tornaste tu

culto de Cibele e seus sacerdotes às

próprio um bode castrado.

pessoas desregradas e sem nenhum

(MARCIAL, 2001, p. 138).

A religião romana centrava-se nos ritos e o bom relacionamento entre os deuses dependiam da perfeita execução deles (PARRA, 2010; SCHEID, 1991). Marcial pode nos informar em tal excerto que havia uma ligação entre o exato cumprimento dos rituais e as formas pelas quais

se

legitimava/identificava

um

sacerdote da religião pública romana. Ao proceder de maneira indevida, o arúspice é “rebaixado” ao status de galli. Neste caso, o corpo do eunuco é utilizado não para definição do que seria o masculino ou o feminino em Roma, uma questão de gênero. O corpo do eunuco, representado aqui pelo galli, também serve de exterior constitutivo para delimitar o que seria a própria religião oficial ou o que seria papel de um sacerdote.

prestígio

social

Concordamos

(2010, com

p.

108).

Parra

e

acrescentamos: Marcial constrói aí uma íntima ligação entre o corpo e as atitudes sociais e públicas de um romano. Aqui o corpo do gallus é utilizado também como exemplo de vergonha e que aqueles que não cumpriam com suas funções sociais deveriam

ser

castigados

com

a

emasculação. Considerações finais Retomando o que se propôs na introdução deste paper, percebemos que a História de Roma precisa ser revisitada, olhada a partir das novas questões que o presente propõe. Aqui, fizemos um breve exercício nesse sentido. Pudemos notar que articular as propostas da ACD com as dos estudos

85


Benedito Inácio Ribeiro Júnior

queerresulta numa outra forma de perceber

marginalizadas,

os corpos abjetos representados pelos

discurso que as transformas em anômalas,

epigramas de Marcial. Vemos que os galli

abjetas e quase que sujas. Entender tais

tem seus corpos usados para reafirmar os

discursos

preceitos da identidade masculina, dos

própria ideia que fazemos dos romanos e

cidadãos romanos e da religião pública.

da religião romana, pois é também às

Estes indivíduos, tão desqualificados pela

custas dos corpos dos eunucos que eles

pena de Marcial, expõe as construções

também se criam enquanto sujeitos. Olhar

ideológicas e discursivas que sustentam

para a antiguidade, tão distante do nosso

formas de identidade e, consequentemente,

tempo e das nossas experiências, pode ser

de exclusão.

um exercício para pensarmos o que nos

Para

pensarmos

um

compreender

a

constrói e forma enquanto sujeitos, pensar

antiguidade, como apontamos no início, a

que discursos e relações de poder nos

partir dos pressupostos de Bustamante,

criam

Lessa e Theml (2003) precisamos nos

travestis, gays, lésbicas, bissexuais ou

voltar

assexuados.

essa

corpo

permite-nos

por

na

para

o

elaboradas

experiências

enquanto

homens,

mulheres,

Referências: BIAZOTTO, Renata Lopes. O viver urbano em Roma: uma leitura de Plínio o Jovem e Marcial. Dissertação (Mestrado em História). Unesp – Faculdade de Ciências e Letras de Assis. 1993. 283 f. BUSTAMANTE,

Regina

Maria

da

Cunha;

LESSA,

Fábio

de

Souza;

THEML,

Neyde(org.).Olhares do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. 208 p. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 236 p. ______. “Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do ‘sexo’”. In: LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica. 2001. pp. 151-172. CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura latina. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 220 p. CITRONI, Mário. et. al. Literatura de Roma Antiga. Tradução de Margarida Miranda, Isaías Hipólito e Walter de Souza Medeiros. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2006. 1286 p.

86


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

CROUCHER, Karina. “QueeryngNearEasternArchaeology”. In: World Archaeology. Vol. 37, nº 4. Dec/2005. pp. 610-620. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/40025096. Acessado em 03/10/2013, as 13h26min. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social.Coordenadora da tradução, revisão técnica e prefácio: Izabel Magalhães. Brasília: Editora da UnB, 2001. 320p FEITOSA, Lourdes Conde. 'Gênero e sexualidade no mundo romano: a antiguidade em nossos dias. História: questões e debates. Ano 25, nº 48/49. Curitiba – PR: Editora da UFPR, 2008. p.119-135. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I:a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 7 ed. Rio de Janeiro: edições Graal, 1988. 149 p. FUNARI, Pedro Abreu. 'Representações do corpo nas paredes pompeianas'. In: BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha; LESSA, Fábio de Souza; THEML, Neyde (org.).

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87


Benedito Inácio Ribeiro Júnior

(Doutorado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp: Campinas – SP, 2011. 254 f. SCHEID, John. 'O sacerdote'. In: GIARDINA, Andrea (Org.). O homem romano. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Editorial Presença: Lisboa, 1991. p. 49-72. SILVA, Fernando Cândido da. “Homossexualidade na Bíblia Hebraica ou uma historiografia bicha?”. In: Trilhas da História. Três Lagoas, v. 1, nº 1: jul-nov 2011. p. 9-22.

88


O PAPEL HISTÓRICO DA SUMA CONTRA OS GENTIOS DA FILOSOFIA MEDIEVAL Camila Ezídio 1 Resumo O objetivo do presente texto é apresentar uma pequena parte de uma pesquisa para a obtenção do título de mestre. O foco principal da pesquisa é a primeira via que demonstra a existência de Deus em Tomás de Aquino; no entanto, houve a necessidade de uma investigação de caráter histórico – filosófico em relação à Suma Contra os Gentios, obra de Tomás que traz não só a primeira via, mas as cinco vias que demonstram a existência de Deus que compõe um importante projeto na filosofia de Tomás. O presente texto traz algumas características da SCG, seus objetivos, seu plano geral, bem como o papel histórico que essa obra teve no século XIII. Lembrando que toda a análise tem como ponto de partida a primeira via, é a partir dela que nosso olhar é lançado para esse grande e rico horizonte que é a SCG. Palavras-chave: Suma; Tomás; Filosofia.

1PGF/

UEM/CAPES

89


Camila Ezídio

O início da escrita da Suma Contra

os Gentios se deu por volta de 1259, antes

cada questão, todavia a sua estrutura é de algo linear e não dialético. Tomás

de Tomás deixar Paris para ir a Itália; ele

distingue

na

SCG,

as

completou a obra em Oriveto em 1265.

verdades sobre Deus e as criaturas que

Segundo Anthony Kenny o título da SCG

podem

traduzido do latim seria algo como, Sinopse

independentes de qualquer revelação e

contra

inglês

aquelas verdades que podem ser provadas

traduziríamos como Sobre a Verdade da Fé

pela autoridade bíblica ou por algum

Católica. A obra é um manual missionário

ensinamento da igreja, vejamos

os

Incrédulos,

do

way in which rational creatures are to find their happiness in God. 2

na África do Norte. A SCG se diferencia de

Como diz Frei Carlos Josaphat em sua obra, Paradigma Teológico de Tomás

de Aquino, A Suma, o novo modo de sintetizar, construir e

podem ser aceitas por pensadores judeus e muçulmanos,

pois

as

mesmas

transmitir as doutrinas vem então irmanar-se

são

modestamente com as universidades e as catedrais, formando um conjunto que se alteia

apoiadas no pensamento filosófico de

como vistosa cordilheira dos grandes símbolos

Aristóteles. A SCG não é uma obra da teologia revelada, mas sim da teologia natural, e por sua vez a teologia natural é um ramo da filosofia. É importante destacar que nos três livros da SCG as autoridades bíblicas aparecem apenas como exemplo

razão

production by God and the third book is about the

evangelizar os não Cristãos na Espanha e

premissas filosóficas que ali aparecem

pela

second is about the created world and its

Penaforte que queria uma obra para

doutrina Cristã, mas pelo fato de que as

estabelecidas

The first book is about the nature of God, the

que foi escrito a pedido de Raimundo de

outras obras de Tomás, não em sua

ser

culturais.

3

A universidade surgida no século XIII estava em seu período de ascensão, de forma que era necessária uma obra que abrangesse diversas correntes teóricas da

ou ilustrações e não como premissas ou argumentos. Há outro fator que diferencia esta obra de outras, ela não tem a forma

2O

primeiro livro é sobre a natureza de Deus, o segundo é

sobre o mundo criado e sua produção por Deus e o terceiro livro é sobre o caminho pelo qual as criaturas

nem de um comentário e nem de uma

racionais encontram sua felicidade em Deus. KENNY,

Suma

Anthony. Aquinas on Being, New York: Oxford University

disputa

escolástica

como

a

Teológica; sua estrutura é como a de uma obra moderna, ela tem alguma disputa em

Press, 2002; pág. 82, tradução nossa. 3

JOSAPHAT, Carlos. Paradigma teológico de Tomás de

Aquino: sabedoria e arte de questionar, verificar, debater e dialogar: chaves de leitura da Suma de teologia. São Paulo: Paulus, 2012; pág. 24.

90


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

época;

assim

nasce

as

Sumas,

na

universidade e para a universidade.

que possibilitou o desenvolvimento de diversas correntes teóricas.

As teses de Tomás com alicerce na filosofia

de

questionada

Aristóteles,

sendo

Foram introduzidas duas correntes

esta

no panorama do ensino da época:

que

primeira

pela

formam

o

chamar

de

filosofia

tomista,

disseminada pela patrística e a segunda a

apresentada na SCG; uma filosofia que por

antiguidade clássica advinda da entrada

meio do método de escrita que Tomás

das obras dos gregos no mundo medieval.

utilizou na SCG, as quaestio disputata

Temos assim a teologia e a filosofia cada

(questões disputadas) refletem um pouco

uma do seu lado, representadas mais

da história do século XIII. Neste período no

fortemente

qual a SCG foi escrita temos um grande

Aristotelismo. Em 1255 houve um episódio

acontecimento,

das

marcante no cenário da universidade, o

universidades; a universidade de Paris era

Corpus Aristotelicum (Corpo Aristotélico) foi

destaque

introduzido como texto didático nos cursos.

podemos

o

como

surgimento

modelo

para

outras

delas

foi

pelo

a

cultura

a

Agostinismo

cristã

e

o

A convivência entre teologia e filosofia dentro do

instituições e foi nesse ambiente que

mesmo espaço universitário descreve, desta sorte,

estava Tomás. Um ambiente de grande

o rumo de um primeiro roteiro doutrinal do século

ascensão e mudança, que muitas vezes é

XIII.

4

ocultado pelo caráter sombrio que o século

De que maneira teologia e filosofia

XIII traz consigo. Todavia, segundo o padre

conviviam em mesmo solo? Segundo Lima

Henrique Cláudio de Lima Vaz na obra

Vaz há três respostas para essa questão: a

Raízes da Modernidade, há pontos muito

primeira é a de que alguns viam a filosofia

importantes que devem ser destacados

como um saber autônomo, seguindo assim

frente ao cenário medieval; o primeiro deles

os parâmetros da antiguidade; a segunda

se refere a uma questão lingüística, pois o

resposta é a de que a filosofia era um

latim era a língua usada na universidade

saber

européia, língua na qual foram escritas as

teologia como pensava Agostinho; e a

obras de Tomás. O segundo ponto que

terceira é a via intermediária que foi

deve ser destacado neste período é que as

proposta por Tomás de Aquino, que em

universidades

resumo

medievais

representavam

mais que um local de estudo, elas tinham

subordinado

escreve

sua

(instrumento)

obra

com

da

este

pensamento: para ele tanto filosofia como

uma estrutura institucional, uma autonomia 4

VAZ, Henrique C. de Lima. Raízes da Modernidade, São

Paulo, Edições Loyola, 2002; pág. 42.

91


Camila Ezídio

teologia fazem uso da razão, todavia deve

escrita por Dom Odilon Moura, que nos

se admitir que Deus é fonte de verdade em

ajuda a compreender um pouco mais sobre

ambos os saberes.

esta obra, que junto com a Suma Teológica

Para Frei Josaphat Tomás é

podem ser consideradas as maiores obras

(...) o homem síntese das grandes tendências e dos movimentos mais marcantes da inteligência medieval, estão em marcha pelas vias do diálogo e

da filosofia de Tomás de Aquino. Segundo D. Odilon a SCG é, (...)

do debate, questionando o presente e passado. 5

Tomás

sintetizou

em

sua

as conclusões inferidas pela razão.

introduziu

os

questionamentos

e

objeções levantadas por seus alunos como base para a aula, a fim de iniciar um debate. Este fato se reflete na escrita das Sumas, as quais passaram de Sumas de Sentenças, ou seja, de comentários de questões bíblicas para Sumas de Teologia; teologia que com o estatuto de ciência dado por Tomás, abrangia diversas outras áreas do conhecimento, formando assim um novo estilo de escrita. Na tradução brasileira da Suma

6

O Plano da Obra

teológico. É importante considerar também

que

não

critério científico são analisados e deles tirados

todos em uma obra filosófica com alicerce

explicar o texto foi aprimorado pelo filósofo

teológica,

principais mistérios da fé com profundeza e

os pensadores judeus e árabes, unindo

ensinar; o antigo método de ler, comentar e

formalmente

usados como instrumentos do saber teológico, os

Aristóteles, Agostinho, o Neoplatonismo e

de Paris seguia uma nova maneira de

obra

obstante a ênfase dada aos temas filosóficos

obra,

que Tomás como mestre na universidade

uma

Na obra Toward understanding Saint

Thomas, M. Chenu discorre sobre vários aspectos referentes à construção da SCG e a argumentação que a compõe. Segundo Chenu a SCG se diferencia das outras obras de Tomás por não ser uma obra que depende do ensino, ou melhor, ela não é uma obra que é resultado daquilo que acontecia

na

universidade.

A

argumentação tem o mesmo caráter de tantas outras obras de Tomás, não fugindo daquilo

que

era

próprio

do

período

medieval, no entanto ela foi escrita com uma finalidade diferente, no caso, a pedido de São Raimundo de Penaforte sendo assim uma iniciativa pessoal de Tomás.

Contra os Gentios temos uma introdução 6

TOMÁS DE AQUINO, Suma Contra os Gentios, I. Trad.

JOSAPHAT, Carlos, OP. Paradigma teológico de Tomás

D. Odilon Moura e D. Ludgero Jaspers , rev. Luis Alberto

de Aquino: sabedoria e arte de questionar, verificar,

de Boni. Porto Alegre, Escola Superior de Teologia de

debater e dialogar: chaves de leitura da Suma de

Brindes: Sulina; Caxias do Sul, Universidade de Caxias do

Teologia, pág. 42.

Sul, 1990; introd., pág. 3.

5

92


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo The problem is, therefore, to discover these ends and methods in order to enter into the perspective of the author. Who are the gentiles against whom

medieval, a SCG traz uma doutrina que se

Saint Thomas writes? To what readers does he

fez histórica e que se fez da história

address himself against them? For the sake of

daquele período.

what cause and of what object?

7

Diante dos problemas postos acima temos ainda um outro, a SCG seria uma obra de caráter apologético, filosófico ou teológico? Como foi dito Tomás escreveu a SCG a pedido de Raimundo de Penaforte, pois diante da invasão dos Mouros na Espanha ele sentiu-se amedrontado com a conversão ao Islamismo; pediu então a Tomás que fizesse uma obra a fim de formar os missionários com as armas intelectuais necessárias para a discussão com os infiéis. Essas informações advêm de um dominicano chamado Peter Marsílio, segundo Chenu não se sabe se as mesmas são precisas, no entanto o fato é que a SCG foi escrita na metade do século XIII em um momento de confronto entre o Cristianismo e o Islamismo, assim a obra de Tomás é fonte de um momento histórico, a expressão em forma de escrita 7

daquilo que foi um marco no período

O problema é, portanto, descobrir os fins e métodos

No

momento

em

que

Tomás

escreveu a SCG os pensadores Cristãos estavam preocupados com uma importante questão

dentro

da

universidade,

a

introdução das obras de Aristóteles nos cursos. O problema deste acontecimento que marca o século XIII é que houve sérias divergências

na

interpretação

dessas

obras, principalmente na tradução feita pelos filósofos Árabes. Por um lado este fato criou uma situação complicada para os Cristãos, mas por outro, com as obras de Aristóteles foi possível uma visão científica do universo independente daquela que constava na bíblia. Mediante

todos

estes

acontecimentos Tomás escreve sua Suma

Contra os Gentios. Por sua vez, quem podemos

entender

como

Gentios?

Segundo o padre Orlando Vilela “gentiles queria dizer errantes, ou seja, os pagãos, os judeus, os muçulmanos, os heréticos, todos

presentes

e

ativos

no

clima

para entrar na perspectiva do autor no ponto de vista do

intelectual da época.” 8 Assim também para

autor. Quem são os gentios contra os quais escreve São

Chenu a SCG

Tomás? O que ele faz para dirigir os leitores contra eles?

missionários frente ao Islamismo, todavia, a

Por questão de que causa e de qual objeto? CHENU, Marie Dominique, OP. Toward understanding Saint

é um livro para os

obra não tem apenas caráter de um manual

Thomas. Translated by rev. Albert M. Landry, O.P. and VILELA, Orlando. Tomás de Aquino, Opera Omnia. Belo

Dominic Hughes, O.P. Henry Regnery Company, 1964;

8

pág. 288, tradução nossa.

Horizonte: FUMARC\PUCMG,1984; pág. 101.

93


Camila Ezídio

de instruções, ela também carrega o intuito

mediante o fato de que a teologia é uma

de dirigir-se a elite da época. Isso porque o

ciência que permite o ‘acolhimento’ dos

método como Tomás a escreveu dirige-se

argumentos racionais. Tomás assume a

a universidade, a pessoas instruídas que

tarefa de partindo daquilo que a fé católica

tinham condições de estarem inseridas no

professa, discutir o que se opõe a ela.

ensino da época. A SCG foi fruto do que

Havia a necessidade de que SCG

estava acontecendo fora e também dentro

fosse escrita no momento em que os

da universidade, já que ela carrega uma

cristãos avançavam na conquista de terras

interpretação

ocupadas

diferente

das

daquela

obras feita

Aristotélicas

pelos

pelos

árabes

na

península

filósofos

Ibérica; a igreja precisava converter os não-

averroístas; este é um dos pontos que

cristãos ou ao menos refutar as objeções

Tomás visa, refutar as teses levantas pelo

que os árabes apresentavam a fé cristã.

averroísmo; mas não só este até porque a

Deixando claro que Tomás não apresenta

crise em relação à tradução em latim pelos

nada em suas obras que favoreça as

averroístas só aconteceu depois; dessa

Cruzadas. A SCG é escrita a pedido de

maneira todos os pagãos, judeus, hereges

São Raimundo a fim de preparar os

são de alguma forma censurados na SCG.

dominicanos para a missão de evangelizar

Para tanto a obra vai além de um manual

os gentios que como dissemos eram

missionário,

judeus, muçulmanos e todos aqueles que

It offers itself as a defense of the entire body of Christian thought, confronted with the scientific Greco Arabic conception of the universe hence forth revealed to the west. The Summa is an apologetic theology. 9

Para Chenu a SCG é uma obra teológica

baseada

em

argumentos

racionais que podem ser reconhecidos exclusivamente pela razão na discussão com os não - cristãos. E isso é possível

apresentavam argumentos contrários à fé cristã, ou seja, a obra tinha também um caráter didático e explicativo. Um dos fatos relevantes do século XIII dentro das universidades e que marca consequentemente as obras de Tomás foi a revisão do pensamento de Agostinho e a introdução das obras Aristotélicas para estudo nos cursos. O tomismo surge exatamente quando Tomás analisa ambos

9

Ela oferece-se como uma defesa do corpo inteiro do

pensamento cristão, confrontado com a concepção

os pensadores, Aristóteles e Agostinho

científica Greco Árabe do universo, portanto revelada pelo

construindo um pensamento a partir da

ocidente. A Summa é uma teologia apologética. CHENU,

síntese da filosofia de ambos. Porém, essa

Marie Dominique, OP. Toward understanding Saint

síntese não ocorre de um momento para o

Thomas, pág.292, tradução nossa.

94


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

outro, mas por força de uma necessidade.

mudança

As obras de Aristóteles haviam sido aceitas

Gauthier concluir que essa mudança ocorre

dentro da universidade, porém com a

quando Tomás deixa Paris e vai para a

tradução dos árabes, que as deturpavam

Itália.

em seu conteúdo o que fez com que

capítulos do Livro I da SCG em Paris antes

começassem a serem proibidas. Tomás viu

do verão de 1259, já na Itália em 1260

a necessidade de uma nova tradução das

revisou estes capítulos e escreveu os

obras Aristotélicas e pediu a Guilherme de

outros três livros que estavam concluídos

Moerbeke que a fizesse; tendo isso em

por volta de 1265; confirmação disso é que

mãos comentou as obras de Aristóteles e

Tomás remete-se a SCG em várias obras

fez uso das mesmas na construção de

que foram escritas após esta data.

seus argumentos em ambas as Sumas.

de

pergaminho,

o

que

faz

Assim Tomás teria redigido 53

O título original da SCG reflete seu

Segundo D. Odilon a SCG foi escrita

caráter apologético, Incipt Liber de Veritate

frente a um clima de polêmica no meio

Catholicae Fidei Contra Errores Infidelium

filosófico da época, pois os averroístas

(Livro da verdade da Fé Católica Contra os

como já dissemos estavam interpretando

Erros dos Infiéis). Tomás teve diversas

as obras de Aristóteles e também as de

influências

Agostinho de maneira errônea; São Tomás

autoridades da igreja e da filosofia, como

nas páginas da SCG apresentou de uma

também a sagrada escritura. (...)

maneira crítica a sua interpretação de

constitui

uma

as

ciência

porém neste trabalho racional poderá haver influxo dos dons do Espírito Santo. 10

Jean Pierre Torrell nos apresenta em sua obra Iniciação a Santo Tomás de

Aquino uma introdução à Suma contra os Gentios com a visão de vários pensadores exemplo,

Teologia

desde

princípios revelados por Deus. Acidentalmente,

sua própria filosofia.

por

a

escreve-la,

essencialmente obra da razão natural, partindo dos

ambas as filosofias, dando assim forma à

como,

para

René

Antonie

Gauthier, que analisa a SCG considerando

Algumas datas para a escrita da SCG

citadas

acima

podem

ser

consideradas, mas de nada podemos ter absoluta

certeza.

em

relação

ao

conteúdo da SCG podemos notar que, De início, na leitura da SCG, verifica-se que

que a mesma tem seu início escrito no

Santo Tomás, nos livros I, II, III, estuda os dados

mesmo pergaminho e com a mesma tinta

do conhecimento da razão natural no tocante a Deus e as suas obras. No livro IV, analisa os

parisiense com a qual foi escrita outra obra de Tomás intitulada o Super Boetium e que somente a partir do fólio 15 é notada a

10

TOMÁS DE AQUINO, Suma Contra os Gentios, I.

Introdução, pág. 10.

95


Camila Ezídio dados da fé, dos mistérios da trindade, da encarnação, dos sacramentos e da vida eterna. A perspectiva da obra é, pois, teocêntrica.

11

A SCG é obra que retrata a sua filosofia que se ergue no alicerce da teologia trazendo consigo o grande objetivo de ensinar aqueles que iriam ensinar a outros. A SCG é mais que uma obra de caráter missionário e evangelizador, sua raiz é de uma obra apologética, Tomás a construiu tendo o objetivo de mostrar por meio de argumentos apoiados em diversas autoridades

da

filosofia

e

da

igreja

verdades da doutrina cristã para os não cristãos, assim a SCG traz a tona uma

milagres. A SCG é uma obra construída a fim de apresentar aquilo que deveria ser ensinado

meio de razões demonstrativas, tentando convencer o adversário não por meio da sua argumentação, mas resolvendo os argumentos que ele (adversário) propõe contra a verdade. É claro que aquilo que ultrapassa a razão não se pode conhecer por meio de argumentos demonstrativos, somente por meio da revelação, entretanto (...) com o objetivo de esclarecer essa verdade, podemos, todavia propor certos argumentos por verossimilhança, nos quais a fé dos fiéis pode se exercitar e se apoiar, sem que sejam de natureza convencer os adversários.

desde cartas, comentários e

questões, diante disso a SCG pode ser considerada

uma Por

obra

discutir

questões

filosófica nos

filosóficas

ou

primeiros a

SCG

parece ser uma obra de filosofia, no entanto se a olharmos como um todo vemos o caráter apologético de uma obra de teologia. Segundo D. Odilon, São Tomás trouxe para a SCG textos da sagrada escritura a fim de compor sua argumentação sobre temas ligados a fé cristã

como

pecado,

graça

divina

e

DE AQUINO, Suma Contra os Gentios, I.

Introdução, pág. 12 e 13.

12

Em relação ao estilo de escrita de Tomás podemos perceber que ele usa palavras que expressam a verdade das coisas, porém não de uma forma pessoal, pelo contrário, a verdade exposta por Tomás é algo que o próprio leitor vai acompanhando passo – a – passo; Tomás tenta levar o seu leitor à conclusões a partir de sua argumentação; assim temos a confirmação de que a SCG é uma obra com seu caráter apologético por tratar de temas referentes a fé cristã, mas isso não

12 11TOMÁS

capítulos

Torrel, Tomás manifesta a verdade por

Tomás escreve em diversos gêneros

capítulos

256

refletindo assim o título da obra. Segundo

na teologia.

teológica?

infiéis;

contestam erros e 207 expõe a fé cristã,

construção baseada na lógica, na filosofia e

literários

aos

TORRELL, Jean Pierre. Iniciação a Santo Tomás de

Aquino, sua pessoa e obra. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo, Edições Loyola, 1999; pág. 127.

96


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

anula

seu

caráter

didático\reflexivo

também fora dela, já que a mesma era um

direcionado aos missionários. Para Chenu,

espaço institucionalizado que influía na

Tomás escreve a SCG com o pensamento

vida social como um todo da época. A SCG

de que se ensina de forma diferente de

é a expressão que ficou de um mestre que

acordo com as verdades, ou seja, devemos

lecionou na Universidade, pois foi escrita

adequar o modo de ensino de acordo com

do modo como era o ensino que Tomás

o

inaugurou;

assunto,

pois

quando

falamos

de

inaugurando

também

uma

filosofia

‘nova’ filosofia que o mestre construiu com

consideramos as criaturas em si mesmas

alicerces em seus predecessores e que

para leva-las a conhecer Deus; já no

constituiu uma via intermediária em meio

âmbito da fé não consideramos as criaturas

ao problema, filosofia e teologia no período

a não ser em sua relação com Deus.

medieval. Tomás deu a teologia o caráter

Segundo Chenu não se deve pensar de

de ciência, uma ciência que abrange

maneira alguma que as verdades de fé são

diversas outras, como por exemplo, a

adequações à razão, o método que Tomás

filosofia.

utiliza a fim de escrever a SCG é de uma fé

homem tanto na filosofia como na teologia

amiga

o

necessita de sua razão natural, porém a

conhecimento mais obscuro de Deus é

fonte da verdade em ambas é a mesma,

melhor que o conhecimento mais perfeito

Deus. A SCG então reflete um pouco da

das coisas do mundo. A SCG se resume

história do século XIII, pois foi escrita com

em

de

o objetivo de debater por meio de idéias e

contemplação da verdade com o duplo

não de armas as objeções dos gentios e de

caráter missionário e doutrinal refletindo em

todos

cada página um pouco da história do

questionamentos em relação à fé cristã.

mundo medieval.

Assim,

verdades

da

no

âmbito

razão,

algumas

da

lembrando

palavras,

uma

que

obra

Fazendo um panorama geral da obra

O fato é que para Tomás o

aqueles ela

apologética

é por

que

um

levantam

escrito

tratar

de

de

ordem

assuntos

podemos ter as seguintes conclusões,

relacionados à teologia, porém é também

Tomás de Aquino escreveu a SCG em um

uma construção que tem como fonte a

período do século XIII de profunda agitação

filosofia daqueles antecederam Tomás.

não só dentro da universidade, mas

97


Camila Ezídio

Referências: TOMAS DE AQUINO, Suma Contra os Gentios I. Trad. D. Odilon Moura e D. Ludgero Jaspers, rev. Luis Alberto de Boni. Porto Alegre, Escola Superior de Teologia de Brindes: Sulina; Caxias do Sul, Universidade de Caxias do Sul, 1990. CHENU, Marie Dominique, OP. Toward understanding Saint Thomas. Translated by rev. Albert M. Landry, O.P. and Dominic Hughes, O.P. Henry Regnery Company, 1964. KENNY, Anthony. Aquinas on Being, New York: Oxford University Press, 2002. JOSAPHAT, Carlos. Paradigma teológico de Tomás de Aquino: sabedoria e arte de

questionar, verificar, debater e dialogar: chaves de leitura da Suma de teologia. São Paulo: Paulus, 2012. VAZ, Henrique C. de Lima. Raízes da Modernidade, São Paulo, Edições Loyola, 2002. TORRELL, Jean Pierre. Iniciação a Santo Tomás de Aquino, sua pessoa e obra. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo, Edições Loyola, 1999.

98


NICOLAU E DAMASCO E CAIO OTÁVIO: Entre redes sociais e discursos Carlos Eduardo da Costa Campos 1 Maria Regina Candido 2 (Orientadora) Resumo: No decorrer da história encontramos uma pluralidade de discursos, os quais

representaram os feitos do princeps Caio Otávio, como modelo de “uir bonus” (bom cidadão) para os segmentos dirigentes romanos. Entretanto, para elaborarmos uma pesquisa histórica com apoio dos escritos biográficos, tornou-se necessário o estabelecimento de seleções para a construção deste estudo. Sendo assim, dentre a diversidade documental sobre Otávio, elencamos a produção de Nicolau de Damasco, pois tal escritor foi seu contemporâneo, além de integrar as redes sociais de tal princeps romano (século I a.C.- I d.C.). Outro elemento a ser destacado é a escassez de análises historiográficas que abordem a produção do referido biógrafo, o que nos instiga pela abordagem alternativa que podemos tecer em nossa pesquisa. Palavras-chave: Caio Otávio, Nicolau de Damasco, Discurso

1Doutorando 2

– PPGH/UERJ – CAPES

Professora doutora associada ao PPGH/UERJ

99


Carlos Eduardo da Costa Campos

Em decorrência do Bimilênio pelo

clássicos representaram os feitos de tal

falecimento, do célebre imperador romano

princeps de Roma como modelo de “uir

Caio Júlio César Otavio Augusto, nos

bonus” (bom cidadão) para os segmentos

deparamos com a produção de diversos

dirigentes desta sociedade, posteriores a

textos biográficos versando sobre as suas

Augusto. Entretanto, para elaborarmos uma

ações políticas e sociais. Jacques Revel

pesquisa histórica com apoio dos escritos

indica-nos que a biografia histórica 3 é um

biográficos,

gênero híbrido da História e da Literatura, o

estabelecimento

qual

no

construção deste estudo. Sendo assim,

mercado editorial da atualidade (REVEL,

dentre a diversidade textual sobre Otávio

2010, p.235). Dessa forma é interessante

elencamos a produção de Nicolau de

observar que apesar do acúmulo de

Damasco,

escritos

mesmos

contemporâneo, além de integrar as redes

apresentam abordagens distintas sobre o

sociais 6 de Caio Otávio (século I a.C.- I

princeps 4 Caio Otávio, assim ampliando o

d.C.). Outro elemento a ser destacado é a

conhecimento dos leitores em relação a

certa escassez de análises historiográficas

esse personagem marcante no cenário

que abordem sua produção, o que torna

político

nossa proposta singular.

se

encontra

com

biográficos,

ocidental.

Antiguidade

o

vitalidade

os

Todavia,

discurso 5

desde

dos

a

autores

torna-se

pois

de

necessário seleções

tal

escritor

o

para

foi

a

seu

Antes de analisarmos o nosso objeto de estudo é fundamental evidenciarmos a

3

Convergindo com Revel, Benito Schmidt declarou que a

biografia histórica é, antes de tudo, história. Ao tecer essa

forma

que

iremos

“operacionalizar

consideração o autor enfatizou que a mesma necessita de procedimentos de pesquisa e das formas discursivas que

rituais, pinturas e monumentos, por exemplo), que é

são próprias da disciplina histórica, tendo em vista a sua

dotada de intencionalidade e intrinsecamente relacionada

proposta

a um sujeito ou grupo social. Um discurso está atrelado a

de

explicar

e

compreender

o

passado

(SCHMIDT, 2012, p.195).

diversos interesses pessoais, de tal maneira a ação

Segundo Olivier Hekster, o termo princeps o qual foi

discursiva não deve ser pensada de forma simplista,

conferido a Augusto ganha uma conotação de primeiro

devido à mensagem contida em seu conteúdo (GREIMAS;

4

entre os cidadãos. Tal termo foi ressignificado para dar

COURTÉS,1979, p. 125-30).

conta do novo contexto político, o qual Roma vivenciava

6

no século I a.C.. Afinal não podemos deixar de mencionar

mostrou que é possível depreendermos modos de ação,

que o termo princeps senatus (o primeiro entre os

frequentemente disjuntos (ou parcialmente disjuntos),

senadores, com o privilégio de abrir os debates no

entre os quais os agentes devem se orientar. Tal

Senado) já era usual na instituição senatorial, ao longo do

abordagem também permite ao pesquisador apreciar

período republicano (HEKSTER, 2006, p.108).

sistematicamente o volume, a densidade e a estruturação

5

O discurso pode ser definido como uma mensagem

formulada por meio de uma linguagem (textos, diálogos,

A análise de redes sociais (social network analyses)

do espaço social em que um sujeito se encontra inserido (REVEL,2010, p.238).

100


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

historiograficamente”, o conteúdo de nosso

A biografia, como gênero, existia em

texto. Deste modo partiremos da produção

Roma desde o século II a.C., de acordo

de Nicolau de Damasco sobre a juventude

com José Luís Lopes Brandão (2009,p.17).

de Caio Otávio, assim finalizando com a

Entretanto,

possibilidade de emprego da biografia nas

“experimentos biográficos” mais recuados

pesquisas históricas. A biografia antiga 7,

através das canções de banquetes – como

pode ser compreendida enquanto grafias

a carmina conuiualia – que possivelmente

de vidas, ou seja um conjunto de relatos

existiram até ao tempo de Catão, o velho

sobre personalidades ilustres, os quais

(III a.C.). Tal cântico celebrava as virtudes

permeavam a memória social. Todavia,

dos heróis que haviam perecido, como foi

Arnaldo

p.12-4)

exposto por Marco Túlio Cícero (Tusculana

esclarece que as vidas biografadas são

IV,2) 8. Com o passar do tempo outros

analisadas

“experimentos

Momigliano através

(2004, da

relação

dos

é

possível

biográficos”,

perceber

tornaram-se

personagens com as suas respectivas

possíveis de ser percebidos em Roma,

sociedades, pois na Antiguidade não havia

como

a noção de indivíduo, tal como vemos na

aristocracia, mediante a realização das

modernidade.

Natália

José

laudationes. Esta prática foi capaz de reunir

complementa

as

de

alguns elementos basilares da biografia,ao

Momigliano, ao indicar que a escrita

evocar os antepassados, osdescendentes,

biográfica antiga possuía a tendência de

as honras e a aparência física, do morto

analisar a personalidade em seu meio,

(1984, p.39).

Frazão concepções

assim denotando as suas atitudes, seus

nas

O

cerimônias

fúnebres

desenvolvimento

da

da

escrita

valores, seus méritos e suas falhas (2011,

biográfica latina adquire novos contornos a

p.45) Afinal podemos ressaltar que as

partir do século I a.C., período este

fronteiras entre a vida pública e privada, no

também

denominado

de

República

mundo antigo, são tênues e os cidadãos de destaque eram intensamente expostos em suas respectivas comunidades.

8

Segundo Cícero:[...] assim Catão, um escritor da mais

alta autoridade, diz em sua Origens, que "Foi nossos

antepassados que instituíram o costume de entreter aos convidados, assimcelebrando os louvores e virtudes dos homens ilustres por meio de canções ao som da flauta”;

7

Concepção formulada a partir de Philippe Levillan, em

são poemas

claros e

musicais

que foram

então

Os protagonistas: da biografia (1996, p.146-7); Arnaldo

compostos para a voz. E, de fato, está claro assim que a

As

da

poesia estava dentro das Leis das Doze Tábuas, em

Historiografia Moderna (2004, p.12-4); Benito Bisso

medida que nenhuma canção poder ser feita para causar

Schmidt, no capítulo História e Biografia (2012, p.195).

prejuízo aos outros comentários (Tusculana IV,2).

Momigliano,

no

texto

Raízes

Clássicas

101


Carlos Eduardo da Costa Campos

Romana Tardia. O referido contexto é

produzindo uma uita (MOMIGLIANO, 1993,

marcado pela concentração de poder pelos

p.14) Quanto as escritas biográficas sobre

grandes generais romanos, o que colocava

um determinado personagem, percebemos

as antigas instituições republicanas em

que os principais promotores eram os

posição de fragilidade frente ao poderio

libertos e os clientes. Assim os mesmos

militar

Diversas

descreviam os feitos e glórias de um

foram as modificações políticas e sociais,

protetor ou amigo da família, de forma

as quais Roma vivenciou nesse período, a

pública, com isso reforçando os laços

qual

sociais.

destes

culminou

comandantes 9.

com

a

formulação

do

Principado de César Augusto. Nesse bojo,

As primeiras obras biográficas de

verificamos que a biografia latina veio a

cunho

desenvolver-se pelo viés literário, assim

evidenciar são as de Varrão (116-27 a.C.) e

como assumiu uma face de propaganda

Cornélio Nepos (100-27 a.C.). O conteúdo

dos aristocratas em meio à disputa pelo

de seus escritos biográficos versavam

acesso ao poder (LEVILLAN, 1996, p.146).

sobre pensadores e homens da política

Um exemplo, que tornou-se comum entre

helênicos

os

os

aspectos particulares dos costumes dos

comentários (Commentarii). Segundo José

dois povos. As obras de Varrão, as

L. Lopes Brandão (2009, p.22), tais práticas

Imagines ou Hebdomades, não chegaram

de

pelos

até os dias atuais, mas se sabe que elas

magistrados, generais e posteriormente os

englobavam sete retratos de personagens

princepes, dessa maneira sendo comum

ilustres – desde reis a dançarinos, entre

entre a República e o Alto Império. Vale

outros – que precediam epigramas que

ressaltar, que não havia entre os romanos

descreviam

a noção de “autobiografia”, pois essa é

apontado por Arnaldo Momigliano (1993,

uma conceituação moderna. Um sujeito

p.96). Cornélio Nepos, seguiu o caminho

narrador, ao falar de si, estava escrevendo

de Varrão, assim compondo obras que

uma uita sua e ao falar de outros estava

confrontam os costumes de romanos e

aristocratas

enaltecimento

romanos,

eram

foram

escritas

literário,

e

as

latinos,

o

quais

com

personagem,

podemos

ênfase

aos

como

foi

helenos, com os de outros povos como 9

Harriet I. Flower, na obra Roman Republic ( 2010); Karl

Galinsky, emThe Cambridge Companion to the age of

cartagineses e persas. É interessante

Augustus (2005); David Shotter, The fall of the Roman

demarcar a sua nítida distinção entre

Republic (1994); Liv M. Yarrow, Historiography at the End

História e Biografia, a qual se faz presente

of the Republic - Provincial Perspectives on Roman Rule

em sua obra (Vidas,Prefácio, 1). Desse

(2006).

102


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

modo, o mesmo se vale da biografia como

caso iremos nos centrar nos escritos do

um mecanismo que possibilita conhecer os

biógrafo de Damasco.

feitos dos grandes homens e com isso

Nicolau de Damasco, foi um escritor

gerar uma moralização e exemplos de bons

contemporâneo a César Augusto em Roma

cidadãos. Tal modelo de escrita biográfica

e de Herodes, na Judéia. Outros autores

veio a inspirar autores posteriores, como

clássicos, o apresentavam como inserido

Plutarco e Suetônio, na visão de José Luís

nas redes sociais do referido “princeps

Lopes Brandão (2009, p.23).

romano e do rei dos judeus” 11. Nicolau

Desse modo notamos que a partir do

pertencia

ao

Principado de Augusto (I a.C.), uma

principais

famílias

constante passou a se redobrar nos

província romana da Síria.O pai de Nicolau

trabalhos dos biógrafos latinos, como os de

era Antípatro de Damasco e sua mãe

matriz cultural helênica: as figuras dos

Estratonice,

grandes

na

Damasco por suas virtudes e proeminência

representação dos princeps romanos. Para

social. Segundo o Léxico Bizantino (Suda),

Brandão a biografia é“o género mais

Antípatro

indicado para historiar o governo de Roma

diplomáticas e julgamentos na cidade de

imperial, em que havia concentração das

Damasco,

instituições do Estado na pessoa do

centrais

imperador: pelo que as [...] – as virtudes e

A’2705). Dessa forma, percebemos as

os vícios – se reflectem na condução da

redes sociais, com as quais Nicolau já

história” (2009, p.24). Entre os principais

circulava em seu processo de formação.

biógrafos de César Augusto, podemos

Devido à sua formação aristocrática, o

evidenciar

de

escritor de Damasco tornou-se proficiente

Damasco, Suetônio e Plutarco 10. Todavia,

em muitas áreas do conhecimento erudito,

como integra o papel do historiador o

assim como as línguas e a literatura, como

recorte

seu

o mesmo apresenta em seus escritos sobre

documento de análise, em nosso estudo de

si (FGrH 90 F. 131). Como vemos no

10

políticos,

e

as

obras

seleção

com

de

do

ênfase

Nicolau

tema

e

É importante frisar que a obra Vida deOctávio César

11

seio

aristocrático de

ambos

na

Damasco,

reconhecidos

envolvia-se assim

das

em

acumulando

magistratura

local

na

em

missões cargos (Suda,

Para maiores detalhes ver Fócio, Biblioteca, 189 ou

Augusto, não chegou até atualidade. Contudo podemos

Ateneu

ver escritos biográficos plutarquianos sobre o referido

Disponíveis

princeps em Vidas de Marco Antônio e nos Ditos de reis e

http://www.attalus.org/translate/nicolaus2.html;

imperadores.

em: 20 de julho de 2014.

de

Naucratis,

Deipnosofistas,

XIV,

652. em:

acessado

103


Carlos Eduardo da Costa Campos

Léxico Bizantino: “Ele foi notável em sua

Roma.

pátria e se destacou entre os seus pares;

autobiografia, que Nicolau assumiu o papel

ele estudou gramática melhor do que

de mediador entre os interesses e os

ninguém, e por causa disso toda a arte da

problemas que emergiam na província da

poesia, e ele mesmo escreveu tragédias e

Judéia e com Roma. Um dos pontos altos

comédias famosas”(Suda, N’393).

dessa função foi quando Nicolau atuou em

Então

notamos

em

sua

p.2)

prol de Arquelaus sucessor de Herodes, ao

pontua que a proeminência política e social

trono, contra Antípatro filho de Herodes e

de Nicolau de Damasco, o levou a integrar

conspirador. A situação foi resolvida com o

a corte do rei Herodes da Judeia, assim

apoio de César Augusto, para Arquelaus

como posteriormente prestou serviços a

(FGrH 90 F. 136).

Clayton

Morris

Hall

(1923,

Arquelaus, o filho e sucessor herdeiro do

A partir de Jane Bellemore (1984),

antigo monarca. Desse modo, o autor de

verificamos

Damasco passou a função de conselheiro e

desenvolvidas entre Augusto e Nicolau de

instrutor, como foi descrito por Plutarco

Damasco se acentuaram na década de 20

(Simpótica, 8.4) e pelo próprio Nicolau de

a.C.. Para a autora, Nicolau se tornou o

Damasco em sua autobiografia (FGrH 90 F.

tutor de Hélios e Selene, os filhos de Marco

135). É nesse contexto que emerge a

Antonio e Cleopatra VII, que foram criados

História de Herodes, que foi incluída em

por Otávia, irmã do princeps. Com a

sua Histórias, uma coletânea em forma de

referida inserção social, o mesmo passou a

história universal com 144 livros. Para

circular

Aryeh Kasher devido ao conhecimento de

domus 13augustana. O ápice dessa relação

Nicolau e sua habilidade com a escrita,

social culminou com honrarias concedidas

Herodes

de

por César Augusto a Nicolau de Damasco,

historiógrafo real. Através das redes sociais

como o próprio relatou em seus escritos

de Herodes 12 que Nicolau veio a conhecer

(FGrH 90 F. 136).

o

elevou

a

categoria

no

que

as

relações

ambiente

sociais

privado

da

o próprio princeps Cesar Augusto, por meio

Para Clayton Hall, Nicolau teve

de uma viagem que ambos fizeram para

acesso a um material privilegiado ao construir a sua biografia sobre Augusto,

12

Herodes já se encontrava como aliado romano desde

afinal os mesmos passaram a integrar uma

Júlio César, que o concedeu a cidadania romana em 47 O termo domus aplica-se não somente para a casa,

a.C.. Sua função política na dinâmica dos segmentos

13

dirigentes de Roma, veio a permanecer até o período de

propriamente dita, como se amplia para designar a família

governo de Augusto (KASHER,2007,p 3;19-20).

que ali habita (LEWIS, 1958, p.609-10).

104


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

mesma rede social, ao ponto de César

representantes do estilo helenístico de

tornar-se o seu patrono. Apesar de haver

biografia no período romano. Em sua

pontos que podem ser considerados como

construção, o mesmo se vale do modelo

tendenciosos pelos vínculos sociais entre o

peripatético, para elaborar sua produção

biografo e o biografado, a mesma se torna

textual.

uma documentação privilegiada, por expor

construção da biografia augustana, pelo

a memória social do período com riqueza

autor de Damasco, foi aproximadamente

de dados. Com visão compartilhada a

em 20 a.C., o que denota uma interface

nossa, podemos citar os classicistas J. S.

com o processo de concentração do poder

Richardson, Jane Bellemore e Clayton

político de Augusto, assim como o reforço

Morris Hall 14.

do mos maiorum 15 e difusão da cultura

Quanto a produção de Nicolau é

Para Momigliano, o período de

latina, no Ocidente Mediterrâneo.

Léxico

A razão biográfica de Nicolau fica

Bizantino (Suda). Nicolau escreveu uma

expressa, quando o mesmo indica que vai

história universal (80 livros), uma biografia

relatar as realizações de César Augusto,

sobre Augusto e uma autobiografia, dessas

“[...] para que todos possam conhecer a

apenas

fragmentos

verdade” (FGrH 90 F. 126.2). Para tanto,

referentes a biografia augustana e a sua

Nicolau argumenta que vai estruturar seu

vida (Suda, N’393). Quanto ao escrito

escrito

biográfico sobre Augusto, para W. Steidle

nascimento e da criação pelos pais de

(1963) a obra foi desenvolvida de forma

Augusto. Assim como destacou a “[...]

completa. Em contraposição a Steidle,

disciplina e educação desde a infância, por

Arnaldo Momigliano frisa que pelas suas

meio da qual ele veio a ter tal posição

características

Nicolau

social”(FGrH 90 F. 126.2). Em nosso artigo

desenvolveu uma biografia parcial (1993,

vamos elencar os principais pontos da obra

p.111-2). Momigliano ressalta que Nicolau,

de Nicolau, com o intuito de dinamizar a

através

exposição. Nicolau ressalta o prestígio da

retomarmos

fundamental

Augusto,

14

sobrevivem

dos foi

os

o

textuais,

longos um

fragmentos dois

sobre

maiores

Vide: Jane Bellemore, Nicolaus of Damascus – Life of

família

15

biográfico

de

Caio

primeiro

Otávio,

falando

desse

do

modo

O mos maiorum pode ser compreendido como o

Augustus (1984); Clayton Morris Hall, em Nicolaus of

conjunto de costumes e valores tradicionais, passados

Damascus’ life of Augustus – A historical commentary

pelos ancestrais, que devem ser mantidos para a

embodying a translation (1923, p.2); J. S. Richardson

manutenção da estabilidade social e identificação do ser

Augustan Rome – 44 BC. to AD 14 (2012).

romano (BUSTAMANTE, 2006, p.112).

105


Carlos Eduardo da Costa Campos

expondo que o “[...] seu pai era Caio

(FGrH 90 F. 127.3). O resultado desse

Otávio, um homem de posição senatorial.

processo de formação atento começou a

Seus

pela

aparecer ainda na juventude de Otávio.

riqueza e justiça”(FGrH 90 F. 126.2).

Nicolau frisa que o mesmo foi ensinado

Quanto sua mãe Átia, sobrinha de Júlio

entre “[...] as melhores práticas e atividades

César, o mesmo ressalta em diversos

para a mente e o corpo, que integravam os

fragmentos seu papel atuante na formação

nobres e guerreiros [...] por essa razão

de Caio Otávio, assim como nas questões

também

políticas

Roma”(FGrH

antepassados,

referentes

conhecido

a

sua

família,

a

recebeu 90

muitos F.

elogios

127.3).

em

Nicolau

matrona

menciona que com doze anos de idade

romana (FGrH 90 F. 127.3; FGrH 90 F.

Otávio era um objeto de “[...] admiração

configurando

FGrH

como

legítima

o

entre os Romanos, assim exibindo com

falecimento de seu pai, ainda em sua

grande excelência a sua natureza, o jovem

infância, sua mãe veio a casar-se com

que ele era; pois ele proferiu um discurso

Lúcio Marcio Filipe. A relação de Otávio

diante de uma grande multidão e recebeu

com Filipe é expressa de forma respeitosa,

muitos aplausos de homens adultos”(FGrH

mediante o acolhimento que o marido de

90 F. 127.3). Com isso notamos que o

sua mãe efetua pelo enteado, como vemos

biógrafo de Damasco, começa a tecer em

materializado em Nicolau: “[...] na casa de

sua escrita uma trajetória política e social

Filipe, como na do seu pai, Otávio foi

de Otávio, por meio de sucesso e destaque

criado” (FGrH 90 F. 127.3). Dessa forma,

em

desde a mais tenra idade, Otávio se viu

demais cidadãos.

127.4;

90

F.

127.5).

Com

inserido no seio aristocrático romano,

Roma,

com

reconhecimento

dos

Nicolau de Damasco pontua que

assim circulando entre as gensjulia e

Júlio

marcia.

concedeu perdão a poucos dos cativos,

Quanto aos seus estudos Nicolau de

dos

César, quais

ao

havia

regressar vencido

a em

Roma, guerra.

Damasco ressalta que Átia e seu padrasto

Entretanto, Nicolau ressalta que entre os

Filipe cuidavam pessoalmente do ensino.

que

Afinal,

eles

estava o irmão de Marco Vespasiano

questionavam aos instrutores de seu filho

Agripa, o qual possuía relações sociais

o“[...] que ele tinha feito, até que ponto ele

com

tinha avançado, ou como ele tinha passado

educado no mesmo lugar e (Agripa) era um

o dia e com quem ele estava associado”

amigo muito especial e particular” do

para

Nicolau,

cada

dia

haviam

Otávio,

permanecido

afinal

“[...]

em

cárcere

tinham

sido

106


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

mesmo(FGrH 90 F. 127.7).

Caio Otávio

seu carro, depois de conferir a ele

através de amplo comedimento veio a

condecorações militares, o fazendo seu

interceder por Agripa, junto a Júlio César e

sucessor”(FGrH 90 F. 127.8). Nicolau

obteve uma resposta favorável, a qual

ressalta que Júlio César admirava a

libertou o irmão de Agripa. Desse modo,

sagacidade e concisão nas respostas que

podemos ver os laços de amicitia 16entre

Otávio possuía nas conversas com ele

Otávio e Agripa se acentuando, assim

(FGrH 90 F. 127.11). Otávio também foi

como a sua popularidade frente aos demais

descrito como o principal companheiro de

jovens cidadãos romanos devido a fides 17

Júlio César, tanto na guerra, como nos

deste com seus amigos, como Nicolau

teatros e nos banquetes (FGrH 90 F.

ressaltou em seus escritos (FGrH 90 F.

127.8). As redes sociais de Júlio César, no

127.7). Quanto a Agripa percebemos a sua

âmbito militar e social começavam a ver em

vinculação com Otávio, devido sua atuação

Otávio sua continuidade política. Elemento

frente as legiões, o tornando um dos

este que podemos verificar quando ocorre

principais

augustanos,

à morte de Júlio César e suas legiões

durante o período do principado, além de

declaram obediência e apoio a Caio Otávio.

associar-se familiarmente com seu amigo,

Logo,

por meio de seu casamento com Júlia, que

imperator, que era o mais alto dos cargos

era filha do princeps.

militares de acordo com os costumes

comandantes

a

concessão

da

titulatura

de

Retomando aos vínculos de Caio

romanos, o fez conhecido em Roma e alvo

Otávio com Júlio César, verificamos que o

de interesses sociais (FGrH 90 F. 127.8).

mesmo

na

Por reunir tantas qualidades pessoais,

Guerra Africana e ordenou que o jovem

Otávio passou a se configurar como

Otávio, “[...] a quem ele tinha como um

sucessor de Júlio César, vindo a ser

filho, por natureza, convocou para seguir o

cuidado pelo próprio, segundo Nicolau de

comemorou

seus

triunfos

Damasco (FGrH 90 F. 127.9). 16

Através de Marco Túlio Cícero compreendemos que a

Na Hispania, Otávio atuou como

amicitia éuma relação social humana, com ratificação

intermediador

perante

de

saguntinos a Júlio César. Os mesmos

generosidade, reciprocidade, aliança e afeição mútua

haviam apoiado a facção pompeiana e se

ao

sagrado,

assim

gerando

lações

duas pessoas ou mais (Sobre a Amizade, 4, 20).

das

apelações

dos

A fides emerge como a relação de fidelidade e lealdade

encontravam numa posição desvantajosa

entre os sujeitos que estabelecem um acordo e também

frente as conquistas cesarianas. Através de

como uma divindade que é responsável por tal ação

sua habilidade política e retórica, o mesmo

17

(CAMPOS, 2014, p.43).

107


Carlos Eduardo da Costa Campos

conseguiu a libertação e formulação de

das Virgens Vestais, apenas vindo a

uma rede social dossaguntinos, e destes

público com sua morte em 44 a.C.. Com a

para com César e consigo (CAMPOS,2004,

adoção de Caio Otávio, o mesmo passou a

p.138). Os saguntinos entoaram louvores a

assumir o nome de seu pai adotivo, assim

ele, chamando-o de seu salvador. A partir

chamando-se

de então Nicolau de Damasco, frisa que as

Otávio/Otaviano.

redes de Otávio foram se ampliando.

diante a política romana passou a vincular-

[...] pois diversas pessoas pediam o seu patrocínio, e ele se mostrou de grande valor para eles. Alguns aliviou das acusações feitas contra eles, para os outros, ele garantiu recompensas, e ele ainda

revelado nesses encontros eram assuntos de

Julio

Desse

César

momento

em

se a este aristocrata, que detinha como missão a vingança da morte de César e a restauração da ordem social em Roma.

colocou outras pessoas em cargos do Estado. Sua bondade, humanidade, e a prudência que ele havia

Caio

Quanto as outras virtudes de Caio Otávio, que foram capazes de o construir

observação a todos. Na verdade o próprio César

enquanto princeps do Império Romano,

cautelosamente o incentivava [lacuna] (FGrH 90 F.

podemos recolher diversos indícios nos

127.12).

O ponto alto da proximidade entre Júlio César e Caio Otávio se deu com seu processo de adoção. Nicolau de Damasco frisa que a ideia era latente em seu tio-avô, porém ele preferia deixar Caio Otávio ser criado de forma habitual a um patrício. Desse modo, César poderia evitar que seu sobrinho viesse a se corromper com a riqueza e o prestígio em demasia. Contudo, Júlio César teceu um plano de esconder sua intenção, adotando-o como filho em seu testamento (pois ele não tinha filhos homens) e o fez “[...] legatário residual de

todos os seus bens, depois de legar um quarto de sua propriedade para os amigos e conterrâneos, como depois se conheceu” (FGrH 90 F. 128.13). O testamento de Júlio César foi entregue ao colégio sacerdotal

escritos de Nicolau de Damasco. Arnaldo Momigliano (1993, p.118) indica que a exposição das virtudes de um biografado é um

ponto

comum

nos

escritos

peripatéticos, como vemos em Nicolau de Damasco. O biógrafo inicia suas análises apontando Caio Otávio como detentor de

virtude e clemencia, para com os outros cidadãos.

A

qualificação

pessoal

e

comedimento político de Otávio o tornaram reconhecido pelos demais, como o mais apto

a

comandar.

Damasco,

isso

praticamente

era

“natural”

Para

Nicolau

uma “[...]

de

tendência

para

este

homem, que alcançou o poder e uma distinção proeminente, governando o maior número de pessoas dentro da memória humana”

(FGrH

90

F.

125.1).

Esse

processo foi capaz de ser realizado, pois

108


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Caio Otávio se valeu tanto do uso da força,

F.

129).

Para

como da palavra e de sua formação para

restauração dos valores sociais e da família

obter a autoridade perante aos demais,

romana, essa representação vai ressoar ao

como vemos Nicolau. Sua perspicácia é

seu

euforizada 18pelo escritor de Damasco, pois

expressa foi a modéstia. Para Nicolau,

somente através de seu preparo e sua

Otávio já desenvolvia uma característica

inteligência “[...] tanto na administração que

modesta desde a juventude e “[...] foi

ele exerceu em Roma, assim como na

evidente em suas ações, que a mesma

realização de grandes guerras locais e no

continuou durante toda a sua vida” (FGrH

exterior”, que foi possível a ele obter o

90 F. 128.13). A partir de Nicolau, notamos

sucesso como governante romano (FGrH

a modéstia como um elemento auxiliar na

90 F. 126.2).

habilidade de comandar por Caio Otávio.

favor.

a

futura

Outra

política

virtude

de

augustana

Quanto a sua sexualidade, o mesmo

Afinal a mesma não o deixava perder o

é representado 19de forma prudente, apesar

controle sobre o poder e a si, em prol da

de ser portador de uma acentuada beleza.

vaidade e da desmedida.

Dessa forma afastando-se de possíveis escândalos, que viessem a prejudicar sua

de

Damasco,

nos

fornece

indícios

vezes

históricos, os quais em consonância com

tentado por elas, ele parece nunca ter sido

outros documentos literários nos auxiliam a

seduzido”, de acordo Nicolau de Damasco

preencher lacunas sobre o contexto social,

(FGrH 90 F. 127.5). Nicolau complementa

no qual Caio Otávio estava inserido. Desse

que “[...] ele se absteve dos prazeres

modo, a biografia de Nicolau torna-se uma

sexuais em troca de respeito, tanto para a

chave

sua voz quanto para a sua força” (FGrH 90

construção histórica. Todavia, a utilização

trajetória.

Embora

“[...]

muitas

Sendo assim, a obra de Nicolau

vital

para

esse

processo

de

da biografia como documentação base 18

A partir de Algirdas Julien Greimas e Joseph Courtés, o

ato de euforizar consiste na valoração positiva de um sujeito ou objeto de interesse, por meio da exaltação no âmbito discursivo (GREIMAS; COURTÉS,1979, p. 170).

para a história, necessita de reflexões como faremos a seguir. Nossas

As representações são construções elaboradas acerca

aproximam,

em

de um sujeito, um grupo e/ou um objeto no intuito de

contribuição

de

19

interpretar/explicar as práticas desempenhadas em um

concepções

se

certa

medida,

da

Pierre

Bourdieu,

no

meio social. Todavia, as representações desenvolvidas

polêmico artigo denominado de Ilusão

em uma sociedade não são neutras e correspondem aos

Biográfica. Com essa perspectiva vemos

interesses dos grupos que as elaboraram(Ibidem, p. 382-

que o homem está inserido no meio social,

3).

109


Carlos Eduardo da Costa Campos

se relacionando com o mesmo a todo

Biografia,

momento através de sua formação e das

justificado

escolhas que realiza em sua trajetória de

metodológicas propostas pela historiografia

vida. Logo, Pierre Bourdieu ressalta que é

contemporânea estarem voltadas para a

uma ilusão pensar um sujeito como algo à

condição do homem em sociedade (2006,

parte da sociedade (2006, p.186-9). Nesta

p.168).

nos

estudos

pelo

fato

históricos das

é

questões

perspectiva, Arnaldo Momigliano (1993,

Para estudarmos Caio Otávio, que

p.6) enfatizou que a escrita biográfica é um

foi um cidadão participativo na dinâmica

instrumento essencial para a pesquisa

política romana, consideramos que as

histórica, pelo qual podemos abordar o

redes sociais que o mesmo desenvolveu e

meio

o

social,

assim

como

extrapolar

seu

contexto

histórico,

são

partes

possíveis limitações contidas no mesmo.

centrais

Giovanni

viés

pesquisa sobre o referido princeps. Assim

aproximado de Momigliano, evidencia que

ao recorrermos aos escritos biográficos,

a Biografia pode ser aplicada para se

verificamos que os mesmos fornecem

perceber a relação que um sujeito mantém

indícios preciosos sobre as práticas sociais,

com a sociedade, da mesma forma que os

políticas e culturais de um determinado

escritos biográficos podem ser entendidos

sujeito e grupo, situado em um período

enquanto

se

particular, as quais podem ampliar nossas

compreender como um biógrafo representa

possibilidades de analises. Ademais, uma

determinado meio social (2006, p.166-9).

pesquisa biográfica também possibilita-nos

Nesse bojo, verificamos que a Biografia

compreender a razão biográfica de seu

poderia auxiliar quanto ao desenvolvimento

biógrafo, no que tange ao seu objeto, como

de

análises

vimos no caso de Nicolau de Damasco e

historiográficas, partindo do individual, ou

sua euforização de Caio Otávio, em virtude

do micro, para se compreender parte das

de sua inserção na rede social do princeps

relações sociais e dos comportamentos dos

romano. Logo, autor e discurso tornam-se

homens em sociedade, em uma escala

chaves passíveis de historicização, no

macro.

processo de construção histórica.

Levi

uma

novas

Em

ao

seguir

possibilidade

conjecturas

suma

de

um

para

convergimos

com

para

a

elaboração

de

uma

Giovanni Levi, ao frisarmos que o uso da

110


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

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113


UM ESTUDO DO ESPAÇO SAGRADO E DO ESPAÇO PROFANO EM DUAS CANTIGAS DE AMIGO Célia Santos da Rosa 1 Resumo: A nossa proposta de comunicação intitula-se Um estudo do espaço sagrado e do

espaço profano em duas cantigas de amigo objetiva investigar o espaço sagrado na poesia lírica trovadoresca galego-portuguesa, especificamente em cantigas de amigo. O estudo do espaço na literatura, especificamente na poesia, tem sido amplamente discutido em grupos de pesquisa acadêmicos. Na Idade Média, o espaço era organizado de forma hierárquica e ligado à realidade do homem, havendo lugares sagrados e lugares profanos, protegidos,

abertos

sem

defesa,

urbanos

e

rurais.

Na

poesia

trovadoresca,

especificamente, em cantigas de romaria e marinhas, o espaço sagrado liga-se à ideia do profano, unindo-se ao cenário como os prados, as fontes e as praias que contextualizam o ambiente, atuando sobre o “eu” e despertando o amor, ou a confissão do desejo. A peregrinação na Idade Média contribui grandemente para o estudo do espaço, considerando suas diversas causas: fé, promessas, esperança de cura, penitência, entre muitas outras. As cantigas de romaria retratam as cidades e os locais de romaria e peregrinação na Idade Média, ao apresentarem uma variedade de espaço frequentado pelos fieis na busca do sagrado e também do profano, quando a intenção eram os encontros pessoais e sentimentais. Palavras-chave: Cantigas de amigo; Espaço Sagrado; Espaço profano.

1

Universidade Estadual de Maringá.

114


Célia Santos da Rosa

Considerações Iniciais As

primeiras

manifestações

mágicos em rios e fontes são elementos

literárias da poesia lírica trovadoresca

relacionados aos ritos pagãos do amor.

galego-portuguesa, cantigas de amor e

Deste modo, a cantiga de amigo galego-

cantigas de amigo, na Península Ibérica,

portuguesa apresenta vestígios de uma

datam, provavelmente, dos fins do século

poesia tradicional muito antiga.

XII. As cantigas de amigo testemunham a existência

no

Noroeste

da

Península

A presença do espaço ocupa um lugar

de

destaque Júnior

composições.

Ibérica de um lirismo muito antigo. Lirismo

Abdalla

não importado, como os gêneros cultos

enfatizam que as paisagens naturais como

importados da Provença, essa modalidade

o riacho, a fonte (local dos encontros

lírica é considerada autóctone, própria da

amorosos ou de lavar os cabelos e as

terra. A jovem solteira é a protagonista

roupas), as praias (quando há referência às

destas composições. Ela anda pela ribeira

ondas do mar) e as árvores (os ramos

a cantar, a lavar roupa ou a dançar com as

floridos das avelaneiras, por exemplo)

amigas confidentes, sob os ramos floridos

contextualizam o ambiente e atuam sobre o

das avelaneiras. Com um discurso simples,

“eu” feminino, despertando o amor, ou a

apaixonado e emotivo, exprime os seus

confissão do desejo “é o ambiente com a

sentimentos, preocupações com o amigo

atuação animista integrando sentimentos e

(namorado) que partiu para a guerra,

objetos”

deixando-a saudosa e infeliz.

PASCHOALIN, 1994, p. 15).

Lemos (1990) registra que esse lirismo feminino tem suas raízes em uma

e

nas

Paschoalin

(ABDALLA

(1994)

JUNIOR;

Espaço na poesia O

espaço

é

uma

importante

antiquíssima tradição folclórica. Apresenta

categoria tanto na narrativa literária quanto

motivos muito simples e comuns a um

na poesia.

fundo universal da poesia primitiva, os

distinguem o espaço da narrativa e o

chamados “temas iniciais”, relativos às

espaço no texto poético, enquanto aquele

forças elementares da alma e da natureza,

tende a estar associado a referências

ou a certas situações tópicas, como o amor

internas ao plano ficcional, o espaço no

feliz e o amor doloroso, confidenciado à

texto poético pode eleger a própria palavra

natureza animada e cúmplice, ou a mãe ou

como um espaço, “o signo verbal não é

às amigas. A renovação da Primavera, a

apenas decodificado intelectualmente, mas

Santos e Oliveira (2001)

dança sob as árvores floridas, os banhos

115


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

também

sentido

em

sua

concretude”

(SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p.74).

Quando o poeta descreve ou recria o espaço, temos o espaço interiorizado. Os

O espaço pode se manifestar

componentes

da

num

realidade universo

física

se

poeticamente de diversas maneiras. De

integram

acordo com Moisés (1977), há no poema o

construído segundo leis próprias e uma

espaço referido ou a referencialidade da

verossimilhança

poesia no que se refere ao espaço exterior

metafórico que atravessa os objetos da

(o ar, a natureza, o firmamento, o cosmos

realidade

etc.); o espaço interior, isto é, o espaço

identidade que difere substancialmente da

construído ou evocado pelo poema; e o

que possuem na origem” (MOISÉS, 1977,

próprio poema como espacialização, ou

p.75).

interior,

física

específico, “o

processo

empresta-lhes

uma

seja, o poema como um espaço autônomo,

O autor explica ainda que o espaço

paralelo ao da natureza e do cosmos, “ou

não se determina. A referência ou a

como a sugestão de um espaço por meio

descrição da Natureza não localizam o

do corpo do poema, da sua materialidade”

fenômeno poético. A geografia não é chamada para determinar um

(MOISÉS, 1977, p.73). O relação

espaço a

é

objetos.

estabelecido A

em

referencialidade

poética se estrutura em relação aos objetos (físicos)

que

compõem

o

mundo

da

realidade fora do poema. Desta maneira temos no poema alusão à natureza, aos seres humanos, o cosmo etc. Moisés (1977) afirma que ao convocar para dentro de seu texto os componentes do espaço físico, o poeta determina que se inscrevam num espaço novo, o do poema. Na referencialidade, o poeta não descreve e não

recria

o

trecho

da

Natureza

mencionado no texto, a ausência aumenta a impressão de que presenciamos uma geografia referida.

espaço, mas para servir de ambiente à projeção do “eu”, que constitui a base do fenômeno poético: a geografia está em função do “eu”, atua como seu prolongamento

natural.

Desse

ângulo,

se

o

fenômeno poético percorre algum espaço, é o do “eu” (MOISÉS, 1977, p.76).

Podemos conceber o fenômeno poético como a geografia do “eu”. O fenômeno poético se manifesta como a descrição do “eu”, ou ainda, o esforço que realiza no encalço de apreender-se, por meio da descrição. Os dados da natureza e do cosmos são convocados para o poema, a fim de colaborar na tarefa que o “eu” executa no sentido de exprimir-se. Esses dados são colocados a serviço do “eu” que se descreve para revelar-se. A poesia se define como a arte da descrição, do subjetivo.

116


Célia Santos da Rosa

A criação do espaço no poema se manifesta

de

várias

maneiras.

primeiros textos poéticos portugueses não

A

fogem à regra: são letras de música e

espacialização pode se manifestar como

palavras modeladas sob um esquema

grafismo, solução tipográfica, ou ideograma

musical.

e, mesmo, poema figurado. Ou ainda na

Essa primitiva poesia escrita em

própria palavra, ou seja, o espaço no texto

língua galaico-portuguesa surge nos fins do

poético pode eleger a própria palavra como

século XII e prolonga-se até meados do

espaço. Moisés explica que

século XIV. Elas chegaram ao nosso

as palavras engendram o seu próprio espaço, são o espaço do fenômeno poético, não na linearidade gráfica, mas na circularidade que resulta de os vocabulários se organizarem conforme várias coordenadas, verticais e horizontais” (MOISÉS, 1977, p.79).

conhecimento, graças às coleções de poemas conhecidas como Cancioneiros. Desses, três merecem destaque: •

fins do século XIII, contendo 1310

As Cantigas de Amigo

cantigas, quase todas são cantigas

Lemos (1990) constata que em todas as literaturas a poesia é a primeira a surgir. A autora aponta alguns motivos. O

de amor. •

englobando trovadores dos reinados

obra literária na transmissão apoiando-se no poder de memorização, comunicação e até de encantamento que a poesia possui, devido a sua natureza essencialmente repetitiva, ritmos, sons, ideias, tudo de repete na poesia. Outro motivo é a tendência da alma primitiva, ao associar o às

formas

elementares

das

atividades (embalo das crianças, o trabalho do campo, do mar ou da casa); e as manifestações de sentimento nas diversas circunstâncias

da

vida,

festa,

guerra,

despedida, oração etc. Desta maneira, em todas as literaturas a poesia das origens é canto, palavra que se associa à música. Os

Cancioneiro da Biblioteca Nacional, com 1647 cantigas de todos os tipos,

primeiro deles é o caráter oral que tem a

canto

Cancioneiro da Ajuda, composto nos

de Afonso III e de D. Dinis. •

Cancioneiro da Vaticana, com 1205 cantigas dos gêneros lírico e satírico. Os Cancioneiros são uma amostra

incompleta e tardia, considerando que as cantigas já haviam sido compostas pelos trovadores,

embora

muitos

perderam-se

e,

disso,

além

textos havia

o

problema das difíceis condições de fixação do texto em cópia manuscrita, que não assegurava uma suficiente multiplicação dos originais.

Portanto, os Cancioneiros

não abrangem a totalidade dos poemas trovadorescos.

117


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

A cantiga de amigo nasceu na

meados do XIV. Derivado do Latim, o

comunidade rural, como complemento do

idioma surgiu progressivamente como uma

bailado e do canto coletivo dos ritos

língua distinta anteriormente ao século IX,

primaveris. Lopes e Saraiva (s/d) explicam

no Noroeste peninsular. Mais do que

que

das

designar uma língua, a expressão galego-

civilizações agrícolas em que a mulher

português nomeia concretamente uma fase

desfruta da maior importância social. Desta

dessa

maneira não é apenas na Península ou na

histórico conduzirá à diferenciação entre o

România, mas em povos tão distantes

galego e o português atuais.

este

fenômeno

é

próprio

evolução,

cujo

desenvolvimento

como o chinês – alguns séculos antes de

O período entre os séculos X e XIV

Cristo, compunham-se na China cantigas

constitui a época por excelência do galego-

de mulher – verificam-se vestígios, quer do

português. Porém, somente a partir de

paralelismo, quer da cantiga de mulher.

finais do século XII a língua falada se

Os cantares de amigo exprimem os

afirma

e

desenvolve-se

como

língua

pequenos dramas e as situações da vida

literária por excelência, num processo que

amorosa das moças, em que a vida do

se estende até cerca de 1350. Embora

campo

da

inclua manifestações em prosa, é na

natureza), a vida burguesa e o ambiente

poesia que alcança a sua mais notável

doméstico emolduram singelos quadros

expressão, composta por um conjunto de

sentimentais. A composição é realista,

trovadores ibéricos, num espaço geográfico

veiculando um sentimento espontâneo,

que não coincide exatamente com a área

natural e primitivo por parte da mulher. Seu

mais

caráter é mais narrativo e descritivo que a

efetivamente falada.

(com

todas

as

sugestões

restrita,

onde

a

língua

era

cantiga de amor. Caracterizam-se por uma

Retomando a cantiga de amigo, há

estrutura estrófica e rítmica que aproxima a

que se discutir a sua variedade de motivos,

poesia da música. Segundo Ferreira (s/d),

que permitiu classificá-las em subgêneros.

os

versificatórios

De acordo com Moisés (1986), as cantigas

(pausa, ritmo e rima) estão subordinados a

de amigo podem ser dispostas de acordo

um jogo de simetrias, em que predomina a

com

repetição como princípio estruturador.

circunstâncias

diversos

elementos

o

espaço em

geográfico que

e

decorrem

as os

De acordo com Lopes (2011), o

encontros amorosos. Justifica-se, assim,

galego-português era a língua falada na

nosso estudo sobre o espaço e suas

faixa ocidental da Península Ibérica até

variedades.

118


Célia Santos da Rosa

As

pastorelas

são

cantigas

vez que o homem é a condição para

importadas, cuja personagem central é a

existência do espaço, o contato entre

jovem e bela pastora que dialoga com o

elementos

cavaleiro que se dirige (ou retorna) a uma

transforma o mundo natural num espaço

romaria. O espaço é o campo, as flores e a

lírico

relva. As barcarolas ou marinhas são

portanto, subjetivo e reflete o nosso modo

cantigas que se referem ao mar ou ao rio,

de ver o mundo.

retratam a jovem que espera ansiosa

de

espacialmente convivência”.

Nas

cantigas

O

de

espaço

é,

amigo,

essa

está

bem

diante do mar e das ondas as notícias do

subjetividade

amigo ausente. As bailadas ou bailias são

demarcada,

exemplares que privilegiam a beleza das

interage com o eu-lírico e reflete o seu

árvores floridas para o canto e a dança

estado de espírito. Exerce um importante

entre

de

papel na expressão de sentimentos do eu-

descontração que também privilegia o

lírico. Gullón (1984) explica que se a

namoro. As cantigas de romaria referem-se

paisagem é um estado de ânimo, justifica-

às peregrinações e romarias nas cidades

se o que pensa a árvore ou a colina, sem a

de Santiago de Compostela, Lisboa, Faro,

sensação de quem as comtempla. Ou seja,

entre outras cidades localizadas na região

é a sensação do eu-lírico, ao perceber o

de Entre-Douro-e-Minho, ou ainda, as

espaço em que se encontra que deve ser

pequenas igrejas e seus adros, onde as

destacada. Exemplificamos com o texto do

jovens preferiam esperar as mães que

jogral

acendiam velas e rezavam, enquanto a

paisagem e o eu-lírico se interligam:

as

amigas,

momento

dança e o namoro ocorriam. Nas albas ou

alvas (também de gênero importado), o espaço é o dia claro, o amanhecer no campo

ou

no

interior

dos

castelos,

momento em que os amantes se separam para não serem descobertos. Cantigas de Amigo e sua relação com o espaço Libanori (2006, p.75) afirma que o ser humano não pode existir como um elemento apartado do seu espaço, “uma

do

distanciados

uma

galego

espaço vez

que

Mendinho,

o

no

cenário

qual

Sedia-m'eu na ermida de Sam Simeon e cercarom-mh as ondas, que grandes son! Eu atendend’ o meu amigo, eu atendend’ o meu amigo. Estava [eu] na ermida, ant'o altar [e] cercarom-mh as ondas grandes do mar! Eu atendend’ o meu amigo, eu atendend’ o meu amigo! E cercarom-hi as ondas, que grandes son! Non hei eu[ i] barqueiro nem remador! Eu atendend’ o meu amigo, eu atendend’ o meu amigo!

119

a


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo E cercarom-mi [as] ondas do alto mar; non hei eu [ i] barqueiro nen sei remar! Eu atendend’ o meu amigo,

concretize o estado de alma da moça ou defina o tema da cantiga.” O espaço sagrado é a capela

eu atendend’ o meu amigo! Non hei [eu] i barqueiro, nen remador [e] morrerei fremosa no mar maior!

localizada fora das povoações, à beira mar, em frente da cidade galega de Vigo. Trata-

Eu atendend’ o meu amigo,

se da ermida de São Simão, uma pequena

eu atendend’o meu amigo!

ilha do município de Redondela, próximo à

Non hei [i] barqueiro nen sei remar e morrerei fremosa no alto mar! Eu atendend’ o meu amigo, eu atendend’ o meu amigo! (MENDINHO – V. 438; B.852; C.852 apud LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel et al, 2011).

ponte de Rande. versos

A cena sugerida nos

apresenta-nos uma jovem que

espera por seu amado na ermida, quando é surpreendida pela maré cheia, e cercarom-

mh as ondas, que grandes son! E

Todo o texto é um monólogo em

cercarom-mi [as] ondas do alto mar. Há

que a própria protagonista nos descreve a

predominância dos fonemas nasais (m/n),

situação em que se encontra. O tema é a

que remetem ao barulho das ondas do mar

solidão que cresce, como uma marca que

e ao desespero da donzela, as ondas se

atormenta e aumenta sem trazer a barca

aproximam cada vez mais e ela não possui

nem o barqueiro para sair das ondas e da

barqueiro e não sabe remar: nen ei eu [i]

dor da saudade, sentimento característico

barqueiro,

português. De acordo com Ferreira (s/d),

barqueiro, nen sei remar!

esse sentimento se manifesta nas cantigas

nen

remador!/

nen

ei

[i]

A partir da estrofe de número 5

de amigo de forma autêntica e vivida,

começa

a

segunda

podendo mesmo considerar-se um tema

marcando

eminentemente nacional, pois reflete as

consequência da angústia crescente que

condições em que se formou a sociedade

desfigura

portuguesa na a reconquista cristã.

realidade: as ondas crescem juntamente

a o

parte

certeza cenário,

do da

ou

da

texto, morte, própria

Os versos do refrão repetidos ao

com o desespero da jovem e com a certeza

longo da cantiga, Eu atendend’ o meu

de as ondas afogarem-na. Confirmam os

amigo, eu atendend’ o meu amigo!, de

versos: e morrerei fremosa no mar maior!

acordo com Ferreira (s/d, p.18) “ acentuam

Porém,

a sugestão musical da cantiga (...) e

esperando o amigo, ideia reiterada nos

embora

versos do refrão.

portador

de

valor

imagístico

não

desiste

e

permanece

120


Célia Santos da Rosa

A

cantiga

a

A jovem se encontra totalmente a

natureza

mercê do amor, não tem amparo (sem

circundante e o estado de espírito da

remador, sem barqueiro). Não pode ser

protagonista. O encadeamento paralelístico

resgatada por ninguém, “Non hei [eu i]

do texto adapta-se ao desenvolvimento da

barqueiro nem remador”, nem mesmo

ideia e parece evocar o ir e vir crescente

consegue sair da situação sozinha, porque

das ondas do mar com a maré que

não sabe remar. O espaço atua como uma

aumenta, envolvendo a jovem enamorada,

extensão do eu-lírico, exteriorizando os

cuja saudade e solidão na espera tornam-

seus sentimentos, transmitindo as emoções

se obsessivas. A presença das ondas do

da protagonista totalmente entregue ao

mar que invadem o espaço é constante,

amor, às ondas do mar e à morte.

correspondência

entre

expressa a

predominando em todo o poema e em sua

Rosendahl (1996) define o espaço

estrutura através dos fonemas nasais

sagrado como “um campo de forças e de

(m/n), que remetem ao seu movimento e

valores que eleva o homem religioso acima

som, adquirindo uma simbologia. Chevalier

de si mesmo, que o transporta para um

(1986) explica que o mar simboliza o

meio distinto daquele no qual transcorre

mundo e o coração humano quando cedem

sua existência” (p.30). Na cantiga, o local

às paixões. Deste modo, na cantiga

de culto religioso foi transformado em lugar

estudada, as ondas representam o amor e

em que o amor é divinizado, deixando de

refletem o estado de alma angustiado e

ser profano. Maleval (1999) considera que

solitário do eu-lírico.

“através da pujança e da naturalidade

Retomando a questão do espaço,

erótica dos primórdios, do amor e da

Bachelard (2000) explica que ele pode ser

sexualidade encarados como sinônimos de

“percebido pela imaginação, não pode ser

júbilo, de vida, e mesmo de elevação a

o

à

planos superiores, anulam-se as noções de

mensuração e à reflexão do geômetra. É

pecado ou culpa com relação ao corpo e

um espaço vivido”(p.19). Nesse sentido, as

seus anseios” (p.45).

espaço

indiferente

entregue

ondas do mar não são apenas as que

A cantiga de Pero Vivães, jogral

levaram a donzela à morte, mas também

galego que revela profundo conhecimento

ocorreu um espaço vivido – os seus

da técnica provençal e fina sensibilidade

sentimentos que não foram indiferentes à

estética,

solidão e à saudade do amigo.

distinta entre espaço profano e espaço

apresenta

uma

divisão

bem

121


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

sagrado na cantiga pertencente ao ciclo afonsino:

filhas que saem de casa com intenções Pois nossas madres vam a Sam Simom de Val de Prados candeas queimar, nós, as meninhas, punhemos d'andar

distintas: as mães com a intenção religiosa de acender velas e fazer (ou pagar)

com nossas madres, e elas entom

promessas, “Pois nossas madres van a

queimem candeas por nós e por si,

San Simon / de Val de Prados candeas

e nós, meninhas, bailaremos i.

queimar” e as filhas com a intenção de

Nossos amigos todos lá irám

permanecer no adro da igreja para dançar

por nos veer e andaremos nós

e mostrar sua graciosidade e elegância no

bailand'ant'eles fremosas em cós; e nossas madres, pois que alá vam, queimem candeas por nós e por si.

vestir

para

andaremos

conquistar

nós/

o

amigo:

bailand’

ant’

e

eles,

fremosas [em] cós,/ e nossas madres, pois

e nós, meninhas, bailaremos i.

que alá van, queimem candeas por nós e

Nossos amigos irám por cousir como bailamos e podem veer

por si/ e nós, meninhas, bailaremos i.

bailar [i] moças de bom parecer;

Rosendahl (1996) explica que “o homem

e nossas madres, pois lá querem ir, queimem candeas por nós e por si,

religioso

tem

necessidade

de

se

e nós, meninhas, bailaremos i.

movimentar num espaço sagrado” (p. 31),

(VIVÃES, Pero – B. 735; V. 336; C. 735 apud

por isso, procura por estes espaços para

LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel et al, 2011).

Nesta

composição,

o

espaço

sagrado é a capela de San Simon de Val de Prados, localidade situada na região portuguesa de Trás-os-Montes ou em Espanha. Trata-se de uma cantiga de romaria (gênero tipicamente português), a partir de dois motivos distintos e fundamentais: o motivo

A cena é composta de mães e

religioso,

próximo

ou

distante,

sincero ou travesso, e o motivo da ausência do namorado, que tinha ido trabalhar com os mouros em defesa das terras (LAPA, 1973).

cultuar o divino. O local sagrado distinguese

do

profano,

“de

acordo

com

a

experiência religiosa há uma oposição entre o espaço sagrado e todo o resto que o cerca” (ROSENDAHL, 1996, p.30). Nas visitas aos templos e capelas, ou nas romarias, sempre acompanhadas das mães ou de parentes, as jovens adquiriam maior liberdade, lembrando que no período medieval, raramente tinham liberdade para sair de casa sozinhas e realizar

suas

conquistas

e

encontros

amorosos. De acordo com Cidade, “é quase

sempre

na

romaria,

junto

do

santuário, que a entrevista amorosa se

122


Célia Santos da Rosa

realiza, lá que as habilidades coreográficas,

Na cantiga em questão se revela,

os vestidos novos se exibem, para encanto

uma vez que as moças acompanham as

do amigo” (CIDADE, 1972, p. VII).

mães à capela de San Simon de Val de

Huizinga (2010) explica que o uso

Prados para dançar e encontrar os amigos

da igreja como local de encontros entre os

(namorados), oportunidade para exibir a

rapazes e as moças era muito comum na

beleza e a elegância no vestir na conquista

época medieval. Aliás, o motivo religioso

amorosa Nossos amigos iran por cousir /

não era o único que levava as pessoas a

como bailamos e podem veer / bailar [i]

procurarem os templos religiosos.

moças de bon parecer.

Ir à igreja era um elemento importante na vida social. As pessoas iam para ostentar o seu traje mais formoso, exibir seu status e notoriedade, e

Diferentemente da composição de Mendinho, a cantiga de Pero Vivães

competir pelas formas cortesãs e das boas

distingue o espaço profano do espaço

maneiras [...]. Se um jovem nobre entrava na

sagrado. Enquanto na cantiga de Medinho

igreja,

a

donzela,

mesmo

com

o

padre

consagrando a hóstia e o povo rezando, levantava-

o espaço sagrado é a ermida de San

se e o beijava na boca. Parece que era muito

Simon, na composição de Pero Vivães, as

comum conversar e passear dentro da igreja

mães se dirigem ao espaço sagrado (ao

enquanto a missa era celebrada. O uso da igreja como local de encontros os jovens e as moças era

santuário) para acender velas e as moças

tão comum que somente os moralistas ainda se

permanecem no adro do santuário (espaço

incomodavam com aquilo Os jovens raramente vão

profano), lembrando que o termo “profano”

à igreja, exclama Nicolas de Clémanges, que não seja para ver as mulheres que ali estão para exibir seus penteados elaborados e decotes generosos

vem do latim, pro (antes) e fanum (templo), e significa originalmente “fora do templo”.

(HUIZINGA, 2010, p. 262).

Considerações finais

Nesse sentido, a simples ida à igreja, ou às peregrinações justificava todo tipo de diversão e, sobretudo, os assuntos amorosos.

As

pessoas

realizavam

peregrinações até santuários distantes não apenas

para

pagar

promessas,

mas

também para ir ao encontro da liberdade. Huizinga

(2010)

constata

que

a

peregrinação na literatura, muitas vezes, foi retratada como simples viagem do prazer.

Nas cantigas de amigo, o cenário participa das alegrias, tristezas e ansiedade da jovem. As paisagens como as fontes, as praias,

as

ambiente,

árvores atuando

contextualizam sobre

o

o

“eu”,

despertando o amor, ou a confissão do desejo. As avelaneiras floridas, as ondas do mar, os pássaros refletem o estado da moça, se está feliz, triste ou com saudades de seu namorado. Sentimentos e paisagem estão interligados nas cantigas de amigo.

123


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

O eu é o espaço no poema. A poesia é a arte da descrição do eu. Os

presentes no poema para auxiliar a tarefa do eu exprimir-se, revelar-se.

dados da natureza, do mundo estão

Referências: ABDALLA JUNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História social da literatura

portuguesa. São Paulo: Ática, 1994. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BORGES FILHO, Ozíris. Espaço e literatura: introdução à topoanálise. São Paulo: Ribeirão Gráfica e Editora, 2007. CIDADE, Hernani. Poesia medieval - cantigas de amigo. Lisboa: Serra Nova, 1972. CHEVALIER, Jean. Diccionario de los símbolos. Barcelona: Editorial Herder, 1986. FERREIRA, Maria Ema Tarracha. Poesia e Prosa Medievais. Lisboa: Ulisseia, s/d. GULLÓN, Ricardo. La novela lírica. Madrid: Cátedra, 1984. HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. São Paulo: Cosacnaify, 2010. LAPA, Manuel Rodrigues. Lições de Literatura Portuguesa – Época Medieval. Coimbra: Coimbra Editora, 1973. LEMOS, Esther de. A literatura medieval. A poesia. In: História e antologia da literatura

portuguesa séculos XIII e XIV. Lisboa: Gulbenkian, p. 39-50, 1990. LIBANORI, Evely Vânia. A construção do espaço em Pedro Páramo de Juan Rulfo e Ópera

dos mortos de Autran Dourado. Tese de doutorado. Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2006. LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel Pedro et al. Cantigas Medievais Galego

Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA, 2011. [Consulta em 07 de fevereiro de 2014]. Disponível em: <http://cantigas.fcsh.unl.pt>. LOPES, Óscar; SARAIVA, Antonio José. História da literatura portuguesa. Lisboa: Porto Editora, s/d. MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Peregrinação e poesia. Rio de Janeiro: Editora Ágora da Ilha, 1999. MOISÉS, Massaud. A criação poética. São Paulo: Melhoramentos, Ed. da Universidade de São Paulo, 1977.

124


Célia Santos da Rosa

_______. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1986. ROSENDAHL, Zeny. Espaço e religião – uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro: UERJ, NEPEC, 1996. SANTOS, Luis Alberto Brandão; OLIVEIRA, Silvana Pessôa de. Sujeito, tempo e espaço

ficcionais: introdução à teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

125


A Reconquista da Hispânia: mito gótico e guerra santa César Augusto da Silva Foga 1 Resumo: A Reconquista da Hispânia (711|722-1492) é um dos temas mais debatidos pela historiografia medieval. A princípio esta comunicação pretende apresentar em linhas gerais duas possíveis interpretações sobre essa guerra: a primeira interpretação destaca a importância do mito gótico (recuperação do reino Visigodo) e a segunda irá tratar sobre a relevância do mito de Santiago durante a Reconquista. Portanto, a partir da leitura de algumas fontes e de uma bibliografia pertinente ao tema buscaremos demonstrar que a motivação dos cristãos na guerra de Reconquista pode ser compreendida a principio como uma tentativa de recuperação da herança visigoda, no entanto, no decorrer do século XI o mito de Santiago desempenharia uma função fundamental. Assim, segundo alguns historiadores a suposta presença dos restos mortais de Santiago na região da Hispânia foi fundamental para o desenvolvimento da guerra, pois muitos cristãos que combatiam naquela região acreditavam estar expulsando os infiéis (mouros) das terras do apóstolo, essa questão fica evidente ao realizarmos a leitura crítica de algumas fontes produzidas no início do século XII (contexto das Cruzadas). A metodologia utilizada é a chamada Análise Crítica do Discurso. Por fim, esperamos ao final da apresentação demonstrar que a Reconquista da Hispânia foi também um dos fatores que permitiram/auxiliaram a propagação do mito de Santiago na Cristandade medieval. Palavras-chave: Reconquista da Hispânia; guerra santa; historiografia.

1

(NEAM) UNESP/Assis

126


César Augusto da Silva Foga No ano de 711 um exército muçulmano invadiu a península Ibérica e a conquistou; em 1492, os reis católicos de Aragão e Castela conquistaram Granada,

o

último

“Estado”

muçulmano

independente da península; e entre essas duas datas, o poder político foi passando lentamente das mãos muçulmanas para as mãos cristãs. Esse

importante para tal empreendimento e, sobretudo, apontar a relevância do mito de Santiago para o desenvolvimento dessa guerra entre cristãos e mouros. Todavia, antes de adentrarmos na

processo normalmente é chamado de Reconquista

discussão aqui proposta, é importante

(...) (LOMAX, 1984, p. 9).

discutirmos a complexidade que envolve o

Com essas palavras o hispanista Derek Lomax nos apresenta uma síntese factual daquilo que a historiografia concebe por

Reconquista

da

Hispânia.

próprio termo/conceito de Reconquista que carrega consigo exaltações e preconceitos.

Assim,

Dentre as várias questões importantes que afetam

durante cerca de oito séculos, a palavra

a Idade Média peninsular em seu conjunto, nenhuma é mais debatida que o conceito e o

“Espanha” esteve essencialmente ligada a essa

tão

singular

ação

que

foi

significado da Reconquista. O próprio termo

a

utilizado desde o século XIX pelos historiadores espanhóis

Reconquista (MARAVALL, 1981, p. 249). significa

para

os

medievais sem esclarecer essa conexão nela se desenvolveu e que postulou como sua própria meta (MARAVALL, 1981, p. 249). Portanto, a partir das palavras de Jose Antonio Maravall seria impossível compreender a Idade Média Ibérica, sem levarmos em consideração esse fenômeno tão crucial que foi a Reconquista. Nosso circunscreve

objetivo em

explanar

aqui

se

acerca

das

motivações dos cristãos hispânicos que estão

relacionados

desenvolvimento

da

à

origem

e

Reconquista.

ao Em

outras palavras, discorrer sobre até que ponto a herança gótica (visigodos) foi

problemas

acabou

correr rios de tinta. (JIMENEZ, 2003, p. 133).

cristãos

entre “Espanha” e a empresa histórica que

maiores

convertendo-se num assunto polêmico que há feito

Logo, não é possível entender o que a “Espanha”

sem

Dessa maneira, há aqueles que exaltam a Reconquista como um momento chave da história da Espanha e outros que a

consideram

como

uma

exaltação

“nacionalista” de uma historiografia que busca resgatar um passado glorioso de uma nação em decadência. Manuel González Jiménez citando a obra de José Antonio Maravall versa o seguinte, (...) a definição de Maravall sobre a Reconquista, a considera

como

reestabelecimento,

uma

recuperação,

restauração

do

senhorio

político dos cristãos sobre a península, ainda afirma que se trata de um mito onde o que interessa

averiguar

não

é

como

os

feitos

ocorreram na realidade, mas sim, como se foi

127


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo constituindo um sistema de crenças. (JIMENEZ, 2003, p. 142).

Segundo

Derek

Lomax

a

Reconquista foi um ideal criado pelos cristãos

hispânicos

após

a

conquista

muçulmana (LOMAX, 1984, p. 10). Dessa forma, partir das palavras de Maravall e do próprio Lomax percebe-se que a ideia de Reconquista foi concebida e desenvolvida pelos cristãos nos anos posteriores a invasão muçulmana. Assim,

segundo

a

nossa

concepção, para compreendermos como se deu tal processo devemos nos ater à dois elementos fulcrais que já foram citados por nós, e que serão desenvolvidos nas próximas

páginas:

(recuperação

da

o

mito

herança

gótico

visigoda)

e

também ao desenvolvimento do conceito de guerra santa na Hispânia, essa última então sustentada na crença dos cristãos que a Hispânia seria uma terra sagrada devido

a

presença

das

relíquias

do

apóstolo Tiago naquela região. Aliás, devemos lembrar que a conquista muçulmana da península se deu de maneira repentina, isto é, praticamente não houve resistência à invasão. Isso pode ser explicado em decorrência da crise interna pela qual passava o reino Visigodo em seus últimos momentos de existência, especialmente, no que concerne à questão da

sucessão

monárquica,

o

que

posteriormente ajudaria alimentar a lenda de que a perda da Hispânia para os muçulmanos foi uma consequência do pecado do povo godo. Pois, segundo essa crença os godos não haviam respeitado os preceitos divinos assim como as decisões dos concílios e, dessa maneira, a invasão seria fruto do julgamento divino (JAYO, 2001, p. 29). Outro

aspecto

que

deve

ser

considerado é que as próprias minorias do reino Visigodo auxiliaram os muçulmanos na conquista, conforme afirma Andrade Filho,

(...)

sofrendo,

uma

dominação

demasiadamente opressiva, não hesitaram em prestar sua colaboração aos invasores, diante da possibilidade de um regime brando (ANDRADE FILHO, 1994, p. 15). No que diz respeito ao chamado mito gótico, ou neogoticismo, devemos voltar nossas atenções para a Alta Idade Média hispânica, mais especificamente para a formação do reino de Astúrias. Nos anos posteriores a instalação dos árabes e berberes

na

península;

na

região

cantábrica, teve lugar a articulação das primeiras resistências armadas ao poder sarraceno e ocorreu a formação do reino de Astúrias (MARAVALL, 1981, p. 22). As origens da Reconquista que tem lugar numa região

da

Espanha

características

também

bem

concreta

definidas

e

tem

de sido

estudada através de diferentes pontos de vista, mas em geral, se tem prestado pouca atenção em

128


César Augusto da Silva Foga explicar as peculiaridades históricas dos territórios onde nasceram os primeiros “Estados” cristãos. (BARBERO & VIGIL, 1988, p. 13).

Abílio Barbero e Marcelo Vigil ao apontarem essa problemática afirmam que é importante compreendermos a trajetória histórica da região norte da Hispânia entre o final do Império Romano do Ocidente (século V) e a invasão muçulmana da península Ibérica (BARBERO & VIGIL, 1988, p. 13). No entanto, nossa proposta por ora, é apenas discutir a formação do reino cristão de Astúrias após a invasão muçulmana e buscar apontar a partir de sua formação e desenvolvimento quais eram as heranças visigóticas ali presentes, isto é, se podemos então considerar a Reconquista como a restauração de um domínio legítimo (MARAVALL, 1981, p. 254), domínio esse que seria o reino Visigodo. Conforme

tratado

após

a

conquista muçulmana (início do século VIII) muitos cristãos se refugiaram no norte da península onde então se formaram os chamados núcleos de resistência. Esses núcleos de resistência foram formados pelos refugiados (em parte a própria elite visigoda)

e

também

autóctone

que

pela

vivia

na

população região

população essa que já habitava o norte da península e que resistia não apenas à invasão muçulmana, mas, também não se

submeteram

ao

Império

Romano

e

tampouco ao reino Visigodo. Aos poucos, durante o próprio século VIII, estas comunidades, agora formadas pelos

montanheses e pelos

cristãos vindos da parte invadida da Península foram se aglutinando em torno de novos núcleos políticos (VEREZA, 1998, pp. 17-18). E, com o decorrer do tempo ocorreu

entre

esses

povos

uma

apropriação da herança visigótica, servindo inclusive de motivação e apoio ideológico para a reconquista territorial (VEREZA, 1998, p.18). O primeiro relato de origem cristã (moçárabe) que faz menção a queda do reino

Visigodo

seria

elaborado

três

décadas após a invasão muçulmana, o texto é conhecido como Anônimo de

Córdoba. (JAYO, 2001, p. 21). Porém, a crônica em discussão não faz referência a criação do reino de Astúrias (NOGUEIRA, 2001, p. 279). O cronista descreve uma Espanha arrasada, com todas as cidades, inclusive Toledo e Zaragoza, devastadas, incendiadas

e

despovoadas,

seus

habitantes mortos ou prisioneiros (...). (JAYO, 2001, p. 21). Segundo

Carlos

Roberto

Figueiredo Nogueira esse silêncio dos relatos escritos sobre a queda do reino Visigodo perante os muçulmanos pode ser um sinal de que,

129


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo Ao

contrário

das

invasões

bárbaras

que

provocaram um grande número de lamentações, pela perda do Império nas mãos bárbaras, parece

invasão muçulmana.

que ninguém lamentou o fim do Reino visigótico.

Nesse contexto também foi criado

Sinal aparente claro, de que não havia uma perda

o mito de Pelayo, o primeiro herói da

a ser carpida (NOGUEIRA, 2001, p. 278).

A ideia de recuperação do reino Visigodo

passou

a

ser

fomentada

principalmente após a consolidação do reino de Astúrias sob o comando de Alfonso

III

é

então

quando

algumas

crônicas elaboradas no norte da península faziam referência a “perda da Espanha”, dentre essas crônicas podemos destacar a

Chronica Visegothorum. Segundo Graciela Mérida de Jayo a referida crônica centra sua

ocorrido por volta do ano 720, logo após a

atenção

considerando-os

nos

reis

como

asturianos

herdeiros

da

monarquia visigótica (JAYO, 2001, p. 30). Portanto,

segundo

a

mesma

autora

podemos considerar que no século IX já havia no norte da Hispânia a crença de “perda da Espanha” e com isso a ideia de Reconquista passou a ser concebida. a

monarquia

asturiana

deixam margem para duvidar que se trata de um aristocrata ou nobre godo, ou um chefe dos astures (JAYO, 2001, p. 38). O mito de Pelayo assim como o da batalha de Covadonga serão utilizados ao longo da Reconquista pelos monarcas cristãos, por exemplo, no século XIII ao elaborar a

Primera Crónica General de España, Alfonso X, o Sábio discorre sobra a figura de Pelayo. Alfonso X, o Sábio – preocupado em manter o vínculo histórico que liga sua geração aos heróis do passado, que deram início ao processo de Reconquista – resgata na Primera Crónica General de España, as narrativas que fazem referência tanto à conquista realizada pelos muçulmanos

está

consolidada e passa a formar alianças com a Igreja que tem início a elaboração de uma série de lendas que buscam legitimar a Reconquista, dentre essas lendas está a batalha de Covadonga e de Pelayo. Segundo a crença vigente na época, Covadonga, havia sido a primeira vitória dos cristãos contra os muçulmanos teria

como

aos

inícios

da

Reconquista

desenvolvida a partir de três núcleos de resistência formados por astures, cântabros e vascones, com os godos que fugiram em consequência do avanço muçulmano.

É então a partir do século IX quando

Reconquista, as Crônicas do século IX

Segundo

a

Crônica

inicia-se

a

Reconquista em torno do godo Pelayo (718-725) o primeiro rei de Astúrias (RUI, 1996, p. 30).

Segundo a crença Pelayo havia sido perseguido pelo rei Visigodo Witiza e se refugiado em Astúrias onde mais tarde se rebelaria contra a ocupação muçulmana e fora o primeiro líder responsável pela libertação

dos

cristãos

hispânicos

(NOGUEIRA, 2001, p. 282). Portanto,

a

suposta

lenda

considera o reino de Astúrias como uma

130


César Augusto da Silva Foga

“continuação” do reino Visigodo e também os responsáveis pelos primeiros atos da

as

Somando-se

palavras

de

Reconquista seriam os próprios visigodos

Adaílson José Rui a concepção de guerra

ou os herdeiros diretos destes. Entretanto,

santa na Hispânia se desenvolveu devido a

é importante lembrarmos que estamos

ação dos monarcas cristãos e da Igreja o

tratando de um discurso elaborado no

que explica em parte, o interesse de ambos

“calor da Reconquista”, mas a partir da

em promover o mito de Santiago.

elaboração dos mesmos percebemos que o

No que diz respeito à Cristandade

mito gótico teve grande relevância para os

ocidental como um todo, podemos afirmar

cristãos.

que o conceito de guerra santa surgiu a

Portanto, no que refere-se ao mito

partir do século XI, especialmente, após o

gótico constatamos que por mais que a

apelo do papa Urbano II aos cristãos no

perda

ano de 1095, quando então este pregou as

do

reino

Visigodo

para

os

muçulmanos a principio não tenha causado

Cruzadas.

tanta

historiadores na prática a noção de guerra

consternação,

ao

longo

da

Reconquista esse passado foi retomado buscando, assim legitimar a Reconquista, quer dizer, oferecendo um sentido prático à mesma, sentido esse que seria recuperar o

para

alguns

santa já existia. A noção de guerra santa é antiga, se não entre os teóricos, pelo menos na sensibilidade e no pensamento comuns. As guerras de Carlos Magno contra

os

mouros

e

saxões

comportam

características de guerra santa: os guerreiros são

reino Visigodo. Outro

Todavia,

mito

legitimador

da

Reconquista foi o de Santiago e a partir da

persuadidos a combater em favor de Deus, a defender ou ampliar seu reino (ROUSSET, 1980, p. 24).

gestação desse mito a referida guerra

Para ilustrarmos a afirmação do

passaria ser concebida também como

historiador Paul Rousset, podemos utilizar

guerra santa.

como exemplo as campanhas de Carlos

O encontro do sepulcro contendo o corpo do apóstolo São Tiago em Compostela, reino de Galícia provavelmente na terceira década do

Magno na Hispânia que posteriormente seriam utilizadas como exemplo de guerra

século IX, foi um fator que muito contribuiu para

santa, principalmente durante as Cruzadas.

fortalecer a maior parte do norte da Península

O Pseudo-Turpin faz alusão a essas

Ibérica,

encorajando

moralmente

as

forças

militares e os cristãos em geral que viam na

campanhas e inclusive relata a aparição do

presença do corpo de São Tiago o sinal de que

apóstolo

Deus havia enviado seu servo para defendê-los

solicitando ao mesmo para libertar suas

contra o inimigo o infiel muçulmano (RUI, 1996, p. 38).

Tiago

ao

Imperador

cristão,

terras.

131


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo Quem és, senhor? “Eu sou, respondeu São Tiago Apóstolo, discípulo de Cristo, filho de Zebedeu, irmão de João Evangelista, a quem com sua

lados geralmente) de combater por uma causa

justa.

(FLORI,

2005,

p.

92).

inefável graça o Senhor se designou eleger, junto

Pensando no caso da Hispânia, um dos

ao mar da Galileia, para pregar aos povos; a quem

objetivos da guerra justa seria libertar as

o rei Herodes matou com a espada, e cujo corpo descansa ignorado na Galiza, que se encontra

terras do apóstolo Tiago.

vergonhosamente oprimida pelos sarracenos. Por

Outro elemento que devemos nos

isso muito me admiro que não hajas livrado dos

ater ao discorrermos sobre o conceito de

sarracenos minha terra, tu, que tantas cidades e terras tens conquistado. Pelo que te faço saber

guerra

santa,

é

o

surgimento

e

que, assim que como o Senhor te fez o mais

desenvolvimento da cavalaria. Um tema

poderoso dos reis da terra, igualmente te elegeu

discutido com veemência pela historiografia

entre todos para preparar meu caminho e livrar minha terra das mãos dos muçulmanos (...). (LIBER SANCTI JACOBI, 1998, p. 73).

O

relato

descrito

acima

foi

medieval, e que tem entre seus principais teóricos Jean Flori, Georges Duby e Dominique Barthélemy.

elaborado por volta do século XII, isto é,

Os historiadores supracitados nos

contexto das Cruzadas, do avanço dos

apresentam uma série de interpretações

reinos cristãos na Hispânia e apogeu das

sobre a origem da cavalaria, talvez a mais

peregrinações a Santiago de Compostela,

importante esteja relacionada à questão

logo, a elaboração de tal relato possui uma

etimológica,

série de intenções, dentre essas, em

argumentação ao discorrerem sobra a

promover o conceito de guerra santa na

origem da cavalaria no Ocidente medieval

Cristandade. Ademais, a partir do mesmo

a utilização da palavra miles, quando esta

excerto podemos perceber a importante

havia surgido nos documentos escritos.

onde,

utilizam

como

participação dos francos na Reconquista,

Segundo a abordagem de Jean

onde então segundo o Pseudo-Turpin,

Flori a cavalaria surgiu por volta do ano

Carlos Magno seria o primeiro responsável

1000.

em libertar a Hispânia do jugo mouro.

fusão lenta e progressiva, na sociedade

Considero a cavalaria resultante da

Ao tratarmos da noção de guerra

aristocrática e guerreira que se implanta

santa, Jean Flori, versa que uma das

entre o fim do século X e o fim do XI, de

características

na

muitos elementos de ordem política, militar,

seguinte questão; A presença no campo de

cultural, religiosa, política e ideológica

batalha das relíquias dos santos e seus

(FLORI, 2005, p. 12).

principais

consiste

estandartes testemunha no mesmo sentido a certeza que têm os cavaleiros (dos dois

Georges Duby pesquisando uma documentação

referente

à

região

132

do


César Augusto da Silva Foga

Mâconnais quando elaborava uma de suas

por meio das armas (FRANCO JÚNIOR,

obras, afirma que a palavra miles surge nas

2006, p. 89).

atas por volta de 970 (DUBY, 1989, p. 24).

A relevância em apontarmos o

Porém, o mesmo ainda afirma que nessa

surgimento da cavalaria como um dos

época não podemos dar uma conotação

elementos

militar ao termo (DUBY, 1989, p. 29), que

refere-se à guerra santa é em função da

segundo o autor será apenas por volta do

aproximação que haverá entre essa ordem

século XIII que a cavalaria irá constituir um

(cavalaria) e o clero, quando por exemplo,

corpo muito bem delimitado (DUBY, 1989,

o

p. 23), mas, que ao final do século XI as

servindo à Igreja por meio das armas

atas jurídicas já tratam a cavalaria como

(CARDINI, 1989, p. 60). Ademais, as

um grupo coerente.

batalhas em sí eram marcadas por todo um

Dominique

Barthélemy

situa

a

cavaleiro

determinantes

poderia

ser

naquilo

tornar

que

santo

ritual religioso; As batalhas são todas

origem da cavalaria entre os séculos XI e

precedidas

XII, segundo o mesmo nessa época

esmolas, jejuns, penitências, orações e

ocorreu aquilo que ele denomina por

invocações que suplicam a ajuda de santos

“mutação

(BARTHELEMY,

(FLORI, 2005, p. 92). Além do quê, a

2010, p. 17), no entanto, Barthélemy ainda

cavalaria desempenhou uma importante

busca resgatar as raízes da cavalaria

função na Reconquista, muitas vezes até

medieval na Germânia Antiga.

simbólica, caso do El Cid.

cavaleiresca”

por

procissões,

confissões,

Portanto, a partir das ideias dos

Assim, várias lendas elaboradas a

referidos autores (Flori, Duby e Barthélemy)

partir do século XI enaltecendo os valores

brevemente

podemos

da cavalaria ajudaram a alimentar a noção

concluir que a cavalaria surgiu no Ocidente

de guerra santa na Cristandade. Podemos

medieval entre os séculos X e XIII, contudo

citar como exemplo, a Chanson de Roland.

podemos ser

mais específicos e situar

Segundo essa famosa canção de gesta,

essa periodização no início do século XI,

Rolando (sobrinho de Carlos Magno) fora

quando então a partir de um documento

morto por volta do final do século VIII numa

conhecido por “Sociedade Tripartida”, o

incursão que objetivava libertar a Hispânia.

autor (bispo, Aldaberon de Laon) situa o

Portanto,

papel dos guerreiros (cavalaria) dentro da

defendendo a fé cristã contra àqueles que

sociedade cristã, àqueles que teriam a

eram considerados os infiéis.

incumbência de proteger a sociedade cristã

Cardini ao tratar sobre a relação entre o

aqui

expostas,

Rolando

havia

morrido Franco

133


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

mito de Rolando e a cavalaria, aponta que,

Santiago

seria

um

poderoso

apoio

A cavalaria nasceu morta: logo que nasceu,

espiritual para a Reconquista (JAYO, 2003,

chorou diante do corpo inanimado de

p. 73).

Rolando, caído em Roncesvales. E chorou

Santiago que a principio seria apenas

por um herói caído há muito tempo, se

um apoio espiritual aos cristãos hispânicos

pensar que o Rolando histórico viveu no

que lutavam contra os muçulmanos foi

século VIII e que as chansons datam do

adquirindo

século XI (CARDINI, 1989, p. 78).

presença nas batalhas tornou-se recorrente

É importante reiterarmos que essas

novas

características,

sua

e Tiago o apóstolo outrora evangelizador

lendas passaram a ser elaboradas num

da

contexto histórico específico, que foi o do

característica, a de cavaleiro, o Santiago

século

Matamoros (CASTRO, 1982, p. 259).

XI,

acompanhando

então

a

gestação do conceito de guerra santa na

Hispânia,

adquire

uma

nova

Essa discussão acerca da passagem

Cristandade e também coincidindo com

do

uma fase vigorosa de expansão dessa

cavaleiro, já foi debatida exaustivamente

Cristandade contra o Islão. Dessa forma,

pela historiografia espanhola, sobretudo,

podemos conceber a cavalaria como uma

por Américo Castro e Cláudio Sanchez

das consequências da guerra santa ou esta

Albornoz. Contudo, apresentaremos de

só foi possível com o desenvolvimento da

forma sucinta a opinião de ambos os

primeira?

historiadores no que diz respeito à hipótese

Acreditamos

que

ambas

se

desenvolveram de forma concomitante. Em meio a essa imagem do cavaleiro cristão como herói que defendia a fé cristã,

Santiago

evangelizador

para

o

desenvolvida por nós no presente trabalho (relação entre o mito de Santiago e a Reconquista da Hispânia).

muitos francos irão dirigir-se para a região

Segundo Américo Castro, a difusão

da Hispânia, motivados pelo ideal de

do mito de Santiago está vinculado aos

guerra

santa,

interesses econômicos e políticos dos

novas

oportunidades

mas

também

buscando Assim,

soberanos cristãos, esses que segundo

doravante, voltaremos nossa atenção para

Castro utilizaram o fator religioso para

o caso da Hispânia especificamente.

fortalecer os seus exércitos na luta contra

materiais.

Conforme citado acima, o encontro

os muçulmanos (RUI, 1996, p. 41). Afirma

das supostas relíquias de Santiago na

Castro, (...) se não tivesse sido a Espanha

região da Galiza serviu de estímulo para os

submetida ao Islã, o culto de São Tiago

cristãos na guerra contra os mouros, assim

não teria prosperado (CASTRO, 1982, p.

134


César Augusto da Silva Foga

260). Logo, Américo Castro, relaciona o

vez que, no início do século VIII, não havia

mito

a noção de guerra santa na Cristandade e

de

Santiago

como

sendo

uma

consequência da ocupação muçulmana.

tampouco a de cavalaria, logo, Santiago

Sánchez Albornoz assinala que

que a principio era apenas um protetor

Santiago é, fruto da religiosidade dos

espiritual daqueles cristãos refugiados ao

cristãos que em virtude das dificuldades da

norte da península Ibérica adquiriu uma

Reconquista

nova faceta, a de cavaleiro, acompanhando

concretizaram

pensamento

(SANCHEZ

um

ALBORNOZ,

1956, p. 260). Américo

então

a

transformação

medieval. Castro

e

Sánchez

Matamoros

Deste nada

da

modo, mais

sociedade

o é

Santiago que

uma

Albornoz com exceção feita às inúmeras

consequência da mutação na mentalidade

diferenças

uma

cristã entre os séculos XI e XII, quando a

posição em comum, conforme assinala o

noção de guerra santa e a cavalaria

historiador Adaílson José Rui, (...) ambos

começaram a se fazer presentes.

intelectuais

possuem

afirmam que o apóstolo é uma criação da Espanha (RUI, 1996, p. 43).

A partir da leitura das crônicas e hagiografias elaboradas na referida época,

Segundo nossos conhecimentos,

Santiago está presente ao lado dos cristãos

chegamos à seguinte conclusão: a criação

durante as batalhas como um cavaleiro

do mito de Santiago, seja o apóstolo ou o

enviado por Deus para auxiliá-los na guerra

cavaleiro, pode ser melhor compreendida

contra os muçulmanos. Se utilizarmos

se considerarmos como fundamento teórico

como exemplo o Poema de Mío Cid, fica

a chamada história das mentalidades. Pois,

patente inclusive a oposição entre Santiago

toda a evolução que diz respeito à

e o líder dos muçulmanos, Maomé. Os

mentalidade, segundo, Jacques Le Goff, é

mouros chamam Maomé e os cristãos

lenta e ocorre na chamada longa duração

chamam Santiago (POEMA DE MÍO CID,

(LE GOFF, 1976, p. 72). Dessa maneira,

1996, p. 171). Logo, segundo o Poema, se

desde às origens do mito de Santiago na

os mouros tinham a proteção de Maomé,

Hispânia até o momento em que esse

os cristãos eram auxiliados por Santiago.

adquire a característica de cavaleiro, isto é,

Percebemos que os documentos

as mudanças que ocorreram nesse ínterim,

que fazem menção clara ao Santiago

podem

através

da

Matamoros,

mentalidade

da

dentro das fronteiras hispânicas, caso do

Cristandade ocidental como um todo. Uma

Poema de Mio Cid, Primera Crónica

ser

transformações

explicadas na

foram

àqueles

produzidos

135


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

General de España, Historia Silense, dentre outros. Assim, o LSJ, com exceção feita ao quarto livro Pseudo-Turpin, quase não faz menção à participação de Santiago nas batalhas. De uma maneira geral os 22 milagres apresentados no LSJ apresentam o auxilio do apóstolo aos peregrinos, à cura de enfermidades, libertação de prisioneiros e apenas alguns milagres fazem referência aos mouros. Porém, o LSJ, não nega a faceta do Santiago Matamoros, pelo contrário o mesmo ratifica tal faceta. Há um milagre exposto no LM (milagre XIX) onde um bispo afirmava que o Santiago Matamoros não existia. Mas certo dia, quando estava entregue à oração

chamassem de Cavaleiro, senão pescador; por isso apareço a ti nesta forma, para que não duvides mais que milito a serviço de Deus e sou seu campeão e na luta contra os sarracenos precedo aos cristãos e saio vencedor por eles (LIBER SANCTI JACOBI, 1998, p.169).

As duas chaves que estavam nas mãos de Santiago eram para ajudar o monarca Fernando I de Castela a abrir as portas de Coimbra e reconquistá-la junto aos mouros. Tal milagre é exposto na

Historia Silense e posteriormente será retomado na Historia Compostelana, o relato sobre o cerco de Coimbra é um dos primeiros que fazem alusão ao auxilio efetivo de Santiago aos cristãos nas batalhas da Reconquista. A imagem do Santiago cavaleiro

como de costume. Uma multidão de aldeões, que

tornou-se frequente nas crônicas, poemas

participava

e hagiografias elaboradas no decorrer da

de

uma

festa

particular

do

preciosíssimo São Tiago e se pôs diante do altar junto à cela do santo varão, começou a rogar ao

Reconquista,

principalmente,

após

os

Apóstolo de Deus com estas palavras: “-São

séculos XI e XII. Logo, o surgimento e

Tiago,

consolidação do Santiago seja o apóstolo

bom

cavaleiro,

livra-nos

dos

males

presentes e futuros”. E o santo homem de Deus, levando a mal que os aldeões chamassem ao

evangelizador ou o cavaleiro, foi outra

Apóstolo cavaleiro, repreendeu-os dizendo: “-

forma utilizada pelos cristãos para legitimar

Aldeões burros, gente ignorante, a São Tiago

a Reconquista.

deveis chamá-lo pescador e não cavaleiro”. E lembrou a passagem bíblica segundo a qual À

Portanto,

podemos

considerar

conclamação do Senhor o seguiu, deixando o

como elementos fundamentais para o

oficio de pescador, e foi feito em seguida pescador

desenvolvimento

de homens. Mas na noite do mesmo dia em que o santo varão havia recordado isto de São Tiago,

da

Reconquista

da

Hispânia, os seguintes fatores: além da

este se lhe apareceu vestido de alvíssimas roupas

própria expansão da Cristandade a partir

e portando armas que sobrepujavam em brilho aos

do século XI, - que, por conseguinte, fez a

raios do sol, com um perfeito cavaleiro e, além do mais, com duas chaves na mãos. E havendo-lhe chamado três vezes, lhe falou assim: “Estevão,

Reconquista avançar, os mitos, gótico e o de Santiago desempenharam um papel de

servo de Deus, que mandaste que não em

136


César Augusto da Silva Foga

grande relevância no que diz respeito à

No que diz respeito ao desenvolvimento da

motivação dos cristãos em reconquistar as

Reconquista, Santiago foi considerado um

terras da península Ibérica.

auxílio

Finalizando, poderíamos considerar

espiritual

para

enfrentar

os

muçulmanos. Logo, podemos considerar

o mito de Santiago e a Reconquista da

que

Hispânia como um encontro de vontades?

determinantes, conforme afirma Américo

Pensamos que sim. Pois, para que o mito

Castro, mas os fatores que ali haviam eram

de

condicionantes, ou seja, as condições

Santiago

tivesse

ressonância

na

ambos

os

fatores

existentes

foi

na

península Ibérica auxiliaram na propagação

Hispânia, e então foi concebida a ideia de

do mito de Santiago, como o mesmo foi um

que os cristãos deveriam libertar as terras

apoio

que Tiago havia evangelizado e onde

Reconquista.

presença

dos

muçulmanos

dado

foram

Cristandade um dos fatores que contribuiu a

naquele

não

contexto,

espiritual/psicológico

para

na

a

também repousavam seus restos mortais.

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138


AS CANTIGAS DE LOUVOR DE D. AFONSO X E O ESPAÇO SAGRADO: ESTUDO DO TEXTO E DA IMAGEM Clarice Zamonaro Cortez 1 Resumo: As Cantigas de Santa Maria, de D. Afonso X, são consideradas por Ângela Vaz Leão (1997, p. 33) como a “verdadeira comédia humana do século XIII”, em que todas as classes sociais se fazem representar. Além de precioso documento linguístico e verdadeira obra de arte literária, iconográfica e musical, constituem uma fonte histórica inigualável que possibilita o conhecimento dos hábitos, costumes e mentalidade da Idade Média na Península Ibérica. Apresentam duas vertentes temáticas: a profana e a religiosa, de teor lírico ou lírico-narrativo. Integram o códice de cantigas dedicadas à Santa Maria as cantigas de loor (cantigas de louvor), manifestações do gênero lírico, e as cantigas de miragre (cantigas de milagre), que pertencem ao gênero narrativo, mas que apresentam traços de lirismo laudatórios, sobretudo, nos refrães e nos finais dos milagres. De acordo com a teoria da literatura, é no espaço que a ação se desenvolve e as personagens se movimentam. Com base nessa premissa, cabe a ele, conforme Dimas (1985), funcionar como armadilha virtual do texto, na medida em que poderá provocar a adesão ou a repulsão do leitor, bem como instigar sua curiosidade através das referências sobre o cenário. As Cantigas de Santa

Maria referem-se às cidades, locais de romaria e peregrinação na Idade Média. O espaço sagrado, retratado nos textos e em imagens iconográficas, representa episódios e cenas de louvor e milagres ocorridos nos conventos, santuários e igrejas, onde a Virgem louvada curava as doenças e livrava as pessoas do pecado.

Palavras-Chave: cantigas; espaço sagrado; texto/imagem.

1

Universidade Estadual de Maringá.

139


Clarice Zamonaro Cortez A arte literária e pictórica são os canais

naturais

de

expressão

do

pensamento de cada época, por isso

que

presente

estudo

de

lirismo

finais dos milagres. Quanto

objetiva

traços

laudatórios, sobretudo, nos refrães e nos

tornam-se uma fonte muito rica de estudo. O

apresentam

cancioneiros,

à as

disposição

cantigas

de

nos

milagre

apresentar uma abordagem comparativa do

predominam sobre as de louvor, numa

texto poético e das ilustrações (miniaturas)

proporção de nove por um. Isso significa

de exemplares das Cantigas de Santa

que a cada grupo de nove cantigas

Maria, especificamente das cantigas de

narrativas segue-se uma lírica, numerada

louvor. Dentre as obras produzidas na corte

com uma dezena inteira. No final da obra,

de Afonso X, as três edições conservadas

porém, aparecem algumas cantigas de

das Cantigas de Santa Maria são, sem

festas

dúvida,

A

comemorativas de episódios da vida de

culturais

Santa Maria ou de Cristo. A estruturação

reúne

das cantigas obedece a um ritmo regular,

Virgem,

em que as cantigas de louvor ocupam

partituras musicais que compõem um dos

sempre as dezenas, enquanto as de

repertórios mais importantes da Baixa

milagre têm números terminados pelas

Idade Média europeia, e a arte pictórica

unidades de um a nove, o que lembra a

das miniaturas que completam duas das

disposição de um rosário. (LEÃO, 2007, p.

edições

24).

as

universalidade culmina

em

composições

mais dos uma

significativas. projetos obra

dedicadas

escritas

em

que à

língua

galego-

do

calendário

cristão,

portuguesa, documentos preciosos para o

Domínguez e Gajardo (2007, p. 123)

conhecimento da vida e dos costumes da

registram que a devoção à Virgem Maria na

época.

Europa alcança o apogeu no século XII,

As obras literárias de Afonso X

com ampla participação da Península

apresentam duas vertentes temáticas: a

Ibérica, porém, no século VIII já havia

profana e a religiosa. Há ainda duas

relatos de milagres atribuídos à intervenção

espécies de poemas que integram o códice

de Maria. No final do século XI e nos

de cantigas dedicadas à Santa Maria: as

séculos

cantigas de loor (cantigas de louvor),

reuniram os milagres ocorridos sob o ponto

manifestações do gênero lírico, e as

de vista didático, acrescentando-lhes uma

cantigas de miragre (cantigas de milagre),

série de legendas locais. Essas coleções

que pertencem ao gênero narrativo, mas

de milagres, em latim ou língua vernácula,

XII

e

XIII,

os

compiladores

140


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

em prosa ou verso, narravam intervenções

lhe a beleza ou bon parecer e também para

milagrosas de Santa Maria, mas não

louvar o seu valor moral (prez), o equilíbrio

incluíam canções líricas como as de Afonso

ou mesura e todas as outras qualidades

X. Assim, as Cantigas de Santa Maria

que fazem dela a Sennor sem par, perfeita,

chegaram ao final do período como a

comprida de ben”. (LEÃO, 2007, p. 28).

última

Nesse sentido, o ideal do amor cortês

das

grandes

compilações

de

milagres europeus e, segundo Snow (1972

mescla-se

apud DOMÍNGUEZ; GAJARDO, 2007, p.

conseguinte, a mulher amada sublima-se

123), a mais diferenciada de todas pela

na figura da Virgem Maria, por isso, ela é a

presença de 42 cantos líricos são as

Rosa das rosas e Fror das Frores / Dona

cantigas de louvor.

das donas, Sennor das sennores(Rosa das

As

cantigas

de

louvor

ao

ideário

cristão

e,

por

são

rosas e Flor das Flores/ Dona das donas e

composições líricas que se assemelham às

Senhora das senhoras), como evidencia o

laudas surgidas na Úmbria e que no final

refrão da cantiga 10. (AFONSO X, 1959, p.

do século XII espalharam-se por toda a

33).

Itália, renovando o fervor religioso das

Na iconografia das cantigas de

cerimônias

louvor, as imagens não tematizam os

religiosas. Quanto ao conteúdo, essas

milagres de Santa Maria, mas se referem

cantigas se inspiraram em hinos da Igreja

aos aspectos de sua vida e a de Jesus

no modo de caracterizar a Virgem, nas

Cristo, registrados nos Evangelhos e em

expressões Filhade Deus Madre e Filla,

outros textos litúrgicos. Nestas cenas, as

Virga de Iesse, Madre del Rey Manuel, Fror

personagens

das

sempre,

multidões

em

Frores,

romarias

Luz

e

e

Via,

terminologia

divinas

aparecem,

acompanhadas

da

quase

figura

de

encontrada tanto nos hinos latinos da Idade

Afonso X como trovador, recitando a

Média quanto nos louvores vulgares.

cantiga diante dos cortesãos, tocando e

Leão (2007, p. 28) esclarece que a

apontando às personagens divinas, como

figura do rei trovador diante de Nossa

se observa na cena da Flagelação, na qual

Senhora é para exaltá-la e oferecer-lhe sua

Afonso X lamenta a morte Cristo, e,

fidelidade e devoção. Essa atitude diante

sobretudo, no culto à maternidade de

da santa identifica-se com a postura do

Maria, tema de várias miniaturas.

trovador diante da senhora (ou dona) nas

De

acordo

com

Domínguez

e

cantigas de amor, “[...] onde o trovador da

Gajardo (2007, p. 125), essa forma de

dona se prostra diante dela para enaltecer-

composição

resulta

de

uma

“nova

141


Clarice Zamonaro Cortez religiosidade” no campo das artes, pautada

(...)

na sensibilidade e na participação na vida

E porenquero começar

de Jesus Cristo e da Virgem Maria.

como foy saudada

Da

de Gabriel, u lle chamar

Itália para o resto da Europa Ocidental,

foy: «Benaventurada

com a arte trecentista, estendeu-se até o

Virgen, de Deus amada:

século XIV.

do que o mund' á de salvar

A presença da figura de Afonso X nas

miniaturas

é

muito

ficas ora prennada;

frequente,

(...)

aparecendo em duas funções: nas imagens de apresentação, com que encabeça os prólogos de muitos dos códices, e nas representações do rei como trovador de Santa Maria, como é o caso das cantigas decenais. O mais surpreendente nas cenas evangélicas, como explicam Domínguez e Gajardo (2007, p. 124), é que todos os exemplares mostram o aspecto inovador quanto à encenação, como exemplifica a cena da Anunciação de Maria (Figura 7) da cantiga 1, observando que os lírios estão no centro, em um grande vaso, o que não era comum na composição medieval dessa cena.

Nessa cena, conforme já apontado, o destaque é o vaso de lírios, ao centro, entre duas colunas, simbolizando a pureza da Virgem que, de acordo com a narrativa bíblica, se surpreende com a presença e a fala do Anjo Gabriel. À direita da vinheta, envolta no manto azul, Maria levanta uma das mãos para cobrir o rosto e revelar sua surpresa da notícia. À esquerda, o Anjo Gabriel, dirigindo-se à Virgem, é retratado com grandes asas, de acordo com o imaginário medieval, vestindo uma túnica vermelha. As cores das túnicas, vermelho e azul,

remetem

à

santidade

das

personagens bíblicas. Ao fundo dos arcos observa-se a presença dos telhados, torres e casas da cidade. No alto da vinheta, uma faixa com a chamada ou o título da cantiga:

Esta é a primeira cantiga de loor de Santa Maria,ementando os VII goyos que ouve de seu fillo e dos lados, traços de uma iluminura que repete as mesmas cores, o Figura 7: Miniatura da cantiga 1, vinheta 1 –

vermelho e o azul. A cena retrata o louvor

Anunciação de Maria.

do Anjo à Maria, referência à cantiga de Afonso X. Essa a mesma cena foi também

142


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

interpretada e pintada por outros artistas como Giotto (1267-1337) e FraAngelico (1387-1455), pintores italianos. A leitura e a interpretação de Fra Angélico

(Giovanni

da

Fiesole),

por

exemplo, foi pintada em afresco entre 1437 e 1446 para o Convento de São Marcos (hoje Museu Nacional de São Marcos), na cidade italiana de Florença. Observa-se, primeiramente, que o vaso com os lírios não está presente, embora a cena seja composta pelas mesmas personagens: o Anjo

Gabriel

e

a

Virgem

Maria.

Diferentemente da vinheta da Cantiga 1, Maria está sentada na presença do Anjo, com os braços cruzados no peito e apresenta uma expressão serena. Está trajando um vestido claro que se contrasta com o manto escuro que cobre o seu corpo até os pés. O Anjo Gabriel, de grandes asas coloridas, veste um hábito de cor clara, apresentando-se de joelhos diante da Virgem, braços cruzados no peito em sinal de extremo respeito. Repetem-se os arcos e as colunas gregas, provavelmente a casa de Maria (observa-se uma porta, ao fundo). Não há presença da cidade como na vinheta

anterior,

apenas

da

natureza

representada em um belo jardim, um cercado de madeira da casa e uma vegetação abundante.

Figura 8- FraAngelico – A Anunciação (Museu Nacional de São Marcos) - Florença, Itália.

Como as cantigas de louvor são influenciadas pelo ideário cristão, é comum a recorrência de temas e personagens bíblicos. Na cantiga 60, por exemplo, que estabelece a diferença entre Maria e Eva, significativamente, o leitor pode refletir acerca desses perfis femininos bíblicos. Porém, na cantiga, não há narração de um milagre que demonstre a bondade e generosidade

da

Virgem,

como

nas

cantigas de milagre. O recurso utilizado é o trabalho com a linguagem para produzir a oposição de valores. Toda a estrutura literária

converge

para

intensificar

a

distinção entre a santa e a pecadora, a começar pelo título: Esta é de loor de Santa

Maria, do departimento / que á entre Av' e Eva. (AFONSO X, 1959, p. 173): Esta é de louvor a Santa Maria, da diferença/ que há entre Ave e Eva. A organização da cantiga em quatro estrofes de quatro versos cada é outro fator que contribui com o princípio da oposição

143


Clarice Zamonaro Cortez de valores, pois a composição em múltiplos

A repetição do refrão, ao longo da

de dois ajuda a criar a distinção entre as

cantiga, intensifica a ideia de oposição

duas personagens. Desse modo, com

entre os modelos de mulher santa versus

exceção da primeira estrofe que apresenta

mulher pecadora, evidenciando a diferença

a palavra Deus, no segundo verso, as

entre as figuras de Eva e Maria. Quanto às

demais reservam os dois primeiros para

rimas,

falar de Eva e os dois últimos, de Maria.

métricas

utilizadas,

louvores,

variando

Entre Av’e Eva grandepartiment’á. Ca Eva nos tolleu o Parays' e Deus, Ave nos y meteu; porend', amigos meus: [...] Eva nos foi deitar

uma

variedade

de

formas

sobretudo, apenas

nos

entre

as

estrofes, nas quais se observa o jogo de termos opostos, como em: “Eva nos ensserrou / e Maria britou”. O título-ementa, geralmente, rima com o refrão, justamente para produzir a musicalidade, sempre lembrando que os textos destinavam-se ao canto. Ao listarem-se os termos atribuídos

do dem' ensaprijon,

às personagens, tem-se: Eva – “tolheu”,

e Ave en sacar;

“dem’”, “deitar”, “perder”, “ensserrou”; Maria

e por esta razon:

– “Deus”, “sacar”, “aver”, “britou”. Assim,

[...] Eva nos fez perder amor de Deus e ben, e pois Ave aver no-lo fez; e poren: [...]

conclui-se

que

para

a

primeira

são

reservadas palavras com valor semântico negativo, firmando os aspectos que estão atrelados

ao

estigma

de

pecadora;

enquanto para a segunda, as palavras são valorativas, justamente para confirmar o oposto, a santidade de Maria. Apenas o

Eva nos ensserrou

fato de Eva estar relacionada ao demônio

os çeossen chave,

(“dem’”) e Maria a Deus, já sintetizaria todo

e Maria britou

esse pensamento. A distinção de valores

as portas per Ave.

também está presente ao nomeá-las na

(AFONSO X, 1959, p. 173)

cantiga, pois na inversão de Eva, lê-se o anagrama Ave, expressão usada pelo Anjo

144


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Gabriel ao dirigir-se à Virgem Maria, durante a Anunciação. Segundo Dalarun (1991, p. 34-39), no

imaginário

impostos

a

medieval,

cada

um

os

valores

desses

perfis

femininos são absolutos e estanques. Isso reflete

os

preceitos

difundidos

pelo

Figura 9 - Miniatura da cantiga 60, vinhetas 1 e 2

cristianismo, no qual Eva é a responsável

A vinheta 2pode ser dividida em dois

por toda a desgraça da humanidade, ao

planos: à direita encontra-se a figura de

seduzir o homem e conduzi-lo ao pecado.

Adão e à esquerda a de Eva. As duas

Por meio dela, entra no mundo o pecado

personagens estão nuas e são separadas

original, a morte e a condenação eterna. É

pela árvore da sabedoria, onde se encontra

interessante destacar que, no texto, ao se

enrolada

construir

miniaturista

a

oposição

dos

arquétipos,

a

serpente teve

a

tentadora.

O

preocupação

de

narram-se, primeiramente, as faltas da

representar o Paraíso com cuidado e

pecadora para, em seguida, destacarem-se

riqueza de detalhes, como as árvores de

os grandes feitos da santa. O que comunga

diferentes espécies, tamanhos e frutos. A

com a ideia cristã que concebe Maria como

serpente de pele manchada tem na boca o

a responsável pelo resgate dos valores

fruto proibido e se volta para Eva, à

femininos. No entanto, na miniatura, a

esquerda, sugerindo a ação da entrega da

primeira vinheta é reservada à cena da

maçã. Do lado direito, Adão leva à boca o

Anunciação e não à da Queda da

fruto recebido de Eva, configurando o

humanidade que foi anterior, conforme a

princípio que concebe a mulher como a

narrativa bíblica.

responsável pela queda da humanidade. o

Ambas as vinhetas unem-se pelo rótulo,

conteúdo apresentado nas duas cenas,

resumindo o conteúdo apresentado nas

com o verso: “Como entre Ave / Eva

cenas correspondentes: “Como entre Ave/

grandepartiment'

Eva grandepartiment’ á”.

A

segunda

á”,

vinheta

resume

responsável

pela

unidade narrativa entre as duas imagens.

Segundo Pipponier (1991, p. 441), para alguns estudiosos o fato da mulher figurar na iconografia é um indício de valorização feminina; enquanto para outros, vê-la por meio dos estigmas de santa ou

145


Clarice Zamonaro Cortez pecadora revela a permanência de valores

de uma perpétua fuga da cor”. O grande

misóginos.

gerado

círculo aparece ainda em outra esfera,

muitas discussões entre os estudiosos da

superior e elevada, para onde os cristãos

Idade Média. No caso das Cantigas de

deveriam ascender. Adão e Eva compõem

Santa Maria, textos e imagens estão

também a cena. Eva tenta abrir as portas,

ligados ao discurso reducionista da mulher

enquanto

e, consequentemente, os valores atribuídos

envergonhado pela nudez.

à

Eva

Essa

questão

acabam

se

tem

estendendo

está

ao

seu

lado,

Nas cantigas de louvor, em muitos

às

representações do feminino.

Adão

casos, não há uma relação direta entre o

A ideia contida no último refrão da

texto e a imagem, pois as miniaturas fazem

cantiga refere-se à narrativa bíblica: “Eva

referências a diversos textos bíblicos. Por

nos ensserrou / os çeossen chave, / e

isso, muitos estudiosos apontam uma

Maria britou / as portas per Ave”. (AFONSO

maior autonomia do pictórico em relação ao

X, 1959, p. 173). Eva é o modelo feminino

verbal. Entretanto, antes de afirmar a

que o cristianismo reprimia e exilava por

supremacia de um ou do outro é preciso

um sistema misógino civil e religioso. Toda

considerar que o texto verbal consegue

uma

longínquas,

uma melhor realização ao fundir-se com o

idealizava-a como criadora do pecado

visível, o que não significa que se confirme

original, princípio oposto à imagem reflexa

em todas as situações.

tradição,

de

raízes

da bondade e obediência representada por

Em outros exemplares das cantigas,

Maria, considerada como o resgate dos

as ilustrações seguem cuidadosamente o

valores femininos relacionados ao papel de

texto, já em outros, o ilustrador deixa-se

mãe: a pureza e o recato, o que acaba

levar pela estética e intercala as cenas e os

gerando

espaços que não aparecem na escrita.

grande

oposição.

Os

versos

adquirem uma interpretação literal contida

Algumas

também nos rótulos de como Eva cerrou as

iconografia que responde à fidelidade das

portas do céu e Maria abriu-as. O céu é

imagens em relação aos textos, juntamente

representado por um grande círculo azul.

com

De acordo com Conceição (2001, p. 19), o

Determinadas

azul é a mais profunda e imaterial das

grande vitalidade com que os ilustradores

cores:

sem

(iluminadores) da corte de D. Afonso X

encontrar qualquer obstáculo, perdendo-se

criavam espaços, personagens e imagens

“Nele,

o

olhar

mergulha

cantigas

os

apresentam

documentos ilustrações

uma

históricos. apontam

até o infinito, como se estivéssemos diante

146

a


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

sem tradição prévia em que poderiam se

considerados

apoiar.

determinados textos demonstram que o

A presença do espaço ocupa um lugar

de

destaque

nas

composições

medievais. Abdala Júnior e Paschoalim

sagrados.

Contudo,

motivo da busca destes lugares não era apenas religioso, pois havia também o motivo sentimental.

(1994) enfatizam as paisagens naturais nos

Nas cantigas de milagre, o espaço

textos poéticos. O riacho, a fonte (local dos

sagrado está representado pelos conventos

encontros amorosos, de trabalho como

e igrejas, locais onde a Virgem estava

lavar as roupas, ou ainda de cuidados

constantemente

pessoais como lavar os cabelos), as praias

doenças, perdoando e livrando as pessoas

(quando há referência às ondas do mar) e

do pecado. Nas cantigas de louvor, o

as

das

espaço sagrado tem a função de mediação

avelaneiras, por exemplo) contextualizam o

entre as divindades celestes e Maria,

ambiente e atuam sobre o “eu” feminino,

conforme observadosnos textos poéticos

despertando o amor, ou a fé religiosa. É o

comentados. As imagens registradas nas

ambiente

vinhetas das cantigas são instrumentos da

árvores

(os

com

ramos

a

floridos

atuação

animista

integrando sentimentos e objetos. referem

às

curando

as

intermediação entre Deus, a Virgem Maria

As cantigas de romaria são as que se

presente,

peregrinações

e os fieis.

aos

A arte literária e pictórica são os

santuários, ou ao costume de ir à igreja.

canais

Nestas composições a moça se propõe a

pensamento de cada época, por isso

comparecer no santuário – geralmente uma

tornam-se uma fonte muito rica de estudo.

das numerosas ermidas que povoam as

Entretanto, sua utilização deve ser vista

terras de Galiza e de Entre-Douro-e-Minho

com cautela, porque não mostram com

– para rezar e cumprir promessas, relatar a

precisão a vida ou aspiração das mulheres,

sua peregrinação, ou ainda, encontrar o

mas como elas deveriam ser. Do mesmo

amigo.

da

modo, nas cantigas, ao narrar-se louvores,

Península, estas composições apresentam

milagres e até mesmo os pecados, fazem

uma estreita ligação com a realidade

com

peninsular,

tendências

busquem, através do louvor, a salvação

naturais e o modo de vida do povo dessa

para suas almas para servirem de modelo,

região. Os santuários, os conventos e as

mediante a um sentido moral edificante. A

igrejas

figura da Virgem Maria é o modelo de

Originárias

do

refletindo

constituem-se

Ocidente

as

nos

espaços

naturais

que

os

fieis

de

se

expressão

do

arrependam

147

e


Clarice Zamonaro Cortez beleza e de virtude às mulheres, é a

caminho de investigação muito significativo

mulher-perfeição, símbolo de recato e

para o estudo dessas personagens. Nesta

pureza,

valores

relação, o próprio texto não é bastante

intrínsecos à figura de Eva, a pecadora.

concreto em descrições dos fatos narrados,

Desse modo, diante da imagem da mulher

de ambientes, pessoas e lugares para

medieval, difundida pelo clero, entre santa

determinar uma representação, ainda que

versus pecadora, possibilita que novos

em sua forma mais simples. Da mesma

matizes sejam acrescentados, evitando

forma que a imagem é capaz de ampliar o

essa visão redutora.

texto, acrescentando detalhes de ações,

o

contraponto

aos

As Cantigas de Santa Maria, por meio da articulação de um discurso literário

figuras e cenários não especificados na fonte escrita.

e de seu correlato plástico, constituem um

Referências: ABDALLA JÚNIOR, Benjamin e PASCHOALIN, Maria Aparecida. História Social da

Literatura Portuguesa. São Paulo: Ática, 1994. AFONSO X, O Sábio. Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann. 4 volumes. Coimbra, Acta UniversitatisConimbrigensis, 1959-1972. CONCEIÇÃO, Hélio Requena. Leitura da forma e simbologia do vitral “Nossa Senhora do belo Vitral”, da catedral de Chartes. In: SALZEDAS, Nelyse Aparecida Melro. Uma leitura

do ver: do visível ao legível. São Paulo: Arte & Ciência Villipress, 2001. p. 11-28. DALARUN, Jacques. Olhares de clérigos. Tradução Francisco G. Barba e Teresa Joaquim. In: DUBY, G; PERROT, Michelle. (Org.)História das Mulheres – A Idade Média. Lisboa: Afrontamento, 1991. p. 29-64. DOMÍNGUEZ, Ana Rodrigues; GAJARDO, Pilar Treviño. Las Cantigas de Santa Maria:

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148


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

SNOW, J. T. The Loor to the Virgin and its Appearance in the Cantigas de Santa MarĂ­a of

Alfonso X, el Sabio, (The University of Wisconsin, Ph.d., 1972), Ann Arbor, Michigan: University Microfilm, Inc., 1972.

149


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES COM RELAÇÃO À PARTICIPAÇÃO FEMININA NA VIDA RELIGIOSA NA ALTA IDADE MÉDIA Cláudia Trindade de Oliveira 1 Resumo: O objetivo deste trabalho é considerar a importância das mulheres no interior de uma corrente religiosa denominada priscilianismo que vigorou no início da Idade Média e herdou características do cristianismo primitivo. Para tanto, tomamos por base algumas atas conciliares, pois nos interessa analisar os discursos envolvidos nesse processo, sobretudo aqueles oriundos do corpo clerical e com isso saber se estas mulheres tiveram participação direta, indireta ou apenas figurativa. A metodologia discursiva nos permite recorrer a percepções sociológicas e ora antropológicas de modo a visualizar esse complexo cenário, bem como compreender o posicionamento desfavorável da Igreja com relação à presença feminina nas celebrações religiosas. Palavras-chave: Participação feminina; priscilianismo; concílios.

1

Graduada em História pela UNESP-campus Assis, Membro do NEAM (Núcleo de Estudos Antigos e Medievais)

150


Cláudia Trindade de Oliveira

Atualmente pouco se sabe sobre mulheres

que

exerceram

papeis

de

deteve de uma forte expressividade e aceitação no noroeste peninsular ibérico no

liderança nos primórdios da igreja cristã. O

início

fato é que elas existiram, mas quase não

denominada Gallaeccia 2. Esta corrente, por

sobreviveram

sua vez, foi uma das responsáveis por

registros

dessa

atuação,

do

século

IV

em

uma

região

assim nos conta Maria Fernanda Ziegler ao

garantir

abrir seu artigo intitulado Apagadas da

acessível às mulheres deste período.

História. A causa de tal “apagamento” pode no

absorveu

inserções

mundo

romano

(Ziegler,

participação

religiosa

Apesar de restritas, podemos notar

estar na visão misógina que a igreja antiga do

uma

início

do de

Cristianismo mulheres

na

algumas dinâmica

2013,p.26). A autora inicia sua discussão

religiosa, tanto sob a forma de discípulas

fazendo

uma

ou mesmo como líderes (SILVA, 2009,

personagem pouco conhecida na história

p.02). Assim, “enquanto algumas viúvas ou

da Igreja, e explica que:

virgens consagradas decidiram viver como

referências

à

Ecdícia,

No século I, quando o cristianismo ainda era um movimento religioso recém-saído do berço e que enfrentava

severos

debates

internos

para

reclusas, outras optaram pela vida religiosa em suas próprias casas ou constituíram as

consolidar sua identidade, havia espaço em suas

primeiras

fileiras para que as mulheres pudessem exercer

1991, p. 12-14) 3, gozando muitas vezes de

funções de liderança. Elas chefiaram igrejas, atuaram como profetas e até exerceram funções de bispas, o que, muito provavelmente, teria

comunidades”

(SALISBURY,

uma independência que era incômoda aos poderes

familiares

e

principalmente

deixado Agostinho contrariado. Os registros deste breve período durante o qual as mulheres tiveram espaço para exercer autoridade no movimento cristão são poucos e, muitas vezes, indiretos (Ziegler, 2013,p.26).

Inseridas igualmente nos “apagões da história” estão outras mulheres, como é

2

Denominação

dada

à

região

da

Galiza,

área

predominantemente rural e com fortes reminiscências pagãs. Acredita-se que o priscilianismo tenha surgido na Bética (região peninsular sul) e posteriormente tenha se difundido nessa região. 3

Peter Brown ressalta que algumas dessas mulheres não

o caso por exemplo, das priscilianistas. O

faziam a opção livremente, eram dedicadas, às vezes

presente trabalho se propõe a discutir

ainda na infância, pelos pais, mães ou irmãos que

como se deu a participação feminina no

tentavam inclusive cancelar seus votos se fosse do

espaço religioso cristão, em específico, como

isso

se

desenrolou

dentro

interesse da família. As viúvas também sofriam pressão para que voltassem a casar. Isso era criticado pelos

do

Padres da Igreja, que também buscaram punir as

priscilianismo. Considerado uma heresia

mulheres que abandonassem seus votos voluntariamente,

por parte da Igreja, o grupo de Prisciliano

submetendo-as a pesadas penitências, inclusive as que eram impostas às adúlteras (BROWN, 1990: 218-237).

151


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

eclesiásticos. “Esse tipo de vida religiosa

excluídas da vida social” (SEVERINO,

comunitária começou a aflorar em fins do

2011, p.668). No entanto, “na casa tinham

século

relativo domínio, podiam ensinar religião

IV,

momento

em

que

a

patriarcalização 4 da Igreja e do ministério

aos

se consolidavam” (FIORENZA, 1985, p.

populares devido à situação econômica

288). “Impossibilitadas de ocupar posições

tinham que ajudar os maridos ou trabalhar

de autoridade dentro da hierarquia da

para o sustento próprio [...], tinham maior

Igreja oficial, as mulheres criaram outros

liberdade em relação às mulheres da

espaços

cidade,

para

a

expressão

da

sua

filhos.

As

assim

mulheres

puderam

dos

meios

alavancar

o

espiritualidade e para o exercício de poder”

trabalho missionário” (SEVERINO, 2011,

(TORJESEN, 1995, p. 4-6).

p.669).

Como

exemplo

desse

Vale ressaltar que existiram diversos

comportamento, podemos citar o fenômeno

modelos de vida religiosa feminina no

do ascetismo, também presente no grupo

medievo, incluindo mosteiros, comunidades

priscilianista.

Trata-se

este

independentes, isoladas ou não, e até

característica

herdada

do

de

uma

cristianismo

Ordens

femininas,

mas

se

primitivo que consiste no isolamento ou

desenvolveram

reclusão dos fiéis, possibilitando-os de

“Sabemos que as mulheres foram ativas do

viver sua experiência religiosa de maneira

movimento monástico desde o seu primeiro

individual ou coletivamente. Outra maneira

momento, e ainda que as casas femininas

de poder gozar de uma espiritualidade

fossem em menor número, sua presença

foram os mecanismos criados por essas

não era insignificante, tampouco ignorada”

mulheres dentro de seu próprio lar. “Por

(JOHNSON, 1991, p. 16-17). A esse

estarem subordinadas primeiramente ao

respeito Susan G. Bell afirma:

pai e depois ao marido, devotando total obediência

e

submissão,

elas

eram

muito

que

posteriormente.

Do IV século até o século XII, [...] as mulheres tiveram um importante papel na vida monástica, e do século XIII em diante no ressurgimento da piedade institucional. As mulheres afluíram tanto

Por patriarcalização da Igreja compreendemos o

como líderes quanto como simples membros das

processo em que esta excluiu a mulher dos cargos de

comunidades religiosas femininas tais como as

liderança como o sacerdócio, o diaconato Tal exclusão

dominicanas, as Clarissas pobres, e as beguinas...

estava

(BELL, 1989, p. 145).

4

presente

nos

primeiros

séculos

da

Igreja

justificando-se principalmente nas cartas pastorais que recomendavam às mulheres submissão e silêncio, e que

Voltemo-nos

aos

princípios

do

não deveriam exercer autoridade sobre elementos do

Medievo, quando o Cristianismo se instituía

sexo masculino (FIORENZA, 1985: 288-294).

e tais ordens ainda não existiam. A essa

152


Cláudia Trindade de Oliveira

época

a

participação

feminina

em

A não acessibilidade feminina aos

celebrações religiosas se apresentavam

domínios

como práticas condenáveis pela Igreja a

documento tinha também por objetivo evitar

ponto

suas

que certo fato se repetisse. Referimo-nos

reuniões e codificadas em documentos 5,

ao episódio da viagem de Prisciliano à

como foi o caso das atas zaragozenzes

Roma, quando diversas mulheres aderiram

que neste momento as tomamos como

ao

base de nossa análise.

proibidas de exercerem o ministério a partir

de

serem

discutidas

em

religiosos

priscilianismo.

expressa

Embora

nesse

formalmente

aos

do século V, persistiram as condenações

cânones 6 do “Concílio de Zaragoza I, o

por parte dos bispos em sínodos contra as

qual acredita-se que tenha sido celebrado

mulheres, que mesmo assim continuavam

em Zaragoza no ano de 380 e com a

desempenhando

participação de doze bispos” (CALAZANZ,

liderança (CARDMAN, 1999: 300-301).

Referimo-nos

diretamente

funções

Posteriormente

2005, p.50). Já em seu primeiro cânone

seguiram

novos

concílios

de se misturarem a homens que não

principalmente

no

fossem seus parentes, ao mesmo tempo

priscilianismo,

visto

que as ordenavam de não participarem de

marginal. O concílio seguinte foi o de

encontros em que não pudessem estar

Toledo I, cujo nome deve-se à cidade de

presentes membros religiosos masculinos.

sua realização. Este concílio ocorreu no

Esta proibição demonstra claramente a

ano de 400, na província cartaginense e

intenção da ortodoxia eclesiástica em

desta vez sob a presença de dezenove

delimitar o espaço às mulheres, bem como

bispos; sendo “caracterizado, inclusive,

a de impedí-las de participarem do corpo

como

religioso.

essencialmente

Diversos documentos eram produzidos pela Igreja

durante suas reuniões conciliares e sínodos, constituindo

nos

um aponta

(CALAZANS,

mais

de

aparece reiterada a interdição às mulheres

5

e

públicas

que

condenações, se

como

sínodo

de

refere um

2011,

de

grupo

conteúdo

antipriscilianista”, Jaqueline

ao

como

Calazans

p.366).

Em

um amplo corpo documental (cartas, atas, sermões...) que

concordância com os pressupostos de

apreendiam as más condutas, segundo os episcopados.

Calazans, notamos que diferentemente do

Tanto os cânones do Concílio de Toledo I, quanto os

Concílio de Zaragoza I, ocasião na qual

Concílios de Saragoza I podem ser encontrados na obra

não foram feitas referências diretas ao

6

VIVES, J. Concílios visigóticos e hispano-romanos (1963). Edição bilíngue (latim-espanhol). Barcelona/Madrid CSIC.

movimento; neste outro concílio, isto é, o

Instituto Enrique Flórez.

de Toledo I, realizado após a morte do líder

153


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo que o sangue menstrual impedia a germinação das

da corrente priscilianista, encontram-se presentes

uma

condenatórias

série

de

aos

seguidores

plantas, matava a vegetação, oxidava o ferro e

deliberações

transmitia raiva aos cachorros. Tais crenças

de

contribuíram para justificar a negação masculina em permitir a participação ativa da mulher nas

Prisciliano.

missas, assim como a proibição de tocar os

Tratava-se da tentativa de estruturar

ornamentos sagrados, e por fim, sua exclusão das

um campo religioso favorável à hierarquia

funções sacerdotais, diz FERRANTE (1975 apud NASCIMENTO, 1997, p.86)

eclesiástica em que ficassem claramente estabelecidos os limites entre os clérigos e leigos, cuja expressão exterior e visível demarcava-se inclusive nas vestimentas 7 (BASTOS, 2003, p. 26). Além desses limites entre o que seria o “corpo da Igreja” e o “corpo de fiéis”, tentava-se igualmente propagar a ideia de que apenas um grupo reduzido de homens estava predestinado a ensinar e a espalhar a palavra divina, por terem sido escolhidos por Deus para tal tarefa. Isso podia garantir ao corpo clerical a legitimação de seu poder representado apenas pela atuação dos bispos, forças de autoridades maiores. Muito além da disputa de poderes dentro da Igreja, a presença feminina nos cultos e celebrações cristãs também se nutriu fortemente de crenças que o baixo clero tratou de alimentar. Neste sentido, por exemplo:

Somadas

a

essas

crenças,

os

discursos que tentavam justificar o repúdio ao feminino se basearam ainda em legados de

grandes

figuras

antigas

como

Aristóteles: Femina est aliquid deficiens et

occasionatum (a mulher é coisa defeituosa e ilegítima);

de São Paulo: Primo et

principaliter propter conditionem feminei sexus, qui debet esse subditus viro (Em primeiro lugar e acima de tudo, por causa da condição do sexo feminino, que deve ser submetido ao homem); e de Santo Agostinho: Imago Dei invenitur in viro...,

non invenitur in muliere

(A imagem de

Deus é encontrada no homem ... e não encontrada na mulher), entre outros. “A sociedade medieval foi, sem dúvida,

patriarcal,

numa

dada

época

histórica na qual as mulheres estavam obrigadas a circular exclusivamente na

É bastante emblemático o significado de corrupção

esfera privada, somente permitidas dentro

moral que adquiriu a menstruação. Acreditava-se

dos limites da casa paterna ou marital”

O significado social do vestuário era ainda maior, pois

(NASCIMENTO, 1997, p.85). Esta idéia

além de designar as categorias sociais era um verdadeiro

está certamente reforçada pela grande

uniforme. Levar vestuário de uma condição diferente da

difusão que tais teorias alcançaram na

7

sua era cometer o pecado capital da ambição ou da degradação (Le Goff, 1995, 99).

154


Cláudia Trindade de Oliveira

Idade Média e serviram para afirmar a submissão da mulher.

“Estas ideias tiveram ampla difusão dentro do mundo medieval cristão e eram

Segundo Camila Rabeiro Pereira no

principalmente os homens da Igreja os

estudo dos papéis femininos desse período

encarregados

no que se refere à imagem da mulher,

(NASCIMENTO,

“coexistem e se sobressaem dois pólos

estava claríssimo que a mulher era um

opostos e um intermediário: a mulher

perigo carnal e espiritual a ser evitado,

essencialmente má (Eva), a mulher perfeita

como afirma Duby:

(Virgem Maria) e a mulher arrependida de sua

conduta

(Maria

Madalena)

(PEREIRA, 2012, p.03). Esses papeis femininos

na

cultura

cristã

estão

respaldados nos textos bíblicos utilizados pelos clericais que buscavam fundamento para legitimar a classificação das condutas femininas

em

personagens

biblícos

opostos. Dentre

de 1997,

disseminá-las” 86).

Para

eles

Vê-se, então, os padres mais eruditos do século XII postos diante de Eva e suas desditas. Incontestavelmente, ela é inferior a Adão. Assim Deus decidiu. Criou o homem à sua imagem, a mulher de uma parte mínima do corpo dos homens, como uma impressão sua ou, antes, um reflexo. A mulher nunca é mais que um reflexo de uma imagem de Deus. Um reflexo, como bem se sabe, não age por si mesmo. Apenas o homem está em situação de agir. A mulher, passiva, tem os

movimentos

comandados

pelos

de

seu

companheiro. Essa é a ordem, primordial. Eva

as

três

representações

femininas foi a figura de Eva que acabou prevalecendo. Pode-se perceber que a

abalou-a ao curvar Adão à sua vontade. Mas Deus interveio, recolocou-a em seu lugar e agravou sua submissão ao homem como punição de sua falta. (DUBY, 2001, p. 63).

Igreja esteve profundamente afetada pela

Em relação à participação feminina

imagem negativa que a tradição judaica

no priscilianismo, várias são as razões do

criou em torno da primeira mulher: Eva. Um

espaço dado a ela. Uma das hipóteses,

ser pecador, símbolo de luxúria, incapaz de

válida somente para a primeira fase desse

resistir à tentação e por isso deveria ser

movimento, obviamente, seria a atração

submetida à tutela masculina. Ao ser a

das mulheres pelo Prisciliano. Indivíduo

primeira mulher, Eva passou a projetar sua

ressaltado na crônica de Sulpício Severo

carga de pecadora sobre a existência

como homem dotado de virtudes físicas e

feminina. Embora ela tenha sido criada a

de tamanha inteligência, qualidades estas

partir do homem e constitua parte integral

que acabam atraindo a forte atenção de um

da essência humana, ela representa a

público feminino:

parte vulnerável deste, visto que foi a responsável pela expulsão do Paraíso.

Prisciliano [...] agudo, inquieto, eloqüente, culto e erudito, com extraordinária disposição para o diálogo e a discussão, feliz seria certamente se

155


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo não

tivesse

extraordinária depreciáveis.

degradado

sua

entregando-se Ademais

inteligência

a

interesses

podiam-se

ver

nele

aceitação e introdução das mulheres no

boas...

círculo priscilianista funcionasse como uma

(SULPÍCIO SEVERO, Chr; II; 46, p.125, tradução

espécie de tentativa de resistência ao

qualidades

interiores

e

físicas

muito

nossa)

Outra hipótese é a trabalhada por Diego Piay Augusto, o qual afirma que o espaço religioso feminino só foi permitido no priscilianismo devido às condições financeiras que lhe eram favoráveis, assim como ocorria com os demais indivíduos envolvidos no grupo. Segundo Augusto, a mulher camponesa certamente não poderia desfrutar das mesmas prerrogativas. Neste caso, porém, é o status sócio-econômico que marca a diferença, e não o sexo. Certamente existe um grande abismo entre o homem nobre e o homem camponês. Mas, definitivamente, dentro da sociedade medieval tinha mais poder uma mulher nobre

que

um

homem

camponês

(AUGUSTO, 2006, p.609). Para Andrés Olivares Guillem, “a forte adesão feminina pode estar associada à presença de cantos, hinos e danças durante

as

celebrações

desenvolvidos mulheres”

priscilianistas 8,

especialmente

(GUILLEM,

2001,

por p.118),

permitindo que elas se aproximassem do grupo religioso. Há ainda a hipótese 8

levantada por Ricardo Ventura de que a

Denominadas calendas ou vulcanárias, a maioria de

suas celebrações tinha algum vínculo com a natureza e

casamento por parte de algumas jovens, uma vez que seus adeptos eram contra o matrimônio (VENTRA, 2005, p.47). A opção pela vida religiosa como prática de resistência torna-se ainda mais evidente quando atentamos para o papel dessas mulheres dentro de casamentos arranjados que garantissem os interesses de

suas

famílias.

Uma

atitude

de

abnegação a esse tipo de negócio é a história de vida de Clara de Assis e de sua irmã Inês que optaram por abandonar a família e se juntar aos franciscanos. Elizabeth Clark afirma que “as religiosas estavam se insurgindo contra as estruturas sociais e a ordem política, ao se recusarem a assumir a função a elas atribuída no mercado matrimonial” (CLARK, 1990, 30). Juliana Cabrera atribui a ampla presença feminina no priscilianismo pelo fato deste estar diretamente envolvido com práticas mágicas e atividades místicas. Essa corrente também possibilitava que se difundisse o conhecimento sobre plantas e permitia a utilização de ervas durante os ritos, constituindo em práticas voltadas geralmente

às

mulheres.

(CABRERA,

1983. p. 97)

por isso muitos bispos queriam exortá-las.

156


Cláudia Trindade de Oliveira

Seja lá o que for o motivo pelo qual muitas

mulheres

converteram

podiam

exercer

um

papel

de

ao

protagonista dentro da sociedade de seu

priscilianismo; “se por um lado tal situação

tempo. Contudo, temos de esclarecer que

constituiu uma espécie de resistência, por

tal “projeto” foi amplamente favorecido pelo

outro observamos a existência de um

evidente repúdio episcopal em aceitar as

reconhecimento

das

funções femininas, mas que proporcionou

comunidades da liderança feminina como

às mulheres priscilianistas uma liberdade

legítima e não como uma usurpação”

de ação talvez nunca experimentada por

(SILVA,

outra corrente religiosa.

2009,

se

elas

por

parte

p.03).

Ao

liderarem

comunidades ascéticas, diversas mulheres,

Apesar de terem vivido numa época

como afirma Elizabeth Clark, agiram como

cuja condição feminina era encarada como

patrocinadoras, educadoras e modelos de

uma carga negativa e com a Igreja

comportamento, exercendo forte influência

apregoando a necessidade de enclausurar

sobre homens e mulheres de sua época

as mulheres, as priscilianistas não se

(CLARK, 1990, p. 23-24).

deixaram intimidar por estas teorias e

Considerações Finais

dogmas. O intuito não era de isolar-se do

Se faz necessário questionar o peso

mundo com o objetivo de evadir a tutela

dos discursos da Igreja enquanto reflexos

masculina, tratava-se apenas de exercer

do

um

pensamento

da

sociedade

então

vigente. Assim sendo, não podemos nos

poder

que

estava

exclusivamente

reservado aos homens.

esquecer que a maior parte desta produção

Parece-nos válido afirmar que a

literária foi escrita por homens celibatários.

condição

Fruto de suas convicções, aspirações e

preocupante mais aos eclesiastas do que à

teorias com relação à mulher deste período

sociedade laica em geral, porém, não

e, principalmente no que se refere ao

podemos nos esquecer que a escassez de

priscilianismo, visto como certa ameaça.

fontes

Justamente por esse motivo é que a Igreja

mulheres em posições de liderança possa

o colocava em uma posição marginalizada

ser uma estratégia aplicada pela Igreja com

e inferior.

o intuito de atender interesses seus.

Ao longo deste trabalho constatamos

religiosa

referentes

feminina

à

era

algo

participação

das

Portanto, voltamos ao ponto de onde

que no interior do priscilianismo existiu um

iniciamos

“projeto” de acolhida às mulheres, longe da

questionamento

intervenção masculina e a partir do qual

referenciais que nos permitem observar

esse trabalho, ou seja, do

“apagão”

ao de

157


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

como as religiosas se relacionavam com a

transformação de seu entorno.

sociedade e como contribuíram para a

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<http://www.unesp.br/aci_ses/revista_unespciencia/acervo/48/mulheres-

cristianismo>. Acesso em 20 de mai 2014.

159


RE (A) PRESENTAÇÕES DAS DOMINAS: a matrona no principado romano Danieli Mennitti 1 Resumo: O presente trabalho visa versar sobre as representações das matronas, dentro de alguns discursos da literatura trajânica. As matronas romanas tinham considerável atuação não só na esfera privada, mas também na esfera pública. Através do aparato teóricometodológico oferecido pelas teorias de gênero, a análise crítica do discurso e as teorias de representação, vislumbra-se a construção de um ideal de mulher, no qual esta deveria se enquadrar em determinados padrões. Contudo, as mulheres romanas, e, no caso, as matronas, possuem uma multiplicidade de condutas e comportamentos os quais podem fugir do normativo. Palavras-chave: Matrona; gênero; principado

1

Mestranda Unesp Assis

160


Danieli Mennitti

Escrever a história das mulheres foi

respectivas problemáticas. Os estudos de

questão

gênero se configuraram como um caminho

negligenciada e silenciada. Não só nas

possível para entender a vida feminina e

práticas sociais em si, mas nos discursos.

masculina em vários âmbitos (FUNARI;

Discursos que pretendiam dizer o que eram

FEITOSA; SILVA,2003, p.24). Esses novos

as mulheres, o que deveriam fazer, qual o

estudos procuraram fugir dos caminhos

seu lugar na sociedade. Nestes lugares de

traçados pelos estudos anteriores, que

discursos recorrentes, é preciso acurada

abraçavam as concepções aristocráticas

cautela

sobre as mulheres, as quais tinham uma

durante

muito

para

tempo

uma

distinguir

modulações

e

concepção estereotipada, generalizante e

desvios (PERROT; DUBY, 1993, p.10) Até os anos de 1960, a historiografia como um todo e nisso está inclusa a historiografia

sobre

a

homogeneizadora sobre as mesmas. As análises e estudos de gênero

Antiguidade,

para a pesquisa sobre as sociedades

negligenciava a figura da mulher. Os

antigas começam a entrar em maior

interesses naquele período residiam nas

evidência a partir da década de 1990,

temáticas sobre a guerra e nos espaços

porém ela é ainda marcada por um intenso

políticos, lugares dos quais as mulheres

debate e ambiguidade para os estudiosos

eram excluídas e raramente participavam

do tema (FEITOSA, 2003, p.104).

(PERROT, 1989, p.9-18). Havia algumas

Um

estudo

das

representações

exceções, que ocorriam nos estudos sobre

desse feminino, enquanto parte de um

as mulheres ditas célebres como, por

universo

exemplo, Messalina, Cleópatra, Lívia ou

mesmas são algumas das bases que

Penélope, onde o interesse se encontrava

fundamentam

na relação dessas mulheres com homens

Segundo Chartier, é necessário

poderosos ou pelo poder que porventura elas detinham (LÓPEZ, 1994, p.37-40). Nos estudos historiográficos sobre a Antiguidade,

existe

uma

exclusão

historiográfica

tradição

de

(FUNARI;

FEITOSA; SILVA, apud RICHLIN,2003, p.23). Contudo, esta é uma situação que tem sido transformada e diversos trabalhos procuram estudar as mulheres e suas

simbólico,

evidencia

essa

que

realidade

as

social.

“considerar, corolariamente, estas representações coletivas

como

as

matrizes

de

práticas

construtoras do próprio mundo social — "Mesmo as representações coletivas mais elevadas só têm existência, só são verdadeiramente tais, na medida em que comandam atos” (CHARTIER, 1990, p.183).

As

práticas

provenientes

das

e

estruturas

são

representações,

contraditórias e conflitantes, que são uma forma de dotação de sentido desse mundo,

161


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

constructos

que

viabilizam

usos

e

Um dos conceitos a partir do qual se

significados diversos (CHARTIER, 1990,

permite

p.176).

femininas

Para

Chartier

representação

é,

por

(1990), um

a

lado

“o

analisar

entendido

é

essas

representações

o

conceito

de

gênero,

dentro

de

uma

matriz

epistemológica

feminista,

fundamentado

instrumento de um conhecimento mediato

em Joan Scott. Entende-se o uso de

que faz ver um objeto ausente substituindo-

gênero não como sinônimo de “mulher”, ou

lhe uma ‘imagem’ capaz de reconstituí-lo

“mulheres”, mas dentro de um caráter

em memória e de ‘pintá-lo’ tal como é”

relacional e que diz respeito não somente a

(CHARTIER, 1990, p.20) e, por outro lado,

um estudo sobre mulheres, mas também

como uma espécie de símbolo, “como

sobre homens, da relação entre homens e

exibição

como

mulheres, entre homens, entre mulheres e

apresentação publica de algo ou alguém

entre os gêneros e os demais aspectos da

(CHARTIER, 1990, p.20). Uma realidade

vida humana. O gênero é uma construção

social específica é construída e entendida

cultural, criada socialmente sobre os papéis

de diversos modos, em diferentes épocas.

dos

As representações mostram como esta

elemento constitutivo de relações sociais

sociedade se vê, se imagina se pensa ou

fundadas sobre as diferenças percebidas

como quer ser pensada. Elas não são

entre os sexos e o gênero é uma forma

meros

primária da constituição das relações de

de

uma

produtos

da

presença

sociedade,

mas

também contribuem para a sua construção,

homens

e

mulheres,

sendo

um

poder, obviamente não sendo a única.

a remodela e reorienta. A representação é

As romanas, dentro dos discursos

uma maneira de se pensar sobre a

tradicionais, muitas vezes eram vistas não

sociedade e seu imaginário, código de

como seres individuais, com características

valores, princípios; ela não se configura

ou elementos próprios, mas como alguém

como um mero discurso sobre as práticas

sempre vinculado a uma figura masculina

sociais, ela é também uma prática social,

e/ou como mãe, matrona, esposa, filha de

estando conectada a um contexto de

algum homem. As leis apareceram muito

origem.

concebida

frequentemente como uma ferramenta de

justamente por estar calcada em algo que

manutenção dessa assimetria entre os

existe, ainda que possa haver distorções

gêneros, legitimando uma posição social

ou manipulações dessa representação.

inferiorizada. Dentro de certos discursos

Ela

pode

ser

que

se

pretendem

dominantes,

como

162


Danieli Mennitti

alguns discursos das elites romanas, havia

As

a idéia que primava pela diferenciação de

exercidas

papéis por sexo, delegando ao gênero

mulheres romanas, notadamente as das

feminino o espaço doméstico, objetivando

elites, é uma das formas de controle e

retirar

domínio. O ser mãe, esposa, matrona

a

mulher

da

esfera

pública,

restrições sobre

e

a

sexualidade

acabam

uma mistificação da feminilidade, na qual a

supervalorizadas e confundidas com a

realização da mulher romana seria a

essência do ser mulher e também se

dedicação à esfera privada e a obediência

tornam o ponto de referência para a

aos padrões de uma mulher dita ideal.

desqualificação repressão.

demarcado

mulheres

uma

linha

tênue

e

das

funções

prostitutas.

A

referência não é a liberdade e sim a

público e privado em Roma é maleável, por

serem

das

considerada o lugar dos homens. Há então

Entretanto, como já foi dito, o que é

por

normatividades

Ou são

seja,

os

manipulados

corpos

das

das

mais

permeável, além do fato de que não se

variadas formas, seja enquanto numa

pode considerar que há uma hierarquia de

posição de submissão, como seria o caso

valor dos mesmos. Torna-se imperante

das

questionar o pensamento tradicional de que

enquanto objeto de consumo, como seria o

as vivências e experiências da esfera

caso das prostitutas.

privada não são produtoras de valor social,

matronas,

ou

como

coisificação,

A construção das representações de

cultural e político. O espaço privado

mulheres

também é de certa forma, público e político.

mentalidade masculina, que se pretende

Isso

se

vincula

“apenas”

a

firmar como discurso dominante, não é tão

proposição de uma visão de quebra e

somente uma relação de poder entre os

ruptura

feminina.

gêneros masculino e feminino, mas entre

Concebe-se também que estas atuavam na

as diversas dimensões e categorias do

esfera pública, que tinham atuação política,

feminino.

dentre

a

mulheres, pertencentes a grupos sociais

desmistificação entre o público e o privado

diferentes ou não, não são elementos

mostra que o aparenta ser algo restrito,

isolados, que se constroem de maneira

isolado, mostra-se como uma experiência

isolada um dos outros, mas dialogam entre

coletiva,

si e entre os demais elementos da

outras

sociedade.

de

fundamental

se

na

da

torna

não

representação

vivências.

grande

Mas

relevância

na

Os

diversos

lugares

das

sociedade romana.

163


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Torna-se imprescindível dizer que as representações

são,

por

sua

vez,

afirmam que houve mudanças importantes nos mais variados âmbitos da sociedade

constituídas a partir das relações de

romana

gênero, construindo concepções (ideais ou

mudanças, pode citar, por exemplo, uma

não) do feminino e do masculino e que, por

que é bastante significativa para o presente

conseguinte,

a

projeto: as concepções e funcionamento do

permanência (ou não) das desigualdades

público e do privado na sociedade romana

de gênero, nos mais diversos âmbitos da

e as relações articuladas entre eles.

contribuíram

para

sociedade. As

do

período.

Dentre

essas

Um dos conceitos trabalhados nessa mulheres

romanas

tinham

pesquisa é o conceito de gênero, entendido

considerável atuação não só na esfera

dentro

privada, mas também na esfera pública.

feminista. Entende-se o uso de gênero não

Entender como se configuram essas duas

como sinônimo de “mulher”, ou “mulheres”,

esferas da vida em Roma (o público e o

mas dentro de um caráter relacional e que

privado)

diz respeito não somente a um estudo

também

são

igualmente

de

uma

sobre

lugar ocupado pelas mulheres nessas duas

homens, da relação entre homens e

esferas. Além de conceber que não há

mulheres, entre homens, entre mulheres e

“hierarquização

entre

entre os gêneros e os demais aspectos da

essas duas esferas, dado que a divisão

vida humana. O gênero é uma construção

entre o que é público e o que é privado em

cultural, criada socialmente sobre os papéis

Roma

dos

é

importância”

flexível,

maleável,

homens

e

mas

epistemológica

importantes para compreender a posição, o

de

mulheres,

matriz

também

mulheres,

sobre

sendo

um

interdependente, entende-se que essas

elemento constitutivo de relações sociais

mulheres, antes relegadas pelos discursos

fundadas sobre as diferenças percebidas

unicamente à esfera do privado, também

entre os sexos e o gênero é uma forma

tiveram importante atuação nos espaços

primária da constituição das relações de

públicos, bem como obviamente também

poder, obviamente não sendo a única.

nos espaços privados.

Os discursos tradicionais sobre a

O recorte temporal aqui realizado

mulher em Roma (incluso aí as matronas)

entre a segunda metade primeiro século e

costumam colocar a mulher numa posição,

início do segundo, mostra-se significativo

de um modo ou outro, submissa. Suas

ao passo em que inúmeros autores, tais

ações, seu papel social ficam “reduzidos” a

como Veyne, Funari, Grimal, entre outros,

alguma funções, como o casamento, a

164


Danieli Mennitti

maternidade e os cuidados da esfera doméstica.

Juvenal,

Plínio,

o

As

mulheres

são

consideradas

Jovem,

positivamente quando cumprem com os

Sêneca, entre outros, construíram seus

ditames prescritos nos discursos oficiais e

discursos de modo que contribuíram para a

tradicionais. Quando elas fogem desses

construção de um ideal de mulher, ou mais

padrões, são desclassificadas e reprimidas.

precisamente, um ideal de mulher romana das elites. A construção de um ideal de mulher

não

se

vincula

“apenas”

a

mentalidade masculina, que se pretende firmar como discurso dominante, não é tão somente uma relação de poder entre os gêneros masculino e feminino, mas entre as diversas dimensões e categoriais do feminino. Os diversos papéis sociais das mulheres, pertencentes a grupos sociais diferentes ou não, não são elementos isolados, que se constroem de maneira isolada um dos outros, mas dialogam entre si e entre os demais elementos da sociedade romana. Esse ideal de mulher reside na figura da matrona ou materfamilias. As mulheres, e no caso, as matronas, deviam ser dotadas de uma série de virtudes e seus comportamentos deviam enquadrarse

em

padrões

morais

austeros.

É

importante ressaltar que esses requisitos exigidos

da

mulher

e

matrona

são

prescritos pelos homens, pelos discursos masculinos.

A

condição

peculiar

da

matrona torna-se o modelo feminino de pudor e moral.

Segundo Nazira Espinoza, La educación de las mujeres romanas, en especial las patricias, en el mundo antiguo tuvo un objetivo social definido, el cuidado y la protección del entorno familiar, el papel principal de las mujeres en Roma fue el de esposas y madres. La maternidad permitió dar una valoración positiva a la instrucción femenina cuyo fin era que la mater llegara a ser una matrona docta encargada de preparar a los futuros cives de la Urbs.

Essa

mulher

romana

é

então

educada, conforme citado acima, de tal modo a dotar-se dos valores e princípios da moral tradicional, aquela ligada ao mos

maiorum.

Honra,

ponderação,

virtude,

discrição,

pudicitia,

comedimento,

moderação e uma feminilidade, dentre outros valores, são os requisitos exigidos dessa

mulher,

e

principalmente,

da

matrona. A matrona, na visão tradicional, tem a função de gerar de futuros cidadãos romanos e também de educar os mesmos. Elas são encarregadas de cuidar que a criação

de

seus

filhos

tenha

uma

orientação em conformidade com o mos

maiorum, orientar seus filhos nos princípios e deveres cívicos do cidadão romano:

pietas, fides, gravitas, virtus (ESPINOZA, 2012). As próprias palavras materfamilias e

165


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

matrona são originadas da palavra mater, a

Mesmo que os papéis sociais de cada um

mãe de família e mulher casada.

sejam bem demarcados, a existência da

O paterfamilias, ideal de cidadão e

amizade e carinho do outro deveria existir.

homem viril, é modelo universal, e a partir

Isso fica um pouco mais claro na carta 5,

dele se delineia um modelo feminino, ou

do livro VII de Plínio, o Jovem, na qual ele

materfamilias

matrona

se dirige a sua esposa Calpúrnia: “É

(ESPINOZA, 2012). A mulher que se

incrível o quanto eu sinto sua falta; tal é a

submete ao poder do paterfamilias, que

ternura do meu afeto por você que

cumpre com louvor suas funções de mãe e

desacostumei a ficar longe de ti! (Plínio,o

esposa, é digna do título de mater ou

Jovem, V,VIII).”

seja,

a

e

a

matrona.

Entretanto,

mesmo

com

O casamento funcionava, ao menos

modificações no interior do casamento

em certos termos, como uma espécie de

romano, a figura da mulher ideal persiste

contrato social, um meio de fornecer uma

no ideário romano. Na carta 16, do livro V,

perpetuação das famílias e cidadãos para

Plínio o Jovem relata a morte de Minicia

servir aos Estados. Por meio do casamento

Marcella às vésperas de seu casamento.

teciam-se alianças de ordem econômica,

Ele fala da jovem como alguém dotada de

política e social.

todas as virtudes necessárias para se

Esse

caráter

pragmático

de

casamento transforma-se, principalmente no período do principado. Este passa a ser

tornar uma materfamilias: Com apenas 14 anos já combinava a prudência de uma anciã (anilis prudentia), a seriedade de uma matrona (matronalis

não só um vínculo jurídico ou uma

gravitas), a doçura de uma menina

obrigação social, mas uma estilística de

(suavitas

existência

(FOUCAULT,

1997).

Sendo

assim, as condutas e comportamentos exigidos

para

ambos

os

gêneros,

modificaram-se ligeiramente, de acordo com certos discursos. Ainda que muitas vezes

o

discurso

que

imponha

uma

dominação masculina persista, a questão da reciprocidade dos afetos e fidelidades, do compromisso e partilhamento emocional

puellaris),

com

a

discreta

inocência (virginalem verecundia). Livro. V, carta 16, 2-3 …Carregou

sua

última

doença

com

paciência e resignação, com firmeza e verdadeiro valor (temperantia, patientia,

constantia),

obedeceu

as

ordens

do

médico, consolou aos seus pais. (Plínio, o Jovem, Livro V, carta 16, 4-5.)

A mulher romana enquanto matrona e responsável pelos cuidados da domus se configurava como o padrão de seriedade,

com o outro fica um pouco mais clara.

166


Danieli Mennitti

virtude, diligência e fidelidade, conforme a

É possível perceber existência da

educação que teve durante toda a sua vida.

tentativa do discurso dominante de docilizar

A dignidade da mulher enquanto

e

impor-se

como

verdade

única,

de

mãe, ou o status diferenciado de matrona,

empreender forças ativas para o controle e

que se constitui em um ideal de mulher,

enunciação dominantes, que querem fixar e

leva os homens romanos a reconhecerem

controlar, referindo-se a um modelo de

uma

sujeito e de sociedade. Foucault, apesar de

certa

“superioridade”

desse

estamento feminino.

afirmar que há sim uma tentativa de

É interessante dizer que houve

docilização, procura apreender também as

também a repressão do corpo e da

rupturas,

sexualidade

romana,

ameaçavam a estabilidade da configuração

notadamente a mulher casada, além das

das organizações sociais, dos mecanismos

limitações que lhe foram impostas quanto à

de poder.

da

mulher

sua aparência e indumentária.

quebras

e

resistências

que

Tanto nas sátiras de Juvenal e

A mulher romana casada, educada

também nos epigramas de Marcial nota-se

em castidade e pudor, via sua sexualidade

a existência de perfis de matronas que

excessivamente reprimida e restrita a

fogem dos modelos estabelecidos pelos

reprodução

discursos

dentro

do

matrimônio.

A

normativos

existentes

na

homossexualidade ou a sexualidade não

sociedade romana, que adotam condutas,

reprodutiva

comportamentos e valores diversificados e

correspondiam

ao

mundo

antagônico da mulher ideal. O erotismo fora do âmbito de desejos do modelo feminino não

faziam

parte

da

esposa

do

paterfamilias, uma mulher casta, cujo vida pessoa deve ter pudor e prudência. Todos esses valores dizem respeito, majoritariamente, aos princípios das elites

diferenciados. E se eu lhe dissesse andas buscando uma mulher de costumes antigos? [...] Que homem encantador! Prostrado em adoração diante das portas do Capitólio E imola um sacrifício sacrifício em honra de Juno, um bezerro com chifres avermelhados Se tiver sorte o suficiente em encontrar uma mulher casta. (Juvenal, VI).

romanas. Essas representações literárias se constituem em um meio de construir social e culturalmente as normatividades relativas ao gênero feminino. As mulheres enquanto mães e esposas têm um papel social importante na sociedade romana.

Pode-se notar que, neste trecho da sexta

sátira,

Juvenal

demonstra

a

necessidade da castidade, da pureza da mulher; este seria a conduta desejada de uma mulher, ainda mais para que se

167


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

contraísse matrimônio. Juvenal alega que

um ser destituído de valor, que poderia e

existem enormes dificuldades em encontrar

deveria ser usada, incorporando-se ainda

mulheres castas, dada a quebra dos

mais sua classificação como objeto de

antigos valores morais dessa sociedade, o

usufruto de outrem e não teria outra razão

desrespeito ao mos maiorum. Apesar dos

de existir além dessa. A prostituição entra

artifícios e objetivos das sátiras de Juvenal

no rol de profissões consideradas como

serem atacar aqueles que não andam em

absolutamente desprovidas de qualquer

conformidade com mos maiorum, o que fica

honra, assim como o eram também, por

evidente nessa existência da indignatio em

exemplo, os atores e gladiadores. Segundo

seus versos, é possível vislumbrar a

Edwards “paradigmas da antítese da honra,

alternativa, a possibilidade de mulheres

eles ocupavam um lugar crucial na ordem

com condutas sexuais mais abertas, livres.

simbólica. Isto envolve as atitudes dos

Qual a necessidade de adequação dessa

romanos frente aos preceitos de honra,

mulher a uma norma de comportamento

moral e vida pública. As prostitutas (assim

sexual

sexualidade

como também os atores e gladiadores) são

deveria ser contida e sua “ruptura” com

partes muito importantes no processo de

essas

construção da honra e da moral romana”.

mais

rígido?

Sua

normatividades

denotariam

não

apenas um desrespeito para com o mos

Para a construção desse ideal de

maiorum, mas fugiria das prescrições

matrona, esse universo simbólico usava do

masculinas a respeito da sexualidade

binarismo em comparação com a prostituta.

feminina. Sendo Roma uma sociedade

Quando uma matrona não se encaixava

patriarcal,

muitos

nos padrões desejados, ela era comparada

discursos seguem os princípios com uma

a uma prostituta. A prostituta, sendo o total

finalidade

falocêntrica, de

comportamentos

onde

dominação

masculina,

oposto do que uma matrona deveria ser,

desviantes

da

contribuía assim para o reforçar dessa

norma

representam uma ameaça. A prostituição era considerada um “mal necessário”, pois, dentro desses discursos dominantes, teria a utilidade de

norma de conduta austera da matrona; uma

construção

de

identidade

pela

alteridade. Fazendo

uso

do

raciocínio

de

evitar o adultério por parte dos homens e

Chartier (1990), as representações das

assim ajudar na manutenção da instituição

matronas nas fontes elencadas induzem a

do casamento. A prostituta, diferentemente

levar em conta as diferenciações culturais

da matrona, era vista muitas vezes como

não como a manifestação de divisões

168


Danieli Mennitti

estagnadas,

mas

sim

dotadas

de

dinamismo. As

diversas maneiras como a sociedade se percebe e os significados existentes dentro

representações

contidas

na

da sociedade são fatores que ocorrem de

literatura do principado romano fornecem

maneira simultânea e os sentidos que são

um rico quadro de possibilidades de

produzidos o são de modo mais dinâmico.

analisar os discursos sobre as mulheres e

As articulações entre as práticas, entre a

assim vislumbrar as visões da sociedade

“realidade”

romana sobre as mesmas. É relevante

constroem as relações de poder e as

salientar que as representações não se

demais relações dentro da sociedade e que

constituem em reflexos de um determinado

são responsáveis pela sua configuração.

e

suas

representações

contexto, mas sim uma invenção. As Referências: ÁLVARES SPINOZA, Názira. Una aproximación a los ideales educativos femeninos en roma: matrona docta/puella docta.Révista Káñina, vol.36,nº1.2012 CHARTIER,Roger. A História Cultural:entre práticas e representações.Trad.de Maria Manuela Galhardo.Lisboa:Difel; Rio de Janeiro: Butrand Brasil, 1990. CHARTIER, Roger. O mundo como representação.Trad. de Andréa Daher e Zenir Campos Reis. Revista Estudos Avançados 11, ano 5, 1991. FEITOSA, Lourdes Conde. Homens e mulheres romanos: o corpo, o amor e a moral

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Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

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170


DECADENTISMO, ESCATOLOGIA APOCALÍPTICA E A CRISE IMPERIAL NO SÉCULO III Douglas Raphael Machado Gobato 1 Renata Lopes Biazotto Venturini 2 (Orientadora) Resumo: Neste texto, buscamos resgatar as raízes históricas das ideias de crise e decadência das sociedades antigas, que remetem as cidades-estados sumérias da Baixa Mesopotâmia em torno de 3000-2500 a. C., a fim de compreender como se desenvolveram entre os romanos e influíram sobre os eventos que marcaram a crise do Império ocidental no século III de nossa era. Paralelamente, estudamos a interpretação escatológica de cunho apocalíptico que enraizou-se no cristianismo desde o século primeiro, graças a influência da cultura messiânica judaica do Antigo Testamento. Diante da crise imperial e das transformações que assinalaram a desagregação do estado romano a partir do governo de Marco Aurélio (161-180), mostramos como o embate entre a ideologia romana a respeito da crise e as ideias apocalípticas cristãs em torno da segunda vinda de Cristo, aliadas a sua intransigência religiosa frente as práticas do paganismo, levaram às ações persecutórias dos séculos II e III, e em seguida, a aproximação entre a cristandade e o Estado Romano. Nesse sentido, o conflito ideológico em torno da crise atuou significativamente não apenas sobre as explicações que se deram ao momento de instabilidade, mas repercutiram sobre as ações políticas adotadas pelo Estado a fim de remediar os conflitos naquele momento. Palavras-chave: Crise do Império Romano; Ideias Apocalíticas Cristãs; Política Imperial.

1

(PPH/LEAM-UEM)

2

(DHI/PPH/LEAM-UEM)

171


Douglas Raphael Machado Gobato para él representaba la existencia y el rápido

Introdução

desarollo del cristianismo, al que veia como un

O império que se desenvolveu a partir

da

cidade

expandiu-se

etrusca

por

três

de

cuerpo estraño y capaz, a la larga, de poner en

Roma,

peligro su cohesión interna” (1972, p. 70).

Por

continentes,

outro

lado,

segundo

Pablo

transformou o Mar Mediterrâneo no que os

Fuentes Hinojo, em artigo intituladoLa

romanos chamavam de “mare nostrum” e

caída de Roma: imaginación apocalíptica e

criou a ilusão, de que se Roma caísse o

ideologias de poder en la tradición cristiana

mundo não sobreviveria a sua queda.

antigua (siglos I al V) (2009, p. 89), os

ARoma invictus das épocas de Augusto e

imperadores perseguidores subestimaram

Plinio (MAZZARINO, 1991, p. 68). Apesar

quão arraigada estava a capacidade de

disso, ideias decadentistas e fatalistas da

resistência entre os cristãos frente a suas

sociedade

romana

acompanharam instabilidade,

em a

sempre

a

ações persecutórias. Parte da explicação

momentos

de

dessa aguerrida obstinação e do fracasso

últimos

das perseguições, portanto, está nessa

exemplo

dos

períodos da República, nos séculos II e I a.

cultura

C, e na crise imperial a partir de finais do

escatológicas.

século II d. C.

de

crenças

milenaristas

e

Entre os romanos,várias foram as

O crescimento e organização da

causas atribuídas a decadência do Estado.

religião cristã, que em meados do século II

Em

já não se tratava mais uma seita de judeus

Mazzarino em O Fim do Mundo Antigo

dissidentes exclusiva desegmentos sociais

(1991,

marginalizados, trouxe à tona uma tradição

esgotamento dos campos e a atrofia da

de ideias milenaristas e apocalípticas que

agricultura. Não demorou, todavia, para

colidiria com a concepção pagã de crise.

que essas ideias tomassem uma dimensão

Esse choque de ideologias, nos séculos II e

moral e fossem associadas à degeneração

III

levou

os

cristãos

perseguidos.Assim

nos

princípio, p.

16)

como eram

aponta

Santo

associadas

ao

a

serem

dos costumes.Assim dizia Políbio no século

dizem

Marcel

II a. C:

Simon e André Benoit em El judaísmo y el

cristianismo antiguo: de Atíoco Epifanes a Constantino:

“De fato, quando uma comunidade superou muitos e graves perigos e chegou a um poderio e a um domínio indiscutíveis, fatos novos ocorrem: a felicidade nela instala sua sede, a vida volta-se

“El desarollo y la expansión del cristianismo

para o luxo, os homens almejam alcançar as

plantearon

las

magistraturas ou as demais distinções. Seguindo-

relaciones entre Iglesia y el Imperio [...] hubo una

se nessa direção, a aspiração às magistraturas ou

progressiva toma de conciencia del peligro que

o protesto dos que se veem repelidos originará a

en

seguida

el

problema

de

172


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo decadência, a soberba e o luxo farão o resto” (apud Mazzarino, 1991, p. 21)

O

mesmo

Políbio,

em

outra

passagem (apud MAZZARINO, 1991, p. 21) aponta as causas da decadência: “Duas são as formas pelas quais cada tipo de Estado costuma perecer: uma é a ruína que vem de fora; a outra, ao contrário é a crise interna; difícil de prever a primeira, determinada a partir de dentro a segunda [...]”. Apesar do pessimismo de Políbio, o que também aparece em Cícero e Salústio (UBIÑA,

1982,

p.

18)

em

seu

pensamento um sentimento otimista em relação à recuperação frente ao momento conturbado. República,ao

Nos

últimos

escreverpara

dias

da

César

acrescenta: “Este é meu pensamento. Como o que nasceu

escrava e as invasões nas fronteiras, serão adicionados como tentativas de explicação para o momento conturbado. Em todo caso, a oposição dos cristãos em observar os ritos tradicionais do paganismo os farão serem vistos como opositores ao retorno da estabilidade. Em nosso texto, buscamos resgatar as raízes históricas dessas ideias de crise e decadênciaque permearam asociedade romana

não

sem

antes

nos

pronunciarmos a respeito dos cuidados ao se

empregar

considerando

esses a

tradição

conceitos

fatalista

do

paganismo e as ideias apocalípticas que se desenvolveram a partir da cultura judaicocristã, para entender como esse embate ideológico esteve por trás das explicações da crise imperial, das medidas tomadas

morre, quando a fatalidade se abater sobre a

para remediá-la e da política da igreja cristã

cidade de Roma, os cidadãos entrarão em conflito

em aproximar-se do Estado romano.

com os cidadãos; e só então, cansados e

Sobre o conceito de decadência e a

esgotados, cairão nas mãos de algum rei ou de

crise imperial no século III

alguma nação. De outra forma, nem o mundo inteiro, nem todos os povos juntos poderão romper ou danificar este império de Roma. É preciso, portanto, consolidar os bens da concórdia, destruir

Estamos habituados a estudar os últimos

séculos

do

Império

Romano

particularmente

os

os males da discórdia” (apud MAZZARINO, 1991,

ocidental,

p. 26).

acontecimentos que se deram durante o

A

degradação

dos

costumes,continuará sendo apontada como uma das causas da instabilidade, todavia, no contexto da crise do Império fatores mais concretoscomo a excessiva cobrança de impostos, a diminuição de mão de obra

século III, como um momento de crise e decadência. J. Fernández Ubiña em La

crisis del siglo III y el fin del mundo antiguo, nos fala de alguns cuidados ao se tomar tais conceitos, justamente pelo significado que carregam e pelo distanciamento da

173


Douglas Raphael Machado Gobato

realidade histórica que podem sugerir.

concretos

Nesse sentido, é importante para nós

imperial a transformar-se a partir de finais

justificarmos a forma como nos valeremos

do século II de nossa era.

desse arcabouço conceitual. De acordo com Ubiña:

que

levaram

Feitas

a

sociedade

as

devidas

justificativas,convémagora

“Crisis y decadencia no son conceptos históricos, quiro decir, científicos. [...] Lo cierto es que las más

diversas

adversidades

han

sido

buscarmos

asorigens das ideias de crise e decadência na

antiguidade,

para

seguida,

consideradas como efectos o causas de los

observamos

‘tiempos

contexto da crise do século III. Seguimos

de

crisis

y

decadencia”,

que,

normalmente, estarían precedidos de una ‘edad de oro’ y que, en no menos ocasiones, eran

seus

em

desdobramentos

no

então Mazzarino (1991, p. 13-14) até a

seguidos de otros tempos felices que, en el peor

baixa Mesopotâmia, por volta de 3000-

de los casos, constituírian una ‘edad de plata’”

2500 a. C, quando “[...] as numerosas

(1982, p. 11).

Vemos indiscriminada

como desses

a

utilização

conceitos

pode

sugerir um julgamento em relação a épocas anteriores, como no caso romano antes e depois do governo de Marco Aurélio (161180), onde boa parte dos historiadores modernos

situam

o

imperial.É

importante

início

da

crise

compreendermos,

que esses momentos de instabilidade associados a crise e decadência, tratamse, em realidade, de fatores concretos, seja no campo da política, economia, cultura ou das mentalidades, e que em última análise representam

características

períodospassados

da

alheias

história

a

(UBIÑA,

1982, p. 14-15). Não tomamos nesse trabalho o conceito de crise como um julgamento valorativode uma época em relação à outra, mas apenas o utilizamos para indicar uma série de novos elementos

cidades

sumérias,

que

nunca

tinham

concebido a ideia de um império universal, entraram

numa

sofrida

agonia

devido

exatamente a essa sua incapacidade”. Por volta dessa época, habitantes da cidade de Uma

tentaram

instaurar

universal,

todavia,

não

sucedidos.

Diante

desse

um

Estado

foram

bem

quadro

de

mudanças, o governador da cidade de Lagash,

Erukagina,

acreditava

que

a

maneira de se retornar ao período de estabilidade instituições

seria

retornar

sumérias

e

as

velhas

combater

as

“abomináveis” tentativas universalistas de Uma (MAZZARINO, 1991, p. 14). Neste recuado passado, Mazzarino (1991, p. 14-15) aponta a gênese do conceito

de

decadência,

posto

nas

agitações entre o velho e o novo, onde desenvolveu-se um sentimento de declínio próximo ao de culpa coletiva, assim como

174


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

veremos

entre

quando

Um século antes, os etruscos já

acreditou-se que era preciso combateras

concebiam a desagregação de seu Estado,

novas tendências desagregadores através

que estaria prevista para o final de oito

da recuperação de velhos costumes.

séculos marcados a partir a partir do início

Assim

os

como

romanos,

outros

Estados

de sua nação. Para eles, a decadência

anteriores, o Império Romano manteve a

estaria relacionada a ruína da agricultura.

ideia de cidade-estado, mas sobrepôs a ela

Essa ideia de esgotamento da terra foi

o conceito de um império universal. “Da

difundida, ainda que com variações, para

Europa à Ásia e à África, o novo Estado

outras regiões. No último século antes de

renovou a vida nas cidades antigas; novas

Cristo, Lucrécio afirmava:

cidades surgiram, sobretudo na Europa e na África; o império se sobrepôs à nationes [...] no ódio ou no amor, Roma dominou as consciências” (MAZZARINO, 1991, p. 15). A análise de Mazzarino nos dá outra dimensão da crise. Roma não tratava-se apenas

de

um

conjunto

instituições

supranacionais, mas da própria fantasia da

Roma invictus, e sua decadência envolve a ansiedade inerente ao declínio desse mito. Em todo caso, as ideias de declínio permearam o imaginário dos indivíduos muito antes da consolidação do Império de Roma. O historiador Tucídides(460-395 a. C.)

havia

identificado

ideias

decadentistas com a crise do mundo grego nos séculos III e IV a. C. Entre os romanos, como nos informa Mazzarino (1991, p. 1617): [...] a crise do poderio romano foi temida e, dir-se-ia, diagnosticada desde o século II a. C., ou seja, desde os tempos das grandes conquistas mediterrâneas”.

“Eis que nosso tempo já decaiu. A terra, cansada, a muito custo cria pequenos animais [...] Utilizamos bois e camponeses e arados, mas os campos mal e mal compensam, [...] Triste, o plantador de uma videira envelhecida e lânguida acusa a ação do tempo e culpa a nossa época [...] com suas lamentações não, percebe que todas as coisas apodrecem

lentamente,

caminhando

para

a

sepultura, desgastada pelo longo caminho do tempo”. (apud MAZZARINO, 1991, p. 18).

Outros

contemporâneos

como

Salústio e Cícero, viram a decadência de um ponto de vista ético e ideológico: “[...] como las costumbres, la ausência de ‘grandes hombres’, la desaparición de la virtus, la luxúria a la inclinata res publica” (UBIÑA, 1982, p. 18). Políbio, no século II a. C., faz uma interpretação das causas da decadência

romana

a

partir

do

que

considerava como fatores “internos” e “externos”. Assim, conforme Ubiña “En las Historias de Polibio se encuentran los dos motivos que simpre dominaron a la interpretación del fin del mundo antiguo, hasta hoy: por una parte, la explicacion interna, que ya políbio aplica a

la

estructura

constitucional

del

Imperio

Romano, deduciendo la futura ruina de la

175


Douglas Raphael Machado Gobato imposibilidad de superar los contrastes de classes; por otra, la explicación exterior, que Políbio aplica a la barbarización del Estado grecobatriano, en la cultura clássica, unida a la iranica, se vio submergida por las oleadas de nômades irânicos” (1982, p. 18)

Nos

primeiros

dois

séculos

do

Império, mesmo com as reformas de Augusto, como indica Ubiña (1982, p. 18) renasceram as ideias de Cícero e Salústio de degeneração da moral e dos costumes do povo romano. Por outro lado, nem todos viram esse momento de forma negativa. Para Ovídio, (apud MAZZARINO, 1991, p. 33): “Há quem goste do passado, mas eu me sinto feliz por ter nascido agora; está época convém à minha maneira de viver”. Outros, como Floro e Elio Aristides,também compartilhavam desse espírito, a ponto de a maioria dos historiadores, desde Gibbon, considerarem a dinastia dos antoninos no século II como uma “idade de ouro” sem precedentes (UBIÑA, 1982, p. 19). Esta época de otimismo terminaria com o reinado de Marco Aurélio (161-180), quando

o

Império

passou

a

sofrer

sucessivos ataques em suas fronteiras, uma aguda crise econômica e comercial, um endurecimento radical da administração e a excessiva cobrança de impostos. Segundo Géza Alföldy, em A História

Social de Roma, a morte de Marco Aurélio foi interpretada como o fim de uma “idade de ouro” e o princípio de uma idade de

ferro e ferrugem, assim descreveu Cássio Dião: “A crise não começou simultaneamente em toda a parte e as suas manifestações variaram nas diferentes regiões do Império. [...] Apesar de tudo, o Império romano sofreu uma transformação em todos os domínios da vida que veio a provocar alterações profundas na estrutura da sociedade” (1982, p. 173).

Segundo o mesmo Alföldy (1982, p. 173) a crise se manifestava de forma mais evidente

nas

catastróficas

relações

externas de Roma. Segundo ele, após algumas vitórias bem sucedidas de Marco Aurélio contra os Germanos, o Império foi atacado no governo de Severo Alexandre (222-235),

Maximino

(235-238),

Décio

(249-251) e a captura de Valeriano pelos Persas em 260, evento que Lactâncio descreve em De Mortibus Persecutorum (2000, p. 73-74)como um castigo de Deus contra suas ações anticristãs. No

plano

interno,

a

convulsão

econômica, que ia muito além dos espaços urbanos, levou a um endurecimento da máquina administrativa e governamental. A última revolução romana, como aponta Peter Brown em seu livro O Fim do Mundo

Clássico: de Marco Aurélio a Maomé, trata exatamente das reformas na administração iniciadas

por

estabelecimento

Diocleciano da

com

Tetrarquia,

o que,

conforme Lactâncio (2000, p. 77) dividiu a terra em quatro partes. O novo sistema de administração, previa uma virtual divisão

176


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

administrativa do Império em duas partes,

Por outro lado, a camada social mais

governada

atingida com o novo delineamento político

por

dois

augustos

e

dois

césares.

foi a dos decuriões, composta pelos

As reformas de Diocleciano nas

cidadãos ricos das cidades que tinham por

últimas décadas do século III, apesar de

obrigação zelar por sua manutenção. O

todo o descontentamento dos segmentos

enfraquecimento

mais baixos da sociedade,proporcionaram

deveu-se,

ao Império um período de considerável

econômica da crise, que atingiu de forma

estabilidade, ainda que esse momento

mais severa as cidades. Os decuriões

fosse marcado pela Grande Perseguição

também sofreram por serem a classe mais

aos cristãos (303-305), fator que terá

tributada do Império, já que os senadores,

grande importância na política imperial no

grandes proprietários de terras, e os

século IV.

cavaleiros, em grande parte funcionários do

Segundo momento

de

Peter

Brown,

reformas

nesse

políticas

e

econômicas do século III: militar

senatorial

é a

[...]

excluída

a

aristocracia

dos

comandos

servir

como

soldados

profissionais, que haviam subido pouco a pouco.

[...]

Essas

transformações

1982, p. 178-190). Foi diante desse contexto de crise as

ideias

decadência pagão.Nesse

De modo geral, todas as camadas sociais foram atingidas pela nova política administrativa. Os senadores perderam seu

órgãos

que

aumentaram a mais do dobro o seu

governamental, e

dentro sendo

funcionários

face

que dela se obtivesse algo (ALFÖLDY,

violência

político

a

Quanto à população, tanto a urbana como

duplicaram o tamanho do exército e custo”. (1972, p. 26-27).

poder

principalmente,

decurionum

Estado, gozavam de privilégios fiscais.

militares, em 260. Os aristocratas veem-se obrigados

ordo

a dos campos, era demasiado pobre para

“O Império Romano é salvo por uma revolução

da

do

substituídos estatais

escol por mais

eficientes. Diante desse recuo, a ordem dos cavaleiros passou a representar a pedra angular na administração imperial.

cristãs

a

chocaram-se

contra

o

modelo

momento,

respeito com

de mais

explicativo muitos

assinalavam fatores concretos para a crise, como Ulpiano e Filóstrato, que apontavam gretas perigosas na administração do Império, como a escassez de mão de obra. Cássio Dião, que considerava o governo de Marco Aurélio como uma “idade de Ouro”, identificou a época seguinte como uma “idade de ferro” (UBIÑA, 1982, p. 19).Após a “revolução militar” e o consequente endurecimento da administração no século

177


Douglas Raphael Machado Gobato

III, segundo Peter Brown em, A ascensão

Ao procurarmos pelas raízes do

do cristianismo no Ocidente (1999, p.

pensamento apocalíptico cristão, somos

37):“O

restaurado

levados a tradição messiânica judaica que

bastante

ao longo de todo o antigo testamento falava

abalada, ansiosa pelo retorno da lei e da

da vinda do messias. Segundo Simon e

ordem. As palavras de ordem da época

Benoit,os judeus: “[...] esperaban resarcirse

eram reparatio (reparação de um mal) e

de las humillaciones acumuladas en el

renovatio(renovação).”No

campo

curso de los siglos, buscando su imagem

restauração

em el mismo passado de un descendiente

às

autêntico de David.” (1972, p. 19).

Império

constituía

Romano

uma

sociedade

ideológico-religioso representava

essa

um

retorno

antigas

práticas do paganismo (mos majorum)

Com a doutrina dos apóstolos, o

quando os cristãos passaram a representar

cristianismo aos poucos foi diferenciando-

um

se dos círculos do judaísmo e adquirindo

empecilho

para

o

retorno

à

estabilidade.

uma

Milenarismo e escatologia: da ideia

cristã

de

escatológica

própria,

assentada na crença da segunda vinda de

intransigência cristã a teologia política A

cultura

Cristo e nos sinais apocalípticos que a

decadência

precederia, conforme dito na literatura

desenvolveu-se em uma atmosfera de

apocalíptica dos dois primeiros séculos.A

expectativa pela parousiade Cristo e a

esse respeito, Hinojo diz que:

ansiedade frente aos acontecimentos que eram associados aos sinais do retorno do messias, como previsto nos livros de Daniel e

no

Apocalipse

de

João.

Para

compreendermos, portanto, como a Igreja reagiu

frente

a

crise

imperial,

caberecordarmos, como faz Fuentes Hinojo em

artigo

que

mencionamos,

“Desde sus Orígenes, el cristianismo desarolló, en continuidade

con

la

tradición

hebrea,

una

escatologia o conjunto de crenças sobre ‘el fin de los tiempos’, centradas en torno de la parusía o segunda vinda de Cristo a la tierra, cujos primeiros testemonios se encuntran en las epístolas de Pablo, los evangélicos sinópticos y el Apocalipse de Juan” (2009, p. 74).

A crença das primeiras comunidades

o

cristãs em relação ao poder temporal, ou

desenvolvimento das ideias apocalípticas

seja, à dominação romana, assumiram

que no século IIIlevaram os cristãos a

duas possibilidades: a primeira, sustentada

serem perseguidose a tentativa da Igreja

nos escritos de Paulo, com o passar do

em superar essas ideias e buscar uma

tempo e ao perceber que a eminente

aproximação com o Estado romano.

parousia

não

ocorreria,

buscou

uma

postura de coexistência pacifica com a

178


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

autoridade

secular.

Hinojo:

Em estreita relação com esse afastamento

“Pablo consideraba a los emperadores y

está, como dissemos, o sentido finalista

magistrados como autoridades instituídas

que tradicionalmente os cristãos deram à

por

la

história humana: “O sentido de um fim faz

rindenóndoles

mais que proporcionar um mito para

honores y cumpliendo pontualmente con el

justificar a separação entre a comunidade

deber de pagar tributos y observar las

justa e a cultura mais ampla ao seu redor.

leyes”.

a

Ele desestabiliza o mundo. Declarando que

que

tudo que é tido como certo terá fim [...]”

Dios,

que

el

de

acatar,

obligación

Em

orientação

Conforme

Cristiano

segundo

lugar,

apocalíptica

de

tenía

temos João

considerava Roma como o anticristo ou a

(MEEKS, 1997, p. 177).

Besta do Apocalipse (HINOJO, 1999, p. 74-

A medida que, a partir do século II, a

parousia de Cristo não parecia tão próxima,

75). Em linhas gerais, no primeiro século

a atitude de muito cristãos em relação a

prevaleceram as ideias escatológicas e

sua

milenaristas que ainda criam no eminente

consequentemente sua postura diante do

retorno do Messias. Segundo Hinojo:

poder temporal passou a mudar. Assim,

“La apocalíptica Cristiana, como la judia, difundió una concepción determinista de la história la que el futuro

de

la

humanidade

dependia

de

un

planprefijado [...] Atendiendo a estos princípios, la apocalíptica Cristiana fundamentaria una prática de

opocición

radiacal

hacia

los

poderes

temporales, que iba a dificultar la integración de los cristianos en la sociedade greco-romana” (1999, p. 18).

Essa postura de afastamento do mundo própria dos cristãos joaninos, como aponta Wayne A. Meeks em As Origens da

Moralidade Cristãfoi um dos elementos constitutivos da moral cristã nos dois primeiros séculos. Assim nos diz: “[...] a alienação dos cristãos joaninos em relação ao mundo não é fuga do mundo por parte dos indivíduos. Esses cristãos confrontam o mundo na solidariedade de uma seita”.

concepção

milenarista

e

nas palavras de Hinojo: “[...] a medida que se prolongaba la espera escatológica se hizo necessário dotar a las comunidades

de

una

estrutura

de

gobierno

temporal, que garantizase la supervivência. En principio, predominó el modelo del espiscopado o presbiterado múltiple, sustituido en todas partes, a lo largo del siglo II, por el monarquismo episcopal” (1999, p. 80).

Da

perspectiva

escatológica

no

Ocidente, em torno da segunda metade do século II e início do século III, parte dos autores cristãos tenderam a abandonar a ideia de um fim do mundo próximo e acercaram-se mais dos problemas da época, como faziam os autores pagãos. Essa postura, como destacam Ubiña (1982, p. 21-22) e Hinojo (2009, p. 81) levantou oposições, tanto no Ocidente quanto no

179


Douglas Raphael Machado Gobato

Oriente,

onde

prevaleciam

as

teses

catastrofistas de um fim do mundo próximo (UBIÑA,

1982,

p.

21).

O

movimento

montanista de meados do século II, como aponta

Hinojo

“[...]

respondia

a

la

necessidade que sentían los cristianos más tradicionalistas

de

reafirmarse

en

los

fundamentos de la fe ante los progresos de la

cultura

grecorromana

espiritual

de

y

muchos

la

tibieza

de

sus

correligionários”.Tertuliano (155-230), bispo de Cartago, adaptou a teologia montanista as tradições do cristianismo africano e fundou sua própria seita, com os mesmos objetivos

de

apocalíptico

manter em

vivo

torno

o

ideal

parousia

da

(HINOJO, 2009, p. 82). O início de século III,foi marcadopor decretos contra os cristãos e o evidenciar da crise imperial que, como vimos, tornouse mais visível após o governo de Marco Aurélio.A

crise

resgatou

as

ideias

catastrofistas pagãs, e da mesma forma reascendeu o ânimo dos cristãos e suas ideias apocalípticas. Neste ponto, temos um embate de ideologias. Os romanos acreditavam na amputação do elemento estranho que se recusava a participar do retorno as antigas tradições do paganismo. Os cristãos, por sua vez, viam a eminencia da parousia. As perseguições não serão, se não uma exposição desse conflito ideológico, contudo, nem todos os cristãos

reagiram da mesma forma à crise, como nos diz Mazzarino: “[...] a atitude dos cristãos em relação à crise imperial

diferenciou-se

de

forma

acentuada:

alguns,

exaltando

obra

da

Providencia,

a

conciliavam, confiantes, império de Roma e cristianismo; outros desprezavam o império e procuravam,

com

dissimulada

alegria,

uma

explicação satisfatória para a queda iminente devido à chegada do Anticristo, Nero redivivo, prestes a ser derrotado pelo sopro do Senhor” (1991, p. 38).

Assim, da mesma forma que a crise imperial não atingiu o Império da mesma forma em todas as regiões, a reação dos cristãos e pagãos a ela também não foi homogênea.A postura “oficial” da Igreja de Roma

era

desencorajar

as

ideias

catastrofistas de um fim do mundo próximo, pois,a despeito das reações anticristãs no século III, como aponta G. E. M. de Ste Croix em artigo que se intitula, Por que

fueron

perseguidos

los

primeiros

cristianos? “En los intervalos estre estas persecuciiones generales, la situación, a mi parecer, recordaba mucho lo que había sido antes, excepto que la posición de la Iglecia era, en general, mejor: hubo varias persecuciones locales, pero hubo también largos períodos durante los cuales los cristianos gozaron de algo semejante a una paz completa sobre la mayor parte dol império” (1981, p. 234-235).

O crescimento das igrejascristãs ocidentais necessidade

no de

século

III,

conservar

levava os

a

bens

adquiridos nesses momentos de tolerância, e como Hinojo (1999, p. 89): “[...] obligó a

180


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

las Iglesias, a mantener buenas relaciones con las autoridades. Una circustancia que favoreceria la aproximación mutua.” A

reorganização

especial

com

as

Diocleciano,trouxe

imperial,

em

reformas

de

novamente

certo

equilíbrio a sociedade e adiou por mais alguns séculos a derrocada de Roma no Ocidente. Diante dos delineamentos que seguiram

a

Tetrarquia,

dois

autores

cristãos, Lactâncio e Eusébio, chegaram aadmitir

a

ideia

de

um

Império

cristianizado,deslocando em suas obras as ideias apocalípticas e decadentistas. A

obra

deLactâncio,Institutiones

Diuinaes, começou a ser escrita em 305 e compõe-se de sete livros destinados a combater as religiões e filosofias pagãs em defesa dos dogmas cristãos. Em seu sétimo livro, conforme Hinojo (1999, p. 90) dedicado ao imperador Constantino e escrito entre 306-312, Lactâncio utiliza-se de uma tradição mais antiga de estabelecer uma datação para o fim do mundo, baseado na semana cósmica hebraica que interpretava os dias da criação não de forma literal, mais cada dia correspondendo a um milênio.Assim nos diz o retórico latino: “Así pues, dado que Diós hizo su obra en seis dias,

años ante tus ojos, como un dia” (LACTANCIO, 1990, p. 318).

Neste ponto, Lactâncio recupera o que já havia sido feito por Justino, que apoiado na narrativa do livro de Daniel, apontava a parousia para o ano 350 após o nascimento de Cristo. Essa atitude, ia de encontro com as tentativas das hierarquias das grandes Igrejas em desacreditar as ideias

milenaristas,

cujas

principais

estratégias foram desautorizar a literatura apocalíptica e utilizar a cronologia e as previsões para afastar a ansiedade frente ao retorno eminente de Cristo (HINOJO, 1999, p. 83-84).Outros autores cristãos como

Sexto

Júlio

Africano,

em

sua

Chronographia, também seguiram essa tradição, ainda que apresentasse algumas variações em relação a data final. De todo modo, conforme Hinojo (1999, p. 85) importa identificarmos que esses sistemas serviram como instrumento para controlar as esperanças apocalípticas, e no futuro, reservar apenas aos eruditos os temas referentes a previsões do futuro. Esse abrandamento das ideias apocalípticas foi significativo na aproximação entre s igrejas cristãs e o Estado Romano. Passo

decisivo,

todavia,

na

aproximação entre Roma e o cristianismojá

el mundo permanecerá necessariamente en este

havia sido dado por Orígenes (185-254),

estado seis siglos, es decir, seis mil anos, como

que através de uma interpretação alegórica

disse el profeta con estas palavras: ‘Senhor, mil

das escrituras, sugeriu que a salvação

181


Douglas Raphael Machado Gobato

seria individual e na alma de cada crente.

Diuinaesa união entre poder político e

O reino de Deus foi deslocado por ele para

religioso e a esperança em adiara vinda do

o plano espiritual, desconsiderando uma

anticristo e o juízo final.Em De Mortibus

parousia universal de acordo com a

Persecutorum,a

interpretação tradicional cristã.Em relação

sobre

ao relacionamento do cristão frente ao

tetrarquiaserá vista pelo autor como a

Estado proposto por ele:

vitória

“[...] Orígenes sustuvo el principio de lealtad para con el Estado. Los cristianos tenían el deber

os do

vitória

de

demais

membros

cristianismo

sobre

no entrasen en conflito con las demandas de su

Considerações finais

consciência, como en el caso de la participación

A

pelo

Estado

enel

culto

vemos

essa

imperial”(HINOJO 1999, p. 85).

Em

Lactâncio,não

interpretação alegórica, pelo contrário, a segunda vinda de Cristo estaria envolta em sinais apocalípticos e de degradação dos valores humanos. O anticristo viria da Ásia, e o Oriente dominará sobre o Ocidente. Sem dúvida o autor cristão via esses sinais na crise imperial em que estava inserido. Por outro lado, o retórico vincula o fim do mundo ao fim de Roma.

da seus

persegidores.

inexcusable de cumplir las leyes, mientras éstas

requerida

Constantino

adesão

ao

cristianismo

por

Constantino e o pensamento de Lactâncio que justificava a existência de um Império cristão,

todavia,

não

encerraram

as

previsões

apocalípticas

relacionadas

parousia

de

e

Cristo

as

à

ideias

decadentistas do paganismo, que verá na cristianização do Império mais um dos sinais a serem relacionados a decadência de Roma. A despeito dessa continuidade das ideias

decadentistas,que

terão

nos

“La propia situación actual declara que la caída y

acontecimentos que seguiram a segunda

final del mundo ocorrirán en breve tempo, salvo

metade do século IV uma variedade de

que Roma se mantenga, en cuyo caso no parece que haya que temer nada de esto. Pero cuando

“sinais” do fim do mundo, consideramos

caiga esta capital del mundo y empiece a llegar su

que a vitória alcançada pelo cristianismo na

decadencia, de la cual hablan las Sibilas, quién.

adesão à religião pelo imperador e mais

puede dudar de que ha llegadoel final de la humanidade y del mundo” (LACTANCIO 1990, p. 344).

tarde,

com

Teodósio

I

em

392,

na

oficialização do cristianismo como a religião

Inerido nas disputas de poder da

imperial, um divisor de águas no que se

tetrarquia, a qual considera ser o gérmen

refere ao tema que temos estudado.

da decadência (HINOJO, 1999, p. 91),

Apesar dos esforços de Juliano (355-363),

Lactâncio já concebe em suas Institutiones

chamado pelos cristãos de “o apóstata”, em

182


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

reavivar as velhas tradições do paganismo,

direção ao retorno à estabilidade, como o

temos agora um Império cada vez mais

regresso

cristianizado, onde os velhos costumes

paganismo, as perseguições aos cristãos e

tradicionais do paganismo só teriam lugar

a aproximação da Igreja ao império. Nesse

nas periferias, e só até que o cristianismo

sentido,

não os alcançasse, o que ocorrerá após a

visecompreender as tentativas de remediar

queda do Império ocidental.

a crise que abateu-se sobre as instituições

Vimos, portanto, como as ideias decadentistas

do

paganismo

e

às

velhas

qualquer

tradições

estudo

do

que

imperiais no Ocidente a partir de finais do

a

século II, precisa considerar esse embate

escatologia apocalíptica dos cristãos frente

de ideologias que acabará com a gradual

aos momentos de instabilidade imperial,

vitória do pensamento cristão relegando o

compôs parte significativa das explicações

paganismo

dos contemporâneos para o momento de

decadentismo nos séculos subsequentes.

a

um

irremediável

crise e justificaram suas atitudes em

Referências: LACTÂNCIO, Lucius Caecilius Firmianus. Institutiones divinas. Vol. II. Madrid: Gredos, 1990. _____________ Sobre la muerte de los perseguidores. Madrid: Gredos, 2000.

Bibliografia ALFÖLDY, Géza. A história social de Roma. Lisboa: Presença, 1989. BENOIT, André; SIMON, Marcel. El judaísmo y el cristianismo antiguo: de Antíoco Epífanes a Constantino. Barcelona: Labor, 1972. BROWN, Peter. A ascensão do cristianismo no Ocidente. Lisboa: Presença, 1999. _____________ O fim do mundo clássico. Lisboa: Verbo, 1972. HINOJO, Pablo Fuentes. “La caída de Roma: imaginación apocalíptica e ideologias de poder em la tradición Cristiana antigua (siglos II al V)”. Studia histórica, vol. 27, 2009, pp. 73-102. MAZZARINO, Santo. O fim do mundo antigo. São Paulo: Martins Fontes, 1991. MEEKS, Wayne A. As origens da moralidade cristã: os dois primeiros séculos. São Paulo: Paulus, 1997.

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184


UM PEQUENO TRATADO DE PUERICULTURA E PEDAGOGIA NO “LIVRO DE

EVAST E BLANQUERNA” DE RAMÓN LLULL. UMA PERCEPÇÃO DA INFÂNCIA NO SÉCULO XIII Edilberto Alves da Silva Resumo: Este trabalho pretende analisar certa percepção da infância na Idade Média presente no “Livro de Evast e Blanquerna” (1276-1283) do maiorquino Ramón Llull (12331315), através das orientações de como cuidar das crianças e de como educá-las contidas no segundo capítulo da obra, o qual pode ser considerado um “pequeno tratado” que sintetiza as concepções pedagógicas lulianas. Llull vislumbra uma especificidade da criança, revelando problemas próprios e demandas específicas no que se refere aos cuidados e à educação. A leitura do segundo capítulo da novela demonstra que não se pode tomar em termos absolutos a tese de que a Idade Média ignorou ou marginalizou a infância, bem assim que eventuais argumentos de autoridade cedem ou no mínimo devem ser matizados diante da análise documental. Palavras-chave: Criança; Idade Média; Ramón Llull.

185


Edilberto Alves da Silva

Introdução

Estas referências revelam, pelo contrário,

“L'enfant a été le grand oublié des historiens du Moyen Âge, alors que nous constatons par lês documents écrits et l'iconographie qu'il est présent

um forte sentimento da infância, da sua especificidade,

problemas

próprios, ademais de um lugar importante

38)

da criança na vida e nas aspirações dos

conhecida,

em

meio

acadêmico, a tese de que a Idade Média não conheceu a noção ou o sentimento de infância, não raro fundamentada numa suposta indiferença do medievo em relação às crianças. Esta ideia foi divulgada, principalmente, por Philippe Ariès (1981), já há algumas décadas. Prevalecendo esta ideia, não se poderia

falar

em

puericultura,

compreendida aqui como conhecimentos e práticas relacionados ao cuidado com as crianças.

Nem

se

poderia

falar

em

pedagogia. De

fato,

os

documentos

usualmente utilizados pelos historiadores,

adultos (FERNANDES, 1995, p. 165). É, na linha destes estudos, que este

grandes

acontecimentos

e

personagens, oferecem pouco espaço à criança (COSTA, 2002). Contudo, estudos mais recentes têm apontado documentos e indícios que contrariam a tese de que a Idade Média desconhecera a

infância 1.

trabalho

se

insere.

Pretende-se

analisar certa concepção acerca de como cuidar (a que denominamos aqui de

puericultura, no sentido lato do termo) e educar

as

crianças

na

Idade

Média,

presente no “Livro de Evast e Blanquerna” do maiorquino Ramón Llull, cuja leitura demonstra que não se pode tomar em termos absolutos a tese de que a Idade Média ignorou ou marginalizou a infância, bem assim que eventuais argumentos de autoridade cedem ou no mínimo devem ser matizados diante da análise documental. I . O “Livro de Evast e Blanquerna”

tais como as crônicas, atentos que estão

1

seus

dans la famille, l'école et la société”(Riché, 1991, p.

É

aos

de

Ramón

Llull

(1232

-

1315)

escreveu o “Livro Evast e Blanquerna”, provavelmente, entre 1276 e 1283. A obra é considerada a primeira novela escrita em língua catalã. A narrativa divide-se em cinco livros que significam alegoricamente, conforme o prólogo, as cinco chagas de

Desde essa perspectiva, veja-se Alexandre-Bidon

(1991), Riché (1991), Fernandes (1995) e o extenso

mas tão somente apresentar a leitura de um documento

trabalho de Oliveria (2007), além de Cassagne (s.d). Na

específico que conduz a uma conclusão oposta. Para uma

bibliografia nacional, confira-se, por exemplo, Costa

critica metodológica a Ariès remete-se Alexandre-Bidon

(2002; 2003) e Levsky (2007). Não é nosso objetivo aqui

(1991).

rebater especificamente a tese de Ariès ou de Le Goff,

186


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Cristo e os cinco estados de vida que,

com os pobres. Um problema, contudo,

segundo

a

aflige Aloma: apesar de casada há muito

sociedade cristã: o matrimônio, a vida

tempo, não tem filhos. Após pedir a Deus

religiosa, a vida clerical, o papado e a vida

em oração que lhe dê um rebento, o casal

contemplativa (eremítica). Chamada de

é

idealista por alguns, a obra tem um cunho

Blanquerna.

Llull,

deveriam

ordenar

agraciado

com

o

nascimento

de

moralizante e reformador. Llull quer traçar,

O capítulo II da obra trata do

de maneira didática, através da narrativa e

nascimento e infância de Blanquerna. Ali o

dos exempla, o modelo de vida a ser

Autor fornece tanto orientações referentes

seguido nos referidos estados, bem como

à alimentação e disciplina quanto descreve

expressar

um programa de formação intelectual e

suas

ideias

filosóficas

e

teológicas e a projeção dos valores cristãos

espiritual da criança.

LLull descreve as

na sociedade.

ações

Aloma

de

Evast

e

e

expõe,

O protagonista da novela é

sucintamente, as razões desse proceder,

Blanquerna que, ao longo da narrativa,

de maneira que o leitor possa alcançar-lhe

passa pelo estado religioso, clerical e, após

a finalidade e imitá-las.

tornar-se papa, renuncia ao papado para

Realizando

uma

leitura

da

abraçar a vida contemplativa como eremita,

primeira parte do “Livro de Evast e

que, para Llull, parece ser o estado de vida

Blanquerna” tomando-a como um espelho

mais perfeito.

(speculum) de cônjuges, parece claro que,

Entretanto, o primeiro livro da

no capítulo II da obra, Llull pretende que os

obra é dedicado ao estado matrimonial e

pais cristãos, no exercício de um dever que

trata do casamento de Evast e Aloma, pais

é próprio ao estado matrimonial, isto é, na

do protagonista Blanquerna. Evast é um

educação dos filhos, tenham em vista o

jovem que se destaca pela inteligência e

exemplo dos pais de Blanquerna. E neste

piedade. Vacila entre a vida religiosa e o

sentido, todo o capítulo apresenta-se como

matrimônio. Por ser o “cabeça de linhagem”

um pequeno tratado de puericultura e

de sua família, resolve casar-se para

pedagogia cristã. Vejamos.

assegurar

um

herdeiro.

Casa-se

com

Aloma, em quem vê as qualidades de uma

II. Uma puericultura luliana Nasce

Blanquerna.

boa esposa. Os cônjuges se tornam o

“extraordinário

exemplo

cristão:

contentamento” (LLULL, 1948, p. 165) seus

honestos, piedosos e misericordiosos para

pais o recebem. Na Igreja, Evast agradece

perfeito

de

casal

júbilo,

Com

alegria

e

187


Edilberto Alves da Silva

a Deus pelo recém-nato, rogando que o

182). Há relatos de utilização de amas de

filho seja servo de Deus por toda a vida e,

leite em vários países da Europa Medieval,

para demonstrar gratidão, distribui aos

particularmente

pobres generosa esmola. Sem demora 2, o

(LEVISKY, 2007, p. 182). Talvez seja este

rebento recebe o batismo. Para padrinhos

o caso retratado por Llull em Blanquerna.

nas

famílias

nobres

elegem-se “pessoas de santa vida” (LLULL,

O recurso à ama de leite não

1948, p. 165). A atmosfera em torno do

significa uma alijamento da criança, nem

nascimento do menino é de alegria e

indício de carência de cuidado materno,

gratidão e, desde o berço, é constante o

porquanto um dos aspectos desse cuidado

desejo de que a criança cresça à sombra

é a própria ênfase dada ao aleitamento e

de exemplos de virtude.

nos requisitos que a ama deve preencher.

Uma dos primeiros cuidados de

Nos tempos de Llull, acreditava-

Evast e Aloma é com a amamentação do

se que a criança adquiria as características

filho, que se expressa, sobretudo, nas

da pessoa que a amamentava. Por isso,

exigências para a escolha da ama de leite:

Llull insiste numa ama “sã e robusta”. A

“Teve Blanquerna por ama a uma mulher

isso

muito sã e robusta, para que se criasse um

“recatada e muito honesta” – que realça a

menino são e robusto; pois pelo mau leite

necessidade de a criança manter, desde

as crianças ficam frágeis e raquíticas. Era

cedo, contato com a virtude.

acrescenta

qualidades

morais

também de vida recatada e muito honesta”

“Um ano inteiro passou o menino

(LLULL, 1948, p.165). Deviam ser evitadas

sem experimentar nada mais que leite

as amas de saúde comprometida.

puro” (LLULL, 1948, p.165). Esse razoável

Llull não explica porque Evast

período de amamentação correspondia,

não foi amamentado por sua própria mãe,

segundo Lull, às características fisiológicas

Aloma. Na Idade Média, entretanto, embora

de crianças dessa idade: “por falta de

houvesse

ao

robustez na digestão, não podem as

discurso

crianças, naquele primeiro ano, digerir

sanitário no sentido de que o leite mais

outro alimento, ainda que sejam papas de

conveniente à criança é o leite da própria

leite

mãe, não se proíbe, por diversas razões, o

semelhantes que lhes fazem comer por

recurso à ama de leite (LEVISKY, 2007, p

força” (LLULL, 1948, p.165). Alimento

aleitamento

estímulo materno

eclesiástico e

um

ou

azeite

ou

outras

coisas

diferente do leite poderia acarretar o 2

Segundo algumas versões, “no oitavo dia” Blanquerna

foi batizado (LLULL, 1948, p. 165, nota 2).

deslocamento

dos

humores

e

causar

188


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

diversas

enfermidades

nas

crianças

(LLULL, 1948, p. 165).

Blanquerna seja capaz de conservar a própria saúde.

O cuidado com a saúde revela-

Conforme crescia Blanquerna,

se também na vestimenta que a criança

os pais lhe acostumam a comer todos os

deveria usar, adaptada à estação climática,

tipos de alimentos, a fim de que “sua

“para que os elementos dos quais o corpo

natureza não se inclinasse a uns mais que

se compõe concordassem bem com o

a outros” (LLULL, 1948, p.166). Ademais,

tempo” (LLULL, 1948, p.166), pois se cria

vedaram-lhe beber vinho forte ou muito

que, por influir no corpo, o tempo poderia

aguado, além de temperos picantes “que

desiquilibrar os humores, gerando doenças

destroem o calor natural” (LLULL, 1948,

(LLULL, 1948, p.166).

p.166). Variar a alimentação e evitar os

Em ambos os casos, Llull faz

sabores extremos parece corresponder a

referência à teoria dos humores, comum no

uma exigência de boa dieta, o que está

discurso médico medieval, para explicar a

ligado à preservação da saúde, mas há aí

causalidade das doenças. Esta teoria,

também

baseada

Galeno,

relacionado à virtude da temperança, que

propunha, em síntese, que o Universo era

se expressa na moderação e na aceitação

formado por quatro elementos (terra, água,

da generalidade dos alimentos, pela qual

ar e fogo) e que o corpo humano – visto

se educa o apetite.

em

Hipócrates

e

como um microcosmo –, possuía quatro

um

componente

ascético

A disciplina à mesa é uma das

humores (bílis negra, fleuma, sangue e bílis

preocupações

amarela)

elementos

capítulo, o pai repreende Aloma porque

(COSTA, 2003; 2013). A saúde dependia

deu um pedaço de carne a Blanquerna

do

A

antes de o menino ir à escola. Para o pai,

predominância de um deles poderia causar

pela manhã, as crianças deveriam comer

doenças, alterações na personalidade, nas

apenas pão a fim de que não se tornassem

virtudes, etc (COSTA, 2003; 2013). A

glutões nem perdessem o apetite ao comer

preocupação com a saúde do filho, no

à mesa. 3 Ao lado das questões sanitárias,

relacionados

equilíbrio

aos

desses

humores.

de

Evast.

No

mesmo

“Livro de Evast e Blanquerna” não se limita aos cuidados paternos, mas como se verá adiante,

implica

conhecimentos

na médicos

aquisição para

de que

3

“Sucedió un día que Adorna, antes de partirse el niño al

aula, le dió de almorzar carne asada ; y por si le venía gana em la escuela, le dió de resguardo un tamaño flaon. Sabiéndolo Evast, reprendió ásperamente a su mujer, diciéndola que a los niños por la mañana se les había de dar un mendrugo de pan, y no más; porque, o no se críen

189


Edilberto Alves da Silva

mais uma vez o ideal ascético se faz presente: deseja-se evitar a gula, um dos sete pecados capitais. foi contemporâneo de Arnau de Vilanova, médico que prescreveu, no início do século XIV, a Jaime II de Aragão um “Regimen

Sanitatis”. A obra tem dezoito capítulos dos quais onze são dedicados à boa dieta, elemento fundamental para a conservação da saúde. 4 As concepções lulianas acerca do cuidado infantil estão em consonância com as preocupações médicas da época no que diz respeito à alimentação e revelam um interesse na boa dieta da criança. elemento

andar e brincar com as demais crianças. Não lhe proibiu coisa alguma que apetece à natureza e que esta requer naquela infantil idade, assim que, até

Não é supérfluo lembrar que Llull

Um

Desta maneira Aloma criou seu filho até que pode

notável

da

puericultura luliana é o respeito ao curso natural do crescimento da criança. Após tratar dos cuidados que Aloma e Evast tinham com o pequeno Blanquerna Llull (1948, p. 166) afirma:

os oito anos, permitiu-lhe viver com liberdade e segundo o curso natural.

Há a delimitação de algumas fases

do

crescimento

infantil

cujas

características devem ser consideradas tanto no que se refere aos cuidados com a alimentação e saúde quanto no que diz respeito à educação. Nota-se, assim, uma especificidade própria da infância, não sendo excluídos os jogos e brincadeiras nem as coisas que a “a natureza requer” naquela idade infantil. III. A pedagogia luliana Cumprido os oito anos, o pai de Blanquerna: [...] aplicou-lhe o estudo das letras; e fez ensinar segundo os tratados do livro Doctrina pueril, no qual se previne que, ao princípio, deve o pai ensinar seu filho em língua materna, na qual há de dar clara notícia dos artigos de nossa santa fé, dos mandamentos do decálogo, dos sacramentos, dos pecados capitais, e das virtudes a eles opostas e,

golosos, o no pierdan la gana de comer en la mesa; pues

enfim, de todo o mais que em dito livro se contém.

el pan a secas no sabe tanto a los muchachos, que

(LLULL, 1948, p.166).

opriman y fuercen las operaciones de la naturaleza por la demasiada comida ; y aun pan solo no se les debe dar sin que le pidan.” (LLULL, 1948, p.166).

A

educação

de

Blanquerna

segue o programa traçado em uma obra

Sobre a alimentação nas “Regras de Saúde a Jaime II”

anterior de Ramón Llull, escrita entre 1274

de Arnau Vilanova, confira-se o artigo de Ricardo da

e 1276 e dedicada “ao seu amável filho,

Costa e Matheus Corassa da Silva: “O Regimen sanitatis

para que mais rapidamente ele possa

4

(1308) de Arnau de Vilanova (c.1238-1311) e sua prescrição da boa dieta”, referenciado na Bibliografia.

entrar na ciência com a qual saiba

Confira-se também a tradução desse documento médico

conhecer, amar e servir seu glorioso Deus”

para a língua portuguesa, realizada por Ricardo da costa

(LLULL, 2010, p. 5). Nessa obra, o autor

e Matheus Corassa da Silva: “As Regras da Saúde a Jaime II (1308)”, referenciado na Bibliografia.

relaciona tudo o que considerava relevante

190


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

para a formação religiosa, moral e prática

pecados e das virtudes, etc. Realizado no

de seu filho (COSTA, 2003). A grande

lar e em língua vulgar.

novidade do “Doutrina para crianças” é ser

Os pais de Blanquerna dão-lhe

“uma pequena enciclopédia pedagógica

um pedagogo, que acompanha o menino

escrita em catalão, em uma época na qual

nas práticas devocionais e no estudo da

o latim era a única língua de ensinamento”

Música. 6 A presença de um pedagogo –

(COSTA, 2003).

trata-se aqui de uma família nobre – de

Para

fim

modo algum subtrai Blanquerna à infância,

precípuo da educação e da ciência é

tendo em vista que a mãe lhe permitia

conhecer, amar e servir a Deus. Esta

brincar com outras crianças; nem é sinal de

proposta pedagógica, conforme a época do

abandono paterno, já que toda a atmosfera

autor

do capítulo II da obra demonstra os

(COSTA,

o

maiorquino,

2003),

o

corresponde

à

doutrina da “primeira intenção” 5 luliana: o

cuidados dos pais para com o rebento.

amor e o conhecimento de Deus. Trata-se,

Gramática, Filosofía

Lógica,

pois, de uma educação ética, porquanto

Música,

baseada na ciência do bem e do mal, cujos

Teologia são as artes que Evast fez

primeiro degrau consiste no aprendizado

Blanquerna aprender. Música para que

dos rudimentos da fé, do decálogo, dos

“aprendesse

a

Natural,

Retórica,

servir

Medicina

bem

à

e

Missa

cantada”. 7 Filosofia Natural “para que entendesse mais facilmente a medicina”; 5

“Amável filho, a intenção é obra do entendimento e da

Medicina,

para

alcançar

“suficiente

vontade que se movem para dar o cumprimento da coisa

conhecimento para conservar a saúde”;

desejada e entendida. E a intenção é um ato de um

Teologia “para amar e servir mais a Deus e

apetite natural que requer a perfeição que lhe convém

dirigir sua alma à vida eterna”. 8

naturalmente. Filho, essa intenção da qual tens necessidade é dividida em duas maneiras, isto é, a primeira intenção e a

6

“Diéronle un pedagogo entendido, el cual cada dia,

segunda. A primeira é melhor e mais nobre que a

enseñándole a tener oración y oír Misa con mucha

segunda porque é mais útil e mais necessária; a primeira

quietud y devoción, y después le acompañaba a la

é o princípio da segunda, e a segunda é movida pela

escuela de música, para que aprendiese a servir bien la

primeira [...]

Misa cantada.” (LLULL, 1948, p.166).

Filho, a glória que terás no Paraíso, se nele entrares, será

7

pela segunda intenção, e o conhecimento e o amor que

8

tiveres de Deus serão pela primeira, pois melhor coisa é a

entendía y hablaba el latín con toda perfección. Después

intenção de conhecer e amar Deus que ter glória por

estudió lógica, retórica y filosofía natural, con que

conhecê-Lo e amá-Lo, pois Deus é mais inteligível e

entendiese más fácilmente la medicina, para saber

amável que tua glória. ” (LLULL, 2010b, p. 3-4)

conservar con entera salud su cuerpo. Cursó la sagrada

Veja-se nota anterior. “Tan capaz se hizo Blanquerna de la gramática, que

191


Edilberto Alves da Silva

Currículo pedagógico, como já

Deus” (LLULL, 2010, p. 60). A Astronomia

sublinhado, conforme as propostas da

é difícil e perigosa, pois rapidamente pode

“Doutrina para crianças”. Nesta obra, Llull

levar o homem a errar e a menosprezar a

trata das Sete Artes Liberais e de outras

Deus; a Geometria e a Aritmética requerem

ciências.

todo o pensamento humano, desviando-o

grupos:

Divide as Sete Artes em dois Gramática,

Retórica

do amor e da contemplação de Deus. 10

(trivium) e Geometria, Aritmética, Música e

Assim, estaria de acordo com a tendência

(quadrivium).

outros

da época em indicar mais o trivium, que, ao

saberes são Teologia, Direito, Natureza,

contrário do quadrivium, constituía-se de

O

disciplinas basilares, voltadas à formação

Astronomia Medicina

e

as

Lógica

Artes

e Os

Mecânicas. 9

personagem Blanquerna cursa o trivium

da mente (COSTA, 2002).

completo. Entre as ciências do quadrivium,

Quanto

à

Teologia,

LLull

a

estuda apenas a Música. Além disso,

considerava a mais nobre de todas as

estuda Teologia e Medicina. Por quê?

ciências (LLULL, 2010, p.60). Blanquerna

Na “Doutrina para crianças” Llull

Estuda a Teologia para conhecer, amar e a

é bastante favorável ao estudo do trivium

servir a Deus. Estudada Filosofia Natural

(COSTA, 2002). Mas, dentre as artes do

em função da Medicina. E a Medicina, para

quadrivium, aconselha seu filho a estudar

manter o corpo saudável.

apenas a Música. Isto porque“essa arte foi

proposta pedagógica luliana é integral:

descoberta

com

manter o corpo são (Medicina); formar a

instrumentos, o homem seja louvador de

mente (trivium); e dirigir a alma a Deus

para

que,

cantando

Assim, a

(Teologia). A isto acrescenta a prática das teología para conocer, amar y servir más a Dios y dirigir a

virtudes,

dos

atos

devocionais

e

da

la eterna vida su alma. Enterado que estuvo del Libro de los principios y grados

de la medicina, por donde alcanzó suficiente noticia para conservar la salud, aplicóle su padre al estudio de la teología expositiva en que oía de continuo la Sagrada Escritura y respondía algunas veces a las dificultades teológicas.” (LLULL, 1948, p. 166-167) 9

Para as particularidades de cada ciência, remete-se à

“Doutrina para crianças”, capítulos LXXIII a LXXIX, bem como à análise do Professor Ricardo da Costa, no artigo “Reordenando o conhecimento: a Educação na Idade

Média e o conceito de Ciência expresso na obra Doutrina para

Crianças

(c.1274-1276)

referenciado na Bibliografia.

de

Ramon

Llull”,

10

“Amável filho, não te aconselho que aprendas essa

arte, pois é um esforço muito grande e rapidamente pode se errar. É perigosa, pois os homens que não a conhecem muito

bem

usam-na

mal,

desconhecendo

e

menosprezando o poder e a bondade de Deus, por causa do poder dos corpos celestiais. Filho, também não te aconselho que aprendas Geometria nem Aritmética, pois são artes que requerem todo o pensamento humano, e este tem que tratar de amar e contemplar a Deus ” (LLULL, 2010, p. 60).

192


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

misericórdia cristã, para o que o exemplo

Com amor e temor. Assim Evast e Aloma criam seu filho. Nesse caminho, o

dos pais torna-se insubstituível. Enfim, para Llull, ter um filho não

afeto sempre presente. Blanquerna não é

quer significar apenas multiplicar-se. Os

um invisível. Seu nascimento é causa de

pais têm um imperioso dever. Cuidado do

extrema

corpo, educação da mente, formação da

manifestam-se os cuidados de seus pais

alma. Trata-se de uma proposta formativa

com a saúde do corpo, com a formação do

integral, ética, com vistas à formação do

intelecto e com a ideal luliano da primeira

homem de virtude. Esta finalidade ética

intenção: conhecer, amar e servir a Deus.

também se encontra em outras fontes

Nem por isso, teve subtraído o lugar da

medievais. Tomás de Aquino, por exemplo,

infância.

alegria.

Desde

o

berço,

“a

Llull trata da criança enquanto

natureza não tende apenas à geração [da

filho, no contexto familiar, dentro do qual a

prole], mas também à sua condução e

criança não é ignorada nem marginalizada.

promoção até o estado perfeito do homem

Trata-se de uma representação da infância

enquanto homem, que é o estado de

na qual a criança é sujeito de cuidado,

virtude” (Super Sent., lib. 4 d. 26 q. 1 a. 1

afeto, educação. Ademais, a Llull parece

co).

vislumbrar uma especificidade própria da

ao

tratar

do

matrimônio,

afirmou:

11

Conclusão

infância que implica em problemas próprios

Enquanto aproveitava nestas artes e ciências,

referentes aos cuidados e educação da

criava-lhe seu pai com amor e temor, virtudes

criança, respeitando-se o “curso natural” e

com que deve educar-se a gente jovem, exercitando-lhe, nesta idade, em jejuns, orações, confissões e esmolas; em ensinarlhe,

humildes,

a

falar

e

vestir,

e

a

aquilo que a “natureza requer naquela infantil idade” (LLULL, 1948, p. 166). Ao

final,

é

com

alguma

acompanhar-se com os bons. Estas e outras

perplexidade que retomamos à epígrafe

coisas deste teor ensinava Evast a seu filho,

que abriu este trabalho: não foram os

para que, quando varão, fosse por hábito e por natureza agradável a Deus e aos homens [...] (LLULL, 1948, p.166)

medievais que ignoraram a infância; os historiadores é que, por muito tempo, ignoraram as crianças da Idade Média.

11

“[...] non enim intendit natura solum generationem ejus,

sed traductionem, et promotionem usque ad perfectum statum hominis, inquantum homo est, qui est virtutis status. Unde, secundum Philosophum, tria a parentibus habemus: scilicet esse, nutrimentum, et disciplinam” (Super Sent., lib. 4 d. 26 q. 1 a. 1 co)

193


Edilberto Alves da Silva

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194


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

sanitatis-1308-de-arnau-de-vilanova-c1238-1311-e-sua-prescricao-da-boa-dieta>

Acesso

04 ago. 2014. _______. Reordenando o conhecimento: a Educação na Idade Média e o conceito de

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195


UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DO CAMPO DA HISTÓRIA MEDIEVAL NO BRASIL Eduardo Cardoso Daflon 1 Resumo: O presente trabalho inspira-se no estudo realizado por Marcelo Badaró Mattos, intitulado As bases teóricas do revisionismo: o culturalismo e a historiografia brasileira

contemporânea, em que desenvolve uma análise dos fundamentos teóricos que embasam as pesquisas históricas no Brasil de hoje tomando por base as últimas atas dos encontros nacionais da Associação Nacional de História (ANPUH) e os últimos números da Revista Brasileira de História (RHB). Proponho-me, assim a, baseando-me em sua metodologia, promover um balanço da recente produção medievalística nacional. Para tanto, focarei meus esforços nas atas dos dois últimos Encontros Internacionais de Estudos Medievais, promovidos bienalmente pela Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM), com o intuito de estabelecer os rumos que a produção brasileira dedicada à história medieval vem tomando nos últimos anos, as influências que sobre ela incidem e as suas consequências para o conhecimento das sociedades humanas do passado. Palavras-chave:História Medieval; Historiografia; Teoria

1PPGH-UFF/

NIEP-Marx-PréK/ TranslatioStudii

196


Eduardo Cardoso Daflon

No corrente ano de 2014 publicou-se

históricas no Brasil partindo de duas

um livro organizado pelo professor da

frentes.Uma primeira quantitativa e outra

Universidade Federal Fluminense (UFF),

qualitativa com base, respectivamente, nas

Demian Melo sob o nome A miséria da

atas

historiografia: uma crítica ao revisionismo

Associação

contemporâneo (MELO, 2014a). Essa obra,

Universitários de História (ANPUH) entre os

apesar de formada por artigos que tratam

anos de 1997 e 2013 e nos dois dossiês

de momentos históricos bastantes distintos,

sobre historiografia publicados nas dez

que vão desde a era Vargas até a

últimas publicações da Revista Brasileira

Revolução

de História (RBH).

dos

Cravos,

constitui

uma

dos

espécie de “unidade crítica”. Trata-se de

Encontros

Nacionais

Nacional

de

da

Professores

Ao quantificar os grandes temas

um conjunto de trabalhos que atacam o

reunidos

nos

revisionismo atual, que nas palavras de

Temáticos

(STs)

Demian: “acaba por fazer (...) nada menos

demonstrou

que uma releitura reacionária do passado,

predomínio bastante evidente do chamado

ao serviço de um projeto conservador (e

culturalismo

por que não, reacionário) no presente”

Aplicando uma divisão, de certa forma

(MELO, 2014b, p. 48). O somatório das

usual

críticas feitas por diversos pesquisadores

econômico/social;

nacionais e internacionais visa desconstruir

(entendida como do poder e das ideias

o edifício da historiografia revisionista

políticas);

recente, demonstrando os pilares de areia

(compreendendo a chamada história das

sobre os quais se apoia.

mentalidades e os estudos sobre as

Um desses artigos me interessa mais diretamente para os fins dessa comunicação. Refiro-me ao estudo feito pelo professor Marcelo Badaró, titular de História do Brasil da UFF, intitulado As

bases

teóricas

do revisionismo:

o

culturalismo e a historiografia brasileira contemporânea (MATTOS, 2014). Nele, Badaró traça uma análise dos fundamentos teóricos

que

embasam

as

pesquisas

chamados da

ANPUH,

claramente nas

entre

e

Simpósios

que

análises os

Badaró há

um

históricas.

historiadores história

história

política

da

cultura

ideologias) – os resultados obtidos foram: (...) que [dos 84STs] 37 deles se concentraram no eixo da história cultural, 10 no eixo de história política/do

poder

e

6

no

de

história

econômico/social. Nos cruzamentos, outros onze STs foram híbridos de história cultural e história política, três mixaram história econômico-social e a história política e outros três, história da cultura e história econômico-social. Registre-se ainda que sete STs discutiram ensino de História e dois questões teóricas mais amplas que atravessavam o conjunto de eixos temáticos. Cinco dos STs, (...),

197


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo não cabem de forma alguma nessa classificação. (MATTOS, 2014, p. 69)

Ou seja, os trabalhos dedicados diretamente à história cultural, ou suas vertentes laterais como a “cultura política” somam

juntos

quase

60%

das

apresentações. Se desconsiderarmos os STs não classificados, de teoria e os dedicados ao ensino esse número sobe para quase 70%!Algo que, além de atestar o

predomínio

quase

absoluto

dessa

vertente, Confirma também a ideia de uma retomada dos estudos

em

história

política,

particularmente

daqueles que articulam à primeira dimensão, na linha do que é tratado por ‘cultura(s) política(s)’ (em geral denominados ‘nova história política’). Por

Mediante impositivo

esse

uma

quadro

avaliação

torna-se

acerca

do

conceito de “cultura” que é usado pelos historiadores. Segundo Badaró, valoriza-se “uma definição ‘ampliada’ e ‘antropológica’ de cultura (...)”. Contribuindo, sob o título de “relativismo cultural” e de um “antideterminismo econômico” para a uma determinação de polo inverso, onde a cultura

é

vista

de

maneira

absoluta

(MATTOS, 2014, p. 70; MATTOS, 2012, p. 117-204). Feitas essas considerações, é válido que comecemos a nos voltar para os

estudos

estudos medievais, objeto específico dessa

de

história

econômico-social

[que

trabalhos]” (MATTOS, 2014, p. 69).

Além disso, nas referências colhidas RBH

e

no

mercado

editorial,

Badaródemonstra como certas escolas ou certos autores são predominantes entre os pesquisadores

brasileiros.

O

destaque

certamente fica com os historiadores da chamada “Terceira Geração da Escola dos

Annales”, sendo os mais citados e mais traduzidos para o português, juntos com o italiano Carlo Ginzburg. Sendo, apesar das especificidades,

“quase

sempre

identificados pelos que os citam com as problemáticas da chamada história cultural, (...)” (MATTOS, 2014, p. 72). Por sua vez, os

mais raras aparições...

fim, constata-se a pequena expressividade dos perfazem apenas pouco mais de 10% dos

na

concepção marxista de história são os com

autores

identificados

com

uma

comunicação. Ressalto que se trata de uma primeira investida no tema, que pretendo desenvolver em trabalhos futuros a fim de atingir um panorama mais preciso acerca

dos

rumos

do

medievalismo

brasileiro. Convém, contudo, antes de me voltar para a análise das atas em si, debruçar-me sobre uma tentativa pretérita de

configuração

do

campo

da

medievalística brasileira, feita há cinco anos por Mário Bastos e Leandro Rust, publicada na Revista Signum sob o título de TranslatioStudii – A História Medieval no Brasil (BASTOS e RUST, 2009). Nesse reconstituem

artigo, a

formação

os da

autores História

198


Eduardo Cardoso Daflon

Medieval brasileira desde os importantes

especialistas europeus; bibliotecas mal

debates sobre as “raízes medievais” do

equipadas e com políticas de aquisição que

Brasil, nas obras de Nelson Werneck Sodré

deixam a desejar; etc.

e

Roberto

exemplo.

Junto com o trabalho de Marcelo

Percorrem os chamados “anos de chumbo”

Badaró, o esforço empreendido por Mário

e as heranças que legaram ao nosso

Bastos e Leandro Rust em sua avaliação

recorte temporal, quase sempre associado

da medievalística brasileirafoi um ponto de

a uma despolitização, quando não um

partida fundamental para meu desejo de

reacionarismo

mapeamento. Apesar de ser uma excelente

estudiosos.

Simonsen,

por

por

parte

Discorrem

de

a

publicação, cuja erudição estou longe de

segunda onda de interesse pelos estudos

ser capaz de igualar, é evidente que tem

medievais, que se deu a partir da década

seu foco na produção feita por professores

de 1980 com a chegada das traduções

empregados nas principais universidades

portuguesas das obras de Le Goff, Duby e

do país, deixando de lado uma grande

Le Roy Ladurie, culminando com a criação

quantidade de pesquisas desenvolvidas por

do primeiro setor de pós-graduação em

graduandos e pós-graduandos. Pretendo,

História Antiga e Medieval no Brasil dentro

portanto, nesse primeiro momento, ampliar

do

o espaço amostral a fim de abarcar essa

Programa

de

ainda

seus

sobre

Pós-Graduação

em

História da UFF (PPGH-UFF). Percorrido

esse

enorme quantidade de estudos que vem caminho,

sendo produzida entre nós.

demonstram, de maneira crítica, a grande

Assim sendo, me pareceu bastante

diversidade da produção nacional. Essa

razoável optar pelas atas dos Encontros

conta

Internacionais

com

historiadores

vinculados

a

de

Estudos

Medievais

diversas perspectivas como os Nouveaux,

(EIEM)

ou aqueles que colhem referências na

quantificável. Isso pelo fato de que, além

filosofia política mais clássica e até mesmo

dos principais professores universitários

os que se identificam de forma bastante

que ali se encontram presentes, contamos

direta com o chamado pós-modernismo.

ainda com mais de uma centena de outros

Diversidade, que para Bastos e Rust

trabalhos vinculados asmais diversas fases

seriam a expressão de um vigor no campo,

de maturação acadêmica, desenvolvidos

capaz de superar as várias dificuldades

por

que

variados níveis de formação.

nos

assolam:

tais

como

a

de

como

estudantes

suporte

de

documental

diversas

áreas

financiamento; distância dos arquivos e

199

e


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Nos anais do IX EIEM, realizado em

explicação, ainda que provisória, visto o

2011 na Universidade Federal do Mato

grau ainda embrionário da corrente análise.

Grossocontamos com um total de 76

O que explicaria essa discrepância tão

trabalhos e, adotando divisão de eixos

abissal – superior inclusive à encontrada

similar a de Marcelo Badaró,classifiquei-os

nas atas dos encontros nacionais da

da seguinte forma: 5 trabalhos versaram

ANPUH – entre os estudos que se dedicam

sobre poder e ideias políticas; 3 sobre

a história cultural e os outros eixos

história econômico-social; 9 sobre teoria e

temáticos?;

metodologia; 3 não se enquadram nessa

metodológicas informam – ainda que não

classificação; e nada menos do que 56

de maneira declarada ou sequer consciente

trabalhos seguiram a linha da história

– esses estudos?; Quais as consequências

cultural. Em outras palavras, os estudos

disso para os estudos medievais, e indo

culturais responderam por quase 75% de

além deles, para os estudos de qualquer

todos os trabalhos publicados e podem

sociedade pretérita?

mesmo

superar

desconsideremos

os

85%,

os

de

Que

perspectivas

teórico-

caso

A notória superioridade dos estudos

cunho

culturais advém, em algum nível, da

metodológico e os “inclassificáveis”!

influência, como bem destacaram Bastos e

Já nas atas do X EIEM, ocorrido em

Rust (2009),annaliste, em sua terceira

2013 na Universidade Nacional de Brasília,

geração (pós-1969). Graças às traduções

dispomos de 60 textos que se dividem da

portuguesas das obras francesas, dentre

seguinte forma: 3 avançam sobre questões

os

relacionadas a poder e ideias políticas; 4

Terceira geração essa bastante oposta às

sobre história econômico-social; 1 sobre

noções de história problema e a busca por

teoria e metodologia, 2 não se enquadram

uma compreensão holística da realidade.

nessa classificação. Mais uma vez vemos,

Essa terceira fase que se inicia após a

com ampla margem, os estudos culturais

saída de Braudel teria, nas palavras de

liderando, agora somando 50 trabalhos. Ou

Ciro Cardoso, as seguintes características:

seja, os estudos culturais correspondem a não

menos

que

83%

do

total

de

publicações! Apresentados esses dados, restame explorar seus significados, levantar algumas perguntas e tentar avançar uma

quais

muitos

eram

medievalistas.

1.Valorização do periférico em relação ao central, preferindo objetos de estudo como os loucos, os marginais,

os

homossexuais,

as

bruxas,

as

prostitutas (ao sabor, na verdade de modismos descartáveis); 2. Valorização, não da realidade social, das condições reais da existência, e sim do seu avesso – sonhos, imaginário, ideologias –, numa “leitura” que analisa o discurso verbal ou

200


Eduardo Cardoso Daflon não-verbal (iconografias, por exemplo) partindo do princípio de um divórcio da evolução ideológica em relação

à

econômico-social;

pululam

as

danças

tematicamente,

e resumos abundam em referências ao

“pulsões

imaginário ou às representações. Assim

reprimidas do desejo”, os sabbats, os fantasmas e

sendo, estou totalmente de acordo com

macabras,

as

obsessões, e é frequente o anacronismo na forma da projeção de percepções atuais feitas em função

Badaró

quando

ele

afirma

que

o

da sociedade de hoje (feminismo, “problema gay”),

“referencial culturalista é a forma própria

a épocas em que elas carecem de qualquer

através

sentido ou realidade; 3. O tecnicismo que valoriza o computador e outras técnicas de vanguarda

da

qual

os

historiadores

absorveram, desde meados da década de

oculta uma grande pobreza metodológica: as

1980, o influxo do chamado ‘paradigma

fontes são escolhidas em forma arbitrária, tratadas

pós-moderno’” (MATTOS, 2014, p. 73).

sem rigor, usadas de maneira pouco crítica e racional (CARDOSO, 1988, p. 100).

Em outras palavras, uma história que trocou o objetivo pelo subjetivo, o social amplo pelo cultural local, a realidade pela representação, o movimento pelo estático, o material pelo imaginário, o todo (totalidade)

pelo

tudo

(micro

história).

Análises das continuidades, não mais das rupturas

e

transformações,

com

o

predomínio do tempo “quase imóvel” e fazendo uso de conceitos capazes de amplas

aplicações.

Conceitos

etéreos,

aparentemente desvinculados do mundo que os produziu, que acabam por turvar as capacidades analíticas dos historiadores, de

anais dos dois eventos, nos quais os títulos

maneira

à

homogeneização

da

sociedade por uma aparente ausência de conflitos,

estando

a

aos

valores

direcionada

preocupação e

ideias

compartilhados por Napoleão e o último de seus soldados. Algo que está bastante de acordo com que somos capazes de encontrar nos

É possível ainda perceber que a expressividade

de

uma

hermenêutica

documental. Nos encontros de 2011 e 2013 cerca de 60% dos trabalhos publicados tinham como escopo documental poucas, ou até mesmo uma única fonte. Estudos limitados a uma paráfrase, mais ou menos erudita

do

documento

elegido;

uma

descrição mais ou menos densa, porém nada além disso: uma descrição. O que consiste em algo profundamente ancorado em

um

referencial

pós-moderno

(CARDOSO, 1997, p. 41, 50-51), por mais que os historiadores recusem admitir. A própria perspectiva perante o mundo que nos cerca é radicalmente diferente, nas palavras de Ciro Cardoso: É provável que o “cosmo” humano, como é encarado por tais historiadores, não seja o mesmo – estruturado, explicável – em que acreditavam os historiadores dos Annales do passado, e em que acreditam

os

marxistas;

e

sim

um

cosmo

contingente e inexplicável, no qual só constatações são

possíveis,

mas

nenhuma

explicação

(CARDOSO, 1988, p. 108).\

201


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Exposta a problemática e essas

contribui para que a História se transforme

análises incipientes resta-me, a guisa de

em um inventário infinito de singularidades

conclusão, manifestar aqui os pressupostos

absolutas. Fatores que, como o saudoso

que

professor Ciro uma vez disse,

constituem

historiográfica.

minha

prática

um

completo

Sendo

não consiste numa apologia aberta do capitalismo, mas se dá em forma bem mais sutil: uma vez que

descrente da ideia de produção acadêmica

eliminados o racionalismo e em especial o

isenta, julgo necessário fazer saber ao

marxismo, o que permanece, embora isso não se diga, é o próprio capitalismo – e uma série de

leitor das premissas das quais parti para

concepções que não o incomodam.

formular essa crítica, estando intimamente associado a uma concepção marxista que vê, no estudo do passado, um instrumento fundamental de transformação do presente. Dito isso, finalizo afirmando que, do meu ponto de vista, o paradigma que informa boa parte do medievalismo atualmente,

Algo que certamente dificulta – quiçá impossibilita – o cumprimento do papel social do historiador de explicar o passado e promover a compreensão do presente na busca constante por transformação da nossa realidade!

Referências:

Atas do X Encontro Internacional de Estudos Medievais (EIEM) da Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM) – Diálogos Ibero-americanos. Brasília: ABREM/PEM-UnB, 2013, Disponível em: http://www.usp.br/lathimm/images/XEIEMAtas.pdf (acessado em 18/08/2014).

Anais Eletrônicos do IX Encontro Internacional de Estudos Medievais: O ofício do Medievalista.Cuiabá: ABREM, 2011 Disponível em: http://www.abrem.org.br/biblioteca.php (acessado em 18/08/2014). ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru: EDUSC, 2006. BASTOS, Mário Jorge da Motta; RUST, Leandro. TranslatioStudii – A História Medieval no Brasil. Signum, 10, pp. 163-188, 2009. BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. CARDOSO, Ciro Flamarion. Uma “Nova História”?. In CARDOSO, Ciro Flamarion. Ensaios

Racionalistas. Rio de janeiro: Editora Campus, 1988.

202


Eduardo Cardoso Daflon

__________.História e Paradigmas Rivais. In CARDOSO, Ciro; VAINFAS, Ronaldo (Orgs).

Domínios da História – Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1997. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido

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contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014a. __________. Revisão e revisionismo na historiografia contemporânea. In A miséria da

Historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014b. MATTOS, Marcelo Badaró. As bases teóricas do revisionismo: o culturalismo e a

historiografia brasileira contemporânea. In A miséria da Historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014. __________. E. P. Thompson e a tradição de crítica ativa do materialismo histórico. Rio de Janeiro: EDUFRJ, 2012.

203


Uma reflexão dos fazeres femininos Medievais dentro do universo da Mulher Contemporânea Evelline Soares Correia 1 Edneia Regina Rossi 2 Resumo: Este artigo tem como objetivo principal resgatar através da história da Idade Média, os papéis exercidos pelas mulheres dentro de uma época intitulada por filósofos iluministas franceses como Idade das Trevas. Sua participação dentro da sociedade, ou seja, como eram vistas por uma sociedade totalmente dominada por homens. O surgimento do cristianismo dando um novo enfoque `a vida, ao mundo e à valorização da mulher sob a perspectiva de Maria, mãe de Deus, que contrastava ostensivamente com as culturas precedentes fundadas em um ideal aristocrático e terreno de existência. Como era a Educação Medieval e como estavam inseridas neste campo, o que de importante conseguiram realizar dentro das mais variadas atividades de papéis de exclusividade masculina. Apresentar um panorama histórico das transformações sociais que as mulheres viveram partindo do início do século XX, o que estas pensavam em relação ao seu papel dentro da sociedade, as transformações que vivenciaram dentro de uma nova concepção familiar, a divisão de deveres e igualdade de direitos dentro da família e até mesmo na sociedade, os preconceitos que até hoje estão presentes nas mais variadas facetas, imposições e padrões a que são submetidas. Sendo assim possível analisar no decorrer desta trajetória um legado deixado pelas mulheres medievais às futuras gerações de mulheres que continuam buscando conquistas e fazendo história. Palavras-chave: Idade Média; mulheres medievais; mulheres contemporâneas

1Universidade

Estadual de Maringá- UEM

2Universidade

Estadual de Maringá- UEM

204


Eveline Soares Correia

Introdução

passavam por um período de preparação

Na Educação Medieval, o povo

recebendo

instruções,

os

chamados

europeu teve como ponto de partida a

catecúmenos e as escolas chamadas de

doutrina da Igreja, pois foi somente através

catecumenatos que com o tempo passaram

da religião possível educar os novos povos,

a serem organizadas pelos bispos com

a cultura greco-romana estava a ponto de

intuito de preparar o clero para as igrejas

ser destruída pelos bárbaros tendo a Igreja

que estavam sob sua direção, passando a

Cristã grande participação para evitar tal

serem denominadas escolas das catedrais

situação. Assim, a instrução nessa doutrina

devido à sua localização estar no edifício

e a prática do culto substituíram o elemento

da catedral. Os mosteiros ocupavam um

intelectual.

papel preponderante pois eram as únicas

Durante

período

instituições de ensino da época, centros de

predominou uma concepção de educação

pesquisa, casa editorial para multiplicação

que se opunha ao conceito liberal e

dos

individualista dos gregos e ao conceito de

conservação do saber, enfim lá eles

educação prática e social dos romanos.

preparavam os sábios e estudiosos da

Enquanto os filósofos gregos davam mais

época.

importância

ao

do

povoados por mulheres nobres que eram

homem,

cristianismo

contrário

abandonadas pelos maridos ou viúvas ou

passou a dar importância ao aspecto moral

por aquelas que se rebelavam à opressão

baseando-se na ideia de caridade cristã ou

da família e ainda filhas obedientes aos

amor, que é a expressão mais individual e

pais se consagravam à Deus.

o

todo

este

aspecto

intelectual pelo

livros,

Os

únicas

mosteiros

bibliotecas

femininos

de

eram

completa da personalidade humana, seu

O termo escolástica significou o

ideal era um renascer para um mundo novo

conjunto do saber, tal como era transmitido

do espírito. Com o cristianismo surge um

das escolas do tipo clerical, mais tarde se

novo tipo de história de educação, com

deu o mesmo nome aos que escolarmente

normas inéditas de vida e comportamento,

se dedicavam à Filosofia e a Tecnologia e

Jesus Cristo instaura uma nova visão do

num sentido amplo, podemos dizer que foi

mundo

um movimento intelectual oriundo da Idade

e

da

ostensivamente precedentes

vida,

que

contrasta

com

as

culturas

demonstrar

e

aristocrático e terreno de existência. Os

fé pelo método da análise lógica. Dessa

que

maneira a educação escolástica visava

à

um

em

ensinar as concordâncias da razão com a

convertiam

em

preocupado

ideal

se

fundadas

Média

religião

cristã

205


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

as

busca da santidade através de uma vida

crenças num sistema lógico, a forma

dedicada à Deus. Porém por outro lado, foi

científica valorizada era a lógica dedutiva.

um

desenvolver

o

poder

de

formular

As universidades surgiram no século

período

inquisição

de

intolerância,

procurava

onde

controlar

a o

XIII, como o nome inicial de studium

pensamento e a cultura, o que negava a

general, pelos fins do século XIV esse

possibilidade do pensamento livre.

nome

foi

substituído

universitaslitterarum, primeira

supõe-se

universidade

de

Podemos também dizer que foi uma

a

época dominada por homens: senhores

consagrou

feudais, cavaleiros, padres e monges,

pelo

que

que

professores e alunos organizados por

porém

seções nas quatro grandes divisões do

importantes funções fora do lar como

conhecimento daquela época (Teologia,

abadessas, rainhas, dirigentes empresárias

Direito, Medicina e Filosofia) tendo sido a

e

de Nápoles, fundada em 1224. Durante a

canonizadas pela Igreja Católica. Fora às

Idade Média foi grande a influência da

exceções, a regra era a mulher ser uma

universidade,

fornecendo

de

criatura submissa e dependente do pai e do

organização

puramente

democrática.

marido, juridicamente tutelada, fora de todo

exemplo

Segundo Little (2002, p. 238), as escolas

algumas

até

o

mulheres

dificílimo

status

exerceram

de

santa

este ambiente educacional apresentado.

episcopais e as universidades constituíam

Desenvolvimento

um território "estritamente proibido às

No decorrer deste período houve

mulheres" e as que desejavam um elevado

uma mudança na concepção da mulher,

nível de cultura tinha de contratar mestres

apesar de Jesus Cristo ter valorizado as

particulares.

mulheres

Os filósofos iluministas franceses do

muitos

de

seus

seguidores

tinham outra forma de pensar.

século XVIII tacharam a Idade Média de

São Paulo na primeira Carta aos

“Idade das Trevas”, porém não podemos

Coríntios 14:34-35, dizia que as mulheres

pensar que tudo foi negativo, pois foi um

deveriam se calar na assembleia pois para

período de contrastes como qualquer outra

elas não era permitido falar, Timóteo 2:11-

fase humana, nesta época por influência da

14 reforçava esta ideia afirmando que as

Igreja Católica, a humanidade procurou

mulheres

viver de maneira apaixonada os valores

silenciosas, que não poderiam dar lições e

transcendentais

ordens aos maridos. Consideravam as

do

cristianismo

evidenciado na reflexão filosófica e na

mulheres

deveriam

uma

ser

espécie

submissas

de

e

armadilha

206


Eveline Soares Correia

preparada pelo inimigo, fruto de todos os

ele os textos buscavam impor uma ordem e

vícios pois foi Eva quem cometeu a

um sentido, suas fontes remetem a uma

transgressão sendo Adão uma vítima,

imagem idealizada por quem as escreveu,

padres como Santo Agostinho viam as

o que se queria de uma mulher, não

mulheres

necessariamente o que eram elas ou o que

como

seres

inferiores

aos

homens.

elas queriam ser.

Apesar desta mentalidade o século

De acordo com Revista da FARN,

XIII assinala uma corrente positiva do

Natal, v.3, n.1/2, p. 159 - 173, jul. 2003/jun.

pensamento em relação à mulher. Com

2004, foram canonizadas 460 mulheres

oculto de veneração a Virgem Maria,

pertencentes a cerca de vinte nações,

desenvolvido por teólogos: Alberto Magno,

tendo a Itália o maior número de santas

Tomás de Aquino, João Duns Escoto, ela

seguida por França, Alemanha e Inglaterra;

foi apresentada como a nova Eva escolhida

121

por Deus para ser a mãe do seu filho,

camponesas

e

tendo então outra visão para a mulher,

abadessas,

63

considerada um ser humano criada por

religiosa depois que enviuvaram, 31 eram

Deus capaz de adquirir grandes virtudes. O

virgens e 25 foram martirizadas, isto é,

culto mariano valorizou a virgindade como

testemunharam a sua fé cristã com sua

uma forma de consagração a Deus. Esta

vida.

visão sensibilizou milhares de jovens de

pertenciam

Dentre

à

nobreza,

operárias,

17 100

ingressaram

estas,

eram foram

na

vida

podemos

citar

diferentes camadas sociais ingressando

algumas mulheres medievais que muito

nas

contribuíram em seu tempo: Brígida (1303-

instituições

exercendo

um

religiosas

trabalho

católicas

dedicado

aos

pobres e às orações contemplativas.

1373) da Suécia, casado com o nobre Ulf Gudemarsson, apoiada pelo rei fundou um

Grande estudioso da Idade Média,

mosteiro duplo, onde homens e mulheres

Georges Duby buscou aprofundar as suas

só se viam nas orações em comum, esta

pesquisas

se

ordem religiosa, Santíssimo Salvador se

debruçou sobre o assunto escrevendo uma

espalhou por 78 mosteiros por toda a

série de textos, entre eles uma trilogia

Europa.

sobre As Damas do Século XII, não se

1983, p. 231-232).

sobre

as

mulheres

e

distanciando muito do modo como a

(SGARBOSSA;

Freiras

copistas,

GIOVANNINI, bibliotecárias,

maioria dos (as) historiadores (as) tem

escritoras, e intelectuais que escreveram

tratado a história das mulheres, mas para

biografias

de

santos.

Hrotsvita

207

de


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Gandersheim,

uma

autora

prolífica

e

Mulheres que se opunham aos

talentosa tanto em prosa como em poesia,

casamentos

redigiu: peças, legendas, poemas épicos.

tornou-se favorável ao matrimônio cristão,

(WEMPLE, 1993, p. 264). Beguinas – eram

lutando para modelar a sociedade através

mulheres solteiras ou viúvas de camadas

do casamento que elevava a dignidade da

superiores alta da sociedade medieval que

mulher, porém juridicamente ela ainda

formavam

continuava subordinada ao marido. Os

comunidades

filantrópicas,

arranjados,

eram

pois

Igreja

dando assistência aos excluídos, leprosos

casamentos

e pobres, segundo o historiador José Rivair

econômicos e sociais, nas camadas sociais

Macedo “devido à desconfiança pela igreja,

mais elevadas era seguido um plano

a mesma tentou integrá-las à ordem dos

estratégico para manter o patrimônio, os

Franciscanos e Dominicanos e as que se

casamentos eram considerados negócios.

recusaram forma consideradas hereges e

Estas que se recusavam d faziam voto de

foram excluídas do seio da cristandade

castidade ingressando em um convento ou

(excomungadas) " (MACEDO, 2002, p. 49-

recorria a entidade eclesiástica para anular

50). Prostitutas e mulheres públicas, dona

o casamento. No século XIV a Igreja

de casarões que levavam a vida fora dos

Católica tinha o monopólio jurídico sobre o

padrões da espiritualidade medieval que

matrimônio fixando a idade mínima de 12

negava os prazeres corporais. Para G.

anos para a moça e 14 para o rapaz.

Duby (1995), a conduta das mulheres não

Mulheres cultas e eruditas tais como: Ana

é um problema só delas e sim de toda a

Comnena (1083 - 1148), princesa bizantina

família, colocando no cerceamento de sua

e filha de Aleixo I Comneno, Alexíada é o

conduta e na garantia dessa a conservação

título da biografia do seu pai, escrita por

de toda a honra familiar. Para o autor,

ela. Cristina de Pisa (1364 -1430) tida

usando o pressuposto de que a honra da

como

família depende do "bom comportamento"

Hildegarda de Bingen (1098-1179) deixou

das mulheres cria um mecanismo de

escritos

legitimação de apropriação e domesticação

Causae et Curae (causa e cura) que nos dá

do corpo feminino. Porém, nada se fala

um retrato bem rico sobre a medicina

sobre o comportamento dos homens para a

medieval. Mulheres que trabalhavam na

manutenção da honra. O que vemos aqui é

agricultura. Nesta época trabalhar com as

a existência de uma dupla moral.

mãos era atividade para os servos, não

destacada variados,

de

a

interesses

poetisa inclusive

francesa. o

tratado

conferindo honra e dignidade a ninguém,

208


Eveline Soares Correia

mesmo assim as mulheres trabalhavam fora de casa para ajudar o homem no sustento da família. Mulheres presentes no mundo do trabalho que era dividido em: guildas,

confrarias,

corporações,

companhias e comunas. Nas guildas, onde havia juramento mútuo e hierarquia, uniamse os mestres, os aprendizes e os assalariados. No início do século XX, o país viveu um momento de ascensão da classe média,

nas

cidades,

ampliavam-se,

sobretudo para mulheres, as possibilidades de acesso a informação, lazer e consumo. Ao final dos anos 30 e 40, a urbanização e a industrialização traziam mais novidades, em

1932,

o

voto

feminino,

para

alfabetizadas e maiores de 21 anos entrou na pauta das eleições. O matrimônio, porém, continuava em alta. O presidente Vargas, em um decreto assinado em abril de 1941, insistia em que a educação feminina

deveria

formar

mulheres

“afeiçoadas ao casamento, desejosas da maternidade, competentes para a criação dos filhos e capazes na administração da casa”. A modernidade introduzira um leque de frustrações entre as mulheres. Na revista Claudia, nas bancas de jornal desde 1961, a jornalista Carmen da Silva, na seção “A arte de ser mulher”, questionava:

Não é necessária muita perspicácia para perceber sintomas de insatisfação nas mulheres de hoje. Casadas e solteiras, ociosas e trabalhadoras, estudantes e profissionais, artistas e donas de casa todas elas em algum momento deixam transparecer resquícios de frustração, um desejo ora nostálgico ora invejoso, de outra existência diferente,

outro

caminho

distinto

ao

que

escolheram – como se a felicidade estivesse lá (SILVA,1961,s/p).

Com as duas descobertas médicas: penicilina (que libertou o medo da sífilis) e a pílula (que liberou o medo da gravidez), o movimento libertário, que teve o seu apogeu em maio de 1968, nas ruas de Paris, dividiu as águas em relação ao casamento. No Brasil as relações no cotidiano dos casais começaram a mudar, marido violento não era mais o dono de ninguém mas apenas um homem bruto. O beijo passou a ser sinônimo de paixão, era o início ao direito do prazer, as mulheres começavam

a

poder

escolher

entre

obedecer ou não às normas sociais, parentais e familiares. Quando acabado o amor os casais buscavam a separação ou sobretudo nas elites para sustentar o casamento

mantinham

casos

evitando

assim dividir o patrimônio. Nem tudo eram as flores e a liberdade prometidas pelo movimento de maio de 1968, embora autorizasse a mulher

a

trabalhar

sem

prévio

consentimento do marido, o Código Civil o mantinha na chefia da família, com todos

209


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

os direitos assegurados. As coisas não

masculina em participar das tarefas do lar,

mudaram.

conflitos em torno da criação dos filhos.

Apesar

do

surgimento

do

Conselho Nacional das Mulheres do Brasil,

Em setembro de 1980, a revista Veja

chefiado por Romy Medeiros da Fonseca,

publicou o resultado de uma pesquisa: “

que se destacou na luta para promover a

Nem Amélia nem Ativista”, a brasileira dos

posição sócio profissional da brasileira, o

anos 80 era conservadora e tímida, mas

diagnóstico era de alterações lentas. Rose

sabia que sua filha precisava conquistar

Marie Muraro, em um clássico, A mulher na

independência, dividida entre valores novos

construção do mundo futuro, demonstrava

e

que a brasileira andava em dois ritmos, o

submissão da mulher, ao mesmo tempo, na

mais acelerado buscando trabalho fora de

prática,

casa

filhos:

responsabilidade pelo sustento da casa,

meninos e meninas de forma diferente, pois

achava que política e economia eram

o marido não havia mudado e ele ainda

assuntos de exclusiva alçada masculina.

mantinha seus costumes.

Ela não culpava o governo pelo aumento

porém

ainda

educando

A revista Manchete, em janeiro de

no

tradicionais, deixava

custo

de

rejeitava ao

a

homem

vida,

e

ideia a

da

maior

apontava

a

1974, publicou uma pesquisa de opinião

criminalidade como seu grande pavor. Era

depois de consultar cem mulheres no país

o retrato da “nova mulher brasileira”,

todo. Elas diziam preferir ser objetos dos

oradora dos grandes centros, Rio de

homens a sujeitos da história. Não estavam

Janeiro e São Paulo.

interessadas em política nem em igualdade de salários.

O número de casamento legalizados caíram, dando lugar à união estável,

Na década de 70, as mulheres

acabara-se o tempo em que cada um dos

também tiveram de enfrentar o fim do mito

membros da família endossava um papel

da “rainha do lar”, questionadas pelos

social definido, fixo: esfera pública para o

filhos, desmoralizadas pela beleza das

marido, chefe de família e encarregado de

mais jovens, ansiosas por verem mais e

prover o casal; esfera privada para a

mais mulheres ganharem independência,

mulher,

elas investiam em receitas para “salvar o

domésticas, da educação dos filhos e da

casamento”. Quanto a eles, começavam a

submissão destes à autoridade parental.

ocupando-se

de

tarefas

passar por momentos delicados: a dupla

Quinze anos após esta pesquisa,

jornada de trabalho da mulher, a relutância

uma em cada cinco famílias brasileiras era chefiada pela mulher que acumulava o

210


Eveline Soares Correia

trabalho fora de casa, educação dos filhos,

obrigatório e gratuito (art.

assumindo a função de pai e mãe.

atendimento

Sociólogos, antropólogos e historiadores

às/aos

constatavam

espetacular

referencialmente na rede regular de ensino

modificação na forma de estruturação da

(art.208, III), e o atendimento em creche e

vida privada desde a Idade Média, quando

pré-escola às crianças de zero a cinco

se consolidaram os pilares da família atual

anos de idade (art. 208, IV), mas não faz

no Ocidente: monogâmica, nuclear.

diferenças

a

mais

Com a Constituição Federal de 1988 (CF/88), ocorre um marco em relação a conquista fundamental de igualdade de direitos

e

deveres

entre

homens

educacional

portadores

208,I), o especializado

de

deficiência,

em relação à mulheres e

homens, portanto todos têm os mesmos direitos em relação a educação. Nos anos 1990, as trabalhadoras

e

começaram a substituir a temática das

mulheres (at.5°, I), até então inexistente no

desigualdades em benefício da temática

ordenamento

das identidades. A construção de si e o

jurídico

brasileiro.

Denominada como Constituição Cidadã,

desenvolvimento

ela aprofunda e cria novos direitos para os

prioridade no final do século XX. A

cidadãos, novas obrigações do Estado para

novidade foi o início da utilização de novas

com

lógicas baseadas na sensibilidade e nos

os

indivíduos

e

coletividade,

pessoal

acolhendo a maioria das demandas das

valores

mulheres, sendo então uma das mais

identificar aos valores masculinos, elas

avançadas do mundo.

ressaltaram o que tinham de diferente. A

Em relação aos direitos civis, a

femininos.

Mais

tornaram-se

do

que

se

negociação, as mediações como modos de

CF/88 considera a família base como base

resolução

da sociedade, reconhecendo diversos tipos

preferíveis ao autoritarismo. A cooperação

de família e explicita que direitos e deveres

e a solidariedade, a assistência ao outro

são exercidos igualmente entre homens e

esvaziaram o espírito de competição e

mulheres (art.226, parágrafo 5°) acabando

egoísmo, a educação tomou o lugar das

com a posição superior de chefia atribuída

antigas

legalmente ao homem.

disciplina.

A

educação

da

mulher

de

conflitos

manifestações

Hoje,

elas

tornaram-se

repressivas

querem,

ao

de

mesmo

contemporânea, é considerada como um

tempo, ser mães, trabalhadoras, cidadãs e

direito social na CF (art. 6º). É dever do

sujeitos de seu lazer e prazer. Difícil? Sim,

Estado garantir o ensino fundamental,

mas inevitável.

211


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

De “patriarcal”, a família tornou-se

de produtos, jogadas de marketing e

conjugal, limitada ao pai, à mãe e aos

espaços nas mídias. Problema este que

filhos. Se no início o pai detinha todos os

vem sendo discutido por sociólogos e

poderes paternais e conjugais, pico de uma

historiadores. Mais do que nunca a mulher

pirâmide da qual filhos e mães constituíam

sofre prescrições, não mais do marido, mas

a base, as posições mudaram. Hoje, no

do discurso jornalístico e dos publicitários

alto do triângulo encontram-se os filhos.

que as cercam, sendo subordinadas a

Numa das laterais, encontram-se os pais,

serviço do próprio corpo tendo hoje como

e, na outra, o mediador entre pais e filhos:

algoz a mídia. Nessa perspectiva as

o Estado. Os “direitos” paternos foram

transformações no corpo da mulher foram

substituídos por “deveres”. As mulheres

brutais, devido à tríade abençoada pela

não estão em uma sociedade sem pais,

mídia: ser bela, ser jovem, ser saudável,

mas sim em uma que reorganiza as

instalando a tirania da perfeição física.

funções

paternas.

Porém,

embora

o

Numa sociedade de consumo a

número de divórcios tenha crescido, ainda

estética aparece como o motor do bom

hoje a valorização do casamento é enorme.

desenvolvimento

No século XXI, nos últimos anos a mulher

brasileira

físicas,

desde

a

viveu

transformações

criação

do

da

existência,

a

valorização é a da identificação e não da identidade. O Brasil é um país mestiço,

batom,

resultando de uma longa história biológica

desodorante, corte de cabelo, sutiã, jeans e

por isso as mulheres precisam ter o

o padrão de magreza, empurrando-a na

controle destas diferenças e do que é

tirania da perfeição física e não para uma

necessário para manter a boa saúde e o

busca de identidade, trazendo junto as

que as tornam subordinadas devido à uma

conquistas: o estresse, fadiga, exaustão,

imposição da sociedade, baseada no lucro,

desestruturação familiar. O aumento de

aceito involuntariamente por elas mesmas.

esperança de vida tornou-se um problema

Considerações finais

pois a grande maioria das mulheres não

Dentro de todo contexto apresentado,

querem envelhecer. A associação entre

observamos que a trajetória das mulheres na

juventude, beleza e saúde, modelo das

Idade Média, apesar de toda submissão que a

sociedades ocidentais, aliada às práticas

época as condicionavam, demonstravam o não

de aperfeiçoamento do corpo, intensificou-

contentamento em relação a sua situação,

se brutalmente, consolidando um mercado

enfrentando

florescente que comporta indústrias, linhas

variadas formas. O fato de serem consideradas

situações

adversas

das

mais

212


Eveline Soares Correia

um ser inferior não foi o bastante para impedi-las

abusos, por isso ainda faz-se necessário a busca

de sonhar, de buscar sua valorização através do

de medidas tais como: conferências, convenções

estudo, do trabalho e acima de tudo, de sua

e declarações que buscam garantir a efetivação e

vontade em relação a construção de uma família,

aprimoramento das leis para garantir à mulher

mesmo que muitas delas sacrificassem toda sua

seus devidos direitos.

vida, como era o caso das mulheres que não

Tais mudanças são necessárias mesmo

aceitando o casamento se dedicavam aos

que estas ocorram de forma lenta e gradativa,

conventos e à caridade. O que podemos concluir

sendo fundamental sempre a busca de sua

é que estas mulheres demonstravam uma força

efetivação, por isso nos dias atuais as mulheres

interior tão grande quanto qualquer homem da

continuam buscando maior reconhecimento assim

época em questão, que a busca do saber é

como as mulheres medievais buscavam, cada

inerente ao sexo feminino ou masculino, bem

qual com características específicas de seu

como a vontade de fazer o bem. Que acima de

tempo. Ter como base a força de vontade que as

qualquer obstáculo está possibilidade de tentar

mulheres medievais expressavam suas ações em

mudar, fazer a diferença mesmo que para isto

uma época tão difícil impulsiona o pensamento

haja um sacrifício maior, até a própria vida.

atual de continuar a busca de seus direitos e sua

Sabemos que no decorrer dos tempos, a

efetivação. Mesmo que hoje a mulher se encontre

mulher dentro do seu contexto histórico continuou

dentro de um turbilhão de atividades e padrões a

buscando mudanças, maiores direitos e igualdade

serem seguidos, não podemos deixar todo o

perante a sociedade, o seu papel assim como o

caminho até aqui percorrido de lutas e conquistas

homem deixam um rastro de perseverança, busca

estagnadas por fatores impostos pela mídia que

e evolução de pensamento diante da vida, porém

valoriza o lucro e as colocam em uma posição de

se pensarmos hoje todo o trajeto percorrido em

objeto a ser moldado de acordo com os padrões

nosso país, chegando aos dias atuais, podemos

vigentes. Cabe as mulheres assim como os

dizer que as mulheres dentro da sociedade

homens valorizar o que até aqui foi feito e

possuem direitos e deveres assim como o

continuar o legado, pois indiferentemente do

homem, mas ainda assim continuam buscando a

gênero, somos todos iguais, temos os mesmos

cidadania e igualdade de gênero. Podemos

anseios, sonhos e acima de tudo precisamos do

observar nos noticiários, pesquisas e até mesmo

outro para continuarmos nossa história, fruto este

em situações próximas a nossa realidade que

que será deixado para nossos descendentes.

muitas mulheres ainda sofrem discriminação e até

213


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Referências: BRASIL. Instrumentos internacionais dos direitos das mulheres.Secretaria Especial de Direitos das Mulheres. Brasília. 2006. BRASIL. Os direitos das mulheres na legislação brasileira pós-constituinte.Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea).Brasília. 2006. DUBY, Georges. Heloisa, Isolda e outras damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. PRIORE, Mary Del. Histórias e Conversas de Mulher. Ed. Planeta Brasil. 2013. SANTOS, Dulce Oliveira Amarantes. Caminhos e atalhos da historiografia das mulheres medievais.

História Revista 1 (2): 69 – 78 jul/dez. 1996. SILVA, Paulo Thiago S. Gonçalves.Idade Média, idade das "trevas"? Uma análise sobre a historiografia

das

mulheres

medievais.

Disponível

em:

file:///C:/Users/Evelline/Desktop/Tentar%20conhecer%20as%20mulheres,%20em%20um%20dado%20 momento%20do%20per%EDodo%20medieval,%20atrav%E9s%20da%20literatura%20existente%20h oje,%20%E9,%20no%20m%EDnimo,%20uma%20grande%20aventura.htm . Acesso 25/07/2014.

214


DO ACOLHIMENTO À HOSTILIDADE: A EXCLUSÃO DOS CONVERSOS DA ESPANHA E DE PORTUGAL ENTRE OS SÉCULOS XV E XVI. Helena Ragusa 1 Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar os fatores que levaram à conversão dos judeus na Espanha e depois, em Portugal, bem como o ambiente anti-judaico que se estabeleceu nestas regiões responsável pela obrigatoriedade do abandono da fé em detrimento de outra. Ao contrário do que pode-se pensar o processo que os tornou indivíduos convertidos não fora tranquilo, nem no território espanhol e nem em terras portuguesas, diferenciando-se apenas em alguns aspectos os motivos que os obrigaram a passarem pela conversão. Ao longo das leituras pudemos perceber que a classe social a qual pertenciam nestes reinos, especialmente quando ocupando altos cargos, até mesmo de confiança, tornava-se indiferente diante da opressão que viviam fosse qual fosse o lugar o qual pareciam pertencer. No intuito de compreender os mecanismos usados por aqueles que promoveram a conversão e as estratégias de sobrevivência criadas pelos que contra ela não podiam lutar, optamos pelas analises de Michel de Certeau (2003), que em seu estudo acerca da invenção do cotidiano, nos possibilitou pensar na complexidade a qual estes agentes estavam inseridos e as diversas reinvenções que, num contexto de hostilidade permitiu-lhes a sobrevivência. Também, contamos com os estudos de Siân Jones (2005), e suas considerações sobre identidade, levando-se em conta as novas identidades que os judeus convertidos tiveram de assumir, e por último, não menos importante, as colocações feitas por, Néstor García Canclini (2000), que dentre outras nos ajuda a pensar o complexo processo de territorialização, desterritorialização e

reterritorialização, características comuns, atreladas à própria condição de judeu. Palavras-Chaves: expulsão; conversão; identidade.

1

Universidade Estadual de Londrina-UEL

215


Helena Ragusa

Durante

muito

o

judeus e seus descendentes 2. A instituição

término da guerra judaico-cristã do século I

de tais medidas acabou forçando milhares

e da segunda destruição do templo no ano

de judeus a se submeterem a um processo

70 da era cristã, a Espanha foi, para os

de conversão ao cristianismo de tal modo,

judeus da Península Ibérica, uma espécie

segundo

de

precedentes na história do povo judeu.

“Terra

tempo,

Prometida”

desde

(VAINFAS;

alguns

historiadores,

sem

HERMANN, 2005, p. 17). De fato, a

Pode-se dizer, nas palavras de

Espanha foi o país que melhor acolhida

Vainfas e Hermann, que esse foi o período

deu aos judeus, chegando a contar no

chave na história dos judeus que viviam em

século XIII, com 300 mil deles vivendo

território espanhol, para se compreender o

misturados

surgimento

ao

resto

da

população,

do

fenômeno

marrano

ou

assistindo aos rituais – às vezes judeus

converso que, mais tarde, se estenderia a

assistiam as cerimônias cristãs, e outras

Portugal vindo a se tornar, uma das razões

era

mesmo

que servia de argumento para a criação da

compartilhando a fé em algumas ocasiões.

moderna Inquisição espanhola (VAINFAS;

Esse ambiente onde era comum ver “fiéis

HERMANN, 2005, p. 23).

o

inverso

-

e

até

misturados aos infiéis” se transformou quando:

Fato

curioso,

é

que,

conforme

demonstra Delumeau, os próprios judeus

A ascensão tardia de uma burguesia e de um artesanato cristãos, a tomada de consciência religiosa que acabou por criar a conquista, as

convertidos

teriam

exigido

o

estabelecimento da Inquisição na Espanha

responsabilidades missionárias que a descoberta

(DELEMEAU, 1989, p. 292). Os conversos

da América deu à Espanha, os progressos do Islão

desejavam a denúncia e o castigo dos

transformaram uma terra acolhedora em um país fechado, intransigente, xenófobo (DELUMEAU, 1989, p. 281).

A partir do século XIV os judeus passaram as ser perseguidos por ordem daqueles

que

compunham

a

falsos convertidos, de forma a se livrarem do peso que as ameaças feitas pelos estatutos

de

limpeza

de

sangue

representavam. Em Portugal, os estatutos

elite

administrativa do reino, sendo instituídas

2

diversas medidas contrárias a esse grupo,

institucionalizado que, partindo da Espanha, teve forte

como foi o caso do surgimento da lei de

repercussão em Portugal, segundo ela, essa situação

limpeza de sangue, criada no ano de 1449,

Souza

considera

a

lei

como

um

racismo

teria perdurado até o reinado de D. José I e a administração

do

Marques

de

Pombal,

quando

implicando no fim de uma série de direitos

desapareceu, em termos legais, o preconceito contra os

que

cristãos-novos, judeus e mouros e denominações como a

atingia

mouros,

ciganos,

negros,

de cristão-velho (SOUZA, 2008, p. 93).

216


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo conservava, mesmo tornando-se cristão, a herança

passaram a vigorar mais tarde, no século

dos pecados de Israel (DELUMEAU, 1989, p. 303).

XVI e, de acordo com alguns estudos, teriam

correspondido

a

um

processo

diferente. Ao que parece, as pesquisas em torno dessa questão no território luso são recentes, e se concentram no “mercado matrimonial”

onde

se

fazia

sentir

as

exclusões. Havia uma grande preocupação por parte de toda a sociedade portuguesa – exceto os escravos – de que pudesse haver uma mistura de sangue entre os cristãos-novos

e

os

cristãos-velhos,

levando até mesmo ao corte de relações no grupo de parentesco, caso isso ocorresse 3 (OLIVAL, 2004, p. 153). Se

a

Igreja

acreditava

ser

a

conversão uma solução para o problema do judeu, isso não aconteceu. A conversão não era uma solução e, o inimigo que se acreditava ter expulso, reaparecia sob uma outra forma, dissimulada atrás da máscara do convertido: Na história cristã do antijudaísmo europeu, podemse

distinguir

duas

mentalidades.

Em

considerou-se

que

faces um o

e

também

primeiro

batismo

duas

momento

apagava

no

convertido todas as taras do povo deicida. Mais

Na visão de alguns estudiosos, submeterem-se à nova fé foi a única maneira que os judeus, chamados agora de conversos, encontraram de sobreviver, entre estratégias e táticas (DE CERTEAU, 2003), e de não verem extintos seus direitos, fossem eles de caráter político, econômico, social ou religioso, além das discriminações

e

perseguições

a

que

estavam sujeitos 4. No entanto é preciso frisar que a condição de convertido não era tranqüila, nem na Espanha e nem em Portugal, onde a

conversão

tratava-se

de

um

ato

deliberado do rei para impedir a saída dos mesmos do reino. Arnold Wiznitzer (1966), já apontava para tal problemática. Segundo o autor, “os cristãos-novos sofreram nesse país o desprezo de seus compatriotas católicos, os chamados cristãos-velhos, os quais empregavam termos pejorativos tais como

“cristãos

novos”,

“Judeus”

e

“Indivíduos da Nação” 5 (WIZNITZER, 1966, p. 1).

tarde, na prática, colocou-se em dúvida essa virtude do batismo e considerou-se que o judeu 4

Há registros variados que demonstram a volta de muitos

conversos 3

Em 1773, o Marquês de Pombal decretava o fim de tais

ao

judaísmo.

Outros

o

praticariam

secretamente vivendo autêntica ambivalência religiosa

estatutos que separava os cristãos-novos dos cristãos-

(VAINFAS; HERMANN, 2007, p. 24).

velhos, desaparecendo, em termos legais, o preconceito

5

contra

ele como pejorativos, quando na realidade tratam-se de

os

cristãos-novos,

judeus

e

mouros

e

Os termos apresentados pelo autor são colocados por

denominações como a de cristão-velho (SOUZA, 2008, p.

outras

denominações

93).

convertidos.

para

designar

os

judeus

217


Helena Ragusa

Na narração histórica realizada por

A dispersão dos judeus convertidos

Samuel Usque 6, por exemplo, intitulado

da Espanha vai de fato ocorrer quando um

Consolação às tribulações de Israel, no

clima de terror e violência passou a

capítulo 30 que remete o estabelecimento

acometê-los na última década do século

da Inquisição em Portugal, lê-se a seguinte

XV. Sobre as ordens dos reis católicos

interpretação

do

Fernando e Isabel, foi publicado um édito

processo de conversão dos judeus ao

que determinava a expulsão de todos os

cristianismo:

judeus que não haviam se submetido à

do

mesmo

acerca

Lançar-te-á o Senhor em todolos povos de um cabo da terra te o fim da terra. Ali servirás deuses outros que tu nem teus padres não conhecerom e

conversão. A

partir

de

então,

conversos,

haverá onde possas pôr a planta do teu pé

conforme apontam os estudos, para o norte

bata o coração, e tragas os olhos sumidos, e tristeza na alma [...] (USQUE, 1989, p. 219).

De

acordo

com

Yosef

Hayim

se

dos

entre estas gentes não acharás repouso nem (seguramente) e far-te-á o Senhor que continuo te

acabaram

muitos

refugiando,

da África, Império Otomano e no norte da Europa, porém, grande parte do fluxo migratório seguiu mesmo para Portugal.

Yerushalmi, o Consolação pode fazer

A Chegada a Portugal

sentido ao ser lido, tanto pelos judeus

O reino lusitano teria “acolhido”

como pelos cristãos-novos, mas segundo

cerca de 100.000 indivíduos, por meio de

ele, para estes últimos, haveria uma

um acordo firmado com o então rei D. João

identificação instintiva com certos “eventos

II que, mais tarde, com sua morte, teria

e

quando

continuidade com seu sobrinho e herdeiro

assistidos pelos pelas próprias ênfases e

do trono, D. Manuel. (BOGACIOVAS, 2006:

nuances de Usque” 7 (YERSHALMI, 1989:

26).

situações,

especialmente

65).

As pesquisas voltadas para esse período e mais especificamente para a

Samuel Usque foi um autor judeu português, e escreveu

comunidade judaica portuguesa, que lá já

a obra Consolação às Tribulações de Israel, publicada em

existia 8, indicam que a chegada dos

6

Ferrara, em 1553, onde descreve de modo específico as tribulações

enfrentadas

pelos

judeus

nos

países Valadares afirma ser difícil precisar a época em que os

europeus, com maior ênfase a Portugal, durante o reinado

8

de D. João II (1477-1495).

judeus vieram para a Península Ibérica, o certo segundo

“As a result, the Consolaçam could be read meaningfully

ele, é que a permanência de tal grupo se deu por volta de

by Jews and New Christians alike, but the latter would

um milênio ou mais, atravessando períodos de tolerância

identify instinctively with certain events and situations,

e

especially when aided by Usque’s own emphases and

características para a sua identidade (VALADARES,

nuances”. Tradução: Emiliana M. Góes Ragusa.

2007: 62-63).

7

também

de

intolerância,

desenvolvendo

novas

218


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

conversos

no

território

português

diversas

localidades.

Mesmo

sendo

representou um forte peso econômico face

escassa a documentação que remonta a

às dificuldades financeiras as quais o reino

época, indícios apontam para a importância

se encontrava.

que tais indivíduos representavam para

Admitir a migração de tais indivíduos

alguns setores da sociedade portuguesa,

para seu reino não era um ato de tolerância

como por exemplo, o caso Don Jahin Ibn

ou de generosidade, mas sim, algo que D.

Jaisch. Fundador de importante família

João II teria feito pensando apenas nos

judaica em Portugal, favorito do primeiro

seus próprios interesses. Para o monarca,

rei, ocupava cargos de confiança, como

os judeus convertidos representavam nada

Mordomo

mais do que uma forma de alavancar as

(KAYSERLING, 1971: 3-4).

Real

e

Cavaleiro-mor

riquezas do tesouro do Estado, desfalcado

O mesmo acontecia com muitos

pelos custos com o casamento de seu filho

judeus que até o reinado de D. Duarte, pelo

e, também, com o financiamento da guerra

menos, ocupavam cargos públicos, por

contra os infiéis da África (KAYSERLING,

serem considerados competentes nas artes

1971: 96).

das finanças, ainda que contrariasse o

Apesar de toda a importância que

clero e todo poder eclesiástico que se

possuíam para a sociedade portuguesa, os

chocavam com a autoridade concedida aos

conversos

judeus ao receberem cargos oficiais (Idem:

não

discriminações. Gonçalves

estavam No

livres

entanto,

Salvador

de José

esclarece

5 - 6).

que

A

constante

presença

desses

diferentemente do que ocorria no país

personagens nas conquistas portuguesas

vizinho, a aversão aos hebreus por parte

também chama a atenção. Dentre os

da Corte portuguesa era bem mais contida

muitos

(SALVADOR, 1976: 23). Prova disso, é que

judeus em tal empreitada, num estudo

logo

território

realizado por José Alberto Rodrigues da

português, os judeus, agora convertidos,

Silva Tavim (2004: 149) preocupado em

integraram-se

empreendimentos

compreender as conquistas realizadas por

marítimos, ao comércio e à colonização

Portugal na região do Marrocos no século

das novas terras.

XV, encontramos dados reveladores sobre

que

adentraram aos

em

exemplos

da

participação

dos

Assim como nos reinos espanhóis,

o quanto eram diversificadas as atividades

em Portugal viviam judeus desde os

que os judeus que seguiam para essas

tempos mais remotos, estabelecidos em

expedições

exerciam

e

que

também

219


Helena Ragusa

passavam a exercer, caso viessem a se

Outras atividades exercidas pelos

estabelecer nas regiões conquistadas. É o

judeus e também pelos cristãos-novos

caso, por exemplo, do ourives Mestre José

pareciam ser extremamente importantes e

Arame na conquista de Ceuta e de Tânger;

valorizadas, em alguns reinos, como a

do mestre Lázaro, cirurgião que tomou

medicina e aqueles que necessitavam da

parte na conquista de Alcácer Ceguer; ou

cura, como foi o caso de Francisco I,

ainda de Abraão Abet, alfaiate de D. João

quando adoecido gravemente pediu ao rei

III, na expedição contra Arzila (Idem,

da Espanha lhe enviasse um médico judeu.

ibidem).

Os judeus ou cristãos-novos que exerciam

A relevância da participação dos

a medicina pareciam imprescindíveis para

judeus nesse tipo de empreendimento por

alguns reis, como foi o caso da rainha

parte da Coroa Portuguesa começava nas

Cristina da Suécia, Luís XV ou do Príncipe

próprias viagens, tendo em vista a vasta

de Conde (OMEGNA, 1969, p. 57-58).

experiência dos mesmos no campo da

Mesmo parecendo fácil a adaptação

astronomia, cartografia e da geografia, por

dos recém chegados à nova terra, ou que

exemplo. Também, o sucesso dos esforços

os

da expansão portuguesa nas diversas

solucionassem os problemas de D. João II,

regiões por onde passava devia-se à

isso não era o suficiente para que tivessem

capacidade dos judeus em se comunicar

uma vida entrelaçada com a comunidade

em vários idiomas, comunicando-se em

cristã, conforme apontamos anteriormente.

“latim, português, espanhol, hebraico –

Ao contrário, leituras mostram que o modo

sendo por vezes letrados em algumas

de vida desses indivíduos não era muito

delas – e, não raro nas línguas locais por

diferente daquele vivido pelos judeus que já

onde passavam, num tempo em que a

se encontravam em Portugal, isto é, restrito

maioria das pessoas não dominavam a

e limitado, segregados, vivendo no seu

escrita” (ASSIS, 2010, p. 19):

próprio grupo.

Eles financiavam as viagens de conquistas, contribuindo

com

o

conhecimento

técnico

necessário à construção de embarcações ou à

benefícios

trazidos

por

eles

Ao mesmo tempo em que gozavam dos

mesmos

direitos

das

mais

altas

utilização de instrumentos de navegação mais

classes, havia uma nítida separação entre

apurados. Atuaram como cartógrafos, negociantes,

eles e os demais habitantes. Os judeus

funcionários da burocracia, ajudaram com capital ou até como religiosos, nas atividades de

portugueses formavam um “Estado dentro

catequese cristã nos domínios portugueses (Idem,

de outro Estado”, isto é, tinham sua própria

ibidem).

jurisdição, a qual se distinguia daquela

220


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

existente

em

Portugal,

mas

que

era

atrair a atenção da Inquisição ou da própria

reconhecida pelo Estado conforme explica

população que, de certa forma, sentia-se

Kayserling em seu estudo sobre a história

ameaçada devido a uma série de fatores,

dos judeus em Portugal.

como a concorrência 10: Num mundo rural e com ordem hierárquica

Ao propor um estudo sobre a obra de

Samuel

Usque,

Consolação

conhecida, o vizinho que chegou é um artesão ou

às

um comerciante, com uma ação ética diferente da

Tribulações de Israel, Yerushalmi (1989),

sua. Para ele que acredita que o trabalho é apenas

relata que:

amanhar a terra ou apascentar o gado, o comércio é como se fosse uma exploração ou um roubo.

Embora a expulsão dos Judeus da Espanha tenha

Numa sociedade quase desmonetizada o cristão-

capturado a imaginação da posteridade, ela foi

novo é um assalariado. Ele percebe a velocidade

apenas um componente relevante na catástrofe

de sua ascensão social e o que cria mais

que oprimiu os Judeus na Península Ibérica, ao

ressentimentos (VALADARES, 2007: 71).

final do século XV. O que se seguiu em Portugal

O

foi igualmente decisivo e, em certos aspectos, ate mais trágico. Apesar de diretamente ligado aos fatos acontecidos na Espanha, o que se passou em Portugal não foi um mero epilogo ou repetição.

movimento

migratório

-

da

Espanha para Portugal – teria alterado substancialmente a demografia judaico-

A despeito de certas similaridades superficiais, o

portuguesa, dobrando a população judaica

destino dos Judeus em Portugal foi determinado

local que era estimada em trinta mil

por outras considerações, as que traiam uma dinâmica

significativamente

diferente

(YERUSHALMI, 1989, p. 19) 9.

Nesse sentido, em relação aos

habitantes (Idem: 65-66). A entrada de milhares de judeus espanhóis em Portugal mudaria, de acordo com os estudos de

milhares de conversos que seguiram para

Vainfas

Portugal, grande parte destes evitavam

drasticamente a situação da comunidade

misturar-se

sefardita lusitana” (VAINFAS; HERMANN,

aos

demais

habitantes

especialmente aos cristãos-velhos - e não

e

“Although the expulsion of the Jews from Spain has

captured the imagination of posterity, it was but one major

“completa

e

2005, p. 28). Uma

9

Hermann,

série

de

leis

foi

criada,

especialmente pela elite administrativa do

component in the catastrophe that overwhelmed the Jews

reino português, constituída pela nobreza e

of the Iberian Peninsula toward the end of the fifteenth

pela Igreja, a fim de impedir a escalada

century. What followed in Portugal was equally decisive

desse grupo. Um exemplo disso seria

and, in certain respects, even more tragic. Though linked directly to what had transpired in Spain, the Portuguese development was no mere epilogue or repetition. Despite

10

certain superficial resemblances, the fate of the Jews in

alcançada pelos conversos foi tida como um problema,

Portugal was determined by other considerations which

pesando bastante para que nas últimas décadas do

betray a significantly different dynamic”. Tradução:

século XV, passassem a ser perseguidos e ameaçados

Emiliana M. Góes Ragusa.

(VAINFAS; HERMANN, 2005: 25).

Também na Espanha, a ascensão política e social

221


Helena Ragusa

excluir os cristãos-novos da sociedade por

Não só questões relacionadas ao

meio da proibição em obterem cargos

sentimento de concorrência e de ameaça

públicos (VALADARES, 2007, p. 77).

por conta da mesma colaboravam para que

De

forma

bastante

expressiva

houvesse

uma

rejeição

aos

judeus

Saraiva faz uma descrição sobre os judeus

castelhanos que buscaram resguardo no

na sociedade portuguesa, ao estabelecer

país. Os surtos de doença causados pela

uma comparação entre o que tais agentes

Peste Negra em Portugal no ano de 1477 e

representavam para os portugueses e o

a intensificação destes na última década do

papel desempenhado pelas prostitutas.

século XV, contribuiu fortemente para a

Aqui, o autor concentra-se na prática da

desestabilização

usura

indivíduos (SILVA, 2007, p. 31).

frequentemente

realizada

pelos

da

situação

desses

neocristãos, a qual no seu entender não se

Tidos como “bodes expiatórios”, os

tratava de um privilégio, mas sim de uma

judeus acabaram sendo acusados – não só

exoneração das regras a que está sujeito

em Portugal, mas em todos os países da

um membro da comunidade, segundo ele:

Europa por onde a doença se espalhou –

Exerciam uma função social que se considerava inevitável, mas degradante no mundo feudal. O favor que pudessem receber dos poderosos não

de serem os responsáveis por espalhar a peste: A Peste Negra eclodiu então numa atmosfera já

era, portanto, sinal de valia social, mas a

carregada de anti-semitismo. De início suspeitos

expressão do apreço caprichoso e interessado que

de querer dizimar os cristãos por meio do veneno,

se pode ter por um animal doméstico, um escravo,

em

uma mulher comprada, um bobo da corte [...]. O rei

seguida

os

judeus

foram

rapidamente

acusados de ter semeado o contágio por meio

protegia contra o cristão o seu judeu. Mas os

desses envenenamentos (DELEMEAU, 1989, p.

mesmos príncipes que protegiam os judeus

140-141).

detentores do dinheiro, encarregavam-nos de funções odiosas, como a de cobrança de impostos

O terremoto ocorrido em Lisboa no

e direitos, colocando-os numa posição que tem

ano de 1531, também foi atribuído aos

analogias com a do carrasco. (SARAIVA, 1994: 32).

Certamente que, como observou Delumeau,

as

invejas

e

as

queixas

econômicas e financeiras contra os judeus foram todas colocadas sob acusações religiosas, as quais serviam como pretexto para as ações “antijudaicas” (DELUMEAU, 1989, p. 279).

judeus, a ira divina à presença dos neocristãos era a justificativa dada pelo povo português que por pouco não levou à um

grande

massacre,

como

aquele

ocorrido no ano de 1506 na mesma região 11 (WIZTNIZER, 1966, p. 2). 11

É certo que sobre essa questão do terremoto de Lisboa

a atribuição de culpa não referia-se apenas aos judeus. Outros estudos mostram que a população culpava a

222


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Foi então que no ano de 1496 a

As leituras sobre o processo de

situação dos judeus se agravou. A garantia

conversão realizado no território espanhol

de liberdade e tolerância anteriormente

demonstram que, em relação a Portugal, os

prometida pelo rei D. João II e mantida por

espanhóis

D. Manuel, foi abalada quando, ao escolher

incisivos na sua missão. Alguns fatores

para esposa uma princesa espanhola, os

corroboraram para esse entendimento.

pais da mesma, obrigaram-no a expulsar aqueles

indivíduos,

cruéis

Dentre eles o desejo dos

e

reis

em

católicos, Fernando e Isabel em fazer da

Portugal um clima de terror e medo

Espanha no final do século XV, uma

provenientes

conversões

grande potência, confiscando os bens de

as

ordens

mouros e judeus; o fanatismo e o ódio

manuelinas, nascendo assim o cristão-novo

nutridos pela rainha em relação a esse

português.

grupo; e a própria instalação do Tribunal da

realizadas

das a

Por

instaurando-se

teriam sido mais

muitas

força,

sob

representarem

grande

Inquisição no ano de 1478, que perseguia

importância econômica para o reino, D.

duramente os conversos que por lá se

Manuel procurava uma forma de impedir a

encontravam.

saída dos judeus, e, assim logo tratou de

Delumeau entende que os estatutos

converter toda a comunidade hebraica que

de pureza de sangue perduraram por muito

em Portugal vivia. Uma estratégia política

tempo

marcada pela mistura de “violência e

sentimento de intolerância aos conversos,

sedução” nas palavras de Saraiva (1994:

tendo a religião e a honra como valores

35). Assim, D. Manuel teria evitado o pior,

essenciais. A Espanha segundo o autor,

ou seja, a expulsão dos judeus de Portugal

“tinha consciência de ser a fortaleza da boa

e, portanto, a falência do reino:

doutrina, a rocha contra a qual se rompiam

Os batizados, agora não mais judeus e sim cristãos-novos,

continuaram

expostos

à

malevolência popular que não tardaria a acusá-los

na

Espanha,

alimentando

o

heresias e todos os assaltos do mal” (DELUMEAU, 1989, p.307).

da criminosa atitude de voltar, no segredo de seus

Ainda assim, os relatos descritos

lares, à prática da religião que, em pública

sobre as medidas impostas por D. Manuel

violência,

foram

forçados

a

abandonar

(CARVALHO, 1992, p. 19).

em relação ao processo de conversão a que

os

judeus

foram

submetidos

demonstram grande requinte de crueldade, igreja, os ingleses a licensiosidade lusa (2009) e Voltaire

sendo impiedosas e deixando também

(2004), reclamado, apontando que se tratava de um fenômeno natural.

223


Helena Ragusa às igrejas onde lhe deitaram a ágoa os levaram.

rastros de sangue e horror conforme nos

De muitos que grandes estremos fizeram por se

relata Samuel Usque:

defender foi asinalado entre eles um, o qual

Vendo El-rei que mores forças eram necessárias

fazendo cobrir a seis filhos com seus taleciod, com

pera os abalar, entrou em conselho e acordaram

~ ua sabia prática esforçando-os a morrer pela lei,

apartar de entre os velhos os mancebos de até

um a um, com eles todos ao cabo se matou, e

vintecinco anos, no qual apartamento, lembrando-

outros molher e marido se enforcaram, e aqueles

se daquele fero e inda tão fresco mal dos filhos

que os quieram levar a enterrar foram matados

aos lagartos, e temendo-o muito, com que palavras

pelos enemigos às lançadas. Muitos houve 51que

tristes vos poderei contar as lástimas que de ~ ua

se lançaram em poços, e outros das janelas abaixo

parte e d’outra se diziam, e os uivos e bramidos

se faziam pedaços. E todos estes corpos israelitas

dos Paes e maes que fendiam as pedras, e os

assi mortos os levavam aos algozes de meus

tigres moveram a piadade. Como os tiveram

membros a queimar ante os olhos de seus irmãos,

divisos fizeram-lhe ~ ua prática de venenosas

pera maior medo e temor de sua crueldade os

palavras cubertas de triaga, prometendo-lhes muitos

favores

no

reino

se

per

amor

comprender (MAGALHÃES, 2003, p.39 – 56) 12.

se

convertessem; mas tampouco isto pera move-los

Insatisfeitos

com

um ponto de sua costância não bastou. De

impostas

por

lei,

maneira que achando-os tão firmes como a seus

passaram

a

praticar

padres, a eles com grandíssima ira arremeteram aqueles executores de minha tentação, e a uns

denominou

de

as

os

limitações

cristãos-novos aquilo

que

criptojudaísmo 13,

se que

pelas pernas e braços, e a outros pelos cabelos e

significava a manutenção da fé judaica,

pelas barbas arrastando per força os levaram té

ainda que de forma velada, utilizando-se da

dentro as igrejas, e ali lhe deitaram a sua ágoa, e tocando com ela uns e mal alcançando outros lhe

fé cristã como mecanismo de disfarce no

impuseram sobre isso nomes da cristandade e os

dia-a-dia

meteram em poder de velhos cristãos pera os

encontravam, evitando assim um clima de

sogigar à relegião e guarda de sua Fe. Como teveram esta enjusta e violente obra acabada, tornaram

aos

padres

que

tão

da

sociedade

em

que

se

desconfiança, procurando 14: Incorporar e reproduzir determinados padrões de

angustiados

conduta dos cristãos-velhos e, desse modo,

sostinham já a vida que aborreciam, a dar-lhe outro trago mortal, dizendo-lhe que seus filhos se haviam convertido já cristãos, que o divessem eles

12

Extraído conforme a ortografia da época do documento.

assi fazer se queriam ter vida em sua companhia.

13

Arnold wiznitzer em “Os judeus no Brasil Colonial”, já

Nem a isto os velhos se abalaram, té que El-rei

atentava para essa questão, segundo ele, quase toda a

lhes mandou tirar o comer e beber por tres dias

geração de cristãos-novos se tornou como ele denominou

contínuos, pera com a angústia da fome os tentar, o

que

eles

também

mui

animosamente

de Judaizante, ou “observantes crípticos dos ritos

judaicos” (WIZNITZER, 1966: 1). De acordo com Assis em seu estudo sobre a Inquisição

soportaram. Vendo El-rei que inda isto não

14

bastava, e que se mais com fome os penasse

e a sobrevivência do judaísmo feminino no Nordeste

pereceriam, detreminou usar com eles a violência

brasileiro nos séculos XVI e XVII, tal atitude teria tido

que havia usado com seus filhos; e arrastando-os

efeito contrário quando muitos desses criptojudeus foram

pelas pernas, outros pelas barbas e cabelos,

responsabilizados pela descrença da população em

dando-lhes punhadas no rosto, e espancando-os,

relação ao processo de conversão pelo qual passaram (ASSIS, 2002: 49).

224


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo apresentar um comportamento público que não permitisse dúvidas sobre seu bom cristianismo. Fossem ou não judaizantes, procuravam pertencer

inflências e legados que deixaram por onde passaram (Ibid: ibidem). Para

a confrarias religiosas, fazer donativos à igreja, portar medalhas de santos etc. (MONTEIRO, 2007, p. 54).

Porém, aqueles que escolheram partir de Portugal,

agora se sentiam

inseguros e por essa razão vendiam seus bens, suas propriedades e deslocavam-se para

outras

regiões,

afinal

“ter

sido

penitenciado pelo Santo Ofício, ou ser descendente de penitenciados, constituía por si só uma espécie de estigma a ser descoberto” (Idem: 55). Parte de um estudo a que nos propomos

realizar,

o

que

pudemos

constatar é que deslocado de seu lugar no mundo social e cultural, o judeu, ora cristão-novo ou converso, ao ser expulso das regiões em que se estabeleceu, fosse o território espanhol ou luso, ao mesmo tempo em que se via desterritorializado, também passava por um processo de “reterritorialização”(CANCLINI, 2006: 309), assumindo uma nova identidade de forma a se adaptar à nova realidade, ao novo contexto em que passa a se encontrar. Um processo que certamente interferiu na identidade desses indivíduos como a nova organização em que se viu inserido, mas que foi recíproco, tendo em vista as

chegasse

qualquer de

lugar

imigrante distante,

que

algumas

modificações no modo de conduzir os costumes, os hábitos e as práticas foram inevitáveis.

Para

além

das

diferentes

tradições culturais existentes dentro da própria comunidade judaica e as diferentes filiações

religiosas,

umas

mais

conservadoras, ortodoxas ou liberais, havia ainda nas

práticas judaicas

dependendo

da

nação

variações onde

se

estabeleciam. Siân Jones explica que, em se

tratando

das

“práticas

culturais

e

crenças que se tornam concretizadas como símbolos de etnicidade são derivadas de, e ressonam

com,

experiências refletem interesses

práticas

pessoais,

as

habituais

como

condições

que

também

imediatas

caracterizam

e e

situações

particulares” (JONES, 2005: 35). Nesse fundamental,

sentido, considerar

acreditamos e

valorizar

ser a

cultura material dos grupos étnicos a serem estudados e não valer-se apenas do discurso

para

analisar

as

identidades

sociais que se diferencia significativamente da primeira, permitindo maiores deduções, conclusões acerca desses imigrantes e sua identidade cultural (idem: 40).

225


Helena Ragusa

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226


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227


DINHEIRO, PRA QUE DINHEIRO? José de Arimathéia Cordeiro Custódio1 Resumo: No senso comum, sobretudo na contemporaneidade, tem-se a percepção de que o dinheiro sempre existiu e que parece inimaginável uma sociedade sem ele. Obras de ficção científica que mostram um futuro no qual o dinheiro não é mais usado parecem pura fantasia. Mas houve um tempo em que as pessoas não usavam dinheiro (aqui como sinônimo de moeda), e que ele praticamente não existia - na Alta Idade Média. De fato, era inconcebível a própria ideia de lucro e acumulação de riqueza, ainda mais baseada na exploração alheia. Naturalmente, resultado de alguma influência religiosa, na qual se destaca, particularmente, a condenação à usura. Na Baixa Idade Média, e especialmente na Idade Média tardia (séculos XIV a XV), o dinheiro começou a se firmar, como consequência de uma série de movimentos sociais, que resultaram em outros fenômenos, como a valorização do trabalho, a prática da caridade (como esmola e ato de solidariedade), o surgimento dos "novos-ricos" e "novos pobres". Contudo, não se pode falar ainda em pensamento capitalista ou período précapitalismo. Estes e outros aspectos do dinheiro e seu uso, são o objeto de reflexão deste estudo, que se baseia em autores consagrados no estudo dos costumes e das mentalidades medievais, e em obras específicas do tema. A conclusão é que, de um lado, os medievais pensavam de forma muito diferente da de hoje; de outro, é possível constatar que seu pensamento ainda nos alcança, não só nos documentos e estudos, mas no imaginário mais tradicional de alicerce religioso. Palavras-chaves: dinheiro; usura; pobreza.

1

Universidade Estadual de Londrina.

228


José de Arimathéia Cordeiro Custódio

Introdução

trata-se de um retrato da Terra do século

A relação do homem contemporâneo

XXIII, depois de uma terceira guerra mundial,

com o dinheiro tem algo de passional. O "vil

na qual seus habitantes vivem em condições

metal" pode ser amado ou odiado, mas

idílicas, usufruindo os frutos de uma utopia

dificilmente pode ser simplesmente ignorado.

tecnológica. Está certo que, no primeiro

Numa sociedade que vende tudo o que

caso, o paraíso tem seu preço: só se vive até

pode, tem meios coloridos e adocicados de

os 30 anos. Mas o que importa é chamar a

estimular o consumo, e parece poder dar um

atenção para a ausência do dinheiro.

preço a tudo o que existe, a percepção geral

Porém, este não é um estudo do

é de que o dinheiro sempre existiu. Mais: se

imaginário

contemporâneo.

não existisse, teria de ser inventado. E além:

preciso lançar mão da ficção científica para

parece impossível imaginar uma vida sem

chegar ao objeto de reflexão, de fato

ele. Ou, como diz Metri (2014, p. 13),

histórico e concreto. Afinal, como anotam Le

"pensar sobre moeda é refletir a respeito de

Goff & Schmitt (2006, p. 213), "o dinheiro é

um objeto que há tempos possui enorme

uma realidade tangível da história social".

importância e simbologia, sobretudo como

Para Metri (2014, p. 14), "a moeda é

fonte de atenção e cobiça, motivo de

entendida como uma construção coletiva".

disputas e conflitos. Na vida cotidiana,

Contudo,

poucos estão livres de sua realidade e

inventado, evoluído e circulado sob diversas

quimera. Seu manuseio transformou-se em

formas, o dinheiro conheceu um declínio, um

um imperativo generalizado".

ocaso, um retrocesso, e quase desapareceu.

séculos

depois

Tampouco

de

ter

é

sido

sem

Isso foi na Europa da Alta Idade Média

dinheiro parece, pois, obra de ficção. Há

(séculos V a X), depois do fim do Império

cerca de meio século, algumas - embaladas

Romano do Ocidente, e com a consolidação

nas promessas tecnológicas do pós-guerra -

da Igreja Católica. O dinheiro, como é

imaginavam

Dois

conhecido e utilizado corriqueiramente hoje,

exemplos podem ser citados: "Fuga do

praticamente não existia, assim como não

Século XIII" ("Logan's run"), filme que

existia a mentalidade, a lógica que o

originou a série "Fuga das Estrelas"; e a

acompanha nos dias atuais.

Conceber

um

uma

futuro

sociedade

sem

ele.

série "Jornada nas Estrelas". Nos dois casos,

Embora o homem contemporâneo

229


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

descenda do medieval, e com ele se pareça

indicação da crescente aceitação da prática

mais do que se pode inicialmente imaginar,

da usura em seu tempo. Le Goff (2014), de

seu pensamento em relação ao dinheiro é

fato, dedica boa parte de sua obra para

muito diferente Tanto que Le Goff (2014, p.9)

explicar que o século XIII foi especialmente

lembra que "o dinheiro no sentido em que o

crucial para o avanço da retomada do

entendemos hoje (...) é um produto da

dinheiro na Europa. Mais importante é

modernidade". Ao homem da Alta Idade

ressaltar que, como todos os aspectos da

Média, era inconcebível a própria ideia de

vida cotidiana do povo medieval, o dinheiro

lucrar e acumular de riqueza, mais ainda se

também se submeteu, pelo menos por

baseada na exploração alheia. É claro que a

alguns séculos, a regras religiosas e éticas.

influência

da Igreja se fazia presente,

É como diz Le Goff (2004, p. 5), que destaca

fazendo prevalecer o pensamento cristão.

a relevância do tema - usura - na sociedade

Particularmente, havia a condenação à

medieval: "A usura. Que fenômeno oferece,

prática da usura, ou seja, receber dinheiro

mais do que este, durante sete séculos no

em pagamento do dinheiro emprestado. Le

Ocidente, do século XII ao XIX, uma mistura

Goff (idem, p.11) fala de dois períodos: o

tão explosiva de economia e religião, de

primeiro, de Constantino e São Francisco de

dinheiro e de salvação - expressão de uma

Assis, registrou um recuo, uma regressão do

longa Idade Média (...)?"

uso do dinheiro. Já o segundo, do século XIII

Já na Idade Média tardia (séculos XIV

ao XV, foi marcado pelo desenvolvimento de

a XV), o dinheiro começou a se firmar, como

uma pobreza voluntária, enquanto o espaço

consequência de uma série de movimentos

ocupado pelo dinheiro na sociedade crescia.

sociais,

que

resultaram

em

outros

Apesar de na Baixa Idade Média (XI a

fenômenos, como a valorização do trabalho,

XV) o dinheiro recuperar prestígio e lugar na

a prática da caridade (como esmola e ato de

sociedade (é o que se verá neste estudo),

solidariedade), o surgimento dos "novos-

mas ainda sem falar em pré-capitalismo, esta

ricos" e "novos pobres", e dos Estados

valorização foi lenta e gradual, e jamais sem

incipientes.

oposição, afinal, São Tomás de Aquino, no

concorrendo todos para o fortalecimento do

século XIII, condenou a usura em sua Suma.

dinheiro.

Na verdade, sua franca oposição é uma forte

dizer, referindo-se a negociantes italianos do

Os

fatos

se

relacionavam,

Duby (2011, p. 158) chegou a

230


José de Arimathéia Cordeiro Custódio

século XII, que o dinheiro "se tornou o

cristianismo um uso limitado mas importante

principal instrumento do poder, a mola das

do

promoções

manuseio

enfraquecer do século IV ao século VII".

É

deste

Neste período, também neste aspecto se

e

constata a influência da Igreja. O autor diz:

enriquece

sociais,

e

cujo

desmedidamente".

processo

de

enfraquecimento

dinheiro,

que

não

cessa

de

se

"A Igreja, e especialmente os mosteiros, por

fortalecimento que trata este estudo.

intermédio do dízimo, uma parte do qual

A Deus o que é de Deus Le Goff & Schmitt (2006, p. 213)

entra em dinheiro, e da exploração de seus

observam: "Na Idade Média, a moeda

domínios, entesoura a maior parte desses

metálica

rendimentos

testemunha

a

sobrevivência

monetários"

(idem,

p.

18).

recorrente da Antiguidade". Mas não em toda

Pirenne (1982, p. 18) vai na mesma direção:

a

se

"A Igreja, portanto, não foi somente a grande

desconhece a moeda e onde as peças

autoridade moral deste tempo, mas também

antigas jamais circularam, não houve um

um grande poder financeiro". E se havia

encorajamento

moeda

necessidade de moeda, ela era fabricada a

metálica Esta não constitui o único meio de

partir da fundição de ornamentos. Uma

troca, e a permuta permanece uma prática

prática que, para o medievalista, "atesta a

difundida até o final do século XI" (idem, p.

relativa fraqueza das necessidades dos

215). Porém, como sempre, vale ressaltar

homens da Idade Média em matéria de

que o homem medieval via a moeda de

moeda" (idem, p. 19). Isto ficou bem

maneira

autores

diferente séculos depois: "... a virada do

afirmam: "... mesmo nas regiões onde a

século XII para o século XIII marca sem

compra e a venda são monetarizadas, não

dúvida o apogeu e logo o declínio do papel

se vê na moeda algo além de uma

das ordens monásticas na circulação do

mercadoria; elas são vistas menos como

dinheiro" (idem, p. 39).

Europa:

"Nas

da

distinta

regiões

em

utilização

da

atual.

que

da

Os

unidade de valor do que como simples berloques.

Esta

desconfiança

nunca

desaparecerá completamente" (idem). Em outra obra, Le Goff (2014, p. 17) expõe assim: "O Império Romano lega ao

Metri (2014, p. 18) anota que a Europa Ocidental conheceu um período, mais intenso ainda durante dois séculos, em que "houve um desuso generalizado dos instrumentos

monetários.

A

moeda,

231

a


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

despeito de existir, não se configurava como

É a representação da caridade cristã,

a principal expressão da riqueza nem era

protagonizada

pelos

bispos,

como

usada em sua plenitude como instrumento

representantes

da

Igreja,

numa

de poder pelas autoridades centrais". Muito

implementação que teve início no século IV.

pelo contrário. A "remonetização do espaço

Este modelo se transformou na Baixa Idade

europeu", segundo o autor, só começou no

Média, como se verá adiante. Mas naquele

século XI.

momento, marca a transição da Antiguidade

Um documento que aponta para uma

para o Medievo num aspecto que tange a

percepção da felicidade sem a existência do

relação pobreza/riqueza. Como lembra o

dinheiro, na Alta Idade Média, está num texto

autor, a figura do pobre não tinha uma

de um cronista ibérico, um diácono do século

destacada função social no mundo antigo,

VII, citado por Zétola (2009, p. 11) como "um

mas o Cristianismo valorizava-o em sua

novo imaginário que se tornava hegemônico

própria condição. Logo, não se ocupou de

na cristandade ocidental". Era ainda um

reduzir

tempo de violência e desigualdades - afinal,

defendido o pobre em sua hipossuficiência

"sempre tereis os pobres convosco" (Mt

social. Em outras palavras, foi na Idade

26,11, retomando Dt 15,11) - mas o texto

Média que o pobre se tornou uma categoria

exprime uma realidade diferente, na qual a

social, "como substantivo, e não mais como

felicidade

condição

adjetivo" (Zétola, idem, p. 28), ou seja, como

econômica: "Em seu tempo, por meio de

pessoa. Porém, não eram pobres somente

suas preces, o Senhor repeliu doença, praga

os desprovidos de condições materiais, mas

e fome (...). E achou válido dar tanta saúde e

todos os humildes. Eis outra diferença em

tanta quantidade de delícias a todo o povo

relação à percepção contemporânea. Esta

que ninguém, nem mesmo um pobre, era

perspectiva medieval, acolhida por Santo

visto fatigado pela necessidade ou desejava

Agostinho, atravessou séculos, assim como

algo mais, de modo que os pobres, assim

o pensamento agostiniano o fez, imbatível,

como os ricos, tinham abundância de todas

por igual período.

está

apartada

da

as coisas boas, e todo o povo na terra parecia

regozijar

estivesse...".

como

se

no

céu

desigualdades,

embora

tenha

Mas, segundo Le Goff (2014, p. 24), foi Isidoro de Sevilha que situou o amor ao dinheiro à frente dos pecados capitais,

232


José de Arimathéia Cordeiro Custódio

prometeu aos ricos o Inferno e lembrou a

diversos dinheiros, sob uma designação

parábola do rico e do pobre Lázaro (Lc

comum, tinham um valor metálico diferente,

15,19-31), em que o primeiro queima no

segundo a sua proveniência" (idem).

Inferno, enquanto o outro, humilhado em

Pirenne (2009, p. 42) parece sugerir o

vida, ganha o Céu. Mas o dinheiro em si não

século IX como o auge de uma economia

é o problema - o pecado está na avareza e

ensimesmada, para consumo próprio, e de

na usura.

comércio (trocas) fraco. Por isso mesmo,

O medievalista menciona a Isidoro:

sem circulação de moedas, logo contra a

"monetta vem de monere, 'advertir', porque

acumulação, e é uma construção social:

põe em guarda contra toda espécie de

"Esta economia, na qual a produção só serve

fraude no metal ou no peso. É uma luta

para consumo do grupo que vive na

contra a 'má' moeda, a moeda falsa ou

propriedade, e que, por conseguinte, é em

falsificada (defraudata), um esforço em prol

absoluto estranha à ideia de lucro, não pode

da 'boa' moeda, a moeda 'sã e leal'" (idem, p.

ser considerada como um fenômeno natural

102).

e espontâneo". De fato, o autor fala em

definição

de

moeda

dada

por

Bloch (2009, p. 90) estuda o comércio

"desaparição do comércio no século IX"

medieval, fala da busca do lucro e das

(idem, p. 55). Porém, "a fraca existência de

formas

numerário em circulação" (idem, p. 167) se

de

pagamento.

Segundo

ele,

funcionava assim: "O devedor pagava muitas

tornou

vezes em mercadorias mas em mercadorias

fortalecimento do comércio e o surgimento

geralmente 'apreciadas' uma por uma, de

dos burgueses. Segundo o autor, o comércio

maneira que o total destas avaliações

libertou

coincidisse com um preço estipulado em

transformado em ornamentos suntuosos) e

libras, soldos e dinheiros". Bloch menciona

"reconduziu-o ao seu destino" (idem, p. 168).

uma "carência monetária", agravada ainda

E acrescenta: "Graças a ele, tornou-se o

mais

de

instrumento das trocas e a medida dos

moedas" que uma Europa politicamente

valores, e, visto que as cidades eram os

fragmentada

mercado

centros de comércio, necessariamente aflui

importante tinha que ter a sua oficina local,

para eles. (...) Ao mesmo tempo, seu uso

sob pena de falta de moedas. (...) Mas os

generalizou-se; os pagamentos em gêneros

pela

"anarquia gerou:

da "...

cunhagem cada

depois

o

do

século

dinheiro

XII,

com

entesourado

o

(ou

233


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

deram lugar cada vez mais aos pagamentos

início do século XII foi simultaneamente o

em moeda".

tempo da canonização - em 1204 - de Santo

Giordani (1997, p. 190) assinala que

Homebon, rico comerciante de Cremona (a

"a partir da metade do século XI até meados

bem dizer, apesar de sua riqueza), e da

do século XIII percebe-se na sociedade

glorificação da pobreza por São Francisco de

medieval uma necessidade crescente de

Assis" (2014, p. 32).

dinheiro. Explica-se esse fenômeno por uma

A usura e o purgatório

série de fatores vinculados à evolução

Le Goff (2014, p. 13) informa que o

econômica e às transformações sociais". O

uso do dinheiro era submetido a regras da

autor comenta que o aparecimento cada vez

Igreja, com base bíblica, especialmente

maior de dinheiro naquela época é tanto

passagens neotestamentárias. Dois trechos

causa quanto efeito das exigências sociais. A

do Evangelho de Mateus (6,24 e 19,23-24)

exploração de minas e o comércio com o

são exemplos: o primeiro adverte que não se

Oriente

pode servir a dois senhores - Deus e o

são

circunstâncias

duas

das

que

principais

impulsionaram

a

cunhagem e circulação de moeda metálica.

dinheiro. O segundo lembra que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma

Já Le Goff defende as Cruzadas, a

agulha do que um rico entrar no reino dos

partir dos estertores do século XI, como

Céus. Há ainda um trecho de Lucas (12,13-

evento que começou a impulsionar o uso de

22), que avisa ao homem que bens materiais

moeda. E da mesma forma que a Igreja

não garantem sua vida, e que os ricos

justificou

até

devem dividir sua abundância com os

Jerusalém, pouco a pouco ela foi justificando

pobres. Mas textos veterotestamentários

a tolerância à presença do dinheiro, antes

também

inexistente. Como também afirmam outros

Eclesiastes, que declara que "aquele que

medievalistas,

uma

ama o dinheiro nunca se fartará, e aquele

conjunção de fatos e fatores: crescimento do

que ama a riqueza não tira dela proveito.

comércio e das cidades, exaltação do

Também isso é vaidade" (Ecl 5,9). Enfim, a

trabalho, mudanças nas relações sociais e

avareza era condenada, enquanto a pobreza

jurídicas,

e a caridade eram exortadas.

as

campanhas

houve

na

entre outros.

militares

verdade

A complexidade

chega a ponto de Le Goff afirmar que "o

O

eram

autor

lembrados,

francês

como

descreve:

o

"As

234


José de Arimathéia Cordeiro Custódio

imagens medievais, onde o dinheiro aparece

che dal collo a ciascum pendea una

de maneira frequentemente simbólica, são

tasca

sempre pejorativas e tendem a impressionar

ch'avea certo colore e certo segno,

aquele que as vê levando-o a temer o

e quindi par che 'l loro occhio si pasca.

dinheiro. E de todos os que pecaram pelo

E com'io riguardando tra lor vegno

dinheiro, Judas Iscariotes foi o pior. Le Goff

in una borsa gialla vidi azzurro

cita um manuscrito ilustrado do século XII, o

che d'un leone avea faccia e contegno. Já

Hortus deliciarum (Jardim das Delícias), em

citamos

a

canonização

de

que Judas é retratado recebendo suas 30

Homebon, comerciante que, apesar de sua

moedas de prata pela traição a Jesus, junto

ocupação

pecaminosa

por

com

conseguiu

a

Outra

um

comentário:

"Judas

mercator

salvação.

natureza, história

pessimus significat usurarios quos omnes

emblemática é a de Godric de Finchale

expellit Dominus, quia spem suam ponunt in

(1065-1170), citada por Pirenne (2009, p. 92-

diviciís et volunt ut nummus vincat, nummus

5). Sua biografia é permeada por uma aura

regnet, nummus imperet" ("Judas é o pior

mística, e foi considerado santo por muitos,

dos comerciantes que encarna os usurários

embora

expulsos do Templo por Jesus porque põem

canonizado.

suas esperanças na riqueza e querem que o

fortuna tanto pela habilidade quanto pelo

dinheiro triunfe, reine, domine").

oportunismo diante das circunstâncias. Mas

nunca

tenha

Comerciante

sido

realmente

agressivo,

fez

Não à toa, a iconografia medieval

não sob a bênção da Igreja, como escreve o

escolheu uma bolsa pendurada no pescoço

autor: "O seu cuidado em procurar para cada

como principal símbolo do rico a caminho do

produto o mercado onde produzir o máximo

Inferno. É o atributo do usurário. Igualmente,

de ganho está em flagrante oposição com a

Dante Alighieri colocou pequenas bolsas nos

censura que a Igreja faz a toda a espécie de

usurários condenados (Inferno, canto XVII,

especulação e com a doutrina econômica do

versículos 52 a 58), carregando nelas o

justo

emblema da família:

converteu.

Poi che nel viso a certi li occhi porsi,

preço”.

Mas

depois

Godric

se

Le Goff (2004, p. 6) afirma que "a

ne' quali 'l doloroso foco casca

usura é um dos grandes problemas do

non ne conobbi alcun, ma io m'accorsi

século XIII. Nesta data, a Cristandade, no

235


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

auge da rigorosa expansão que empreendia desde o Ano Mil, gloriosa, já se vê em perigo. O impulso e a difusão da economia monetária cristãos".

ameaçam E

assim

os

velhos

como

os

valores concílios

eclesiásticos do século IV condenaram a usura, restringindo-a ao máximo na Alta Idade Média, os concílios do século XII e XIII também a combateram e a desprezaram, mas sem tanto sucesso, pois os tempos já eram outros. Ou, como diz o autor francês, "o século XIII é a época em que os valores se tornam mais terrenos" (idem, p. 63). Sobre a posição da Igreja, Pirenne fala mais (2009, p. 98): Para a Igreja, a vida comercial era perigosa para a salvação da alma. O mercador, diz um texto atribuído

Média, e é permitido acreditar que a Igreja contribuiu muito para este feliz resultado. O universal prestígio de que gozava agiu, como um freio moral.

O freio eclesiástico foi forte sobretudo na condenação da usura. Le Goff (2014, p. 109) descreve: "O código de direito canônico exprime melhor a atitude da Igreja em face da usura no século XIII: usura é tudo aquilo que se pede em troca de um empréstimo para além do empréstimo em si mesmo; pedir isso é um pecado proibido pelo Antigo e o Novo Testamento". O autor francês informa ainda que "a Igreja proibia que um credor cristão cobrasse juro de um devedor cristão" (idem), baseada numa passagem do Evangelho de Lucas (Lc 6,35: "emprestai sem daí esperar nada") e de trechos

a S. Jerônimo, só dificilmente pode agradar a Deus.

veterotestamentários, como Lv 25,36 ("Não

O comércio aparecia aos canonistas como uma

receberás dele juros nem ganho") e Dt 23,20

forma de usura. Condenavam a busca do lucro, que confundiam com a avareza. A sua doutrina do preço

("Poderás exigi-lo do estrangeiro, mas não

justo pretendia impor à vida econômica uma

de teu irmão").

renúncia; para dizer tudo, um ascetismo incompatível

Pirenne

com o natural desenvolvimento daquela. Todas as espécies de especulações se lhe afiguravam um pecado.

E prossegue (idem, p. 99): É preciso admitir, aliás, que esta atitude não deixou de ser benéfica. Teve certamente por resultado impedir a paixão do ganho de se expandir sem

(1982,

p.

19)

também

comenta a proibição da usura, ou do empréstimo a juros, citando que ela era considerada

uma

"abominação".

E

acrescenta: "Além disso, o comércio em geral não era menos reprovável do que o do

limites; protegeu numa certa medida os pobres

dinheiro. É também perigoso para a alma,

contra os ricos, os devedores contra os credores. O

pois afasta-a de seus fins últimos" (idem).

flagelo das dívidas, que na Antiguidade grega e na Antiguidade romana se abateu tão pesadamente sobre o povo, foi evitado à sociedade da Idade

As principais consequências deste pensamento, segundo Le Goff (2014, p.

236


José de Arimathéia Cordeiro Custódio

110), são três. Primeiro, a usura estabelece

Aquino disse: "Nummus non parit nummos".

o pecado mortal da cobiça (avareza), que por

Assim a usura se tornou um pecado contra a

sua vez conduz à simonia. Segundo, a usura

Natureza, ou seja, contra a criação divina.

é um roubo; um roubo do tempo, que

Por tudo isso, o destino fatal do usurário é a

pertence unicamente a Deus, pois a usura

danação. De novo Le Goff (idem, p. 111):

cobra

o

"Em 1179, o terceiro concílio de Latrão

empréstimo e seu pagamento. É o chamado

declarava que os usurários eram estranhos

"tempo usurário":

de

nas cidades cristãs e que a eles devia ser

modificou

recusada a sepultura religiosa. A usura é a

profundamente a concepção e a prática do

morte. Os textos narrando a morte horrível

tempo na Idade Média" (idem). Le Goff traz

do usurário são numerosos no século XIII". O

esta informação em outra obra (2013, p. 58):

autor traz uma citação de Thomas de

"No

acusações

Chobham, inglês formado pela Universidade

dirigidas aos mercadores figura a censura de

de Paris, que diz (idem, p. 112): "O usurário

que o seu ganho supõe um a hipoteca sobre

quer

o tempo que só pertence a Deus".

trabalho, até mesmo dormindo, o que vai

o

sublinhar

tempo

que

primeiro

transcorrido "Este é o o

plano

dinheiro

dessas

entre lugar

conseguir

proveito

sem

nenhum

E finalmente, a usura é um pecado

contra o preceito do Senhor que estabelece:

contra a justiça, como afirma São Tomás de

'Comerás pão com o suor do teu rosto'

Aquino. Le Goff (2004, p. 45) diz que "o

(Gênese 3,19)".

usurário, pior espécie de mercador,, é alvo

E acrescenta (idem, p. 113): "Durante

de várias condenações convergentes: o

a maior parte do século XIII, o único meio de

manuseio - particularmente escandaloso - do

escapar do inferno para o usurário era a

dinheiro, a avareza, a preguiça. A isto se

restituição daquilo que ganhara cobrando

acrescenta, como já vimos, as condenações

juros,

por roubo, pecado de injustiça e pecado

restituição era aquela feita antes de sua

contra a natureza".

morte, mas ele ainda poderia se salvar post

A

retomada

do

pensamento

quer

dizer,

a

usura.

A

melhor

mortem incluindo a restituição em seu

aristotélico forneceu aos escolásticos um

testamento",

caso

em

que

a

novo aspecto à natureza diabólica do

responsabilidade (e risco) recaíam sobre os

dinheiro no século XIII. São Tomás de

herdeiros ou executores do testamento. Por

237


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

isso, a morte súbita era muito temida, por

universidade entrou no debate. Le Goff

não deixar tempo para arrependimentos,

(idem)

conversões ou restituições.

universidades

aponta:

"A liga-se

fundação ao

das

problema

No imaginário medieval, o usurário era

intelectual, econômico e social surgido com o

comparado a um leão violento, uma raposa

crescimento da função do dinheiro na

pérfida, um lobo ladrão e glutão, que, na

cristandade medieval".

morte, perdia a pele, isto é, as riquezas

Exemplo desta nova indulgência está

roubadas em vida. Ainda no imaginário: ao

em sermões de Alberto Magno, que até

lado dos homens que rezam, que combatem

elogia os ricos comerciantes, que geram

e que trabalham (a sociedade medieval), o

empregos, embelezam a cidade com seus

diabo teria colocado mais um grupo: os

monumentos e fornecem bens para a

usurários. Jacques de Vitry, citado por Le

população. Mais que isso, na lista de

Goff (idem, p. 116), disse que "a quantidade

pecados

de dinheiro que eles recebem com a usura

encabeçá-la. A avareza caiu para terceiro

corresponde à quantidade de lenha enviada

lugar.

ao Inferno para queimá-los". De fato, a Idade Média

criou

uma

verdadeira

literatura

devotada à história e morte de usurários.

capitais,

Houve,

a

então,

luxúria

uma

passou

a

progressiva

justificação do empréstimo a juros. Em parte, porque os usurários temiam o Inferno, ao

O século XIII, porém, viu nascer uma

mesmo tempo em que a Igreja queria salvar

perspectiva ambígua frente ao dinheiro. Le

os piores pecadores. Uma saída sancionada

Goff explica: "O século XIII é na verdade a

pela Igreja foi aberta na segunda metade do

época em que o dinheiro dá motivo, nos

século XII, quando esta começou a falar do

meios eclesiásticos, ao debate teórico mais

Purgatório. Informa Le Goff (2014, p. 119):

consistente" (2014, p. 42). A hostilidade da

"A primeira salvação conhecida de um

Igreja começou a dar lugar a uma certa

usurário pelo Purgatório está no tratado do

indulgência, em grande parte graças às

cisterciense alemão Cesário de Heisterbach,

novas ordens religiosas, que nasciam não

em seu Dialogus magnus visionum ac

mais no campo, como a beneditina, mas nas

miraculorum [Grande diálogo das visões e

cidades,

e

dos milagres], cerca de 1220, no qual ele

incipiente

conta a história de usurário de Liège". Mas o

como

dominicanos.

os

Também

franciscanos a

238


José de Arimathéia Cordeiro Custódio

autor observa que o purgatório não foi criado

debate se instalou, como anota Le Goff

para salvar o usurário do inferno, da mesma

(2014, p. 127): "Como tinha havido no

forma que ele também não se constituiu no

domínio da alimentação o grande combate

principal meio de salvar o usurário do Inferno

do carnaval e da quaresma, houve no

a partir do século XII.

domínio do dinheiro o grande debate entre

Vale citar ainda, a história do usurário

riqueza e pobreza". Riqueza que não era

de Liège, contada por Le Goff (1995, p. 358-

mais de terra, de senhores e de mosteiros,

60). Comenta o autor:

mas de comerciantes, burgueses e usurários

a surpresa deste texto (que o foi provavelmente também para os ouvintes e os leitores deste

exemplum) é o fato de o herói, o beneficiário desta história, ser um usurário. Num momento em que a Igreja redobra esforços contra a usura severamente condenada no segundo (1139), terceiro (1179) e quarto (1215) concílios de Latrão, no segundo

- ricos em moeda. Tal riqueza trouxe significados

tanto

econômicos

quanto

sociais. Para Le Goff (2014, p. 70), "uma das razões da maior difusão do dinheiro no ou

concílio de Lyon (1274) e ainda no concílio de Viena

pelo Ocidente do século XIII foi também o

(1311), no momento em que se desenvolve entre a

desenvolvimento

cristandade

uma

campanha

contra

a

usura,

particularmente intensa no começo do século XIII na

do

luxo

na

sociedade

ocidental, senhorial e principalmente urbana,

Itália do Norte e em Toulouse, e em que a avareza

na camada superior dos burgueses". O

está em vias de roubar ao orgulho o primeiro lugar

medievalista francês (idem, p. 44) afirma: "O

entre os pecados mortais, quando os fieis têm sempre debaixo dos olhos esse tema favorito da

enriquecimento

proveniente

do

imaginária romana - o usurário, presa certa do

desenvolvimento do artesanato e sobretudo

Inferno, puxado para a geena pela bolsa recheada

do comércio é principalmente individual e

que lhe pende no pescoço, ei-lo, o usurário, salvo por uma hipotética contrição final e pela dedicação da

esposa,

apesar

da

resistência

da

Igreja

representada pelo topo da sua hierarquia.

Novos pobres e novos ricos Os escolásticos se debruçaram sobre as questões envolvendo as novas práticas econômicas em torno do uso do dinheiro, preocupados com a ética e a justiça. Também as ordens mendicantes olhavam de perto para tais práticas, de forma que o

familiar". Mas a cidade também passou a exibir poder: "O século XII é também a época em que começam a ser edificadas as 'casas de cidade', que mais tarde serão chamadas câmaras municipais. Prefeituras aparecem desde o fim do século XII" (idem, p. 45). E o autor bem lembra que o século XIII foi o tempo das grandes catedrais góticas, que exigiram grandes investimentos em dinheiro:

239


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

"... uma das razões de a economia europeia

pessoais ou familiares, "no momento em que

não ter decolado na Idade Média foi, com as

se acelera a distensão da economia, (...) em

cruzadas e a fragmentação monetária, o

que a moeda começa a desempenhar no

custo das catedrais" (idem, p. 48). Le Goff,

mais cotidiano da vida um papel capital, em

por sua vez, completa (2014, p. 202): "no fim

que por toda parte se difunde o uso da

do século XIV e no século XV, o luxo, já

palavra ganhar. É então que e descobrem,

crescente no século XIII, toma proporções

cada vez mais numerosas, menções de

espetaculares".

arcas ou de bolsas nos documentos de

É evidente que a condição econômica

arquivos, restos de chaves nos canteiros de

da população citadina da Baixa Idade Média

escavações,

acaba determinando inúmeros aspectos da

manifesta

vida urbana, além da esfera econômica.

naturalmente móveis...". Pirenne (2009, p.

Duby (1990, p. 178), por exemplo, descreve

71), referindo-se ao século XI, vai na mesma

a situação da moradia dos pobres: "Os

direção, ao afirmar que "com a extensão do

humildes se mudam frequentemente. A

comércio, o amor do ganho manifesta-se de

pobreza reduz o espaço privado, comprime a

modo

família (até a promiscuidade), ao mesmo

nenhum escrúpulo existe em face do lucro A

tempo que obriga a romper as solidariedades

sua religião é uma religião de gente de

privadas mais amplas (amigos, vizinhos) no

negócios

momento em que vão se formar". Outro

muçulmanos sejam inimigos de Cristo, se o

reflexo, segundo Duby, está no mobiliário:

comércio com eles pode ser proveitoso".

"Enriquecer, progredir na sociedade é, entre

indícios de

guardar

irresistível.

Pouco

Houve

de

para

Para

lhes

uma

os

si

em

bens

venezianos

importa

momentos

vontade

que

que

os

a

outras coisas, cuidar de seu mobiliário"

ostentação do luxo foi combatida. Carlos V

(idem, p. 187).

proibiu, no século XIV, que as mulheres de

Um item do mobiliário se destaca,

Montpellier usassem pedras preciosas. No

firmando seu espaço no imaginário popular:

século XV, Carlos VIII proibiu roupas de seda

a arca, como lugar de guarda do tesouro, ou

e de veludo. O luxo na mesa (glutonia) foi

seja, da riqueza acumulada. Duby (1990, p.

reprimido, ou seja, era praticado de forma

505-6) situa o fenômeno já a partir do século

escandalosa.

XII, como marca das conquistas econômicas

A circulação de mais moeda e a

240


José de Arimathéia Cordeiro Custódio

ostentação causaram, porém, aumento de

Se surgiram, então, "novos ricos",

consumo, o que levou, em dado momento, a

apareceram

um generalizado estado de endividamento

Entretanto, não mais uma pobreza como

da população. Le Goff (2014, p. 58) fala de

fruto do pecado, nem uma pobreza de Jó,

europeus que, no século XIV, gastavam

mas uma exaltada, porque espelhada na

quase a metade do salário apenas com a

imagem de Jesus - aquele que deu à

compra de grãos, e de 60 a 80% do

Humanidade o maior e mais verdadeiro

orçamento só com despesas alimentares. O

exemplo de pobreza. E se a riqueza provinha

consumo

a

do trabalho, já justificado, a pobreza passou

os

a ser uma escolha, uma opção - São

açougueiros, que se multiplicaram para

Francisco de Assis é outro exemplo. A

atender à demanda pelo produto. Em outras

esmola ganhou novos sentidos, e a caridade

palavras,

à

foi ainda mais exortada. Tanto, que fez

desigualdade social crescente nas cidades.

nascer na época as ordens hospitalares e

Ele

seus hospitais, nos centros urbanos.

de

aumentar

carne

tanto

o

também

uso

também

que

do

afirma

chegou

locupletou

dinheiro que

levou "um

dos

também

"novos

pobres".

endividamentos mais importantes foi sem

Outra noção que surge é aquela que

dúvida o dos camponeses" (idem, p. 107).

redundou, mais tarde, na ideia de que

Informa o autor que, até o século XIII, eram

"tempo é dinheiro". Diz Le Goff (2014, p. 61):

as instituições monásticas que emprestavam.

"A partir do fim do século XII observa-se a

Depois, quando o emprego do dinheiro se

sensibilidade cada vez maior do habitante

urbanizou, os judeus assumiram o papel de

das cidades quanto ao valor do tempo. Vê-se

emprestadores, uma vez que, segundo a

despontar a ideia de que tempo é dinheiro.

Bíblia, o empréstimo a juro era proibido entre

Cresce principalmente, no século XIII, o valor

cristãos, e entre judeus, mas não de uns

econômico, monetário mesmo, do trabalho,

para os outros. O medievalista francês expõe

inclusive do trabalho manual". Mais uma vez,

ainda que o endividamento, em regiões da

a base é bíblica: "o operário é digno do seu

Alemanha, que era de 1% em 1362, passou

salário" (Lc 10,7).

de 50% no século XV. Em Barcelona,

O medievalista francês afirma que "na

chegou a 61% em 1403; em Valência, a

Alta Idade Média, o trabalho durante longo

76%, em 1485.

tempo foi desprezado pelo cristianismo,

241


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

contabilidade

foi

também

original" (idem, p. 122). E continua: "Ora, a

embora,

dois

últimos

partir do século XII o trabalho foi objeto de

medievo, ainda fossem os comerciantes os

uma reavaliação marcante no sistema de

principais manipuladores de dinheiro.

considerado

consequência

do

pecado

nos

valores e de prestígio social das pessoas da

crescendo, séculos

do

Considerações finais

Idade Média, de modo quase paralelo quanto

Não resta dúvida que a moral cristã

à reavaliação da pessoa e do papel da

influenciou, como em tantos outros aspectos

mulher, favorecida pelo grande impulso do

do cotidiano medieval, o uso do dinheiro. Le

culto marial" (idem, p. 123). Assim, o homem

Goff (2004, p. 67-8) assim expõe o cenário:

passou de criatura punida e sofredora a um

"A Igreja, os teólogos, os canonistas e, não

colaborador da Criação.

os

esqueçamos,

os

pregadores

e

os

Finalmente, na Idade Média tardia

confessores da Idade Média, tratando de

(séculos XIV e XV), o desenvolvimento

questões religiosas, do pecado e de usura,

comercial

mostraram o impacto da religião sobre os

levou

à

criação

de

novos

instrumentos que pudessem atender às

fenômenos

necessidades monetárias. Surgiram, pois, a

'econômicos'". A fé se mistura aos costumes.

letra de câmbio e o contrato de seguro. Le

"O homem medieval pensa no cotidiano

Goff

uma

usando os mesmos moldes de sua teologia",

curiosidade: "a festa de São Miguel, no fim

afirma categoricamente Huizinga (2010, p.

de setembro, e a de Todos os Santos, no

375).

(idem,

p.

164)

até

conta

que

hoje

chamamos

início de novembro, tornaram-se datas de

Sabe-se que é assim. Ao tratar das

pagamento maciço". A letra de câmbio,

formas de pensamento na vida prática,

explica o autor, funcionava como um meio de

Huizinga (idem) explica: "Para compreender

pagamento de uma operação comercial;

o espírito medieval como uma unidade total,

valia como transferência de fundos entre

é necessário analisar as formas básicas de

lugares com moedas diferentes; era fonte de

seu pensamento não apenas levando em

crédito;

conta

e

era

ganho

financeiro

sobre

as

representações

da

e

da

diferenças e variações de câmbio. As

especulação mais elevada, mas também a

práticas de endosso e desconto só surgiram

sabedoria de vida do cotidiano e das práticas

no

mundanas. Pois são as mesmas grandes

século

XVI.

Com

tudo

isso,

a

242


José de Arimathéia Cordeiro Custódio

linhas de pensamento que dominam tanto as

desencoraja

o

pensamento

expressões mais elevadas como as mais

capitalismo germinava na Idade Média.

comuns". O uso do dinheiro não é uma

Especificamente - ao tratar do crescimento

exceção, e aí vale o argumento do autor

urbano e comercial, com a adoção de moeda

(idem): "Tudo o que conquistou um lugar fixo

e o surgimento de banqueiros, o autor

na vida, que se transforma numa das formas

menciona

de vida, passa a valer como se tivesse sido

realmente acumularam fortunas. Porém, "é

ordenado por Deus, desde os usos e

preciso lembrar, com Ferdinand Braudel, que

costumes mais comuns até as coisas mais

as aventuras mais brilhantes do 'capitalismo

elevadas no plano universal".

financeiro', aquelas dos Bardi, dos Peruzzi e

alguns

de

que

empreendedores

o

que

apresentar

dos Medici de Florença, ou ainda dos

algumas ponderações de autores como Le

banqueiros de Gênova entre 1580 e 1620 e

Goff, que refutam a ideia de um pré-

de Amsterdã no século XVII, terminam todas

capitalismo no final do medievo. O autor

em fracasso; não há sucesso neste domínio

(2014, p. 193) sentencia: "o dinheiro não

antes de meados do século XIX". Ele refuta,

assumiu sua significação moderna senão a

ainda, historiadores (como Pirenne, 1982)

partir do século XVIII", ou seja, bem depois

que fincam as raízes do capitalismo na Baixa

do fim da Idade Média. E acrescenta (idem,

Idade Média, chamando esta postura de

p. 199): "a emergência e o crescimento do

"temerários erros de perspectiva" (idem, p.

mercado no fim da Idade Média nada têm ver

155).

Cabe,

com

uma

capitalismo,

neste

putativa são,

ponto,

transição ao

para

contrário,

O autor sintetiza o cenário (idem, p.

o

uma

reorganização do sistema feudal que o reforça consideravelmente". Mas diz mais: "na Idade Média a economia não apenas deixa de ser percebida mas não existe" (idem, p. 228). E ainda: "o essencial para mim é que não se pode falar de capitalismo antes do século XVI" (idem, p. 244). Baschet (2006, p. 260-1), igualmente,

150): Quanto às atividades especificamente urbanas - o comércio, a produção artesanal e o início da atividade

bancária

-,

elas

estão

longe

de

corresponder às normas da racionalidade econômica que o sistema capitalista estabelecerá a partir do século XVIII. É, então, mais do que perigoso falar, no que diz respeito à Idade Média, de mercado regido pela lei da oferta e da procura, ou ainda de livre concorrência. Na cidade, as atividades produtivas são organizadas em ofícios, cujos regulamentos detalhistas, estabelecidos a partir do século XII,

243


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo fixam as normas de produção e de qualidade dos produtos, os preços, os salários e as condições de trabalho.

Fourquin

(1986,

p.

299)

também

dedica algum espaço a esta questão, ao indagar se a expansão medieval teria sido de natureza pré-capitalista. Ele reconhece que houve homens de negócios poderosos antes do século XIII, mas sugere que não se pode falar no início do capitalismo a não ser no século

XVI.

Também

apresenta

alguns

argumentos que objetam a existência de um "capitalismo medieval". Em primeiro lugar, a economia do medievo estava assentada na doutrina canônica e em suas proibições, especialmente da usura, a procura do lucro desmedido e o individualismo - atitudes que negam a função social, moral e religiosa do produtor de bens, do artesão, do mercador e do banqueiro. Ainda assim, os avanços vieram, gradativamente. Mas isso porque, segundo o autor, "os homens de negócios souberam conciliar notavelmente a sua ânsia de lucro e os seus escrúpulos religiosos" (idem). O

medievalista

prossegue:

"A

segunda objeção diz respeito ao fato de a economia medieval se ter mantido como

economia

predominantemente

rural.

O

capitalismo 'agrícola' é geralmente coisa rara e superficial. Poderá argumentar-se que uma região pode conhecer o capitalismo, sem que este

se

alastre

a

todos

os

setores

econômicos" (idem). Já a terceira objeção defende que não houve mais capitalismo industrial do que capitalismo agrícola no medievo, graças à organização corporativa. As próprias regras das comunidades de ofícios restringiam a iniciativa individual de modo que represavam o desenvolvimento de indústrias suficientemente importantes, fosse quanto à intensidade de produção, fosse pelo número de operários. A conclusão de Fourquin (idem, p. 300) é que "o pré-capitalismo é portanto demasiado limitado e demasiado esporádico para que a vida material atinja a fase de verdadeiro

'arranque',

que

virá

a

concretizar-se no século XV". Já Le Goff conclui dizendo: "Na Idade Média o dinheiro, como também o poder econômico, não se emancipou do sistema global de valores da religião e da sociedade cristãs. A criatividade da Idade Média estáem outros pontos" (2014, p. 256).

244


José de Arimathéia Cordeiro Custódio

Referências: ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Edição bilíngue. Tradução e notas de Ítalo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34, 1998. BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. Rio de Janeiro: Globo, 2006. BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. BISSON, Thomas N. Moeda. In LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário

temático do ocidente medieval II. São Paulo, EDUSC, 2006. BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 2009. DUBY, George. História da vida privada 2: da Europa feudal à Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. _______ . Idade Média, idade dos homens. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. FOURQUIN, Guy. História econômica do ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1986. GIORDANI, Mario Curtis. História do mundo feudal II/1. Petrópolis: Vozes, 1997. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2010. LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida. São Paulo: Brasiliense, 2004. _______ . A idade média e o dinheiro: ensaio de antropologia histórica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. _______ . O nascimento do purgatório. Lisboa: Estampa, 1995. _______ . Para uma outra Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Petrópolis: Vozes, 2013. METRI, Mauricio. Poder, riqueza e moeda na Europa medieval. Rio de Janeiro: FGV, 2014. PIRENNE, Henri. As cidades da Idade Média. Mem Martins (Portugal): Publicações EuropaAmérica, 2009. _______ . História econômica e social da Idade Média. São Paulo: Mestre Jou, 1982. ZÉTOLA, Bruno Miranda. Pobreza, caridade e poder: antiguidade tardia. Curitiba: Juruá, 2009.

245


O GÊNERO EPIDÍTICO NOS SÉCULOS IV E V: A RETÓRICA DO ELOGIO E DO ACONSELHAMENTO AO IMPERADOR José Petrúcio de Farias Júnior 1 Resumo: Apresentaremos nessa comunicação os principais tipos de texto pertencente ao chamado gênero epidítico. Para isso, utilizamos como referência os manuais de retórica de Aristóteles, Menandro e Aftônio, já que perfazem registros importantes sobre esse eixo temático. Informamos que nossa abordagem não se limita à identificação de tópicos de retórica, pois a retórica tardo-antiga não se resume a isso. Esse reconhecimento é, no entanto, necessário para que associemos determinadas narrativas a uma prática discursiva conhecida na Antiguidade Tardia. Assim, partimos do pressuposto de que pensadores romanos tardios, como Sinésio de Cirene, não utilizava manuais de retórica de maneira mecânica, como se fosse um jogo de quebra-cabeça que se pode montar e desmontar livremente. Palavras-chave:Retórica – Gênero Epidítico – Antiguidade Tardia -

Sinésio de

Cirene

1Universidade

Federal do Amapá.

246


José Petrúcio de Farias Júnior

Como muitos outros termos retóricos

perfazia a tarefa de louvar, elogiar ou

entre os pensadores gregos, a palavra

exaltar algo ou alguém, tendo em vista um

επιδεικτικό,

momentos

paradigma do belo e vergonhoso - το καλόν

históricos e até mesmo em determinado

κάι το ισχρόν (ARISTÓTELES, Retórica, I,

momento

diversos

9, 1358 b 28). Assim, a tarefa do orador

significados, isto é, tal termo foi usado de

epidítico consiste parte em louvar, parte em

maneira mais ou menos abrangente no

censurar

tocante à categorização de textos antigos.

Anaxímenes (séc. IV a.C), em Retórica a

Se

aos

Alexandre, tenha sido o primeiro a escrever

gêneros tematizados pela Retórica de

sobre retórica, é com Aristóteles (384 –

Aristóteles,

discurso

322a.C), alguns anos mais tarde, que

deliberativo - συμβουλευτικών, que se

questões atinentes ao gênero epidítico

dirigia à assembleia, seja para aconselhá-la

serão ampliadas. Todo o capítulo 9 do livro

ou

primeiro da Retórica é dedicado a esse

nos

em

diferentes

histórico,

manteve

detivermos

brevemente

identificaremos:

adverti-la

em

relação

o

a

decisões

laudandus.

o

Ainda

que

políticas a serem adotadas; o discurso

gênero

judiciário ou forense – δικανικών - que se

objetivo

endereçava aos tribunais, para acusar ou

escritos por Anaxímenes e Aristóteles –

defender,

o

consistiram em fornecer as características

passado e, por fim, o gênero epidítico –

gerais e teoria dessa vertente da retórica.

επιδεικτικός ou demonstrativo, o gênero do

Burgess (1902, p. 107) adverte-nos para o

elogio ou do vitupério, nosso objeto de

fato de que a retórica antiga não era

reflexão, caracterizado por Cassin (1993, p.

entendida por pensadores gregos antigos

39), como o gênero menos político, visto

como

que o mais retoricamente retórico, dos três,

estabelecidas para serem usadas por

declaração

repensada,

estudantes em suas composições, mas sim

analisamos

orientações a partir das quais oradores

discursos considerados epidíticos escritos

tardios pudessem se basear. Percebe-se

por

que, nos tratados e nos manuais de

portanto,

que

especialmente, pensadores

versava

pode

ser

quando que

sobre

exerciam

cargos

político-administrativos que datam do IV e

retórica

V séculos.

muitas

Tratava-se, em tese, de um gênero

discursivo. desses

uma

da

Pensamos

primeiros

série

de

Antiguidade,

divergências

que

o

tratados

regras

pré-

embora

haja

quanto

à

categorização dos discursos, é possível

discursivo voltado nem ao cidadão nem ao

identificar

juiz, mas ao espectador – θεôρος - e

apropriação de semelhantes topoi retóricos.

o

compartilhamento

ou

247


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Na Antiguidade Tardia, destacamos a influência do manual de retórica atribuído

histórico em questão.

tratados

Em Περί Επιδεικτικών, em particular,

epidíticos - Περί Επιδεικτικών, obra escrita

verificamos não só uma gama diversificada

em aproximadamente 273 d.C, e a Aftônio

de tipos de discurso que se ajustam à

Progymnasmata-

categoria de gênero epidítico, mas também

a

Menandro

(séc.

(séc.

III),

IV),

Προγυμνάσματα,

escrito

Dos

prática da eloqüência epidítica no momento

na

segunda

metade do IV século, os quais, no âmbito da

retórica

epidítica,

oferecem

vagas definições para identificação de tais discursos.

um

Assim, entendemos que o gênero

prontuário de grande aplicabilidade para

epidítico, no contexto da retórica tardo-

múltiplas ocasiões. A nosso ver, tais

antiga, é uma categoria que agasalha

autores representam uma referência para a

diferentes tipos de discurso, os quais

compreensão do gênero epidítico - γένος

comportam

επιδεικτικών - no Império romano tardio,

semelhantes, como enunciava Aristóteles.

objetivo

topoi

e

retóricos

de

Um topos marcante que caracteriza

Menandro e Aftônio podem ser aplicados

esse gênero consiste na extração de

em muitos discursos romanos do IV e V

fragmentos históricos ou mitológicos de

séculos e em grande parte dos panegíricos

obras-referência da cultura grecoromana

do período bizantino (GASCÓ, 1996, p. 18).

anteriores

porque

os

esquemas

retóricos

São manuais mais de caráter prático do

que

na

condição

de

argumentos de ampliação. Isso quer dizer que o discurso epidítico é constituído de

sistematizar, com base em uma extensa

επιδεικiς, ou seja, de uma preocupação em

prática discursiva precedente que remonta

mostrar diante de um público (BAILLY, s/d,

em grande medida a Aristóteles, um

p. 745). A ideia contida no termo parte do

conjunto de topoi, temas e objetos estético-

pressuposto

morais que podem constituir as diferentes

registra um exemplum para mostrar “mais”

narrativas epidíticas.

(επι) em função dele, além de mostrar o

linhas

porque

autor,

pretendem

Em

teórico,

ao

gerais,

essas

de

que

o

encomiógrafo

obras

que o orador-escritor sabe fazer, isto é, seu

oferecem orientações úteis para acentuar a

talento, “no mais”, para evidenciar seu

pretensão de elogio ou vitupério que se

objeto

de

elogio 2.

Além

disso,

quer imprimir ao discurso bem como denotam a permanência do ensino e da

2De

acordo com Gascó (1996, p. 22) o termo επιδεικiς, já

aparecia em fontes de Isócrates (Va.C) e, no transcorrer dos séculos, todas as peças de oratória que não se

248


José Petrúcio de Farias Júnior

diferentemente dos demais, sua narrativa

elogio ao imperador, ao governador, à

não concerne ao passado ou ao futuro,

cidade natal, à pátria ou à província, entre

mas ao presente - κατά τα úπaρχóντα

outros; e, como Aristóteles (Retórica, I, 9,

(CASSIN, 1993, p. 40).

1358b

Gascó (1996, p. 24) declara que, na época

imperial,

houve

um

8)

tratamento

nos

havia

desses

instruído,

temas

o

também

autêntico

possibilitava a veiculação da imagem do

crescimento de distintos tipos de discursos

encomiógrafo - rétor, filósofo ou sofista –

epidíticos, especialmente, na parte oriental

que,

do Império. A nosso ver, isso se deve ao

abastadas.

fato de se tratar de um tipo de composição literária

que

dissemina

princípios

de

em

geral,

pertencia

a

famílias

Queremos dizer com isso que muitos escritores,

como

Sinésio

de

Cirene,

fidelidade política de famílias abastadas

utilizaram essas composições para se

provinciais à corte imperial, especialmente

projetar socialmente em suas cidades,

ao imperador, indispensáveis à aquisição

províncias ou até mesmo no interior da

de honras e privilégios, derivados, em

corte imperial. Afinal, o pertencimento de

grande parte, da aquisição de cargos,

um escritor tardo-antigo a um grupo social

relações de amicitia e, por extensão, de

o qual detinha responsabilidades civis e

patrocínio.

uma

Afinal,

os

composições

mais

encômios 3 adequadas

são para

o

formação

retórico-filosófica

abrangente, colaborava para que seus registros se tornassem um instrumento útil para

promoção social, uma das práticas

ajustavam ao gênero deliberativo ou judicial, mas

indispensáveis a ocupação de cargos

continham aspectos da epídeikis, passavam a pertencer

imperiais

ao chamado gênero epidítico. A esse processo de

forma, o gênero epidítico se acomoda aos

categorização,

Anaximenes

e

Aristóteles

foram

os

principais responsáveis. 3A

respeito da utilização do termo εγκωμιον em discursos

pertencentes ao gênero epidítico, Navarre (1900, p. 84

apud BURGESS, 1902, p. 113) afirma que em geral

anseios

específicos. ou

Entendido

pretensões

de

dessa

influentes

agentes políticos locais comumente em busca de mais honras e privilégios.

eloqüência

Para além das contribuições de

epidítica em prosa por meio do vocábulo εγκωμιον. O

Anaxímenes e Aristóteles, identificamos em

objetivo do encômio é mostrar da melhor maneira possível

Περί

definiam-se

as

diversas

variedades

da

o caráter e as virtudes do objeto de elogio – Nicolau

Επιδεικτικών

orientações

mais

Sofista (Rhet. Gr. III, 479, 17), Hermógenes (II, 12, 5), Alexander Rétor (III, 2, 17); Juliano (Or. I), Isócrates

quanto um tom de elogio, como defende Nicolau Sofista

(Panatenaico, 123), entre outros. Além disso, εγκωμιον é

(apud BURGESS, 1902, p.114).

um discurso que pode comportar tanto um tom de censura

249


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

minuciosas

acerca

desse

gênero

Quanto à extensão da narrativa,

discursivo. (1) Discurso de chegada -

verificamos que o cirenaico excede a essas

προσφωνητικός, comumente dedicado à

orientações, possivelmente, por isso, tenha

cidade natal quando do regresso de uma

declarado que sua narrativa trataria de um

permanência fora, ou à cidade para onde

problema filosófico, sobre o qual poucos

se vai, ou a um governador que pretende

conseguiram

se estabelecer na cidade (MENANDRO, II,

relembramos aqui a afirmação de Sinésio

378-388); (2) Louvor a uma acrópolis; (3)

em que mito e presente, não são em

Mονωιδία, trata-se de um canto triste,

relação à verdade congruentes (SINÉSIO,

queixa ou lamentação. Um exemplo pode

De Providentia, II, 7.6), abordagens que se

ser encontrado em Libânio (Or. LXI) sobre

aproxima

a destruição do templo de Apolo; (4)

Menandro.

mitificar.

das

Também

recomendações

de

discurso de despedida - προπεμπτικòς

Em seguida, o rétor versa sobre (6)

λόγος. Podem ser divididos em três

os discursos genealógicos, comumente

categorias: se entre iguais, é de cunho

acoplados aos hinos ou a outros tipos

terno; se dirigido a um superior, de cunho

discursivos; e, para diferenciá-los dos

laudatório, ainda que um superior também

míticos, Menandro também apresenta (7)

possa se direcionar a um inferior, nesse

os discursos ficcionais; sobre eles o rétor

caso, o tom de conselho é predominante;

adverte não poder tratar simplesmente dos

por fim, quando se endereça a um

deuses

governante, assemelha-se a um Βασιλικός

nascimentos

λόγος; (5) discurso mítico - μύθος, que para

demasiadamente

Menandro, de nenhuma maneira admitem

máximo, dos deuses mais desconhecidos e

tratamento científico, quero dizer científico

de demônios (I, 341, 1-4), desde que as

às claras; pois se daria encoberto por meio

narrativas

de uma alegoria (κατ ‘υπόνοιαν), como de

mesmas e não comportem contradições ou

fato ocorre em muitos relatos sobre o divino

discrepâncias (I, 341, 30-32).

(I, 338, 24-27). Além disso, Menandro

discursos

tornam-se pesados de ouvir (I, 3393-4).

discurso

em

De

Providentia,

celebrados e

conhecidos,

sejam

nupciais de

e

cujos

poderes

coerentes

Ressaltamos

sugere que sejam breves, já que longos Sinésio,

mais

também -

são

mas,

ao

consigo

os

(8)

Éπιθαλαμιoν, (9)

felicitação

-

Γενεθλιακός,

também

proferido geralmente em aniversários; (10)

veicula a possibilidade de ser sua narrativa

discurso de consolação- Παραμυτητικός

mítica concebida como um discurso divino.

λόγος – que começa normalmente com

250


José Petrúcio de Farias Júnior

uma

lamentação;

(11)

discurso

sobre

funeral - επιτάφιος λόγος, pronunciado cada

ano

em

honra

aos

soldados

combatentes (II, 418, 5-8); (12) Σμινθιακός

λόγος, discurso em louvor a Apolo e (13) γαμικός

λόγος,

Éπιθαλαμιoν,

semelhante mas

que

ao trata

especificamente de pontos fundamentais do relacionamento dos cônjuges como

A categoria da laliá é muito útil para um sofista e parece formar parte de dois gêneros da retórica, o deliberativo e o epidítico (...) de uma parte, se quisermos elogiar um governador, proporciona uma abundante fonte de elogios, pois podemos inclusive, mediante a laliá, pôr em relevo seu sentido de justiça, sua sabedoria e demais virtudes; e de outro lado, também em forma de

laliá podemos dar conselhos a uma cidade inteira, a todos os ouvintes e, se quisermos, a um governador que tenha acorrido de bom grado a ouvir o discurso (MENANDRO, II, 388,15-26).

incitação à união (II, 405, 15-20); discurso

Verifica-se que essa modalidade

de desembarque - επιβατήριος λόγος; (14)

discursiva não apresenta um eixo temático

louvor a uma cidade; (15) louvor a uma

específico. Para Burgess (1902, p. 111),

cidade a partir de sua fundação; (16) louvor

ela aponta mais para um estilo discursivo

à pátria; (17) louvor a um porto e (18)

do que para uma categoria. As orientações

louvor a uma baía.

sugeridas por Menandro são marcadas por

A partir de agora, relacionaremos as principais

uma multiplicidade de temas que podem

modalidades discursivas que

ser aproveitados por outros autores, entre

direta ou indiretamente estão relacionadas

os quais chama-nos atenção o fim para o

ao

qual fragmentos históricos são apropriados

âmbito

político:

(19)

panegírico

-

πανηγυρικός λόγος, discurso proferido em πανηγυρiς, quer dizer, em uma assembleia ou festa solene, caracterizado, em geral, por

ser

um

louvor

a

uma

pessoa,

inicialmente o imperador, seguido de uma narrativa laudatória; (20) Λαλιά, pode ser traduzido como um bate-papo, conversa ou

discussão literária (BAILLY, S/D, p. 1166). Trata-se de um discurso que não se remete a uma situação específica; é, ao contrário, um tipo geral de composição informal 4. De

neste tipo de discurso: Se nos propusermos a pronunciar em forma de

lalíá um elogio a um governador de alguma província, pois bem, temos que examinar qual é sua atitude em relação aos imperadores (...) Para isso, tomaremos como exemplo um acontecimento antigo ou inventado por nós para não dar a impressão de que tratamos de fatos desnudos de si mesmos, já que isto não tem encanto; pois gosta a categoria da laliá da doçura e esquisitices dos relatos (MENANDRO, II, 389, 3-14).

Acerca dos conselhos, Menandro sugere:

acordo com Menandro, λαλιά e os sermões filosóficos e morais da época 4Para

Joaquin Gutiérrez Calderón, tradutor dos tratados

helenística – conhecidos pelo nome de διατριβαί.

de Menandro (1996, p. 177) há alguma relação entre

251


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo Na forma de laliá, podes dar conselhos a propósito da concórdia, à cidade, aos ouvintes, aos amigos, aos adversários políticos e aos agitadores da

orienta a partir de personagens fictícios: Tauro, Osíris e Tifo. Além disso, em comparação com a

ordem, induzindo-os a unir-se em um bom entendimento mútuo (MENANDRO, II, 390, 14-17)

Por fim, salientamos as orientações que remontam ao relacionamento recíproco entre conduta moral e ações humanas no contexto do elogio: Em muitas ocasiões te enganarás e censurarás sem dar nomes, caricaturizando, se quiseres, a

a

histórica,

narrativa

encomiástica é descontínua, e, muitas vezes, organiza-se em torno dos pares antagônicos vício e virtude; logo, comporta significativa orientação moral, caso em que os registros de Sinésio se encontram.

pessoa e censurando sua conduta; e de igual

Ainda que algumas narrativas, como De

maneira que ao fazer um elogio fosse possível

Providentia, sigam um plano cronológico, a

fundamentar os elogios em cada uma das virtudes, assim também

ênfase recai sobre o papel das virtudes e

te é possível, baseando-te em cada um dos vícios,

das ações do laudandus. A falta de

censurar

continuidade na narrativa mítica sinesiana

e

vituperar

quando

o

desejares

(MENANDRO, II, 391, 5-10, grifo nosso)

Os fragmentos acima apresenta um aspecto que contribui para diferenciarmos o discurso epidítico ou encomiástico dos demais discursos, entre eles, do histórico. A primeira característica da laliá que encontra ressonância nos discursos do cirenaico versa sobre a pouca frequência ou

narrativa

ausência

de

nomes

próprios,

de

pormenores técnicos ou acontecimentos precisos, principalmente como se observa em De Regno, discurso que, embora se dirija

ao

imperador

(supostamente

Arcárdio), em nenhum momento se reporta a nomes próprios ou a situações concretas vivenciadas pelo imperador, o que, de certa forma,

também

se

perpetua

em

De

Providentia, porquanto a narrativa se

pode

ser

observada

em

diferentes

momentos. No capítulo 13 do primeiro livro, por exemplo, Osíris é assassinado por Tifo, no entanto, ele reaparece nos capítulos seguintes sem que haja uma justificativa para seu ressurgimento; outro exemplo: no capítulo 18 do primeiro livro, Hórus, filho de Osíris, que continuaria a administração de seu pai após derrotar Tifo, aparece apenas neste capítulo, isto é, no último capítulo do primeiro livro e nem sequer é mencionado no transcorrer do segundo livro. Dito de outro

modo,

a

narrativa

encomiástica

obedece a uma lógica interna que não é prévia, uma vez que está mais subordinada a uma demonstração moral, arquitetada a partir das ações do laudandus. A narrativa histórica, por outro lado, está

mais

inclinada

à

narração

252

de


José Petrúcio de Farias Júnior

acontecimentos, à apresentação de fatos,

quanto de De Providentia, entre as quais

geralmente

salientamos:

em

ordem

cronológica,

e

pretende externar uma abordagem que pretende ser imparcial em relação a outras tipologias

textuais

(BURGESS,

1902,

p.116). Já o elogio, como observamos, não necessariamente narra, ainda que, em grande parte dos casos, faça referência a acontecimentos históricos contemporâneos à escrita do documento. Élio Aristide (séc. II d.C), em Panatenaico (apud CASSIN, 1993, p. 46-50), discurso de louvor a Atenas, reforça essa distinção ao sublinhar que o trabalho do historiador consiste em relatar todas as ações de Atenas, enquanto o panegirista faz uma escolha das ações mais célebres e mais relevantes. Assim, quando a narrativa se apresenta em forma de elogio, não o é à maneira dos historiadores,

mas

especialmente

uma

forma

ao

gênero

adaptada

epidítico (PERNOT, 1993, p. 668). Associado à laliá, Menandro também sinaliza (21) a laliá de despedida, discurso acompanhado de uma formulação de bons desejos para despedir-se daquele que parte; (22) o discurso imperial - βασιλικός λόγος, que se caracteriza como discurso de elogio

ao

Menandro orientações

imperador. oferece que

Neste

uma nos

tópico,

série

de

ajudam

a

compreender o processo de seleção e organização temática tanto de De Regno

a. (...) conterá um acréscimo convencional das boas qualidades que são próprias de um imperador e nada de ambíguo nem discutível se admite por ser ilustre a pessoa em grau máximo (MENANDRO, II, 368, 2 -7); b. Também admitem no prólogo do discurso ampliações a partir de exemplos ilimitados (MENANDRO, II, 368, 20-23); c. Depois do prólogo passarás ao tópico da pátria. Aí tens que refletir se é ilustre ou não (MENANDRO, II, 369, 19-20); d. (...) sendo todos os seus compatriotas dignos de elogios, sobressaiu apenas ele (o imperador), pois somente ele mereceu o Império. Logo poderás retirar exemplos da História (MENANDRO,II, 370, 3-6); e. É necessário ter em conta isto com todo rigor: que, se pudermos, mediante algum recurso, ocultar o indecoroso (...) temos de dizer que nasceu de deuses, faremos exatamente isso, se não, omitiremos (MENANDRO, II, 371, 1-3); f. Em caso de que haja algo assim em torno do imperador, desdobrá-lo e, se possível, inventá-lo e fazê-lo de maneira convincente, não hesiteis, pois o tema o permite, uma vez que os ouvintes são obrigados a aceitar os elogios sem examinálos (MENANDRO, II, 371, 10-15); g. Suas atividades serão objeto de exame (...), já que as atividades dão demonstração do caráter (MENANDRO, II, 372, 3-5); h. Segue às atividades, finalmente, o tratamento das ações. (...) as mencionadas ações as dividirás em dois tipos: relativas à guerra e à paz (MENANDRO, II, 372, 27-29); i. (...) as virtudes são quatro: valentia, justiça, prudência e sabedoria – e observa quais virtudes correspondem às ações (MENANDRO, II, 373, 79); j. Dentro da justiça, há de elogiar a amabilidade para com os súditos, o auxílio aos necessitados e a acessibilidade (MENANDRO, II, 375, 5-10);

253


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo k. Dirás que por nações, tribos e cidades envia governadores justos, defensores das leis e dignos

da

justiça

do

imperador,

não

recomendações,

a

instituições

político-administrativas,

arrecadadores de impostos (MENANDRO, II,

disputas

3375, 19-25);

imperial,

l. (...) o tirano entende mediante a sabedoria o que o convém legislar ou não, e legisla com

entre

fragmentação

pretendentes

surgimento

de

ao

de trono

autocracias

militares, desastres naturais, dificuldades

injustiça, enquanto o imperador com

econômicas em algumas províncias do

justiça (MENANDRO, II, 375, 31-32);

Império, mudanças na autorrepresentação

m. Depois da justiça elogiarás sua prudência, pois muito próxima à

e na ideologia imperiais e crescentes

justiça é a temperança.

conflitos civis bem como o recrudescimento

n. Não te vás esquecer da regra antes exposta, a

das migrações bárbaras (KENNEDY, 1994,

saber: de que em cada um dos capítulos terás comparações; mas estas serão parciais, por

p. 242), o que reivindicava a construção

exemplo, de educação com educação ou de

literária

moderação com moderação (...)(MENANDRO, II,

promover a unidade político-administrativa

377, 2-6);

São, com efeito, orientações sobre como

se

deve

fazer

imperador.

Elas

sintetizamos

acima,

um

elogio

formam, uma

ao

como lista

de

procedimentos, modelos e percepções e são facilmente identificadas nas narrativas de escritores tardo-antigos o que sugere que eles tenham feito uso de manuais de retórica ou de outros textos que tenham seguido

esse

formato.

Ressaltamos

de

um

imperador

capaz

de

e de socorrer as cidades provinciais diante da ameaça de incursões bárbaras. Ponce (1998,p. 232) esclarece que tais indicações explicam, em parte, o motivo pelo qual Menandro

elabora

uma

imagem

do

imperador de acordo com a chamada

Teologia da Vitória 5, com destaque para as ações de guerra sobre as de paz, em que a

valentia

se

torna

a

principal

virtude

imperial.

ademais que essas orientações não podem ser concebidas apenas como uma árida

5A

historiadora Maria Jesús Ponce (1998, p. 225) utiliza a

expressão Teologia da Vitória para se referir a uma

compilação de artifícios retóricos vazios de

prática político-cultural, que se fortalece a partir do II

implicações

das

século, no interior da qual imperadores romanos se

circunstâncias históricas que colaboraram

legitimavam no poder ao reclamar sua ascendência divina

políticas

provenientes

para sua produção.

e ao associar-se a símbolos celestiais, o que os tornava co-partícipes da ordem divina. No interior dessa estratégia

Como o manual de Menandro foi

de representação imperial, a vitória militar era a maior

escrito no final do III século, não podemos

prova dos dons sobrenaturais do imperador reinante, e a

desconsiderar, para a composição de suas

valentia o critério que diferenciava o verdadeiro imperador dos demais.

254


José Petrúcio de Farias Júnior

Queremos

dizer

com

isso

que

autores romanos tardios não transcreviam simplesmente recomendações ou normas já presentes em manuais de retórica que remontam a rétores gregos antigos, mas sim tentavam prescrever, como se observa nos fragmentos acima, por meio de sua própria perspectiva político-cultural, o que se institui como orientações adequadas a discursos epidíticos. Há

também

(23)

discurso

de

saudação ou cumprimento pronunciado em elogio a governadores, semelhante ao

βασιλικός λόγος, porém menos completo; (24)

o

discurso

de

coroamento

-

στεφανοτικός, segundo Menandro, deve inicialmente

estar

pautado

na

coroa,

particularmente seu valor simbólico, em seguida, na glória do imperador dizendo: (...) o poder divino se adianta em honrar-te com a própria coroa do império e todo o mundo civilizado a coroar-te com a coroa mais valiosa: suas bênçãos. Acode em teu encontro também nossa cidade, não inferior a nenhuma

podes se tu a isto consentires, socorrer; e ela depende de tuas vontades que, em nome de uma pátria, desta vez poderosa e próspera, eu venho trazer-te uma segunda coroa (SINÉSIO, De

Regno, 1056C).

A despeito das semelhanças, De

Regno não se resume a um discurso de coroamento, constituem

porquanto o

outros

núcleo

da

temas

narrativa.

Considerando o manual de Menandro, De

Regno se aproximaria mais

do

(25)

discurso de embaixada - πρεσβευτικός, escrito

na

situação

específica

da

embaixada e suas condições de realização. Trata-se de um discurso que congrega

topoi de diversos discursos, entre eles: βασιλικός λόγος e discurso de coroamento. A respeito do discurso do embaixador, o rétor recomenda que: Em caso de que tenhas de atuar como embaixador em favor de uma cidade em situação de desgraça, por uma parte tens de falar do mesmo que se tem dito antes para o discurso da coroa, mas, por ora, tens de ampliar em todo momento o sentido

das dos súditos nem em prestígio, nem em grandeza,

humanitário do imperador, dizendo que é bondoso

nem em formosura, coroando-te desta vez com palavras

e misericordioso com os necessitados e que, por

e com o diadema áureo (MENANDRO, II, 422, 5-15)

isso, a divindade o enviou à terra, porque sabia

Vejamos a semelhança deste trecho, guardadas as devidas proporções, com o fragmento presente em De Regno:

que era piedoso e que beneficiaria aos homens (MENANDRO, II, 423, 5-10).

Menandro

também

orienta

os

Cirene me enviou a ti para coroar tua cabeça de

leitores a elaborar dois tópicos importantes

ouro e tua alma, de filosofia; Cirene, uma cidade

sobre a caracterização da cidade natal: o

grega, nome antigo e venerável, mil vezes cantado pelos poetas de outrora; hoje, pobre e humilhada,

primeiro

baseado

na

ampliação

do

imensa ruína, e que pede ao rei a assistência

contrário, (MENANDRO, II, 423, 17) isto é,

eficaz

em um passado glorioso, farto e desprovido

que

parece

merecer

este

prestigioso

passado. Em sua aflição, que está no meu rosto, tu

de calamidades; o segundo consiste na

descrição detalhada (MENANDRO, II, 423,

255


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

20), em que, ao contrário do passado, o

1. προοίμιον ou prólogo apresenta

presente é marcado por desgraças e por

uma grande liberdade aos escritores no

um processo gradativo de decadência.

tocante à escolha do assunto. Entre as

Diante da descrição dessa situação de

fontes históricas do IV e V séculos, é

dificuldades, o rétor aconselha a inserir a

comum que o autor diga que seu discurso é

súplica do embaixador ao bom governante:

diferente

te pedimos, te suplicamos, caímos a teus

antecessores, ainda que o gênero seja o

joelhos, diante de ti estendemos os

mesmo. Trata-se, a nosso ver, de uma

ramalhetes de suplicantes (MENANDRO, II,

tentativa de demarcar a singularidade ou

423, 25-30), abordagem também mantida

especificidade da obra diante das demais;

por Sinésio (De Regno, 1056C).

artifício retórico que se encontra em ambos

Adicionado a isso, o rétor também

dos

escritos

por

seus

os discursos de Sinésio em análise, a

Em

um

modo

completamente

menciona (26) o discurso de convite -

saber:

κλητικός λόγος, em caso de convidar um

diferente,

governador a um festival e, por fim, (27)

entendê-lo,

προτρεπτικός

de

inteiramente divina, ela (a Filosofia) terá

συμβουλευτικών, discurso deliberativo com

para vós uma linguagem viril e digna e que

επιδεικτικών

repugna, ao preço de uma bajulação

λόγος, είδος,

uma modo

união de

ser

para

aqueles

com

que

uma

podem

excelência

sórdida, para comprar os favores de

encomiástico. retóricos

poderosos (De Reg.1053B); já em De

principalmente para descrição de pessoas

Providentia temos: Porque mesmo muitos

(laudandus) que constituem as narrativas

até agora, não encontraram problema

epidíticas foram catalogados pelo retor

filosófico determinado, espaço para uma

Os

Aftônio

principais

em

topoì

Προγυμνάσματα 6.

Pela

inspeção em nossa história fictícia (I, 1.2)

semelhança com o manual de retórica de

2. γένος descreve a descendência

Menandro e pelo caráter didático com que

imediata ou remota; neste topos pode-se

os topoí foram organizados, compomos a

também aludir à cidade, à província, à

lista a seguir:

nação

do

elogiado.

possibilidade 6De

acordo com o Dictionnaire Grec-Français (BAILLY,

s/d, p. 1631), Προγυμνάσμa é um vocábulo de sentido abrangente e significa exercício preparatório ou exercício

de eloquência. Trata-se, portanto, de uma obra que atende a fins práticos e não teóricos.

acontecimento

de

se

notório

Há referir

também a

a

algum

antecedente

ou

relacionado ao nascimento – γένεσις; 2.1 έθνος dirige-se à procedência étnica; em ambos os discursos de Sinésio

256


José Petrúcio de Farias Júnior

está bem clara a oposição do escritor

divina, oriunda da filosofia e as habilidades

diante do estrangeiro, concebido como

militares tangenciam a prática política do

objeto de desconfiança ou deslealdade.

imperador em ambas as narrativas.

2.2 πατρίς refere-se à pátria; em De

3.3 νόμοι simboliza a fidelidade aos

Regno, fala-se e louva-se Cirene (1056C);

costumes (mos maiorum) e, por extensão,

em De Providentia, o Egito ( I. 1.1).

às leis. Esse topos é importante para

2.3 πρόγονοι diz respeito à alusão aos antepassados;

compreender as diretrizes de legitimação do poder em Sinésio.

πατέρες

compõe-se

de

4. πραζεις (το μέγιστον κεφαλαιον) é

aos

Em

as

um dos tópicos mais importantes e comuns

narrativas do cirenaico, este é um locus

no gênero epidítico. Divide-se em duas

discursivo importante para consolidar o

categorias: ações que ocorrem em tempo

princípio

de guerra e ações que ocorrem em tempo

2.4 referências

pais.

dinástico

no

ambas

processo

de

legitimação do poder imperial. 3.

ανατροφή

de paz. Em geral, não são dispostas em às

ordem

De

menos uma das quatro virtudes socráticas:

Providentia, este topos localiza-se no

valentia, justiça, prudência e sabedoria

momento em que Sinésio discorre sobre as

(MENANDRO,

inclinações morais e culturais dos filhos do

entendido, as ações ou atividades do

rei egípcio Tauro com a finalidade de

elogiado

mostrar que suas ações contribuem para

comumente apregoada ao seu caráter.

identificação do caráter. (I, 2,3);

Sinésio manteve essa divisão em suas

circunstâncias

da

relaciona-se

juventude.

Em

cronológica

II,

e

congregam

373,

exemplificam

7-9). uma

pelo

Assim virtude,

3.1 επιτηδεύματα apresenta grande

narrativas: em De Regno, sinalizamos

variedade de definições e aplicações. Em

inicialmente as ações do imperador em

geral diz respeito à escolha de atividades

tempo de guerra, entre os capítulos 18 e

que possam revelar o caráter do elogiado.

21; em seguida, as ações do imperador em

Este topos envolve a πραζεις, isto é,

tempo de paz, entre os capítulos 22 e 30.

descreve, em linhas gerais, a ocupação

Em

política ou o papel social que o indivíduo

corresponde, a nosso ver, aos capítulos 05,

executa (BURGESS, 1902, p. 122).

12 e 13.

3.2 τéχνη denota um conhecimento, habilidade ou técnica adquiridos e que, portanto, pode-se exercer: a sabedoria

De

Providentia,

esse

topos

4.1 κατά ψύκην: sobre a alma. 4.1.1

ανδρεία

ou

coragem:

característica presente na representação

257


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

literária do imperador-soldado.

σύνκρισiς:

5.

4.1.2 φρόνησης ou prudência. Em

comparação

ou

sinaliza

contraste.

uma

Em

geral,

De Regno, Sinésio afirma ser a virtude que

espaço dedicado ao julgamento do escritor

mais caracteriza o bom governante (1064

sobre o objeto de elogio. Em muitas

C).

narrativas

encomiásticas,

De

como

4.2 κατά σώμα: sobre o corpo.

Providentia (I, 18 e II. 8) e De Regno, os

4.2.1 τάχος remete-nos à vivacidade

capítulos finais tornam-se um dos mais

do laudandus.

importantes para análise do ethos por meio

4.2.2 ρώμη reporta-se à força física, ao vigor do corpo.

de σύνκρισiς, haja vista a riqueza de juízos de valor legada pelo escritor, ora em

4.2.3 κάλλος ou beleza física

primeira pessoa, ora em terceira pessoa.

4.3 κατά τύχην: sobre a fortuna (destino, boa sorte), que se submete à

6. επίλογος pode ser traduzido como desfecho e sua forma e conteúdo, como o

providência divina em ambas as

προοιμίoν, depende do tipo de discurso e do tema escolhido. Em De Regno, por

narrativas sinesianas. 4.3.1 δυναστεία implica dominação, soberania e poder.

exemplo, Sinésio revela o desejo de cumprimento

4.3.2 πλούτος refere-se à riqueza (bens materiais)

de

suas

petições,

especialmente no tocante à compreensão do imperador acerca da representação

4.3.3 φίλοι ou, em latim, amici. Em

literária

do

monarca

ideal.

Em

De

De Regno (1072 A), os amigos do monarca

Providentia, o cirenaico deixa claro o

(geralmente

caráter preventivo com que organizou sua

imperiais)

seus

súditos

ocupam

uma

e

oficiais

posição

de

narrativa mítica, atributo de homens sábios.

destaque. Em De Providentia, o cirenaico

Assim, ambas incitam o interlocutor a

não se remete explicitamente à amicitia,

adotar posicionamentos que, sob a ótica de

mas sinaliza a identidade de caráter entre o

Sinésio, configuram-se como virtuosos.

monarca e seus amigos para contrastar com

a

relação

de

Tifo

com

seus

bajuladores 7.

Embora Sinésio não tenha dito explicitamente específico

que manual

fez

uso de

de

um

retórica,

reconhecemos que tais topoi são comuns a 7De

maneira semelhante, Dion de Prusa sugere a

muitos

manuais

da

Antiguidade,

de

semelhança, no âmbito das práticas morais, entre o

Aristóteles ( séc. V a.C) a Aftônio (séc. IV

monarca e seus súditos (“amigos”) na Oração 04, 42-45,

d.C). Certamente o tipo de discurso, os

83-85.

258


José Petrúcio de Farias Júnior

assuntos e as circunstâncias históricas

Whitmarsh

colaboravam para que houvesse uma

fortaleceu-se, entre os séculos IV e V, na

ênfase em um topos em detrimento de

parte oriental do Império, na esteira do

outro (WHITBY, 1998, p. 28) . No epitáfio,

fenômeno cultural e social denominado por

por exemplo, Menandro sugere que sejam

Filóstrato de Lemos, em Vida dos Sofistas,

empregados:

γένος,

γένεσις,

φύσις,

(2005),

o

elogio

retórico

de Segunda Sofística. Esse fenômeno, sob

άνατροφη, παιδεία, επιτηδεύματα, πράζεις,

a

τύχη, σύγκρισiς (I, 25-31), os quais se

entendido como uma prática discursiva -

assemelham, por sua vez, aos aplicados no

fomentada, em grande medida, por sofistas

desses

estudisos,

pode

ser

λόγος.

ou rétores - que se fortalece no Império

Importa-nos ressaltar que todos os topoi

romano oriental a partir do século I por

acima mencionados seguem os princípios

iniciativa do imperador Vespasiano (69-79

da excelência humana – αρεταί, termo

d.C) (PLEBE, 1978, p.79).

discurso

imperial

-

Βασιλικός

ótica

imbricado à concepção grega de paideia do período helenístico.

Para Anderson (1993, p. 17), duas características parecem ter sido constantes

Convém apenas reiterar que esses

no interior desse fenômeno: o helenismo,

manuais de retórica revestiam-se de uma

herdado do período arcaico e clássico, no

finalidade mais prática do que teórica.

interior do qual há constantes alusões aos

Whitmarsh (2005, p. 56) afirma que as

principais

tendências conservadoras desses manuais

fragmentos da história antiga; e uma

são contrabalançadas pelas demandas por

versatilidade que pode facilmente chegar

inovação e originalidade de pensadores

às raias da ambiguidade e do equívoco em

tardios, como mencionamos. Por essa

relação

deuses

aos

usos

da

mitologia

do

ou

passado 8.

a

O

razão, não podemos inferir que os manuais são uma evidência de uma cultura uniforme

8O

historiador Tim Whitmarsh (2005, p. 43) enfatiza, a

e congelada em normas ou regulamentos;

respeito do helenismo, mais uma conduta mantida por

cada escritor deve ser considerado um

muitos escritores romanos tardios que consiste em

pensador singular e ativo nos diversos

preservar o grego ático do século V a.C em suas composições como meio de denotar pureza cultural,

desdobramentos da retórica do elogio e do

tendência que não envolvia apenas o cuidado com a

aconselhamento.

seleção vocabular e com a sintaxe dos enunciados, mas

Para os estudiosos Laurent Pernot

também abarcava a postura, a fisionomia e a forma de se vestir do orador; o que, de certa forma, representava mais

(1993; 2006), Graham Anderson (1993),

uma estratégia de distinção, em nível retórico, do eu-

George

escritor diante dos outros. Advertimos, no entanto, para o

A.

Kennedy

(1994)

e

Tim

fato de que o cuidado com a manutenção da pureza da

259


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

historiador acrescenta que é comum, na

filosofia grega, especialmente de Platão e a

parte oriental do Império, que pensadores

excelência moral de gregos renomados do

romanos rememorem, em tom nostálgico, o

passado. Por isso, para o estudioso,

período clássico e isso se deve a uma

embora eles celebrassem e lisonjeassem

reação contra a impotência política das

imperadores e governadores romanos, e,

províncias orientais (1993, p. 101) e não

embora evitassem diretamente críticas a

uma resistência à administração imperial.

instituições políticas ou ao Cristianismo,

Dito de outra maneira, trata-se de um dos

seus

caminhos da sofística em, de um lado,

singular que pertence a eles, já que, como

concordar com a dominação política do

gregos, receberam-na por herança.

discursos

externam

uma

cultura

Império por sobre as províncias e, de outro,

Como se observa, tanto Anderson

mostrar que gregos, portadores de paideia,

(1993) quanto Kennedy (1994) enfatizam o

poderiam se acomodar ao Império, ou

caráter nostálgico com que o passado

melhor,

clássico era recuperado por escritores

a

sua

estrutura

político-

administrativa. O rótulo Segunda Sofística

tardo-antigos,

passa a designar, nesses termos, os

pensadores em diferentes províncias da

reflexos de uma glória emprestada do

parte oriental do Império compartilhassem

século V a.C. aos séculos iniciais da era

um sentimento patriótico comum que os

cristã (1993, p. 243).

singularizassem e os impulsionassem a

Para

o

historiador

George

A.

Kennedy (1994, p. 232), a mensagem

como

se

diferentes

retornar ao passado para manifestar as glórias de seu povo sob o Império 9.

legada por esses pensadores representava

Ao

contrário,

defendemos,

a

a expressão dos valores tradicionais da

despeito de qualquer sentimentalismo, que

cultura helênica em um período dominado

fragmentos do passado se acomodavam

pela

suas

muitas vezes posicionamentos político-

inclinações político-culturais e, mais tarde,

culturais de autores tardo-antigos, isto é,

pela ameaça do Cristianismo; valores que

estavam

incluíam, por exemplo, o idealismo da

propósito de suas obras no momento da

língua,

9Laurent

administração

referente

ao

romana

modelo

ático

e

não

é

uma

diretamente

relacionados

ao

Pernot (2006, p. 33) reitera que o complexo tema

particularidade do que chamamos de Segunda Sofística,

da identidade grega no Império romano é um dos

mas uma recomendação já presente em manuais de

assuntos mais frequentemente abordados, nestes dois

retórica como se vê em Perì hermenéias de Teofrasto

últimos decênios o que deu lugar a vários trabalhos

(372-287 a.C).

investigativos.

260


José Petrúcio de Farias Júnior

escrita. Isso explica o motivo pelo qual o

poder do divino; eles se reuniam como

recorte

de

acontecimentos

membros da elite educada - πεπαιδευμένοι,

gregos,

no

período

históricos tardio,

comumente para demonstrar e exercitar

incorporava diferentes abordagens a fim de

seu status, examinavam seus pares sobre

que atendessem a diferentes propósitos

como suas reputações foram construídas

enunciativos.

palavras,

ou enfraquecidas, testando o papel da

defendemos que o recorte de fragmentos

cultura helênica tradicional no interior de

históricos e mitológicos do passado denota

um

mais um resultado da aplicação de artifícios

aristocrática imperial.

Em

romano

outras

ambiente

exigente

da

cultura

retóricos previstos em manuais de retórica

Whitmarsh (2005, p. 05) adverte-nos

para atender aos propósitos do discurso

ademais para o fato de que a atribuição da

que

à

expressão Segunda Sofística a Filóstrato

desses

nos proporciona a falsa impressão de que

muitas

vezes

representatividade

se

relacionava

política

escritores diante de seus pares do que

refletimos

somente um fator de identidade política sob

Império romano a partir de suas próprias

o império.

categorias, como se nossa leitura fosse

Concordamos, dessa forma, com as considerações

do

historiador

Tim

sobre

práticas

culturais

do

inflexível às demandas culturais específicas atuais

da

academia.

Diante

disso,

Whitmarsh (2005, p. 03) para quem é difícil

cogitamos a possibilidade de a ênfase que

para

historiadores contemporâneos atribuem à

nós,

historiadores

modernos,

compreender a importância cultural dessa

expressão

prática discursiva sem recorrer a paralelos

apenas um anseio nosso em categorizar e

muitas

simplificar uma prática discursiva complexa

vezes

populares,

enganosos: eventos

festivais esportivos,

cunhada

por

Filóstrato

ser

dos anos iniciais da era cristã.

manifestação de agrupamentos religiosos e

Julgamos ser pouco provável que

formas de devoção íntimas e exacerbadas,

pensadores tardo-antigos como Libânio,

experiências de misticismo, modelos de

Temístio

homem

partícipes

divino

dotados

de

poderes

e

Sinésio desse

se

vissem

movimento

como literário

sobrenaturais, relações com o platonismo,

idealizado por Filóstrato ou que tivessem

judaísmo e cristianismo, entre outros. Os

consciência dele. Pensamos que não haja

espectadores, em eventos antigos, não

problemas em se apropriar de um termo

exercitavam

seus

direitos

consumistas

sobre o tempo livre ou testemunhavam o

antigo

e

reutilizá-lo,

desde

que

esclareçamos as limitações semânticas do

261


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

termo em uso e expliquemos de que

cultural multifacetado que abarca no limite

maneira as injunções de nosso tempo

quatro séculos e diferentes províncias

contribuem

determinadas

romanas orientais sob a égide de uma

práticas culturais. Enfim, questionamos a

vertente interpretativa que alinha discursos

viabilidade

com propósitos distintos.

para de

reler

envolver

um

fenômeno

Referências: ANDERSON, G. The Second Sophistic: A Cultural Phenomenon in the Roman Empire. London and New York: Routledge, 1993. APHTHONII SOPHISTAE. Progymnasmata Rhetorica. Intérprete Rodolfo Agrícola Phrifio. USA: Duke University Libraries, (s/d). ARISTÓTELES. Retórica. Trad. Quintín Racionero. Madrid: Gredos, 1990. BAILLY, A. Grec-Français.Paris: Hachette, 1950. BURGESS, T. C. Epideictic literature. Dissertation(Doctor of Philosophy) – Faculties of the Graduate Schools of Arts/ University of Chicago, 1902. CASSIN, B. Consenso e criação de valores- o que é elogio? In: CASSIN,B. & LORAUX,N. & PESCHANSKI,C. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Gregos,

bárbaros, estangeiros: a cidade e seus outros. RJ: Editora 34, 1993. KENNEDY, G. A. A new history of Classical Rhetoric. New Jersey: Princeton University Press, 1994. MENANDRO. Dos tratados de retórica epidíctica. Tradução de Manuel García García e Joaquin Gutiérrez Calderón. Madrid: Biblioteca Clásica Gredos, n.225, 1996. PERNOT, L. La rhétorique de l’éloge dans le monde gréco-romain: historie et technique. Tome I et II. Paris: Collection des Études Augustiniennes, 1993. PONCE, M. J. Menandro rétor y el discurso imperial. HABIS, n.29, p.221-72, 1998. SYNÉSIOS DE CYRÈNE. (De Regno) Les discours sur la royauté. In: LACOMBRADE, C. Le discours sur la royauté de Synésios de Cyerne à l’empereur Arcadios. Paris: Les Belles Lettres, 1951 SYNESIUS OF CYRENE. De Providentia: Egyptians or, on providence. In: CAMERON, Al. & LONG, J. Barbarians and Politics at the Court of Arcadius. Berkeley: University California Press, 1993. WHITMARSH, T. The Second Sophistic. Oxford, New York: Oxford University Press, 2005.

262


A ATUAÇÃO DO BISPO MARTINHO DE BRAGA NA ORGANIZAÇÃO DA IGREJA GALEGA: AS RELAÇÕES COM O REINO SUEVO E A RELIGIOSIDADE POPULAR (SEGUNDA METADE DO SÉCULO VI). Juliana Bardella Fiorot 1 Resumo : O período posterior a queda do Império Romano do Ocidente apresentou-se como um desafio para a Igreja Católica. Com as invasões bárbaras, somadas as mudanças geopolíticas de território e o paganismo arraigado principalmente entre as populações rurais, a Igreja perdeu grande parte do seu prestígio e se viu em uma encruzilhada: era necessário adaptar-se aos novos tempos ou sucumbir as recentes transformações. Desta forma, pretendemos abordar as relações entre Igreja, Religiosidade Popular e Monarquia Sueva na Galiza durante a segunda metade do século VI. A partir de uma revisão e análise da bibliografia específica que foi selecionada para este estudo, daremos uma atenção especial aos desafios enfrentados pela Igreja a fim de se adaptar a nova configuração espacial e política após a queda do Império bem como as frentes de ação desenvolvidas por esta instituição eclesiástica visando a sua reorganização e consolidação, destacando a figura do bispo Martinho de Braga que foi extremamente atuante neste processo. Palavras-chave: Martinho de Braga; Monarquia Sueva; Religiosidade Popular.

1Mestranda

(Unesp/Assis).

263


Juliana Bardella Fiorot

Após a chegada dos bárbaros na

da Igreja tanto no âmbito moral quanto no

Península Ibérica e o crescente processo

financeiro e ainda serviriam de exemplo

de ruralização que transformou os rumos

para o povo ao estarem professando a

econômicos e sociais pós queda do Império

“verdadeira

Romano, assistimos ao padecimento da

população também seria benéfica aos

Igreja Católica. Esta, que havia obtido

governantes, visto que esta possibilitaria a

sucesso ao efetuar suas pregações no

coesão

âmbito urbano entre os segmentos médios

significativamente para a concretização da

e inferiores durante o Império, via-se agora

unidade política do Reino Suevo 2. Neste

em uma nova situação. Com a emergência

processo de organização da Igreja galega

do campo seria necessário alterar as

destacamos a figura de Martinho de Braga.

estratégias

Pretendemos discutir a seguir as principais

para

atingir

as

massas

fé”.

da

A

evangelização

religião

da

contribuindo

camponesas e a nova aristocracia que

ações

estava se formando com o assentamento e

mosteiro

organização

instrumentalização do clero (enfocando as

dos

reinos

germânicos

(ANDRADE FILHO, 2012, p. 46).

desenvolvidas de

pelo

Dume,bem

bispo

no

como

na

discussões sobre a disciplina religiosa no

Especificamente no território galego,

Primeiro e Segundo Concílios de Braga),

cenário de nossa pesquisa, nota-se que os

evangelização das populações ruraise a

problemas enfrentados pela Igreja eram

relação próxima do bispo com o monarca

diversos, impossibilitando a reorganização

suevo Miro.

e

fortalecimento

aponta

Silva

da

instituição.

Como

Ao chegar a Galiza, Martinho teria se

(2008,

p.208):

“Neste

estabelecido em Dume onde um mosteiro

contexto, destacaram-se as dificuldades inerentes ao débil grau de cristianização da Galiza

e

à

funcionamento

não regular

manutenção das

do

instâncias

eclesiásticas”. A Igreja, desta forma, começa a

2

Os suevos teriam penetrado na Península Hispânica no

ano de 409, tendo sobrevivido do saque por um longo período, o que dificultou a fixação em um território. Relegados as zonas mais pobres do noroeste, com centro em Braga, expandiram seus territórios desde o oeste ao sul com seus primeiro monarcas – Hermerico, Réquila e Requiário. Entretanto, após um período de estabilidade e

articular estratégias eficazes para frear o

governança

avanço do paganismo, sendo a aliança

setentrional o reino sofre o ataque de Leovigildo,

dos

monarcas

soberano visigodo, que em

suevos

na

Hispânia

576, tenta unificar os

com os monarcas um fator extremamente

territórios hispânicos sob o credo ariano. Assim o Reino

significativo neste processo, uma vez que

Suevo cai em mãos visigodas. A partir de então, podemos

estes apoiariam as ações evangelizadoras

considerar o fim do Reino Suevo com a anexação de seu último território ao Reino Visigodo em 585.

264


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

seria

construído

através

de

recursos

escritório para a confecção de cópias de

financeiros obtidos junto aos monarcas.

códices e, obviamente, seminário para

Foi nomeado abade do mosteiro e tratou de

monges e sacerdotes. A Igreja, desta

transformar o mesmo em uma espécie de

forma, possuía o monopólio do ensino e

escola, onde a instrumentalização do clero

visava a uniformidade de comportamento

seria feita através do aperfeiçoamento

dos membros do clero. Com a morte do

doutrinal e leitura e análise de obras

bispo Lucrécio, metropolitano de Braga,

latinas. Martinho não teria formulado uma

Martinho assume também esta nova função

regra monástica a ser seguida pelos

acumulando os cargos de abade e bispo 3.

clérigos no mosteiro, mas trabalhou na

Com relação ao Primeiro e Segundo

tradução de partes do manuscrito sobre a

Concílios

Vida dos Padres do Deserto que acabaria

convocados

servindo

ensinamentos

Teodomiro (559-570) e seu filho Miro (570-

necessários. Esta obra, originalmente em

583). Embora estas reuniões não tivessem

língua grega, teria sido trazida do Oriente

como prioridade satisfazer os interesses

pelo próprio Martinho. A Vida dos Padres

régios

do Deserto abordaria questões como a

Monarquia Sueva possuía uma relação

penitencia,

pobreza,

próxima com a Igreja, podendo interferir

trabalho manual e outros tantos temas

nas mais diversas situações relativas a

relacionados a doutrina e os ensinamentos

organização religiosa na Galiza.

de

base

caridade,

aos

oração,

elas

de

Braga

estes

foram

respectivamente

por

nos

demonstram

que

a

dos abades egípcios. Este manuscrito teria

Importante observarmos a data de

se espalhado pelos demais mosteiros que

realização dos concílios. Sabemos que os

integravam a Galiza o que garantiria uma

mesmos foram realizados respectivamente

homogeneidade

e

nos anos de 561 (Primeiro Concílio de

doutrina entre os eclesiásticos da região.

Braga) e 572 (Segundo Concílio de Braga),

Os

portanto em um

mosteiros

possuíam

um

de

comportamento

fundados caráter

por de

Martinho

intervalo de onze anos

instituição

tivemos a segunda edição com um maior

bizantina e foram organizados no mesmo

número de participantes (oito bispos no

estilo dos monastérios orientais; estes

primeiro concílio e doze no segundo). Isto

ainda configurar-se-iam como modelo para os

futuros

monastérios

medievais

3

Embora não tenhamos como precisar a data correta da

possuindo diversas funções, tais como

elevação de Martinho a bispo de Braga, sabe-se que esta

escola, centro hospitalar e de caridade,

ocorreu a partir de 572 quando as atas do II Concílio de Braga o indicam como metropolitano desta sede.

265


Juliana Bardella Fiorot

nos mostra um fortalecimento da Igreja

Igreja da Galiza neste período procurou

local empenhada em combater as diversas

demonstrar nas atas sua segurança com

manifestações

relação aos problemas da fé na região:

religiosas

presentes

na

Galiza, tais como o paganismo e o priscilianismo, além de reforçar as regras de conduta do clero, o que garantiria uma homogeneidade no comportamento destes.

“Y puesto que con el auxilio de la gracia de Cristo, no existe afortunadamente ningún problema en esta província en torno a la unidad de la fé (...)”. – Segundo Concílio de Braga, 02.

Notamos

que no intervalo entre os

Para Silva (2007, p.211) “o segmento

dois concílios os problemas relativos aos

episcopal institui regras e busca garantir o

demais

cumprimento do estabelecido, condição

aparentemente já não se configuravam

necessária a sua coesão, estabilidade e

como um empecilho para a Igreja. Este fato

fortalecimento”.

demonstra

Entre as regras estabelecidas pela Igreja

nos

destacamos

concílios a

citados

preocupação

acima, com

o

credos

praticados

uma

na

controvérsia:

região

se

não

existiam problemas relativos a fé na Galiza deste período,

qual a necessidade da

realização de um concílio?

priscilianismo. No Primeiro Concílio de

Em primeiro lugar, verificamos que as

Braga dos vinte e dois cânones que

atas do Segundo Concílio abordaram a

integram as atas, dezessete referem-se ao

questão

priscilianismo, inclusive estipulando penas

comportamento

aos clérigos infratores que compactuarem

demonstra ser um problema relativo a

com esta doutrina. O restante das atas

unidade

tratam do modo comum como os bispos

comportamentos

deveriam se cumprimentar, a maneira

membros que faziam parte do corpo da

correta do uso da estola, as formas de

Igreja. Observamos que as preocupações

conduzir

discutidas nas atas demonstram serem

uma

missa

e

um

batizado,

comportamento em caso de mortes, etc. Com relação ao Segundo Concílio de Braga,

presidido

pelo

bispo

da

homogeneidade do

da

praticamente

clero,

fé,

as

o

pois

discrepantes

mesmas

de

que

notamos entre

os

apontadas

durante o Primeiro Concílio. O enfoque

Martinho,

maior se deu na proibição de que os bispos

destacamos que as atas se compuseram

não recebessem nenhum dinheiro por

de dez cânones sendo anexados a estes

desempenharem suas funções como, por

os Capitula Martini que focam na questão

exemplo, nas cerimônias de crisma ou nos

da instrução clerical, principal assunto

batizados.

abordado no concílio. Salientamos que a

266


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

A respeito dos Capitula Martini, texto

proporcionar aos seus adeptos a salvação

voltado para a instrução clerical e que foi

eterna pregada pela Igreja, sendo esta a

anexado as atas do Segundo Concílio de

única que possuiria o verdadeiro credo.

Braga, atentamos para o fato de que este

Para

traz diversas recomendações aos cristãos

divindades romanas e célticas seriam

e clérigos em geral a fim de evitar a feitura

demônios que agora habitavam os mares,

das práticas pagãs em seu cotidiano. Como

as fontes, os rios e as florestas, justamente

exemplo podemos apontar a proibição aos

os lugares e elementos cultuados pelos

clérigos de realizar encantamentos ou

habitantes da Galiza. Martinho de Braga

ligaduras, celebrar missa diante de túmulos

frisa ainda que a preocupação dos galegos

ou levar alimentos aos falecidos, celebrar

deveria ser com a salvação de suas almas

as festas das calendas, recorrer a ervas

e não com as dificuldades do mundo.

medicinais, observar o curso da lua ou das

Assim, observamos que uma das maneiras

estrelas, etc.

utilizadas pelo bispo para afastar estas

A galega

evangelização por

essencial,

Martinho já

que

da

população

de

Braga

estas

era

pessoas

o

bispo

de

Braga

as

antigas

pessoas de sua religiosidade, era fazê-los pensar em sua salvação e não em seus problemas diários.

representariam fiéis em potencial que iriam

Após estas reflexões constatamos

aderir ao projeto de unidade católica ao

que o processo de organização da Igreja

professarem a nova fé. Seu esforço pela

constituiu-se como uma tarefa árdua. O

evangelização

obra

problema da religiosidade popularainda se

extremamente conhecida escrita pelo bispo

arrastará por séculos na Galiza e não será

e intitulada “De correctione rusticorum” (Da

efetivamente erradicado. No entanto, o

correção dos rústicos).

Este sermão foi

próprio relaxamento do clero, nas mais

escrito por volta do ano de 572 a pedido de

diversas situações, como exposto acima,

Polêmio, bispo de Astorga, que teria

nos indica a falta de preparo da Igreja para

solicitado a Martinho instruções sobre a

a tarefa da evangelização. Para que a

correção dos “rústicos”. O objetivo de

unidade religiosa fosse alcançada um

renderá

uma

Martinho era frisar que as práticas pagãs estavam sob o patronato do mal, portanto a religiosidade popular 4 nunca seria capaz de

conteúdo preciso, e nem sempre é aceita e compartilhada pacificamente por todos os estudiosos.“(...) A religiosidade humana, no sentido mais amplo da palavra, tem fontes profundas e variadas, que coincidem com a condição

4

Segundo Oronzo Giordano a expressão “religiosidade

popular” carece de um significado unívoco, de um

existencial do homem e implicam na questão do seu próprio destino.” (1983, p.10-11)

267


Juliana Bardella Fiorot

respaldo político era necessário, mas não

era necessário que este se tornasse um rei

suficiente

deste

idealizado, isento de vícios e repleto de

objetivo. Seria necessária uma reforma

virtudes. A atuação da Igreja Católica no

dentro da própria Igreja como atestaram as

Reino Suevo vai buscar fortalecer a ideia

atas conciliares e as diversas ações

de que a monarquia seria uma incumbência

desenvolvidas pelo bispo de Braga.

oferecida por Deus ao soberano; assim a

para

a

concretização

Por fim, destacaremos a atuação de

Igreja

tentaria

relacionar

as

esferas

Martinho na escrita de obras dedicadas ao

celestiais com o governo terrestre no qual

rei Miro, que segundo a tese defendida

todos os males provinham do desprezo aos

pela pesquisadora Leila Rodrigues da

preceitos divinos (ANDRADE FILHO, 2012,

Silva, configuraram-se como um modelo de

p. 134). Martinho de Braga dedicou-se a

monarca

pelo

escrita de várias obras visando indicar a

governante suevo. No entanto, devemos

Miro, governante germano, um modelo de

nos

a

monarca ideal segundo os critérios do

os

cristianismo. Silva (2008, p.102) analisa os

governantes do Reino Suevo e os motivos

objetivos de Martinho com a escrita das

que teriam levado Martinho de Braga a

obras que compunham o modelo de

escrever.

monarca:

cristão

perguntar

intenção

da

a

ser

seguido

primeiramente Igreja

em

qual

moldar

Durante o século V a imagem do rei suevo era a de um líder guerreiro, capaz de garantir a segurança e a prosperidade do reino.

Ele

conduziria

as

batalhas,

negociaria quando fosse preciso e por fim conquistaria e defenderia seus territórios. Assim sendo, na história do Reino Suevo os critérios para legitimação do governante sempre foram baseados na valorização do elemento militar e na hereditariedade, critérios estes que não se mostravam suficientes

para

a

Igreja.

Para

esta

instituição religiosa a efetivação da unidade política do monarca deveria estar em conformidade com o cristianismo. Portanto,

“(...) Martinho ressaltou também a ideia de que cabia ao monarca um comportamento capaz de suscitar o respeito e a admiração de todos aqueles que o cercavam. Estas pessoas deveriam, pois, reconhecê-lo como uma referencia de conduta. Dessa

forma,

buscava-se

não

apenas

a

preparação de um governante de valores com o modelo apresentado, mas também a introdução de valores para o homem comum, cujo exemplo a ser seguido contribuiria para a cristianização”.

Martinho de Braga representou o auge da atuação eclesiástica no âmbito da política ao propor o modelo de monarca. Assim, o espaço de atuação da Igreja cresceu a medida que os eclesiásticos acumularam a função de conselheiros do monarca.

268


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Dentro

do

ressaltamos

que

corpus

Martiniano

que

dedicadas

próxima e que pode ser comprovada pela

visando um modelo de monarca são:

troca de correspondências que se efetuava

Formula

Exhortatio

entre os dois com certa frequência (grifo

humilitatis, Pro repellenda iactantia e De

acima). Poderíamos supor ainda que entre

superbia. O modelo de monarca, proposto

o metropolitano e o monarca Miro haveria

pelo bispo de Braga não encontrava-se,

uma relação que não se restringia somente

portanto, em apenas uma obra. Martinho

ao âmbito formal. Para Leila Rodrigues da

dedicou-se a discorrer uma série de

Silva (2008, p.98) a elaboração de quatro

escritos tendo como objetivos principais

obras por Martinho de Braga dirigidas ao

expor a ideia de um rei como homem

monarca Miro seriam evidências plausíveis

cristão integral, cujo exemplo de vida

de que entre os dois haveria um vínculo de

deveria ser seguido pelo restante da

amizade. Silva ainda reforça sua teoria a

população, além de uma concepção moral

partir

de monarquia.

Formula Vitae Honestae no qual, segundo

as

Vitae

obras

Honestae,

ambos

de

mantinham

um

fragmento

uma

relação

presente

na

Na maioria de seus escritos o bispo

a autora (SILVA, 2008, p.98), Martinho de

dedicava as linhas iniciais para referir-se a

Braga tece um elogio simples a Miro, mas

pessoa a quem a obra estava sendo

que demonstraria a cumplicidade entre o

dirigida. Com relação a Formula Vitae

tutor e seu pupilo: “No he escrito este libro

Honestae notamos que esta foi escrita a

de modo particular para tu instrucción,

partir de um pedido do próprio rei Miro a

siendo natural en ti la sagacidad de la

Martinho de Braga:

sabiduría (...)” (MARTIN DE BRAGA, 1990,

“No ignoro, Rey clementísimo, que la ardentísima sed

de

tu

espíritu

procura

permanecer

insaciablemente en las copas de la sabiduría, y

IV, p.157). Em Formula Vitae Honestae quatro

que andas ansiosamente en busca de las fuentes

características principais são elencadas por

de donde manan las águas de la ciência moral. Y

Martinho e que deveriam ser seguidas pelo

por eso, muchas vezes estimulas a mi pequeñez con tus cartasa que escribiendo con frecuencia

rei suevo. Destacamos: a prudência, a

alguna carta a tu alteza, te dirija algunas palabras

magnanimidade, a continência e a justiça.

bien sean de consuelo o de exhortación” (MARTIN

Estas seriam as quatro virtudes primordiais

DE BRAGA, 1990, I, p.157).

A

partir

do

fragmento

acima

observamos que o fato de Miro ter pedido instruções a Martinho de Braga nos indica

que garantiriam a honradez e os bons costumes do rei. Com relação a prudência, o bispo de Braga aconselha o monarca a ser prudente

269


Juliana Bardella Fiorot

em suas decisões. Em caso de dúvida o rei

excesso deveria ser evitada. Em situações

não deveria apressar-se para emitir um

difíceis o monarca deveria optar pelo

parecer sobre determinado assunto. O

perdão ao invés da vingança, mantendo

governante teria que refletir sobre suas

assim a serenidade e uma conduta honrosa

possibilidades para pensar nas resoluções,

(SILVA, 2008, p.111).

pautando-se sempre na razão e não na

O conceito de continência (também

dúvida. Seria necessário refletir sobre o

denominado de temperança por Martinho)

passado para tomar as decisões corretas

é a virtude que o bispo discorre com mais

no

erros

amplitude. Para ele a continência tem uma

anteriores), que por sua vez influenciaram

função que regularia a vida pessoal e social

o futuro do reino. Um monarca prudente é

do monarca. Com relação a primeira

aquele

aos

Martinho frisa que o governante deve cortar

acontecimentos porque os prevê e os

aquilo que for supérfluo e moderar seus

pressente,

seria

desejos, desta forma ele bastaria a si

surpreendido por qualquer fato. Todas as

mesmo.Procurando guiar o monarca em

conseqüências já teriam sido pensadas por

aspectos simples do seu cotidiano o bispo

ele anteriormente no momento da tomada

indica qual tipo de comportamento ele deve

de decisões. O governante deveria ainda

sustentar para atingir a continência. Com

ter precaução ao emitir suas opiniões a

relação a alimentação, por exemplo, o

alguém ou sobre algo e duvidar dos

conselho dado pelo bispo é que o monarca

elogios. O bispo aponta ainda para o efeito

sente-se a mesa apenas para saciar sua

negativo que o excesso de prudência

fome, não para seu deleite. Desse modo

poderia ocasionar: um rei extremamente

haveria um esforço por parte do rei para

prudente

afastar tudo aquilo que lhe proporcionasse

presente

(evitando

que

violento, qualquer

se

portanto

tornar-se-ia estando pessoa

cometer

antecipa nunca

desconfiado

disposto

a

e

acusar

baseando-se

em

argumentos fracos.

prazer:

“Pon

concupiscencia

freno y

y

límite

rechaza

a

todos

tu los

halagos que arrastan consigo placer oculto.

No que se refere a magnanimidade o

Come sin llegar a la indigestión, bebe sin

bispo ressalta a coragem e a clemência

embriagarte”. (MARTIN DE BRAGA, 1990,

como necessárias a um bom governante.

II, p.157).

Miro, não deveria guiar-se somente pelos seus

impulsos

guerreiros;

a

coragem

deveria ser prezada, mas a astúcia em

A continência regulando a vida social do

monarca

sugere,

tal

como

a

magnanimidade, uma conduta serena, na

270


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

qual os impulsos deveriam ser evitados

capacitado a ajudar a todos procurando

para que a moderação se fizesse presente

não prejudicar ninguém:

durante o governo. Além disso, Martinho frisa que o rei deve ter cautela com os falsos elogios recebidos, não permitindo que estes influenciassem nas decisões de seu

governo.

também

uma

preocupação em elencar alguns cuidados que o monarca deveria ter no seu convívio social, tais como: não ser falso e fingir atitudes que não seriam próprias do seu ser somente para agradar os demais, discrição em suas atitudes e vida pessoal, moderação

na

linguagem

empregada,

compreensão nas mais diversas situações, dentre outros. A justiça,na concepção do bispo de Braga,se vincularia ao divino, sendo o rei um instrumento da vontade de Deus procurando ser justo com a população do reino

e

punindo,

quando

necessário,

aqueles que prejudicassem a harmonia política e social. Martinho questiona o que seria a justiça e chega a conclusão de que ela é uma convenção social que tem como objetivo garantir a ajuda mútua entre os homens, no qual os direitos de cada um seriam respeitados. Ela não seria ainda uma instituição criada pelos mortais, mas uma lei divina estando acima até mesmo do rei. Para que o governante fosse capaz de exercer a justiça primeiramente ele deveria

amar

a

Deus,

assim

estaria

“Todos aquellos, por consiguinte, que deseáis practicarla, ante todo temed a Dios y amadlo, para que seáis amados por Dios. Serás amable a Dios si ló imitas en querer favorecer a todos y no perjudicar a ninguno. Entonces todos te llamarán varón

justo,

te

seguirán

venerarán

y

amarán”(MARTIN DE BRAGA, 1990, II, p.157).

No caso da justiça, aplicada aos galegos

que

não

partilhavam

do

cristianismo, o monarca foi considerado um instrumento de autoridade pelo bispo de Braga, como atesta Leila Rodrigues da Silva (2008, p.119): “No caso do Reino Suevo, sabemos que a religiosidade

das

populações

visadas

pelo

processo de cristianização abarcava, sobretudo entre os habitantes do meio rural, práticas priscilianistas e pagãs. Assim, ao sublinhar a validade da justiça cristã para os que não compartilhavam da fé católica, Martinho conferia a Miro um instrumento de ação junto a todos os habitantes do reino, indiscriminadamente. Em outras palavras, oferecia-se ao monarca suevo, desde que estivesse pautado no conjunto de orientações presente nas obras a ele dirigidas, um importante instrumento ideológico de reforço a legitimação de sua autoridade”.

Ao contar com o apoio da monarquia a Igreja poderia impor pela força aquilo que não teria sido difundido pela palavra. A religião cristã apareceria como elemento de coesão do corpo social em uma época na qual tentava-se amenizar os efeitos da presença do sagrado que eram constantes na mentalidade do período (ANDRADE FILHO, 2008, p. 194).

271


Juliana Bardella Fiorot

Assim como as virtudes anteriormente abordadas são de extrema importância

corazón y manifestar outra con la boca.” (MARTIN DE BRAGA, 1990, III, p.88).

para a modelagem do monarca suevo,

O

governante

teria

ainda

que

destacamos ainda a humildade presente na

considerar que todos os resultados obtidos

Exhortatio humilitatis. Esta obra, de cunho

no reino seriam frutos da ação divina e que

essencialmente cristão, é a que mais se

seu poder inclusive lhe havia sido dado por

destaca dentro do corpus martiniano ao

Deus, portanto, qualquer tipo de elogio ou

exaltar

como

agradecimento dedicado ao rei suevo

essenciais para a constituição de um

deveria ser reconhecido como obra divina:

monarca

o

“Por tanto, la sola humildad de corazón que

governante somente alcançaria o modelo

se declara débil es la que todo lo puede y

proposto por Martinho se suas atitudes

la

estivessem inseridas em um ambiente

atribuyéndoselo simpre a Dios y no a si

marcado

próprio(...)” (MARTIN DE BRAGA, 1990,

os

preceitos

ideal;

pela

cristãos

consequentemente

religião.Cristo

seria

o

exemplo de comportamento e virtudes que deveria

inspirar

o

monarca

em

seu

que

todo

lo

obtiene

de

Dios,

VII, p.90). De maneira geral os princípios que norteiam a Exhortatio humilitatis referem-se

cotidiano e governo. Um monarca humilde deveria se

a um comportamento cristão que deveria

subordinar a Deus. Sendo instrumento de

ser cultivado pelo monarca tendo como

sua

deveria

eixos principais a subordinação ao poder

obedecer os mandamentos e influenciar

de Deus e atribuição a potência divina de

seus súditos com um bom modelo de

todos os feitos gloriosos de seu governo.

comportamento. Para alcançar a humildade

Assim,

plena o monarca prezaria ainda pela

sobretudo agradecer a Deus e buscar

verdade vista como essencial para a

valorizar

harmonia do reino. Portanto, o governante

honesto com seus súditos.

vontade

o

governante

deveria sempre optar por dizer a verdade

o

monarca sempre

a

humilde verdade,

deveria sendo

No que se refere as obras Pro

em qualquer tipo de situação, já que para

repellenda

iactantia

Martinho seria uma grande falta perante

atentamos para o fato de que estas não

Deus se o rei optasse pela mentira: “[...]

caracterizam as virtudes necessárias ao

grande y detestable falta ante los ojos de

bom monarca, mas sim os vícios que

Dios consiste en tener una cosa en el

deveriam ser evitados por este e que se

e

De

superbia

opunham as virtudes cristãs, inviabilizando

272


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

assim o alcance pleno do perfil de monarca

As

guerras

sempre

marcaram

a

elaborado por Martinho. Assim como em

história do povo suevo bem como o perfil

Exhortatio humilitatis Martinho enfatiza

dos monarcas, que eram reconhecidos por

nestas duas obras que a subordinação a

suas gloriosas conquistas. Desta forma, o

Deus e o reconhecimento do poder Deste

fato de Martinho ter se dedicado a discorrer

seriam de suma importância para que o

brevemente sobre a belicosidade nesta

modelo de monarca fosse alcançado com

obra

sucesso. Um monarca soberbo e jactante

preocupação do metropolitano diante da

não estaria valorizando a potencia divina e,

possibilidade de Miro desenvolver uma

repleto de orgulho e vaidade, consideraria

conduta marcada pela jactância ao atribuir

que todos os feitos gloriosos de seu

as glórias até então obtidas pelos suevos

governo eram advindos somente do seu

aos seus antepassados e a ele próprio

sucesso

(SILVA, 2008, p.130).

como

governante.

Martinho

pode

ser

como

uma

O critérios da

valorização militar e da hereditariedade,

ressalta: “Los reyes sueñan con poder lo que Dios puede. Y de este modo, buscando ser más de lo que son, roban hostilmente la gloria de la alabanza que en

que estavam presentes na monarquia sueva desde seus primórdios, não eram

realidad tan solo se le debe a Dios” (MARTIN DE

considerados

BRAGA, 1990, II, p. 75).

integrar o

O bispo de Braga também faz menção ao caráter guerreiro típico dos suevos. Sendo a atividade bélica tradicional entre este povo Martinho tratou de fazer suas ressalvas

justificada

quanto

ao

excesso

de

importância dada a esta, assim como a impetuosidade de seus líderes que muitas vezes atribuíam suas vitórias a si próprios, quando deveriam reconhecê-las como fruto da ação divina: “Finalmente, el mismo soldado, cuando una vez que ha tomado las armas y se va a la batalla,

estas

como

suficientes

para

perfil de um monarca cristão;

características

estariam

em

conformidade somente com um monarca germano. No trecho acima notamos que o bispo trata do assunto com uma certa carga de negatividade. Talvez seu objetivo fosse depreciar o passado de conquistas dos suevos que deveria ser esquecido para que uma nova conduta no reino fosse desenvolvida. Na obra De superbia, Martinho frisa principalmente os prejuízos que o monarca

desconociendo para quien se va a inclinar la

teria caso se desviasse de sua conduta e

victoria, con una presuntuosa arrogância de sua

dos preceitos cristãos. Segundo ele Deus

valentia, va tan ufano como se fuese ya vencedor” (MARTiN DE BRAGA, 1990, V, p.77).

abandonaria

o

monarca

deixando-os

perecer

no

e

seu

reino

pecado.

273

O


Juliana Bardella Fiorot

metropolitano

a

castigadas. No caso de Miro, este poderia

soberba como um tumor, ressaltando que

perder seu trono, pois só teria se tornado

este sentimento faz com que os homens

rei e alcançado bons frutos no seu governo

desejem ser Deus: “Este tumor de la

pela intercessão de Deus. Novamente o

soberbia,

bispo

por

chega

el

a

caracterizar

contrário,

se

dirige

alerta

o

governante

para

as

propriamente contra Dios, y por eso lo

vantagens de se posicionar de acordo com

considera como enemigo, puesto que

os preceitos divinos. Tais alertas estão

dirigiéndose contra o alto, el hombre

presentes em todo o texto e dialogam com

siempre desea lo que es proprio de Dios”

as ressalvas feitas por Martinho de que a

(MARTIN DE BRAGA, 1990, VII, p.83).

soberba ataca a todos, principalmente

Ao

longo

do

texto

encontramos

aqueles

que

possuem

material

e

altos

cargos,

menções a episódios bíblicos. O caso de

abundancia

perfeição

das

Lúcifer e Adão e Eva pode ser visto como

virtudes, fazendo uma referencia clara ao

estratégia utilizada pelo bispo para dar

governante.

credibilidade as suas palavras, já que

Ao final da obra Martinho nos deixa

estaria se apoiando em escritos sagrados,

claro que é dever do monarca eliminar

que

quaisquer

ao

seu

modo

de

ver,

seriam

outras

formas

religiosas

inquestionáveis. Os casos citados servem

existentes na região. O metropolitano

para ilustrar e demonstrar ao monarca o

associa as heresias, seitas e cismas a

que aconteceria e o que ele poderia perder

vanglória e a soberba, sendo que todos

se reproduzisse a mesma conduta soberba

estes vícios deveriam ser extirpados do

que

reino através do monarca ideal:

as

personagens

que

julgaram-se

“En efecto, la vanagloria genera de suyo la

semelhantes a Deus: “He aqui la muerte dada en la astucia engañosa de aquel primer veneno, que disfrazado con la miel amarguísima de la vana jactância, engañó el angel y al hombre. Por esto precisamente cayó la criatura celestial y la terrena. Por esto fueron expulsados de sus tronos: aquél del cielo y este del paraíso, y no pudieron permanecer en pie, porque

cayeron

gravemente”

(MARTIN

DE

que

as

BRAGA, 1990, V, p. 82).

Notamos

no

trecho

personagens perderam o lugar oferecido a elas por Deus (céu e paraíso) e foram

presunción

de

todas

las

novedades,

las

imaginaciones de los falsos dogmas, los embrollos de las cuestiones, las disputas, las herejías, las sectas, los cismas. La soberbia, a su vez, engendra la indignación, la envidia, el desprecio, el denigrar, la murmuración y lo es más detestable aún, la blasfemia. Si alguien desea extirpar de verdad las causas de estos males, arranque de si, antes de nada, los orígenes y las raíces de las mismas”(MARTIN DE BRAGA, 1990, X, p. 84).

Analisando o último período do fragmento

acima

(em

destaque)

observamos que Martinho deixa claro que

274


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

seria fundamental ao monarca eliminar

possuía uma espécie de missão. Sendo um

estes males pela raiz, seja internamente

instrumento de Deus, que o guiaria nas

(crença

ou

suas decisões, o sucesso de seu governo

Reino

estaria associado ao bem estar geral da

Suevo), pois somente desta maneira ele

população, contribuindo assim, para um

conseguiria

ambiente

favorável

soberba, vícios tão danosos para um

monarquia

e

governo.

súditos, mesmo que estes partilhassem de

do

próprio

externamente

O

monarca)

(religiosidade livrar-se

corpus

da

do

vanglória

Martiniano

dirigido

e

ao

da

a

aceitação

religião

cristã

da pelos

formas de religiosidades distintas.

monarca abarca comentários de Martinho

Considerações finais

acerca das virtudes e os vícios que

A relação que se estabeleceu entre

deveriam ser cultivados ou evitados pelo

Igreja e Monarquia foi fruto de um processo

governante. Desta forma, seus escritos e

lento

sua atuação perante Miro não se resumiam

compreende que para reconquistar seu

apenas a caracterização dos elementos

espaço como religião predominante após a

essenciais ao rei, mas auxiliavam, através

queda do Império não bastava fazer uma

de conselhos como conservar esta postura,

reforma dentro de sua própria instituição;

evitando os perigos ou pessoas mal

era necessário legitimar suas ações junto

intencionadas que poderiam prejudicar o

aos governantes, obtendo apoio e o

futuro

prestígio necessário junto aos mesmos ao

do

reino.

Para

Martinho

seria

e

gradativo,

no

qual

a

Igreja

essencial resolver as questões por via

professar

diplomática antes de deflagrar uma guerra,

Portanto, para a consolidação da unidade

como

Torres

religiosa seria necessário um esforço no

“Cuando

sentido de também organizarem não só os

demonstra

Rodriguez

(1977,

Casimiro p.217):

a

“verdadeira

e

única

fé”.

Leovigildo ataca Galicia en el 576, el Rey

vários

de los suevos Mirón, por consejo de San

encontravam desgastados, mas também

Martín con toda seguridad, no responde a

seria preciso organizar a instituição política,

la guerra con la guerra, sino que trata de

para que esta possuísse características

resolver

que estivessem em conformidade com a

el

conflicto

por

médios

diplomáticos.” A partir da breve explanação sobre

âmbitos

da

Igreja

que

se

doutrina pregada pela Igreja. Os critérios necessários para a sucessão do Reino

as características de cada obra, podemos

Suevo

como

compreender que o monarca na verdade

valorização

a

militar

hereditariedade não

se

e

a

mostraram

275


Juliana Bardella Fiorot

suficientes para que a monarquia fosse

novos cristãos se fizesse de forma tranquila

legitimada perante a concepção da Igreja;

e sem traumas que pudessem gerar

era necessário moldar o “monarca bárbaro”

revoltas. A evangelização das populações

segundo os princípios cristãos (SILVA,

pode ser observada como uma das etapas

2008, p.142).

do processo de reorganização da Igreja,

Assim,

de

forma

gradativa,

que contou ainda com a feitura de dois

observamos uma maior intervenção da

concílios no período que compreende esta

Igreja dentro da esfera política, processo

pesquisa.

que se acentuará durante o reinado de

Por fim, ressaltamos a intensa ação

Miro. A conversão significava legitimar as

de Martinho de Braga no processo de

ações tomadas pelo governante no poder,

reorganização da Igreja na Galiza. Como

sendo estas inquestionáveis, pois ele era

pudemos perceber, sua atuação se deu

considerado um instrumento do Senhor. O

sobretudo no âmbito da evangelização e da

rei deveria manter um comportamento ideal

criação de um modelo de monarca cristão.

perante a população procurando influenciá-

Graças

los na questão religiosa assim como Deus

aproximação entre Igreja e Monarquia,

deveria ser o exemplo de conduta a ser

Martinho pôde realizar suas ações sem

seguido pelo monarca.

grandes empecilhos, pois o terreno estava

Quanto aos desafios enfrentados pela Igreja

concluímos

processo

de

propício para que a receptividade de suas obras e de suas ações se fizesse de

popular foi o mais difícil a ser superado,

maneira mais fácil. O clero, no período do

constituindo-se como o grande empecilho

bispado de Martinho, representou o auge

para a efetivação da unidade religiosa. Não

da influência religiosa no meio político.

somente

outras

Observamos, desta forma, a efetivação da

período

unidade política do Reino Suevo através da

verificamos que a religiosidade pode ser

figura do monarca Miro. Com relação a

definida como um “problema” permanente

Igreja, concluímos que a sua reorganização

na sociedade, e que ainda se arrastaria por

desenvolveu-se plenamente auxiliada pela

toda a Idade Média. O trabalho de

monarquia e contou com várias frentes de

cristianização deveria ser feito de forma

ação para que a unidade religiosa se

paciente, onde as crenças pagãs fossem

efetivasse, no entanto, o processo seria

sendo eliminadas ou substituídas pouco a

lento e a presença do paganismo entre as

localidades

Galiza, da

a

gradativo

religiosidade

na

que

ao

mas

Europa

em no

pouco para que o projeto de aderência de

276


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

populações continuaria a comprometer a

busca pela plena unidade eclesiástica.

Referências: Fonte: MARTIN DE BRAGA. Obras completas.Edición castellana de Ursicino Dominguez del Val. Madrid: Fundación Universitária Española, 1990. Bibliografia: ANDRADE FILHO, R.O. Imagem e reflexo. Religiosidade e monarquia no reino visigodo de

Toledo (Séculos VI e VII). São Paulo: Edusp, 2012. GIORDANO, Oronzo. Religiosidad Popular em la alta Edad Media. Madrid: Editorial Gredos, 1983. SILVA, Leila R. Limites da atuação e prerrogativas episcopais nas atas conciliares

bracarenses. In: BASTOS, M.J; FORTES, C.C e SILVA, L.R (org.). Encontro regional da ABREM, RJ, 2007. _____________. Monarquia e Igreja na Galiza na segunda metade do século VI. O modelo

de monarca nas obras de Martinho de Braga dedicadas ao rei suevo. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008. TORRES RODRIGUEZ, Casimiro. Galícia Sueva. La Coruña: Fundación “Pedro Barrie de La Maza Conde Fenosa”. Instituto “P. Sarmiento” de Estúdios Gallegos, 1977.

277


O MILAGRE DA VIDA APRESENTADO EM DUAS CANTIGAS DE SANTA MARIA: ESTUDO DO TEXTO E DA IMAGEM Keila Mara Fraga Ramos de Oliveira 1 Resumo: No estudo do texto e da imagem, pesquisamos duas formas diferentes de arte, o verbal e o não verbal, que possuem suas estruturas próprias de significação e apreendem de forma bastante particular o real para reconstruí-lo na obra. Para Silveira (2009, p. 98, 99) esses são preciosos documentos linguísticos, uma verdadeira obra de arte literária e iconográfica que constituem fonte histórica inigualável de conhecimento dos hábitos, costumes e mentalidade da Idade Média. Sob a perspectiva literária, o núcleo é a ação redentora de Maria, diante de um contexto em que o “milagre manifesta-se como absolutamente necessário, testemunhando, por meio de um discurso bastante influenciado pela filosofia cristã medieval, até onde a sociedade admite a transgressão de normas estabelecidas e quais os padrões morais e de conduta”. Há uma infinidade de crianças retratadas da maneira em que viviam no âmbito familiar e fora dele, além de relatos nas cantigas de milagre, envoltas no ambiente religioso, que aparecem entre as mais diversas cantigas de Santa Maria, sendo salvas de acidentes, ou recebendo o milagre da vida novamente. Entretanto, os modelos infantis presentes nas Cantigas de Santa Maria devem ser vistos com cautela, porque não mostram com precisão a vida da época, mas sugerem, de acordo com a mentalidade e os costumes, como deveriam ser. Palavras-chave: Cantigas de milagre; Criança; Imagem.

1(PLE/UEM).

278


Keila Mara Fraga Ramos de Oliveira

A Idade Média termina com a Renascença,

individualizam pouco a pouco, como foram

que surge nos primeiros anos do século

reconhecidas a identidade e a originalidade

XV, em Florença e se expande por toda

das

Itália. Durand (1989, p. 6) explica que o

Durand (1989 p.7).

idades

Renascimento está diretamente ligado à

precedentes,”

explica-nos

Roma tornou-se oficialmente cristã,

Idade Média, que no século XV rompe com

a

nova

religião

a espiritualidade medieval, inaugurando

administrativa do Império. Durand (1989

com a descoberta da imprensa uma nova

p.9) explica que a “arquitetura adaptada

curiosidade nos domínios do pensamento.

aos

usos

estava

litúrgicos

e

na

estrutura

edificada

de

suntuosos monumentos religiosos, […]. A La Révolution française elle-même, jetant à bas les traces de la féodalité et les monuments de la religion, permit à Alexandre Lenoir de réunir au

assim

a

representação

de

grandes

musée de Petits-Augutins, à Paris, une collection

episódios da história cristã no vocabulário e

considérable de sculptures arrachées aux édifices

nas

du Moyen Âge, tandis que le musée du Louvre, créé

en

1793,

et

la

Bibliothèque

nationale

recevaient en désordre les vestiges épargnés de grands trésors médiévaux.(DURAND, 1989,

p.6) 2

O olhar nostálgico do Romantismo descobriu as grandes catedrais e as ruínas grandiosas

de

uma

civilização

inteira

voltada para Deus. O catolicismo encontra na Idade Média as fontes de “renovação espiritual e artística que vai até o começo do século XIX às obras neo medievais. A arte

pintura, o mosaico e a escultura tinham

gótica

e

a

arte

romana

se

técnicas

Entretanto,

da

entre

bárbaros

reunidos

Império,

mais

ou

plástica os

romana”.

diversos

nas

povos

fronteiras

menos

do

nômades,

ignoravam a arquitetura e sua cultura era essencialmente oral. O século IX no Ocidente foi marcado pelo

fenômeno

do

Renascimento

Carolíngio, que se manifesta por um retorno deliberado à Antiguidade e à tradição

greco-romana.

A

Renascença

carolíngia se caracteriza por uma série de reformas da língua, da escrita, do direito, da vida espiritual e religiosa. Durand (1989

do

p.15) comenta que essa arte se define

feudalismo e os monumentos da religião, permitindo a

como uma “restauração das ideias, das

Alexandre Lenoir de reunir no museu de Petits-Augutins,

formas e dos vocabulários antigos”. A

2 A revolução

Francesa desfaz-se dos

traços

em Paris uma coleção considerável de esculturas retiradas dos edifícios da Idade Média enquanto o Museu

imitação da Antiguidade é particularmente

do Louvre criado em 1796 e a Biblioteca Nacional

visível no interior da Capela-de-Aix, único

recebiam em desordem os vestígios dos grandes tesouros

elemento remanescente no conjunto de

medievais. (DURAND, 1989, p.6) Tradução livre.

279


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

edifícios construídos por Carlos Magno. Após sua morte, ocorre uma verdadeira

No fim do século XIII, a arte gótica

explosão da Renascença Carolíngia nos

realiza a conquista definitiva de toda a

diferentes centros do Império.

Europa, com sua área de expansão, ele se

Herdado dos carolíngios, a unidade

adapta no decorrer do século XIV e se

espiritual do mundo cristão sobrevive. Em

modifica no auge das sensibilidades locais,

909 foi fundada a ordem beneditina de

Durand (1989, p.73-75) nos mostra que

Cluny, forte estrutura espiritual e temporal

paralelamente a decoração monumental

independente do poder local que, em

evolui para um refinamento formal que

breve, possuiria abadias em toda a Europa.

combina com elementos a céu aberto,

O mundo cristão se reagrupa também em

agudas

torno de um ideal de reconquista contra os

quadrifólios. As novidades técnicas se

muçulmanos, na Espanha, a partir do fim

desenvolvem também no reinado de Filipe,

do século X e XI a arte reflete exatamente

o Belo, como a pintura em cinza e o

a

do

amarelo ouro no vitral, ou a aplicação de

Ocidente, de acordo com Durand (1989

esmaltes sobre o ouro, preenchidas de

p.23).

pequenas flores, trevos ou quatro folhas

situação

política

e

intelectual

La sculpture assure aussi, lorsqu'elle prend l'aspect d'un décor figuré, un rôle didactique

elevações,

rosas,

rosetas,

coloridas, pequenas joias ou elementos de decoração.

Ao lado do estilo cortês,

églises ou accompagnant la méditation des moines

preparado

pelo

dans le recueillement des cloîtres, elle met en

realismo se constitui uma segunda maneira

nouveau. Accueillant les fidèles aux porches des

images pour eux, dans la pierre ou le marbre, la Bible, les Évangiles, les vertus,l'intercession de la

naturalismo

gótico,

o

da arte do século XIV, observa Durand

Vierge ou l'exemple des saints, qu'elle s’oppose au

(1989,

péché originel, aux vices, au monde démoniaque

bizantina, a arte apresenta reproduções da

infernal et monstrueux. Les images s'organisent autour du thème de la lutte du bien et du mal, pour

p.77).

Introduzida

na

tradição

Virgem cercada de anjos, numa brandura e

prendre parfois la forme des visions saisissantes du Christ de l'Apocalypse ou du Jugement dernier.(DURAND,1989 p.39) 3

as virtudes, a intercessão da Virgem ou o exemplo de santos, que a Igreja se opunha ao pecado original, aos vícios, ao mundo demoníaco infernal e monstruoso. As

3A escultura fornece também, quando se leva o aspecto de uma decoração figurada, há um novo papel didático. Acolhendo os fiéis nos alpendres das igrejas ou acompanhando a meditação dos monges nos seus

imagens se organizam em torno do tema da luta do bem e do mal, para pegar as vezes a forma das visões impressionantes

do

Cristo

do

Apocalipse

ou

do

Julgamento final. (DURAND,1989 p.39). Tradução Livre.

recolhimentos dos claustros, ela coloca em imagens para eles, na pedra ou no mármore, a Bíblia, os Evangelhos,

280


Keila Mara Fraga Ramos de Oliveira

novo humanismo com detalhes realistas,

à vida e a vida à arte. O limite entre o

gestos e atitudes diferentes, drapeados e

período medieval e o renascentista foi

rostos.No começo do século XIV, a arte

traçado de forma nítida. O desejo passional

gótica italiana chega a mais perfeita

de revestir a própria vida com beleza, o

expressão, explica Durand (1989, p.84).

refinamento da arte de viver, o efeito

Até

o

movimento

em

que

o

colorido de uma vida vivida segundo um

Cristianismo foi reconhecido pelo Estado, a

ideal, não passam de antigas formas

Igreja tinha dominado o uso religioso de

medievais os próprios motivos usados

pinturas

por

princípio,

tolerando-as

pelos florentinos para o embelezamento da

somente

em

cemitério,

sob

vida, aborda Huizinga (2010, p. 57).

certas

condições específicas. Os retratos eram

No período final da Idade Média,

proibidos e as pinturas restringidas a

quando um novo espírito já estava em vias

representações simbólicas. Hauser (1998,

de surgir, existia somente, em princípio, a

p.140) explica que nas igrejas, o uso de

velha escolha entre Deus e o mundo: o

obras

terminantemente

completo desprezo de toda a maravilha e

proibido. Após a reconciliação da Igreja e

beleza das coisas terrenas e da vida ou a

Estado, o temor de uma recaída na idolatria

sua aceitação ousada, colocando a alma

ficou enfraquecido e as artes visuais

em perigo. Todo o conjunto da arte e da

puderam ser colocadas ao serviço da

literatura, em que o essencial do prazer era

Igreja. Somente no século V, a produção

a admiração, podia ser sacralizado, desde

desse tipo de pintura começou a florescer

que posto a serviço da fé. Ainda que o

com certa força. Outra raiz da ideia

divertimento da cor e da linha inspirasse os

iconoclástica, indiretamente associada à

amantes da pintura e das miniaturas, foram

aversão pela idolatria, foi a recusa dos

os temas sacros que retiraram o carimbo

cristãos primitivos em aceitar a cultura

de

sensual estética da Antiguidade Clássica,

característica que liga a cultura franco-

presente nas esculturas.

cavaleiresca

de

arte

era

pecado

do

prazer

do

da

século

arte. XII

A ao

O anseio por uma vida mais bela é

Renascimento é precisamente o intenso

considerado, normalmente, a característica

cultivo de uma vida bela sob as formas de

fundamental do período renascentista. A

um ideal heroico, aborda Huizinga (2010,

satisfação da sede de beleza dá-se tanto

p. 59).

na arte quanto na própria vida. Nesse momento, como nunca dantes, a arte serve

As época

emoções

tendiam

a

religiosas se

daquela

transformar

281

em


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

representações coloridas e profusas. A

ramificação,

e,

por

dedução

lógica,

mentalidade de então acreditava que tinha

aplicavam-nas aos assuntos da mente.

compreendido o mistério uma vez que o

A missão da arte é enfeitar as

tivesse diante de seus olhos. Esclarece

formas nas quais se vivia a vida com

Huizinga(2010, p. 333) que a necessidade

beleza. Não se buscava a arte em si, mas

de reverenciar o inexprimível sob a forma

sim a vida bela. Huizinga (2010, p. 416)

de símbolos visíveis resultou na constante

afirma

criação de novas imagens. No século XIV,

posteriores, não sai de uma rotina de vida

a cruz e o cordeiro já não eram mais

mais ou menos indiferente para desfrutar a

suficientes enquanto objetos visíveis do

arte em contemplação solitária, como

amor transbordante por Jesus: a eles

consolo e edificação.

que

ao

contrário

de

épocas

somava-se a veneração do próprio nome

A presença da infância na arte

de Jesus que, em alguns casos, até

Timidamente no início, a seguir com

ameaçava eclipsar a da própria cruz.

maior

frequência,

a

infância

religiosa

Em Deus, nada é vazio ou sem

deixou de se limitar à infância de Jesus.

significado. A ideia de Deus conceituada,

Uma iconografia inteiramente nova se

tudo o que partia Dele e que Nele

formou, multiplicando cenas de crianças e

encontrava o seu sentido se cristalizava em

procurando reunir, nos mesmos conjuntos,

pensamentos

palavras.

o grupo de crianças santas, com ou sem

Nasce, assim, a nobre e sublime ideia do

suas mães, explica-nos Ariès (1981, p. 20).

mundo

conexão

No grupo formado por Jesus e sua mãe, o

simbólica, uma catedral de ideias, a maior

artista sublinharia os aspectos graciosos,

expressão rítmica e polifônica de tudo o

ternos e ingênuos da primeira infância, a

que é imaginável. Para Huizinga (2010, p.

criança preparando-se para beijá-la ou

335) o modo simbólico do pensamento é

acariciá-la; brincando com o s brinquedos

independente e de valor igual ao modo

tradicionais da infância, com um pássaro

genético. Esse último, que compreendia o

amarrado ou uma fruta; ou comendo seu

mundo

mingau. Todos os gestos observáveis já

como

como

articulados uma

em

grande

evolução,

não

era

tão

estranho para a Idade Média quanto se

eram

reproduzidos.

imaginava. Mas para explicar o surgimento

realismo

de uma coisa a partir de outra, serviam-se

estender além das fronteiras da iconografia

de imagens ingênuas da procriação ou da

religiosa. A verdade é que o grupo da

sentimental

Esses

traços

tardaram

a

de se

Virgem com o menino se transformou e se

282


Keila Mara Fraga Ramos de Oliveira

tornou cada vez mais profano: a imagem

de seus pais. Observamos que as crianças

de uma cena da vida quotidiana, conforme

que cercam os defuntos nem sempre

nos mostraAriès (1981, p. 20)

estavam mortas: era toda a família que se

Essa iconografia, que de modo geral remontava ao século XIV, coincidiu com um florescimento de histórias de crianças nas lendas e contos pios,

reunia em torno de seus chefes. A grande novidade do século XVII é

como os dos MiraclesNotre-Dame. Ela se manteve

que a criança agora era representada por

até o século XVII, e podemos acompanhá-la na

ela mesma, enquanto que no século XVI,

pintura, na tapeçaria e na escultura. Dessa iconografia religiosa da infância, iria finalmente

com familiares. Ariès (1981, p. 25 -28)

destacar-se uma iconografia leiga nos séculos XV

explica que o costume de possuir retratos

e XVI. Não era ainda a representação da criança

de seus filhos, mesmo na idade em que

sozinha. As cenas do gênero e as pinturas anedóticas

começaram

representações

a

estáticas

substituir de

as

personagens

simbólicas. (ARIÈS,1981, p. 20)

O gosto novo pelo retrato indicava que as crianças começavam a sair do anonimato, pois tinham pouca possibilidade de sobreviver. O fato, que nessa época de desperdício demográfico se tenha sentido o desejo de fixar os traços de uma criança que continuaria a viver ou de uma criança morta, a fim de conservar sua lembrança. O retrato da criança morta, particularmente, prova que não era mais tão considerada como uma perda inevitável. Foi somente no século

XVIII,

com

o

surgimento

do

malthusianismo e a extensão das práticas contraceptivas, que a ideia de desperdício necessário desapareceu, segundo Ariès (1981, p. 23). O aparecimento do retrato da criança morta no século XVI marcou um importante

momento

na

história

dos

sentimentos. A criança, no início, não seria representada sozinha, e sim sobre o túmulo

eles ainda eram crianças nasceu no século XVII e nunca mais desapareceu. No século XIX, a fotografia substituiu a pintura. O sentimento não mudou e no século XVI, osputti (crianças nuas) invadiram a pintura e se tornaram motivo decorativo repetido. Foi no século XVII, porém, que os retratos de

crianças

sozinhas

tornaram-se

numerosos e comuns. Foi também nesse século que os retratos de família, muito mais antigos, tenderam a organizarem-se em torno da criança, centro da composição. Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representála. O mais provável é que não houvesse lugar para a infância nesse mundo. Uma miniatura otoniana do século XI vê-se a representação de adultos sem nenhuma diferença de expressão ou de traços apenas reproduzidos numa escala menor. O pintor não hesitava em dar à nudez das crianças, a musculatura do adulto. Embora exibisse mais sentimento ao retratar a infância, o século XIII continuou fiel ao esse procedimento. (ARIÈS,1981, p. 17)

No mundo das fórmulas românicas, e até o fim do século XIII, não existem

283


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

crianças caracterizadas por uma expressão

medieval, a religião não podia continuar

particular e sim homens de tamanho

tolerando

reduzido, nos explica Ariès (1981, p. 17).

independente, sem consideração de credo,

Por volta do século XIII, surgiram tipos de

tal

crianças próximos do sentimento moderno.

autônoma.

Surgiu

o

anjo,

representado

sob

abstrata

de

raciocínios;

a

arte

era

vista

originalmente como uma simples concessão feita às massas ignorantes que tão facilmente são influenciadas por impressões dos sentidos. Não

maternidade da Virgem e ao culto de Maria.

era certamente permitido que fosse “um mero

No início, Jesus era, como as outras

prazer para os olhos”, como afirmou São Nilo. O

crianças, uma redução do adulto. Na arte

caráter didático é a mais típica das características da arte cristã, quando comparada com as antigas;

era

os gregos e romanos usaram a arte com bastante

representada por uma criancinha nua e em

frequência como instrumento de propaganda, mas

geral assexuada, segundo Ariès (1981, p.

nunca a empregaram como simples veículo de doutrina. (HAUSER, 1998, p.129)

18, 19). A arte cristã não dispunha de qualquer outro elemento acessível e por isso empregava essas formas não porque desejasse preservá-las, mas simplesmente porque “as tinha à mão”. O novo ideal cristão de vida não alterou, no começo, as formas exteriores de arte, mas alterou sua função social. Para o mundo antigo, uma de

ciência

todos pudessem ler e acompanhar uma cadeia

pois a infância se ligava ao mistério da

obra

uma

tempos da Idade Média, a arte seria supérflua se

Menino Jesus, ou Nossa Senhora menina,

alma

aceitava

existência

era o objetivo a alcançar. Na opinião dos primeiros

as crianças pequenas da história da arte: o

a

não

com

era valiosa, pelo menos quando a máxima difusão

seguida, modelos e o ancestrais de todas

francesa,

como

arte

Como instrumento de educação eclesiástica, a arte

a

aparência de um rapaz muito jovem, em

medieval

uma

arte

primordialmente

tinha estético,

um

significado

mas

para

o

cristianismo seu significado era muito diferente. Hauser (1998, p.129) aponta a autonomia das formas culturais como o primeiro elemento que se perdeu da antiga

Copiar e ilustrar manuscritos foram um dos mais antigos motivos de fama para os

mosteiros.

Nas

dependências

beneditinas, havia os scriptoria que eram recintos espaçosos e de uso coletivo, enquanto em outras ordens, como a cisterciense, menores.

funcionavam Hauser

(1998,

em

celas

p.172-174)

comenta que os trabalhadores e artistas itinerantes também eram treinados, em sua maioria, nas oficinas monásticas, as quais eram, ao mesmo tempo, as “escolas de arte” da época, fazendo do treinamento de jovens artistas sua preocupação especial.

herança espiritual. Para a mentalidade

284


Keila Mara Fraga Ramos de Oliveira

A excessiva valorização do papel desempenhado

na

através da qual se olha para o mundo, o

história da arte originou-se no período

que induz os observadores a verem o

romântico e faz parte da lenda elaborada

espaço diante e atrás da “janela” como um

em

cuja

meio contínuo, é aí que, pela primeira vez,

sobrevivência ainda hoje nos dificulta, com

o espaço ocupado pelo quadro adquire

frequência, uma abordagem dos fatos

profundidade e realidade.

torno

pelo

da

monasticismo

considerada a moldura de uma janela

Idade

Média,

históricos isenta de preconceitos. A arte

Nesse

mesmo

contexto,

os

românica era uma arte monástica, mas, ao

trovadores como D. Afonso X e seus

mesmo tempo, uma arte da aristocracia. A

artistas compõem a mesma realidade.

combinação

Comprova-se que a arte pictórica falou por

muito

dessas

bem

qualidades

como

era

mostra

grande

a

solidariedade entre o clero e a nobreza

meio de traços e cores e a poesia pelas palavras e versos.

secular. Havia entre as duas aristocracias

No sul da França o ritmo de vida é

uma aliança de lealdade recíproca, ainda

favorável ao nascimento de uma cultura e

que nem sempre explícita, observa Hauser

de um lirismo vulgar. No século XI aparece

(1998, pp.175-178).

Guilherme IX, duque da Aquitânia, o

Como

consequência

da

primeiro

trovador

provençal,

com

sua

clericalização absoluta da cultura, a arte

poesia lírica, assim “na segunda metade do

deixou de ser vista como “um objeto de

século XII vibra já no sul uma verdadeira

fruição

primavera

estética”

para

ser

agora

de

canções

trovadorescas.”

considerada uma “extensão do serviço

Começa uma nova época e uma nova

divino, uma oferenda votiva e um presente

civilização na Europa Ocidental explica-nos

sacrificial”, conforme Hauser (1998, p.188).

Lapa (1973, p. 10). A influência cultural da

O escritor já não se coloca diante de uma

França condicionou a poesia trovadoresca,

obra de arte como se fosse o habitante de

anterior

outro mundo; foi atraído para a esfera da

nacionalidade portuguesa, com a vinda de

própria representação, e essa identificação

D.

dos arredores da cena representada com o

portucalense em 1094 ou 1095, quando

meio

houve a imitação da cultura francesa entre

ambiente

observador

se

em

que

encontra

o

próprio

produz,

a

Henrique

ela

e

para

à reger

fundação o

da

condado

pela

os galego-portugueses, semelhanças que

primeira vez, a completa ilusão do espaço.

se explicam por inevitável encontro de

Ora, quando a moldura do quadro é

285


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

ideias e expressões. (Lapa, 1973, p. 117 e

senhora amada é exaltada nos mesmos

p. 124).

termos,

adornada

com

as

A produção literária medieval é

qualidades,

dividida em duas épocas por Spina (1961,

encarnação

p.12): a primeira refere-se ao instrumento

favorecendo ao emprego das mesmas

linguístico galego-português de fins do

fórmulas retóricas nos textos poéticos, a tal

século XII até 1434, enquanto que a

ponto que se poderia pensar serem todos

segunda época pode ser marcada de 1434

pertencentes a um só poeta, explica

até o retorno de Sá de Miranda a Portugal,

Hauser (1998, p. 128). Tão poderosa era

inaugurando o Classicismo. O ano de 1198

essa moda literária e tão indiscutíveis as

foi

antiga

convenções da corte que “os poetas tinham

composição literária portuguesa, Cantiga

em mente apenas um ideal abstrato, não

da

trovador

qualquer mulher individual, de carne e

PaaiSoares de Taveirós, dedicada a Maria

osso, ou seja, seus sentimentos seriam

Pais Ribeiro (a Ribeirinha). A mais antiga

derivados mais de exemplos literários do

mística popular da Idade Média nasceu

que de qualquer pessoa viva. O louvor da

entre a primeira e a segunda cruzada

dama era puro, mas qualquer amor por

(1099-1147), em uma época de alteração

parte do cantor era apenas uma falsidade

religiosa

convencional,

a

data

provável

Guarvaia,

mística

e

da

escrita

pelo

econômica.

surgiu

trovadoresca

a

em

mais

Nesta

canção sua

cultura

de

forma

amor

representada

mesmas

da

virtude

fórmula

e

como da

a

beleza,

consagrada

de

louvor, observa Hauser (1998, p. 218).

clássica,

Estava inteiramente fora de questão

registra Lapa (1973, p. 5). A civilização que

uma dama retribuir o amor do trovador,

encontrou a sensibilidade humana soube

uma vez que sua posição social era

também encontrar o

superior a do trovador, a mais remota

(...) equilíbrio da alma e do corpo, do coração e do espírito, do sexo e do sentimento (...) reclamar a autonomia do sentimento e pretender que podia

sugestão de adultério seria violentamente punida pelo marido. A declaração de amor

haver entre os dois sexos relações diferentes das

era pretexto para o poeta desfiar seus

do

lamentos e queixumes a respeito da

instinto,

da

força,

do

interesse

e

do

conformismo, eram coisas em que havia algo de verdadeiramente novo. (LE GOFF, 2005, p. 352)

A lírica do trovador é “poesia de sociedade”,

na

qual

até

mesmo

as

experiências reais têm de se revestir das formas fixadas pela moda predominante. A

crueldade

da

lamentações

mulher eram

amada,

e

tais

concebidas,

na

realidade, como elogio à irrepreensível castidade da dama. O amor trovadoresco e a poesia amorosa do trovador duraram

286


Keila Mara Fraga Ramos de Oliveira

tempo

demais

para

que

se

suas críticas é moderado e gracioso; nas suas

possa

expressões líricas apresenta-se como um poeta de

considerá-los mera ficção, comenta Hauser

alta qualidade, um dos melhores, se não o melhor,

(1998, p. 219).

de quantos poetaram no seu século. Tudo justifica

O novo culto do amor e o cultivo da nova poesia

que a morte de D. Dinis tivesse sido chorada pelos

cortesã sentimental eram, preponderantemente,

trovadores com sincera tristeza. (CARVALHO,

obra desse elemento flutuante na sociedade.

1995, p.25)

Davam às homenagens que prestavam às damas a forma de canções de amorexpressas em termos corteses mas não inteiramente “fictícios”; foram os

Os mais antigos textos poéticos em língua portuguesa datam dos últimos anos

primeiros a conceder um lugar ao serviço de sua

do século XII, observa o autor e não se

dama, a par do serviço ao senhor; foram eles que

trata ainda de língua portuguesa, mas de

interpretaram a lealdade feudal como amor e o amor como lealdade feudal. Ora, nessa tradução

uma língua hispânica, falada aquém e além

de uma situação econômica e social para termos

do rio Minho, o galego-português, fase que

eróticos, os motivos de caráter psicossexual

passou o português arcaico antes de se

também desempenharam um papel, se bem que tais motivos também estivessem sociologicamente

construir uma língua independente. O modelo das cantigas de amor

condicionados. (HAUSER, 1998, p.221)

As disputas entre homens ricos da

chegou

da

Provença

e

os

poetas

nobreza medieval que eram o estrato social

acolheram e cultivaram academicamente

a

trovadores

“reproduzindo-o sem nota de originalidade

subdividiam-se em categorias segundo seu

e repetindo-o na forma, no metro, nas

grau de nobreza. Eram quatro essas

palavras,

hierarquias:

monotonia fastiosa e cansativa”. Carvalho

que

pertenciam

cavaleiros

os

ricos-homens, e

escudeiros,

infanções, por

ordem

sempre

e

sempre,

numa

(1995, p.45) elucida que a “mulher amada

decrescente da sua importância social. No

era

tempo a que se reportam as cantigas dos

“senhora”, à exceção em raríssimos casos)

Cancioneiros

a

e dela o poeta se considerava vassalo,

população portuguesa pouco passaria de

termo este que por vezes é concretamente

um milhão, e o número de pessoas nobres

usado”. O confronto entre senhor e vassalo

andava por cinco mil, nos explica Carvalho

faz imediatamente pensar na influência que

(1995, p.8). Os ricos-homens eram a fração

as regras da cavalaria medieval tiveram na

menor

poética amorosa do tempo.

da

galego-portugueses,

totalidade

dos

nobres

e

constituíam a alta nobreza. D. Dinis é, de longe, o mais representativo de todos os poetas dos Cancioneiros e nas 138 cantigas dele se conservam não se encontra uma só palavra que fira a sensibilidade do leitor. Nas

tratada

por

'senhor'

(e

não

por

Perante tão luminosa visão o poeta sentia-se

verdadeiramente

aterrorizado.

Carvalho (1995, p.46) esclarece que o trovador tremia com a ideia de encarar a

287


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

“senhor”, paralisava-se lhe a voz se tinha

iconográfica que constituem fonte histórica

oportunidade de lhe falar, chorava, gemia,

inigualável de conhecimento dos hábitos,

pedia a Deus que o fulminasse para pôr

costumes e mentalidade da Idade Média.

termo à tão grande “coita de amor”,

Sob a perspectiva literária, o núcleo é a

expressão usada para se referir ao seu

ação redentora de Maria, diante de um

sentimento amoroso.

contexto em que o “milagre manifesta-se

Apesar de lavados em lagrimas não havia da parte dos poetas a mínima intenção de conquistarem as damas dos seus sonhos para, prosaicamente, se

como

absolutamente

necessário,

testemunhando, por meio de um discurso

casarem com elas. De resto a “senhor” era, em

bastante influenciado pela filosofia cristã

princípio, mulher casada, e de alta condição. Esta

medieval, até onde a sociedade admite a

escolha, que não seria de prever mas que dá bem a tônica do convencionalismo elaborado, tornava o amor

mais

sofrido,

mais

saboroso

pela

transgressão de normas estabelecidas e quais os padrões morais e de conduta”.

impossibilidade de colher deles favores, e que quanto mais fossem as dificuldades mais poética se apresentava a situação. O marido da “senhor”

Nas Cantigas de Santa Maria, a articulação do discurso literário e de obras

não intervinha no jogo, embora haja exemplos de

de

casos em que o poeta se mostra descontente por

investigação muito significativo para o

ter notícia de que o marido da sua amada não aceitava bem as cantigas de amor. (CARVALHO, 1995, p.47)

A importância desempenhada pela

arte

constitui-se

um

caminho

de

nosso estudo. Na relação entre o verbal e o não

verbal,

o

próprio

texto

não

se

apresenta concreto em descrições dos

mulher no lirismo galego-português revela

fatos

o caráter popular. De acordo com os

contribuiu para a preservação da moral e

historiadores as mulheres desempenhavam

da fé religiosa. O sentido moralizante é

papel importante nas grandes cerimônias

bastante claro nos milagres que se referem

religiosas de Santiago de Compostela.

às mulheres e às crianças nas Cantigas de

narrados.

Desta

forma,

tudo

No estudo do texto e da imagem,

Santa Maria. Nos exemplares em que

pesquisamos duas formas diferentes de

essas figuras aparecem como personagens

arte, o verbal e o não verbal, que possuem

principais, “concebem os perfis da mãe que

suas estruturas próprias de significação e

pede proteção para o filho ou pela vida da

apreendem de forma bastante particular o

criança; mulheres judias ou mouras que,

real para reconstruí-lo na obra.

Para

depois do milagre realizado, convertem-se

Silveira (2009, p. 98, 99) esses são um

ou batizam os filhos; mulheres nobres,

precioso

como a infanta que se dedica à vida

verdadeira

documento obra

de

linguístico arte

e

literária,

288


Keila Mara Fraga Ramos de Oliveira

religiosa e aos doentes”, convocando Santa Maria para livrá-las da morte. A cantiga 122, Como Santa Maria

resucitouhu a infanta, filladun rei, e pois foi monja e mui santa moller, já referida anteriormente,

D.Afonso

X

narra,

em

primeira pessoa, o milagre operado pela Virgem na cidade de Toledo. A filha do rei Dom Fernando nasceu da promessa à Santa Maria, mas contraiu uma doença, fato comum na Idade Média com os recémnascidos e morreu, deixando a família desolada. A mãe lamentou e sentiu-se culpada e sua atitude imediata foi fechar as portas da capela e clamar a vida de volta à Virgem que, milagrosamente, atendeu a sua súplica. Assim que ela ouviu a menina chorar, agradeceu e entregou sua filha ao convento dasOlgas, na cidade de Burgos, cumprindo sua promessa (Jamais non me partirei / daquesta porta, ca de certo sey / que me dará a madre do bonRei / mia filla

Na Idade Média, acreditava-se que o Anjo Custódio caminhava ao lado das pessoas protegendo-as, principalmente, as crianças. As histórias de santos e dos anjos eram contadas como exemplos de fé e de proteção.

A

figura

acima

revela

um

fragmento de uma cidade, com as casas superpostas e a figura da mãe na varanda da casa, no momento da queda do menino. As

pessoas

assustadas

gesticulam

e

seguram as mãos de outra criança, que parece observar a mãe desesperada na varanda da casa. No destaque, à frente, a figura do santo suspenso, vestido de preto, que possivelmente vai salvar o menino. Evidencia-se a seriedade dos trajes, cores escuras e o vermelho no traje das crianças e nas casas. A outra imagem, denominada La

Nativité

(A

Natividade),

de

Giotto

(DELOBBE, 1999, p. 4),pintor italiano.

viva [...]”, declara Afonso X (1961, p. 61). A imagem Le Miracle de l'enfant (DELOBBE,

1999,

p.5)representa

um

milagre ocorrido com a queda de uma criança de uma varanda, sendo socorrida por um santo, e logo em seguida acolhida por pessoas do povo. Na observa-se

representação o

nascimento

de

Giotto

do

Menino

Jesus, relembrando o modo como os recém-nascidos eram vestidos. Período marcado pela intensa

289


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

religiosidade, a representação do menino

experiência ao pai, revelando que Santa

rei, salvador do mundo, em meio a um

Maria havia lhe dado a comunhão:

ambiente natural (rústico) rodeado de

lacomuyonfillou,/ logo dali se partia/ e

animais,

Virgem.

encas seu padr' entrou/ como xe fazer

cores

soya;/ e ele lle preguntou/ que fezera. El

representativas dos santos da Igreja, o

dizia:/ «A dona me comungou/ que vi so o

ouro e o azul, cores da santidade e da

chapitel.»

sendo

Observam-se

cuidado

nos

pela

trajes

as

Poi-

pureza da Virgem. Os rostos são estáticos

O pai ficou furioso e colocou o

e há também a sugestão dos gestos das

menino no forno: O padre, quand' est'

mãos que amparam o Menino Jesus na

oyu,/creceu-lli tal felonia,/ que de seu siso

manjedoura.

sayu;/ e seu fill' enton prendia,/ e u o forn'

A Cantiga 4 “A Madre do que livrou

arder vyu/ meté-odentr' e choya/ o forn', e

dos leões Daniel, essa do fogo guardou

mui mal falyu/ como traedor cruel. Sua

unmeno d'Irrael”, relata o milagre realizado

mãe, que o amava gritou e as pessoas

em favor de um criança judia numa

vieram ajuda-la, abrindo o forno onde

comparação com o texto bíblico. A cantiga

estava o menino, que havia sido guardado

narra que um judeu fabricante de vidro

e protegido pela Virgem, tal como havia

tinha um filho que estava aprendendo com

ocorrido

os cristãos na escola com o padre Samuel.

leões:Pois souberonsen mentir/ o por que

Na Páscoa ele entrou em uma igreja e os

ela carpia,/foron log' o forn' abrir/ en que o

jovens estavam distribuindo a hóstia e ele

moço jazia,/ que a Virgen quis guarir/ como

sentiu que era a Virgem Maria que as

guardou

distribuía

e

resolveu

aceitar

uma:

O

judeuco prazer/ ouve, calle parecia/ que

com

Daniel,

Anania/

na

Deus,

cova

seu

dos

fill',

e

alegria

e

senfalirqAzari' e Misahel. O

menino

saiu

com

ostias a comer/ lles dava Santa Maria,/ que

perguntaram-lhe o que sentia, respondendo

viiaresprandecer/ eno altar u siia/ e enos

que Santa Maria o tinha coberto com seu

braços ter/ seu FilloHemanuel.

manto: O moço logo dali/ sacaroncon

A Virgem observando a atitude do

alegria/ e preguntaron-ll' assi/ se sse

menino deu-lhe realmente a comunhão.

d'algun mal sentia./Diss' el: «Non, ca eu

Para ele, a hóstia foi mais doce que o mel:

cobri/ o que a dona cobria/ que sobelo altar

Santa Maria enton/ a mão lleporregia,/ e

vi/ con seu Fillo, bon donzel.»

deu-lle tal comuyon/ que foi mais doce ca mel.

De

volta

a

casa,

contou

sua

Concluímos que tanto nos textos poéticos das cantigas de Santa Maria de D.

290


Keila Mara Fraga Ramos de Oliveira

Afonso X, como nas telas os milagres

descasos

foram revelados, tendo como foco as

medieval.

dos

pais

e

da

sociedade

crianças que sofriam com os maltratos e os

Referências: AFONSO X, O Sábio. Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann. 4 volumes. Coimbra, Acta UniversitatisConimbrigensis, 1959-1972. ARIÈS. Philippe. História Social da Criança e da Família. Tradução: FLAKSMAN. D. Rio de Janeiro; LTC, 1981. CARVALHO, Rômulo de. O texto poético como documento social.2ª. ed. Lisboa: Fundação Gulbenkian, 1995. DELOBBE, Karine. Des enfants au Moyen Âge. France: Pemf, 1999. DURAND. Jannic. L'art au Moyen Âge.Paris; Bordas,1989. HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. Mestre Jou, 1982. HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. São Paulo: Cosacnaify, 2010. LAPA, Manuel. Rodrigues. Lições de Literatura Portuguesa-época medieval. 8ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1973. LE GOFF, J. A civilização do Ocidente Medieval. Tradução MACEDO, J. R. São Paulo: Edusc, 2005. SILVEIRA, Josilene Moreira. O perfil das mulheres religiosas em Cantigas de Santa Maria

e Miniaturas. 2009. 182 f. Dissertação de Mestrado – Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2009. SPINA, S. Presença da Literatura Portuguesa. Paulo: Difusão Européia do Livro, 1961.

291


A RAINHA E O CORO EM AGAMÊMNON: FORMAS DE PENSAR A PRESENÇA DA MULHER NA SOCIEDADE GREGA Lisiana Lawson Terra da Silva 1 Jussemar Weiss Gonçalves 2 (Orientador) Resumo: Nosso trabalho trata de uma análise do diálogo entre o coro e a rainha Clitemnestra na tragédia Agamêmnon da trilogia Oresteia. Buscando mostrar como o autor, Ésquilo, articula duas formas de expressar a realidade, a do coro e a da rainha. Para isso utilizamos os diálogos como porta de entrada ao pensamento dos sujeitos dialogantes. Este trabalho visa demonstrar que para além das aparências sociais existe para os gregos uma peculiaridade no pensamento do feminino e que esta singularidade revela-se a partir do olhar masculino. A História Cultural mostra que se deve entender a cultura como pensamentos compartilhados e construídos pelos próprios homens para explicar suas realidades. O que se busca é, a partir, das formas de pensar do coro e da rainha as formas de compreensão do mundo masculino em relação ao feminino. A Pólis ateniense é o cenário da obra estudada e revela práticas culturais pertencentes ao modo de vida isonômico ou aristocrático e a consequente posição de mulher-esposa-mãe dentro de cada um desses estilos de organização social e que o diálogo estudado retrata. Assim, a mulher é representada pelo olhar masculino tanto dentro do mundo da cidade quanto pertencente ao universo mítico. Essas duas visões se contrapõem dentro da cena trágica. Palavras-chave: Tragédia; Atenas; Mulher.

1

Bacharel em História (FURG).

Este estudo é fruto do Grupo de Pesquisa Cultura e Política no Mundo Antigo

coordenado pelo Prof. Dr. Jussemar Weiss Gonçalves. CURSO DE HISTORIA, ICHI, UFRG. 2

FURG.

292


Lisiana Lawson Terra da Silva Jussemar Weiss Gonçalves

Introdução

gregos uma peculiaridade no pensamento

Este artigo trata de uma análise do

do feminino e que esta singularidade

diálogo entre o coro e a rainha Clitemnestra

revela-se a partir do olhar masculino.

na

Sendo

tragédia

Agamêmnon

da

trilogia

a

tragédia

um

acontecimento

Oresteia 3. Buscamos destacar que o autor,

essencialmente urbano e que tem início e

Ésquilo 4, articula duas formas de expressar

fim no século V 5, ela funciona como um

a realidade, a do coro e a da rainha, e que

espelho da cidade, onde seus cidadãos ao

existe a construção de um atrito que essas

mesmo tempo em que reconhecem as

diferenças produzem. Para isso utilizamos

situações encenadas, questionam a ordem

os mesmos como chave, porta de entrada,

política da polis ateniense (VERNANT E

ao pensamento dos sujeitos dialogantes.

VIDAL-NAQUET, 2011).

Este trabalho visa demonstrar que para

Para a análise proposta utilizamos

além das aparências sociais existe para os

como fonte a tragédia Agamêmnon, já que esta representa uma teia de pensamento e

3

A trilogia Orestéia está dividida em Agamêmnon,

práticas sociais de um período, Atenas

Coéforas e Eumênides. Agamêmnon é a primeira das três

século

peças e conta o retorno do rei Agamêmnon para Argos

indivíduos ou grupos, através de suas

após a guerra de Tróia e o reencontro com sua cidade,

representações, geram estruturas sociais

sua rainha Clitemnestra e seus cidadãos representados

V.

Como

coloca

Chartier,

os

em:

as quais dão sentido ao mundo que é o

ESCHYLE. Orestie. Paris: Belle Lettres, 1962. ÉSQUILO;

deles Chartier (1991). Partindo desse

TORRANO, Jaa (Org.). Agamêmnon: Orestéia I. São

princípio, os cidadãos atenienses viam a

pelo

coro.

Ver

mais

sobre

o

tema

Paulo: Iluminuras, 2004. Os três autores trágicos considerados clássicos são por

representação teatral das mulheres como

ordem de idade, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. São os

uma ocasião para pensar a diferença dos

três que mais deixaram obras completas e são os mais

sexos (LORAUX,1985).

4

difundidos e estudados. Ésquilo é o mais antigo dos três dramaturgos e é considerado criador da tragédia em sua

A história das mulheres pode ser

forma definitiva, nasceu em Eleusis aproximadamente em

considerada recente no campo histórico, é

ou 524, esteve presente nas batalhas de Maratona

com o impulso da Escola dos Annales que

5254

(490) e Salamina (480), ou seja, foi contemporâneo do final das Guerras Médicas até a democracia de Péricles.

são incluídas como objeto de pesquisa as

Em 474 seu corego, ou financiador, é o próprio Péricles, o

práticas cotidianas e privadas. Mas se por

que leva a crer que ele era um democrata. Ésquilo

um lado há uma escassez de informações

escreveu noventa tragédias das quais apenas sete chegaram até nós completas, Suplicantes (data incerta

acerca da vida dessas mulheres, por outro

entre 499 e 472), Os Persas (472), Os Sete Contra Tebas (467), O Prometeu Acorrentado (data incerta), e a trilogia Orestéia representada em 458.

5

Todas as datas são A.C

293


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

uma

abundância

de

imagens

e

pertencentes ao modo de vida isonômico

discursos. “As mulheres são representadas

ou aristocrático e a consequente posição

antes de serem descritas ou narradas,

de mulher-esposa-mãe dentro de cada um

muito antes de terem elas próprias a

desses estilos de organização social.

palavra” (DUBY, PERROT, 1990, p. 8). Na

Tragédia e Cidade

Grécia do séc. V os trágicos, escrevem

A tragédia grega é uma forma de

sobre mulheres, sobre o lugar delas, o que

expressão

fazem, quais os seus deveres. Através do

especificamente, e está associada ao

teatro a palavra feminina, sempre mediada

surgimento da pólis ateniense e, mais do

pelo homem, é representada na pólis.

que isso, ao surgimento do cidadão e da

cultural

do

século

V

O estudo dos diálogos tem como

atividade política. 6 O universo trágico gira

finalidade discutir sobre duas formas de

em torno de dois mundos, o mítico ou

pensar a condição feminina na pólis

lendário

ateniense. O coro, como um personagem

tradição, e o mundo da cidade com seus

coletivo, encarna na tragédia Agamêmnon

novos valores e contextos mentais e que

os anciãos atenienses e reproduz os

irá inaugurar um novo tipo de pensamento.

sentimentos

da

A tragédia funciona como uma instituição

comunidade cívica. Já a personagem da

social e um espelho da cidade, onde seus

rainha Clitemnestra encarna a figura do

cidadãos

herói cuja ação é o centro do drama e que

reconhecem

expressa outra realidade não pertencente à

questionam a ordem política da pólis.

pólis

Nesse sentido, a tragédia articula as

e

democrática

questionamentos

(VERNANT;

VIDAL-

ainda

ao

presente

mesmo as

tempo

situações

que

encenadas,

tensões

entre duas formas de pensar que é

democrático e seus conflitos e o mundo

analisada no trabalho. De um lado o

das potências divinas, ou seja, o universo

do

coro

na

entre

em

uma

NAQUET, 2011). São essas diferenças

pensamento

existentes

como

o

homem

tragédia

Agamêmnon que expressa uma realidade feminina pertencente ao estilo de vivência

6

Foi através do culto a Dionísio que nasceu a tragédia no

final do século VI A.C., realizavam-se concursos em que a

social da cidade e de outro o pensamento

própria população votava nos temas que mais a

de Clitemnestra que extrapola o limite do

interessavam e essas possuíam o direito de ser

oikos como parâmetro para suas atitudes.

encenadas. Essas encenações eram financiadas pelos cidadãos mais ricos da Pólis, e eram assistidas de graça

A Pólis ateniense é o cenário da tragédia

pela população. Desta maneira, Atenas conseguia que os

estudada

mais ricos financiassem cultura e educação para os mais

e

revela

práticas

culturais

pobres.

294


Lisiana Lawson Terra da Silva Jussemar Weiss Gonçalves

da cidade e o universo do mito, dos

presságios e os sacrifícios perpassam as

deuses.

obras.

Elas

são

conformadas

pela

Segundo Pierre Grimal, a instituição

conjunção de teologia e moral. Ésquilo

dos concursos de tragédia no mundo da

inova na tragédia ao incorporar mais um

cidade, através da festa ao deus Dionísio

ator e reforça a oposição entre partes

tem duas causas: a literária e a política,

cantadas,

Grimal (1978). A primeira é considerada

episódios, onde os personagens são os

uma descoberta atribuída ao poeta Téspis

heróis trágicos. O coro tem a função de

e a segunda ao desejo dos tiranos de

conselho em Agamêmnon e é, portanto, o

exaltar e legitimar seu poder. A novidade

representante do grau de verdade dos

da tragédia transformou a cultura grega nas

cidadãos atenienses. O estatuto do herói

suas instituições sociais com os concursos

trágico é questionado através dos valores

trágicos, nas suas formas literárias com o

morais e religiosos legados pela tradição,

aparecimento do gênero poético como

mas reavaliados pela cidade democrática.

forma de representação teatral e finalmente

Ele possui uma relação individual com o

no plano da existência humana, pois a

divino e com isso, um destino individual, já

encenação tem como objetivo o debate e o

o coro tem uma relação coletiva, uma vez

questionamento

que representa os valores da cidade. Esse

do

cidadão

ateniense

o

coro,

e

as

faladas,

os

mundo trágico permeado pelas relações

(VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2011). As tragédias de Ésquilo trazem em

entre deuses, heróis e cidade é o que

seu drama a permanente interligação entre

configura a tragédia esquiliana e que

mundo divino e mundo dos homens 7, os

mostra a justiça divina dispensada por Zeus aos homens. (...) podemos dizer que os Deuses constituem os

7

Segundo Jaa Torrano, tradutor de Ésquilo, na trilogia

aspectos fundamentais do mundo, os diversos

confundem-se quatro graus de verdade, ou pontos de

âmbitos

vista, o dos deuses, o dos numes, o dos heróis e o dos

fundamentos de todas as possibilidades que se

cidadãos da pólis. É na articulação entre esses graus de

abrem para homens e Heróis (TORRANO, 1997,

verdade que se constrói a dialética trágica, pré-filosófica,

p.31)

que

discute

o

mundo

da

cidade.

“Dentro

dessa

perspectiva, dá-se na tragédia o diálogo da pólis com o

de

atividades

e,

em

resumo,

os

Outra característica das tragédias de

legado de sua tradição religiosa e com as questões e os

Ésquilo é a confirmação da doutrina da

desafios impostos por sua práxis cotidiana, individual e

hýbris 8, que o autor coloca como tema

coletiva” Torrano (1997). Ver mais sobre o tema em: ESCHYLE. Orestie. Paris: Belle Lettres, 1962. ÉSQUILO; TORRANO, Jaa (Org.). Agamêmnon: Orestéia I. São

8

Hybris é uma ação que se caracteriza por romper um

Paulo: Iluminuras, 2004.

limite

determinado.

Este

rompimento

produz

295


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

central em Agamêmnon. Já na tragédia Os

En este terreno, el corifeo encuentra em

Persas, Ésquilo levanta o questionamento

Clitemnestra a una mujer que puede hablar com la sensatez y prudência propias de um varón.

de que a opulência e a grandeza são

Este

carácter

ambíguo

y

ambivalente

de

usurpações das características divinas e

Clitemnestra, pivotando permanentemente sobre

que,

rasgos femeninos y masculinos, pondrá em

portanto,

estão

proibidas

aos

evidencia que más que ante uma heroína estamos

humanos. Em Agamêmnon essa doutrina é reiterada,

pois

democrática

no

essas

contexto

da

características

em presencia de um travestimento de gênero que

polis

hace de la reina uno de los héroes del drama (GALLEGO, 2000 p.72).

de

soberba vão de encontro às formas de agir político do cidadão ateniense. Para os gregos do século V a soberba, riqueza, opulência, enfim, hýbris, de um soberano ou cidadão estão em desconformidade com as atribuições humanas. No Agamêmnon, o rei e a rainha desempenham a figura de soberanos e de heróis e são questionados pelo coro, representantes dos cidadãos, em relação aos seus comportamentos desmedidos, tirânicos (hýbris), incompatíveis, como já vimos, com os valores da pólis ateniense do século V. Clitemnestra, que como esposa deveria apenas representar um papel de complementaridade na casa, oíkos, exerce o poder de forma viril como mulher de um marido ausente e deve, portanto, ser respeitada pela cidade, com base nas leis de matrimônio. 9

As

mulheres

nas

tragédias

ao

mesmo tempo em que reafirmam sua condição na pólis, como filha-esposa-mãe de cidadão, mas sem qualquer participação política, contradizem essa condição quando personagens femininos como Clitemnestra de Agamêmnon aparecem como um desvio à regra. Antígona de Sófocles é outra personagem feminina de tragédia que dá um salto para além do limite colocado pela polis, pois se posiciona fortemente contra Creon e sustenta esse comportamento até o final. Esse tipo de enfrentamento era impensável para uma jovem solteira tanto dentro de casa quanto na polis. “Creon imagina que seu poder é ilimitado e vê seu mundo desmoronar; Antígone sabe que seu poder é limitado, mas, apesar disso, age como se fosse ilimitado” (VIEIRA, 2009, p.16).

consequências que alteram a ordem do universo. Ver mais sobre o tema, no livro: LE SENS DE LA

no

DÉMESURE: hubris et dike; Jean-Francois Mattei, Paris,

casamento?: a noiva no mundo grego (séculos IX-IV

Sulliver, 2009.

A.C.). In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História

9

As leis de matrimônio gregas regiam a vida social e

política dos cidadãos atenienses. Ver mais sobre o tema

das

capítulo:

LEDUC,

Mulheres: A

Claudine.

Antiguidade.

Como

470.

dá-la

ed.

em

Porto:

Afrontamento, 1990. p. 277-347.

296


Lisiana Lawson Terra da Silva Jussemar Weiss Gonçalves

Os autores Vernant e Vidal-Naquet

e existe uma peculiaridade no pensamento

ressaltam a particularidade da cidade

do feminino que é sempre representado

grega, que não é a única em excluir as

pelo olhar masculino. As tragédias eram

mulheres

sua

escritas, encenas e assistidas, em sua

singularidade está em fazer dessa exclusão

maioria, por homens. Nesse sentido, a

um dos motores da ação trágica, Vernant e

representação teatral das mulheres é a

Vidal-Naquet (2011).

expressão da contradição das relações

politicamente,

mas

Para o cidadão de Atenas, a apresentação teatral das mulheres já é, em si mesma, uma ocasião admirável para pensar a diferença dos sexos:

sociais e o protagonismo feminino, através da perspectiva masculina, revela uma

mostrá-la para confundi-la e depois reencontrá-la,

natureza atrativa e perigosa, como a cidade

mais rica após haver sido confundida, mas ainda

democrática em si (SUÁREZ, 2000). Esse

assim consolidada ao ser reafirmada no último instante. (LORAUX, 1985,p.12)

Partindo

desse

princípio,

os

cidadãos atenienses viam a representação teatral das mulheres como uma ocasião para pensar a cidadania na cidade, mas principalmente era a ocasião para debater problemas sociais e políticos de toda a sociedade. A ambiguidade é uma das características das personagens femininas das tragédias, uma vez que, ao mesmo tempo em que, os autores destacavam os valores patriarcais dentro de uma visão masculina de mundo, as protagonistas desempenhavam

papéis

fortes,

com

protagonismo feminino não indica somente as contradições das relações de gênero, mas sim de toda a sociedade ateniense. Clitemnestra, como uma heroína trágica, inverte a ordem social da pólis ateniense através de seu personagem, pois suas

falas

denotam

uma

virilidade

incompatível com o seu gênero. A atitude viril da rainha é apontada pelo coro como um desvio ao comportamento ideal de uma esposa, que tinha como característica o recato, o isolamento, a submissão e fundamentalmente o silêncio, que, como colocou Nicole Loraux era o ornamento das

e

mulheres (Loraux, 1985). Quando uma

Para os gregos a mulher 10 possui

retirada de seu comportamento ideal de

personagens

bem

caracterizados

diálogos bem estruturados. um lugar bem determinado dentro da pólis

mulher é qualificada de viril ela está sendo mulher de cidadão e colocada em outro patamar de ação, com mais autonomia e principalmente, neste caso, com direito à

10

PANTEL, Pauline Schmitt. Aithra et Pandora: Femmes,

Genre

et

Cité

dans

la

Grèce

Classique.

Paris:

L'harmattan, 2009.Neste livro a mulher é vista a partir de

uma possibilidade de interpretação além da tragédia, a partir do mito.

297


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

palavra. Ésquilo mostra uma rainha que

mulher exerce o poder na casa, o oikos de

ultrapassa o seu papel de esposa do rei,

Agamêmnon, a rainha Clitemnestra, e,

adotando a atitude política de um tirano,

segundo o vigia, ela exerce esse poder de

uma desmedida, o que para os cidadãos

uma forma viril, desmedida, acima do seu

gregos era motivo de crítica. E o coro, que

papel de esposa 11. Em segundo lugar é

é quem tem o papel de zelar pelos valores

dado a conhecer ao público que a casa é

da cidade, vai fazer essa crítica aos seus

desafortunada. Além da longa ausência do

soberanos através dos diálogos entre os

rei, existe algo que todos sabem, mas não

personagens.

ousam falar, que acontece dentro do

A Rainha e o Coro A primeira cena de Agamêmnon inicia com o personagem do vigia recitando

palácio.

Está

dado,

portanto,

nessa

primeira cena o cenário atual, onde a partir de então se desenrolará a tragédia.

o prólogo, onde ele descreve a sua tediosa

No párodo o coro de anciãos recita

vigília de um ano por seu rei que já está

seus primeiros versos e relata todos os

fora a dez anos guerreando em Troia. A

problemas

espera por um sinal que traga a notícia da

Atridas 12, a maldição da família 13, aos

vitória é sua sina, mas nos primeiros versos

vaticínios e o sacrifício corrompido da filha

que

afligem

a

casa

dos

deixa claro que obedece ao poder de uma mulher que tem o coração viril, ou seja, que exerce o poder e aconselha como um homem. Em seguida, cai em prantos, pois a casa de Agamêmnon não é mais a mesma, é uma morada que esconde algo.

HANDMAN,

11

Marie-Elisabeth. La

Violence

et

la

Ruse: hommes et femmes dans un village grec. Paris: Edisud, 1983,Neste livro a autora mostra como fica limitada a forma de expressão da mulher:ou ela usa a “ruse” ardil,astucia, a metis grega,ou desencadeia um

V. Aos Deuses peço: afastem essas fadigas,

processo de violência.

a vigilância de longo ano, (...)

12

.Agora aguardo o sinal do lampejo,

alimentou a imaginação dos grandes poetas trágicos do

a luz do fogo a trazer voz de Tróia

século V A.C. Atreu, rei de Micenas, teve dois filhos

e notícia da captura, tal é o poder

Agamêmnon e Menelau. MOSSÉ, Claude. Dicionário da

do viril coração de mulher.

Civilização Grega. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004 p

(...) choro e gemo a conjuntura dessa casa

51.

não como antes a mais bem servida. (ÉSQUILO,

13

2004, p.105, v1-19)

logo separados por um ódio intenso. Para vingar-se de

Os Atridas foram uma família célebre, cujo mito

Pélope e Hipodâmia tiveram dois filhos, Atreu e Tiestes,

Tiestes,que supunha ser o amante de sua esposa

Nesses primeiros versos da tragédia já se anuncia que em primeiro lugar uma

Aeropéia, Atreu matou os filhos que seu irmão tivera com uma Náiade e, fervendo os corpos, serviu-os a Tiestes em um banquete. Tiestes vingou-se de Atreu fazendo-o morrer pelas mãos de outro filho seu, Egisto. Idem, p. 51.

298


Lisiana Lawson Terra da Silva Jussemar Weiss Gonçalves

Ifigênia 14. Os primeiros versos do coro

pelo coro como Basileia 15 no verso 84,

indicam o tom de crítica à figura do herói,

dando

Agamêmnon e Clitemnestra. Mas é nos

reconhecem o poder dela como dirigente

diálogos entre o coro e a rainha que o

do palácio e da cidade. Esse seria o

autor, Ésquilo, articula duas formas de

primeiro sinal de estranhamento que o

expressar a realidade da presença feminina

público reconheceria em relação à figura

na cidade.

feminina, pois para o cidadão ateniense

No primeiro diálogo entre o coro de anciãos e Clitemnestra no primeiro episódio

a

entender

que

os

cidadãos

uma mulher ser nomeada Basileia é um despropósito.

nota-se uma reverência por parte do

Dando prosseguimento ao mesmo

primeiro em relação à esposa do rei. “C.

diálogo transparece uma descrença do

Venho reverente a teu poder, Clitemnestra,

coro em relação à palavra da rainha

pois justo é honrar a mulher do rei quando

quando ela diz que os aqueus 16 venceram

o

homem”

Tróia, uma vez que não existem provas

(ÉSQUILO,2004, p.123, v258-260). Isto se

concretas, mas sim visões e sonhos com

dá unicamente por respeito às leis do

os quais a rainha constrói a sua verdade, a

casamento e por estar o rei ausente de sua

posição do coro é de incredulidade e

casa. No palácio de Agamêmnon, assim

questionamento. Até que ponto a palavra

como em toda casa de cidadão grego, o

de uma mulher é confiável? Em que ela se

homem é o chefe e a esposa possui a

baseia? No caso de Clitemnestra ela se

função de complementaridade em relação

baseia nos sinais divinos, conforme fala da

à administração da casa, pois em última

rainha. “Cl. Hefesto emite em Ida nítido

instância as decisões são do marido. Mas

brilho. Facho envia facho do mensageiro

não é o que acontece nessa tragédia

fogo para cá” (ÉSQUILO, 2004, p.125,

especificamente, pois a rainha é nomeada

v281-283). Pois a palavra carece de

trono

está

ermo

de

verdade se não há um sinal divino. A rainha, então, passa a convencer o coro através da palavra, pheitó 17 de que sua 14

Agamêmnon organizou para vingar seu irmão a famosa

15

Basileu é o título dado ao primeiro entre os aristocratas

expedição da Guerra de Troia. Entretanto, reunidos os

que dirige a cidade, este título nada tem que lembre reis

navios gregos em Áulis, ventos contrários impediram que

ou tiranos orientais, já que é contingente.

partissem para a Ásia. Agamêmnon consultara o adivinho

16

Calcas, que lhe impôs o sacrifício de sua filha à deusa

17

Ártemis. Idem, p. 52.

aceitação do argumento do outro.

Os Aqueus são os gregos de Agamêmnon. Pheitó é persuasão, isto é, a obediência mediante a

299


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo em

versão é a verdadeira, mesmo que ele a trate

com

desconfiança

e

uso da palavra para persuadir homens também

causaria

público

de

masculino,

estranheza

tragédia já

que

na

em

sua

pheitó

um

maioria

pode

ser

considerada como pertencente mundo dos

masculina,

as

mulheres

na

mesmo

visão que

consigam interpretar os sinais divinos, são mais suscetíveis ao engano, podem ser induzidas ao erro pelos deuses. Essa é uma visão que vem do mito, da raça das mulheres 18, em que as mesmas são consideradas como fora da humanidade, elas não pertencem ao mesmo mundo dos homens e são, portanto, mais fracas e facilmente manipuláveis. La relación entre verdad e divinidad está mediada em el mundo terreno por la falabilidad humana.

no

hay

um

prudência, e a compara com um homem, uma

vez

que

esse

adjetivo

é

marcadamente masculino. C. Mulher, falas prudente qual prudente homem. Eu ouvi de ti confiáveis indícios e estou pronto a orar piamente aos Deuses: graça

não

sem

valor

se

cumpriu

por

fadigas.(ÉSQUILO, 2004, p.129, v351-354)

novo contasses” (ÉSQUILO, 2004, p.127, porque,

si

admirado com suas características, como a

o fim estas palavras e admirá-las como de Isto

garantia

coro, finalmente convencido pela rainha e

depois farei aos Deuses. Quereria ouvir até

319).

de

Este diálogo fecha com uma fala do

cidadãos da pólis. “C. Preces, ó mulher,

v317-

carece

pronunciamento divino. (GALLEGO, 2000, p 71)

certa

condescendência. Uma mulher fazendo

si

A

visão

Clitemnestra

do

coro

desempenha

é

de

um

que papel

masculinizado na tragédia, uma vez que possui uma autonomia que a nenhuma mulher-esposa do séc. V é permitida. Claro, que ela é uma rainha que deve zelar pelo seu palácio, mas ainda assim, o que se pode notar é um desvio do lugar ocupado pelo feminino. O seu modo de falar não é o que se espera de uma mulher, pois a rainha manipula a palavra conforme sua perspectiva, em um primeiro momento de maneira prudente (masculina) e em

Alguien pudo percibir mal o pudo ser engañado sin

segundo momento de maneira ousada e

darse cuenta. Esto es relevante porque la palabra

desmedida (métis) 19, mais de acordo com o comportamento feminino, ardiloso.

18

A Raça das Mulheres é um mito proveniente de obras

como Teogonia e Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo em

19

que o mito do surgimento da primeira mulher, Pandora, é

tipo de pensamento que não responde de uma forma

colocado como algo fora da humanidade. Para ver mais

linear, mas que constitui suas respostas mediante uma

sobre

of

visão que subtrai a certeza exata sobre o que se fala, isto

Athena: Athenian ideas about citizenship & the division

é, um pensamento insinuoso, cheio de curvaturas.

between the sexes. New Jersey: Princeton University

Especificamente sobre a natureza desse tipo de pensar

Press, 1994.

ver o livro de VERNANT, Jean-Pierre; DETIENNE,

o

tema:

LORAUX,

Nicole. The

Children

Méthis é astúcia, caracteriza o pensar feminino. É um

300


Lisiana Lawson Terra da Silva Jussemar Weiss Gonçalves (...) el corifeo encuentra en Clitemnestra a uma mujer que puede hablar com la sensatez y prudência próprias de um varón. Este carácter ambíguo e ambivalente de Clitemnestra, pivotando permanentemente

sobre

rasgos

femeninos

e

masculinos, pondrá em evidencia que más que ante uma heroína estamos em presencia de um travestimiento de gênero que hace de la reina uno de los héroes del drama. (GALLEGO, 2000, p.72)

Sem dúvidas que a citação acima expressa a forma da cidade e de seus cidadãos, representados pelo coro, de pensar a condição feminina na pólis, onde a mulher não possuía qualquer expressão política e era tratada como uma eterna menor.

Nesse

sentido

Ésquilo

coloca

Clitemnestra como um desvio a essa forma de pensamento, já que ela usurpa tanto o poder político quanto o familiar. E o coro reconhece

esse

caráter

ambíguo

da

personagem, por isso a qualifica ora de maneira masculinizada, com o uso da palavra viril, ora com adjetivos femininos como instabilidade e irreflexão. O coro acaba por aceitar, mesmo que com desconfiança, as palavras de Clitemnestra,

deixando

claro

que

as

mulheres são crédulas demais e que são tocadas pela graça antes que pela certeza. Assim, o valor da palavra de uma mulher é restrito, uma vez que pode ser alterada, pois ela possui uma certeza que não

pertence

ao

mundo

masculino

da

concretude. C. Convém ao mando de mulher aquiescer à graça antes de ver. Crédulo demais o gênero feminino vai a rápido passo; mas, com rápido fim, cantada por mulher, perece a glória. (ÉSQUILO, 2004, p. 137, v483-487)

No segundo episódio, quando o arauto traz, finalmente, a notícia da vitória sobre Tróia e confirma as palavras da rainha. O coro, então, tem a confirmação da verdade recitando que: “C. Não me vexa ser vencido por palavras” (ÉSQUILO, 2004, p.145, v583). Nesse sentido ele reconhece a verdade da palavra de Clitemnestra e admite ter sido persuadido a acreditar, mesmo que a contragosto, por uma mulher. Essa atitude do coro, que ora desconfia e ora acredita por convencimento na palavra da rainha, mostra a singularidade da tragédia,

pois

um

coro

de

anciãos

dobrarem-se ao poder de uma mulher é visto como um desvio pela cidade grega. Nesse episódio ainda Clitemnestra fala sobre como interpreta as palavras do coro a seu respeito. Para a rainha o coro a retrata de maneira instável, o que seria uma qualidade feminina, a irreflexão. “Cl. ‘É muito de mulher exaltar o coração’. A tais palavras

eu

parecia

aturdida,(...)”

(ÉSQUILO, 2004, p.145, v592-593). Junto a isso ela ainda coloca-se na posição que

Marcel. Les Ruses de L'intelligence: La métis des Grecs.

todos esperam de uma esposa que há dez

Paris: Flammarion, 1974.

301


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

anos espera pelo marido e que sempre zelou por seu patrimônio, quase uma Penélope. 20 Cl. Para a mulher que luz mais doce de ver que abrir portas, salvo o homem por Deus,

afrouxou-lhe membros ali mesmo e prostado dou-lhe o terceiro golpe,(...) (ÉSQUILO, 2004, p.201, v1372-1373 e 1384-1387)

Com isso há uma forte reação do coro que utiliza palavras como audácia e

salvo da guerra? Anuncia ao marido:

mulher imprudente, posição completamente

vir o mais rápido o amor do país,

contrária com o que disse no primeiro

e vindo veja no palácio fiel mulher tal qual deixou, cão do palácio,

episódio, quando chamava a rainha de

leal a ele, inimiga dos desafetos,

prudente. Quando o coro diz: “C. Pasma-

e no mais a mesma, sem ter rompido

nos tua fala pela audácia,(...)” (ÉSQUILO,

selo nenhum ao longo do tempo. (ÉSQUILO, 2004, p.145, v602-610)

Na citação acima o que se nota é a ambiguidade do personagem da rainha, ao mesmo tempo em que expressa qualidades masculinizadas para os gregos como o uso da pheitó, a persuasão, ela é acusada pelo coro de irreflexão e instabilidade, méthis, que são qualidades pertencentes ao mundo da mulher. Junto a isso coloca-se como uma esposa exemplar, aguardando por dez anos o retorno do marido. No quinto episódio, quando já é morto Agamêmnon, há um embate entre o coro e a rainha e parece haver uma inversão na fala de Clitemnestra. Ela abre o episódio admitindo o uso da mentira e da astúcia para conseguir seus objetivos e se vangloria de matar o marido.

2004, p.201, v1399), ele está colocando a esposa de Agamêmnon em seu lugar, como mulher desmedida e acometida de hybris. Em seguida a rainha interpreta as palavras do coro que a acusam de irreflexiva. Uma mulher para cometer tal desatino a agir com tamanha audácia só pode estar fora de si. “C. Ó mulher, que droga provaste (...)?” (ÉSQUILO, 2004, p.203, v1407). Há com certeza um desvio do lugar da mulher, não pela ação em si, mas sim pela audácia e pela fala da rainha que se coloca em igualdade com o coro de anciãos, colocando-se mesmo em papel de autonomia na tragédia. Para justificar-se acusa o marido de hybris, pela opulência de seu reinado e pelo sacrifício da filha e o

Cl. Não me envergonho de contradizer

coro de não ter enxergado isso. Existe um

muitas palavras antes oportunas.

enfrentamento com o mesmo e por isso a

Firo-o duas vezes e com dois gemidos

acusação de soberba e arrogância em relação à rainha.

20

Esposa de Odisseu, personagem da Odisseia de

Homero, considerada pelos gregos como um modelo de esposa.

O coro lamenta a morte do rei pela mão de uma mulher, com certeza uma

302


Lisiana Lawson Terra da Silva Jussemar Weiss Gonçalves

morte desonrosa para um guerreiro 21. A

Tanto que Clitemnestra coloca que o morto

morte de um guerreiro é sempre vista pela

irá encontrar-se com a filha Ifigênia, em

cidade como um momento especial de

alusão ao sacrifício da filha. “C. Pêgo quem

honrarias, mas para isso ela deve obedecer

pega, quem mata paga. Detendo o trono de

a certos preceitos, o principal deles era

Zeus, sofre quem faz: essa é a lei”

morrer em combate, mas o fato de ser

(ÉSQUILO, 2004, p.212, 213, v1562). A

morto por uma mulher é um completo

rainha para justificar seus atos perante o

desvio. “C. Por uma mulher perdeu a vida”

coro deixa claro o sentido de vingança, de

(ÉSQUILO, 2004, p.205, v1454). As honras

olho por olho, dente por dente, que ela

fúnebres eram parte essencial da cultura

defende. Essa atitude mostra que foi urdido

ateniense e a esposa era a responsável

um plano de vingança, dissimulado durante

pelo sepultamento e pelo ato de carpir,

muito tempo através da palavra, mas que,

chorar o morto. Junto a isso, cidadãos

enfim, vem à tona. La reina, em cambio, intenta mostrarse estable y

escolhidos por seu destaque na cidade

reflexiva tanto em sus atos como em sus palabras.

realizavam discursos em honra a polis e ao

Pero, em rigor, ambas nociones enunciadas por la

morto. Mas no caso de Agamêmnon o coro

esposa de Agamêmnon resultan ambíguas. Sus acciones y sus dichos muestran a um ser capaz de

manifesta a preocupação de que ele não

urdir

poderá ser enterrado com todas as honras.

plan em

función de um

objetivo

estrictamente personal, la venganza. (GALLEGO,

C. (...) Quem o sepultará? Quem o carpirá?

2000, p.73)

Ousarás fazê-lo: massacradora do próprio marido, pranteá-lo

um

No

último

episódio

da

tragédia

e sem justiça pelas grandes proezas

Egisto, o amante da rainha, em diálogo

celebrar o espírito ingrata graça?

com

Quem ao proferir com lágrimas elogio fúnebre ao homem divino

o

coro,

descreve

a

morte

de

Agamêmnon e revela que o ardil foi de

trabalhará com verdade cordial? (ÉSQUILO, 2004,

mulher. A rainha revela-se ardilosa e

p.211, v1541-1550)

astuta,

A maldição dos atreus é relembrada pela rainha várias vezes ao longo do diálogo com o coro no sentido de justiça.

através

da

fala

desses

dois

dialogantes, Egisto e o coro. Entre os dois há troca de palavras desafiadoras e acusações mútuas, quando, então a rainha intervém e de forma conciliadora encerra a

21

Nesse ponto pode-se fazer uma comparação com a

tragédia As Traquínias de Sófocles onde a personagem

discussão, exercendo mais uma vez seu

Dejanira mata seu esposo Hércules, pois ele leva para

poder através da palavra. Essa situação

sua casa outra mulher. Ela também pode ser acusada de

aos olhos do coro é uma completa

não feminina, pois mata-se de maneira pouco usual para as mulheres, com uma espada.

303


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

desmedida, uma mulher exercer um poder

de quem sabe qual é o problema e como

de forma quase tirânica.

resolve-lo; depois ela aparece se utilizando

Considerações Finais No final da tragédia fica explícito

da Pheito, a persuasão, que é o meio pelo qual a cidadania articula suas decisões na

duas formas de expressar a realidade do

assembleia.

papel feminino na pólis ateniense. O coro

instrumentos a partir de um problema

por um lado, representando a cidade onde

feminino, isto é, proteger sua prole, vingar

a mulher tinha um lugar bem específico e a

sua filha morta. É a família, tal como em

figura do herói representado pela rainha

Antígona que a obriga a agir. Seu problema

Clitemnestra que expressa um desvio à

não é usurpar o trono de Agamêmnon, mas

norma. Como coloca Jaa Torrano, o ponto

vingar-se, aliás um forma feminina de

de vista da verdade do coro é do humano,

resolver os problemas. Quando o coro

o ponto de vista da verdade heroica, nesse

nomeia a rainha de Basileia, viril, que sabe

caso o ponto de vista da rainha é de

usar a pheitó e que suas ações são

caráter numinoso 22, pois ela apresenta a

baseadas em sonhos e delírios, ele está

sua ação homicida como obra da justiça

mostrando que a postura mental da mulher

divina (Torrano, 1997).

é de outra natureza, mais fluida, menos

A mulher como representante de

controlada,

Mas

ela

desmedida,

utiliza

e,

esses

portanto

uma tradição, do mito e do divino, é a partir

contrária à visão de Ésquilo de ação

desse ponto de vista que a personagem de

pública. Apesar de sua postura “polites”,

Clitemnestra recita suas falas na tragédia e

isto é, defendendo a cultura da isonomia,

enfrenta tanto o rei como o coro. Esse

nota-se que a tragédia de Ésquilo, permite

enfrentamento se dá através do uso da

um

palavra, a rainha usa a arte da persuasão,

transparecer ambiguidades e contradições

pheitó,

que vão além das aparências sociais

para

impor

seu

pensamento

permanentemente interligado com o divino.

olhar

sobre

a

mulher,

deixa

gregas do século V A.C.

A rainha usa, a partir de uma artimanha

Ésquilo nos mostra através dos

feminina, o ardil, uma série de recursos que

diálogos de Agamêmnon dois pontos de

caracterizam a ação masculina na cidade:

vista divergentes e que se enfrentam, o da

primeiramente ela age como um Basileu, já

rainha e o do coro. O ponto de vista da

que o coro reconhece nela uma atitude viril,

rainha, que age como se fosse Basileu, toma decisões. Mas isto a partir de um

22

De caráter divino.

ponto de substrato mental feminino, isto é,

304


Lisiana Lawson Terra da Silva Jussemar Weiss Gonçalves

a méthis. O outro que o coro revela, mostra

tempo em que reafirma a ação masculina

a atitude da cidade diante de uma mulher

do cidadão, isto é, ser aquele que“age”.

viril e revela como ela deve ser, ao mesmo

Referências: CHARTIER,

Roger. O

Mundo

como

Representação. 1991.

Disponível

em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141991000100010&script=sci_arttext>. Acesso em: 08 abr. 2014 ESCHYLE. Orestie. Paris: Belle Lettres, 1962. ÉSQUILO; TORRANO, Jaa (Org.). Agamêmnon: Orestéia I. São Paulo: Iluminuras, 2004. GALLEGO, Julían. Figuras de la Tiranía, lo feminino y lo masculino en la Orestía de Esquilo. Studia Historica . Historia Antigua, Salamanca, v. 18, p.1-26, 2000. Anual. Disponível

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305


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

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306


PERSUASÃO: INDEPENDÊNCIA E CENTRALIZAÇÃO DE GUILHERME, O CONQUISTADOR, NAS FONTES ANGLO-NORMANDAS DO SÉCULO XI Lúcio Carlos Ferrarese 1 Jaime Estevão dos Reis 2 (Orientador) Resumo: Este trabalho tem como princípio a análise das fontes anglo-normandas do século XI referentes à figura de Guilherme da Normandia e seus seguidores, nos eventos anteriores, contemporâneos e posteriores à Batalha de Hastings de 1066. Essas fontes são a Tapeçaria de Bayeux e a crônica Gesta Guillelmi Ducis Normannorum et Regis

Anglorum, ou História de Guilherme, Duque dos Normandos e Rei dos Ingleses, escrita pelo capelão de Guilherme da Normandia, chamado Guilherme de Poitiers.A primeira se trata de uma narrativa imagética feita em bordado, enquanto a segunda é uma narrativa discursiva, ambas contemporâneas à vida dos retratados no século XI. Ao procedermos analise destas fontes é possível notar o aparecimento de vários indivíduos, ligados à narrativa. Essa singularização remete a uma sociedade na qual a mais importante relação política e social é o juramento da suserania e da vassalagem, feito de pessoa para pessoa, o que transforma as relações sociais entre esses senhores em um jogo político de interesses individuais. Palavras-chave:Idade Média, Guilherme, Política.

1PPH/UEM

2

UEM

307


Lúcio Carlos Ferrarese

A figura do duque Guilherme da

autores destas procuram enaltecê-lo como

Normandia, líder político e militar do século

seguidor de comportamentos cavaleirescos

XI, possui grande relevância histórica para

ilibados e incontestáveis. Da mesma forma,

o contexto social e político da Inglaterra

sua reputação como orador e persuasivo é

após o ano de 1066. Cognominado “o

retratada, visto esta ser uma habilidade

Conquistador” por invadir e conquistar os

imprescindível para se lidar com vassalos

ingleses na Batalha de Hastings, esse

que, muitas vezes, procuram estabelecer

senhor da guerra cristão e vassalo do rei

sua própria identidade e independência. A

francês

análise da presente pesquisa é fundada na

acabaria

por

reestruturar

as

relações feudo-vassálicas britânicas. Ao

observação

de

duas

destas

fontes,

adquirir as terras daquele reino em uma

contemporâneas aos eventos da Batalha

única geração, diferentemente da anterior

de Hastings do ano de 1066, criadas ou

história política da Inglaterra de lenta

modificadas após o desfecho desta.

absorção e várias invasões diferentes, ele

A primeira das fontes analisadas é a

pode centralizá-la ao redor de sua figura.

Tapeçaria de Bayeux. Esta é um longo

Entretanto, como suserano e conquistador,

trabalho em linho e lã, com cerca de 70

líder de vários vassalos, ele também possui

metros de comprimento por ½ metro de

a obrigação juramental de redistribuí-la a

largura, cujas linhas possuem cores como

seus seguidores, os quais permitiram sua

amarelo, marrom-amarelado, verde claro e

conquista e a quem ele deve apetecer.

escuro,

verde-azulado,

azul

e

cinza

Essa tensão entre os desejos de

(HICKS, 2007, p. 43-44). Em toda sua

unificação e centralização do indivíduo

extensão, apresenta imagens narrando

Guilherme e os desejos pessoais de seus

episódios da vida de Guilherme e de seu

seguidores marca também a trajetória

rival Haroldo Godwinson, imagens estas

deste homem. Líder político da região

por vezes acompanhadas de frases em

noroeste da França, ele é nominalmente

latim.

vassalo do rei francês, porém seu poderio é

Guilherme e de como este se tornou rei da

tal que ele exerce pleno domínio de suas

Inglaterra, em especial sua vitória na

terras,

Batalha de Hastings de 1066, ela se origina

recebendo

continental.

Sua

pouca posição

influência política

é

de

Narrando

um

ponto

parte

de

da

vista

história

de

obviamente

resultado de sua capacidade militar e sua

normando. A história se inicia no momento

reputação como cavaleiro é retratada nas

em que Haroldo Godwinson viaja para a

fontes como invejável, sendo que os

Normandia,

passandopelas

interações

308


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

amigáveis de Guilherme e Haroldo, a

a exaltar os seus feitos, comparando-o a

coroação contestada deste último e a luta

imperadores e guerreiros valorosos do

de ambos pelo reino inglês, se estendendo

conhecimento medievo da Antiguidade e de

até a derrota inglesano campo de batalha.

lendas e mitos.Diferentemente do feitio da

Sem autoria discernível, tanto o feitio

Tapeçaria

quanto

Guilherme de Poitiers tem seu autor

o

patrono

desta

fonte

são

desconhecidos.

de

Bayeux,

a

crônica

de

claramente definido. Este é o capelão de

A Tapeçaria apresenta a conquista

Guilherme, o Conquistador, um normando

de Guilherme como não apenas justificável,

nascido em Préaux, e que veio de uma

como sim o pleno restabelecimento da

juventude onde atuou como guerreiro.Sua

ordem social. Seu público alvo é não

posição como capelão de Guilherme faz

apenas Guilherme, mas também uma

com que possa entrar em contato com

exaltação de seus cavaleiros normandos, e

variados tipos de testemunhas dentro de

o convencimentode seus novos súditos

sua corte, e seu passado como guerreiro

ingleses de que a conquista é um desígnio

faz com que compreenda ao menos as

divino e uma punição pela traição vassálica

circunstâncias nas quais os combatentes e

de Haroldo (LEWIS, 1999, p. 22). A

o exército normando atuam durante a

narrativa faz uso de várias táticas para

guerra, fazendo-o observar as campanhas

isso, desde a afirmação direta através de

e ações de Guilherme a partir de um ponto

texto e imagem, até as representações das

diferenciado do de um escritor eclesiástico

fábulas e criaturas no cabeçalho e rodapé

que nunca tivesse experimentado a vida

da história, e passando por momentos de

militar.

ausência de explicações, de “silêncio”, que

A obra de Guilherme de Poitiers

os contemporâneos e conhecedores do

inicia sua narração com a morte do rei

contexto

Cnut, em 1035, até o assassinato de um

compreenderiam

tacitamente

(LEWIS, 1999, p. 32). Igualmente

dos vassalos de Guilherme, o Conde Copsi contemporânea

de

da Northumbria, em 1067. As descrições

Guilherme o Conquistador é a Gesta

referentes à Batalha de Hastings podem

Guillelmi Ducis Normannorum et Regis

ser

Anglorum, ou História de Guilherme, Duque

semelhantes aos da Tapeçaria de Bayeux,

dos Normandos e Rei dos Ingleses. Esta se

começando por uma descrição da condição

trata de uma crônica narrativa, que busca

de Eduardo o Confessor, a viagem de

apresentar a vida de Guilherme de maneira

Haroldo Godwinson até a Normandia, seu

percebidas

em

momentos

309


Lúcio Carlos Ferrarese

resgate e sua participação na guerra contra

conflito

com

o

exército

os bretões, seu juramento, a morte de

Godwinson, vencendo-o.

de

Haroldo

Eduardo e a coroação de Haroldo, as

Guilherme é então coroado em

tentativas diplomáticas e a preparação da

Londres no Natal de 1066 e a atuação

guerra, até afinal a batalha em si, onde

normanda

Haroldo finalmente é morto.

Inglaterra, sobretudo no que se refere às

Referentes

aos

mudará

os

destinos

da

acontecimentos

relações feudo-vassálicas, submetidas a

principais a que estas fontes se referem,

uma política mais centralizadora por parte

estas apresentam a conquista da Inglaterra

do rei. Em última instância, todas as terras

feita pelos normandos no ano de 1066. A

do reino pertencem ao monarca (BRIGGS,

Normandia e a Inglaterra do século XI são

1998, p. 64), o que facilitará a centralização

geograficamente

do

e

politicamente

muito

poder

dos

monarcas

ingleses

próximas uma da outra, visto que o rei

posteriores e diferenciará a Inglaterra da

Eduardo o Confessor (1004-1066), rei da

situação

Inglaterra, tinha como ascendentes os

Entretanto,

duques da Normandia por parte de mãe.

Guilherme tem de lidar com seus vassalos,

Ambas estas regiões têm um modelo de

lidar com seus desejos e anseios. Sua

suserania-vassalagem cujo princípio é a

vitória também é uma vitória da Cavalaria,

maior independência dos vassalos, de tal

tanto

forma que da morte de Eduardo, os lordes

armado, e ambas as fontes apresentam

ingleses reúnem-se em conselho para

episódios e personagens que exaltam esse

eleger um dos seus, Haroldo Godwinson,

conceito,

como rei apesar de não possuir nenhum

personagem principal que é Guilherme.

feudo-vassálica até

como

por

esta

instituição

vezes

continental.

vitória

triunfante

quanto

à

grupo

revelia

do

parentesco. Essa decisão é contestada

Na Tapeçaria de Bayeux, tendo em

pelo parente mais próximo de Eduardo,

vista a forma como as imagens e frases

Guilherme da Normandia, e o conflito pela

são representadas, a possibilidade de

coroa se inicia. Guilherme então prepara

observação destas exaltações pode ser um

suas tropas para cruzar o Canal da

reflexo de uma projeção posterior, visto

Mancha, entrando em contato com seus

desconhecermos as intenções dos autores.

aliados e vassalos (DEVRIES, 2009, p. 19-

Entretanto, considerando-se o contexto do

21), e acaba por desembarcar perto de

século XI, é possível verificar passagens

Hastings, onde ainda em 1066 entra em

onde tal celebração da cavalaria é feita, por vezes mesmo à efeitos cômicos. Desde o

310


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

início da Tapeçria vemos a união dos

os já mencionados Guy e Odo, bem como

conceitos de cavaleiros e de suserania-

Wadard, Vital, e uma figura apontando para

vassalagem, visto que a primeira figura

Guilherme durante um momento crucial da

apresentada, Haroldo Godwinson, é tanto

batalha,

vassalo do poderoso rei inglês quanto um

perdido, mas presume-se ser o vassalo de

poderoso

Guilherme, conde Eustacio da Bolonha

(GRAPE, 1994, p. 91-93). Deveras, figuras

(GRAPE, 1994, p. 161). Finalmente, em

posteriores de autoridade sempre estão

outros momentos ainda temos a atuação

acompanhadas de cavalos ou montadas,

simplesmente da própria cavalaria, não

como o Conde Guy da Normandia, o Bispo

nomeada, porém agindo impetuosamente

Odo de Bayeux, e o próprio Duque

mesmo à revelia das palavras de seu líder

Guilherme em batalha. A nomeação de

Guilherme, quando fazem uma investida

Guy, apesar de desempenhar um papel

enquanto o duque normando está a proferir

comparativamente

um discurso à suas costas (GRAPE, 1994,

cavaleiro

nobre

menor

por

na

si

história,

demonstra ainda sim sua capacidade de

cujo

nome

foi

parcialmente

p. 150-154).

influência, o bastante para ser retratado,

Quanto à crônica de Guilherme de

tendo de ser tutorado por Guilherme quanto

Poitiers, apesar da intenção autoral de

ao que fazer com o hóspede Haroldo

elevar

(GRAPE, 1994, p. 104-105).

vassalos são ainda mais proeminentes na

Outros

ações,

a

normando. Por exemplo, a atuação de

importância e união do cavaleirismo e dos

Rivoallon, senhor do castelo nas terras

juramentos sagrados, feitos durante as

aonde Conan da Bretanha e Guilherme da

promessas dos suseranos e dos vassalos.

Normandia iriam se degladiar (POITIERS,

Guilherme não só ordena Haroldo como um

1973, p. 36-37) é veemente ao pedir a seu

cavaleiro na tradição continental como

suserano ducal para que leve o combate

também obtêm dele juramentos para que

para outro local. Os feitos e nomes de

este ajude o normando a possuir a coroa

vários

inglesa por direito (GRAPE, 1994, p. 115;

mencionados, porém a mais emblemática

117).

vassalos

passagem da importância dos vassalos

importantes, cuja participação na história

cavaleirescos de Guilherme se refere ao

por vezes aparenta ser incidental, são

convencimento destes para que invadam a

claramente nomeados na Tapeçaria, como

Inglaterra:

Em

outros

momentos,

ações

senhores

são

do

os

demonstram

outros

das

suas

da

também

determinação

e

importantes

narrativa

pontos

Guilherme

líder

também

311


Lúcio Carlos Ferrarese

“Duke

his

seguem cegamente, utilizando de sua

supporters, and then decided to avenge this

diplomacia, ameaças, astúcia e promessas

William

sought

the

advice

of

insult and lay claim to his inheritance by force of arms. It is true that quite a few of his leaders did their utmost to dissuade him from it, as an enterprise at once too difficult and far beyond the natural resources of Normandy. In addition to its bishops and abbots, Normandy had among its

para angariar a força armada e o apoio necessário para a invasão da Inglaterra. Deveras,

quando

durante

a

preparação Guilherme consegue capturar

advisers at that time a number of outstanding

um espião de Haroldo, que tinha vistoriado

laymen, who added great distinction and renown

as forças invasoras, e o liberta sem temor

to its council-meetings: Robert, Count of Mortain; Robert, Count of Eu, the brother of Hugh, Bishop

algum, alguns de seus vassalos novamente

of Lisieux, […]; Richard, Count of Evreux, the son

expressam

of Archbishop Robert; Roger of Beaumont; Roger

paradigmático que Guilherme tem que

of Montgomery; William FitzOsbern: and Hugh the Viscount. Thanks to the wisdom and energy

temor

pela

campanha.

É

reafirmar seus votos individuais diante de

of these men, she had no occasion to fear for

todos para convencer esses indivíduos a

her safety. With such men to help her, the

manterem-se em curso:

Republic of Rome would have had no need for two hundred senators, even supposing that in our days it had still retained its erstwhile power. What is more, in all their deliberations, as I myself know full well, these men recognized the wisdom of their lawful prince, as if, by some divine inspiration, he knew in advance what was best to be done and what was better left undone. ‘To those who act according to His dictates, God gives wisdom’, as someone has said who knew His will. From his childhood onwards Duke William has been God-fearing in all his behavior. When he has given an order no-one has disobeyed it, unless there were some cogent reason for doing so” (POITIERS, 1973, p. 38).

Guilherme, cercado de tão augustos senhores, deve fazer com que sua decisão seja aceita, e procede a convencê-los um a um quando falha em convencê-los em concílio (ABBOT, 2009, p. 175). Indispostos a fazerem parte de uma empresa a qual temem ser infrutífera, Guilherme tem de lidar com esses vassalos que não o

“The duke restored their courage by making the following speech. ‘We all know about Harold’s military skill,’ he said. ‘If it fills us with fear, it also raises our expectations. He is using his wealth to no purpose. He may spend his money, but he is powerless to bolster up his throne. He lacks the daring and the strength of purpose to offer even the smallest portion of what those of my faction are prepared to promise. Those possessions, which are really mine, but which he pretends to be his, I hereby offer to you, and they will be distributed as I think fit. The man who is in a position to give away not only his own property but also the land which the enemy actually occupies cannot fail to win the day. […] Wars are won by courage, not mere force of numbers. What is more, Harold will be fighting to retain what he has stolen. We, on the other hand, will be striving to gain what we have accepted as a gift, what we have bought by services rendered. This firm conviction of the strength of our cause must set aside all sense of danger: it will ensure our happy triumph, proclaim our honour to the world and make memorable our name.’ ” (POITIERS, 1973, p. 41).

312


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Defesa de uma causa justa, riquezas

De maneira similar, o pensamento

a serem conquistadas e apelo ao ânimo

sócio-político

individual à piedade e também à ganância

relações homem-a-homem. O advento da

desses senhores medievais. Esses fatores

suserania-vassalagem faz com que as

demonstram a visão que os criadores das

promessas sejam o ritual pelo qual os bens

fontes

e os serviços são prestados: o suserano

anglo-normandas

tinham

dos

compõem. Embora pertençam a um corpo

individuo, e o vassalo promete servir

militar e político que possui similaridades,

àquele homem. O selo dessa aliança é o

são as ações individuais, não apenas das

recipiente do feudo colocar as mãos,

personagens principais, mas também das

unidas, dentro das mãos do doador, olhá-lo

secundárias, que determinam o papel

nos olhos e proferir suas palavras, um ato

desempenhado na história. Mesmo quando

completamente distante de ser impessoal.

não

são

Quando um dos lados falece, a promessa

tratados como indivíduos, unidos em busca

tem de ser refeita, seja explícita ou

de um objetivo comum.

implicitamente.

assim

Isso é reflexo também de suas

para

as

concede

ainda

terra

perpassa

indivíduos, mas não dos grupos que os

mencionados,

a

também

determinado

Por fim, isso também é reflexo do

sociedades, onde todas as formas de

pensamento

interação são pensadas pelo indivíduo.

Diferentemente de uma noção antiga de

Dentro do pensamento da cavalaria no

que todo o povo de um senhor deve se

século XI, não é o ataque em uma unidade

converter – como o fizera o Império

compacta, uniforme, que ganha a batalha,

Romano de Constantino, e os Francos de

mas sim as ações valorosas de cavaleiros

Clóvis I - a salvação da alma passa cada

nomeados, homens estes guiados por um

vez mais a ser escrutínio do indivíduo,

código de conduta deferente à tradição

evidenciado por suas ações. Numa Europa

guerreira

ao

cada vez mais cristianizada, a expansão do

cristianismo (KEEN, 2005, p. 13). A honra

cristianismo faz com que os conflitos

se ganha para si, não para seu pelotão,

internos não sejam mais uma luta entre o

quando mais este sendo famoso por ser

povo escolhido por Deus contra seus

uma coleção de cavaleiros individuais

inimigos, como foram os bárbaros e os

valorosos, como os 12 pares de Carlos

vikings. Agora que a maioria dos homens é

Magno

ao menos nominalmente cristã, deve-se

dos

ou

Redonda.

os

antepassados

cavaleiros

da

e

Távola

religioso

do

século

XI.

atentar para que não se desviem do

313


Lúcio Carlos Ferrarese

caminho da salvação confiado à Igreja. Os

apresentam uma maior atenção aos atos

indivíduos então são exaltados por suas

dos

virtudes próprias, ou condenados por suas

posteridade. Esse é o reflexo de uma

ações intransferíveis, tal qual em ambas as

percepção da história como consequência

fontes Guilherme é visto como instrumento

dos feitos de cada ser humano, atuador da

divino para a conquista da Inglaterra,

história, espelho de uma sociedade que vê

enquanto Haroldo é julgado por suas

um Deus que se encarna para levar adiante

ações,

um

seu plano divino. Tal cosmovisão abarcará

perjuro

todos os planos da existência – não são

que

quebrador

o

de

apresentam promessas,

como um

mentiroso que deve pagar por tal pecado. Neste momento de transição do século XI, a Tapeçaria de Bayeux e a crônica

de

Guilherme

de

indivíduos,

nomeando-os

para

a

“os”, mas “o cavaleiro”, “o rei”, “o homem”, remetendo ultima ratio a um único senhor, Deus.

Poitiers

Referências: ABBOTT, J. History of William the conqueror:markers of history. New York: Cosimo Classics, 2009. BARTHÉLEMY, Dominique. A cavalaria:Da Germânia antiga à França do século XII. Tradução: Néri de Barros Almeida e Carolina Gual da Silva. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2010. BLOCH, Marc. A sociedade feudal.Lisboa: Edições 70, 1987. BRIDGEFORD, Andrew. 1066: the hidden history in the Bayeux Tapestry.New York: Walker & Company, 2004. CARDINI, Franco. O guerreiro e o cavaleiro. In: LE GOFF, Jacques. O Homem

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314


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315


O DISCURSO DE XENOFONTE E A REPRESENTAÇÃO DE AGESILAU II, NO SÉCULO IV A.C. Luis Filipe Bantim de Assumpção 1 Resumo: Uma análise aprofundada sobre as sociedades helênicas, do período Clássico, não pode se isentar de tangenciar os escritos de Xenofonte. A contribuição deste autor é de suma importância, em medida que ele vivenciou as guerras do Peloponeso, assim como experimentou os seus resultados de tal confronto frente às póleis da Hélade. No entanto, Xenofonte nos chama a atenção por ser um ateniense admirador de Esparta, cujos trabalhos por vezes elogiaram a constituição e os feitos dos espartanos de seu tempo. Para essa comunicação iremos nos enfocar sobre a representação que Xenofonte construiu do basileuAgesilau II de Esparta, onde o escritor euforizou as atitudes políticomilitares desse governante, como um exemplo de conduta e digno de ser seguido. Sendo assim, objetivamos por investigar a obra e o contexto social de Xenofonte, em conformidade com as suas possíveis intencionalidades, as quais teriam culminado neste particular elogio Agesilau II. Palavras-chave:Xenofonte; Esparta; Discurso.

1Prof.

Ms. NEA/UERJ

316


Luis Filipe Bantim de Assumpção

O período Clássico da Hélade foi marcado

transformações

período Clássico, e os seus opositores por

políticas, sociais, econômicas e culturais

vezes se utilizavam das vias literárias para

em, praticamente, todas as sociedades que

manifestarem as suas insatisfações com

circundavam o Mar Egeu. No entanto,

esta forma de governo.

dentre

por

as

destacar

intensas

partilhado por todos os atenienses do

póleis

helênicas

podemos

Atenas,

cujas

inovações

Contudo,

democracia

representação

a

como

um

regime

da

político

marcaram uma época, fazendo com que os

equilibrado e dotado de ampla aceitação

historiadores modernos a tomassem como

entre

um marco da Antiguidade. De fato, temos

historiografia por vezes sugeriu, pode ser

que concordar que a democracia, enquanto

questionada

forma de governo, representou a transição

documentação literária. Dialogando com

de um habitusaristocrático predominante

Alain Duplouy, este nos chama a atenção

entre os helenos para a ampliação dos

para

direitos de participação política a todos

representações

aqueles identificados como cidadãos.

constituições políades, pois, as mesmas

Todavia, a noção de “liberdade”

os

os

atenienses, a

partir

cuidados

tal dos

como

a

indícios

da

necessários

documentais

as das

foram construídas para corresponderem a

associada aos pressupostos democráticos,

um

bem como a sua valorização, teria sido o

atrelado ao contexto histórico em que

resultado de uma apropriação promovida

foram desenvolvidas. Sendo assim, ao

por

indagarmos

políticos

e

intelectuais

europeus

interesse

a

particular

diretamente

documentação

minimizar

modernos, na tentativa de consolidarem os

podemos

seus interesses político-sociais com base

historiográficos, e assim percebermos a

na Antiguidade. Desta maneira, o uso da

especificidade dos regimes políticos e dos

tradição e das práticas relacionadas ao

discursos documentais que nos chegaram,

Mundo Antigo seria capaz de legitimar os

em concomitância com os interesses de

governos que emergiam na Europa – como

cada polis (DUPLOUY, 2006, p.12-13).

uma possibilidade ao Antigo Regime – e as

Seguindo os pressupostos de Duplouy

tendências econômicas que prezavam pela

podemos enfatizar que ao analisarmos o

liberdade comercial até então restrita aos

discurso de um autor clássico específico

“homens do povo” (ASSUMPÇÃO, 2014,

podemos

p.72-73). Entretanto, devemos destacar

política em que o mesmo se encontrava,

que a democracia não foi um ideal

em conformidade com a sua sociedade.

obter

os

literária

indícios

generalismos

da

realidade

317


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Mediante o exposto somos capazes de

Já em “As Rendas”, Xenofonte havia

iniciar a nossa investigação acerca da

recuperado a sua cidadania e estaria

representação do basileu lacedemônio

escrevendo no final de sua vida, período no

Agesilau II, no discurso do ateniense

qual Atenas almejava a recuperação de

Xenofonte. Para tanto, torna-se necessário

sua

associarmos

(TUÑON, 2008, p.133-134). O referido

a

figura

de

Xenofonte,

posição

hegemônica

de

outrora

enquanto locutor, e as suas possíveis

pensador

motivações ao construir uma imagem

maneira de administrar a pólis ateniense

euforizada

sem que os seus cidadãos precisassem da

de

Agesilau,

no

contexto

político-social da Atenas do século IV a.C.

estaria

autoridade

Xenofonte foi um dos pensadores

demais

que

sugerindo

mantiveram

helenos

a

melhor

sobre

os

As

(XENOFONTE,

atenienses que mais produziu escritos de

Rendas, 1.1-2). Com isso, verificamos que

matriz literária. Do mesmo modo, podemos

o

observar que as obras de Xenofonte

transformado

tendem a nos fornecer indícios do contexto

circunstâncias históricas, onde o autor

histórico em que o autor se encontrava.

abandona uma perspectiva de oposição a

Podemos citar o caso da “Constituição dos

Atenas em medida que a sua relação com

Lacedemônios” e o “As Rendas”. No

a pátria ateniense foi restaurada e o

primeiro temos um locutor dedicado a

mesmo já não se encontrava sob a

exaltar a constituição de Esparta – em

proteção de Esparta.

grande

parte

tradicionalismo,

da

obra

que

ao

pelo

prezar

discurso

de

Xenofonte

em

das

Entretanto, o nosso enfoque no

pela

presente artigo é a representação que Xenofonte

elaborou

fez desta a pólis mais poderosa da Hélade

lacedemônio

Agesilau

discurso

decorrência

se

seu

obediência e a disciplina de seus cidadãos (XENOFONTE,

teria

Cons. Lac., 1.1-2). O

basileu

do II,

no

elogio

intitulado “Agesilau”. Nesta obra, podemos

ser

notar que o discurso do autor ateniense

à

manifesta um tom de defesa junto às ações

democracia ateniense que o havia exilado,

político-militares de Agesilau, mas também

mas também um aviso aos seus pares para

uma possível justificativa de suas próprias

os perigos oriundos dessa forma de

atitudes para com a sociedade de Atenas,

governo, no contexto histórico pós-guerras

no final do século V a.C.. Todavia,

do Peloponeso.

devemos “lançar luz” à figura de Xenofonte,

de

compreendido

Xenofonte como

poderia

uma

crítica

318


Luis Filipe Bantim de Assumpção

para daí obtermos os indícios necessários

circundante

para comprovar a nossa argumentação.

Jaeger pontua que o fim das Guerras do

Conjeturando a partir da obra de William

Higgins,

p.1215).

Peloponeso teria marcado a vida de Xenofonte, obrigando-o a tomar decisões

Xenofonte, enquanto ateniense e escritor,

importantes, ainda que fosse relativamente

reside no lugar que este ocupava em

jovem (JAEGER, 1995, p.1216). George

Atenas, na segunda metade do século V

Cawkwell

a.C. (HIGGINS, 1977, p.128). A assertiva

considerações dos pesquisadores citados

de Higgins pôde ser complementada por

acima. Nos dizeres de Cawkwell, as

MosesFinley, ao declarar que Xenofonte

escolhas

de

teria nascido nos primeiros anos das

associadas

ao

Guerras do Peloponeso, em uma família

pertencia, mas também a dura realidade

ateniense com recursos suficientes para

oriunda dos longos anos das Guerras do

conferir-lhe uma educação aprimorada. Os

Peloponeso. O referido escritor ateniense

traços

se

integrou o segmento censitário dos hippeis 2

manifestado em seu interesse por filosofia,

atenienses, composto por homens com

equitação e técnicas militares (FINLEY,

recursos suficientes para arcarem com as

1959, p.381). Por sua vez, E. Marchant

despesas

argumentou que as evidências históricas

cavalos, mas também a possibilidade de

sobre a vida de Xenofonte nos permite

servirem no exército como cavaleiros.

considerar que o mesmo perpassou por um

Segundo Cawkwell, com o decorrer das

processo educacional digno dos segmentos

Guerras do Peloponeso, os hippeis ficaram

sua

especificidade

1995,

de

de

a

(JAEGER,

formação

teriam

nos

permite

interagir

Xenofonte grupo

provenientes

estiveram

social

da

as

ao

qual

criação

de

mais tradicionais da pólis de Atenas, o que torna

aceitável

as

suas

críticas

aos

excessos da democracia (MARCHANT, 1968, p.ix). Tomando

Mediante os trabalhos de George Cawkwell e Peter

Jones, conjeturamos que os hippeis era um dos grupos censitários, nos quais os cidadãos atenienses eram

um

viés

relativamente

particular aos demais especialistas, Werner Jaeger

2

ressaltou

que

Xenofonte

identificados e cuja renda anual era de 200 a 300

medimnos(μέδιμνος) de grãos – cada medimno equivalia a um volume de aproximadamente 54 litros –, sendo

não

reconhecidos como o segundo segmento mais rico de

poderia ser compreendido como a típica

Atenas. Outro elemento que caracterizava os hippeis era

expressão de uma época, haja vista a sua

a capacidade de arcar com as despesas provenientes da criação de cavalos, o que lhes fornecia um lugar de

conduta político-militar e a maneira como

destaque junto ao corpo de combatentes e a sociedade

observava/representava

como cavaleiros (CAWKWELL, 1979, p.08; JONES, 1997,

o

mundo

pp.376, 378).

319


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

descontentes com a política de Atenas, em

tentativa de manterem o seu status político-

medida

se

social. Mediante tal perspectiva, somos

encontrarem propensas à devastação dos

capazes de inserir a figura de Xenofonte no

peloponésios

contexto descrito.

que

suas –

propriedades

liderados

por

Esparta

Em sua “Anábasis”, Xenofonte nos

(CAWKWELL, 1979, p.08). Dessa maneira, Eugene Tigerstedt sugeriu que Xenofonte

esclareceu

tenha aderido, e participado, diretamente

chamado Próxeno – o convenceu a integrar

da “revolta oligárquica”, a qual se realizou

o contingente militar sob as ordens do

em Atenas em 411 a.C. (TIGERSTEDT,

sátrapaCiro “o jovem”, levando o autor

1965, p.160). Sendo assim, podemos

ateniense a partir de sua pátria (Anábasis,

sugerir que Xenofonte foi adepto de um

III, 1.4).Nos dizeres de Carlos García Gual,

regime político oligárquico, o qual teria se

esta ocasião teria se dado no ano de 401

tornado intransigente com os ideias da

a.C., período no qual Atenas vivenciava um

democracia em decorrência dos anos de

ambiente político de muita tensão, em

guerra e dos gastos que os membros de

virtude da atuação dos “Trinta Tiranos” e

seu

das

segmento

detinham

para

manter

que

medidas

um

amigo

beócio

implementadas

pela

democracia, após a sua restauração em

Atenas no conflito. O período histórico de Xenofonte

403 a.C. (GUAL, 2010, p.15). As condições

suas

político-sociais da pólis ateniense teriam se

escolhas enquanto ateniense, guerreiro e

tornado intoleráveis para Xenofonte, onde o

cidadão abastado. Podemos sugerir que o

autor declarou que Próxeno o convidou a

contribuiu

estilo

de

diretamente

vida

as

hippeis

fosse

partir para a Ásia, tendo em vista que “[...]

dispendioso, não somente pela criação de

teria mais valor para sido que para a sua

cavalos,

própria pátria” (Anábasis, III, 1.4). O

mas

dos

para

pela

necessidade

de

demarcar a identidade dos seus membros,

discurso

os quais não eram vistos pela póliscomo

interpretado como um esclarecimento aos

sujeitos comuns. Com isso, a perda de

seus interlocutores acerca do motivo de

recursos ocasionada pelos conflitos nas

sua partida de Atenas, afinal, atuar como o

Guerras do Peloponeso, bem como pela

guerreiro para o qual foi formado e não

devastação das áreas rurais – e de

estar submetido às determinações políticas

produção de alimentos – dos homens ricos

da democracia, poderia ser um atrativo

de Atenas, fez com que os seus membros

para um homem oriundo dos hippeis

recorressem a outros mecanismos na

atenienses.

de

Xenofonte

pode

ser

320


Luis Filipe Bantim de Assumpção

Entretanto, devemos nos atentar

nosso trabalho, podemos afirmar que o

para a intencionalidade do discurso de

discurso de Xenofonte seria um mecanismo

Xenofonte, a qual perpassa por todas as

político-social empregado pelo autor/locutor

manifestações

na sua tentativa de transmitir e exprimir,

literárias

do

autor.

Tal

interlocutores,

argumentação não deve ser tida como uma

junto

crítica, pois, toda e qualquer palavra

representações que elaborou para justificar

proferida detém uma intenção visando uma

a sua conduta político-social frente a

finalidade. Para tanto, iremos empregar os

Atenas democrática.

aos

seus

as

conceitos de discurso e representação na

Retomando a figura de Xenofonte,

elaboração do presente artigo. Tomando

este nos informou que antes de decidir

como referencial os estudos de Pierre

quanto a sua ida para a Ásia, o mesmo

Bourdieu, este definiu o discurso como o

procurou o filósofo Sócrates com o intuito

ambiente

de se aconselhar. Sócrates temia que a

onde

ocorrem

as

relações

interpessoais – por meio do ato da fala –

pólis

com o objetivo de se transmitir valores,

Xenofonte por sua associação com um

representações

aos

sátrapa persa, e para tanto pontuou que

membros de uma sociedade. Bourdieu nos

era necessário consultar as designações

adverte para o fato do discurso de um autor

do sagrado, através do oráculo de Apolo

estar diretamente atrelado, e submetido, às

em

especificidades históricas de sua realidade

representação de Sócrates poderia ter sido

social (BOURDIEU, 2009, p.94). Por sua

construída com a intenção de demonstrar a

vez, a representação seria uma imagem

preocupação do filósofo, para com os

construída acerca de um objeto na tentativa

interesses da pólis, bem como para com o

de interpreta-lo/explica-lo em conformidade

próprio

com

podemos

práticas

e

os

nossos

junto

interesses

e/ou

de

Delfos

Atenas

viesse

(Anábasis,

Xenofonte. fazer

a

III,

Outra seria

reprovar

1.5).

Esta

leitura de

que

que

a

experiências sociais (BOURDIEU, 2009,

representação de Sócrates proposta por

p.46). Imersos nessa lógica, verificamos

Xenofonte, também estaria preocupada

que não existe um discurso neutro e

com os excessos da democracia, porém,

imparcial, aspecto esse que culmina na

devido ao seu conservadorismo político o

construção de representações específicas

mesmo preferiu que o seu amigo, e pupilo,

visando a legitimação da própria atividade

consultasse os desígnios divinos. Logo,

discursiva. Dessa maneira, adaptando o

podemos

arcabouço teórico de Bourdieu para o

representado na “Anábasis” seria um

supor

que

o

Sócrates

321


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

mecanismo do discurso de Xenofonte para

descrever o desfecho do conflito em

inocentar

as

Cunaxa, Xenofonte afirmou que Ciro seria

acusações que o levaram a morte, ou para

“[...] o homens mais capaz e digno de

enfatizar que o filósofo tinha conhecimento

governar dentre os persas que sucederam

o

seu

preceptor

frente

acerca

Ciro, o Velho” (Anábasis, I, 10.1). A

daqueles que se opusessem as suas

exposição da trajetória inicial de Xenofonte

determinações, sendo Sócrates uma de

na

suas “vítimas”.

importância,

da

conduta

dos

democratas

Ao partir para a Ásia, Xenofonte teria

Ásia

tornou-se em

de

demasiada

medida

que

em

decorrência desses eventos que o escritor

se encontrado em Sárdis com Próxeno e

ateniense

se

encontra

com

Ciro, local onde o ateniense estabeleceu

basileuAgesilau II da Lacedemônia.

o

relações de reciprocidade com o sátrapa.

Em aproximadamente 400 a.C., o

Todavia, Xenofonte esclarece aos seus

lacedemônio Tíbron foi enviado a Ásia

interlocutores que Ciro não havia informado

Menor na condição de harmoste para poder

os mercenários helênicos que a sua

combater o sátrapaTissafernes, que após a

expedição seria contra o “Grande Rei”

morte

Artaxerxes II – irmão do referido sátrapa

responsável pelas suas possessões e

(Anábasis,

Ao

agora exigia que os helenos das póleis

interagirmos com o discurso de Xenofonte,

jônias se submetessem ao “Grande Rei”.

o autor deixa transparecer que o insucesso

Nessa ocasião, os guerreiros helênicos

de Ciro ocorreu devido as atitudes do persa

remanescentes

Tissafernes, que ao tomar conhecimento

passaram para o comando de Tibrón

dos seus planos se encontrou com o

(XENOFONTE, Helênica, III, 3.1-5). Por

“Grande Rei” e lhe contou sobre os

sua vez, Xenofonte complementa a sua

preparativos de seu irmão mais novo

argumentação ao declarar que, ao chegar

(XENOFONTE, Anábasis, I, 2.4-5). Nesse

em

contexto, Ciro e Artaxerxes tomaram as

mercenários

medidas necessárias para o desenrolar de

Tibrón (Anábasis, VII, 8.24). No ano

um confronto bélico, o qual culminou com a

seguinte (399 a.C.), Tíbron foi acusado de

“batalha de Cunaxa”. Embora os helenos

atacar territórios aliados aos lacedemônios,

tenham vencido os seus opositores, Ciro

sendo

acabou sendo morto na tentativa de atacar

Dercílidas,

Artaxerxes (Anábasis, I, 9.27-29). Após

aproximadamente

I,

2.1;

III,

1.8-10).

de

Ciro,

Pérgamo

o

do

com

jovem,

exército

o

helênicos

substituído cuja

se

de

Ciro

contingente os

entregou

de a

esparciata

pelo

liderança dois

tornou

durou

anos,

por

até

322

ser


Luis Filipe Bantim de Assumpção

substituído pelo basileuAgesilau (em 396 (Helênica,

a.C.)

4.1-5).

pela sua interação com os persas ou com

Xenofonte

Esparta. Contudo, se nos fundamentarmos

podemos supor que o mesmo permaneceu

no discurso de Xenofonte e na sua

sob a autoridade político-militar de Esparta,

representação de Sócrates, podemos supor

a partir de 400 a.C.. Ainda que Xenofonte

que

não tenha informado se combateu ao lado

construída

dos lacedemônios na Ásia Menor, partimos

fornecido indícios quanto às motivações da

da perspectiva que sim, em virtude da sua

democracia em exilar Xenofonte. Com isso,

interação direta com Agesilau em 396 a.C..

podemos enfatizar que os democratas

De forma semelhante, devemos considerar

atenienses tenham retirado os direitos

que Xenofonte tenha ocupado uma posição

políticos de Xenofonte pela sua associação

de

com os persas, tendo em vista que Ciro era

Conjeturando

III,

a

prestígio

1.8-10;

Xenofonte pelos atenienses tenha ocorrido

partir

frente

de

aos

comandantes

a

imagem

lacedemônios, afinal, o mesmo conhecia os

aliado

guerreiros que haviam combatido com Ciro

espartanos

e

Peloponeso.

poderia

ser

empregado

como

um

intermediário entre os interesses mútuos de ambos os lados.

na

de

do

filósofo

“Anábasis”

Lisandro no

e

final

das

ateniense tenha

nos

financiou

os

Guerras

do

Ao situarmos Xenofonte em seu contexto histórico podemos iniciar a análise

Embora não possamos concluir que

de sua representação do basileuAgesilau II.

Xenofonte tenha atuado nas campanhas

Como nos esclareceu E. Marchant, o elogio

militares dos lacedemônios, na Ásia Menor,

a

o mesmo declarou que regressou a Hélade

Xenofonte pouco tempo depois da morte do

com Agesilau II (em 394 a.C.). Nesse

referido basileu, ou seja, por volta de 360

processo, Xenofonte teria combatido ao

a.C.. Segundo Marchant, o “Agesilau” de

lado do basileulacedemônio na batalha de

Xenofonte pretendia minimizar as críticas

Coroneia, onde acabou se opondo ao

que Agesilau sofreu pelas suas ações

exército ateniense (Helênica, IV, 3.15-21).O

político-militares,

autor ainda afirma que ao retornar ao

(MARCHANT,

território helênico se encontrava exilado de

perspectiva parece ter sido partilhada por

Atenas,

ÉdouardDelebecque,

sendo

favorecidopelos

Agesilau

II

teria

sido

após 1968,

a

escrito

por

sua

morte

p.xviii).

Essa

pois

o

mesmo

lacedemônios com o vilarejo de Escilunte,

enfatizou que ao se comparar a figura de

na região de Elis (Anábasis, V, 3.7-9). Não

Agesilau elaborada na “Helênica”, com a

podemos

representação construída em “Agesilau”,

precisar

se

o

desterro

de

323


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

podemos

notar

a

intencionalidade

do

interlocutores a se identificarem com a

discurso de Xenofonte. Delebecque expôs

representação

que os excessos de Agesilau na “Helênica”

maneira,

não são expostos da mesma maneira que

reconhecido como dotado de um ideal

em seu “Agesilau”, cujo principal propósito

“pan-helênico”,

seria elogiar as suas virtudes e feitos

militares foram para o bem da Hélade

pessoais (DELEBECQUE, 1957, p.462).

(HARMAN,

o

de

Agesilau

II.

Dessa

basileu lacedemônio seria cujas

2012,

ações

p.427-428).

políticoHarman

Dialogando com Steven Hirsch, no

declarou que a noção de “pan-helenismo”

discurso presente no “Agesilau”,Xenofonte

se fazia presente somente no âmbito

teria o objetivo de criar uma representação

“intelectual” – sobretudo de Atenas – onde

do basileu lacedemônio como um “herói

as

pan-helênico”, cujas atitudes pretendiam

poderiam acarretar no enfraquecimento e

beneficiar a Hélade e retribuir aos persas

desestruturação das sociedades envolvidas

as ofensas que outrora estes realizaram

(HARMAN, 2012, p.428-429). Devemos

com as Guerras Greco-pérsicas (HIRSCH,

enfatizar

1985,

ao

especialistas citados são uma possibilidade

fazermos a correspondência do discurso de

profícua do encômio a Agesilau II, porém,

Xenofonte na “Helênica” e no “Agesilau”

verificamos

iremos observar que muitos fatos de

identificados como a única possibilidade de

demasiada

análise.

p.42).

Hirsch

aponta

relevância

que,

histórica

foram

sucessivas

que

guerras

os

que

entre

helenos

apontamentos

não

dos

devem

ser

omitidos na segunda obra, ainda que

Ao iniciar o seu elogio a Agesilau,

tenham sido explicitados na primeira. Essa

Xenofonte esclarece que seria incapaz de

postura teria a finalidade de euforizar à

descrever todas as virtudes e a fama do

conduta

de

referido basileu, porém, faria essa tentativa

demonstrar a sua contribuição para os

para que um homem bom (kalós) pudesse

embates de Esparta e Tebas, os quais

receber as honras de sua “perfeição”

teriam culminado na derrocada espartana

(agathos) (Agesilau, 1.1). Em seguida, o

na batalha de Leuctra (371 a.C.) (HIRSCH,

autor

1985, p.47-48). Rosie Harman endossa os

Agesilau, tendo em vista que descendia de

pressupostos de Hirsch, ao argumentar que

Héracles e por ser basileu na pólis mais

a linguagem de Xenofonte no “Agesilau”

importante da Hélade (Agesilau, 1.2-3). Do

exaltava

mesmo

de

as

Agesilau,

ao

qualidades

invés

morais

do

governante, no intuito de levar os seus

ateniense

modo,

constituição

e

exalta

segundo o

regime

a

estirpe

de

Xenofonte, político

a

que

324


Luis Filipe Bantim de Assumpção

vigoravam

em

Esparta

ser

combateu os persas. Essa polarização

elogiados, pois diferentemente das demais

entre “helenos e persas” estaria atrelada a

formas de governo – democracia, tirania,

ideia de “pan-helenismo” proposta por

oligarquia e basiléia – somente entre os

Hirsch

esparciatas os basileus mantiveram suas

demonstra os prejuízos dos conflitos entre

prerrogativas

as póleis da Hélade, quando o verdadeiro

de

deveriam

maneira

ininterrupta

(Agesilau, 1.4). O discurso de Xenofonte

e

Harman,

onde

Xenofonte

inimigo seria o “Grande Rei” da Pérsia.

parece querer justificar a construção de um

Essa concepção pode ser verificada

elogio a Agesilau, onde não somente as

quando Xenofonte representa Agesilau

suas qualidades pessoais deveriam ser

como um comandante que não se alegrava

ressaltadas como também a sua linhagem

em vencer uma guerra contra helenos.

e a preponderância que Esparta detinha

Assim como o apresenta lamentando a

junto aos helenos.

morte de aproximadamente dez mil helenos

Todavia, se Xenofonte escreveu o

que pereceram contra os lacedemônios na

seu encômio após a morte de Agesilau, a

batalha de Corinto, pois, “[...] se os que

pólis

a

jazem aqui agora estivessem vivos seriam

exerceu

o suficiente para derrotar todos os bárbaros

sobre os helenos até a batalha de Leuctra.

em batalha” (XENOFONTE, Agesilau, 7.4-

Retomando a proposta de Steven Hirsch e

5). De acordo com Rosie Harman, esse

Rosie Harman, podemos sugerir que a

trecho do discurso de Xenofonte poderia

exaltação de Agesilau, assim como do

demarcar a maneira como o autor almejou

regime político de Esparta, seria um

desenvolver a imagem de Agesilau, ou

elemento “pan-helênico” do discurso de

seja, um sujeito preocupado com o bem

Xenofonte,

estaria

estar da Hélade (HARMAN, 2012, p.431).

demonstrando que o basileu lacedemônio

Imersos nessa ótica, podemos verificar que

detinha as características necessárias para

o discurso de Xenofonte estaria se opondo

comandar os helenos em prol de benefícios

a uma possível tendência helênica de

para a Hélade. Para tanto, ao findar os

criticar as atitudes militares de Agesilau.

seus

da

Com isso, não seria equivocado sugerirmos

Agesilau,

que além dos embates que o basileu

de

Esparta

hegemonia

não

político-militar

onde

o

que

mesmo

comentários

“superioridade”

detinha

acerca

heráclida

de

frente aos demais esparciatas e helenos,

lacedemônio

Xenofonte

determinadas sociedades da Hélade, o

maneira

inicia como

a o

sua

descrição

da

empreendeu

contra

basileu de Esparta

325


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

mesmo teria sido censurado por não se

basileu lacedemônio, ainda que excessiva,

opor a “Paz de Antálcidas” (ou Paz do Rei).

visava o bem estar da Hélade.

Devemos recordar que a “Paz de

Para corresponder a sua proposta,

Antálcidas” teria submetido às póleisda

Xenofonte se utiliza das virtudes e dos

Ásia

de

feitos de Agesilau para tornar evidente ao

Clazomenas, aspecto esse que colocava

seu leitor, como o basileu espartano agia

em “xeque” qualquer tipo de postura “pan-

em conformidade com os interesses da

helênica” em relação à Esparta. A figura de

Hélade. De forma semelhante, Xenofonte

Agesilau acabou sendo vinculada a esse

enfatizou

contexto, em medida que foi um dos

escrupulosamente

homens mais importantes e influentes de

determinações

sua pólis, e não ter manifestado oposição a

(Agesilau, 1.36). Assim como não era

estas

ganancioso,

Menor,

além

determinações

do

Chipre

políticas.

e

Charles

que

Agesilau às

leis

políticas

nem

se

de

obedecia e sua

aproveitava

as

pólis dos

esta

recursos políades, e além de beneficiar os

abordagem e, ao citar Xenofonte, pontuou

seus companheiros entregava todos os

que Agesilau se utilizou da “Paz de

presentes que recebia a pólis, inclusive

Antálcidas” para se promover junto aos

aqueles que poderia guardar para si

helenos como libertador – embora essa

(Agesilau, 1.17; 4.1-3). Aqui podemos

premissa seja contraditória –, mas também

situar a figura de Xenofonte, que por ser

para corresponder ao seu rancor pessoal

amigo de Agesilau recebeu o vilarejo de

contra os tebanos (HAMILTON, 1991,

Escilunte após ser exilado de Atenas. Do

p.95). Nas palavras de Scott Rusch, a

mesmo

atitude dos beócios para com Agesilau,

verificarmos aí uma tentativa de proteger o

durante o seu sacrifício em Áulis (Helênica,

basileu lacedemônio contra as possíveis

III, 4.4), teria contribuído para a política

críticas de seus opositores, haja vista que o

anti-tebana do referido basileu(RUSCH,

mesmo recolheu uma grande quantidade

2011, p.159). Logo, ao convergirmos os

de riquezas em sua expedição a Ásia, as

indícios documentais com a historiografia

quais foram introduzidas na pólis de

moderna

Esparta.

Hamilton

parece

corroborar

com

podemos

conjeturar

que

Xenofonte

estaria

interessado

em

demonstrar

aos

modo,

Xenofonte

não

seria

também

equivocado

destaca

que

interlocutores de seu

Agesilau sempre se mantinha preocupado

“Agesilau” como que a conduta deste

em respeitar as determinações do sagrado, as palavras dos oráculos e os juramentos

326


Luis Filipe Bantim de Assumpção

contraídos com terceiros. Podemos citar o

denunciá-lo frente ao “Grande Rei”. No

caso

decorrer

de

seu

acordo

com

o

de

grande

parte

do

trajeto

helenos

na

Ásia,

sátrapaTissafernes, o qual pressupunha a

percorrido

não

seus

Tissafernes foi quem mais os molestou.

exércitos. Contudo, devido à conduta do

Com isso, ainda que Xenofonte possa

referido persa, o mesmo não correspondeu

observar o costume dos persas com certa

às próprias palavras e ameaçou Agesilau

estranheza, as suas críticas mais mordazes

com a guerra. O basileu lacedemônio teria

se

respondido “[...] que estava profundamente

Steven Hirsch sugere que Tissafernes seria

agradecido pelo perjúrio, pois com isso

o ideal oposto a Ciro, o qual Xenofonte

[Tissafernes] ganhou a hostilidade dos

elogiou em sua “Anábasis” como um

deuses para si, tornando-os aliados dos

modelo

helenos” (Agesilau, 1.13). Tomando uma

p.40) 3.Imersos

atitude semelhante, quando estava com os

referido persa teria sido representado como

seus guerreiros em Éfeso, Agesilau propôs

um

competições atléticas voltadas para a

Agesilau. Hirsch afirmou que Xenofonte

preparação do seu contingente militar, e

não censurava todos os persas, afinal,

tanto o basileu como os seus subordinados

Farnábazo e Espitrídates foram tidos como

ofereciam guirlandas a deusa Ártemis,

homens dignos e virtuosos (Agesilau, 3.3-

divindade tutelar da pólis dos efésios

5), assim como não foi vergonhoso para

(XENOFONTE, Agesilau, 1.27). Novamente

Agesilau

agressão

aqui,

a

demonstra

mútua

entre

representação como

este

de

os

Agesilau

basileuera

pelos

direcionam

de

virtude

referencial

se

Megabates

sátrapaTissafernes.

ao

(HIRSCH,

nessa para

perspectiva, a

enamorar

(Agesilau,

1985, o

exaltação

pelo

5.4-5)

de

jovem

(HIRSCH,

um

1985, p.43). Podemos sugerir que os feitos

modelo de conduta político-social, cujas

de Agesilau e a descrição das suas

virtudes eram dignas de serem seguidas e

virtudes

admiradas.

contrapunham as de Tissafernes, enquanto

Dentre as exaltações de Xenofonte, o

contraponto

Agesilau

frente

do ao

comportamento

de

sátrapaTissafernes

ocupa um lugar de destaque no início de

seriam

aspectos

que

sujeitos e comandantes. Sendo assim, devido aos entraves que Xenofonte e os helenos

sob

o

comando

de

Ciro

perpassaram junto a Tissafernes, fizeram

seu elogio (XENOFONTE, Agesilau, 1.1035). Vale destacar que durante a expedição

3

de Ciro, foi esse sátrapa o responsável por

certa medida se assemelham as virtudes pessoais de

Na “Anábasis”, Xenofonte tece elogios a Ciro que, em

Agesilau (XENOFONTE, Anábasis, I, 10.1-31).

327


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

com que o escritor ateniense o retratasse

lacedemônio contrasta o “Grande Rei”

de um modo disforizado, onde o combate

persa, em medida que Artaxerxes se

promovido por Agesilau seria justo pelas

importaria com os seus próprios interesses,

suas motivações pessoais e pelo seu

tendo em vista que as suas determinações

caráter.

se

constituíam

nas

leis

dos

persas.

Xenofonte também se utiliza da

Segundo Xenofonte, Agesilau sempre se

representação de Artaxerxes II, “Grande

mantinha visto e prontamente correspondia

Rei” dos persas, para euforizar as virtudes

as necessidades daqueles que a ele

de Agesilau. Diferentemente da imagem de

recorriam, enquanto Artaxerxes raramente

Tissafernes, o “Grande Rei” foi considerado

aparecia em público e atendia lentamente

como um homem de excessos devido a

aos

proeminente posição social que ocupava

Verificamos no discurso de Xenofonte que

junto a sua sociedade. A hybris de

Artaxerxesrepresentaria os persas como

Artaxerxes II estaria na sua valorização da

um todo, ou melhor, a imagem que os

riqueza, do luxo e dos homens de recursos,

helenos construíram desta sociedade, de

aspectos dos quais Agesilau seria o

sua

oposto. O discurso de Xenofonte no

Retomando a perspectiva “pan-helênica” do

“Agesilau”

basileu

discurso de Xenofonte, onde as atitudes de

lacedemônio era digno de admiração por

Agesilau frente aos persas – e ao Grande

suportar mais fadigas físicas do que os

Rei – eram dignas e capazes de minimizar

seus próprios guerreiros, culminando no

o seu embate contra os helenos opositores

respeito e admiração destes para com

de Esparta.

expõe

que

o

Agesilau (Agesilau, 5.3). Nesse contexto,

seus

(Agesilau,

súditos

opulência

e

da

sua

9.1-2).

riqueza.

Por fim, a imagem de Agesilau

Artaxerxes II não seria dotado de tais

construída

qualidades,

em

compreendida não somente como uma

relacionava

diretamente

guerreiros,

medida

além

de

que com

não os

se seus

considera-los

defesa também

ao à

por

Xenofonte

basileu

pode

lacedemônio,

expedição

que

o

ser mas

escritor

submetidos e de uma estirpe distinta – e

ateniense empreendeu contra os persas, a

inferior – a sua. Seguindo essa perspectiva,

qual levou ao seu exílio de Atenas. O

Agesilau seria um governante que agia em

Agesilaurepresentado

benefício de Esparta, e em conformidade

deveria ser admirado por ter sido o único

com as leis e a determinação de sua pólis

heleno capaz de retribuir a ofensa dos

(Agesilau, 7.1-2). Essa imagem do basileu

persas de outrora – tentar submeter a

por

Xenofonte

328


Luis Filipe Bantim de Assumpção

de

ações militares de Agesilau frente à Ásia

lacedemônios frente às críticas que o

fossem justas, para Xenofonte, devemos

mesmo recebeu pelas suas campanhas

considerar que este não foi o único a tentar

militares e tomadas de decisão política. O

atacar

escritor

o

“Grande

Rei”.

O

próprio

defender

a

imagem

do

basileu

Hélade, nas Greco-pérsicas. Embora as

representouAgesilau

ateniense

Xenofonte, ao se associar a Ciro, teria

como

tentado empreender uma expedição contra

poderoso, obedecia escrupulosamente as

Artaxerxes II, ainda que não tenha tido

leis e os valores de sua pólis, ou seja, um

sucesso.

Na

“Anábasis”,

o

escritor

um

homem

sujeito

que,

dotado

(autocontrole

e

considera-lo o mais adequado a reinar

maneira,

discurso

(Anábasis,

moderação). de

Dessa

Xenofonte

10.1).

demonstra que Agesilau sempre agia em

referencial

a

conformidade com Esparta, o que poderia

verificamos

que

minimizar a disforização sofrida por este

Agesilau teria feito àquilo que os helenos

basileu após a sua morte. Xenofonte tenta

deveriam fazer, ou seja, ofender aqueles

justificar, através de sua obra, que a

que tentaram escravizar a Hélade. Logo,

expedição

esse

inocentasse

Agesilau – era justa simplesmente por

Agesilau, também fundamentava a ida de

tentar reaver uma ofensa sofrida, fazendo

Xenofonte e dos outros mercenários para a

do basileu lacedemônio um “herói pan-

Ásia. Afinal, se pudessem retirar Artaxerxes

helênico”. Todavia, podemos propor outra

do

governante

leitura do discurso de Xenofonte, onde o

relativamente favorável aos helenos (Ciro)

mesmo poderia estar tentando justificar a

haveria

sua empreitada contra o “Grande Rei”, bem

entre

os

persas

Tomando

como

documentação

citada

argumento

poder um

e

embora

inserir grande

um

I,

fosse

sophrosyne

de

ateniense justifica as atitudes de Ciro por

o

embora

benefício

para

a

Hélade. Sendo assim, podemos concluir que o “Agesilau” de Xenofonte tinha o objetivo

espartana

liderada

por

como a sua associação com Esparta, tornando o decreto de exílio dos atenienses injusto para com a sua pessoa.

Referências: ASSUMPÇÃO, Luis Filipe Bantim de. Discurso e Representação sobre as práticas rituais

dos esparciatas e dos seus basileus na Lacedemônia, do século V a.C. Dissertação apresentada para a obtenção do título de Mestre, pelo PPGH/UERJ. Rio de Janeiro, 2014.

329


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330


AS LEIS MATRIMONIAIS NAS SIETE PARTIDAS DE AFONSO X, O SÁBIO Luísa Tollendal Prudente 1 Resumo As Siete Partidas compõem provavelmente a obra jurídica mais extensa e conhecida do reinado de Afonso X de Castela e Leão. Estão divididas em sete livros, cada qual legislando sobre assuntos essenciais para a organização da sociedade na época, e correspondem aos primeiros grandes esforços unificadores do direito régio na Península Ibérica. A pesquisa de mestrado que estamos atualmente desenvolvendo no programa de pós-graduação da Universidade Federal Fluminense, desenvolve-se a partir da análise do livro IV das Siete Partidas, o qual trata do direito matrimonial. As leis desse livro progridem em diferentes eixos interligados, que regralizam o noivado e o casamento; as relações de parentesco; os dotes, as arras, as heranças e outras formas de transferência patrimonial; os pecados e delitos que tangem o matrimônio; e, finalmente os laços de dependência feudal que unem os homens. A motivação maior do nosso trabalho é entender a articulação feita nessa documentação entre a palavra régia que normatiza a união matrimonial e as diferentes relações hierárquicas que dela derivam. Entendemos que essas não estão presentes no Livro IV de maneira fortuita, mas, antes, correspondem a uma intencionalidade clara derivada do contexto monárquico do momento, e que articulam elementos no texto de maneira a formar um ideário político sobre o qual o reinado de Afonso X se calcou. Palavras-chave: casamentos, Siete Partidas, Afonso X

1Mestranda

do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, setor temático de História Medieval; E-

mail: lu.tollendal@gmail.com ; orientação do professor Mário Jorge da Motta Bastos.

331


Luísa Tollendal Prudente

Siete

As

Partidas

compõem

monárquico do momento, e que articulam

provavelmente a obra jurídica mais extensa

elementos no texto de maneira a formar um

e conhecida do reinado de Afonso X de

ideário político sobre o qual o reinado de

Castela e Leão. Estão divididas em sete

Afonso X se calcou.

livros, cada qual legislando sobre assuntos essenciais

para

a

organização

da

As

considerações

apresentaremos a seguir são fruto da

sociedade na época, e correspondem aos

pesquisa

primeiros grandes esforços unificadores do

desenvolvendo

no

direito régio na Península Ibérica.

História

Universidade

A

pesquisa

de

mestrado

que

que

de da

mestrado

que

estou

departamento

de

Federal

Fluminense. Com o objetivo inicial de

estamos atualmente desenvolvendo no

estudar

programa

da

regulamentação dos casamentos e dos

Fluminense,

laços de parentesco no período de Afonso

desenvolve-se a partir da análise do livro IV

X de Castela e Leão (1252- 1284),

das Siete Partidas, o qual trata do direito

debruçamo-nos sobre o célebre código

matrimonial. As leis desse livro progridem

jurídico

em

Escolhemos o quarto livro, que legisla

de

Universidade

pós-graduação Federal

diferentes

eixos

interligados,

que

o

papel

afonsino,

da

monarquia

Siete

as

na

Partidas.

regralizam o noivado e o casamento; as

sobre o Direito Matrimonial.

relações de parentesco; os dotes, as arras,

progridem em eixos conectados, e as

as

de

regras ali presentes teorizam e normatizam

transferência patrimonial; os pecados e

assuntos como noivados e casamentos;

delitos

relações

heranças

e

outras

formas

que tangem o matrimônio;

e,

de

parentesco;

Suas leis

dotes,

arras,

finalmente os laços de dependência feudal

heranças e outras formas de transferência

que unem os homens.

patrimonial ou, ainda, pecados e delitos

A motivação maior do nosso trabalho é

entender

a

articulação

feita

nessa

relativos ao matrimônio. Também legislam acerca

das

dívidas

de

naturalidade 2

documentação entre a palavra régia que

existentes entre os homens, as relações

normatiza

entre servos e donos, vassalos e senhores,

a

união

matrimonial

e

as

diferentes relações hierárquicas que dela derivam. Entendemos que essas não estão presentes no Livro IV de maneira fortuita, mas,

antes,

correspondem

a

uma

intencionalidade clara derivada do contexto

2

Tomei o termo emprestado de MARTIN, Georges. Le concept de “naturalité” (naturaleza) dans les Sept Parties,

d’Alphonse

X

le

Sage.

In:

Revue

interdisciplinaire d’ études hispaniques médiévales et modernes, Paris, n. 5, 2008.

332


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

e, por fim, sobre a amizade. Percebe-se,

segundo, após iniciada a busca de Afonso

através da disposição dos títulos e leis, e

X pelo sucesso em ser sagrado imperador

da

do

imagística

verbal

envolvendo

a

Sacro

Império,

evento

que

ficou

dos

conhecido como o “fecho del imperio”

matrimônios, uma representação idealizada

(GARCÍA DE CORTÁZAR, 2002-2003, p.

da ordem social, e a articulação dessa

28). Foi provavelmente durante esses anos

construção com as prerrogativas judiciais

que as Siete Partidas foram compostas.

construção

e

a

justificação

As Siete Partidas constituem o maior

da figura régia. Afonso X de Leão e Castela (1252-

e mais completo dos códigos afonsinos, e

1284), conhecido pela alcunha de “O

se tornaram, ao longo do tempo, um dos

Sábio”, foi um dos grandes protagonistas

mais importantes para a história do Direito

do Renascimento cultural dos séculos XII-

espanhol.

XIII. Muitos estudiosos acreditam que, na

conhecidas hoje é posterior à denominação

Península Ibérica, a promoção das letras e

da época em que foram compostas, e

das ciências alcançou o cume durante o

deriva da sua divisão em sete livros. Em

seu reinado. Essa opinião tem suas raízes

seu tempo, foram chamadas de “Libro de

na

las leyes”, ou “Libro del fuero de las leyes”(

enorme

quantidade

de

textos

produzidos no âmbito de sua corte, e que tratam de variados assuntos, pertencentes

O

nome

pelo

qual

são

PÉREZ, 1992, p. 32). Inserem-se

no

contexto

de

aos mais diversos campos do saber então

florescimento do direito romano difundido

existentes. A sua obra jurídica, no entanto,

pela

é a que mais nos interessa nesta curta

geralmente

exposição,

especialmente

as

Siete

Partidas.

Universidade são

de

Bolonha,

classificadas

e

como

pertencendo a esta vertente. Mas possuem também grande influência consuetudinária,

Os labores jurídicos empreendidos

e o prólogo geral das Partidas ( e o da

por Afonso X estavam, dessa maneira,

Partida I), informa o leitor de que as leis ali

inseridos neste espectro mais amplo de

reunidas foram selecionadas a partir do

consolidação da expansão territorial e

direito natural, dos usos e costumes, e de

populacional do reino. Correspondiam à

“todos los otros grandes saberes”(PÉREZ,

intenção

e

1992, p. 35). É certo que as Partidas

politicamente os territórios castelhanos na

possuem influencias diferentes, apesar de

figura máxima do rei - em um primeiro

sua predominante romanização.

de

centralizar

jurídica

momento - e na do rei imperador, - em um

Os livros das Siete Partidas tratam 3 333


Luísa Tollendal Prudente

respectivamente

de:

a

católica

e

matérias eclesiásticas (Partida I); das

propositalmente, sua memória não foi cultivada.

atribuições dos imperadores e reis, e dos

O Prólogo da Partida IV inicia-se

seus reinos (Partida II); da administração

com uma descrição do Gênesis e define o

da justiça ( Partida III); da regulamentação

casamento

dos casamentos e das relações deles

canônicas estabelecidas na quarta Decretal

derivadas ( Partida IV); dos contratos e

de Gregório IX (1234).

negócios (Partida V); das heranças e dos

casamento utilizando-se da Criação como

testamentos ( Partida VI) e, por fim, dos

metáfora, e, ao fazê-lo, diz que Deus

crimes e do direito penal ( Partida VII).

honrou o homem acima de todas as outras

conforme

as

disposições Conceitua o

Com relação à datação das Siete

criaturas (ALFONSO X, 1843, p. 465) pois

Partidas, até hoje não existe consenso

o criou à sua imagem e semelhança, e lhe

entre os especialistas. Também não se

deu o entendimento. Também o honrou

sabe

muito quando lhe deu mulher, e celebrou o

ao

certo

quantas

revisões

e

reescrituras existiram, e nem quantos ou

casamento

quais foram os manuscritos “originais”.

(ALFONSO X, 1843, p. 465).

dos

dois

no

Paraíso 3

Tampouco sabe-se com certeza quando

A descrição do primeiro casamento é

passaram a ter vigência legal, e nem as

feita da seguinte forma: a mulher foi dada

características

estão

ao homem por companheira, e nela ele

totalmente esclarecidas. Isso tudo se deve

deveria fazer linhagem. E Deus fez seu

ao fato de que as Partidas não foram

casamento, e pôs lei ordenada entre eles 4

desta

vigência

oficialmente promulgadas até, pelo menos, o reinado de Afonso XI, por causa dos

3

fizo muger, que le diesse por compañera”. In: Cuarta

numerosos embates entre Afonso X e

Partida. In: ALFONSO X. Las Siete Partidas (Glosadas

setores da nobreza castelhana, contrários a muitas

das

suas

disposições

por el Licenciado Gregório López). Madrid: Compañía

e

governanças. Destes, o levante da alta nobreza de 1272 costuma ser apontado

“E sin todo esto, ouole fecho muy grand honrra; que

General de Impresores y Libreros del Reyno, 1843. 4

“ e establecio el casamiento dellos ambos en el Parayso; e puso ley ordenadamente entre ellos, que assim como eran de cuerpos de partidos segun

como o principal. Além disso, o reinado de

natura, que fuesen vno quanto em amor, de manera,

Sancho

que non se pudiessen departir, guardando lealtad vno

IV,

quem

obteve

o

trono

levantando-se contra Afonso X, significou

a outro; e otrosi, que de aquella amistad saliesse linae, de que el mundo fuese poblado, e el loado, e seuido” .

um período de descontinuidade com a

In: Cuarta Partida. In: ALFONSO X. Las Siete Partidas

política de seu antecessor, durante o qual,

(Glosadas por el Licenciado Gregório López). Madrid: Compañía General de Impresores y Libreros del

334


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

(ALFONSO X, 1843, p. 465). Esta “lei

ordem do casamento. O matrimônio se

ordenada” consistiria em serem um só por

torna, assim, a primeira dívida dos homens

causa do amor que os uniria, apesar de

entre si. É uma dívida de naturalidade -

serem de corpos separados. De maneira

conforme a definição no título 24, criada

tal, que não pudessem se apartar e

por disposição divina de maneira que a

mantivessem lealdade um ao outro. Dessa

humanidade pudesse se desenvolver e se

relação deveria sair uma linhagem, através

organizar de acordo com esta ordenação

da qual o mundo fosse povoado, e Deus

hierarquizante do mundo. Por isso, diz-se

louvado e servido (ALFONSO X, 1843, p.

mais adiante no Prólogo que o matrimônio

465).

deve ser reconhecido como o Sacramento O objetivo primordial da criação do

que é “mantenimiento del mundo, que faze

homem e da mulher revela-se então na

a

linhagem, nessa filiação através da qual o

naturalmente, e sin pecado, e sin el qual

mundo pudesse ser povoado, e Deus

los otros seys Sacramentos non podrian

servido. Para que isso fosse passível de

ser mantenidos, nin guardados” (ALFONSO

acontecer,

primeiro

X, 1843, p. 465). A dívida do casamento

casamento, e o faz quando coloca “lei

também dará raíz às outras dívidas de

ordenada” entre o homem e a mulher, de

naturalidade entre os homens, as quais

forma que fossem um só. Essa linhagem,

incluem tanto aquela gerada pela filiação,

que é o objetivo maior do casamento,

como as dívidas com os senhores naturais,

representa a própria a espécie humana. A

e a dos vassalos com seus senhores

procriação permite que essa espécie se

(ALFONSO X, 1843, p. 614).

espalhe

Deus

pelo

realiza

mundo,

o

enquanto

los

omes

bevir

Sacramento

vida

o

O

casamento garante que ela louve e sirva

portanto,

corretamente a Deus.

multiplicação dos homens e

aquele

ordenada

matrimonial

que

garante

é, a

a sua

É feita a primeira dívida, a do

organização em sociedade. Assim, ordenar

homem com relação ao seu Criador. É a

o casamento significa ordenar também os

dívida de natureza definida na terceira lei

seus frutos, permitindo dessa forma a

do título 24. A segunda dívida seria aquela

organização correta da sociedade, quer

estabelecida pelo casamento, derivada do

dizer, segundo a vontade do Criador.

amor que ele encerra, e ela é a própria

Quando

se

pensa

dentro

dessa

perspectiva, pode-se ver que as leis da Reyno, 1843.

Partida IV, acompanhando a lógica do 5 335


Luísa Tollendal Prudente

prólogo, podem ser agrupadas em três

nas dívidas entre os homens, as quais

grandes

em

remontam à dívida de amor originada pelo

primeiro lugar, vêm as disposições a

casamento. Da boa linhagem deriva a

respeito da natureza do noivado – único

organização correta dos homens A Partida

antecedente

IV

esferas

interdependentes:

mencionado

para

o

está

composta

seguindo

essa

casamento – e do matrimônio. Ali são

organização divina do mundo. O monarca,

explicitadas as formas como devem ser

ao legislar sobre o casamento, ordena

realizados, quem os pode contrair e quem

também a descendência. Ao ordenar a

os pode celebrar. Discorre-se ainda sobre

descendência,

as uniões proibidas que impedem ou

manutenção da ordem do mundo, conforme

anulam

foi estabelecida na Criação.

os

condições

casamentos, e

doações

e

sobre

as

envolvidas

no

processo matrimonial.

O casamento

atua

prólogo como

garantido

também sendo

a

define o

o

primeiro

A Partida IV segue tratando da

sacramento e que garante a existência dos

filiação e das relações entre pais e filhos.

demais. Compara-o então ao Sol, que,

Primeiro vêem os filhos legítimos. Depois

estando no centro do céu, ilumina os sete

os naturais e ilegítimos; os filhos adotivos;

planetas. Também o associa ao coração,

o poderio dos pais sobre os filhos e as

que, estando no centro do corpo, leva a

regras básicas que envolvem a criação e a

vida ao todos os membros. A Partida IV,

educação. Em seguida os redatores da

por tratar do casamento e das relações

Partida IV tratam de outras relações, à

dele derivadas, é entendida segundo essas

primeira vista não derivadas do casamento.

mesmas idéias. Pretende-se assim que

Estas correspondem às principais dívidas

ilumine as outras e lhes forneça alimento

existentes entre os homens, em cada um

vital, de forma que possam existir e se

dos seus grandes estratos. São elas: a

manifestar. Essas associações justificam o

servidão,

posicionamento do casamento no meio das

a naturalidade (dos homens

livres), a vassalagem (os vassalos e seus senhores), e a amizade. Os títulos da Partida IV parecem

Siete Partidas. Lê-se: “E por esso lo pusimos en medio de las siete

Partidas deste libro; assi como el coraçon es puesto en medio del cuerpo, do es el spiritu del

seguir assim uma progressão, cujas bases

ome, onde va la vida a todos los membros. E otrosi

foram apresentadas no Prólogo. O livro

como el Sol que alumbra todas las cosas, e es

passa do matrimônio para a filiação e, por fim, para a sociedade, fundada com base

puesto en medio de los siete Cielos, do son las siete estrellas, que son llamadas Planetas. (...) Ninguna destas ( das outras seis partidas) non se

336


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo podria cumplir derechamente, si non por el linaje, que sale del casamento, que se cumple por ayuntança de ome e de muger.

E por esso lo

dotes – e as doações e as arras – (T. XI); as segundas núpcias (T. XII); os filhos

pusimos en la quarta Partida deste libro, que es en

legítimos (T. XIII); os filhos ilegítimos (T.

medio de las siete; asi como puso nuestro Señor el

XV); e os filhos adotados (T. XVI). 5

Sol en el quarto Cielo, que alumbra todas las estrellas, segund cuenta la su Ley.” (ALFONSO X, 1843, p. 466)

Os seguintes doze títulos – que constituem cerca de metade do total da IV

O direito matrimonial da Partida IV é

Partida – não correspondem aos temas da

herdeiro direto das Decretais de Gregorio

IV Decretal, e se referem, respectivamente:

IX (1234), adotadas como texto oficial da

às barregãs (T. XIV); ao poder dos pais

Universidade Bolonha. Muitas das ideias

sobre os filhos (T. XVII) e as razões porque

evocadas na Partida IV remetem para as

o podem perder (T. XVIII); à criação dos

disposições do quarto livro das Decretalium

filhos (T. XIX); aos criados – que não são

Gregorii

ao

filhos – (T. XX); aos servos (T. XXI); à

matrimônio. Inclusive, a própria disposição

liberdade dos servos (T. XXII); ao estado

das matérias na Partida IV é um reflexo da

dos homens (T. XXIII); às dívidas de

disposição da IV Decretal de Gregório IX

naturalidade (T.XXIV); aos vassalos (T.

(MARTÍN, 2001, p. 3-4).

XXV); aos feudos (T. XXVI); e à dívida de

IX,

também

dedicado

A IV Partida contém duzentas e

amizade (T. XVII) 6.

cinquenta e cinco leis distribuídas por vinte

A

conceituação

principal

do

e sete títulos. Desses, os quinze primeiros

casamento, correspondente ao conteúdo

correspondem majoritariamente aos temas

do

da Quarta Decretal. São, respectivamente:

configura-se como uma tradução da Quarta

noivados

Decretal – e, assim, como uma tradução do

(T.

casamentos

I);casamentos escondidos

(T.II);

(T.III);

as

primeira

Direito

metade

Canônico

da

Partida

matrimonial

IV,

clássico

condições colocadas nos noivados e nos

(MARTÍN, 2001, p. 4). As leis da metade

casamentos (T. IV); os casamentos dos

restante remetem em grande parte ao

servos (T.V); o parentesco e a cunhadia,

direito laico, muitas vezes oriundo da

que impedem os casamentos (T. VI); o

tradição jurídica castelhana, baseada em

parentesco por batismo e adoção, que

usos e costumes. Essas leis, nas quais o

impede

os

casamentos

(T.

VII);

a

incapacidade de consumar o matrimônio (T. VIII); as acusações para romper um matrimônio (T. IX); o divórcio (T.X); os

5GREGORIO

IX. Decretalium D. Gregorii Papae IX, Liber

Quartus. In: Corpus Iuris Canonici, v. 2. Leipzig: Akademische Druck-U.Verlagsanstalt Graz, 1959. 6Idem.

7 337


Luísa Tollendal Prudente

rei rege os frutos oriundos do casamento,

percebe

sejam eles a filiação ou a ordem feudal da

normatização do matrimônio e um modelo

sociedade, são aquelas onde melhor se

societal construído pelo rei.

uma

articulação

entre

a

Referências: Fontes:

Cuarta Partida. In: ALFONSO X. Las Siete Partidas (Glosadas por el Licenciado Gregório López). Madrid: Compañía General de Impresores y Libreros del Reyno, 1843. Bibliografia: FERNÁNDEZ-ORDOÑEZ, Inés. Evolución del pensamento alfonsí y transformación de las obras jurídicas e históricas del rey sábio. In: Cahiers de linguistique hispanique médiévale, Paris, v. 23,p. 263-283, 2000. GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel. De las conquistas fernandinas a la madurez política y cultural del reinado de Alfonso X. In: Alcanate: revista de estúdios alfonsíes. Puerto de Santa María, v. 3,p.19-54, 2002-2003. GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel. Alfonso X el Sabio: historia de un reinado (1252-1284). Burgos: La Olmeda, 1999. KLEINE, Marina. “El rey que es fermosura de Espanna” : imagens do poder real na obra de

Afonso X, o Sábio (1221-1284). Porto Alegre, UFRGS, 2005. MARTIN, Georges. Le concept de “naturalité” (naturaleza) dans les Sept Parties, d’Alphonse X le Sage. In: Revue interdisciplinaire d’ études hispaniques médiévales et

modernes, Paris, n. 5, 2008. MARTÍN, José-Luis. El processo de institucionalización del modelo matrimonial Cristiano. In: La família em la Edad Media: XI Semana de Estudios Medievales. Nájera, p. 151-171, 2001. PÉREZ, António Martín. La obra legislativa alfonsina y puesto que en ella ocupan las Siete Partidas.In: Glossae: revista de história del derecho europeo. Murcia, v. 3, p. 9-63, 1992. VALDEÓN BARUQUE, Julio. Alfonso X el Sabio: la forja de la España Moderna. Madrid: Temas de Hoy, 2003.

338


O RETRATO DO ARTISTA MEDIEVAL: SOBRE A AUTORIA E A POLIFONIA DO ROMAN DE LA ROSE EM TEXTO E IMAGEM. Luiz Fernando Alves 1.

Resumo: Objetivo, nesta comunicação, analisar como a forma literária do Roman de la Rose permite que se o entenda como uma polifonia onde as intenções dos poetas que o escreveram se escondem sob a forma do sonho, da alegoria e do decorum. Tanto Guillaume de Lorris quanto Jean de Meun utilizam-se de recursos retóricos a fim de que o poema se torne passível de múltiplas interpretações, uma plena obra aberta. As iluminuras que figuram Jean de Meun como autor também abrem a possibilidade de se apreender certo sentido de consciência autoral por parte de alguns artistas. Para defender esta última hipótese, comparo dois manuscritos: MS Harley 4425 e Genève MS 178.

Palavras-chave: Roman de la Rose; História Cultural; Cultura Visual.

1

Mestrando em História pela UNESP (FCL/ASSIS). Bolsista FAPESP.

339


Luiz Fernando Alves

1. Se Erich Auerbach dizia que “de

Sigo aqui a cronologia de Noah D. Guynn

cada obra de arte podemos dizer que é

(GUYNN; 2008, p. 48), mas no prólogo à

determinada essencialmente por três fatores:

edição espanhola, Carlos Alvar, “por distintas

a

a

referências internas da obra”, situa o início

singularidade de seu criador” (AUERBACH;

da escrita de Jean entre 1268 e 1278

2013, p. 17), então uma análise do Roman

(ALVAR; 1986, p. xi). Sobre Guillaume pouco

de la Rose que leve em conta sua tradição

ou nada se sabe, além de que era do norte

manuscrita, e não apenas sua publicação em

da França. Pode-se inferir questões a

edições

uma

respeito de seu status social a partir das

multiplicidade de Romances, determinados

referências eruditas do poema, mas não se

por uma contínua cópia a partir de diversas

pode dizer com certeza quem ele foi ou quais

origens (do século XIII ao XVI), lugares (da

eram suas intenções. Jean, que traduziu

França à Holanda) e mesmo criadores (a

para o francês a Consolação da Filosofia, de

interpolação de Gui de Mori no poema é só a

Boécio, e as Cartas de Abelardo e Heloísa,

mais

interessante

também foi professor em Paris. Contudo, no

história de transmissão de manuscritos e

processo de cópia de manuscritos, alguns

edições modernas do poema tem sido objeto

copistas como Gui de Mori, Girard Acarce e

de outros estudos (cf. FRIEDEN, 2012), e

Clément

por

aqui

poema (NICHOLS; 2006, p. 84), e também

detidamente; é suficiente dizer que nos

as iluminuras, como espero demonstrar,

restaram cerca de 300 manuscritos do

acabam guiando a leitura iconicamente, ou

poema,

mesmo

época

de

sua

origem,

modernas,

conhecida

isso

e

dela

que

lugar,

revelará

delas).

não

o

A

me

poucas

ocupo

obras

literárias

Marot

revelando

medievais rivalizam com o Roman de la

autoral por

Rose em termos de difusão espacial e

manuscritos.

temporal.

comunicação,

Guillaume

de

Lorris

começou

a

compor o poema na primeira metade do século XIII, talvez entre 1225 e 1245. Jean de Meun, entre 1268 e 1285, adicionou cerca de 18 mil versos aos 4 mil de Guillaume.

adicionaram

alguma

parte dos Para

o

escolhi

trechos

consciência

iluminadores propósito citar

ao

os

de

desta versos

seguindo a edição de Pierre Marteau (1878), que teve como base o texto de Dominique Méon, de 1814. 2.Quando se pensa no problema da autoria

na

moderna

crítica

histórica

340

e


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

literária, talvez o primeiro texto que se nos

autor não se está necessariamente falando

afigure à memória seja a conferência sobre

do problema do sujeito – tal como posto na

“O que é um autor” apresentada por Michel

metafísica, por exemplo.

Foucault

Societé

na

Française

de

Philosophie em 22 de fevereiro de 1969, posteriormente publicada no Bulletin da Societé na edição de julho-setembro daquele mesmo ano. Na ocasião da conferência houve um debate com M. de Gandillac, L. Goldmann, J. Lacan, J. d’Ormesson, J. Ullmo, J. Wahl. A tese de Foucault pode ser resumida

em

uma

frase:

poucos

fundadores de discurso.

Mesmo alguns escritores já haviam lidado com a questão, como Rabelais em

Contra a Alegoria, Proust em Contra SaintBeuve – onde desenvolve a teoria do eu profundo em contraposição ao eu social –, e Borges em Pierre Ménard, autor do Quixote. T. S. Eliot, em 1929, expôs a teoria de que o poeta fala não através de uma psique intencional/pessoal, mas de um meio poético que ele chama de “tradição”, em seu ensaio

de

Tradition and the Individual Talent. Émile

Foucault não era propriamente novo à

Benveniste em La nature des pronoms, de

época. Antes, estruturalistas, new critics, e

1956, propõe a noção de escriptor, que seria

formalistas russos, já se preocupavam com

um

questões como a da “intenção” do autor, a

linguístico, um ser de papel, não uma pessoa

fim de tentar assegurar a independência dos

no sentido “psicológico”; isto é, o sujeito da

estudos de textos literários em relação à

enunciação não preexiste à sua enunciação,

História e à Psicologia – por isso se

mas se produz com ela. Mallarmé buscou

destacavam

O

problema

posto

sujeito

no

sentido

gramatical

ou

de

fazer isso de sua obra: uma tentativa de

“intertextualidade”,

por

desaparecimento elocutório de si mesmo, a

exemplo. O autor era visto como resquício da

fim de que o poeta cedesse sua presença às

época do individualismo humanista ou do

palavras.

conceito de gênio: “a presença do autor

ocupara da questão em La mort de l’auteur,

enquanto ‘indivíduo’ em sua obra deriva da

de 1968; para ele, “o escritor não pode

teoria do ‘gênio original’, impossível antes do

definir-se em termos de função ou de valor,

século dezoito” (NICHOLS; 2006, p. 78).

mas apenas por uma certa consciência de

Importante lembrar que quando se fala em

fala. É escritor todo aquele para quem a

e

como

artigo

os

“literariedade”

conceitos

no

Também

Roland

Barthes

341

se


Luiz Fernando Alves

todo

l’Apocalypse de saint Jean à la Divine

aquele que experimenta a sua profundidade,

Comédie de Dante, ont joué un rôle

não a sua instrumentalidade ou beleza”

fondamental dans le développement de la

(BARTHES; 1987, p. 46).

religion

linguagem

constitui

Pode-se

um

encontrar

problema,

no

período

et

des

lettres

en

Occident »

(SCHMITT ; 1996, p. 5).

medieval alguns autores que em seus textos

Guillaume de Lorris começa o poema

demonstram certa consciência da vida em

nos falando de Macróbio, que foi um autor

relação à escrita, como as Confissões, de

latino que viveu em fins do quarto século. Em

Santo Agostinho, a Vita Nuova, de Dante

seu comentário ao “Sonho de Scipião”, ele

Alighieri, a Historia Calamitatum, de Pedro

estabeleceu

Abelardo, e a Carta à Posteridade, de

somnium, visio, oraculum, insomnium, visum.

Petrarca. O primeiro manuscrito assinado por

Os três primeiros tipos podem conter algo de

um

verdadeiro, mas precisam ser interpretados.

autor

medieval,

contudo,

seria

o

Canzoniere, de Petrarca, de 1300.

retórica

antiga,

“o

autor

enquanto

intenção e o autor enquanto estilo eram muitas vezes confundidos, e uma distinção jurídica – voluntas e scriptum – foi ocultada por uma distinção estilística – sentido próprio e sentido figurado” (COMPAGNON; 2003, p. 54). Penso que é essencialmente dessa forma que a questão do autor acaba se impondo no estudo do Roman de la Rose. A narrativa se passa num sonho que, na cultura medieval, também corresponde à “visão espiritual” – explica Jean-Claude Schmitt que ela é a « intermédiaire et médiatrice entre le corps et la raison : des genres

narratifs

s’y

déploient

gêneros

de

sonhos:

Provavelmente é esta a razão de o poeta

De acordo com Antoine Compagnon, na

cinco

qui,

de

medieval comentar nestes primeiros versos que se pode ter sonhos que se revelam verdadeiros depois que se analisa a sua « senefiance ». Sobre o sentido deste termo na idade média : « On appelle ‘senefiance’ le second terme du symbole, la leçon de morale ou de sagesse, l’application mystique et aussi l’exemple d’où une leçon est tirée » (GUIETTE ; 1954, p. 114). Portanto, o poeta nos convida a ler o texto do poema que se seguirá para além de seu significado literal. Ele continua a narrar um sonho que o Amante (L’Amant), então com 25 anos, tivera cinco anos antes, fazendo do Roman de la

Rose

provavelmente

o

primeiro

texto

alegórico medieval em primeira pessoa no

342


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

qual a personagem da trama é o poeta que a enuncia. Mas a questão da autoria aqui é obscurecida

por

inúmeras

contradições

internas do romance. O sonho revelaria algo de verdadeiro, pois há sonhos que à noite nos

contam

“secretamente”

coisas

que

depois se revelam “abertamente” (car li

plusors songent de nuitz / maintes choses couvertement

/

que

l’en

voit

puis

Imagem I

apertement), mas Guillaume insiste em adiar a revelação da « senefiance » do poema, e, por fim, o deixa incompleto. Depois, ao continuar a escrevê-lo, Jean de Meun dará um rumo totalmente diferente à trama, que se poderia entender quase como um poema completamente

distinto

tanto

que

a

dualidade do poema é um dos tópicos da historiografia sobre o romance; Alexandre Leupin, por exemplo, sugeriu enquadrar os dois autores em uma fita de möbius (figura 1), a fim de resolver o debate « de l’unité et de la dualité en représentant en même temps,

sur

une

surface

unilatère

qui

représente le texte, l’unicité et la différence réciproques. » (LEUPIN; 2006)

3. Stephanie Kamath (KAMATH; 2012, p. 25-26) lembra que Boaventura propôs a seguinte

distinção:

auctor

(aquele

que

compõe), scriptor (aquele que copia), e, entre estes dois, o compilator (que organiza a partir de obras de outros autores), e o

commentator

(que

faz

comentários

ao

trabalho do compilador) – estes não são, claro, conceitos fechados. A obra de Jean de Meun pode ser entendida, também, como a de um compilador. No trecho em que o autor

humildemente se desculpa às damas pelo romance, Jean diz que se parecesse “às damas honradas” que ele estivesse a escrever fábulas, não o tomassem por mentiroso, mas, antes, aos autores dos livros que escreveram as coisas sobre as quais ele diz e ainda dirá no poema (d’autre part,

dames honorables / s’il vous semble que ge di fables / por mentéor ne m’en tenés, / mès

343


Luiz Fernando Alves

as Auctors vous en prenés, / qui en lor livres

tantas outras características negativas que

ont escrites / les paroles que g’en ai dites, /

eram atribuídas às mulheres no período

et ceus avec que g’en dirai); que ele não faz

medieval. Porém, é necessário individualizar

senão “recitar” (ge n’i fais riens fors reciter),

o que as personagens dizem sobre o amor

e, que se adiciona alguma palavra à

ou as mulheres, pois a “voz” de Jean de

narrativa, é por intenção da arte do poeta

Meun se esconde sob as contradições que

que deseja ensinar deleitando e instruindo

suas personagens afirmam – há, no poema,

(profit

et delectacion / c’est toute lor

críticas veementes ao caráter dos homens,

entencion). Isso permite a Jean de Meun

por exemplo. Jean convida os Amantes que

dizer

contraditórias

o leem a verem nele seu “espelho de

escondendo sua intenção ao afirmá-las.

enamorados” (miroir aux amoureux), mas,

Passo a um exemplo. Nesta segunda parte

sem

do poema, há ataques às mulheres e ao

embaçado, como uma janela coberta de

casamento – o famoso topos medieval das

vapor na qual você passa a palma da mão a

moléstias das núpcias (molestiae nuptiarum)

fim de tornar a visão através dela mais clara,

–, que motivaram Christine de Pizan a

mas que logo depois volta a se cobrir de

levantar a primeira querela literária da

brumas. Há uma polifonia de vozes no

França, iniciada em 1399, a partir de

romance, e perceber isso é importante

L’epistre au dieu d’Amours (Epístola ao deus

porque permite relativizar leituras como a de

do Amor), algo como uma resposta ao

Howard

Roman de la Rose. Howard Bloch, já no

digressões de vários personagens alegóricos

século

a

que falam de acordo com sua natureza

misoginia – que, em seus próprios termos,

(decorum), e por isso alguns, por exemplo,

significa “um modo de falar sobre, distinto de

atacam

se fazer algo às mulheres, embora o

enquanto outros defendem sua liberdade

discurso possa ser uma forma de ação e até

contra a submissão aos homens. John Fyler

de prática social, ou, no mínimo, seu

diz que, assim como os Contos da Cantuária,

componente ideológico” (BLOCH; 1991, p. 4)

de Chaucer, “o Roman é uma obra com

– do poema, nos trechos em que afirma os

muitas vozes competitivas; e sua questão

tópicos da volubilidade e sensualidade e

central

as

XX,

coisas

analisou

mais

ostensivamente

dúvida,

trata-se

Bloch.

as

é

No

mulheres

se

alguma

de

um

poema

e

o

destas

espelho

desfilam

casamento,

vozes

344

é


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

autoritativa” (FYLER; 2007, p. 70). Será

permanece em completo contraste com o

possível sabê-lo? Para o próprio Fyler esta é

claro privilégio da fala masculina” (GUYNN;

uma questão inconclusiva.

2004, p. 658), e contradiz o argumento de

Se tomamos, por exemplo, o discurso de Velhice (Vieille), a partir dos versos 13766, lemos que ela afirma que a razão de queda das mulheres é a de serem leais a um só homem – elas nascem livres, mas são

Payen de que “o Roman de la Rose resiste ao seu próprio contexto cultural e oferece um manifesto fundada

para sobre

‘uma o

liberdade

livre

sexual

consentimento’”

(Ibidem).

constrangidas pelo casamento e a lei –, e os

O Roman de la Rose é, portanto, um

casamentos são infelizes pois não estão de

dos exemplos mais notáveis da poética da

acordo com os preceitos da Natureza. Assim,

contingência analisada por Daniel Heller-

ela diz ao Amante que não tenha dúvidas de

Roazen – este afirma que o sentido da

que Natureza fez “todas para todos e todos

linguagem

para todas”, “cada uma comum a cada um,

explicada por filósofos medievais, é uma

cada um comum a cada uma” (ains nous a

definição precisa da linguagem poética como

fait, biau filz, n’en doutes / toutes por tous et

“aquele discurso que, enquanto formalmente

tous por toutes, / chascune por chascun

indistinguível do discurso em sua forma

commune,

por

canônica, não predica, asserta, ou sustenta

chascune vv. 14487-14490). A Natureza é

verdade e falsidade, e, portanto, não é, num

implacável e logo cobra das mulheres que se

sentido estabelecido, discurso” (HELLER-

deixam aprisionar pela lei ou casamento, e

ROAZEN; 2003, p. 26). Além de Guillaume e

elas “se esforçam de todo jeito, para

Jean

retomarem suas liberdades” (Si s’efforcent

possibilitam múltiplas leituras do Roman,

en toutes guises / De retorner à lor

tornando-o uma autêntica obra aberta, as

franchises vv. 14497-14498). São versos

interpolações feitas no poema por outros

extraordinários

alguns

escritores reforçam este aspecto contingente

medievalistas, como Daniel Poirion e Jean-

da poética do romance. Mas penso que

Charles Payen, a considerar a poética de

também se pode perceber isso a partir da

Jean Meun subversiva. Para Noah D. Guynn,

consciência autoral de alguns artistas que

/

et

chascun

que

commun

levaram

da

utilizarem

contingência,

formas

tal

retóricas

como

que

contudo, “a mudez (speechlessness) da rosa

345


Luiz Fernando Alves

iluminuram manuscritos do poema, como

l’Acteur muë propos / pour son honneur et

passo a tentar demonstrar.

son bon loz, / garder, en priant qu’il soit

4.

Escolhi

para esta análise

os

quictes / des paroles qu’il a cy dictes).

manuscritos Harley MS 4425 (datado entre 1490-1500) e Genève MS 178 (copiado em 1353, mas não necessariamente iluminado neste ano).

Imagem III: Detalhe de miniatura do Roman

de la Rose, França (Paris), c. 1353. MS 178, f. 31v.

Outro recorte de iluminura (Imagem III).

Acima,

versos

em

vermelho

que

funcionam como legenda da imagem: só o último aparece, mas são três versos nos Imagem II: Detalhe de miniatura do Roman de la

Rose, Holanda (Bruges), c. 1490 – c. 1500. MS Harley 4425, f. 133r.

quais se diz que aqui começa o romance que o “mestre Jean de Meun” aperfeiçoará “até o fim”, e a seguir “Amante fala” (jusqu’en la fin;

Cortei aqui apenas o detalhe da

l’amant parle); abaixo, o Amante diz que por

iluminura que corresponde à imagem do

pouco não se desespera de haver perdido a

poeta (Imagem II). Em vermelho, segue a

esperança de colher a Rosa (et si l’ai-ge

inscrição de que a partir daqui, a fim de

perdue, espoir, / a poi que ne m’en

preservar sua honra e boa reputação, o autor

desespoir).

muda de propósito, e pede que seja isento das palavras ditas no romance (comment

346


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

O primeiro manuscrito é originário do

especialmente, ao vê-los com maior atenção,

sul da Holanda (Bruges), e pertenceu a

se percebe uma diferença fundamental na

Engelbert II, Conde de Nassau e Vianden (d.

disposição das duas colunas de texto: no MS

1504), e líder do Conselho Privado do Duque

178 a disposição do texto é indiferente, mas

da Borgonha. O segundo foi propriedade de

no MS 4425 há um espaço para o iluminador

Jean Budé, Conselheiro do Rei Charles V, e,

também atuar como autor. Talvez se possa

também, muito provavelmente, pertenceu ao

dizer, sem risco, que o iluminador fez uma

famoso Jean, Duque de Berry e Conde de

metalinguagem de seu próprio trabalho no

Poitou e de Auvergne. O primeiro foi

poema.

iluminado por um artista conhecido como Mestre do Livro de Orações, e o segundo pelo artista “L”, de um ateliê parisiense. Segundo a página da biblioteca britânica, o manuscrito Harley teria sido copiado de uma edição do romance impressa em Lyon, em cerca de 1487, e os iluminadores não teriam seguido os desenhos do exemplar impresso. Isso também diz algo sobre a cultura medieval: a imprensa de tipos móveis não deu fim imediato à cópia de manuscritos bela e ricamente iluminados. Mas, por que estes manuscritos são

5. Ao mesmo tempo em que o poema é uma narrativa em primeira pessoa de um Amante que se identifica com o poeta, a linguagem

alegórica

do

poema,

e

as

insistentes lembranças de que o significado do sonho será revelado – ainda que não o seja –, nos levam a considerar que há outra coisa ali que não se identifica com Guillaume de Lorris; ao mesmo tempo em que Jean de Meun faz uma apologia de si mesmo enquanto

autor,

compilador transferindo,

de em

coloca-se

como

autoridades algum

um

antigas,

sentido,

a

de interesse na análise? Além das diferenças

responsabilidade daquilo que diz, que se

espaciais, já ditas acima, há uma diferença

esconde sob o decorum com que é dito; ao

temporal de aproximadamente 150 anos

mesmo tempo que se trata de um único

entre o MS 178 e o MS 4425. As referências

poema, ele é escrito por dois autores em

de moda, naturalmente, são diferentes.

dois momentos históricos diferentes. Se

Enquanto o Amante do manuscrito de

lemos o poema a partir de determinado

Genève lembra um clérigo ou monge, o de

manuscrito, como o Harley 4425, é possível

Harley é um sofisticado cortesão. Mas,

encontrar um iluminador consciente de sua

347


Luiz Fernando Alves

própria intervenção na obra, multiplicando

que há tantos autores dos Romans de la

ainda mais a autoria. Talvez se possa dizer

Rose quantos são os manuscritos.

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348


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349


PROPRIEDADES MORFOSSINTÁTICAS DOS VERBOS ESTATIVOS: UM OLHAR SOBRE O SISTEMA VERBAL LATINO Luiz Pedro da Silva Barbosa 1 Lívia Lindóia Paes Barreto(Orientadora) Resumo: Este trabalho é uma amostragem dos estudos desenvolvidos durante o curso de mestrado em Estudos da Linguagem e tem como objeto de pesquisa o sufixo –ē, formador de verbos com valor de estado, em Latim. Verbos com esse sufixo estão enquadrados na chamada 2ª conjugação. A proposta de trabalho está dividida em suas etapas: em primeiro lugar, descrição dessas formações verbais, do ponto de vista histórico, sob aspectos mais concretos da linguagem – fonologia, morfologia e sintaxe; a segunda etapa enfoca uma análise da transitividade de construções com esses verbos, selecionadas apenas as mais prototípicas. Paralelamente, busca-se associar alguns dos parâmetros utilizados para a análise com as características de prototipicidade dos mesmos. Após a análise, os resultados foram bastante próximos do protótipo. Ainda restam diversas dúvidas envolvendo os verbos estativos, as quais esperamos abordar e investigar em trabalhos posteriores. Palavras-chave: Morfossintaxe; transitividade; verbos de estado

1

Universidade Federal Fluminense.

350


Luiz Pedro da Silva Barbosa

1- Introdução

o que ocorre apenas nos temas de

Este trabalho é um produto dos

infectum. Esse agrupamento é feito para

estudos realizados durante o mestrado em

facilitar o aprendizado daqueles que estão

Estudos da Linguagem e tem como foco de

dando os primeiros passos no Latim, mas

pesquisa o sufixo latino –ē, formador dos

poucos manuais há que lançam mão de

verbos

uma classificação descritiva e aprofundada.

de

segunda

conjugação,

que

indicam estado (cf. ERNOUT, 2002a, p.

Essa necessidade é atestada há muito: Resta-nos

144). Nosso trabalho apresenta um novo

clássica

olhar sobre a conjugação latina afastando-

sistema

verbal

em

verbos

tratar

latinos

da

divisão

em

quatro

falha, não só por não se poder aplicar em geral às formas do perfectum, como também, mesmo

tradição gramatical da Língua Latina, que o

dos

apenas

conjugações. Aliás, esta divisão é inteiramente

se daquele estabelecido ao longo da divide

agora

no que diz respeito ao infectum, por reunir

quatro

verbos com características diversas. (FARIA,

conjugações, de acordo com a vogal

1958, p.240)

temática.

Nossos estudos estão baseados nas

O trabalho está dividido em duas

descrições de MONTEIL, 1974, que aborda

etapas: a primeira etapa apresenta uma

o verbo latino a partir de características

descrição, do ponto de vista diacrônico, das

como seus processos de formação e

características desse grupo de verbos, com

flexão,

base em estudos anteriores, desenvolvidos

“conjugações”. A divisão, por ele utilizada e

por Faria, 1958 e Monteil, 1974. A segunda

aqui seguida, leva em conta também os

etapa enfoca uma análise do nível de

sufixos formadores dos temas.

transitividade

construções

utilizar

a

denominação

mais

A partir destes conceitos chega-se

prototípicas com os verbos estativos, a

ao grupo dos verbos estativos. São verbos

partir de exemplos de uso em textos

que compõem a chamada 2ª conjugação,

latinos, sob o viés da Linguística Funcional.

comumente chamada de conjugação com

quatro

em

sem

2- Breve histórico do objeto

“vogal temática” em ē, que, no entanto,

O sistema verbal latino é dividido em

consideramos como morfema e sobre o

tipos,

chamados

conjugações,

qual nos debruçaremos, em diferentes

agrupados segundo a vogal que segue a

níveis gramaticais – fonológico, morfológico

raiz, precedendo as desinências flexionais,

e sintático.

351


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

adjetivo aridus, que por sua vez dá origem

2.1- Fonologia: esse

ao verbo ardeo, arsi: se o perfectum

morfema é originado de uma forma “–eH 1 “

sonântico é o mais recente e o que se

indoeuropeia (cf. MONTEIL, 1974, p. 292),

tornou o principal na passagem do Latim às

que no seu vocalismo pleno se reduz, na

línguas neolatinas (cf. VÄÄNÄNEN, 1967,

passagem ao latim, ao um ē. A noção

p. 151), era de se esperar que ele

desse processo mostra o quão antigo é

aparecesse no verbo derivado (ardeo), já

esse sufixo nas línguas indoeuropeias. Em

que é o mais recente, o que resultaria em

grego, a evolução fonética também resultou

*ardui, e não arsi, forma atestada. A ruptura

em η.

com o esperado ainda aumenta quando

No

nível

mais

concreto,

2.2- Morfologia:

lembramos que o perfetum sigmático é

A partir do estudo da morfologia e da

derivado do aoristo (note-se o aoristo grego

sintaxe, chegamos ao estágio histórico da

em –σα), mas também que o próprio sufixo

língua, ou seja, fase apreensível por meio

estativo tem uma estreita relação com o

dos textos que chegaram até nós. Portanto,

aoristo.

o que se pode ver, no Latim, é um grupo de

momento, não é nosso objetivo estudá-la.

verbos bem determinados com valor de

Essa

Aliás,

o

dúvida

persiste

e,

no

–ē, no antigo estágio

estado (calleo – estar quente; frigeo – estar

indoeuropeu, era formador, justamente, de

frio; oleo – exalar odor), em sua grande

temas de aoristo, não de presente. O Latim

maioria com vocalismo zero do radical (cf.

inova ao utilizá-lo em seus temas de

MEILLET, 1948, p. 285).

infectum. A explicação para tal uso na

O sufixo estativo é registrado, com frequência,

apenas

nos

tempos

Língua Latina pode vir da semântica do

do

aoristo, que indica, geralmente, uma ação

infectum. O perfectum desses verbos,

que atingiu um certo estado (cf. MEILLET,

geralmente segue a formação de tipo

op. cit., p. 184).

sonântico, em –ui, porém dessa vez ligado

Interessante é ressaltar também que

diretamente ao radical, ou então do tipo

os verbos desse grupo apresentam, com

sigmático, em –si. Esta última formação

grande

levanta dúvidas em relação, por exemplo,

adjetivo em –ĭdus e um correspondente

ao verbo areo, arui que dá origem ao

substantivo em –ŏr. (calleo/callidus/callor –

frequência,

um

correspondente

352


Luiz Pedro da Silva Barbosa

quente/quente/calor,

modo que o valor original é muito menos

timeo/timidus/timor – temer/tímido/temor,

recorrente (note-se que ele continua seu

entre outros). Às vezes, a língua só registra

processo de mudança até alcançar o

estar

um

desses

derivados

doer/dor;

(doleo/dolor

placeo/placidus

agradar/agradável),

o

que

estágio de verbo auxiliar nas línguas

neolatinas).

permanece

O valor transitivo estaria reservado aos seus pares sem o sufixo, mas a

ainda sem explicação. Muitos desses verbos possuem um

analogia teria tornado cada vez mais opaca

par, sem o sufixo, mas com o mesmo

a diferença entre eles. Rubio (1989, p. 125)

radical, alocados na 3ª conjugação, por

esclarece que não há diferença entre os

fazerem um infinitivo em -ĕ (ferueo/feruo –

tipos de complementos usados nesses

iaceo/iacio

verbos; como todos são verbos com

jazer/atirar). De um modo geral, a presença

construção em acusativo, todos tem o

do sufixo torna o verbo intransitivo.

mesmo valor de objeto, uma vez que,

estar

fervendo/ferver;

Enfim,

novos

compostos

foram

criados, baseados nesses verbos, com a

segundo ele, os casos latinos possuem um valor unitário.

adição do sufixo incoativo –sc, que indica o

Portanto, é mais prudente afirmar

início de um processo (rubeo/rubesco –

que a transitividade ou intransitividade dos

estar vermelho/avermelhar; areo/aresco –

verbos estativos depende de fatores mais

estar seco/secar).

subjetivos empreendidos pelos autores,

2.3- Sintaxe: Os

estudos

relacionados de

Sintaxe

a

contextos

diversos.

A

Latina,

fronteira entre transitivo e intransitivo não é

tradicionalmente, afirmam que os verbos

clara e o uso será fundamental para a

estativos são intransitivos em sua origem,

descrição de características gramaticais (cf.

mas que ganham usos transitivos aos

ERNOUT, 2002b, p.211).

poucos. O caso mais interessante dessa mudança (e que mereceria um estudo à parte) é do verbo habeo, que originalmente intransitivo

significando

“estar

contido”,

passa ao valor transitivo de “possuir”, de tal

3-

Pressupostos

Teóricos

e

baseada

na

metodológicos para a análise Esta Linguística

análise

está

Funcional.

pressupostos

Entre

fundamentais,

os

seus

salienta-se

353


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

que a Língua é constituída em uma estreita

engenhosa e engraçada que muda a

relação entre o sistema linguístico e os

história da peça.

fatores

pragmáticos

envolvendo

as

e

situações

Os exemplos mostrados são os de

contextuais de

uso.

A

construções

entendidas

como

mais

gramática é vista como uma estrutura

prototípicas para os verbos estativos, com

dotada de certa maleabilidade por parte

base na teoria dos Protótipos desenvolvida

dos

pelo linguista Talmy Givón (apud PIRES,

usuários/falantes

que

atende

a

finalidades pragmáticas e discursivas. A

1999).

língua se manifesta no uso, portanto a

categorização possui um protótipo, cujos

pesquisa

estará

representantes

compartilham

uso

características

esperadas

amparada

funcionalista por

dados

sempre reais

de

Segundo

categoria.

linguístico.

esta

Assim,

os

teoria,

qualquer todas

para

as

aquela

exemplos

aqui

Por falar em dados, o corpus para

estudados são representantes prototípicos

esse trabalho será a peça Mostellaria, de

de construções com verbos estativos,

Plauto, comediógrafo do período arcaico da

porque possuem um claro valor de estado ,

Literatura Latina. A escolha desse autor

uma vez que

deu-se pela confiança de que sua língua

apresenta apenas um argumento – sujeito.

cada um de seus verbos

tem um caráter bastante popular, que o

Para a análise da transitividade

aproxima do falar vernáculo do grande

nessas construções, será usado o modelo

público de sua época, público para o qual

de transitividade oracional, proposto por

suas

(cf.

Hopper & Thompson (1980). São listados

MEILLET, 1977, p.176). A peça traz para a

10 parâmetros de transitividade, de modo

cena romana a história de Philolaches,

que, quanto mais desses parâmetros forem

jovem que usa as posses de seu pai

positivos,

Theopropides que estava em viagem de

oração 2.

peças

eram

direcionadas

negócios. Durante uma festa, o escravo

mais

Após

a

transitiva submissão

será

aquela

das

frases

Tranio chega abruptamente avisando que

retiradas do texto latino aos parâmetros de

Theopropides havia voltado antes da hora

transitividade, vimos o quão transitivas são

e chegaria a qualquer momento. Em meio ao pânico, o escravo tem uma ideia

2

O próprio Givón (2001) possui uma visão própria da

transitividade verbal (apud CUNHA & SOUZA, 2007, p. 31). No entanto, ela não será utilizada por enquanto.

354


Luiz Pedro da Silva Barbosa

as construções com verbos estativos.

pois eles já foram bem estudados por

Procuraremos associar cada um desses

Cunha e Souza (2007).

parâmetros

às

características

de

4.1- Participantes

prototipicidade das construções analisadas.

Para que ocorra transferência

Assim, esperamos chegar aos parâmetros

de ação, é necessário que ao menos dois

mais ou menos esperados para uma

participantes estejam presentes. Dois ou

posterior análise das construções menos

mais participantes apontam para maior

prototípicas envolvendo os verbos objetos

transitividade oracional.

deste estudo. (1)

4.2- Cinese

- Quin etiam illi hoc dicito/

Para que haja transferência

Facturum me ut ne etiam aspicere aedis

de

audeat.(v. 423)

movimento nela. Uma ação pode ser

- Pois também diga a ele isto: que

atividade,

é

necessário

que

haja

transferida, um estado ou um atributo não.

eu farei com que ele não ouse olhar para a

4.3- Aspecto

casa.

Uma oração com aspecto perfectivo (2)

- ...madeo metu. (v. 395)

aponta para maior transitividade, pois está

- ... estou molhado de medo

acabada

em

relação

a

um

aspecto

O exemplo (1) mostra um caso

imperfectivo. Isso ocorre porque uma ação

menos prototípico, pois o verbo destacado

acabada afetou totalmente seu objeto, uma

tem um complemento, que por acaso é

ação

inclusive uma oração inteira; já em (2),

parcialmente.

não

acaba

afetou-o

apenas

temos uma oração mais prototípica, sem

4.4- Pontualidade

complemento,

Quando uma ação é realizada de

apenas

com

um

termo

forma abrupta, ou seja, sem nenhuma fase

circunstancial. 4- Análise segundo os parâmetros de transitividade Não

é

de transição entre a afetação e nãoafetação do objeto, ela afeta seu objeto de

necessário

que

nos

demoremos sobre cada um deles. Será mostrada apenas uma breve explanação,

forma mais marcada do que uma ação que se prolonga ou que é contínua. 4.5- Intencionalidade

355


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

O efeito de uma ação é mais aparente quando ela é intencional do que quando é involuntária. 4.6- Afirmação Se uma oração é afirmativa, a ação ocorre, logo há transferência. Isso não

Individuado

Não-individuado

Próprio

Comum

Humano, animado

Inanimado

Concreto

Abstrato Plural

Singular

Incontável Não-

Contável Referencial,

referencial

definido

ocorre quando ela é negativa. Imagem I: Tabela de Cunha e Souza

4.7- Modo Partindo da distinção entre modo real e irreal, evidentemente uma oração em um modo real (indicativo) é mais transitiva do que uma oração em modo irreal (imperativo ou subjuntivo). com

alta

agentividade

podem efetuar transferência de ação, portanto

tornam

as

Ao todo, foram selecionados 14 fragmentos do texto contendo construções prototípicas com verbos estativos. A ordem de exposição dos resultados da análise

4.8- Agentividade Sujeitos

5- Resultados da análise

orações

mais

transitivas. 4.9- Afetamento do objeto Esse parâmetro se refere ao quanto o objeto é afetado. Quando ele é totalmente afetado, a oração é mais transitiva 4.10- Individuação do objeto Esse parâmetro se refere à distinção entre o objeto e o sujeito e também entre o fundo em que ele se situa. Para as propriedades de individuação do objeto, retiramos a seguinte tabela de Cunha e Souza (op. cit., p. 39) (Imagem I):

será do parâmetro mais regular para o mais variável, seja ele encontrado ou não. Ao fim, serão retomados aqueles que se associam ao protótipo da construção. 5.1- Participantes Todas apresentam

as

orações

apenas

um

estudadas participante,

portanto o primeiro parâmetro aponta para intransitividade. É importante notar que consideramos a existência de um único argumento

como

característica

de

prototipicidade dessas construções, assim é esperado um resultado diferente na análise de construções menos prototípicas. 5.2- Cinese Como se trata de verbos com valor de estado, seria difícil encontrar cinese nos

356


Luiz Pedro da Silva Barbosa

exemplos estudados, e assim foi. O valor

- Estou calado!

estativo se opõe ao movimento e, como ele

A frase é uma resposta a um

tace!.

a propriedade que define esses verbos,

imperativo

não esperamos resultados diferentes em

Theopropides

trabalhos posteriores. O exemplo a seguir,

intenção sobre esse estado, então nessa

retirado

frase, a intencionalidade do sujeito aponta

do

argumento

da

peça,

faz

referência a Theopropides, o pai de família

Se

está

a

personagem

calada,

ela

teve

para maior transitividade oracional.

e é um exemplo de uso sem qualquer

5.6- Aspecto

noção de movimento ao verbo:

Todas as frases analisadas estavam

(3)

- Post se derisum dolet (v.10)

no tempo presente, portanto o verbo apresentava

5.3- Pontualidade

resultado aponta para menos transitividade,

Esse parâmetro também não foi

contudo, nos textos, as frases podem

encontrado.

Acreditamos

que

o

radical

infectum. O

- Ele sofre após ter sido zombado

de

valor

aparecer também com aspecto perfeito, já

estativo se opõe à pontualidade porque o

que os verbos estativos possuem tema de

estado se prolonga no tempo e, portanto,

perfectum (alguns grupos não o possuem).

tende a ser menos pontual.

Para

que

se

obtivessem

resultados

5.4- Agentividade do sujeito

decisivos em relação a esse parâmetro,

Novamente, uma característica que

deveria ser feito um estudo muito maior, de

se opõe àquela considerada prototípica

caráter

para

frequência de uso de cada aspecto nesses

esses

verbos.

Afinal,

se

eles

representam estados, esse valor é oposto à

que

mostrasse

a

verbos.

ideia de agente.

5.7- Afirmação

5.5- Intencionalidade Consideramos que essa é uma outra

quantitativo,

Mais uma vez, o resultado foi unânime,

ou

seja,

frases

apresentaram

entanto, das orações lidas, é possível ver

positiva, porque são afirmativas, o que

um caráter intencional no sujeito de uma

aponta

delas:

realidade, essa propriedade depende muito (4)

- Taceo! (496)

mais

de

mesma

as

característica oposta ao valor de estado, no

para

a

todas

maior

polaridade,

transitividade.

circunstâncias

contextuais

357

Na e


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

pragmáticas do que do verbo em si,

segundo fatores diversos ao valor estativo

portanto está bem distante do protótipo de

desses verbos; esses aspectos foram

construção com verbo estativo.

Afirmação, Modo e Aspecto. Entre os

5.8- Modo

parâmetros que se aproximam do protótipo,

Por último, o mais flutuante dos

apenas um exemplo de maior transitividade

resultados. Das 14 ocorrências, sete delas

foi

encontrado,

estão com o verbo no modo indicativo, o

Cinese, Intencionalidade, Agentividade e

mais transitivo de todos; quatro têm-no no

Pontualidade.

subjuntivo; duas são formas de infinitivo; e um

imperativo.

Dos

modos

menos

são

Acreditamos intransitividade

é

eles

Partitipação,

que,

que

a

uma

característica

transitivos, não é possível ainda precisar

prototípica dos verbos com valor de estado,

uma escala de transitividade entre eles.

foi previsível que fossem encontrados tão

Mais uma vez, o uso do modo verbal

poucos exemplos de maior transitividade.

depende de vários fatores internos e

No entanto, acreditamos que a submissão

externos ao texto.

de construções menos prototípicas aos

Os

outros

dois

quesitos

dizem

mesmos

parâmetros

poderia

revelar

respeito aos complementos verbais, que

resultados, no mínimo, mais variáveis que

não fizeram parte de nossa análise. Assim,

os presentes. Este

esses quesitos também não entraram

trabalho

deixou

algumas

nesse trabalho. Mas eles podem ser

questões ainda em aberto, sobre as quais

retomados futuramente, em uma análise de

trabalhos posteriores serão empreendidos.

casos menos prototípicos.

A principal delas é a análise de orações

6- Considerações finais

com usos transitivos dos mesmos verbos.

Os resultados da submissão das

Elas terão mais de um participante, o que

orações aos parâmetro de Hopper e

pode causar uma diferença não apenas

Thompson

mostrou

baixa

nos parâmetros já estudados, mas também

transitividade

nas

prototípicas

suscitará a análise daqueles que não o

uma

orações

construídas com verbos com valor de

foram.

estado. Quase todos os exemplos de maior

Outra questão promissora seria a

transitividade são de aspectos variáveis

comparação desses verbos com seus

358


Luiz Pedro da Silva Barbosa

pares sem o sufixo –ē (como ferueo/feruo),

Finalmente, este trabalho é

sob a mesma perspectiva teórica. Isso

um passo inicial para um estudo maior

contribuiria para que tivéssemos uma

sobre o sufixo com valor de estado, que

noção do papel do sufixo na transitividade

deverá ser desenvolvido ao longo dos

dessas construções. Ainda está em curso

próximos

um estudo comparativo com os compostos

para o estudo e o ensino da Língua Latina.

meses.

Esperamos

contribuir

derivados pelo sufixo incoativo –sc (como

rubeo/rubesco).

Referências: BRITO, R. H. P. Teoria dos Protótipoo: um Princípio Funcionalista. Todas as Letras, São Paulo, No 1, p. 71-79, 1999 CUNHA, M. A. F.; SOUZA, M. M. Transitividade e seus contextos de uso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007. ERNOUT, A. Morphologie historique du latin. 3ed. Paris: Klincksieck, 2002. _________.; MEILLET, A. Dictionaire étymologique de la langue latine: histoire des mots. Paris: Klincksieck, 1959. _________.; THOMAS, F. Syntaxe latine. 2ed. Paris: Klincksieck, 2002. FARIA, E. Dicionário escolar latino-português. Belo Horizonte: Garnier, 2003. _________. Gramática Superior da língua latina. 2ed. Brasília: FAE, 1995. HOPPER, P.; THOMPSON, S. Transitivity in Grammar and Discourse. Language, Vol. 56, No. 2, p. 251-299, jun. 1980. MEILLET, A.; VENDRYES, J. Traité de grammaire comparée des langues classiques. 4ed. Paris: H. Champion, 1966. MONTEIL, P. Éléments de Phonétique e Morphologie du Latin. Paris : Nathan, 1974. PLAUTE. Mostellaire. Texte établi et traduit par Alfred Ernout. Paris: Les belles Lettres, 1933 RUBIO, L. Introducción a la sintaxis estructural del latín. Barcelona: Editorial Ariel, 1989. VÄÄNÄNEN, V. Introduction au Latin Vulgaire. Paris: Klincksiek, 1967

359


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Links para textos latinos: http://www.thelatinlibrary.com/ http://www.perseus.tufts.edu/hopper/

360


DA ESCRAVIDÃO ANTIGA À MODERNA: UM SEGREDO EM CERVANTES? Marcello de Albuquerque Maranhão 1 Resumo: Debate sobre as diferenças entre a escravidão Antiga e a Moderna. Possíveis origens da escravidão étnica no mundo ocidental identificadas naleitura do D. Quixote de Cervantes. Papel da Igreja na definição das fronteiras da escravidão moderna. Reflexão sobre a possível origem do preconceito étnico moderno no mundo ocidental decorrente da escravidão étnica. Palavras-chave: Escravidão; Escravidão étnica; Cervantes.

1

Marcello de Albuquerque Maranhão (UFPel), Especialista em História e Cultura Antiga (UFF). Projeto atual: A

HISTORIOGRAFIA GREGA ANTIGA SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE GREGOS E NÃO-GREGOS NA SICÍLIA ORIENTAL, DO SÉCULO VIII ÀS INVASÕES ATENIENSES: entre etnia, fronteira cultural e espaço geográfico. E-mail: brazidas@yahoo.com.br. O autor é Mestrando do PPGH Ufpel sob a Orientação do Prof. Dr. Fábio Vergara Cerqueira.

361


Marcello de Albuquerque Maranhão

Este não é exatamente um texto do

que

a

escravidão

sofreu

no

mundo

nosso projeto, mas é um texto derivado,

Ocidental, e ao mesmo tempo fazer uma

onde procuramos fazer um exercício de

ligeira comparação com algumas formas

reflexão sobre a História a partir de fontes

que a Escravidão assumiu a Oriente.

literárias antigas, ou seja, a Historiografia

Não sei quanto a vocês mas sempre

dos antigos, especialmente a dos gregos,

me pareceu estranhíssimo, cada vez que

que são a base das nossas pesquisas.

via a Escravidão ser citada na Antiguidade

Somada aqui com um avanço em direção a

e

uma

navegações

literatura

comparativamente

mais

no

mundo

moderno,

Europeias,

fator

me

pareceu

Embora

esta

escravidão moderna quando comparado

abordagem mais como Literatura e reflexão

com a escravidão geral do tipo praticado na

literária do que como História, e também

antiguidade.

percebamos

o

sempre

recente, o D. Quixote de Cervantes. atualmente

estranho

pós-grandes étnico

da

nos identifiquemos mais com aquela do

Na antiguidade não havia critério

que com esta, nossa formação em História

étnico para fazer de alguém um escravo e

nos permitiu fazer esta tentativa contínua

qualquer

de habitar a nebulosa fronteira entre as

escravos mostra isso. Não importava a

duas disciplinas.

etnia, cor da pele, região de origem, as

texto

antigo

que

mencione

A Escravidão é um dos modos que o

pessoas perdiam sua liberdade e sua

trabalho assumiu na Antiguidade. Não

individualidade, tornando-se propriedade

pretendemos entrar no debate se era a

legal de outra pessoa, basicamente por 2

forma predominante ou se os pobres livres

motivos:

superavam os escravos em número e

houvessem

produção

diversas obras literárias ou historiográficas,

(VEYNE,

1993,

p.63).

É

dívidas outros. do

ou

guerra.

Apesar mundo

Embora

disso, clássico

em

suficiente para a elaboração deste texto

especialmente

entendermos que a Escravidão foi uma

Heródoto, Tucídides, Diodoro Sículo para

forma importante de trabalho no mundo

citar apenas algumas que conhecemos

antigo e também mais tarde a partir do

melhor – vemos manifesta condenação de

século XVI, no mundo Ocidental. Nosso

escravizar pessoas da própria cultura e um

ponto é examinar algumas transformações

especial apreço por conquistadores que

362


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

evitassem incorrer nesta prática. Em linhas

tempo que variava, mas podia atingir

gerais,

alguns anos (VEYNE, 1989, p. 63).

porém,

pode-se

considerar

a

escravidão na Antiguidade como ampla,

Exceções fora, nos séculos XV-XVI

geral e irrestrita: qualquer indivíduo, fosse

vemos a Escravidão assumir uma forma

por dívidas ou por cair prisioneiro em

étnica e contribuir decisivamente para um

guerras, estava sujeito a ela, exceto em

racialismo – termo vulgarmente chamado

caso de decretos específicos proibindo a

de

escravidão

própria

conhecemos hoje: o preconceito contra as

comunidade, quase sempre por dívidas.

etnias africanas e descendentes, mais

Tais decretos em geral eram pensados

comumente conhecido como preconceito

para evitar a diminuição do número de

contra negros e afro-descendentes. Essa

cidadãos e portanto a ameaça à própria

escravidão

existência da comunidade.

contraste

de

pessoas

da

‘racismo’

na

étnica que

forma

moderna

salta

aos

como

o

faz

um

olhos

em

Então, do século XVI em diante,

comparação com a escravidão antiga. Um

cerca de onze séculos depois do fim do

contraste notável, mas muito pouco notado,

Mundo Antigo, vemos a escravidão no

menos ainda investigado e pouco – talvez

Ocidente – herdeiro mais direto do Mundo

nunca – explicado ao longo da História.

Clássico – assumir um formato étnico:

Mas essa constatação da sua mudança de

praticamente apenas negros de origem

natureza por si só, não nos deveria

Africana

com

tranquilizar enquanto acadêmicos. Urge

exceções pontuais, aqui e ali. Fossem

explica-la e penso que encontramos um

estas exceções casos particulares, fosse a

indício do que pode ter desencadeado essa

servidão

que

transformação no D. Quixote de Cervantes.

da

A Escravidão sempre foi debatida

América do Norte: o colono trabalhava de

desde a antiguidade. Embora fosse prática

graça até pagar passagem e equipamento.

difundida, não é correto dizer que todos a

Caso que em geral, não era uma dívida

aprovassem e mesmo os gregos deixaram

impagável. Assim como na Antiguidade

testemunhos escritos em que é possível

houve relatos de escravidão temporária:

ver uma desaprovação em princípio da

vender-se como escravo por um período de

Escravidão, como prática contrária à moral

aconteceu

eram

até

‘escravizáveis’

pagar

nas

as

colônias

dívidas, inglesas

363


Marcello de Albuquerque Maranhão

daquelas sociedades. Em Heródoto e

Europeus, e seus nativos são considerados

também Timeu, historiador grego do século

como possuidores de alma, sendo portanto

III

interdito

a.C.

é

possível

ver

uma

certa

sua

escravidão.

Nesse

curto

condenação da Escravidão ao tentarem

espaço de tempo houve uma mudança

atribuir a um determinado povo – os

significativa para a própria Igreja: sua

Eritreus da ilha de Eubéia, próxima a

redoma de vidro na Europa fora quebrada,

Atenas – a responsabilidade ‘por terem

rachada pela Reforma, pelo surgimento do

trazido a Escravidão para a Grécia’.

Protestantismo.

Apesar da bula eclesiástica Dum

cálculo

político,

Então ou

foi se

um

simples

quiserem

de

Diversas (1452) autorizando a escravidão

contagem de cabeças, perdão... de almas:

de muçulmanos e de negros, explicações

as almas perdidas na Europa poderiam ser

religiosas nunca me pareceram suficientes,

recuperadas na América.

pois as religiões procuram sempre se

Nada disso porém, nos explica o

adaptar às realidades de seu tempo. A bula

nosso problema: que houve de tão decisivo

não

como

na História dos séculos XV e XVI que

humanas,

fizesse a Igreja autorizar a Escravidão,

reconhecia

possuidores

os

de

categorizando-os

africanos almas

como

estando

numa

instituição

que

de

certo

modo

se

categoria inferior de existência em relação

notabilizara em combater – com exceções

ao conjunto da Cristandade que já fazia

pontuais – para melhor garantir o seu

essa diferença para os seguidores do Islã.

poder, até que acabara por posicionar-se

Quando

as

contra ela por completo? Afinal, quais

teriam sido os agentes motivadores dessa

estavam em andamento. E o banimento da

suspensão sobre o interdito da escravidão,

escravidão na Europa Cristã em séculos

ainda

anteriores,

europeus?

a

conquistas

bula

foi

promulgada,

portuguesas

que

tinha

na

servido

África

para

a

manutenção do poder da Igreja, não

que

fosse

apenas

para

não-

Em geral, como dissemos antes, as

precisava ser estendido aos povos do

religiões

continente africano. O engraçado é que

procurando passar a impressão de os

meros 100 anos depois, o continente

dirigi-los, de provoca-los. Quase sempre

Americano

isto é uma admissão implícita e encoberta

está

em

contato

com

os

adaptam-se

aos

tempos,

364


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Essas descrições que caem tão bem

de um estado de coisas, mas divulgam suas

decisões

como

tendo

sido

como‘retratos’ daquele tempo para nós,são

fundamentais para a mudança. E em D.

fruto

Quixote

Cervantes:

nos

capítulos

XXXIX-XLI,

na

das

próprias foi

experiências

soldado,

combateu

de no

e

nos

Mediterrâneo contra os Mouros, venceu, foi

‘História

da

ferido, perdeu os movimentos do braço

Mourisca’ é possível discernir algum indício

esquerdo, lutou em várias batalhas até ser

desta mudança.

capturado por corsários da Argélia e viver 5

chamada

‘História

do

capítulos

LXIII-LXV,

Cativo’ a

Retornando um pouco ao começo,

anos de sua vida como prisioneiro, não

ressalto que nunca vi ninguém procurar

sem tentar a fuga 4 vezes até finalmente

uma explicação para essa mudança no

ter seu resgate pago por parentes. E

caráter da Escravidão no mundo Ocidental.

também do conhecimento que tinha do

E embora eu mesmo tenha localizado uma

gigantesco

possível explicação em Cervantes, ressalto

Mediterrâneo e do qual ele também fez

que Cervantes não estava tentando propor

parte.

conflito

Quando

tal explicação, mas inadvertidamente nos

que

assolava

Cervantesnarra,

o

por

exemplo, que no dia da Batalha de Lepanto

conduziu a ela. A História do Cativo relata as

(1571), a armada turca é derrotada e “15

experiências de um prisioneiro dos Mouros.

mil cristãos foram libertos das galeras”

A descrição começa com as lutas entre

(CERVANTES, 2005,p. 239), é clara a

Mouros – um sinônimo para os seguidores

situação

do Islã no Mediterrâneo – e Cristãos,

capturados, pois o serviço de remador

avança até uma descrição vívida do

naquela época derivava de uma condição

cativeiro

servil.

e

mesmo

da

sociedade

de

escravo

dos

cristãos

Assim como pouco após (idem,

muçulmana do Mediterrâneo do século XVI

ibidem) a narrativa mostra os turcos

e termina com a fuga do cativo após

prontos a abandonar suas galeras na

algumas aventuras. A da Mourisca é

iminência dum ataque Cristão no ano

semelhante, embora trate de uma mulher

seguinte, (1572), em Navarino. O temor de

cristã capturada e disfarçada até tornar-se

serem capturados os movia, pois sabiam

capitã de navio.

que seriam reduzidos à escravidão.

365


Marcello de Albuquerque Maranhão

asHistórias

do

Aníbal no século III a.C. depois das suas

Cervantes

são

enormes perdas em 4 batalhas (apenas na

suficientes como explicação das mudanças

última grande batalha que perderam, foram

na atitude da Igreja e na mudança do

70 mil romanos e aliados mortos). Não era

caráter da escravidão de um caráter geral

algo como os recrutamentos feitos pelos

para um perfil étnico? Sozinha não é, mas

jovens patrícios de classe senatorial para

quando

apoiar Sila em sua ditadura no século I

Será

que

Cativo/Mourisca

em

pensamos

do

outro

lado...os

Turcos que lideravam o mundo muçulmano

romano.Pompeu,

por

exemplo,

nessa

desde o século XI – e o fariam ainda por 9

ocasião recrutara duas legiões entre seus

séculos depois disso – os Turcos que

próprios escravos, ganhando o favor de

tinham tomado Constantinopla 100 anos

Sila no processo. Então o que eram os Janízaros?

antes de Cervantes viver suas aventuras e combate-los... os Turcos mantinham um

Eram

regime de escravidão amplo em suas

permanente no mundo Turco Otomano.

terras. Na parte europeia, ficou famosa a

Uma instituição que cumpria múltiplas

tropa dos Janízaros, uma instituição que

funções. Recrutava-se desde os 7 anos de

vemos apenas raramente acontecer na

idade o primogênito de cada família cristã.

Antiguidade: um exército de escravos

Ao mesmo tempo que se diminuía os

recrutado pelos seus senhores.

Não era

recursos humanos dos povos sujeitados, se

um exército escravo rebelde formado em

acrescia ao poder do Sultão esta mesma

uma revolta servil contra seus senhores,

força subtraída de uma população com

como Espártaco o fora em Roma. Era

grande potencial de revolta. Esses meninos

antes algo comparável aos recrutamentos

eram treinados nas melhores artes militares

feitos por Espartanos entre hilotas nas

e constituíam uma tropa de elite. Uma tropa

horas de necessidade e que os premiavam

de Europeus brancos, sujeita ao Sultão e

com

sendo

sua ponta-de-lança nas piores batalhas.

novos

Mas ainda que estivessem armados, seu

membros do demos, novos cidadãos . Não

caráter era o de escravos. E nenhuma

era como quando os romanos recrutaram

surpresa há nisso. A instituição do Exército

legiões de escravos para fazer frente a

de Escravos já fora usada no mundo

uma

nomeados

cidadania os

relativa,

neodamôdeis

uma

instituição

de

caráter

366


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

muçulmano pelos Aiúbidas, dinastia do

o Mundo Ocidental conseguia penetrar e

Egito no século XII. Eles criaram os

fazer cativos.

Mamelucos

sua

tropa

para

combater

Martin Bernal com o seu Black

principalmente outros muçulmanos que os

Athena

ameaçavam e assim não incorrer na

importante para este trabalho, embora já

desobediência aos princípios do Corão que

tivéssemos feito algumas reflexões sobre a

interditava aos muçulmanos matarem-se

comparação entre Escravidão Antiga e

uns aos outros. Para o mesmo fim – entre

Moderna antes do lançamento de Black

outros – também serviam os Janízaros.

Athena. Mas o problema que Bernal

Assim

temos

uma

inspiração

procurou situar – o de posturas racistas e

Mediterrâneo do século XVI: lutas entre

nacionalistas nos Classicistas do século

Mouros e Cristãos onde os perdedores

XIX influenciando sua falta de percepção

eram

mundo

para elementos asiáticos na formação da

Muçulmano era fácil ver escravos brancos,

Grécia Antiga – este problema procuramos

ainda que fossem armados como um

aprofundar

e

exército, no mundo Ocidental, Europeu a

explicitando

um

associação

e

atitudes dos Classicistas do século XIX (o

escravos foi se tornando cada vez mais

racismo existia, mas existia a questão de

forte. A ponto de a Igreja finalmente

lutar para libertar a Grécia dos turcos,

sacramentar

–tal

tornando qualquer contribuição do Levante,

Nessas

que os Turcos dominavam no início do XIX,

lutas de fundo religioso, mas de impérios

difícil de obter reconhecimento por parte de

mediterrânicos que se combatiam entre si

Classicistas do mundo Ocidental). Não só

como mostrou Braudel (BRAUDEL, 1984,

aprofundamos a explicação de Bernal ao

vol. 2, pp 17-61; pp. 169-269; pp. 269-619),

sairmos do lugar-comum do ‘racismo’,

no mundo ocidental apresar muçulmanos

como começamos a refletir sobre as

foi cada vez mais ficando associado com o

origens da escravidão puramente negra na

apresamento de africanos, pois a África

Europa e na América, praticada pelos

tornou-se o lugar onde a Cristandade, onde

poderes coloniais. Algo que denominamos

entre

E

quadro

foi

do

escravizados.

o

(1996)

se

povos

sem

no

africanos

trocadilho

associação em formato oficial.

redimensionar pouquinho

não

melhor

as

‘Escravidão étnica’.

367


Marcello de Albuquerque Maranhão

Nossas indagações sobre as origens

civilizações.

Procuramos mostrar como

da escravidão étnica – e por extensão do

essas práticas sociais foram surgindo a

preconceito

etnias

partir de operações mentais, por sua vez

negras no Ocidente – nossas indagações

geradas por uma situação política de uma

nos levaram até aqui por pensarmos de

dada conjuntura de época e lugar.

racial

atual

contra

forma Historicista: todo comportamento

Pensamos que certas atitudes e

socialmente reconhecido, costume, prática

comportamentos

tem época e lugar, tem origens e difusão.

contudo tem seus motivos históricos de

Se há explicações biológicas, é um outro

origem. E o primeiro passo para extinguir

assunto, outros argumentos. Aliás, não sei

um

o que é mais perigoso: dizer que o racismo

compreendê-lo em sua formação, para

tem explicação, com origens, começo, meio

então desmontá-lo em seu raciocínio e aí

e assim podendo ter um fim, ou afirma-lo

sim, mostrar que motivos não constituem

como natural e biológico. Aqui procuramos

justificativas. A analogia que sempre faço

mostrar como as sociedades ocidentais

é que não se teria chegado a lugar algum

foram introjetando a visão do negro, do

quanto ao câncer evitando falar sobre ele.

outro como um inimigo, portanto alguém a

Mas foi preciso sim, fazer pesquisas

ser combatido, reprimido e inferiorizado a

profundas,

partir de práticas e vivências diárias do

Muito obrigado.

conflito,

do

choque

de

culturas

problema

não

é

são

justificáveis,

sempre

desagradáveis

e

estuda-lo,

dolorosas.

e

Referências: Fontes Primárias: CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote, col. Clássicos Jackson – Vol. VIII, ebooksbrasil, 2005. DIODORO THE SICILIAN. Historical Library. London, England: W.M.McDowell, 1814. PLUTARCO. Vidas Paralelas. São Paulo: Ed. Paumape, 1992. POLÍBIO. História.Brasília, Ed. UNB, 1985 TIMEU in JACOBY: Die Fragmenta der grieschichenHistoriker. Leiden, Netherlands: KoninklijkeBrill, 1999.

368


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

TUCÍDIDES.História da Guerra do Peloponeso. Brasília: UnB, 1986 VATICANO, Bula Papal Dum Diversas, 1452. Demais referências bibliográficas: BARON, Cristopher.Timaeus of Tauromenium and hellenistic historiography. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico. Lisboa, Portugal: Publicações Dom Quixote, 1984 BERNAL, Martin.The Black Athena, vol. 1. New Brunswick, USA: Rutgers University, 2003. FINLEY, Moses. Ancient Slavery and Modern Ideology.Princeton,USA: Marcus Weiner Publishers, 1998. MOMIGLIANO, Arnaldo. Essays in ancient and modern historiography. Middletown: Wesleyan University Press, 1977. ____________________.

The classical fundations of modern historiography. Berkeley:

University of California Press, 1990. PEARSON, Lionel. The greek historians of the west. New York: Oxford University Press, 1988. VATTUONE,

Riccardo

Sapienza d'occidente :ilpensierostoricodiTimeodiTauromenio.

Bologna: Patron Ed., 1991. VEYNE, Paul in: História da Vida Privada, vol1. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. WALBANK, Frank W. – Polybius. Berkeley, Los Angeles, London: UC Press, 1990.

369


A CANÇÃO DE ROLANDO : UM LEGADO MEDIEVAL ENTRE HISTÓRIA E FICÇÃO Maria do Carmo Faustino Borges 1 Resumo: A nossa proposta de comunicação é parte da dissertação de mestrado, O Maravilhoso

em A Canção de Rolando, de autoria própria, cujo enfoque inclui a relação entre o cotidiano e a literatura. Constitui-se de uma pesquisa bibliográfica, apresentando aspectos teóricos de Literatura (Vassalo, Candido, Todorov, D’Onofrio, Poirion), e de História (Le Goff, Grimberg e Vauchez), teorias que fundamentam as considerações referentes às relações socioculturais e literárias interligadas na criação e na construção da ficção. O estudo objetiva mostrar os caminhos para o diálogo entre História e Ficção, desvendando dizeres e fazeres do medievo.

A Canção justifica a escolha por tratar-se de uma obra literária que possibilita compreender como o processo se ocupa em reconstruir e em reviver valores sociais, transmitindo crenças, sentimentos e a cultura da sociedade medieval de um determinado período. Os elementos históricos referidos na obra são condizentes com a Alta Idade Média, ressaltando o evento da Batalha de Roncesvales (788) e o reinado de Carlos Magno à frente do exército franco. Buscamos, a partir desse norteamento, uma leitura na convergência desses elementos com a criação do enredo ficcional, o que coincide com o período de três séculos mais tarde, tempo do Feudalismo e das expedições religiosas francesas à Espanha. Concluímos nesta abordagem que História e ficção caminham juntas, e cumprem a função de transmitir a vivência e as evoluções do homem na sociedade. Palavras-chave: História; ficção; sociedade.

1

UEM.

370


Maria do Carmo Faustino Borges

tempo do Feudalismo e das expedições

Introdução Ao pensarmos a literatura em relação

religiosas francesas à Espanha.

socioculturais,

Essa obra é a representação da

deparamo-nos com elementos do plano real,

memória viva de Carlos Magno para a

alterados e transformados a partir do talento

sociedade medieval ocidental, revivendo em

e da criatividade do poeta/escritor em um

seus versos os ideais que sustentaram por

discurso elaborado capaz de criar uma nova

séculos uma coletividade iletrada, ameaçada

realidade. Assim, os fatos deixam de existir

pelas invasões bárbaras. Para a Literatura

enquanto

estabelecer

de um modo geral, tornou-se um dos pilares

relações de tempo e espaço, nos quais o

da forma épica. Depreendemos essas ideias

leitor pode se apoiar para melhor entender

pelo modo como o poeta organizou os

determinadas

eventos dentro da narrativa, pois, se a

a

dados

históricos

ou

informações

para

construções

dentro

da

História nos confirma que Carlos Magno não

narrativa imaginária.

A Canção de

conquistou Saragoça e que seu exército foi

Rolando, justifica-se por ser uma obra

dizimado em Roncesvales 2, a ficção vai dar

literária

compreendermos

continuidade, acrescentar e transformar o

como tal processo se ocupa em reconstruir e

acontecimento, como a expressão do seu

em reviver valores sociais, transmitindo

criador.

Este

estudo,

que

em

possibilita

crenças, sentimentos de uma cultura. Os

Perguntamos,

então,

como

elementos históricos referidos na Canção

compreender

referem-se

de

imaginário que se comunica dentro de um

Roncesvales (788), Alta Idade Média, e o

texto, se não nos inteirarmos do cotidiano da

reinado de Carlos Magno à frente do exército

sociedade e do período de sua criação? E os

franco. A ficção, por outro lado, é a

problemas criados, as reações humanas à

ao

evento

da

Batalha

simbologias

e

todo

o

reconstrução dessas experiências narradas em uma nova realidade. Buscamos, a partir desse

norteamento,

convergência desses

uma

leitura

elementos

com

na a

criação do enredo ficcional, o que coincide com o período de três séculos mais tarde,

2“Em

778, Carlos Magno tomou Pampeluna, mas não

atacou Saragoça [...]. Montanheses bascos armaram uma emboscada contra a retaguarda dos Francos [...] no desfiladeiro de Roncesvales, massacraram as tropas comandadas pelo senescal Eggiharde, o conde palatino Anselmo e o prefeito da Marca da Bretanha, Rolando.” (LE GOFF, 2005, p. 43 e 44).

371


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

mentalidade estabelecida? Sabemos que a

das palavras em um texto tão antigo, a partir

ficção

mas

de seu contexto. Segundo Candido (1985, p.

sabemos também que o espírito criador do

14), “[...] o fator social é invocado para

poeta/artista é fruto do contexto em que ele

explicar a estrutura da obra e o seu teor de

vive.

ideias,

cria,

reinventa,

Esse

transforma,

estudo,

assim,

objetiva

fornecendo

elementos

para

argumentar como o cotidiano e a literatura

determinar a sua validade e efeito sobre nós

caminham lado a lado, identificando o

[...]”. Constatamos que o cotidiano medieval,

homem na sociedade.

de maneira geral, tinha no sobrenatural o

D’Onofrio

a

instrumento que movimentava a ideologia

importância de se conhecer o contexto sócio-

cristã, fundamentada no teocentrismo. Ao

político-econômico de determinada época

transcender o plano real, por meio da

histórica, a fim de analisar uma obra literária

intervenção de Deus, dos anjos e santos, de

específica

A

objetos, de ritos, simbologias e outros, os

refere-se

fatos podiam ser alterados. Ocorre um

Rolando,

deslocamento do referencial de objetos, do

afirmando que no período histórico em que

tempo e do espaço, e a ficção, na utilização

foi escrita ocorreram expedições para libertar

de todo este imaginário, constrói a narrativa.

e

(1990)

o

ressalta

contexto

observação

deste

diretamente

À

abordado.

escritor

Canção

de

Saragoça e todo o vale do Rio Ebro do jugo

A Canção de Rolando 3, uma canção

muçulmano. Esta obra registra elementos do

de gesta, inicialmente na forma oral, e mais

ambiente político, como a expulsão dos

tarde escrita, aborda as invasões da Alta

mouros do território espanhol, e o religioso,

Idade Média, utilizando a realidade histórica,

visto que a Igreja organizava e apoiava tais

do

lutas com o objetivo de derrotar os “infiéis”

caracterizam-se pelo tema sempre voltado

(aqueles que não aceitavam o cristianismo).

aos feitos históricos de povos e heróis, às

mundo

cristão.

Estas

narrativas

Para alcançar os objetivos almejados,

guerras históricas e aos dramas lendários, e

pesquisamos teóricos de Literatura (Vassalo,

relatam também um confronto militar entre

Candido, D’Onofrio,Todorov, Poirion) e de

cristãos e pagãos. Eram difundidas pelos

História (Le Goff, Grimberg e Vauchez), leituras

que

aumentaram

o

nosso

entusiasmo em descobrir e entender, a arte

3

A versão de A Canção de Rolando utilizada neste estudo,

assim como as citações e versos transcritos da obra literária são de Ligia Vassalo (1988), e serão referenciados com as iniciais CR.

372


Maria do Carmo Faustino Borges

trovadores e, no decorrer do tempo e das

concomitantes e transformados em uma

gerações

sofreram

ação maior: a Batalha de Roncesvales. A

transformações e adaptações de acordo com

figura do herói, em torno da qual transcorrem

a vivência dessas mesmas populações até a

as

escrita que conhecemos e dispomos.

personagens distintas: Carlos Magno e

que

as

cantaram,

principais

ações,

identifica

duas

Nessa perspectiva, pensamos que na

Rolando. O primeiro, maior imperador da

Canção a função social do sobrenatural é

Idade Média; o segundo, o protagonista da

fonte fecunda nas discussões de se pensar a

lenda,

representação estética associada à vivência

valentia,

humana.

167),

Semelhantemente à construção feita em

fundamentando-se em Peter Penzoldt, assim

torno da figura de Carlos Magno, o poeta

define função social: “Para muitos autores, o

glorifica Rolando como o mais bravo de

sobrenatural não era senão um pretexto para

todos.

descrever coisas que não teriam nunca

respeitado

ousado mencionar em termos realistas”. A

adversários: “[...] É por isso que Rolando se

narrativa, neste particular, contempla vários

tornou o símbolo de uma concepção de vida

recursos

dessas

e o culto de sua personalidade mítica

possibilidades é o maravilhoso 4, que permite

atravessou as fronteiras do tempo e do

o diálogo entre a realidade e o sobrenatural.

espaço” (D’ONOFRIO, 1990, p.160).

Todorov

estilísticos

(1975,

e

p.

uma

Desenvolvimento

personagem

marcada

lealdade

Por

sua por

e

valentia seus

por

e

sua honra.

astúcia

é

companheiros

e

Para Grimberg (1940, p.148), Carlos

A narrativa épica em A Canção de

Magno foi o modelo do imperador cristão aos

Rolando aborda acontecimentos do período

homens de seu tempo; sua figura centraliza

Feudal e das Cruzadas, imbricados ao

as lendas e as canções de gesta e, por toda

reinado de Carlos Magno, que, embora

parte, “[...] a sua imponente personalidade

distanciados por quase três séculos, são

excitou a imaginação dos povos, que lhe

4

“O maravilhoso é a linguagem da coletividade onde esta

atribuíam

qualidades

sobrenaturais”. 5

se encontra para descobrir que, sem ser ilegítima, a linguagem não diz mais o cotidiano. O maravilhoso não é Segundo Le Goff (2009) o mito de Carlos Magno criou-se

outra coisa senão a emancipação da representação literária

5

do mundo real e a adesão do leitor ao representado, onde

nos domínios do espaço, devido a extensão de seu império;

as coisas acabam sempre acontecendo como deveriam

no das instituições, pela instauração de leis válidas em todo

acontecer” (BESSIÈRE, 1974, n.p.).

o império, as capitulares, e pela criação de representantes

373


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Apreendemos que os mitos e as lendas

Uma delas consiste na seguinte passagem:

permanecem no imaginário das populações,

“O emir invoca Apolo, Tervagante e também

e esse mesmo imaginário motiva uma

Maomé: ‘Senhores deuses meus, tenho-vos

sociedade a agir e a pensar. Os versos a

servido bastante. Farei todas as vossas

seguir, transcritos da Canção, referem-se

estátuas de ouro fino’” (CR, 1988, p.105). Na

aos franceses, cristãos, que alcançam a

obra, ocorrem alusões a uma tripla entidade

vitória

“sagrada”

sobre

(Saragoça)

pagãos

expressam

na

relação

aos

pagãos:

nacionalismo, comum nas canções de gesta:

homologia, remete-nos à Trindade Santa dos

“Os

cristãos:

Alguns

força

em

Tervagante, Maomé e Apolo, a qual, por

morreram.

a

Espanha do

pagãos

e

os

fugiram.

Pai,

Filho

e

Espírito

Santo.

Carlos ganhou a batalha. Abateu a porta de

Podemos, então, interpretar aquela trindade

Saragoça [...]” (CR, 1988, p.109).

como

uma

apropriação

ou

a

uma

Essa nova forma dada à realidade dos

representação de diferentes crenças pagãs

fatos, pensando como Candido (1985, p. 55),

da época. Em extensão a esta perspectiva, é

“[...] é superior à sua realidade presente,

também cabível supor que se trata de uma

ainda

cuja

tentativa

compreensão requer a própria poesia, que a

pagãos.

antecipa de maneira fantasiosa [...] mas só

A

não

compreendida,

e

de

cristianização

autora

enfatiza,

aos

deuses

também,

a

por meio dessa ilusão pode ser trazida à

manifestação de anacronismos 7 na obra, que

existência uma realidade que de outra

possibilita uma leitura do cotidiano, embora

maneira não existiria”. Não obstante, criação e construção estéticas estão ligadas aos

(articulação de significante + significado) ou entre partes

costumes, à organização social, às tradições,

desses signos, sobretudo os significados, sempre que duas

aos valores morais, enfim, à vida de uma sociedade. Vassalo (1988), na seção das notas, tece considerações a várias homologias 6.

estruturas se correspondam.” (homologia/linguística). Porto: Porto Editora, 2003-2011. Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$homologia-(linguistica)>. 7

“Anacronismo é a falta contra a cronologia. É um erro na

data dos acontecimentos que consiste em atribuir a uma época,

a

um

personagem

da

história,

sentimentos,

costumes que são de outra época. Falta de alinhamento, itinerantes do soberano, os missi dominici; e na cultura, pelo

consonância com um determinado período de tempo, com

estabelecimento de escolas [...]” (LE GOFF, 2009, p.72).

uma

6

De acordo com Saussure, “a homologia é uma relação de

não arbitrariedade estabelecida entre signos linguísticos

época.”

(Disponível

em:

http://www.dicionario

informal.com.br/definicao.php?palavra=anacronismo&id=15 764).

374


Maria do Carmo Faustino Borges

este recurso reflita a confluência entre os

uma

diferentes espaços de tempo (quase três

realidade:

se

registram

aparência

da

propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas,

tem mais de duzentos anos!” (CR, 1988, p. quais

uma

ilusório por meio de uma estilização formal, que

“Quero vos ouvir falar de Carlos Magno; ele nos

história,

[...] a literatura é uma transposição do real para o

séculos). Encontramos exemplos nos versos:

32),

nova

os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou

dois

social, e um elemento de manipulação técnica,

anacronismos: a idade do herói (mais de

indispensável à sua configuração [...] (CANDIDO,

duzentos anos), sendo ele jovem no período

1985, p. 53).

da Batalha de Roncesvales, 778; também o

Temos,

portanto,

que

as

título de “Magno”, que lhe foi atribuído muito

conjeturas de Vassalo (1988) sobre os

tempo mais tarde, no século XI.

anacronismos

e as

homologias

têm

a

O histórico e o ficcional entrelaçam-

identificação nas religiões que se misturam,

se, também, em relação ao objetivo das

nos pressupostos de desconhecimento do

guerras. No tempo de Carlos Magno, a

poeta sobre os fatos narrados, porém, esses

“Reconquista” histórica daquilo que fora

mesmos recursos, enquanto fatos históricos

território do Império Romano, não incluía a

não confirmados, têm a sua validade como

cristianização, e, sim, saques aos povos

elementos de apropriação do poeta na

dominados

imenso

tessitura do texto, característica pertinente

saque está nas mãos de seus cavaleiros:

ao trabalho estético da Literatura, que pode

ouro, prata, preciosas armaduras” (CR, 1988,

ser admitido como liberdade poética, pois

p. 21). Diferente, entendemos que no texto

permite ao autor criar, inventar e transformar.

literário somam-se aos interesses de poder a

Deste

evangelização

referencial

ou

derrotados:

e

a

“Um

propagação

do

modo,

depreendemos

histórico

que

transfigurado

o não

Cristianismo. Somente no século XI tal

representa o mundo externo (História), mas

cenário histórico se consolidará, quando

representa uma sequência significativa para

ocorre a militarização da sociedade feudal. O

a Canção. A obra tem explicação por si

trabalho talentoso do poeta, assim, tomou

própria enquanto arte, derrubando, desta

elementos do real e os transportou para o

maneira,

mundo fantasioso, criando e construindo

anacronismos

o

conceito aos

de

homologias

elementos

e

históricos

referenciados pelo poeta.

375


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Segundo Machado (1962), a

transformando-o

em

símbolos.

A

epopeia (forma estética idêntica à da canção

mentalidade medieval estava voltada para

de

distanciamento

Deus e para a Vida Eterna. As normas

cronológico entre o fato e a escrita do

instituídas pela Igreja, a partir da fé cristã,

gesta)

poema.

requer

A

Em

um

Canção

de

Rolando,

observamos que o poeta alcançou grande efeito ao criar a narrativa a partir de elementos

socioculturais

de

diferentes

épocas; um trabalho de intertextualidade com acontecimentos relacionados ao herói nacional (Carlos Magno) e ao período feudal e das Cruzadas, do qual se ressaltam o papel da aventura desempenhado pelo cavaleiro (Rolando) e o ideal cristão daquela sociedade. O mundo dos símbolos teve papel importante no quotidiano dos medievos. Os objetos, os gestos, as fórmulas tornavam-se necessários

às

representações

daquelas

coletividades.

representações

auxiliavam

o

mentais Essas

homem

a

expressar seu mundo interior, a interpretar e a buscar muitas explicações do mundo exterior e do desconhecido. Deste universo imaginário, a Canção sugere um amplo referencial

da

concepção

do

homem

medievo para sua existência e o mundo em que vivia. Como toda explicação provinha do mundo cristão, a contextualização desse inventário

remete-se

ao

plano

divino,

alcançavam o objetivo do controle e da manutenção da ordem pública: [...] Porque o mundo oculto era um mundo sagrado, e o pensamento simbólico [...] era mais que a forma elaborada, decantada, no plano dos doutos, do

pensamento

mágico

que

impregnava

a

mentalidade comum [...], para a massa, as relíquias,

sacramentos

e

preces

eram

seus

equivalentes autorizados. Tratava-se sempre de encontrar as chaves que abrissem as portas do mundo sagrado, o mundo verdadeiro e eterno, aquele onde se podia encontrar a salvação [...] (LE GOFF, 2005, p. 337).

A obra favorece-nos observar nos indícios dessa cultura alguns ritos religiosos até hoje praticados, principalmente pela Igreja Católica. O sinal-da-cruz, por exemplo, ato simbólico-gestual que coloca o homem em uma busca direta por Deus e, por consequência, o distanciamento do Mal, portanto,

um

contato

com

o

plano

sobrenatural. Em um dos excertos da

Canção,

encontramos

exemplo

desta

simbologia quando o imperador diz: “[...] Por tua graça, se te aprouver, concede-me o dom de vingar meu sobrinho Rolando! Assim ele rezou. Depois se levantou e, de pé, persignou-se com o sinal do poderoso [...]” (CR, 1988, p. 95). A Literatura, assim, por

376


Maria do Carmo Faustino Borges

meio do discurso, torna verdade aquilo que

investidura 9 ao cavaleiro, gesto que marcou

estava

coletividade,

a Idade Média. Esta aliança significava o

permitindo ao leitor atual concretizar o

compromisso de fidelidade, de manutenção,

diálogo entre simbologias de dois tempos

de defesa contra os invasores ao reino

históricos distantes entre si. Considerando

franco por parte do vassalo e, da parte do

ainda o imaginário, construído a partir do

rei, a proteção aos seus súditos. Um

cotidiano

a

exemplo desta comunicação acontece nos

passagem referente ao ritual do culto aos

versos em que Carlos entrega ao seu

mortos 8, celebração esta de extensão à Vida

cavaleiro Ganelão a missão de ir até

Eterna; os vivos acreditavam na entrega das

Saragoça para encontrar o rei Marsílio, e o

almas ao “outro” mundo:

rei diz:

na

imaginação

daquela

da

sociedade

temos

[...] e levam para uma mesma fossa todos os

[...] Ganelão, avançai e recebei o bastão e a luva

amigos

eles

[...] o imperador estende a luva com sua mão

absolveram os mortos e os benzeram em nome de

direita, mas o conde bem que gostaria de não estar

Deus; depois queimaram mirra e incenso, e todos

lá; no momento em que devia segurá-la, a luva cai

com ardor incensaram os cadáveres; em seguida

no chão e os Franceses dizem: “Deus, que

enterraram-nos com grande honra [...] (CR, 1988,

presságio é este? [...]” (CR, 1988, p. 27).

p. 91).

Esse discurso confirma um sinal de

Ainda

que

no

encontraram

âmbito

percebemos

fragmentos

comunicação

medieval

mortos

da

[...]

simbologia,

textuais pelos

da

gestos,

justificando uma sociedade em que a escrita ainda não estava ao alcance de todos. A oralidade e a gestualidade tinham sua importância na comunicação da cultura e das lendas das populações. No Feudalismo, a partir do século XI, firmou-se o ritual da

mau presságio para os franceses, contudo podemos interpretar tal gesto como a traição de Ganelão ao suserano: a quebra de fidelidade, quando ele deixa a luva cair. Registramos

semelhante

ocorrência

em

outro excerto, no gesto em que Carlos expõe a barba sobre o peito, isto significava um desafio, que constitui mais um costume entre 9A

lealdade e a honra complementavam o tratado: “A

“[...] Por isso vemos a Igreja [...] na época carolíngia [...].

concessão do feudo pelo senhor ao vassalo era feita numa

Tomou particularmente a seu cargo o culto dos mortos,

cerimônia, a investidura, que consistia num ato simbólico,

como o testemunha no século IX a instituição da festa de

na entrega de um objeto (estandarte, cetro, vara, anel, faca,

Todos-os-Santos, a qual veio satisfazer uma necessidade

luva, pedaço de palha, etc. Em geral ela ocorria após o

especial da piedade popular, sublinhando a vocação dos

juramento de fidelidade e a homenagem [...]” (LE GOFF,

fiéis defuntos para a salvação [...]” (VAUCHEZ, 1995, p. 30).

2005, p. 85).

8

377


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

de São Miguel do Perigo até Saints [...] em pleno

os medievos: “O imperador cavalga mui

meio-dia, surgem grandes trevas (CR, 1988, p. 54).

nobremente. Exibiu a barba sobre o peito, por fora da túnica de couro” (CR, 1988, p. 96). Percebemos que, além dos ritos da fé cristã

que

movia

os

ideais

daquela

sociedade, o imaginário retrata parte do comportamento social. A literatura, por sua vez, por meio das crenças populares, dos hábitos e costumes que determinavam uma postura existencial, favorece-nos uma leitura que comporta sua construção no contexto do maravilhoso, no espaço do sobrenatural. Na Canção, esse o imaginário é sustentado, ainda, em textos bíblicos. De acordo com o narrado na Bíblia, no dia da morte

de

Cristo,

ao

meio-dia,

houve

relâmpagos, trovões e trevas 10. A fé e a lealdade e a valentia do herói medieval são características que o diferenciam do homem comum, portanto ele é digno de honras e de culto: o poeta enobrece a figura do herói cristão, ao associar os fenômenos ocorridos entre tal evento e o da morte de Rolando: [...] na França há uma tormenta maravilhosa,

fortalecem

tal

objetivo

ideológico

pedagógico de cristianização,

e

como no

ataque de Rolando ao vingar o amigo, Engelier: “Com toda a força vai atacar o pagão. Sacode a lâmina: o pagão cai. Os demônios levam sua alma”.

A alma do

pagão não tem salvação, é levada pela entidade do Mal. Também, no final da história, os pagãos perdem suas riquezas e Saragoça para os Franceses, porque os bons sempre prevalecem sobre os maus. De outro modo, mas com o mesmo propósito, o caso de Bramimonda, esposa de Marsílio: ela continua viva porque aceitou o batismo e a fé cristã: “[...] ela ouviu tantos sermões e bons exemplos que quer acreditar em Deus e pede o batismo: batizai-a, para que Deus tenha sua alma. ‘− Assim seja, dizem os bispos, [...] batiza-se aí a rainha da Espanha’ [...]” (CR, 1988, p. 57; p. 117). A Canção mostra outras produções

tempestade de trovoada e vento, chuva e granizo

intertextuais com a Bíblia e, uma delas é a

em excesso, o raio cai a intervalos curtos e

partir do livro do Apocalipse, no conteúdo

repetidos e, com toda a certeza toda a terra treme,

10

Encontramos também passagens que

voltado ao Juízo Final 11; em torno do qual

“Desde o meio-dia até as três horas da tarde houve “Quem não temeria, Senhor, e não glorificaria o Teu

escuridão sobre toda a terra. Imediatamente a cortina do

11

santuário rasgou-se em duas partes, de alto a baixo; a terra

nome? Sim! Só Tu és santo! Todas as nações virão

tremeu e as pedras se partiram” (BÍBLIA SAGRADA, Mat.

ajoelhar-se diante de Ti, porque Tuas justas decisões se

26:45 e 51).

tornaram manifestas!” (BIBLIA SAGRADA, Apocalipse 15:4).

378


Maria do Carmo Faustino Borges

ocorreram várias especulações. Trata-se da

Virgem Maria evidencia o que ora afirmamos:

referência ao ano 1000 12, quando se previa o

“Ah! Diz o conde “ajuda Virgem Maria!” (CR,

final do mundo: “Todos aqueles que vêem

1988, p. 76). No mesmo sentido, temos o

tais coisas se espantam, e alguns dizem: É o

momento da morte deste herói, quando os

fim do mundo, a consumação dos séculos

anjos vieram buscar sua alma; também na

que chegou agora!” (CR, 1988, p. 54). O uso

passagem em que Carlos é ferido por

do texto bíblico serve para provocar, no

Baligante:

leitor/ouvinte, em um jogo arbitrário, a reorganização descrição

das

do

imaginário,

calamidades

pois pode

a ser

interpretada como o fim do mundo, em razão da densidade em que os fatos excedem o natural. intercessão de anjos e de santos, como mensageiros de Deus, na participação de eventos sobrenaturais. Estes desempenham geralmente a função de operar e conceder graças e milagres. Poirion (1982, p. 9) afirma que “[...] La Chanson de Roland emprunte à

entre

autres

traits,

le

merveilleux de cette communication divine [...]” 13. A cena em que Rolando tenta quebrar sua espada Durindana e pede ajuda à 12

mantinha a cabeça inclinada; com as mãos juntas chegou ao seu fim. Deus enviou seu anjo Querubim e São Miguel do Perigo; ao mesmo tempo que os outros, veio São Gabriel; levam a alma do conde ao Paraíso (CR, 1988, p.78). [...] Deus não quer que ele morra nem seja

O texto traz também a ocorrência da

l’hagiographie,

[...] São Gabriel pegou-a nas mãos. Sobre o braço

“[...] Perto do ano mil a atenção fixou-se, sobretudo no

Anticristo, hidra de cem rostos que incessantemente

vencido; São Gabriel voltou para perto dele e pergunta: Grande rei, que fazes então? Quando Carlos ouve a voz do anjo, não tem mais medo, não mais receia morrer; recobra o vigor e os sentidos retornam [...] os pagãos fogem, Deus não quer que eles fiquem, e os Franceses obtêm então o resultado que desejavam (CR, 1988, p. 108).

Observamos, nesses excertos como em outros, que a fé cristã em determinadas crenças e outras heranças culturais se preservaram e se mantêm no decorrer da História. Assim, segundo Bessière (1974), o maravilhoso cognitivos

torna

os

marcos

universalmente

sócioválidos,

independente de sua atuação espacial e

renasce e cuja vinda o clero julgava reconhecer nas

temporal, propostos pela História. Tanto a

vicissitudes da história: invasões, calamidades diversas,

Arte quanto à História colaboram neste

aparecimento de heresias. [...]” (VAUCHEZ, 1995, p. 65). 13“A

Canção de Rolando empresta da hagiografia, entre

outros traços, o maravilhoso dessa comunicação divina.”

processo, ao suscitar do leitor a pesquisa e o conhecimento das relações que interligam o

(Tradução nossa.)

379


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

homem à sociedade, comprovando, dessa

necessário fazer uma viagem para além dos

maneira, a necessidade de retomar as ideias

aspectos literários, e conhecer os elementos

de Candido (1985), quando afirma que as

culturais,

produções antigas devem ser estudadas

contexto. Estas características não podem

além dos aspectos literários, mas também os

ser separadas ainda das circunstâncias em

elementos culturais, históricos e sociais, na

que foram elaboradas e executadas.

sua totalidade.

históricos

Deste Conclusão

modo,

e

sociais

as

de

seu

referências

às

questões históricas, como a Batalha de

Concluímos que a leitura de uma obra

Roncesvales e o reinado de Carlos Magno

como A Canção de Rolando requer que

são elementos que se somaram à vivência

tenhamos

fatores

dos grupos sociais dos séculos XI e XII. Por

socioculturais e estéticos que influenciaram o

meio dos anacronismos e das homologias,

poeta na criação e na construção da obra.

observamos heranças culturais e tradições

Como

o

conhecimento

podemos

utilizados

dos

observar,

para

os

excertos

que foram cristianizadas e serviram de

exemplificar

nossa

contexto ao desenvolvimento da lenda de

abordagem de História e ficção foram, na maioria das vezes, criados a partir dos elementos

do

imaginário

medieval

Rolando. As teorias estudadas fortaleceram as nossas

convicções

de

que

as

fontes

correspondentes aos tempos da escrita do

socioculturais

texto.

presentes em uma obra literária. A literatura

e

literárias

estão sempre

O estudo da referida obra literária

popular-oral, vinculada ao contexto social, à

permite também concluir que a obra primitiva

cultura local, a hábitos e a costumes, utilizou

deve

características

o metafórico e o estético como recursos

semânticas.

discursivos, que podem ser até nonsense

Apoiando-nos em Candido (1985), isto quer

para nós, mas que têm sentido para a

dizer: pelo aspecto coletivo da criação, pois é

comunidade que o produziu.

ser

estruturais,

lida

por

suas

contextuais

e

380


Maria do Carmo Faustino Borges

Referências:

A CANÇÃO DE ROLANDO. VASSALO, Lígia. (Trad. Not. Pref.). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. Apocalipse. Português. In: Bíblia Sagrada. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 1990. p.1.531. Edição Pastoral. Bíblia. N. T. BESSIÈRE, Irène. Le récit fantastique: forme mixte du cas et de la devinette. In: ____. Le récit

fantastique. La poétique de l’incertain. Tradução Biagio D’Angelo. Paris: Larousse, 1974, p. 929. Colaboração de Maria Rosa Duarte de Oliveira. CANDIDO, A. Literatura e sociedade. 7. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1985. D’ONOFRIO, Salvatore. A Era Medieval. In: ____. Literatura ocidental. Autores e obras fundamentais. São Paulo: Ática, 1990. p.149-214. GRIMBERG, Carl. História Universal: das grandes invasões bárbaras às cruzadas. Tradução Jorge de Macedo. Lisboa: Publicações Europa-América, v. 6, 1940. LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Tradução José Rivair de Macedo. Bauru, SP: Edusc, 2005. Coleção História. ____. Heróis e maravilhas da Idade Média. Tradução Stephania Matousek. Petrópolis: Vozes, 2009. MACHADO, Luis Toledo. O Herói, o Mito e a Epopéia. São Paulo: Alba, 1962. Matheus. Português. In: Bíblia Sagrada. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 1990. p.1.216. Edição Pastoral. Bíblia. N. T. POIRION, Daniel. Le Merveilleux dans la literature française du Moyen Age. Paris: Presses Universitaries de France, 1982. TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Tradução Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975. Coleção Debates. 98. VAUCHEZ, André. A Espiritualidade da Idade Média Ocidental – Séc. VIII - XIII. Tradução Teresa Antunes Cardoso. Lisboa: Editorial Estampa, 1995. Nova História, 26.

381


UM TOQUE DE CULTURA LATINA NA MÚSICA NORDESTINA: LEITURAS DA ARS AMATORIA. Milton Genésio de Brito 1 Resumo: Nesta análise propomos um eixo de discussão confrontando dois campos – os de conhecimentos (saberes) e práticas (fazeres) -, ao estabelecer um exame comparado entre procedimentos que, transmitidos de forma escrita, e, portanto transformados em informações, seriam recorrentes na Antiguidade, com atitudes adotadas nas relações contemporâneas. Ou seja, sugeriremos a reflexão sobre até que ponto ideias e argumentações expostas em um texto clássico reverberam nas interações atuais, sem que disso nos apercebamos, em uma época de conhecimentos instrumentalizados. Efetuaremos uma analogia, nesse sentido, cotejando excertos de uma obra ainda polêmica de Ovídio, a Ars Amatoria – não a maior, porém, a mais conhecida de suas produções literárias -, e uma canção popular brasileira, vertida em um ritmo focado no lúdico da dança. Por meio dessa relação, procuraremos desvelar algumas interconexões, discutindo determinadas permanências ou ressurgências de concepções a respeito da sexualidade e da relação amorosa no mundo cotidiano. Finalizando formularemos ainda outras leituras do texto ovidiano, um dos cânones da literatura latina, apresentando aspectos possíveis, mas raramente aventados, pois, o documento não comporta em si uma interpretação definitiva. Palavras-chave: Ars Amatoria; Música Contemporânea; Relações Amorosas.

1

Doutorando em História Social (PPG UNESP – Assis).

382


Milton Genésio de Brito

INTRODUÇÃO

os quais demandam tempo e esforços em

“... A Antiguidade era familiar aos homens do século XVIII, e qualquer

espírito cultivado

manejava sem dificuldade as respectivas línguas

uma cultura baseada massivamente em noções

instrumentalizadas.

e literaturas. A cultura contemporânea não pode

consequência

recuperar tal exigência. Deve, no entanto,

tendência são as dificuldades, tanto de

encontrar espaço para essa herança preciosa, sobretudo no âmbito dos estudos que implicam uma reflexão sobre as formas de criação literária

que os rápidos resumos de uma história literária que,

amiúde,

evoca

modelos,

fontes,

arquétipos... sem os dar a ler. E, assim, com razão

que

nos

parece

espantoso

que

o

‘comparativismo’ se aplique tão raramente e com

evidente

dessa

abordagem como de compreensão, que deturpam a análise dos textos.

e da história das ideias. A literatura latina, em ambos estes campos, merece certamente mais

mais

A

Outra questão foi se seria possível estabelecer esse “comparativismo” entre obras

antigas

e

indagações

contemporâneas, desvelando a “preciosa herança”, no intuito de demonstrar uma

tanta dificuldade às relações entre textos antigos

permanência ou uma ressurgência de

e modernos. Haverá por trás de tal atitude algum

modelos e arquétipos que se espraiassem

tabu? [grifo nosso]”. (GAILLARD, 1992, p.7)

Quando fizemos a leitura desse trecho

da

obra

de

Jacques

Gaillard

algumas questões e ideias decorrentes da reflexão nos instigaram. A primeira delas foi com relação à pressuposta atitude de interdição referente às possiblidades de interligação entre textos, da denominada literatura clássica, e as inúmeras temáticas discutidas na atualidade. De fato, a leitura e a interpretação de autores antigos, no sentido de que o contexto que lhes deu origem já não mais existe,

constituem-se

em

uma

prática

restrita a um número cada vez mais reduzido

de

pessoas

devido

aos

conhecimentos especializados requeridos,

para além do campo literário no universo das relações humanas. Durante a leitura de textos de autores como Cícero e Sêneca essa probabilidade ficou evidente. Nesse sentido, a possibilidade de retomar a leitura de um dos textos de Ovídio e a ideia de coteja-lo com temáticas do contexto presente se consolidaram ao ouvirmos

e

ponderarmos

sobre

os

argumentos expostos na letra de uma música popular, da qual selecionamos uma das

gravações.

embasar

nossa

Porém,

antes,

para

análise

dissertaremos

inicialmente sobre o autor latino, suas obras e o contexto de recepção das mesmas.

383


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

SOBRE PÚBLIO OVÍDIO NASO

Menor e finalmente à Sicília, locais onde

Ovídio, ou Publius Ovidius Naso,

passou a frequentar ambientes intelectuais,

nasceu em 20 de março do ano 43 a.C., na

porém,

cidade

culturais de Messala e de Mecenas.

de

Sumo

-

hoje

denominada

ainda

distantes

dos

círculos

Sumona -, incrustada num dos muitos vales

Posteriormente, no seu regresso a

dos Apeninos a cerca de 140 quilômetros a

Roma, Ovídio foi apresentado ao círculo de

leste

por

Mecenas e conseguiu incluir entre as suas

pertencer a uma família da classe equestre

amizades os poetas Horácio e Propércio,

e de acordo com a vontade paterna, foi

chegando a ter contato com Virgílio. Sua

direcionada à carreira do Direito que,

vida pessoal, contudo, foi agitada, tendo se

posteriormente, deveria habilitá-lo para o

casado três vezes: seus dois primeiros

exercício de funções públicas reservadas

casamentos foram breves, somente se

ao seu nível social, dentre as quais a de

estabilizando com sua terceira mulher,

maior relevância política era a de Prefeito

Lívia, sobrinha de Otávio (HARVEY: 1998,

do Pretório ou comandante da Guarda

p. 372).

de

Roma.

Sua

educação,

Pretoriana, instituição responsável pela

Esta união, que propiciou à Ovídio

segurança, inicialmente na República, dos

uma aproximação com a casa imperial, não

comandantes em campanha, e depois dos

livrou-o, entretanto, no ano 8 d.C., do

imperadores quando do estabelecimento

banimento para Tômis

do Principado por Augusto.

Augusto,

mantido

por um édito de

3

por

Tibério,

seu

Entre seus primeiros professores,

sucessor, e que se prolongou até a morte

em Roma, incluíram-se grandes mestres da

do poeta em 18 d.C. A causa desse

eloquência e afamados gramáticos como

banimento,

segundo

Aurélio

referências

analisadas,

Fusco

e

Pórcio

Latrão

2.

Possivelmente, foi nesse período que

a

maioria teria

das

sido

a

disseminação dos princípios professados

nasceu o seu interesse pela Poesia o que fez com que sua formação seguisse um

3

curso diferente do planejado pelo pai,

vila na costa ocidental do Ponto Euxino - uma antiga

levando-o primeiro à Atenas, depois à Ásia

colônia formada por gregos de Mileto, cidade jônica da

Tômis, também referida como Tomos ou Tomoi, era uma

Ásia Menor ao sul do Mar Negro -, próxima da foz do Íster (Danúbio inferior), correspondendo aproximadamente à

2

Conforme: Laureados do Olimpo: Ovídio.

atual cidade de Contantza, na Romênia.

384


Milton Genésio de Brito

na Ars Amatoria. Todavia, o lapso temporal

Nesta mesma época compôs uma

entre a data de divulgação da obra e a do

série de cartas imaginárias, também em

desterro

dísticos

mantem

a

dúvida

sobre

tal

elegíacos

6,

denominadas

Heroidum libri: Cartas endereçadas aos

possibilidade. A ARS AMATORIA E SEU

amantes pelas heroínas da tradição épica e

CONTEXTO

dramática da Grécia. Ainda podemos citar,

A Ars Amatoria não foi a primeira,

como

anterior

à

obra

em

análise,

Medicamenta faciei feminae, um tratado de

nem a maior, das obras de Ovídio. Seu trabalho inicial, composto entre

cosmetologia para os rostos femininos.

22 e 15 a.C., foi Amores, uma coletânea de

Posteriores à Ars Amatoria são:

poemas elegíacos que se destinavam a

Remedia Amoris, diversos conselhos que

celebrar sua paixão por Corina, uma

têm por objetivo desarraigar do espírito os

cortesã e também personagem simbólica

efeitos de uma paixão amorosa não

que representaria todas as mulheres com

correspondida. Esta obra serviria como

as quais se relacionou. A primeira edição

alternativa

constava

compilados

sucesso com o uso da Ars Amatoria;

Segundo

Medea, uma tragédia que é citada por

Spalding (1968, p.154), no livro III, carta

autores posteriores, mas da qual não

XV, linha XVIII, desta obra, há uma

restaram

referência - Pulsanda est magnis area

Metamorfoseon libri, obra anteriormente

maior equis

citada;

de

cinco

posteriormente

4

para

livros, três.

-, que evidenciaria a sua

aos

que

não

sequer e

os

obtivessem

fragmentos;

Fasti,

poemas

que

intenção de “legar a posteridade” sua maior

homenageavam as festividades religiosas e

obra, Metamorfoseon libri, e a única escrita

cívicas romanas, procurando também dar

em hexâmetros datílicos 5, constituindo-se

explicações

numa

fundamentando diversos costumes, e, por

coletânea

de

mitos

gregos

e

romanos com funções didáticas.

sobre

o

calendário

e

esse motivo, deveria ser composta de doze livros, um para cada mês do ano, o que,

4 5

Com grandes cavalos, devo palmilhar uma área maior. O hexâmetro datílicos constituía a forma métrica

associada a poesia épica, tanto na literatura grega como na latina, exemplificado nas obras de Homero (Ilíada e

6

Odisseia) e Virgílio (Eneida).

elaboração de elegias (cartas amorosas) e epigramas.

O dístico elegíaco era utilizado principalmente na

385


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

todavia, devido ao édito imperial ficou

segundo

livros

são

direcionados

aos

limitado a seis volumes 7.

homens - as táticas de aproximação e

Após o édito Ovídio começou a

conquista, e os meios a serem utilizados

escrever ainda as Tristia ou Tristium libri,

para se manter a amada; o terceiro livro é

conjunto de epístolas em cinco livros, nas

dedicado às mulheres - quais os artifícios

quais suplicou a revisão do seu exílio pelo

para

imperador

duradoura, conforme Cardoso (2003, p.

Augusto:

segundo

Rocha

Pereira (1984: 378), na epístola IV, capítulo

tornar-se

amada

de

maneira

81).

IV, linha XV, a citação quia res est publica

Segundo Feitosa (2000), a Ars

Caesar tem por objetivo identificar Augusto

Amatoria, ao atribuir igual participação e

(César) como uma continuidade da Res

direitos à homens e mulheres na relação

Publica.

amorosa, representava uma transgressão

As Ponticae ou Epistulae ex Ponto,

às regras e valores morais arrogados pela

totalizando quatro livros, foram compostas

aristocracia para a união e as relações

algum tempo depois de sua chegada ao

amorosas. Dentre as três formas de união

Pontus Euxinus. Escritas em um ritmo

conjugais correntes entre os romanos 9, a

monótono, demonstram um tom nostálgico

mais difundida entre a aristocracia era a ad

em relação a sua vida na cidade de Roma,

manum, tradição herdada do período

e uma angústia diante da inutilidade de se

republicano

suplicar pela clemência imperial 8.

aristocrática era zelosamente ‘guardada’

A

Ars Amatoria, o eixo deste

trabalho, é um conjunto de três livros,

Entretanto, décadas

sedução”,

constituição

ao

clima

“uma

jovem

era escolhido por seu pai” ·.

Ovídio procura construir uma “teoria da contraposição

qual

para o casamento e o seu futuro esposo

escritos em versos elegíacos, no qual em

no

finais do

o da

período

entre

República

Império

e

implicou

as a em

moralizante da época: o primeiro e o 9

Por aquisição, mediante um pagamento simbólico pela

Nesta obra encontra-se a expressão paronomástica urbi

noiva; por coabitação, depois de um ano convivendo

et orbi, para a cidade (de Roma) e para o mundo

juntos ininterruptamente sob o mesmo teto; e por dote, ou

(conhecido).

ad manum, no qual o casamento constituía-se como um

7

8

De acordo com Harvey (1998: 374) diversas outras

obras são atribuídas à Ovídio de modo espúrio.

ato político e econômico, no sentido de fortalecer as relações entre famílias.

386


Milton Genésio de Brito

importantes

transformações

e

Neste sentido, a disseminação da

políticas: não mais as práticas de sucessão

Ars Amatoria - classificada por muitos,

e de transmissão de bens por meio de

mesmo atualmente, como obscena e imoral

herança, ou o cursum honorum, eram

-, ao realçar as práticas extraconjugais,

determinados por inter-relações entre as

seguia na contramão da política imperial,

famílias nas suas alianças políticas, mas,

mas também demonstrava a forte oposição

primeiro em razão das alternâncias entre

ao discurso moralizante e a necessidade

diferentes

de abrandamento das penas impostas pela

facções

dos

sociais

“senhores

guerra”, e os subsequentes

de

confiscos

sofridos pelos derrotados, e depois, a partir

política imperial. OS DEZ MANDAMENTOS DO AMOR E A OBRA OVIDIANA

de um poder centralizado - o Imperador. Tais fatos colocaram em crise a

Na analogia entre a obra ovidiana e

função político-econômica da instituição

uma música nordestina, os excertos foram

matrimonial, multiplicando o número de

retirados dos livros destinados aos homens

divórcios, estendendo o concubinato entre

no sentido de conquistar e manter as

livres e libertos e diminuindo o número de

mulheres amadas. Antes de cada excerto

filhos nascidos de união legítima. A política

há dois números: o primeiro, em algarismos

imperial, prevendo a iminente ruptura de

romanos, indica o livro do qual foi extraído;

sua

o segundo, em algarismos indo-arábicos

base

de

sustentação,

procurou

resgatar os antigos valores aristocráticos, o

indica a linha.

Mos Maiorum, revendo a legislação e

Os versos a seguir foram retirados

tentando regulamentar os comportamentos

da letra de uma música popular bem

na sociedade romana. A própria filha de

ritmada, conforme Moreno & Carvalho

Augusto, Júlia, sofreu o banimento imperial

(1998), e serão utilizados para sugerir

devido aos escândalos, à impudicícia e às

como

orgias

interpretada

noturnas,

reconhecimento complacência condutas.

demonstrando

público do

e

Imperador

o

a

Ars

Amatoria

pelo

seu

tende aspecto

a

ser mais

a

não

propalado – como um tratado de sedução -,

com

tais

o qual apresenta a relação amorosa equivalente a um jogo no qual o maior conhecimento das regras, de uma das

387


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

partes,

determina

a

sua

“vitória”

circunscrição causada pelo próprio autor ao início de sua obra: Se acaso existe alguém

entre esse povo que da arte de amar nada conheça, leia o presente livro – a ver se douto ficar nesta matéria que lhe interessa. (I, 1-2)

Deixa ela esperar.

10

O primeiro dos mandamentos pode ser relacionado com as seguintes linhas explicitando a definição do objetivo, o cerco e a aproximação, direta, mas afável: Se

vais para o amor como quem vai pela primeira vez ao fogo das pelejas, trata de

Os dez mandamentos do amor,

procurar, antes de mais, aquela a quem

Para conquistar uma mulher:

desejas (I, 35-36)

Tem que ter carinho; Tem que ter jeitinho;

11;

Procura então um

motivo de conversa (I, 143)

12;

e, Que tudo

Tem que dar aquilo que ela quer.

te sirva de pretexto para mostrares a tua

Primeiro, tudo começa com a paquera:

cortesia (I, 152)

O seu olhar bem dentro do olho dela. E com jeitinho lhe tire para dançar,

13.

No segundo dos preceitos há o

Dance macio para ela se aconchegar.

indicativo de que se deve buscar o

Segundo, um papo de derrubar avião:

estreitamento da distância, e, com uma

Vá de mansinho alisando a sua mão. Terceiro, é um cheiro para sentir o seu perfume,

persuasiva

argumentação,

fazer

uso

Olhando as outras para ela sentir ciúmes.

abundante de elogios e promessas: Senta-

O quarto, é brincar no escurinho:

te ao lado daquela que te agrada. Ninguém

Ser o lobo mau e ela chapeuzinho. Quinto, tem que ser bem safadinho.

te impede de te colares a ela (I, 139)

14;

Os

Preste atenção, agora

elogios agradam a mais casta. Vivem as

Ao sexto mandamento

virgens deslumbradas pela própria beleza e

Que ela não vai lhe esquecer Um só momento: Repita a dose se sentir que ela gostou,

não poucos cuidados lhe dedicam (I, 621622)

15;

e, Não sejas tímido a fazer

Na hora H lhe chame de meu amor. Sétimo toque é lhe falar de paixão: falar somente das coisas do coração. Oitavo mandamento diz para jurar

10

Principio, quod amare uelis repelire labora, Qui noua

Lhe ser fiel até a morte lhe levar.

11

No nono, você diz que vai voltar,

nunc primum miles in arma uenis.

Diz que amanhã vai telefonar.

12

Hic tibi quaeratur socii sermonis origo...

No décimo...

13

Quaelibet officio causa sit apta tuo.

14

Proximus a domina, nullo prohibente, sedetto...

Si quis in hoc artem populo non nouit amandi, hoc legat

et lecto carmine doctus amet.

15

Delectant etiam castas praeconia formae; Virginibus

curae grataque forma sua est.

388


Milton Genésio de Brito

promessas. As promessas atraem as

uma rival perigosa seu amor enfraquece.

mulheres (I, 629)

(II, 435-436)

16.

Atitudes

ambíguas

parecem

18

A defesa de uma postura ativa e ao

constituir o terceiro dos mandamentos,

mesmo

pois, ao mesmo tempo em que o homem

fundamenta

deve dar um “cheiro para sentir o seu

complementado pelo quinto, no qual se

perfume

uma

professa a impetuosidade na ação quando

pressuposta demonstração de interesse,

do crescente erotismo na interação entre

recomenda

as

ambos, considerando que caberia à mulher

outras” para que também (a mulher) sinta

a parte passiva no relacionamento: O pudor

ciúmes em relação ao homem. Porém,

impede a mulher de provocar certas

essa postura nolo volo pode significar

carícias, mas se é o homem a começar ela

simultaneamente o reconhecimento de um

recebe-as com delícia (I, 703-704)

dos atributos femininos e uma forma

mesmo sentido, Não molestes com beijos

deturpada de afirmação do próprio valor,

mal roubados os seus lábios sensíveis,

ações que na obra têm seus paralelos:

delicados; que queixar-se não possa da tua

Meio algum não desprezes para que fique

grosseria. Roubar um beijo e não roubar o

(a mulher) com essa convicção (de que o

resto é uma falta de jeito que merece

homem representa o papel de apaixonado).

perder os favores já concedidos (I, 665-

Não é difícil de ser acreditado. Dignas se

668)

(o

da que

mulher)”, continue

em

“olhando

julgam todas as mulheres de um amor inspirar (I, 610-611)

lúdica o

pelo

quarto

homem preceito,

19;

E, no

20.

Tais características, a postura ativa

nesse sentido, a

e a impetuosidade na ação, reiteradas em

coerência

na

outras partes da obra ovidiana, situam-se

argumentação do poeta - Sei de algumas

melhor no âmbito e na índole militar,

ambiguidade

17;e,

tempo

tem

mulheres a quem a receosa obediência do amante em geral aborrece; se não tiverem

18

Sunt quibus ingrate timida indulgentia seruit, Et, si nulla

subest aemula, languet amor. 19

Scilicet, ut pudor est quaedam coepisse priorem, sic alio

gratum est incipiente pati. 20 16

Nec timide promitte; trahunt promissa puellas

17

Haec tibi quaeratur qualibet arte fides. Nec credi labor

est; sibi quaeque uidetur amanda.

Tantum, ne noceant teneris male rapta lebellis, neue

queri possit dura fuisse, caue. Oscula qui sumpsit, si non et cetera sumpsit, haec quoque, quae data sunt, Perdere dignus erit.

389


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

atributos

alijados

progressivamente

da

aristocracia citadina a partir das crises

alimento que nutre o terno amor. [grifo nosso] (II, 151-152)

republicanas e da coeva proletarização do

22

No Sétimo ‘toque’ na letra da música

exército romano. Assim, propomos que, o

se

reitera

o

valor

da

seu incitamento no texto sobre o espaço

conhecimento

privado das relações seria uma forma de

romanos para o exercício da vida pública, e

catarse pela obliteração das mesmas no

aplicada no texto à relação amorosa: Se

espaço público durante o Principado.

queres que a tua amiga festeje a tua vinda,

fundamental

Retórica, entre

os

Em relação ao sexto mandamento,

prodigaliza-lhe a ternura das carícias e

mais do que repetir a ‘dose’, Ovídio

palavras que encantam os ouvidos. (II, 159-

recomendou como fundamental a atinência

160)

23.

a alguns detalhes, e procurou evidenciar

O Oitavo mandamento argumenta

que palavras ternas faziam-se essenciais

pela eficácia de um pressuposto juramento

em

e

de fidelidade até a morte, retomando o

principalmente nesse: Apressar o termo da

papel desempenhado pelas promessas

volúpia, acredite, não é conveniente, mas

para a conquista da alma feminina (sic):

depois de atrasos que a demorem chegar à

Faze promessas! Fazê-las não te custa.

meta insensivelmente [também não]. E

Com promessas enriquece muita gente.

antes de encontrares aquela região onde

Faze promessas! A esperança é duradoura

as carícias têm melhor acolhimento não te

desde que um grão de

impeça o pudor de a afagar (II, 717-720)

acrescente. És, Esperança, uma deusa

quase

todos

os

momentos,

21;

e, continuando, Longe de nós as ásperas

enganadora,

mas

discussões e os combates travados pelas

utilmente. (I, 441-444)

os

fé se lhe

enganos

teces

24.

línguas mordazes. Doces palavras, eis o 22

Este procul, lites, et amarae proelia linguae! Dulcibus

est uerbis mollis alendus amor. 23

Blanditias molles auremque iuuantia uerba. Adfer, ut

aduentu laeta sit illa tuo. 21

Crede mihi, non est Veneris properanda uoluptas, sed

sensim tarda prolicienda mora. Cum loca reppereris quae

24

Promittas facito; quid enim promittere laedit? Pollicitis

diues quilibet esse potest. Spes tenet in tempus, semel

tangi femina gaudet, non obstet, tangas quo minus illa,

est si credita, longum; Illa quidem fallax, sed tamen apta

pudor.

Dea est.

390


Milton Genésio de Brito

No nono preceito recomenda-se a

esta obra de Ovídio. Entretanto, diferentes

criação de uma expectativa de retorno:

interpretações podem ser feitas a partir

Seja tua a vantagem e a honra lhe

desse mesmo texto.

pertença. Nada perdes. Deixa-a estar

OUTRAS LEITURAS POSSÍVEIS

convencida que sobre ti exerce poderosa

Alguns dos próprios excertos que

influência. Se o amor da amiga conservar

foram

teus dias preocupa, em convencê-la que

“mandamentos

estás maravilhado com a sua beleza, a

empregados para exemplificar um manual

mente ocupa. (II, 293-296)

metodológico empregado em diferentes

O

décimo

25.

mandamento,

ao

utilizados

para do

fundamentar

amor”

podem

os ser

situações das relações humanas.

preceituar que se deve deixá-la esperar,

O primeiro mandamento ressalta o

representaria o fazer-se valorizar pela

princípio de qualquer ação que tenha por

amada em razão da ausência, ideias que

finalidade

se

argumento

objetivo, ou, Só o homem que a fundo se

ovidiano: Desejam as mulheres o que lhes

conheça pode amar sabiamente porque é

foge e detestam o que está ao seu alcance.

em relação às próprias forças que mede

Se insistires com mais moderação, maior

cada empresa. (II, 501-502)

será

sempre

desse momento, frisa-se a aproximação,

transpareça em teus pedidos o ímpeto da

com o uso de uma convincente, mas nem

paixão. (I, 715-717)

sempre

ressaltam

a

sua

no

seguinte

aceitação.

Nem

26.

o

sucesso:

a

consistente

definição

27.

do

A partir

argumentação

Por meio desses excertos extraídos

(segundo princípio): O homem que procede

da Ars Amatoria procuramos demonstrar a

com prudência sabe adaptar-se a esta

sua utilização, no sentido de um tratado

divergência [o fato de não poder se aplicar

prático de sedução, o que contribuiu para a

uma mesma tática por melhor que seja a

continuidade do preconceito em relação a

todas as situações] (I, 758)

28.

O fazer-se

notar e demonstrar os atributos pessoais 25

Vtilitas tua sit; titulus donetur amicae. Perde nihil: partes

illa potentis agat. Sed te, cuieumque est retinendae cura

insere-se no terceiro passo, como reiterado neste excerto: E, ainda, se tens outros

puellae, attonitum forma fac putet esse sua. 26

Quod refugit multae cupiunt, odere quod instat; Lenius

27

Qui sibi notus erit solus sapienter amabit, atque opus ad

instando taedia tolle tui. Nec semper Veneris spes est

uires exiget omne suas.

profitenda roganti...

28

Qui sapit, innumeris moribus aptus erit...

391


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

meios de agradar usai-os a todos, torna-os

lhe mostrem o teu rosto. E se razões

evidentes. (I, 594)

tiveres para acreditar que a tua amiga vai

29.

No quarto e no quinto mandamentos têm-se

a

relação,

como

descrito

anteriormente, com uma postura ativa na relação

o

que

comprometimento,

implica

sentir saudades e a tua ausência lhe dará desgosto,

e

por

repousar. (II, 347-351)

em

envolvimento

deixa-a

pouco

tempo

33.

E o décimo, apesar de enfatizar a necessidade

de

manutenção

de

uma

participação: Aprende a perder tempo às

relativa distância, espacial ou temporal, por

ordens da tua dona caprichosa (I, 503)

30;

uma das partes, busca ao mesmo tempo o

E, se no cerco puseres perseverança e do

estabelecimento da presença como defesa

tempo fizeres teu aliado há de a própria

contra possíveis revezes amorosos: Mas

Penélope render-se Ao assédio fatal dessa

que a tua demora seja breve: com o tempo

aliança (I, 475)

as

O

31.

sexto

e

o

sétimo

preceitos

acentuam a interação entre atitudes e suas

saudades

diminuem.

Apaga-se

a

imagem do ausente e logo a vida um novo amor desenha. (II, 357-358)

verbalizações em uma relação simbiótica

Muitos

dos

34.

aspectos

e

de reforço e reafirmação: Não mostres que

características aparentemente ambíguos

simulas nas palavras; que a expressão do

que destacamos, possivelmente, tiveram

rosto não desminta o efeito que busca a tua

seu

fala. (II, 311-312)

experiências pessoais do autor. Em razão

32.

No oitavo e o nono procuram

fundamento

na

agitada

vida

e

desse pressuposto, a Ars Amatoria pode

entre

ser utilizada em diversos sentidos, e

compromisso, esperança e expectativas na

múltiplas interpretações que consideramos

relação, de maneira oposta aos excertos

complementares entre si.

estabelecer

uma

relação

expostos anteriormente: Que a tua amiga

te veja e ouça sempre. Que a noite e o dia 33

Te semper uidebat, tibi semper praebeat aures;

29

Et, quacumque potes doce placere, place.

Exhibeat uultus noxque diesque tuos. Cum tibi maior erit

30

Arbitrio dominae tempora perde tuae.

fiducia posse requiri, Cum procul absenti cura futurus eris,

31

Penelopen ipsam, perstes modo, tempore uinces

Da requiem...

32

Tantum ne pateas uerbis simulator in illis. Effice, nec

34

uultu destrue dicta tuo.

Sed mora tuta breuis: lentescunt tempore curae,

vanescitque absens, et nouus intrat amor.

392


Milton Genésio de Brito

Um sentido que pode ser explorado

seja belo e o corpo impressionante. (II, 107-108)

de

da

amiga e não teres a surpresa de ser

argumentação de BARBOSA (2002, p.

abandonado,... Junta os dons do espírito às

156), que empreendeu uma análise sobre o

vantagens do corpo. A beleza é um dom

papel da amante na sociedade romana do

demasiado frágil, tudo aquilo que aos anos

século I d.C. e para quem “... Ovídio pagou

se acrescenta com rigor a beleza diminui: a

com seu exílio por sua ousadia em

própria duração a faz murchar. (II, 111-114)

incentivar um amor e um estilo de vida que

37;

os políticos consideravam prejudicial ao

que fique e a beleza do corpo assim se

Estado”.

fortifique. Só o espírito dura até à fúnebre

galanteio”,

como

no

viés

36;

Se pretendes guardar a tua

é a sua representação enquanto “manual

e, também, prepara desde já um espírito

Outro significado possível segue a

fogueira. Não te pareça um frívolo cuidado

análise de SILVA (2001) que ao interpretar

pelas artes liberais a inteligência enriquecer

esta obra do corpus bibliográfico ovidiano

e as duas línguas aprender. (II, 120-123)

em uma comparação com o Satyricon de

38.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Petrônio refere-se a ambos os textos como

A pesquisa e o estudo das obras de

formas de negação a uma sociedade

autores latinos, no geral, e da produção

nitidamente patriarcal, quase misógina, que

ovidiana, em particular, foram elucidativas

atingiu o absurdo e o grotesco em relação

no

sentido

de

evidenciar

que

os

à sexualidade feminina.

fundamentos

de

diversas

ideias

e

Como argumento final, o que mais

concepções difundidas pelo senso comum.

merece menção é o conceito ovidiano de

No mesmo sentido, muitos aspectos das

“essência da beleza” diluído no texto, e que, infelizmente, não é destacado quando

36

de sua análise: Convém aos homens a

forma dabit.

beleza descuidada... É a elegância simples e correta que nos homens agrada. (I, 507, 511)

35;

Para ser amado deve o homem ser

amável e não será bastante que o rosto

37

Vt ameris, amabilis esto, quod tibi non facies solaue Vt dominam teneas, nec te mirere relictum, ingenii dotes

corporis

adde

bonis.

Forma

bonum

fragile

est,

quantumque accedit ad annos, fit minor, et spatio carpitur ipsa suo. 38

Iam molire animum, qui duret, et adstrue formae: Solus

ad extremos permanet ille rogos. Nec leui ingenuas pectus coluisse per artes cura sit, et linguas edidicisse

35

Forma uiros neglecta decet... Munditie placeant...

duas.

393


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

culturas

(como

caso

da

música

vivido pelo poeta e seus

ideologias

do

mundo

Período de acelerada transição entre um

contemporâneo (dentre as quais os modos

cenário constituído por diversas forças em

de

confrontação,

confrontada)

e

no

relacionamento

entre

homens

mulheres),

apropriaram-se

argumentos

do

teor

em

destes

e

seus

cânones

mas

ainda

coetâneos.

aberto

a

manifestações claras, e um ambiente de poder

centralizado

que

paulatinamente

literários, apesar de desvincula-los da sua

reduziu o espaço de participação dos

tradição cultural de origem e, muitas vezes,

cidadãos na vida pública, deixando para a

distorce-los por uma arrogada tradução.

maioria apenas o universo das relações

No caso de Ovídio, procuramos demonstrar

como

descontextualizada

citação

suas opiniões de maneira metafórica,

fragmentos isolados pode deslocar várias

devido a progressivas medidas decretadas

de suas ideias expressas no texto, o que

de cerceamento e censura durante o

induz a diferentes linhas de raciocínio,

Principado, enquanto o jogo político se

desvelando a complexidade de sua obra.

institucionalizava cada vez mais pelas

ovidiano,

excertos

literário como única opção para expressar

ou

Essa

de

a

privadas e para uns poucos o campo

complexidade pressupomos,

no seria

texto

cartas marcadas.

a

reverberação do singular momento politico

Referências: Bibliográficas: BARBOSA, R. C. Sedução e Conquista: a amante na poesia de Ovídio. Curitiba, 2002. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Paraná. CARDOSO, Z. A.. A Literatura Latina. 2ª. edição. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Coleção Biblioteca Universal) GAILLARD, J. Introdução à Literatura Latina: Das origens a Apuleio. Sintra: Editorial Inquérito, 1992. Tradução de Cristina Pimentel.

394


Milton Genésio de Brito

HARVEY, P. Dicionário Oxford de Literatura Clássica: grega e latina. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1998. NOVAK, M. G.; NERI, M. L. (org..). Poesia Lírica Latina. 3ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Biblioteca Martins Fontes). OVÍDIO. Ars Amatoria. Tradução de Natália Correia e Davis Mourão-Ferreira. Edição bilíngue. São Paulo: Ars Poetica, 1997. (Coleção Poesia; Série Clássicos; Volume 1). ROCHA PEREIRA, M. H.. Estudos de História da Cultura Clássica. Volume II: cultura romana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. SILVA, G. J. Aspectos de cultura e gênero na Arte de Amar, de Ovídio, e no Satyricon, de

Petrônio: representações e relações. Campinas, 2001. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Campinas. SPALDING, T. O. Pequeno Dicionário de Literatura Latina. São Paulo: Cultrix, 1968. Eletrônicas: FEITOSA, L. M. G. C. O feminino, o desejo e o comportamento amoroso em Ovídio. In: Entretextos

Entresexos,

Campinas

/SP,

n.

4,

p.

53-68,

2000.

Disponível

em:

http://www.unicamp.br/nee/arqueologia/arquivos/historia_antiga/feminino.html. Acesso em 11 ago. 2014. Laureados do Olimpo: Ovídio. Disponível em: http://ocantoparnaso.blogspot.com. Acesso em 31 out. 2005. Discográficas: MORENO, D. D.; CARVALHO, J.. Os dez mandamentos. 68300597. Amelinha & Maurício Mattar (artistas SONY MUSIC). In: Casa do Forró. São Paulo: Polygram, 1998. Um CD (46 min.): digital, estéreo.

395


PÁSCOA CRISTÃ E JUDAICA: ESTRUTURA E HISTÓRIA DE LONGA DURAÇÃO Nathany A. W. Belmaia 1 Monica Selvatici (Orientadora) Resumo: Dado que a religião é um saber e uma forma de entender e interpretar o mundo, neste trabalho buscaremos fundamentar o sentido da comemoração da Páscoa segundo os textos sagrados do judaísmo e cristianismo, correspondendo, respectivamente, à Bíblia hebraica e os textos do Novo Testamento. Uma vez que o primeiro fundamenta-se sob a égide da proteção do sangue do cordeiro e a libertação do povo hebreu do Egito após a décima praga, o segundo, destaca-se apresentando a comemoração com um sentido atribuído à morte de morte de Jesus na cruz, ressureição e redenção dos pecados. Assim, buscaremos, por um lado, demonstrar como o evento teve fundamental importância no processo de marcação da construção do cristianismo como uma religião independente do judaísmo, e, por outro, que houve uma apropriação de um mesmo núcleo estruturante no qual se desenvolveram os símbolos e signos da comemoração cristã. Assim, partindo dos conceitos propostos principalmente em

“História e Ciências Sociais” de Fernand Braudel, trabalharemos com

conceitos de estrutura e da história de longa duração, afim de demonstrar como a comemoração tal como prescrita pelo judaísmo estava de tal forma arraigada culturalmente em um contexto da expansão do cristianismo até o século V, que impusera-se como barreiras estruturais de difícil modificação, elemento presente em uma história longa, onde a atribuição de novas significações pelo cristianismo só se estabelece a partir de um núcleo estruturante comum que a conforma e, ao mesmo tempo, permite a construção de símbolos de uma religião independente. Palavras-chave: Páscoa cristã, Páscoa judaica, estrutura.

1

Universidade Estadual de Londrina (UEL)

396


Nathany A. W. Belmaia

1.1 Fundamento da comemoração da

portas de suas casas. Isto constituiria-se na

Páscoa judaica

marca do povo de Deus, para que, quando

As festividades de fundo religioso

o anjo da morte que passasse pelo Egito,

auxiliam na construção e manutenção de

não levasse consigo o primogênito dos

uma identidade que une pessoas de

lares assim demarcados, como descrito em

diversas origens e nações sob um mesmo

Êxodo:

credo. A Páscoa, ou Pêssach judaico, neste caso, se destaca como um dos principais eventos do calendário judeu, onde, através de comemorações com símbolos e rituais especiais, evoca eventos passados, como a libertação da escravidão

E eu passarei pela terra do Egito esta noite, e ferirei todo o primogênito na terra do Egito, desde os homens até aos animais; e em todos os deuses do Egito farei juízos. Eu sou o Senhor. E aquele sangue vos será por sinal nas casas em que estiverdes; vendo eu sangue, passarei por cima de vós, e não haverá entre vós praga de mortandade, quando eu ferir a terra do Egito.

E este dia vos será por memória, e celebrá-lo-eis

e o êxodo do Egito. Segundo a Bíblia hebraica 2, o Faraó, que negara a libertação do povo de Deus,

por festa ao Senhor; nas vossas gerações o celebrareis por estatuto perpétuo. (ÊXODO 12:12-14 grifo meu)

(águas

Ainda de acordo com o Êxodo, o

transformadas em sangue, rãs, piolhos,

anjo enviado por Deus arrebatou a vida de

moscas, pestes no gado, úlceras, chuva de

todos os primogênitos egípcios, desde os

granizo, gafanhotos, três dias de escuridão

animais até o filho do Faraó. Após o

e morte dos primogênitos). Antes, porém,

episódio da mortandade, o Faraó, temendo

da execução da décima praga, a morte dos

sofrer mais retaliações advindas da ira

primogênitos,

foi

daquele Deus (que já o “castigara” tirando

divinamente designado para voltar ao Egito

a vida de seu próprio filho), decide libertar o

e liderar a partida dos hebreus rumo à terra

povo de Israel, fato que deu início ao êxodo

prometida.

daquele povo para a terra de Canaã.

condenara o Egito a dez pragas

o

profeta

Moisés

famílias

A explicação de como se constituiria

hebréias a sacrificar um cordeiro e molhar

o fundamento da realização da Páscoa, e

com o sangue do animal o umbral das

que a data seria guardada e comemorada,

Assim,

ele

instruiu

as

2Livro sagrado dos judeus, cuja autoria é atribuída à Moisés,

que corresponde aos cinco primeiros livros do Antigo Testamento da Bíblia Sagrada Cristã. Moisés é considerado libertador do povo de Deus.

vem da memória deste dia de libertação. Na frase destacada na citação anterior (de

397


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Êxodo 12:12), encontramos a prescrição para que a celebração se torne um estatuto perpétuo.

E, em seguida, continua no

mesmo capítulo: Portanto guardai isto por estatuto para vós, e

este dia nas vossas gerações por estatuto perpétuo. (ÊXODO 12:15-17, grifo meu)

Pode-se

ver,

que,

embora

a

celebração seja tratada como única (dado que os rituais da Páscoa judaica ocorrem

para vossos filhos para sempre. E acontecerá

durante sete dias atualmente), ela adveio

que, quando entrardes na terra que o Senhor vos

da fusão com uma outra festividade, que,

dará, como tem dito, guardareis este culto. E acontecerá que, quando vossos filhos vos

possivelmente,

poderia

ter

um

outro

disserem: Que culto é este? Então direis: Este é

fundamento, que não é citado na Bíblia.

o sacrifício da páscoa ao Senhor, que passou as

Assim, temos que, mesmo antes da data

casas dos filhos de Israel no Egito, quando feriu aos egípcios, e livrou as nossas casas. Então o

ser associada à libertação do povo e a

povo inclinou-se, e adorou. (ÊXODO 12:24-27)

passagem pelo deserto em busca da terra

Portanto, conclui-se que o motivo

prometida,

atribuído

à

comemoração

judaica

da

Páscoa se dá em função do êxodo do Egito. Mas, os versículos 15 a 17 do capítulo 12 de Êxodo, mencionam que, no mesmo dia do evento da libertação, já existia uma outra comemoração, a festa dos pães ázimos (pães sem fermento), que, naquele momento, ocorria no mesmo dia da Páscoa. Esta “junção" serviu como base para inferência de procedimentos de como a data deveria ser observada pelos fiéis: Sete dias comereis pães ázimos; ao primeiro dia tirareis o fermento das vossas casas; porque

a

festividade

existia

anteriormente: Com a inserção da Páscoa no contexto do Êxodo tudo se transformou. O relato dos capítulos 11 e 12 (do Êxodo) combina intencionalmente dois temas independentes, a décima praga e a Páscoa. Tal união mudou o sentido dos velhos ritos dessa festa de pastores, tornando-os históricos. [...] (RAVASI, 1985, p.59-60)

De acordo com Ravasi (1985, p.59), antes de Moisés, a festividade que fora posteriormente

designada

"Pêssach

judaico", estava sob o pano de fundo de uma sociedade de base agrícola, regida pela mudança das estações, ciclos lunares, migrações pastorais, uso do bastão e

qualquer que comer pão levedado, desde o

sacrifícios, onde, por exemplo, um animal

primeiro até ao sétimo dia, aquela alma será

era sacrificado (sob os cuidados de não ser

cortada de Israel. Guardai, pois a festa dos pães

ázimos, porque naquele mesmo dia tirei vossos exércitos da terra do Egito; pelo que guardareis a

despedaço durante o ato), para que pudesse retornar na forma de maior

398


Nathany A. W. Belmaia

vitalidade e fertilidade para o rebanho.

o sacrifício do cordeiro para evitar as

Conforme o livro de Deuteronômio:

mortes dos primogênitos, a erva amarga

Então sacrificarás a páscoa ao Senhor teu Deus, das ovelhas e das vacas, no lugar que o Senhor escolher para ali fazer habitar o seu nome. Nela

(representado pela escarola) que marcaria o sofrimento dos escravos no Egito, o

não comerás levedado; sete dias nela comerás

charósset (mistura de nozes, amêndoas,

pães ázimos [sem fermento], pão de aflição

tâmaras, canela e vinho), fazendo alusão

(porquanto apressadamente saíste da terra do Egito), para que te lembres do dia da tua saída

ao trabalho dos judeus nas edificações do

da terra do Egito, todos os dias da tua vida. [...]

faraó, o karpás e o salsão (considerado o

Seis dias comerás pães ázimos e no sétimo dia é

“sabor” do Êxodo) entre outros. Cada um

solenidade

ao

Senhor

teu

Deus;

nenhum

trabalho farás. (DEUTERONÔMIO 16:1-8)

As prescrições de Deuteronômio sobre a forma de comemoração da Páscoa, solidificam e estreitam os laços com relação à festa dos pães ázimos, primeiro, por atribuir-lhe uma historicidade associada à “pressa que o povo saiu do Egito” (que não teria lhes dado tempo hábil para fermentar o pão que os alimentaria), e, depois,

pelo

fato

de

incorporá-la

ritualisticamente, sinalizando, por exemplo, a não ingestão de fermento durante os dias que antecedem a comemoração pascal. De acordo com Tomaz (2008, p.1314) o Sêder de Pêssach (jantar de Páscoa), é preparado com alimentos que contém toda uma simbologia associada ao evento, evocando os motivos da comemoração. Dentre eles há, por exemplo, três matzots (os pães sem fermento),

um pedaço de

desses alimentos é disposto e consumido segundo formas e rituais específicos, que incluem desde a ordem da ingestão de cada alimento bem como momentos de bênçãos,

agradecimentos,

pedidos,

narrações de história, cânticos etc. 1.2 Fundamento da comemoração da Páscoa cristã Na

teologia

cristã,

os

eventos

iniciados desde a última ceia até a ressurreição, são chamados de “Paixão de Cristo”, aludindo aos sofrimentos físicos e mentais que Jesus passara nas horas que antecederam seu julgamento e execução na cruz. Partindo dos relatos dos apóstolos no Novo Testamento sobre a última ceia, a crucificação e a ressurreição, nas seções seguintes faremos uma retrospectiva dos principais eventos em torno da Paixão, que teriam culminado na constituição de toda a

osso do cordeiro ou ovelha, que simboliza

399


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

base do ritual e significância da Páscoa

apóstolo ouvira o galo cantar. Lembrando-

cristã.

se da previsão, chorou copiosamente. 1.2.1 Última ceia "Última

ficou

discípulos podem ser encontrados em

conhecida a refeição que Jesus dividiu com

Mateus 26:23-25, Marcos 14:18-21, Lucas

seus apóstolos em Jerusalém antes da

22:21-23 e João 13:21-30. Em Mateus

crucificação.

canônicos

26:23-25 e João 13:26-27. Após sair do

compartilham relatos de que a Última Ceia

cenáculo, Judas, a troco de 30 moedas

acontecera próxima do fim da Semana

(Mateus 26:15 e 27:3), acorda a delatação

Santa, após a entrada triunfal de Jesus em

de Cristo. De acordo com os evangelhos

Jerusalém e o encontro com judeus e

sinóticos, o beijo de Judas foi o sinal que

anciãos (ou, a data que corresponderia

identificou Jesus aos soldados que foram

posteriormente ao “Domingo de Ramos”).

prender-lhe.

Durante

Ceia"

Os

a

é

Os relatos sobre a traição de um dos

evangelhos

refeição,

acontecimentos

como

giraram

os

principais

em

torno

A instituição da Eucaristia, evento de

da

centralidade da fé católica, consta em

preparação dos discípulos para a partida

Lucas e na epístola de Paulo aos Coríntios

de Jesus, as suas previsões sobre a

como se segue:

negação do apóstolo Pedro, a traição de um dos discípulos e a repartição do pão e vinho

(considerada

a

fundação

da

entreguei, que o Senhor Jesus na noite em que foi traído, tomou pão e, havendo dado graças, o partiu e disse: Este é o meu corpo que é por vós; fazei isto em memória de mim. Do mesmo modo

Eucaristia). Mateus 26:33-35, Marcos 14:29-31, Lucas 22:33-34 e João 13:36-38, citam a previsão de Jesus sobre a negação de Pedro, de que o apóstolo o negaria três vezes antes que o galo cantasse no amanhecer do dia seguinte. E assim se deu, de modo que, após negar que conhecia

Pois eu recebi do Senhor, o que também vos

Jesus

pela

terceira

vez,

o

tomou o cálice, depois de haver ceado, dizendo: Este cálice é a nova aliança no meu sangue; fazei isto todas as vezes que o beberdes em memória de mim. (I CORINTIOS, 11:23)

A expressão “fazei isto em memória de mim” em ambos os textos citados, é o dado que institui a Eucarístia como estatuto a ser ritualmente repetido. E, ademais, as narrativas da repartição do pão e vinho feitas por Jesus foram relacionadas ao Êxodo 24:8, quando faz referência ao

400


Nathany A. W. Belmaia

sacrifício de sangue que Moisés ofereceu

Então, Jesus fora levado a Pôncio Pilatos,

para selar a aliança com Deus no Antigo

governador da província romana da Judéia,

Testamento. Jesus tornava-se, assim, ele

com o pedido de que se decretasse a pena

mesmo o próprio sacrifício, o “cordeiro” de

de morte, sob as alegações de "perverter a

Deus.

nação", "proibir o pagamento de tributos" e

1.2.2 Morte e Crucificação de Jesus

"sedição a Roma”. (cf. Lucas 23:1–2)

As narrativas sobre a morte e

No

Evangelho

de

Lucas,

ao

crucificação de Jesus constam nos quatro

descobrir que Jesus era galileu, Pilatos

evangelhos canônicos, Mateus 27:33-44,

envia-o a Herodes de Antipas, entendendo

Marcos 15:22-32, Lucas 23:33-43 e João

que o caso não caberia à sua jurisdição.

19:17-30.

Este, por sua vez, não vendo em Jesus

Após a Última Ceia com os doze

nenhuma ameaça, o devolve a Pilatos, que

apóstolos, Jesus foi preso no Getsêmani,

por

jardim situado ao pé do Monte das

acusações. Mas Pilatos atende o pedido da

Oliveiras, em Jerusalém, onde orava com

multidão,

os discípulos. De acordo com Mateus

publicamente suas mãos, deixando, assim,

26:57, uma vez capturado, Jesus foi

a responsabilidade pela morte de Jesus em

julgado pelo Sinédrio, sendo levado para a

aberta. Após este ato, manda açoitá-lo e o

casa de Caifás, o sumo-sacerdote, onde os

entrega

escribas e anciãos estavam reunidos.

27:24–26)

De acordo com os relatos bíblicos,

fim

declara mas

para

Jesus não

ser

inocente

antes

crucificado.

de

das lavar

(Mateus

Uma vez no Gólgota, colina do

os

Cálvario, foi pregado à cruz, erguida entre

poucas

outras duas, de ladrões condenados. (João

respostas e quase nenhuma defesa, Jesus

19:17–18) De acordo com Marcos, Jesus

terminou

pelas

resistiu por aproximadamente seis horas,

autoridades judaicas por blasfêmia, pela

da hora terça (aproximadamente 9 horas

afirmação de ser o Filho de Deus. No

da manhã) até a sua morte na hora nona

entanto, a

(três da tarde, detalhe mencionado apenas

Jesus

fala

muito

interrogatórios.

Romano

por

pouco

Assim, ser

durante com

condenado

regra universal do Império limitava

a

pena

capital

em Marcos 15:34-37).

estritamente ao tribunal do governador.

401


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Durante

a

crucificação,

vários

entrada do túmulo; que Jesus ressuscitado

eventos sobrenaturais foram relatados,

escolheu aparecer pela primeira vez para

incluindo uma escuridão entre as horas

as mulheres (ou mulher) e pediu-lhe(s) que

sexta e nona, o rompimento do véu do

proclamassem este acontecimento para os

templo e a ressurreição dos Santos, como

discípulos.

atesta o relato mencionado (apenas) por

descoberta do túmulo vazio, os evangelhos

Mateus:

relatam que Jesus

E eis que o véu do templo se rasgou em dois, de alto a baixo; e tremeu a terra, e fenderam-se as pedras; E abriram-se os sepulcros, e muitos

Após

a

apareceu diversas

vezes. Entre elas estão: a aparição para os discípulos, onde Tomé não acreditou até

foram

ser convidado a tocar com seus próprios

ressuscitados; E, saindo dos sepulcros, depois

dedos as chagas de Jesus; a aparição na

corpos

de

santos

que

dormiam

da ressurreição dele, entraram na cidade santa, e apareceram a muitos. E o centurião e os que

estrada para Emaús e no Mar da Galiléia.

com ele guardavam a Jesus, vendo o terremoto,

Sua aparição final ocorreu quarenta dias

e as coisas que haviam sucedido, tiveram grande

após

temor, e disseram: Verdadeiramente este era o Filho de Deus. (MATEUS, 27:51-54)

a

Após ser julgado e condenado pelo suportar as diversas humilhações que lhes foram impingidas até ser crucificado e morto. A continuação deste episódio pode ser encontrada em Mateus 28, Marcos 16, e

divergências

João nos

20.

Embora

relatos

sobre

haja a

ressurreição e posteriores aparições de Jesus, citados

podemos acima

dizer

os

concordam

evangelhos em

Jesus

ascendeu ao céu, onde o evangelho diz até o dia do seu retorno. 2. PÁSCOA E A HISTÓRIA DE

Sinédrio e pelo povo, Jesus tivera que

24

quando

que ele está com o Pai e o Espírito Santo

1.2.3 Ressurreição de Jesus

Lucas

ressurreição,

alguns

pontos: quanto à visita ao sepulcro, feita no domingo pelas das mulheres; a atenção dada à pedra pesada que fechava a

LONGA DURAÇÃO Ao

elegermos

como

objeto

de

estudo os fundamentos e influências da constituição

da

Páscoa

como

comemoração, estamos trabalhando com porções de longos períodos temporais, que datam da expansão do cristianismo, no século I d.C., até, pelo menos, meados dos séculos

V,

quando

a

comemoração,

apropriada do judaísmo, consolida-se. Para o escopo teórico-metodológico, dado que trabalhamos com recorte de um

402


Nathany A. W. Belmaia

grande período temporal, escolhemos partir

ocorrer, faz mais “ruído", ou, se manifesta

dos referencias e conceitos elaborados por

de uma maneira mais imediata. Para

Braudel sobre estrutura e a história de

Braudel,

longa duração.

enganadora

Introduziremos

uma

pequena

esse

tempo das

seria

“a

mais

durações”,

de

acontecimentos inebriados por crenças,

discussão acerca do conceito de história de

ilusões

longa

ofuscando as estruturas e percepções mais

duração

de

Braudel.

Após,

e

representações

sociais,

da

profundas dos entrelaçamentos históricos,

Páscoa, afim de demonstrar de que forma

que só poderiam ser evidenciados na longa

a Páscoa cristã rompe com a Páscoa

duração.

procuraremos

verificar

a

estrutura

Assim,

judaica se apropriando da estrutura já

esta

massa

de

existente, mantendo um núcleo em comum,

acontecimentos “ruidosos" não constituiria,

mas, atribuindo-lhe outros signos.

para Braudel, toda a realidade e toda a

2.1 Breve discussão acerca da história de

espessura da história, que, para além dos

longa duração de Braudel.

ruídos, também reside nos "silêncios". O

Braudel estabeleceu uma divisão

autor busca passar do tempo breve, para

tripartite da noção de tempo: o estrutural e

um tempo mais longo, que dá conta não

imóvel,

tempo

somente das ”explosões” que caracteriza

pela

um acontecimento, mas também dos “céus”

da

conjuntural,

longa médio,

duração;

o

caracterizado

mudança, dado pelas oscilações cíclicas da

que as suportam, as estruturas. Há dificuldades em se romper com

história; e por fim, o tempo breve, dos acontecimentos, próprio da vida quotidiana,

alguns

da curta duração.

geográficos, realidades biológicas, limites

Este acontecimental,

tempo, se

chamado

caracteriza

traços

culturais,

marcos

da produtividade e reações espirituais. Há

pelos

estruturas de vida tão longa que se

acontecimentos breves do cotidiano, o

convertem em elementos estáveis de uma

tempo do cronista, do jornal.

infinidade de gerações, que se constituem,

Ao observar a realidade histórica, a

pois, em apoios e obstáculos, dos quais o

atenção pode dirigir-se para aquilo que se

homem e sua experiência não podem se

move rapidamente, pois, o que acaba de

emancipar.

403


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Para

o

historiador,

assim,

uma

estrutura não se caracteriza apenas pelas mudanças, mas também pela permanência, aquilo que fica e se repete ao longo do tempo. Este é o tempo das estruturas, que atravessam imensos espaços de tempo sem se alterar. Um conteúdo social pode se renovar por inteiro algumas vezes, sem afetar traços estruturais profundos que persistem na história, e, por vezes, mudam apenas na superfície. Assim, há que se captar, além dos fatos singulares, a repetição, aquilo que persiste na longa duração, tanto nas realidades

conscientes

como

nas

inconscientes. A história se explica dentro do seu tempo e suas manifestações singulares, mas também fora do seu tempo, pela sobreposição civilizações

de que

conteúdos

de

atravessaram

várias grandes

espaços de tempo, construindo estruturas que, uma vez solidificadas, demora

a

desgastar,

o tempo

permanecendo

estruturalmente em uma história de longa duração.

Desta

forma,

procuraremos

demonstrar abaixo como a estrutura da Páscoa se mantém numa história de longa duração sobrevivendo, na sua essência, mesmo ao rompimento que culminou na

independência do cristianismo em função da religião judaica. 2.2 Estrutura Páscoa judaica e Páscoa cristã - similaridade e re-significações Até de fato se encontrar sob pilares estáveis, a comemoração da Páscoa, tanto no cristianismo quanto no judaísmo, foi tomando corpo e forma ao longo de vários e vários séculos, se inserindo em uma história de longa duração que data antes mesmo da escrita do livro de Êxodo. Como

mencionado

no

capítulo

12:15-17 de Êxodo, a festa dos pães ázimos deveria também ser guardada porque naquele mesmo dia aconteceu a libertação do povo de Deus da terra do Egito. Sendo assim, a incorporação serviu para balizar prescrições de como a data deveria ser respeitada, introduzindo a não ingestão de fermento e a retirada do mesmo das casas sete dias antes da comemoração. Na

medida

que

não

mais

menções sobre a celebração de ázimos, em Êxodo ou outros livros sagrados, a Bíblia deixa em suspenso qual era o sentido e o contexto que a festividade se inseria antes da fusão com o judaísmo. Alguns estudiosos, como Ravasi (1985,

404


Nathany A. W. Belmaia

p.59-60), associam a comemoração à uma

conhecesse as comemorações baseadas

festividade feita por povos que viviam em

no Velho Testamento, fato que podemos

uma sociedade de base agrária, marcados

constatar pela Bíblia. O Novo Testamento

pelas estações do ano e as épocas de

faz menções à datas comemorativas do

plantio e colheita. Disto, temos o dado

calendário litúrgico em I Coríntios

primordial abordado por Braudel, o homem

Atos 2:1, relatando episódios ocorridos na

em sua relação direta com a natureza,

festa dos ázimos, e, Atos 12:3 e 20:6,

estabelecendo elementos culturais numa

mencionando o dia de Pentecostes . Assim,

história de longa duração, que se repete

na Igreja Primitiva,

ciclicamente, dado a natureza de sua

Páscoa pelos cristãos se deu de forma

ligação original.

difusa,

16:8 e

a comemoração da

num misto de permanência das

Desta forma, vemos os limites, ou,

práticas anteriores, e, ao mesmo tempo,

as prisões de longa duração a que se

tentativas de diferenciação das tradições

refere o autor. Se o traço encontra-se

judaicas na qual a celebração estava

profundamente arraigado numa história

conformada.

longa, só se consegue superá-lo muito

Como atesta Eusébio de Cesaréia,

lentamente. A incorporação é uma das

ao tratar do caso das Igrejas da Ásia,

formas,

o

vemos que até meados dos século III a

significante dentro da mesma estrutura,

Páscoa ainda era comemorada segundo o

criando pontos de fissura até que a

calendário judaico, no 14 de Nissan:

estrutura

onde,

anterior

pode-se

seja

ampliar

complemente

corrompida pelo desgaste do tempo, e, enfim, seja vinculada à outras relações, a ponto de que seu início se encontre esquecido, à margem de uma história longa.

1. Por este tempo levantou-se uma questão bastante grave, por certo, porque as igrejas de toda a Ásia, apoiando-se em uma tradição muito antiga,

pensavam que era preciso guardar o

décimo quarto dia da lua para a festa da Páscoa do Salvador

[14 de Nissan ], dia em que os

judeus deviam sacrificar o cordeiro e no qual era necessário a todo custo, caindo no dia que fosse

Quando o cristianismo começa a se estruturar, nos séculos de I a IV, não existiam caráter

consolidadas identitário

festividades

cristãs,

embora

na semana , pôr fim aos jejuns , sendo que as igrejas de todo o resto do mundo não tinham por costume realizá-lo deste modo, mas por tradição

de

apostólica,

se

prevaleceu até hoje : que não é correto terminar

guardavam

o

costume

que

os jejuns em outro dia que não o da ressurreição

405


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

De acordo com Silva (op. cit.), a

de nosso Salvador . 2. Para tratar deste ponto houve sínodos e reuniões de bispos, e todos unânimes, por meio de cartas, formularam para os

fiéis

de

todas

as

partes

um

decreto

eclesiástico: que nunca se celebre o mistério da ressurreição do Senhor de entre os mortos em outro dia que não no domingo, e que somente

autoridades imperiais foi importante para afirmação do ciclo litúrgico imperador Constantino I

. Em 321, o ,

designou o

nesse dia guardemos o fim dos jejuns pascais.

domingo como dia oficial de intervenção

[...] (CESARÉIA, 2002, p.118)

religiosa e marco do início da semana . Até

Disto,

podemos

retirar

duas

questões: a comemoração da Páscoa no 14

aproximação entre o episcopado e as

de

Nissan,

considerada

apenas

“tradição”, e, as mencionadas reuniões, que, por unanimidade, acarretaram na formulação de cartas, contendo decretos eclesiásticos para que a comemoração se estabelecesse no domingo. “O dia do Senhor substituiu o Sabbath [sábado], e a festa cristã da ressurreição

, a Páscoa

judaica. A data da Páscoa tinha que se calcular eventualmente de tal maneira que impossibilitasse

a

sua

coincidência”

(MARKUS apud SILVA, 2009, p.11). A

comemoração

no

domingo

distinguia a Páscoa cristã do calendário judeu, visto que o Pêssach poderia ocorrer em qualquer dia da semana seguindo o 14 de Nissan. Com exceção apenas dos chamados

quartodecimanos,

que

defendiam a manutenção da data, os demais

aspiravam

a

celebração no domingo.

consolidação

da

então, o ‘dia de Saturno’ , sábado, ocupava lugar privilegiado no calendários romano (e judaico).

Além disso ,

em

314,

na

assembléia eclesiástica de Arles , e, ainda de forma mais contundente , em 325, no concílio de Nicéia (a ser tratado em seções posteriores),

“buscou-se a aceitação

romana quanto à comemoração da Páscoa, em

tons

marcadamente

anti-judaicos.”

(idem ibid) O ciclo temporal pascal representava, assim, um duplo fenômeno de complexificação do Domingo da Páscoa: alusivo tanto à complementação de festas e temporadas de interdição precedentes e posteriores ao evento , quanto à adesão de ritos preferencialmente ministrados neste período. (SILVA, 2009, p. 11) Assim, quando a Páscoa começou a ser celebrada pelo cristianismo, revestiu-se de uma outra roupagem que marcaria sua individualidade independente

como do

nova

judaísmo.

religião, O

Novo

406


Nathany A. W. Belmaia

Testamento

reformulou

o

da

foi a de Noé, que, mesmo após o dilúvio,

Páscoa judaica atribuindo-lhe, por um lado,

sacrificou animais “limpos” como graças

outras

outro,

(Gênesis 8:20-21). Já para Abraão, em

Antigo

Gênesis 22:10-13, Deus é que ordenara

significâncias

estabelecendo

sentido

e,

ligações

por

com

o

Testamento.

que ele sacrificasse seu filho Isaque.

Se a Páscoa de Israel foi a libertação de escravos

políticos

e

econômicos

para

transformá-los em pessoas livres, aliados de

Quando ele estava prestes a executar o que lhe fora pedido, Deus interveio e

Deus e possuidores de esperanças, a Páscoa de

substituiu a morte de Isaque pela de um

Jesus é a libertação da causa de todas as

carneiro.

escravidões, a elevação de homens e mulheres à dignidade de filhos e filhas do pai celeste e

Assim, temos no Velho Testamento

herdeiros da vida eterna. (VIEIRA, 2010)

que, para obter o perdão, aqueles que se

A nova simbologia atribuída ao

arrependeram de seus pecados, deveriam

evento, centralizava a figura de Jesus, cuja

fazer sacrificios à Deus (cf. Levítico 4). De

divindade fora atestada com a ressurreição

acordo com Levítico 1:1-4, o animal tinha

depois da morte na cruz. Assim, ele

que ser perfeito, e, quem oferecia o

tornara-se o próprio “cordeiro de Deus que

sacrifício, deveria se identificar com ele. E,

tira os pecados do mundo”, tal qual

no “dia da expiação”, baseado em Levítico

anunciado

16, o sacerdote cumpria um ritual com dois

por

João

1:29

quando

o

encontrou pela primeira vez.

bodes, onde um era sacrificado pela

Para compreender a ligação entre

expiação, e o outro era solto no deserto,

cordeiro e redenção, é preciso voltar ao

afim de que levasse para longe os pecados

início do Velho Testamento. Uma das

nele depositados.

primeiras menções a sacrifícios podem ser encontras

em

onde

duas Páscoas. A figura a seguir (Figura 1)

apenas Abel consegue agradar a Deus,

esquematiza resumidamente a espinha

trazendo

suas

dorsal que estrutura o campo semântico

ovelhas, e da sua gordura” como oferta,

atrelado às celebrações de ambas as

enquanto as frutas de Caim não recebem

religiões.

“dos

Gênesis

(4:3-5),

Com isto, podemos investigar as

primogênitos

das

atenção. Outra oferta que agradou a Deus

407


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

que

voluntariamente

Jesus

deixara-se

sacrificar para redimir toda a humanidade e convertera-se

no

próprio

"cordeiro

de

Deus", enviado para expiar os pecado da humanidade, aquele que, da Última Ceia até o momento de sua crucificação, não

Figura 1. Esquema estrutural Páscoa.

apresentou defesa ou resistência.

Dentro do limite, a figura deixa clara

Ainda que sob outras conotações,

a similaridade entre ambas estruturas. O

temos a mesma estrutura do cordeiro

que não significa, em nenhuma hipótese,

(encarnado por Jesus), que, uma vez

que o sentido atribuído seja o mesmo.

sacrificado,

De

um

lado,

temos

a

auxilia

na

obtenção

de

Páscoa

libertação. Mas, desta vez, se trata da

judaica, que trás o signo do cordeiro

libertação não apenas de um povo, mas de

associado ao sacrifício. A décima praga

toda a humanidade.

requisita o sangue da imolação para

Assim, trata-se de uma ruptura com

demarcar as portas das casas a fim de

a estrutura anterior, mas não completa,

protegê-las do anjo da morte. E, uma vez

dado

sacramentada

dos

estruturais. No entanto, o principal ponto de

primogênitos, o Faraó concede a libertação

ruptura para com a estrutura judaica se dá

do

com

Egito.

a Este

mortandade evento

funda

a

que

a

ainda

guarda

introdução

do

similaridades

conceito

da

comemoração da Páscoa, instituída como

“ressurreição”, fato que, para os cristãos,

estatuto perpétuo em Êxodo.

atesta a condição divina de Cristo como um

De outro lado, temos a formação de

ser designado para salvar o mundo, filho

um evento em torno da figura de Jesus,

enviado por Deus, e, por isto, detentor de

que é vinculado à simbologia do "cordeiro",

plenos poderes e direito para redimir os

presente na Páscoa e nas práticas de

pecados de todo o mundo. Este conceito,

sacrifício indicadas no Velho Testamento.

para além de fundamentar a Páscoa,

Seguindo a mesma idéia de substituição

contribui com a constituição teológica e

(na qual o animal era morto no lugar do

base ritual da própria religião.

pecador,

ou,

para

expiar-lhe

seus

pecados), é na qualidade de filho de Deus

408


Nathany A. W. Belmaia

Após a Páscoa, a Igreja Católica

dialoga com práticas do Velho Testamento,

Romana remete-se à memória da Última

ainda que no intuito de mudar-lhe o curso,

Ceia cumprindo o rito do mistério da

pois, a partir de então, não seria mais

“transubstanciação”, onde o vinho e o pão

necessário

convertem-se no corpo e sangue de Cristo,

pecados já foram saudados pelo sangue do

permitindo que a comunidade se lembre do

sacrifício do filho de Deus (SANTOS, 2011,

sacrifício feito por Cristo, e reafirme sua

p. 102). Assim, através dos conceitos de

ligação com ele através da eucaristia.

morte,

sacrifício

ressurreição

animal,

e

pois

redenção

os

dos

Desta forma, concluímos que, pelo

pecados, atribui-se uma nova dimensão à

fato da Páscoa cristã se desmembrar da

Páscoa, onde a ressurreição vinculada aos

Páscoa judaica,

é possível notar um

outros elementos, se constitui em um dos

mesmo pano de fundo estrutural baseado

“novos" dados estruturais colocados pelo

na

cristianismo. A Páscoa comemorada sob as

noção

mesmo

que

cordeiro-sacrifício-libertação, as

atribuições

sejam

diferentes. Não obstante, o sacrifício de Cristo vincula-se não apenas com a Páscoa, mas

novas insígnias cristãs foi fundamental para demarcar o cristianismo como religião distinta do judaísmo, norteada pela figura de Jesus.

Referências: Fontes: BÍBLIA, Português. Bíblia Sagrada. 45a. edição. Petrópolis: Vozes, 2001. CESARÉIA, Eusébio de. História Eclesiástica. Tradução de Wolfgang Fisher. São Paulo: Novo Séulo, 2002. Referências bibliográficas e bibliografia: BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. Lisboa: Presença, 1990. MATOS, Júlia S. Lucien Febvre e a quádrupla herança: aspectos teóricos do campo

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409


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410


Nathany A. W. Belmaia

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disponível

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www.fflch.usp.br/dlm/alemao/pandaemoniumgermanicum TOMAZ, P. C., et AL. A celebração da Páscoa judaica e as tradições culturais – simbologia e significado. Anais do 1º Encontro do GT Nacional de História das Religiões e Religiosidades –

ANPUH. Maringá: 1º Encontro do GT Nacional de História das Religiões e Religiosidades – ANPUH, 2008.

411


NOBREZA E RELAÇÕES DE PARENTESCO: IDENTIDADES SOCIAIS NO SÉCULO XIII Neila M. de Souza 1 Resumo: O trabalho aqui proposto é apresentar o projeto de pesquisa incialmente desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense. Assim, serão abordadas e colocadas em discussão as ideias em pleno curso de desenvolvimento, portanto, ainda sondagens e possibilidades de investigação do estudo proposto. Nosso objeto de pesquisa é a nobreza do século XIII e suas relações identitárias e de poder. A metodologia a ser utilizada consiste na escolha e delimitação das fontes, elaboração de quadros de grupos familiares e suas respectivas redes de ligações, leitura e análise de bibliografia especializada. A formação de linhagens entre a nobreza está intimamente ligada ao seu processo de afirmação social. Desse modo, identidades formavam-se pelos sentimentos de pertença a um grupo com interesses comuns. As linhagens ganhavam então lugares privilegiados junto ao poder real e senhorial. Ancorado pelo sentimento de grupo propiciado pelo agrupamento familiar, mesmo artificial, já que não biológico, o homem medieval garantia seu lugar na sociedade. A não pertença familiar denotava um grau de perigo representado por todos aqueles que à margem da sociedade entregavam-se ao banditismo e à desestruturação social. Pretendemos abordar aqui as relações entre a formação de linhagens e a construção de identidade para o grupo nobre. Palavras-chave: Identidade; Poder; Linhagem.

1

Doutoranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense sob orientação do Prof. Dr. Mário Jorge da Motta

Bastos.

412


Neila M. de Souza

O espaço delimitado por nós é o Ocidente

Medieval

do

décimo

terceiro

servindo a esses príncipes, se entregam a justas, se lançam desafios, demonstram

século, em virtude da Cavalaria ter sido uma

boas

instituição predominante no mundo então

(BARTHÉLEMY,

conhecido daquela época e por apresentar

cavalaria clássica é marcada já pelo signo da

características gerais e comuns aos mais

nobreza. Só podia ser cavaleiro então,

diferentes lugares em que ela atuou. No

aquele que descendesse de pai e mãe

entanto, pretendemos focalizar a abordagem,

nobre. A fusão entre cavalaria e nobreza era

de acordo com o andamento da pesquisa,

inevitável, visto que esta última era pouco

em Portugal, visto que nossa fonte principal

numerosa

foi levada a esse país difundindo diversos

diminuía ainda mais seus membros pelos

valores representados nessa obra literária. O

nascimentos de indivíduos deficientes que

século XIII é considerado pelos especialistas

geralmente eram entregues a mosteiros;

como a época em que a cavalaria já se

Léopold Génicot assinala que entre as

encontra plenamente constituída de seus

deficiências que atacavam os filhos oriundos

elementos

de

éticos,

morais

e

religiosos,

maneiras

e

o

casamentos

entre

2010,

p.

casamento

inimigos”. 15-16).

Essa

endogâmico

endogâmicos

estavam:

paralíticos,

caolhos,

formando desse modo uma instituição capaz

mancos,

de conferir identidade, pertença grupal e

manetas, quase todos oriundos de um

valores a homens dedicados aos trabalhos

casamento nobre. Além disso, muitos de

com a guerra. De acordo com Dominique

seus homens sofriam com as guerras e

Barthélemy é na França do século XII que

mortes conseqüentes delas. Havia assim

surgem

“Cavalaria

uma diminuição constante em sua formação.

clássica”, aquela dos grandes torneios, das

“Desta forma, aparecem vazios em suas

disputas entre cavaleiros, das cortes repletas

fileiras. Os casamentos das mulheres ou das

de homens buscando a fama e o prestígio.

viúvas

Assim aparecem nas crônicas um tipo de

pertencentes ao grupo, as nuptiae impares

Cavalaria justiceira, destinada a proteger a

(“bodas desiguais”), menos raros do que se

Igreja e os pobres e uma “verdadeira

pensa, são incapazes de preencher aqueles

Cavalaria de ato performático e espetáculo –

vazios”. (GÉNICOT, 2006, p. 282).

os

elementos

da

cegos,

da

nobreza

com

maridos

não

aquela dos jovens nobres que, em tudo

413


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

É indissociável a análise da relação

espiritual, ela se diferencia do outros homens

entre Cavalaria e Nobreza. Não há muito

e mantém-se entre seus iguais. Um nobre,

consenso a respeito entre os especialistas,

portanto, se casa na sua classe. Traço particularmente

dado a dificuldade de afirmação sobre um

significativo, ele não se mistura com a massa dos

grupo que agregava diferentes homens que

fiéis. Nem na vida nem na morte. Ele é o chefe da

viriam a se tornar cavaleiros nobres pelo contato

com

os

grandes

senhores

paróquia, assiste aos ofícios na sua capela junto com os seus ou se isola no coro da igreja. É

e

enterrado no seu domínio, em um setor reservado

casamentos com mulheres da nobreza.

do cemitério ou em um cemiterium nobilium. E

Muitos historiadores defendem que a fusão

quando as estruturas eclesiásticas forem definidas

entre nobreza e cavalaria ocorreu ainda no

e erguidas, o decano da cristandade realizará seu funeral (GÉNICOT, 2006, p. 280).

século XI e para outros isso só aconteceu no século XII. Em qual século os dois grupos se fundiram não é o principal, o mais importante é como se deu esse processo e como foram as influências estabelecidas entre ambos. Nobreza e cavalaria tornam-se um só corpo social, mas nem por isso homogêneo. Seu quadro é marcado por diferenças hierárquicas

fundadas

exatamente

na

linhagem. Nesse sentido, não bastava ser cavaleiro, ganhando um estatuto nobre; era preciso também descender de uma família “nobre” e respeitada, de homens de valores, que ganharam honra e fama e transmitiram essas virtudes aos seus descendentes. De acordo com Léopold Génicot as relações

da

nobreza

dão-se

indissociavelmente com a realeza e a Igreja, visto que seus membros compõem esses grupos. Assentada, pois no poder material e

Mas para evitar seu próprio fim fadado pelos casamentos endogâmicos, a nobreza abre-se para a Cavalaria, tomando do brilho guerreiro a renovação para seus membros. Embora seja reconhecido que a nobreza se assente no nascimento, ela nunca foi uma classe hermeticamente fechada. “A nobreza não tem nenhuma política familiar. Padece com as revoltas que acabam mal e perde muitos homens nas guerras privadas e nas vinganças. Dessa forma, aparecem vazios em suas fileiras” (GÉNICOT, 2006, p. 282). Para sobreviver diante de tantas mudanças que se impunham no mundo da qual fazia parte, sua renovação – ainda que comedida –

tornava-se

realmente

necessária.

Os

cavaleiros que tão próximos viviam dos poderosos, pois eram seus braços armados, acumulavam, entre tantos privilégios, a isenção

de

impostos.

Foi

assim

que,

414


Neila M. de Souza

servindo de mãos armadas à aristocracia,

nobiles resistem mais tempo à invasão dos

esses

milites” (GÉNICOT, 2006, p. 282).

cavaleiros

se

fundem

a

ela,

conjugando costumes e mentalidades e obtendo

também

socioeconômica propiciado

uma

elevada,

por

matrimoniais.

fato

vantajosas

“A

cavalaria

A

proposta

de

pesquisa

aqui

condição

apresentada articula-se com os fundamentos

que

teóricos

foi

alianças

em

parentesco

torno e

dos

indivíduo.

conceitos O

de

parentesco

ornamenta-se

constitui-se como um conjunto de relações

assim com um tal esplendor que se subtrai

socialmente definidas e construídas. Aliada

consuetudines

das

julgadas

ao conceito de parentesco está a noção de

indecentes et contra ordinem militarem,

família, não com as conotações do século

derrubando desta forma uma das barreiras

XIX, em que se confundia ordem de

que impedem o acesso à nobreza. Ela

parentesco com residência. Família é aqui

concede

entendida por nós pela relação de laços

mais

comuns

brilho

que

o

sangue”

(GÉNICOT, 2006, p. 284).

identitários,

afetivos

e/ou

biológicos

de

É com o prestígio cada vez maior que

interesses conjugados. Tomemos o enfoque

essa instituição vem ganhando que ela

dado por João Bernardo ao afirmar que os

consegue confundir-se com a nobreza, no

sistemas familiares sofreram modificações

quadro

Génicot

com a crise dos Carolíngios: “As formas de

ressalta, contudo, o cuidado que deve ser

indivisão, ou as formas de exclusividade na

tomado ao falar da fusão entre cavalaria e

herança, nomeadamente a primogenitura,

nobreza, pois isso não ocorre de forma

[...],

homogênea e igual nos diversos lugares; é

transformações operadas gradualmente num

preciso levar em consideração os planos

sistema em que todos os herdeiros eram

jurídico, social e político. Ainda segundo ele,

beneficiados pelas partilhas”. (BERNARDO,

essa fusão ocorre mais cedo nas regiões

1997,

impregnadas de romanidade. “No Norte, que

transformações operadas no quadro familiar

não

mundo

torna-se necessário o deslocamento dos

germânico e conserva viva a noção de

filhos segundos que partem em busca de

hierarquia e de seus graus, os generes

melhores

condições

alcançar

o

geral

esquece

da

a

aristocracia.

ideologia

do

resultaram,

p.

pelo

129-130).

tão

de

contrário,

Com

vida,

sonhado

de

essas

podendo

casamento,

415


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

camada superior dos bandos integrava os juvenes

conquistar terras e estabelecer-se em um

de origem aristocrática, ligados por elos de

senhorio.

fraternidade e que tantas vezes se subordinavam à

Numa época de constantes conflitos

autoridade de um filho segundo de uma família perante a qual as suas estavam em situação de

sociais e medos variados, como a Idade

vassalagem; na camada inferior contavam-se

Média, a família apresentava-se como uma

rurais

instituição seguradora de afirmação social e

marginalidade.

eram

lançados

Jogados

à

ter-se

excluídos

da

família

sem

entretanto haverem fundado um núcleo familiar próprio”. (BERNARDO, 1997, p. 131).

Faziam

camponeses agricultores

parte

desse

grupo:

se

alugavam

como

que ou

pastores,

guerreiros

da

aristocracia em busca de fortuna ou por feitos fáceis de armas, clérigos de ordens menores. De acordo com Bernardo, unidos pela mendicidade esses homens formavam famílias

artificiais,

que

reproduziam

as

hierarquias existentes: [...].

E tanto mais

fortemente

os

laços

se

estreitavam quanto, numa sociedade que pensava

Analisando a solidão e a emergência do

indivíduo

própria se reuniam em formas de família artificial. A

XI-XIII,

Duby

as pessoas se arriscavam fora da clausura doméstica, era ainda em grupo. “Todas as viagens eram feitas pelo menos em dupla, e se os companheiros não eram parentes, ligavam-se

pelos

ritos

da

fraternidade,

constituindo, pela duração do deslocamento, uma família artificial” (DUBY, 1990, p. 503). Ancorado

pelo

propiciado

pelo

sentimento

de

agrupamento

grupo familiar,

mesmo artificial, já que não biológico, o homem medieval garantia seu lugar na sociedade. A não pertença familiar denotava um grau de perigo representado por todos entregavam-se

família

séculos

artificiais pelos laços de fraternidade: quando

não

com

no

também assinala a formação de famílias

aqueles

estabelecer-se

social,

p. 135).

tudo em termos familiares, os filhos segundos que conseguiam

estabilidade

dos senhores sobre os rurais. (BERNARDO, 1997,

homens eram chamados de “juvenes” ou

encontravam

da

os germens de um restabelecimento do controle

dificilmente podendo constituir família, esses

abrangendo todos aqueles adultos que se

afastado

reconstituíam-se as hierarquias e desenvolviam-se

errância,

tratava de uma condição etária, mas social,

vadios,

precisamente entre as pessoas que mais pareciam

na

“pueri”, os jovens. Essa designação “não se

clérigos

desagregara os principais centros de autoridade e

encaixavam em seu quadro, visto que os dele

bandoleiros,

prostitutas. E assim, no âmago da crise que

mesmo de controle para aqueles que não se excluídos

tornados

que

à

margem ao

da

sociedade

banditismo

e

416

à


Neila M. de Souza

desestruturação

social.

Entretanto,

esse

combatendo como mercenário; constitui-se

quadro familiar, também significava um

assim

“aprisionamento da individualidade”, assim a

reconhecendo-se o indivíduo como tal, que

partir do século XI teria sido possível

mesmo consciente enquanto pessoa sabia

perceber

uma

da importância e da necessidade de formar

individualidade observada nos romances de

uma família, de fazer parte de um grupo, de

cavalaria, pelo desejo do guerreiro em

está vinculado a outros e ser por isso

conquistar e cultivar a fama, transformando

considerado pertencente ao corpo social. É

em identidade pessoal as características de

nesse cenário que a consciência aflora e o

sua prática guerreira. De acordo com Aaron

indivíduo passa a refletir sobre suas ações.

Gourevitch:

Essas questões a respeito do indivíduo são

o

nascimento

de

O problema do indivíduo comporta, acreditamos, dois aspectos diferentes ainda que muito ligados: o da pessoa e o da individualidade. A pessoa pode

uma

facilmente

valorização

identificadas

da

pessoa,

em

alguns

personagens da Demanda, como Lancelot,

ser definida como um “elo intermediário” entre

numa passagem em que ele encontra-se em

sociedade e cultura. O indivíduo torna-se uma

provação

pessoa ao interiorizar a cultura, o sistema de valores, a visão de mundo que são próprios de

quanto

a

sua

identidade

cavaleiresca. Sem ter o que comer e beber o

uma sociedade ou de um grupo social. Nesse

cavaleiro dispõe-se a devorar carne crua,

sentido, toda sociedade, em qualquer época, é

evidenciando o conflito entre a selvageria

feita de pessoas. De seu lado, a individualidade, é uma pessoa que se voltou a uma auto-reflexão e

dessa

condição

e

(GOUREVITCH , 2006, p.621)

Lancelot passa pela prova de sua existência.

do

século

XII,

com

o

desenvolvimento das cidades, da maior circulação de moedas, da melhoria das estradas, etc. há uma recorrência crescente no sentido de ganhar – para os cavaleiros isso se traduzia em ganho –, além de riqueza,

de

fama,

de

prestígio,

reconhecimento e admiração. Tudo isso era possível de ser adquirido pelos cavaleiros em torneios, servindo a um grande senhor,

meio

civilidade

cavaleiresca.

partir

no

sua

que se pensa como um eu particular, único.

A

Perdido

a

natural,

Sua herança literária é a de um cavaleiro cortês, educado, civilizado. No entanto, nesta altura da narrativa, ele deve enfrentar uma aventura que põe em xeque sua identidade. A partir de então, o cavaleiro pecador terá provado seu valor e seguirá no caminho da redenção, embora seu arrependimento não seja completo, pois volta a cometer os mesmos erros de traição com a rainha

417


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

seu

principais homens das redondezas e mesmo

processo de mudança, visto que numa

de lugares muito distantes desejavam que

transformação a passagem de um estado

seus filhos servissem a um grande senhor,

para

importante e poderoso. Assim, “os juvenes

Guinevere.

Mas

outro

características

isso

sempre

enfatiza

carrega

anteriores,

algumas

marcando

um

saídos da classe dominante integraram-se

processo de identidade e de alteridade.

muitas vezes na domesticidade guerreira dos

A identidade desse cavaleiro também pode

senhores de maior fortuna, de monarcas até,

ser sentida pela sua herança genealógica.

na esperança de virem um dia a ser

Na Demanda do Santo Graal não há

instalados em senhorias próprias, e para isso

detalhamentos sobre a ordem de nascimento

freqüentemente

dos filhos, assim não sabemos quem são os

distâncias”. (BERNARDO, 1997, p. 132).

primogênitos, exceto nos casos de Artur, o

A formação de grandes linhagens estava

pequeno, filho único do rei Artur, e de

também diretamente relacionada com o

Galaaz, também filho único. Mas, no caso de

estabelecimento de acordos de casamento.

Lancelot, podemos arriscar dizer que ele foi

Assim, além da coesão das famílias por

o primeiro filho da rainha Helena e do rei

consangüinidade, natural e irrefutável, havia

Bam, visto que era o principal representante

também a união por alianças matrimoniais,

de sua linhagem e o mais importante

que sempre selavam o fim de uma disputa

cavaleiro da corte arturiana: todos os outros

entre duas linhagens, reafirmavam o desejo

companheiros

de ligação entre dois grupos, promoviam

seguiam

suas

instruções,

atravessaram

econômicos

e,

grandes

consideravam suas atitudes e respeitavam

acordos

principalmente,

suas ações; nenhuma grande aventura

restabeleciam a paz. Contudo, todos os

estava, de fato, começada se não contasse

homens estavam ligados pelo parentesco

com a presença de Lancelot, e nenhum

espiritual, a comunidade cristã, reafirmado

torneio era importante o suficiente se dele

pelo batismo, um elemento estruturador

não participasse “o melhor cavaleiro do

daquela sociedade. “A consangüinidade,

mundo”.

definida por regras de natureza social e não

A linhagem fundamentava a vida e a

biológica, rege o recrutamento dos grupos de

organização do reino mítico de Artur, através

parentes, mas também a transmissão dos

dela estabeleciam-se hierarquias e por ela os

bens materiais e simbólicos” (GUERREAU-

418


Neila M. de Souza

JALABERT, 2006, p. 322). Este regime de

confirmação reiteram os laços de parentesco

parentesco era muito importante no meio

espiritual cristão. Assim, o batismo é um

cavaleiresco,

elemento

no

qual

os

grupos

de

crucial

de

estruturação

da

cavaleiros, distantes de sua família de

sociedade. “Ele permite pensar e organizar

origem, porque precisavam partir para uma

na prática a relação dos homens com Deus,

corte e aprender o manejo das armas,

assim como dos homens entre si por

ligavam-se

intermédio

por

laços

simbólicos

de

de

Deus,

e

fundamenta

a

camaradagem, convívio, divisão de tarefas;

instituição central e sacralizada que é a

passando

Igreja” (GUERREAU-JALABERT, 2006, p.

mais

tempo

com

pessoas

desconhecidas e aprendendo com elas a, de

322).

fato, enfrentar a vida, acabavam por formar

Sobre a consangüinidade temos dois

uma verdadeira família, em que todos eram

tipos de organização: os sistemas unilineares

“iguais” e possuíam um sentimento de

e os sistemas cognáticos. Os primeiros

pertença grupal. No entanto, essa união não

caracterizam-se pela filiação e transmissão

era assim tão harmônica, visto que as

por um sexo, excluindo o outro. Assim, no

disputas entre os próprios integrantes da

sistema patrilinear, por exemplo, só é

corte

socialmente aceita a relação através dos

eram

muito

comuns

e

com

homens. Nesse tipo de classificação de

consequências desastrosas. Ao tratar do conceito de parentesco

parentes e não-parentes formam grupos

não podemos deixar de assinalar o fato de

pequenos,

existir no Ocidente cristão desde o século IV

automaticamente fixado pelo nascimento,

um tipo de parentesco classificado pelos

que o autoriza a ter acesso ao nome, aos

antropólogos

ritual

bens, ao estatuto, aos privilégios, aos

(parentesco de sangue ou adoção). No

direitos diversos que uma filiação comporta,

Cristianismo, essa forma de parentesco é

mas que também o submete a obrigações e

evidente pela identidade religiosa, reafirmada

deveres” (GUERREAU-JALABERT, 2006, p.

por ritos de inserção do indivíduo na

322).

sociedade espiritual da qual faz parte, como,

indiferenciados, o processo de transmissão e

por exemplo, pelo batismo. Somado a esse

reconhecimento consangüíneo passam tanto

sacramento

pelos homens quanto pelas mulheres. Por

como

o

parentesco

apadrinhamento

e

a

“aos

nos

quais

sistemas

um

indivíduo

cognáticos

419

é

ou


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

conseguinte, não separação entre os grupos,

em nossa época, pode ser datado na Idade

visto que cada integrante está ligado ao

Média europeia.

mesmo tempo à linhagem de seu pai e à de

Acreditamos,

portanto,

que

esses

sua mãe, cruzando redes familiares, ligado a

conceitos (e provavelmente outros que se

parentelas

conjunto

fizerem necessários) serão cruciais para a

diverso de pessoas que têm um parente em

problematização do objeto de pesquisa aqui

comum. O sistema cognático, ainda em vigor

proposto

compostas

por

um

. Referências: BARTHÉLEMY, Dominique. A Cavalaria: da Germânia Antiga à França do século XII. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010. BERLLIOZ, Jacques. Monges e Religiosos na Idade Média. Lisboa: Terramar, 1994. BERNARDO, João. Poder e Dinheiro: do poder pessoal ao estado impessoal no regime

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420


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421


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

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422


RAINERUS: O COPISTA DE CAMBRAI E OS ARTISTAS NO MEDIEVO Pamela Wanessa Godoi 1 Angelita Marques Visalli 2 (Orientadora) Resumo: O trabalho artístico no medievo tem sido alvo de muitas discussões no campo da história. Os estudos que utilizam imagens como indícios para construção do conhecimento histórico, têm aberto caminhos na área de pesquisa da Idade Média. Esses estudos tem também, sido fundamentais para acrescentar novas discussões a respeito da devoção e da religiosidade medieval. As iluminuras, imagens pintadas nos manuscritos, são parte essencial da imagética que foi produzida durante o período medieval. Neste trabalho a discussão sobre os artistas que pintavam essas páginas, foi direciona para a iluminura de

Rainerus. Em um manuscrito conhecido como Homiliário de Cambrai, produzido no século XII, o copista pintou-se na primeira página do códice, e depois acrescentou seu nome a outra pintura de si, no fólio seguinte, beijando os pés do Cristo. Com a análise dessa miniatura, podemos acrescentar ainda mais elementos na discussão sobre o papel que o artista ocupou no medievo. Palavras-chave: iluminuras; artista; Cambrai.

1

UEL

2

UEL

423


Pamela Wanessa Godoi O estudo de imagem do período

Para Peter Burke as relações não-

medieval levantou a discussão para o uso

verbais de uma sociedade, podem ser mais

da

o

bem compreendidas quando analisamos a

uma

documentação imagética existente nessa

expressão relacionada a uma fazer menor,

sociedade: “Pinturas, estátuas, publicações

ou seja, a arte foi, por muitos anos,

e assim por diante permitem a nós,

considerada um fazer coadjuvante entre as

posteridade, compartilhar as experiências

expressões humanas.

não-verbais ou o conhecimento de culturas

palavra

“arte”.

renascimento

Usada

era

desde

considerada

A disciplina da história da arte,

passadas.” (2004, p. 16-17).

depois de institucionalizada, pouco se aventurou

nos

anos

medievais.Jean-

Esses humanos,

tipos que

de

relacionamentos

utilizaram

de

outras

Claude Schmitt sugere que houve um

linguagens, além da falada, ou da escrita,

grande desencontro entre a história e a

apontam para importantes caminhos sobre

história da arte no começo do século XX,

os sentimentos e os sentidos que os seus

atrasando em muito as possibilidades de

ambientes atribuíram a algo ou alguém. As

troca que essas duas disciplinas iriam

manifestações que não usaram de linguem

realizar anos depois (SCHMITT, 2007, p.

falada,

11-22).

intimamente ligadas ao universo mental

Foi doravante a possibilidade do

dos

podem

homens.

estar A

partir

ainda das

mais

imagens

encontro dessas disciplinas que consolidou

produzidas conseguimos perceber com

a imagem como objeto autônomo de

maior

estudo para história. A interdisciplinaridade

simbolismos,

as

praticada no campo intelectual hoje é o que

desprazeres,

entre

abre

expressões existentes nessas sociedades.

ainda

mais

caminhos

para

a

construção do conhecimento sobre as imagens e a partir delas.

número

de

especificidades

os

importâncias,

os

outras

tantas

Segundo Eliade (1952, p. 25) é possível perceber o encaminhamento dos

Segundo Martine Joly os registros

sentidos

que

uma

sociedade

ao

visuais ganharam ainda mais importância,

movimento religioso, ainda que ela não

pois “[...] a análise da imagem, inclusive da

seja de todo consciente. Isto é, paraEliade,

imagem

desempenhar

mesmo o produtor, está tão imbuído das

funções tão diferentes quanto dar prazer ao

relações existentes dentro de seu ambiente

analista.” (1996, p. 47).

que, ao produzir algo, ali expressa, deixa a

artística,

pode

marca que seu tempo deu ao que faz,

424


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

mesmo que não fosse essa sua intenção

que

primeira.

superadas, o trabalho da história com e das

Foi assim com Dante que, ao

existam

dificuldades

a

serem

imagens tem sido fundamental para a

escrever a Divina Comédia, marcou um

construção

espaço importante na literatura, e ainda

sociedade.

do

conhecimento

sobre

a

mais na expressão dos valores e símbolos

Não é diferente com o campo

existentes em seu tempo e lugar. É assim

medieval. A possibilidade de se olhar para

com as imagens, que podem nos indicar,

as

ainda que não fossem feitas com essa

acrescentou muitos elementos aos estudos

intenção, os valores que esses homens

do período. No entanto a palavra imagem

queriam dar a elas, ou mesmo como e o

foi confirmada pelos estudos recentes

que usavam para manifestar esses valores.

como muito mais adequada do que “arte”,

É ainda mais importante perceber

quanto se trata das produções visuais

que a imagem, independente do período

imagens

produzidas

no

medievo

feitas antes do Renascimento.

em que foi produzida, é expressão de um

Não podemos perder de vista que é

“feixe de significações” (ELIADE, 1952, p.

necessário distanciar a imagem feita e vista

16). Ela não é apenas uma verdade, nem

pelo medievo disso que hoje chamamos

se constrói a partir de um único referencial,

imagem.

Ainda

que

mas

recente,

vários

historiadores

tem

à

sua

disposição

tantas

seja

um

campo tem

se

referências quanto o seu produtor pôde ter.

dedicado nos últimos anos a pensar a

Portanto Eliade alerta:

imagem no medievo, e a partir de estudos

Traduzir

uma

imagem

numa

terminologia

concreta, reduzindo-a a um só dos seus planos de referência, é pior que mutilá-la: é aniquilá-la,

de casos percebemos que houve, já, a construção de alguns conceitos básicos

anulá-la como instrumento de conhecimento.

que não devem ser descartados no estudo

(ELIADE, 1952, p. 16).

dessas figuras feitas no período medieval.

Com

a

indicação

de

alguns

benefícios em determinados estudos, as imagens ganharam e ainda vem ganhando espaços no meio da pesquisa acadêmica; de vários tipos e épocas diferentes os documentos visuais têm sido recorrentes nos trabalhos de diversas áreas das ciências humanas, nos últimos anos. Ainda

A palavra “imagem” proveio do termo latino

imago

que

era

usado

pelos

medievais para definir a imagem. Contudo, Jean-Claude Schmitt alerta: Não

convém

semelhanças

se

deixar

fonéticas

e

enganar pelo

pelas

parentesco

etimológico. Quanto mais o vocabulário parecer próximo do nosso, que dele é herdeiro, mais devemos

desconfiar

a

priori.

A

diferença

425


Pamela Wanessa Godoi essencial é que a noção medieval de imago se

objetos figurados (retábulos, esculturas, vitrais,

inscreve num contexto cultural e ideológico bem

miniaturas, etc.), mas também às ‘imagens’ da

diferente do nosso. (SCHMITT, 2007, p. 12-13)

linguagem, metáforas, alegorias, similitudines,

No latim antigo imago pode ser

das obras literárias ou da pregação. Ela se refere

traduzida

como:

imagem,

também à imaginatio, às ‘imagens mentais’ da

retrato,

meditação e da memória, dos sonhos e das

aparência; mas sua construção em relação

visões (SCHMITT, 2006, p. 593).

à aparência é o mais destacado (ERNOUT; MEILLET, 1985, p. 309).

Ao se preocupar como era chamada a imagem medieval, Schmitt se deparou

Quando o Ocidente se encheu de

com um termo que significava também

cristianismo e a Bíblia passou a ser o texto

muitas outras coisas. Perceber a relação

base dessa parte do mundo, o termo

de tais coisas foi o que definiu o termo

imago, assim como a sociedade, tomou

imago como sendo o ideal para identificar

formas

os elementos figurativos produzidos no

cristãs

e

ganhou

importância

segundo os sentidos encontrados nos

medievo.

textos bíblicos. E é já nas primeiras linhas

A imago pode se definir como uma

desse livro que encontramos a imago em

representação visual de algo real, simbólico

uma importante função: designar o homem:

ou mesmo imaginário; ela procurou tornar

“Então disse Deus: Façamos o homem à

visíveis os sentidos humanos, nela tinha-se

nossa

a oportunidade de expressar não só o

imagem,

conforme

a

nossa

semelhança” (Gênesis 1, 26) 3. Para

Schmitt

a

“imago

visual é

o

existente,

mas

também

as

mentais

que

enchiam

de

construções

cristã”

sentidos as narrativas medievais. Assim as

(SCHMITT, 2007, p. 13). Em um período

imagens produzidas no período medieval

onde o ideal cristão foi base para todas as

têm suas características articuladas em

relações, a palavra que na Bíblia destacou-

meio à ambiguidade que a palavra imago

se para identificar o homem, é também a

nos oferece.

fundamento

que

foi

da

preferida

antropologia

para

denominar

as

produções visuais. Mas não só as produções visuais foram chamadas de imago: [...] no centro da concepção medieval do mundo e do homem: ela remete não somente aos

3

Em latim: “ait: Faciamus hominem ad imaginem

etsimilitudinemnostram”.

Neste universo de vários sentidos e funcionalidades, o papel de retrato, que a imagem medieval pôde vivenciar foi muito reduzido. Isso de deveu em muito a sua relação com a mimese. Apresentar a realidade, inferir na produção visual a construção da realidade material não era uma das necessidades medievais. Ou seja,

426


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

vemos que na Idade média a produção visual não busca uma apresentação do que era visto. A imagem era feita também a partir daquilo que queria que fosse visto. Contudo, a possibilidade de algumas representações

que

procuraram

visualmente produzir a imagem de alguém podem ser encontradas no medievo. Este trabalho

procurou

trabalhar

com

uma

delas 4. Em um manuscrito feito na primeira metade do século XII em Cambrai, região norte da França, encontramos na primeira página do códice a figura de um copista. Na página seguinte, ele novamente se pintou, e ali escreveu seu nome: Rainerus.

Figura 1 - Copista. BM Cambrai Ms 0528-fólio 01r.

No primeiro fólio do manuscrito, a imagem de página inteira chama bastante à atenção. Temos um homem, sentado em um banco, com os pés apoiados; curvado, ele olha para um livro que esta a sua frente, sendo segurado por um púlpito, onde dois corpos de leão se fundem a uma única cabeça para apoiar a base; no livro há as primeiras palavras escritas no Homiliário de Cambrai.

A discussão sobre o manuscrito que segue está

Nas mãos, o homem segura os

vinculada ao trabalho de pesquisa de mestrado em

instrumentos de escrita, apoiados em um

andamento, desenvolvida por mim no programa de pós-

fólio, já dividido ao meio com. É um copista.

4

graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina, a ser defendida em 2015 com título “A

É o copista deste códice.

PRESENÇA DIVINA NAS ILUMINAÇÕES MARIANAS:

Suas

estudo de miniaturas de Reims e Cambrai feitas no século

coloridas.Desde

XI e XII”, sob orientação da professora Angelita Marques

vestes os

são

muito

primórdios

do

Visalli.

427


Pamela Wanessa Godoi fortalecimento do movimento monacal, a

Isso também seria agravado pela

cor do hábito foi um elemento de distinção.

tonsura possível de observar em sua

No século XI e XII os tecidos coloridos ou

cabeça. Cortar o cabelo de forma a raspar

com ornamentos eram preferidos pela

a parte superior da cabeça no formato de

nobreza, e para se diferenciar os hábitos

um

de cores homogêneas foram preferidos.

ordenação de um religioso. Instituído desde

A cor preta foi a escolhida pelos monges cluniacenses; nem todos seguiram

círculo

fazia

parte

do

ritual

de

o século VI esse corte no cabelo era sinal de distinção entre leigos e clérigos.

esse caminho, até por que a tintura no

Portanto, caso fosse um leigo a

tecido era bastante cara, em muitos casos

peculiaridade de estar tonsurado, assim

tecidos rústicos sem tingimento nenhum

como, a de estar fazendo um livro e se

foram usados para a convecção dos

pintando nele, traria inúmeros problemas

hábitos.

bastante

As roupas coloridas do copista de Cambrai

são

muito

particulares,

incomuns

para

o

período.

Enquanto que a opção de termos a pintura

as

de um copista religioso, que preferiu ser

escolhas na pintura de suas vestes foram

caracterizado por roupas coloridas, parece

claramente distinguidas do que era a regra

ser

do uso de roupas por monges neste

confirmar.Atémesmo por que, já no século

momento. Ou seja, o copista optou por ser

XI há reclamações de monges que em vez

pintado com características diferentes do

de

comum nas vestimentas monacais. É difícil

tracionais, preferiam usar as vestes de

dizer se ele realmente se vestia assim.

seda como os nobres (SANTOS, 2006).

mais

plausível

usarem

As cores tão vibrantes e coloridas

No

seus

entanto,

e

possível

hábitos

é

difícil

rústicos

afirmar

de

e

a

das vestes do copista podem ser também a

identidade do copista só por suas roupas.

indicação de que esse homem era um

Mas são elas que indicam que outro

trabalhador leigo; ainda tão singular quanto

homem pintado no manuscrito também é o

um monge de roupas coloridas, seria um

copista. Somente ele aparece com essa

leigo se retratando em um livro litúrgico,

roupa:

não só por se pintar, o que era muito incomum, mas por ser um leigo que executou o trabalho, em um momento que ainda a copia e iluminação era em grande parte feita por monges.

428


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

nenhum

outro

manuscrito

com

sua

assinatura. Feito em pergaminho, esse livro mede 44,5 cm de altura por 33,8 cm de largura. Sua encadernação é de madeira, e possivelmente passou por modificações, já que muitos dos fólios apresentam um corte, principalmente na parte superior, que exclui parte do texto ou de imagens. Ou seja, em algum momento entre sua produção e hoje, as folhas foram cortadas, sem muito cuidado, para ficarem uniformes. Contém 274 fólios que, segundo a biblioteca, são todos da produção original. Neles é particularmente interessante notar que

a

pele

tem

muitas

indicações

singulares: há várias fissuras que podem Figura 2 - Rainerus. BM Cambrai Ms 0528-fólio 002r.

Na segunda imagem do manuscrito, O Cristo entronizado é figurado no interior da letra Q. O prolongamento da letra é o homem da primeira página, que segura o pé esquerdo e beija o pé direito de Cristo, ele tem a mesma roupa do copista e ao lado de sua cabeça, tonsurada se identifica como RAINERUS. Rainerus foi um nome bastante comum no século XII, e encontramos pelo menos seis homens diferentes que se chamavam Rainerus, ligados a Cambrai no século XII. Assim pouco se pode afirmar sobre esse copista que não nós deixou

ser encontradas nos fólios, algumas têm uma

espécie

de

costura

para

tentar

minimizar o furo, em outras há apenas o rasgo. Isso

acontecia

principalmente

quando a pele estava sendo tratada para ser usada como fólios; durante o período que se esticava e secava a pele, podia acontecer dela rachar. Como era comum ter muitas dificuldades para a obtenção do material, como preço e tempo de trabalho, era comum também, que mesmo as peles que

rachavam

fossem

usadas

em

manuscritos de menor importância. Feito para o uso durante a liturgia da missa, o Homiliário de Cambrai

429


Pamela Wanessa Godoi contém homilias para serem estudadas nas bibliotecas

e/ou

lidas

durante

A cidade, que está a 160 Km de

as

Paris, foi durante a antiguidade chamada

celebrações na igreja. Homilia é um texto

de Camaracum, aparecendo como ponto

preparado para um sermão que ao final

militar importante nos mapas do século IV.

apresenta uma moral para a história

Durante o século VII o poder imperial, da

evangélica. Seu estudo e sua leitura

casa

durante a missa faziam parte da liturgia e

cristianismo na região e desenvolveu a

ela própria, fazia parte da regra monástica

aldeia rural ali instalada com a construção

que atribuiu aos monges o cuidado com o

de igrejas e de um castelo. Já durante o

campo espiritual.

período Carolíngio, a cidade ficou no meio

dos

merovíngios,

estabeleceu

o

Este códice foi feito pela Abadia de

das disputas dos filhos de Carlos Magno.

Saint-André-du-Câteau. Ela foi uma abadia

Lotário II e Carlos o Calvo brigaram por

beneditina do norte da atual França,

essa região, até que os normandos em 850

consagrada pelo bispo de Cambrai, Gerard,

e os húngaros em 953 destruíram a cidade

em torno do ano de 1020 e confirmada pelo

e se estabeleceram na região.

imperador Henrique III em 1048. Gerard de

Diante

dessas

disputadas

Cambrai ou Gerard de Florennes foi um

envolvendo o poder politico mais elevado,

importante

bispo

os governantes locais tomaram-se fortes e

ativamente

esteve

do

século

envolvido

XI

que

com

as

foram

criando

redes

de

relações

e

discussões a respeito da “Paz de Deus”.

instituindo preceitos sem se alinharem

Foi aluno em Reims e mantinha forte

diretamente com o poder de imperadores e

contato com essa região.

bispos. Cada vez mais esses poderes

Possivelmente não chegou a ver o códice de Cambrai. Seu sucessor Gerard II diferente de muitos religiosos de seu período, defendeu ardentemente o celibato

foram se tornando simbólicos fora das suas regiões de origem. A

população

se

formou

na

coexistência de várias tribos, que ali foram

e esteve intimamente ligado a “questão das investiduras” 5.

bispos da Igreja. Já em Reims havia um grupo de religiosos que era favorável ao Estado e aceitava a

5A

questão das investiduras foi um conflito entre Igreja e

Estado

onde

alguns

religiosos

lutaram

contra

interferência do poder leigo durante a escolha de

a

superiores. A questão se alongou pelos anos até que eu

intromissão do Estado nas nomeações de cargos

1122 na Concordara de Worms chegou-se ao um acordo

importantes na Igreja. Gerard II de Cambrai era

que ao papa cabia a investidura espiritual e ao imperados

extremamente contra e acreditava que cabia apenas aos

a investidura temporal. Na pratica pouco resolveu, e as

próprios religiosos decidirem quem seria papa, abades e

discussões de poder voltaram a aparecer.

430


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

se instalando em meio a essas disputadas

usado para o estudo, há nele muitas notas

de poder ocorridas desde o fim do século

e glosas na lateral do texto.

IV. Pessoas que descendiam dos que

Mas se não há a identificação por

chegaram à região no tempo do Império

dedicatória a um destinatário específico,

Romano, outras que chegaram com as

temos uma peculiar identificação, a do

migrações de grupos que viviam mais ao

copista.

norte, outras ainda vindas de grupos

Aqui acrescentamos a discussão

oriundos do sul; juntos se fortaleceram,

sobre o papel que o artista desenvolveu

criando um grupo heterogêneo, mas que

na relação com sua obra.A ideia de artista

procuravam

não era entendida como hoje, e as

inibir

os

excessos

dos

senhores.

iluminações e mesmo os vitrais ou outros

Houve várias revoltas populares no

tipos de pinturas não eram vistos como

século XI, os bispos ora instituídos pelo

hoje, sua conotação não passava pela

poder Imperial, ora pelo Papa, estavam

ideia que temos atualmente de obras de

sempre em desacordo com a população,

arte.

mas

desvalorização da produção imagética

em

1077

o

bispado

reprimiu

Não

queremos

fortemente as revoltas, que, no entanto

medieval,

iriam

renascentistas,

apenas

oposição

relação

continuar

com

um

forte

poder

comunal até o século XII. Em meio a tantas discussões e mudanças no poder é difícil afirmar quem pode ter sido o mandatário do manuscrito feito em Cambrai. O comum era que fosse feito uma dedicatória, onde o comitente oferecia o manuscrito a alguém. Afirmar que as disputas políticas estavam diretamente relacionadas com a falta de dedicatória do livro é precipitado, contudo pode ser um dos elementos que explica não haver nenhum nome, em especial, que fosse o responsável pela produção do manuscrito. Certo é que ele foi

como em

invocar

uma

fizeram ressaltar ao

que

os sua hoje

entendemos como arte. Concordamos que: O historiador da arte que se dedica ao período medieval deve reconhecer que seu objeto de estudo, estritamente falando, não existe. Afinal, como é bem sabido, o termo "arte", tal como o concebemos atualmente, é uma construção que data do Renascimento. Seu quase equivalente latino, ars, não se reveste dos mesmos sentidos, sendo mais apropriado para designar, por exemplo, algum tipo de habilidade especial. Da mesma forma, um dos mais importantes termos dele derivado, artista, não possui exatamente o mesmo significado na Idade Média que na atualidade. Tampouco consegue-se resolver o impasse com a utilização do termo artesão, porque seria rebater um anacronismo com outro: a noção atual de artesanato é tão anacrônica

431


Pamela Wanessa Godoi para a Idade Média quanto a de arte. (PEREIRA, 2011).

Assim, aquele que produzia a imago, esteve constantemente no alvo de um problema de definição, que a Idade Média não

se

preocupou

designando-os próprios,

ou

em

pelos mesmo

resolver,

seus pela

nomes profissão

exercida, como pintor, escultor, pedreiro, arquiteto, entre outros. O

iluminador

desejava

como

recompensa fazer parte do esforço para agradar a Deus (CASTELNUOVO, 1989, p. 145-162). Sua autoridade em relação à obra não envolvia a noção de criação, que designava somente a prática exercida pelo poder máximo do criador maior: Deus (PEREIRA, p. 2011). O destaque estava na própria obra, não na autoria desta. Assim, a questão do indivíduo produtor não se apresentou como uma preocupação cotidiana do medievo, a função do produtor não acarretava

a

necessidade

de

ser

conhecido enquanto indivíduo, ou mesmo sendo parte ou dono da obra. Suas técnicas e seus conhecimentos deviam ser usados para, de forma coletiva, exaltar o divino, era um profissional que servia como instrumento para que a sociedade glorificasse a Deus. A produção não era feita em larga escala. Poucos homens conheciam as

técnicas para a produção das imagens, isso já os fazia diferentes dentro da sociedade e facilitava o conhecimento e mesmo o reconhecimento pessoal. Não necessitavam

diretamente

apresentação

vinculada

de ao

uma suporte

material da imagem. A produção feita em escalas

mais

restritas

apontava

que

técnicas específicas eram usadas em cada local ou mesmo por cada artista, tornando-os conhecidos sem que seus nomes fossem diretamente citados nas obras. Neste

contexto

percebemos

a

produção imagética até o final da Idade Média,

entrando

inclusive

no

Renascimento, onde a noção individual começa a se pôr com mais ênfase. Porém, percebemos que as exceções a partir

do

século

IX,

principalmente,

começam a ser gestadas e o nome do artista ou mesmo a representação da sua figura começa, ainda que discretamente, a aparecer. A historiadora Maria Cristina C. L. Pereira

trabalhou

apresentando criação

e

em autoria:

essa seu as

texto

questão “Sobre

‘assinaturas’

epigráficas no ocidente medieval” uma breve pesquisa a respeito da identificação de uma espécie de assinatura onde a imagem apresenta, junto ao nome do

432


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

produtor, a legenda “me fez”. Interessante

personagem em alguma cena específica

ressaltar como a

pintada no manuscrito. Porém, assim

[...] construção da frase se mostra como um desvio, ou mesmo uma tática – consciente ou não, voluntária ou não – que evita o discurso direto do criador. Ou seja, uma vez que a criação é uma atividade eminentemente divina, pretender imitá-la seria incorrer no pecado do orgulho. (PEREIRA, 2011).

Segundo Schmitt (2002, p. 597), a utilização dessa expressão “me fez”, nos remete a uma observação que apresenta como o produtor procura se esconder atrás de sua obra, esta fala em primeira pessoa, indicando que sua relação com o produtor é ainda a de sujeito, tratando-se de dois seres. Notamos também que:

como as inscrições citadas por Pereira, são exceções e se configuram posteriores ao século XI, no mínimo. Claro que o reconhecimento e o pagamento dos trabalhos faziam parte dessa

profissão,

porém

o

engrandecimento pessoal do artista não é claramente Muitos

notado

desses

nessa

sociedade.

profissionais

eram

disputados por seus excelentes trabalhos prestados; porém, na obra em si, seu nome como indivíduo não tinha espaço. Essa ideia, ao longo dos quatro

[...] no contexto da produção de imagens cristãs,

séculos, foi sendo modificada, e no século

geralmente a autoria implica pelo menos três

XV já percebemos grandes mudanças no

instâncias, sejam elas pessoas ou grupos de pessoas: o comitente, o conceptor e o executor.

que diz respeito às necessidade dos

E esquecendo-se também que muitas vezes ela

artistas em tornarem-se parte da obra

simplesmente nem é mencionada. (PEREIRA,

com sua assinatura efetivamente. No

2011).

Na

iluminação,

apresentação

de

uma

esse

tipo

relação

de entre

produtor e produção se dá, ainda que com dificuldade da própria figuração da cena. Em muitos casos temos a apresentação de um ou de mais de um personagem da instância citada por Pereira. Assim, temos cenas iluminadas em manuscritos onde encontramos o bispo responsável pela produção

do

manuscrito

pedindo

a

bênção da divindade representada, ou mesmo

do

próprio

executor

como

caso dos iluminadores, essa questão torna-se um pouco mais complexa, pois a arte produzida nos livros ainda não alcançava, mesmo nesse período, um grande reconhecimento como em outras artes: a pintura em afrescos, ou mesmo as telas. Nas iluminações, considerando e comparando a outros tipos de produção, a questão da posição do artista ainda podia ser percebida com dificuldade. Não há grandes nomes de iluminadores, mesmo porque muitos deles exerciam também

433


Pamela Wanessa Godoi outras funções de mais destaque, como a

visuais feitas por ele para se representar

de ourives (CASTELNUOVO, 1989, p.

em dois fólios do Homiliário de Cambrai,

145-162).

podem nos dizer mais sobre ele e sobre o

Perguntamo-nos então, qual era o papel de Rainerus, e como as escolhas

papel que os homens produtores de manuscritos tinham no período medieval.

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l'Ocident médiéval. Paris: Le Léopard d'Or, 1996, vol5, p. 7- 26.

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434


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

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435


A SISTEMATIZAÇÃO DO SABER E DO FAZER DO CAVALEIRO: UMA ANÁLISE DA OBRA O LIVRO DA ORDEM DE CAVALARIA, DE RAMON LLULL Paula Carolina Teixeira Marroni 1 Resumo: Este trabalho tem por objetivo apresentar a obra O Livro da ordem de Cavalaria (1279 – 1283) como uma sistematização do saber e do fazer do cavaleiro medieval sob a perspectiva do monge Raimundo Lúlio (1232 – 1316). O trabalho é pautado na perspectiva da História Social, consideramos como recorte temporal o século XIII no ocidente medieval, período de grandes transformações na sociedade medieval, tais como o renascimento das cidades e do comércio e a criação das Universidades. Após apresentar brevemente a vida de Lúlio no contexto do século XIII, a obra O Livro da ordem de Cavalaria é objeto de análise no que se refere à perspectiva luliana de que a cavalaria só seria uma ordem respeitada se seus conhecimentos fossem redigidos de forma teórica, com letras e ensinadas em escolas como as demais ciências. Concluímos que com esta obra, Lúlio se preocupou em demonstrar o conhecimento e o saber acumulados a respeito do ofício de cavaleiro em forma de teoria escrita. Palavras-chave: Ramon Llull; História da Educação; Medievo; Cavalaria.

1PPE/UEM

– GETSEAM – CAPES

436


Paula Carolina Teixeira Marroni

Este trabalho objetiva analisar as

mudar a concepção positivista de história e

proposições sugeridas pelo monge medieval

sugerir o que conhecemos hoje por História

Ramon Llull, ou Raimundo Lúlio (1232 –

Social. Este percurso advém da revolução

1316) no que se refere à sistematização do

documental pela qual a constituição da

saber e do fazer do cavaleiro na obra O Livro

história, enquanto disciplina, passou desde o

da Ordem de Cavalaria. Destacamos, no

fim do século XIX e início do século XX. Uma

ocidente medieval no século XIII, a função de

destas

cavaleiro como uma importante ocupação

perspectiva tradicional é o movimento dos

social,

monge

Analles (1929) conduzido por Bloch e

medieval. Consideramos este um manual de

Febvre, que se abriria às demais ciências

educação da cavalaria que apresenta a ótica

humanas e possibilitaria um aperfeiçoamento

de Lúlio com objetivo de sistematização do

metodológico que ao mesmo tempo alargava

conhecimento do saber e do fazer do

as possibilidades de objetos de estudo e

cavaleiro.

interesses históricos.

objeto

A

de

partir

reflexão

da

do

expressões

O

fundamentação

panorama

de

ruptura

de

com

a

transformações

metodológica pautada na História Social,

sociais, da vida no ambiente citadino, da

considera-se

de

crescente troca e comércio de mercadorias,

produção da obra, bem como a trajetória de

dos ofícios próprios da vida em sociedade no

vida do autor, suas relações sociais e a

século XIII e, principalmente, o florescimento

ambiência cultural à que ele pertence para a

das

compreensão do olhar que Lúlio apresenta

compreensão

para a educação do cavaleiro medieval.

intelectuais da época em sistematizar o

Castro

importante

contexto

auxiliam

preocupação

na dos

educação

escolas, confiram grau de honra às ciências.

convencional limitavam-se, antes da década

Nesse período, segundo Oliveira (2007), o

de 1960, a descrever os fatos. Em meados

renascimento das cidades, a intensificação

dos anos 60, em meio a tentativas de

do comércio, as navegações, entre outros

rupturas, novas perspectivas para a história

acontecimentos, auxiliaram para que novas

e historiografia da educação emergiram.

relações se apresentassem na sociedade.

Estas perspectivas ocorreram de forma a

Cogitamos que, para Lúlio, a educação,

história

da

que

da

nos

conhecimento, de forma que os livros, as

e

aponta

Universidades

a

historiografia

(1997)

o

437


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

pautada nos livros, no saber escrito, pode

ao estudo da doutrina cristã e também da

trazer reconhecimento à ordem de cavalaria

língua árabe. Partindo do propósito de

assim como as outras ciências.

converter os infiéis à fé cristã por meio do

Para compreender este processo, retomemos, Raimundo

brevemente, Lúlio.

Nascido

Espanha),

filho

a

vida

em

de

Maiorca

diálogo e da fundamentação racional, Lúlio dedicou-se

ao

aproximadamente

estudo nove

do

árabe

por

com

um

anos,

nobre

sarraceno que teria sido comprado por ele

possuidor de terras que fazia parte da corte

para, como escravo, ser seu preceptor na

do rei Jaime I, cresceu no ambiente de corte.

língua.

(Palma,

de

um

Lúlio foi pagem e mordomo nesta corte, e foi

Eco (2001) salienta a relação direta

educado desde criança para a carreira das

que existe entre a perspectiva luliana de

armas. Não há muitas informações a respeito

aprendizado da língua do infiel com o

da sua vida durante sua juventude, mas

contexto de sua infância em Maiorca, que

alguns indícios sobre sua vida pessoal antes

agregava

da conversão e da escrita de suas mais de

cristãos e muçulmanos, na época, chamados

200 obras podem ser encontrados na obra

por Lúlio de sarracenos. Convém lembrar

Vida Coetanea (1311). Esta obra, ditada aos

que Lúlio também escreveu em latim e em

monges da ordem Cartuxa de Valverde, é

catalão e, por serem consideradas suas as

atribuída como a autobiografia de Raimundo

primeiras obras em expressão escrita em

Lúlio e muitos dos dados sobre sua vida são

catalão, Lúlio é considerado pai desta língua.

retirados da mesma. Ela indica que Lúlio foi

Lúlio

a

convivência

escreveu

entre

sobre

judeus,

diversos

casado, teve filhos, e aos 32 anos de idade,

assuntos. Sobre animais, no Livro das

teve um conjunto de visões que o fizeram

Bestas, sobre a educação das crianças para

converter-se ao cristianismo com profunda

a fé cristã em A Doutrina para crianças,

veemência, a ponto de desligar-se de sua

sobre a conversão de um gentio em Félix ou

família

o Livro das Maravilhas, entre outras obras.

e

empreender

diversas

viagens

missionárias. Após

São mais de 200 obras escritas em latim e sua

conversão,

que

teria

catalão arcaico, compreendendo diversas

acontecido por receber cinco visões do

esferas da vida da sociedade do século XIII.

Cristo crucificado, Lúlio passou a dedicar-se

Anjos, amigos, provérbios, explicação do

438


Paula Carolina Teixeira Marroni

mundo para crianças, explicação do mundo

ensinadas em escolas e em livros. Este

para adultos não cristãos não convertidos e

elemento de nova ordem é apresentado por

explicação

adultos

Lúlio ao descrever que a cavalaria não tem a

convertidos a outra religião deveriam, para o

devida honra por não ser ensinada em livro

autor, serem feitas de formas diferentes pois,

nem possuir escolas para isso.

do

mundo

para

para o adulto que já possuía uma fé, não

O Livro da Ordem de Cavalaria

bastava somente falar da fé cristã. Era

demonstra o código de conduta do cavaleiro,

necessário um fundamento racional, ao

sua função, a honra que deve ser prestada a

ponto de fazer com que uma pessoa

ele, como funciona o processo de entrada na

abandone uma fé por outra fé.

cavalaria, o exame que o escudeiro deve

Um indício de que ele sabia o

realizar, a cerimônia de recebimento da

cotidiano da vida do cavaleiro medieval é a

cavalaria e informações sobre a origem da

obra O Livro da Ordem de Cavalaria (1232-

função de cavaleiro. Cabe ressaltar que Lúlio

1316). Este livro é considerado por vários

buscava a valorização do cavaleiro em

autores (entre eles COSTA, 1997, 2000,

relação à sociedade.

2001; ZIERER, 2008, STARLING, 2009) um

A obra possui um Prólogo redigido em forma de narrativa, que se completa com

manual de educação do cavaleiro medieval. Para nós, no ambiente do século XIII,

sete capítulos. Neste Prólogo Lúlio narra o

no qual as cidades se revitalizavam, o

encontro

comércio

mercadorias

buscava tornar-se cavaleiro e um velho

a

é

ermitão que já havia sido cavaleiro em sua

importante pois indica a tentativa de Lúlio em

juventude. Ambos conversam durante um

sistematizar um saber não antes descrito em

longo tempo, e o velho ermitão percebe que,

livros, exceto pelas novelas de cavalaria.

em sua opinião, o jovem escudeiro não sabia

Lembramos

as

o que era necessário saber para se tornar

universidades salpicavam de intelectuais que

cavaleiro e pertencer ao que ele chamava de

passavam

estrutura

Ordem de Cavalaria. Para ele, muitas

tradicional da igreja. O crescimento da

informações faltavam ao jovem, e assim

ciência,

e

floresciam

a

troca

cada

que, a

das

aumentava

vez

a

de mais,

neste

questionar

obra

contexto, a

de

um

jovem

escudeiro

que

instituições

universitárias,

como a ele, aos outros cavaleiros. Por isso

importância

das

os cavaleiros estavam se turvando ao mal e

ciências

439


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

perdendo

as

características

que

os

Não sendo ensinada em livros, não

colocavam em evidência, tais como levar a

era conhecida, e por isso a cavalaria era

palavra de Deus aos infiéis, defender a fé

desmerecida entre as outras artes, ou entre

Cristã e as pessoas mais frágeis.

os outros afazeres. Essa observação de

Essas informações, que iam desde a

Lúlio nos é muito importante, uma vez que

origem da cavalaria Cristã, das obrigações

nos direciona para a ideia de que O Livro da

dos cavaleiros, de como deve ser o processo

Ordem de Cavalaria pode se tratar da

de avaliação de um escudeiro para saber se

teorização a qual Lúlio se refere, e da sua

ele possui características necessárias para

preocupação

ingressar na ordem, de como seria o

conhecimento adquirido a respeito de um

processo de recebimento da ordem de

fazer não antes descrito em livros.

em

sistematizar

o

cavalaria, do significado que cada arma e

Esta situação gera um conflito na

vestimenta do cavaleiro possui em relação à

narrativa, que se resolve com a entrega de

simbologia da Igreja Cristã e das virtudes, da

um livro, por parte do velho ermitão, ao

honra que deveria ser feita ao cavaleiro, não

jovem escudeiro. Este livro deveria ser lido

eram mais elementos de conhecimento dos

pelo escudeiro e levado por ele para o reino,

cavaleiros em geral.

para ser distribuído a todos os outros

Isso ocorria, segundo Lúlio, porque a

cavaleiros. Este livro continha todas as

arte da cavalaria não era ensinada em

informações

escolas ou em livros como as outras

cavaleiro. Este era o próprio Livro da ordem

ciências:

de cavalaria, que se apresenta nos capítulos

Ora, se os clérigos têm mestre e estão em escolas para serem bons, e se há tantas ciências que se encontram em forma de doutrina e letras, injúria

necessárias

ao

ofício

do

seguintes. Sendo assim, o livro que lemos seria o mesmo livro a que o jovem escudeiro

muito grande é feita à Ordem de Cavalaria porque

estaria lendo durante o processo. As paginas

não é uma ciência ensinada pelas letras e por não

de todo o corpo do livro fazem parte,

ter escolas como têm as outras ciências. Logo, por isso, aquele que compõe este livro suplica ao

indiretamente, da história narrativa, uma vez

nobre rei e à toda sua corte que está reunida pela

que Lúlio nos conta que o escudeiro leu o

honra da Cavalaria, que seja satisfeita e restituída

livro todo e agradeceu imensamente ao

a honrada Ordem de Cavalaria, que é agradável a Deus (LÚLIO, 2000, p.21)

ermitão por ensinar a ele os ofícios da ordem de cavalaria:

440


Paula Carolina Teixeira Marroni

O cavaleiro entregou o livro ao escudeiro; e

defender. A primeira parte é o começo de

quando o escudeiro acabou de ler, entendeu que o

Cavalaria; a segunda, do ofício de Cavalaria; a

cavaleiro é um eleito entre mil homens para haver

terceira, do exame que convém que seja feito ao

o mais nobre ofício de todos, e tendo então

escudeiro com vontade de entrar na Ordem de

entendido a regra e a Ordem de Cavalaria, pensou

Cavalaria; a quarta, da maneira segundo a qual

consigo um pouco e disse: - Ah, Senhor Deus!

deve ser armado o cavaleiro; a quinta, do que

Bendito sejais Vós, que me haveis conduzido em

significam as armas do cavaleiro; a sexta é dos

lugar e em tempo para que eu tenha conhecimento

costumes que pertencem ao cavaleiro; a sétima, da

de Cavalaria, a qual foi longo tempo desejada por

honra que convém que seja feita ao cavaleiro.

mim sem que soubesse a nobreza de sua Ordem

(LÚLIO, 2000, p.3)

bem a honra em que Deus pôs todos aqueles que

Segundo suas palavras, que são

são da Ordem de Cavalaria (LÚLIO, 2000, p.11)

Observamos que, de acordo com a narrativa constante no Prólogo, após entrar em contato com o conhecimento sintetizado a respeito do fazer da cavalaria, o escudeiro, que aspirava a cavalaria, passou a conhecer a ordem de uma forma mais profunda que antes de lê-lo. O conteúdo da obra, pelo qual Lúlio faz uso da intertextualidade, é o próprio conteúdo

dos

sete

capítulos

do

livro.

Justificando a existência de sete astros no céu para que existam sete capítulos, Lúlio constrói sua teoria enfatizando os elementos que considera importantes para a ação ou o oficio da cavalaria. Lembramos que para Jerkovic e De Boni (2012), os sete astros conhecidos no século XIII eram o Saturno, Júpiter, Marte, Vênus, Mercúrio, o Sol e a Lua. Vejamos as palavras de Lúlio: Por significação dos VII planetas, que são corpos

apresentadas logo após a ação de graças e oferenda do livro a Deus, sua teoria é dividida em sete partes e estas devem, ao final, provar como os cavaleiros possuem honra e senhorio para governar as pessoas e as defender. Conforme Lúlio apresenta sua teoria nos sete capítulos, compreendemos a importância da fé Cristã, da virtude, da honra e da nobreza no

ofício da cavalaria.

Percebemos também, no decorrer da obra, como

Lúlio

salienta

a

importância

do

cavaleiro possuir a fé cristã como foco principal, mas não precisar deixar de realizar suas atividades de cavaleiro, como jogos e torneios. Essa questão da vida cotidiana do cavaleiro,

que

inclui

relações

amorosas,

jogos, o

torneios

diferencia

e do

pensamento de outros autores que também,

celestiais e governam e ordenam os corpos

segundo Flori (2005), teorizaram a respeito

terrenais, dividimos este Livro de Cavalaria em VII

da

partes, para demonstrar que os cavaleiros têm honra e senhorio sobre o povo para o ordenar e

cavalaria.

sacralização

Para da

este, cavalaria

a

crescente medieval,

441


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

principalmente após o século XI, influenciou

mais como monge do que como um

a elaboração de tratados a respeito da

cavaleiro.

relação entre a ética cristã e a cavalaria

diferença afirmando que Lúlio evidencia uma

medieval. O grupo, denominado por Flori

perspectiva nova, a de um cavaleiro que

(2005)

era

possui todas as características de força e

formado por Bernardo de Claraval (1090 –

coragem mas que sabe que deve dedicar-se

1153), Jean de Salisbury (1115 – 1180) e

à defesa da fé cristã em primeiro lugar. Não

Raimundo Lúlio (1232 – 1316).

precisa afastar-se dos torneios, justas, nem

de

“teóricos

da

cavalaria”,

Para ele, quando se refere aos “teóricos

da

cavalaria”,

afirma-o

por

Costa

(2000)

salienta

esta

mesmo das relações amorosas, mas deve fazê-lo pautado em preceitos da fé cristã.

considerar que este grupo foi responsável

É possível perceber a preocupação o

por tentar inserir nos ideais cavaleirescos,

autor com a escrita dos saberes relativos à

elementos da doutrina cristã. Pautado nas

cavalaria como forma de receber a aceitação

teorias de Flori (2005), Starling (2009) afirma

da sociedade. No século XIII, período de

que os teóricos da cavalaria buscavam

renascimento urbano e de estabelecimento

ordenar as ações dos cavaleiros através da

de novas relações entre os seres humanos,

criação de um estilo de vida novo, onde os

a sociedade precisava de modelos a serem

cavaleiros poderiam se reconhecer através

reproduzidos

de um objetivo comum, de forma que a ética

valorização dos afazeres cotidianos. Este

cristã dentro da cavalaria auxiliava no

período

controle das ações cavaleirescas.

transformações na forma de pensar do

foi

e um

buscava período

também marcado

a por

Entretanto, mesmo sendo considerado

homem medieval que, segundo Oliveira

o terceiro teórico da cavalaria por Flori

(2011), aos poucos, ia libertando-se de uma

(2005), cronologicamente atrás de Bernardo

visão de mundo pautado somente nas

de Claraval e de Jean de Salisbury, que

explicações divinas.

escreveram, respectivamente, Elogio à nova

Os debates que conferiam ao homem

Milícia e Policráticos, Lúlio se difere dos

a unidade e individualidade da forma de

demais, uma vez que os dois primeiros

pensar, travados principalmente por Tomás

tratavam do cavaleiro em seu aspecto

de Aquino (1225 – 1274) e Boaventura de

missionário e cristão, comportando-se muito

Bagnoregio (1221 – 1274), contemporâneos

442


Paula Carolina Teixeira Marroni

a Lúlio, mostram que o período em quem

não é ensinada nem em escolas e nem pelos

Lúlio vivia e escrevia suas obras é marcado

livros escritos, o que, para ele, faz com que

pela preocupação com sistematizações de

seja tratada como prática inferior a outras

saberes

práticas ensinadas em escolas e em livros.

e

reflexões

a

respeito

das

necessidades da sociedade. Lúlio

tentou

responder

Esta preocupação reflete a ambiência de que a

estas

Lúlio fez parte, o ocidente medieval no

necessidades por meio da sistematização

século

XIII,

e

a

preocupação

com

a

dos saberes que conhecia a respeito da vida

sistematização do conhecimento a respeito

do cavaleiro. Percebemos que o autor

dos saberes e fazeres do homem medieval.

preocupa-se com uma ocupação social que

Referências: LÚLIO, Raimundo. A Doutrina para Crianças (1274 – 1276). Tradução: Prof. Dr. Ricardo da Costa e Grupo de Pesquisas Medievais UFES III. Vitória, Marfil, 2010. LÚLIO, Raimundo. O livro da Ordem de Cavalaria. Trad. Ricardo da Costa. São Paulo: Giordano, Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull), 2000. LÚLIO, Raimundo. O Livro das Bestas. Trad. Ricardo da Costa. São Paulo: Editora Escala, 2006. LÚLIO, Raimundo. Vida Coetania. Tradução: Luísa Costa Gomes. Disponível em: http://www.ramonllull.net/sw_studies/l_br/t_luisacosta.htm Acesso em: 25 jun 2013 CASTRO, Hebe. História Social. In: CARDOSO, Ciro.Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. (orgs).

Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. COSTA, Ricardo da. O Livro da Ordem de Cavalaria. Tradução, notas, prefácio, autor e obra, cronologia de obras. São Paulo: Giordano, Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull), 2000 COSTA, Ricardo da. Ramon Llull (1232-1316) e o modelo cavaleiresco ibérico: o Libro del Orden de Caballería. Revista Mediaevalia. Textos e Estudos 11-12 (1997), p. 231-252. Gabinete de Filosofia Medieval da Faculdade de Letras do Porto e Faculdade de Teologia da Universidade

Católica

Portuguesa

(ISSN

0872-0991).

Disponível

em:

443


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

http://www.ricardocosta.com/artigo/ramon-llull-1232-1316-e-o-modelo-cavaleiresco-iberico-olibro-del-orden-de-caballeria Acesso em 20 abr 2012 ECO, Umberto. A busca da língua perfeita. Tradução de Antonio. Angonese. Bauru: Edusc, 2001, 458 pp. FLORI, Jean. A Cavalaria. A origem dos nobres guerreiros da Idade Média. Trad. Eni Tenório dos Santos. São Paulo, Madras, 2005. JERKOVIC, Jerônimo. Notas. In: BOAVENTURA, São Cardeal (1217 – 1274). O itinerário da

mente para Deus. Tradução e notas de Jerônimo Jerkovic e Luis Alberto de Boni; prefácio de Alessandro Ghisalberti. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012 OLIVEIRA, Terezinha. Os mendicantes e o ensino na universidade medieval: Boaventura e Tomás de Aquino Anais Associação Nacional de História – ANPUH XXIV Simpósio Nacional De História, São Leopoldo, 2007. OLIVEIRA, Terezinha. Ensino e debate na universidade parisiense do século XIII: Tomás de Aquino e Boaventura de Bagnoregio. Prefácio de Jean Lauand. Maringá: Eduem, 2012. STARLING, B. P. . A ética cristã e o ideal cavaeiresco no Livro da Ordem de Cavalaria de Raimundo Lúio. Revista tempo de conquista, v. n. 6, p. 01-16, 2009 ZIERER, Adriana. O modelo Pedagógico de Cavaleiro segundo Ramon Llull. In: OLIVEIRA, T. e MACHADO, M. C. G. (Org.). Educação na Historia. São Luiz, MA. Editora UEMA, 2008.

444


CULTURA ALIMENTAR E SAÚDE PREVENTIVA NA CATALUNHA DO SÉCULO XIII: AS REGRAS DE SAÚDE A JAIME II DE ARNAU DE VILANOVA (1308) Renato Toledo Silva Amatuzzi 1 Resumo: Na região da Catalunha no século XIII, destacou-se a figura de um importante médico/físico Medieval, Arnaldo de Vilanova. Famoso por tratar a saúde de reis e papas, este homem das ciências foi precursor da medicina prática e preventiva. Neste trabalho, será analisada a obra “As Regras de Saúde a Jaime II”, escrita em 1308, destinada ao rei de Aragão, Jaime II. Neste pequeno regimento, disposto ao longo de 18 capítulos, minha análise delimitara-se aos oito capítulos dedicados exclusivamente ao alimento, assim como sua função preventiva e nutricional aliadas ao prazer de degustar. Esta fonte revela ao leitor a riqueza do cardápio medieval catalão, e através dele é possível explorar as transformações culturais e sociais que aconteciam em tempos de grande estabilidade na Europa da Baixa Idade Média. Palavras-Chave: Arnaldo de Vilanova; História da Alimentação; Saúde Preventiva.

1

Mestrando em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, orientado pelo Prof. Dr. Antônio Paulo Benatte

(UEPG) e co-orientado pela Prof. Marcella Lopes Guimarães (UFPR). Professor da rede pública de ensino e especialista em História Antiga e Medieval pela ITECNE (Curitiba).

445


Renato Toledo Silva Amatuzzi “Apenas o cidadão comum se contenta com o que o território fornece. A mesa do príncipe deve oferecer de tudo e suscitar maravilha somente ao

Al-Andaluz, Córdoba e Toledo tornaram-se famosos pela preservação, tradução e

se vê-la.” (Cassiodoro, século VI d.C)

difusão de textos canônicos da medicina

O objetivo deste trabalho é identificar

arábica na Península Ibérica. Nos centros

a relação estabelecida entre dietética,

catalães

saúde preventiva e culinária na medicina

idiomas: o latim, na literatura teológica e

medieval. Como fonte, foi utilizado o

filosófica, e o árabe, predominante nos

regimento de saúde catalão “As Regras de

“saberes da natureza” (Goldfarb, 1991: 34).

Saúde a Jaime II” (1308), traduzido

É digno de nota, também, o número de

recentemente para o português, da autoria

intelectuais dedicados a traduzir, preservar,

do físico/médico Arnaldo de Vilanova. Este

compreender e, inclusive, aplicar ao próprio

conjunto de regras possui ao todo dezoito

ofício obras clássicas da medicina islâmica.

capítulos, no qual oito são dedicados

Autores como Qusta Ibn Luqa (820-912),

exclusivamente

Al-kindi (801-8873), Avicena (980-1037) e

para

os

alimentos

e

de

ensino

utilizavam-se

dois

bebidas. O regimento era destinado ao rei

Averróis

Jaime II de Aragão, que na época, solicitou

traduzidos durante os séculos XII e XIV,

os serviços do médico para o tratamento de

tornaram-se

sua hemorroida. Devido o caráter universal

médica.

das regras, advertências e sugestões, que variam

desde

banhos,

equilíbrio

de

(1126-1198), frequentes

largamente na

literatura

Exemplo de tradutor e pensador que encontraremos nesse contexto é o médico

humores até sugestões de cardápio, as

catalão

regras de saúde revelam ao leitor toda a

iniciado seus estudos na Espanha, seguiu

complexidade

depois para Salerno (Itália), transferindo-se

e

riqueza

salutar

e

alimentícia do universo catalão medieval. A Catalunha no século XIII era uma região

espanhola

rica

e

de

grande

Arnaldo

de

Vilanova.

Tendo

posteriormente para Montepelier (França), onde deu aulas, vindo a residir, por fim, nas cortes

onde

seus

serviços

eram

diversidade cultural. Ali coexistiam três

convocados, muitas vezes para tratar da

culturas distintas: a judaica, a cristã e a

saúde de papas e reis. Arnaldo traduziu

islâmica. O convívio desses três povos por

vários textos originais árabes para o latim,

aproximadamente sete séculos foi talvez o

o

principal responsável por uma intensa

enriquecer sua formação como médico

produção intelectual, inclusive no campo do

prático (Carreras i Artau, 1954: 12). O

saber médico. Os califados mulçumanos de

método

que

certamente

prático,

que

contribuiu

para

valorizava

446

a


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

experiência

como

indicações de grandes nomes da época,

habilidades essenciais do bom médico, foi

colocaram-no a serviço do rei Jaime II de

uma corrente médica que ganhou prestígio

Aragão, que lhe confiou vários partos de

entre

como

membros de sua família, a começar pelos

consequência do encontro entre a medicina

da rainha, Dona Branca (1280-1310), além

popular europeia e a atividade médica

de colocar em suas mãos, também, a

monástica (Crosseti, 2009: 42).

saúde de seu sogro, Carlos II, rei de

os

e

a

séculos

observação

XII

e

XIII,

Arnau é um dos precursores de uma

Nápoles.

medicina que privilegia a experiência e a

Arnau se responsabilizou por fazer

razão como instrumentos importantes no

um regimento de saúde 2 especificamente

tratamento salutar e na cura. Integrando a

para o rei, assim como havia feito outros

anamnese do paciente, incorpora a seus

para o Papa Clemente IV e para o exército

estudos o diálogo com diversos campos do

do reino de Aragão durante o Cerco de

conhecimento,

Almería

sobretudo

as

Ciências

(1308).

Este

regimento

foi

Ocultas, a Astrologia, a Quiromancia e a

traduzido para o romanesco pelo também

Dietética.

intelectual

catalão

Sariera.

Neste

Apesar de recorrer frequentemente

documento medieval é possível perceber

aos mais diferentes e inusitados saberes, a

as diversas características que marcaram a

medicina medieval mantém forte vínculo

Idade Média central, tanto nos saberes

com

médicos quanto na cultura alimentar.

a

Teologia,

responsável

pelos

cuidados com a alma, que, habitando o

Logo no prólogo de “As Regras de

corpo, é no entanto eterna e objeto dos

Saúde a Jaime II”, Sariera ressalta a

cuidados de Deus. Deste modo, nas

relação

palavras de Carreras i Artau, convém ter

medicina e o ofício da cura:

sempre presente que “o médico é um servo

entre

“Como

Deus

Deus,

conhecimento,

Todo-Poderoso,

cheio

de

misericórdia, criou o homem, que não tem

de Deus, devendo invocar a Ele quando

nenhuma possibilidade de fazer algo nem

não houver mais solução plausível ao

qualquer razão a não ser pelo poder, e o poder

alcance da Ciência e da Razão” (Carreras i

não é nada sem a saúde, e a saúde não é nada sem a igualdade de compleição, e a igualdade de

Artau, 1947).

compleição não é nada sem o temperamento dos

Arnau foi um grande nome da medicina medieval, favorito entre reis,

2

papas e nobres durante toda sua vida. Sua

destinadas a manter a saúde e a prevenir enfermidades –

ampla experiência médica, bem como

de um indivíduo, de um determinado grupo, de uma

O regimento de saúde era um conjunto de prescrições

comunidade, etc.

447


Renato Toledo Silva Amatuzzi humores, por isso, Nosso Senhor Deus, ao criar o homem, quis amá-lo e inspirá-lo com a graça acima de todos os animais, e o fez à Sua

o

documento

pudesse

tornar-se

universal.

que

Embora as orientações referentes à

pudesse ter o temperamento dos humores para a

nutrição só apareçam no capítulo VIII, ao

semelhança,

dando-lhe

remédio

para

conservação da saúde iluminada pelo desejo dos sábios médicos, e, dentre os demais filósofos e

longo

dos

capítulos

introdutórios

a

mestres da Medicina, o mui sábio Arnau de

alimentação correta é sempre mencionada

Vilanova, acima de todos os mestres, pois

na

conhece e ordena quantas maneiras a saúde é conservada.” (Sariera, página 99-101).

Tentarei, neste trabalho, analisar as relações que Arnau de Vilanova estabelece entre a alimentação e a saúde preventiva, ambas envoltas pela Teoria dos Humores. O

Regimento

de

Saúde

possui

dezoito capítulos e, na versão original, 29 páginas. Utilizarei a versão de 1947, da Editora Barcino, transcrita e prefaciada por Joaquim

Carreras

i

Artau.

Ali

encontraremos, ao longo de cem páginas, um

que

compêndio

instruções,

de

dirigidas

advertências ao

rei,

sobre

e a

sua

relação

com

as

atividades

cotidianas, como o repouso, os banhos e os exercícios físicos, sendo indicadas e proibidas diferentes comidas em cada uma dessas situações. No capítulo IV destacase a importância de bem se alimentar, enfatizando-se as medidas

e porções

ideais, assim como os períodos do dia e o que beber durante as refeições para melhor aceitação do alimento pelo corpo. Não somente a mastigação e a apreciação do sabor são consideradas importantes, mas também a bebida, sobretudo o vinho e o

pigmentum. 3 IV.VII- Do beber: (...) A esse respeito, deve-se

importância da manutenção da saúde e o

evitar que o vinho seja rascante, ou ardente, ou

equilíbrio dos humores corporais, por meio

espesso e doce. No verão deve-se preferir o vinho branco, e no inverno o rosado e tinto. Em

de exercícios, banhos, descanso, a pureza

relação à substancia, deve ser sempre clara e

do ar e, principalmente, a dietética.

suave, sabor simples,, agradável e de odor

As prescrições dietéticas de Arnau

suavíssimos (...) Assim, convém sempre evitar

são sua resposta a um pedido do rei Jaime

vinhos mesclados com gesso ou cal, e aqueles

II de Aragão, que sofria de hemorroidas. O regime, muito detalhado, foi tão bem aceito que passou a ser divulgado por todo o

3

O consumo anual de vinho e pigmentum – um tipo de

vinho suavizado com mel, pimenta e canela – chegava a ultrapassar os 270 litros per capita entre as camadas

reino de Aragão e, em seguida, pelo

populares; a elite palaciana consumia, em média, o dobro

território catalão, omitindo-se, porém, o

(Cortonesi, 2009: 417). Esses números elevados se

capítulo XVIII - “Das hemorroidas”, para

explicam, parcialmente, pela má qualidade da água potável da época, que induzia os habitantes das cidades a bebê-la sempre misturada ao vinho e assemelhados.

448


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo que são conservados em vasilhas e fechados

não tiver manchada, a água é saudável (Arnaldo

com pez.” (Vilanova, Pág ?, grifo nosso).

de Vilanova, 1992, pág. 132-133)

Embora o vinho não fosse restrito

Além de perseguir o equilíbrio de

somente à nobreza, uma série de regras

humores e a saúde, a preocupação com a

cercava o seu consumo, a começar pela

alimentação e com a qualidade da bebida

qualidade das uvas, depois as técnicas de

tinha outro objetivo. Ao contrário do que

retirar

pela

afirma o senso comum contemporâneo, o

fermentação, armazenagem e as adegas

homem medieval não via com bons olhos a

onde seria armazenado. Na Itália, as

figura do glutão. O homem extremamente

regiões

Gênova

gordo afrontava os padrões da estética

destacavam-se pela alta qualidade da

medieval, habitava um universo moral

produção vinícola, e na França eram

cheio de culpa, era inapto para a guerra e a

notáveis as regiões de Champagne e

batalha,

Bordeaux. Por mais distante que possa

considerado grotesco (gros).

seu

da

suco,

passando

Borgonha

e

tinha

pouca

mobilidade,

era

parecer a Idade Média, esses mesmos

Ao longo do regimento percebe-se a

critérios de escolha de um bom vinho –

preocupação constante do médico com a

incluindo a região de sua produção - são

obesidade, contrariando a crença moderna

observados até hoje pelos conhecedores

de que o homem medieval valorizava a

dessa antiquíssima bebida.

obesidade e as formas desproporcionais

Ainda sobre o que se beber, em um

como símbolo de poder e riqueza:

segundo Regimento de Saúde, o Regimen

“a comida que é recebida sem o desejo da natureza é conduzida pelo ventre e pelos outros

Castra Sequentium (1310), Arnau destaca

membros como um fardo e se corrompe mais

a importância de se identificar a água

que se transforma, já que, quando é recebida,

potável, sugerindo, para tanto, técnicas a

não há esforço do corpo em alterar sua substância em caso haja, o faz muito tibiamente.”

serem adotadas durante o colhimento de

(Vilanova, Pág. 117).

cisternas e de poços artesianos: Se for numa cisterna, não utilize a água, mas, se

Mais adiante, Vilanova alerta sobre

for num poço, você deve esvaziá-lo e drená-lo

os perigos do excesso de refeições diárias,

primeiro. Se você não pode fazer tal exame,

com consequências tanto biológicas quanto

então umedeça completamente um pano fino e

religiosas, pois a gula é um dos pecados

de linho branco na água e dobre-o livremente sem apertar; após dobrá-lo, deve amarrá-lo com

capitais e a Igreja Católica estimulava

uma corda, suspendê-lo ao sol ou no ar, e ,

periodicamente

quando

calendário litúrgico. Além do mais, comer

secar,

desdobrá-lo.

Se

aparecer

manchas nele, independentemente da cor, com certeza a água deve estar contaminada, mas, se

em

excesso

o era

jejum, um

conforme

o

“comportamento

449


Renato Toledo Silva Amatuzzi

tipicamente pagão” (Freedman, 2009: 164-

recomendações de Arnau de Vilanova

165), o que era repudiado pela instituição

acima citadas.

católica:

“Por

frequentemente

isso, ficam

os

glutões

doentes

e

Os capítulos VIII ao XVII das Regras

não

de Saúde dedicam-se especialmente à

chegam a uma velhice natural” (Vilanova,

alimentação; não apenas ao ato de comer,

Pág. 118-119).

mas também às técnicas, condimentos,

Novamente o autor volta a advertir

modos

de

preparo,

temperos,

contra a obesidade, um “excesso de

armazenamento e mesclas de carnes,

superfluidades e inflamação entre a carne e

massas,

a pele” (Pág. 115), alertando também sobre

Encontramos então, a seguinte divisão nos

os perigos do excesso de peso:

capítulos: VIII – Grãos; IX – Legumes; X –

“(...) os que se alimentam de poucas refeições chegam a uma velhice avançada e saudável, enquanto que os que se afanam a engolir uma

frutas,

legumes

e

bebidas.

Frutas; XI – Hortaliças; XII – Raízes; XIII – Carnes; XIV – Derivados de animais; XV –

miríade de refeições, ou bem morrerão antes da

Peixes; XVI – Condimentos e por último o

velhice, ou bem sua velhice será prematura e

capítulo XVII – Do ato de beber.

imundíssima,

como

acontece,

muito

frequentemente, com os habitantes do norte.”

Dentro de cada capítulo há uma

(Vilanova, Pág. 120).

série de subdivisões, onde se detalham os

Circulavam pelas cidades, nessa

tipos e espécies frutíferas, tipos de carnes,

época, as Ordens Mendicantes, entre as

legumes etc., o que nos proporciona uma

quais se destacava a franciscana, que

visão mais ampla da riqueza e variedade

defendia um estilo de vida frugal, ascético e

alimentar, além das sofisticadas técnicas

moderado. Seus preceitos constituíam uma

de preparo e combinações da Idade Média.

crítica à secularização sofrida pelo Clero

Se verdadeira a hipótese de que as

com o enriquecimento das abadias e

prescrições dietéticas de Arnau guiavam-se

monastérios

e

na

pela disponibilidade alimentícia do reino de

alimentação,

que,

outrora

moderada,

Aragão e da Catalunha, as subdivisões

excessiva.

(Vigarello,

capitulares de “As Regras de Saúde a

tornara-se

com

agora

mudanças

2012: 41).

Jaime II” oferecem ao historiador um

Desta forma, no século XIII as

panorama detalhado da cultura alimentar e

pressões sobre o corpo obeso provêm

da arte culinária medieval, se levarmos em

tanto do campo moral-religioso quanto das

conta que ao ato de comer associa-se todo

exigências

saúde

um conjunto de rituais, normas, hierarquias

preventiva – o que se evidencia nas

e aparatos técnicos que tornaram os

da

cavalaria

e

da

450


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

estudos dos hábitos à mesa uma eficaz

comidas; 8- do leitão; 9- do assado com

forma de analisar o comportamento do

fígado de porco e especiarias; 10- das

homem de outrora (Montanari, 2008: 386).

carnes brancas; 11- do coração e de outros

A cultura alimentar medieval, assim

membros. 12- do fígado; 13- do fígado de

como em todos os períodos históricos,

cabrito; 14- do cérebro do cabrito; 15- do

transforma o alimento num signo de

coração do cervo; 16- do ventre da galinha

distinção social. Na Idade Média não seria

e do ganso; 17- das orelhas, da cabeça e

diferente: com o surgimento de uma

dos pés; 18- dos pulmões e 19- dos peitos.

burguesia enriquecida, manifesta-se no

Da Idade Média até a modernidade

interior das cidades a necessidade de se

sempre houve leis que limitavam a caça

estabelecerem

somente

distinções

em

também relação

à às

mesa

origens

aos

reservando

a

membros

da

carne

determinados

de

nobreza,

campesinas dos novos senhores; uma

animais para o consumo de um grupo

destas maneiras foi a culinária (Cortonesi,

seleto da população. Além do mais, a caça

1998: 410).

era considerada um nobilíssimo esporte e

O alimento mais nobre na dieta dos

uma atividade de lazer para os nobres.

nobres, ricos e reis é a carne, mas não

O grande destaque que os homens

qualquer carne, e sim a carne vermelha, de

desse tempo conferem à carne deve-se a

carneiro, cordeiro, cervo e corça. A seguir

mítica de que esta foi por muito tempo

vêm as carnes brancas - de faisão, ganso,

cercada. Assada, temperada, sangrenta,

capão - e alguns peixes, sendo esta última

suculenta e farta, a carne é, desde muito

limitada

tempo,

às

datas

religiosas.

Arnau

um

símbolo

de

poder,

força,

subdivide o capítulo XIII do seu regimento

riqueza, potência sexual, energia vital e

em 19 tópicos: 1- das carnes que podem

uma

ser utilizadas em todas as épocas do ano;

alegria - a de comê-la fartamente ao redor

2- das carnes mais convenientes no verão;

da mesa. Numa sociedade dirigida por

3- das carnes mais convenientes no

guerreiros e cavalheiros, a carne ajuda a

inverno; 4- do cervo e da corça; 5- do

reforçar a lenda que relaciona sua ingestão

galeirão-comum e dos patos; 6- das aves

à força física e aos poderes duradouros

domésticas; 7- das aves domésticas, de

(Riera-Melis, 2009: 407).

das

principais

manifestações

de

como se devem preparar as outras carnes,

Ao longo das Regras de Saúde,

quando devem estar mortas antes que

Arnau também fala sobre os grãos –

sejam

capítulo VIII – estes, por sua vez, são de

comidas,

e

como

devem

ser

451


Renato Toledo Silva Amatuzzi fundamental

importância

na

hora

de

Percebe-se aqui quão importante é o

preparar os pães, que tem um capítulo

papel do cozinheiro, pois ele possui a

dedicado somente a eles. Os grãos devem

mesma sistemática do saber médico, além

ser colhidos frescos da terra e são de

do domínio da técnica, do preparo e da

grande proveito a cevada, o centeio, o

ideia de que o prazer e a saúde devem

milho, a aveia, o joio, a sêmola, o amido e

caminhar juntos (Montanari, 2013:13-14).

a aletria (Vilanova, Pág. 134-139). Também

No capítulo IX o físico catalão dá

neste caso a distinção social se faz

destaque a grãos como o feijão e o grão-

presente: o pão consumido pela nobreza é

de-bico,

o pão branco, com sal, a cuja massa

técnicas

misturam-se legumes, milhete, cevada,

primeiro subitem do capítulo ensina a

ervilhas e pedaços de carne, para que fique

preparar estes grãos para que fiquem mais

mais saboroso e nutritivo.

saborosos e sejam melhor aproveitados.

A

prescrição

referente

ao

geral: quando forem preparados os legumes, isto é, sem carne, deve-se fritar uma cebola redonda

são

e branca, cortada bem picadinha e frita com muito azeite doce, e só depois acrescentar o legume. No fim, deve-se colocar leite de

prisão de ventre e o ressecamento do bolo mortais

de

no

são os menos danosos. Esta deve ser a regra

dadas ao rei para ajudá-lo a combater a inimigos

temperos;

dentre esses três, os feijões redondos e brancos,

quente ou duro (Vilanova, pág. 138-139).

fecal,

e

feijões redondos, os grãos-de-bico e as favas, e

muita farinha, não devendo ser consumido provavelmente,

preparo

suas

legumes menos danosos aos corpos, estão os

com pouca levedura, pouco sal e sem

indicações,

de

sobre

IX.I – Dos feijões e dos grãos-de-bico: Dentre os

pão

estabelece que o mesmo seja fabricado

Estas

estendendo-se

amêndoas. Isso é especialmente necessário

suas

caso se comam favas, sobretudo favas frescas.

hemorroidas. Arnau recomenda, para isso,

(Vilanova, pág.139).

a substituição da levedura – mais pesada e

Encontramos

ali,

também,

a

fermentada – pela cevada (Capítulo VIII,

recomendação de se ingerir caldo do feijão

subitem VI):

e grão-de-bico todas as noites, pois isso

Mais proveitosa ainda é a comida feita de

“limpa as veias chamadas capilares (as

cevada, cozida até que se quebre, e que depois

quais estão no fígado e nas vias urinárias).”

seja lavada com muita água fria e cozida e amassada com muito leite de amêndoas até que

(Vilanova, pág.139). A ingestão desses

seja indistintamente encorpada. Tal comida é

caldos

muito conveniente àqueles que têm hemorroidas

especialmente os órgãos vitais, e o prepara

pulsantes. (Vilanova, pág. 136).

aquece

o

corpo

por

dentro,

para dormir, além de ser “a água louvada

pelos sábios” (pág.139).

452


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Adiante, Arnau passa a discorrer

ameixas e cerejas, figos e uvas, pêssegos

sobre as frutas, o capítulo mais longo de

e damascos, pepinos, melões e melancias,

seu Regime, com 37 subitens sobre uma

pêssegos e romãs doces, e os frutos das

ampla variedade frutífera, assim como suas

sorvas com nêsperas não podem ser

combinações, limpeza, escolhas, mesclas

comidos juntos, pois causam prisão de

com outros alimentos e, principalmente, os

ventre, flatulência, febres, sudorese e

cuidados da ingestão, pois como adverte,

aumentam a cólera.

“não é proveitoso ao corpo temperado

O Regime indica, também, frutas

substituir a comida pela fruta, a não ser

capazes de amenizar as altas temperaturas

medicinalmente” (Vilanova, pág. 141).

do verão quente e seco da Catalunha:

O Regimento estabelece, também, agora no capítulo X, regras que o leitor

pêssegos,

ser

consumidas

laranjas,

Como já observamos acima, na

e

Idade Média a ideia de boa alimentação

conhecimento

estava intimamente associada à ingestão

devido sobre sua natureza, maduras, sem

de altas quantidades de carne; consumiam-

vermes; não se deve comer diversos tipos

se, sobretudo proteínas, em detrimento das

de

é

frutas, legumes, hortaliças e verduras.

seu

Devido ao desconhecimento das vitaminas,

aspecto. Consumidas em excesso, sem

dos nutrientes e dos seus efeitos sobre o

observação

corpo

ordenadamente,

fruta

ao

indispensável

com

o

mesmo observar

dessas

moderada

peras,

nêsperas, etc.

deve observar antes de ingerir frutas. Elas devem

cerejas,

tempo,

e

sempre

regras,

o

as

frutas

(as

propriedades

alimentos

exemplificado abaixo no caso das amoras:

recente), não havia como estabelecer

X.IV- Das amoras: Exceptuando as amoras, as bem maduras a ponta de estarem negras, porque

uma

descoberta

dos

causarão ao corpo sérios danos, como é

quais não devem ser consumidas até que sejam

são

químicas

muito

equivalências, e as frutas, por isso, eram indicadas ou banidas tendo em vista,

são alimentos de aranhas, sujam a apodrecem o

exclusivamente, o bom funcionamento do

sangue,

intestino.

engendram

e

multiplicam

bubos,

carbúnculos e também bubos negros. Por isso, nas regiões quentes e úmidas, no ano de época

Comer e beber exigem, para Arnau,

a

a observância de um conjunto de regras

pestilência, caso o fluxo do ventre não seja

destinadas a fazer com que o corpo

de

amoras

reinas

a

epidemia,

isto

é,

embargado (Vilanova, pág.143, grifo nosso).

Nos próximos subitens do capítulo X Arnau indica as combinações danosas:

aproveite ao máximo o alimento, estabilize os humores e livre-se das pestilências. Vão nessa direção as advertências sobre se

453


Renato Toledo Silva Amatuzzi alimentar

além

daquilo

que

o

corpo

consegue suportar:

videiras, amoras, ameixas, cerejas, sêmola, pães

Capítulo IV. I: Qual hora é conveniente para comer: Uma coisa é o corpo que sente a necessidade de comer, pois manifestadamente

brancos

com

grãos,

legumes,

hortaliças, vinhos brancos, tintos e rosados, cebolas,

cenouras,

carnes

de

leitão,

tem fome. Por isso, é mais necessário àqueles

cabrito, cervo, corça, galeirão, ganso,

que têm o corpo temperado e abundante de

peixes, enfim, uma grande variedade de

sangue que somente comam quando tem fome, já que a natureza do corpo não recebe o que não

alimentos das mais diversas categorias

deseja, pelo contrário, a recusa e, por isso, a

compunha

comida que é recebida sem o desejo da natureza

possibilidades de cardápios, combinações

é conduzida pelo ventre e pelos outros membros como um fardo e se corrompe mais do que se

e

uma

técnicas

mesa de

com

múltiplas

armazenamento,

transforma (...)”. (Vilanova, Pág.116)

evidenciando a riqueza alimentar da Idade

Arnau também adverte sobre o ato

Média central, que se afastava dos longos

de se alimentar apressadamente, contra o

tempos de penúria dos séculos X e XI e

qual apresenta dois bons motivos: quando

experimentava um período de estabilidade

mastigado

e consolidação das instituições.

devagar,

o

alimento

será

corretamente triturado e não provocará

As Regras de Saúde a Jaime II,

“injurias a natureza” (Vilanova, pág 117),

como vimos, nada mais é do que uma

nem terá como efeito “inflamar o ventre”

coleção

(pág.118);

que

preservar a saúde e atingir uma velhice

devoram apressadamente o alimento, sem

saudável. As regras pretendem propiciar ao

degustar, apreciar e mastigar com calma,

rei Jaime II uma refeição rica, variada e

assemelham-se à imagem de “loucos”

saudável, que previna doenças, equilibre

(Pág.118) e de pessoas que se comportam

os humores, aqueça os órgãos e assegure

“de modo indiscreto” (pág.118)

longa vida àquele que rege e governa o

além

Pêssegos, nozes,

avelãs,

disso,

aqueles

melancias, figos

secos,

melões, uvas

de

de

prescrições

destinadas

a

seu povo, pois a saúde do rei é a esperança de saúde do povo.

Referências: ARNAU DE VILANOVA. Obres catalanes. Volum II: Escrits Médics (org. Pe. Miquel Batllori, S. I.). Barcelona: Editorial Barcino, 1947. ALFONSO-GOLDFARB, A. M;PERASSOLLO, M.A.P.: O Universo cultural e científico

valenciano durante os séculos XIII e XIV e a contextualização da obra de Arnaldo de

454


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Vilanova. In: História, Ciência, Sáude – Manguinhos, Vol: II (3): 32-43, Nov. 1995 – Fev.1996. CARRERAS I ARTAU, Joaquim. “Pròleg. Les obres mèdiques d’Arnau de Vilanova”. In: ARNAU DE VILANOVA. Obres catalanes. Volum II: Escrits Médics (org. Pe. Miquel Batllori, S. I.). Barcelona: Editorial Barcino, 1947, p. 09-51. CORTONESI, Alfio. Cultura de subsistência e mercado: alimentação rural e urbana na Baixa Idade Média. In: ________ (Org). História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. Pág. 409-421. COSTA, Ricardo da; SILVA, C. Matheus. O Regimen Sanitatis (1308) de Arnau de

Vilanova (c.1238-1311) e sua prescrição de boa dieta. Palestra proferida no I Seminário Capixaba de Humanidades Médicas, evento realizado no Centro Universitário do Espírito Santo (UNESC), Colatina/ES, 11 de Outubro de 2013. DESPORTES, Franços. Os ofícios da alimentação. In: FLANDRIN, Jean-Louis e MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. Pág. 422-436. FLANDRIN, Jean-Louis e MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. FREEDMAN, Paul (org.). A História do Sabor. São Paulo: Editora Senac, 2009. MONTANARI, Mássimo. Comida como cultura. São Paulo: Editora Senac, 2008. RIERA-MELIS, Antoni. Sociedade Feudal e alimentação (séculos XII-XIII). In: FLANDRIN, Jean-Louis e MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. Pág. 387-408. VIGARELLO, Georges. As metamorfoses do gordo: História da Obesidade. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012.

455


IMAGEM DE DOM SEBASTIÃO COMO ELEMENTO EDUCATIVO: REPRESENTAÇÃO MENTAL E ICONOGRÁFICA – SÉCULO XVI Sandra Regina Franchi Rubim 1 Resumo: Esse texto analisará as imagens vinculadas ao rei D. Sebastião durante o século XVI, em Portugal, como elemento educativo. Pretendemos verificar de que forma essas imagens, impulsionadas pela Igreja e pelo Estado Monárquico influenciaram na divulgação de uma figura ideal de rei, tanto laico quanto cristão, em um momento de consolidação do poder real dos Estados nacionais no período moderno. Portugal, nesse período, estava em uma situação de crise e de indefinição política, em virtude disso, disseminou-se a crença mítica de um rei que iria governar como uma postura de rei cavaleiro-cruzado que oportunizasse a continuidade da Dinastia de Avis. Acreditamos que, nesse sentido, a linguagem imagética oportunizava a formação de uma mentalidade coletiva de novos conceitos, bem como valores morais, sociais e políticos. A abordagem metodológica será a da História Social e a da História da Educação, pois oferecem a oportunidade de compreendermos as produções humanas, em especial a linguagem imagética e a educação, como resultantes das múltiplas vinculações articuladas pelas relações sociais. Consideramos, desse modo, que a análise da imagem, como uma das formas de expressão do homem, permite-nos a compreender como se construíam as relações e, por conseguinte, as práticas formativas.

Palavras-chave: História da Educação Medieval e Moderna; Monarquia Absolutista Portuguesa; Linguagem imagética.

1

PPE/UEM-GETSEAM

456


Sandra Regina Franchi Rubim Introdução

da sensibilidade, tornam possível identificar

Convivemos de forma cada vez mais

as posições éticas, estéticas e políticas que

intensa com um cenário em que circulam

o indivíduo, como autor da obra, assume

pessoas,

principalmente,

diante das lutas históricas do presente em

imagens, as quais nos transmitem, de

que vive, como aprovação ou negação, que

forma

diversas

são as formas de se relacionar com o

informações e mensagens. Como temos

mundo. Com efeito, entendemos que a

que

essa

capacidade intelectiva do homem nos dá a

produção infinita, melhor será aprendermos

possibilidade, como potência de ação, de

a avaliar uma infinidade visual, sua função,

deixarmos a posição de observadores

sua forma e seu conteúdo, pois a criação e

passivos para ocupar a de expectadores

a

e

críticos, participantes e exigentes diante da

da

leitura de textos, imagens, cidades, rostos,

produtos

explícita conviver

ou

implícita,

diariamente

apreciação

privilegiam

e,

da

arte

o

com

possibilitam

aperfeiçoamento

sensibilidade humana. Assim, por meio da arte,

poderemos

compreender

gestos, cenas, pintura, dentre outros.

as

Para

alcançar

esse

objetivo,

transformações que ocorrem em nosso

entretanto, faz-se fundamental que todo o

tempo histórico. As criações artísticas

sujeito

precisam

estabeleça

sentidos

ser da

fruídas, sutileza,

despertando da

os

sensibilidade

do

conhecimento contato

com

histórico diferentes

produções de épocas passadas e atuais,

estética, do belo, do conhecimento e da

mergulhe

visão crítica de mundo. Nesse sentido,

observando e identificando informações

confirma

48):

nas mais diversas formas de linguagem

“Apreciaremos melhor a arte do passado e

que lhe são apresentadas pelo avanço

a do presente se lhe conhecermos melhor

tecnológico

a

nossa

fotografias, objetos, jornais etc.). Esses

sensibilidade estética só pode se refinar

procedimentos, por sua vez, oferecem ao

pelo estudo”. Como a leitura de imagens

historiador a possibilidade de ele ampliar

implica

seu

Francastel

significação

(1993,

humana

compreensão,

[...]

p.

entendimento

e

olhar,

no

universo

(imagens,

textos,

questionar e

da

articular

as os

ciência,

mapas,

fronteiras

significação, é preciso ir além do que se vê,

disciplinares

saberes,

romper com a superficialidade do visível e

buscando a inteligibilidade do real histórico.

imediato, aprofundar o diálogo sugerido e

Mediante às considerações tecidas,

implícito na obra. A apreciação e a análise

pretendemos, nesse trabalho, refletir sobre

de imagens, por meio do conhecimento e

a linguagem imagética como expressão da

457


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

construção mental e social que fundamenta

Nessa perspectiva, trabalharemos

as práticas educativas e as identidades

com

a

análise

de

humanas. Nesse sentido, pretendemos

representações

analisar a imagem de D. Sebastião (1554-

veiculadas no século XVI, em um momento

1578), como representação do Cristianismo

de consolidação do poder real dos Estados

e da constituição do Estado Português,

nacionais, no período moderno.

do

imagens

rei

de

messiânico,

influenciando na divulgação de uma figura

Pretendemos, assim, refletir alguns

ideal de rei, tanto laico quanto cristão, no

aspectos sobre o arcabouço teórico, nas

período em que se delineava o processo

diferentes

social de mudança entre o medievo e a

configurações

modernidade.

relação a esse personagem emblemático.

Destacamos que nossa abordagem

Nessas

linguagens, que

condições,

se

das

inúmeras

delinearam entendendo

em a

da linguagem imagética de situa nos

linguagem imagética como transposição

campos da História Social e da História da

das necessidades e das aspirações dessa

Educação, os quais têm como uma de suas

época, interessa-nos perceber a função

finalidades a compreensão das origens das

educativa

instituições,

dos

dessas imagens e a possibilidade da

pensamentos que permeiam a educação

construção de uma representação social

contemporânea.

pela

mítica desse rei. Salientamos, assim, que

por

compreendemos que a educação vincula-

crermos em sua potencialidade de educar

se com o pensamento de homem e de

os homens e, em consequência, participar

sociedade que se constitui em cada

de forma considerável no processo de

período histórico. Relacionamos, então,

formação social. Acreditamos que cada

essa contestação com o conceito de

momento

uma

imagem proposto por Schmitt (2007, p. 12):

pensar,

“[...] Pelo termo ‘imagem’, designamos em

correlacionada à maneira como se constrói

todos os casos a representação visível de

a existência do ser humano. Desse modo,

alguma coisa ou de um ser real ou

podemos

imaginário”.

linguagem

dos

conteúdos Nossa

imagética

histórico

determinada

forma

afirmar

que,

e

escolha

se

justifica

produz de

por

meio

das

que

perpassa

Nesses

a

termos,

veiculação

podemos

imagens, constroem-se discursos cujos

inferir que o termo imagem pode ser

sentidos difundem-se com uma intenção

considerado tanto na dimensão material

formativa para uma construção social.

quanto no mental. Observamos que a constituição de uma imagem mental e

458


Sandra Regina Franchi Rubim material é precedida por uma construção

Entendemos

mental.

desenvolvimento do Estado Moderno e da

Dessa

surgimento

e

o

Monarquia Absolutista não ocorreram de

necessidade de se considerar a pluralidade

um dia para o outro; o processo de sua

e a diversidade das ações humanas desse

formação atravessou séculos até chegar ao

período, situando-as em um contexto mais

momento em que, de fato, se consolidou na

amplo,

sociedade. Torna-se necessário, assim,

seja,

ressaltamos

o

a

ou

maneira,

que

nos

campos

social,

simbólico e cultural 2.

conhecer o processo de constituição da

Imagens de representação social do rei D.

monarquia portuguesa, do surgimento do

Sebastião

Reino de Portugal no século XII, do a

aumento crescente do poder régio e da

consolidação da nação portuguesa, é

especificidade com que se estruturou o

preciso um estudo de longa duração 3.

Estado lusitano ao longo dos séculos

Para

compreendermos

seguintes. 2

Para Geertz (1989) o conceito de cultura denota um

padrão,

transmitido

historicamente,

de

significados

Segundo Sousa (1993) a origem do

corporizados em símbolos, um sistema de concepções

Estado

herdadas, expressas em forma simbólicas, por meio dais

Reconquista (séc. XI ao XV), processo que

quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem

ocorreu

o seu conhecimento e as atitudes perante a vida. A

português na

está

Península

relacionada Ibérica

com

à o

cultura compartilhada possibilita a sociabilidade nos

objetivo de expulsar os mouros (árabes)

agrupamentos humanos e oferece inteligibilidade aos

que haviam se fixado na região, a partir do

comportamentos sociais.

séc. VIII. Tanto a autonomização política

3

Entendemos que na História, as transformações não

ocorrem apenas pela vontade de uma pessoa, mas estão

quanto o alargamento territorial do reino de

intimamente

Portugal, foram resultantes da luta contra

ligadas

às

circunstâncias

econômicas,

sociais e culturais. Concebemos a história e as ações humanas da perspectiva de longa duração, já que a

os

muçulmanos

que

dominavam

a

história de curto prazo tem suas limitações no sentido de

Península. Ao mesmo tempo em que se

apreender e explicar as permanências e as mudanças. O

expandia o território para o Sul, D. Afonso

conceito de história de longa duração surgiu com o

Henriques e os seus sucessores dividiam

historiador Fernand Braudel (1902-1985), cujo artigo A

Longa Duração foi publicado na revista Annales, em 1958.

os seus esforços no povoamento, na

Seu objetivo era demonstrar que o tempo avança em

organização administrativa, econômica e

diferentes velocidades. Segundo ele, a história situa-se

social das áreas conquistadas, elementos

em três grandes ritmos de duração ou três histórias: a micro-história, uma história que atenta ao tempo curto, ao média

história em profundidade, uma história estrutural de longa

amplitude, com duração de alguns decênios, ou seja, uma

duração, que põe em causa os séculos (BRAUDEL,

história conjuntural, que segue um ritmo mais lento e a

1972).

indivíduo,

ao

acontecimento;

a

história

de

459


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

fundamentais para a consolidação das

em torno da Coroa, de prestar vassalagem

fronteiras do Reino.

ao rei. O principal instrumento de que se

Para Amaral (2000), nesse sentido,

serviram os reis da dinastia de Borgonha

a concentração de poder político pelo rei

para superarem os senhores foi a guerra

fez-se ancorado em valores e práticas

externa, cuja liderança lhes possibilitava

feudais, ou seja, ao invés do modelo “rei-

conquistar terras para o Reino. E, para

aniquila-poder-dos-senhores

feudais”.

construir o Estado, sublinhamos o papel

Observa-se que o rei se fortalecia na

que a justiça régia adquiriu sobre as

medida em que se tornava um senhor com

jurisdições locais, nas diferentes regiões do

mais

poder

historiadores séculos

do

que

nos

XIII

crescentemente

e

os

outros.

Os

Reino. Se a Coroa não dispunha de

revelam

como,

nos

aparelho administrativo e funcionários para

XIV, as

o

rei

funções

assumia

cada

setor

públicas,

possuía,

da

administração

entretanto,

os

pública,

juízes

que

retirando-as dos senhores, ou seja, o rei

trabalhavam pela Coroa por todo o reino,

trazia para si um poder já existente,

fazendo valer a lei régia sobre os ditames

atribuições que ele não inventara. Fazia-o

locais que vigoravam anteriormente e que

amparado em uma estratégia política que

variavam bastante nas distintas partes do

ao mesmo tempo erigia a singularidade do

território.

poder régio e reservava aos nobres um

Durante a dinastia de Borgonha

espaço de prestígio e de atuação junto à

(séc. XI-XIV), Portugal deu continuidade às

Coroa, por concessões de privilégios e de

guerras de Reconquista, ampliando seu

prerrogativas, como a tarefa de arrecadar

território. A economia portuguesa, no final

certos tributos, por exemplo.

desta

dinastia,

sofreu

um

impulso

O autor afirma que as funções

significativo com o surgimento de uma nova

estatais em Portugal desenvolveram-se, de

rota comercial que ligava as cidades

fato, com Afonso III (1248-1279). Para a

italianas à região de Flandres, fazendo

organização estatal, foi preciso, ao longo

escala em Lisboa.

dos séculos XIII e XIV, organizar as

fortaleceu o grupo mercantil português.

Isto, sem dúvida,

finanças régias, fortalecer o tribunal e a lei

Saraiva (1993), pois, destaca que a

régia em detrimento das justiças locais,

definição do espaço territorial português

criar um corpo de funcionários burocráticos

ficou concluída em 1297 com a celebração

e, ainda, fazer surgir um complexo de

do Tratado de Alcanices, assinada, no

regras de cortesia, uma maneira de viver

mesmo ano, pelo rei D. Dinis (1261-1325).

460


Sandra Regina Franchi Rubim Fixou-se assim de forma praticamente

ainda enfatiza que, para a maioria dos

definitiva,

historiadores, o coroamento de D. João I

a

Portugal

fronteira

estabelecia

Leste assim,

do

País.

ainda

no

marcou o início da monarquia absolutista

século XIII, as fronteiras do seu território,

em Portugal e a formação do Estado

que com pequenas alterações posteriores,

Nacional. Em relação à manutenção de

permaneceram até aos nossos dias.

resquícios medievais, foi nesta ocasião que

Sabemos, pois, que no ano de 1383,

se iniciou o incentivo ao comércio, uma

o trono português ficou sem herdeiros

recompensa ao apoio da burguesia ao

masculinos com a morte do rei Fernando I

coroamento do Mestre de Avis. Esse apoio

(1345-1383), chegando ao fim à Dinastia

possibilitou definitivamente a centralização

de Borgonha. Nesse período, afirma o

do poder em Portugal em torno do rei,

autor supracitado, deu-se a crise de 1383-

quando se formou uma nova nobreza, com

1385, momento de guerra civil e anarquia

burgueses

da História

conhecida

nomeados cavaleiros. Resolvida a questão

como Interregno, uma vez que não existia

da independência, ao menos até o episódio

rei no poder. Nesse contexto, o reino de

da União Ibérica em 1640, Portugal se

Castela tentou reivindicar o domínio das

tornou

terras lusitanas. Sentindo-se ameaçada, a

absolutista europeu.

burguesia

de

lusitana

Portugal,

primeiro

títulos

Estado

e

sendo

Nacional

uma

No processo de consolidação das

resistência ao processo de anexação de

monarquias, percebemos que a justificativa

Portugal formando um exército próprio. Na

religiosa teve grande influência para a

batalha

os

unificação dos territórios. Apoiados pela

burgueses venceram os castelhanos e,

Igreja, os reis que surgiram na Europa,

assim, conduziram D. João (1349-1387),

entre a Idade Média e o Renascimento,

irmão bastardo de D. Fernando, ao trono

eram julgados como representantes dos

português,

o

desígnios sagrados. Deveras, ao longo de

primeiro rei da Dinastia de Avis 4. O autor

sua trajetória, o regime absolutista buscou

de

empreendeu

o

recebendo

Aljubarrota

tornando-se,

(1385),

em

1385,

meios que minimizassem os limites que 4

Dinastia de Reis de Portugal, que reinaram o país entre

1385 e 1580. Genealogia da Dinastia de Avis ou Joanina: D. João I, o Mestre de Avis (1385-1433); D. Duarte, o

distinguiam a vontade divina das ações tomadas pelo rei.

Eloquente (1433-1438); D. Afonso V, o Africano (14381481); D. João II, o Príncipe Perfeito (1481-1495); D. Manuel, o

Venturoso (1495-1521);

D.

João

III, o

Piedoso (1521-1557); D. Sebastião, o Desejado (1557-

1578);

D.

Henrique, o

Casto (1578-1580);

António, Prior do Crato (1580-1582) (SERRÃO, 1978).

461

D.


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Na

Península

Ibérica,

de

forte

Castela (1527-1598), estava, pelo menos

tradição católica, essa cultura parece ter

momentaneamente, resolvida. Em virtude

granjeado bastante força, tendo em vista as

de ser um herdeiro tão esperado para dar

miraculosas teorias que rondaram o rei D.

continuidade à Dinastia de Avis, ficou

Sebastião. Quando ainda muito pequeno,

conhecido como O Desejado.

já o indicavam como o herdeiro do trono

Pires (1969) enfatiza que a chegada

português e mantenedor da dinastia de

dessa

Avis, salienta Hermann (2000). Vamos,

acontecimento efervescente para a vida do

então,

histórico.

reino. A corte, de um lado, concretiza sua

Falaremos, pois, sobre o reinado desse

vontade de perpetuação e conservação do

monarca.

poder

darmos

um

pulo

criança

se

institucional,

revela

como

político,

um

social

e

Durante boa parte do reinado de D.

territorial por meio da figura do neto recém-

João III (1502-1557) os problemas que

nascido de D. João III. De outro, o

diziam respeito à política externa e interna

nascimento do rei Desejado simbolizava

de

questão

certo alívio para Portugal. Representava

sucessória, afligiam a nação portuguesa.

uma trégua à ameaça que pairava sobre o

Aconteceu, pois, a morte de todos os nove

reino de se ver sob a dependência do

filhos do rei e, consequentemente, o quase

reinado

rompimento

representava, pois, a possibilidade de

Portugal,

do

somados

fio

a

hereditário,

que

de

com relação à Castela. Dos nove filhos de

territórios iniciado pela dinastia de Avis

D. João III e de Catarina de Áustria (1507-

(1385-1580).

dois

atingiram

de

nascimento

retomar

apenas

política

Este

determinava a independência de Portugal

1578),

a

Castela.

conquista

de

a

D. Sebastião, filho do príncipe D.

adolescência: o príncipe D. João (1537-

João e de D. Joana de Áustria (1536-

1554) e a infanta D. Maria (1527-1545).

1573), nasceu em Lisboa em 1554 e

Dois anos após o seu casamento, estando

morreu em Alcácer Quibir em 1578,

sua mulher quase de parto, o príncipe D.

destaca Loureiro (1978). Décimo sexto rei

João falece e foi com júbilo que, onze dias

de

depois, a nação acolhe o nascimento de

menor, ficou como regente sua avó D.

um herdeiro, D. Sebastião. A ameaça de o

Catarina. Sua mãe, D. Joana, de acordo

trono ter de passar para o outro neto de D.

com o contrato nupcial, teve de regressar

João III, para o príncipe D. Carlos (1545-

a Castela após a morte do príncipe D.

1568), filho de D. Maria e de Filipe de

João. A regente D. Catarina, acusada de

Portugal

(1557-1578).

Como

era

462


Sandra Regina Franchi Rubim sofrer influências da Corte espanhola,

dos

pede a demissão de regente nas Cortes

retomada de territórios que outrora eram

de Lisboa de 1562, continuando, no

cristãos, bem como a retomada da honra

entanto, como tutora do futuro rei. Foi

portuguesa.

eleito como regente, nessa altura, o

resquícios medievos da guerra justa,

cardeal D. Henrique (1512-1580), tio do

herdeira das cruzadas. Nessa batalha,

infante. D. Sebastião, então, teve uma

pois, morre o rei e uma grande parte da

educação cuidada. Quando atingiu os

juventude portuguesa. Este desastre vai

catorze anos, em 1568, passa a reger o

ter as piores consequências para o país,

país e logo trata de reorganizar o exército,

colocando

preparando-se para a guerra. As lutas

independência.

que, entretanto, houve no Norte de África,

mouros,

que

representava

Assim,

em

Nesse

a

percebemos

perigo

contexto,

a

a

sua

linguagem

levavam-no a pensar em futuras ações

imagética, cotejada com a literatura, com

nesse continente.

as crônicas, com a historiografia, tornou-

Podemos

entender,

segundo

se

um

elemento

significativo

na

Casquilho (2012), que era natural que o

construção de justificativas, na projeção

rei desejasse se tornar um guerreiro e

de interesses e objetivos coletivos, na

lutar como um cavaleiro medieval contra

criação de necessidades e na modelagem

os infiéis mouros na África. D. Sebastião

de valores e condutas. Era necessário

criado órfão e rei de Portugal, com o

recorrer

encargo de salvar o país e transportando

legaram ao rei a representação de um rei

o peso da história do santo (com o qual

desejado (durante seu reinado) e de um

recebeu seu nome), se vê diante da

rei encoberto (após sua morte).

à

linguagem

simbólica

que

missão de herói nacional. Entretanto, para

Convém assinalar que o símbolo, o

o país, o grande problema era o da

mito, a imagem, pertencem à substância

sucessão do rei, pois era solteiro e

da vida espiritual; pode-se ocultá-los,

parecia não se preocupar com isso,

degradá-los,

tendo-se malogrado várias negociações

erradicá-los. O pensamento simbólico não

matrimoniais. O próprio rei, contrariando

é domínio exclusivo da criança, do poeta,

inúmeros conselhos, parte à frente de um

mas é inerente ao homem. Ele precede a

exército, o qual foi derrotado em Alcácer

linguagem e a razão discursiva. Eliade

Quibir,

aqui

(1979, p. 171), “[...] afirma que a função

também a força simbólica da submissão

de um símbolo é justamente a de revelar

em

1578.

Observamos

mas

nunca

se

poderá

463


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

uma

realidade

total,

inacessível

aos

coletiva, ou seja, a formação de estruturas

outros meios de conhecimento [...]”. As

de

imagens,

constitutivas do Estado Nacional. Por isso,

os

respondiam

símbolos,

necessidade

de

pertencimento

as imagens, como um dos meios de

preenchiam uma função, condizente com

comunicação entre monarcas e súditos,

o

foram

tempo.

uma

mitos

e

e

seu

a

os

vinculação

Nesse

momento,

as

utilizadas,

principalmente,

para

distintas linguagens educavam o povo no

educar e instruir a sociedade. Era desejo

sentido

as

dos monarcas formar indivíduos para a

representações de um rei que manteria a

sociedade, cujo governo estava edificado

emancipação lusitana e a posição de um

nas bases do poder absoluto. Nesse

reino

sentido,

de

como

crer

e

cabeça

aceitar

de

um

império

a

linguagem

imagética

se

ultramarino. Assim, observando, por meio

constituiu como um recurso pedagógico

das imagens, a coexistência entre antigas

capaz de influenciar o pensamento e as

e novas formas de pensar, sentir e agir,

atitudes dos homens, levando-os a aceitar

podemos acompanhar a direção que a

o comando do monarca. Podemos afirmar,

educação também foi assumindo nessa

assim,

época.

construíam-se discursos com a finalidade

Consideramos veiculadas

sobre

que D.

as

imagens

Sebastião,

se

constituem como uma evidência histórica,

que,

por

meio

das

imagens,

de se difundir um ideal formativo com o fito de forjar a figura de um rei ideal, tanto laico quanto cristão.

cujos significados simbólicos 5 e estéticos 6

Podemos, nessas condições, nos

auxiliam-nos na compreensão das relações

aproximar do entendimento de como a

sociais e de poder presentes no processo

mentalidade do homem, que se constrói

social da Idade Média para a Idade

pelas produções intelectuais e influência do

Moderna. Nesse processo, delineava-se

conhecimento popular de cada período

um momento único na vida dos homens,

histórico, é refletida nas imagens como

um momento de redefinição da identidade

representação mental e material. Dessa forma,

as

reflexões

concernentes

ao

São as diferentes formas de apreensão do real, seja por

imaginário se instituem relevantes. Torna-

meio dos signos lingüísticos ou das figuras mitológicas

se imprescindível, portanto, nos atentarmos

5

seja da religião ou de conceitos do conhecimento científico (CHARTIER, 2002).

às formas de pensar, não de um indivíduo,

Corresponde à dimensão da sensibilidade humana. Para

mas de um grupo que pode ser traduzido

Hegel (1996), estética é a filosofia, é a ciência do belo, do

como a alma coletiva de um povo.

6

belo artístico, que exclui o belo natural.

464


Sandra Regina Franchi Rubim Concordamos, nessa perspectiva, que a linguagem imagética é inerente à existência

do

homem

interpretações singelas.

sujeito

Abalizamos, enfim, a necessidade

histórico, já que o discurso tem uma

de a Educação adentrar no campo de

intencionalidade formativa. Os símbolos e

estudo das imagens. Torna-se crucial

mitos,

humanizar

como

como

indispensável para que se escape de

linguagem

representaram

uma

simbólica,

possibilidade

de

os

desenvolver

sentidos

a

do

homem

sensibilidade

e

humana,

construção mental e social de um tempo

ampliando, assim, a dimensão da reflexão.

datado historicamente, século XVI; por

Acreditamos que esses requisitos podem

meio deles o homem construía suas

ser desenvolvidos por meio da capacidade

práticas educativas e suas identidades.

reflexiva dos homens e do conhecimento.

Assim,

as

Sublinhamos que o conhecimento é um

representações iconográficas constituem

elemento fundante da formação humana.

instrumentos

Isto é um desafio histórico posto a cada dia

podemos

concluir

que

imprescindíveis

para

a

formação do indivíduo e para a construção

para

aqueles

que

trabalham

da sociedade, pois, ao mesmo tempo em

preocupam com a Educação.

e

se

Considerações finais

que se aprende se educa pela imagem. As importante

Conduzimos, assim, nossa atenção

sócio-cultural

para as distintas formas nas quais os

porque

se

homens

sistema

de

determinado tempo histórico. Desse modo,

significações específicas que conduzem à

nossa leitura do discurso implícito nas

reflexão, ação e expressão do homem em

imagens incide em explicitar de que forma

relação a si, aos demais indivíduos e ao

determinadas práticas obtiveram sentido e

meio em que vive.

se difundiram no interior das relações

imagens

representam

elemento

da

humana,

principalmente

apresentam

um

atividade como

Quando

se

um

fala

de

imagens,

sociais,

foram

nos

educados

apontando

em

um

indícios

da

portanto, são infinitas as possibilidades de

necessidade de se construir um Estado

abordagem que se abrem ao pesquisador,

Português centralizado em um ideário de

que, por isso, considera a pertinência de

rei.

buscar uma formação que lhe ofereça a

multiplicidade de linguagens atuou como

capacidade de compreendê-las. Nessas

elementos

condições,

concluir que elas tenham influído nas

o

conhecimento

é

Destacamos,

assim,

educativos,

que

sendo

uma

plausível

atitudes humanas, especialmente no que

465


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

diz respeito à premente aceitação da

transformações históricas e o surgimento

centralização

de novas concepções de vida e de mundo

do

Estado

Absolutista,

representado na figura do rei. As imagens,

para

portanto,

se

instituíram

o

homem

moderno.

Como

como

uma

transposição das necessidades e das

construção

da

aspirações dessa época, faz-se possível

representação, mental e social, de D.

compreender a função educativa que a

Sebastião, no século XVI, tanto como um

veiculação

rei laico quanto um rei cristão.

Inserida nessa ótica, enfatizamos que o

possibilidade

Nessa

de

atendia.

meio que envolve o homem passa a ser

linguagem imagética tanto como veículo

objeto de estudo, pois esse influenciará a

formador quanto como evidência histórica.

forma de pensar e de agir do homem, bem

Entendemos que as diferentes expressões

como as suas criações materiais.

homens,

aceitamos

imagens

a

dos

perspectiva,

dessas

sinalizavam

as

Referências: AMARAL, Diogo Freitas. Afonso Henriques - Biografia. Braga: Círculo de Leitores, 2000. BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1972. CASQUILHO, José Pinto. Sebastião de Portugal: 20 de janeiro de 1554 -? Revista Triplov

de Artes, Religiões e Ciências. Nova série, n. 23-24, 2012. Disponível em: < http://www.triplov.com/novaserie.revista/numero_23/jose_casquilho/index.html >. Acesso em: 16 jun. 2014. CHARTIER, Roger. A História cultural: entre práticas e representações. Lisbos-Portugal: DIFEL, 2002. ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. Lisboa: Arcádia, 1979. FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa: elementos estruturais de sociologia da arte. São Paulo: Perspectiva, 1993. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1989. HEGEL, George Wilhelm Friedrich. Curso de estética: o belo na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996. HERMANN, Jacqueline. 1580-1600: o sonho da salvação. Coleção: Virando Séculos. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2000.

466


Sandra Regina Franchi Rubim

LOUREIRO, Francisco Sales. D. Sebastião e Alcácer-Quibir. Lisboa, PT: Publicações Alfa, 1978. PIRES, Antonio Machado. Dom Sebastião e o Encoberto: Estudo e Antologia. Lisboa, Fundação Calouste Gulbekian, 1969. SARAIVA, José Hermano. História de Portugal. Lisboa: Publicações Alfa, 1993. SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru: EDUSC, 2007. SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. O século de ouro (1495-1580). Vol. 3. Póvoa de Varzim/Portugal: Editorial VERBO, 1978. SOUSA, Armindo de. A monarquia feudal (1096-1480). In: MATTOSO, José (dir.). História

de Portugal. Vol. 2. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.

467


MOEDA E PODER NO PENSAMENTO DE NICOLÁS DE ORESME Talles Henrique P. Maffei 1 Jaime Estevão dos Reis 2(Orientador) Resumo O Pequeno Tratado sobre a primeira invenção das moedas, obra escrita pelo clérigo francês Nicolás de Oresme entre 1355 e 1358, constitui-se numa importante fonte para o estudo do pensamento econômico medieval. As questões debatidas por Oresme derivam das transformações em curso no Ocidente desde fins do século X. É neste período quese inicia um processo de dinamização, impulsionado pela intensificação do fluxo comercialcom base em dois eixos principais: o círculo do Mar do Norte e o círculo mediterrânico. Tal processo resultou em mudanças fundamentais, que viriam a minar a velha ordem estabelecida pela realidade feudal. A moeda angaria crescentemente importância, e concomitantemente ao seu desenvolvimento, florescem os diferentes meios de sua alocação.Na esteira do desenvolvimento econômico, alguns pensadoresse dedicam a refletir sobre a legitimidade de tais mudanças sob o prisma dos princípios cristãos, o que, naturalmente, leva adebates acerca das relações entre o material – o econômico - e o espiritual. Nesse contexto, se insere o pensamento de Nicolás Oresme, que buscamos analisar. Palavras-chave: Moeda; Poder; Nicolás Oresme.

1

PPH/UEM

2

UEM

468


Talles Henrique P. Maffei Introdução

especialmente o tratado analisado na

A análise do contexto medieval onde

presente pesquisa.

são privilegiados os fatores econômicos e

Sob um aspecto mais amplo, a

políticos conduz a um método de pesquisa

produção

onde a unificação de tais fatores se dá por

sintomática

meio da análise das ideias que permeavam

Ocidente

tal panorama histórico. Nesse sentido, é

avultosamente em todos os aspectos. Um

digno de nota o fato de que algumas fontes

processo

medievais são valiosas no sentido de

impulsionado no século X pela atividade

elucidar tais escopos por meio de seus

comercial minou a estabilidade da ordem

registros, sendo um notável exemplo a obra

feudal, tendo como um dos principais

do clérigo francês e eminente intelectual

efeitos a inserção da moeda no cotidiano

Nicolás de Oresme, Pequeno Tratado da

medieval. Tal progresso é interrompido em

primeira invenção das moedas, escrito entre

meados do século XIV, em um contexto de

1355 e 1358.

crise econômica, no qual as monarquias

Nicolás de Oresme nasceu em 1320, na Normandia, originário de uma família de

intelectual de

um

de

contexto

cristão de

Oresme

é

onde

o

transformava-se

crescimento

econômico

europeias buscam organizar a estrutura administrativa e fiscal de seus estados.

abastados agricultores. Foi aceito em 1348

A moeda passa ser um fator de

no Colégio de Navarra, onde obteve o título

preocupação e, nesse sentido, o Pequeno

de mestre em 1356, em um momento onde

Tratado

a Universidade de Paris passava por uma

moedas,desponta como uma preciosa fonte

reformulação intelectual, na esteira do

de estudos sobre o contexto econômico e

pensamento de Guilherme de Ockham – e

político medieval. A obra aborda desde

naturalmente

questões ligadas à origem dom uso da

embebida em uma maior preocupação com

moeda até destaca conceitos adotados

problemas de cunho prático, em outras

posteriormente pela Ciência Econômica

palavras, mais voltado ao cotidiano da vida

moderna.

oposta

ao

tomismo

da

primeira

invenção

das

humana e seus aspectos (ORESME, 2004).

A dinâmica econômica medieval: o

Oresme ganha notoriedade ao destacar-se

contexto de Nicolás de Oresme

no Colégio de Navarra e conquistar a

O

desenvolvimento

da

economia

amizade do rei Carlos V - do qual se tornou

medievalfoi um processo marcado pelo

conselheiro pessoal e para o qual dedicou

contraste entre a realidade econômica em contínuo processo de transformação, e os

469


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

preceitos da moral cristã. (ARENBERG;

séculos da era cristã. No contexto da

POLANYIL, 1975, p. 100-201). Em outras

decadência do Império Romano, fazem-se

palavras, tratar da existência da economia

imprescindíveis

medieval implica em reconhecer que esta

muralhas diante de sucessivas invasões. A

se situa historicamente incrustrada no

sociedade

labirinto das relações sociais, efeito, este,

existência na terra e na vida rural. Em

naturalmente reproduzido no mundo das

simples palavras, a Europa encastela-se e

ideias. A dinâmica econômica medieval é

feudaliza-se, e o poder fragmenta-se. O

marcadamente entravada e distorcida por

movimento é de um empobrecimento geral,

conceitos

como

dadaà necessidade de produzir-se tudo

preço-justo, usura e caridade (LE GOFF,

aquilo que se pode consumir. A pobreza é

2012, p. 195).

vista como de origem divina e considerada

O

morais-religiosos,

processo

de

tais

decadência

do

Império Romano alterou pouco a pouco o cotidiano de seus domínios, na medida em quea

violência

insegurança

passou

construções a

encontrar

de sua

sob o ponto de vista teológico como necessária. O advento do século X soprou novos

se

ventos na história econômica da Europa

espalhavam ou se acentuavam nas várias

Ocidental – mais especificamente a partir

regiões. Inicia-se o lento processo de

de sua segunda metade. Inicia-se um

abandono

movimento

das

e

as

cidades

e

busca

de

definido

por

alguns

segurança na vida campestre.As invasões

historiadores como a Revolução Comercial

bárbaras,

da Idade Média. Após um período de

inauguradas

pelas

tribos

germânicas, somaram-se a outras várias

regressão

invasões empreendidas por outros povos

monetária e no nível de intensidade das

nos três últimos séculos que precedem a

trocas em geral, inicia-se a formação e

virada do primeiro milênio, o que resulta no

consolidação de um fluxo comercial que

atenuarda

abarcou

insegurança

e

instabilidade

disseminada no Ocidente europeu. Ao Oriente, o Islã expandia-se a passos largos desde

o

inevitavelmente

século as

VII,

atingindo

margens

do

Mediterrâneo.

em

a

termos

maior

de

parte

do

circulação

Ocidente

europeu. A moeda, por sua vez, angaria cada vez mais importância. O processo de monetarização

das

trocas

adquire

notoriedade já no século X, sendo a massa

De fato, o comércio enfrentou um

monetária um montante crescente, gerando

vigoroso declínio durante os dez primeiros

por efeito um processo inflacionário desde

470


Talles Henrique P. Maffei o período (LOPEZ, 1976, p. 81). A

era ainda absolutamente a maior atividade

cunhagem de moedas em ouro, estagnada

econômica,

desde

Magno,

demasiadamente vulnerável a catástrofes

retomam atividade no período, a fim de

climáticas, que por sua vez ocorreram entre

atender a crescente demanda por moedas,

1315 e 1317. Em contrapartida, excelentes

um importante sinal de que a economia do

colheitas foram realizadas entre 1325-45

Ocidente havia adentrado uma fase de

(LOPEZ, 1976, p. 164-165), o que não

dinamismo sem precedentes.

significou a atenuação das devastações

os

tempos

de

Carlos

O dinheiro angaria para si uma

e

por

natureza

impostas pela Peste Negra anos à frente.

importância sem precedentes. A Igreja,

As guerras eram um terceiro fator

tradicionalmente hostil às exuberâncias

catalisador do processo de estagnação

proporcionadas pelas fortunas acumuladas,

econômica que o Ocidente europeu passa

permaneceu em uma constante adaptação

a enfrentar no século XIV. Os conflitos

e revisão de seus dogmas enquanto a livre

cobriam toda a Europa, destacadamente

iniciativa dispunha de um arsenal cada vez

ocorrendo

nos

maior de métodos, recursos e mecanismos

econômicos

do

referentes

econômicas

França (Guerra dos Cem Anos) e as

(CARMEM; PARRA, 2001). Tal mudança

cidades italianas, pautadas numa histórica

de postura é cristalizada no ano 1199, ano

rivalidade.As guerras medievais, por sua

no qual o papa Inocêncio III canoniza o

vez,

comerciante Homobonus de Cremona dois

centralização do poder nas mãos dos

anos após sua morte (WOOD, 2003, p.

monarcas,

165). “A busca e uso do dinheiro, seja por

durante a maior parte da Idade Média pela

indivíduos ou estados, viram-se pouco a

extrema

pouco legitimadas, apesar das condições

geopolítico ocidental. Em outras palavras, é

impostas a sua justificação pela Igreja,

o processo de construção do Estado-nação

aquela que inspira e dirige” (LE GOFF,

empreendido pelas monarquias europeias,

2012, p. 28).

no qual tais conflitos inserem-se.

às

operações

inserem-se

principais continente:

no

Inglaterra,

contexto

relativamente fragmentação

centros

de

impotentes do

quadro

A prosperidade seria estagnada a

As jovens e crescentes monarquias

partir de meados do século XIV, quando o

não poderiam sustentar-se sem recursos

Ocidente deparou-se com uma implacável

financeiros, ocupando então a moeda um

tríade: fome, doenças e guerras. Apesar

papel

dos progressos concebidos, a agricultura

geopolítico. O orçamento real caminhou

primordial

em

tal

panorama

471


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

durante boa parte da Idade Média sob uma

termos econômicos, sociais e políticos. Em

tênue linha, já que os súditos eram

termos monetários, tema da obra de

extremamente resistentes à imposição de

Nicolás

novas

novos

assustadoramente frequente.“Só em 1348

subterfúgios foram utilizados com o objetivo

calculam-se não menos de onze alterações

de engordar as contas principescas com o

de valor da moeda, nove em 1349, dezoito

consentimento dos súditos – ou sem que os

em 1351 e o mesmo em 1355”. (ORESME,

mesmos dessem conta do fato.

2004).

taxações.

As

Naturalmente,

Oresme,

a

instabilidade

monetárias

Mais precisamente, é durante o

tornam-se recorrentes nas monarquias em

governo de João II e Carlos V, monarcas

formação do Ocidente europeu, praticadas

diretamente envolvidos com a figura de

com o objetivo de angariar novos fundos

Oresme, que a França passa por períodos

aos monarcas e suas máquinas estatais

críticos

em estado prematuro. Estas ocorrem,

aspectos. A própria sucessão real entre tais

simplificadamente, pelo recolhimento da

figuras ocorreu em uma situação onde o rei

massa monetária circulante e a diminuição

João II encontrava-se como refém dos

ou deterioração da composição metálica.

ingleses após um sequestro em uma

Com as sobras de metais produzidas são

batalha com estes. Ambas as figuras

cunhadas novas moedas e assim utilizadas

também

para as despesas reais. As manipulações

envolvidos

provocaram grandes danos econômicos

populares conta a opressão dos impostos,

pela instabilidade cambial e pelo processo

naturalmente reflexo da demanda por

inflacionário produzido.

maiores gastos com os combates. As

Na

manipulações

de

França,

foi

recorrente

a

realização de alterações na moeda real. A monarquia

francesa

manipulações

várias

recorreu vezes:

a

tais Em

1295,1303,1306,1311, 1313, 1318 e 1330 (LE GOFF, 2012, p. 122).O caso da monarquia francesa é, em certo sentido, peculiar, já que no contexto de vida de Nicolás Oresme o reino encontra-se numa instável e desconfortável situação em

de

instabilidade

se com

encontram episódios

em

diversos

diretamente de

revoltas

afirmações de Nobert Elias caminham no mesmo sentido: Sob Carlos V, conforme já mencionado, as aides

sur Ie fair de la guerre tomaram-se impostos permanentes como a própria guerra. Foram um peso sobre umpovo que já estava sendo arruinado pela devastação, o fogo, os problemas decomércio e ainda por constantes assaltos de tropas

que

alimentavam

queriam pela

ser

força.

alimentadase Cada

vez

se mais

opressivos se tomavam os impostos exigidos pelo rei e, cada vez mais, julgava-se que o fato de se tomarem a regra, e não a exceção, o que

472


Talles Henrique P. Maffei constituía uma violação das tradições. (ELIAS, 1990, p. 178).

Porém,

tal

instabilidade

é

acompanhada por um incessante zelo por parte de Carlos V em buscar a estabilidade monetária do reino, o que naturalmente nos leva a pensar que já havia uma concepção de

que

a

estabilidade

monetária

prejudicava toda a dinâmica econômica. A obra de Nicolás de Oresme emerge como peça fundamental nesse sentido, auxiliando o

reino

de

França

no

alcance

da

estabilidade monetária durante reinado de Carlos V. O pensamento econômico medieval e o tratado de Nicolás de Oresme Faz-se imperativa a necessidade de uma breve reflexão conceitual acerca da natureza de um pensamento econômico medieval. De forma mais geral, tratar de economia reconhecer

na

Idade

que

Média

esta

existiu,

significa

implica-se o reconhecer de que esta situase historicamente incrustada no labirinto das

relações

delineada,

sociais.

limitada

e

Sendo

então

distorcida

por

conceitos morais-religiosos predominantes em tal panorama. E outras palavras, o pensamento

econômico

medieval

não

existe de maneira independente, e jamais é tratado nas fontes de forma isolada da cartilha moral cristã imposta pela Igreja. O

Pequeno Tratado da primeira invenção das moedas se insere nesse sentido, onde economia,

filosofia,

política

e

religião

dialogam entre si, havendo uma conotação de privilégio de fatores materiais. Nas palavras da historiadora Diana Wood: En el mundo medieval no había econometria ni mercados

globales,

sino

<<economía

teológica>>. La economía como disciplina por sí misma no existia, es decir, que en sentido estricto, El pensamiento econômico medieval es

porém,

um nombre inexacto. [...] Esto significa que hay

totalmente imbricada aos demais aspectos

que rastrear buena parte del pensamiento

da sociedade medieval, particularmente aqueles de cunho cultural e religioso. Em outras palavras, a dinâmica das trocas na Idade Média enfrentou durante toda sua existência, obstáculos que impediram por ora

sua

autonomia,

relacionados

principalmente aos preceitos morais e religiosos do contexto. Assim, ao tratar da produção das ideias

acerca

da

economia

medieval

econômico en obras de teología escritas por escolásticos, muchos de los cuales eran frailes mendicantes. Como es de esperar, las ideas económicas

medievales

se

mezclan

con

problemas éticos y morales. (WOOD, 2003, p. 15).

É ainda elucidativo o destaque a alguns fatores de aspecto geral acerca da natureza

do

pensamento

econômico

medieval. As sagradas escrituras são sem dúvidas uma importante fonte de referência para o pensamento medieval como um

473


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

todo, o que inclui naturalmente a esfera econômica. aspecto

Em

concomitância

teológico,

o

com

o

pensamento

De

tal

constatação

maneira, pode

uma

ser

segunda

observada.

O

conhecimento de que as moedas por si só

econômico medieval remonta suas origens

não

ao mundo antigo, mais precisamente em

logicamente para a noção de oferta e

clássicos tidos como base para a filosofia

demanda,

moral e religiosa medieval. O exemplo mais

Escola Clássica de economia, incorporada

típico a ser citado são as obras que

por Adam Smith num sentido de ataque

compõem em conjunto o legado da filosofia

contra os preceitos mercantilistas, por sua

de Aristóteles, de extrema influência na

vez

formulação

acumulação irrestrita de metais preciosos

das

concepções

filosóficas

medievais e naturalmente no conjunto de ideias

que

compõem

o

a

riqueza

conceitos

assíduos

extrapola-se

consagrados

defensores

de

na

uma

para uso como moeda.

pensamento

econômico em tal contexto.

garantem

Estabelece então uma topografia irregular para a história das ideias que

O Pequeno tratado da primeira

compõem o pensamento econômico: havia

invenção das moedas se insere em tais

entre os pensadores medievais – sendo a

aspectos, pois, sendo Oresme tradutor de

obra de Oresme o parâmetro – a noção de

algumas

Aristóteles,

que a abundância de moedas não é

compartilhava da teoria do filósofo em

sinônimo de riqueza. Tal conhecimento

relação à origem da moeda, sendo criada

seria

de forma espontânea entre homens para a

posteriormente,

facilitação das trocas:

econômico de cunho mercantilista torna-se

obras

de

Porém, como surgissem nessa forma de permuta e de troca das coisas muitas dificuldades e controvérsias,

os

homens,

engenhosos,

esquecido

de

quanto

forma o

obscura

pensamento

predominante, sendo então retomado por Adam Smith e os economistas clássicos.

descobriram uma maneira mais ágil de fazê-lo,

A observação de tal topografia no

isto é, fazer uso da moeda, a qual foi o

mundo das ideias inseridas no universo do

instrumento para permutar e comerciar entre si suas riquezas naturais. E como unicamente

pensamento econômico, sendo a obra de

estas, por si próprias, satisfazem diretamente as

Oresme

elucidativa

necessidades humanas, todo o dinheiro é dito

esclarece

a

riqueza artificial e não poderia ser de outro modo, podendo acontecer que alguém que as tenha em

nesse

participação

do

sentido, contexto

medieval na construção das bases que

abundância possa até morrer de fome ao lado

estabeleceram posteriormente a ciência

delas. (ORESME, 2004, p. 35).

moderna, confrontando as visões onde a Idade Média emerge como uma era de

474


Talles Henrique P. Maffei estagnação do conhecimento – em outras palavras, a “idade das trevas”.

Tal lógica é também referida à

Ainda sim, a obra de Oresme é marcada

por

característica

seu de

contexto todo

o

e,

como

usura, prática econômica presente na esteira

do

desenvolvimento

econômico

pensamento

medieval e frequente alvo de condenações

econômico medieval, marcada por sua

por parte daqueles dedicados ao zelo da

relação com os preceitos morais cristãos.

conduta cristã ideal. Segundo Oresme, a

No caso do Pequeno tratado da invenção

alteração das moedas emergecomo um

das moedas, o autor trata de conciliar tais

pecado ainda mais mortal:

preceitos, de forma que a benesses para o príncipe em agir virtuosamente encontramse tanto na esfera material como espiritual. Primeiramente,

é

necessário

o

esclarecimento de que, para Nicolás de Oresme, a manipulação monetária por parte do rei é um ato condenado e pecaminoso, salvo os casos em que o mesmo considera justo. Por admitir a noção aristotélica da origem da moeda, Oresme a extrapola para o caso da manipulação das moedas por parte do príncipe, o que o mesmo observa ser motivo contribuinte da grande instabilidade geral observada no reino em seu contexto. Logo: Por essa razão, com efeito, Aristóteles prova, no

[...] auferir ganho na alteração da moeda é pior ainda do que a usura. O usurário empresta o seu dinheiro a alguém que o recebe voluntariamente e de bom grado e que, ainda, com esse dinheiro pode beneficiar-se e socorrer-se segundo a sua necessidade. O que ele devolve ao usurário, além e acima do que ele recebeu, vem de um certo contrato existente entre eles, e com o qual ambos estavam de acordo. Mas o príncipe, por alteração indevida e inconveniente da moeda, toma o dinheiro dos seus súditos de fato e não por vontade deles, pois ele proíbe o curso da moeda anterior, que vale mais e que cada um preferia ter ao invés da nova moeda má, para, depois, sem necessidade alguma, utilidade ou proveito que dali possa advir aos súditos, devolver-lhes uma moeda pior. (ORESME, 2004, p. 67).

Logo, a alteração das moedas seria ato mais pecaminoso do que a usura pelo fato de não ser consentida pelas partes

primeiro livro da Política, que a usura é coisa

envolvidas. A ação implica por sua vez em

contrária à natureza, pois o uso natural da

um ato tirânico por parte do príncipe,

moeda é que ela seja instrumento para permutar e comprar as riquezas naturais, como ele afirma

postura essa que pode ser decisiva para o

várias vezes. Quem, portanto, faz uso dela de

reino como um todo. Um principado tirânico

outra maneira, comete um abuso e age contra a

representa o presságio da ruína – o que

instituição natural da moeda, querendo que o dinheiro se reproduza parindo outro dinheiro, o que é coisa antinatural. (ORESME, 2004, p. 64).

soa como um alarde sugestivo em um período em que a França constantemente

475


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

assediada

pelos

ataques

alguma ela perderá seu reino, que passará para

ingleses.“Por

outras mãos. (ORESME, 2004, p. 85-90).

essas coisas e exemplos, o príncipe ou rei

Conclusão

deveter horror de tais atos tirânicos, como é o caso da alteraçãodas suas moedas, que é coisa tão perigosa e prejudicialpara toda a sua posteridade”.(ORESME, 2004, p. 70). A

associação

entre

o

governo

tirânico e a alteração das moedas seria clara nesse sentido, já que ambos são elementos

que

agem

em

favor

da

instabilidade do reino. Oresme encerra sua obra afirmando o caráter passageiro de um reino

tirânico

que,

diante

de

tais

inconveniências por ele geradas, não pode durar muito tempo. [...] sempre que o reino se transforma em

O Pequeno tratado da invenção das

moedas, de Nicolás de Oresme insere-se em um contexto onde os esforços no mundo das ideias dirigem-se cada vez mais para

a

compreensão

das

questões

materiais, mas sem perder sua natureza associativa com os princípios cristãos ainda enraizados na sociedade em fins do século XIV. Isto se refletena tentativa empreendida por ele de harmonizar o conflito entre as mudanças

impostas

pelo

progresso

econômico – no caso, a exigência de uma estabilidade monetária – e os princípios filosóficos e morais de sua época.

governo tirânico, não pode depois ser preservado

A contribuição de Oresme é tida

nem defendido por muito tempo. É essa a forma

como significativa por alguns historiadores

pela qual se prepara a diminuição do seu território, a perda do poder [...]Quaisquer uns que

econômicos, uma vez que suas prescrições

quisessem portanto, de alguma maneira, atrair e

acerca

induzir os soberanos da França a um regime

relevantes para a construção de uma

tirânico, com certeza exporiam o reino a grande perigo e vergonha, e o preparariam para seu fim;

da

temática

monetária

foram

moeda sólida no território do reino francês.

pois nunca a linhagem muito nobre dos reis da

(ARTIGAS,

França aprendeu a tiranizar, nem, por outro lado,

reconhecida como pioneira em sua época,

o povo gaulês jamais se acostumou à sujeição servil. Por isso, se a linhagem real da França abdicar de sua primeira virtude, sem dúvida

1989,

p.34).

A

obra

é

por dedicar-se exclusivamente ao tema da moeda e suas implicações.

Referências: ARENBERG, C.; POLANYIL, K. Trade and Market in the Early Empires. Paris. 1975. ARTIGAS. Mariano.Nicolás Oresme gran maestre del Colegio de Navarra, y el origen de la ciência

moderna.

In:

Príncipe

de

Viana,

ano

IX,

9,1989.

Disponível

476


Talles Henrique P. Maffei em:http://dspace.unav.es/dspace/bitstream/10171/7377/1/Nicol%C3%A1s%20Oresme.pdf . Acessado em 05/08/2014. CARMEM, Maria Del; PARRA, Concha. Las férias medievales, origen de documentos de

comercio. Valencia: Universidade de Barcelona. 2001. ELIAS, Nobert. O Processo Civilizador: Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, vol. 2, 1993. LE GOFF, J. La edad media y el dinero: ensayo de antropología histórica. Madrid: Akal, 2012. LOPEZ, R. A revolução comercial da Idade Média: 950-1350. Lisboa: Presença, 1980. ORESME, Nicolás. Primeiro Tratado da Invenção das Moedas. Curitiba: Segesta. 2004. WOOD, D. El pensamiento económico medieval. Barcelona: Crítica, 2003.

477


UMA INVESTIGAÇÃO REFLEXIVA SOBRE A PRODUCAÇÃO DO CONHECIMENTO NA UNIVERSIDADE MEDIEVAL Tatiane Palmieri Erzinger 1 Resumo: Examinaremos aqui a contribuição da educação, nas universidades medievais, para a formação do homem dessa época e de que maneira ela moldou seu comportamento, influenciando sua prática social. O presente material é o resultado de um estudo da historiografia relativa ao tema. O fio condutor de nossa exposição é que, no século XIII, as cidades, fruto da expansão do comércio, estimularam a vida intelectual. Por isso, nesse século, verificou-se a consolidação de uma nova instituição: a Universidade. Ela surgiu em cidades como Oxford (Inglaterra), Paris (França) e Bolonha (Itália). Essas instituições eram protegidas pela Igreja, pelo Rei, pelos grandes senhores feudais e pelos ricos moradores das cidades. Nelas, estudava-se Medicina, Direito, Teologia e Filosofia. Acorriam às universidades estudantes de diferentes partes da Europa. O método de ensino era a Pedagogia escolástica, porque duvidando é que se pensa e questionando se debatia e se chegava a determinadas conclusões. O conhecimento tinha que ser memorizado, porém, temos o conhecimento vinculado ao mundo racional, devido a falta do progresso científico, era devido a necessidade da época. A universidade é a resposta às necessidades então colocadas pelo mundo medieval. A Universidade e a Escolástica contribuíram para a expansão do mundo feudal, da ciência, do comércio, criando as condições para a formação do mundo moderno. As Universidades, como meio social, tornaram-se mais centros de formação profissional ao serviço dos Estados do que centros de trabalho intelectual e científico, desinteressados, modificaram a sua função e fisionomia social. Palavras-chave: Educação; Universidade Medieval; Conhecimento.

1

Mestrado em Formação de Professores/UNESPAR/Paranavaí

478


Tatiane Palmieri Erzinger A

universidade

medieval

proporcionava um mundo cosmopolita, um

progressos, como instituição para além dos desejos do outro ( GOFF, 1980).

centro universalizante, com uma língua comum,

o

Latim,

que

unificava

a

Lentamente, a instituição passa a cercear o acesso de estudantes pobres,

diversidade dos grupos que a compunham

por

e,

estabeleciam

ainda,

garantia

a

unidade

de

pensamento e de expressão.

intermédio

de

estatutos

valores

que

constantes

e

variados, pagos à instituição, sob as

Pernoud (1981, p. 104) afirma que:

diversas

Estudantes e professores são frequentadores

presentes, que em verdade eram garantias

das

estradas

reais,

a

cavalo

e

mais

frequentemente a pé percorrem léguas e léguas,

contribuem para a extraordinária animação que reinou nas nossas estradas, na Idade Média...

Pudemos, assim, visualizar o quanto a produção do conhecimento e da razão científica nascente estava próxima e até entrelaçada com a vida cotidiana. Esta autora descreve a pregação como um elemento

fundamental

na

educação

medieval; os indivíduos eram educados pelo ouvido, pelas palavras do outro, pelo que viam e viviam junto com os que os instruíam. Baseando-nos na obra de Le Goff,

Para um Novo Conceito de Idade Média, devemos observar, com detalhes, uma grande mudança: como a Universidade de Pádua se descaracteriza de suas primeiras formas de identificação, ou seja, com a cidade e com a comunidade, de modo que acaba por produzir uma identidade própria comprometida

consigo

e

com

seus

caixa,

propina

e

de pagamentos aos mestres. Podemos arriscar também que a

dormindo em celeiros ou hospedarias. Com os peregrinos e os mercadores, são eles quem mais

formas:

instituição

busca

juntamente

com

a

construção de uma identidade, também uma

elitização

de

seu

produto,

o

conhecimento. De modo que acaba por instaurar

uma

ascendência

à

hereditariedade masculinos

nova

categoria

de

Universidade,

a

paterna detentores

(indivíduos de

títulos

universitários). Le Goff prossegue mostrando-nos a construção da identidade do universitário, ou

seja,

a

consciência

que

estes

estudiosos tinham de si e de sua nascente profissão

amparados

pela

instituição

universitária, ao mesmo tempo em que a influenciavam e eram por ela influenciados. Se até então os embates eram acerca de ser o trabalho segundo o conceito da época algo bom ou não, digno ou não de pagamento, no presente momento o autor nos apresenta uma segunda discussão quanto ao conceito de trabalho: a divisão

479


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

deste mesmo conceito agora em trabalho

de si toma uma forma mais intransigente.

intelectual e trabalho manual. Para tanto

Nesse

centra seu estudo em autores como

precisa ser humilde, pois humildade opõe-

Abelardo, Felipe de Harvengt, Siger de

se à magnanimidade, as coisas carnais e

Brabante e Gerson, identificados em seus

temporais,

respectivos

que

interessa é o conhecimento da verdade, o

abarca desde o século XII até o XV,

objetivo final do homem. Deste modo,

período este de intensas mudanças para o

percebemos,

profissional e a instituição universitária (

pensadores universitários como uma classe

GOFF, 1980).

cuja

momentos

históricos

Notamos que os dois

momento,

não

o

lhe

universitário

importam;

nesse

identidade

não

o

que

momento,

intelectual,

os

que

está

primeiros autores acima citados estão

assegurada e justificada, garantida por

diretamente envolvidos com a formação da

virtudes

identidade profissional, ou seja, o papel do

científicas. A universidade é agora definida

mestre

como Mãe dos estudos, mestra da ciência,

universitário,

o

que,

segundo

Abelardo, é definido como sendo um Filósofo, de acordo com o conceito antigo

propriamente

intelectuais

e

ensinadora da verdade. ( GOFF, 1980). Ruy

Nunes

apresenta-nos

com

dos pagãos que reconheciam a supremacia

detalhes alguns aspectos da vida das

da Razão sobre a autoridade. Felipe de

universidades européias no decorrer do

Harvengt é apresentado pelo autor como

século XIII, assim como caracteriza o termo

aquele que procurou tanto a conciliação

escolástico como uma criação original da

quanto

Idade Média, com notáveis contribuições

uma

hierarquia

entre

trabalho

intelectual e trabalho manual, mosteiro e

para a cultura humana (NUNES, 1979).

escola, isto é, a religião e ciência. De modo

No entanto, as universidades, com

que podemos visualizar a universidade

os seus estatutos, com sua organização

como uma grande corporação de ofícios,

jurídica e com os graus acadêmicos,

cujo produto é o saber. Para Le Goff, a

surgiram espontaneamente no seio da

legitimidade do trabalho universitário é

cristandade medieval e foram uma das

confirmada com S. Tomás: “O universitário

suas originais criações.

tem seu trabalho manual mas que não

Ruy

Nunes

deixa

claro

que

a

perca tempo com que o lhe não diz

instituição universitária ocupa posição de

respeito”( GOFF,1980, p. 178).

primordial importância no interior da cidade

Já para a segunda metade do século

e do mundo medieval por se tratar de

XII, a consciência que o universitário tem

matriz do pensamento, de agência do

480


Tatiane Palmieri Erzinger saber, do progresso científico, filosófico e

Direito e Teologia passam a responder aos

literário, assim como por ser a fonte

interesses

geradora de profissões

e empregos que

reconheceu de fato a existência das

orientam a direção e a conservação da vida

cidades, também, o direito canônico legisla

social (NUNES, 1979).

e permite os privilégios dos universitários.

Desde o fim do século XII, à imitação

da

época.

E

o

direito

A nova instituição se formou em

das guildas dos mercadores, passou-se a

consequência

falar

e

escolas episcopais, dos novos métodos

efeito,

didáticos, do aumento do saber em função

autênticos trabalhadores intelectuais. No

das traduções das obras gregas e árabes,

entanto, o saber passou a estar ligado ao

da proteção de príncipes e papas, mas o

trabalho, ao mundo urbano e não mais às

fator essencial para sua criação foi o

questões

primeiro

caráter corporativo que assumiram as

momento em que os filhos dos burgueses

escolas de Artes, Direito, Teologia e

buscam,

Medicina. (NUNES, 1979).

das

corporações

estudantes,

que

eram,

religiosas. um

de

Foi

mestres com

o

conhecimento

mais

elaborado.

do

desenvolvimento

das

O direito romano foi retomado com o

O mundo universitário está ligado à

surgimento das cidades e teve um papel de

produção, às necessidades das cidades;

primordial

elas só existem porque há homens que

reconhecimento

precisam dela. Passou a ser necessário, a

privilégios dos universitários, já que os

produção da ciência, portanto, nenhum

estudantes eram pobres e essa era a forma

conhecimento produzido na faculdade era

de incentivar e atrai-los para seguir a

em vão. Os intelectuais elaboravam as

carreira intelectual.

teses para contestar alguns princípios da

Convém

importância da

para

autonomia

sabermos

e

o dos

que

as

religião que não respondia aos anseios da

faculdades de medicina se organizaram no

sociedade.

século XIII, mas isso se deu em grande

Nesse sentido, notamos que houve

parte graças ao aumento do acervo de

um rompimento das universidades com a

obras médicas elaboradas pelos médicos

Igreja, porque se necessitava produzir

da escola de Salerno, no Sul da Itália que,

conhecimentos

no século XI, já era um centro famoso de

para

aresolução

dos

problemas que existiam.

medicina, mas que, no entanto, nunca veio

Com as transformações ocorridas no

a possuir universidade. Enquanto Salerno

interior da sociedade, as Universidades de

teve ensino médico sem universidade,

481


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Montpellier projetou-se desde o século XII

limitados

com suas escolas de Artes e de Medicina

estudantes e mestres.

graças

à

sua

privilegiada

situação

O

pelas dever

assembléias mais

dos

importante

dos

geográfica e condição política e à sua

conselheiros era eleger o reitor que devia

“florescente burguesia” (NUNES, 1979).

ser estudante, clérigo, solteiro, de vinte e

Notamos

que,

das

cinco anos, ter estudado leis durante cinco

universidades de Bolonha (Direito Civil e

anos, ser membro da universidade que o

Direito

e

escolheu, ser adornado das virtudes da

Teologia) e de Montpellier (Medicina),

prudência e da honestidade. Cabia ao

surgiu a primeira universidade inglesa em

reitor-estudante exercer jurisdição civil e

Oxford. Mas é preciso destacar que não

criminal sobre os alunos e os professores e

houve

o

resolver as pendências entre as escolas de

aparecimento das universidades. As bulas

direito. Vejamos quem eram as pessoas

pontifícias e as cartas patentes dos reis

que ajudavam os reitores para o bom

foram expedidas numa data determinada,

funcionamento das universidades.

Canônico),

uma

ao

de

data

lado

Paris

precisa

(Artes

para

mas só vieram consagrar o que era fato consumado, ou seja, a constituição de uma corporação de mestres e estudantes. Com efeito,

as

primeiras

universidades

formaram-se espontaneamente e reis e papas apenas reconheceram oficialmente Convém, ademais, observar que as universidades de início não eram escolas saber

universal,

mas

institutos

especializados numa determinada área do conhecimento, mas as aulas eram públicas, acessíveis aos alunos de qualquer país e de qualquer condição. Em continuidade, verificamos que o principal

cargo

da

universidade

apreender

que

outros

componentes da administração universitária que cooperavam com o reitor eram os síndicos que deviam rever os atos dos reitores. Um advogado ou

síndico

reitorperante

cuidava o

foro

dos público.

interesses Seis

do

clérigos

prudentes eram incumbidos de revisar os livros que circulavam nas universidades. Os livreiros, sttionarii, promoviam a cópia e vendiam-nos. Os

as novas instituições (NUNES, 1979).

de

Conseguimos

era

exercido pelo reitor, que tinha seus poderes

clérigos adstritos ao exame da lisura das cópias e da correção dos textos eram os peciari, do termo pecia, seção do original aprovado de um manuscrito. Os massarii eram os tesoureiros, um para cada universidade. O notárioredigia os processos, anotava as matrículas e copiava os estatutos.

Finalmente,

acompanhavam

os

osbedéis

reitores

nas

gerais

cerimônias

públicas (procissões ou funerais), anunciavam os debates, as aulas, os feriados, a venda de livros e viviam da generosidade dos estudantes, enquanto os bedéis especiais cuidavam da limpeza e de outros aspectos materiais da escola. (NUNES, 1979, p. 222)

482


Tatiane Palmieri Erzinger Constatamos que os professores de

o papado insistia em afirmar sua jurisdição

Direito em Bolonha recebiam, de início, os

sobre as universidades e em nela ter o

seus

dos

monopólio da colação dos graus, éque as

estudantes. No fim do século XIII a

universidades preenchiam aos seus olhos

Comuna ou a municipalidade pagava os

funções

salários

serviço da Igreja, assim consideravam as

salários

dos

nas

universidades

professores

de

algumas

cátedras.

essencialmente

religiosas,

ao

universidades como instituições a serviço

No entanto, podemos definir que as universidades

do

século

Santa

Sé,

os

papas

procuravam

eram

introduzir nelas as categorias de clérigos

constituídas de caracteres essencialmente

que dependiam diretamente deles e eram

democráticos.

os agentes privilegiados da centralização

Porém,

XIII

da

“os

legados

pontifícios podiam desempenhar um papel importante, estatutos

outorgando eprivilégios,

pontifícia (VERGER, 1990).

oficialmente

anulando

Diante destes acontecimentos, a

certas

universidade fora vítima das ambiguidades

decisões, arbitrando nos conflitos entre

de sua situação: tendo no início esperado

outras tarefas” (VERGER, 1990, p. 51)

tudo do apoio da Santa Sé, foi incapaz de

Durante o século XII, os papas

resistir-lhe quando Alexandre IV mostrou

haviam favorecido o desenvolvimento das

brutalmente que a finalidade do papado

corporações universitárias. Nos lugares em

não era a de favorecer o desenvolvimento

que as universidades nasceram de escolas

das universidades e sua autonomia, mas

pré-existentes,

a

sim a de colocá-la a seu serviço, nelas

escapar ao controle das autoridades locais,

introduzindo seis partidários mais seguros,

eclesiásticas ou leigas, confirmando suas

os religiosos mendicantes, que tiveram

liberdades e franquias, colocando-as, em

como preceptores, São Domingo e São

alguns pontos, sob a jurisdição direta da

Francisco.

o

papado

ajudou-as

Santa Sé. Porém, não poderíamos deixar

Verificamos

também

que

os

de destacar que essa atitude não era

universitários contavam com um papel de

absolutamente desinteressada. Dentre os

destaque perante toda a sociedade, esse

interesses, estava a ideia de que as

fato

universidades

privilégios que os estudantes tinham:

deviam

permanecer

instituições eclesiásticas, onde o ensino, sobretudo o ensino superior, era uma das funções essenciais da Igreja. Sendo assim,

se

confirma

ao

destacarmos

os

“Certos privilégios tinham alcance local; visavam a por os

universitários ao abrigo de certas

coações que pesavam

sobre o resto da

população urbana. Compreendiam a isenção de

483


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo qualquer forma de serviço militar e sobretudo vantagens econômicas; os universitários não pagavam os auxílios cobrados aos habitantes da cidade; eram

dispensados dos impostos de

terrádigo e dos direitos, as mercadorias que mandavam vir para seu uso, sobretudo o vinho e a cerveja. Na própria cidade, lucravam com a

modificações

de

seus

programas,

a

evolução da faculdade de Artes ao longo do século XIII. De simples faculdade preparatória, dialético

que

ensinava

fundamental

o

aos

método estudos

taxação de certos preços, particularmente dos

superiores de Direito e de Teologia, ela foi

aluguéis para os quartos que alugavam aos

se tornando uma faculdade autônoma,

burgueses.(VERGER, 1990, p. 65)

Além desses privilégios, notamos uma forte proteção que os estudantes recebiam

dos

eclesiásticos

e

dos

governantes. Diante disso, para conhecermos a função essencial das universidades e averiguarmos o valor exato dos estudos universitários

torna-se

imprescindível

conhecer conteúdo desse ensino, a sua essência. Tais

problemas propriamente filosóficos, numa perspectiva diferente da faculdade de Teologia, que tinha como objetivo estudar a doutrina acerca das coisas divinas, doutrina da religião cristã. Em todas as faculdades, o ensino era, dominado por dois tipos fundamentais de exercícios: a aula e o debate. A primeira visava a fazer conhecer ao estudante as “autoridades” e, através delas, permitir-lhe dominar o conjunto da disciplina que estudava; a segunda era, ao mesmo tempo, para

programas

consistiam

essencialmente em textos, pois, através da leitura dos textos, que em cada disciplina era fundamental, formavam a base do ensino e do saber. À leitura dos livros fundamentais

consagrando-se aos estudos de livros e de

acrescentava-se

a

dos

comentários, antigos e modernos, mais autorizados que facilitavam a compreensão dos mesmos. Dentre os programas destacamos o quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia), que permanecia em honra nas faculdades de Artes de Pádua, Bolonha e, sobretudo, Oxford. Outro ponto a ser destacado é a apreensão através das

o

professor,

livremente

o

meio

certas

de

questões

aprofundarmais do

que

num

comentário de texto, para o estudante, a ocasião de por em prática os princípios da Dialética, de experimentar a vivacidade de seu espírito e a precisão de seu raciocínio. (VERGER, 1990, p. 56)

É

interessante

destacar

que

o

debate era o exercício primordial da pedagogia. A disputa através da questão se tornou um exercício autônomo próprio do mestre universitário que a organizava para os seus estudantes. Nessa ocasião os mestres

de

Teologia

ou

de

Artes

sustentavam uma disputa em que os temas eram imprevistos por serem escolhidos na

484


Tatiane Palmieri Erzinger hora pelos assistentes e as perguntas podiam referir-sea qualquer assunto.

Podemos

concluir

que

os

universitários surgiram para a história dos

Desse modo, podemos inferir que a

homens comprometidos com a razão eo

universidade medieval era um ambiente

conhecimento, construíram sua identidade

animado

profissional de trabalhadores intelectuais e

pelas

investigações,

pelos

debates e pela atividade dos alunos e

científicos,

professores. Ela não se fundamentava

identidade foi comprometida e corrompida

nesse processo didático atual, onde o

à medida que primaram por privilégios,

monótono e rotineiro de meras aulas

regionalizações,

expositivas e de modo algum os alunos se

ideológicos,

mostravam ouvintes passivos a repetirem

estado, uma classe a mais nas relações

cegamente as palavras do professor.

sociais, uma casta e não mais a Razão e o

Pudemos

entender

que,

na

no

entanto,

esta

poderes

mesma

políticos

favorecendo,

assim,

e um

intelecto como meio de se chegar ao

instituição, juntamente com a construção

conhecimento.

de uma identidade, houve também uma

Quanto

à

questão

do

termo

elitização de seu produto, o conhecimento.

Escolástica devemos entender que não é

De modo que acaba por instaurar uma

sinônimo de obscurantismo. A escolástica é

categoria de ascendência à Universidade, o

a filosofia crista, que se desenvolveu desde

nepotismo,

o início da Idade Média e que atingiu o seu

quepassou

a

imperar

na

distribuição dos cargos docentes atribuídos

apogeu

aos parentes, filhos, irmãos ou sobrinhos

declínio nos séculos XIV e XV. Faremos a

dos doutores em exercícios. Portanto, nos

caracterização geral desse termo:

séculos XIV e XV diminuiu a autoridade do Colégio dos Doutores que tinha o encargo de examinar os estudantes e de conferir o Durante os séculos XIV e XV o conceito que os universitários tem de si, está comprometido com uma moralidade e

consciência

século

XIII,

entrando

em

...A escolástica foi um método de pensamento e de ensino que surgiu e se formou nas escolas medievais e se plasmou de modo inexcedível nas universidades do século XIII, máxime através do magistérioe das obras de Santo Tomás de

grau de doutor.

religiosa

no

conservadora, primeira

de

perdeu

sua

profissão

Aquino. O termo escolástica, porém, significa ainda

o

conjunto

das

doutrinas

literárias,

filosóficas, jurídicas, médica e teológicas, e mais outras

científicas,

que

se

elaboram

e

corporificam no ensino das escolas universitárias do século XII ao século XV... (NUNES, 1979, p. 244)

corporativa e transformadora.

485


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Sendo assim, podemos questionar? O porquêdo método de ensino medieval ter sido a pedagogia escolástica? Porque duvidando é que se pensa, e questionando se debate e chega a conclusões. Devido a necessidade da época, o conhecimento na Idade Média tinha que ser memorizado, porém, temos o conhecimento vinculado ao mundo racional devido a falta do progresso científico.

raciocínio, a prática da reflexão filosófica, a disposição do pensamento em argumentações silogísticas, o recurso à dialética, o gosto das discussões. Se o escolástico trabalha com textos e

se

ampara

nas

autoridades,

eleconfia

igualmente no poder da razão, investiga as regras do pensamento racional e as aplica às suas investigações filosóficas e só admite uma conclusão

depois

de

acirradas

discussões

maduro e

exame, de

de

completa

demonstração com o emprego de silogismo. (NUNES, 1979, p. 245 e 246)

Quanto a essa característica da

Quando se considera o conjunto de doutrinas que o termo Escolástica abrange e quando se observa que é a filosofia a disciplina que exprime

Escolástica, onde se dá importância ao uso constante do raciocínio, Pedro Abelardo

interrogação

assídua

ressalta

(...)que a escolástica é um modo de pensar e um

define-se como a primeira chave da

sistema de concepções em que se valoriza a vida terrena como dom admirável de que usufruímos para o nosso bem e para o nosso desenvolvimento pessoal e em que se admite que o ser do homem não se esgota no breve tempo da sua existência terrena, uma vez que o

que

“a

os seus aspectos mais salientes, pode afirmar-se

sabedoria e é duvidando que se chega à verdade”. (NUNES, 1979, p. 247) A primeira forma fundamental do ensino, o processo básico, era a lectio, a

homem tem um fim supraterreno e eterno e o

leitura dos textos que proporcionava a

destino de uma vida interminável, sobre poder

aquisição do conhecimento e constituía o

crescer ainda neste mundo na vida sobrenatural que ele obtém através do batismo... (NUNES, 1979, p. 244-245)

A universidade e a escolástica é a

marco inicial da formação da cultura. O fator mais relevante para o desenvolvimento

da

Escolástica

foi

a

resposta teórica as necessidades postas

introdução das obras de Aristóteles na

pelo mundo medieval e contribuíram para

corrente latina dos estudos e a sua

que houvesse a transição do feudal ao

prescrição no currículo universitário. Com

mundo burguês.

Aristóteles

Por

outro

lado,

o

pensamento

medieval

determinado essencialmente pelos dois fatores da auctoritas e da ratio. Esses fatores do

entrava

no

pensamento

ocidental a convicção de que a filosofia é disciplina racional autônoma, relacionada

por sua vez, condicionaram o

intimamente com as outras e com a crença

desenvolvimento do método escolástico através

religiosa, mas distinta e independente na

pensamento,

de processos de ensino e de técnicas de trabalho em grupo.(...) A ratio, por sua vez, vem a ser a

sua constituição e operação.

razão humana, isto é, o uso constante do

486


Tatiane Palmieri Erzinger No século XII, penetram no mundo ocidental

concepções

que

não

se

educação moral e da instrução, formularam conceitos

metafísicos,

políticos,

enquadravam com a antiga escolástica de

psicológicos

orientação agostiniana.

concernentes à educação do homem.

quando

tratamos

Esse fato serve,

da

invasão

dos

e

éticos,

estritamente

técnicos,

O saber que o profissional do ensino

ensinamentos do aristotelismo árabe no

precisava

campo da escolástica, e que se opunham

corporações de ofício, produção e ao

frontalmente às verdades fundamentais do

mundo urbano.

deter

estava

ligado

as

Cristianismo, tal como a doutrina da

A universidade medieval só existe

eternidade do mundo, a interpretação do

porque os homens precisam dela, porque

intelecto agente e possível, de modo a

os mercadores lutaram para que ela se

negar a personalidade e a mortalidade da

formasse

alma humana, a limitação ou negação

respondeu as questões de sua época.

absoluta da Providência divina e também a negação do livre-arbítrio. Consultando

atradução

enquanto

instituição.

Ela

No século XVI houve a separação entre burguesia e plebeus para adentrar a

feita

universidade, somente o nobre poderia

diretamente do grego, Santo Tomás de

estudar, já os pobres estavam barrados de

Aquino recuperou o pensamento original de

ter acesso ao ensino universitário.

Aristóteles. Mais que isso, fez as devidas

Para Le Goff, o conceito que os

adaptações à visão cristã e escreveu uma

universitários têm de si, no século XV, está

obra monumental, a Suma Teológica, onde,

comprometido

uma vez mais, as questões de fé são

religiosa

abordadas pela “luz da razão” e a filosofia

consciência

é o instrumento que auxilia o trabalho da

corporativa e transformadora.

teologia. É com Aristóteles cristianizado que surge então a filosofia aristotélicatomista. Na Idade Média, desde o século XIII, os temas educacionais foram examinados principalmente na área da Ética, uma vez que educar é agir moralmente e não só aplicar regras ou técnicas psicológicas. Em suma, os pedagogos medievais trataram da

e

com

uma

moralidade

conservadora, primeira

perdeu

de

sua

profissão

Considerações Finais

A pesquisa

ideia

de

sobre

conhecimento

desenvolver a na

uma

produção

do

universidade

medieval, partiu da preocupação de compreender que não existe um ideal de educação, e sim uma educação própria às exigências de cada época.

487


Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo

Deste

modo,

preocupamo-nos

em

estudar que fatores contribuíram para

razão e o intelecto como meio de chegar ao conhecimento.

sua formação, como se dava seu

Vimos como a educação nas

processo educativo e qual o papel da

universidades medievais atuaram na

universidade no processo de formação

formação do homem desse período e

e da educação do homem medieval.

de

Acreditamos com esse estudo,

que

maneira

comportamento

moldaram

influenciando

seu seu

poder observar e analisar o período

desempenho na sociedade em que

medieval, buscando nele, entender que

estava inserido. Pretendemos verificar,

os

e

o quanto a educação esteve envolvida

pensavam segundo as questões do seu

na conduta dos homens na medida em

momento e, que, ao analisar esses

que estes se deparavam com os

fatores, poderemos adquirir um valioso

problemas e os resolviam, quando

instrumento

tinham que superar suas dificuldades e

homens

do

passado

para

agiam

compreender

as

questões relativas à educação em

na maneira como pensavam e agiam. Acreditamos que Le Goff e sua

nossa sociedade. Na obra “Para um Novo Conceito

obra nos ajudou

a atingir os nossos

de Idade Média de Le Goff”, usado em

objetivos,

nossa pesquisa, podemos entender que

comportamento, o pensar e a sociedade

os

do homem medieval e entender o papel

universitários

surgiram

para

a

compreender

história dos homens comprometidos

da

com

conhecimento,

medievais. Afinal, fica claro que a

construíram sua identidade que foi

motivação primeira deste autor são os

comprometida e corrompida a medida

problemas

que

pretende, com sua obra, atuar sobre os

a

razão

primaram

e

o

por

privilégios,

regionalizações, poderes políticos e

educação

homens,

de

na

o

sua

universidades

época

e

que

modificando-os.

ideológicos, uma casta e não mais a

488


Tatiane Palmieri Erzinger Referências BARK, William Carroll. Origens da Idade Média. 3. Ed. Rio de Janeiro, Zhar, 1974. DUBY, Georges. As três ordens do Imaginário do Feudalismo. Lisboa: Estampa. GOFF,Jacques Le. Para um novo Conceito de Idade Média.Lisboa. Estampa, 1980.

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489


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