Angelita Marques Visalli Pamela Wanessa Godoi André Luiz Marcondes Pelegrinelli (Org.)
ANAIS X CICLO DE ESTUDOS ANTIGOS E MEDIEVAIS XIII JORNADA DE ESTUDOS ANTIGOS E MEDIEVAIS V JORNADA INTERNACIONAL DE ESTUDOS ANTIGOS E MEDIEVAIS Saberes e Fazeres
Londrina - 2014 Universidade Estadual de Londrina
Reitora Prof. Drª Berenice Quinzani Jordão Vice-Reitor Prof. Dr. Ludoviko Carnasciali dos Santos Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Prof. Dr. Amauri Alcindo Alfieri Pró-Reitor de Extensão Prof. Dr. Sérgio de Melo Arruda Diretora do Centro de Letras e Ciências Humanas Prof. Drª Mirian Donat Chefe do Departamento de História Prof. Drª Angelita Marques Visalli Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História Social Prof. Dr. Francisco César Alves Ferraz Coodenador da Especialização em Religiões e Religiosidades Prof. Dr. Richard Gonçalves André Coordenador da Especialização em Patrimônio e História Maria Renata da Cruz Duran
Apoio:
Edição: André Luiz Marcondes Pelegrinelli Capa: Raquel M. Deliberador Imagens de Capa: "A matron shows how to treat wine and conserve it properly." - British Library, London. "Preparação para a festa." - Mosaico. - II a. C. Museu do Louvre, França.
Catalogação na publicação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) C568a Ciclo de Estudos Antigos e Medievais (10. : 2014 : Londrina, PR) Anais [do] X Ciclo de Estudos Antigos e Medievais, [da] XIII Jornada de Estudos Antigos e Medievais, [da] V Jornada Internacional de Estudos Antigos e Medievais / Angelita Marques Visalli, Pamela Wanessa Godoi, André Luiz Marcondes Pelegrinelli (org.). – Londrina : Universidade Estadual de Londrina, 2014. 706 p. : il. Tema central: Saberes e fazeres. Inclui bibliografia e índice. ISBN: 978-85-7846-293-2 1. História antiga – Congressos. 2. Idade Média – História – Congressos. I. Visalli, Angelita Marques. II. Godoi, Pamela Wanessa. III. Pelegrinelli, André Luiz Marcondes. IV. Jornada de Estudos Antigos e Medievais (13. : 2014 : Londrina, PR). V. Jornada Internacional de Estudos Antigos e Medievais (5. : 2014 : Londrina, PR). VI. Título. VII. Título: Anais [da] XIII Jornada de Estudos Antigos e Medievais. VIII. Título: Anais [da] V Jornada Internacional de Estudos Antigos e Medievais. IX. Título: Saberes e fazeres. CDU 93
Coordenação Geral Profa. Dra. Angelita Marques Visalli (UEL) Profa. Dra. Monica Selvatici (UEL) Profa. Dra. Terezinha Oliveira (UEM)
Comissão Organizadora Docentes:
Discentes:
Profa. Dra. Angelita Marques Visalli (UEL)
Alex Silva Costa
Profa. Dra. Monica Selvatici (UEL) Profa. Dra. Terezinha Oliveira (UEM) Profa. Dra. (Unicamp)
Renata
C.
Barbosa
Profa. Dra. Edméia Ribeiro (UEL)
Alisson Guilherme Gonçalves Bella André Luiz Marcondes Pelegrinelli Giovana Maria Carvalho Martins Pamela Wanessa Godoi Raquel Medeiros Deliberador
Profa. Dra. Ana Heloísa Molina (UEL)
Comissão Científica Prof. Dr. Pedro Paulo Funari (Unicamp) Profa. Dra. Renata Cerqueira Barbosa (Unicamp) Profa. Dra. Edméia Ribeiro (UEL) Profa. Dra. Ana Heloisa Molina (UEL) Prof. Dr. Julio Cesar Magalhães de Oliveira (USP) Prof. Dr. Jaime Estevão dos Reis (UEM) Prof. Dr. Mario Jorge da Motta Bastos (UFF) Profa. Dra. Adriana Maria de Souza Zierer (UFMA)
SUMÁRIO PREFÁCIO_______________________________________________________________________11
APRESENTAÇÃO__________________________________________________________________12
COMUNICAÇÕES_________________________________________________________________14 LEONARDO BRUNI E A ESCRITA DA HISTÓRIA DO POVO FLORENTINO Alessandro Arzani__________________________________________________________ 15 “ENTÃO
LHE FORAM GRAVADOS NÃO NO CORPO, MAS NO CORAÇÃO”: UMA ANÁLISE SOBRE A INTENCIONALIDADE DOS DISCURSOS HAGIOGRÁFICOS MEDIEVAIS SOBRE A ESTIGMATIZAÇÃO DE FRANCISCO DE ASSIS
Alex Silva Costa____________________________________________________________32 ESTRATÉGIAS
DE APROPRIAÇÃO E ATUALIZAÇÃO DE FORMAS LITERÁRIAS TRADICIONAIS NO ROMANTISMO PORTUGUÊS: A BALADA E O ROMANCE
Ana Marcia Alves Siqueira__________________________________________________ 47 FIDELIDADE: A PROPOSTA PEDAGÓGICA DE DHUODA Ana Paula dos Santos Viana__________________________________________________61 ESTUDOS QUEER E ANTIGUIDADE: O CASO DOS GALLI DE CIBELE REPRESENTADOS POR MARCIAL Benedito Inácio Ribeiro Júnior________________________________________________75 O PAPEL HISTÓRICO DA SUMA CONTRA OS GENTIOS DA FILOSOFIA MEDIEVAL Camila Ezídio______________________________________________________________ 89 NICOLAU E DAMASCO E CAIO OTÁVIO: ENTRE REDES SOCIAIS E DISCURSOS Carlos Eduardo da Costa Campos_____________________________________________ 99 UM ESTUDO DO ESPAÇO SAGRADO E DO ESPAÇO PROFANO EM DUAS CANTIGAS DE AMIGO Célia Santos da Rosa_______________________________________________________ 114 A RECONQUISTA DA HISPÂNIA: MITO GÓTICO E GUERRA SANTA César Augusto da Silva Foga_________________________________________________126
AS CANTIGAS
DE
LOUVOR
DE
D. AFONSO X
E O ESPAÇO SAGRADO: ESTUDO DO TEXTO E DA
IMAGEM
Clarice Zamorano Cortez____________________________________________________139 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES COM RELAÇÃO À PARTICIPAÇÃO FEMININA NA VIDA RELIGIOSA NA ALTA IDADE MÉDIA Cláudia Trindade de Oliveira_________________________________________________150 RE(A)PRESENTAÇÕES DAS DOMINAS: A MATRONA NO PRINCIPADO ROMANO Daniel Menniti__________________________________________________________160 DECADENTISMO, ESGATOLOGIA APOCALÍPTICA E A CRISE IMPERIAL NO SÉCULO III Douglas Raphael Machado Gobato__________________________________________171 UM PEQUENO TRATADO DE PUERICULTURA E PEDAGOGIA NO “LIVRO DE EVAST E BLANQUERNA” DE RAMÓN LLULL. UMA PERCEPÇÃO DA INFÂNCIA NO SÉCULO XIII Edilberto Alves da Silva___________________________________________________ 185 UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DO CAMPO DA HISTÓRIA MEDIEVAL NO BRASIL Eduardo Cardoso Daflon____________________________________________________196 UMA
REFLEXÃO DOS FAZERES FEMININOS MEDIEVAIS DENTRO DO UNIVERSO DA MULHER CONTEMPORÂNEA
Evelline Soares Correia; Edneia Regina Rossi__________________________________204 DO
ACOLHIMENTO À HOSTILIDADE: ENTRE OS SÉCULOS XV E XVI
A
EXCLUSÃO DOS CONVERSOS DA
ESPANHA
E DE
PORTUGAL
Helena Ragusa____________________________________________________________215 DINHEIRO, PARA QUE DINHEIRO? José de Arimathéia Cordeiro Custódio________________________________________228 O GÊNERO EPIDÍTICO NOS IMPERADOR
SÉCULOS
IV
E
V: A RETÓRICA
DO ELOGIO E DO ACONSELHAMENTO AO
José Petrúcio de Farias Júnior______________________________________________ 246 A ATUAÇÃO DO BISPO MARTINHO DE BRAGA NA ORGANIZAÇÃO DA IGREJA GALEGA: AS RELAÇÕES COM O REINO SUEVO E A RELIGIOSIDADE POPULAR (SEGUNDA METADE DO SÉCULO VI) Juliana Bardella Fiorot_____________________________________________________263
O MILAGRE DA VIDA APRESENTADO EM DUAS CANTIGAS DE SANTA MARÍA: ESTUDO DO TEXTO E DA IMAGEM
Keila Mara Fraga Ramos de Oliveira__________________________________________278 A RAINHA E O CORO EM SOCIEDADE GREGA
AGAMÊMNON:
FORMAS DE PENSAR A PRESENÇA DA MULHER NA
Lisiana Lawson Terra da Silva_______________________________________________292 PERSUASÃO: INDEPENDÊNCIA E CENTRALIZAÇÃO DE GUILHERME, O CONQUISTADOR, NAS FONTES ANGLO-NORMANDAS DO SÉCULO XI Lúcio Carlos Ferrarese_____________________________________________________307 O DISCURSO DE XENOFONTE E A REPRESENTAÇÃO DE AGESILAU II, NO SÉCULO IV A. C. Luis Filipe Bantim de Assumpção___________________________________________ 316 AS LEIS MATRIMONIAIS NAS SITE PARTIDAS DE AFONSO X, O SÁBIO Luísa Tollendal Prudente___________________________________________________331 O RETRATO DO ARTISTA MEDIEVAL: TEXTO E IMAGEM
SOBRE
AUTORIA E A POLIFONIA DO
ROMAN
DE LA
ROSE
EM
Luiz Fernando Alves_______________________________________________________339 PROPRIEDADES MORFOSSINTÁTICAS DOS VERBOS ESTATIVOS: UM OLHAR SOBRE O SISTEMA VERBA LATINO Luiz Pedro da Silva Barbosa________________________________________________350 DA ESCRAVIDÃO ANTIGA À MODERNA: UM SEGREDO EM CERVANTES? Marcello de Albuquerque Maranhão_________________________________________361 A CANÇÃO DE ROLANDO: UM LEGADO MEDIEVAL ENTRE HISTÓRIA E FICÇÃO Maria do Carmos Faustino Borges___________________________________________370 UM TOQUE DE CULTURA LATINA NA MÚSICA NORDESTINA: LEITURA DA ARS AMATORIA Milton Genésio de Brito__________________________________________________382 PÁSCOA CRISTÃ E JUDAICA: ESTRUTURA E HISTÓRIA DE LONGA DURAÇÃO Nathany A. W. Belmaia___________________________________________________396 NOBREZA E RELAÇÕES DE PARENTESCO: IDENTIDADES SOCIAIS NO SÉCULO XIII Neila M. de Souza________________________________________________________ 412
RAINERUS: O COPISTA DE CAMBRAI E OS ARTISTAS NO MEDIEVO Pamela Wanessa Godoi___________________________________________________423 A SISTEMATIZAÇÃO DO SABER E DO FAZER ORDEM DE CAVALARIA, DE RAMON LLULL
DO CAVALEIRO:
UMA
ANÁLISE DA OBRA
O LIVRO
DA
Paula Carolina Teixeira Marroni_____________________________________________436 CULTURA ALIMENTAR E SAÚDE PREVENTIVA NA CATALUNHA DO SÉCULO XIII: AS REGRAS DE SAÚDE A JAIME II DE ARNAU DE VILANOVA (1308) Renato Toledo Silva Amatuzzi_____________________________________________ 445 IMAGEM
DE DOM SEBASTIÃO COMO ELEMENTO EDUCATIVO: ICONOGRÁFICA – SÉCULO XVI
REPRESENTAÇÃO
MENTAL E
Sandra Regina Franchi Rubim_______________________________________________ 456 MOEDA E PODER NO PENSAMENTO DE NICOLÁS DE ORESME Talles Henrique P. Maffei__________________________________________________468 UMA
INVESTIGAÇÃO REFLEXIVA SOBRE A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO NA UNIVERSIDADE MEDIEVAL
Tatiane Palmieri Erzinger__________________________________________________ 478 ESPECTADOR E POETA: OS LUDI E O CLIENTELISMO NOS VERSOS DE MARCIAL Thais Ap. Bassi Soares____________________________________________________ 490 CATARINA DE SENA: RENÚNCIA, 1347-1380
DEVOÇÃO E FÉ COMO FORMA DE ESTAR COM E EM
DEUS –
Thiago Palmeira Machado; Maria Cecília Barreto Amorim Pilla____________________501 A MULHER IDEALIZADA DE DOM DINIS E VINÍCUS DE MORAES Valéria Santos_________________________________________________________ 512 DO CONVÍVIO À MONARQUIA: CONSTRUÇÃO DO IDEÁRIO DO NOBRE MEDIEVAL Viviane de Oliveira_____________________________________________________522 PÔSTERES___________________________________________________________________________535 JUÍZO FINAL NA IDADE MÉDIA: UM (1399-1464)
ESTUDO SOBRE O POLÍPTICO DE
ROGIER VAN DER W EYDEN
Alisson Guilherme Gonçalves Bella_________________________________________ 536
AS PINTURAS DA BASÍLICA DE SÃO FRANCISCO, ASSIS: POSSIBILIDADES DE ANÁLISE A PARTIR DA HISTORIOGRAFIA RECENTE SOBRE AS IMAGENS MEDIEVAIS
André Luiz Marcondes Pelegrinelli__________________________________________548 O ESPAÇO SAGRADO EM DUAS CANTIGAS DE SANTA MARIA DEDICADAS À VIRGEM DE TERRENA Carlos Henrique Durlo_____________________________________________________558 A CONCEPÇÃO DE HISTÓRIA PARA POLÍBIOS – UM OLHAR GREGO SOBRE AS CONQUISTAS ROMANAS Diego Regio Giacomassi___________________________________________________568 GÊNERO
E SEXUALIDADE NOS ESTUDOS DA ANTIGUIDADE ROMANA: PRESSUPOSTOS TEÓRICOS/METODOLÓGICOS SOBRE A MASCULINIDADE NOS EPIGRAMAS DE MARCIAL (I SÉC. D.C.)
Filipe Cesar da Silva_______________________________________________________577 MADALENA
EM ASSIS: CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DE SUA IMAGEM NA REPRESENTAÇÕES E CULTO NO MEDIEVO
BASÍLICA,
SUAS
Giovana Maria Carvalho Martins____________________________________________590 POESIA GOLIÁRDICA E REPRESENTAÇÃO NA CULTURA MEDIEVAL (SÉCULOS XII E XIII) Helena Macedo Ribas____________________________________________________602 ALÉM DO JOGO, VINHO E AMOR: A POESIA GOLIÁRDICA COMO MANIFESTAÇÃO POLÍTICA Jivago Furlan Machado___________________________________________________609 A IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA NAS AÇÕES DO MONARCA D. DINIS Lorena Faccin Rosa_______________________________________________________ 619 FONTES MEDIEVAIS: A CRÔNICA DE ALFONSO X, O SÁBIO Luiz Augusto Oliveira Ribeiro_______________________________________________ 627 A IMAGEM DE JÚLIO CÉSAR CONSTRUÍDA A PARTIR DAS OBRAS: DE BELLO GALLICO E DE BELLUM CIVILE Natália de Medeiros Costa_________________________________________________636 RELIGIOSIDADE NO SÉCULO XV: O CULTO MARIANO A PARTIR DE OBRAS DE JAN VAN EYCK Rafael Fernandes Speglic_________________________________________________ 648 HIBRIDIZAÇÃO: UMA MEDIEVAL
QUESTÃO DE IDENTIDADE DE SÍMBOLO E LITERATURA NA
ESCANDINÁVIA
Rafael M. Oliveira; Tiago de Oliveira Veloso Silva_______________________________661
REPRESENTAÇÕES DA CRUCIFICAÇÃO NA BASÍLICA DE SÃO FRANCISCO, EM ASSIS. Raquel de Medeiros Deliberador____________________________________________ 670 ANÁLISE
SOBRE A IDEIA DE BOM GOVERNANTE EM MARCO INFLUÊNCIA NO CONTEXTO POLÍTICO ROMANO DO IMPERADOR
AURÉLIO
E O ESTOICISMO COMO
Stéfani de Almeida Onesko_________________________________________________678 A CRÔNICA GERAL DE ESPANHA DE 1344: COMO SUPORTE PARA A CONSTRUÇÃO IDEALIZADA DE AFONSO HENRIQUES, REI DE PORTUGAL Willian Brusch_____________________________________________________________690
ÍNDICE DE AUTORES_____________________________________________________________704
PREFÁCIO O X Ciclo de Estudos Antigos e Medievais, a XIII Jornada de Estudos Antigos e
Medievais e a V Jornada Internacional de Estudos Antigos e Medievais, realizada na Universidade Estadual de Londrina, entre os dias 09 e 12 de setembro, do ano corrente, é uma atividade regular promovida por grupos de pesquisas cadastrados no CNPq: pelo grupo
Cultura Medieval, Transformação Social e Educação nas épocas Antiga e Medieval e pelo grupo interinstitucional denominado Grupo de Estudos em Antiga e Medieval do Paraná e
Santa Catarina. São três Grupos que congregam, em torno do estudo da Antiguidade e da Idade Média, pesquisadores da Universidade Estadual de Maringá, da Universidade Estadual de Londrina, da Universidade Federal de Santa Catarina, da Universidade Tuiuti do Paraná, por alunos da Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá e por alunos de diversos cursos de Graduação em Ciências Humanas da mesma Universidade. Esses Grupos reúnem estudiosos de diversos níveis de formação e campos do conhecimento como Educação, História, Filosofia, Letras, Teologia, Direito, Artes Plásticas, Música, Literatura, Lingüística, Estudos das Imagens e Ciências Naturais. O objetivo geral deste Evento é propiciar aos alunos de graduação em Pedagogia, História, Filosofia, Letras e áreas afins, aos professores do ensino básico, bem como aos alunos da Pós-Graduação, especialmente os do Mestrado em Educação, o acesso às pesquisas acerca da Antiguidade e da Medievalidade. Com isso pretende-se promover debates acerca das fontes sobre as épocas Antiga e Medieval e das possibilidades de acesso a elas no Brasil, bem como acerca das influências éticas e culturais que essas duas épocas históricas exerceram e exercem sobre a contemporaneidade ocidental. Nesta edição, em especial, cujo tema central é
Saberes e Fazeres, buscamos novos interlocutores nos campos da arqueologia e da iconografia, com o fito de explicitar, por meio dos debates, as possibilidades e a relevância de pesquisas no âmbito da cultura material nessas duas temporalidade da história. Nesse sentido, a realização da XIII Jornada de Estudos Antigos e Medievais, X Ciclo de
Estudos Antigos e Medievais e V Jornada Internacional de Estudos Antigos e Medievais certamente consolidará a atuação dos Grupos, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Londrina e do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Estadual de Maringá, assim como das nossas Instituições junto à comunidade científica nacional e internacional.
Profa. Dr.ª Terezinha Oliveira Coordenadora Geral do X CEAM / XIII JEAM / V JIEAM Universidade Estadual de Maringá
11
APRESENTAÇÃO Nossos eventos X Ciclo de Estudos Antigos e Medievais e a XIII Jornada de Estudos Antigos e Medievais/V Jornada Internacional de Estudos Antigos e Medievais vêm mais uma vez confirmar uma feliz trajetória. Para esta edição dos eventos propomos o tema “Saberes e Fazeres” porque pensamos em chamar a atenção para os vários aspectos da vida do homem antigo e medieval: seu cotidiano, suas elaborações sobre o mundo e o lugar que ocupavam. Buscamos evidenciar o pensamento do homem sobre sua existência e os desafios da vida no social, a criação de fórmulas para lidar com o que é rotineiro e o que se apresenta como extraordinário, assim como as práticas cotidianas e aquelas fora do comum. Buscamos, assim, a partir de tema abrangente, oportunizar participação de pesquisadores de diferentes campos de estudo, favorecendo um intercâmbio de conhecimento que tem como última intenção compreender melhor esse “outro” do passado com o qual nos identificamos tanto e que, por outro lado, provoca-nos profundo estranhamento. Apresentamos aqui os textos dos trabalhos inscritos em nosso Ciclo de Estudos Antigos e Medievais realizado em 2014 em Londrina. Tivemos a grata satisfação de receber trabalhos de qualidade em diferentes estágios de maturação: doutores, mestres, doutorandos, mestrandos e graduandos apresentaram reflexões ora amadurecidas, frutos de trabalhos já concluídos, ora em andamento. A quantidade de trabalhos inscritos nos aponta um quadro estimulante: cinqüenta e nove, entre pesquisas realizadas nas instituições do Paraná e em outros estados. Para isso cremos que a continuidade dos eventos ao longo dos quase vinte anos contribuiu bastante. Essa vitrine de trabalhos de pesquisa é um estímulo importante para os interessados em refletir sobre os períodos, além de se constituir em espaço privilegiado para a troca de experiências. Gostamos muito do ambiente agregador que promovemos e que só se torna real com o mesmo propósito do conjunto dos participantes. Os pesquisadores percorrem a partir da história, filosofia, educação e das letras, o universo religioso e literário, a vida econômica, política, o cotidiano, enfim, e com abordagens múltiplas que consideram as relações de parentesco e de gênero, o alimento do corpo e do espírito, os discursos e os fazeres.
12
Nosso contentamento, ainda, ao perceber a riqueza da documentação apresentada nos trabalhos, algumas já bastante conhecidas, mas que se apresentam a partir de novos olhares, outras pouco difundidas fora do estreito circuito dos seus pesquisadores, além das discussões historiográficas. A particularidade do crescimento das pesquisas que se fundamentam em documentação imagética é para nós uma grande satisfação. A publicação dos anais em formato de livro digital (e-book) online permite uma mais efetiva extensão universitária e circulação destes estudos, para tal, este e-book está hospedado nos portais da ISSUU (issuu.com/ciclodeestudosantigosemedievais)
e
Calaméo (pt.calameo.com/accounts/3848232). Desejamos aos leitores momentos de esclarecimento, aprendizado e fruição.
Profa. Dr.a Angelita Marques Visalli Coordenadora Geral do X CEAM / XIII JEAM / V JIEAM Universidade Estadual de Londrina
13
COMUNICAÇÕES
LEONARDO BRUNI E A ESCRITA DA HISTÓRIA DO POVO FLORENTINO Alessandro Arzani 1
Resumo: O período convencionalmente chamado de Renascimento (séc. XIV – XVI) é reconhecido como um momento de grandes transformações culturais na Europa. Florença é epicentro desse processo que muda a história e Leonardo Bruni, ao escrever a história de Florença, muda o modo como se escrevia a história. Nascido na cidade de Arezzo (c. 1369), a 70 km de Florença, Leonardo Bruni estudou direito e depois se tornou um especialista em estudos clássicos. Por muitos anos foi chancellor de Florença e escreveu sua célebre Historiarum Florentini populi libri XII, que passou a ser reconhecida como marco na historiografia ocidental, por apresentar um padrão de escrita distinto daquele recorrente em diversas regiões da Europa na Idade Média. Sua História do povo florentino parte desde a fundação de Florença até os dias mais próximos exaltando os “valores republicamos”. A princípio sua obra não representou nada de estrondoso à literatura de sua época, mas seu estilo não passou despercebido aos estudiosos no último século, que o chamaram de “o primeiro historiador moderno”. Além dos paralelos que podem ser estabelecidos entre a escrita da história na perspectiva de Bruni e a historiografia moderna e contemporânea, é fundamental refletir essencialmente sobre o que sua obra representou para a história de seu tempo. Por isso, propõe-se neste artigo uma análise da história escrita por Leonardo Bruni com o intuito de compreender os principais aspectos do seu paradigma historiográfico.
Palavras-chave: Leonardo Bruni; Historiografia; Renascimento
1
Acadêmico da UFRGS.
15
Alessandro Arzani
convencionalmente
Florentini populi libri XII, recebeu o favor
chamado de Renascimento (séc. XIV –
dos Medici e foi restabelecido ao cargo de
XVI) é reconhecido como um momento de
chancellor do Estado, onde permaneceu
grandes
até o fim de sua vida (BURKE, 1908).
O
período
transformações
culturais
na
Europa. Florença é o epicentro desse
Sua História do povo florentino
processo que muda a história e Leonardo
chama
a
atenção
hoje
Bruni, ao escrever a história de Florença,
características
muda o modo como se escrevia a história.
reconstrói a história do povo da região da
particulares.
por
suas
Nela
ele
Nascido na cidade de Arezzo (c.
Toscana desde a fundação de Florença,
1369), a 70 km de Florença, Leonardo
pelos romanos, até os dias mais próximos
Bruni começou a estudar Direito e mais
exaltando os “valores republicamos”. A
tarde, sob a proteção de Salutato e a
princípio a obra de Bruni não representou
influência
do
constantinopolitano
nada de estrondoso à literatura de sua
Chrysoloras,
passou
a
época,
dedicar-se
ao
mas
seu
estilo
não
passou
estudo dos clássicos. Em 1405 conseguiu
despercebido devido aos contrastes com a
com a ajuda de seu amigo Poggio um
escrita da história daquele período.
posto de secretário apostólico sob o Papa
Durante o último século preponderou
Inocêncio VII. Por vários anos permaneceu
a discussão acerca da relação entre o
em Roma auxiliando também aos papas
Medievo
Gregório XII e Alexandre V. Em 1410, foi
Burckhardt (1955) sustentou a tese de que
eleito Chancellor da República de Florença,
o Renascimento representava uma ruptura
mas rejeitou o ofício depois de poucos
com o mundo precedente. Por outro lado,
meses, retornando a corte papal como
Konrad
secretário
nenhuma ruptura entre os dois períodos e
de
João
XXIII,
a
quem
e
o
Burdach
(1935)
Em 1415, Bruni retorna a Florença, onde
Renascimento era preciso retroceder ao
passou o resto de seus dias até 1444. Ele
ano 1000. Semelhantemente instauram-se
dedicou boa parte de sua vida ao estudo
indagações sobre rupturas e continuidades
dos
no estilo historiográfico de Leonardo Bruni.
a
escrita.
Produziu
biografias de Dante e Petrarca, assim como importantes
traduções
falar
de
Burckhardt (1955) viu a historiografia
Aristóteles,
de Bruni mais como um regresso do que
Platão, Plutarco, Demóstenes, etc. Como
como um “progresso” e não escondeu sua
Historiarum
preferência pelo estilo de cronistas como
reconhecimento
pelo
de
se
notava
destacou
e
para
não
Jocab
acompanhou no Concílio de Constança.
clássicos
que
Renascimento.
seu
16
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Giovanni Villani (1276-1348). “Regresso”
Por isso, propõe-se neste artigo
que Edmund Fryde (1983) interpretou como
análises da história escrita por Leonardo
uma revisitação à historiografia clássica.
Bruni com o intuito de compreender os
Para Bernard Guenée (1973, pp. 997-
principais aspectos do seu paradigma
1016) 2, Bruni foi o último historiador
historiográfico.
medieval; para Emilio Santini (1910, pp. 3-
II A principal consideração de Ianziti
173), por outro lado, ele foi o primeiro dos Ianziti
(1997, p. 87) é a validade da equiparação
buscou nos escritos de Bruni as raízes da
de Bruni como o primeiro historiador
historiografia moderna em seu livro Whiting
moderno. Ele parte da análise que leva em
history in Renaissance Italy (2012), mas
contar o modelo de pesquisa de Bruni e os
negou o emprego dos termos “primeiro
modelos epistemológicos levantados pelos
historiador moderno” ou “último historiador
acadêmicos do século XX. Isso inclui a
medieval” ao aretino em um de seus artigos
seguinte questão: seria Bruni realmente
(1997). No mesmo volume da revista
“moderno” ou teria sido ele apenas uma
Parergon, John Ward (1997, pp. 104-105)
construção da história recente em busca
insere a obra de Leonardo Bruni no centro
por precursores? E ainda: Se Bruni não foi
de sua interrogação acerca das origens
o primeiro historiador moderno, teria sido
medievais da historiografia moderna por
ele o último historiador medieval, como
meio da análise da relação entre “crônica”
sugeriu Bernard Guenée? A despeito da
e “história”. Ao destacar a extraordinária
consideração adquirida nos estudos da
variedade
historiográfica
historiografia do Renascimento no último
medieval, Ward estabelece correção não
século, a História de Bruni só conseguiu o
com o padrão “moderno”, mas com o
status de obra inovadora muito depois de
mundo pós-moderno, que questiona as
sua publicação 3.
historiadores
estruturas
modernos.
da
prática
paradigmáticas
Gary
ao
redor.
Todavia, além desses paralelos entre a
Um dos primeiros a reconsiderar a
História
do
povo
florentino
foi
o
escrita da história na perspectiva de Bruni e a historiografia moderna e contemporânea, é fundamental refletir essencialmente sobre
3
Ianziti apontou como, além de Burckhardt, Muratori não
apresentou apreço pela obra de Bruni e hesitou em publicá-la em seu Rerum italicarum scriptores (25 vols.;
o que sua obra representou para a história
Milan, 1723-1751). Mas Muratori publicou as crônicas de
de seu tempo.
Villani em 13 volumes (1728) e 14 (1729), o que rendia a este último maior prestígio segundo seus critérios
2
Cf. Também GUENÉE, 1980.
(IANZITI, 1997, p. 88).
17
Alessandro Arzani
medievalista Gaetano Salvemini (1873-
versão de Santini sobre Bruni como um
1957). Em um dos seus antigos trabalhos –
desinteressado buscador da verdade. Os
Magnati e popolani in Firenze dal 1280-
métodos críticos de Bruni são considerados
1295 (Florença, 1899) – Salvemini faz uma
um subproduto do que ele dizia ser a
menção especial de Bruni, louvando-o por
defesa
ter estabelecido uma acurada imagem das
Florença. Baron (1988. 1,44) argumenta
instituições
que historiadores de outras cidades da
florentinas
medievais.
de
Salvemini explicou também os itens dessa
Itália
reavaliação:
articular
apurada
ele
como
demonstra Bruni
a
procede
forma e
sua
valores
também
florentinos
republicanos
foram
uma
comissionados
propaganda
como
de
Bruni
oficial
começaram
a e a
afinidade com os métodos conhecidos pela
trabalhar fora de um desejo pessoal e um
historiografia moderna. Ele definitivamente
sentimento patriota.
não via Bruni como um escritor comum e
Em síntese, há uma tendência em
seu julgamento influenciou decisivamente a
destacar
como
evidências
inclusão da História de Bruni na nova
“modernidade” a metodologia crítica, a
edição do Rerum italicarum scriptores, cujo
extinção
editor foi Emilio Santini.
estabelecimento
do
da
anacronismo, de
uma
o
adequada
Santini pensa, na verdade, como se
distância entre o presente e o passado,
estivesse lidando com um trabalho do
preocupação com autenticidade, atitude
século XIX. Ele viu Bruni como alguém que
secularizada diante das causas e o fator
tinha
narrativas
humano da história, enfatizando noções
anteriores sujeitando-as à crítica da fonte.
como origem nacional, liberdade, anatomia
Como analisou Anna Maria Cabrini (1990,
anti-imperial e outros paradigmas como uso
pp. 248-249 apud IANZITI, 1997, p. 89),
próprio de fontes e documentação, cultivo
Santini parece ter ido longe demais ao
da objetividade histórica em vez de uma
tentar ler “modernidade” nos métodos de
explicação transcendental (GREEN, 1972.
Bruni.
pp. 6-7).
a
tarefa
de
corrigir
Segundo Ianziti (1997) o fator que
Segundo John O. Ward (1997, p.
mais explica essa imagem de “primeiro
105), a perspectiva folclórica do período
historiador moderno” foi sua incorporação à
medieval
tese de “humanismo cívico” de Hans Baron
insistam sobre a modernidade destes
(FUBINI, 1992, pp. 541-574). Baron (1955.
aspectos da historiografia, devido ao vício
pp. 51-54, 465) aceita por completo a
da
faz
excessiva
com
que
distinção
historiadores
entre
padrão
18
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
medieval e a renascença da escrita da
também é uma codificação dos fatos e das
história. Desse modo, é necessário atentar
datas que, na sua forma medieval, se
para as propriedades do modelo de escrita
distingue mal dos anais.
da história no período medieval para se
Atentando para essas proposições,
aprender sobre o caráter da obra de
Bernard Guenée (1973) faz uma análise
Leonardo Bruni.
das propriedades da “escrita histórica”
A escrita da história na Idade Média
representada nos textos classificados como
circulava essencialmente em torno de
história, anais e crônicas na Idade Média.
“gêneros” como anais, crônicas e história.
Ele aponta que a compreensão medieval
Embora seja amplamente contestável a
da diferença entre ‘história’ e ‘anais-
hipótese
crônicas’ foi de apenas um grau: cronistas
dessas
três
categorias
representarem gêneros de fato. M. R.. P.
seguiam
McGuire (1967, p. 51 apud GUENÉE, 1973,
historiadores, sendo relativamente livres da
p. 998) considerava os anais como obras
tirania
de compiladores contemporâneos, em sua
análises de fatos por reinos, assuntos,
maioria
anotavam
materiais consanguíneos. Guenée (1973, p.
brevemente, em ordem cronológica, os
1009) considerou que na Idade Média não
eventos que consideravam importantes. As
houve nenhum avanço em direção à crítica
crônicas respeitavam a ordem cronológica,
das causas, pois a história era uma
mas davam mais detalhes, tratando do
disciplina
passado e do presente e seus autores
figuras menores, monges retirados do
eram frequentemente conhecidos. Mas
mundo, homens obscuros, desajeitados,
McCGuire é o primeiro a reconhecer que
medíocres: história era uma profissão
crônicas e anais se confundem geralmente
marginalizada.
e que as crônicas assumem muitas vezes o
Renascimento italiano a renovação da
caráter de histórias stricto sensu, quando
antiga noção de orador como historiador
seus autores precisam as causas dos
suplantou
eventos e formulam os juízos.
cronológica.
anônimos,
que
B. Lacroix (1971, pp. 34-38 apud
séries do
anuais,
anual,
marginal.
o
Inglaterra,
enquanto
reagrupavam
Historiadores
Mas
império França
suas
eram
apenas
da e
no
narrativa Alemanha
GUENÉE, 1973, p. 998) a história é um
foram, para Ward (1997), três regiões que
gênero
da
poderiam reivindicar durante a Idade Média
historiografia; os anais são uma simples
um espaço especial na transmissão dos
codificação dos fatos e das datas; a crônica
deveres dos monarcas cristãos e da ideia
literário
por
excelência
19
Alessandro Arzani
de sucessão imperial que constituiu a
‘significação literal’ que não era o mesmo
essência
que o seu significado superior 4.
da
civilização
como
foi
compreendida no tempo. Nessas regiões,
Outro termo comum para escritos
trabalharam
históricos na Idade Média é Gesta. Depois
para dotar o passado de significado. Por
da primeira edição de Gesta Regum em
outro
Itália
1120 A.D., William of Malmsbury volta a
historiadores trabalharam em um nível mais
escrever o Gesta Pontificum, mantendo o
local e que se teria dificuldade para
controle dos eventos do reino inglês
encontrar lá alguém como Gergory de
apenas pelo sentido de entradas analíticas,
Tours, Beda, William de Malmesbury, Otto
que redigiu em três livretos. Um tempo
de Freising, Matthew
depois ele pode ter percebido que o termo
historiadores lado
eclesiásticos na
Espanha
e
na
Paris, Froissart e
“crônica” teria apelo reduzido e por isso
outros. Louis Green (1972) vê Otto de
preferiu “gesta”. William tinha em mente a
Freising e Giovanni Villani como suficientes
diferença entre crônica e história ou gesta.
polos contrastantes para a mudança da
A primeira foi uma palavra para matérias de
visão de mundo medieval para a “moderna”
entradas analíticas, a última representa a
e considera o fato de que todas as crônicas
matéria prima voltada para algum propósito
medievais
o
retórico. A diferença se relaciona ao que
julgamento de Deus se manifestar na
Cícero chamou ‘annalium confectio’ (De or.
história é suficiente e definitivo para a
2.12.52) por um lado, e ‘exaedificatio... in
historiografia medieval. Neste sentido é
rebus et verbis’ (De or. 2.14.63) por outro, o
pertinente dizer que havia em amplas
último sendo o nível no qual escritores
correntes da escrita da história medieval
tornam ‘exornatores rerum’ em vez de
em seus diversos gêneros, um fundamento
narratores (2.12.54).
tomam
Agostiniano,
por
que
a
Na perspectiva de John O. Ward, o
interpretação bíblica da história. É preciso
que se chama historiografia medieval,
compreender que a visão medieval dos
enquanto precursores das práticas pós-
fatos foi multifocal. Como a Bíblia – que era
modernas,
a
única
histórica
que
certo
interpretatio –
“eventos”
privilegiava
de
significância tinham
uma
é
seu
enorme
alcance
e
variedade (1997, p. 122). Inclui não apenas o alcance completo das práticas retóricas e variedades 4
metafóricas,
mas
Cf. Hugo of St. Victor Didascalicon VI.3 cf. (TAYLO,
1961).
20
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
desconcertante alcance de tópicos, formas
as cores que diferenciam a forma de escrita
e gêneros: vernacular chansons de geste 5,
medieval (WARD, 1997, p. 123).
os poemas de romance e textos tais como
Mas em certo momento outro padrão
Nibelungenlied, obras em latim como
de interpretação e construção da história
Alexandreis de Walter of Chatillon ou o
passa a ser apresentado, ainda que seja
Waltharius 6, obras de extremo alcance
repleto de elementos e técnicas conhecidas
como a Historia Regum Britanniae de
no
mundo
medieval.
Neste
cenário
Draco
desponta a obra de Leonardo Bruni.
Normanicus de Etienne de Rouen, a linha
Quanto à reviravolta da história em questão
das cônicas inglesas e segundo William de
no Quattrocento, Riccardo Fubini (1980
Malmesbury, a linha de Latim e biografias
apud IANZITI, 1997, p. 93) apontou que o
vernaculares
abismo entre o primeiro livro de Bruni e o
Geoffrey
of
Monmouth
e
ou
narrativas
o
do
reino
desenvolvida na França capetiana 7.
estoque popular de lendas herdadas pelos
A mais indicativa da qualidade da historiografia
o
de
Florença
não
deveria ser visto como o resultado de
pelo
“repentina iluminação do espírito crítico”.
pensamento de Joaquim de Fiore. Os oito
As bases dessas transformações estão
melhor
é
medievais
esforço
profético,
medieval
cronistas
exemplificado
Chronica
foram
estabelecidas no contexto anterior de
dedicados ao futuro e ao fim do mundo. É
retorno ao estudo dos clássicos e de uma
o desejo de desenvolver uma visão da
depressão eclesiástica notada nas crônicas
história que incluía o futuro que coloca a
italianas
historiografia
pontificado de Clemente V (1304-1315)
livros
das
medieval
de
Otto
aparte.
Em
Joaquim, encontra-se a plena fruição da
especialmente
em
torno
do
(MENACHE, 2006) 9.
crença medieval na verdade absoluta que
O exame crítico de Bruni e sua
não é manifestada na narrativa histórica
reformulação da história sobre as bases
bruta. É a verdade fundada na Bíblia, que
dos
requer consumada arte e habilidade para
sobreviventes
deduzir de sua primária manifestação 8. São
compreensivelmente
vestígios
literário
e
têm
arqueológico impressionado
tanto
quanto
os
exemplos clássicos do criticismo histórico 5
Cf. POLACK, 1982.
6
Cf. FLEISCHMAN, 1983, 278.
7
Cf. SPIEGEL, 1993.
8
humanista em seu trabalho. Gene Brucker (1977) caracterizou o trabalho de Bruni como a passagem de
Cf. WEST, D.C. West; ZIMDARS-SWARTZ, S., 1983,
cap. 4.
9
Cf. WITT, 2001.
21
Alessandro Arzani
valores corporativos das últimas comunas
justificar uma situação. Naquele contexto
medievais para mais individuais, atitudes
seu escrito justificou uma posição contra a
políticas profissionalizadas em associação
proteção imperial.
à
emergência
do
Estado
Territorial
Em sua narrativa, “os fundadores de
Florentino. De acordo com Brucker uma
Florença eram colonos romanos que Lúcio
série de eventos do século XIV, incluindo o
Sila enviara para Faesulae” (BRUNI, 2001.
Grande Cisma e a ascensão e queda da
p. 9). Receberam aquelas terras como
hegemonia Visconti, criou um vacuum de
recompensa
poder e submeteu mudanças internas
Florença é retratada como a cidade que se
consequentes
livra dos “vícios” que lhe vinham da velha
cujas
principais
por
cidade,
nova elite governante. A nova oligarquia
restaurando em seu próprio benefício as
praticava uma abordagem mais direta de
boas “virtudes” que eram próprias das
governo e começa a desenvolver as
origens de Roma. Em suma, a então capital
estruturas
da Toscana é, desde o princípio, a nova
com
novos
Roma.
elemento
essencialmente republicana.
e
aglutinar
da
uma
recuperando
quadros profissionais, mas faltava um legitimador
Mas
modo
prestados.
características eram a formação de uma
administrativas
desse
serviços
Roma,
e
pré-imperial,
Não havia nenhuma base legal ou
estrutura social. Ianziti (1997, p. 94) destaca que a
teoria moral para o poder de Florença
característica distintiva da História do povo
clamar o exercício sobre uma larga fatia de
florentino não é algum suposto alinhamento
um
com os métodos críticos da historiografia
importante. A cidade tinha capturado uma
dos séculos XIX e XX. A crítica de Bruni às
oportunidade; conveniência política ganhou
lendas da cidade não são ditadas por
a supremacia contra moral e escrúpulos
alguma preocupação abstrata por descobrir
legais. Segundo Ianziti (1997), se a História
a verdade sobre o passado; ela brota da
de Bruni não tem uma dedicatória explícita,
necessidade de projetar uma versão de
ela pode informalmente ter sido dedicada à
cidade do passado que corresponderá aos
oligarquia florentina.
requisitos
de
formação
seu trabalho um caráter oficial, conectado
governista.
A
História de Bruni está
com recente ascensão de Florença da
destinada a fazer mais que simplesmente
condição de um comune medieval a um
refletir
território
sobre
prioridades
uma
novos
políticas.
nova
conjuntos Também
de
procura
território
fértil
político
e
estrategicamente
Ele reconhece em
com
reivindicações
históricas do status de Estado soberano.
22
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Em última instância, a obra do
romanas legitimavam sua questão por um
aretino, é um relato da extraordinária
extenso espaço no cenário italiano. Mas na
ascensão
Sua
História isso muda. Bruni ainda vê Florença
narrativa minimiza o valor do Império e da
como fundada pelos romanos, mas a
Igreja. Igreja e Império não são concebidos
reivindicação de cidade não é apresentada
como exclusivos portadores da significação
sobre esta base. Pelo contrário, Roma e
histórica. O foco de Bruni sobre o Estado
seu
moderno difere historicamente dos antigos
inimigos
padrões do século XIV, tais como os
Florença.
apresentados
Albertino
representada como aquela que sufocou e
Mussato ou Ferreto dei Ferreti. Estes
impediu o desenvolvimento de Florença
últimos podem muito bem ter tentado
(IANZITI, 1997) 10.
para
predominância.
nas
obras
de
Império
seguir os ditames formais da historiografia clássica;
no
E
do
além
ambicioso disso,
como rival,
Roma
é
Enquanto em Roma viveu um povo livre em que o governo conformava-se pelo
escrever história baseada na concepção de
colegiado de magistraturas republicanas
uma história universal. Com Bruni, o que
(cônsules, ditadores, tribunos militares), a
conta não é a trama dos objetivos das
cidade
instituições divinamente sancionados com
cidadãos
missões universais e mandatos. Bruni em
gloriosos. Neste período as conquistas de
vez disso articula o prático, preocupações
Roma se espalharam pelo mundo todo.
diárias
florentina
Desde que, entretanto, à época de Júlio
empenhada em esculpir para si mesma
César e a seguir Augusto, “Roma desistiu
uma identidade e um futuro (IANZITI,
de sua liberdade dando lugar ao imperium”,
1997).
atribuindo o poder estatal a uma pessoa, o
uma
continuaram
naturais
apresentados
a
de
entanto,
são
política
cresceu
em
poderio
distinguiram-se
por
e
seus feitos
A versão de Bruni da história da
germe da doença contaminou a cidade,
Toscana explora a vitalidade das origens
pois, com “o desaparecimento da liberdade,
etruscas, mas também lança Roma no rol
vai-se também a virtude”. O Império
de antagonistas. O retrato que ele ofereceu
Romano, pois, na caracterização de Bruni,
no seu Livro I da História do povo florentino
se mostra como “flagelo da cidadania e
é
ele
terror do mundo”. O desfecho não poderia
apresentou no seu Laudatio florentinae
ser outro mais vergonhoso (PIRES, 2006,
urbis dez anos antes. No seu trabalho mais
1981).
radicalmente
diferente
da
que
antigo, Bruni argumentou que as origens
10
Cf. WATKINS, 1978. p. 33.
23
Alessandro Arzani
Fubini (1980) destaca que Bruni capta o ponto chave do clamor de Florença por soberania. O direito de declarar e fazer guerra, crescer através de conquistas militares, investir em funcionários com pelo reconhecimento de autoridade. A queda do Império
Romano
garantiu
a
Florença
encontrar sua posição própria como capital da Toscana. Bruni faz uma conexão entre o Estado moderno da Toscana e aquele de antes da dominação romana. Ele divorcia a moderna política Florentina de qualquer dependência
da
antiga
Roma
e
seu
Império. O domínio romano é um infeliz parêntesis na História de Bruni que impediu a expansão da Toscana. Seu objetivo era elaborar um pano de fundo histórico e racional para a existência da soberania da Toscana como sua capital em Florença. Isso fez com que Bruni mudasse os padrões das narrativas da história antiga do ponto
de
vista
romano
perspectiva
para
uma
etrusco-florentina
(IANZITI,1997). Como sintetiza F. M. Pires (2006, P. 79), na narrativa de Bruni o Povo, que antes vivia curvado sob sujeição servil a príncipes e seus acólitos, agora, “provado o mel da
guerreira” (arma fortitudoque). Ambos esses modos de atuação respondem pelo mesmo princípio, qual seja, instaurar o reino da “liberdade”, pois, os feitos guerreiros do Povo de Florença [...].
Eric Cohrane (1981, p. 3) reconhece que Bruni se inspira em modelos antigos, principalmente a História Romana de Tito Lívio e em certa medida também na
História da Guerra do Penepoleso de Tucídides. Arnaldo Momigliano (2004, p. 38) apontou que Tucídides não era muito familiar aos renascentistas, que deviam levar mais em consideração a Políbio. Edmund Fryde (1983) destacou ainda mais a herança metodológica tucidideana na obra historiográfica de Leonardo Bruni, mas Gary Ianziti (1997) persiste na alegação de que Bruni inova a partir do modelo de Tito Lívio. Segundo reescreve
a
pela
Bruni
perspectiva
fachada para a busca de vestígios da civilização dos perdedores. Bruni teria mudado o padrão da narrativa da fundação e antiga história de Florença. Sob este prisma tal “desconstrução” que Bruni faz da narrativa de Lívio seria significante em primeiro
“senhor de si mesmo e, assim erigido em dignidade,
possibilidade
quais diretrizes de conduta consolidam o fortalecimento
história
(1997),
etrusca. A retórica de Lívio seria como uma
liberdade”, princípio de “crescimento forte”, tornara-se agente criador de honra”. Pelo que o historiador aponta
Ianziti
lugar de
porque uma
sustenta
história
a
secular
deitando fora a moldura de Roma e seu
citadinas,
subsequente Império. Em segundo lugar,
“aconselhamento e diligência” (consilium et industria); no
porque ele pressupõe outro ponto de
do
Povo:
na
interioridade
inter-relacionamento
exterior,
das
ações
“determinação
e
força
vantagem que vê os eventos previamente
24
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
vistos apenas pelos olhos romanos. Em
“memoráveis e importantes quanto aqueles
terceiro lugar, porque ao relativizar Lívio,
grandiosos acontecimentos da antiguidade
Bruni torna sua escrita da história falível e
que lemos e admiramos tanto”.
repetível. De modo que ele procurou de fato
não
imitar,
mas
mostrar
Udo Klee (1990, pp. 30,41,44;38,39
uma
apud PIRES, 2006. p. 60) fez uma análise
alternativa a Lívio. Sua intenção teria sido
exegética da obra de Leonardo Bruni e
fazer para os florentinos o que Lívio fez
destaca alguns traços tucidideanos. Um
para os Romanos. Desse modo, Bruni é
deles é o comentário à passagem sobre os
tomado como um reinventor da escrita da
primeiros
história, que ajusta os requisitos de uma
(Commentaria tria de primo Bello Punico),
nova configuração sociopolítica. Mas essa
em que Bruni lembra tradições fabulosas
perspectiva parece ignorar o trabalho de
tocantes aos ciclopes e lestrigões (A guerra
Udo Klee, que só aparece em uma rápida
dos Penepolésios e Atenieneses VI.2,1),
citação de Ianziti no seu livro Whiting
mas os dois historiadores estão advertidos
history in Renaissance Italy (2012, p. 58)
acerca das incertezas da História. Além
quando o assunto é Cicero; e nem uma vez
disso,
em seu artigo para a revista Parargon de
“paralelismos”
1997.
historiadores; estabelece proximidades de
ocupantes
ele
detecta textuais
da
Sicília
também entre
os
os dois
Atentando à análise de Klee, mas
pensamentos e formulações, que permitem
ignorando a de Ianziti, F. M. Pires (2006, p.
arrazoar plausivelmente ou “demonstrar
61) sustenta que o objetivo desse tipo de
pela mais alta probabilidade” de que Bruni
história contempla a “memorização da
se orientou pelo ateniense.
grandeza de poderio político e militar que
Segundo F. M. Pires (2006), as
os feitos dos homens projetam: ao ápice da
semelhanças entre a narrativa da história
grandeza consumada por atenienses e
de Bruni e de Tucídides corrige a tese de
espartanos na Guerra do Peloponeso [em]
Hans Baron quanto à criação do senso
suprema
pelos
moderno de consciência histórica de Bruni.
florentinos em suas guerras contra “o todo-
De acordo com Baron, quando a cidade
poderoso duque de Milão e o agressivo rei
resistiu à conquista imperial do Duque de
Ladislau”, tanto que, se aquela guerra
Milão, na virada do século, Bruni toma
antiga
a
consciência da grandiosidade de Florença,
antecederam (Tróia, Medas), agora as
por poderio estatal mais fulgor civilizatório.
conquistas
A cidade os devia fundamentalmente ao
grandeza
superava de
alcançada
todas Florença
as
que
eram
tão
25
Alessandro Arzani
espírito de “humanismo cívico e liberdade republicana” consolidado justo naquela ocasião. Klee (1990, pp. 30,41,44;38,39 apud PIRES, 2006. p. 62), no entanto, argumenta enraízam
que no
os
nexos
princípio
de
que
assim
“liberdade”
política o estímulo que promove uma civilização esplendorosa remetiam antes a uma (cons) ciência histórica firmada já por Tucídides em vários momentos de sua obra:
ela
aparece
prefigurada
na
“Arqueologia”, depois veiculada no discurso dos
atenienses
expressamente
em
Esparta,
teorizada
no
e
é
“Discurso
fúnebre” de Péricles. E desse modo, Klee (1990, pp. 30,41,44;38,39 apud PIRES, 2006. p. 46) conclui que a teoria da história de
Bruni
não
é
algo
original,
mas
completamente dependente de Tucídides. O aspecto frágil da posição de Udo Klee é que ela acaba por desprezar a força das circunstâncias em que vivia Bruni procurando as bases paradigmáticas em um lugar distante do passado ignorando a capacidade criativa do escritor em função do ambiente social de sua época. Ainda que sejam evidentes os entrecruzamentos
da análise exegética de Klee. E, assim, talvez único pecado de Ianziti tenha sido não ter prestado atenção aos traços tucidideanos na obra de Bruni, que em nenhum momento contradizem a inspiração com que o autor aretino constrói a história do popolo livre de Florença. Leonardo
Bruni
mérito
de
antiga
para construir
pertinente
recorrer à
tem, à
o
historiografia
um
sua
então,
paradigma
época. Ullman
(1955. pp. 321-344) destaca na
sua
escrita os informes factuais às fontes originais;
perspectiva
secularizante
e
descarte
histórica de
lendas
fictícias e similares tradições miraculosas; veredito
entre
causabilidade humanos.
relatos motivacional
Mas a
conflitantes; dos
atos
análise de sua obra
não é apenas elogios. Não quero dar a impressão de que ele fosse um historiador perfeito. Seu método analítico, herdado de suas fontes, não se coaduna com a concepção moderna. Há, do ponto de vista das tendências recentes, uma ênfase demasiada na guerra. Disso tudo resulta que, a despeito de sua suposta tendência retórica, longos trechos da obra, especialmente quando ele segue Villani, são áridos e de leitura tediosa (1955, p. 343).
Fryde (1983. pp. 5-12) também
de sua obra e o caráter investigativo de
destaca o evidente interesse pela verdade
Tucídedes, não há nenhuma razão para
histórica, a busca por evidências, a solução
minimizar o desempenho da estratégia de
de problemas. O exame das origens das
Bruni
adaptação
cidades que aparece na escrita de Bruni
histórica para a República de Florença.
afasta-se das tradições míticas de suas
Aliás, essa é uma das principais limitações
fundações
em
reconstruir
uma
e
valorizam-se
mais
causalidade. 26
a
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Valorizando escritor,
as
Cochrane
habilidades
(1981,
pp.
do 4;20)
acesso privilegiado; e o primeiro esboço na tradição
ocidental
que
dominou
a
considera que Bruni faz uma verdadeira
historiografia europeia desde então, com
revolução no pensamento e na escrita da
sua divisão tripartite - Antiga, Medieval e
história. Mas nem por isso deixa de notar
Moderna.
que Bruni carrega algumas heranças das
Mas a concepção de “moderno” de
crônicas, conjugando-as ao “espírito do
Bruni
Humanismo”
modelos
sustentada hoje a historiografia. Segundo
novo
e
Hankins,
transformador na história. Mas Cochrane
sua
antigos
e
recorrendo
aos
produzindo
algo
(1981, p. 7) também destaca que Bruni ignorou
a
família;
econômicos;
as
os
guildas;
interesses a
natureza
corporativa do regime florentino; dividiu artificialmente a sociedade florentina em três
classes
sociais;
confundiu
as
ideologias e ignorou os conflitos. Em
História
sua de
análise Bruni,
introdutória
Hankins
a
(2001)
reconhece todos os méritos apontados pelos seus precedentes, tais como o entendimento que ele tinha dos homens e seus atos; erudição e poderosa imaginação histórica; domínio das fontes da história latina e grega que o capacitou a se desvencilhar das lendas exuberantes que se
tinham
desenvolvido
acerca
da
fundação de Florença e a recusa aos mitos cívicos
consagrados
em
reverenciadas
crônicas medievais como as de Giovanni Villani,
conclusões
fundamentadas
em
documentos derivados dos arquivos papais e oficiais florentinos, a que Bruni tinha
é
muito
distinta
concepção
entretanto,
dessa
do
que
é
moderno
imprescindivelmente
é,
secular.
Vários comentadores já observaram que na história de Bruni a ascensão e a queda da liberdade política toma o lugar que as fortunas da
Cristandade
enquanto
mantinham
anteriormente
princípio organizador na primeva
historiografia cristã e na medieval. A Divina Providência não é mais o primeiro motor dos fatos humanos. Os seres humanos mesmos fazem sua própria história. É por esta razão, e não por qualquer grande avanço formal ou técnico que Bruni é corretamente denominado o primeiro historiador moderno (2001, p. xviii).
A
admissão
da
expressão
“historiador moderno”, ainda que com o esclarecimento facilmente compreende
de
posta
Hankins, de
lado
simplesmente
pode
ser
quando
se
que
Bruni
oferece um paradigma historiográfico no
Quattrocento. Desse modo, se Bruni é um historiador moderno, o é na sua própria concepção de moderno; ou seja, conforme a inovação renascentista de sua época, bem distante da modernidade do século XIX. Muito menos caberia chamá-lo de pósmoderno, como insinua John Ward. Bruni faz mesmo a história de seu tempo. Apresenta um paradigma que inova ao 27
Alessandro Arzani
retornar
às
bases
clássicas
da
Considerações finais
historiografia.
Em suma, é ainda justo admitir que a
Não muito depois de sua morte sua
obra Historiarum Florentini populi libri XII de
História foi disponibilizada em uma versão
Leonardo Bruni é um marco para a
vernacular
historiografia no Ocidente. Não se trata,
de
Donato
Acciaiuoli,
em
1476 11. Esta versão o transformou no
todavia,
principal inspirador da historiografia oficial
historiador moderno ou o último historiador
em
medieval, mas de reconhecer que seu
outros
centros
italianos
(Milão,
de
considerá-lo
Veneza), assim como menos diretamente
paradigma
no Norte da Europa (Inglaterra e França) 12.
narrativa no mínimo diferenciada.
O que tocou os contemporâneos e
Tal
historiográfico
o
diferenciação
primeiro
oferece é
uma
produto
da
imitadores não foi o aspecto crucial muito
combinação de elementos conhecidos da
afamado mais tarde, mas o modo como o
escrita de seu tempo e sua “inovação” é
trabalho exemplificava a possibilidade de
dependente
uma história secular baseada sobre um
historiografia,
entendimento claro da política como uma
contraditório. Mas para ser “novo” não é
arena de responsabilidade e criatividade
necessário ser creatio ex nihilo. Desse
humanas.
surpreendentemente
modo, Bruni ao mesmo tempo em que se
Maquiavel (1988, p. 6) destacou a História
inspira na historiografia antiga, escreve em
do povo florentino de Bruni como seu guia
conexão com seu mundo e seu tempo,
para escrever sua própria Storia Fiorentine,
oferecendo, assim, uma razão histórica
dedicada aos Medici em 1520.
para a existência de um Estado Toscano
Não
das o
bases que
clássicas
poderia
da
parecer
soberano com sua capital em Florença. 11
Publicada em Veneza em fevereiro de 1476, como
Historia fiorentina: cf. Edler de Roover (1953, 107. Apud IANZITI, 1997).
Sua
narrativa
não
recorre
à
divina
providência para explicar o drama humano
The 1476 edition also included Poggio Bracciolini's
através dos séculos; nem à Bíblia como
Historia fiorentina in the translation of his son Jacopo. No
parâmetro interpretativo para identificar as
12
final dos anos de 1470 e início de 1480 surgiram também obras inspiradas em Veneza e Milão. Estas incluíam: Marcantonio Sabellico's Rerum venetorum ab urbe condita
libri XXXIII, e Giorgio Merula's Antiquitates Vicecomitum. Isso foi suficiente para convencer a Ianziti de que essas
causalidades dos eventos narrados. Como
a
principal
inovação
no
paradigma de Bruni, tem se firmado: buscar
obras inspiravam um tipo de historiografia oficial segundo
explicações e interpretações de modo
este novo estilo italiano. Sou a influência na Inglaterra e
crítico para os eventos históricos sem
na França, Cf. Denys Hay (1952).
prestar
(1904).
Auguste Molinier
continência
aos
parâmetros
28
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
religiosos. O estilo de Bruni não só exalta a
investigação crítica, tenha feito com que
liberdade a ser celebrada pelos florentinos
preterido por alguns até o século XIX,
quanto a manifesta na retórica empregada
quando
em sua escrita da história. Talvez este
evidência.
sua
obra
emerge
com
mais
caráter artístico, ainda que conjugado à
Referências: ARAUJO, Valdei Lopes de; GIANEZ, Bruno. A emergência do discurso histórico na crônica de Fernão Lopes. Revista de História e Estudos Culturais, vol. 3, ano III, n.º 2, abril/maio/junho de 2006. BARON, H. In search of Florentine civic humanism: essays on the transition from medieval
to modern thought. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1988. _______. The Crisis of the Early Italian Renaissance. Princeton, N.J.: PUPress, 1955. BRUNI, Leonardo. History of the Florentine People. v. 1-3. Edited and translated by J. Hankins. Cambridge; London: Harvard University Press, 2001/2004/2007. BUCKER, G. The Civic World of Early Renaissance Florence. Princeton: PUPress, 1977. BURCKHARDT, J. La civiltà della Rinascimento in Italia. Firenze: Sansoni Editore, 1955. BURDACH, Konrad. Riforma, Rinascimento, umanesimo. Firenze: Sansoni Editore, 1935. BURKE, Edmund. "Leonardo Bruni." The Catholic Encyclopedia. Vol. 3. New York: Robert Appleton Company, 1908. CABRINI, A. M. Le Historiae del Bruni: Risultati e ipotesi di una ricerca sulle fonti. In: VITI, Paolo. Bruni. Cancelliere della repubblica di Firenze. O’Lorence: Olschki, 1990. COCHRANE, E. Historians and Historiography in the Italian Renaissance. Chicago; London: The University of Chicago Press, 1981. CONDREN, C. From Premise to Conclusion: Some Comments on Professional History and the Incubus of Rhetorical Historiography, Parergon, 6, 1988. ROUEN, Etienne de ; OMONT, Henri Auguste. Le Dragon normand et autres poèmes
d'Étienne de Rouen. Rouen: C. Métérie, 1884. FLEISCHMAN, S. On the representation of History and Fiction in the Middle Age. History
and Theory, 22, 1983. FRYDE, E. Humanism and Renaissance Historiography. London: HanBledon Press, 1983.
29
Alessandro Arzani
FUBINI, R. Osservazioni sugli Historiarum florentini populi libri XII di Leonardo Bmni', Studi
di storia medievale e moderna per Ernesto Sestan, 2 vols. Florence: Olschki, 1980. ______. Renaissance Historian: The Career of Hans Baron. J. Medieval History, 64, 1992. GREEN, Louis. Chronicle into History: an essay on the interpretation of history in Florentine
fourteenth-century chronicles. Cambridge: Cambridge University Press, 1972. GUENÉE, B. Histoires, annales, chroniques. Essai sur les genres historiques au Moyen Âge. Annales. Économies, Sociétés, Civilisations. 28e année, N. 4, 1973. _______. Histoire et culture historique dans l’occident médiéval. Paris: AUBIER, 1980. HANNING, R.W.. The vision of History in Early in Early from Gildas to Geoffrey of
Monmouth. New York: Columbia University Press, 1966. HAY, D. Polydore Vergil: Renaissance historian and man of letters. Oxford: Clar., 1952. MOLINIER, Auguste. Les sources de l'histoire de France des origines aux guerres d'Italie
(1494). Paris: A. Picard et Fils, 1904. IANZITI, G. Leonardo Bruni: First Modern Historian? Parergon, V. 14, 2, January 1997. IANZITI, G. Whiting history in Renaissance Italy. Cambridge: Harvard Press, 2012. KLEE, Udo. Beiträge zur Thukydides-Rezeption während des 15. Und 16. Jahrhunderts in
Italien und Deutschland. Frankfurt am Main-Bern- New York-Paris: Peter Lang, 1990. LACROIX, B. L'historien au Moyen Age. Montréal-Paris, 1971. MACHIAVELLI, N. Florentine Histories. Princeton: Princeton University Press, 1988. MARKUS, A. Saeculum: history and society in the theology of St. Augustine. Cambridge: Cambridge University Press, 1970. MCGUIRE, M. R. P. “Annals and chronicles”, New Catholic Encyclopedia, t. I, New York, 1967. MENACHE, Sophia. Chronicles and historiography: the interrelationship of fact and fiction.
Journal of Medieval History, 32, 2006. MOLINIER, A. Les sources de l'histoire de France des origines aux guerres d'Italie (14Q4),
t. V, Paris, 1904. MOMIGLIANO, A. As raízes clássicas da historiografia moderna. Bauru: Edusc, 2004. MURATORI, A. Rerum italicarum scriptores 25 vols. ; Milan, 1723-1751. PIRES, F. M. Leonardo Bruni e Tucídides: História e retórica. Politeia: História e
Sociedade. V. 6, n. 1, 2006. POLACK, G.S. The Medieval Franch chanson de geste as ‘popular’ history – a
reassessment. Melbourne University, 1982.
30
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
ROOVER, Edler de. 'Per la storia della stampa in Italia', La bibliofilia, 55 (1953), 107. SANTINI, E. Leonardo Bruni e i souoi Historiarum Florentini populi libri XII. Annali della
Scuola Normale Superiore di Pisa, 22, 1910. SPIEGEL, G. Romancing the Past: the rise of vernacular prose historiography in thirteenth-
century France, Berkeley: University of California Press, 1993. ULMANN, B.L. Leonardo Bruni and Humanistic Historiography. In: ______. Studies in the
Italian Renaissance. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 1955. WARD,
J.
O.
'Chronicle'
and
'History':
The
Medieval
Origins
of
Postmodern
Historiographical Practice? Parergon, Volume 14, Number 2, January 1997. WATKINS, Renee Neu. Humanism and liberty: writings on freedom from fifteenth-century
Florence. Columbia: University of South Carolina Press, 1978. WEST, D.C. West; ZIMDARS-SWARTZ, S. Joaquim of Fiore: a study in spiritual perception
and history. Bloomington, Indiana: Indiana University Press, 1983. WITT, Ronaldo. ‘In the footsteps of the Ancients’: the origins of humanism from Lovato to
Bruni. Leiden/Boston/Köln: Brill, 2001.
31
“ENTÃO LHE FORAM GRAVADOS NÃO NO CORPO, MAS NO CORAÇÃO”: UMA ANÁLISE SOBRE A INTENCIONALIDADE DOS DISCURSOS HAGIOGRÁFICOS MEDIEVAIS SOBRE A ESTIGMATIZAÇÃO DE FRANCISCO DE ASSIS Alex Silva Costa 1 Angelita Marques Visalli 2 (Orientadora) Resumo: O trabalha analisa a intencionalidade dos discursos hagiográficos franciscanos sobre a estigmatização de Francisco de Assis nas obras Vita Prima (1C),Legenda Maior
(LM), O Espelho da Perfeição (SP), dentre outras. Em 1224, na solidão montanhosa do Monte Alverne na Itália Central, Francisco de Assis teria se personificado na figura de Cristo ao receber as chagas do Crucificado. Os discursos das narrativas hagiográficas franciscanas evidenciam a preocupação dos autores em demonstrar que o santo era a representação terrena e humana do próprio Cristo.Nas mesmas é descrito que ambos seriam uma só pessoa, o milagre significaria a grande similitude iconográfica de Francisco no Cristo crucificado. O local social de quem produz o discurso hagiográfico e a intenção de materializar a personificação cristológica constituem o nosso objeto de reflexão. Palavras-Chaves: São Francisco; Representação; Cristo.
1
Mestrando do Programa de Pós Graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina-UEL (PR),
bolsista Capes.
2
Professora adjunta ao Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina.
32
Alex Silva Costa
Introdução
propunha uma mensagem acessível a
Ao longo dos séculos XIII e XIV a
todos, enobrecendo a língua vulgar, já que
representação cristológica de Francisco de
não tinha formação de clérigo. Assim, a sua
Assis foi destacada no imaginário medieval
originalidade
tanto por meio de hagiografias quanto pelo
vontade de levar uma vida pobre e errante,
uso de imagens. Uma das razões obvias
a exemplo de Cristo, numa recusa da
que legitimaria essa representação seriam
posse de bens não só pessoais, mas
as chagas que o santo possuía em seu
igualmente comunitária.
corpo e seu estilo de vida, onde era
fundamental
Destacamos
a
na
forma
evangelizar
imitação do Cristo.
impressionou a sociedade medieval pela prática
da
Francisco
humildade,
de
de
presente a prática do evangelho e a Sua identificação com o filho de
de
que
residiria
Assis
pobreza
e
Deus não seria somente corporal, seria
obediência, esta é conhecida como tríade
escatológica
de
franciscana, são preceitos fundamentais do
de mudança. Entre estas,
movimento franciscano. Desta forma, os
renovação,
em
sua
mensagem
podemos destacar a questão da pobreza
membros
amplamente discutida: para alguns frades
primitivo eram convidados a praticar a
do franciscanismo moderado a pobreza era
mendicância
uma virtude, para Francisco de Assis um
manuais, essa atitude, criticava de maneira
modo de vida. O Cristo era pobre, não se
indireta a luxúria e o poderio econômico da
regozijava de bens materiais, pregava a
Igreja Católica. Os desdobramentos dessa
doação, a fraternidade, a união, o cuidado
nova atitude cristã que foi aceita pelo
aos fracos e oprimidos, ações descritas no
papado, apesar de sofrer interferências do
Evangelho que o santo italiano fez questão
mesmo, são imensos e refletiram na
de cumpririnexoravelmente, pois queria
sociedade cristã medieval, pois a cada dia
seguir a mensagem do Cristo e colocá-la
aumentava o número de jovens que
em prática.
renunciavam à riqueza e ao conforto de
Para André Vauchez (1995, p.142143) Francisco de Assis seguia uma tradição
cristã
e
ao
movimento e
a
realizar
franciscano trabalhos
suas famílias para viver uma vida de penitente.
tempo
Além disso, é importante exprimir
sintetizava as aspirações dos movimentos
que o sucesso desta nova atitude cristã
religiosos
uma
deveu-se também à sua implantação no
fidelidade total à Igreja. O pobre de Assis
meio urbano eágrande personalidade de
anteriores,
mesmo
do
mantendo
33
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
seu fundador que teve a graça de receber
pois às vezes materializam os discursos,
em seu corpo no ano de 1224 os sagrados
conferido um sentido concreto ao abstrato.
estigmas do Cristo Crucificado, fato que o
Por
levou a ser chamado de Alter Christus, o
somente as formas como foi representada
Outro Cristo. E será sobre a formulação
a estigmatização, mas o sentido que lhe foi
dos
a
conferido pelos seus agentes propagadores
personificação do santo italiano na figura
e pela sociedade cristã medieval. Pois as
do
“imagens significam muito mais do que um
discursos Cristo
hagiográficos
Crucificado
sobre
que
iremos
isso
é
desenvolver uma reflexão sobre o exercício
simples
da
conhecimento
escrita
e
a
intencionalidade
e
materialização dos discursos dominantes. Vários
hagiógrafos,
estudiosos,
artistas e admiradores de Francisco de Assis potencializaram ao longo do medievo
meio
importante
de
observar
não
disseminação
religioso.
Eram
do
por
si
mesmas, agentes, a que eram atribuídos milagres, e também objetos de cultos” (BURKE, 2004, p. 62). Nesse estudo temos como objeto de
tanto na escrita hagiográfica quanto nas
análise
representações
valor
escritas a partir do séc. XIII, entre elas, a
simbólico da estigmatização. Por isso é
Vita Prima (1C) escrita em 1228 e a Vita
interessante
dessas
Secunda (2C) de 1247 de Tomás de
representações, uma vez que sob a
Celano, a Legenda Maior (LM) de São
perspectiva de Roger Chartier entende-se
Boaventura escrita em 1263, A Legenda
por
de
dos Três Companheiros (3S) de autoria dos
símbolos que são produto de reflexos dos
Freis Leão, Rufino e Ângelo,O Espelho da
interesses dos grupos que os forjam, e as
Perfeição (SP) atribuída a Frei Leão, I
imagens
Fioretti (Fior), dentre outras.
iconográficas
analisar
representação
são
o
um
o
nível
conjunto
fundamentais
para
se
construir o sentido do real, já que a “representação
é
instrumento
de
um
as
Essas fundamental
hagiografias
franciscanas
hagiografias
são
de
importância
para
se
conhecimento mediato que faz ver um
compreender a intenção dos discursos
objeto ausente através da sua substituição
hagiográficos que demonstram por meio da
por uma imagem capaz de reconstituí-lo
escrita a representação cristológica de
em memória e de figurá-lo tal como ele é.”
Francisco de Assis durante o período
(CHARTIER, 1990, p. 20).
medieval. Por meio da escrita hagiográfica
As
imagens
funcionam
como
identificamos que as diferentes construções
complementação e reforço para o dizível,
narrativas advêm das posições sociais e
34
Alex Silva Costa
religiosas que os hagiógrafos ocupavam no
humanas do sagrado e ambiciona torná-las
período estudado.
exemplares para o resto da humanidade”
Desta forma, é notório entender o
(DOSSE, 2009, p. 137). Durante o medievo
pensamento de Michel de Certeau ao
os textos hagiográficos “eram importantes
destacar que “o estudo histórico está muito
veículos para a propagação de concepções
mais
uma
teológicas, modelos de comportamento,
fabricação específica e coletiva do que ao
padrões morais e valores” (SILVA, 2012, p.
estatuto de efeito de uma filosofia pessoal
01).
ligado
ao
complexo
de
ou à ressurgência de uma ‘realidade’
Essa
preocupação
deve
estar
passada. É o produto de um lugar”
presente nas fontes franciscanas porque as
(CERTEAU, 1982, p.72).
“dissensões dentro da Ordem dos Frades
E
para
estudarmos
a
Menores no século XIII acabaram, afinal,
materialidade
dos
por nos privar de fontes dignas de total
período
confiança sobre a vida do fundador da
medieval e no imaginário cristão, utilizamos
Ordem” ( LE GOFF, 2007, p. 49). André
estudos de Michel Foucault, no qual
Vauchez
destaca os silêncios e omissões dos
semelhante sobre as biografias de São
discursos, além da ênfase, que a produção
Francisco, para ele são numerosas e
de um discurso é ao mesmo tempo
prolixas, mas:
intencionalidade discursos
e
hagiográficos
“controlado,
selecionado,
no
organizado
e
redistribuído por um certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento
aleatório,
esquivar
pesada
temível
materialidade”
e
sua
O termo hagiografia relativo às palavras gregas: hagios: santo, grafia: escrita, remete a textos que relatam a vida revelações.
pensamento
A sua utilização como fontes coloca aos historiadores graves problemas. Todas, com efeito,
foram
redigidas
posteriormente
à
canonização de Francisco pelo papado, a qual teve lugar em 1228, dois anos após a sua morte. Tomar à letra e encadear todos os episódios que figuram nas vidas medievais de S. Francisco, como fizeram certos autores modernos, constitui
biográficas escritas pelo grupo moderado
Franciscana
visões,
um
Segundo Le Goff todas as fontes
A produção Hagiográfica
santos,
traz
pois um contra-senso (VAUCHEZ,1994, p.245).
(FOUCAULT, 2004, p. 08-09).
dos
nos
Esse
“gênero literário privilegia as encarnações
do franciscanismo primitivo têm como principal referência as obras de Tomás de Celano, que as compôs a pedido de altas personalidades eclesiásticas. Isso porque Tomás de Celano, além da Vita Prima
35
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
escreveu a Vita Secunda, e vários outros
todos os escritos anteriores relativos ao
escritos sobre São Francisco. A respeito da
santo. O objetivo dessa medida era impedir
primeira enfatiza que:
que os frades tivessem outra referência
[...] essa vida, muito bem informada, silencia todo traço de dissensão dentro da Ordem, seja entre a Ordem e a cúria romana, faz o elogio de Frei
Boaventura, que na época era o Ministro-
Elias, então muito poderoso, e se inspira nos
Geral da Ordem do Frades Menores. Ao
modelos historiográficos tradicionais (LE GOFF,
impor esta medida a obra tinha que ser tida
2007, p.55).
Já
para
André
Vauchez
os
problemas internos da ordem colocaram variações nos textos porque os autores testemunhavam a partir de seus interesses e visões formativas, ou mesmo pela situação
conflituosa
do
tempo
vivido.
Quanto à parcialidade de quem escreve e de
biográfica que não fosse a escrita por São
seus
encomendadores,
exemplifica
dizendo que essa situação:
como única vida canônica. Le Goff critica essa decisão e expõe: Ao tomar essa medida a Ordem contrariava os desejos do próprio santo que em seu testamento pedia que zelassem pela autenticidade de sua vida, dos documentos. E ainda obrigou-lhes a ter obediência com relação as suas palavras para que nada se acrescentasse e nem nada cortassem, basta ver o que declarou em seu Testamento: “O Ministro-Geral e todos os outros ministros e os custódios estão obrigados, por obediência, a não acrescentar
nada
nem
nada
cortar
destas
É bem visível nas variações que apresentam as
palavras. Antes, tenham este texto sempre consigo
duas primeiras biografias oficiais, obras do
junto com a Regra, leiam também estas palavras”
franciscano Tomás de Celano. Enquanto na
(LE GOFF, 2007, p.52).
primeira, o irmão Elias de Cortona (comanditário da obra com o papa Gregório IX) ocupa um certo lugar e é apresentado sob uma luz favorável, a
Para André Vauchez a intenção de São Boaventura ao escrever a Legenda
sua ação e as suas relações com S. Francisco
Maior era a de restabelecer a unidade e a
são evocadas em termos nitidamente mais
concórdia no seio da ordem. Pois observa
discretos na segunda. É que entretanto esta personagem
contestada
fora
obrigada
a
que o mesmo era Ministro-Geral da Ordem
abandonar a direção da ordem e reunira-se ao
(1257-1274) quando da publicação da obra.
imperador Frederico II em luta contra o papado
Ainda para o mesmo autor, devemos dar
(VAUCHEZ, 1994, p. 246-247).
Atentemos agora a outra fonte utilizada, a Legenda Maior (LM) de São Boaventura. A mesma fora aprovada pelo capítulo geral de 1263, e o de 1266 tomou a decisão de proibir aos frades qualquer outra leitura sobre a vida do santo. Além disso, ordenou que os frades destruíssem
atenção às recordações de Frei Leão, Frei Rufino e Frei Ângelo que teriam relatado por escrito, após 1224, por medo de ver caída
no
esquecimento
a
verdadeira
imagem daquele a quem tinham amado e seguido: Inquietos com a evolução da ordem sublinhavam sobretudo o espírito de pobreza do fundador, a
36
Alex Silva Costa desconfiança de que tinha dado testemunho face aos estudos e o seu apego apaixonado aos valores evangélicos. Ignora-se qual foi a forma
celebração
do
sétimo
centenário
do
nascimento do santo em 1882 como
exata desta preciosa recolha a que se chama o
prefácio dessa revisão, além da edição, na
Florilégio de Greccio e os especialistas ainda
mesma ocasião, da encíclica Auspicatum
hoje
discutem
organização transmitido
o
seu
interna. em
dois
conteúdo
Mais
o
textos
e
a
sua
essencial
foi
compostos
em
meados do séc. XIII: A Legenda dos Três
Companheiros e a Lenda (denominada) de Perúsia, que se revestem efetivamente de uma importância particular (VAUCHEZ, 1994, p. 246).
concessun, de Leão XIII. Mas para o autor o “autêntico ponto de partida da busca do verdadeiro
São
Francisco
é
a
obra
fundamental do protestante Paul Sabatier, em 1894” (LE GOFF, 2007, p.54).
Para Le Goff a Legenda escrita por
Para André Vauchez, Paul Sabatier
São Boaventura é quase inútil como fonte
pôs em causa a autenticidade até então
da vida de São Francisco, e de um modo
incontestada das biografias oficiais (I e II
ou de outro, deve ser controlada por
Celano, Legenda Major) e suscitou um
documentos mais seguros,já que:
grande escândalo ao escrever uma vida de
Em rigor, com todo o seu trabalho de pacificador, São
Boaventura,
apesar
de
sua
profunda
veneração a São Francisco e de se basear em
Perfeição, no qual julgava ter encontrado a
fontes anteriores autênticas, realizou uma obra que
vida mais antiga do poverello. Para ele a
ignora as exigências da ciência histórica moderna,
“hipótese de Sabatier era falsa, mas teve o
por ser tendenciosa e fantasista (LE GOFF, 2007, p.53).
A polêmica em torno dos discursos das hagiografias franciscanas é tão grande que
S. Francisco inspirada no Espelho de
fora
necessário
aguardar
alguns
séculos segundo André Vauchez para que:
mérito de suscitar pesquisas que permitem hoje aos historiadores avançar sobre um terreno menos minado” (VAUCHEZ, 1994, p.247). Essas discursões fazem parte da
[...] se redescobrisse o texto da Lenda de Perúsia,
“Questão
assim como outras biografias de S. Francisco
disputa pela memória de Francisco de
compostas
no
franciscanos
início
do
‘espirituais’-
século istó
é
XV
pelos
hostis
ao
Franciscana”onde
há
uma
Assis por meio dos Conventuais e dos
relaxamento e às atenuações das exigências da
Espirituais, apesar de identificarmos que
regra em matéria de pobreza- como é o caso do
cada discurso hagiográfico em particular
Espelho de Perfeição (VAUCHEZ, 1994, p.246).
Para Le Goff as exigências da crítica histórica moderna levaram no fim do século XIX a uma revisão do São Francisco tradicional.
Poder-se-ia
considerar
a
atende à necessidade de formar seu ponto de vista, por exemplo, a escrita formativa e tendenciosa
de
São
Boaventura
na
Legenda Maior (LM) para os Conventuais, refletimos que não há como se apresentar
37
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
necessariamente a verdadeirade vida de Francisco de Assis, o real é inatingível, o que existe são diferentes “pontos de vistas” que
se
enquadram
em
necessidades
doutrinarias que brigam pela evocação de uma memória coletiva. Boaventura
descreve
na
por volta de 1205, Francisco ao passar pelas ruínas da antiga igreja de São Damião que estava prestes a ruir de tão coloca-se
de
joelho
diante
do
crucifixo de estilo românico (Crucifixo de São Damião) quando: De
joelhos
diante
do
Crucificado,
sentiu-se
confortado imensamente em seu espírito e seus olhos se encheram de lágrimas ao contemplar a cruz. Subitamente, ouviu uma voz que vinha da cruz e lhe falou por três vezes: ‘Francisco vai e restaura a minha casa. Vês que ela está em ruínas’ (LM, 1997, p.469).
Esta mensagem é tida como a gênese da admiração de Francisco de Assis pelo Senhor Crucificado, pode ser considerado um dos marcos iniciais da busca
do
jovem
amor doloroso e jubiloso; um amor que faz chorar e cantar ao mesmo tempo. Este é um aspecto pouco lembrado por aqueles que insistem na compaixão dolorosa de Francisco ao Crucificado. O mesmo êxtase de sofrimento e de alegria ao estigmatização (ASSELDONK, 1989, p.19).
Legenda Maior (LM), escrita em 1263, que
velha
no Crucificado, uma verdadeira ferida ou êxtase de
mesmo tempo, o Santo o viverá por ocasião da
A Representação Cristológica São
de compaixão, isto é, uma perfeita e íntima alegria
Francisco
pela
sua
identificação com o filho de Deus. Por isso Van Optato Asseldonk, na obra O Crucifixo
de São Damião visto e vivido por São Francisco destaca que é muito importante notar que: [...] o primeiro contato pessoal com o crucificado
Tomás de Celano na sua Vita
Secunda (2C) descreve o encontro de Francisco de Assis com o Crucifixo de São Damião como um momento de conexão divina, pois teria se comunicado com Deus; além disso, destaca que a imagem do crucificado teria marcado para sempre a vida apostólica do santo, pois: A tremer, Francisco espantou-se não pouco e ficou de fora de si com o que ouviu. Tratou de obedecer e se entregou todo à obra (...). Desde essa época, domina-o enorme compaixão pelo Crucificado, e podemos julgar piedosamente que os estigmas da paixão desde então lhe foram
gravados não no corpo, mas no coração(2C, 1997, p.294, grifo nosso).
No Crucifixo de São Damião o Cristo é representado de maneira glorificada porque já está ressuscitado, com o corpo ereto sobre a cruz e não pregado na mesma.
Apresenta-se
com
os
olhos
abertos observando o que acontece a sua frente, referência àquele que tudo enxerga e de quem nada se esconde. Além disso, o Crucifixo possui uma interpretação Joanina bastante presente em sua simbologia, por
de São Damião, para Francisco chamado pelo
exemplo, o Cristo na cruz representando a
nome Cristo ‘vivo’ (que fala!), foi ao mesmo tempo
luz do mundo.
um contato cheio de consolação ou alegria divina e
38
Alex Silva Costa
Em setembro de 1224 na solidão
de muitos modos: levava sempre Jesus no
montanhosa do Monte Alverne, na Itália
coração,
Central, acontece o episódio milagroso da
ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos,
estigmatização de Francisco de Assis. Ele
Jesus em todos os outros membros” (1C,
estava em retiro espiritual em honra a São
1997, p.263).
Miguel Arcanjo quando recebeu de maneira milagrosa de
um serafim alado os
estigmas do Cristo crucificado.
Jesus
na
boca,
Jesus
nos
Segundo Santo Agostinho a força do amor é tão grande que transforma o amante na imagem do amado, desta
que
mesma forma, em O Espelho da Perfeição
Francisco tentava descobrir o significado
(Sp) Francisco é descrito como grande
daquela visão, o espírito do santo estava
amante do filho de Deus, fiel servidor e
muito ansioso para compreender o seu
perfeito imitador de Cristo, pois “sentia que
sentido, pois sua “inteligência ainda não
estava completamente transformado em
tinha chegado a nenhuma clareza, mas seu
Cristo pela virtude da santa humildade e
coração estava inteiramente dominado por
desejava
aquela visão, quando, em suas mãos e pés
resplandecesse em seus frades acima de
começaram a aparecer, como vira pouco
todas as demais” (Sp, 1997, p.927, grifo
antes no homem crucificado, as marcas de
nosso).
Tomás
de
Celano
relata
quatro cravos” (1C, 1997, p.246). Essa narração
descrita
como
milagrosa
foi
que
esta
mesma
virtude
Por isso é notório destacar que o episódio
da
estigmatização
seria
um
relatada em 1228 por Tomás de Celano na
elemento legitimador dessa transformação,
obra Vita Prima (1C), e por essa ser a
essa noção é altamente explorada nos
primeira fonte hagiográfica escrita sobre o
discursos hagiográficos, observe o relato
santo, é tida como exemplo e referência
de Tomás de Celano que tenta justificar a
para as obras posteriores.
autenticidade do milagre, “brilhava nele
Os discursos hagiográficos apontam
uma representação da cruz e da paixão do
que o santo italiano chegou ao extremo de
Cordeiro imaculado, que lavou os crimes
sua identificação e busca por Cristo e seu
do mundo, parecendo que tinha sido tirado
evangelho, por essa razão é tido como o
havia a pouco tempo da cruz, tendo as
grande imitador do “cordeiro de Deus”. Nas
mãos e os pés atravessados pelos cravos e
hagiografias estudadas é apontado como o
o lado por uma lança” (1C, 1997, p.260). O
Alter Cristus, ou seja, o Outro Cristo, o
filho de Deus se tornaria concreto na
“segundo”, pois Francisco “possuía Jesus
pessoa de Francisco de Assis com os
39
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
estigmas,
ele
seria
a
representação
Cristo e suas atitudes, queria tanto se
humana do Cristo crucificado, o Espelho de
aproximar do filho de Deus que acabou
Cristo. Seria aquele que definitivamente
tornando-se a própria representação do
mudaria o percurso da igreja não só pelas
Cristo
suas ações, mas também agora por aquilo
estigmas que possuía em seu santo corpo.
que representava.
Isto se constitui em mais um elemento
crucificado
com
os
sagrados
Dos
importante para o sucesso da sua Ordem
Sacrossantos Estigmas de S. Francisco e
Mendicante e do Franciscanismo, pois
de suas Considerações (Csd) mais uma
atingiu o nível das representações sociais
evidência de que para o imaginário cristão
do imaginário cristão medieval, já que:
É
relatado
na
fonte
medieval Francisco de Assis após a estigmatização teria se tornado imagem e semelhança do Cristo crucificado:
A conexão entre o franciscanismo e o evangelismo que caracteriza os movimentos religiosos do período é evidente. O próprio Francisco foi o primeiro a receber a impressão das marcas da
E estando nessa admiração, foi-lhe revelado, por
crucificação em seu corpo, tornando-se não
aquele
divina
somente um religioso que se inspira, mas aquele
providência aquela visão lhe era mostrada em tal
que imita e presentifica o Cristo. Desse modo, a
forma, para que ele compreendesse que, não por
experiência franciscana tem sido alvo da reflexão
martírio corporal mas por incêndio mental, devia
de estudiosos da imagem que percebem a
ser todo transformado na expresssa similitude do
importância do aparecimento e proliferação das
Cristo crucificado (Csd, 1997, p. 1210-1211).
imagens do crucificado aliadas àquelas do geral
Paul
das imagens religiosas (VISALLI, 2013, p. 86).
que
lhe
aparecia,
Sabatier
que
por
esclarece
que
Francisco se liga a tradição apostólica durante os “últimos anos de sua vida, em que renova em seu corpo a paixão de Cristo. Há no paroxismo do amor divino
ineffabilia (coisa inefáveis) que longe de poder contar ou fazer compreender, só se pode lembrá-las a si mesmo” (SABATIER, 2006, p. 311). Segundo “Francisco
Le
termina
Goff sua
é
quando
caminhada
à
imitação de Cristo, é o ‘servo crucificado do Senhor Crucificado’, senti-se confirmado em sua missão pelos estigmas” (LE GOFF, 2007, p.89). Francisco de Assis imitava o
Por isso os estudos iconográficos do período medieval sobre a representação da estigmatização de Francisco de Assis são cruciais
para
a
compreensão
da
personificação do santo italiano no filho de Deus, uma vez que as imagens reforçam a presentificação
de
sua
identificação
corporal (física) com o Cristo, reforçando assim,
o
discurso
das
hagiografias
franciscanas, se considerarmos que: Se a Igreja medieval conferiu um papel às imagens no culto e na devoção, foi porque as imagens, mas do que a palavra dos pregadores (a leitura dos livros não sendo acessível senão a uma pequena minoria), exercia sobre a imaginação dos fiéis uma
40
Alex Silva Costa ação decisiva considerada benéfica (SCHMITT, 2007, p.355).
Esses
níveis
de
representação
aliados à materialização dos discursos hagiográficos
reforçaram
o
ideal
cristológico de imitação de Francisco de Assis, uma vez que é necessário “observar imagens
dos
primeiros
séculos
franciscanos e refletir sobre o tratamento dado
por
ilustradores,
pintores
e
hagiógrafos à relação dos frades menores com a figuração” (VISALLI, 2013, p.85). Até porque após o discurso ser consolidado: [...] todo o sistema dos crivos que analisa a
uma forma de ‘doutrinação’ no sentido original do termo, a comunicação de doutrinas religiosas” (BURKE, 2004, p.59). Na Legenda dos Três Companheiros
(3S), é descrito de forma particular que o próprio Deus “querendo mostrar ao mundo inteiro o fervor do amor e a perene memória da paixão de Cristo que Francisco trazia
em
seu
coração,
honrou-o
magnificamente, ainda em vida, com a admirável prerrogativa de um singular privilégio” (3S, 1997, p. 694). Na
mesma
fonte
temos
como
sequência das representações para fazê-la oscilar,
condicionamento da verdade dos sagrados
para detê-la, desenvolvê-la, e reparti-la num
estigmas a grande quantidade de milagres
quadro
permanente,
todas
essas
querelas
constituídas pelas palavras e pelo discurso, pelos
que o santo realizara tanto em vida como
pelas
após sua morte, os sinais do crucificado
equivalências são agora abolidas a ponto de ser
seriam elementos legitimadores de sua
caracteres
e
pela
classificação,
difícil reencontrar a maneira como esse conjunto pôde funcionar (FOUCAULT, 2007. p. 418).
Pensando
nessa
perspectiva,
percebemos que as análises prévias sobre um discurso podem ratificar ou negar uma posição quando, na verdade, deveriam refletir a fundo sobre suas verdadeiras intencionalidades. Não fora por acaso que os seguidores do santo ao logo do tempo utilizaram
a
estigmatização
como
um
elemento singular, uma graça única e como um grande exemplo de transcendência humana,
e
em
alguns
casos,
como
doutrinação na sua ordem religiosa, pois entendemos
que
“a
iconografia
era
importante na época porque imagens era
santidade: A verdade inegável desses estigmas manifestou-a Deus claramente não só na vida e na morte, pelo que deles se podia ver e palpar, mas também depois de sua morte pelos muitos milagres em várias partes do mundo. Por causa desses milagres,
muitos
que
não
haviam
julgado
retamente acerca do homem de Deus, pondo em dúvida seus estigmas, chegaram a tanta certeza, que, se antes haviam sido seus detratores, pela bondade atuante de Deus e compelidos pela verdade, tornaram-se dele fidelíssimos devotos e defensores (3S, 1997, p. 695).
Temos ainda em Dos Sacrossantos
Estigmas de S. Francisco e de suas Considerações (Csd) a descrição que o amor devotíssimo de Francisco na pessoa de Cristo e na sua paixão era tão grande
41
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
“que todo ele se transformara em Jesus
em discussão a interpretação mística e
pelo amor e pela compaixão” (Csd, 1997,
escatológica que São Boaventura teria
p.1210). E ainda é enfatizado na Quarta
dado a esse fenômeno sobrenatural, pois:
consideração dos sacrossantos estigmas
Demonstram uma vontade de apresentar o Pobre de
que fora “o verdadeiro amor de Cristo que
Assis
como
um
“segundo
(alter
Cristo”
Christus), cuja santidade e conformidade com o
transformou perfeitamente S. Francisco em
seu divino mestre eram comprovadas por essas
Deus
chagas
e
na
vera
imagem
de
Cristo
da
São Boaventura na Legenda Maior
e
textos
hagiográficos,
e
também
a
1995, p.132).
No entanto, Francisco de Assis ao estigmatizado
experiência
do
em
contato
1224 das
teve
a
sagradas
chagas do crucificado em seu corpo. Por
Deus era o seu servo Francisco, que foi achado
meios
digno de ser amado por Cristo, imitado por nós, e
franciscanos ele recebe a alcunha de ser a
admirado pelo mundo inteiro. Pois enquanto viveu entre os homens, imitou a pureza dos anjos,
dos
discursos
hagiográficos
representação terrena de Cristo, e se
tornado-se um exemplo para os seguidores de
tornou o primeiro estigmatizado da História.
Cristo.
Francisco por meio dos estigmas constitui-
Mas
o
que
nos
confirma
nesses
sentimentos é a prova irrefutável de sua verdade: o selo que fez dele a imagem do Deus vivo, isto é,
se em um exemplo vivo do Cristo por ter
do Cristo crucificado, o selo impresso em seu
presentificado em seu corpo as chagas do
corpo, não por uma força natural nem por algum
crucificado.
recurso humano, mas pelo poder admirável do Espírito do Deus vivo (LM, 1997, p.462).
No entanto, para André Vauchez o
fenômeno dos estigmas seriam “vestígios de
confusos
destino espiritual e no da sua ordem (VAUCHEZ,
ser
algum dia a convicção de que esse mensageiro de
relatos-
grandeza de Deus-Trindade, no seu próprio
carregando o selo do Deus vivo” (Ap 7,12).
extraordinária santidade, chegaremos sem dúvida
Os
revelação impressionante, centrada na infinita
selo, vi outro anjo subindo ao nascente
sua
senão
Francisco de um serafim portador de uma
evangelista São João: “Ao abrir-se o sexto
de
difícil,
dimensão teofânica, a saber, o aparecimento a
do outro amigo do esposo, o apóstolo e
perfeição
É
iconografia primitiva da cena, ressaltam a sua
Deus vivo, conforme a predicação verídica
a
estigmatização.
antigos
que sobe do oriente carregando o selo do
considerando
divina.
contraditórios- das raras testemunhas e dos mais
(LM), relata que Francisco prefigura o anjo
[...]
origem
impossível, saber o que realmente ocorreu quando
crucificado” (Csd, 1997, p.1214).
E acrescenta ainda que:
de
uma
Francisco
identificação com
o
física
Cristo
de
São
crucificado”
(VAUCHEZ, 1995, p. 132). Coloca ainda
Este fato impulsionou e fundamentou a representação cristológica de Francisco nas fontes hagiográficas ao longo do tempo, tanto que o Padre Antônio Vieira em seu sermão sobre as chagas de São Francisco enfatiza: se queres conhecer o
42
Alex Silva Costa
santo,
então,
“vesti
tereis
nos indagarmos sobre sua encomendada,
Francisco”, da mesma forma, faça-se o
quem era seu autor, a mando de quem a
contrário
escreve e para quem escreve, e com qual
“desvesti
Cristo
e
Francisco
e
tereis
Cristo”.
objetivo. Por isso compreende-se que “por Considerações Finais
mais que o discurso seja aparentemente
hagiografias
bem pouca coisa, as interdições que o
franciscanas escritas na Idade Média
atingem revelam logo, rapidamente, sua
Central teve como autores, homens ligados
ligação com o desejo e com o poder”
diretamente ao Movimento Franciscano.
(FOUCAULT, 2004, p. 10).
A
maioria
das
São Boaventura, Ministro-Geral da Ordem
O presente estudo vem ao encontro
(1257-1274) e Tomás de Celano (frade
das
franciscano),
Franciscanismo,
por
exemplo,
escreveram
discussões
atuais
sobre
pois
o
pensa
a
suas obras sob encomenda da Igreja. A
representação
Vita Prima (1C) de Tomás de Celano foi
importante
feita sob encomenda do papa Gregório IX
institucionalização
em virtude da canonização do santo em
fundada por Francisco de Assis (Ordem
por outro lado, a Legenda Maior
1228;
como de
um
elemento
legitimação da
ordem
e
religiosa
dos Frades Menores).
(LM) fora encomendada a São Boaventura
Por
fim,
o
Frades Menores e em 1263 a obra foi
máximo da personificação de Francisco de
aprovada em Narbone, quando o autor,
Assis na figura de Jesus Cristo. É ponto
enquanto Ministro-Geral, tentava resolver
alto de sua transcendência humana e
os
religiosa,
principalmente
sobre
abrandamento
dos
da um
Ordem, possível
princípios
do
teria
sido
é
o
da
estigmatização
internos
1224
milagre
por meio do Capítulo Geral da Ordem dos
conflitos
de
grande
estágio
para
alguns
admiradores sua apoteose. O peregrino de Assis
torna-se
segundo
os
discursos
franciscanismo primitivo por meio dos
hagiográficos “imagem e semelhança do
conventuais, enfatizando em sua escrita
Cristo crucificado”.
hagiográfica, uma doutrinação para sua Ordem. Por isso devemos ficar atentos à
Este fato revela a importância de estudar
as
narrativas
hagiográficos
sobre
relação aos discursos e intencionalidades
estigmatização,
de cada escrita hagiográfica. E refletir
identificação
sobre as circuntâncias da sua produção, e
transformações
uma
corporal que
o vez
e
discursos
milagre
da
que,
essa
potencializou a
as
representação
43
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
cristólogica do santo causou na expressão
religiosas
sobre
a
personificação
de
religiosa e no imaginário cristão medieval,
Francisco de Assis na figura do Cristo
reforçando assim, as práticas e crenças
crucificado.
Referências : Fontes Primárias:
Legenda Maior (LM)eLegenda Menor (Lm), São Boaventura; tradução Frei Romano Zago, O.F.M. Vita Prima (1C) e Vita Secunda (2C) de São Francisco,Tomás de Celano; Tradução: Frei José Carlos Pedroso.Dos Sacrossantos Estigmas de S. Francisco e de
suas Considerações (Csd); Tradução: Durval de Morais. Legenda dos Três Companheiros (3S); tradução: Frei Roque Biscione, O.F.M. O Espelho da Perfeição (Sp); tradução: Frei José Jerônimo Leite, O.F.M.IN- Escritos e biografias de São Francisco de Assis/Crônicas e
outros testemunhos do primeiro século franciscano. Seleção e organização: Frei Ildefonso Silveira, O.F.M e Orlando dos Reis. 8° edição, Petrópolis: Vozes, 1997. Obras Gerais: BASCHET, Jèrôme. A civilização Feudal: do ano 1000 à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru, SP: Edusc, 2004. CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações; tradução de Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: BERTRAND, 1990. DOSSE, François. O Desafio Biográfico: Escrever uma vida. Tradução: Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo, Edusp, 2009. DUBY, Georges. História Social e Ideologia das Sociedades. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (Orgs.). História: Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 9º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. __________________. A Ordem do Discurso.São Paulo: Ed. Loyola, 2004. __________________. A Microfísica do Poder. Org. e Trad.: Roberto Machado. RJ; Edições Graal, 2012. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do ocidente. 2°. ed. revisada e ampliada. São Paulo: Brasiliense, 2001.
44
Alex Silva Costa
LE GOFF, Jacques. As Raízes medievais da Europa. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis, Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2007.
__________________. O Imaginário Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. MACEDO, José Rivair. A Mulher na Idade Média. 5ºed.revista e ampliada. São Paulo: Contexto, 2002. SILVA,
Andréia
Cristina
Lopes
Frazão
da.
Hagiografia.
Disponível:
http://www.ifcs,ufrj.br~frazão/hagiografia.htm; acesso em 04/07/12. SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens:ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru: Edusc, 2007. Obras Específicas: ASSELDONK, Van Optato, O.F.M.Cap. O Crucifixo de São Damião visto e vivido por São
Francisco. Tradução: Danilo Biasi, O.F.M.Cap. CEFEPAL: Ed. Vozes, Petrópolis,1989. BOFF, Leonardo. São Francisco de Assis: Ternura e Vigor: uma leitura a partir dos pobres. 9ºed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2002. LE GOFF, Jacques. São Francisco de Assis. Tradução: Marcos de Castro. 8°ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. SABATIER, Paul. Vida de São Francisco de Assis. Tradução: Frei Orlando A. Bernadi, OFM/ Frei Vitório Macuzzuco. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, IFAN, 2006. VAUCHEZ, André. S. Francisco de Assis. In:BERLIOZ, J. (Org.). Monges e Religiosos na
Idade Média. Lisboa: Terramar, 1994. ________________. A espiritualidade na Idade Média Ocidental: (séculos VIII a XIII). Tradução Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1995. ________________. O Santo. In: LE GOFF, Jacques (Org.). O Homem Medieval. Lisboa: Editora Presença, 1989. VISALLI, Angelita Marques. Cantando até que a morte nos salve: estudo sobre laudas italianas dos séculos XIII e XIV. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2004. (Tese de Doutorado). _______________________. O corpo no pensamento de Francisco de Assis.Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco; Curitiba”: Faculdade São Boaventura, 2003. _______________________. O Crucifixo de São Damião: assim Cristo se manifesta a Francisco de Assis.Notandum, CEMOrOC-Feusp / IJI-Universidade do Porto (maioagosto), 2013.
45
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
_______________________. Os Mártires Franciscanos nas Imagens da Franceschina (1474): A Exacerbação Da Violência Como Signo De Santidade. II Encontro Nacional de Estudos da Imagem (12, 13 e 14 de maio) Londrina-PR, 2009 (anais).
46
ESTRATÉGIAS DE APROPRIAÇÃO E ATUALIZAÇÃO DE FORMAS LITERÁRIAS TRADICIONAIS NO ROMANTISMO PORTUGUÊS: A BALADA E O ROMANCE Ana Marcia Alves Siqueira 1 Resumo: Influenciados por Herder, escritores românticos de diferentes países buscaram inspiração nos tempos de origem do país e na tradição do povo, como forma de valorização e resgate da alma nacional. Em Portugal, Alexandre Herculano e Almeida Garrett produziram obras filiadas ao medievo, tanto pela apropriação de temas muito difundidos no período, quanto pela atualização de formas literárias tradicionais de origem popular. Embora a fonte e os objetivos fossem semelhantes, a produção de cada escritor tomou caminhos diversos, cujos desenvolvimentos buscamos discutir nesse estudo que visa analisar - a partir da temática tradicional da separação do casal apaixonado e consequente pacto de fidelidade - como as transformações e recriações do tema e as consequências dele advindas estão diretamente ligadas ao modo como cada escritor, herdeiro da tradição portuguesa, mesclou-a, ou não, às influências e modelos propostos pelas tendências europeias em voga no Romantismo. Consideramos também que estas diferenças estão diretamente relacionadas às pesquisas sobre as formas literárias medievais empreendidas pelos dois escritores. Assim, a análise comparativa salientou que enquanto Herculano recria baladas e poemas, de feição gótica e sombria, ou contos filiados ao heroísmo e fantástico medieval, Almeida Garrett reúne em seu Romanceiro, trovas e romances de ambientação mais amena e popular, cujas finalizações podem ser tristes ou alegres, mas nunca chegam ao sombrio ou macabro. Palavras-chave: balada; romance; pacto de fidelidade.
1 Universidade Federal do Ceará
47
Ana Marcia Alves Siqueira O Romantismo português foi essencialmente
1. O pacto de fidelidade e o medievo
medievalista. Simplesmente, essa tendência não
Influenciados por Herder, escritores
se manifestou com grande força no aspecto que
românticos de diferentes nacionalidades
agora nos interessa. Foram “góticos” o teatro e a balada, mas não o romance, com excepção de
buscaram inspiração nos tempos de origem
Castilho, por vezes Herculano, e pouco mais.
do país e na tradição do povo, como forma de valorização e resgate da alma nacional. Em
Portugal,
Alexandre
Herculano
e
Almeida Garrett produziram obras filiadas ao medievo, tanto pela apropriação de temas muito difundidos no período, quanto pela
atualização
de
formas
literárias
tradicionais de origem popular. O
aspecto
mais
conhecido
e
estudado da obra de Herculano, por ser considerado seu introdutor em Portugal, é o romance histórico, inspirado em lendas medievais,
devido,
especialmente,
ao
desenvolvimento de estudos histográficos sobre o medievo que despertaram seu interesse por fatos e personagens pouco conhecidas. Ao lado de seu incansável trabalho de historiador e organizador da memória nacional, a criação literária serviu como um modo de relembrar o passado mítico e lendário de Portugal, às vezes em uma configuração mais sombria, mas sem ferir sua concepção de historiografia. A respeito da preocupação com o passado histórico, com as raízes medievais de Portugal e também com a literatura de feição gótica, por parte dos românticos, assinala Maria Leonor Machado de Sousa
Embora o autor não dê muito relevo ao gótico em seus romances – o que não impede que haja um clima de tensão e mistério provocado pelas descrições de ambientes
tétricos,
melancólicos
e
silenciosamente solitários, como em Eurico,
o presbítero e O monge de Cister, – ele está presente nos contos inspirados em relatos e manuscritos medievais e na poesia, especialmente nas versões que fez das mais conhecidas baladas macabras europeias
publicadas
na
Panorama,
entre
e
1837
Revista 1839,
e
posteriormente no volume Poesias, de 1850. A motivadora
temática dessas
tradicionalmente baladas,
presente
também em diversos romances coligidos no Romanceiro, publicado entre 1828 e 1853 por Almeida Garrett, é a separação do casal apaixonado, após realizar um pacto de amor e fidelidade. Este juramento pode ocasionar consequências terríveis para
o
casal,
quando
resulta
em
transgressão e traição ou, pelo contrário, pode encerrar uma prova de fidelidade ao superar a separação ou a morte.
(1978, p. 168):
48
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Na Idade Média, popularizaram-se histórias de amor históricas ou lendárias 2,
Na campa do cavaleiro / Nasce um triste pinheral;/ E na campa da princesa / Um saudoso canavial./
imortalizadas pela literatura que, ao longo
Manda a dona do castelo / Todas as canas
dos
cortar;/
séculos,
conservaram-se
como
paradigmas de um modelo de amor ideal,
Mas as canas das raízes / tornavam a rebentar: / E a noite a castelhana / As ouvia suspirar.
mítico, além da separação entre vivos e
(GARRETT, 1963, p.19-20, v.3).
mortos. O motivo simbólico das plantas
e em “Rosalinda”:
nascidas
nos
túmulos
dos
amantes,
Na cova de Rosalinda / Nasce árvore real,/ E na cova do almirante / Nasceu um lindo rosal./
entrelaçando-se como meio de resistência
El-rei, assim que tal soube, / Mandou-os logo
a
cortar, /
separação
imposta
em
vida,
está
presente em manifestações literárias de nacionalidades
diversas.
A
resistência
dessas plantas a todas as tentativas de destruição simboliza a perenidade e a volta ao meio natural perfeito e harmônico, diferente
da
imperfeição
do
E que os fizessem em lenha / Para no lume queimar. / Cortados e recortados, /tornavam a rebentar: / E o vento que os encostava,/ E eles iam-se abraçar. (GARRETT, 1963, p.112, v.2).
O amor é a força motriz a unir os
mundo
casais em forma de plantas que resistem
humano. Na perfeição imanente à criação
às ações humanas, funcionando como uma
natural estão presentes os conceitos de
espécie
justiça e de reparação necessárias ao
perseguidores.
reequilíbrio do mundo.
de
castigo
para
seus
De forma um pouco mais elaborada,
O tema da separação mesclado ao
o motivo das plantas é complementado
motivo das plantas, por exemplo, está
pelo nascimento de animais em “O Conde
presente
no
Romanceiro,
primeira
coletânea de romances tradicionais do
Nilo”, e também é complementado por uma explicação de seu simbolismo:
Romantismo português que, segundo seu
Morto é o conde Nilo, / A infanta já a expirar /
autor, buscava “popularizar o estudo da
Abertas estão as covas, / Agora os vão enterrar: /
nossa
literatura
primitiva,
dos
seus
Ele, no adro da igreja, / A infanta, ao pé do altar./ De um nascera um cipestre,/ E do outro um
documentos mais antigos e mais originais”
laranjal;/
(GARRETT, 1963, v. 2, p. 4). A primeira
Um crescia, outro crescia, / Co´as pontas se iam
destas composições é “A Peregrina”:
beijar./ El-rei, apenas tal soube,/ Logo os mandara cortar./
2 Histórias como a de Tristão e Isolda, ou Pedro e Inês de
Um deitava sangue vivo, / O outro sangue real;/
Castro que superaram a morte. Ver a esse respeito
De um nascera uma pomba,/Dooutro um pombo
História do amor no Ocidente, de ROUGEMONT (2003).
torcaz./
49
Ana Marcia Alves Siqueira Senta-se el-rei a comer, / Na mesa lhe iam pousar:/ – Mal haja tanto querer, / E mal haja tanto amar!/
recriadas
por
Herculano
apresentam
separar!
desenvolvimento da temática, todavia, o
A temática da separação do casal apaixonado,
plena
de
ressonâncias
reapropriações ao longo dos
e
séculos,
adquire uma importância maior no contexto do Romantismo português, visto que esta sempre
esteve
presente
na
história
portuguesa, desde a necessidade de ir combater
castelhanos
ou
mouros
ao
embarque nas naus para conquistas de além mar. Com efeito, nem sempre o casal resiste às contingências da separação. A longa espera é mais difícil para a jovem que aguarda, sem notícias, na incerteza da sobrevivência do amado. Assim, florescem, concomitante às histórias de fidelidade marcadas pelo simbolismo da perenidade amor
verdadeiro,
produções
apresentando diferentes configurações e desenlaces diante da quebra do pacto de fidelidade. O já citado Romanceiro (1963) reúne outros exemplos do pacto de amor e fidelidade com desenrolar distintos, às vezes, felizes, como “A Bela Infanta” e “Noiva arraiana”, outras nem tanto, como exemplificam, “O Cordão de oiro” e “Bernal francês”.
certa
também
Nem na vida nem na morte / Nunca os pude (GARRETT, 1963, p.10-11, v.3 )
do
De modo semelhante, as baladas variedade
no
desenlace da trama tende sempre, devido à influência germânica, para o sobrenatural maligno
manifestado
segundo
a
necessidade de cumprimento do pacto ou restabelecimento da justiça por meio do castigo e da reparação do mal infringido. A partir da consideração de que as recriações de Herculano e de Garrett, sobre
a
temática
supracitada,
estão
diretamente ligadas ao modo como cada escritorreapropria-se
do
imaginário
medieval no contexto da escola literária romântica, este estudo busca analisar a maneira
como
os
dois
escritores
manipulam e reorganizam essa informação apropriando-se
de
formas
poéticas
similares originárias do medievo, a saber: a balada e o romance. 2. A Balada e o romance: formas e origens complexas De
acordo
com
o
dicionário
etimológico, balada é palavra derivada do provençal ballada, com o significado de ‘dança’,
“peça
musical,
outrora
acompanhada de canto e dança” (CUNHA, 1999, p. 93), e do francês com o sentido de “pequeno poema narrativo de assunto lendário ou fantástico” (idem, ibidem),
50
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
usado em português somente a partir do
De maneira similar, Miguel Alarcão, no E-dicionário de termos literários (2014),
século XVII. Segundo Moisés (2000, p.53), o
salienta a importância da oralidade na
termo “balada” está ligado a duas formas
composição,
execução,
líricas.
perpetuação
dessas
A primeira, definida pela origem
transmissão
e
composições,
folclórica, popular ou tradicional, não é
considerando o contexto da gênese destas,
monopólio de nenhuma nacionalidade, está
em
disseminada por toda a Europa desde a
acrescenta o argumento de que, aliado ao
Idade Média: entre os gregos, anglo-
desconhecimento, até meados do séc. XV,
saxões,
da
eslavos,
balcânicos,
romenos,
que
a
oralidade
fixação
predominava.
tipográfica,
as
E
baladas
finlandeses e ibéricos. É caracterizada por
apresentam
ser um canto narrativo, que trata de um
razoavelmente estanque, mas passível de
único episódio, de assunto melancólico,
ser veiculado com alguma liberdade,para
histórico ou sobrenatural e também por
explicar a frequente existência de variantes
apresentar uma forma mista, variada, que
dispersas no tempo e no espaço.
aglutina elementos da poesia dramática, lírica
e
narrativa.
Outra
Para
um
núcleo
complementar
narrativo
a
definição,
característica
Moisés (2000, p.55) esclarece: “Note-se,
destacada diz respeito à presença de um
ainda que, tanto em Português como em
processo
dramático
resposta,
ou
pergunta
e
Espanhol, o termo “romance” ou “rimance”
viabilizando
o
equivale,
desdobramento da fabulação desenvolvida
popular.”
em
torno
de
de
diálogo, um
personagem,
cuja
na
esse
texto para manter a tensão e o mistério.
apresentação
ainda
discorre
sobre
Média,
à
balada
Outros autores também concordam a
conclusão é adiada até a finalização do Moisés
Idade
respeito: de
Correia
(1992),
pesquisa
na
sobre
os
a
romances portugueses de origem ligada ao
polêmica acerca da autoria individual ou
ciclo carolíngio, reconhece a utilização do
coletiva da balada folclórica, considerando
termo “balada” para composições poético-
mais plausível a tese da dupla autoria, pois
narrativas nomeadas por romances em
a composição individual, baseada nos
Portugal. Sousa (1978) é mais enfática ao
valores e expectativas do povo, torna-se
afirmar que o termo "romance" (poético) é
uma produção coletiva ao longo do tempo,
correspondente, na literatura peninsular, à
visto que a transmissão oral modifica,
balada
recria continuamente a produção original.
cantado e transmitido pela tradição oral,
européia,
“curto
poema
épico
51
Ana Marcia Alves Siqueira
habitualmente usado para contar histórias
rimas: ababbcbc ou ababbccdcd. No envoi,
antigas e tétricas” (SOUSA, 1978, p.50).
as rimas organizavam-se em bcbc ou
Por sua vez, Carla Escarduça, autora do
ccdcd. As vinte e duas baladas presentes
verbete Romanceiro, do E-dicionário de
no
termos
Resende,
literários,
salienta
a
Cancioneiro a
Geral
de
despeito
Garcia
de
de
pequenas
correspondência entre romance e balada,
diferenciações, filiam-se a este segundo
como tipos de um mesmo gênero: “o
tipo (FERNANDES, 2011, p.14).
romanceiro
constitui
o
representante
As
definições
apresentadas,
poético-narrativo da balada europeia na
juntamente com uma breve análise das
Península Ibérica, apresentando, contudo,
coletâneas publicadas desde a baixa Idade
características próprias em relação às viser
Média, revelam a complexidade inerente à
dinamarquesas, às bilinas russas ou às
mescla de características e formas entre
baladas
estas
escocesas
e
inglesas.”
(ESCARDUÇA, 2014). O
segundo
enumerado,
composições
de
tradição
popular, bem como a dificuldade de se tipo
origem
de
balada
PereFerré (2013) chama a atenção
circulação erudita, apresenta forma fixa e
para o fato de o Romanceiro ser herdeiro
subdivide-se em balada primitiva e balada
da
propriamente dita. A primeira, surgida no
medieval e de florescer juntamente com
século XIV, “graças a Phillipe de Vitry
outros
postulam
as
francesa
estabelecer a origem destas.
e
(conforme
de
duas
Règres
de
irregularidade
folclórico
gêneros
formal
da
narrativos
europeu.
epopeia
de
Salienta
fundo
ainda
a
laseconderhétorique, de autor anônimo,
dificuldade de definição de um gênero
publicadas entre 1411 e 1432)” (MOISÉS,
“nascido
2000, p.55). Configurava-se em três oitavas
castelhanas” e do contato com cantares
com rimas em ababbccb e cada estrofe
narrativos breves europeus, introduzidos na
finalizando com os mesmos versos. Já a
Península Ibérica por jograis, assumindo
“balada propriamente dita” alcançou o
estilos e formas diversos desde seu início
apogeu no século XV com François Villon,
no século XIV até atingir certa estabilização
Cristine de Pisan e Charles d´Orléans. Era
no século XV.
sob
o
declínio
das
gestas
composta de três oitavas ou décimas,
Outra explicação para a semelhança
seguidas de um envoi de quatro ou cinco
entre as duas formas é a hipótese de a
versos. Cada estrofe termina pelo mesmo
gênese do romanceiro vir da divulgação,
verso e utiliza o seguinte esquema de
assimilação e/ou recriação de baladas
52
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
europeias, especialmente as de origem
de
francesa.
modificadas paulatinamente em um lento
Assim,
paulatinamente,
as
gesta
ou
baladas
europeias
alterações sofridas ao longo de séculos no
processo
aspecto formal resultou no distanciamento
própria da poesia tradicional, perfazendo
da estrutura baladística 3, aproximando-a a
uma ação continuada e ininterrupta de
alguns elementos mais caracterizadores
reprodução e reinvenção de variantes –,
das composições orais na península: o
aponta para o caráter dinâmico das formas
verso
advindas da oralidade e desqualifica a
em
métrica
heptassílaba
e
a
transmissão
recriadora,
visão da tradição como uma herança
assonância única. Diante
de
das
do
exposto,
podemos
estabelecer que balada e romance são composições
cristalizada,
inerte
que
deveria
ser
registrada para não ser perdida. Geralmente a recriação é realizada
poético-narrativas
pertencentes ao mesmo gênero nascido
por
em meio há variadas influências: a poesia
colaboração de artistas eruditos também
épica,
trovas
pode ser vista como parte deste processo.
históricos,
Como dissemos, a partir do Romantismo,
cantares de temas bíblicos, clássicos,
teve início o interesse pela pesquisa das
folclóricos
canções
jogralescas,
de
gesta,
acontecimentos
artistas
anônimos;
contudo,
a
líricos.
Nesse
sentido,
memórias coletivas e produção tradicional
nos
seus
versos
do povo, retomando o romance, ou balada
díspares,
peninsular, em sua dupla vertente: por um
testemunhando os assuntos favoritos de
lado, o processo de criação, apropriação e
uma grande parte da população das
tradicionalização prosseguiu naturalmente,
épocas
de
ou
encontraremos construções
em
temáticas
que
foram
criadas
e
transmitidas. A análise das hipóteses sobre a origem do gênero – derivação dos cantares
geração
em
geração,
por
outro,
começaram a florescer obras dedicadas à compilação de versões, fixando-as, com maior
ou
menor
fidelidade,
em
letra
impressa. Garrett e Herculano participaram 3 Essa estrutura é formada pelo metro de balada, que designa, nos países de língua inglesa, quatro formas fixas utilizadas em baladas populares. A unidade métrica utilizada é o pé, composto por um grupo de sílabas
de modo diverso nesse processo. 3. O romanceiro garrettiano e a balada gótica de Herculano: faces de um
contendo uma sílaba acentuada e uma ou mais átonas.
mesmo projeto
As quatro formas tradicionais de metro de balada
A Influência do romantismo alemão,
recorrem, em língua inglesa, a estrofes de quatro versos
iniciado pelo movimento Sturm undDrang,
com esquema de rimas abcb. (BRITTO, 2008, p. 26).
53
Ana Marcia Alves Siqueira
sob a égide de poetas e escritores como
Novamente em Portugal, o escritor buscou
Schiller e Goethe, propagou o culto da
trazer para o público lusitano as inovações
imaginação,
românticas, a literatura de feição “negra” 4
aliando
misticismo
e
sensibilidade à melancolia, ao mistério e à paixão. Sob as influências
e
O caminho escolhido por Herculano
germânica, o excesso de subjetividade
constitui um amálgama entre a utilização
resulta também na apreciação da morte e
da tradição nacional, por exemplo, a forma
do sombrio, relacionado ao aspecto lúgubre
métrica tradicional-popular lusitana e de
da vida, ao culto da noite, ao gosto pelo
sua musicalidade e a novidade trazida pela
satanismo.
configuração “negra” revelada nas baladas
Ou
seja,
o
inglesa
(SOUSA, 1978) conhecida no exílio.
Romantismo
originado na Alemanha e na Inglaterra
de origem alemã e inglesa.
apresenta também outra faceta: o fascínio
O autor aventurou-se, pois, a recriar,
pelo maligno e sua origem, pela beleza trai-
em português, célebres baladas macabras,
çoeira e seus encantos –característica
como “Afonso e Isolina”, versão de uma
fartamente
ultra-
composição de Lewis publicada, em 1835,
romântica, no romance noir e no gótico.
no Repositório Litterário, e“Leonor”, de
Conforme explica Mário Praz (1996), a
Bürger, presente na terceira parte da obra
beleza,
romântica,
Poesia, de 1850. Estas recriações, cuja
recebe realce mesmo do que parece
temática é o pacto de amor eterno entre o
contrariá-la – é a estética do horrível que
casal, tendem pelo sentimento trágico da
propicia a união entre a beleza, o prazer e
vida, pela reflexão sobre bem e mal e a
a sedução com seu outro aspecto: a
intervenção
corrupção, o horrível ou demoníaco.
desdobramento
presente
sob
Em Herculano
a
sua
na
poesia
perspectiva
juventude,
filiou-se
ao
Alexandre movimento
do
sobrenatural
do
enredo,
no
evitando,
porém, a exposição marcante do horrível macabro de caráter mais germânico.
romântico, em parte, graças a seu contado
Estes
poemas
constituem
um
com a Marquesa de Alorna, precursora do
material significativo para a apreciação da
Romantismo
originalidade
em
Portugal
com
suas
traduções de obras inglesas e alemãs. Ela
enquanto
da
intérprete
criação de
herculiana,
uma
tradição
o incentivou a estudar alemão e descobrir escritores da língua, como Schiller e
4 Expressão cunhada por Sousa (1978) para nomear a
Goethe, fato favorecido pelo período de
mescla de características do horror, de ambientação
exílio
gótica,
na
Inglaterra
e
na
França.
sombria
e
aterrorizante
utilizadas
concomitantemente por escritores portugueses.
54
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
estrangeira e adaptador desta aos modos
e cinco quadras em que a criterioso ajuste
tradicionais
dos
portugueses.
Consideramos
diálogos,
realizado
por
meio
da
que o autor arquitetou nessas composições
escolha de palavras e soluções sonoras,
o
uso
diálogo
criativo
estabelecendo trabalho
de
e
independente,
autonomia tradução,
de
onomatopeias
apesar
do
corresponde
preferindo,
em
balada.
O
à
e
aliterações,
estrutura
resultado
é
narrativa
da
harmônico
e
decorrência, o termo versão para esta
surpreendente, pois o ritmo e a cadência
produção.
da poesia tradicional portuguesa estão
O original de Gottfried A. Bürger,
presentes juntamente com o conteúdo
Lenore, conta a história da jovem Leonor
sobrenatural e sombrio fiel ao original, mas
que, desespera pelo não retorno do amado
um pouco modificado ao modo lusitano
após a guerra, blasfema contra Deus,
mais religioso ao enfatizar a necessidade
preferindo a morte a viver sem seu amor.
de castigo pela blasfêmia. A composição
Misteriosamente,
de Bürger 5, ao final,refere-se ao coração
à
noite,
o
amado
Guilherme retorna, mas, ao longo de uma
partido,
vertiginosa cavalgada repleta de paisagens
revelam os trechos a seguir:
escuras
e
misteriosas,
da
referência
constante do cavaleiro à morte, do mistério e de descrições de espectros e fantasmas horripilantes, ele revela que viera atender seu pedido para acompanhá-lo ao mundo dos mortos. Este poema apresenta trinta e duas oitavas organizadas em uma estrutura baladística, pautada no diálogo e na progressão narrativa vertiginosa, utilizando muitas interjeições, exclamações, pausas e onomatopeias; perfeitas
organizadas
cruzadas
e
em
rimas
emparelhadas
(ababccbb). Em sua versão, “Leonor”, Herculano preferiu utilizar a estrutura tradicional mais
apesar
do
Hochbäumtesich,
castigo. wildschnob
Conforme der
Rapp’
Alça-se e arqueja o ginete UndsprühteFeuerfunken; Ígneas faíscas lançou, Undhui!
war’sunterihrhinab
E debaixo de seus pés Verschwundenundversunken. Abriu-se a terra, e o tragou. Geheul! Geheul aus hoher Luft, GewinselkamaustieferGruft. Dos covaes surgem phantasmas LenorensHerzmitBebenFeio urrar os ares corta: Rang
zwischenTod
und
Leben.
Bate incerto o coração Da donzela semimorta. 5 Livre tradução nossa da última estrofe citada acima: Bem dançando ao luar/ Girando em círculos/ Os espíritos de uma dança em cadeia/ E, assim, uivou:/ Paciência!
comum da oralidade lusitana: a quadra com
Paciência! Quando o coração está partido./ Com Deus no
métrica em redondilha maior. São sessenta
céu não se zangue!/ De seu corpo estás livre;/ Deus tenha misericórdia de sua alma.
55
Ana Marcia Alves Siqueira NuntanztenwohlbeiMondenglanz
do ausente após um longo período sem
Ao redor danças de espectros
notícias.
RundumherumimKreise
A
jovem
enamorada,
Em remoinho passavam.
considerando que somente a morte poderia
Die GeistereinenKettentanz Canto de medonhas
justificar tanta demora, considera-se livre
vozes Undheulten
diese
Weise:
do juramento e aceita um novo amor. Segundo
Era o canto que cantavam: “Geduld!Geduld! Wenn’sHerzauchbricht! MitGottimHimmelhadrenicht! Leibesbistduledig;
Não fosses com Deus audaz. Gottsei
der
do
Romanceiro(GARRETT, 1963), a situação
Seelegnädig!
inconstância da mulher, exemplificada em “O cordão de oiro”: Deixou estrada direita, / Por atalhos se metera;/
Teu corpo pertence á terra (BÜRGER, 2010, p. 34).
poemas
pode ser vista como uma lição irônica da
Affligeste? Oh, tem paciência! Des
os
Inda não é meia-noite,/ À sua porta batera./
Á tua alma o
– Quem bate à minha porta,/ Quem bate com
ceu dê paz.
tanta pressa?/ – É um soldado, senhora,/ Que vos traz novas
(HERCULANO, 1850, p.317).
da guerra.
A sensibilidade alemã descreve o
(GARRETT, 1963, p. 98-99).
coração partido da jovem como o motivo
O pobre soldado apaixonado é
que a fizera se revoltar contra Deus,
dispensado pelo amante da esposa que o
embora não devesse ter feito. Por seu
enxota: “Amigo, vindes errado / Co’as
turno, Herculano prefere realçar o castigo
vossas novas da guerra: / Deixai-nos
atentando para a aflição vivida por ela
dormir em paz, /Que bem precisamos
como castigo pela blasfêmia.
dela.” (GARRETT, 1963, p.99). Em vez de
O elemento sobrenatural, quando
se vingar da traição, o soldado parte
surge nos romances portugueses não
lembrando-se da advertência do capitão
estão voltados para o macabro, mas a um
sobre a necessidade de ele rever a esposa
castigo ou recompensa ligado ao maravilho
antes do final da guerra. O encerramento
cristão. A título de exemplo, citamos o
do poema se dá com a fina ironia do
romance “Nau Catarineta”, no qual o
capitão: “Pois tua mulher tem primos,/ E tu
sobrenatural é a manifestação do diabo
vinhas com dó dela!...” (GARRETT, 1963,
tentando a alma do marinheiro. Outrossim,
p.99).
como a história da construção do reino está
Outra maneira de fabulação do tema
ligada a guerras com castelhanos ou
se dá quando a mulher é inocente por ser
mouros e conquistas ultramarinas, são
levada contra sua vontade a transgredir o
muito comunscomposições sobre o retorno
juramento, como em “A noiva arraiana”: “–
56
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Qu´é de minha dama, tia, / Que aqui ficou a
rudeza das mãos e memórias por onde
chorar? / – Tua dama faz hoje a boda, /
passou” (1963, v.1, p.25). Dessa forma
Amanhã se vai casar.” (GARRETT, 1963,
haviam procedido Scott, Percy e Burns,
p. 64). A justiça feita pelo guerreiro não tem
modelos imediatos do poeta no exterior.
drama ou sangue, ele leva a noiva da festa,
De
modo
semelhante
pensava
deixando para os traiçoeiros a boda e o
Herculano, que buscava inovar a literatura
jantar:
portuguesa – Pagar devia co’a vida / Quem me queria
unindo
a
tradição
literária
popular, a erudita e a história nacional às
enganar, Quando te deram por morto/ Nessas terras de
novidades artísticas apreciadas no período
além mar.
de exílio. A diferença maior entre os dois
Mas que fiquem com a boda / E bem lhes preste
escritores, além das escolhas formais –
o jantar,
recolha de romances orais com pequenas
Que os meus primeiros amores / Ninguém moshá-de quitar.
intervenções ou versões recriadas de
(GARRETT, 1963, p.65)
baladas ou reinterpretações de temas
Transcrito
ao
gosto
tradicional
português nos romances analisados, o tema da quebra do pacto de fidelidade, ligado
ao
considerado
motivo
da
morto,
volta
do
será
amor
também
inspiração da grande obra dramática de Almeida Garrett, Frei Luís de Sousa com todas as nuances trágicas implicadas e erudição característica. Porém, em seu
Romanceiro, Garrett acreditava ser preciso divulgar
as
primitivas
fontes
poéticas
portuguesas, os romances em verso, as lendas em prosa porque, a partir deste resgate, a poesia nacional haveria de ressuscitar “verdadeira e legítima”, despida da influência clássica. Nesse processo, os pequenos retoques ou reformulações se justificavam,
porque
era
necessário
aprimorar a poesia “informe e mutilada pela
históricos – está justamente na adesão à literatura de feição negra, à concessão ao horrível e ao sobrenatural dosadas em pequenas pinceladas. Assim, romances
de
modo
portugueses
similar
aos
analisados,
Herculano escreveu, de lavra própria, a balada “A volta do proscrito” em que o protagonista vive a mesma situação do soldado de “O cordão de oiro”, porém, com tons mais sombrios e melancólicos, pois, mesmo durante a viagem de volta, o rapaz já teme não encontrar seu lugar ou sua antiga
vida:
“Esperança,
e
somente
esperança / Cabe aquelle que os mares correu, / Quem lhe diz que inda não o esqueceu / A donzela por quem suspirou?” (HERCULANO, 1850, p. 203). A tristeza confirma-se e o viajante retorna ao mar:
57
Ana Marcia Alves Siqueira
“Conta-se que o seu amor fora trahido, /(...)
sobrenaturais. A quebra deste, portanto,
Sobre a proa outra vez indo assentar-se. /
resultaria em uma punição tão terrível e
Não
imutável como a morte.
entoou
um
hinno
de
alegria.”
(HERCULANO, 1850, p. 207).
Assim, Isolina ao jurar:
O tema, comum em um país voltado para o mar, foi recriado por Herculano de outra
maneira,
horripilante
de
inspirado Matthew
na
criação
Lewis
(2014)
publicada no romance The monk. A versão do divulgador da literatura negra em Portugal reconstrói em seu poema o mesmo
clima
encetado
pela
de
tensão
revelação
e
mistério
do
espectro
horrível que vem para cobrar o juramento feito; todavia as descrições de vermes escapando espectros
da
cabeça
saudando
os
do
cadáver noivos
e
com
caveiras repletas de sangue, presentes na versão inglesa, foram suprimidas 6. Herculano privilegia a permanência do amor para além da morte e, em especial, a atmosfera misteriosa e sagrada de um juramento de fidelidade que, ao utilizar referências à permanência alémtúmulo ou à força mágica do amor sem fim, desencadeava
a
instauração
de
abertura
para
a
acontecimentos
6 “…The worms, They crept in, and the worms, They crept out,/ And sported his eyes and his temples about, / While
– Affonso não te arrecêes / Não tens que te arrecear: / Juro amar-te vivo ou morto,/ Mais ninguem me ha de gozar./ Tua sombra me apareça /Se eu quebrar o juramento, / Comigo se ponha á meza / No dia do casamento; / Ali declare em voz alta / Que o seu direito requer: / Para o sepulchro me arraste, / Gritando – és minha mulher. (HERCULANO, 1836, p. 117-118).
acaba por instaurar o sobrenatural por força de suas palavras. O fantasma de Afonso,
inexoravelmente,
volta
para
impedir Isolina de se casar com outro e também para cumprir a vontade desta proferida em juramento sagrado. Destarte, Isolina não é punida somente por sua traição,
mas
também
para
que
seja
cumprido o castigo imaginado por ela mesma: Tu me convidaste á boda, / O teu convite acceitei;/ Palavras que me hasdictado / Palavras são que u direi./
the Spectre addressed Imogine…” (LEWIS, 2014). (Livre tradução nossa: “[...Os vermes, eles rastejaram para
Meu fantasma aqui declara / Que o seu direito
dentro/, E os vermes, eles rastejaram para fora,/ E
requer:/
desviaram pelos olhos e pelas têmporas, Enquanto o
Para a cova me acompanha, / Vem, vem, que és
Espectro dirigia-se a Imoguene...].
minha mulher./
58
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo Com a torpe mão arrasta / A infiel que em vão bradava:/ Nenhum d'elles já se via / Seu clamor inda
exemplo dos espectros e fantasmas de
soava...
Bürger –, o gótico inglês, inspirado em
(HERCULANO, 1836, p. 120)
Lewis e Scott com seus castelos, ruínas e
Apesar da atmosfera horripilante e sobrenatural, a métrica em redondilha maior e o ritmo das quadras com rimas cruzadas, nos versos pares, imprimem a musicalidade
e
a
dicção
da
poesia
tradicional portuguesa à balada herculiana. Com
estas
análises
pudemos
demonstrar a proposição de que sob a influência de Herculano, em seu trabalho de
exposição do horripilante e do fúnebre – a
divulgação
da
literatura
negra,
o
Romantismo português misturou o horror da literatura alemã, com tendência à
construção de uma atmosfera soturna, misteriosa e triste sem, no entanto, perder as características de sua tradição popular de raízes medievais. Por sua vez, Almeida Garrett seguiu o caminho da recolha de produções populares mais distantes das produções eruditas, embora um estudo atento também revele as influências de modelos
externos
de
autores
pré-
românticos europeus, ajustados sutilmente a sua produção.
Referências: ALARCÃO, Miguel. Balada. In: CEIA, Carlos (Org.) E-dicionário de termos literários. Disponível em: http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&lin k_id=132&Itemid=2. Acesso em 20 de março de 2014. BRITTO, Paulo Henrique. A tradução para o português do metro de balada inglês.
Fragmentos. N0 34, p. 25-33, Florianópolis, Jan-Jun, 2008. BÜRGER, Gottfried A. Lenore. In: COLEN, Érico e DRUMOND, Luana. Das tempestades:
a poesia alemã do Sturm undDrang. Edição bilíngue. Belo Horizonte: FALE/ UFMG, 2010. CORREIA, João David Pinto. Os romances carolíngios da tradição oral portuguesa. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1992. CUNHA, Antônio Geraldo. Dicionário etimológico. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. ESCARDUÇA, Carla Sofia Caneiro. Romanceiro. In:CEIA, Carlos (Org.) E-dicionário de
termos literários. Disponível em: http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&
59
Ana Marcia Alves Siqueira
task=viewlink&link_id=339&Itemid=2. Acesso em 20 de agosto de 2013. FERNANDES, Geraldo Augusto. O amor pela forma no Cancioneiro Geral de Garcia de
Resende. Tese. (Doutorado em Letras). Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011. FERRÉ, Pere. Romanceiro velho e tradicional. Disponível em: http://www.attambur.com/ Recolhas/romanceiro.htm. Acesso em 20 de agosto de 2013. GARRETT, João B. S. L. de Almeida. Romanceiro. Lisboa: Fundação Nacional para Alegria no Trabalho/ Gabinete de Etnografia, 1963, 3v. (Edição revista por Fernando de Castro P. de Lima). HERCULANO, Alexandre. Poesias. Lisboa: Viúva Bertrand e Filhos, 1850. _______. Afonso e Isolina. In: CASTILHO, Antônio Feliciano de (Org.). A noite do castelo: e
os ciúmes do bardo, poemas seguidos da Confissão de Amélia traduzida de Mlle. Delfine Gay. Lisboa: Typografia lisbonense, 1836, p. 117-121. LEWIS, Matthew G. The monk. Disponível em: http://www.gutenberg.org/files/601/601-h/ 601-h.htm. Acesso em 10 julho de 2014. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 10ª. Ed. São Paulo: Cultrix, 2000. PRAZ, Mário. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica.Trad. de PhiladelphoMenezees. Campinas: Editora da Unicamp, 1996. ROUGEMONT, Denis. História do amor no ocidente. 2a.ed., Trad. Paulo Brandi e Ethel B. Cachapuz. São Paulo: Ediouro, 2003. SOUSA, Maria Leonor Machado. A literatura “negra” ou de terror em Portugal(séculos XVIII
e XIX). Lisboa: Novaera, 1978.
60
FIDELIDADE: A PROPOSTA PEDAGÓGICA DE DHUODA Ana Paula dos Santos Viana 1 Terezinha Oliveira 2 (Orientadora) Resumo: Este texto pauta-se no âmbito da história da educação medieval. Com base na análise da obra La educación cristiana de mi hijo, escrita por Dhuoda, uma mãe de origem germânica, nobre, que viveu no século IX no período da dinastia carolíngia, apresentamos um estudo acerca deste Manual como projeto de educação. A sua proposta pedagógica é de natureza cristã escolástica, na qual procura conservar os princípios aristocráticos da sua linhagem. Nesse sentido, procuramos evidenciar que a concepção de fidelidade para autora é um preceito essencial na formação do nobre do século IX, uma vez que este necessita viver em sociedade para garantir sua existência física e moral. Desse modo, destacamos que para Dhuoda a concepção de fidelidade, bem como do lugar que ocupa em proposta educacional para o nobre do período, tem como referência as relações feudovassálicas e a concepção aristotélica de virtude moral, de hábito. A autora valoriza a educação, por isso compõe o Manual com regras, conselhos, citações bíblicas e explicita qual é modelo a ser seguido pelo filho em sua formação. Assim, a retomada de seu escrito constitui-se em uma dupla aprendizagem: de um lado a recuperação de um manual pedagógico; por outro, a importância da história já que proporciona o conhecimento de valores éticos e morais, essencialmente humanos no curso da história, como é o caso da fidelidade. Como a perspectiva de análise é a de que o objeto faz parte da totalidade representada pela sociedade feudal no século IX, optamos pelo método da História Social. Palavras-chave: Dhuoda; Fidelidade; Projeto de educação.
1
Profª Me– UniCesumar
2
Professora adjunta ao departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá.
61
Ana Paula dos Santos Viana
Escrito
em
Úzes,
entre
30
de
uma cultura e erudição fundamentada em
novembro de 841 e 2 de fevereiro de 843.
alguns pensadores da Antiguidade e na
Dhuoda dedicou-se a escrever o Manual,
principal fonte moral para a época, a Bíblia.
La educación Cristiana de mi hijo, para
Nesse sentido, a preocupação dessa mãe
orientar a formação de seu primogênito,
cristã expressa uma questão, a nosso ver,
Guilherme, quando este completara 16
importante:
anos. Ao redigi-lo procura ensinar a seu
condicionada às ações praticadas pelos
filho os valores morais, os comportamentos
homens na terra, às suas ações cotidianas.
e as virtudes necessárias a sua educação.
O bem deve ser praticado em vida, em
(NUNES, 1995).
palavras,
a
formação
em
humana
está
pensamentos
e,
Afirmamos, desse modo, que nossa
sobremaneira, em atitudes. O bem não
análise será encaminhada pelo viés da
deve ser exterior à pessoa, mas, sim, fazer
História Social 3. É esse o caminho que
parte dela, o que funcionaria como uma
almejamos percorrer para atingir o objetivo
segunda pele [segunda natureza], ou seja,
estabelecido: mostrar que a questão da
aquilo que nos “habituamos” a fazer, cujo
fidelidade e sua relação com a educação
conceito [hábito] pode ser encontrado nas
na Idade Média estão permeadas pelo
formulações aristotélicas.
processo histórico do século IX. Dessa forma, estudaremos as formulações de Dhuoda
considerando
seu
processo
1.Como já vimos, há duas espécies de excelência: a intelectual e a moral. Em grande parte a excelência intelectual deve tanto o seu nascimento quanto o seu crescimento à instrução (por isto ela requer experiência e tempo); quanto à excelência
histórico e educativo. A obra de Dhuoda evidencia sua preocupação com a formação aristocrática de seu filho, pautada na conduta cristã. Este anseio faz com que ela apresente
moral, ela é produto do hábito, razão pela qual seu nome é derivado [...] da palavra “habito”. É evidente, portanto, que nenhuma das várias formas de excelência moral se constitui em nós por natureza, pois nada que existe por natureza pode ser alterado pelo hábito. Por exemplo, a pedra, que por natureza se move para baixo, não pode ser
De acordo com a historiografia, essa tendência surgiu
habituada a mover-se para cima; tampouco o fogo
com a Revista dos Annales fundada por Marc Bloch e
pode ser habituado a mover-se para baixo, nem
Lucien Febvre em 1929, na França. Os autores
qualquer outra coisa que por natureza se comporta
propunham o tratamento da história como problema, cuja
de certa maneira pode ser habituada a comportar-
análise
se de maneira diferente. Portanto, nem por
3
deveria
contemplar
diferentes
campos
do
conhecimento, como a Sociologia, a Antropologia, a
natureza
Literatura e outros. Esses conhecimentos, aliados aos
excelência moral é engendrada em nós, mas a
saberes
natureza nos dá a capacidade de recebê-la, e esta
produzidos
na
sociedade,
possibilitariam,
segundo eles, compreender as situações do presente.
nem
capacidade
se
contrariamente
aperfeiçoa
à
com
natureza
o
a
hábito.
62
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo (ARISTÓTELES, Ética..., L. II, c. 1, §1103b, grifo nosso).
Sendo
assim,
honra/honestidade,
respeito,
caridade
e
outras
virtudes que Dhuoda aconselha seu filho a praticar são hábitos a ser desenvolvidos. É preciso agir de forma honesta, respeitosa e caridosa para que sejam criados nos homens
os
hábitos
dessas
esta
perspectiva
Observa-se
virtudes. no
pensamento aristotélico, segundo o qual o hábito
é
uma
intencionalmente,
ação
praticada
caracterizando
o
comportamento da pessoa. É,
pois,
nessa
perspectiva
que
compreendemos a fidelidade apresentada por
Dhuoda
como
virtude,
ou
seja,
Guilherme não nasceu de posse dela. Com base
no
Manual
e
no
pensamento
aristotélico, consideramos que, para o período em tela, é preciso ensinar a fidelidade para que o outro aprenda a ser fiel.
Desse
modo,
ela
pode
ser
compreendida como virtude e, ao mesmo tempo, como um preceito educativo, pois implica um processo de ensino e de aprendizagem que a transforme em hábito e, por conseguinte, requer que a pessoa aja de forma intencional para que ela delineie seu comportamento. Ao se apoiar na permanência desses conhecimentos, Dhuoda procura, por um lado, educar Guilherme e, por outro,
mostrar a realidade posta pela crise do Império Carolíngio e os princípios do sistema feudal. Cumpre explicitar, então, que a época e o texto da autora expressam um valoroso movimento histórico. Estamos nos referindo à realidade política do Império Carolíngio. De acordo com Magne (1991), na sucessão de Carlos Magno (742-814) ascende
ao
trono
seu
único
filho
sobrevivente, Luís, o Piedoso (778-840). Ele foi coroado pelo próprio pai, em 813. Luís, o Piedoso, diferentemente de seu pai que
promoveu
reformas
em
diversas
esferas (civil, religiosa, educativa), torna-se submisso à Igreja. Nesse sentido, “Luis abandona o seu povo e cuida apenas dos interesses aristocracia
da
Igreja,
carolíngia
descontentamento”.
provocando um
na
significativo
(GUIZOT
apud
OLIVEIRA, 2009, p. 33). Luís, o Piedoso, teve três filhos do primeiro casamento: Lotário, Pepino I e Luís, o Germânico. Contradizendo sua própria constituição (Ordinatio imperii – promulgada em julho de 817 que declara o império uno e indivisível), fragmenta seu império entre seus filhos. Ao primeiro (por ser o primogênito) coube a coroa imperial, Pepino
e
Luís
tornaram-se
reis
da
Aquitânia e da Baviera, respectivamente. Embora pareça contraditória, foi mantida a “[...]
unidade
do
império:
os
reinos
63
Ana Paula dos Santos Viana
constituíam
meras
unidades
administrativas, e os reis continuavam
território enfrentou migrações nômades, apressando assim, o fim deste Império.
sujeitos em tudo ao imperador”. (MAGNE,
É, então, nesse cenário conflituoso
1991, p. 18). Essa partilha representa a
que Dhuoda escreve ao seu primogênito,
primeira divisão do Império.
recomendando-lhe, como nobre, ser fiel a
A segunda divisão ocorreu quando, ao enviuvar, Luís o Piedoso casa-se com
Deus, a seu pai e ao seu rei Carlos, o Calvo.
Judite, a filha de um conde bávaro. Dessa
A
virtude
fidelidade
apresentada
o Calvo. Com o nascimento deste e com a
enfática, na terceira parte do Manual. O
morte de Pepino I, o Imperador considera
conteúdo desta parte revela o quanto esta
justo doar o reino a Carlos o Calvo. Esta
mãe estava imbuída dos valores que
decisão causa revolta entre os irmãos, pois
deveriam permear a vida dos homens
este último, por ser do segundo casamento
nobres que estavam a serviço do rei.
era considerado bastardo pela tradição
Encontramos aqui a essência educacional
carolíngia. Essa situação desencadeou, em
de
25 de junho de 841, a trágica batalha de
evidenciada,
Fontanet ou Fontenoy (MAGNE, 1991).
momentos principais, que, de fato, formam
Posteriormente a esta, Luís, o Germânico e
um todo: primeiramente, a fidelidade a
Carlos, o Calvo proclamam a junção de
Deus, para, no segundo momento, alcançar
seus
a fidelidade ao pai e, no terceiro, ao seu rei
interesses.
conhecida
como
Essa
aliança
ficou
Juramento
de
Estrasburgo 4. Ambos almejavam conquistar a paz no território franco para, com isso, preservarem a unidade do povo carolíngio estabelecida por Carlos Magno. Contudo, além da situação fratricida, parte do
Dhuoda,
manuscrito, a
nosso
a ver,
de
é
união nasceu em 813 o quarto filho, Carlos,
seu
por
da
forma
fidelidade, em
três
e senhor Carlos, o Calvo. Te invito, pues, queridíssimo hijo Guillermo, que em primer lugar ames a Dios, como ya tienes escrito arriba; a continuación, ama, teme y honra a tu padre; recuerda que de él te viene tu condición en el mundo. Has de saber que desde os tiempos antiguos, los que amaron a los padres y les fueron sinceramente obedientes merecieron recibir por éstos la bendición divina. (DHUODA, 1995, p. 84).
4
Após a batalha de Fontenay, sem produzir, segundo
Magne (1991, p. 18), resultados definitivos, Luís, o
A prioridade divina que os cristãos atribuem à fidelidade é explicada pelos
Germânico e Carlos, o Calvo, decidiram estreitar ainda
fundamentos do Cristianismo: Deus é o
mais sua aliança. A 24 de fevereiro de 842, em
Criador, de onde tudo se origina. Para
Estrasburgo, perante suas tropas, tomaram o solene compromisso de amparar-se mutuamente em tudo.
Nunes (1995, p. 148), “Dhuoda tinha a
64
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
convicção profunda do cristão lúcido e
conhecimento e na prática fiel da doutrina
fervoroso, de que somos criados para
de Cristo.
Deus, e de que só nele o nosso coração
Caso Guilherme não possuísse ou
pode encontrar repouso, como dizia Sto.
não fizesse uso desta virtude, deveria ser
[sic] Agostinho.” Para o autor, esta mãe
castigado. Para ela, ao ser fiel ao pai ele se
concebia
o
um
campo
beneficiaria nas relações sociais, teria a
de
muitos
oportunidade de uma vida próspera e, com
aprendizados, caso fossem ensinados e
isso, ela atingiria a finalidade de seu
praticados de forma una e indissociável. A
escrito: a formação nobre e cristã do filho.
pedagógico,
mundo um
como
espaço
terra é para ela uma passagem, um estágio da natureza humana que um dia poderá chegar à esfera celeste se a pessoa, com base nos fundamentos do Criador, souber se
apropriar
dos
encontrados.
conhecimentos
É
um
campo
nela de
experimentação, cujas experiências, provas e
tribulações
potencializam
um
[...] y que yo, Dhuoda, hijo mio Guillermo, viéndome muy lejos de ti, y por ello angustiada y totalmente deseosa de ayudarte, te dirijo este opúsculo escrito em mi nombre para que sea leído como modelo em tu formación [...]. (DHUODA, 1995, p. 51). Tú, pues, hijo mio Guillermo, presta atención a mis consejos, observa y obedece las ordenes de tu
padre y no seas sordo a los mandatos de los santos Padres; léelos con frecuencia, guárdalos en
lo profundo de tu corazón, para que creciendo
aprendizado para o convívio social e para o
siempre en el bien se multipliquen los años de tu
caminho da salvação.
vida. Pues, quienes bendicen y defienden a Dios,
Tudo procede de Deus, segundo Dhuoda.
Diante
das
tribulações
que
obedecen a los padres y cumplen generosamente sus mandatos, ésos herdarán la tierra. (DHUODA, 1995, p. 83, grifo da autora).
Guilherme por ventura passe neste mundo,
Por prezar a formação de seu filho, a
ele deve recorrer ao ser supremo em
autora ensina o respeito, a honra, a leitura
oração, pois é Ele quem concede a
e a oração como quatro aprendizados
redenção para a salvação do corpo e da
indissociáveis da formação que lhe está
alma.
oferecendo e que convergem para a sua De acordo com Nunes, Dhuoda tinha
integridade
física
e
espiritual.
Ela
consciência de que só em Cristo os
compreende que, praticando essas quatro
homens encontrariam a verdadeira luz e,
instâncias de seu projeto de educação, o
por isso, cuidou de orientar o filho pela
ser divino poderia conceder-lhe, além dos
trilha da autêntica vida cristã, ressaltando
bens espirituais, o bem na terra. Tais
que a fidelidade ao pai e ao senhor só
ensinamentos sãos vistos em São Máximo
estaria assegurada quando consolidada no
(579/80-662), que procura propagar a
65
Ana Paula dos Santos Viana
caridade e a paz aos seus para construir
Dhuoda afirma que é em suas atitudes que
uma sociedade voltada para o bem comum.
o filho manifestará sua nobre linhagem,
Observamos que a preocupação de
pois, a seu ver, são as atitudes que
Dhuoda com a integridade física e espiritual
revelam a origem da pessoa. Explica que
do filho é encontrada desde o início do
servir a Carlos, o Calvo, foi uma “escolha”
Manual, quando ela lhe pede que o tenha
do pai, Bernardo, guiado por Deus. Por
como um espelho em que possa se mirar
isso, Guilherme deve desempenhar seu
diariamente. Assim como o espelho permite
serviço não apenas lhe sendo agradável,
ao homem conhecer a si mesmo pelo
mas com toda a dedicação corporal e
reflexo fiel/exato da realidade externa, a
espiritual.
obra dessa mãe cumpre o papel de refletir
experimentaria
o interior dos homens e, de modo especial,
segura.
de seu filho. Ao contrário das águas do rio que conduziram Narciso a seu fim, porque este se deixou fascinar por sua beleza externa,
o
espelho
de
Dhuoda
está
orientado para conduzir o primogênito à salvação,
priorizando
as
virtudes
que
favorecem a perfeição. Observamos que dentre as virtudes
Com a
essa
atitude,
fidelidade
ele
sincera
e
Tienes a Carlos como señor, porque Dios, como creo, y tu padre Bernardo lo han elegido, para que tu le sirvas ya desde los primeiros años de tu juventud com todas tus fuerzas; ten en cuenta que has salido de una família elevada y noble por ambos padres; no le sirvas sólo por ser agradable a tus ojos, sino también conforme a tu inteligência, tanto mediante el cuerpo como mediante el alma; guárdale em todo acontecimiento una fidelidad provechosa, leal y segura. (DHUODA, 1995, p. 86, grifo nosso).
a fidelidade e, por conseguinte, seu ensino
[...] te ruego que lo que tienes los conserves
constituem o principal objetivo da proposta
fielmente con el cuerpo y con la mente mientras
pedagógica de Dhuoda, a qual é de natureza cristã escolástica, pois essas são tratadas tanto pelos autores cristãos quanto pelos laicos 5. Com essa união de saberes, Dhuoda procura conservar os princípios aristocráticos de sua linhagem. Na advertência sobre a conduta a ser adotada diante do seu rei e senhor,
tengas vida. Creemos que te será de gran utilidad para ti y para tus familiares el crecer em el camino empreendido.[...] [...] Lee las máximas y las vidas de los santos padres anteriores y hallarás cómo y en qué medida debes servir a tu senõr y serle fiel em cualquer circunstancia.
Cuando
lo
hayas
descubierto,
observa com detalle sus ordenes para cumplirlas con fidelidad. Tem em cuenta también y estudia a quienes ló sirven con celo y fidelidad, y aprende de ellos la normas de comportamiento; haciendo tuyo su ejemplo, con el favor y la protección divina, te
5
Em nossa dissertação de mestrado (VIANA, 2014)
abordamos acerca dessa influência do pensamento filosófico no Manual de Dhuoda.
será más fácil cumplir cuanto antes te he recordado. (DHUODA, 1995, p. 87-88, grifos nossos).
66
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Com isso, a autora destaca a
recitar orações por si, por sua família, por
importância do conhecimento para praticar
seu senhor e pelos familiares deste.
a fidelidade: o ato de ler é um aspecto
Reitera que somente a fidelidade nas
pedagógico importante em sua obra, pois
ações juntamente com a constante oração
seria o primeiro passo para chegar à
poderia
apropriação
adversidades que poderia encontrar em
dos
ensinamentos
nela
contemplados. A leitura deveria fazer parte
ajudá-lo
a
passar
pelas
tempos conturbados como aquele.
do cotidiano de Guilherme porque lhe daria
De sua perspectiva, Guilherme deve
condições de aprender todo conhecimento
dirigir-se não só aos mais velhos, mas
já propagado pelos doutores da Igreja, da
também aos mais jovens que amam a
Bíblia e dos demais autores que balizam a
Deus e adquirem sabedoria porque é na
erudição de sua educadora e mãe. O
flor da juventude que a velhice retira sua
caminho da leitura e da ação o auxiliaria a
força. Na incerteza da escolha de um
compreender a seriedade em cumprir com
conselho,
suas
descendentes daqueles antigos que, com a
obrigações
perante
seu
senhor,
Carlos, o Calvo. Efectivamente, en la lectura santa encontrarás lo que hay que rezar y lo que se há de evitar, lo que hay que prevenir, lo que hay que buscar, o lo que
ajuda
de
cumpre Deus,
descobrir
sabem
os
ministrar
um
conselho útil para si e para seus senhores. Para isso, se ele atingir a idade madura,
debes cuidar en todas las cosas. [...] Sobre la
deverá se prevenir contra as pessoas
asiduidad de la oración nos advirte el Apóstol
desonestas e escolher as de bem; fugir dos
cuando dice: Orad sin interrupción. [...] Todo lo que hagas de bueno en esta vida, eso precisamente
maus, apoiar-se nos bons e não nos
intercederá incesantemente por ti ante el Señor.
covardes ou coléricos. Por isso, ela pede
[...] Por ello te exhorto a que tu espíritu se
ao filho que tome cuidado, vigie, fuja dos
mantenga vigilante y presto, y siempre puro y limpio, en una lectura y uma oración la más digna posible. (DHUODA, 1995, p. 155, grifo da autora).
malévolos,
imprudentes
e
una-se
às
pessoas honestas que buscam o bem,
Por considerar que os hábitos e as
àqueles que por sincera sujeição às
ações na terra são o que conduzem ou não
vontades de seus senhores, ao oferecerem
ao caminho celeste, Dhuoda reitera a
um bom conselho, mereçam receber de
importância de ser fiel a Deus, explicando
Deus e do mundo uma digna e grande
que a maneira propícia para atingir tal
recompensa. (NUNES, 1995).
intento é a das orações. Por isso, procura
Dando continuidade à sua proposta
convencer Guilherme a orar a qualquer
educativa, no que tange à conduta diante
hora e em todo momento: ele deveria
do rei, Dhuoda observa que o servidor
67
Ana Paula dos Santos Viana
dedicado deve pedir conselhos e, para isso, precisa ser dócil e humilde e saber pedi-los a quem os possa dar. Para bem servir ao senhor é necessário receber sábios
conselhos
experientes,
de
pois
pessoas
quem
se
mais aplicar
a sus intereses, mediante una fiel ejecución, tanto com la mente como com el cuerpo [...]. Acuérdate de David respecto a Jonátan, hijo del rey Saúl, quien, respecto a su padre y al hijo y también a sus descendientes, no solo en vida sino también después de la morte de aquellos, fue un verdadero defensor fiel y leal en todo o momento. (DHUODA, 1995, p. 94).
coerentemente na busca da sabedoria
A autora salienta que, no que tange
conquistará as bênçãos de Deus, os
à disponibilidade do filho para servir Carlos,
favores dos homens e agradará fielmente
o Calvo, e a todos os seus parentes, sua
em todas as coisas ao senhor. (NUNES,
dedicação
1995).
tenacidade, valentia, desprendimento e Com efeito, ser fiel no cumprimento
deveria
ser
norteada
pela
fidelidade de corpo e de alma. Essas
dos deveres implica uma lealdade ampla
atitudes
deveriam
que deve se estender aos nobres parentes,
somente por Guilherme, mas por todas as
nascidos na linhagem real. Guilherme,
pessoas
como todos aqueles que estavam a serviço
promovesse
do poder real, deveria servi-los fielmente
permeado por conflitos. Não cometendo
com todas as forças. Para tanto, Dhuoda
infidelidade com seus senhores, auxiliando
roga a Deus que ilumine e inspire todos
as pessoas, honrando-os com palavras e
para promover a paz, reger, proteger e
atitudes, esforçando-se por ser caritativo e
governar o mundo e o povo, com base no
por respeitar devidamente os sacerdotes,
serviço do Altíssimo e dos santos, assim
Guilherme poderia ter uma vida digna,
como “[...] defender os súditos dos ataques
próspera e feliz.
do
ser
adotadas
Império, a
paz
para
não
que
naquele
se
tempo
das tropas inimigas que irrompiam de todos
Evidentemente, Dhuoda analisa a
os lados, e unificar firmemente em Cristo a
fidelidade, as ações dos seres humanos e
santa
suas condições morais de acordo com os
Igreja
de
Deus
na
verdadeira
religião”. (NUNES, 1995, p. 147).
conhecimentos laicos e os fundamentos do
Respeta, ama, venera y estima a los ilustres y distinguidos parientes y cercanos de tu senõr de regia
potestad,
sea
su
ilustre
origen
por
cristianismo
interligados
às
relações
sociais. Por isso, podemos entender que
ascendencia paterna o por la dignidad del
suas reflexões podem nos ensinar algo
matrimonio, en el supuesto que merezcas alcanzar
sobre
ser
un
servidor
útil,
juntamente
con
los
compañeros de armas em el palácio real, imperial o donde sea; y en cualquier asunto que concierna
a
natureza
possibilidade
de
humana, se
formar
sobre
a
pessoas
conscientes, que se preocupem com o bem
68
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
comum, sem negligenciar suas aspirações
prática
pessoais. As bem-aventuranças retomadas
circunstância.
por Dhuoda estão relacionadas, em última instância,
à
existência
princípios
cristãos
e
à
conforme vida
os
terrena
encaminhada por ações cotidianas que permitem chegar à vida eterna. Ao aconselhar o filho na execução de seus deveres, ela revela qual era o ideal de
homem
daquele
contexto:
ser
cavalheiro, fiel ao rei e exímio guerreiro. “Recurre siempre a este pequeño libro. Sé siempre, joven noble, fuerte y valiente em Cristo. ” (DHUODA, 1995, p. 181). Esse
dessa
virtude
em
qualquer
Busca, guarda y observa com fidelidad los ejemplos de los hombres ilustres [...] para agradar fielmente a Dios y al mundo y hayan perseverado. Pues donde se há dicho que hay que tener en la mano y llevar escritos sobre la frente los nombres de los doce Patriarcas y tener siempre los ojos adelante y atrás, se refiere a las virtudes. Ellos las practicaron asiduamente mientras vivían en este mundo, estaban delante de Dios creciendo y fortaleciéndose, siempre tendiam hacia lo más alto, y se hacían cada vez más prudentes por la fe y la inteligencia;
con
palabras
y
com
hechos
completaron uma tarea digna, y nos lo han transmitido como ejemplo, para que lo busquemos y
lo
pongamos
en
práctica
en
qualquier
circunstancia. (DHUODA, 1995, p. 109-110).
ideal deveria ser buscado por Guilherme na
Percebe-se que Dhuoda aconselha
relação com seu senhor. Com o intuito de
ao filho seguir com fidelidade os exemplos
ensiná-lo a se aproximar desse modelo, ela
dos doze apóstolos, que com palavras
lembra a atitude de Davi para com Jonatas,
proferidas e atos tornaram-se exemplos de
filho do rei Saul. Davi, não só em vida, mas
prudência e inteligência na preservação da
também após a morte deles, foi seu exímio
cultura cristã. São os exemplos retirados
defensor,
e
daqueles que devotam a fé em Deus que
lealdade em todo o momento. Portanto,
podem ensinar Guilherme a traduzir suas
ousamos inferir que Davi serve de símbolo
palavras em ações, o que revelaria a
da fidelidade bíblica.
virtude da fidelidade tão almejada por
prestando-lhes
fidelidade
O exemplo dos personagens bíblicos (como
os
doze
apóstolos)
revela
Dhuoda para a formação dele. É nesse
a
sentido que ela considerava a fidelidade
preservação da fé transmitida por eles à
como reguladora das relações entre os
humanidade. A leitura, nesse quesito, é um
homens: como virtude ela seria não apenas
elemento essencial para que Guilherme
proferida pelo juramento de fidelidade do
conserve os ensinamentos contidos em
vassalo ao seu senhor, como também
seus escritos, sobretudo os relativos à
traduzida em suas ações cotidianas na
fidelidade, pois os atos de buscar, guardar
corte.
e observar compõem os estágios para a
69
Ana Paula dos Santos Viana
Para
Dhuoda,
e
nos séculos VIII e IX, por meio de dois
autoridade é um dom divino, por isso
atos: a recomendação e o juramento de
Guilherme deve respeito a Deus, ao pai e
fidelidade.
deve também servir aos seus senhores
anteriormente a esses séculos, quem se
fielmente,
comportamento
recomendava, o futuro vassalo, colocava
depende sua vida. Nas ações do filho está
as mãos juntas entre as mãos da pessoa a
a
da
quem se submetia em troca de favores.
linhagem e dos bens da família. Com isso,
Para o autor, o duplo gesto das mãos
ela manifesta uma dupla percepção: a do
constituía o ato da recomendação tanto do
embate político que assolava a dinastia e o
pobre e humilde quanto do rico e guerreiro
Império carolíngio e, em correlação com
ao senhor, um rei ou um nobre. Já o
esta, a de que a prática da fidelidade
juramento
apresentava-se
de
posteriormente. Na segunda metade do
sobrevivência. Provavelmente, Carlos, o
século VIII e no IX, acrescentou-se à
Calvo, manteria vivos somente os nobres
recomendação o novo ato de juramento de
que lhe consagrassem essa virtude.
fidelidade, ou seja, a promessa de ser fiel,
pois
possibilidade
desse de
toda
honra
preservação
como
forma
No
primeiro,
de
que
fidelidade,
existia
surgiu
Considerando essas circunstâncias
apoiada em um juramento em que se
é que nos propomos a compreender a
recorria a Deus e se tocava em uma
proposta pedagógica contida no Manual de
relíquia ou evangeliário.
Dhuoda, com destaque para a questão da fidelidade.
Ao abordá-la, o fizemos com
Ganshof (1968, p. 54) cita o Manual de Dhuoda como exemplo da noção de
base no duplo aspecto que a permeia: o
fidelidade:
das relações feudo-vassálicas, derivada
igualmente por uma atitude positiva, tal
dos
dos
como o mostram, por exemplo, algumas
fundamentos cristãos. Esse percurso foi
das citadas passagens do manual de
importante porque pudemos observar que
Dhuoda.” O excerto contido em sua obra é
os preceitos educativos que permeiam a
retirado do terceiro capítulo do Manual,
obra dessa autora estão em conformidade
onde Dhuoda ensina a reverência e a
com as circunstâncias daquela sociedade.
advertência que ele deveria ter para com
costumes
nômades,
e
o
Sociedade esta em que se encontra
“[...]
esta
manifesta-se
seu senhor.
o laço jurídico da subordinação de um
Os ensinamentos ali contemplados
homem livre a um senhor. Segundo Nunes
revelam a noção de fidelidade da autora, a
(1995), este laço jurídico estabelecia-se,
concepção
virtuosa
com
a
qual
ela
70
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
pretendia formar seu filho e que pode ser
seu rei. Ou seja, o objetivo de Dhuoda, ao
considerada a essência de seu escrito.
ensinar a virtude da fidelidade para a
Nessa parte, ela sintetiza os deveres, as
salvação do corpo e da alma de Guilherme,
exortações, as precauções, a maneira de
encontra respaldo na própria mentalidade
bem
da época.
servir,
de
cumprir
com
seu
compromisso na corte, a importância da
Considerando o contexto do século
leitura, enfim, a fidelidade tanto no modo de
IX,
agir (corpo) quanto no de pensar (alma). A
expressa
noção de fidelidade apresentada por ela
Carolíngio,
revela seu conhecimento do processo de
respeito à unidade social.
vassalagem
unidade, uma sociedade não sobrevive, ou
ao
qual
Guilherme
se
submetera.
compreendemos a
que
a
fidelidade
fragilidade
do
especialmente
no
Império que
diz
Sem uma
seja, a ausência dela propicia um processo
Desse modo, jurar fidelidade é estar
de dissolução. Foi o que detectamos no
em profunda comunhão com Deus, pois é
escrito de Dhuoda: o quadro histórico do
por meio de suas palavras (ao tocar nas
qual ela foi partícipe caracteriza-se pelo
sagradas escrituras) que o vassalo se torna
processo de fragmentação do Império
fiel ao seu senhor. Por isso, Dhuoda insiste
Carolíngio e, portanto, pela falta de unidade
tanto em seus ensinamentos no tocante à
social. Cada filho de Luís, o Piedoso,
fidelidade de Guilherme, exortando-o a
almejava satisfazer interesses próprios e
tributar respeito, durante toda a vida, a
não
Deus, ao pai e a seu senhor, Carlos, o
ocasionando essa ausência ou tornando-a
Calvo. Nesse sentido, ela chama atenção
cada vez mais evidente.
do primogênito para a importância da
os
do
Império
como
um
todo,
Em face do frágil processo de
perfeição pessoal, para a obediência a
unidade
social,
Deus, ao pai e ao seu senhor, isto é, o
fidelidade como fundamento da educação
respeito ao Pai eterno, ao pai carnal e ao
pretendida para Guilherme, justamente por
pai institucional, e para as obrigações
prezar uma formação íntegra, unitária para
políticas para com seu senhor.
ele.
Assim,
por
Dhuoda
serve-se
perceber
que
da
essa
Entendemos, assim, que Guilherme,
fragilidade poderia influenciar seu convívio
ao se tornar vassalo de Carlos, o Calvo,
social, a autora procurou redigir o Manual
estaria conservando a homenagem de boa
com o seguinte objetivo: “[...] desde la
fé, ou seja, estaria se comprometendo de
primera línea de este pequeño libro, hasta
corpo e alma a manter fidelidade para com
la última sílaba del mismo, reconoce que
71
Ana Paula dos Santos Viana
todo há sido escrito para tu salvación”
Obviamente, os homens do século
(DHUODA, 1995, p. 169), ou em outras
XXI não são os mesmos do século IX.
palavras “[...] para que sea leído como
Contudo, o equilíbrio e os princípios de
modelo de tu formación” (DHUODA, 1995,
humanidade
p. 51).
fundamentais para a organização de uma Observamos, com base nos autores
sociedade.
elencados, que, no contexto em tela, da
Com
e
coletividade
ainda
base
em
todos
a
respeito
do
são
esses
fidelidade devotada ao rei, Carlos, o Calvo,
ensinamentos
dependeria a existência física e moral dos
Manual, consideramos que a virtude da
homens.
fidelidade,
Por
isso,
ela
deu
tanta
entendida
como
teor
do
preceito
importância a ensinar ao filho que ele
educativo, é um meio para se desenvolver
deveria devotar respeito [e fidelidade] ao
a educação integral dos sujeitos. Nessa
pai, pois a prática dessa virtude lhe
perspectiva, podemos ensinar e aprender
proporcionaria a felicidade terrena e a
que o bem comum (os interesses coletivos)
benção divina. “[...] amar y ser fiel en todo a
é essencial para o desenvolvimento e a
tu señor y progenitor Bernardo [...] Tú, hijo,
organização da sociedade. Os homens, na
honra a tu padre, y reza continuamente por
perspectiva de Dhuoda e do pensamento
él, para que [...] puedas viver mucho
filosófico, precisam ser ensinados e, como
tiempo” 6. (DHUODA, 1995, p. 81). Esta
a própria autora ressalta, isso implica a
seria a unidade à qual Guilherme deveria
necessidade
aderir ao se apropriar da virtude da
pessoa mais experiente que os instrua em
fidelidade: ser fiel a Deus, ao pai e ao
todos os sentidos. Nesse processo, estão
senhor.
inclusos os valores morais, éticos, sociais e
Os homens que não aprendessem a ser
fiéis
ao
seu
senhor,
aos
da
intervenção
de
outra
os conhecimentos escolares.
seus
Essas reflexões levam-nos a pensar
pensamentos e às suas ações e não
nas questões e problemas educacionais da
conseguissem ter equilíbrio, agindo de
contemporaneidade. Isto não significa que
modo brutalizado e imprudente, trariam
estamos transpondo o debate desta mãe
prejuízos a si e aos seus.
do século IX para o século XXI, o que seria incoerente,
inapropriado
e
anacrônico.
Todavia, temos a convicção de que os 6
“[...] amar e ser fiel em tudo a seu senhor e progenitor Bernardo [...] Tu, filho, honra a teu pai, e reza continuamente por ele, para que [...] possas viver muito tempo”. (DHUODA, 1995, p. 81, tradução nossa).
exemplos e as formulações de autores de outros tempos históricos nos auxiliam a
72
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
aprender e a refletir. Desse modo, estudar
formação do nobre cristão é algo que deve
as experiências dos homens de outro
ser entendido num determinado tempo e
tempo constitui uma oportunidade para
espaço. A fidelidade, nesse sentido, foi o
refletir sobre nossos embates, na medida
fio condutor da análise dessa relação no
em que nos leva a pensar como estamos
tempo, pois, como a preocupação de
compreendendo
esses
Dhuoda era com a formação íntegra do ser
embates. Aprender, por sua vez, pressupõe
humano, ela mostra em seu Manual a
ensino, ou seja, auxilia-nos a ensinar ao
necessidade de os homens serem fieis em
outro o que é o ser humano, a identificar as
todas as instâncias. O ofício de educar não
relações que os homens estabelecem entre
pressupõe apenas o acúmulo do saber,
si e com o seu entorno.
mas abrange um processo essencial para a
Por
fim,
e
resolvendo
reiteramos
esta
constituição e o desenvolvimento do sujeito
pesquisa sobre a relação necessária entre
e, por conseguinte, da sociedade. Isso
fidelidade, educação e tempo histórico foi
demanda, do responsável pela educação,
realizada da perspectiva da história da
sabedoria para formar pessoas fiéis ao
educação.
conhecimento.
Ponderamos,
que
portanto,
que
tratar da importância da educação para a
Referências ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985. DHUODA. La Educación cristiana de mi hijo. Pamplona: Editora Eunate, 1995. GANSHOF, F. L. Que é feudalismo? Lisboa: Europa América, 1968. MAGNE, Augusto. O mais antigo documento da Língua Francesa: ensaios sobre a parte francesa dos Juramentos de 842. Petrópolis: Vozes, 1991. NUNES, Ruy. O dever da fidelidade no manual de Dhuoda. In: SOUZA, J. A. C. R. (Org.).
O reino e o sacerdócio: o pensamento político na Alta Idade Média. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. OLIVEIRA, T. Um olhar da História da Educação no Educar Medievo: um Diálogo, um Manual e uma Imagem. Revista Internacional d’Humanitatis, Barcelona, n. 16, p. 27-38, mai/ago 2009. Disponível em: <http://www.hottopos.com/rih16/tere.pdf >. Acesso em: 15 ago. 2014.
73
Ana Paula dos Santos Viana
VIANA, Ana Paula dos Santos. A virtude da fidelidade como preceito educativo em
Dhuoda. 167 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Maringá. Maringá, 2014.
74
ESTUDOS QUEER E ANTIGUIDADE: O CASO DOS GALLIDE CIBELE REPRESENTADOS POR MARCIAL Benedito Inácio Ribeiro Júnior 1 Resumo: O principal objetivo deste texto é apresentar uma reflexão sobre os corpos dos eunucos no Principado Romano, especificamente dos gallirepresentados nos epigramas de Marcial. Fruto de uma pesquisa, em nível de mestrado, que, calcada nos pressupostos metodológicos da análise crítica de discurso e nas propostas da queertheory, procura entender como os discursos literários produzidos em Roma entre os anos de 80 e 121 d. C. normatizou os corpos dos eunucos e como que os estes desestabilizaram ou reiteraram as normas de gênero.A análise desses dados vem mostrando que entender a Antiguidade Clássica somente em noções de homem/mulher, masculino/feminino pode ser redutor e excluir da narrativa histórica sujeitos que ultrapassam tais noções. Desse modo, este texto se divide em três tópicos: 1) apresentação da pesquisa, seus principais objetivos, suas fontes e seu ferramental teórico-metodológico; 2) exposição dos resultados parciais do estudo referentes aos escritos de Marcial e suas interlocuções com a historiografia sobre o tema e, por fim; 3) análise da representação dos galli na documentação epigramática. Palavras-chave: galli; história do corpo na antiguidade; estudos queer.
1Universidade
Estadual Paulista (UNESP-Assis), Bolsista CAPES
75
Benedito Inácio Ribeiro Júnior
Introdução Para
os
recaem sobre os nossos próprios corpos. O da
excerto firma uma necessidade, assim
sexualidade,
como Fernando Cândido da Silva também
gênero e corpo têm se tornado um campo
enunciou (SILVA, 2011), de um estudo do
profícuo de estudos. Isso se observa pela
passado que seja imbricado às demandas
publicação de livros e artigos, pelas teses e
do presente. Este texto pretende trabalhar
dissertações defendidas nos programas de
a
pós-graduação espalhados pelo país e
reunidos na obra Epigrammata, escritos por
também
colóquios
Marcial provavelmente entre os anos de 80
científicos. Não fugiu a essa assertiva o XII
e 104 d. C.,com o intuito de pensar a
Ciclo de Debates em História Antiga:
Antiguidade
Olhares do Corpo, organizado pelo LHIA e
erudição e do saber institucionalizado, mas
pelo IFCS e sediado na UFRJ, em
como uma forma de compreender
novembro de 2002. Os pesquisadores lá
historicizar nossas posturas diante do
reunidos demonstraram como a temática
corpo e da nossa própria subjetividade.
Antiguidade,
pesquisadores
temas
em
como
congressos
e
ainda desperta questões pertinentes para
partir
dessa
perspectiva
Clássica
para
os
textos
além
da e
Fruto dos resultados parciais de uma
abordagem das sociedades antigas, bem
pesquisa em nível de mestrado
como a variedade de perspectivas em que
reflexões que serão aqui apresentadas
o tema pode ser trabalhado. Ao publicarem
surgiram do estudo dos epigramas de
algumas das discussões lá acontecidas, os
Marcial por da AnáliseCrítica de Discurso 3
organizadores afirmaram:
e do ferramental teórico e conceitual dos
“Olhar para o corpo é procurar decifrar uma outra linguagem que fale da sociedade, de sua dinâmica, de seus conflitos e de suas mazelas. Um dos desafios do historiador da Antiguidade é
2
, as
estudos queer. Assim, apresentaremos primeiramente a pesquisa; depois faremos algumas considerações sobre as práticas
indagar, pesquisar, criticar e fazer nascer a História Antiga do diálogo entre o antigo e o moderno, ou, se preferir, entre antigos e modernos” (BUSTAMANTE, LESSA & THEML,
2Pesquisa intitulada Para além da heteronormatividade:
uma análise dos eunucos representados por Estácio,
2008, p. 7).
Marcial
Com essas colocações podemos entender
que
pensar
o
corpo
e
Suetônio
(Roma,
80-121
d.
C.).
desenvolvida junto ao Núcleo de Estudos Antigos e
na
Medievais (NEAM, UNESP-Assis), sob a orientação
Antiguidade exige um diálogo com o que
da dra. Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi, com
vivenciamos hoje, com as representações,
financiamento da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
as práticas e as relações de poder que
(CAPES). 3
A partir de agora referida somente como ACD.
76
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
de escrita, distribuição e consumo dos
os seres humanos enquanto homens e
textos de Marcial; e terminaremos com uma
mulheres, machos e fêmeas. (BUTLER,
análise das representações dos sacerdotes
2003, p. 23).
de Cibele encontradas em tais textos.
coerentes
Reconstruir malha discursiva que normalizava
os
corpos
dos
eunucos
e
“Para os corpos serem fazerem
sentido
[…]
é
necessário um sexo estável, expresso por um
gênero
estável,
que
é
definido
romanos é o principal objetivo da pesquisa.
oposicional e hierarquicamente por meio da
Para isso, foram escolhidas as Silvae, de
prática
Estácio; os epigramas reunidos na obra
heterossexualidade. ” (BUTLER, 2003, p.
Epigramatta, de Marcial; e a biografia de
261).
Nero, escrita por Suetônio. Devido à
indivíduos, o passado em termos de gênero
diversidade
sobre
é conferir uma identidade minimamente
eunucos contida nas obras, acredita-se que
estável ao modelo oposicional masculino-
elas tenham um potencial de relativizar e
feminino, sendo que a base para tal
questionar concepções sobre o passado
identificação
romano construídas por uma cultura e uma
anatômico.
historiografia heteronormativas.
confundem-se num ciclo de reificação que
de
representações
compulsória Logo,
entender
acaba Assim,
da
o
mundo,
sendo sexo
o e
os
sexo gênero
Aqui, para que se evite confusões ou
é possibilitado por uma visão de mundo e
mal entendidos, é necessário esclarecer
um conhecimento calcados no pressuposto
que
de uma heterossexualidade natural ou a-
quando
usa-se
o
termo
hetenormatividade tem-se em mente as
histórica.
reflexões de Judith Butler, a pensadora
Para a pesquisa, a figura do eunuco
mais influente no que nas duas últimas
surge como uma aposta política para
décadas chamou-se de queertheory. Para
desorganizar
ela, o conceito de heteronormatividade
gêneros,
remete à grade de inteligibilidade cultural
naturalidade
por meio da qual os corpos, gêneros e
também
desejos
são
naturalizados,
heteronormatividade. Com Michel Foucault
também
para
caracterizar
usando-o o
modelo
(1988)
a
estrutura
desarticulando da entendida percebemos
binária a
dos
noção
de
heterossexualidade, aqui que
a
como própria
discursivo/epistemológico hegemônico da
sexualidade possui sua historicidade, que
inteligibilidade do gênero. Ou seja: a forma
ela é um dispositivo que foi produzido na
como compreendemos, seja no âmbito
modernidade, com conceitos, discursos e
acadêmico-científico ou no senso comum,
elementos
bastante
específicos,
não
77
Benedito Inácio Ribeiro Júnior
possuindo
valor
epistemológico
para
romano tendem a ser heteronormativas.
sociedades
anteriores
XIX.
Propõe-se um olhar e uma metodologia
Segundo Thomas Lacqueur (2001), desde
queer, procurando vislumbrar diversidades
o II século a.C até o início da modernidade
e
há uma visão médica de que havia apenas
sociedade romana. Extinguir da análise
um sexo anatômico, mesmo havendo dois
histórica
corpos:
mulher
heterossexualidade é um dos intentos do
possuía um pênis invertido, mal formado,
estudo, pois, para Croucher (2005), a
que ficaria dentro do corpo; os ovários
preocupação dos estudos queer não é
equivaliam aos testículos e somente no
“homossexualizar” o passado ou difundir
século XIX é que se pensa num termo
discursos
próprio para designá-los em contraposição
heterossexualidade, mas sim problematizar
aos testículos (LAQUEUR, 2001, p. 17-19).
qualquer concepção heteronormativa em
De acordo com GertHekma (1995, p. 244)
relação ao passado. Assim, o ataque deve
o conceito de homossexual, definindo um
ser à heterossexualidade como regime
indivíduo com uma identidade, desejo e
político e como pressuposto para estudo do
práticas sexuais próprias só emerge em
passado
1869. Assim sendo, não é possível pensar
social/sexual.
interpretava-se
ao
século
que
a
em sexualidade dos romanos nos séculos I e
II,
nem
tampouco
em
homo
ou
multiplicidades o
de
olhar
naturalizante
de
e
existências
não
na
sobre
intolerância
enquanto
à
prática
De acordo com esta proposta, não se
considera
gênero
como
construto
heterossexualidade. Logo, quando aqui se
cultural sobre um sexo anatômico, mas
propõe um combate à heteronormatividade
gênero é entendido como performance,
- entendida como um regime que regula
como normas regulatórias que produzem e
corpos, gêneros e desejos, naturalizando o
materializam corpos dentro de uma lógica
sujeito heterossexual e taxando como
binária, oposicional e heteronormativa. Nas
anormal qualquer indivíduo que escape a
palavras
esse
regime
de
Butler,
“estes
esquemas
(homossexuais,
travestis,
regulatórios não são estruturas intemporais,
transgêneros,
drag-
mas critérios historicamente revisáveis que
queens/kings)- não se afirma que os
produzem e submetem os corpos que
romanos eram heteronormativos, pois suas
pesam” (2001, p. 168). Neste sentido, tais
concepções acerca do corpo e do sexo
normas
eram muito diferentes das nossas, mas sim
sexo/gênero/desejo em corpos e lhe dá o
que nossas interpretações sobre passado
efeito de naturalidade, de fisiologia e extra-
transexuais,
materializam
o
esquema
78
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
também
ocuparem o entre-lugar, os corpos dos galli
serão objetos deste textos: são elas que
são indispensáveis para desidentificar as
tornam
de
normas regulatórias pelas quais a diferença
reconhecimento e inteligibilidade somente
sexual é materializada. Em suma, não
dentro desta lógica de gênero (homem-
existiria homem ou mulher, mas efeitos de
mulher,
naturalização de corpos.
discursividade.
Estas
esses
normas
corpos
passíveis
masculino-feminino),
caracterizando-os
como
corpos
que
importam/pesam. Se
No que tange propriamente aos textos antigos analisados, recorre-se aos
este
sexo
possui
sua
métodos da ACD. Partindo das noções
historicidade e discursividade, logo ele não
foucaultianas sobre o discurso, Fairclough
existe em si, mas ele se dá pela construção
entende que ele é prática social que
do sujeito. Para isso, como qualquer outra
constrói sujeitos, objetos e conceitos:
forma de criação de identidades, o sujeito sexuado só emerge por meio de forças de exclusão
e
de
repúdio,
criando
exteriores/territórios para aqueles que não são sujeitos de uma sexualidade inteligível
“o discurso é um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de representação […] o discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado.” (2001, p. 90-
(BUTLER, 2001, p. 155-156). Assim, a
91).
aposta de Butler é justamente nesses
Com isso, Fairclough defende que o
corpos
que
são
como
discurso constrói as identidades sociais e
abjeção da norma heterossexual, que
as posições de sujeito, as relações sociais
burlam e, ao mesmo tempo, são o limite
entre as pessoas e os sistemas de
das identidades sexuais, denunciando a
pensamento e crença (Idem, p. 92). É
discursividade
elaborada assim o que autor denominou de
e
materializados
as
fissuras
da
performatividade de gênero (2003, p. 46;
concepção
2001, p. 155). Sugerimos então, seguindo
subdividindo a análise em três etapas: a
as observações de Judith Butler (2001, p.
prática
156), o conceito de desidentificação: os
construção e significação do mundo),
eunucos, por ocuparem este exterior de
prática discursiva (produção, distribuição e
abjeção do esquema masculino/homem-
consumo de discursos escritos ou falados)
feminino/mulher, podem desestabilizá-lo.
e o texto (escrito ou falado, uma forma
Por não estarem em nenhum dos polos
específica de apresentação dos discursos)
(macho ou fêmea), mas justamente por
(Idem, p. 102-131).
tridimensional
social
(relações
do
discurso,
humanas
de
79
a
Benedito Inácio Ribeiro Júnior
Então, a análise das fontes aqui
Marcial.
apontadas dá-se seguinte forma: 1) estudo
Marco Valério Marcial, nasceu por
das relações sociais e culturais, instituições,
volta de 39 d.C. na cidade de Bílbilis,
ideologias e hegemonias que compõem a
região
vida social dos autores; 2) as maneiras
formação de alto nível em letras. Mudou-se
pelas quais estes textos são produzidos,
para Roma na década de 60. De volta à
distribuídos
procurando
sua terra natal, faleceu entre 102 e 104
entender, como quer Fairclough (Idem, p.
(CITRONI, 2006, 873-874; PARRA, 2010, p.
115), a intertextualidade e a historicidade
64-68). Sua vida assemelha-se bastante
inerentes a estes processos; e, finalmente,
com
3) analisar os textos propriamente ditos,
sobrevivência em Roma com sua atividade
buscando
suas
literária, sendo “[...] essencialmente um
especificidades e estruturas, não visando a
cliente. Seus rendimentos não alcançam os
reconstituição dos significados que teriam
padrões
sido ali empregados, mas compreendendo
romanos. Assim, vive e sobrevive em
o texto como uma gama de sentidos
Roma como poeta e usufrui dos diversos
diversos,
favores
e
consumidos
compreender
sobrepostos,
contraditórios,
aberto a múltiplas leituras e que o sentido
da
a
atual
de
de
Espanha,
Estácio:
riqueza
obtidos
onde
mantém
estipulados
de
teve
seus
sua
pelos
patroni.”
(BIAZOTTO, 1993: p. 93).
depende não só da construção do texto,
De seus mais de 1500 epigramas,
mas também de suas interpretações (Idem,
foram selecionados aqui alguns dos que
p. 102-105). O estudo não compreende
tratam do objeto de estudo aqui proposto,
esses três aspectos como um esquema,
os galli. Dividido em quinze livros, os
mas como diretrizes que possibilitam a
epigramas
interpretação das fontes.
aproximadamente entre 80 e 102/104 e
de
epigramas: a prática discursiva
comportamentos sociais, valendo-se de
De acordo com Zélia de Almeida
linguagem realista, irônica e picante, ligada
Cardoso, “o estudo de uma literatura,
ao entretenimento e à diversão (BIAZOTTO,
portanto, deve ser precedido de uma coleta
1993, p. 46; CITRONI, 2006, 882). Seus
de informações sobre a época em que ela
poemas
nasceu e floresceu” (2003, p. IX). Desse
bastante elaborada da sociedade romana,
modo,
breves
retratando os mais diversos tipos de
considerações sobre os epigramas de
indivíduos: beberrões, gulosos, avarentos,
fará
trazem
variados
escritos
tratam
tópico
mais
foram
Escrita, publicação e distribuição dos
este
dos
Marcial
uma
temas
e
representação
80
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo Inicialmente
hipócritas, esposas devotadas ou não,
ajuda
de
seus
pertenciam ou quem, no caso específico de se tratar de uma inscrição funerária, ali repousava.
especialmente a família dos Sênecas. Em
Progressivamente,
80, encontra a oportunidade de publicar
qual descreve e louva os jogos promovidos pelo imperador. Em por volta de 85, publica os Xeniae os Apophoreta, destinado a representar e acompanhar as Saturnais e que hoje formam os livros XII e XIV. Nos próximos
anos
Marcial
publica
sucessivamente doze livros, levando o epigrama ao seu mais alto grau de perfeição, definindo de uma vez por todas as normas para o gênero. Dedicado à adulação,
depois
do
assassinato
de
Domiciano em 96 Marcial não vê mais possibilidades de se manter por meio da atividade literária e também não vê mais lugar para si em Roma. Volta à Bíbilis e publica seu último livro entre 101 e 102 (PIMENTEL, 2001, p. 9-15). Mas o gênero epigramático foi criado muito antes de Marcial elevá-lo à sua melhor elaboração. Ele surgiu na Grécia, no século VII a.C.
epigrama
foi
inscrito num monumento (PIMENTEL, 2001, p. 15).
Flaviano (o Coliseu) e ofereceu jogos que
ambiente que publica o Liberspetaculis, no
o
por meio do epitáfio poético ou do poema votivo
imperador Tito, que inaugurou o Anfiteatro
Foi neste
porém,
conquistando o terreno da literatura, sobretudo
seus poemas quando tem o apoio do
gente de todo o império.
em
dedicava ou a quem eram dedicados, a quem
conterrâneos,
duraram 100 dias, trazendo para Roma
inscrição
dados, de forma concisa e breve, sobre quem os
Ao chegar em Roma, Marcial contou a
uma
material duro, objecto ou monumento, e fornecia
“homossexuais”, exibicionistas, delatores. com
designava
Os primeiros epigramas literários foram atribuídos a Simónides de Ceo, entre os séculos VI e V a.C. Depois, autores como
Eurípides,
Platão,
Aristóteles,
Calímaco e Meleagro se enveredaram, uns mais, outros menos, pelos caminhos da escrita epigramática. Já no século III a.C. os temas se largam: fala-se do amor, das festas, do vinho, descreve-se objetos de arte, começa-se a trazer dedicatórias de amor ou desafeto. Em Roma, no final da República e início do Império, o cotidiano e o caráter anedótico e mordaz se juntam a essa miscelânea de temas, além de serem inclusos assuntos políticos. Na língua latina foram escritos por Catulo, Licínio Calvo, entre outros. Os versos já vão além do dístico elegíaco: passam pelo hexâmetro, o hendecassílabo falécio, o trímetro jâmbico (PIMENTEL, 2001, p. 15-19). Marcial, ao tomar contato com o gênero, transforma seus temas e sua forma. Representa todo tipo de indivíduo, cria um clima de cumplicidade em intimidade com o
81
Benedito Inácio Ribeiro Júnior
leitor e leva à perfeição a técnica do final
vendidos. (MARCIAL, 2001, p. 50-52).
inesperado. Na verdade, Marcial utiliza
Com as breves considerações sobre
todas as tendências criadas até o seu
a formação do gênero e
tempo,
um
características de Marcial e sua escrita,
representação crítica da vida no Império
este texto finalmente debruçar-se-á sobre a
Romano (PIMENTEL, 2001, 17-18).
documentação
cria
outras
e
desenvolve
O próprio Marcial, ao se defender
antiga
as
para
pensar
as
questões acima propostas. Os galli: religião, gênero e
das críticas de um tal Cláudio que o acusa de não ser um bom poeta, contrapõe seus
experiências corporais
epigramas ao galiambo, verso de seis pés
Na
sociedade
romana
imperial,
cantados pelos gallinos rituais de Cibele e
segundo Pedro Paulo Abreu Funari (2003,
Átis. Lê-se no epigrama 86, livro II:
p. 167-172), o corpo passa a ser um
[…] nunca uso a futilidade grega que o eco repete,
literárias, arquitetônicas e parietais devido
nem o elegante Átis me dita ogaliambo de débil delicadeza,
a processos de valorização do indivíduo e
nem por isso, Clássico, sou um mau poeta.
do individualismo ocorridos pelo impacto
(MARCIAL, 2001, p. 125).
No primeiro livro, o poeta reúne a boa dose de informações sobre como publicava e fazia circular seus epigramas. Logo
elemento importante nas representações
no
apresenta
primeiro e
se
epigrama louva,
ele
dizendo
se ser
conhecido já no mundo todo.No epigrama seguinte,
faz
epigramas.
propaganda Estes
codex(pergaminho) uolumen(papiro)
eram e
e
que
seus em
não
de
anuncia
seu
bibliopola/librarius, uma espécie de livreiro que comprava os manuscritos e vendia cópias dele, sem haver lucro para o autor em relação à venda de cada cópia. No epigrama 3 ele faz referência à uma tenda no bairro de Argileto, onde seus livros eram
causado pelas colonizações e pelo fim do regime republicano (século I a.C.). Mas o vocábulo corpo, em latim
corpus, tem suas raízes em momento anterior.
Já
no
grego,
língua
que
influenciou em demasia a literatura e o vocabulário latinos, havia uma separação entre o corpo em sua materialidade, soma, e a alma, todemas. Interessante é notar que o vocábulo soma gerou o conceito de “registro”
ou
representação,
somatídzo(FUNARI, 2003, p. 167). No que tange
ao
latim,
corpus
significa
a
materialidade do corpo e também se opõe ao animus ou anima que podem significar alma/espírito. Se nos debruçarmos sobre o sânscrito e o védico, línguas que formam o
82
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
latim falado no Império e influenciam a
deusa Cibele:
construção do vocábulo corpus, vemos que
Embora sejas mais efeminado que um eunuco frouxo,
a palavra pode se relacionar à ação e ao
e mais mole que o amante de Celenas [Átis],
fazer, uma vez que a tradução literal de
porquem uiva o Galo castrado que a grande Mãe
klip(sânscrito) é fazer, e de krpa(védico)é
[Cibele] inspira,[…] Se tens licença para te sentares nos bancos dos
forma, corpo ou beleza (FUNARI, 2003, p.
cavaleiros,
167). Ainda segundo Funari, também é
hei-de ver, Dídimo: não a tens para os dos maridos
importante levar em conta que corpus pode significar também um conjunto de livros (corpus ominisromani iuris), um grupo de pessoas
ou
uma
corporação
(corpus
fabrorum et nauiculorum), ou a parte principal de algo (corpus orationisenervatur) (Idem, p. 169). Assim, corpo/corpus
percebemos pode
significar
que tanto
a
materialidade quanto a representação de tal materialidade. Podemos considerar que essas concepções estão presentes na raiz das interpretações do corpo na sociedade greco-romana. Tido o cuidado de mapear as formas pelas quais o vocábulo circulava em Roma, é hora de entrarmos na análise da representação dos corpos dos galli feitas por Marcial. No
Livro
V,
epigrama
41,
percebemos que o cidadão romano Dídimo tem sua masculinidade desqualificada e para isso o epigramatista se vale da figura
(MARCIAL, 2000, p. 81).
Vê-se nesse trecho que Dídimo é relacionado à efeminação e à moleza ou falta de virilidade, ao mesmo tempo que o autor nos indica que ele não tem poder para tornar-se marido. Nesse sentido, compreende-se que Dídimo não pode cumprir a função de pater famílias, não podendo fornecer herdeiros ou cidadãos que futuramente seriam responsáveis pela manutenção da urbs. Este elemento é essencial para se pensar como os romanos vinculavam as ideias de cidadania, corpo e masculinidade: somente um cidadão pleno poderia gozar de seus direitos políticos e em
Roma
a
cidadania
se
vinculava
fortemente ao ser homem (FEITOSA, 2008, p. 119-135). Logo, Marcial faz Dídimo transitar entre o eunuco e a ordem equestre, permitindo-nos pensar o corpo do eunuco como uma figura que serve de referência para se pensar o masculino em
do eunuco, de Átis 4 e dos sacerdotes da deusa castra Átis para que ele sirva somente a ela. 4. Humano amante da deusa Cibele. Com ciúmes e
Dessa forma, os sacerdotes culto de Cibele também
medo de perder seu namorado para outra humana, a
se castram para servir à deusa. Estes são os galli.
83
Benedito Inácio Ribeiro Júnior Que tens que ver, ó galo Bético, com sorvedoiros
Roma, delimitando-a como o extremo limite
de mulher?
do que seria ser homem ou mulher. Mas
Esta língua deve lamber, a meio, os homens.
também, não podemos afirmar que Dídimo
Por que razão te foi cortado, com um caco de Samos, o membro,
é homem, uma vez que não pode cumprir
se tão agradável te era, Bético, a rata?
com sua obrigação de marido, provedor da
O que se te deve castrar é a cabeça: embora,
prole romana e um cidadão como os seus
pelo membro, sejas galo, frustras, no entanto, os ritos de Cibele: és homem
pares.
pela boca.
Outro epigrama (45, Livro II) de
(MARCIAL, 2001, p. 159).
Marcial que pode nos ajudar em tal reflexão é o seguinte: Cortaste o teu membro, que não endireitava, Glipto. Pateta, para que precisavas do ferro? Já eras
Aqui Marcial também coloca a figura do gallusBético - provável alusão à região da Bética, na Hispânia – e o seu corpo
eunuco.
castrado a serviço da construção discursiva
(MARCIAL, 2001, p. 113.)
de
Podemos
interpretar
que
aqui
também o sexo/gênero é indefinido ou não identificado. O homem debochado pelas palavras de Marcial decide amputar sua genitália mesmo já não atendendo ao pressuposto de virilidade que o homem deveria carregar. Não havia necessidade de tornar-se eunuco pois Glipto não usava seu pênis para aquilo que o autor julgava necessário. Isso nos faz pensar que havia sim a possibilidade, como defende Renato Pinto,do homem intervir em seu corpo para poder habitar outras possibilidades de existência, não se localizando nas noções polarizadas
de
macho-fêmea/masculino-
feminino (PINTO, 2011, p. 189-201). O 81º epigrama do Livro III nos fornece
outro
gallipodem gênero:
exemplo
transgredir
de as
como
os
normas
de
uma
imagem
de
homem.
Ao
desqualificar moralmente o personagem praticar
do
sexo
oral
em
mulheres
(cunnumlingere), o que seria marca de passividade em relação às mulheres, o epigramatista
coloca
implicitamente
a
imagem do homem ativo como exemplo. Além disso, cabe ressaltar no segundo verso é invocada também a possibilidade de Bético mantar práticas homoeróticas. A coerência
exigida
entre
ser
homem
(portador do órgão genital) e o comando (ser ativo nas relações sociais, políticas e sexuais) se fissura pois, quando se vê sem a possibilidade de penetrar com o pênis, recorre à prática da cunilíngua. Para pensar as questões religiosas no Principado Romano, os escritos de Marcial também se mostram como uma fonte propícia. Encontramos no Livro III o epigrama 24 que narra o sacrifício de um
84
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
bode a Baco feito por um camponês, sob a
Por fim, selecionamos o epigrama 2
tutela de um arúspice etrusco. Quando, por
do Livro IX, em que Marcial narra as
sugestão do arúspice, o camponês corta os
aventuras
testículos do animal aparece nele uma
desqualificando-o por se entregar demais
hérnia, podendo significar um mau agouro.
às amantes em detrimento das suas
No
obrigações com os clientes e os amigos.
mesmo
momento
o
camponês
a
arranca acreditando ser isso que prescrevia os rituais antigos. O epigrama termina assim: […] Assim, tu, que há pouco eras um arúspice etrusco, és agora um
amorosas
de
Lupo,
No final deste epigrama, lê-se: […] Anda agora, Cibele, e mutila os maricas desgraçados,este sim, este vergalho é que merecia as tuas facas. (MARCIAL, 2001, p. 101).
Para Parra, este epigrama liga o
[arúspice galo, já que, ao degolares um bode, te tornaste tu
culto de Cibele e seus sacerdotes às
próprio um bode castrado.
pessoas desregradas e sem nenhum
(MARCIAL, 2001, p. 138).
A religião romana centrava-se nos ritos e o bom relacionamento entre os deuses dependiam da perfeita execução deles (PARRA, 2010; SCHEID, 1991). Marcial pode nos informar em tal excerto que havia uma ligação entre o exato cumprimento dos rituais e as formas pelas quais
se
legitimava/identificava
um
sacerdote da religião pública romana. Ao proceder de maneira indevida, o arúspice é “rebaixado” ao status de galli. Neste caso, o corpo do eunuco é utilizado não para definição do que seria o masculino ou o feminino em Roma, uma questão de gênero. O corpo do eunuco, representado aqui pelo galli, também serve de exterior constitutivo para delimitar o que seria a própria religião oficial ou o que seria papel de um sacerdote.
prestígio
social
Concordamos
(2010, com
p.
108).
Parra
e
acrescentamos: Marcial constrói aí uma íntima ligação entre o corpo e as atitudes sociais e públicas de um romano. Aqui o corpo do gallus é utilizado também como exemplo de vergonha e que aqueles que não cumpriam com suas funções sociais deveriam
ser
castigados
com
a
emasculação. Considerações finais Retomando o que se propôs na introdução deste paper, percebemos que a História de Roma precisa ser revisitada, olhada a partir das novas questões que o presente propõe. Aqui, fizemos um breve exercício nesse sentido. Pudemos notar que articular as propostas da ACD com as dos estudos
85
Benedito Inácio Ribeiro Júnior
queerresulta numa outra forma de perceber
marginalizadas,
os corpos abjetos representados pelos
discurso que as transformas em anômalas,
epigramas de Marcial. Vemos que os galli
abjetas e quase que sujas. Entender tais
tem seus corpos usados para reafirmar os
discursos
preceitos da identidade masculina, dos
própria ideia que fazemos dos romanos e
cidadãos romanos e da religião pública.
da religião romana, pois é também às
Estes indivíduos, tão desqualificados pela
custas dos corpos dos eunucos que eles
pena de Marcial, expõe as construções
também se criam enquanto sujeitos. Olhar
ideológicas e discursivas que sustentam
para a antiguidade, tão distante do nosso
formas de identidade e, consequentemente,
tempo e das nossas experiências, pode ser
de exclusão.
um exercício para pensarmos o que nos
Para
pensarmos
um
compreender
a
constrói e forma enquanto sujeitos, pensar
antiguidade, como apontamos no início, a
que discursos e relações de poder nos
partir dos pressupostos de Bustamante,
criam
Lessa e Theml (2003) precisamos nos
travestis, gays, lésbicas, bissexuais ou
voltar
assexuados.
essa
corpo
permite-nos
por
na
para
o
elaboradas
experiências
enquanto
homens,
mulheres,
Referências: BIAZOTTO, Renata Lopes. O viver urbano em Roma: uma leitura de Plínio o Jovem e Marcial. Dissertação (Mestrado em História). Unesp – Faculdade de Ciências e Letras de Assis. 1993. 283 f. BUSTAMANTE,
Regina
Maria
da
Cunha;
LESSA,
Fábio
de
Souza;
THEML,
Neyde(org.).Olhares do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. 208 p. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 236 p. ______. “Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do ‘sexo’”. In: LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica. 2001. pp. 151-172. CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura latina. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 220 p. CITRONI, Mário. et. al. Literatura de Roma Antiga. Tradução de Margarida Miranda, Isaías Hipólito e Walter de Souza Medeiros. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2006. 1286 p.
86
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
CROUCHER, Karina. “QueeryngNearEasternArchaeology”. In: World Archaeology. Vol. 37, nº 4. Dec/2005. pp. 610-620. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/40025096. Acessado em 03/10/2013, as 13h26min. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social.Coordenadora da tradução, revisão técnica e prefácio: Izabel Magalhães. Brasília: Editora da UnB, 2001. 320p FEITOSA, Lourdes Conde. 'Gênero e sexualidade no mundo romano: a antiguidade em nossos dias. História: questões e debates. Ano 25, nº 48/49. Curitiba – PR: Editora da UFPR, 2008. p.119-135. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I:a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 7 ed. Rio de Janeiro: edições Graal, 1988. 149 p. FUNARI, Pedro Abreu. 'Representações do corpo nas paredes pompeianas'. In: BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha; LESSA, Fábio de Souza; THEML, Neyde (org.).
Olhares do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 2003. pp. 167-172. HEKMA, Gert. ‘Uma história da sexologia: aspectos sociais e históricos da sexualidade’. In: BREMMER, Jan (Org.). De Safo a Sade:momentos da história da sexualidade. Tradução de Cid Knipel Moreira. Campinas: Papirus, 1995. pp. 237-263. LAQUEUR, Thomas Walter. Inventando sexo:corpo e gênero dos gregos a Freud. Tradução Vera Whately. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2001. 313 p. MARCIAL, Marco Valério. Epigramas. Tradução de Delfim F. Leão; Paulo S. Ferreira e José L. Brandão. v.I. Lisboa: Edições 70, 2001.
______. Epigramas. Tradução de Delfim F. Leão; Paulo S. Ferreira e José L. Brandão. v. II. Lisboa: Edições 70, 2000. ______. Epigramas. Tradução de Delfim F. Leão; Paulo S. Ferreira e José L. Brandão. v. III. Lisboa: Edições 70, 2001. PARRA, Amanda Giacon. As religiões em Roma no principado: Petrônio e Marcial (século I e II d. C.). Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de ciências e Letras, UNESPAssis/SP. 2010. PIMENTEL, Cristina de Souza. 'Introdução geral'. In. MARCIAL, Marco Valério. Epigramas. Tradução de Delfim F. Leão; Paulo S. Ferreira e José L. Brandão. v.I. Lisboa: Edições 70, 2001. p. 9-18. PINTO, Renato. Duas rainhas, um príncipe e um eunuco:gênero, sexualidade e as ideologias do masculino e do feminino nos estudos sobre a Bretanha Romana. Tese
87
Benedito Inácio Ribeiro Júnior
(Doutorado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp: Campinas – SP, 2011. 254 f. SCHEID, John. 'O sacerdote'. In: GIARDINA, Andrea (Org.). O homem romano. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Editorial Presença: Lisboa, 1991. p. 49-72. SILVA, Fernando Cândido da. “Homossexualidade na Bíblia Hebraica ou uma historiografia bicha?”. In: Trilhas da História. Três Lagoas, v. 1, nº 1: jul-nov 2011. p. 9-22.
88
O PAPEL HISTÓRICO DA SUMA CONTRA OS GENTIOS DA FILOSOFIA MEDIEVAL Camila Ezídio 1 Resumo O objetivo do presente texto é apresentar uma pequena parte de uma pesquisa para a obtenção do título de mestre. O foco principal da pesquisa é a primeira via que demonstra a existência de Deus em Tomás de Aquino; no entanto, houve a necessidade de uma investigação de caráter histórico – filosófico em relação à Suma Contra os Gentios, obra de Tomás que traz não só a primeira via, mas as cinco vias que demonstram a existência de Deus que compõe um importante projeto na filosofia de Tomás. O presente texto traz algumas características da SCG, seus objetivos, seu plano geral, bem como o papel histórico que essa obra teve no século XIII. Lembrando que toda a análise tem como ponto de partida a primeira via, é a partir dela que nosso olhar é lançado para esse grande e rico horizonte que é a SCG. Palavras-chave: Suma; Tomás; Filosofia.
1PGF/
UEM/CAPES
89
Camila Ezídio
O início da escrita da Suma Contra
os Gentios se deu por volta de 1259, antes
cada questão, todavia a sua estrutura é de algo linear e não dialético. Tomás
de Tomás deixar Paris para ir a Itália; ele
distingue
na
SCG,
as
completou a obra em Oriveto em 1265.
verdades sobre Deus e as criaturas que
Segundo Anthony Kenny o título da SCG
podem
traduzido do latim seria algo como, Sinopse
independentes de qualquer revelação e
contra
inglês
aquelas verdades que podem ser provadas
traduziríamos como Sobre a Verdade da Fé
pela autoridade bíblica ou por algum
Católica. A obra é um manual missionário
ensinamento da igreja, vejamos
os
Incrédulos,
do
way in which rational creatures are to find their happiness in God. 2
na África do Norte. A SCG se diferencia de
Como diz Frei Carlos Josaphat em sua obra, Paradigma Teológico de Tomás
de Aquino, A Suma, o novo modo de sintetizar, construir e
podem ser aceitas por pensadores judeus e muçulmanos,
pois
as
mesmas
transmitir as doutrinas vem então irmanar-se
são
modestamente com as universidades e as catedrais, formando um conjunto que se alteia
apoiadas no pensamento filosófico de
como vistosa cordilheira dos grandes símbolos
Aristóteles. A SCG não é uma obra da teologia revelada, mas sim da teologia natural, e por sua vez a teologia natural é um ramo da filosofia. É importante destacar que nos três livros da SCG as autoridades bíblicas aparecem apenas como exemplo
razão
production by God and the third book is about the
evangelizar os não Cristãos na Espanha e
premissas filosóficas que ali aparecem
pela
second is about the created world and its
Penaforte que queria uma obra para
doutrina Cristã, mas pelo fato de que as
estabelecidas
The first book is about the nature of God, the
que foi escrito a pedido de Raimundo de
outras obras de Tomás, não em sua
ser
culturais.
3
A universidade surgida no século XIII estava em seu período de ascensão, de forma que era necessária uma obra que abrangesse diversas correntes teóricas da
ou ilustrações e não como premissas ou argumentos. Há outro fator que diferencia esta obra de outras, ela não tem a forma
2O
primeiro livro é sobre a natureza de Deus, o segundo é
sobre o mundo criado e sua produção por Deus e o terceiro livro é sobre o caminho pelo qual as criaturas
nem de um comentário e nem de uma
racionais encontram sua felicidade em Deus. KENNY,
Suma
Anthony. Aquinas on Being, New York: Oxford University
disputa
escolástica
como
a
Teológica; sua estrutura é como a de uma obra moderna, ela tem alguma disputa em
Press, 2002; pág. 82, tradução nossa. 3
JOSAPHAT, Carlos. Paradigma teológico de Tomás de
Aquino: sabedoria e arte de questionar, verificar, debater e dialogar: chaves de leitura da Suma de teologia. São Paulo: Paulus, 2012; pág. 24.
90
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
época;
assim
nasce
as
Sumas,
na
universidade e para a universidade.
que possibilitou o desenvolvimento de diversas correntes teóricas.
As teses de Tomás com alicerce na filosofia
de
questionada
Aristóteles,
sendo
Foram introduzidas duas correntes
esta
no panorama do ensino da época:
que
primeira
pela
fé
formam
o
chamar
de
filosofia
tomista,
disseminada pela patrística e a segunda a
apresentada na SCG; uma filosofia que por
antiguidade clássica advinda da entrada
meio do método de escrita que Tomás
das obras dos gregos no mundo medieval.
utilizou na SCG, as quaestio disputata
Temos assim a teologia e a filosofia cada
(questões disputadas) refletem um pouco
uma do seu lado, representadas mais
da história do século XIII. Neste período no
fortemente
qual a SCG foi escrita temos um grande
Aristotelismo. Em 1255 houve um episódio
acontecimento,
das
marcante no cenário da universidade, o
universidades; a universidade de Paris era
Corpus Aristotelicum (Corpo Aristotélico) foi
destaque
introduzido como texto didático nos cursos.
podemos
o
como
surgimento
modelo
para
outras
delas
foi
pelo
a
cultura
a
Agostinismo
cristã
e
o
A convivência entre teologia e filosofia dentro do
instituições e foi nesse ambiente que
mesmo espaço universitário descreve, desta sorte,
estava Tomás. Um ambiente de grande
o rumo de um primeiro roteiro doutrinal do século
ascensão e mudança, que muitas vezes é
XIII.
4
ocultado pelo caráter sombrio que o século
De que maneira teologia e filosofia
XIII traz consigo. Todavia, segundo o padre
conviviam em mesmo solo? Segundo Lima
Henrique Cláudio de Lima Vaz na obra
Vaz há três respostas para essa questão: a
Raízes da Modernidade, há pontos muito
primeira é a de que alguns viam a filosofia
importantes que devem ser destacados
como um saber autônomo, seguindo assim
frente ao cenário medieval; o primeiro deles
os parâmetros da antiguidade; a segunda
se refere a uma questão lingüística, pois o
resposta é a de que a filosofia era um
latim era a língua usada na universidade
saber
européia, língua na qual foram escritas as
teologia como pensava Agostinho; e a
obras de Tomás. O segundo ponto que
terceira é a via intermediária que foi
deve ser destacado neste período é que as
proposta por Tomás de Aquino, que em
universidades
resumo
medievais
representavam
mais que um local de estudo, elas tinham
subordinado
escreve
sua
(instrumento)
obra
com
da
este
pensamento: para ele tanto filosofia como
uma estrutura institucional, uma autonomia 4
VAZ, Henrique C. de Lima. Raízes da Modernidade, São
Paulo, Edições Loyola, 2002; pág. 42.
91
Camila Ezídio
teologia fazem uso da razão, todavia deve
escrita por Dom Odilon Moura, que nos
se admitir que Deus é fonte de verdade em
ajuda a compreender um pouco mais sobre
ambos os saberes.
esta obra, que junto com a Suma Teológica
Para Frei Josaphat Tomás é
podem ser consideradas as maiores obras
(...) o homem síntese das grandes tendências e dos movimentos mais marcantes da inteligência medieval, estão em marcha pelas vias do diálogo e
da filosofia de Tomás de Aquino. Segundo D. Odilon a SCG é, (...)
do debate, questionando o presente e passado. 5
Tomás
sintetizou
em
sua
as conclusões inferidas pela razão.
introduziu
os
questionamentos
e
objeções levantadas por seus alunos como base para a aula, a fim de iniciar um debate. Este fato se reflete na escrita das Sumas, as quais passaram de Sumas de Sentenças, ou seja, de comentários de questões bíblicas para Sumas de Teologia; teologia que com o estatuto de ciência dado por Tomás, abrangia diversas outras áreas do conhecimento, formando assim um novo estilo de escrita. Na tradução brasileira da Suma
6
O Plano da Obra
teológico. É importante considerar também
que
não
critério científico são analisados e deles tirados
todos em uma obra filosófica com alicerce
explicar o texto foi aprimorado pelo filósofo
teológica,
principais mistérios da fé com profundeza e
os pensadores judeus e árabes, unindo
ensinar; o antigo método de ler, comentar e
formalmente
usados como instrumentos do saber teológico, os
Aristóteles, Agostinho, o Neoplatonismo e
de Paris seguia uma nova maneira de
obra
obstante a ênfase dada aos temas filosóficos
obra,
que Tomás como mestre na universidade
uma
Na obra Toward understanding Saint
Thomas, M. Chenu discorre sobre vários aspectos referentes à construção da SCG e a argumentação que a compõe. Segundo Chenu a SCG se diferencia das outras obras de Tomás por não ser uma obra que depende do ensino, ou melhor, ela não é uma obra que é resultado daquilo que acontecia
na
universidade.
A
argumentação tem o mesmo caráter de tantas outras obras de Tomás, não fugindo daquilo
que
era
próprio
do
período
medieval, no entanto ela foi escrita com uma finalidade diferente, no caso, a pedido de São Raimundo de Penaforte sendo assim uma iniciativa pessoal de Tomás.
Contra os Gentios temos uma introdução 6
TOMÁS DE AQUINO, Suma Contra os Gentios, I. Trad.
JOSAPHAT, Carlos, OP. Paradigma teológico de Tomás
D. Odilon Moura e D. Ludgero Jaspers , rev. Luis Alberto
de Aquino: sabedoria e arte de questionar, verificar,
de Boni. Porto Alegre, Escola Superior de Teologia de
debater e dialogar: chaves de leitura da Suma de
Brindes: Sulina; Caxias do Sul, Universidade de Caxias do
Teologia, pág. 42.
Sul, 1990; introd., pág. 3.
5
92
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo The problem is, therefore, to discover these ends and methods in order to enter into the perspective of the author. Who are the gentiles against whom
medieval, a SCG traz uma doutrina que se
Saint Thomas writes? To what readers does he
fez histórica e que se fez da história
address himself against them? For the sake of
daquele período.
what cause and of what object?
7
Diante dos problemas postos acima temos ainda um outro, a SCG seria uma obra de caráter apologético, filosófico ou teológico? Como foi dito Tomás escreveu a SCG a pedido de Raimundo de Penaforte, pois diante da invasão dos Mouros na Espanha ele sentiu-se amedrontado com a conversão ao Islamismo; pediu então a Tomás que fizesse uma obra a fim de formar os missionários com as armas intelectuais necessárias para a discussão com os infiéis. Essas informações advêm de um dominicano chamado Peter Marsílio, segundo Chenu não se sabe se as mesmas são precisas, no entanto o fato é que a SCG foi escrita na metade do século XIII em um momento de confronto entre o Cristianismo e o Islamismo, assim a obra de Tomás é fonte de um momento histórico, a expressão em forma de escrita 7
daquilo que foi um marco no período
O problema é, portanto, descobrir os fins e métodos
No
momento
em
que
Tomás
escreveu a SCG os pensadores Cristãos estavam preocupados com uma importante questão
dentro
da
universidade,
a
introdução das obras de Aristóteles nos cursos. O problema deste acontecimento que marca o século XIII é que houve sérias divergências
na
interpretação
dessas
obras, principalmente na tradução feita pelos filósofos Árabes. Por um lado este fato criou uma situação complicada para os Cristãos, mas por outro, com as obras de Aristóteles foi possível uma visão científica do universo independente daquela que constava na bíblia. Mediante
todos
estes
acontecimentos Tomás escreve sua Suma
Contra os Gentios. Por sua vez, quem podemos
entender
como
Gentios?
Segundo o padre Orlando Vilela “gentiles queria dizer errantes, ou seja, os pagãos, os judeus, os muçulmanos, os heréticos, todos
presentes
e
ativos
no
clima
para entrar na perspectiva do autor no ponto de vista do
intelectual da época.” 8 Assim também para
autor. Quem são os gentios contra os quais escreve São
Chenu a SCG
Tomás? O que ele faz para dirigir os leitores contra eles?
missionários frente ao Islamismo, todavia, a
Por questão de que causa e de qual objeto? CHENU, Marie Dominique, OP. Toward understanding Saint
é um livro para os
obra não tem apenas caráter de um manual
Thomas. Translated by rev. Albert M. Landry, O.P. and VILELA, Orlando. Tomás de Aquino, Opera Omnia. Belo
Dominic Hughes, O.P. Henry Regnery Company, 1964;
8
pág. 288, tradução nossa.
Horizonte: FUMARC\PUCMG,1984; pág. 101.
93
Camila Ezídio
de instruções, ela também carrega o intuito
mediante o fato de que a teologia é uma
de dirigir-se a elite da época. Isso porque o
ciência que permite o ‘acolhimento’ dos
método como Tomás a escreveu dirige-se
argumentos racionais. Tomás assume a
a universidade, a pessoas instruídas que
tarefa de partindo daquilo que a fé católica
tinham condições de estarem inseridas no
professa, discutir o que se opõe a ela.
ensino da época. A SCG foi fruto do que
Havia a necessidade de que SCG
estava acontecendo fora e também dentro
fosse escrita no momento em que os
da universidade, já que ela carrega uma
cristãos avançavam na conquista de terras
interpretação
ocupadas
diferente
das
daquela
obras feita
Aristotélicas
pelos
pelos
árabes
na
península
filósofos
Ibérica; a igreja precisava converter os não-
averroístas; este é um dos pontos que
cristãos ou ao menos refutar as objeções
Tomás visa, refutar as teses levantas pelo
que os árabes apresentavam a fé cristã.
averroísmo; mas não só este até porque a
Deixando claro que Tomás não apresenta
crise em relação à tradução em latim pelos
nada em suas obras que favoreça as
averroístas só aconteceu depois; dessa
Cruzadas. A SCG é escrita a pedido de
maneira todos os pagãos, judeus, hereges
São Raimundo a fim de preparar os
são de alguma forma censurados na SCG.
dominicanos para a missão de evangelizar
Para tanto a obra vai além de um manual
os gentios que como dissemos eram
missionário,
judeus, muçulmanos e todos aqueles que
It offers itself as a defense of the entire body of Christian thought, confronted with the scientific Greco Arabic conception of the universe hence forth revealed to the west. The Summa is an apologetic theology. 9
Para Chenu a SCG é uma obra teológica
baseada
em
argumentos
racionais que podem ser reconhecidos exclusivamente pela razão na discussão com os não - cristãos. E isso é possível
apresentavam argumentos contrários à fé cristã, ou seja, a obra tinha também um caráter didático e explicativo. Um dos fatos relevantes do século XIII dentro das universidades e que marca consequentemente as obras de Tomás foi a revisão do pensamento de Agostinho e a introdução das obras Aristotélicas para estudo nos cursos. O tomismo surge exatamente quando Tomás analisa ambos
9
Ela oferece-se como uma defesa do corpo inteiro do
pensamento cristão, confrontado com a concepção
os pensadores, Aristóteles e Agostinho
científica Greco Árabe do universo, portanto revelada pelo
construindo um pensamento a partir da
ocidente. A Summa é uma teologia apologética. CHENU,
síntese da filosofia de ambos. Porém, essa
Marie Dominique, OP. Toward understanding Saint
síntese não ocorre de um momento para o
Thomas, pág.292, tradução nossa.
94
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
outro, mas por força de uma necessidade.
mudança
As obras de Aristóteles haviam sido aceitas
Gauthier concluir que essa mudança ocorre
dentro da universidade, porém com a
quando Tomás deixa Paris e vai para a
tradução dos árabes, que as deturpavam
Itália.
em seu conteúdo o que fez com que
capítulos do Livro I da SCG em Paris antes
começassem a serem proibidas. Tomás viu
do verão de 1259, já na Itália em 1260
a necessidade de uma nova tradução das
revisou estes capítulos e escreveu os
obras Aristotélicas e pediu a Guilherme de
outros três livros que estavam concluídos
Moerbeke que a fizesse; tendo isso em
por volta de 1265; confirmação disso é que
mãos comentou as obras de Aristóteles e
Tomás remete-se a SCG em várias obras
fez uso das mesmas na construção de
que foram escritas após esta data.
seus argumentos em ambas as Sumas.
de
pergaminho,
o
que
faz
Assim Tomás teria redigido 53
O título original da SCG reflete seu
Segundo D. Odilon a SCG foi escrita
caráter apologético, Incipt Liber de Veritate
frente a um clima de polêmica no meio
Catholicae Fidei Contra Errores Infidelium
filosófico da época, pois os averroístas
(Livro da verdade da Fé Católica Contra os
como já dissemos estavam interpretando
Erros dos Infiéis). Tomás teve diversas
as obras de Aristóteles e também as de
influências
Agostinho de maneira errônea; São Tomás
autoridades da igreja e da filosofia, como
nas páginas da SCG apresentou de uma
também a sagrada escritura. (...)
maneira crítica a sua interpretação de
constitui
uma
as
ciência
porém neste trabalho racional poderá haver influxo dos dons do Espírito Santo. 10
Jean Pierre Torrell nos apresenta em sua obra Iniciação a Santo Tomás de
Aquino uma introdução à Suma contra os Gentios com a visão de vários pensadores exemplo,
Teologia
desde
princípios revelados por Deus. Acidentalmente,
sua própria filosofia.
por
a
escreve-la,
essencialmente obra da razão natural, partindo dos
ambas as filosofias, dando assim forma à
como,
para
René
Antonie
Gauthier, que analisa a SCG considerando
Algumas datas para a escrita da SCG
já
citadas
acima
podem
ser
consideradas, mas de nada podemos ter absoluta
certeza.
Já
em
relação
ao
conteúdo da SCG podemos notar que, De início, na leitura da SCG, verifica-se que
que a mesma tem seu início escrito no
Santo Tomás, nos livros I, II, III, estuda os dados
mesmo pergaminho e com a mesma tinta
do conhecimento da razão natural no tocante a Deus e as suas obras. No livro IV, analisa os
parisiense com a qual foi escrita outra obra de Tomás intitulada o Super Boetium e que somente a partir do fólio 15 é notada a
10
TOMÁS DE AQUINO, Suma Contra os Gentios, I.
Introdução, pág. 10.
95
Camila Ezídio dados da fé, dos mistérios da trindade, da encarnação, dos sacramentos e da vida eterna. A perspectiva da obra é, pois, teocêntrica.
11
A SCG é obra que retrata a sua filosofia que se ergue no alicerce da teologia trazendo consigo o grande objetivo de ensinar aqueles que iriam ensinar a outros. A SCG é mais que uma obra de caráter missionário e evangelizador, sua raiz é de uma obra apologética, Tomás a construiu tendo o objetivo de mostrar por meio de argumentos apoiados em diversas autoridades
da
filosofia
e
da
igreja
verdades da doutrina cristã para os não cristãos, assim a SCG traz a tona uma
milagres. A SCG é uma obra construída a fim de apresentar aquilo que deveria ser ensinado
meio de razões demonstrativas, tentando convencer o adversário não por meio da sua argumentação, mas resolvendo os argumentos que ele (adversário) propõe contra a verdade. É claro que aquilo que ultrapassa a razão não se pode conhecer por meio de argumentos demonstrativos, somente por meio da revelação, entretanto (...) com o objetivo de esclarecer essa verdade, podemos, todavia propor certos argumentos por verossimilhança, nos quais a fé dos fiéis pode se exercitar e se apoiar, sem que sejam de natureza convencer os adversários.
desde cartas, comentários e
questões, diante disso a SCG pode ser considerada
uma Por
obra
discutir
questões
filosófica nos
filosóficas
ou
primeiros a
SCG
parece ser uma obra de filosofia, no entanto se a olharmos como um todo vemos o caráter apologético de uma obra de teologia. Segundo D. Odilon, São Tomás trouxe para a SCG textos da sagrada escritura a fim de compor sua argumentação sobre temas ligados a fé cristã
como
pecado,
graça
divina
e
DE AQUINO, Suma Contra os Gentios, I.
Introdução, pág. 12 e 13.
12
Em relação ao estilo de escrita de Tomás podemos perceber que ele usa palavras que expressam a verdade das coisas, porém não de uma forma pessoal, pelo contrário, a verdade exposta por Tomás é algo que o próprio leitor vai acompanhando passo – a – passo; Tomás tenta levar o seu leitor à conclusões a partir de sua argumentação; assim temos a confirmação de que a SCG é uma obra com seu caráter apologético por tratar de temas referentes a fé cristã, mas isso não
12 11TOMÁS
capítulos
Torrel, Tomás manifesta a verdade por
Tomás escreve em diversos gêneros
capítulos
256
refletindo assim o título da obra. Segundo
na teologia.
teológica?
infiéis;
contestam erros e 207 expõe a fé cristã,
construção baseada na lógica, na filosofia e
literários
aos
TORRELL, Jean Pierre. Iniciação a Santo Tomás de
Aquino, sua pessoa e obra. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo, Edições Loyola, 1999; pág. 127.
96
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
anula
seu
caráter
didático\reflexivo
também fora dela, já que a mesma era um
direcionado aos missionários. Para Chenu,
espaço institucionalizado que influía na
Tomás escreve a SCG com o pensamento
vida social como um todo da época. A SCG
de que se ensina de forma diferente de
é a expressão que ficou de um mestre que
acordo com as verdades, ou seja, devemos
lecionou na Universidade, pois foi escrita
adequar o modo de ensino de acordo com
do modo como era o ensino que Tomás
o
inaugurou;
assunto,
pois
quando
falamos
de
inaugurando
também
uma
filosofia
‘nova’ filosofia que o mestre construiu com
consideramos as criaturas em si mesmas
alicerces em seus predecessores e que
para leva-las a conhecer Deus; já no
constituiu uma via intermediária em meio
âmbito da fé não consideramos as criaturas
ao problema, filosofia e teologia no período
a não ser em sua relação com Deus.
medieval. Tomás deu a teologia o caráter
Segundo Chenu não se deve pensar de
de ciência, uma ciência que abrange
maneira alguma que as verdades de fé são
diversas outras, como por exemplo, a
adequações à razão, o método que Tomás
filosofia.
utiliza a fim de escrever a SCG é de uma fé
homem tanto na filosofia como na teologia
amiga
o
necessita de sua razão natural, porém a
conhecimento mais obscuro de Deus é
fonte da verdade em ambas é a mesma,
melhor que o conhecimento mais perfeito
Deus. A SCG então reflete um pouco da
das coisas do mundo. A SCG se resume
história do século XIII, pois foi escrita com
em
de
o objetivo de debater por meio de idéias e
contemplação da verdade com o duplo
não de armas as objeções dos gentios e de
caráter missionário e doutrinal refletindo em
todos
cada página um pouco da história do
questionamentos em relação à fé cristã.
mundo medieval.
Assim,
verdades
da
no
âmbito
razão,
algumas
da
lembrando
palavras,
uma
que
obra
Fazendo um panorama geral da obra
O fato é que para Tomás o
aqueles ela
apologética
é por
que
um
levantam
escrito
tratar
de
de
ordem
assuntos
podemos ter as seguintes conclusões,
relacionados à teologia, porém é também
Tomás de Aquino escreveu a SCG em um
uma construção que tem como fonte a
período do século XIII de profunda agitação
filosofia daqueles antecederam Tomás.
não só dentro da universidade, mas
97
Camila Ezídio
Referências: TOMAS DE AQUINO, Suma Contra os Gentios I. Trad. D. Odilon Moura e D. Ludgero Jaspers, rev. Luis Alberto de Boni. Porto Alegre, Escola Superior de Teologia de Brindes: Sulina; Caxias do Sul, Universidade de Caxias do Sul, 1990. CHENU, Marie Dominique, OP. Toward understanding Saint Thomas. Translated by rev. Albert M. Landry, O.P. and Dominic Hughes, O.P. Henry Regnery Company, 1964. KENNY, Anthony. Aquinas on Being, New York: Oxford University Press, 2002. JOSAPHAT, Carlos. Paradigma teológico de Tomás de Aquino: sabedoria e arte de
questionar, verificar, debater e dialogar: chaves de leitura da Suma de teologia. São Paulo: Paulus, 2012. VAZ, Henrique C. de Lima. Raízes da Modernidade, São Paulo, Edições Loyola, 2002. TORRELL, Jean Pierre. Iniciação a Santo Tomás de Aquino, sua pessoa e obra. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo, Edições Loyola, 1999.
98
NICOLAU E DAMASCO E CAIO OTÁVIO: Entre redes sociais e discursos Carlos Eduardo da Costa Campos 1 Maria Regina Candido 2 (Orientadora) Resumo: No decorrer da história encontramos uma pluralidade de discursos, os quais
representaram os feitos do princeps Caio Otávio, como modelo de “uir bonus” (bom cidadão) para os segmentos dirigentes romanos. Entretanto, para elaborarmos uma pesquisa histórica com apoio dos escritos biográficos, tornou-se necessário o estabelecimento de seleções para a construção deste estudo. Sendo assim, dentre a diversidade documental sobre Otávio, elencamos a produção de Nicolau de Damasco, pois tal escritor foi seu contemporâneo, além de integrar as redes sociais de tal princeps romano (século I a.C.- I d.C.). Outro elemento a ser destacado é a escassez de análises historiográficas que abordem a produção do referido biógrafo, o que nos instiga pela abordagem alternativa que podemos tecer em nossa pesquisa. Palavras-chave: Caio Otávio, Nicolau de Damasco, Discurso
1Doutorando 2
– PPGH/UERJ – CAPES
Professora doutora associada ao PPGH/UERJ
99
Carlos Eduardo da Costa Campos
Em decorrência do Bimilênio pelo
clássicos representaram os feitos de tal
falecimento, do célebre imperador romano
princeps de Roma como modelo de “uir
Caio Júlio César Otavio Augusto, nos
bonus” (bom cidadão) para os segmentos
deparamos com a produção de diversos
dirigentes desta sociedade, posteriores a
textos biográficos versando sobre as suas
Augusto. Entretanto, para elaborarmos uma
ações políticas e sociais. Jacques Revel
pesquisa histórica com apoio dos escritos
indica-nos que a biografia histórica 3 é um
biográficos,
gênero híbrido da História e da Literatura, o
estabelecimento
qual
no
construção deste estudo. Sendo assim,
mercado editorial da atualidade (REVEL,
dentre a diversidade textual sobre Otávio
2010, p.235). Dessa forma é interessante
elencamos a produção de Nicolau de
observar que apesar do acúmulo de
Damasco,
escritos
mesmos
contemporâneo, além de integrar as redes
apresentam abordagens distintas sobre o
sociais 6 de Caio Otávio (século I a.C.- I
princeps 4 Caio Otávio, assim ampliando o
d.C.). Outro elemento a ser destacado é a
conhecimento dos leitores em relação a
certa escassez de análises historiográficas
esse personagem marcante no cenário
que abordem sua produção, o que torna
político
nossa proposta singular.
se
encontra
com
biográficos,
ocidental.
Antiguidade
o
vitalidade
os
Todavia,
discurso 5
desde
dos
a
autores
torna-se
pois
de
necessário seleções
tal
escritor
o
para
foi
a
seu
Antes de analisarmos o nosso objeto de estudo é fundamental evidenciarmos a
3
Convergindo com Revel, Benito Schmidt declarou que a
biografia histórica é, antes de tudo, história. Ao tecer essa
forma
que
iremos
“operacionalizar
consideração o autor enfatizou que a mesma necessita de procedimentos de pesquisa e das formas discursivas que
rituais, pinturas e monumentos, por exemplo), que é
são próprias da disciplina histórica, tendo em vista a sua
dotada de intencionalidade e intrinsecamente relacionada
proposta
a um sujeito ou grupo social. Um discurso está atrelado a
de
explicar
e
compreender
o
passado
(SCHMIDT, 2012, p.195).
diversos interesses pessoais, de tal maneira a ação
Segundo Olivier Hekster, o termo princeps o qual foi
discursiva não deve ser pensada de forma simplista,
conferido a Augusto ganha uma conotação de primeiro
devido à mensagem contida em seu conteúdo (GREIMAS;
4
entre os cidadãos. Tal termo foi ressignificado para dar
COURTÉS,1979, p. 125-30).
conta do novo contexto político, o qual Roma vivenciava
6
no século I a.C.. Afinal não podemos deixar de mencionar
mostrou que é possível depreendermos modos de ação,
que o termo princeps senatus (o primeiro entre os
frequentemente disjuntos (ou parcialmente disjuntos),
senadores, com o privilégio de abrir os debates no
entre os quais os agentes devem se orientar. Tal
Senado) já era usual na instituição senatorial, ao longo do
abordagem também permite ao pesquisador apreciar
período republicano (HEKSTER, 2006, p.108).
sistematicamente o volume, a densidade e a estruturação
5
O discurso pode ser definido como uma mensagem
formulada por meio de uma linguagem (textos, diálogos,
A análise de redes sociais (social network analyses)
do espaço social em que um sujeito se encontra inserido (REVEL,2010, p.238).
100
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
historiograficamente”, o conteúdo de nosso
A biografia, como gênero, existia em
texto. Deste modo partiremos da produção
Roma desde o século II a.C., de acordo
de Nicolau de Damasco sobre a juventude
com José Luís Lopes Brandão (2009,p.17).
de Caio Otávio, assim finalizando com a
Entretanto,
possibilidade de emprego da biografia nas
“experimentos biográficos” mais recuados
pesquisas históricas. A biografia antiga 7,
através das canções de banquetes – como
pode ser compreendida enquanto grafias
a carmina conuiualia – que possivelmente
de vidas, ou seja um conjunto de relatos
existiram até ao tempo de Catão, o velho
sobre personalidades ilustres, os quais
(III a.C.). Tal cântico celebrava as virtudes
permeavam a memória social. Todavia,
dos heróis que haviam perecido, como foi
Arnaldo
p.12-4)
exposto por Marco Túlio Cícero (Tusculana
esclarece que as vidas biografadas são
IV,2) 8. Com o passar do tempo outros
analisadas
“experimentos
Momigliano através
(2004, da
relação
dos
é
possível
biográficos”,
perceber
tornaram-se
personagens com as suas respectivas
possíveis de ser percebidos em Roma,
sociedades, pois na Antiguidade não havia
como
a noção de indivíduo, tal como vemos na
aristocracia, mediante a realização das
modernidade.
Natália
José
laudationes. Esta prática foi capaz de reunir
complementa
as
de
alguns elementos basilares da biografia,ao
Momigliano, ao indicar que a escrita
evocar os antepassados, osdescendentes,
biográfica antiga possuía a tendência de
as honras e a aparência física, do morto
analisar a personalidade em seu meio,
(1984, p.39).
Frazão concepções
assim denotando as suas atitudes, seus
nas
O
cerimônias
fúnebres
desenvolvimento
da
da
escrita
valores, seus méritos e suas falhas (2011,
biográfica latina adquire novos contornos a
p.45) Afinal podemos ressaltar que as
partir do século I a.C., período este
fronteiras entre a vida pública e privada, no
também
denominado
de
República
mundo antigo, são tênues e os cidadãos de destaque eram intensamente expostos em suas respectivas comunidades.
8
Segundo Cícero:[...] assim Catão, um escritor da mais
alta autoridade, diz em sua Origens, que "Foi nossos
antepassados que instituíram o costume de entreter aos convidados, assimcelebrando os louvores e virtudes dos homens ilustres por meio de canções ao som da flauta”;
7
Concepção formulada a partir de Philippe Levillan, em
são poemas
claros e
musicais
que foram
então
Os protagonistas: da biografia (1996, p.146-7); Arnaldo
compostos para a voz. E, de fato, está claro assim que a
As
da
poesia estava dentro das Leis das Doze Tábuas, em
Historiografia Moderna (2004, p.12-4); Benito Bisso
medida que nenhuma canção poder ser feita para causar
Schmidt, no capítulo História e Biografia (2012, p.195).
prejuízo aos outros comentários (Tusculana IV,2).
Momigliano,
no
texto
Raízes
Clássicas
101
Carlos Eduardo da Costa Campos
Romana Tardia. O referido contexto é
produzindo uma uita (MOMIGLIANO, 1993,
marcado pela concentração de poder pelos
p.14) Quanto as escritas biográficas sobre
grandes generais romanos, o que colocava
um determinado personagem, percebemos
as antigas instituições republicanas em
que os principais promotores eram os
posição de fragilidade frente ao poderio
libertos e os clientes. Assim os mesmos
militar
Diversas
descreviam os feitos e glórias de um
foram as modificações políticas e sociais,
protetor ou amigo da família, de forma
as quais Roma vivenciou nesse período, a
pública, com isso reforçando os laços
qual
sociais.
destes
culminou
comandantes 9.
com
a
formulação
do
Principado de César Augusto. Nesse bojo,
As primeiras obras biográficas de
verificamos que a biografia latina veio a
cunho
desenvolver-se pelo viés literário, assim
evidenciar são as de Varrão (116-27 a.C.) e
como assumiu uma face de propaganda
Cornélio Nepos (100-27 a.C.). O conteúdo
dos aristocratas em meio à disputa pelo
de seus escritos biográficos versavam
acesso ao poder (LEVILLAN, 1996, p.146).
sobre pensadores e homens da política
Um exemplo, que tornou-se comum entre
helênicos
os
os
aspectos particulares dos costumes dos
comentários (Commentarii). Segundo José
dois povos. As obras de Varrão, as
L. Lopes Brandão (2009, p.22), tais práticas
Imagines ou Hebdomades, não chegaram
de
pelos
até os dias atuais, mas se sabe que elas
magistrados, generais e posteriormente os
englobavam sete retratos de personagens
princepes, dessa maneira sendo comum
ilustres – desde reis a dançarinos, entre
entre a República e o Alto Império. Vale
outros – que precediam epigramas que
ressaltar, que não havia entre os romanos
descreviam
a noção de “autobiografia”, pois essa é
apontado por Arnaldo Momigliano (1993,
uma conceituação moderna. Um sujeito
p.96). Cornélio Nepos, seguiu o caminho
narrador, ao falar de si, estava escrevendo
de Varrão, assim compondo obras que
uma uita sua e ao falar de outros estava
confrontam os costumes de romanos e
aristocratas
enaltecimento
romanos,
eram
foram
escritas
literário,
e
as
latinos,
o
quais
com
personagem,
podemos
ênfase
aos
como
foi
helenos, com os de outros povos como 9
Harriet I. Flower, na obra Roman Republic ( 2010); Karl
Galinsky, emThe Cambridge Companion to the age of
cartagineses e persas. É interessante
Augustus (2005); David Shotter, The fall of the Roman
demarcar a sua nítida distinção entre
Republic (1994); Liv M. Yarrow, Historiography at the End
História e Biografia, a qual se faz presente
of the Republic - Provincial Perspectives on Roman Rule
em sua obra (Vidas,Prefácio, 1). Desse
(2006).
102
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
modo, o mesmo se vale da biografia como
caso iremos nos centrar nos escritos do
um mecanismo que possibilita conhecer os
biógrafo de Damasco.
feitos dos grandes homens e com isso
Nicolau de Damasco, foi um escritor
gerar uma moralização e exemplos de bons
contemporâneo a César Augusto em Roma
cidadãos. Tal modelo de escrita biográfica
e de Herodes, na Judéia. Outros autores
veio a inspirar autores posteriores, como
clássicos, o apresentavam como inserido
Plutarco e Suetônio, na visão de José Luís
nas redes sociais do referido “princeps
Lopes Brandão (2009, p.23).
romano e do rei dos judeus” 11. Nicolau
Desse modo notamos que a partir do
pertencia
ao
Principado de Augusto (I a.C.), uma
principais
famílias
constante passou a se redobrar nos
província romana da Síria.O pai de Nicolau
trabalhos dos biógrafos latinos, como os de
era Antípatro de Damasco e sua mãe
matriz cultural helênica: as figuras dos
Estratonice,
grandes
na
Damasco por suas virtudes e proeminência
representação dos princeps romanos. Para
social. Segundo o Léxico Bizantino (Suda),
Brandão a biografia é“o género mais
Antípatro
indicado para historiar o governo de Roma
diplomáticas e julgamentos na cidade de
imperial, em que havia concentração das
Damasco,
instituições do Estado na pessoa do
centrais
imperador: pelo que as [...] – as virtudes e
A’2705). Dessa forma, percebemos as
os vícios – se reflectem na condução da
redes sociais, com as quais Nicolau já
história” (2009, p.24). Entre os principais
circulava em seu processo de formação.
biógrafos de César Augusto, podemos
Devido à sua formação aristocrática, o
evidenciar
de
escritor de Damasco tornou-se proficiente
Damasco, Suetônio e Plutarco 10. Todavia,
em muitas áreas do conhecimento erudito,
como integra o papel do historiador o
assim como as línguas e a literatura, como
recorte
seu
o mesmo apresenta em seus escritos sobre
documento de análise, em nosso estudo de
si (FGrH 90 F. 131). Como vemos no
10
políticos,
e
as
obras
seleção
com
de
do
ênfase
Nicolau
tema
e
É importante frisar que a obra Vida deOctávio César
11
seio
aristocrático de
ambos
na
Damasco,
reconhecidos
envolvia-se assim
das
em
acumulando
magistratura
local
na
em
missões cargos (Suda,
Para maiores detalhes ver Fócio, Biblioteca, 189 ou
Augusto, não chegou até atualidade. Contudo podemos
Ateneu
ver escritos biográficos plutarquianos sobre o referido
Disponíveis
princeps em Vidas de Marco Antônio e nos Ditos de reis e
http://www.attalus.org/translate/nicolaus2.html;
imperadores.
em: 20 de julho de 2014.
de
Naucratis,
Deipnosofistas,
XIV,
652. em:
acessado
103
Carlos Eduardo da Costa Campos
Léxico Bizantino: “Ele foi notável em sua
Roma.
pátria e se destacou entre os seus pares;
autobiografia, que Nicolau assumiu o papel
ele estudou gramática melhor do que
de mediador entre os interesses e os
ninguém, e por causa disso toda a arte da
problemas que emergiam na província da
poesia, e ele mesmo escreveu tragédias e
Judéia e com Roma. Um dos pontos altos
comédias famosas”(Suda, N’393).
dessa função foi quando Nicolau atuou em
Então
notamos
em
sua
p.2)
prol de Arquelaus sucessor de Herodes, ao
pontua que a proeminência política e social
trono, contra Antípatro filho de Herodes e
de Nicolau de Damasco, o levou a integrar
conspirador. A situação foi resolvida com o
a corte do rei Herodes da Judeia, assim
apoio de César Augusto, para Arquelaus
como posteriormente prestou serviços a
(FGrH 90 F. 136).
Clayton
Morris
Hall
(1923,
Arquelaus, o filho e sucessor herdeiro do
A partir de Jane Bellemore (1984),
antigo monarca. Desse modo, o autor de
verificamos
Damasco passou a função de conselheiro e
desenvolvidas entre Augusto e Nicolau de
instrutor, como foi descrito por Plutarco
Damasco se acentuaram na década de 20
(Simpótica, 8.4) e pelo próprio Nicolau de
a.C.. Para a autora, Nicolau se tornou o
Damasco em sua autobiografia (FGrH 90 F.
tutor de Hélios e Selene, os filhos de Marco
135). É nesse contexto que emerge a
Antonio e Cleopatra VII, que foram criados
História de Herodes, que foi incluída em
por Otávia, irmã do princeps. Com a
sua Histórias, uma coletânea em forma de
referida inserção social, o mesmo passou a
história universal com 144 livros. Para
circular
Aryeh Kasher devido ao conhecimento de
domus 13augustana. O ápice dessa relação
Nicolau e sua habilidade com a escrita,
social culminou com honrarias concedidas
Herodes
de
por César Augusto a Nicolau de Damasco,
historiógrafo real. Através das redes sociais
como o próprio relatou em seus escritos
de Herodes 12 que Nicolau veio a conhecer
(FGrH 90 F. 136).
o
elevou
a
categoria
no
que
as
relações
ambiente
sociais
privado
da
o próprio princeps Cesar Augusto, por meio
Para Clayton Hall, Nicolau teve
de uma viagem que ambos fizeram para
acesso a um material privilegiado ao construir a sua biografia sobre Augusto,
12
Herodes já se encontrava como aliado romano desde
afinal os mesmos passaram a integrar uma
Júlio César, que o concedeu a cidadania romana em 47 O termo domus aplica-se não somente para a casa,
a.C.. Sua função política na dinâmica dos segmentos
13
dirigentes de Roma, veio a permanecer até o período de
propriamente dita, como se amplia para designar a família
governo de Augusto (KASHER,2007,p 3;19-20).
que ali habita (LEWIS, 1958, p.609-10).
104
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
mesma rede social, ao ponto de César
representantes do estilo helenístico de
tornar-se o seu patrono. Apesar de haver
biografia no período romano. Em sua
pontos que podem ser considerados como
construção, o mesmo se vale do modelo
tendenciosos pelos vínculos sociais entre o
peripatético, para elaborar sua produção
biografo e o biografado, a mesma se torna
textual.
uma documentação privilegiada, por expor
construção da biografia augustana, pelo
a memória social do período com riqueza
autor de Damasco, foi aproximadamente
de dados. Com visão compartilhada a
em 20 a.C., o que denota uma interface
nossa, podemos citar os classicistas J. S.
com o processo de concentração do poder
Richardson, Jane Bellemore e Clayton
político de Augusto, assim como o reforço
Morris Hall 14.
do mos maiorum 15 e difusão da cultura
Quanto a produção de Nicolau é
Para Momigliano, o período de
latina, no Ocidente Mediterrâneo.
Léxico
A razão biográfica de Nicolau fica
Bizantino (Suda). Nicolau escreveu uma
expressa, quando o mesmo indica que vai
história universal (80 livros), uma biografia
relatar as realizações de César Augusto,
sobre Augusto e uma autobiografia, dessas
“[...] para que todos possam conhecer a
apenas
fragmentos
verdade” (FGrH 90 F. 126.2). Para tanto,
referentes a biografia augustana e a sua
Nicolau argumenta que vai estruturar seu
vida (Suda, N’393). Quanto ao escrito
escrito
biográfico sobre Augusto, para W. Steidle
nascimento e da criação pelos pais de
(1963) a obra foi desenvolvida de forma
Augusto. Assim como destacou a “[...]
completa. Em contraposição a Steidle,
disciplina e educação desde a infância, por
Arnaldo Momigliano frisa que pelas suas
meio da qual ele veio a ter tal posição
características
Nicolau
social”(FGrH 90 F. 126.2). Em nosso artigo
desenvolveu uma biografia parcial (1993,
vamos elencar os principais pontos da obra
p.111-2). Momigliano ressalta que Nicolau,
de Nicolau, com o intuito de dinamizar a
através
exposição. Nicolau ressalta o prestígio da
retomarmos
fundamental
Augusto,
14
sobrevivem
dos foi
os
o
textuais,
longos um
fragmentos dois
sobre
maiores
Vide: Jane Bellemore, Nicolaus of Damascus – Life of
família
15
biográfico
de
Caio
primeiro
Otávio,
falando
desse
do
modo
O mos maiorum pode ser compreendido como o
Augustus (1984); Clayton Morris Hall, em Nicolaus of
conjunto de costumes e valores tradicionais, passados
Damascus’ life of Augustus – A historical commentary
pelos ancestrais, que devem ser mantidos para a
embodying a translation (1923, p.2); J. S. Richardson
manutenção da estabilidade social e identificação do ser
Augustan Rome – 44 BC. to AD 14 (2012).
romano (BUSTAMANTE, 2006, p.112).
105
Carlos Eduardo da Costa Campos
expondo que o “[...] seu pai era Caio
(FGrH 90 F. 127.3). O resultado desse
Otávio, um homem de posição senatorial.
processo de formação atento começou a
Seus
pela
aparecer ainda na juventude de Otávio.
riqueza e justiça”(FGrH 90 F. 126.2).
Nicolau frisa que o mesmo foi ensinado
Quanto sua mãe Átia, sobrinha de Júlio
entre “[...] as melhores práticas e atividades
César, o mesmo ressalta em diversos
para a mente e o corpo, que integravam os
fragmentos seu papel atuante na formação
nobres e guerreiros [...] por essa razão
de Caio Otávio, assim como nas questões
também
políticas
Roma”(FGrH
antepassados,
referentes
conhecido
a
sua
família,
a
recebeu 90
muitos F.
elogios
127.3).
em
Nicolau
matrona
menciona que com doze anos de idade
romana (FGrH 90 F. 127.3; FGrH 90 F.
Otávio era um objeto de “[...] admiração
configurando
FGrH
como
legítima
o
entre os Romanos, assim exibindo com
falecimento de seu pai, ainda em sua
grande excelência a sua natureza, o jovem
infância, sua mãe veio a casar-se com
que ele era; pois ele proferiu um discurso
Lúcio Marcio Filipe. A relação de Otávio
diante de uma grande multidão e recebeu
com Filipe é expressa de forma respeitosa,
muitos aplausos de homens adultos”(FGrH
mediante o acolhimento que o marido de
90 F. 127.3). Com isso notamos que o
sua mãe efetua pelo enteado, como vemos
biógrafo de Damasco, começa a tecer em
materializado em Nicolau: “[...] na casa de
sua escrita uma trajetória política e social
Filipe, como na do seu pai, Otávio foi
de Otávio, por meio de sucesso e destaque
criado” (FGrH 90 F. 127.3). Dessa forma,
em
desde a mais tenra idade, Otávio se viu
demais cidadãos.
127.4;
90
F.
127.5).
Com
inserido no seio aristocrático romano,
Roma,
com
reconhecimento
dos
Nicolau de Damasco pontua que
assim circulando entre as gensjulia e
Júlio
marcia.
concedeu perdão a poucos dos cativos,
Quanto aos seus estudos Nicolau de
dos
César, quais
ao
havia
regressar vencido
a em
Roma, guerra.
Damasco ressalta que Átia e seu padrasto
Entretanto, Nicolau ressalta que entre os
Filipe cuidavam pessoalmente do ensino.
que
Afinal,
eles
estava o irmão de Marco Vespasiano
questionavam aos instrutores de seu filho
Agripa, o qual possuía relações sociais
o“[...] que ele tinha feito, até que ponto ele
com
tinha avançado, ou como ele tinha passado
educado no mesmo lugar e (Agripa) era um
o dia e com quem ele estava associado”
amigo muito especial e particular” do
para
Nicolau,
cada
dia
haviam
Otávio,
permanecido
afinal
“[...]
em
cárcere
tinham
sido
106
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
mesmo(FGrH 90 F. 127.7).
Caio Otávio
seu carro, depois de conferir a ele
através de amplo comedimento veio a
condecorações militares, o fazendo seu
interceder por Agripa, junto a Júlio César e
sucessor”(FGrH 90 F. 127.8). Nicolau
obteve uma resposta favorável, a qual
ressalta que Júlio César admirava a
libertou o irmão de Agripa. Desse modo,
sagacidade e concisão nas respostas que
podemos ver os laços de amicitia 16entre
Otávio possuía nas conversas com ele
Otávio e Agripa se acentuando, assim
(FGrH 90 F. 127.11). Otávio também foi
como a sua popularidade frente aos demais
descrito como o principal companheiro de
jovens cidadãos romanos devido a fides 17
Júlio César, tanto na guerra, como nos
deste com seus amigos, como Nicolau
teatros e nos banquetes (FGrH 90 F.
ressaltou em seus escritos (FGrH 90 F.
127.8). As redes sociais de Júlio César, no
127.7). Quanto a Agripa percebemos a sua
âmbito militar e social começavam a ver em
vinculação com Otávio, devido sua atuação
Otávio sua continuidade política. Elemento
frente as legiões, o tornando um dos
este que podemos verificar quando ocorre
principais
augustanos,
à morte de Júlio César e suas legiões
durante o período do principado, além de
declaram obediência e apoio a Caio Otávio.
associar-se familiarmente com seu amigo,
Logo,
por meio de seu casamento com Júlia, que
imperator, que era o mais alto dos cargos
era filha do princeps.
militares de acordo com os costumes
comandantes
a
concessão
da
titulatura
de
Retomando aos vínculos de Caio
romanos, o fez conhecido em Roma e alvo
Otávio com Júlio César, verificamos que o
de interesses sociais (FGrH 90 F. 127.8).
mesmo
na
Por reunir tantas qualidades pessoais,
Guerra Africana e ordenou que o jovem
Otávio passou a se configurar como
Otávio, “[...] a quem ele tinha como um
sucessor de Júlio César, vindo a ser
filho, por natureza, convocou para seguir o
cuidado pelo próprio, segundo Nicolau de
comemorou
seus
triunfos
Damasco (FGrH 90 F. 127.9). 16
Através de Marco Túlio Cícero compreendemos que a
Na Hispania, Otávio atuou como
amicitia éuma relação social humana, com ratificação
intermediador
perante
de
saguntinos a Júlio César. Os mesmos
generosidade, reciprocidade, aliança e afeição mútua
haviam apoiado a facção pompeiana e se
ao
sagrado,
assim
gerando
lações
duas pessoas ou mais (Sobre a Amizade, 4, 20).
das
apelações
dos
A fides emerge como a relação de fidelidade e lealdade
encontravam numa posição desvantajosa
entre os sujeitos que estabelecem um acordo e também
frente as conquistas cesarianas. Através de
como uma divindade que é responsável por tal ação
sua habilidade política e retórica, o mesmo
17
(CAMPOS, 2014, p.43).
107
Carlos Eduardo da Costa Campos
conseguiu a libertação e formulação de
das Virgens Vestais, apenas vindo a
uma rede social dossaguntinos, e destes
público com sua morte em 44 a.C.. Com a
para com César e consigo (CAMPOS,2004,
adoção de Caio Otávio, o mesmo passou a
p.138). Os saguntinos entoaram louvores a
assumir o nome de seu pai adotivo, assim
ele, chamando-o de seu salvador. A partir
chamando-se
de então Nicolau de Damasco, frisa que as
Otávio/Otaviano.
redes de Otávio foram se ampliando.
diante a política romana passou a vincular-
[...] pois diversas pessoas pediam o seu patrocínio, e ele se mostrou de grande valor para eles. Alguns aliviou das acusações feitas contra eles, para os outros, ele garantiu recompensas, e ele ainda
revelado nesses encontros eram assuntos de
Julio
Desse
César
momento
em
se a este aristocrata, que detinha como missão a vingança da morte de César e a restauração da ordem social em Roma.
colocou outras pessoas em cargos do Estado. Sua bondade, humanidade, e a prudência que ele havia
Caio
Quanto as outras virtudes de Caio Otávio, que foram capazes de o construir
observação a todos. Na verdade o próprio César
enquanto princeps do Império Romano,
cautelosamente o incentivava [lacuna] (FGrH 90 F.
podemos recolher diversos indícios nos
127.12).
O ponto alto da proximidade entre Júlio César e Caio Otávio se deu com seu processo de adoção. Nicolau de Damasco frisa que a ideia era latente em seu tio-avô, porém ele preferia deixar Caio Otávio ser criado de forma habitual a um patrício. Desse modo, César poderia evitar que seu sobrinho viesse a se corromper com a riqueza e o prestígio em demasia. Contudo, Júlio César teceu um plano de esconder sua intenção, adotando-o como filho em seu testamento (pois ele não tinha filhos homens) e o fez “[...] legatário residual de
todos os seus bens, depois de legar um quarto de sua propriedade para os amigos e conterrâneos, como depois se conheceu” (FGrH 90 F. 128.13). O testamento de Júlio César foi entregue ao colégio sacerdotal
escritos de Nicolau de Damasco. Arnaldo Momigliano (1993, p.118) indica que a exposição das virtudes de um biografado é um
ponto
comum
nos
escritos
peripatéticos, como vemos em Nicolau de Damasco. O biógrafo inicia suas análises apontando Caio Otávio como detentor de
virtude e clemencia, para com os outros cidadãos.
A
qualificação
pessoal
e
comedimento político de Otávio o tornaram reconhecido pelos demais, como o mais apto
a
comandar.
Damasco,
isso
praticamente
era
“natural”
Para
Nicolau
uma “[...]
de
tendência
para
este
homem, que alcançou o poder e uma distinção proeminente, governando o maior número de pessoas dentro da memória humana”
(FGrH
90
F.
125.1).
Esse
processo foi capaz de ser realizado, pois
108
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Caio Otávio se valeu tanto do uso da força,
F.
129).
Para
como da palavra e de sua formação para
restauração dos valores sociais e da família
obter a autoridade perante aos demais,
romana, essa representação vai ressoar ao
como vemos Nicolau. Sua perspicácia é
seu
euforizada 18pelo escritor de Damasco, pois
expressa foi a modéstia. Para Nicolau,
somente através de seu preparo e sua
Otávio já desenvolvia uma característica
inteligência “[...] tanto na administração que
modesta desde a juventude e “[...] foi
ele exerceu em Roma, assim como na
evidente em suas ações, que a mesma
realização de grandes guerras locais e no
continuou durante toda a sua vida” (FGrH
exterior”, que foi possível a ele obter o
90 F. 128.13). A partir de Nicolau, notamos
sucesso como governante romano (FGrH
a modéstia como um elemento auxiliar na
90 F. 126.2).
habilidade de comandar por Caio Otávio.
favor.
a
futura
Outra
política
virtude
de
augustana
Quanto a sua sexualidade, o mesmo
Afinal a mesma não o deixava perder o
é representado 19de forma prudente, apesar
controle sobre o poder e a si, em prol da
de ser portador de uma acentuada beleza.
vaidade e da desmedida.
Dessa forma afastando-se de possíveis escândalos, que viessem a prejudicar sua
de
Damasco,
nos
fornece
indícios
vezes
históricos, os quais em consonância com
tentado por elas, ele parece nunca ter sido
outros documentos literários nos auxiliam a
seduzido”, de acordo Nicolau de Damasco
preencher lacunas sobre o contexto social,
(FGrH 90 F. 127.5). Nicolau complementa
no qual Caio Otávio estava inserido. Desse
que “[...] ele se absteve dos prazeres
modo, a biografia de Nicolau torna-se uma
sexuais em troca de respeito, tanto para a
chave
sua voz quanto para a sua força” (FGrH 90
construção histórica. Todavia, a utilização
trajetória.
Embora
“[...]
muitas
Sendo assim, a obra de Nicolau
vital
para
esse
processo
de
da biografia como documentação base 18
A partir de Algirdas Julien Greimas e Joseph Courtés, o
ato de euforizar consiste na valoração positiva de um sujeito ou objeto de interesse, por meio da exaltação no âmbito discursivo (GREIMAS; COURTÉS,1979, p. 170).
para a história, necessita de reflexões como faremos a seguir. Nossas
As representações são construções elaboradas acerca
aproximam,
em
de um sujeito, um grupo e/ou um objeto no intuito de
contribuição
de
19
interpretar/explicar as práticas desempenhadas em um
concepções
se
certa
medida,
da
Pierre
Bourdieu,
no
meio social. Todavia, as representações desenvolvidas
polêmico artigo denominado de Ilusão
em uma sociedade não são neutras e correspondem aos
Biográfica. Com essa perspectiva vemos
interesses dos grupos que as elaboraram(Ibidem, p. 382-
que o homem está inserido no meio social,
3).
109
Carlos Eduardo da Costa Campos
se relacionando com o mesmo a todo
Biografia,
momento através de sua formação e das
justificado
escolhas que realiza em sua trajetória de
metodológicas propostas pela historiografia
vida. Logo, Pierre Bourdieu ressalta que é
contemporânea estarem voltadas para a
uma ilusão pensar um sujeito como algo à
condição do homem em sociedade (2006,
parte da sociedade (2006, p.186-9). Nesta
p.168).
nos
estudos
pelo
fato
históricos das
é
questões
perspectiva, Arnaldo Momigliano (1993,
Para estudarmos Caio Otávio, que
p.6) enfatizou que a escrita biográfica é um
foi um cidadão participativo na dinâmica
instrumento essencial para a pesquisa
política romana, consideramos que as
histórica, pelo qual podemos abordar o
redes sociais que o mesmo desenvolveu e
meio
o
social,
assim
como
extrapolar
seu
contexto
histórico,
são
partes
possíveis limitações contidas no mesmo.
centrais
Giovanni
viés
pesquisa sobre o referido princeps. Assim
aproximado de Momigliano, evidencia que
ao recorrermos aos escritos biográficos,
a Biografia pode ser aplicada para se
verificamos que os mesmos fornecem
perceber a relação que um sujeito mantém
indícios preciosos sobre as práticas sociais,
com a sociedade, da mesma forma que os
políticas e culturais de um determinado
escritos biográficos podem ser entendidos
sujeito e grupo, situado em um período
enquanto
se
particular, as quais podem ampliar nossas
compreender como um biógrafo representa
possibilidades de analises. Ademais, uma
determinado meio social (2006, p.166-9).
pesquisa biográfica também possibilita-nos
Nesse bojo, verificamos que a Biografia
compreender a razão biográfica de seu
poderia auxiliar quanto ao desenvolvimento
biógrafo, no que tange ao seu objeto, como
de
análises
vimos no caso de Nicolau de Damasco e
historiográficas, partindo do individual, ou
sua euforização de Caio Otávio, em virtude
do micro, para se compreender parte das
de sua inserção na rede social do princeps
relações sociais e dos comportamentos dos
romano. Logo, autor e discurso tornam-se
homens em sociedade, em uma escala
chaves passíveis de historicização, no
macro.
processo de construção histórica.
Levi
uma
novas
Em
ao
seguir
possibilidade
conjecturas
suma
de
um
para
convergimos
com
para
a
elaboração
de
uma
Giovanni Levi, ao frisarmos que o uso da
110
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Referências: Documentação literária: Marco Túlio Cícero. Sobre a amizade.Tradução de João Teodoro d’Olim Marote. São Paulo: Nova Alexandria, 2006. Nicolau de Damasco. Nicolaus of Damascus’ life of Augustus – A historical commentary
embodying a translation. Tradução de Clayton Morris Hall. Massachusetts: Kessinger Legacy Reprints, 1923. _____.Nicolaus of Damascus: Life of Augustus. Tradução de Clayton Morris Hall,1923. Acessado
em:
20
de
julho
de
2014.
Disponível
em:
http://www.attalus.org/translate/nicolaus1.html POLYBIUS. Histories. Trad.: Evelyn S. Shuckburgh. Londres; Nova Iorque; Bloomington: Indiana University Press, 1962. Bibliografia: ASSMANN, Jan. Para Além da Voz, Para Além do Mito. In: Revista Humboldt, ano 45, 2003, p.5-9; ASSUMPÇÃO, Luis Filipe Bantim. As periodizações da Hélade – considerações acerca dos conceitos de Arcaico, Clássico e Helenístico. In: Nearco: revista eletrônica de
Antiguidade. Vol. I, Ano VI, nº 1, 2013, p.94 - 115. _____. Discurso e Representação sobre as práticas rituais dos esparciatas e dos seus basileus na Lacedemônia, do século V a.C.. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, UERJ, 2014. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética (A Teoria do Romance). São Paulo: Hucitec Editora, 2010. BELLEMORE, Jane. Nicolaus of Damascus – Life of Augustus. Bristol: Bristol Classical Press, 1984. BOURDIEU, Pierre. A Ilusão Biográfica. In: FERREIRA, Marieta; AMADO, Janaína (org.).
Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006. BRANDÃO, José Luis Lopes. Suetônio e os Césares – Teatro e Moralidade. Ed. CECH: Coimbra, 2009, p.17. BUSTAMANTE, Regina M. da Cunha. Práticas Culturais no Império Romano: Entre Unidade e a Diversidade. In: SILVA, Gilvan Ventura da & MENDES, Norma Musco (org.)
Repensando o Império Romano – Perspectiva Socioeconômica, Política e Cultural. Rio de Janeiro: Mauad: Vitória, Es:EDUFES, 2006, p.109-33.
111
Carlos Eduardo da Costa Campos
CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. A estrutura de atitudes e referências do imperialismo
romano em Sagunto (II a.C – I d.C.).Rio de Janeiro: UERJ/NEA, 2014. CHRIST, Alice. The Masculine Ideal of "the Race That Wears the Toga". In: Art Journal -
How Men Look: On the Masculine Ideal and the Body Beautiful, Vol. 56, N.02, Summer, 1997, p. 24-30. DELGADO, José Delgado. Sacerdocios y Sacerdotes de la Antiguedad Clásica. MadridEspaña: Ediciones del Orto, 2000. FLOWER, Harriet I. Roman Republic. Princeton: Princeton University Press, 2010. FOWLER, W. On the Toga Praetexta of Roman Children. In: The Classical Review, Vol. 10, No. 7, Oct., 1896, p. 317-9. GALINSKY, Karl. The Cambridge Companion to the age of Augustus. Cambridge – UK: Cambridge Univeristy Press, 2005. GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Ed. Cultrix, 1979. JOSÉ, Natália Frazão. A construção da imagem do imperador Augusto nas obras de Veléio
Patérculo, Plutarco e Suetônio. Dissertação de Mestrado em História – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2011. HALL, Clayton Morris. Preface. In: Nicolaus of Damascus’ life of Augustus – A historical
commentary embodying a translation. Massachusetts: Kessinger Legacy Reprints, 1923, p.1-2. HAMILTON, Nigel. Biography, a brief history. Harvard: University Press, 2007. HEKSTER, Olivier. The Roman Empire. In: BISPHAM, Edward; HARRISON, Thomas; SPARKES, Brian [ed]. The Edinburgh Companion to Ancient Greece and Rome. Edinburgh – UK: Edinburgh University Press, 2006, p.108-113. KASHER, Aryeh. King Herod: a persecuted perscutor – a case study in psychohistory and
psychobiography. Berlin: Walter de Gruyter GmbH & Co. KG,2007. KIBUUKA, Brian Gordon Lutalo. Políbio sobre Roma – Teorias Gregas na Descrição Polibiana da Constituição Mista de Roma. In: Philía – Jornal Informativo de História Antiga, Rio de Janeiro, Ano XIII, nº 39, Jul/Ago/Set., 2011, p.3-4. LEVI, Giovanni. Usos da Biografia. In: FERREIRA, Marieta; AMADO, Janaína (org.). Usos
e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006, p.167-82.
112
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
LEVILLAN, Philippe. Os protagonistas: da biografia. In: RÉMOND, Réne [ed.]. Por uma
história política. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ; Ed. FGV, 1996, p.141-84; LEWIS, Charlton T.; SHORT, Charles. A Latin Dictionary. Oxford: Clarendon Press, 1958. MADELÉNAT, Daniel. Labiographie. Paris: PUF – Littératures modernes,1984. MOMIGLIANO, Arnaldo. The Development of Greek Biography. London: Harvard University Press, 1993. NEVES, Guilherme Pereira das. História, Teoria e Variações. Rio de Janeiro: Ed. Contracapa, 2011. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, vol. 2, (3), 1989, p. 3-15. _____. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol.5, n° 10, 1992, p.200-12. REVEL, Jacques. História e Historiografia – Exercícios Críticos. Curitiba: Ed. UFPR, 2010. RICHARDSON, J. S. Augustan Rome – 44 BC. to AD 14. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2012. SCHMIDT, Benito Bisso. História e Biografia. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier Editora Ltda., 2012, p. 187-205. SHOTTER, David. The fall of the Roman Republic. London and New York: Routledge,1994; STADTER, Philip (Ed.). Plutarch and the Historical Tradition. London; New York: Routledge, 1992. STEIDLE, W. Sueton und die antike Biographie, München: Beck, 1963. VOUT, Caroline. The Myth of the Toga: Understanding the History of Roman Dress. In:
Greece & Rome, Second Series, Vol. 43, No. 2, oct., 1996, p. 204-22. YARROW, Liv Mariah. Historiography at the End of the Republic - Provincial Perspectives
on Roman Rule. New York: Oxford University Press, 2006.
113
UM ESTUDO DO ESPAÇO SAGRADO E DO ESPAÇO PROFANO EM DUAS CANTIGAS DE AMIGO Célia Santos da Rosa 1 Resumo: A nossa proposta de comunicação intitula-se Um estudo do espaço sagrado e do
espaço profano em duas cantigas de amigo objetiva investigar o espaço sagrado na poesia lírica trovadoresca galego-portuguesa, especificamente em cantigas de amigo. O estudo do espaço na literatura, especificamente na poesia, tem sido amplamente discutido em grupos de pesquisa acadêmicos. Na Idade Média, o espaço era organizado de forma hierárquica e ligado à realidade do homem, havendo lugares sagrados e lugares profanos, protegidos,
abertos
sem
defesa,
urbanos
e
rurais.
Na
poesia
trovadoresca,
especificamente, em cantigas de romaria e marinhas, o espaço sagrado liga-se à ideia do profano, unindo-se ao cenário como os prados, as fontes e as praias que contextualizam o ambiente, atuando sobre o “eu” e despertando o amor, ou a confissão do desejo. A peregrinação na Idade Média contribui grandemente para o estudo do espaço, considerando suas diversas causas: fé, promessas, esperança de cura, penitência, entre muitas outras. As cantigas de romaria retratam as cidades e os locais de romaria e peregrinação na Idade Média, ao apresentarem uma variedade de espaço frequentado pelos fieis na busca do sagrado e também do profano, quando a intenção eram os encontros pessoais e sentimentais. Palavras-chave: Cantigas de amigo; Espaço Sagrado; Espaço profano.
1
Universidade Estadual de Maringá.
114
Célia Santos da Rosa
Considerações Iniciais As
primeiras
manifestações
mágicos em rios e fontes são elementos
literárias da poesia lírica trovadoresca
relacionados aos ritos pagãos do amor.
galego-portuguesa, cantigas de amor e
Deste modo, a cantiga de amigo galego-
cantigas de amigo, na Península Ibérica,
portuguesa apresenta vestígios de uma
datam, provavelmente, dos fins do século
poesia tradicional muito antiga.
XII. As cantigas de amigo testemunham a existência
no
Noroeste
da
Península
A presença do espaço ocupa um lugar
de
destaque Júnior
composições.
Ibérica de um lirismo muito antigo. Lirismo
Abdalla
não importado, como os gêneros cultos
enfatizam que as paisagens naturais como
importados da Provença, essa modalidade
o riacho, a fonte (local dos encontros
lírica é considerada autóctone, própria da
amorosos ou de lavar os cabelos e as
terra. A jovem solteira é a protagonista
roupas), as praias (quando há referência às
destas composições. Ela anda pela ribeira
ondas do mar) e as árvores (os ramos
a cantar, a lavar roupa ou a dançar com as
floridos das avelaneiras, por exemplo)
amigas confidentes, sob os ramos floridos
contextualizam o ambiente e atuam sobre o
das avelaneiras. Com um discurso simples,
“eu” feminino, despertando o amor, ou a
apaixonado e emotivo, exprime os seus
confissão do desejo “é o ambiente com a
sentimentos, preocupações com o amigo
atuação animista integrando sentimentos e
(namorado) que partiu para a guerra,
objetos”
deixando-a saudosa e infeliz.
PASCHOALIN, 1994, p. 15).
Lemos (1990) registra que esse lirismo feminino tem suas raízes em uma
e
nas
Paschoalin
(ABDALLA
(1994)
JUNIOR;
Espaço na poesia O
espaço
é
uma
importante
antiquíssima tradição folclórica. Apresenta
categoria tanto na narrativa literária quanto
motivos muito simples e comuns a um
na poesia.
fundo universal da poesia primitiva, os
distinguem o espaço da narrativa e o
chamados “temas iniciais”, relativos às
espaço no texto poético, enquanto aquele
forças elementares da alma e da natureza,
tende a estar associado a referências
ou a certas situações tópicas, como o amor
internas ao plano ficcional, o espaço no
feliz e o amor doloroso, confidenciado à
texto poético pode eleger a própria palavra
natureza animada e cúmplice, ou a mãe ou
como um espaço, “o signo verbal não é
às amigas. A renovação da Primavera, a
apenas decodificado intelectualmente, mas
Santos e Oliveira (2001)
dança sob as árvores floridas, os banhos
115
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
também
sentido
em
sua
concretude”
(SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p.74).
Quando o poeta descreve ou recria o espaço, temos o espaço interiorizado. Os
O espaço pode se manifestar
componentes
da
num
realidade universo
física
se
poeticamente de diversas maneiras. De
integram
acordo com Moisés (1977), há no poema o
construído segundo leis próprias e uma
espaço referido ou a referencialidade da
verossimilhança
poesia no que se refere ao espaço exterior
metafórico que atravessa os objetos da
(o ar, a natureza, o firmamento, o cosmos
realidade
etc.); o espaço interior, isto é, o espaço
identidade que difere substancialmente da
construído ou evocado pelo poema; e o
que possuem na origem” (MOISÉS, 1977,
próprio poema como espacialização, ou
p.75).
interior,
física
específico, “o
processo
empresta-lhes
uma
seja, o poema como um espaço autônomo,
O autor explica ainda que o espaço
paralelo ao da natureza e do cosmos, “ou
não se determina. A referência ou a
como a sugestão de um espaço por meio
descrição da Natureza não localizam o
do corpo do poema, da sua materialidade”
fenômeno poético. A geografia não é chamada para determinar um
(MOISÉS, 1977, p.73). O relação
espaço a
é
objetos.
estabelecido A
em
referencialidade
poética se estrutura em relação aos objetos (físicos)
que
compõem
o
mundo
da
realidade fora do poema. Desta maneira temos no poema alusão à natureza, aos seres humanos, o cosmo etc. Moisés (1977) afirma que ao convocar para dentro de seu texto os componentes do espaço físico, o poeta determina que se inscrevam num espaço novo, o do poema. Na referencialidade, o poeta não descreve e não
recria
o
trecho
da
Natureza
mencionado no texto, a ausência aumenta a impressão de que presenciamos uma geografia referida.
espaço, mas para servir de ambiente à projeção do “eu”, que constitui a base do fenômeno poético: a geografia está em função do “eu”, atua como seu prolongamento
natural.
Desse
ângulo,
se
o
fenômeno poético percorre algum espaço, é o do “eu” (MOISÉS, 1977, p.76).
Podemos conceber o fenômeno poético como a geografia do “eu”. O fenômeno poético se manifesta como a descrição do “eu”, ou ainda, o esforço que realiza no encalço de apreender-se, por meio da descrição. Os dados da natureza e do cosmos são convocados para o poema, a fim de colaborar na tarefa que o “eu” executa no sentido de exprimir-se. Esses dados são colocados a serviço do “eu” que se descreve para revelar-se. A poesia se define como a arte da descrição, do subjetivo.
116
Célia Santos da Rosa
A criação do espaço no poema se manifesta
de
várias
maneiras.
primeiros textos poéticos portugueses não
A
fogem à regra: são letras de música e
espacialização pode se manifestar como
palavras modeladas sob um esquema
grafismo, solução tipográfica, ou ideograma
musical.
e, mesmo, poema figurado. Ou ainda na
Essa primitiva poesia escrita em
própria palavra, ou seja, o espaço no texto
língua galaico-portuguesa surge nos fins do
poético pode eleger a própria palavra como
século XII e prolonga-se até meados do
espaço. Moisés explica que
século XIV. Elas chegaram ao nosso
as palavras engendram o seu próprio espaço, são o espaço do fenômeno poético, não na linearidade gráfica, mas na circularidade que resulta de os vocabulários se organizarem conforme várias coordenadas, verticais e horizontais” (MOISÉS, 1977, p.79).
conhecimento, graças às coleções de poemas conhecidas como Cancioneiros. Desses, três merecem destaque: •
fins do século XIII, contendo 1310
As Cantigas de Amigo
cantigas, quase todas são cantigas
Lemos (1990) constata que em todas as literaturas a poesia é a primeira a surgir. A autora aponta alguns motivos. O
de amor. •
englobando trovadores dos reinados
obra literária na transmissão apoiando-se no poder de memorização, comunicação e até de encantamento que a poesia possui, devido a sua natureza essencialmente repetitiva, ritmos, sons, ideias, tudo de repete na poesia. Outro motivo é a tendência da alma primitiva, ao associar o às
formas
elementares
das
atividades (embalo das crianças, o trabalho do campo, do mar ou da casa); e as manifestações de sentimento nas diversas circunstâncias
da
vida,
festa,
guerra,
despedida, oração etc. Desta maneira, em todas as literaturas a poesia das origens é canto, palavra que se associa à música. Os
Cancioneiro da Biblioteca Nacional, com 1647 cantigas de todos os tipos,
primeiro deles é o caráter oral que tem a
canto
Cancioneiro da Ajuda, composto nos
de Afonso III e de D. Dinis. •
Cancioneiro da Vaticana, com 1205 cantigas dos gêneros lírico e satírico. Os Cancioneiros são uma amostra
incompleta e tardia, considerando que as cantigas já haviam sido compostas pelos trovadores,
embora
muitos
perderam-se
e,
disso,
além
textos havia
o
problema das difíceis condições de fixação do texto em cópia manuscrita, que não assegurava uma suficiente multiplicação dos originais.
Portanto, os Cancioneiros
não abrangem a totalidade dos poemas trovadorescos.
117
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
A cantiga de amigo nasceu na
meados do XIV. Derivado do Latim, o
comunidade rural, como complemento do
idioma surgiu progressivamente como uma
bailado e do canto coletivo dos ritos
língua distinta anteriormente ao século IX,
primaveris. Lopes e Saraiva (s/d) explicam
no Noroeste peninsular. Mais do que
que
das
designar uma língua, a expressão galego-
civilizações agrícolas em que a mulher
português nomeia concretamente uma fase
desfruta da maior importância social. Desta
dessa
maneira não é apenas na Península ou na
histórico conduzirá à diferenciação entre o
România, mas em povos tão distantes
galego e o português atuais.
este
fenômeno
é
próprio
evolução,
cujo
desenvolvimento
como o chinês – alguns séculos antes de
O período entre os séculos X e XIV
Cristo, compunham-se na China cantigas
constitui a época por excelência do galego-
de mulher – verificam-se vestígios, quer do
português. Porém, somente a partir de
paralelismo, quer da cantiga de mulher.
finais do século XII a língua falada se
Os cantares de amigo exprimem os
afirma
e
desenvolve-se
como
língua
pequenos dramas e as situações da vida
literária por excelência, num processo que
amorosa das moças, em que a vida do
se estende até cerca de 1350. Embora
campo
da
inclua manifestações em prosa, é na
natureza), a vida burguesa e o ambiente
poesia que alcança a sua mais notável
doméstico emolduram singelos quadros
expressão, composta por um conjunto de
sentimentais. A composição é realista,
trovadores ibéricos, num espaço geográfico
veiculando um sentimento espontâneo,
que não coincide exatamente com a área
natural e primitivo por parte da mulher. Seu
mais
caráter é mais narrativo e descritivo que a
efetivamente falada.
(com
todas
as
sugestões
restrita,
onde
a
língua
era
cantiga de amor. Caracterizam-se por uma
Retomando a cantiga de amigo, há
estrutura estrófica e rítmica que aproxima a
que se discutir a sua variedade de motivos,
poesia da música. Segundo Ferreira (s/d),
que permitiu classificá-las em subgêneros.
os
versificatórios
De acordo com Moisés (1986), as cantigas
(pausa, ritmo e rima) estão subordinados a
de amigo podem ser dispostas de acordo
um jogo de simetrias, em que predomina a
com
repetição como princípio estruturador.
circunstâncias
diversos
elementos
o
espaço em
geográfico que
e
decorrem
as os
De acordo com Lopes (2011), o
encontros amorosos. Justifica-se, assim,
galego-português era a língua falada na
nosso estudo sobre o espaço e suas
faixa ocidental da Península Ibérica até
variedades.
118
Célia Santos da Rosa
As
pastorelas
são
cantigas
vez que o homem é a condição para
importadas, cuja personagem central é a
existência do espaço, o contato entre
jovem e bela pastora que dialoga com o
elementos
cavaleiro que se dirige (ou retorna) a uma
transforma o mundo natural num espaço
romaria. O espaço é o campo, as flores e a
lírico
relva. As barcarolas ou marinhas são
portanto, subjetivo e reflete o nosso modo
cantigas que se referem ao mar ou ao rio,
de ver o mundo.
retratam a jovem que espera ansiosa
de
espacialmente convivência”.
Nas
cantigas
O
de
espaço
é,
amigo,
essa
está
bem
diante do mar e das ondas as notícias do
subjetividade
amigo ausente. As bailadas ou bailias são
demarcada,
exemplares que privilegiam a beleza das
interage com o eu-lírico e reflete o seu
árvores floridas para o canto e a dança
estado de espírito. Exerce um importante
entre
de
papel na expressão de sentimentos do eu-
descontração que também privilegia o
lírico. Gullón (1984) explica que se a
namoro. As cantigas de romaria referem-se
paisagem é um estado de ânimo, justifica-
às peregrinações e romarias nas cidades
se o que pensa a árvore ou a colina, sem a
de Santiago de Compostela, Lisboa, Faro,
sensação de quem as comtempla. Ou seja,
entre outras cidades localizadas na região
é a sensação do eu-lírico, ao perceber o
de Entre-Douro-e-Minho, ou ainda, as
espaço em que se encontra que deve ser
pequenas igrejas e seus adros, onde as
destacada. Exemplificamos com o texto do
jovens preferiam esperar as mães que
jogral
acendiam velas e rezavam, enquanto a
paisagem e o eu-lírico se interligam:
as
amigas,
momento
dança e o namoro ocorriam. Nas albas ou
alvas (também de gênero importado), o espaço é o dia claro, o amanhecer no campo
ou
no
interior
dos
castelos,
momento em que os amantes se separam para não serem descobertos. Cantigas de Amigo e sua relação com o espaço Libanori (2006, p.75) afirma que o ser humano não pode existir como um elemento apartado do seu espaço, “uma
do
distanciados
uma
galego
espaço vez
que
Mendinho,
o
no
cenário
qual
Sedia-m'eu na ermida de Sam Simeon e cercarom-mh as ondas, que grandes son! Eu atendend’ o meu amigo, eu atendend’ o meu amigo. Estava [eu] na ermida, ant'o altar [e] cercarom-mh as ondas grandes do mar! Eu atendend’ o meu amigo, eu atendend’ o meu amigo! E cercarom-hi as ondas, que grandes son! Non hei eu[ i] barqueiro nem remador! Eu atendend’ o meu amigo, eu atendend’ o meu amigo!
119
a
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo E cercarom-mi [as] ondas do alto mar; non hei eu [ i] barqueiro nen sei remar! Eu atendend’ o meu amigo,
concretize o estado de alma da moça ou defina o tema da cantiga.” O espaço sagrado é a capela
eu atendend’ o meu amigo! Non hei [eu] i barqueiro, nen remador [e] morrerei fremosa no mar maior!
localizada fora das povoações, à beira mar, em frente da cidade galega de Vigo. Trata-
Eu atendend’ o meu amigo,
se da ermida de São Simão, uma pequena
eu atendend’o meu amigo!
ilha do município de Redondela, próximo à
Non hei [i] barqueiro nen sei remar e morrerei fremosa no alto mar! Eu atendend’ o meu amigo, eu atendend’ o meu amigo! (MENDINHO – V. 438; B.852; C.852 apud LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel et al, 2011).
ponte de Rande. versos
A cena sugerida nos
apresenta-nos uma jovem que
espera por seu amado na ermida, quando é surpreendida pela maré cheia, e cercarom-
mh as ondas, que grandes son! E
Todo o texto é um monólogo em
cercarom-mi [as] ondas do alto mar. Há
que a própria protagonista nos descreve a
predominância dos fonemas nasais (m/n),
situação em que se encontra. O tema é a
que remetem ao barulho das ondas do mar
solidão que cresce, como uma marca que
e ao desespero da donzela, as ondas se
atormenta e aumenta sem trazer a barca
aproximam cada vez mais e ela não possui
nem o barqueiro para sair das ondas e da
barqueiro e não sabe remar: nen ei eu [i]
dor da saudade, sentimento característico
barqueiro,
português. De acordo com Ferreira (s/d),
barqueiro, nen sei remar!
esse sentimento se manifesta nas cantigas
nen
remador!/
nen
ei
[i]
A partir da estrofe de número 5
de amigo de forma autêntica e vivida,
começa
a
segunda
podendo mesmo considerar-se um tema
marcando
eminentemente nacional, pois reflete as
consequência da angústia crescente que
condições em que se formou a sociedade
desfigura
portuguesa na a reconquista cristã.
realidade: as ondas crescem juntamente
a o
parte
certeza cenário,
do da
ou
da
texto, morte, própria
Os versos do refrão repetidos ao
com o desespero da jovem e com a certeza
longo da cantiga, Eu atendend’ o meu
de as ondas afogarem-na. Confirmam os
amigo, eu atendend’ o meu amigo!, de
versos: e morrerei fremosa no mar maior!
acordo com Ferreira (s/d, p.18) “ acentuam
Porém,
a sugestão musical da cantiga (...) e
esperando o amigo, ideia reiterada nos
embora
versos do refrão.
portador
de
valor
imagístico
não
desiste
e
permanece
120
Célia Santos da Rosa
A
cantiga
a
A jovem se encontra totalmente a
natureza
mercê do amor, não tem amparo (sem
circundante e o estado de espírito da
remador, sem barqueiro). Não pode ser
protagonista. O encadeamento paralelístico
resgatada por ninguém, “Non hei [eu i]
do texto adapta-se ao desenvolvimento da
barqueiro nem remador”, nem mesmo
ideia e parece evocar o ir e vir crescente
consegue sair da situação sozinha, porque
das ondas do mar com a maré que
não sabe remar. O espaço atua como uma
aumenta, envolvendo a jovem enamorada,
extensão do eu-lírico, exteriorizando os
cuja saudade e solidão na espera tornam-
seus sentimentos, transmitindo as emoções
se obsessivas. A presença das ondas do
da protagonista totalmente entregue ao
mar que invadem o espaço é constante,
amor, às ondas do mar e à morte.
correspondência
entre
expressa a
predominando em todo o poema e em sua
Rosendahl (1996) define o espaço
estrutura através dos fonemas nasais
sagrado como “um campo de forças e de
(m/n), que remetem ao seu movimento e
valores que eleva o homem religioso acima
som, adquirindo uma simbologia. Chevalier
de si mesmo, que o transporta para um
(1986) explica que o mar simboliza o
meio distinto daquele no qual transcorre
mundo e o coração humano quando cedem
sua existência” (p.30). Na cantiga, o local
às paixões. Deste modo, na cantiga
de culto religioso foi transformado em lugar
estudada, as ondas representam o amor e
em que o amor é divinizado, deixando de
refletem o estado de alma angustiado e
ser profano. Maleval (1999) considera que
solitário do eu-lírico.
“através da pujança e da naturalidade
Retomando a questão do espaço,
erótica dos primórdios, do amor e da
Bachelard (2000) explica que ele pode ser
sexualidade encarados como sinônimos de
“percebido pela imaginação, não pode ser
júbilo, de vida, e mesmo de elevação a
o
à
planos superiores, anulam-se as noções de
mensuração e à reflexão do geômetra. É
pecado ou culpa com relação ao corpo e
um espaço vivido”(p.19). Nesse sentido, as
seus anseios” (p.45).
espaço
indiferente
entregue
ondas do mar não são apenas as que
A cantiga de Pero Vivães, jogral
levaram a donzela à morte, mas também
galego que revela profundo conhecimento
ocorreu um espaço vivido – os seus
da técnica provençal e fina sensibilidade
sentimentos que não foram indiferentes à
estética,
solidão e à saudade do amigo.
distinta entre espaço profano e espaço
apresenta
uma
divisão
bem
121
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
sagrado na cantiga pertencente ao ciclo afonsino:
filhas que saem de casa com intenções Pois nossas madres vam a Sam Simom de Val de Prados candeas queimar, nós, as meninhas, punhemos d'andar
distintas: as mães com a intenção religiosa de acender velas e fazer (ou pagar)
com nossas madres, e elas entom
promessas, “Pois nossas madres van a
queimem candeas por nós e por si,
San Simon / de Val de Prados candeas
e nós, meninhas, bailaremos i.
queimar” e as filhas com a intenção de
Nossos amigos todos lá irám
permanecer no adro da igreja para dançar
por nos veer e andaremos nós
e mostrar sua graciosidade e elegância no
bailand'ant'eles fremosas em cós; e nossas madres, pois que alá vam, queimem candeas por nós e por si.
vestir
para
andaremos
conquistar
nós/
o
amigo:
bailand’
ant’
e
eles,
fremosas [em] cós,/ e nossas madres, pois
e nós, meninhas, bailaremos i.
que alá van, queimem candeas por nós e
Nossos amigos irám por cousir como bailamos e podem veer
por si/ e nós, meninhas, bailaremos i.
bailar [i] moças de bom parecer;
Rosendahl (1996) explica que “o homem
e nossas madres, pois lá querem ir, queimem candeas por nós e por si,
religioso
tem
necessidade
de
se
e nós, meninhas, bailaremos i.
movimentar num espaço sagrado” (p. 31),
(VIVÃES, Pero – B. 735; V. 336; C. 735 apud
por isso, procura por estes espaços para
LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel et al, 2011).
Nesta
composição,
o
espaço
sagrado é a capela de San Simon de Val de Prados, localidade situada na região portuguesa de Trás-os-Montes ou em Espanha. Trata-se de uma cantiga de romaria (gênero tipicamente português), a partir de dois motivos distintos e fundamentais: o motivo
A cena é composta de mães e
religioso,
próximo
ou
distante,
sincero ou travesso, e o motivo da ausência do namorado, que tinha ido trabalhar com os mouros em defesa das terras (LAPA, 1973).
cultuar o divino. O local sagrado distinguese
do
profano,
“de
acordo
com
a
experiência religiosa há uma oposição entre o espaço sagrado e todo o resto que o cerca” (ROSENDAHL, 1996, p.30). Nas visitas aos templos e capelas, ou nas romarias, sempre acompanhadas das mães ou de parentes, as jovens adquiriam maior liberdade, lembrando que no período medieval, raramente tinham liberdade para sair de casa sozinhas e realizar
suas
conquistas
e
encontros
amorosos. De acordo com Cidade, “é quase
sempre
na
romaria,
junto
do
santuário, que a entrevista amorosa se
122
Célia Santos da Rosa
realiza, lá que as habilidades coreográficas,
Na cantiga em questão se revela,
os vestidos novos se exibem, para encanto
uma vez que as moças acompanham as
do amigo” (CIDADE, 1972, p. VII).
mães à capela de San Simon de Val de
Huizinga (2010) explica que o uso
Prados para dançar e encontrar os amigos
da igreja como local de encontros entre os
(namorados), oportunidade para exibir a
rapazes e as moças era muito comum na
beleza e a elegância no vestir na conquista
época medieval. Aliás, o motivo religioso
amorosa Nossos amigos iran por cousir /
não era o único que levava as pessoas a
como bailamos e podem veer / bailar [i]
procurarem os templos religiosos.
moças de bon parecer.
Ir à igreja era um elemento importante na vida social. As pessoas iam para ostentar o seu traje mais formoso, exibir seu status e notoriedade, e
Diferentemente da composição de Mendinho, a cantiga de Pero Vivães
competir pelas formas cortesãs e das boas
distingue o espaço profano do espaço
maneiras [...]. Se um jovem nobre entrava na
sagrado. Enquanto na cantiga de Medinho
igreja,
a
donzela,
mesmo
com
o
padre
consagrando a hóstia e o povo rezando, levantava-
o espaço sagrado é a ermida de San
se e o beijava na boca. Parece que era muito
Simon, na composição de Pero Vivães, as
comum conversar e passear dentro da igreja
mães se dirigem ao espaço sagrado (ao
enquanto a missa era celebrada. O uso da igreja como local de encontros os jovens e as moças era
santuário) para acender velas e as moças
tão comum que somente os moralistas ainda se
permanecem no adro do santuário (espaço
incomodavam com aquilo Os jovens raramente vão
profano), lembrando que o termo “profano”
à igreja, exclama Nicolas de Clémanges, que não seja para ver as mulheres que ali estão para exibir seus penteados elaborados e decotes generosos
vem do latim, pro (antes) e fanum (templo), e significa originalmente “fora do templo”.
(HUIZINGA, 2010, p. 262).
Considerações finais
Nesse sentido, a simples ida à igreja, ou às peregrinações justificava todo tipo de diversão e, sobretudo, os assuntos amorosos.
As
pessoas
realizavam
peregrinações até santuários distantes não apenas
para
pagar
promessas,
mas
também para ir ao encontro da liberdade. Huizinga
(2010)
constata
que
a
peregrinação na literatura, muitas vezes, foi retratada como simples viagem do prazer.
Nas cantigas de amigo, o cenário participa das alegrias, tristezas e ansiedade da jovem. As paisagens como as fontes, as praias,
as
ambiente,
árvores atuando
contextualizam sobre
o
o
“eu”,
despertando o amor, ou a confissão do desejo. As avelaneiras floridas, as ondas do mar, os pássaros refletem o estado da moça, se está feliz, triste ou com saudades de seu namorado. Sentimentos e paisagem estão interligados nas cantigas de amigo.
123
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
O eu é o espaço no poema. A poesia é a arte da descrição do eu. Os
presentes no poema para auxiliar a tarefa do eu exprimir-se, revelar-se.
dados da natureza, do mundo estão
Referências: ABDALLA JUNIOR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História social da literatura
portuguesa. São Paulo: Ática, 1994. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BORGES FILHO, Ozíris. Espaço e literatura: introdução à topoanálise. São Paulo: Ribeirão Gráfica e Editora, 2007. CIDADE, Hernani. Poesia medieval - cantigas de amigo. Lisboa: Serra Nova, 1972. CHEVALIER, Jean. Diccionario de los símbolos. Barcelona: Editorial Herder, 1986. FERREIRA, Maria Ema Tarracha. Poesia e Prosa Medievais. Lisboa: Ulisseia, s/d. GULLÓN, Ricardo. La novela lírica. Madrid: Cátedra, 1984. HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. São Paulo: Cosacnaify, 2010. LAPA, Manuel Rodrigues. Lições de Literatura Portuguesa – Época Medieval. Coimbra: Coimbra Editora, 1973. LEMOS, Esther de. A literatura medieval. A poesia. In: História e antologia da literatura
portuguesa séculos XIII e XIV. Lisboa: Gulbenkian, p. 39-50, 1990. LIBANORI, Evely Vânia. A construção do espaço em Pedro Páramo de Juan Rulfo e Ópera
dos mortos de Autran Dourado. Tese de doutorado. Universidade Estadual Paulista. São Paulo, 2006. LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel Pedro et al. Cantigas Medievais Galego
Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA, 2011. [Consulta em 07 de fevereiro de 2014]. Disponível em: <http://cantigas.fcsh.unl.pt>. LOPES, Óscar; SARAIVA, Antonio José. História da literatura portuguesa. Lisboa: Porto Editora, s/d. MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Peregrinação e poesia. Rio de Janeiro: Editora Ágora da Ilha, 1999. MOISÉS, Massaud. A criação poética. São Paulo: Melhoramentos, Ed. da Universidade de São Paulo, 1977.
124
Célia Santos da Rosa
_______. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1986. ROSENDAHL, Zeny. Espaço e religião – uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro: UERJ, NEPEC, 1996. SANTOS, Luis Alberto Brandão; OLIVEIRA, Silvana Pessôa de. Sujeito, tempo e espaço
ficcionais: introdução à teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
125
A Reconquista da Hispânia: mito gótico e guerra santa César Augusto da Silva Foga 1 Resumo: A Reconquista da Hispânia (711|722-1492) é um dos temas mais debatidos pela historiografia medieval. A princípio esta comunicação pretende apresentar em linhas gerais duas possíveis interpretações sobre essa guerra: a primeira interpretação destaca a importância do mito gótico (recuperação do reino Visigodo) e a segunda irá tratar sobre a relevância do mito de Santiago durante a Reconquista. Portanto, a partir da leitura de algumas fontes e de uma bibliografia pertinente ao tema buscaremos demonstrar que a motivação dos cristãos na guerra de Reconquista pode ser compreendida a principio como uma tentativa de recuperação da herança visigoda, no entanto, no decorrer do século XI o mito de Santiago desempenharia uma função fundamental. Assim, segundo alguns historiadores a suposta presença dos restos mortais de Santiago na região da Hispânia foi fundamental para o desenvolvimento da guerra, pois muitos cristãos que combatiam naquela região acreditavam estar expulsando os infiéis (mouros) das terras do apóstolo, essa questão fica evidente ao realizarmos a leitura crítica de algumas fontes produzidas no início do século XII (contexto das Cruzadas). A metodologia utilizada é a chamada Análise Crítica do Discurso. Por fim, esperamos ao final da apresentação demonstrar que a Reconquista da Hispânia foi também um dos fatores que permitiram/auxiliaram a propagação do mito de Santiago na Cristandade medieval. Palavras-chave: Reconquista da Hispânia; guerra santa; historiografia.
1
(NEAM) UNESP/Assis
126
César Augusto da Silva Foga No ano de 711 um exército muçulmano invadiu a península Ibérica e a conquistou; em 1492, os reis católicos de Aragão e Castela conquistaram Granada,
o
último
“Estado”
muçulmano
independente da península; e entre essas duas datas, o poder político foi passando lentamente das mãos muçulmanas para as mãos cristãs. Esse
importante para tal empreendimento e, sobretudo, apontar a relevância do mito de Santiago para o desenvolvimento dessa guerra entre cristãos e mouros. Todavia, antes de adentrarmos na
processo normalmente é chamado de Reconquista
discussão aqui proposta, é importante
(...) (LOMAX, 1984, p. 9).
discutirmos a complexidade que envolve o
Com essas palavras o hispanista Derek Lomax nos apresenta uma síntese factual daquilo que a historiografia concebe por
Reconquista
da
Hispânia.
próprio termo/conceito de Reconquista que carrega consigo exaltações e preconceitos.
Assim,
Dentre as várias questões importantes que afetam
durante cerca de oito séculos, a palavra
a Idade Média peninsular em seu conjunto, nenhuma é mais debatida que o conceito e o
“Espanha” esteve essencialmente ligada a essa
tão
singular
ação
que
foi
significado da Reconquista. O próprio termo
a
utilizado desde o século XIX pelos historiadores espanhóis
Reconquista (MARAVALL, 1981, p. 249). significa
para
os
medievais sem esclarecer essa conexão nela se desenvolveu e que postulou como sua própria meta (MARAVALL, 1981, p. 249). Portanto, a partir das palavras de Jose Antonio Maravall seria impossível compreender a Idade Média Ibérica, sem levarmos em consideração esse fenômeno tão crucial que foi a Reconquista. Nosso circunscreve
objetivo em
explanar
aqui
se
acerca
das
motivações dos cristãos hispânicos que estão
relacionados
desenvolvimento
da
à
origem
e
Reconquista.
ao Em
outras palavras, discorrer sobre até que ponto a herança gótica (visigodos) foi
problemas
acabou
correr rios de tinta. (JIMENEZ, 2003, p. 133).
cristãos
entre “Espanha” e a empresa histórica que
maiores
convertendo-se num assunto polêmico que há feito
Logo, não é possível entender o que a “Espanha”
sem
Dessa maneira, há aqueles que exaltam a Reconquista como um momento chave da história da Espanha e outros que a
consideram
como
uma
exaltação
“nacionalista” de uma historiografia que busca resgatar um passado glorioso de uma nação em decadência. Manuel González Jiménez citando a obra de José Antonio Maravall versa o seguinte, (...) a definição de Maravall sobre a Reconquista, a considera
como
reestabelecimento,
uma
recuperação,
restauração
do
senhorio
político dos cristãos sobre a península, ainda afirma que se trata de um mito onde o que interessa
averiguar
não
é
como
os
feitos
ocorreram na realidade, mas sim, como se foi
127
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo constituindo um sistema de crenças. (JIMENEZ, 2003, p. 142).
Segundo
Derek
Lomax
a
Reconquista foi um ideal criado pelos cristãos
hispânicos
após
a
conquista
muçulmana (LOMAX, 1984, p. 10). Dessa forma, partir das palavras de Maravall e do próprio Lomax percebe-se que a ideia de Reconquista foi concebida e desenvolvida pelos cristãos nos anos posteriores a invasão muçulmana. Assim,
segundo
a
nossa
concepção, para compreendermos como se deu tal processo devemos nos ater à dois elementos fulcrais que já foram citados por nós, e que serão desenvolvidos nas próximas
páginas:
(recuperação
da
o
mito
herança
gótico
visigoda)
e
também ao desenvolvimento do conceito de guerra santa na Hispânia, essa última então sustentada na crença dos cristãos que a Hispânia seria uma terra sagrada devido
a
presença
das
relíquias
do
apóstolo Tiago naquela região. Aliás, devemos lembrar que a conquista muçulmana da península se deu de maneira repentina, isto é, praticamente não houve resistência à invasão. Isso pode ser explicado em decorrência da crise interna pela qual passava o reino Visigodo em seus últimos momentos de existência, especialmente, no que concerne à questão da
sucessão
monárquica,
o
que
posteriormente ajudaria alimentar a lenda de que a perda da Hispânia para os muçulmanos foi uma consequência do pecado do povo godo. Pois, segundo essa crença os godos não haviam respeitado os preceitos divinos assim como as decisões dos concílios e, dessa maneira, a invasão seria fruto do julgamento divino (JAYO, 2001, p. 29). Outro
aspecto
que
deve
ser
considerado é que as próprias minorias do reino Visigodo auxiliaram os muçulmanos na conquista, conforme afirma Andrade Filho,
(...)
sofrendo,
uma
dominação
demasiadamente opressiva, não hesitaram em prestar sua colaboração aos invasores, diante da possibilidade de um regime brando (ANDRADE FILHO, 1994, p. 15). No que diz respeito ao chamado mito gótico, ou neogoticismo, devemos voltar nossas atenções para a Alta Idade Média hispânica, mais especificamente para a formação do reino de Astúrias. Nos anos posteriores a instalação dos árabes e berberes
na
península;
na
região
cantábrica, teve lugar a articulação das primeiras resistências armadas ao poder sarraceno e ocorreu a formação do reino de Astúrias (MARAVALL, 1981, p. 22). As origens da Reconquista que tem lugar numa região
da
Espanha
características
também
bem
concreta
definidas
e
tem
de sido
estudada através de diferentes pontos de vista, mas em geral, se tem prestado pouca atenção em
128
César Augusto da Silva Foga explicar as peculiaridades históricas dos territórios onde nasceram os primeiros “Estados” cristãos. (BARBERO & VIGIL, 1988, p. 13).
Abílio Barbero e Marcelo Vigil ao apontarem essa problemática afirmam que é importante compreendermos a trajetória histórica da região norte da Hispânia entre o final do Império Romano do Ocidente (século V) e a invasão muçulmana da península Ibérica (BARBERO & VIGIL, 1988, p. 13). No entanto, nossa proposta por ora, é apenas discutir a formação do reino cristão de Astúrias após a invasão muçulmana e buscar apontar a partir de sua formação e desenvolvimento quais eram as heranças visigóticas ali presentes, isto é, se podemos então considerar a Reconquista como a restauração de um domínio legítimo (MARAVALL, 1981, p. 254), domínio esse que seria o reino Visigodo. Conforme
já
tratado
após
a
conquista muçulmana (início do século VIII) muitos cristãos se refugiaram no norte da península onde então se formaram os chamados núcleos de resistência. Esses núcleos de resistência foram formados pelos refugiados (em parte a própria elite visigoda)
e
também
autóctone
que
já
pela
vivia
na
população região
–
população essa que já habitava o norte da península e que resistia não apenas à invasão muçulmana, mas, também não se
submeteram
ao
Império
Romano
e
tampouco ao reino Visigodo. Aos poucos, durante o próprio século VIII, estas comunidades, agora formadas pelos
montanheses e pelos
cristãos vindos da parte invadida da Península foram se aglutinando em torno de novos núcleos políticos (VEREZA, 1998, pp. 17-18). E, com o decorrer do tempo ocorreu
entre
esses
povos
uma
apropriação da herança visigótica, servindo inclusive de motivação e apoio ideológico para a reconquista territorial (VEREZA, 1998, p.18). O primeiro relato de origem cristã (moçárabe) que faz menção a queda do reino
Visigodo
seria
elaborado
três
décadas após a invasão muçulmana, o texto é conhecido como Anônimo de
Córdoba. (JAYO, 2001, p. 21). Porém, a crônica em discussão não faz referência a criação do reino de Astúrias (NOGUEIRA, 2001, p. 279). O cronista descreve uma Espanha arrasada, com todas as cidades, inclusive Toledo e Zaragoza, devastadas, incendiadas
e
despovoadas,
seus
habitantes mortos ou prisioneiros (...). (JAYO, 2001, p. 21). Segundo
Carlos
Roberto
Figueiredo Nogueira esse silêncio dos relatos escritos sobre a queda do reino Visigodo perante os muçulmanos pode ser um sinal de que,
129
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo Ao
contrário
das
invasões
bárbaras
que
provocaram um grande número de lamentações, pela perda do Império nas mãos bárbaras, parece
invasão muçulmana.
que ninguém lamentou o fim do Reino visigótico.
Nesse contexto também foi criado
Sinal aparente claro, de que não havia uma perda
o mito de Pelayo, o primeiro herói da
a ser carpida (NOGUEIRA, 2001, p. 278).
A ideia de recuperação do reino Visigodo
passou
a
ser
fomentada
principalmente após a consolidação do reino de Astúrias sob o comando de Alfonso
III
é
então
quando
algumas
crônicas elaboradas no norte da península faziam referência a “perda da Espanha”, dentre essas crônicas podemos destacar a
Chronica Visegothorum. Segundo Graciela Mérida de Jayo a referida crônica centra sua
ocorrido por volta do ano 720, logo após a
atenção
considerando-os
nos
reis
como
asturianos
herdeiros
da
monarquia visigótica (JAYO, 2001, p. 30). Portanto,
segundo
a
mesma
autora
podemos considerar que no século IX já havia no norte da Hispânia a crença de “perda da Espanha” e com isso a ideia de Reconquista passou a ser concebida. a
monarquia
asturiana
deixam margem para duvidar que se trata de um aristocrata ou nobre godo, ou um chefe dos astures (JAYO, 2001, p. 38). O mito de Pelayo assim como o da batalha de Covadonga serão utilizados ao longo da Reconquista pelos monarcas cristãos, por exemplo, no século XIII ao elaborar a
Primera Crónica General de España, Alfonso X, o Sábio discorre sobra a figura de Pelayo. Alfonso X, o Sábio – preocupado em manter o vínculo histórico que liga sua geração aos heróis do passado, que deram início ao processo de Reconquista – resgata na Primera Crónica General de España, as narrativas que fazem referência tanto à conquista realizada pelos muçulmanos
está
consolidada e passa a formar alianças com a Igreja que tem início a elaboração de uma série de lendas que buscam legitimar a Reconquista, dentre essas lendas está a batalha de Covadonga e de Pelayo. Segundo a crença vigente na época, Covadonga, havia sido a primeira vitória dos cristãos contra os muçulmanos teria
como
aos
inícios
da
Reconquista
desenvolvida a partir de três núcleos de resistência formados por astures, cântabros e vascones, com os godos que fugiram em consequência do avanço muçulmano.
É então a partir do século IX quando
Reconquista, as Crônicas do século IX
Segundo
a
Crônica
inicia-se
a
Reconquista em torno do godo Pelayo (718-725) o primeiro rei de Astúrias (RUI, 1996, p. 30).
Segundo a crença Pelayo havia sido perseguido pelo rei Visigodo Witiza e se refugiado em Astúrias onde mais tarde se rebelaria contra a ocupação muçulmana e fora o primeiro líder responsável pela libertação
dos
cristãos
hispânicos
(NOGUEIRA, 2001, p. 282). Portanto,
a
suposta
lenda
considera o reino de Astúrias como uma
130
César Augusto da Silva Foga
“continuação” do reino Visigodo e também os responsáveis pelos primeiros atos da
as
Somando-se
palavras
de
Reconquista seriam os próprios visigodos
Adaílson José Rui a concepção de guerra
ou os herdeiros diretos destes. Entretanto,
santa na Hispânia se desenvolveu devido a
é importante lembrarmos que estamos
ação dos monarcas cristãos e da Igreja o
tratando de um discurso elaborado no
que explica em parte, o interesse de ambos
“calor da Reconquista”, mas a partir da
em promover o mito de Santiago.
elaboração dos mesmos percebemos que o
No que diz respeito à Cristandade
mito gótico teve grande relevância para os
ocidental como um todo, podemos afirmar
cristãos.
que o conceito de guerra santa surgiu a
Portanto, no que refere-se ao mito
partir do século XI, especialmente, após o
gótico constatamos que por mais que a
apelo do papa Urbano II aos cristãos no
perda
ano de 1095, quando então este pregou as
do
reino
Visigodo
para
os
muçulmanos a principio não tenha causado
Cruzadas.
tanta
historiadores na prática a noção de guerra
consternação,
ao
longo
da
Reconquista esse passado foi retomado buscando, assim legitimar a Reconquista, quer dizer, oferecendo um sentido prático à mesma, sentido esse que seria recuperar o
para
alguns
santa já existia. A noção de guerra santa é antiga, se não entre os teóricos, pelo menos na sensibilidade e no pensamento comuns. As guerras de Carlos Magno contra
os
mouros
e
saxões
já
comportam
características de guerra santa: os guerreiros são
reino Visigodo. Outro
Todavia,
mito
legitimador
da
Reconquista foi o de Santiago e a partir da
persuadidos a combater em favor de Deus, a defender ou ampliar seu reino (ROUSSET, 1980, p. 24).
gestação desse mito a referida guerra
Para ilustrarmos a afirmação do
passaria ser concebida também como
historiador Paul Rousset, podemos utilizar
guerra santa.
como exemplo as campanhas de Carlos
O encontro do sepulcro contendo o corpo do apóstolo São Tiago em Compostela, reino de Galícia provavelmente na terceira década do
Magno na Hispânia que posteriormente seriam utilizadas como exemplo de guerra
século IX, foi um fator que muito contribuiu para
santa, principalmente durante as Cruzadas.
fortalecer a maior parte do norte da Península
O Pseudo-Turpin faz alusão a essas
Ibérica,
encorajando
moralmente
as
forças
militares e os cristãos em geral que viam na
campanhas e inclusive relata a aparição do
presença do corpo de São Tiago o sinal de que
apóstolo
Deus havia enviado seu servo para defendê-los
solicitando ao mesmo para libertar suas
contra o inimigo o infiel muçulmano (RUI, 1996, p. 38).
Tiago
ao
Imperador
cristão,
terras.
131
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo Quem és, senhor? “Eu sou, respondeu São Tiago Apóstolo, discípulo de Cristo, filho de Zebedeu, irmão de João Evangelista, a quem com sua
lados geralmente) de combater por uma causa
justa.
(FLORI,
2005,
p.
92).
inefável graça o Senhor se designou eleger, junto
Pensando no caso da Hispânia, um dos
ao mar da Galileia, para pregar aos povos; a quem
objetivos da guerra justa seria libertar as
o rei Herodes matou com a espada, e cujo corpo descansa ignorado na Galiza, que se encontra
terras do apóstolo Tiago.
vergonhosamente oprimida pelos sarracenos. Por
Outro elemento que devemos nos
isso muito me admiro que não hajas livrado dos
ater ao discorrermos sobre o conceito de
sarracenos minha terra, tu, que tantas cidades e terras tens conquistado. Pelo que te faço saber
guerra
santa,
é
o
surgimento
e
que, assim que como o Senhor te fez o mais
desenvolvimento da cavalaria. Um tema
poderoso dos reis da terra, igualmente te elegeu
discutido com veemência pela historiografia
entre todos para preparar meu caminho e livrar minha terra das mãos dos muçulmanos (...). (LIBER SANCTI JACOBI, 1998, p. 73).
O
relato
descrito
acima
foi
medieval, e que tem entre seus principais teóricos Jean Flori, Georges Duby e Dominique Barthélemy.
elaborado por volta do século XII, isto é,
Os historiadores supracitados nos
contexto das Cruzadas, do avanço dos
apresentam uma série de interpretações
reinos cristãos na Hispânia e apogeu das
sobre a origem da cavalaria, talvez a mais
peregrinações a Santiago de Compostela,
importante esteja relacionada à questão
logo, a elaboração de tal relato possui uma
etimológica,
série de intenções, dentre essas, em
argumentação ao discorrerem sobra a
promover o conceito de guerra santa na
origem da cavalaria no Ocidente medieval
Cristandade. Ademais, a partir do mesmo
a utilização da palavra miles, quando esta
excerto podemos perceber a importante
havia surgido nos documentos escritos.
onde,
utilizam
como
participação dos francos na Reconquista,
Segundo a abordagem de Jean
onde então segundo o Pseudo-Turpin,
Flori a cavalaria surgiu por volta do ano
Carlos Magno seria o primeiro responsável
1000.
em libertar a Hispânia do jugo mouro.
fusão lenta e progressiva, na sociedade
Considero a cavalaria resultante da
Ao tratarmos da noção de guerra
aristocrática e guerreira que se implanta
santa, Jean Flori, versa que uma das
entre o fim do século X e o fim do XI, de
características
na
muitos elementos de ordem política, militar,
seguinte questão; A presença no campo de
cultural, religiosa, política e ideológica
batalha das relíquias dos santos e seus
(FLORI, 2005, p. 12).
principais
consiste
estandartes testemunha no mesmo sentido a certeza que têm os cavaleiros (dos dois
Georges Duby pesquisando uma documentação
referente
à
região
132
do
César Augusto da Silva Foga
Mâconnais quando elaborava uma de suas
por meio das armas (FRANCO JÚNIOR,
obras, afirma que a palavra miles surge nas
2006, p. 89).
atas por volta de 970 (DUBY, 1989, p. 24).
A relevância em apontarmos o
Porém, o mesmo ainda afirma que nessa
surgimento da cavalaria como um dos
época não podemos dar uma conotação
elementos
militar ao termo (DUBY, 1989, p. 29), que
refere-se à guerra santa é em função da
segundo o autor será apenas por volta do
aproximação que haverá entre essa ordem
século XIII que a cavalaria irá constituir um
(cavalaria) e o clero, quando por exemplo,
corpo muito bem delimitado (DUBY, 1989,
o
p. 23), mas, que ao final do século XI as
servindo à Igreja por meio das armas
atas jurídicas já tratam a cavalaria como
(CARDINI, 1989, p. 60). Ademais, as
um grupo coerente.
batalhas em sí eram marcadas por todo um
Dominique
Barthélemy
situa
a
cavaleiro
determinantes
poderia
ser
naquilo
tornar
que
santo
ritual religioso; As batalhas são todas
origem da cavalaria entre os séculos XI e
precedidas
XII, segundo o mesmo nessa época
esmolas, jejuns, penitências, orações e
ocorreu aquilo que ele denomina por
invocações que suplicam a ajuda de santos
“mutação
(BARTHELEMY,
(FLORI, 2005, p. 92). Além do quê, a
2010, p. 17), no entanto, Barthélemy ainda
cavalaria desempenhou uma importante
busca resgatar as raízes da cavalaria
função na Reconquista, muitas vezes até
medieval na Germânia Antiga.
simbólica, caso do El Cid.
cavaleiresca”
por
procissões,
confissões,
Portanto, a partir das ideias dos
Assim, várias lendas elaboradas a
referidos autores (Flori, Duby e Barthélemy)
partir do século XI enaltecendo os valores
brevemente
podemos
da cavalaria ajudaram a alimentar a noção
concluir que a cavalaria surgiu no Ocidente
de guerra santa na Cristandade. Podemos
medieval entre os séculos X e XIII, contudo
citar como exemplo, a Chanson de Roland.
podemos ser
mais específicos e situar
Segundo essa famosa canção de gesta,
essa periodização no início do século XI,
Rolando (sobrinho de Carlos Magno) fora
quando então a partir de um documento
morto por volta do final do século VIII numa
conhecido por “Sociedade Tripartida”, o
incursão que objetivava libertar a Hispânia.
autor (bispo, Aldaberon de Laon) situa o
Portanto,
papel dos guerreiros (cavalaria) dentro da
defendendo a fé cristã contra àqueles que
sociedade cristã, àqueles que teriam a
eram considerados os infiéis.
incumbência de proteger a sociedade cristã
Cardini ao tratar sobre a relação entre o
aqui
expostas,
Rolando
havia
morrido Franco
133
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
mito de Rolando e a cavalaria, aponta que,
Santiago
seria
um
poderoso
apoio
A cavalaria nasceu morta: logo que nasceu,
espiritual para a Reconquista (JAYO, 2003,
chorou diante do corpo inanimado de
p. 73).
Rolando, caído em Roncesvales. E chorou
Santiago que a principio seria apenas
por um herói caído há muito tempo, se
um apoio espiritual aos cristãos hispânicos
pensar que o Rolando histórico viveu no
que lutavam contra os muçulmanos foi
século VIII e que as chansons datam do
adquirindo
século XI (CARDINI, 1989, p. 78).
presença nas batalhas tornou-se recorrente
É importante reiterarmos que essas
novas
características,
sua
e Tiago o apóstolo outrora evangelizador
lendas passaram a ser elaboradas num
da
contexto histórico específico, que foi o do
característica, a de cavaleiro, o Santiago
século
Matamoros (CASTRO, 1982, p. 259).
XI,
acompanhando
então
a
gestação do conceito de guerra santa na
Hispânia,
adquire
uma
nova
Essa discussão acerca da passagem
Cristandade e também coincidindo com
do
uma fase vigorosa de expansão dessa
cavaleiro, já foi debatida exaustivamente
Cristandade contra o Islão. Dessa forma,
pela historiografia espanhola, sobretudo,
podemos conceber a cavalaria como uma
por Américo Castro e Cláudio Sanchez
das consequências da guerra santa ou esta
Albornoz. Contudo, apresentaremos de
só foi possível com o desenvolvimento da
forma sucinta a opinião de ambos os
primeira?
historiadores no que diz respeito à hipótese
Acreditamos
que
ambas
se
desenvolveram de forma concomitante. Em meio a essa imagem do cavaleiro cristão como herói que defendia a fé cristã,
Santiago
evangelizador
para
o
desenvolvida por nós no presente trabalho (relação entre o mito de Santiago e a Reconquista da Hispânia).
muitos francos irão dirigir-se para a região
Segundo Américo Castro, a difusão
da Hispânia, motivados pelo ideal de
do mito de Santiago está vinculado aos
guerra
santa,
interesses econômicos e políticos dos
novas
oportunidades
mas
também
buscando Assim,
soberanos cristãos, esses que segundo
doravante, voltaremos nossa atenção para
Castro utilizaram o fator religioso para
o caso da Hispânia especificamente.
fortalecer os seus exércitos na luta contra
materiais.
Conforme citado acima, o encontro
os muçulmanos (RUI, 1996, p. 41). Afirma
das supostas relíquias de Santiago na
Castro, (...) se não tivesse sido a Espanha
região da Galiza serviu de estímulo para os
submetida ao Islã, o culto de São Tiago
cristãos na guerra contra os mouros, assim
não teria prosperado (CASTRO, 1982, p.
134
César Augusto da Silva Foga
260). Logo, Américo Castro, relaciona o
vez que, no início do século VIII, não havia
mito
a noção de guerra santa na Cristandade e
de
Santiago
como
sendo
uma
consequência da ocupação muçulmana.
tampouco a de cavalaria, logo, Santiago
Sánchez Albornoz assinala que
que a principio era apenas um protetor
Santiago é, fruto da religiosidade dos
espiritual daqueles cristãos refugiados ao
cristãos que em virtude das dificuldades da
norte da península Ibérica adquiriu uma
Reconquista
nova faceta, a de cavaleiro, acompanhando
concretizaram
pensamento
(SANCHEZ
um
ALBORNOZ,
1956, p. 260). Américo
então
a
transformação
medieval. Castro
e
Sánchez
Matamoros
Deste nada
da
modo, mais
sociedade
o é
Santiago que
uma
Albornoz com exceção feita às inúmeras
consequência da mutação na mentalidade
diferenças
uma
cristã entre os séculos XI e XII, quando a
posição em comum, conforme assinala o
noção de guerra santa e a cavalaria
historiador Adaílson José Rui, (...) ambos
começaram a se fazer presentes.
intelectuais
possuem
afirmam que o apóstolo é uma criação da Espanha (RUI, 1996, p. 43).
A partir da leitura das crônicas e hagiografias elaboradas na referida época,
Segundo nossos conhecimentos,
Santiago está presente ao lado dos cristãos
chegamos à seguinte conclusão: a criação
durante as batalhas como um cavaleiro
do mito de Santiago, seja o apóstolo ou o
enviado por Deus para auxiliá-los na guerra
cavaleiro, pode ser melhor compreendida
contra os muçulmanos. Se utilizarmos
se considerarmos como fundamento teórico
como exemplo o Poema de Mío Cid, fica
a chamada história das mentalidades. Pois,
patente inclusive a oposição entre Santiago
toda a evolução que diz respeito à
e o líder dos muçulmanos, Maomé. Os
mentalidade, segundo, Jacques Le Goff, é
mouros chamam Maomé e os cristãos
lenta e ocorre na chamada longa duração
chamam Santiago (POEMA DE MÍO CID,
(LE GOFF, 1976, p. 72). Dessa maneira,
1996, p. 171). Logo, segundo o Poema, se
desde às origens do mito de Santiago na
os mouros tinham a proteção de Maomé,
Hispânia até o momento em que esse
os cristãos eram auxiliados por Santiago.
adquire a característica de cavaleiro, isto é,
Percebemos que os documentos
as mudanças que ocorreram nesse ínterim,
que fazem menção clara ao Santiago
podem
através
da
Matamoros,
mentalidade
da
dentro das fronteiras hispânicas, caso do
Cristandade ocidental como um todo. Uma
Poema de Mio Cid, Primera Crónica
ser
transformações
explicadas na
foram
àqueles
produzidos
135
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
General de España, Historia Silense, dentre outros. Assim, o LSJ, com exceção feita ao quarto livro Pseudo-Turpin, quase não faz menção à participação de Santiago nas batalhas. De uma maneira geral os 22 milagres apresentados no LSJ apresentam o auxilio do apóstolo aos peregrinos, à cura de enfermidades, libertação de prisioneiros e apenas alguns milagres fazem referência aos mouros. Porém, o LSJ, não nega a faceta do Santiago Matamoros, pelo contrário o mesmo ratifica tal faceta. Há um milagre exposto no LM (milagre XIX) onde um bispo afirmava que o Santiago Matamoros não existia. Mas certo dia, quando estava entregue à oração
chamassem de Cavaleiro, senão pescador; por isso apareço a ti nesta forma, para que não duvides mais que milito a serviço de Deus e sou seu campeão e na luta contra os sarracenos precedo aos cristãos e saio vencedor por eles (LIBER SANCTI JACOBI, 1998, p.169).
As duas chaves que estavam nas mãos de Santiago eram para ajudar o monarca Fernando I de Castela a abrir as portas de Coimbra e reconquistá-la junto aos mouros. Tal milagre é exposto na
Historia Silense e posteriormente será retomado na Historia Compostelana, o relato sobre o cerco de Coimbra é um dos primeiros que fazem alusão ao auxilio efetivo de Santiago aos cristãos nas batalhas da Reconquista. A imagem do Santiago cavaleiro
como de costume. Uma multidão de aldeões, que
tornou-se frequente nas crônicas, poemas
participava
e hagiografias elaboradas no decorrer da
de
uma
festa
particular
do
preciosíssimo São Tiago e se pôs diante do altar junto à cela do santo varão, começou a rogar ao
Reconquista,
principalmente,
após
os
Apóstolo de Deus com estas palavras: “-São
séculos XI e XII. Logo, o surgimento e
Tiago,
consolidação do Santiago seja o apóstolo
bom
cavaleiro,
livra-nos
dos
males
presentes e futuros”. E o santo homem de Deus, levando a mal que os aldeões chamassem ao
evangelizador ou o cavaleiro, foi outra
Apóstolo cavaleiro, repreendeu-os dizendo: “-
forma utilizada pelos cristãos para legitimar
Aldeões burros, gente ignorante, a São Tiago
a Reconquista.
deveis chamá-lo pescador e não cavaleiro”. E lembrou a passagem bíblica segundo a qual À
Portanto,
podemos
considerar
conclamação do Senhor o seguiu, deixando o
como elementos fundamentais para o
oficio de pescador, e foi feito em seguida pescador
desenvolvimento
de homens. Mas na noite do mesmo dia em que o santo varão havia recordado isto de São Tiago,
da
Reconquista
da
Hispânia, os seguintes fatores: além da
este se lhe apareceu vestido de alvíssimas roupas
própria expansão da Cristandade a partir
e portando armas que sobrepujavam em brilho aos
do século XI, - que, por conseguinte, fez a
raios do sol, com um perfeito cavaleiro e, além do mais, com duas chaves na mãos. E havendo-lhe chamado três vezes, lhe falou assim: “Estevão,
Reconquista avançar, os mitos, gótico e o de Santiago desempenharam um papel de
servo de Deus, que mandaste que não em
136
César Augusto da Silva Foga
grande relevância no que diz respeito à
No que diz respeito ao desenvolvimento da
motivação dos cristãos em reconquistar as
Reconquista, Santiago foi considerado um
terras da península Ibérica.
auxílio
Finalizando, poderíamos considerar
espiritual
para
enfrentar
os
muçulmanos. Logo, podemos considerar
o mito de Santiago e a Reconquista da
que
Hispânia como um encontro de vontades?
determinantes, conforme afirma Américo
Pensamos que sim. Pois, para que o mito
Castro, mas os fatores que ali haviam eram
de
condicionantes, ou seja, as condições
Santiago
tivesse
ressonância
na
ambos
os
fatores
existentes
foi
na
península Ibérica auxiliaram na propagação
Hispânia, e então foi concebida a ideia de
do mito de Santiago, como o mesmo foi um
que os cristãos deveriam libertar as terras
apoio
que Tiago havia evangelizado e onde
Reconquista.
presença
dos
muçulmanos
dado
foram
Cristandade um dos fatores que contribuiu a
naquele
não
contexto,
espiritual/psicológico
para
na
a
também repousavam seus restos mortais.
Referências: ANDRADE FILHO, R de O. Os muçulmanos na Península Ibérica. São Paulo: Contexto, 1994. BARBERO, A e M. VIGIL. Sobre los orígenes sociales de la reconquista. Madrid: Ariel, 1988. BARTHÉLEMY, D. A cavalaria: Da Germânia antiga à França do século XII. Campinas SP: Ed. Unicamp, 2010. CARDINI, F. O guerreiro e o cavaleiro. In: LE GOFF, J. (org.). O Homem Medieval. Lisboa: Presença, 1989.\ CASTRO, A. La Realidad Histórica de España. México: Porrua, 1982. DUBY, G. A sociedade cavaleiresca. São Paulo: Martins Fontes, 1989. FERNÁNDEZ, R, G. El mito gótico en la historiografía del siglo XV. In: Los visigodos.
Historia y civilización. Antiguedad y cristianismo. Murcia, 1986. FLORI, J.
A Cavalaria: A origem dos nobres guerreiros na Idade Média. São Paulo:
Madras, 2005. FRANCO JÚNIOR, H. A Idade Média: O Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006.
137
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
JAYO, G, Mérida. A Invasão Muçulmana na Península Ibérica. Ideia de perda e salvação
de Espanha no imaginário castelhano. São Paulo. (Tese de Doutorado)- Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo: 2001. JIMENEZ, M, G. Sobre la Ideología de la Reconquista: Realidades y Tópicos. Pag. 151170. In: Memoria, Mito y Realidad en la Historia Medieval. Logroño. Instituto de Estudios Riojanos del Gobierno de la Rioja. 2003. LE GOFF, Jacques. As mentalidades: uma história ambígua. In: LE GOFF, J. & NORA, P. (org.), História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
LIBER SANCTI JACOBI “CODEX CALIXTINUS”. Tradução e notas de MORALEJO, A; TORRES C; FEO, J. Op.Cit., 1998. LOMAX, Derek W. La Reconquista. Barcelona: Editorial Crítica, 1984. MARAVALL, J, A. El Concepto de España en La Edad Media. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1981.\ NOGUEIRA, C. R. F. A Reconquista ibérica: a construção de uma ideologia. Historia Instituciones. Documentos. Sevilla: v. 28, 2001, pp. 277-295.
POEMA de MIO CID. Edición de Colin Smith. Madrid: Cátedra, 1996. (Versão bilíngue Latim- espanhol). ROUSSET, P. História das Cruzadas. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. RUI, Adaílson, J. São Tiago na Primeira Crônica Geral de Espanha. Alfonso X: A tradição e
a Lei. Assis. (Dissertação de Mestrado)- Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Assis. Assis, 1996. SANCHEZ ALBORNOZ, C. España, un enigma histórico. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1956. VEREZA, R. Visões do Inimigo. Imagens de Mouros em Castela no século XIII. São Paulo. (Dissertação de Mestrado)- Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo, 1998.
138
AS CANTIGAS DE LOUVOR DE D. AFONSO X E O ESPAÇO SAGRADO: ESTUDO DO TEXTO E DA IMAGEM Clarice Zamonaro Cortez 1 Resumo: As Cantigas de Santa Maria, de D. Afonso X, são consideradas por Ângela Vaz Leão (1997, p. 33) como a “verdadeira comédia humana do século XIII”, em que todas as classes sociais se fazem representar. Além de precioso documento linguístico e verdadeira obra de arte literária, iconográfica e musical, constituem uma fonte histórica inigualável que possibilita o conhecimento dos hábitos, costumes e mentalidade da Idade Média na Península Ibérica. Apresentam duas vertentes temáticas: a profana e a religiosa, de teor lírico ou lírico-narrativo. Integram o códice de cantigas dedicadas à Santa Maria as cantigas de loor (cantigas de louvor), manifestações do gênero lírico, e as cantigas de miragre (cantigas de milagre), que pertencem ao gênero narrativo, mas que apresentam traços de lirismo laudatórios, sobretudo, nos refrães e nos finais dos milagres. De acordo com a teoria da literatura, é no espaço que a ação se desenvolve e as personagens se movimentam. Com base nessa premissa, cabe a ele, conforme Dimas (1985), funcionar como armadilha virtual do texto, na medida em que poderá provocar a adesão ou a repulsão do leitor, bem como instigar sua curiosidade através das referências sobre o cenário. As Cantigas de Santa
Maria referem-se às cidades, locais de romaria e peregrinação na Idade Média. O espaço sagrado, retratado nos textos e em imagens iconográficas, representa episódios e cenas de louvor e milagres ocorridos nos conventos, santuários e igrejas, onde a Virgem louvada curava as doenças e livrava as pessoas do pecado.
Palavras-Chave: cantigas; espaço sagrado; texto/imagem.
1
Universidade Estadual de Maringá.
139
Clarice Zamonaro Cortez A arte literária e pictórica são os canais
naturais
de
expressão
do
pensamento de cada época, por isso
que
presente
estudo
de
lirismo
finais dos milagres. Quanto
objetiva
traços
laudatórios, sobretudo, nos refrães e nos
tornam-se uma fonte muito rica de estudo. O
apresentam
cancioneiros,
à as
disposição
cantigas
de
nos
milagre
apresentar uma abordagem comparativa do
predominam sobre as de louvor, numa
texto poético e das ilustrações (miniaturas)
proporção de nove por um. Isso significa
de exemplares das Cantigas de Santa
que a cada grupo de nove cantigas
Maria, especificamente das cantigas de
narrativas segue-se uma lírica, numerada
louvor. Dentre as obras produzidas na corte
com uma dezena inteira. No final da obra,
de Afonso X, as três edições conservadas
porém, aparecem algumas cantigas de
das Cantigas de Santa Maria são, sem
festas
dúvida,
A
comemorativas de episódios da vida de
culturais
Santa Maria ou de Cristo. A estruturação
reúne
das cantigas obedece a um ritmo regular,
Virgem,
em que as cantigas de louvor ocupam
partituras musicais que compõem um dos
sempre as dezenas, enquanto as de
repertórios mais importantes da Baixa
milagre têm números terminados pelas
Idade Média europeia, e a arte pictórica
unidades de um a nove, o que lembra a
das miniaturas que completam duas das
disposição de um rosário. (LEÃO, 2007, p.
edições
24).
as
universalidade culmina
em
composições
mais dos uma
significativas. projetos obra
dedicadas
escritas
em
que à
língua
galego-
do
calendário
cristão,
portuguesa, documentos preciosos para o
Domínguez e Gajardo (2007, p. 123)
conhecimento da vida e dos costumes da
registram que a devoção à Virgem Maria na
época.
Europa alcança o apogeu no século XII,
As obras literárias de Afonso X
com ampla participação da Península
apresentam duas vertentes temáticas: a
Ibérica, porém, no século VIII já havia
profana e a religiosa. Há ainda duas
relatos de milagres atribuídos à intervenção
espécies de poemas que integram o códice
de Maria. No final do século XI e nos
de cantigas dedicadas à Santa Maria: as
séculos
cantigas de loor (cantigas de louvor),
reuniram os milagres ocorridos sob o ponto
manifestações do gênero lírico, e as
de vista didático, acrescentando-lhes uma
cantigas de miragre (cantigas de milagre),
série de legendas locais. Essas coleções
que pertencem ao gênero narrativo, mas
de milagres, em latim ou língua vernácula,
XII
e
XIII,
os
compiladores
140
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
em prosa ou verso, narravam intervenções
lhe a beleza ou bon parecer e também para
milagrosas de Santa Maria, mas não
louvar o seu valor moral (prez), o equilíbrio
incluíam canções líricas como as de Afonso
ou mesura e todas as outras qualidades
X. Assim, as Cantigas de Santa Maria
que fazem dela a Sennor sem par, perfeita,
chegaram ao final do período como a
comprida de ben”. (LEÃO, 2007, p. 28).
última
Nesse sentido, o ideal do amor cortês
das
grandes
compilações
de
milagres europeus e, segundo Snow (1972
mescla-se
apud DOMÍNGUEZ; GAJARDO, 2007, p.
conseguinte, a mulher amada sublima-se
123), a mais diferenciada de todas pela
na figura da Virgem Maria, por isso, ela é a
presença de 42 cantos líricos são as
Rosa das rosas e Fror das Frores / Dona
cantigas de louvor.
das donas, Sennor das sennores(Rosa das
As
cantigas
de
louvor
ao
ideário
cristão
e,
por
são
rosas e Flor das Flores/ Dona das donas e
composições líricas que se assemelham às
Senhora das senhoras), como evidencia o
laudas surgidas na Úmbria e que no final
refrão da cantiga 10. (AFONSO X, 1959, p.
do século XII espalharam-se por toda a
33).
Itália, renovando o fervor religioso das
Na iconografia das cantigas de
cerimônias
louvor, as imagens não tematizam os
religiosas. Quanto ao conteúdo, essas
milagres de Santa Maria, mas se referem
cantigas se inspiraram em hinos da Igreja
aos aspectos de sua vida e a de Jesus
no modo de caracterizar a Virgem, nas
Cristo, registrados nos Evangelhos e em
expressões Filhade Deus Madre e Filla,
outros textos litúrgicos. Nestas cenas, as
Virga de Iesse, Madre del Rey Manuel, Fror
personagens
das
sempre,
multidões
em
Frores,
romarias
Luz
e
e
Via,
terminologia
divinas
aparecem,
acompanhadas
da
quase
figura
de
encontrada tanto nos hinos latinos da Idade
Afonso X como trovador, recitando a
Média quanto nos louvores vulgares.
cantiga diante dos cortesãos, tocando e
Leão (2007, p. 28) esclarece que a
apontando às personagens divinas, como
figura do rei trovador diante de Nossa
se observa na cena da Flagelação, na qual
Senhora é para exaltá-la e oferecer-lhe sua
Afonso X lamenta a morte Cristo, e,
fidelidade e devoção. Essa atitude diante
sobretudo, no culto à maternidade de
da santa identifica-se com a postura do
Maria, tema de várias miniaturas.
trovador diante da senhora (ou dona) nas
De
acordo
com
Domínguez
e
cantigas de amor, “[...] onde o trovador da
Gajardo (2007, p. 125), essa forma de
dona se prostra diante dela para enaltecer-
composição
resulta
de
uma
“nova
141
Clarice Zamonaro Cortez religiosidade” no campo das artes, pautada
(...)
na sensibilidade e na participação na vida
E porenquero começar
de Jesus Cristo e da Virgem Maria.
como foy saudada
Da
de Gabriel, u lle chamar
Itália para o resto da Europa Ocidental,
foy: «Benaventurada
com a arte trecentista, estendeu-se até o
Virgen, de Deus amada:
século XIV.
do que o mund' á de salvar
A presença da figura de Afonso X nas
miniaturas
é
muito
ficas ora prennada;
frequente,
(...)
aparecendo em duas funções: nas imagens de apresentação, com que encabeça os prólogos de muitos dos códices, e nas representações do rei como trovador de Santa Maria, como é o caso das cantigas decenais. O mais surpreendente nas cenas evangélicas, como explicam Domínguez e Gajardo (2007, p. 124), é que todos os exemplares mostram o aspecto inovador quanto à encenação, como exemplifica a cena da Anunciação de Maria (Figura 7) da cantiga 1, observando que os lírios estão no centro, em um grande vaso, o que não era comum na composição medieval dessa cena.
Nessa cena, conforme já apontado, o destaque é o vaso de lírios, ao centro, entre duas colunas, simbolizando a pureza da Virgem que, de acordo com a narrativa bíblica, se surpreende com a presença e a fala do Anjo Gabriel. À direita da vinheta, envolta no manto azul, Maria levanta uma das mãos para cobrir o rosto e revelar sua surpresa da notícia. À esquerda, o Anjo Gabriel, dirigindo-se à Virgem, é retratado com grandes asas, de acordo com o imaginário medieval, vestindo uma túnica vermelha. As cores das túnicas, vermelho e azul,
remetem
à
santidade
das
personagens bíblicas. Ao fundo dos arcos observa-se a presença dos telhados, torres e casas da cidade. No alto da vinheta, uma faixa com a chamada ou o título da cantiga:
Esta é a primeira cantiga de loor de Santa Maria,ementando os VII goyos que ouve de seu fillo e dos lados, traços de uma iluminura que repete as mesmas cores, o Figura 7: Miniatura da cantiga 1, vinheta 1 –
vermelho e o azul. A cena retrata o louvor
Anunciação de Maria.
do Anjo à Maria, referência à cantiga de Afonso X. Essa a mesma cena foi também
142
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
interpretada e pintada por outros artistas como Giotto (1267-1337) e FraAngelico (1387-1455), pintores italianos. A leitura e a interpretação de Fra Angélico
(Giovanni
da
Fiesole),
por
exemplo, foi pintada em afresco entre 1437 e 1446 para o Convento de São Marcos (hoje Museu Nacional de São Marcos), na cidade italiana de Florença. Observa-se, primeiramente, que o vaso com os lírios não está presente, embora a cena seja composta pelas mesmas personagens: o Anjo
Gabriel
e
a
Virgem
Maria.
Diferentemente da vinheta da Cantiga 1, Maria está sentada na presença do Anjo, com os braços cruzados no peito e apresenta uma expressão serena. Está trajando um vestido claro que se contrasta com o manto escuro que cobre o seu corpo até os pés. O Anjo Gabriel, de grandes asas coloridas, veste um hábito de cor clara, apresentando-se de joelhos diante da Virgem, braços cruzados no peito em sinal de extremo respeito. Repetem-se os arcos e as colunas gregas, provavelmente a casa de Maria (observa-se uma porta, ao fundo). Não há presença da cidade como na vinheta
anterior,
apenas
da
natureza
representada em um belo jardim, um cercado de madeira da casa e uma vegetação abundante.
Figura 8- FraAngelico – A Anunciação (Museu Nacional de São Marcos) - Florença, Itália.
Como as cantigas de louvor são influenciadas pelo ideário cristão, é comum a recorrência de temas e personagens bíblicos. Na cantiga 60, por exemplo, que estabelece a diferença entre Maria e Eva, significativamente, o leitor pode refletir acerca desses perfis femininos bíblicos. Porém, na cantiga, não há narração de um milagre que demonstre a bondade e generosidade
da
Virgem,
como
nas
cantigas de milagre. O recurso utilizado é o trabalho com a linguagem para produzir a oposição de valores. Toda a estrutura literária
converge
para
intensificar
a
distinção entre a santa e a pecadora, a começar pelo título: Esta é de loor de Santa
Maria, do departimento / que á entre Av' e Eva. (AFONSO X, 1959, p. 173): Esta é de louvor a Santa Maria, da diferença/ que há entre Ave e Eva. A organização da cantiga em quatro estrofes de quatro versos cada é outro fator que contribui com o princípio da oposição
143
Clarice Zamonaro Cortez de valores, pois a composição em múltiplos
A repetição do refrão, ao longo da
de dois ajuda a criar a distinção entre as
cantiga, intensifica a ideia de oposição
duas personagens. Desse modo, com
entre os modelos de mulher santa versus
exceção da primeira estrofe que apresenta
mulher pecadora, evidenciando a diferença
a palavra Deus, no segundo verso, as
entre as figuras de Eva e Maria. Quanto às
demais reservam os dois primeiros para
rimas,
falar de Eva e os dois últimos, de Maria.
métricas
utilizadas,
louvores,
variando
Entre Av’e Eva grandepartiment’á. Ca Eva nos tolleu o Parays' e Deus, Ave nos y meteu; porend', amigos meus: [...] Eva nos foi deitar
há
uma
variedade
de
formas
sobretudo, apenas
nos
entre
as
estrofes, nas quais se observa o jogo de termos opostos, como em: “Eva nos ensserrou / e Maria britou”. O título-ementa, geralmente, rima com o refrão, justamente para produzir a musicalidade, sempre lembrando que os textos destinavam-se ao canto. Ao listarem-se os termos atribuídos
do dem' ensaprijon,
às personagens, tem-se: Eva – “tolheu”,
e Ave en sacar;
“dem’”, “deitar”, “perder”, “ensserrou”; Maria
e por esta razon:
– “Deus”, “sacar”, “aver”, “britou”. Assim,
[...] Eva nos fez perder amor de Deus e ben, e pois Ave aver no-lo fez; e poren: [...]
conclui-se
que
para
a
primeira
são
reservadas palavras com valor semântico negativo, firmando os aspectos que estão atrelados
ao
estigma
de
pecadora;
enquanto para a segunda, as palavras são valorativas, justamente para confirmar o oposto, a santidade de Maria. Apenas o
Eva nos ensserrou
fato de Eva estar relacionada ao demônio
os çeossen chave,
(“dem’”) e Maria a Deus, já sintetizaria todo
e Maria britou
esse pensamento. A distinção de valores
as portas per Ave.
também está presente ao nomeá-las na
(AFONSO X, 1959, p. 173)
cantiga, pois na inversão de Eva, lê-se o anagrama Ave, expressão usada pelo Anjo
144
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Gabriel ao dirigir-se à Virgem Maria, durante a Anunciação. Segundo Dalarun (1991, p. 34-39), no
imaginário
impostos
a
medieval,
cada
um
os
valores
desses
perfis
femininos são absolutos e estanques. Isso reflete
os
preceitos
difundidos
pelo
Figura 9 - Miniatura da cantiga 60, vinhetas 1 e 2
cristianismo, no qual Eva é a responsável
A vinheta 2pode ser dividida em dois
por toda a desgraça da humanidade, ao
planos: à direita encontra-se a figura de
seduzir o homem e conduzi-lo ao pecado.
Adão e à esquerda a de Eva. As duas
Por meio dela, entra no mundo o pecado
personagens estão nuas e são separadas
original, a morte e a condenação eterna. É
pela árvore da sabedoria, onde se encontra
interessante destacar que, no texto, ao se
enrolada
construir
miniaturista
a
oposição
dos
arquétipos,
a
serpente teve
a
tentadora.
O
preocupação
de
narram-se, primeiramente, as faltas da
representar o Paraíso com cuidado e
pecadora para, em seguida, destacarem-se
riqueza de detalhes, como as árvores de
os grandes feitos da santa. O que comunga
diferentes espécies, tamanhos e frutos. A
com a ideia cristã que concebe Maria como
serpente de pele manchada tem na boca o
a responsável pelo resgate dos valores
fruto proibido e se volta para Eva, à
femininos. No entanto, na miniatura, a
esquerda, sugerindo a ação da entrega da
primeira vinheta é reservada à cena da
maçã. Do lado direito, Adão leva à boca o
Anunciação e não à da Queda da
fruto recebido de Eva, configurando o
humanidade que foi anterior, conforme a
princípio que concebe a mulher como a
narrativa bíblica.
responsável pela queda da humanidade. o
Ambas as vinhetas unem-se pelo rótulo,
conteúdo apresentado nas duas cenas,
resumindo o conteúdo apresentado nas
com o verso: “Como entre Ave / Eva
cenas correspondentes: “Como entre Ave/
grandepartiment'
Eva grandepartiment’ á”.
A
segunda
á”,
vinheta
resume
responsável
pela
unidade narrativa entre as duas imagens.
Segundo Pipponier (1991, p. 441), para alguns estudiosos o fato da mulher figurar na iconografia é um indício de valorização feminina; enquanto para outros, vê-la por meio dos estigmas de santa ou
145
Clarice Zamonaro Cortez pecadora revela a permanência de valores
de uma perpétua fuga da cor”. O grande
misóginos.
gerado
círculo aparece ainda em outra esfera,
muitas discussões entre os estudiosos da
superior e elevada, para onde os cristãos
Idade Média. No caso das Cantigas de
deveriam ascender. Adão e Eva compõem
Santa Maria, textos e imagens estão
também a cena. Eva tenta abrir as portas,
ligados ao discurso reducionista da mulher
enquanto
e, consequentemente, os valores atribuídos
envergonhado pela nudez.
à
Eva
Essa
questão
acabam
se
tem
estendendo
está
ao
seu
lado,
Nas cantigas de louvor, em muitos
às
representações do feminino.
Adão
casos, não há uma relação direta entre o
A ideia contida no último refrão da
texto e a imagem, pois as miniaturas fazem
cantiga refere-se à narrativa bíblica: “Eva
referências a diversos textos bíblicos. Por
nos ensserrou / os çeossen chave, / e
isso, muitos estudiosos apontam uma
Maria britou / as portas per Ave”. (AFONSO
maior autonomia do pictórico em relação ao
X, 1959, p. 173). Eva é o modelo feminino
verbal. Entretanto, antes de afirmar a
que o cristianismo reprimia e exilava por
supremacia de um ou do outro é preciso
um sistema misógino civil e religioso. Toda
considerar que o texto verbal consegue
uma
longínquas,
uma melhor realização ao fundir-se com o
idealizava-a como criadora do pecado
visível, o que não significa que se confirme
original, princípio oposto à imagem reflexa
em todas as situações.
tradição,
de
raízes
da bondade e obediência representada por
Em outros exemplares das cantigas,
Maria, considerada como o resgate dos
as ilustrações seguem cuidadosamente o
valores femininos relacionados ao papel de
texto, já em outros, o ilustrador deixa-se
mãe: a pureza e o recato, o que acaba
levar pela estética e intercala as cenas e os
gerando
espaços que não aparecem na escrita.
grande
oposição.
Os
versos
adquirem uma interpretação literal contida
Algumas
também nos rótulos de como Eva cerrou as
iconografia que responde à fidelidade das
portas do céu e Maria abriu-as. O céu é
imagens em relação aos textos, juntamente
representado por um grande círculo azul.
com
De acordo com Conceição (2001, p. 19), o
Determinadas
azul é a mais profunda e imaterial das
grande vitalidade com que os ilustradores
cores:
sem
(iluminadores) da corte de D. Afonso X
encontrar qualquer obstáculo, perdendo-se
criavam espaços, personagens e imagens
“Nele,
o
olhar
mergulha
cantigas
os
apresentam
documentos ilustrações
uma
históricos. apontam
até o infinito, como se estivéssemos diante
146
a
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
sem tradição prévia em que poderiam se
considerados
apoiar.
determinados textos demonstram que o
A presença do espaço ocupa um lugar
de
destaque
nas
composições
medievais. Abdala Júnior e Paschoalim
sagrados.
Contudo,
motivo da busca destes lugares não era apenas religioso, pois havia também o motivo sentimental.
(1994) enfatizam as paisagens naturais nos
Nas cantigas de milagre, o espaço
textos poéticos. O riacho, a fonte (local dos
sagrado está representado pelos conventos
encontros amorosos, de trabalho como
e igrejas, locais onde a Virgem estava
lavar as roupas, ou ainda de cuidados
constantemente
pessoais como lavar os cabelos), as praias
doenças, perdoando e livrando as pessoas
(quando há referência às ondas do mar) e
do pecado. Nas cantigas de louvor, o
as
das
espaço sagrado tem a função de mediação
avelaneiras, por exemplo) contextualizam o
entre as divindades celestes e Maria,
ambiente e atuam sobre o “eu” feminino,
conforme observadosnos textos poéticos
despertando o amor, ou a fé religiosa. É o
comentados. As imagens registradas nas
ambiente
vinhetas das cantigas são instrumentos da
árvores
(os
com
ramos
a
floridos
atuação
animista
integrando sentimentos e objetos. referem
às
curando
as
intermediação entre Deus, a Virgem Maria
As cantigas de romaria são as que se
presente,
peregrinações
e os fieis.
aos
A arte literária e pictórica são os
santuários, ou ao costume de ir à igreja.
canais
Nestas composições a moça se propõe a
pensamento de cada época, por isso
comparecer no santuário – geralmente uma
tornam-se uma fonte muito rica de estudo.
das numerosas ermidas que povoam as
Entretanto, sua utilização deve ser vista
terras de Galiza e de Entre-Douro-e-Minho
com cautela, porque não mostram com
– para rezar e cumprir promessas, relatar a
precisão a vida ou aspiração das mulheres,
sua peregrinação, ou ainda, encontrar o
mas como elas deveriam ser. Do mesmo
amigo.
da
modo, nas cantigas, ao narrar-se louvores,
Península, estas composições apresentam
milagres e até mesmo os pecados, fazem
uma estreita ligação com a realidade
com
peninsular,
tendências
busquem, através do louvor, a salvação
naturais e o modo de vida do povo dessa
para suas almas para servirem de modelo,
região. Os santuários, os conventos e as
mediante a um sentido moral edificante. A
igrejas
figura da Virgem Maria é o modelo de
Originárias
do
refletindo
constituem-se
Ocidente
as
nos
espaços
naturais
que
os
fieis
de
se
expressão
do
arrependam
147
e
Clarice Zamonaro Cortez beleza e de virtude às mulheres, é a
caminho de investigação muito significativo
mulher-perfeição, símbolo de recato e
para o estudo dessas personagens. Nesta
pureza,
valores
relação, o próprio texto não é bastante
intrínsecos à figura de Eva, a pecadora.
concreto em descrições dos fatos narrados,
Desse modo, diante da imagem da mulher
de ambientes, pessoas e lugares para
medieval, difundida pelo clero, entre santa
determinar uma representação, ainda que
versus pecadora, possibilita que novos
em sua forma mais simples. Da mesma
matizes sejam acrescentados, evitando
forma que a imagem é capaz de ampliar o
essa visão redutora.
texto, acrescentando detalhes de ações,
o
contraponto
aos
As Cantigas de Santa Maria, por meio da articulação de um discurso literário
figuras e cenários não especificados na fonte escrita.
e de seu correlato plástico, constituem um
Referências: ABDALLA JÚNIOR, Benjamin e PASCHOALIN, Maria Aparecida. História Social da
Literatura Portuguesa. São Paulo: Ática, 1994. AFONSO X, O Sábio. Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann. 4 volumes. Coimbra, Acta UniversitatisConimbrigensis, 1959-1972. CONCEIÇÃO, Hélio Requena. Leitura da forma e simbologia do vitral “Nossa Senhora do belo Vitral”, da catedral de Chartes. In: SALZEDAS, Nelyse Aparecida Melro. Uma leitura
do ver: do visível ao legível. São Paulo: Arte & Ciência Villipress, 2001. p. 11-28. DALARUN, Jacques. Olhares de clérigos. Tradução Francisco G. Barba e Teresa Joaquim. In: DUBY, G; PERROT, Michelle. (Org.)História das Mulheres – A Idade Média. Lisboa: Afrontamento, 1991. p. 29-64. DOMÍNGUEZ, Ana Rodrigues; GAJARDO, Pilar Treviño. Las Cantigas de Santa Maria:
forma e imágenes. Madri: A y N Ediciones, 2007. LEÃO, Ângela Vaz. As Cantigas de Santa Maria. Extensão, Belo Horizonte, v. 7, n. 23, p. 27-42, ago. 1997. PIPONNIER, Françoise. O universo feminino: espaços e objectos. Tradução Francisco G. Barba e Teresa Joaquim. In: DUBY, G; PERROT, Michelle. (Org.)História das Mulheres – A Idade Média. Lisboa: Afrontamento, 1991. p. 441-460.
148
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
SNOW, J. T. The Loor to the Virgin and its Appearance in the Cantigas de Santa MarĂa of
Alfonso X, el Sabio, (The University of Wisconsin, Ph.d., 1972), Ann Arbor, Michigan: University Microfilm, Inc., 1972.
149
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES COM RELAÇÃO À PARTICIPAÇÃO FEMININA NA VIDA RELIGIOSA NA ALTA IDADE MÉDIA Cláudia Trindade de Oliveira 1 Resumo: O objetivo deste trabalho é considerar a importância das mulheres no interior de uma corrente religiosa denominada priscilianismo que vigorou no início da Idade Média e herdou características do cristianismo primitivo. Para tanto, tomamos por base algumas atas conciliares, pois nos interessa analisar os discursos envolvidos nesse processo, sobretudo aqueles oriundos do corpo clerical e com isso saber se estas mulheres tiveram participação direta, indireta ou apenas figurativa. A metodologia discursiva nos permite recorrer a percepções sociológicas e ora antropológicas de modo a visualizar esse complexo cenário, bem como compreender o posicionamento desfavorável da Igreja com relação à presença feminina nas celebrações religiosas. Palavras-chave: Participação feminina; priscilianismo; concílios.
1
Graduada em História pela UNESP-campus Assis, Membro do NEAM (Núcleo de Estudos Antigos e Medievais)
150
Cláudia Trindade de Oliveira
Atualmente pouco se sabe sobre mulheres
que
exerceram
papeis
de
deteve de uma forte expressividade e aceitação no noroeste peninsular ibérico no
liderança nos primórdios da igreja cristã. O
início
fato é que elas existiram, mas quase não
denominada Gallaeccia 2. Esta corrente, por
sobreviveram
sua vez, foi uma das responsáveis por
registros
dessa
atuação,
do
século
IV
em
uma
região
assim nos conta Maria Fernanda Ziegler ao
garantir
abrir seu artigo intitulado Apagadas da
acessível às mulheres deste período.
História. A causa de tal “apagamento” pode no
absorveu
inserções
mundo
romano
(Ziegler,
participação
religiosa
Apesar de restritas, podemos notar
estar na visão misógina que a igreja antiga do
uma
início
do de
Cristianismo mulheres
na
algumas dinâmica
2013,p.26). A autora inicia sua discussão
religiosa, tanto sob a forma de discípulas
fazendo
uma
ou mesmo como líderes (SILVA, 2009,
personagem pouco conhecida na história
p.02). Assim, “enquanto algumas viúvas ou
da Igreja, e explica que:
virgens consagradas decidiram viver como
referências
à
Ecdícia,
No século I, quando o cristianismo ainda era um movimento religioso recém-saído do berço e que enfrentava
severos
debates
internos
para
reclusas, outras optaram pela vida religiosa em suas próprias casas ou constituíram as
consolidar sua identidade, havia espaço em suas
primeiras
fileiras para que as mulheres pudessem exercer
1991, p. 12-14) 3, gozando muitas vezes de
funções de liderança. Elas chefiaram igrejas, atuaram como profetas e até exerceram funções de bispas, o que, muito provavelmente, teria
comunidades”
(SALISBURY,
uma independência que era incômoda aos poderes
familiares
e
principalmente
deixado Agostinho contrariado. Os registros deste breve período durante o qual as mulheres tiveram espaço para exercer autoridade no movimento cristão são poucos e, muitas vezes, indiretos (Ziegler, 2013,p.26).
Inseridas igualmente nos “apagões da história” estão outras mulheres, como é
2
Denominação
dada
à
região
da
Galiza,
área
predominantemente rural e com fortes reminiscências pagãs. Acredita-se que o priscilianismo tenha surgido na Bética (região peninsular sul) e posteriormente tenha se difundido nessa região. 3
Peter Brown ressalta que algumas dessas mulheres não
o caso por exemplo, das priscilianistas. O
faziam a opção livremente, eram dedicadas, às vezes
presente trabalho se propõe a discutir
ainda na infância, pelos pais, mães ou irmãos que
como se deu a participação feminina no
tentavam inclusive cancelar seus votos se fosse do
espaço religioso cristão, em específico, como
isso
se
desenrolou
dentro
interesse da família. As viúvas também sofriam pressão para que voltassem a casar. Isso era criticado pelos
do
Padres da Igreja, que também buscaram punir as
priscilianismo. Considerado uma heresia
mulheres que abandonassem seus votos voluntariamente,
por parte da Igreja, o grupo de Prisciliano
submetendo-as a pesadas penitências, inclusive as que eram impostas às adúlteras (BROWN, 1990: 218-237).
151
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
eclesiásticos. “Esse tipo de vida religiosa
excluídas da vida social” (SEVERINO,
comunitária começou a aflorar em fins do
2011, p.668). No entanto, “na casa tinham
século
relativo domínio, podiam ensinar religião
IV,
momento
em
que
a
patriarcalização 4 da Igreja e do ministério
aos
se consolidavam” (FIORENZA, 1985, p.
populares devido à situação econômica
288). “Impossibilitadas de ocupar posições
tinham que ajudar os maridos ou trabalhar
de autoridade dentro da hierarquia da
para o sustento próprio [...], tinham maior
Igreja oficial, as mulheres criaram outros
liberdade em relação às mulheres da
espaços
cidade,
para
a
expressão
da
sua
filhos.
As
assim
mulheres
puderam
dos
meios
alavancar
o
espiritualidade e para o exercício de poder”
trabalho missionário” (SEVERINO, 2011,
(TORJESEN, 1995, p. 4-6).
p.669).
Como
exemplo
desse
Vale ressaltar que existiram diversos
comportamento, podemos citar o fenômeno
modelos de vida religiosa feminina no
do ascetismo, também presente no grupo
medievo, incluindo mosteiros, comunidades
priscilianista.
Trata-se
este
independentes, isoladas ou não, e até
característica
herdada
do
de
uma
cristianismo
Ordens
femininas,
mas
se
primitivo que consiste no isolamento ou
desenvolveram
reclusão dos fiéis, possibilitando-os de
“Sabemos que as mulheres foram ativas do
viver sua experiência religiosa de maneira
movimento monástico desde o seu primeiro
individual ou coletivamente. Outra maneira
momento, e ainda que as casas femininas
de poder gozar de uma espiritualidade
fossem em menor número, sua presença
foram os mecanismos criados por essas
não era insignificante, tampouco ignorada”
mulheres dentro de seu próprio lar. “Por
(JOHNSON, 1991, p. 16-17). A esse
estarem subordinadas primeiramente ao
respeito Susan G. Bell afirma:
pai e depois ao marido, devotando total obediência
e
submissão,
elas
eram
muito
que
posteriormente.
Do IV século até o século XII, [...] as mulheres tiveram um importante papel na vida monástica, e do século XIII em diante no ressurgimento da piedade institucional. As mulheres afluíram tanto
Por patriarcalização da Igreja compreendemos o
como líderes quanto como simples membros das
processo em que esta excluiu a mulher dos cargos de
comunidades religiosas femininas tais como as
liderança como o sacerdócio, o diaconato Tal exclusão
dominicanas, as Clarissas pobres, e as beguinas...
estava
(BELL, 1989, p. 145).
4
presente
nos
primeiros
séculos
da
Igreja
justificando-se principalmente nas cartas pastorais que recomendavam às mulheres submissão e silêncio, e que
Voltemo-nos
aos
princípios
do
não deveriam exercer autoridade sobre elementos do
Medievo, quando o Cristianismo se instituía
sexo masculino (FIORENZA, 1985: 288-294).
e tais ordens ainda não existiam. A essa
152
Cláudia Trindade de Oliveira
época
a
participação
feminina
em
A não acessibilidade feminina aos
celebrações religiosas se apresentavam
domínios
como práticas condenáveis pela Igreja a
documento tinha também por objetivo evitar
ponto
suas
que certo fato se repetisse. Referimo-nos
reuniões e codificadas em documentos 5,
ao episódio da viagem de Prisciliano à
como foi o caso das atas zaragozenzes
Roma, quando diversas mulheres aderiram
que neste momento as tomamos como
ao
base de nossa análise.
proibidas de exercerem o ministério a partir
de
serem
discutidas
em
religiosos
priscilianismo.
expressa
Embora
nesse
formalmente
aos
do século V, persistiram as condenações
cânones 6 do “Concílio de Zaragoza I, o
por parte dos bispos em sínodos contra as
qual acredita-se que tenha sido celebrado
mulheres, que mesmo assim continuavam
em Zaragoza no ano de 380 e com a
desempenhando
participação de doze bispos” (CALAZANZ,
liderança (CARDMAN, 1999: 300-301).
Referimo-nos
diretamente
funções
Posteriormente
2005, p.50). Já em seu primeiro cânone
seguiram
novos
concílios
de se misturarem a homens que não
principalmente
no
fossem seus parentes, ao mesmo tempo
priscilianismo,
visto
que as ordenavam de não participarem de
marginal. O concílio seguinte foi o de
encontros em que não pudessem estar
Toledo I, cujo nome deve-se à cidade de
presentes membros religiosos masculinos.
sua realização. Este concílio ocorreu no
Esta proibição demonstra claramente a
ano de 400, na província cartaginense e
intenção da ortodoxia eclesiástica em
desta vez sob a presença de dezenove
delimitar o espaço às mulheres, bem como
bispos; sendo “caracterizado, inclusive,
a de impedí-las de participarem do corpo
como
religioso.
essencialmente
Diversos documentos eram produzidos pela Igreja
durante suas reuniões conciliares e sínodos, constituindo
nos
um aponta
(CALAZANS,
mais
de
aparece reiterada a interdição às mulheres
5
e
públicas
que
condenações, se
como
sínodo
de
refere um
2011,
de
grupo
conteúdo
antipriscilianista”, Jaqueline
ao
como
Calazans
p.366).
Em
um amplo corpo documental (cartas, atas, sermões...) que
concordância com os pressupostos de
apreendiam as más condutas, segundo os episcopados.
Calazans, notamos que diferentemente do
Tanto os cânones do Concílio de Toledo I, quanto os
Concílio de Zaragoza I, ocasião na qual
Concílios de Saragoza I podem ser encontrados na obra
não foram feitas referências diretas ao
6
VIVES, J. Concílios visigóticos e hispano-romanos (1963). Edição bilíngue (latim-espanhol). Barcelona/Madrid CSIC.
movimento; neste outro concílio, isto é, o
Instituto Enrique Flórez.
de Toledo I, realizado após a morte do líder
153
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo que o sangue menstrual impedia a germinação das
da corrente priscilianista, encontram-se presentes
uma
condenatórias
série
de
aos
seguidores
plantas, matava a vegetação, oxidava o ferro e
deliberações
transmitia raiva aos cachorros. Tais crenças
de
contribuíram para justificar a negação masculina em permitir a participação ativa da mulher nas
Prisciliano.
missas, assim como a proibição de tocar os
Tratava-se da tentativa de estruturar
ornamentos sagrados, e por fim, sua exclusão das
um campo religioso favorável à hierarquia
funções sacerdotais, diz FERRANTE (1975 apud NASCIMENTO, 1997, p.86)
eclesiástica em que ficassem claramente estabelecidos os limites entre os clérigos e leigos, cuja expressão exterior e visível demarcava-se inclusive nas vestimentas 7 (BASTOS, 2003, p. 26). Além desses limites entre o que seria o “corpo da Igreja” e o “corpo de fiéis”, tentava-se igualmente propagar a ideia de que apenas um grupo reduzido de homens estava predestinado a ensinar e a espalhar a palavra divina, por terem sido escolhidos por Deus para tal tarefa. Isso podia garantir ao corpo clerical a legitimação de seu poder representado apenas pela atuação dos bispos, forças de autoridades maiores. Muito além da disputa de poderes dentro da Igreja, a presença feminina nos cultos e celebrações cristãs também se nutriu fortemente de crenças que o baixo clero tratou de alimentar. Neste sentido, por exemplo:
Somadas
a
essas
crenças,
os
discursos que tentavam justificar o repúdio ao feminino se basearam ainda em legados de
grandes
figuras
antigas
como
Aristóteles: Femina est aliquid deficiens et
occasionatum (a mulher é coisa defeituosa e ilegítima);
de São Paulo: Primo et
principaliter propter conditionem feminei sexus, qui debet esse subditus viro (Em primeiro lugar e acima de tudo, por causa da condição do sexo feminino, que deve ser submetido ao homem); e de Santo Agostinho: Imago Dei invenitur in viro...,
non invenitur in muliere
(A imagem de
Deus é encontrada no homem ... e não encontrada na mulher), entre outros. “A sociedade medieval foi, sem dúvida,
patriarcal,
numa
dada
época
histórica na qual as mulheres estavam obrigadas a circular exclusivamente na
É bastante emblemático o significado de corrupção
esfera privada, somente permitidas dentro
moral que adquiriu a menstruação. Acreditava-se
dos limites da casa paterna ou marital”
O significado social do vestuário era ainda maior, pois
(NASCIMENTO, 1997, p.85). Esta idéia
além de designar as categorias sociais era um verdadeiro
está certamente reforçada pela grande
uniforme. Levar vestuário de uma condição diferente da
difusão que tais teorias alcançaram na
7
sua era cometer o pecado capital da ambição ou da degradação (Le Goff, 1995, 99).
154
Cláudia Trindade de Oliveira
Idade Média e serviram para afirmar a submissão da mulher.
“Estas ideias tiveram ampla difusão dentro do mundo medieval cristão e eram
Segundo Camila Rabeiro Pereira no
principalmente os homens da Igreja os
estudo dos papéis femininos desse período
encarregados
no que se refere à imagem da mulher,
(NASCIMENTO,
“coexistem e se sobressaem dois pólos
estava claríssimo que a mulher era um
opostos e um intermediário: a mulher
perigo carnal e espiritual a ser evitado,
essencialmente má (Eva), a mulher perfeita
como afirma Duby:
(Virgem Maria) e a mulher arrependida de sua
má
conduta
(Maria
Madalena)
”
(PEREIRA, 2012, p.03). Esses papeis femininos
na
cultura
cristã
estão
respaldados nos textos bíblicos utilizados pelos clericais que buscavam fundamento para legitimar a classificação das condutas femininas
em
personagens
biblícos
opostos. Dentre
de 1997,
disseminá-las” 86).
Para
eles
Vê-se, então, os padres mais eruditos do século XII postos diante de Eva e suas desditas. Incontestavelmente, ela é inferior a Adão. Assim Deus decidiu. Criou o homem à sua imagem, a mulher de uma parte mínima do corpo dos homens, como uma impressão sua ou, antes, um reflexo. A mulher nunca é mais que um reflexo de uma imagem de Deus. Um reflexo, como bem se sabe, não age por si mesmo. Apenas o homem está em situação de agir. A mulher, passiva, tem os
movimentos
comandados
pelos
de
seu
companheiro. Essa é a ordem, primordial. Eva
as
três
representações
femininas foi a figura de Eva que acabou prevalecendo. Pode-se perceber que a
abalou-a ao curvar Adão à sua vontade. Mas Deus interveio, recolocou-a em seu lugar e agravou sua submissão ao homem como punição de sua falta. (DUBY, 2001, p. 63).
Igreja esteve profundamente afetada pela
Em relação à participação feminina
imagem negativa que a tradição judaica
no priscilianismo, várias são as razões do
criou em torno da primeira mulher: Eva. Um
espaço dado a ela. Uma das hipóteses,
ser pecador, símbolo de luxúria, incapaz de
válida somente para a primeira fase desse
resistir à tentação e por isso deveria ser
movimento, obviamente, seria a atração
submetida à tutela masculina. Ao ser a
das mulheres pelo Prisciliano. Indivíduo
primeira mulher, Eva passou a projetar sua
ressaltado na crônica de Sulpício Severo
carga de pecadora sobre a existência
como homem dotado de virtudes físicas e
feminina. Embora ela tenha sido criada a
de tamanha inteligência, qualidades estas
partir do homem e constitua parte integral
que acabam atraindo a forte atenção de um
da essência humana, ela representa a
público feminino:
parte vulnerável deste, visto que foi a responsável pela expulsão do Paraíso.
Prisciliano [...] agudo, inquieto, eloqüente, culto e erudito, com extraordinária disposição para o diálogo e a discussão, feliz seria certamente se
155
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo não
tivesse
extraordinária depreciáveis.
degradado
sua
entregando-se Ademais
inteligência
a
interesses
podiam-se
ver
nele
aceitação e introdução das mulheres no
boas...
círculo priscilianista funcionasse como uma
(SULPÍCIO SEVERO, Chr; II; 46, p.125, tradução
espécie de tentativa de resistência ao
qualidades
interiores
e
físicas
muito
nossa)
Outra hipótese é a trabalhada por Diego Piay Augusto, o qual afirma que o espaço religioso feminino só foi permitido no priscilianismo devido às condições financeiras que lhe eram favoráveis, assim como ocorria com os demais indivíduos envolvidos no grupo. Segundo Augusto, a mulher camponesa certamente não poderia desfrutar das mesmas prerrogativas. Neste caso, porém, é o status sócio-econômico que marca a diferença, e não o sexo. Certamente existe um grande abismo entre o homem nobre e o homem camponês. Mas, definitivamente, dentro da sociedade medieval tinha mais poder uma mulher nobre
que
um
homem
camponês
(AUGUSTO, 2006, p.609). Para Andrés Olivares Guillem, “a forte adesão feminina pode estar associada à presença de cantos, hinos e danças durante
as
celebrações
desenvolvidos mulheres”
priscilianistas 8,
especialmente
(GUILLEM,
2001,
por p.118),
permitindo que elas se aproximassem do grupo religioso. Há ainda a hipótese 8
levantada por Ricardo Ventura de que a
Denominadas calendas ou vulcanárias, a maioria de
suas celebrações tinha algum vínculo com a natureza e
casamento por parte de algumas jovens, uma vez que seus adeptos eram contra o matrimônio (VENTRA, 2005, p.47). A opção pela vida religiosa como prática de resistência torna-se ainda mais evidente quando atentamos para o papel dessas mulheres dentro de casamentos arranjados que garantissem os interesses de
suas
famílias.
Uma
atitude
de
abnegação a esse tipo de negócio é a história de vida de Clara de Assis e de sua irmã Inês que optaram por abandonar a família e se juntar aos franciscanos. Elizabeth Clark afirma que “as religiosas estavam se insurgindo contra as estruturas sociais e a ordem política, ao se recusarem a assumir a função a elas atribuída no mercado matrimonial” (CLARK, 1990, 30). Juliana Cabrera atribui a ampla presença feminina no priscilianismo pelo fato deste estar diretamente envolvido com práticas mágicas e atividades místicas. Essa corrente também possibilitava que se difundisse o conhecimento sobre plantas e permitia a utilização de ervas durante os ritos, constituindo em práticas voltadas geralmente
às
mulheres.
(CABRERA,
1983. p. 97)
por isso muitos bispos queriam exortá-las.
156
Cláudia Trindade de Oliveira
Seja lá o que for o motivo pelo qual muitas
mulheres
converteram
podiam
exercer
um
papel
de
ao
protagonista dentro da sociedade de seu
priscilianismo; “se por um lado tal situação
tempo. Contudo, temos de esclarecer que
constituiu uma espécie de resistência, por
tal “projeto” foi amplamente favorecido pelo
outro observamos a existência de um
evidente repúdio episcopal em aceitar as
reconhecimento
das
funções femininas, mas que proporcionou
comunidades da liderança feminina como
às mulheres priscilianistas uma liberdade
legítima e não como uma usurpação”
de ação talvez nunca experimentada por
(SILVA,
outra corrente religiosa.
2009,
se
elas
por
parte
p.03).
Ao
liderarem
comunidades ascéticas, diversas mulheres,
Apesar de terem vivido numa época
como afirma Elizabeth Clark, agiram como
cuja condição feminina era encarada como
patrocinadoras, educadoras e modelos de
uma carga negativa e com a Igreja
comportamento, exercendo forte influência
apregoando a necessidade de enclausurar
sobre homens e mulheres de sua época
as mulheres, as priscilianistas não se
(CLARK, 1990, p. 23-24).
deixaram intimidar por estas teorias e
Considerações Finais
dogmas. O intuito não era de isolar-se do
Se faz necessário questionar o peso
mundo com o objetivo de evadir a tutela
dos discursos da Igreja enquanto reflexos
masculina, tratava-se apenas de exercer
do
um
pensamento
da
sociedade
então
vigente. Assim sendo, não podemos nos
poder
que
estava
exclusivamente
reservado aos homens.
esquecer que a maior parte desta produção
Parece-nos válido afirmar que a
literária foi escrita por homens celibatários.
condição
Fruto de suas convicções, aspirações e
preocupante mais aos eclesiastas do que à
teorias com relação à mulher deste período
sociedade laica em geral, porém, não
e, principalmente no que se refere ao
podemos nos esquecer que a escassez de
priscilianismo, visto como certa ameaça.
fontes
Justamente por esse motivo é que a Igreja
mulheres em posições de liderança possa
o colocava em uma posição marginalizada
ser uma estratégia aplicada pela Igreja com
e inferior.
o intuito de atender interesses seus.
Ao longo deste trabalho constatamos
religiosa
referentes
feminina
à
era
algo
participação
das
Portanto, voltamos ao ponto de onde
que no interior do priscilianismo existiu um
iniciamos
“projeto” de acolhida às mulheres, longe da
questionamento
intervenção masculina e a partir do qual
referenciais que nos permitem observar
esse trabalho, ou seja, do
“apagão”
ao de
157
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
como as religiosas se relacionavam com a
transformação de seu entorno.
sociedade e como contribuíram para a
Referências: Fontes Primárias: CONCÍLIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS. (1963). VIVES, José. (ed). Barcelona / Madrid: CSIC, Instituto Enrique Flórez, 537p. SULPÍCIO SEVERO, Obras completas. (1987). CODOÑER, C. (trad.). Madrid: Tecnos, 261p. PRISCILIANO: Tratados.(2005). Trad. sob a direção de Ricardo de Ventura. Coleção Pensamento Português. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Obras Gerais: AUGUSTO, P. D. Acercamiento prosopográfico al priscilianismo. Espacio y tiempo en la
percepción de la Antiguedad Tardía. Antig. Crist. (Murcia) XXIII: Universidad de Santiago de Compostela, n.23, p.601-626, 2006. BASTOS, M. J. M. Cultura clerical e tradições folclóricas: estratégias de evangelização e hegemonia eclesiástica na Alta Idade Média. Signum, Brasília, n.5, p.15-46, 2003. BELL, Susan G. (1989). Medieval Women Book Owners. BENNET, Judith M. et alii., (ed.)
Sisters and Workers in the Middle Ages. Chicago: Chicago Press, p. 135-161. BROWN, Peter. (1990). Corpo e Sociedade – O Homem, a Mulher, e a Renúncia Sexual no
Início do Cristianismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. CABRERA, J. Estudio sobre el priscilianismo em la Galicia Antigua. 1983. 239 f. Tesis (Doctorado en Historia) - Universidad de Granada, Granada. CALAZANS, J. As condenações ao priscilianismo nas atas do I Concílio de Toledo. In: IX SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS, 2011. Rio de Janeiro. Anais. RJ: Programa de Estudos Medievais (PEM) e Instituto de História da UFRJ, 11p. _____________. Um olhar comparativo sobre o priscilianismo nos séculos IV e VI: os
vestígios do movimento no reino suevo. 2005. 121 f. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. CARDMAN, F. (1999). Women, Ministry, and Church Order in Early Christianity. IKRAEMER, Ross Shepard, D’Angelo, Mary Rose, (ed.) Women & Christian Origins. Nova York: Oxford University, p. 300-329.
158
Cláudia Trindade de Oliveira
CLARK, E. (1990). Early Christian Women: Sources and Interpretations. COON, L.; HALDANE, K. J.;SOMMER, E., (ed.) That Gentle Strength – 27. Historical Perspectives on
Women in Christianity.Virginia: University Press of Virginia, p. 19-35. DUBY, Georges. Eva e os Padres. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. (trad) Maria Lúcia Machado. FIORENZA, E. S. In Memory of Her : A Feminist Theological Reconstruction of Christian
Origins. Nova York, v.11, 813, p.1-11 , 1985. GUILLEM, A. O. Actitud del Estado romano ante el priscilianismo. Espacio, Tiempo y
Forma, Serie II, Historia Antigua,t.14, p.115-127, 2001. JOHNSON, P.(1991). Equal in Monastic Profession – Religious Women in Medieval
France. Chicago, The University of Chicago. LE GOFF, J. (1995). Mentalidades, sensibilidades, atitudes. In: LE GOFF, Jacques. A
civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Estampa.v.2, p.87-127. NASCIMENTO, M. F. D. Ser mulher na Idade Média. Textos de História, Madrid., v.5, n.1, p. 82-91, 1997. SALISBURY, J. E. (1995).
Pais da Igreja, Virgens Independentes. São Paulo: Página
Aberta. SEVERINO, M. B. A mulher e a casa nos inícios do cristianismo. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v.1, n.10/12, p.667-676, out/dez 2011. SILVA, V. F. Construindo a religiosa ideal: da diversidade ao modelo único. Revista de
História Comparada da UFRJ, Rio de Janeiro, v.3, n.2, p. 01-29, 2009.\ TORJESEN, K J. (1995). When The Women Were Priests – Women’s leadership in the
Early Church & the Scandal of their Subordination in the Rise of Christianity. São Francisco: Harper Collins. PEREIRA, C. R. Participação feminina na vida religiosa na Baixa Idade Média: A introdução tardia do milagre no culto mariano. In: XIII Simpósio da ABHR, 13, 2012. São Luís . Anais. São Luís. RBHR, p.13. ZIEGLER, M. F.(2009). Apagadas da História. Revista Unesp Ciência, São Paulo, n.48, ano 05,p.26-29, dez 2013. Disponível
em
<http://www.unesp.br/aci_ses/revista_unespciencia/acervo/48/mulheres-
cristianismo>. Acesso em 20 de mai 2014.
159
RE (A) PRESENTAÇÕES DAS DOMINAS: a matrona no principado romano Danieli Mennitti 1 Resumo: O presente trabalho visa versar sobre as representações das matronas, dentro de alguns discursos da literatura trajânica. As matronas romanas tinham considerável atuação não só na esfera privada, mas também na esfera pública. Através do aparato teóricometodológico oferecido pelas teorias de gênero, a análise crítica do discurso e as teorias de representação, vislumbra-se a construção de um ideal de mulher, no qual esta deveria se enquadrar em determinados padrões. Contudo, as mulheres romanas, e, no caso, as matronas, possuem uma multiplicidade de condutas e comportamentos os quais podem fugir do normativo. Palavras-chave: Matrona; gênero; principado
1
Mestranda Unesp Assis
160
Danieli Mennitti
Escrever a história das mulheres foi
respectivas problemáticas. Os estudos de
questão
gênero se configuraram como um caminho
negligenciada e silenciada. Não só nas
possível para entender a vida feminina e
práticas sociais em si, mas nos discursos.
masculina em vários âmbitos (FUNARI;
Discursos que pretendiam dizer o que eram
FEITOSA; SILVA,2003, p.24). Esses novos
as mulheres, o que deveriam fazer, qual o
estudos procuraram fugir dos caminhos
seu lugar na sociedade. Nestes lugares de
traçados pelos estudos anteriores, que
discursos recorrentes, é preciso acurada
abraçavam as concepções aristocráticas
cautela
sobre as mulheres, as quais tinham uma
durante
muito
para
tempo
uma
distinguir
modulações
e
concepção estereotipada, generalizante e
desvios (PERROT; DUBY, 1993, p.10) Até os anos de 1960, a historiografia como um todo e nisso está inclusa a historiografia
sobre
a
homogeneizadora sobre as mesmas. As análises e estudos de gênero
Antiguidade,
para a pesquisa sobre as sociedades
negligenciava a figura da mulher. Os
antigas começam a entrar em maior
interesses naquele período residiam nas
evidência a partir da década de 1990,
temáticas sobre a guerra e nos espaços
porém ela é ainda marcada por um intenso
políticos, lugares dos quais as mulheres
debate e ambiguidade para os estudiosos
eram excluídas e raramente participavam
do tema (FEITOSA, 2003, p.104).
(PERROT, 1989, p.9-18). Havia algumas
Um
estudo
das
representações
exceções, que ocorriam nos estudos sobre
desse feminino, enquanto parte de um
as mulheres ditas célebres como, por
universo
exemplo, Messalina, Cleópatra, Lívia ou
mesmas são algumas das bases que
Penélope, onde o interesse se encontrava
fundamentam
na relação dessas mulheres com homens
Segundo Chartier, é necessário
poderosos ou pelo poder que porventura elas detinham (LÓPEZ, 1994, p.37-40). Nos estudos historiográficos sobre a Antiguidade,
existe
uma
exclusão
historiográfica
tradição
de
(FUNARI;
FEITOSA; SILVA, apud RICHLIN,2003, p.23). Contudo, esta é uma situação que tem sido transformada e diversos trabalhos procuram estudar as mulheres e suas
simbólico,
evidencia
essa
que
realidade
as
social.
“considerar, corolariamente, estas representações coletivas
como
as
matrizes
de
práticas
construtoras do próprio mundo social — "Mesmo as representações coletivas mais elevadas só têm existência, só são verdadeiramente tais, na medida em que comandam atos” (CHARTIER, 1990, p.183).
As
práticas
provenientes
das
e
estruturas
são
representações,
contraditórias e conflitantes, que são uma forma de dotação de sentido desse mundo,
161
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
constructos
que
viabilizam
usos
e
Um dos conceitos a partir do qual se
significados diversos (CHARTIER, 1990,
permite
p.176).
femininas
Para
Chartier
representação
é,
por
(1990), um
a
lado
“o
analisar
entendido
é
essas
representações
o
conceito
de
gênero,
dentro
de
uma
matriz
epistemológica
feminista,
fundamentado
instrumento de um conhecimento mediato
em Joan Scott. Entende-se o uso de
que faz ver um objeto ausente substituindo-
gênero não como sinônimo de “mulher”, ou
lhe uma ‘imagem’ capaz de reconstituí-lo
“mulheres”, mas dentro de um caráter
em memória e de ‘pintá-lo’ tal como é”
relacional e que diz respeito não somente a
(CHARTIER, 1990, p.20) e, por outro lado,
um estudo sobre mulheres, mas também
como uma espécie de símbolo, “como
sobre homens, da relação entre homens e
exibição
como
mulheres, entre homens, entre mulheres e
apresentação publica de algo ou alguém
entre os gêneros e os demais aspectos da
(CHARTIER, 1990, p.20). Uma realidade
vida humana. O gênero é uma construção
social específica é construída e entendida
cultural, criada socialmente sobre os papéis
de diversos modos, em diferentes épocas.
dos
As representações mostram como esta
elemento constitutivo de relações sociais
sociedade se vê, se imagina se pensa ou
fundadas sobre as diferenças percebidas
como quer ser pensada. Elas não são
entre os sexos e o gênero é uma forma
meros
primária da constituição das relações de
de
uma
produtos
da
presença
sociedade,
mas
também contribuem para a sua construção,
homens
e
mulheres,
sendo
um
poder, obviamente não sendo a única.
a remodela e reorienta. A representação é
As romanas, dentro dos discursos
uma maneira de se pensar sobre a
tradicionais, muitas vezes eram vistas não
sociedade e seu imaginário, código de
como seres individuais, com características
valores, princípios; ela não se configura
ou elementos próprios, mas como alguém
como um mero discurso sobre as práticas
sempre vinculado a uma figura masculina
sociais, ela é também uma prática social,
e/ou como mãe, matrona, esposa, filha de
estando conectada a um contexto de
algum homem. As leis apareceram muito
origem.
concebida
frequentemente como uma ferramenta de
justamente por estar calcada em algo que
manutenção dessa assimetria entre os
existe, ainda que possa haver distorções
gêneros, legitimando uma posição social
ou manipulações dessa representação.
inferiorizada. Dentro de certos discursos
Ela
só
pode
ser
que
se
pretendem
dominantes,
como
162
Danieli Mennitti
alguns discursos das elites romanas, havia
As
a idéia que primava pela diferenciação de
exercidas
papéis por sexo, delegando ao gênero
mulheres romanas, notadamente as das
feminino o espaço doméstico, objetivando
elites, é uma das formas de controle e
retirar
domínio. O ser mãe, esposa, matrona
a
mulher
da
esfera
pública,
restrições sobre
e
a
sexualidade
acabam
uma mistificação da feminilidade, na qual a
supervalorizadas e confundidas com a
realização da mulher romana seria a
essência do ser mulher e também se
dedicação à esfera privada e a obediência
tornam o ponto de referência para a
aos padrões de uma mulher dita ideal.
desqualificação repressão.
demarcado
mulheres
uma
linha
tênue
e
das
funções
prostitutas.
A
referência não é a liberdade e sim a
público e privado em Roma é maleável, por
serem
das
considerada o lugar dos homens. Há então
Entretanto, como já foi dito, o que é
por
normatividades
Ou são
seja,
os
manipulados
corpos
das
das
mais
permeável, além do fato de que não se
variadas formas, seja enquanto numa
pode considerar que há uma hierarquia de
posição de submissão, como seria o caso
valor dos mesmos. Torna-se imperante
das
questionar o pensamento tradicional de que
enquanto objeto de consumo, como seria o
as vivências e experiências da esfera
caso das prostitutas.
privada não são produtoras de valor social,
matronas,
ou
como
coisificação,
A construção das representações de
cultural e político. O espaço privado
mulheres
também é de certa forma, público e político.
mentalidade masculina, que se pretende
Isso
se
vincula
“apenas”
a
firmar como discurso dominante, não é tão
proposição de uma visão de quebra e
somente uma relação de poder entre os
ruptura
feminina.
gêneros masculino e feminino, mas entre
Concebe-se também que estas atuavam na
as diversas dimensões e categorias do
esfera pública, que tinham atuação política,
feminino.
dentre
a
mulheres, pertencentes a grupos sociais
desmistificação entre o público e o privado
diferentes ou não, não são elementos
mostra que o aparenta ser algo restrito,
isolados, que se constroem de maneira
isolado, mostra-se como uma experiência
isolada um dos outros, mas dialogam entre
coletiva,
si e entre os demais elementos da
outras
sociedade.
de
fundamental
se
na
da
torna
não
representação
vivências.
grande
Mas
relevância
na
Os
diversos
lugares
das
sociedade romana.
163
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Torna-se imprescindível dizer que as representações
são,
por
sua
vez,
afirmam que houve mudanças importantes nos mais variados âmbitos da sociedade
constituídas a partir das relações de
romana
gênero, construindo concepções (ideais ou
mudanças, pode citar, por exemplo, uma
não) do feminino e do masculino e que, por
que é bastante significativa para o presente
conseguinte,
a
projeto: as concepções e funcionamento do
permanência (ou não) das desigualdades
público e do privado na sociedade romana
de gênero, nos mais diversos âmbitos da
e as relações articuladas entre eles.
contribuíram
para
sociedade. As
do
período.
Dentre
essas
Um dos conceitos trabalhados nessa mulheres
romanas
tinham
pesquisa é o conceito de gênero, entendido
considerável atuação não só na esfera
dentro
privada, mas também na esfera pública.
feminista. Entende-se o uso de gênero não
Entender como se configuram essas duas
como sinônimo de “mulher”, ou “mulheres”,
esferas da vida em Roma (o público e o
mas dentro de um caráter relacional e que
privado)
diz respeito não somente a um estudo
também
são
igualmente
de
uma
sobre
lugar ocupado pelas mulheres nessas duas
homens, da relação entre homens e
esferas. Além de conceber que não há
mulheres, entre homens, entre mulheres e
“hierarquização
entre
entre os gêneros e os demais aspectos da
essas duas esferas, dado que a divisão
vida humana. O gênero é uma construção
entre o que é público e o que é privado em
cultural, criada socialmente sobre os papéis
Roma
dos
é
importância”
flexível,
maleável,
homens
e
mas
epistemológica
importantes para compreender a posição, o
de
mulheres,
matriz
também
mulheres,
sobre
sendo
um
interdependente, entende-se que essas
elemento constitutivo de relações sociais
mulheres, antes relegadas pelos discursos
fundadas sobre as diferenças percebidas
unicamente à esfera do privado, também
entre os sexos e o gênero é uma forma
tiveram importante atuação nos espaços
primária da constituição das relações de
públicos, bem como obviamente também
poder, obviamente não sendo a única.
nos espaços privados.
Os discursos tradicionais sobre a
O recorte temporal aqui realizado
mulher em Roma (incluso aí as matronas)
entre a segunda metade primeiro século e
costumam colocar a mulher numa posição,
início do segundo, mostra-se significativo
de um modo ou outro, submissa. Suas
ao passo em que inúmeros autores, tais
ações, seu papel social ficam “reduzidos” a
como Veyne, Funari, Grimal, entre outros,
alguma funções, como o casamento, a
164
Danieli Mennitti
maternidade e os cuidados da esfera doméstica.
Juvenal,
Plínio,
o
As
mulheres
são
consideradas
Jovem,
positivamente quando cumprem com os
Sêneca, entre outros, construíram seus
ditames prescritos nos discursos oficiais e
discursos de modo que contribuíram para a
tradicionais. Quando elas fogem desses
construção de um ideal de mulher, ou mais
padrões, são desclassificadas e reprimidas.
precisamente, um ideal de mulher romana das elites. A construção de um ideal de mulher
não
se
vincula
“apenas”
a
mentalidade masculina, que se pretende firmar como discurso dominante, não é tão somente uma relação de poder entre os gêneros masculino e feminino, mas entre as diversas dimensões e categoriais do feminino. Os diversos papéis sociais das mulheres, pertencentes a grupos sociais diferentes ou não, não são elementos isolados, que se constroem de maneira isolada um dos outros, mas dialogam entre si e entre os demais elementos da sociedade romana. Esse ideal de mulher reside na figura da matrona ou materfamilias. As mulheres, e no caso, as matronas, deviam ser dotadas de uma série de virtudes e seus comportamentos deviam enquadrarse
em
padrões
morais
austeros.
É
importante ressaltar que esses requisitos exigidos
da
mulher
e
matrona
são
prescritos pelos homens, pelos discursos masculinos.
A
condição
peculiar
da
matrona torna-se o modelo feminino de pudor e moral.
Segundo Nazira Espinoza, La educación de las mujeres romanas, en especial las patricias, en el mundo antiguo tuvo un objetivo social definido, el cuidado y la protección del entorno familiar, el papel principal de las mujeres en Roma fue el de esposas y madres. La maternidad permitió dar una valoración positiva a la instrucción femenina cuyo fin era que la mater llegara a ser una matrona docta encargada de preparar a los futuros cives de la Urbs.
Essa
mulher
romana
é
então
educada, conforme citado acima, de tal modo a dotar-se dos valores e princípios da moral tradicional, aquela ligada ao mos
maiorum.
Honra,
ponderação,
virtude,
discrição,
pudicitia,
comedimento,
moderação e uma feminilidade, dentre outros valores, são os requisitos exigidos dessa
mulher,
e
principalmente,
da
matrona. A matrona, na visão tradicional, tem a função de gerar de futuros cidadãos romanos e também de educar os mesmos. Elas são encarregadas de cuidar que a criação
de
seus
filhos
tenha
uma
orientação em conformidade com o mos
maiorum, orientar seus filhos nos princípios e deveres cívicos do cidadão romano:
pietas, fides, gravitas, virtus (ESPINOZA, 2012). As próprias palavras materfamilias e
165
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
matrona são originadas da palavra mater, a
Mesmo que os papéis sociais de cada um
mãe de família e mulher casada.
sejam bem demarcados, a existência da
O paterfamilias, ideal de cidadão e
amizade e carinho do outro deveria existir.
homem viril, é modelo universal, e a partir
Isso fica um pouco mais claro na carta 5,
dele se delineia um modelo feminino, ou
do livro VII de Plínio, o Jovem, na qual ele
materfamilias
matrona
se dirige a sua esposa Calpúrnia: “É
(ESPINOZA, 2012). A mulher que se
incrível o quanto eu sinto sua falta; tal é a
submete ao poder do paterfamilias, que
ternura do meu afeto por você que
cumpre com louvor suas funções de mãe e
desacostumei a ficar longe de ti! (Plínio,o
esposa, é digna do título de mater ou
Jovem, V,VIII).”
seja,
a
e
a
matrona.
Entretanto,
mesmo
com
O casamento funcionava, ao menos
modificações no interior do casamento
em certos termos, como uma espécie de
romano, a figura da mulher ideal persiste
contrato social, um meio de fornecer uma
no ideário romano. Na carta 16, do livro V,
perpetuação das famílias e cidadãos para
Plínio o Jovem relata a morte de Minicia
servir aos Estados. Por meio do casamento
Marcella às vésperas de seu casamento.
teciam-se alianças de ordem econômica,
Ele fala da jovem como alguém dotada de
política e social.
todas as virtudes necessárias para se
Esse
caráter
pragmático
de
casamento transforma-se, principalmente no período do principado. Este passa a ser
tornar uma materfamilias: Com apenas 14 anos já combinava a prudência de uma anciã (anilis prudentia), a seriedade de uma matrona (matronalis
não só um vínculo jurídico ou uma
gravitas), a doçura de uma menina
obrigação social, mas uma estilística de
(suavitas
existência
(FOUCAULT,
1997).
Sendo
assim, as condutas e comportamentos exigidos
para
ambos
os
gêneros,
modificaram-se ligeiramente, de acordo com certos discursos. Ainda que muitas vezes
o
discurso
que
imponha
uma
dominação masculina persista, a questão da reciprocidade dos afetos e fidelidades, do compromisso e partilhamento emocional
puellaris),
com
a
discreta
inocência (virginalem verecundia). Livro. V, carta 16, 2-3 …Carregou
sua
última
doença
com
paciência e resignação, com firmeza e verdadeiro valor (temperantia, patientia,
constantia),
obedeceu
as
ordens
do
médico, consolou aos seus pais. (Plínio, o Jovem, Livro V, carta 16, 4-5.)
A mulher romana enquanto matrona e responsável pelos cuidados da domus se configurava como o padrão de seriedade,
com o outro fica um pouco mais clara.
166
Danieli Mennitti
virtude, diligência e fidelidade, conforme a
É possível perceber existência da
educação que teve durante toda a sua vida.
tentativa do discurso dominante de docilizar
A dignidade da mulher enquanto
e
impor-se
como
verdade
única,
de
mãe, ou o status diferenciado de matrona,
empreender forças ativas para o controle e
que se constitui em um ideal de mulher,
enunciação dominantes, que querem fixar e
leva os homens romanos a reconhecerem
controlar, referindo-se a um modelo de
uma
sujeito e de sociedade. Foucault, apesar de
certa
“superioridade”
desse
estamento feminino.
afirmar que há sim uma tentativa de
É interessante dizer que houve
docilização, procura apreender também as
também a repressão do corpo e da
rupturas,
sexualidade
romana,
ameaçavam a estabilidade da configuração
notadamente a mulher casada, além das
das organizações sociais, dos mecanismos
limitações que lhe foram impostas quanto à
de poder.
da
mulher
sua aparência e indumentária.
quebras
e
resistências
que
Tanto nas sátiras de Juvenal e
A mulher romana casada, educada
também nos epigramas de Marcial nota-se
em castidade e pudor, via sua sexualidade
a existência de perfis de matronas que
excessivamente reprimida e restrita a
fogem dos modelos estabelecidos pelos
reprodução
discursos
dentro
do
matrimônio.
A
normativos
existentes
na
homossexualidade ou a sexualidade não
sociedade romana, que adotam condutas,
reprodutiva
comportamentos e valores diversificados e
correspondiam
ao
mundo
antagônico da mulher ideal. O erotismo fora do âmbito de desejos do modelo feminino não
faziam
parte
da
esposa
do
paterfamilias, uma mulher casta, cujo vida pessoa deve ter pudor e prudência. Todos esses valores dizem respeito, majoritariamente, aos princípios das elites
diferenciados. E se eu lhe dissesse andas buscando uma mulher de costumes antigos? [...] Que homem encantador! Prostrado em adoração diante das portas do Capitólio E imola um sacrifício sacrifício em honra de Juno, um bezerro com chifres avermelhados Se tiver sorte o suficiente em encontrar uma mulher casta. (Juvenal, VI).
romanas. Essas representações literárias se constituem em um meio de construir social e culturalmente as normatividades relativas ao gênero feminino. As mulheres enquanto mães e esposas têm um papel social importante na sociedade romana.
Pode-se notar que, neste trecho da sexta
sátira,
Juvenal
demonstra
a
necessidade da castidade, da pureza da mulher; este seria a conduta desejada de uma mulher, ainda mais para que se
167
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
contraísse matrimônio. Juvenal alega que
um ser destituído de valor, que poderia e
existem enormes dificuldades em encontrar
deveria ser usada, incorporando-se ainda
mulheres castas, dada a quebra dos
mais sua classificação como objeto de
antigos valores morais dessa sociedade, o
usufruto de outrem e não teria outra razão
desrespeito ao mos maiorum. Apesar dos
de existir além dessa. A prostituição entra
artifícios e objetivos das sátiras de Juvenal
no rol de profissões consideradas como
serem atacar aqueles que não andam em
absolutamente desprovidas de qualquer
conformidade com mos maiorum, o que fica
honra, assim como o eram também, por
evidente nessa existência da indignatio em
exemplo, os atores e gladiadores. Segundo
seus versos, é possível vislumbrar a
Edwards “paradigmas da antítese da honra,
alternativa, a possibilidade de mulheres
eles ocupavam um lugar crucial na ordem
com condutas sexuais mais abertas, livres.
simbólica. Isto envolve as atitudes dos
Qual a necessidade de adequação dessa
romanos frente aos preceitos de honra,
mulher a uma norma de comportamento
moral e vida pública. As prostitutas (assim
sexual
sexualidade
como também os atores e gladiadores) são
deveria ser contida e sua “ruptura” com
partes muito importantes no processo de
essas
construção da honra e da moral romana”.
mais
rígido?
Sua
normatividades
denotariam
não
apenas um desrespeito para com o mos
Para a construção desse ideal de
maiorum, mas fugiria das prescrições
matrona, esse universo simbólico usava do
masculinas a respeito da sexualidade
binarismo em comparação com a prostituta.
feminina. Sendo Roma uma sociedade
Quando uma matrona não se encaixava
patriarcal,
muitos
nos padrões desejados, ela era comparada
discursos seguem os princípios com uma
a uma prostituta. A prostituta, sendo o total
finalidade
falocêntrica, de
comportamentos
onde
dominação
masculina,
oposto do que uma matrona deveria ser,
desviantes
da
contribuía assim para o reforçar dessa
norma
representam uma ameaça. A prostituição era considerada um “mal necessário”, pois, dentro desses discursos dominantes, teria a utilidade de
norma de conduta austera da matrona; uma
construção
de
identidade
pela
alteridade. Fazendo
uso
do
raciocínio
de
evitar o adultério por parte dos homens e
Chartier (1990), as representações das
assim ajudar na manutenção da instituição
matronas nas fontes elencadas induzem a
do casamento. A prostituta, diferentemente
levar em conta as diferenciações culturais
da matrona, era vista muitas vezes como
não como a manifestação de divisões
168
Danieli Mennitti
estagnadas,
mas
sim
dotadas
de
dinamismo. As
diversas maneiras como a sociedade se percebe e os significados existentes dentro
representações
contidas
na
da sociedade são fatores que ocorrem de
literatura do principado romano fornecem
maneira simultânea e os sentidos que são
um rico quadro de possibilidades de
produzidos o são de modo mais dinâmico.
analisar os discursos sobre as mulheres e
As articulações entre as práticas, entre a
assim vislumbrar as visões da sociedade
“realidade”
romana sobre as mesmas. É relevante
constroem as relações de poder e as
salientar que as representações não se
demais relações dentro da sociedade e que
constituem em reflexos de um determinado
são responsáveis pela sua configuração.
e
suas
representações
contexto, mas sim uma invenção. As Referências: ÁLVARES SPINOZA, Názira. Una aproximación a los ideales educativos femeninos en roma: matrona docta/puella docta.Révista Káñina, vol.36,nº1.2012 CHARTIER,Roger. A História Cultural:entre práticas e representações.Trad.de Maria Manuela Galhardo.Lisboa:Difel; Rio de Janeiro: Butrand Brasil, 1990. CHARTIER, Roger. O mundo como representação.Trad. de Andréa Daher e Zenir Campos Reis. Revista Estudos Avançados 11, ano 5, 1991. FEITOSA, Lourdes Conde. Homens e mulheres romanos: o corpo, o amor e a moral
segundo a literatura amorosa do primeiro século d.C (Ovídio e Petrônio). Dissertação (Mestrado em História). Assis, SP: Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências e Letras, 1994. ____________. Amor e sexualidade: o masculino e o feminino nos grafites de Pompéia. São Paulo: Annablume - FAPESP, 2005. 168 p. ___________. História, gênero, amor e sexualidade: olhares metodológicos. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia. São Paulo, 2003, n. 13. pp. 101-115. ___________. Gênero e sexualidade no mundo romano: a Antiguidade em nossos dias. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 48/49, p. 119-135, 2008. Editora UFPR JUVENAL AND PERSIUS. Edited and translated by Susanna Morto Braund.Londres:Loeb Classical Library,2004 PERROT, Michelle; DUBY, Georges.Escrever a história das mulheres.In: PANTEL, Pauline Schmitt (Dir.).História das Mulheres no Ocidente, vol.I: Antiguidade.Trad.:Alberto Couto,
169
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Maria Manuela Marques da Silva, Maria Carvalho Torres, Maria Teresa Gonçalves e Teresa Joaquim.Porto (Portugal): Edições Afrontamento, 1993. PLINY THE YOUNGER. Letters. trad. W. M. L. Hutchinson. Londres: Loeb Classical Library, 1952, v. V SCOTT, Joan. Gênero: Uma Categoria Útil para a Análise Histórica. Traduzido pela SOS: Corpo e Cidadania. Recife, 1990
170
DECADENTISMO, ESCATOLOGIA APOCALÍPTICA E A CRISE IMPERIAL NO SÉCULO III Douglas Raphael Machado Gobato 1 Renata Lopes Biazotto Venturini 2 (Orientadora) Resumo: Neste texto, buscamos resgatar as raízes históricas das ideias de crise e decadência das sociedades antigas, que remetem as cidades-estados sumérias da Baixa Mesopotâmia em torno de 3000-2500 a. C., a fim de compreender como se desenvolveram entre os romanos e influíram sobre os eventos que marcaram a crise do Império ocidental no século III de nossa era. Paralelamente, estudamos a interpretação escatológica de cunho apocalíptico que enraizou-se no cristianismo desde o século primeiro, graças a influência da cultura messiânica judaica do Antigo Testamento. Diante da crise imperial e das transformações que assinalaram a desagregação do estado romano a partir do governo de Marco Aurélio (161-180), mostramos como o embate entre a ideologia romana a respeito da crise e as ideias apocalípticas cristãs em torno da segunda vinda de Cristo, aliadas a sua intransigência religiosa frente as práticas do paganismo, levaram às ações persecutórias dos séculos II e III, e em seguida, a aproximação entre a cristandade e o Estado Romano. Nesse sentido, o conflito ideológico em torno da crise atuou significativamente não apenas sobre as explicações que se deram ao momento de instabilidade, mas repercutiram sobre as ações políticas adotadas pelo Estado a fim de remediar os conflitos naquele momento. Palavras-chave: Crise do Império Romano; Ideias Apocalíticas Cristãs; Política Imperial.
1
(PPH/LEAM-UEM)
2
(DHI/PPH/LEAM-UEM)
171
Douglas Raphael Machado Gobato para él representaba la existencia y el rápido
Introdução
desarollo del cristianismo, al que veia como un
O império que se desenvolveu a partir
da
cidade
expandiu-se
etrusca
por
três
de
cuerpo estraño y capaz, a la larga, de poner en
Roma,
peligro su cohesión interna” (1972, p. 70).
Por
continentes,
outro
lado,
segundo
Pablo
transformou o Mar Mediterrâneo no que os
Fuentes Hinojo, em artigo intituladoLa
romanos chamavam de “mare nostrum” e
caída de Roma: imaginación apocalíptica e
criou a ilusão, de que se Roma caísse o
ideologias de poder en la tradición cristiana
mundo não sobreviveria a sua queda.
antigua (siglos I al V) (2009, p. 89), os
ARoma invictus das épocas de Augusto e
imperadores perseguidores subestimaram
Plinio (MAZZARINO, 1991, p. 68). Apesar
quão arraigada estava a capacidade de
disso, ideias decadentistas e fatalistas da
resistência entre os cristãos frente a suas
sociedade
romana
acompanharam instabilidade,
em a
sempre
a
ações persecutórias. Parte da explicação
momentos
de
dessa aguerrida obstinação e do fracasso
últimos
das perseguições, portanto, está nessa
exemplo
dos
períodos da República, nos séculos II e I a.
cultura
C, e na crise imperial a partir de finais do
escatológicas.
século II d. C.
de
crenças
milenaristas
e
Entre os romanos,várias foram as
O crescimento e organização da
causas atribuídas a decadência do Estado.
religião cristã, que em meados do século II
Em
já não se tratava mais uma seita de judeus
Mazzarino em O Fim do Mundo Antigo
dissidentes exclusiva desegmentos sociais
(1991,
marginalizados, trouxe à tona uma tradição
esgotamento dos campos e a atrofia da
de ideias milenaristas e apocalípticas que
agricultura. Não demorou, todavia, para
colidiria com a concepção pagã de crise.
que essas ideias tomassem uma dimensão
Esse choque de ideologias, nos séculos II e
moral e fossem associadas à degeneração
III
levou
os
cristãos
perseguidos.Assim
nos
princípio, p.
16)
como eram
aponta
Santo
associadas
ao
a
serem
dos costumes.Assim dizia Políbio no século
dizem
Marcel
II a. C:
Simon e André Benoit em El judaísmo y el
cristianismo antiguo: de Atíoco Epifanes a Constantino:
“De fato, quando uma comunidade superou muitos e graves perigos e chegou a um poderio e a um domínio indiscutíveis, fatos novos ocorrem: a felicidade nela instala sua sede, a vida volta-se
“El desarollo y la expansión del cristianismo
para o luxo, os homens almejam alcançar as
plantearon
las
magistraturas ou as demais distinções. Seguindo-
relaciones entre Iglesia y el Imperio [...] hubo una
se nessa direção, a aspiração às magistraturas ou
progressiva toma de conciencia del peligro que
o protesto dos que se veem repelidos originará a
en
seguida
el
problema
de
172
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo decadência, a soberba e o luxo farão o resto” (apud Mazzarino, 1991, p. 21)
O
mesmo
Políbio,
em
outra
passagem (apud MAZZARINO, 1991, p. 21) aponta as causas da decadência: “Duas são as formas pelas quais cada tipo de Estado costuma perecer: uma é a ruína que vem de fora; a outra, ao contrário é a crise interna; difícil de prever a primeira, determinada a partir de dentro a segunda [...]”. Apesar do pessimismo de Políbio, o que também aparece em Cícero e Salústio (UBIÑA,
1982,
p.
18)
há
em
seu
pensamento um sentimento otimista em relação à recuperação frente ao momento conturbado. República,ao
Nos
últimos
escreverpara
dias
da
César
acrescenta: “Este é meu pensamento. Como o que nasceu
escrava e as invasões nas fronteiras, serão adicionados como tentativas de explicação para o momento conturbado. Em todo caso, a oposição dos cristãos em observar os ritos tradicionais do paganismo os farão serem vistos como opositores ao retorno da estabilidade. Em nosso texto, buscamos resgatar as raízes históricas dessas ideias de crise e decadênciaque permearam asociedade romana
–
não
sem
antes
nos
pronunciarmos a respeito dos cuidados ao se
empregar
considerando
esses a
tradição
conceitos
–
fatalista
do
paganismo e as ideias apocalípticas que se desenvolveram a partir da cultura judaicocristã, para entender como esse embate ideológico esteve por trás das explicações da crise imperial, das medidas tomadas
morre, quando a fatalidade se abater sobre a
para remediá-la e da política da igreja cristã
cidade de Roma, os cidadãos entrarão em conflito
em aproximar-se do Estado romano.
com os cidadãos; e só então, cansados e
Sobre o conceito de decadência e a
esgotados, cairão nas mãos de algum rei ou de
crise imperial no século III
alguma nação. De outra forma, nem o mundo inteiro, nem todos os povos juntos poderão romper ou danificar este império de Roma. É preciso, portanto, consolidar os bens da concórdia, destruir
Estamos habituados a estudar os últimos
séculos
do
Império
Romano
particularmente
os
os males da discórdia” (apud MAZZARINO, 1991,
ocidental,
p. 26).
acontecimentos que se deram durante o
A
degradação
dos
costumes,continuará sendo apontada como uma das causas da instabilidade, todavia, no contexto da crise do Império fatores mais concretoscomo a excessiva cobrança de impostos, a diminuição de mão de obra
século III, como um momento de crise e decadência. J. Fernández Ubiña em La
crisis del siglo III y el fin del mundo antiguo, nos fala de alguns cuidados ao se tomar tais conceitos, justamente pelo significado que carregam e pelo distanciamento da
173
Douglas Raphael Machado Gobato
realidade histórica que podem sugerir.
concretos
Nesse sentido, é importante para nós
imperial a transformar-se a partir de finais
justificarmos a forma como nos valeremos
do século II de nossa era.
desse arcabouço conceitual. De acordo com Ubiña:
que
levaram
Feitas
a
sociedade
as
devidas
justificativas,convémagora
“Crisis y decadencia no son conceptos históricos, quiro decir, científicos. [...] Lo cierto es que las más
diversas
adversidades
han
sido
buscarmos
asorigens das ideias de crise e decadência na
antiguidade,
para
seguida,
consideradas como efectos o causas de los
observamos
‘tiempos
contexto da crise do século III. Seguimos
de
crisis
y
decadencia”,
que,
normalmente, estarían precedidos de una ‘edad de oro’ y que, en no menos ocasiones, eran
seus
em
desdobramentos
no
então Mazzarino (1991, p. 13-14) até a
seguidos de otros tempos felices que, en el peor
baixa Mesopotâmia, por volta de 3000-
de los casos, constituírian una ‘edad de plata’”
2500 a. C, quando “[...] as numerosas
(1982, p. 11).
Vemos indiscriminada
como desses
a
utilização
conceitos
pode
sugerir um julgamento em relação a épocas anteriores, como no caso romano antes e depois do governo de Marco Aurélio (161180), onde boa parte dos historiadores modernos
situam
o
imperial.É
importante
início
da
crise
compreendermos,
que esses momentos de instabilidade associados a crise e decadência, tratamse, em realidade, de fatores concretos, seja no campo da política, economia, cultura ou das mentalidades, e que em última análise representam
características
períodospassados
da
alheias
história
a
(UBIÑA,
1982, p. 14-15). Não tomamos nesse trabalho o conceito de crise como um julgamento valorativode uma época em relação à outra, mas apenas o utilizamos para indicar uma série de novos elementos
cidades
sumérias,
que
nunca
tinham
concebido a ideia de um império universal, entraram
numa
sofrida
agonia
devido
exatamente a essa sua incapacidade”. Por volta dessa época, habitantes da cidade de Uma
tentaram
instaurar
universal,
todavia,
não
sucedidos.
Diante
desse
um
Estado
foram
bem
quadro
de
mudanças, o governador da cidade de Lagash,
Erukagina,
acreditava
que
a
maneira de se retornar ao período de estabilidade instituições
seria
retornar
sumérias
e
as
velhas
combater
as
“abomináveis” tentativas universalistas de Uma (MAZZARINO, 1991, p. 14). Neste recuado passado, Mazzarino (1991, p. 14-15) aponta a gênese do conceito
de
decadência,
posto
nas
agitações entre o velho e o novo, onde desenvolveu-se um sentimento de declínio próximo ao de culpa coletiva, assim como
174
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
veremos
entre
quando
Um século antes, os etruscos já
acreditou-se que era preciso combateras
concebiam a desagregação de seu Estado,
novas tendências desagregadores através
que estaria prevista para o final de oito
da recuperação de velhos costumes.
séculos marcados a partir a partir do início
Assim
os
como
romanos,
outros
Estados
de sua nação. Para eles, a decadência
anteriores, o Império Romano manteve a
estaria relacionada a ruína da agricultura.
ideia de cidade-estado, mas sobrepôs a ela
Essa ideia de esgotamento da terra foi
o conceito de um império universal. “Da
difundida, ainda que com variações, para
Europa à Ásia e à África, o novo Estado
outras regiões. No último século antes de
renovou a vida nas cidades antigas; novas
Cristo, Lucrécio afirmava:
cidades surgiram, sobretudo na Europa e na África; o império se sobrepôs à nationes [...] no ódio ou no amor, Roma dominou as consciências” (MAZZARINO, 1991, p. 15). A análise de Mazzarino nos dá outra dimensão da crise. Roma não tratava-se apenas
de
um
conjunto
instituições
supranacionais, mas da própria fantasia da
Roma invictus, e sua decadência envolve a ansiedade inerente ao declínio desse mito. Em todo caso, as ideias de declínio permearam o imaginário dos indivíduos muito antes da consolidação do Império de Roma. O historiador Tucídides(460-395 a. C.)
já
havia
identificado
ideias
decadentistas com a crise do mundo grego nos séculos III e IV a. C. Entre os romanos, como nos informa Mazzarino (1991, p. 1617): [...] a crise do poderio romano foi temida e, dir-se-ia, diagnosticada desde o século II a. C., ou seja, desde os tempos das grandes conquistas mediterrâneas”.
“Eis que nosso tempo já decaiu. A terra, cansada, a muito custo cria pequenos animais [...] Utilizamos bois e camponeses e arados, mas os campos mal e mal compensam, [...] Triste, o plantador de uma videira envelhecida e lânguida acusa a ação do tempo e culpa a nossa época [...] com suas lamentações não, percebe que todas as coisas apodrecem
lentamente,
caminhando
para
a
sepultura, desgastada pelo longo caminho do tempo”. (apud MAZZARINO, 1991, p. 18).
Outros
contemporâneos
como
Salústio e Cícero, viram a decadência de um ponto de vista ético e ideológico: “[...] como las costumbres, la ausência de ‘grandes hombres’, la desaparición de la virtus, la luxúria a la inclinata res publica” (UBIÑA, 1982, p. 18). Políbio, no século II a. C., faz uma interpretação das causas da decadência
romana
a
partir
do
que
considerava como fatores “internos” e “externos”. Assim, conforme Ubiña “En las Historias de Polibio se encuentran los dos motivos que simpre dominaron a la interpretación del fin del mundo antiguo, hasta hoy: por una parte, la explicacion interna, que ya políbio aplica a
la
estructura
constitucional
del
Imperio
Romano, deduciendo la futura ruina de la
175
Douglas Raphael Machado Gobato imposibilidad de superar los contrastes de classes; por otra, la explicación exterior, que Políbio aplica a la barbarización del Estado grecobatriano, en la cultura clássica, unida a la iranica, se vio submergida por las oleadas de nômades irânicos” (1982, p. 18)
Nos
primeiros
dois
séculos
do
Império, mesmo com as reformas de Augusto, como indica Ubiña (1982, p. 18) renasceram as ideias de Cícero e Salústio de degeneração da moral e dos costumes do povo romano. Por outro lado, nem todos viram esse momento de forma negativa. Para Ovídio, (apud MAZZARINO, 1991, p. 33): “Há quem goste do passado, mas eu me sinto feliz por ter nascido agora; está época convém à minha maneira de viver”. Outros, como Floro e Elio Aristides,também compartilhavam desse espírito, a ponto de a maioria dos historiadores, desde Gibbon, considerarem a dinastia dos antoninos no século II como uma “idade de ouro” sem precedentes (UBIÑA, 1982, p. 19). Esta época de otimismo terminaria com o reinado de Marco Aurélio (161-180), quando
o
Império
passou
a
sofrer
sucessivos ataques em suas fronteiras, uma aguda crise econômica e comercial, um endurecimento radical da administração e a excessiva cobrança de impostos. Segundo Géza Alföldy, em A História
Social de Roma, a morte de Marco Aurélio foi interpretada como o fim de uma “idade de ouro” e o princípio de uma idade de
ferro e ferrugem, assim descreveu Cássio Dião: “A crise não começou simultaneamente em toda a parte e as suas manifestações variaram nas diferentes regiões do Império. [...] Apesar de tudo, o Império romano sofreu uma transformação em todos os domínios da vida que veio a provocar alterações profundas na estrutura da sociedade” (1982, p. 173).
Segundo o mesmo Alföldy (1982, p. 173) a crise se manifestava de forma mais evidente
nas
catastróficas
relações
externas de Roma. Segundo ele, após algumas vitórias bem sucedidas de Marco Aurélio contra os Germanos, o Império foi atacado no governo de Severo Alexandre (222-235),
Maximino
(235-238),
Décio
(249-251) e a captura de Valeriano pelos Persas em 260, evento que Lactâncio descreve em De Mortibus Persecutorum (2000, p. 73-74)como um castigo de Deus contra suas ações anticristãs. No
plano
interno,
a
convulsão
econômica, que ia muito além dos espaços urbanos, levou a um endurecimento da máquina administrativa e governamental. A última revolução romana, como aponta Peter Brown em seu livro O Fim do Mundo
Clássico: de Marco Aurélio a Maomé, trata exatamente das reformas na administração iniciadas
por
estabelecimento
Diocleciano da
com
Tetrarquia,
o que,
conforme Lactâncio (2000, p. 77) dividiu a terra em quatro partes. O novo sistema de administração, previa uma virtual divisão
176
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
administrativa do Império em duas partes,
Por outro lado, a camada social mais
governada
atingida com o novo delineamento político
por
dois
augustos
e
dois
césares.
foi a dos decuriões, composta pelos
As reformas de Diocleciano nas
cidadãos ricos das cidades que tinham por
últimas décadas do século III, apesar de
obrigação zelar por sua manutenção. O
todo o descontentamento dos segmentos
enfraquecimento
mais baixos da sociedade,proporcionaram
deveu-se,
ao Império um período de considerável
econômica da crise, que atingiu de forma
estabilidade, ainda que esse momento
mais severa as cidades. Os decuriões
fosse marcado pela Grande Perseguição
também sofreram por serem a classe mais
aos cristãos (303-305), fator que terá
tributada do Império, já que os senadores,
grande importância na política imperial no
grandes proprietários de terras, e os
século IV.
cavaleiros, em grande parte funcionários do
Segundo momento
de
Peter
Brown,
reformas
nesse
políticas
e
econômicas do século III: militar
senatorial
é a
[...]
excluída
a
aristocracia
dos
comandos
servir
como
soldados
profissionais, que haviam subido pouco a pouco.
[...]
Essas
transformações
1982, p. 178-190). Foi diante desse contexto de crise as
ideias
decadência pagão.Nesse
De modo geral, todas as camadas sociais foram atingidas pela nova política administrativa. Os senadores perderam seu
órgãos
que
aumentaram a mais do dobro o seu
governamental, e
dentro sendo
funcionários
face
que dela se obtivesse algo (ALFÖLDY,
violência
político
a
Quanto à população, tanto a urbana como
duplicaram o tamanho do exército e custo”. (1972, p. 26-27).
poder
principalmente,
decurionum
Estado, gozavam de privilégios fiscais.
militares, em 260. Os aristocratas veem-se obrigados
ordo
a dos campos, era demasiado pobre para
“O Império Romano é salvo por uma revolução
da
do
substituídos estatais
escol por mais
eficientes. Diante desse recuo, a ordem dos cavaleiros passou a representar a pedra angular na administração imperial.
cristãs
a
chocaram-se
contra
o
modelo
momento,
respeito com
de mais
explicativo muitos
já
assinalavam fatores concretos para a crise, como Ulpiano e Filóstrato, que apontavam gretas perigosas na administração do Império, como a escassez de mão de obra. Cássio Dião, que considerava o governo de Marco Aurélio como uma “idade de Ouro”, identificou a época seguinte como uma “idade de ferro” (UBIÑA, 1982, p. 19).Após a “revolução militar” e o consequente endurecimento da administração no século
177
Douglas Raphael Machado Gobato
III, segundo Peter Brown em, A ascensão
Ao procurarmos pelas raízes do
do cristianismo no Ocidente (1999, p.
pensamento apocalíptico cristão, somos
37):“O
restaurado
levados a tradição messiânica judaica que
bastante
ao longo de todo o antigo testamento falava
abalada, ansiosa pelo retorno da lei e da
da vinda do messias. Segundo Simon e
ordem. As palavras de ordem da época
Benoit,os judeus: “[...] esperaban resarcirse
eram reparatio (reparação de um mal) e
de las humillaciones acumuladas en el
renovatio(renovação).”No
campo
curso de los siglos, buscando su imagem
restauração
em el mismo passado de un descendiente
às
autêntico de David.” (1972, p. 19).
Império
constituía
Romano
uma
sociedade
ideológico-religioso representava
essa
um
retorno
antigas
práticas do paganismo (mos majorum)
Com a doutrina dos apóstolos, o
quando os cristãos passaram a representar
cristianismo aos poucos foi diferenciando-
um
se dos círculos do judaísmo e adquirindo
empecilho
para
o
retorno
à
estabilidade.
uma
Milenarismo e escatologia: da ideia
cristã
de
escatológica
própria,
assentada na crença da segunda vinda de
intransigência cristã a teologia política A
cultura
Cristo e nos sinais apocalípticos que a
decadência
precederia, conforme dito na literatura
desenvolveu-se em uma atmosfera de
apocalíptica dos dois primeiros séculos.A
expectativa pela parousiade Cristo e a
esse respeito, Hinojo diz que:
ansiedade frente aos acontecimentos que eram associados aos sinais do retorno do messias, como previsto nos livros de Daniel e
no
Apocalipse
de
João.
Para
compreendermos, portanto, como a Igreja reagiu
frente
a
crise
imperial,
caberecordarmos, como faz Fuentes Hinojo em
artigo
que
mencionamos,
“Desde sus Orígenes, el cristianismo desarolló, en continuidade
con
la
tradición
hebrea,
una
escatologia o conjunto de crenças sobre ‘el fin de los tiempos’, centradas en torno de la parusía o segunda vinda de Cristo a la tierra, cujos primeiros testemonios se encuntran en las epístolas de Pablo, los evangélicos sinópticos y el Apocalipse de Juan” (2009, p. 74).
A crença das primeiras comunidades
o
cristãs em relação ao poder temporal, ou
desenvolvimento das ideias apocalípticas
seja, à dominação romana, assumiram
que no século IIIlevaram os cristãos a
duas possibilidades: a primeira, sustentada
serem perseguidose a tentativa da Igreja
nos escritos de Paulo, com o passar do
em superar essas ideias e buscar uma
tempo e ao perceber que a eminente
aproximação com o Estado romano.
parousia
não
ocorreria,
buscou
uma
postura de coexistência pacifica com a
178
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
autoridade
secular.
Hinojo:
Em estreita relação com esse afastamento
“Pablo consideraba a los emperadores y
está, como dissemos, o sentido finalista
magistrados como autoridades instituídas
que tradicionalmente os cristãos deram à
por
la
história humana: “O sentido de um fim faz
rindenóndoles
mais que proporcionar um mito para
honores y cumpliendo pontualmente con el
justificar a separação entre a comunidade
deber de pagar tributos y observar las
justa e a cultura mais ampla ao seu redor.
leyes”.
a
Ele desestabiliza o mundo. Declarando que
que
tudo que é tido como certo terá fim [...]”
Dios,
que
el
de
acatar,
obligación
Em
orientação
Conforme
Cristiano
segundo
lugar,
apocalíptica
de
tenía
temos João
considerava Roma como o anticristo ou a
(MEEKS, 1997, p. 177).
Besta do Apocalipse (HINOJO, 1999, p. 74-
A medida que, a partir do século II, a
parousia de Cristo não parecia tão próxima,
75). Em linhas gerais, no primeiro século
a atitude de muito cristãos em relação a
prevaleceram as ideias escatológicas e
sua
milenaristas que ainda criam no eminente
consequentemente sua postura diante do
retorno do Messias. Segundo Hinojo:
poder temporal passou a mudar. Assim,
“La apocalíptica Cristiana, como la judia, difundió una concepción determinista de la história la que el futuro
de
la
humanidade
dependia
de
un
planprefijado [...] Atendiendo a estos princípios, la apocalíptica Cristiana fundamentaria una prática de
opocición
radiacal
hacia
los
poderes
temporales, que iba a dificultar la integración de los cristianos en la sociedade greco-romana” (1999, p. 18).
Essa postura de afastamento do mundo própria dos cristãos joaninos, como aponta Wayne A. Meeks em As Origens da
Moralidade Cristãfoi um dos elementos constitutivos da moral cristã nos dois primeiros séculos. Assim nos diz: “[...] a alienação dos cristãos joaninos em relação ao mundo não é fuga do mundo por parte dos indivíduos. Esses cristãos confrontam o mundo na solidariedade de uma seita”.
concepção
milenarista
e
nas palavras de Hinojo: “[...] a medida que se prolongaba la espera escatológica se hizo necessário dotar a las comunidades
de
una
estrutura
de
gobierno
temporal, que garantizase la supervivência. En principio, predominó el modelo del espiscopado o presbiterado múltiple, sustituido en todas partes, a lo largo del siglo II, por el monarquismo episcopal” (1999, p. 80).
Da
perspectiva
escatológica
no
Ocidente, em torno da segunda metade do século II e início do século III, parte dos autores cristãos tenderam a abandonar a ideia de um fim do mundo próximo e acercaram-se mais dos problemas da época, como faziam os autores pagãos. Essa postura, como destacam Ubiña (1982, p. 21-22) e Hinojo (2009, p. 81) levantou oposições, tanto no Ocidente quanto no
179
Douglas Raphael Machado Gobato
Oriente,
onde
prevaleciam
as
teses
catastrofistas de um fim do mundo próximo (UBIÑA,
1982,
p.
21).
O
movimento
montanista de meados do século II, como aponta
Hinojo
“[...]
respondia
a
la
necessidade que sentían los cristianos más tradicionalistas
de
reafirmarse
en
los
fundamentos de la fe ante los progresos de la
cultura
grecorromana
espiritual
de
y
muchos
la
tibieza
de
sus
correligionários”.Tertuliano (155-230), bispo de Cartago, adaptou a teologia montanista as tradições do cristianismo africano e fundou sua própria seita, com os mesmos objetivos
de
apocalíptico
manter em
vivo
torno
o
ideal
parousia
da
(HINOJO, 2009, p. 82). O início de século III,foi marcadopor decretos contra os cristãos e o evidenciar da crise imperial que, como vimos, tornouse mais visível após o governo de Marco Aurélio.A
crise
resgatou
as
ideias
catastrofistas pagãs, e da mesma forma reascendeu o ânimo dos cristãos e suas ideias apocalípticas. Neste ponto, temos um embate de ideologias. Os romanos acreditavam na amputação do elemento estranho que se recusava a participar do retorno as antigas tradições do paganismo. Os cristãos, por sua vez, viam a eminencia da parousia. As perseguições não serão, se não uma exposição desse conflito ideológico, contudo, nem todos os cristãos
reagiram da mesma forma à crise, como nos diz Mazzarino: “[...] a atitude dos cristãos em relação à crise imperial
diferenciou-se
de
forma
acentuada:
alguns,
exaltando
obra
da
Providencia,
a
conciliavam, confiantes, império de Roma e cristianismo; outros desprezavam o império e procuravam,
com
dissimulada
alegria,
uma
explicação satisfatória para a queda iminente devido à chegada do Anticristo, Nero redivivo, prestes a ser derrotado pelo sopro do Senhor” (1991, p. 38).
Assim, da mesma forma que a crise imperial não atingiu o Império da mesma forma em todas as regiões, a reação dos cristãos e pagãos a ela também não foi homogênea.A postura “oficial” da Igreja de Roma
era
desencorajar
as
ideias
catastrofistas de um fim do mundo próximo, pois,a despeito das reações anticristãs no século III, como aponta G. E. M. de Ste Croix em artigo que se intitula, Por que
fueron
perseguidos
los
primeiros
cristianos? “En los intervalos estre estas persecuciiones generales, la situación, a mi parecer, recordaba mucho lo que había sido antes, excepto que la posición de la Iglecia era, en general, mejor: hubo varias persecuciones locales, pero hubo también largos períodos durante los cuales los cristianos gozaron de algo semejante a una paz completa sobre la mayor parte dol império” (1981, p. 234-235).
O crescimento das igrejascristãs ocidentais necessidade
no de
século
III,
conservar
levava os
a
bens
adquiridos nesses momentos de tolerância, e como Hinojo (1999, p. 89): “[...] obligó a
180
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
las Iglesias, a mantener buenas relaciones con las autoridades. Una circustancia que favoreceria la aproximación mutua.” A
reorganização
especial
com
as
Diocleciano,trouxe
imperial,
em
reformas
de
novamente
certo
equilíbrio a sociedade e adiou por mais alguns séculos a derrocada de Roma no Ocidente. Diante dos delineamentos que seguiram
a
Tetrarquia,
dois
autores
cristãos, Lactâncio e Eusébio, chegaram aadmitir
a
ideia
de
um
Império
cristianizado,deslocando em suas obras as ideias apocalípticas e decadentistas. A
obra
deLactâncio,Institutiones
Diuinaes, começou a ser escrita em 305 e compõe-se de sete livros destinados a combater as religiões e filosofias pagãs em defesa dos dogmas cristãos. Em seu sétimo livro, conforme Hinojo (1999, p. 90) dedicado ao imperador Constantino e escrito entre 306-312, Lactâncio utiliza-se de uma tradição mais antiga de estabelecer uma datação para o fim do mundo, baseado na semana cósmica hebraica que interpretava os dias da criação não de forma literal, mais cada dia correspondendo a um milênio.Assim nos diz o retórico latino: “Así pues, dado que Diós hizo su obra en seis dias,
años ante tus ojos, como un dia” (LACTANCIO, 1990, p. 318).
Neste ponto, Lactâncio recupera o que já havia sido feito por Justino, que apoiado na narrativa do livro de Daniel, apontava a parousia para o ano 350 após o nascimento de Cristo. Essa atitude, ia de encontro com as tentativas das hierarquias das grandes Igrejas em desacreditar as ideias
milenaristas,
cujas
principais
estratégias foram desautorizar a literatura apocalíptica e utilizar a cronologia e as previsões para afastar a ansiedade frente ao retorno eminente de Cristo (HINOJO, 1999, p. 83-84).Outros autores cristãos como
Sexto
Júlio
Africano,
em
sua
Chronographia, também seguiram essa tradição, ainda que apresentasse algumas variações em relação a data final. De todo modo, conforme Hinojo (1999, p. 85) importa identificarmos que esses sistemas serviram como instrumento para controlar as esperanças apocalípticas, e no futuro, reservar apenas aos eruditos os temas referentes a previsões do futuro. Esse abrandamento das ideias apocalípticas foi significativo na aproximação entre s igrejas cristãs e o Estado Romano. Passo
decisivo,
todavia,
na
aproximação entre Roma e o cristianismojá
el mundo permanecerá necessariamente en este
havia sido dado por Orígenes (185-254),
estado seis siglos, es decir, seis mil anos, como
que através de uma interpretação alegórica
disse el profeta con estas palavras: ‘Senhor, mil
das escrituras, sugeriu que a salvação
181
Douglas Raphael Machado Gobato
seria individual e na alma de cada crente.
Diuinaesa união entre poder político e
O reino de Deus foi deslocado por ele para
religioso e a esperança em adiara vinda do
o plano espiritual, desconsiderando uma
anticristo e o juízo final.Em De Mortibus
parousia universal de acordo com a
Persecutorum,a
interpretação tradicional cristã.Em relação
sobre
ao relacionamento do cristão frente ao
tetrarquiaserá vista pelo autor como a
Estado proposto por ele:
vitória
“[...] Orígenes sustuvo el principio de lealtad para con el Estado. Los cristianos tenían el deber
os do
vitória
de
demais
membros
cristianismo
sobre
no entrasen en conflito con las demandas de su
Considerações finais
consciência, como en el caso de la participación
A
pelo
Estado
enel
culto
vemos
essa
imperial”(HINOJO 1999, p. 85).
Em
Lactâncio,não
interpretação alegórica, pelo contrário, a segunda vinda de Cristo estaria envolta em sinais apocalípticos e de degradação dos valores humanos. O anticristo viria da Ásia, e o Oriente dominará sobre o Ocidente. Sem dúvida o autor cristão via esses sinais na crise imperial em que estava inserido. Por outro lado, o retórico vincula o fim do mundo ao fim de Roma.
da seus
persegidores.
inexcusable de cumplir las leyes, mientras éstas
requerida
Constantino
adesão
ao
cristianismo
por
Constantino e o pensamento de Lactâncio que justificava a existência de um Império cristão,
todavia,
não
encerraram
as
previsões
apocalípticas
relacionadas
parousia
de
e
Cristo
as
à
ideias
decadentistas do paganismo, que verá na cristianização do Império mais um dos sinais a serem relacionados a decadência de Roma. A despeito dessa continuidade das ideias
decadentistas,que
terão
nos
“La propia situación actual declara que la caída y
acontecimentos que seguiram a segunda
final del mundo ocorrirán en breve tempo, salvo
metade do século IV uma variedade de
que Roma se mantenga, en cuyo caso no parece que haya que temer nada de esto. Pero cuando
“sinais” do fim do mundo, consideramos
caiga esta capital del mundo y empiece a llegar su
que a vitória alcançada pelo cristianismo na
decadencia, de la cual hablan las Sibilas, quién.
adesão à religião pelo imperador e mais
puede dudar de que ha llegadoel final de la humanidade y del mundo” (LACTANCIO 1990, p. 344).
tarde,
com
Teodósio
I
em
392,
na
oficialização do cristianismo como a religião
Inerido nas disputas de poder da
imperial, um divisor de águas no que se
tetrarquia, a qual considera ser o gérmen
refere ao tema que temos estudado.
da decadência (HINOJO, 1999, p. 91),
Apesar dos esforços de Juliano (355-363),
Lactâncio já concebe em suas Institutiones
chamado pelos cristãos de “o apóstata”, em
182
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
reavivar as velhas tradições do paganismo,
direção ao retorno à estabilidade, como o
temos agora um Império cada vez mais
regresso
cristianizado, onde os velhos costumes
paganismo, as perseguições aos cristãos e
tradicionais do paganismo só teriam lugar
a aproximação da Igreja ao império. Nesse
nas periferias, e só até que o cristianismo
sentido,
não os alcançasse, o que ocorrerá após a
visecompreender as tentativas de remediar
queda do Império ocidental.
a crise que abateu-se sobre as instituições
Vimos, portanto, como as ideias decadentistas
do
paganismo
e
às
velhas
qualquer
tradições
estudo
do
que
imperiais no Ocidente a partir de finais do
a
século II, precisa considerar esse embate
escatologia apocalíptica dos cristãos frente
de ideologias que acabará com a gradual
aos momentos de instabilidade imperial,
vitória do pensamento cristão relegando o
compôs parte significativa das explicações
paganismo
dos contemporâneos para o momento de
decadentismo nos séculos subsequentes.
a
um
irremediável
crise e justificaram suas atitudes em
Referências: LACTÂNCIO, Lucius Caecilius Firmianus. Institutiones divinas. Vol. II. Madrid: Gredos, 1990. _____________ Sobre la muerte de los perseguidores. Madrid: Gredos, 2000.
Bibliografia ALFÖLDY, Géza. A história social de Roma. Lisboa: Presença, 1989. BENOIT, André; SIMON, Marcel. El judaísmo y el cristianismo antiguo: de Antíoco Epífanes a Constantino. Barcelona: Labor, 1972. BROWN, Peter. A ascensão do cristianismo no Ocidente. Lisboa: Presença, 1999. _____________ O fim do mundo clássico. Lisboa: Verbo, 1972. HINOJO, Pablo Fuentes. “La caída de Roma: imaginación apocalíptica e ideologias de poder em la tradición Cristiana antigua (siglos II al V)”. Studia histórica, vol. 27, 2009, pp. 73-102. MAZZARINO, Santo. O fim do mundo antigo. São Paulo: Martins Fontes, 1991. MEEKS, Wayne A. As origens da moralidade cristã: os dois primeiros séculos. São Paulo: Paulus, 1997.
183
Douglas Raphael Machado Gobato
STE CROIX. G. E. M. de. Por que fueron perseguidos los primeiros cristianos? In. FINLEY, M. I. Estudios sobre história antigua. Madrid: Akal Universitaria, 1981. UBIÑA, J. Fernández. La crisis del siglo III y el fin del mundo antiguo. Madrid: Akal, 1982.
184
UM PEQUENO TRATADO DE PUERICULTURA E PEDAGOGIA NO “LIVRO DE
EVAST E BLANQUERNA” DE RAMÓN LLULL. UMA PERCEPÇÃO DA INFÂNCIA NO SÉCULO XIII Edilberto Alves da Silva Resumo: Este trabalho pretende analisar certa percepção da infância na Idade Média presente no “Livro de Evast e Blanquerna” (1276-1283) do maiorquino Ramón Llull (12331315), através das orientações de como cuidar das crianças e de como educá-las contidas no segundo capítulo da obra, o qual pode ser considerado um “pequeno tratado” que sintetiza as concepções pedagógicas lulianas. Llull vislumbra uma especificidade da criança, revelando problemas próprios e demandas específicas no que se refere aos cuidados e à educação. A leitura do segundo capítulo da novela demonstra que não se pode tomar em termos absolutos a tese de que a Idade Média ignorou ou marginalizou a infância, bem assim que eventuais argumentos de autoridade cedem ou no mínimo devem ser matizados diante da análise documental. Palavras-chave: Criança; Idade Média; Ramón Llull.
185
Edilberto Alves da Silva
Introdução
Estas referências revelam, pelo contrário,
“L'enfant a été le grand oublié des historiens du Moyen Âge, alors que nous constatons par lês documents écrits et l'iconographie qu'il est présent
um forte sentimento da infância, da sua especificidade,
problemas
próprios, ademais de um lugar importante
38)
da criança na vida e nas aspirações dos
conhecida,
em
meio
acadêmico, a tese de que a Idade Média não conheceu a noção ou o sentimento de infância, não raro fundamentada numa suposta indiferença do medievo em relação às crianças. Esta ideia foi divulgada, principalmente, por Philippe Ariès (1981), já há algumas décadas. Prevalecendo esta ideia, não se poderia
falar
em
puericultura,
compreendida aqui como conhecimentos e práticas relacionados ao cuidado com as crianças.
Nem
se
poderia
falar
em
pedagogia. De
fato,
os
documentos
usualmente utilizados pelos historiadores,
adultos (FERNANDES, 1995, p. 165). É, na linha destes estudos, que este
grandes
acontecimentos
e
personagens, oferecem pouco espaço à criança (COSTA, 2002). Contudo, estudos mais recentes têm apontado documentos e indícios que contrariam a tese de que a Idade Média desconhecera a
infância 1.
trabalho
se
insere.
Pretende-se
analisar certa concepção acerca de como cuidar (a que denominamos aqui de
puericultura, no sentido lato do termo) e educar
as
crianças
na
Idade
Média,
presente no “Livro de Evast e Blanquerna” do maiorquino Ramón Llull, cuja leitura demonstra que não se pode tomar em termos absolutos a tese de que a Idade Média ignorou ou marginalizou a infância, bem assim que eventuais argumentos de autoridade cedem ou no mínimo devem ser matizados diante da análise documental. I . O “Livro de Evast e Blanquerna”
tais como as crônicas, atentos que estão
1
seus
dans la famille, l'école et la société”(Riché, 1991, p.
É
aos
de
Ramón
Llull
(1232
-
1315)
escreveu o “Livro Evast e Blanquerna”, provavelmente, entre 1276 e 1283. A obra é considerada a primeira novela escrita em língua catalã. A narrativa divide-se em cinco livros que significam alegoricamente, conforme o prólogo, as cinco chagas de
Desde essa perspectiva, veja-se Alexandre-Bidon
(1991), Riché (1991), Fernandes (1995) e o extenso
mas tão somente apresentar a leitura de um documento
trabalho de Oliveria (2007), além de Cassagne (s.d). Na
específico que conduz a uma conclusão oposta. Para uma
bibliografia nacional, confira-se, por exemplo, Costa
critica metodológica a Ariès remete-se Alexandre-Bidon
(2002; 2003) e Levsky (2007). Não é nosso objetivo aqui
(1991).
rebater especificamente a tese de Ariès ou de Le Goff,
186
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Cristo e os cinco estados de vida que,
com os pobres. Um problema, contudo,
segundo
a
aflige Aloma: apesar de casada há muito
sociedade cristã: o matrimônio, a vida
tempo, não tem filhos. Após pedir a Deus
religiosa, a vida clerical, o papado e a vida
em oração que lhe dê um rebento, o casal
contemplativa (eremítica). Chamada de
é
idealista por alguns, a obra tem um cunho
Blanquerna.
Llull,
deveriam
ordenar
agraciado
com
o
nascimento
de
moralizante e reformador. Llull quer traçar,
O capítulo II da obra trata do
de maneira didática, através da narrativa e
nascimento e infância de Blanquerna. Ali o
dos exempla, o modelo de vida a ser
Autor fornece tanto orientações referentes
seguido nos referidos estados, bem como
à alimentação e disciplina quanto descreve
expressar
um programa de formação intelectual e
suas
ideias
filosóficas
e
teológicas e a projeção dos valores cristãos
espiritual da criança.
LLull descreve as
na sociedade.
ações
Aloma
de
Evast
e
e
expõe,
O protagonista da novela é
sucintamente, as razões desse proceder,
Blanquerna que, ao longo da narrativa,
de maneira que o leitor possa alcançar-lhe
passa pelo estado religioso, clerical e, após
a finalidade e imitá-las.
tornar-se papa, renuncia ao papado para
Realizando
uma
leitura
da
abraçar a vida contemplativa como eremita,
primeira parte do “Livro de Evast e
que, para Llull, parece ser o estado de vida
Blanquerna” tomando-a como um espelho
mais perfeito.
(speculum) de cônjuges, parece claro que,
Entretanto, o primeiro livro da
no capítulo II da obra, Llull pretende que os
obra é dedicado ao estado matrimonial e
pais cristãos, no exercício de um dever que
trata do casamento de Evast e Aloma, pais
é próprio ao estado matrimonial, isto é, na
do protagonista Blanquerna. Evast é um
educação dos filhos, tenham em vista o
jovem que se destaca pela inteligência e
exemplo dos pais de Blanquerna. E neste
piedade. Vacila entre a vida religiosa e o
sentido, todo o capítulo apresenta-se como
matrimônio. Por ser o “cabeça de linhagem”
um pequeno tratado de puericultura e
de sua família, resolve casar-se para
pedagogia cristã. Vejamos.
assegurar
um
herdeiro.
Casa-se
com
Aloma, em quem vê as qualidades de uma
II. Uma puericultura luliana Nasce
Blanquerna.
boa esposa. Os cônjuges se tornam o
“extraordinário
exemplo
cristão:
contentamento” (LLULL, 1948, p. 165) seus
honestos, piedosos e misericordiosos para
pais o recebem. Na Igreja, Evast agradece
perfeito
de
casal
júbilo,
Com
alegria
e
187
Edilberto Alves da Silva
a Deus pelo recém-nato, rogando que o
182). Há relatos de utilização de amas de
filho seja servo de Deus por toda a vida e,
leite em vários países da Europa Medieval,
para demonstrar gratidão, distribui aos
particularmente
pobres generosa esmola. Sem demora 2, o
(LEVISKY, 2007, p. 182). Talvez seja este
rebento recebe o batismo. Para padrinhos
o caso retratado por Llull em Blanquerna.
nas
famílias
nobres
elegem-se “pessoas de santa vida” (LLULL,
O recurso à ama de leite não
1948, p. 165). A atmosfera em torno do
significa uma alijamento da criança, nem
nascimento do menino é de alegria e
indício de carência de cuidado materno,
gratidão e, desde o berço, é constante o
porquanto um dos aspectos desse cuidado
desejo de que a criança cresça à sombra
é a própria ênfase dada ao aleitamento e
de exemplos de virtude.
nos requisitos que a ama deve preencher.
Uma dos primeiros cuidados de
Nos tempos de Llull, acreditava-
Evast e Aloma é com a amamentação do
se que a criança adquiria as características
filho, que se expressa, sobretudo, nas
da pessoa que a amamentava. Por isso,
exigências para a escolha da ama de leite:
Llull insiste numa ama “sã e robusta”. A
“Teve Blanquerna por ama a uma mulher
isso
muito sã e robusta, para que se criasse um
“recatada e muito honesta” – que realça a
menino são e robusto; pois pelo mau leite
necessidade de a criança manter, desde
as crianças ficam frágeis e raquíticas. Era
cedo, contato com a virtude.
acrescenta
qualidades
morais
–
também de vida recatada e muito honesta”
“Um ano inteiro passou o menino
(LLULL, 1948, p.165). Deviam ser evitadas
sem experimentar nada mais que leite
as amas de saúde comprometida.
puro” (LLULL, 1948, p.165). Esse razoável
Llull não explica porque Evast
período de amamentação correspondia,
não foi amamentado por sua própria mãe,
segundo Lull, às características fisiológicas
Aloma. Na Idade Média, entretanto, embora
de crianças dessa idade: “por falta de
houvesse
ao
robustez na digestão, não podem as
discurso
crianças, naquele primeiro ano, digerir
sanitário no sentido de que o leite mais
outro alimento, ainda que sejam papas de
conveniente à criança é o leite da própria
leite
mãe, não se proíbe, por diversas razões, o
semelhantes que lhes fazem comer por
recurso à ama de leite (LEVISKY, 2007, p
força” (LLULL, 1948, p.165). Alimento
aleitamento
estímulo materno
eclesiástico e
um
ou
azeite
ou
outras
coisas
diferente do leite poderia acarretar o 2
Segundo algumas versões, “no oitavo dia” Blanquerna
foi batizado (LLULL, 1948, p. 165, nota 2).
deslocamento
dos
humores
e
causar
188
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
diversas
enfermidades
nas
crianças
(LLULL, 1948, p. 165).
Blanquerna seja capaz de conservar a própria saúde.
O cuidado com a saúde revela-
Conforme crescia Blanquerna,
se também na vestimenta que a criança
os pais lhe acostumam a comer todos os
deveria usar, adaptada à estação climática,
tipos de alimentos, a fim de que “sua
“para que os elementos dos quais o corpo
natureza não se inclinasse a uns mais que
se compõe concordassem bem com o
a outros” (LLULL, 1948, p.166). Ademais,
tempo” (LLULL, 1948, p.166), pois se cria
vedaram-lhe beber vinho forte ou muito
que, por influir no corpo, o tempo poderia
aguado, além de temperos picantes “que
desiquilibrar os humores, gerando doenças
destroem o calor natural” (LLULL, 1948,
(LLULL, 1948, p.166).
p.166). Variar a alimentação e evitar os
Em ambos os casos, Llull faz
sabores extremos parece corresponder a
referência à teoria dos humores, comum no
uma exigência de boa dieta, o que está
discurso médico medieval, para explicar a
ligado à preservação da saúde, mas há aí
causalidade das doenças. Esta teoria,
também
baseada
Galeno,
relacionado à virtude da temperança, que
propunha, em síntese, que o Universo era
se expressa na moderação e na aceitação
formado por quatro elementos (terra, água,
da generalidade dos alimentos, pela qual
ar e fogo) e que o corpo humano – visto
se educa o apetite.
em
Hipócrates
e
como um microcosmo –, possuía quatro
um
componente
ascético
A disciplina à mesa é uma das
humores (bílis negra, fleuma, sangue e bílis
preocupações
amarela)
elementos
capítulo, o pai repreende Aloma porque
(COSTA, 2003; 2013). A saúde dependia
deu um pedaço de carne a Blanquerna
do
A
antes de o menino ir à escola. Para o pai,
predominância de um deles poderia causar
pela manhã, as crianças deveriam comer
doenças, alterações na personalidade, nas
apenas pão a fim de que não se tornassem
virtudes, etc (COSTA, 2003; 2013). A
glutões nem perdessem o apetite ao comer
preocupação com a saúde do filho, no
à mesa. 3 Ao lado das questões sanitárias,
relacionados
equilíbrio
aos
desses
humores.
de
Evast.
No
mesmo
“Livro de Evast e Blanquerna” não se limita aos cuidados paternos, mas como se verá adiante,
implica
conhecimentos
na médicos
aquisição para
de que
3
“Sucedió un día que Adorna, antes de partirse el niño al
aula, le dió de almorzar carne asada ; y por si le venía gana em la escuela, le dió de resguardo un tamaño flaon. Sabiéndolo Evast, reprendió ásperamente a su mujer, diciéndola que a los niños por la mañana se les había de dar un mendrugo de pan, y no más; porque, o no se críen
189
Edilberto Alves da Silva
mais uma vez o ideal ascético se faz presente: deseja-se evitar a gula, um dos sete pecados capitais. foi contemporâneo de Arnau de Vilanova, médico que prescreveu, no início do século XIV, a Jaime II de Aragão um “Regimen
Sanitatis”. A obra tem dezoito capítulos dos quais onze são dedicados à boa dieta, elemento fundamental para a conservação da saúde. 4 As concepções lulianas acerca do cuidado infantil estão em consonância com as preocupações médicas da época no que diz respeito à alimentação e revelam um interesse na boa dieta da criança. elemento
andar e brincar com as demais crianças. Não lhe proibiu coisa alguma que apetece à natureza e que esta requer naquela infantil idade, assim que, até
Não é supérfluo lembrar que Llull
Um
Desta maneira Aloma criou seu filho até que pode
notável
da
puericultura luliana é o respeito ao curso natural do crescimento da criança. Após tratar dos cuidados que Aloma e Evast tinham com o pequeno Blanquerna Llull (1948, p. 166) afirma:
os oito anos, permitiu-lhe viver com liberdade e segundo o curso natural.
Há a delimitação de algumas fases
do
crescimento
infantil
cujas
características devem ser consideradas tanto no que se refere aos cuidados com a alimentação e saúde quanto no que diz respeito à educação. Nota-se, assim, uma especificidade própria da infância, não sendo excluídos os jogos e brincadeiras nem as coisas que a “a natureza requer” naquela idade infantil. III. A pedagogia luliana Cumprido os oito anos, o pai de Blanquerna: [...] aplicou-lhe o estudo das letras; e fez ensinar segundo os tratados do livro Doctrina pueril, no qual se previne que, ao princípio, deve o pai ensinar seu filho em língua materna, na qual há de dar clara notícia dos artigos de nossa santa fé, dos mandamentos do decálogo, dos sacramentos, dos pecados capitais, e das virtudes a eles opostas e,
golosos, o no pierdan la gana de comer en la mesa; pues
enfim, de todo o mais que em dito livro se contém.
el pan a secas no sabe tanto a los muchachos, que
(LLULL, 1948, p.166).
opriman y fuercen las operaciones de la naturaleza por la demasiada comida ; y aun pan solo no se les debe dar sin que le pidan.” (LLULL, 1948, p.166).
A
educação
de
Blanquerna
segue o programa traçado em uma obra
Sobre a alimentação nas “Regras de Saúde a Jaime II”
anterior de Ramón Llull, escrita entre 1274
de Arnau Vilanova, confira-se o artigo de Ricardo da
e 1276 e dedicada “ao seu amável filho,
Costa e Matheus Corassa da Silva: “O Regimen sanitatis
para que mais rapidamente ele possa
4
(1308) de Arnau de Vilanova (c.1238-1311) e sua prescrição da boa dieta”, referenciado na Bibliografia.
entrar na ciência com a qual saiba
Confira-se também a tradução desse documento médico
conhecer, amar e servir seu glorioso Deus”
para a língua portuguesa, realizada por Ricardo da costa
(LLULL, 2010, p. 5). Nessa obra, o autor
e Matheus Corassa da Silva: “As Regras da Saúde a Jaime II (1308)”, referenciado na Bibliografia.
relaciona tudo o que considerava relevante
190
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
para a formação religiosa, moral e prática
pecados e das virtudes, etc. Realizado no
de seu filho (COSTA, 2003). A grande
lar e em língua vulgar.
novidade do “Doutrina para crianças” é ser
Os pais de Blanquerna dão-lhe
“uma pequena enciclopédia pedagógica
um pedagogo, que acompanha o menino
escrita em catalão, em uma época na qual
nas práticas devocionais e no estudo da
o latim era a única língua de ensinamento”
Música. 6 A presença de um pedagogo –
(COSTA, 2003).
trata-se aqui de uma família nobre – de
Para
fim
modo algum subtrai Blanquerna à infância,
precípuo da educação e da ciência é
tendo em vista que a mãe lhe permitia
conhecer, amar e servir a Deus. Esta
brincar com outras crianças; nem é sinal de
proposta pedagógica, conforme a época do
abandono paterno, já que toda a atmosfera
autor
do capítulo II da obra demonstra os
(COSTA,
o
maiorquino,
2003),
o
corresponde
à
doutrina da “primeira intenção” 5 luliana: o
cuidados dos pais para com o rebento.
amor e o conhecimento de Deus. Trata-se,
Gramática, Filosofía
Lógica,
pois, de uma educação ética, porquanto
Música,
baseada na ciência do bem e do mal, cujos
Teologia são as artes que Evast fez
primeiro degrau consiste no aprendizado
Blanquerna aprender. Música para que
dos rudimentos da fé, do decálogo, dos
“aprendesse
a
Natural,
Retórica,
servir
Medicina
bem
à
e
Missa
cantada”. 7 Filosofia Natural “para que entendesse mais facilmente a medicina”; 5
“Amável filho, a intenção é obra do entendimento e da
Medicina,
para
alcançar
“suficiente
vontade que se movem para dar o cumprimento da coisa
conhecimento para conservar a saúde”;
desejada e entendida. E a intenção é um ato de um
Teologia “para amar e servir mais a Deus e
apetite natural que requer a perfeição que lhe convém
dirigir sua alma à vida eterna”. 8
naturalmente. Filho, essa intenção da qual tens necessidade é dividida em duas maneiras, isto é, a primeira intenção e a
6
“Diéronle un pedagogo entendido, el cual cada dia,
segunda. A primeira é melhor e mais nobre que a
enseñándole a tener oración y oír Misa con mucha
segunda porque é mais útil e mais necessária; a primeira
quietud y devoción, y después le acompañaba a la
é o princípio da segunda, e a segunda é movida pela
escuela de música, para que aprendiese a servir bien la
primeira [...]
Misa cantada.” (LLULL, 1948, p.166).
Filho, a glória que terás no Paraíso, se nele entrares, será
7
pela segunda intenção, e o conhecimento e o amor que
8
tiveres de Deus serão pela primeira, pois melhor coisa é a
entendía y hablaba el latín con toda perfección. Después
intenção de conhecer e amar Deus que ter glória por
estudió lógica, retórica y filosofía natural, con que
conhecê-Lo e amá-Lo, pois Deus é mais inteligível e
entendiese más fácilmente la medicina, para saber
amável que tua glória. ” (LLULL, 2010b, p. 3-4)
conservar con entera salud su cuerpo. Cursó la sagrada
Veja-se nota anterior. “Tan capaz se hizo Blanquerna de la gramática, que
191
Edilberto Alves da Silva
Currículo pedagógico, como já
Deus” (LLULL, 2010, p. 60). A Astronomia
sublinhado, conforme as propostas da
é difícil e perigosa, pois rapidamente pode
“Doutrina para crianças”. Nesta obra, Llull
levar o homem a errar e a menosprezar a
trata das Sete Artes Liberais e de outras
Deus; a Geometria e a Aritmética requerem
ciências.
todo o pensamento humano, desviando-o
grupos:
Divide as Sete Artes em dois Gramática,
Retórica
do amor e da contemplação de Deus. 10
(trivium) e Geometria, Aritmética, Música e
Assim, estaria de acordo com a tendência
(quadrivium).
outros
da época em indicar mais o trivium, que, ao
saberes são Teologia, Direito, Natureza,
contrário do quadrivium, constituía-se de
O
disciplinas basilares, voltadas à formação
Astronomia Medicina
e
as
Lógica
Artes
e Os
Mecânicas. 9
personagem Blanquerna cursa o trivium
da mente (COSTA, 2002).
completo. Entre as ciências do quadrivium,
Quanto
à
Teologia,
LLull
a
estuda apenas a Música. Além disso,
considerava a mais nobre de todas as
estuda Teologia e Medicina. Por quê?
ciências (LLULL, 2010, p.60). Blanquerna
Na “Doutrina para crianças” Llull
Estuda a Teologia para conhecer, amar e a
é bastante favorável ao estudo do trivium
servir a Deus. Estudada Filosofia Natural
(COSTA, 2002). Mas, dentre as artes do
em função da Medicina. E a Medicina, para
quadrivium, aconselha seu filho a estudar
manter o corpo saudável.
apenas a Música. Isto porque“essa arte foi
proposta pedagógica luliana é integral:
descoberta
com
manter o corpo são (Medicina); formar a
instrumentos, o homem seja louvador de
mente (trivium); e dirigir a alma a Deus
para
que,
cantando
Assim, a
(Teologia). A isto acrescenta a prática das teología para conocer, amar y servir más a Dios y dirigir a
virtudes,
dos
atos
devocionais
e
da
la eterna vida su alma. Enterado que estuvo del Libro de los principios y grados
de la medicina, por donde alcanzó suficiente noticia para conservar la salud, aplicóle su padre al estudio de la teología expositiva en que oía de continuo la Sagrada Escritura y respondía algunas veces a las dificultades teológicas.” (LLULL, 1948, p. 166-167) 9
Para as particularidades de cada ciência, remete-se à
“Doutrina para crianças”, capítulos LXXIII a LXXIX, bem como à análise do Professor Ricardo da Costa, no artigo “Reordenando o conhecimento: a Educação na Idade
Média e o conceito de Ciência expresso na obra Doutrina para
Crianças
(c.1274-1276)
referenciado na Bibliografia.
de
Ramon
Llull”,
10
“Amável filho, não te aconselho que aprendas essa
arte, pois é um esforço muito grande e rapidamente pode se errar. É perigosa, pois os homens que não a conhecem muito
bem
usam-na
mal,
desconhecendo
e
menosprezando o poder e a bondade de Deus, por causa do poder dos corpos celestiais. Filho, também não te aconselho que aprendas Geometria nem Aritmética, pois são artes que requerem todo o pensamento humano, e este tem que tratar de amar e contemplar a Deus ” (LLULL, 2010, p. 60).
192
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
misericórdia cristã, para o que o exemplo
Com amor e temor. Assim Evast e Aloma criam seu filho. Nesse caminho, o
dos pais torna-se insubstituível. Enfim, para Llull, ter um filho não
afeto sempre presente. Blanquerna não é
quer significar apenas multiplicar-se. Os
um invisível. Seu nascimento é causa de
pais têm um imperioso dever. Cuidado do
extrema
corpo, educação da mente, formação da
manifestam-se os cuidados de seus pais
alma. Trata-se de uma proposta formativa
com a saúde do corpo, com a formação do
integral, ética, com vistas à formação do
intelecto e com a ideal luliano da primeira
homem de virtude. Esta finalidade ética
intenção: conhecer, amar e servir a Deus.
também se encontra em outras fontes
Nem por isso, teve subtraído o lugar da
medievais. Tomás de Aquino, por exemplo,
infância.
alegria.
Desde
o
berço,
“a
Llull trata da criança enquanto
natureza não tende apenas à geração [da
filho, no contexto familiar, dentro do qual a
prole], mas também à sua condução e
criança não é ignorada nem marginalizada.
promoção até o estado perfeito do homem
Trata-se de uma representação da infância
enquanto homem, que é o estado de
na qual a criança é sujeito de cuidado,
virtude” (Super Sent., lib. 4 d. 26 q. 1 a. 1
afeto, educação. Ademais, a Llull parece
co).
vislumbrar uma especificidade própria da
ao
tratar
do
matrimônio,
afirmou:
11
Conclusão
infância que implica em problemas próprios
Enquanto aproveitava nestas artes e ciências,
referentes aos cuidados e educação da
criava-lhe seu pai com amor e temor, virtudes
criança, respeitando-se o “curso natural” e
com que deve educar-se a gente jovem, exercitando-lhe, nesta idade, em jejuns, orações, confissões e esmolas; em ensinarlhe,
humildes,
a
falar
e
vestir,
e
a
aquilo que a “natureza requer naquela infantil idade” (LLULL, 1948, p. 166). Ao
final,
é
com
alguma
acompanhar-se com os bons. Estas e outras
perplexidade que retomamos à epígrafe
coisas deste teor ensinava Evast a seu filho,
que abriu este trabalho: não foram os
para que, quando varão, fosse por hábito e por natureza agradável a Deus e aos homens [...] (LLULL, 1948, p.166)
medievais que ignoraram a infância; os historiadores é que, por muito tempo, ignoraram as crianças da Idade Média.
11
“[...] non enim intendit natura solum generationem ejus,
sed traductionem, et promotionem usque ad perfectum statum hominis, inquantum homo est, qui est virtutis status. Unde, secundum Philosophum, tria a parentibus habemus: scilicet esse, nutrimentum, et disciplinam” (Super Sent., lib. 4 d. 26 q. 1 a. 1 co)
193
Edilberto Alves da Silva
Referências: Fontes: AQUINO,
S.
Tomás
Super
de.
sententiae.
Disponível
em
<http://www.corpusthomisticum.org/snp4026.html> Acesso em: 04 ago. 2014. LLULL, Ramón. Doutrina para crianças. Trad. de Ricardo Costa e Grupo de Pesquisas Medievais
da
UFES,
2010.
Disponível
em
<http://www.ricardocosta.com/sites/default/files/pdfs/doutrina.pdf> Acesso em: 01 ago. 2014. ________. Libro de Evast y Blanquerna. In: ___. Obras literarias. Madri: Biblioteca de autores cristãos, 1948, p. 145 a 478. ________. O livro da intenção. Trad. de Ricardo da Costa e Grupo de Pesquisas Medievais da
UFES,
2010b.
em
Disponível
<
http://www.ricardocosta.com/sites/default/files/pdfs/olivrodaintencao.pdf> Acesso em: 04 ago. 2014. VILANOVA, Arnau de. As Regras da Saúde a Jaime II. Trad. de Ricardo da Costa e Matheus
Corassa
da
Silva.
Disponível
em
<
http://www.ricardocosta.com/traducoes/textos/regras-da-saude-jaime-ii-1308> Acesso em: 04 ago. 2014. Bibliografia consultada: ARIÈS, P. História social da infância e da família. 2.ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981. ALEXANDRE-BIDON, D. Grandeur et renaissance du sentiment de l'enfance au Moyen Âge. Histoire de l'Éducation. Paris, Institut National de Recherche Pédagogique, n. 50, p. 39-63, 1991. CASSAGNE, Inés de. Valoración y educación del niño en la Edad Media. Biblioteca Gonzalo
de
Berceo.
Disponível
em
<
http://www.vallenajerilla.com/berceo/inescassagne/pueriedadmedia.htm> Acesso em: 29 jul. 2014. COSTA, Ricardo da. A Educação na Idade Média. A busca da Sabedoria como caminho
para
a
Felicidade:
al-Farabi
e
Ramon
Llull,
2003.
Disponível
em
<http://www.ricardocosta.com/artigo/educacao-na-idade-media-busca-da-sabedoria-comocaminho-para-felicidade-al-farabi-e-ramon> Acesso em: 02 ago. 2014.
________. O Regimen sanitatis (1308) de Arnau de Vilanova (c.1238-1311) e sua prescrição da boa dieta, 2013. Disponível em: <www.ricardocosta.com/artigo/o-regimen-
194
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
sanitatis-1308-de-arnau-de-vilanova-c1238-1311-e-sua-prescricao-da-boa-dieta>
Acesso
04 ago. 2014. _______. Reordenando o conhecimento: a Educação na Idade Média e o conceito de
Ciência expresso na obra Doutrina para Crianças (c.1274-1276) de Ramon Llull, 2002. Disponível
em
<
http://www.ricardocosta.com/artigo/reordenando-o-conhecimento-
educacao-na-idade-media-e-o-conceito-de-ciencia-expresso-na-obra> Acesso em: 01 ago. 2014. FERNADES, Maria de Lurdes Correia. Espelhos, cartas e guias: casamento e
espiritualidade na Península Ibérica : 1450-1700 . Porto: Instituto de Cultura Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995. Tese doutoral. Disponível em < http://ler.letras.up.pt/site/default.aspx?qry=id06id134&sum=sim> Acesso em: 03 ago 2014. LEVISKY, David Leo. Um Monge no Divã. A Trajetória de um adolescer na Idade Media
Central. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. OLIVEIRA, Ana Rodrigues. A Criança na Sociedade Medieval Portuguesa. Lisboa: Editorial Teorema, 2007. RICHÉ, Pierre. Réflexions sur l'histoire de l'éducation dans le Haut Moyen Âge (Ve - XIe siècles). Histoire de l'Éducation, Paris, Institut National de Recherche Pédagogique, n. 50, p. 17-38, 1991.
195
UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DO CAMPO DA HISTÓRIA MEDIEVAL NO BRASIL Eduardo Cardoso Daflon 1 Resumo: O presente trabalho inspira-se no estudo realizado por Marcelo Badaró Mattos, intitulado As bases teóricas do revisionismo: o culturalismo e a historiografia brasileira
contemporânea, em que desenvolve uma análise dos fundamentos teóricos que embasam as pesquisas históricas no Brasil de hoje tomando por base as últimas atas dos encontros nacionais da Associação Nacional de História (ANPUH) e os últimos números da Revista Brasileira de História (RHB). Proponho-me, assim a, baseando-me em sua metodologia, promover um balanço da recente produção medievalística nacional. Para tanto, focarei meus esforços nas atas dos dois últimos Encontros Internacionais de Estudos Medievais, promovidos bienalmente pela Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM), com o intuito de estabelecer os rumos que a produção brasileira dedicada à história medieval vem tomando nos últimos anos, as influências que sobre ela incidem e as suas consequências para o conhecimento das sociedades humanas do passado. Palavras-chave:História Medieval; Historiografia; Teoria
1PPGH-UFF/
NIEP-Marx-PréK/ TranslatioStudii
196
Eduardo Cardoso Daflon
No corrente ano de 2014 publicou-se
históricas no Brasil partindo de duas
um livro organizado pelo professor da
frentes.Uma primeira quantitativa e outra
Universidade Federal Fluminense (UFF),
qualitativa com base, respectivamente, nas
Demian Melo sob o nome A miséria da
atas
historiografia: uma crítica ao revisionismo
Associação
contemporâneo (MELO, 2014a). Essa obra,
Universitários de História (ANPUH) entre os
apesar de formada por artigos que tratam
anos de 1997 e 2013 e nos dois dossiês
de momentos históricos bastantes distintos,
sobre historiografia publicados nas dez
que vão desde a era Vargas até a
últimas publicações da Revista Brasileira
Revolução
de História (RBH).
dos
Cravos,
constitui
uma
dos
espécie de “unidade crítica”. Trata-se de
Encontros
Nacionais
Nacional
de
da
Professores
Ao quantificar os grandes temas
um conjunto de trabalhos que atacam o
reunidos
nos
revisionismo atual, que nas palavras de
Temáticos
(STs)
Demian: “acaba por fazer (...) nada menos
demonstrou
que uma releitura reacionária do passado,
predomínio bastante evidente do chamado
ao serviço de um projeto conservador (e
culturalismo
por que não, reacionário) no presente”
Aplicando uma divisão, de certa forma
(MELO, 2014b, p. 48). O somatório das
usual
críticas feitas por diversos pesquisadores
econômico/social;
nacionais e internacionais visa desconstruir
(entendida como do poder e das ideias
o edifício da historiografia revisionista
políticas);
recente, demonstrando os pilares de areia
(compreendendo a chamada história das
sobre os quais se apoia.
mentalidades e os estudos sobre as
Um desses artigos me interessa mais diretamente para os fins dessa comunicação. Refiro-me ao estudo feito pelo professor Marcelo Badaró, titular de História do Brasil da UFF, intitulado As
bases
teóricas
do revisionismo:
o
culturalismo e a historiografia brasileira contemporânea (MATTOS, 2014). Nele, Badaró traça uma análise dos fundamentos teóricos
que
embasam
as
pesquisas
chamados da
ANPUH,
claramente nas
entre
e
Simpósios
que
análises os
Badaró há
um
históricas.
historiadores história
história
–
política
da
cultura
ideologias) – os resultados obtidos foram: (...) que [dos 84STs] 37 deles se concentraram no eixo da história cultural, 10 no eixo de história política/do
poder
e
6
no
de
história
econômico/social. Nos cruzamentos, outros onze STs foram híbridos de história cultural e história política, três mixaram história econômico-social e a história política e outros três, história da cultura e história econômico-social. Registre-se ainda que sete STs discutiram ensino de História e dois questões teóricas mais amplas que atravessavam o conjunto de eixos temáticos. Cinco dos STs, (...),
197
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo não cabem de forma alguma nessa classificação. (MATTOS, 2014, p. 69)
Ou seja, os trabalhos dedicados diretamente à história cultural, ou suas vertentes laterais como a “cultura política” somam
juntos
quase
60%
das
apresentações. Se desconsiderarmos os STs não classificados, de teoria e os dedicados ao ensino esse número sobe para quase 70%!Algo que, além de atestar o
predomínio
quase
absoluto
dessa
vertente, Confirma também a ideia de uma retomada dos estudos
em
história
política,
particularmente
daqueles que articulam à primeira dimensão, na linha do que é tratado por ‘cultura(s) política(s)’ (em geral denominados ‘nova história política’). Por
Mediante impositivo
esse
uma
quadro
avaliação
torna-se
acerca
do
conceito de “cultura” que é usado pelos historiadores. Segundo Badaró, valoriza-se “uma definição ‘ampliada’ e ‘antropológica’ de cultura (...)”. Contribuindo, sob o título de “relativismo cultural” e de um “antideterminismo econômico” para a uma determinação de polo inverso, onde a cultura
é
vista
de
maneira
absoluta
(MATTOS, 2014, p. 70; MATTOS, 2012, p. 117-204). Feitas essas considerações, é válido que comecemos a nos voltar para os
estudos
estudos medievais, objeto específico dessa
de
história
econômico-social
[que
trabalhos]” (MATTOS, 2014, p. 69).
Além disso, nas referências colhidas RBH
e
no
mercado
editorial,
Badaródemonstra como certas escolas ou certos autores são predominantes entre os pesquisadores
brasileiros.
O
destaque
certamente fica com os historiadores da chamada “Terceira Geração da Escola dos
Annales”, sendo os mais citados e mais traduzidos para o português, juntos com o italiano Carlo Ginzburg. Sendo, apesar das especificidades,
“quase
sempre
identificados pelos que os citam com as problemáticas da chamada história cultural, (...)” (MATTOS, 2014, p. 72). Por sua vez, os
mais raras aparições...
fim, constata-se a pequena expressividade dos perfazem apenas pouco mais de 10% dos
na
concepção marxista de história são os com
autores
identificados
com
uma
comunicação. Ressalto que se trata de uma primeira investida no tema, que pretendo desenvolver em trabalhos futuros a fim de atingir um panorama mais preciso acerca
dos
rumos
do
medievalismo
brasileiro. Convém, contudo, antes de me voltar para a análise das atas em si, debruçar-me sobre uma tentativa pretérita de
configuração
do
campo
da
medievalística brasileira, feita há cinco anos por Mário Bastos e Leandro Rust, publicada na Revista Signum sob o título de TranslatioStudii – A História Medieval no Brasil (BASTOS e RUST, 2009). Nesse reconstituem
artigo, a
formação
os da
autores História
198
Eduardo Cardoso Daflon
Medieval brasileira desde os importantes
especialistas europeus; bibliotecas mal
debates sobre as “raízes medievais” do
equipadas e com políticas de aquisição que
Brasil, nas obras de Nelson Werneck Sodré
deixam a desejar; etc.
e
Roberto
exemplo.
Junto com o trabalho de Marcelo
Percorrem os chamados “anos de chumbo”
Badaró, o esforço empreendido por Mário
e as heranças que legaram ao nosso
Bastos e Leandro Rust em sua avaliação
recorte temporal, quase sempre associado
da medievalística brasileirafoi um ponto de
a uma despolitização, quando não um
partida fundamental para meu desejo de
reacionarismo
mapeamento. Apesar de ser uma excelente
estudiosos.
Simonsen,
por
por
parte
Discorrem
de
a
publicação, cuja erudição estou longe de
segunda onda de interesse pelos estudos
ser capaz de igualar, é evidente que tem
medievais, que se deu a partir da década
seu foco na produção feita por professores
de 1980 com a chegada das traduções
empregados nas principais universidades
portuguesas das obras de Le Goff, Duby e
do país, deixando de lado uma grande
Le Roy Ladurie, culminando com a criação
quantidade de pesquisas desenvolvidas por
do primeiro setor de pós-graduação em
graduandos e pós-graduandos. Pretendo,
História Antiga e Medieval no Brasil dentro
portanto, nesse primeiro momento, ampliar
do
o espaço amostral a fim de abarcar essa
Programa
de
ainda
seus
sobre
Pós-Graduação
em
História da UFF (PPGH-UFF). Percorrido
esse
enorme quantidade de estudos que vem caminho,
sendo produzida entre nós.
demonstram, de maneira crítica, a grande
Assim sendo, me pareceu bastante
diversidade da produção nacional. Essa
razoável optar pelas atas dos Encontros
conta
Internacionais
com
historiadores
vinculados
a
de
Estudos
Medievais
diversas perspectivas como os Nouveaux,
(EIEM)
ou aqueles que colhem referências na
quantificável. Isso pelo fato de que, além
filosofia política mais clássica e até mesmo
dos principais professores universitários
os que se identificam de forma bastante
que ali se encontram presentes, contamos
direta com o chamado pós-modernismo.
ainda com mais de uma centena de outros
Diversidade, que para Bastos e Rust
trabalhos vinculados asmais diversas fases
seriam a expressão de um vigor no campo,
de maturação acadêmica, desenvolvidos
capaz de superar as várias dificuldades
por
que
variados níveis de formação.
nos
assolam:
tais
como
a
de
como
estudantes
suporte
de
documental
diversas
áreas
financiamento; distância dos arquivos e
199
e
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Nos anais do IX EIEM, realizado em
explicação, ainda que provisória, visto o
2011 na Universidade Federal do Mato
grau ainda embrionário da corrente análise.
Grossocontamos com um total de 76
O que explicaria essa discrepância tão
trabalhos e, adotando divisão de eixos
abissal – superior inclusive à encontrada
similar a de Marcelo Badaró,classifiquei-os
nas atas dos encontros nacionais da
da seguinte forma: 5 trabalhos versaram
ANPUH – entre os estudos que se dedicam
sobre poder e ideias políticas; 3 sobre
a história cultural e os outros eixos
história econômico-social; 9 sobre teoria e
temáticos?;
metodologia; 3 não se enquadram nessa
metodológicas informam – ainda que não
classificação; e nada menos do que 56
de maneira declarada ou sequer consciente
trabalhos seguiram a linha da história
– esses estudos?; Quais as consequências
cultural. Em outras palavras, os estudos
disso para os estudos medievais, e indo
culturais responderam por quase 75% de
além deles, para os estudos de qualquer
todos os trabalhos publicados e podem
sociedade pretérita?
mesmo
superar
desconsideremos
os
85%,
os
de
Que
perspectivas
teórico-
caso
A notória superioridade dos estudos
cunho
culturais advém, em algum nível, da
metodológico e os “inclassificáveis”!
influência, como bem destacaram Bastos e
Já nas atas do X EIEM, ocorrido em
Rust (2009),annaliste, em sua terceira
2013 na Universidade Nacional de Brasília,
geração (pós-1969). Graças às traduções
dispomos de 60 textos que se dividem da
portuguesas das obras francesas, dentre
seguinte forma: 3 avançam sobre questões
os
relacionadas a poder e ideias políticas; 4
Terceira geração essa bastante oposta às
sobre história econômico-social; 1 sobre
noções de história problema e a busca por
teoria e metodologia, 2 não se enquadram
uma compreensão holística da realidade.
nessa classificação. Mais uma vez vemos,
Essa terceira fase que se inicia após a
com ampla margem, os estudos culturais
saída de Braudel teria, nas palavras de
liderando, agora somando 50 trabalhos. Ou
Ciro Cardoso, as seguintes características:
seja, os estudos culturais correspondem a não
menos
que
83%
do
total
de
publicações! Apresentados esses dados, restame explorar seus significados, levantar algumas perguntas e tentar avançar uma
quais
muitos
eram
medievalistas.
1.Valorização do periférico em relação ao central, preferindo objetos de estudo como os loucos, os marginais,
os
homossexuais,
as
bruxas,
as
prostitutas (ao sabor, na verdade de modismos descartáveis); 2. Valorização, não da realidade social, das condições reais da existência, e sim do seu avesso – sonhos, imaginário, ideologias –, numa “leitura” que analisa o discurso verbal ou
200
Eduardo Cardoso Daflon não-verbal (iconografias, por exemplo) partindo do princípio de um divórcio da evolução ideológica em relação
à
econômico-social;
pululam
as
danças
tematicamente,
e resumos abundam em referências ao
“pulsões
imaginário ou às representações. Assim
reprimidas do desejo”, os sabbats, os fantasmas e
sendo, estou totalmente de acordo com
macabras,
as
obsessões, e é frequente o anacronismo na forma da projeção de percepções atuais feitas em função
Badaró
quando
ele
afirma
que
o
da sociedade de hoje (feminismo, “problema gay”),
“referencial culturalista é a forma própria
a épocas em que elas carecem de qualquer
através
sentido ou realidade; 3. O tecnicismo que valoriza o computador e outras técnicas de vanguarda
da
qual
os
historiadores
absorveram, desde meados da década de
oculta uma grande pobreza metodológica: as
1980, o influxo do chamado ‘paradigma
fontes são escolhidas em forma arbitrária, tratadas
pós-moderno’” (MATTOS, 2014, p. 73).
sem rigor, usadas de maneira pouco crítica e racional (CARDOSO, 1988, p. 100).
Em outras palavras, uma história que trocou o objetivo pelo subjetivo, o social amplo pelo cultural local, a realidade pela representação, o movimento pelo estático, o material pelo imaginário, o todo (totalidade)
pelo
tudo
(micro
história).
Análises das continuidades, não mais das rupturas
e
transformações,
com
o
predomínio do tempo “quase imóvel” e fazendo uso de conceitos capazes de amplas
aplicações.
Conceitos
etéreos,
aparentemente desvinculados do mundo que os produziu, que acabam por turvar as capacidades analíticas dos historiadores, de
anais dos dois eventos, nos quais os títulos
maneira
à
homogeneização
da
sociedade por uma aparente ausência de conflitos,
estando
a
aos
valores
direcionada
preocupação e
ideias
compartilhados por Napoleão e o último de seus soldados. Algo que está bastante de acordo com que somos capazes de encontrar nos
É possível ainda perceber que a expressividade
de
uma
hermenêutica
documental. Nos encontros de 2011 e 2013 cerca de 60% dos trabalhos publicados tinham como escopo documental poucas, ou até mesmo uma única fonte. Estudos limitados a uma paráfrase, mais ou menos erudita
do
documento
elegido;
uma
descrição mais ou menos densa, porém nada além disso: uma descrição. O que consiste em algo profundamente ancorado em
um
referencial
pós-moderno
(CARDOSO, 1997, p. 41, 50-51), por mais que os historiadores recusem admitir. A própria perspectiva perante o mundo que nos cerca é radicalmente diferente, nas palavras de Ciro Cardoso: É provável que o “cosmo” humano, como é encarado por tais historiadores, não seja o mesmo – estruturado, explicável – em que acreditavam os historiadores dos Annales do passado, e em que acreditam
os
marxistas;
e
sim
um
cosmo
contingente e inexplicável, no qual só constatações são
possíveis,
mas
nenhuma
explicação
(CARDOSO, 1988, p. 108).\
201
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Exposta a problemática e essas
contribui para que a História se transforme
análises incipientes resta-me, a guisa de
em um inventário infinito de singularidades
conclusão, manifestar aqui os pressupostos
absolutas. Fatores que, como o saudoso
que
professor Ciro uma vez disse,
constituem
historiográfica.
minha
prática
um
completo
Sendo
não consiste numa apologia aberta do capitalismo, mas se dá em forma bem mais sutil: uma vez que
descrente da ideia de produção acadêmica
eliminados o racionalismo e em especial o
isenta, julgo necessário fazer saber ao
marxismo, o que permanece, embora isso não se diga, é o próprio capitalismo – e uma série de
leitor das premissas das quais parti para
concepções que não o incomodam.
formular essa crítica, estando intimamente associado a uma concepção marxista que vê, no estudo do passado, um instrumento fundamental de transformação do presente. Dito isso, finalizo afirmando que, do meu ponto de vista, o paradigma que informa boa parte do medievalismo atualmente,
Algo que certamente dificulta – quiçá impossibilita – o cumprimento do papel social do historiador de explicar o passado e promover a compreensão do presente na busca constante por transformação da nossa realidade!
Referências:
Atas do X Encontro Internacional de Estudos Medievais (EIEM) da Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM) – Diálogos Ibero-americanos. Brasília: ABREM/PEM-UnB, 2013, Disponível em: http://www.usp.br/lathimm/images/XEIEMAtas.pdf (acessado em 18/08/2014).
Anais Eletrônicos do IX Encontro Internacional de Estudos Medievais: O ofício do Medievalista.Cuiabá: ABREM, 2011 Disponível em: http://www.abrem.org.br/biblioteca.php (acessado em 18/08/2014). ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru: EDUSC, 2006. BASTOS, Mário Jorge da Motta; RUST, Leandro. TranslatioStudii – A História Medieval no Brasil. Signum, 10, pp. 163-188, 2009. BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. CARDOSO, Ciro Flamarion. Uma “Nova História”?. In CARDOSO, Ciro Flamarion. Ensaios
Racionalistas. Rio de janeiro: Editora Campus, 1988.
202
Eduardo Cardoso Daflon
__________.História e Paradigmas Rivais. In CARDOSO, Ciro; VAINFAS, Ronaldo (Orgs).
Domínios da História – Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1997. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido
pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. GUERREAU, Alain. El Futuro de um Passado: La Edad Media enelsiglo XXI. Barcelona: Crítica, 2002. MELO, Demian Bezerra de (Org.) A miséria da Historiografia: uma crítica ao revisionismo
contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014a. __________. Revisão e revisionismo na historiografia contemporânea. In A miséria da
Historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014b. MATTOS, Marcelo Badaró. As bases teóricas do revisionismo: o culturalismo e a
historiografia brasileira contemporânea. In A miséria da Historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014. __________. E. P. Thompson e a tradição de crítica ativa do materialismo histórico. Rio de Janeiro: EDUFRJ, 2012.
203
Uma reflexão dos fazeres femininos Medievais dentro do universo da Mulher Contemporânea Evelline Soares Correia 1 Edneia Regina Rossi 2 Resumo: Este artigo tem como objetivo principal resgatar através da história da Idade Média, os papéis exercidos pelas mulheres dentro de uma época intitulada por filósofos iluministas franceses como Idade das Trevas. Sua participação dentro da sociedade, ou seja, como eram vistas por uma sociedade totalmente dominada por homens. O surgimento do cristianismo dando um novo enfoque `a vida, ao mundo e à valorização da mulher sob a perspectiva de Maria, mãe de Deus, que contrastava ostensivamente com as culturas precedentes fundadas em um ideal aristocrático e terreno de existência. Como era a Educação Medieval e como estavam inseridas neste campo, o que de importante conseguiram realizar dentro das mais variadas atividades de papéis de exclusividade masculina. Apresentar um panorama histórico das transformações sociais que as mulheres viveram partindo do início do século XX, o que estas pensavam em relação ao seu papel dentro da sociedade, as transformações que vivenciaram dentro de uma nova concepção familiar, a divisão de deveres e igualdade de direitos dentro da família e até mesmo na sociedade, os preconceitos que até hoje estão presentes nas mais variadas facetas, imposições e padrões a que são submetidas. Sendo assim possível analisar no decorrer desta trajetória um legado deixado pelas mulheres medievais às futuras gerações de mulheres que continuam buscando conquistas e fazendo história. Palavras-chave: Idade Média; mulheres medievais; mulheres contemporâneas
1Universidade
Estadual de Maringá- UEM
2Universidade
Estadual de Maringá- UEM
204
Eveline Soares Correia
Introdução
passavam por um período de preparação
Na Educação Medieval, o povo
recebendo
instruções,
os
chamados
europeu teve como ponto de partida a
catecúmenos e as escolas chamadas de
doutrina da Igreja, pois foi somente através
catecumenatos que com o tempo passaram
da religião possível educar os novos povos,
a serem organizadas pelos bispos com
a cultura greco-romana estava a ponto de
intuito de preparar o clero para as igrejas
ser destruída pelos bárbaros tendo a Igreja
que estavam sob sua direção, passando a
Cristã grande participação para evitar tal
serem denominadas escolas das catedrais
situação. Assim, a instrução nessa doutrina
devido à sua localização estar no edifício
e a prática do culto substituíram o elemento
da catedral. Os mosteiros ocupavam um
intelectual.
papel preponderante pois eram as únicas
Durante
período
instituições de ensino da época, centros de
predominou uma concepção de educação
pesquisa, casa editorial para multiplicação
que se opunha ao conceito liberal e
dos
individualista dos gregos e ao conceito de
conservação do saber, enfim lá eles
educação prática e social dos romanos.
preparavam os sábios e estudiosos da
Enquanto os filósofos gregos davam mais
época.
importância
ao
do
povoados por mulheres nobres que eram
homem,
cristianismo
contrário
abandonadas pelos maridos ou viúvas ou
passou a dar importância ao aspecto moral
por aquelas que se rebelavam à opressão
baseando-se na ideia de caridade cristã ou
da família e ainda filhas obedientes aos
amor, que é a expressão mais individual e
pais se consagravam à Deus.
o
todo
este
aspecto
intelectual pelo
livros,
Os
únicas
mosteiros
bibliotecas
femininos
de
eram
completa da personalidade humana, seu
O termo escolástica significou o
ideal era um renascer para um mundo novo
conjunto do saber, tal como era transmitido
do espírito. Com o cristianismo surge um
das escolas do tipo clerical, mais tarde se
novo tipo de história de educação, com
deu o mesmo nome aos que escolarmente
normas inéditas de vida e comportamento,
se dedicavam à Filosofia e a Tecnologia e
Jesus Cristo instaura uma nova visão do
num sentido amplo, podemos dizer que foi
mundo
um movimento intelectual oriundo da Idade
e
da
ostensivamente precedentes
vida,
que
contrasta
com
as
culturas
demonstrar
e
aristocrático e terreno de existência. Os
fé pelo método da análise lógica. Dessa
que
maneira a educação escolástica visava
à
um
em
ensinar as concordâncias da razão com a
convertiam
em
preocupado
ideal
se
fundadas
Média
religião
cristã
205
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
as
busca da santidade através de uma vida
crenças num sistema lógico, a forma
dedicada à Deus. Porém por outro lado, foi
científica valorizada era a lógica dedutiva.
um
desenvolver
o
poder
de
formular
As universidades surgiram no século
período
inquisição
de
intolerância,
procurava
onde
controlar
a o
XIII, como o nome inicial de studium
pensamento e a cultura, o que negava a
general, pelos fins do século XIV esse
possibilidade do pensamento livre.
nome
foi
substituído
universitaslitterarum, primeira
supõe-se
universidade
de
Podemos também dizer que foi uma
a
época dominada por homens: senhores
consagrou
feudais, cavaleiros, padres e monges,
pelo
que
que
professores e alunos organizados por
porém
seções nas quatro grandes divisões do
importantes funções fora do lar como
conhecimento daquela época (Teologia,
abadessas, rainhas, dirigentes empresárias
Direito, Medicina e Filosofia) tendo sido a
e
de Nápoles, fundada em 1224. Durante a
canonizadas pela Igreja Católica. Fora às
Idade Média foi grande a influência da
exceções, a regra era a mulher ser uma
universidade,
fornecendo
de
criatura submissa e dependente do pai e do
organização
puramente
democrática.
marido, juridicamente tutelada, fora de todo
exemplo
Segundo Little (2002, p. 238), as escolas
algumas
até
o
mulheres
dificílimo
status
exerceram
de
santa
este ambiente educacional apresentado.
episcopais e as universidades constituíam
Desenvolvimento
um território "estritamente proibido às
No decorrer deste período houve
mulheres" e as que desejavam um elevado
uma mudança na concepção da mulher,
nível de cultura tinha de contratar mestres
apesar de Jesus Cristo ter valorizado as
particulares.
mulheres
Os filósofos iluministas franceses do
muitos
de
seus
seguidores
tinham outra forma de pensar.
século XVIII tacharam a Idade Média de
São Paulo na primeira Carta aos
“Idade das Trevas”, porém não podemos
Coríntios 14:34-35, dizia que as mulheres
pensar que tudo foi negativo, pois foi um
deveriam se calar na assembleia pois para
período de contrastes como qualquer outra
elas não era permitido falar, Timóteo 2:11-
fase humana, nesta época por influência da
14 reforçava esta ideia afirmando que as
Igreja Católica, a humanidade procurou
mulheres
viver de maneira apaixonada os valores
silenciosas, que não poderiam dar lições e
transcendentais
ordens aos maridos. Consideravam as
do
cristianismo
evidenciado na reflexão filosófica e na
mulheres
deveriam
uma
ser
espécie
submissas
de
e
armadilha
206
Eveline Soares Correia
preparada pelo inimigo, fruto de todos os
ele os textos buscavam impor uma ordem e
vícios pois foi Eva quem cometeu a
um sentido, suas fontes remetem a uma
transgressão sendo Adão uma vítima,
imagem idealizada por quem as escreveu,
padres como Santo Agostinho viam as
o que se queria de uma mulher, não
mulheres
necessariamente o que eram elas ou o que
como
seres
inferiores
aos
homens.
elas queriam ser.
Apesar desta mentalidade o século
De acordo com Revista da FARN,
XIII assinala uma corrente positiva do
Natal, v.3, n.1/2, p. 159 - 173, jul. 2003/jun.
pensamento em relação à mulher. Com
2004, foram canonizadas 460 mulheres
oculto de veneração a Virgem Maria,
pertencentes a cerca de vinte nações,
desenvolvido por teólogos: Alberto Magno,
tendo a Itália o maior número de santas
Tomás de Aquino, João Duns Escoto, ela
seguida por França, Alemanha e Inglaterra;
foi apresentada como a nova Eva escolhida
121
por Deus para ser a mãe do seu filho,
camponesas
e
tendo então outra visão para a mulher,
abadessas,
63
considerada um ser humano criada por
religiosa depois que enviuvaram, 31 eram
Deus capaz de adquirir grandes virtudes. O
virgens e 25 foram martirizadas, isto é,
culto mariano valorizou a virgindade como
testemunharam a sua fé cristã com sua
uma forma de consagração a Deus. Esta
vida.
visão sensibilizou milhares de jovens de
pertenciam
Dentre
à
nobreza,
operárias,
17 100
ingressaram
estas,
eram foram
na
vida
podemos
citar
diferentes camadas sociais ingressando
algumas mulheres medievais que muito
nas
contribuíram em seu tempo: Brígida (1303-
instituições
exercendo
um
religiosas
trabalho
católicas
dedicado
aos
pobres e às orações contemplativas.
1373) da Suécia, casado com o nobre Ulf Gudemarsson, apoiada pelo rei fundou um
Grande estudioso da Idade Média,
mosteiro duplo, onde homens e mulheres
Georges Duby buscou aprofundar as suas
só se viam nas orações em comum, esta
pesquisas
se
ordem religiosa, Santíssimo Salvador se
debruçou sobre o assunto escrevendo uma
espalhou por 78 mosteiros por toda a
série de textos, entre eles uma trilogia
Europa.
sobre As Damas do Século XII, não se
1983, p. 231-232).
sobre
as
mulheres
e
distanciando muito do modo como a
(SGARBOSSA;
Freiras
copistas,
GIOVANNINI, bibliotecárias,
maioria dos (as) historiadores (as) tem
escritoras, e intelectuais que escreveram
tratado a história das mulheres, mas para
biografias
de
santos.
Hrotsvita
207
de
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Gandersheim,
uma
autora
prolífica
e
Mulheres que se opunham aos
talentosa tanto em prosa como em poesia,
casamentos
redigiu: peças, legendas, poemas épicos.
tornou-se favorável ao matrimônio cristão,
(WEMPLE, 1993, p. 264). Beguinas – eram
lutando para modelar a sociedade através
mulheres solteiras ou viúvas de camadas
do casamento que elevava a dignidade da
superiores alta da sociedade medieval que
mulher, porém juridicamente ela ainda
formavam
continuava subordinada ao marido. Os
comunidades
filantrópicas,
arranjados,
eram
pois
Igreja
dando assistência aos excluídos, leprosos
casamentos
e pobres, segundo o historiador José Rivair
econômicos e sociais, nas camadas sociais
Macedo “devido à desconfiança pela igreja,
mais elevadas era seguido um plano
a mesma tentou integrá-las à ordem dos
estratégico para manter o patrimônio, os
Franciscanos e Dominicanos e as que se
casamentos eram considerados negócios.
recusaram forma consideradas hereges e
Estas que se recusavam d faziam voto de
foram excluídas do seio da cristandade
castidade ingressando em um convento ou
(excomungadas) " (MACEDO, 2002, p. 49-
recorria a entidade eclesiástica para anular
50). Prostitutas e mulheres públicas, dona
o casamento. No século XIV a Igreja
de casarões que levavam a vida fora dos
Católica tinha o monopólio jurídico sobre o
padrões da espiritualidade medieval que
matrimônio fixando a idade mínima de 12
negava os prazeres corporais. Para G.
anos para a moça e 14 para o rapaz.
Duby (1995), a conduta das mulheres não
Mulheres cultas e eruditas tais como: Ana
é um problema só delas e sim de toda a
Comnena (1083 - 1148), princesa bizantina
família, colocando no cerceamento de sua
e filha de Aleixo I Comneno, Alexíada é o
conduta e na garantia dessa a conservação
título da biografia do seu pai, escrita por
de toda a honra familiar. Para o autor,
ela. Cristina de Pisa (1364 -1430) tida
usando o pressuposto de que a honra da
como
família depende do "bom comportamento"
Hildegarda de Bingen (1098-1179) deixou
das mulheres cria um mecanismo de
escritos
legitimação de apropriação e domesticação
Causae et Curae (causa e cura) que nos dá
do corpo feminino. Porém, nada se fala
um retrato bem rico sobre a medicina
sobre o comportamento dos homens para a
medieval. Mulheres que trabalhavam na
manutenção da honra. O que vemos aqui é
agricultura. Nesta época trabalhar com as
a existência de uma dupla moral.
mãos era atividade para os servos, não
destacada variados,
de
a
interesses
poetisa inclusive
francesa. o
tratado
conferindo honra e dignidade a ninguém,
208
Eveline Soares Correia
mesmo assim as mulheres trabalhavam fora de casa para ajudar o homem no sustento da família. Mulheres presentes no mundo do trabalho que era dividido em: guildas,
confrarias,
corporações,
companhias e comunas. Nas guildas, onde havia juramento mútuo e hierarquia, uniamse os mestres, os aprendizes e os assalariados. No início do século XX, o país viveu um momento de ascensão da classe média,
nas
cidades,
ampliavam-se,
sobretudo para mulheres, as possibilidades de acesso a informação, lazer e consumo. Ao final dos anos 30 e 40, a urbanização e a industrialização traziam mais novidades, em
1932,
o
voto
feminino,
para
alfabetizadas e maiores de 21 anos entrou na pauta das eleições. O matrimônio, porém, continuava em alta. O presidente Vargas, em um decreto assinado em abril de 1941, insistia em que a educação feminina
deveria
formar
mulheres
“afeiçoadas ao casamento, desejosas da maternidade, competentes para a criação dos filhos e capazes na administração da casa”. A modernidade introduzira um leque de frustrações entre as mulheres. Na revista Claudia, nas bancas de jornal desde 1961, a jornalista Carmen da Silva, na seção “A arte de ser mulher”, questionava:
Não é necessária muita perspicácia para perceber sintomas de insatisfação nas mulheres de hoje. Casadas e solteiras, ociosas e trabalhadoras, estudantes e profissionais, artistas e donas de casa todas elas em algum momento deixam transparecer resquícios de frustração, um desejo ora nostálgico ora invejoso, de outra existência diferente,
outro
caminho
distinto
ao
que
escolheram – como se a felicidade estivesse lá (SILVA,1961,s/p).
Com as duas descobertas médicas: penicilina (que libertou o medo da sífilis) e a pílula (que liberou o medo da gravidez), o movimento libertário, que teve o seu apogeu em maio de 1968, nas ruas de Paris, dividiu as águas em relação ao casamento. No Brasil as relações no cotidiano dos casais começaram a mudar, marido violento não era mais o dono de ninguém mas apenas um homem bruto. O beijo passou a ser sinônimo de paixão, era o início ao direito do prazer, as mulheres começavam
a
poder
escolher
entre
obedecer ou não às normas sociais, parentais e familiares. Quando acabado o amor os casais buscavam a separação ou sobretudo nas elites para sustentar o casamento
mantinham
casos
evitando
assim dividir o patrimônio. Nem tudo eram as flores e a liberdade prometidas pelo movimento de maio de 1968, embora autorizasse a mulher
a
trabalhar
sem
prévio
consentimento do marido, o Código Civil o mantinha na chefia da família, com todos
209
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
os direitos assegurados. As coisas não
masculina em participar das tarefas do lar,
mudaram.
conflitos em torno da criação dos filhos.
Apesar
do
surgimento
do
Conselho Nacional das Mulheres do Brasil,
Em setembro de 1980, a revista Veja
chefiado por Romy Medeiros da Fonseca,
publicou o resultado de uma pesquisa: “
que se destacou na luta para promover a
Nem Amélia nem Ativista”, a brasileira dos
posição sócio profissional da brasileira, o
anos 80 era conservadora e tímida, mas
diagnóstico era de alterações lentas. Rose
sabia que sua filha precisava conquistar
Marie Muraro, em um clássico, A mulher na
independência, dividida entre valores novos
construção do mundo futuro, demonstrava
e
que a brasileira andava em dois ritmos, o
submissão da mulher, ao mesmo tempo, na
mais acelerado buscando trabalho fora de
prática,
casa
filhos:
responsabilidade pelo sustento da casa,
meninos e meninas de forma diferente, pois
achava que política e economia eram
o marido não havia mudado e ele ainda
assuntos de exclusiva alçada masculina.
mantinha seus costumes.
Ela não culpava o governo pelo aumento
porém
ainda
educando
A revista Manchete, em janeiro de
no
tradicionais, deixava
custo
de
rejeitava ao
a
homem
vida,
e
ideia a
da
maior
apontava
a
1974, publicou uma pesquisa de opinião
criminalidade como seu grande pavor. Era
depois de consultar cem mulheres no país
o retrato da “nova mulher brasileira”,
todo. Elas diziam preferir ser objetos dos
oradora dos grandes centros, Rio de
homens a sujeitos da história. Não estavam
Janeiro e São Paulo.
interessadas em política nem em igualdade de salários.
O número de casamento legalizados caíram, dando lugar à união estável,
Na década de 70, as mulheres
acabara-se o tempo em que cada um dos
também tiveram de enfrentar o fim do mito
membros da família endossava um papel
da “rainha do lar”, questionadas pelos
social definido, fixo: esfera pública para o
filhos, desmoralizadas pela beleza das
marido, chefe de família e encarregado de
mais jovens, ansiosas por verem mais e
prover o casal; esfera privada para a
mais mulheres ganharem independência,
mulher,
elas investiam em receitas para “salvar o
domésticas, da educação dos filhos e da
casamento”. Quanto a eles, começavam a
submissão destes à autoridade parental.
ocupando-se
de
tarefas
passar por momentos delicados: a dupla
Quinze anos após esta pesquisa,
jornada de trabalho da mulher, a relutância
uma em cada cinco famílias brasileiras era chefiada pela mulher que acumulava o
210
Eveline Soares Correia
trabalho fora de casa, educação dos filhos,
obrigatório e gratuito (art.
assumindo a função de pai e mãe.
atendimento
Sociólogos, antropólogos e historiadores
às/aos
constatavam
espetacular
referencialmente na rede regular de ensino
modificação na forma de estruturação da
(art.208, III), e o atendimento em creche e
vida privada desde a Idade Média, quando
pré-escola às crianças de zero a cinco
se consolidaram os pilares da família atual
anos de idade (art. 208, IV), mas não faz
no Ocidente: monogâmica, nuclear.
diferenças
a
mais
Com a Constituição Federal de 1988 (CF/88), ocorre um marco em relação a conquista fundamental de igualdade de direitos
e
deveres
entre
homens
educacional
portadores
208,I), o especializado
de
deficiência,
em relação à mulheres e
homens, portanto todos têm os mesmos direitos em relação a educação. Nos anos 1990, as trabalhadoras
e
começaram a substituir a temática das
mulheres (at.5°, I), até então inexistente no
desigualdades em benefício da temática
ordenamento
das identidades. A construção de si e o
jurídico
brasileiro.
Denominada como Constituição Cidadã,
desenvolvimento
ela aprofunda e cria novos direitos para os
prioridade no final do século XX. A
cidadãos, novas obrigações do Estado para
novidade foi o início da utilização de novas
com
lógicas baseadas na sensibilidade e nos
os
indivíduos
e
coletividade,
pessoal
acolhendo a maioria das demandas das
valores
mulheres, sendo então uma das mais
identificar aos valores masculinos, elas
avançadas do mundo.
ressaltaram o que tinham de diferente. A
Em relação aos direitos civis, a
femininos.
Mais
tornaram-se
do
que
se
negociação, as mediações como modos de
CF/88 considera a família base como base
resolução
da sociedade, reconhecendo diversos tipos
preferíveis ao autoritarismo. A cooperação
de família e explicita que direitos e deveres
e a solidariedade, a assistência ao outro
são exercidos igualmente entre homens e
esvaziaram o espírito de competição e
mulheres (art.226, parágrafo 5°) acabando
egoísmo, a educação tomou o lugar das
com a posição superior de chefia atribuída
antigas
legalmente ao homem.
disciplina.
A
educação
da
mulher
de
conflitos
manifestações
Hoje,
elas
tornaram-se
repressivas
querem,
ao
de
mesmo
contemporânea, é considerada como um
tempo, ser mães, trabalhadoras, cidadãs e
direito social na CF (art. 6º). É dever do
sujeitos de seu lazer e prazer. Difícil? Sim,
Estado garantir o ensino fundamental,
mas inevitável.
211
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
De “patriarcal”, a família tornou-se
de produtos, jogadas de marketing e
conjugal, limitada ao pai, à mãe e aos
espaços nas mídias. Problema este que
filhos. Se no início o pai detinha todos os
vem sendo discutido por sociólogos e
poderes paternais e conjugais, pico de uma
historiadores. Mais do que nunca a mulher
pirâmide da qual filhos e mães constituíam
sofre prescrições, não mais do marido, mas
a base, as posições mudaram. Hoje, no
do discurso jornalístico e dos publicitários
alto do triângulo encontram-se os filhos.
que as cercam, sendo subordinadas a
Numa das laterais, encontram-se os pais,
serviço do próprio corpo tendo hoje como
e, na outra, o mediador entre pais e filhos:
algoz a mídia. Nessa perspectiva as
o Estado. Os “direitos” paternos foram
transformações no corpo da mulher foram
substituídos por “deveres”. As mulheres
brutais, devido à tríade abençoada pela
não estão em uma sociedade sem pais,
mídia: ser bela, ser jovem, ser saudável,
mas sim em uma que reorganiza as
instalando a tirania da perfeição física.
funções
paternas.
Porém,
embora
o
Numa sociedade de consumo a
número de divórcios tenha crescido, ainda
estética aparece como o motor do bom
hoje a valorização do casamento é enorme.
desenvolvimento
No século XXI, nos últimos anos a mulher
brasileira
físicas,
desde
a
viveu
transformações
criação
do
da
existência,
a
valorização é a da identificação e não da identidade. O Brasil é um país mestiço,
batom,
resultando de uma longa história biológica
desodorante, corte de cabelo, sutiã, jeans e
por isso as mulheres precisam ter o
o padrão de magreza, empurrando-a na
controle destas diferenças e do que é
tirania da perfeição física e não para uma
necessário para manter a boa saúde e o
busca de identidade, trazendo junto as
que as tornam subordinadas devido à uma
conquistas: o estresse, fadiga, exaustão,
imposição da sociedade, baseada no lucro,
desestruturação familiar. O aumento de
aceito involuntariamente por elas mesmas.
esperança de vida tornou-se um problema
Considerações finais
pois a grande maioria das mulheres não
Dentro de todo contexto apresentado,
querem envelhecer. A associação entre
observamos que a trajetória das mulheres na
juventude, beleza e saúde, modelo das
Idade Média, apesar de toda submissão que a
sociedades ocidentais, aliada às práticas
época as condicionavam, demonstravam o não
de aperfeiçoamento do corpo, intensificou-
contentamento em relação a sua situação,
se brutalmente, consolidando um mercado
enfrentando
florescente que comporta indústrias, linhas
variadas formas. O fato de serem consideradas
situações
adversas
das
mais
212
Eveline Soares Correia
um ser inferior não foi o bastante para impedi-las
abusos, por isso ainda faz-se necessário a busca
de sonhar, de buscar sua valorização através do
de medidas tais como: conferências, convenções
estudo, do trabalho e acima de tudo, de sua
e declarações que buscam garantir a efetivação e
vontade em relação a construção de uma família,
aprimoramento das leis para garantir à mulher
mesmo que muitas delas sacrificassem toda sua
seus devidos direitos.
vida, como era o caso das mulheres que não
Tais mudanças são necessárias mesmo
aceitando o casamento se dedicavam aos
que estas ocorram de forma lenta e gradativa,
conventos e à caridade. O que podemos concluir
sendo fundamental sempre a busca de sua
é que estas mulheres demonstravam uma força
efetivação, por isso nos dias atuais as mulheres
interior tão grande quanto qualquer homem da
continuam buscando maior reconhecimento assim
época em questão, que a busca do saber é
como as mulheres medievais buscavam, cada
inerente ao sexo feminino ou masculino, bem
qual com características específicas de seu
como a vontade de fazer o bem. Que acima de
tempo. Ter como base a força de vontade que as
qualquer obstáculo está possibilidade de tentar
mulheres medievais expressavam suas ações em
mudar, fazer a diferença mesmo que para isto
uma época tão difícil impulsiona o pensamento
haja um sacrifício maior, até a própria vida.
atual de continuar a busca de seus direitos e sua
Sabemos que no decorrer dos tempos, a
efetivação. Mesmo que hoje a mulher se encontre
mulher dentro do seu contexto histórico continuou
dentro de um turbilhão de atividades e padrões a
buscando mudanças, maiores direitos e igualdade
serem seguidos, não podemos deixar todo o
perante a sociedade, o seu papel assim como o
caminho até aqui percorrido de lutas e conquistas
homem deixam um rastro de perseverança, busca
estagnadas por fatores impostos pela mídia que
e evolução de pensamento diante da vida, porém
valoriza o lucro e as colocam em uma posição de
se pensarmos hoje todo o trajeto percorrido em
objeto a ser moldado de acordo com os padrões
nosso país, chegando aos dias atuais, podemos
vigentes. Cabe as mulheres assim como os
dizer que as mulheres dentro da sociedade
homens valorizar o que até aqui foi feito e
possuem direitos e deveres assim como o
continuar o legado, pois indiferentemente do
homem, mas ainda assim continuam buscando a
gênero, somos todos iguais, temos os mesmos
cidadania e igualdade de gênero. Podemos
anseios, sonhos e acima de tudo precisamos do
observar nos noticiários, pesquisas e até mesmo
outro para continuarmos nossa história, fruto este
em situações próximas a nossa realidade que
que será deixado para nossos descendentes.
muitas mulheres ainda sofrem discriminação e até
213
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Referências: BRASIL. Instrumentos internacionais dos direitos das mulheres.Secretaria Especial de Direitos das Mulheres. Brasília. 2006. BRASIL. Os direitos das mulheres na legislação brasileira pós-constituinte.Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea).Brasília. 2006. DUBY, Georges. Heloisa, Isolda e outras damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. PRIORE, Mary Del. Histórias e Conversas de Mulher. Ed. Planeta Brasil. 2013. SANTOS, Dulce Oliveira Amarantes. Caminhos e atalhos da historiografia das mulheres medievais.
História Revista 1 (2): 69 – 78 jul/dez. 1996. SILVA, Paulo Thiago S. Gonçalves.Idade Média, idade das "trevas"? Uma análise sobre a historiografia
das
mulheres
medievais.
Disponível
em:
file:///C:/Users/Evelline/Desktop/Tentar%20conhecer%20as%20mulheres,%20em%20um%20dado%20 momento%20do%20per%EDodo%20medieval,%20atrav%E9s%20da%20literatura%20existente%20h oje,%20%E9,%20no%20m%EDnimo,%20uma%20grande%20aventura.htm . Acesso 25/07/2014.
214
DO ACOLHIMENTO À HOSTILIDADE: A EXCLUSÃO DOS CONVERSOS DA ESPANHA E DE PORTUGAL ENTRE OS SÉCULOS XV E XVI. Helena Ragusa 1 Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar os fatores que levaram à conversão dos judeus na Espanha e depois, em Portugal, bem como o ambiente anti-judaico que se estabeleceu nestas regiões responsável pela obrigatoriedade do abandono da fé em detrimento de outra. Ao contrário do que pode-se pensar o processo que os tornou indivíduos convertidos não fora tranquilo, nem no território espanhol e nem em terras portuguesas, diferenciando-se apenas em alguns aspectos os motivos que os obrigaram a passarem pela conversão. Ao longo das leituras pudemos perceber que a classe social a qual pertenciam nestes reinos, especialmente quando ocupando altos cargos, até mesmo de confiança, tornava-se indiferente diante da opressão que viviam fosse qual fosse o lugar o qual pareciam pertencer. No intuito de compreender os mecanismos usados por aqueles que promoveram a conversão e as estratégias de sobrevivência criadas pelos que contra ela não podiam lutar, optamos pelas analises de Michel de Certeau (2003), que em seu estudo acerca da invenção do cotidiano, nos possibilitou pensar na complexidade a qual estes agentes estavam inseridos e as diversas reinvenções que, num contexto de hostilidade permitiu-lhes a sobrevivência. Também, contamos com os estudos de Siân Jones (2005), e suas considerações sobre identidade, levando-se em conta as novas identidades que os judeus convertidos tiveram de assumir, e por último, não menos importante, as colocações feitas por, Néstor García Canclini (2000), que dentre outras nos ajuda a pensar o complexo processo de territorialização, desterritorialização e
reterritorialização, características comuns, atreladas à própria condição de judeu. Palavras-Chaves: expulsão; conversão; identidade.
1
Universidade Estadual de Londrina-UEL
215
Helena Ragusa
Durante
muito
o
judeus e seus descendentes 2. A instituição
término da guerra judaico-cristã do século I
de tais medidas acabou forçando milhares
e da segunda destruição do templo no ano
de judeus a se submeterem a um processo
70 da era cristã, a Espanha foi, para os
de conversão ao cristianismo de tal modo,
judeus da Península Ibérica, uma espécie
segundo
de
precedentes na história do povo judeu.
“Terra
tempo,
Prometida”
desde
(VAINFAS;
alguns
historiadores,
sem
HERMANN, 2005, p. 17). De fato, a
Pode-se dizer, nas palavras de
Espanha foi o país que melhor acolhida
Vainfas e Hermann, que esse foi o período
deu aos judeus, chegando a contar no
chave na história dos judeus que viviam em
século XIII, com 300 mil deles vivendo
território espanhol, para se compreender o
misturados
surgimento
ao
resto
da
população,
do
fenômeno
marrano
ou
assistindo aos rituais – às vezes judeus
converso que, mais tarde, se estenderia a
assistiam as cerimônias cristãs, e outras
Portugal vindo a se tornar, uma das razões
era
mesmo
que servia de argumento para a criação da
compartilhando a fé em algumas ocasiões.
moderna Inquisição espanhola (VAINFAS;
Esse ambiente onde era comum ver “fiéis
HERMANN, 2005, p. 23).
o
inverso
-
e
até
misturados aos infiéis” se transformou quando:
Fato
curioso,
é
que,
conforme
demonstra Delumeau, os próprios judeus
A ascensão tardia de uma burguesia e de um artesanato cristãos, a tomada de consciência religiosa que acabou por criar a conquista, as
convertidos
teriam
exigido
o
estabelecimento da Inquisição na Espanha
responsabilidades missionárias que a descoberta
(DELEMEAU, 1989, p. 292). Os conversos
da América deu à Espanha, os progressos do Islão
desejavam a denúncia e o castigo dos
transformaram uma terra acolhedora em um país fechado, intransigente, xenófobo (DELUMEAU, 1989, p. 281).
A partir do século XIV os judeus passaram as ser perseguidos por ordem daqueles
que
compunham
a
falsos convertidos, de forma a se livrarem do peso que as ameaças feitas pelos estatutos
de
limpeza
de
sangue
representavam. Em Portugal, os estatutos
elite
administrativa do reino, sendo instituídas
2
diversas medidas contrárias a esse grupo,
institucionalizado que, partindo da Espanha, teve forte
como foi o caso do surgimento da lei de
repercussão em Portugal, segundo ela, essa situação
limpeza de sangue, criada no ano de 1449,
Souza
considera
a
lei
como
um
racismo
teria perdurado até o reinado de D. José I e a administração
do
Marques
de
Pombal,
quando
implicando no fim de uma série de direitos
desapareceu, em termos legais, o preconceito contra os
que
cristãos-novos, judeus e mouros e denominações como a
atingia
mouros,
ciganos,
negros,
de cristão-velho (SOUZA, 2008, p. 93).
216
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo conservava, mesmo tornando-se cristão, a herança
passaram a vigorar mais tarde, no século
dos pecados de Israel (DELUMEAU, 1989, p. 303).
XVI e, de acordo com alguns estudos, teriam
correspondido
a
um
processo
diferente. Ao que parece, as pesquisas em torno dessa questão no território luso são recentes, e se concentram no “mercado matrimonial”
onde
se
fazia
sentir
as
exclusões. Havia uma grande preocupação por parte de toda a sociedade portuguesa – exceto os escravos – de que pudesse haver uma mistura de sangue entre os cristãos-novos
e
os
cristãos-velhos,
levando até mesmo ao corte de relações no grupo de parentesco, caso isso ocorresse 3 (OLIVAL, 2004, p. 153). Se
a
Igreja
acreditava
ser
a
conversão uma solução para o problema do judeu, isso não aconteceu. A conversão não era uma solução e, o inimigo que se acreditava ter expulso, reaparecia sob uma outra forma, dissimulada atrás da máscara do convertido: Na história cristã do antijudaísmo europeu, podemse
distinguir
duas
mentalidades.
Em
considerou-se
que
faces um o
e
também
primeiro
batismo
duas
momento
apagava
no
convertido todas as taras do povo deicida. Mais
Na visão de alguns estudiosos, submeterem-se à nova fé foi a única maneira que os judeus, chamados agora de conversos, encontraram de sobreviver, entre estratégias e táticas (DE CERTEAU, 2003), e de não verem extintos seus direitos, fossem eles de caráter político, econômico, social ou religioso, além das discriminações
e
perseguições
a
que
estavam sujeitos 4. No entanto é preciso frisar que a condição de convertido não era tranqüila, nem na Espanha e nem em Portugal, onde a
conversão
tratava-se
de
um
ato
deliberado do rei para impedir a saída dos mesmos do reino. Arnold Wiznitzer (1966), já apontava para tal problemática. Segundo o autor, “os cristãos-novos sofreram nesse país o desprezo de seus compatriotas católicos, os chamados cristãos-velhos, os quais empregavam termos pejorativos tais como
“cristãos
–
novos”,
“Judeus”
e
“Indivíduos da Nação” 5 (WIZNITZER, 1966, p. 1).
tarde, na prática, colocou-se em dúvida essa virtude do batismo e considerou-se que o judeu 4
Há registros variados que demonstram a volta de muitos
conversos 3
Em 1773, o Marquês de Pombal decretava o fim de tais
ao
judaísmo.
Outros
o
praticariam
secretamente vivendo autêntica ambivalência religiosa
estatutos que separava os cristãos-novos dos cristãos-
(VAINFAS; HERMANN, 2007, p. 24).
velhos, desaparecendo, em termos legais, o preconceito
5
contra
ele como pejorativos, quando na realidade tratam-se de
os
cristãos-novos,
judeus
e
mouros
e
Os termos apresentados pelo autor são colocados por
denominações como a de cristão-velho (SOUZA, 2008, p.
outras
denominações
93).
convertidos.
para
designar
os
judeus
217
Helena Ragusa
Na narração histórica realizada por
A dispersão dos judeus convertidos
Samuel Usque 6, por exemplo, intitulado
da Espanha vai de fato ocorrer quando um
Consolação às tribulações de Israel, no
clima de terror e violência passou a
capítulo 30 que remete o estabelecimento
acometê-los na última década do século
da Inquisição em Portugal, lê-se a seguinte
XV. Sobre as ordens dos reis católicos
interpretação
do
Fernando e Isabel, foi publicado um édito
processo de conversão dos judeus ao
que determinava a expulsão de todos os
cristianismo:
judeus que não haviam se submetido à
do
mesmo
acerca
Lançar-te-á o Senhor em todolos povos de um cabo da terra te o fim da terra. Ali servirás deuses outros que tu nem teus padres não conhecerom e
conversão. A
partir
de
então,
conversos,
haverá onde possas pôr a planta do teu pé
conforme apontam os estudos, para o norte
bata o coração, e tragas os olhos sumidos, e tristeza na alma [...] (USQUE, 1989, p. 219).
De
acordo
com
Yosef
Hayim
se
dos
entre estas gentes não acharás repouso nem (seguramente) e far-te-á o Senhor que continuo te
acabaram
muitos
refugiando,
da África, Império Otomano e no norte da Europa, porém, grande parte do fluxo migratório seguiu mesmo para Portugal.
Yerushalmi, o Consolação pode fazer
A Chegada a Portugal
sentido ao ser lido, tanto pelos judeus
O reino lusitano teria “acolhido”
como pelos cristãos-novos, mas segundo
cerca de 100.000 indivíduos, por meio de
ele, para estes últimos, haveria uma
um acordo firmado com o então rei D. João
identificação instintiva com certos “eventos
II que, mais tarde, com sua morte, teria
e
quando
continuidade com seu sobrinho e herdeiro
assistidos pelos pelas próprias ênfases e
do trono, D. Manuel. (BOGACIOVAS, 2006:
nuances de Usque” 7 (YERSHALMI, 1989:
26).
situações,
especialmente
65).
As pesquisas voltadas para esse período e mais especificamente para a
Samuel Usque foi um autor judeu português, e escreveu
comunidade judaica portuguesa, que lá já
a obra Consolação às Tribulações de Israel, publicada em
existia 8, indicam que a chegada dos
6
Ferrara, em 1553, onde descreve de modo específico as tribulações
enfrentadas
pelos
judeus
nos
países Valadares afirma ser difícil precisar a época em que os
europeus, com maior ênfase a Portugal, durante o reinado
8
de D. João II (1477-1495).
judeus vieram para a Península Ibérica, o certo segundo
“As a result, the Consolaçam could be read meaningfully
ele, é que a permanência de tal grupo se deu por volta de
by Jews and New Christians alike, but the latter would
um milênio ou mais, atravessando períodos de tolerância
identify instinctively with certain events and situations,
e
especially when aided by Usque’s own emphases and
características para a sua identidade (VALADARES,
nuances”. Tradução: Emiliana M. Góes Ragusa.
2007: 62-63).
7
também
de
intolerância,
desenvolvendo
novas
218
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
conversos
no
território
português
diversas
localidades.
Mesmo
sendo
representou um forte peso econômico face
escassa a documentação que remonta a
às dificuldades financeiras as quais o reino
época, indícios apontam para a importância
se encontrava.
que tais indivíduos representavam para
Admitir a migração de tais indivíduos
alguns setores da sociedade portuguesa,
para seu reino não era um ato de tolerância
como por exemplo, o caso Don Jahin Ibn
ou de generosidade, mas sim, algo que D.
Jaisch. Fundador de importante família
João II teria feito pensando apenas nos
judaica em Portugal, favorito do primeiro
seus próprios interesses. Para o monarca,
rei, ocupava cargos de confiança, como
os judeus convertidos representavam nada
Mordomo
mais do que uma forma de alavancar as
(KAYSERLING, 1971: 3-4).
Real
e
Cavaleiro-mor
riquezas do tesouro do Estado, desfalcado
O mesmo acontecia com muitos
pelos custos com o casamento de seu filho
judeus que até o reinado de D. Duarte, pelo
e, também, com o financiamento da guerra
menos, ocupavam cargos públicos, por
contra os infiéis da África (KAYSERLING,
serem considerados competentes nas artes
1971: 96).
das finanças, ainda que contrariasse o
Apesar de toda a importância que
clero e todo poder eclesiástico que se
possuíam para a sociedade portuguesa, os
chocavam com a autoridade concedida aos
conversos
judeus ao receberem cargos oficiais (Idem:
não
discriminações. Gonçalves
estavam No
livres
entanto,
Salvador
de José
esclarece
5 - 6).
que
A
constante
presença
desses
diferentemente do que ocorria no país
personagens nas conquistas portuguesas
vizinho, a aversão aos hebreus por parte
também chama a atenção. Dentre os
da Corte portuguesa era bem mais contida
muitos
(SALVADOR, 1976: 23). Prova disso, é que
judeus em tal empreitada, num estudo
logo
território
realizado por José Alberto Rodrigues da
português, os judeus, agora convertidos,
Silva Tavim (2004: 149) preocupado em
integraram-se
empreendimentos
compreender as conquistas realizadas por
marítimos, ao comércio e à colonização
Portugal na região do Marrocos no século
das novas terras.
XV, encontramos dados reveladores sobre
que
adentraram aos
em
exemplos
da
participação
dos
Assim como nos reinos espanhóis,
o quanto eram diversificadas as atividades
em Portugal viviam judeus desde os
que os judeus que seguiam para essas
tempos mais remotos, estabelecidos em
expedições
exerciam
e
que
também
219
Helena Ragusa
passavam a exercer, caso viessem a se
Outras atividades exercidas pelos
estabelecer nas regiões conquistadas. É o
judeus e também pelos cristãos-novos
caso, por exemplo, do ourives Mestre José
pareciam ser extremamente importantes e
Arame na conquista de Ceuta e de Tânger;
valorizadas, em alguns reinos, como a
do mestre Lázaro, cirurgião que tomou
medicina e aqueles que necessitavam da
parte na conquista de Alcácer Ceguer; ou
cura, como foi o caso de Francisco I,
ainda de Abraão Abet, alfaiate de D. João
quando adoecido gravemente pediu ao rei
III, na expedição contra Arzila (Idem,
da Espanha lhe enviasse um médico judeu.
ibidem).
Os judeus ou cristãos-novos que exerciam
A relevância da participação dos
a medicina pareciam imprescindíveis para
judeus nesse tipo de empreendimento por
alguns reis, como foi o caso da rainha
parte da Coroa Portuguesa começava nas
Cristina da Suécia, Luís XV ou do Príncipe
próprias viagens, tendo em vista a vasta
de Conde (OMEGNA, 1969, p. 57-58).
experiência dos mesmos no campo da
Mesmo parecendo fácil a adaptação
astronomia, cartografia e da geografia, por
dos recém chegados à nova terra, ou que
exemplo. Também, o sucesso dos esforços
os
da expansão portuguesa nas diversas
solucionassem os problemas de D. João II,
regiões por onde passava devia-se à
isso não era o suficiente para que tivessem
capacidade dos judeus em se comunicar
uma vida entrelaçada com a comunidade
em vários idiomas, comunicando-se em
cristã, conforme apontamos anteriormente.
“latim, português, espanhol, hebraico –
Ao contrário, leituras mostram que o modo
sendo por vezes letrados em algumas
de vida desses indivíduos não era muito
delas – e, não raro nas línguas locais por
diferente daquele vivido pelos judeus que já
onde passavam, num tempo em que a
se encontravam em Portugal, isto é, restrito
maioria das pessoas não dominavam a
e limitado, segregados, vivendo no seu
escrita” (ASSIS, 2010, p. 19):
próprio grupo.
Eles financiavam as viagens de conquistas, contribuindo
com
o
conhecimento
técnico
necessário à construção de embarcações ou à
benefícios
trazidos
por
eles
Ao mesmo tempo em que gozavam dos
mesmos
direitos
das
mais
altas
utilização de instrumentos de navegação mais
classes, havia uma nítida separação entre
apurados. Atuaram como cartógrafos, negociantes,
eles e os demais habitantes. Os judeus
funcionários da burocracia, ajudaram com capital ou até como religiosos, nas atividades de
portugueses formavam um “Estado dentro
catequese cristã nos domínios portugueses (Idem,
de outro Estado”, isto é, tinham sua própria
ibidem).
jurisdição, a qual se distinguia daquela
220
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
existente
em
Portugal,
mas
que
era
atrair a atenção da Inquisição ou da própria
reconhecida pelo Estado conforme explica
população que, de certa forma, sentia-se
Kayserling em seu estudo sobre a história
ameaçada devido a uma série de fatores,
dos judeus em Portugal.
como a concorrência 10: Num mundo rural e com ordem hierárquica
Ao propor um estudo sobre a obra de
Samuel
Usque,
Consolação
conhecida, o vizinho que chegou é um artesão ou
às
um comerciante, com uma ação ética diferente da
Tribulações de Israel, Yerushalmi (1989),
sua. Para ele que acredita que o trabalho é apenas
relata que:
amanhar a terra ou apascentar o gado, o comércio é como se fosse uma exploração ou um roubo.
Embora a expulsão dos Judeus da Espanha tenha
Numa sociedade quase desmonetizada o cristão-
capturado a imaginação da posteridade, ela foi
novo é um assalariado. Ele percebe a velocidade
apenas um componente relevante na catástrofe
de sua ascensão social e o que cria mais
que oprimiu os Judeus na Península Ibérica, ao
ressentimentos (VALADARES, 2007: 71).
final do século XV. O que se seguiu em Portugal
O
foi igualmente decisivo e, em certos aspectos, ate mais trágico. Apesar de diretamente ligado aos fatos acontecidos na Espanha, o que se passou em Portugal não foi um mero epilogo ou repetição.
movimento
migratório
-
da
Espanha para Portugal – teria alterado substancialmente a demografia judaico-
A despeito de certas similaridades superficiais, o
portuguesa, dobrando a população judaica
destino dos Judeus em Portugal foi determinado
local que era estimada em trinta mil
por outras considerações, as que traiam uma dinâmica
significativamente
diferente
(YERUSHALMI, 1989, p. 19) 9.
Nesse sentido, em relação aos
habitantes (Idem: 65-66). A entrada de milhares de judeus espanhóis em Portugal mudaria, de acordo com os estudos de
milhares de conversos que seguiram para
Vainfas
Portugal, grande parte destes evitavam
drasticamente a situação da comunidade
misturar-se
sefardita lusitana” (VAINFAS; HERMANN,
aos
demais
habitantes
–
especialmente aos cristãos-velhos - e não
e
“Although the expulsion of the Jews from Spain has
captured the imagination of posterity, it was but one major
“completa
e
2005, p. 28). Uma
9
Hermann,
série
de
leis
foi
criada,
especialmente pela elite administrativa do
component in the catastrophe that overwhelmed the Jews
reino português, constituída pela nobreza e
of the Iberian Peninsula toward the end of the fifteenth
pela Igreja, a fim de impedir a escalada
century. What followed in Portugal was equally decisive
desse grupo. Um exemplo disso seria
and, in certain respects, even more tragic. Though linked directly to what had transpired in Spain, the Portuguese development was no mere epilogue or repetition. Despite
10
certain superficial resemblances, the fate of the Jews in
alcançada pelos conversos foi tida como um problema,
Portugal was determined by other considerations which
pesando bastante para que nas últimas décadas do
betray a significantly different dynamic”. Tradução:
século XV, passassem a ser perseguidos e ameaçados
Emiliana M. Góes Ragusa.
(VAINFAS; HERMANN, 2005: 25).
Também na Espanha, a ascensão política e social
221
Helena Ragusa
excluir os cristãos-novos da sociedade por
Não só questões relacionadas ao
meio da proibição em obterem cargos
sentimento de concorrência e de ameaça
públicos (VALADARES, 2007, p. 77).
por conta da mesma colaboravam para que
De
forma
bastante
expressiva
houvesse
uma
rejeição
aos
judeus
Saraiva faz uma descrição sobre os judeus
castelhanos que buscaram resguardo no
na sociedade portuguesa, ao estabelecer
país. Os surtos de doença causados pela
uma comparação entre o que tais agentes
Peste Negra em Portugal no ano de 1477 e
representavam para os portugueses e o
a intensificação destes na última década do
papel desempenhado pelas prostitutas.
século XV, contribuiu fortemente para a
Aqui, o autor concentra-se na prática da
desestabilização
usura
indivíduos (SILVA, 2007, p. 31).
frequentemente
realizada
pelos
da
situação
desses
neocristãos, a qual no seu entender não se
Tidos como “bodes expiatórios”, os
tratava de um privilégio, mas sim de uma
judeus acabaram sendo acusados – não só
exoneração das regras a que está sujeito
em Portugal, mas em todos os países da
um membro da comunidade, segundo ele:
Europa por onde a doença se espalhou –
Exerciam uma função social que se considerava inevitável, mas degradante no mundo feudal. O favor que pudessem receber dos poderosos não
de serem os responsáveis por espalhar a peste: A Peste Negra eclodiu então numa atmosfera já
era, portanto, sinal de valia social, mas a
carregada de anti-semitismo. De início suspeitos
expressão do apreço caprichoso e interessado que
de querer dizimar os cristãos por meio do veneno,
se pode ter por um animal doméstico, um escravo,
em
uma mulher comprada, um bobo da corte [...]. O rei
seguida
os
judeus
foram
rapidamente
acusados de ter semeado o contágio por meio
protegia contra o cristão o seu judeu. Mas os
desses envenenamentos (DELEMEAU, 1989, p.
mesmos príncipes que protegiam os judeus
140-141).
detentores do dinheiro, encarregavam-nos de funções odiosas, como a de cobrança de impostos
O terremoto ocorrido em Lisboa no
e direitos, colocando-os numa posição que tem
ano de 1531, também foi atribuído aos
analogias com a do carrasco. (SARAIVA, 1994: 32).
Certamente que, como observou Delumeau,
as
invejas
e
as
queixas
econômicas e financeiras contra os judeus foram todas colocadas sob acusações religiosas, as quais serviam como pretexto para as ações “antijudaicas” (DELUMEAU, 1989, p. 279).
judeus, a ira divina à presença dos neocristãos era a justificativa dada pelo povo português que por pouco não levou à um
grande
massacre,
como
aquele
ocorrido no ano de 1506 na mesma região 11 (WIZTNIZER, 1966, p. 2). 11
É certo que sobre essa questão do terremoto de Lisboa
a atribuição de culpa não referia-se apenas aos judeus. Outros estudos mostram que a população culpava a
222
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Foi então que no ano de 1496 a
As leituras sobre o processo de
situação dos judeus se agravou. A garantia
conversão realizado no território espanhol
de liberdade e tolerância anteriormente
demonstram que, em relação a Portugal, os
prometida pelo rei D. João II e mantida por
espanhóis
D. Manuel, foi abalada quando, ao escolher
incisivos na sua missão. Alguns fatores
para esposa uma princesa espanhola, os
corroboraram para esse entendimento.
pais da mesma, obrigaram-no a expulsar aqueles
indivíduos,
cruéis
Dentre eles o desejo dos
e
reis
em
católicos, Fernando e Isabel em fazer da
Portugal um clima de terror e medo
Espanha no final do século XV, uma
provenientes
conversões
grande potência, confiscando os bens de
as
ordens
mouros e judeus; o fanatismo e o ódio
manuelinas, nascendo assim o cristão-novo
nutridos pela rainha em relação a esse
português.
grupo; e a própria instalação do Tribunal da
realizadas
das a
Por
instaurando-se
teriam sido mais
muitas
força,
sob
representarem
grande
Inquisição no ano de 1478, que perseguia
importância econômica para o reino, D.
duramente os conversos que por lá se
Manuel procurava uma forma de impedir a
encontravam.
saída dos judeus, e, assim logo tratou de
Delumeau entende que os estatutos
converter toda a comunidade hebraica que
de pureza de sangue perduraram por muito
em Portugal vivia. Uma estratégia política
tempo
marcada pela mistura de “violência e
sentimento de intolerância aos conversos,
sedução” nas palavras de Saraiva (1994:
tendo a religião e a honra como valores
35). Assim, D. Manuel teria evitado o pior,
essenciais. A Espanha segundo o autor,
ou seja, a expulsão dos judeus de Portugal
“tinha consciência de ser a fortaleza da boa
e, portanto, a falência do reino:
doutrina, a rocha contra a qual se rompiam
Os batizados, agora não mais judeus e sim cristãos-novos,
continuaram
expostos
à
malevolência popular que não tardaria a acusá-los
na
Espanha,
alimentando
o
heresias e todos os assaltos do mal” (DELUMEAU, 1989, p.307).
da criminosa atitude de voltar, no segredo de seus
Ainda assim, os relatos descritos
lares, à prática da religião que, em pública
sobre as medidas impostas por D. Manuel
violência,
foram
forçados
a
abandonar
(CARVALHO, 1992, p. 19).
em relação ao processo de conversão a que
os
judeus
foram
submetidos
demonstram grande requinte de crueldade, igreja, os ingleses a licensiosidade lusa (2009) e Voltaire
sendo impiedosas e deixando também
(2004), reclamado, apontando que se tratava de um fenômeno natural.
223
Helena Ragusa às igrejas onde lhe deitaram a ágoa os levaram.
rastros de sangue e horror conforme nos
De muitos que grandes estremos fizeram por se
relata Samuel Usque:
defender foi asinalado entre eles um, o qual
Vendo El-rei que mores forças eram necessárias
fazendo cobrir a seis filhos com seus taleciod, com
pera os abalar, entrou em conselho e acordaram
~ ua sabia prática esforçando-os a morrer pela lei,
apartar de entre os velhos os mancebos de até
um a um, com eles todos ao cabo se matou, e
vintecinco anos, no qual apartamento, lembrando-
outros molher e marido se enforcaram, e aqueles
se daquele fero e inda tão fresco mal dos filhos
que os quieram levar a enterrar foram matados
aos lagartos, e temendo-o muito, com que palavras
pelos enemigos às lançadas. Muitos houve 51que
tristes vos poderei contar as lástimas que de ~ ua
se lançaram em poços, e outros das janelas abaixo
parte e d’outra se diziam, e os uivos e bramidos
se faziam pedaços. E todos estes corpos israelitas
dos Paes e maes que fendiam as pedras, e os
assi mortos os levavam aos algozes de meus
tigres moveram a piadade. Como os tiveram
membros a queimar ante os olhos de seus irmãos,
divisos fizeram-lhe ~ ua prática de venenosas
pera maior medo e temor de sua crueldade os
palavras cubertas de triaga, prometendo-lhes muitos
favores
no
reino
se
per
amor
comprender (MAGALHÃES, 2003, p.39 – 56) 12.
se
convertessem; mas tampouco isto pera move-los
Insatisfeitos
com
um ponto de sua costância não bastou. De
impostas
por
lei,
maneira que achando-os tão firmes como a seus
passaram
a
praticar
padres, a eles com grandíssima ira arremeteram aqueles executores de minha tentação, e a uns
denominou
de
as
os
limitações
cristãos-novos aquilo
que
criptojudaísmo 13,
se que
pelas pernas e braços, e a outros pelos cabelos e
significava a manutenção da fé judaica,
pelas barbas arrastando per força os levaram té
ainda que de forma velada, utilizando-se da
dentro as igrejas, e ali lhe deitaram a sua ágoa, e tocando com ela uns e mal alcançando outros lhe
fé cristã como mecanismo de disfarce no
impuseram sobre isso nomes da cristandade e os
dia-a-dia
meteram em poder de velhos cristãos pera os
encontravam, evitando assim um clima de
sogigar à relegião e guarda de sua Fe. Como teveram esta enjusta e violente obra acabada, tornaram
aos
padres
que
tão
da
sociedade
em
que
se
desconfiança, procurando 14: Incorporar e reproduzir determinados padrões de
angustiados
conduta dos cristãos-velhos e, desse modo,
sostinham já a vida que aborreciam, a dar-lhe outro trago mortal, dizendo-lhe que seus filhos se haviam convertido já cristãos, que o divessem eles
12
Extraído conforme a ortografia da época do documento.
assi fazer se queriam ter vida em sua companhia.
13
Arnold wiznitzer em “Os judeus no Brasil Colonial”, já
Nem a isto os velhos se abalaram, té que El-rei
atentava para essa questão, segundo ele, quase toda a
lhes mandou tirar o comer e beber por tres dias
geração de cristãos-novos se tornou como ele denominou
contínuos, pera com a angústia da fome os tentar, o
que
eles
também
mui
animosamente
de Judaizante, ou “observantes crípticos dos ritos
judaicos” (WIZNITZER, 1966: 1). De acordo com Assis em seu estudo sobre a Inquisição
soportaram. Vendo El-rei que inda isto não
14
bastava, e que se mais com fome os penasse
e a sobrevivência do judaísmo feminino no Nordeste
pereceriam, detreminou usar com eles a violência
brasileiro nos séculos XVI e XVII, tal atitude teria tido
que havia usado com seus filhos; e arrastando-os
efeito contrário quando muitos desses criptojudeus foram
pelas pernas, outros pelas barbas e cabelos,
responsabilizados pela descrença da população em
dando-lhes punhadas no rosto, e espancando-os,
relação ao processo de conversão pelo qual passaram (ASSIS, 2002: 49).
224
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo apresentar um comportamento público que não permitisse dúvidas sobre seu bom cristianismo. Fossem ou não judaizantes, procuravam pertencer
inflências e legados que deixaram por onde passaram (Ibid: ibidem). Para
a confrarias religiosas, fazer donativos à igreja, portar medalhas de santos etc. (MONTEIRO, 2007, p. 54).
Porém, aqueles que escolheram partir de Portugal,
agora se sentiam
inseguros e por essa razão vendiam seus bens, suas propriedades e deslocavam-se para
outras
regiões,
afinal
“ter
sido
penitenciado pelo Santo Ofício, ou ser descendente de penitenciados, constituía por si só uma espécie de estigma a ser descoberto” (Idem: 55). Parte de um estudo a que nos propomos
realizar,
o
que
pudemos
constatar é que deslocado de seu lugar no mundo social e cultural, o judeu, ora cristão-novo ou converso, ao ser expulso das regiões em que se estabeleceu, fosse o território espanhol ou luso, ao mesmo tempo em que se via desterritorializado, também passava por um processo de “reterritorialização”(CANCLINI, 2006: 309), assumindo uma nova identidade de forma a se adaptar à nova realidade, ao novo contexto em que passa a se encontrar. Um processo que certamente interferiu na identidade desses indivíduos como a nova organização em que se viu inserido, mas que foi recíproco, tendo em vista as
chegasse
qualquer de
lugar
imigrante distante,
que
algumas
modificações no modo de conduzir os costumes, os hábitos e as práticas foram inevitáveis.
Para
além
das
diferentes
tradições culturais existentes dentro da própria comunidade judaica e as diferentes filiações
religiosas,
umas
mais
conservadoras, ortodoxas ou liberais, havia ainda nas
práticas judaicas
dependendo
da
nação
variações onde
se
estabeleciam. Siân Jones explica que, em se
tratando
das
“práticas
culturais
e
crenças que se tornam concretizadas como símbolos de etnicidade são derivadas de, e ressonam
com,
experiências refletem interesses
práticas
pessoais,
as
habituais
como
condições
que
também
imediatas
caracterizam
e e
situações
particulares” (JONES, 2005: 35). Nesse fundamental,
sentido, considerar
acreditamos e
valorizar
ser a
cultura material dos grupos étnicos a serem estudados e não valer-se apenas do discurso
para
analisar
as
identidades
sociais que se diferencia significativamente da primeira, permitindo maiores deduções, conclusões acerca desses imigrantes e sua identidade cultural (idem: 40).
225
Helena Ragusa
Referências: ASSIS, Angelo Adriano Faria de. Inquisição, religiosidades e transformações culturais: a Sinagoga e a sobrevivência do judaísmo feminino no Brasil colonial – Nordeste, séculos XVI – XVII. In: Revista Brasileira de História, São Paulo: 2002. BOGACIOVAS, Marcelo Meira Amaral. Tribulações do povo de Israel na São Paulo
colonial. Dissertação de mestrado apresentada no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo: 2006. CARVALHO, Flávio Mendes. Raízes judaicas no Brasil: o arquivo secreto da inquisição. São Paulo: Nova Arcádia, 1992. DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2003. DELUMEAU, Jean. A História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. JONES, Siân. Categorias históricas e práxis da identidade. In: FUNARI, P. P. A., ORSER JR, C.E., SCHIAVETTO, S .N. O. (ogres.) Identidade, cultura e poder. SP: FAPESP/Annablume, 2005. KAYSERLING, Meyer. História dos judeus em Portugal. São Paulo: Pioneira, 1971. MAGALHAES, Isabel Allegro de. História e Antologia da Literatura Portuguesa. Século XVI. Fundação Calouste Gulbenkian, Coimbra, 2003. MONTEIRO, Yara Nogueira. Anti-semitismo na América Espanhola. In: O Anti-semitismo
nas Américas: Memória e História. Maria Luiza Tucci Carneiro (org.). – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2007, 39-63. OLIVAL, Fernanda. Rigor e interesses: os estatutos de limpeza de sangue em Portugal. In:
Cadernos de Estudos Sefarditas, Lisboa, 2004. OMEGNA, Nelson. Diabolização dos judeus: “martírio e presença dos sefardins no Brasil
colonial”. Rio de Janeiro: Record, 1969. SALVADOR, José Gonçalves. Os cristãos-novos. Povoamento e conquista do solo
brasileiro (1530-1680). São Paulo, Pioneira, 1976. SILVA, Marcos. A redescoberta da identidade judaica no Nordeste brasileiro. In: Anais da
Reunião Equatorial de Antropologia – X Reunião de Antropólogos Norte-Nordeste. Aracaju: 2007.
226
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
SOUZA, Grayce Mayre Bonfim. Uma trajetória racista: o ideal de pureza de sangue na sociedade ibérica e na América Portuguesa. In: POLITEIA: Hist. e SOC. Vitória da Conquista, 2008 TAVIM, José Alberto Rodrigues da Silva. Judeus entre Portugal e Marrocos nos séculos XVI e XVII. Páginas de controvérsias e de entendimentos. In: Camões. Revista de Letras e
Culturas Lusófonas. Lisboa, Instituto Camões, nºs 17-18 (Novembro) – “Relações luso marroquinas, 230 anos”. Lisboa: 2004, p. 149-165. VAINFAS, Ronaldo e HERMANN, J. Judeus e conversos na Ibéria no século XV: sefardismo, heresia, messianismo. In: Os judeus no Brasil: inquisição, imigração e
identidade. GRINBERG, Keila (org.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 15 – 41. VALADARES, Paulo. A presença oculta: genealogia, identidade e cultura cristã-nova
brasileira nos séculos XIX e XX. Fortaleza: Fundação Ana Lima, 2007. YERUSHALMI, Yosef Hayim. A Jewisch Classic in the Portuguese Language. In: Samuel
Usque. Consolação às Tribulações de Israel. Edição de Ferrara, 1553, com Estudos Introdutórios por Yosef Hayim Yerushalmi e José V. de Pina Martins. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 15-32. WIZNITZER, Arnold. Os judeus no Brasil Colonial. São Paulo, Pioneira: 1966.
227
DINHEIRO, PRA QUE DINHEIRO? José de Arimathéia Cordeiro Custódio1 Resumo: No senso comum, sobretudo na contemporaneidade, tem-se a percepção de que o dinheiro sempre existiu e que parece inimaginável uma sociedade sem ele. Obras de ficção científica que mostram um futuro no qual o dinheiro não é mais usado parecem pura fantasia. Mas houve um tempo em que as pessoas não usavam dinheiro (aqui como sinônimo de moeda), e que ele praticamente não existia - na Alta Idade Média. De fato, era inconcebível a própria ideia de lucro e acumulação de riqueza, ainda mais baseada na exploração alheia. Naturalmente, resultado de alguma influência religiosa, na qual se destaca, particularmente, a condenação à usura. Na Baixa Idade Média, e especialmente na Idade Média tardia (séculos XIV a XV), o dinheiro começou a se firmar, como consequência de uma série de movimentos sociais, que resultaram em outros fenômenos, como a valorização do trabalho, a prática da caridade (como esmola e ato de solidariedade), o surgimento dos "novos-ricos" e "novos pobres". Contudo, não se pode falar ainda em pensamento capitalista ou período précapitalismo. Estes e outros aspectos do dinheiro e seu uso, são o objeto de reflexão deste estudo, que se baseia em autores consagrados no estudo dos costumes e das mentalidades medievais, e em obras específicas do tema. A conclusão é que, de um lado, os medievais pensavam de forma muito diferente da de hoje; de outro, é possível constatar que seu pensamento ainda nos alcança, não só nos documentos e estudos, mas no imaginário mais tradicional de alicerce religioso. Palavras-chaves: dinheiro; usura; pobreza.
1
Universidade Estadual de Londrina.
228
José de Arimathéia Cordeiro Custódio
Introdução
trata-se de um retrato da Terra do século
A relação do homem contemporâneo
XXIII, depois de uma terceira guerra mundial,
com o dinheiro tem algo de passional. O "vil
na qual seus habitantes vivem em condições
metal" pode ser amado ou odiado, mas
idílicas, usufruindo os frutos de uma utopia
dificilmente pode ser simplesmente ignorado.
tecnológica. Está certo que, no primeiro
Numa sociedade que vende tudo o que
caso, o paraíso tem seu preço: só se vive até
pode, tem meios coloridos e adocicados de
os 30 anos. Mas o que importa é chamar a
estimular o consumo, e parece poder dar um
atenção para a ausência do dinheiro.
preço a tudo o que existe, a percepção geral
Porém, este não é um estudo do
é de que o dinheiro sempre existiu. Mais: se
imaginário
contemporâneo.
não existisse, teria de ser inventado. E além:
preciso lançar mão da ficção científica para
parece impossível imaginar uma vida sem
chegar ao objeto de reflexão, de fato
ele. Ou, como diz Metri (2014, p. 13),
histórico e concreto. Afinal, como anotam Le
"pensar sobre moeda é refletir a respeito de
Goff & Schmitt (2006, p. 213), "o dinheiro é
um objeto que há tempos possui enorme
uma realidade tangível da história social".
importância e simbologia, sobretudo como
Para Metri (2014, p. 14), "a moeda é
fonte de atenção e cobiça, motivo de
entendida como uma construção coletiva".
disputas e conflitos. Na vida cotidiana,
Contudo,
poucos estão livres de sua realidade e
inventado, evoluído e circulado sob diversas
quimera. Seu manuseio transformou-se em
formas, o dinheiro conheceu um declínio, um
um imperativo generalizado".
ocaso, um retrocesso, e quase desapareceu.
séculos
depois
Tampouco
de
ter
é
sido
sem
Isso foi na Europa da Alta Idade Média
dinheiro parece, pois, obra de ficção. Há
(séculos V a X), depois do fim do Império
cerca de meio século, algumas - embaladas
Romano do Ocidente, e com a consolidação
nas promessas tecnológicas do pós-guerra -
da Igreja Católica. O dinheiro, como é
imaginavam
Dois
conhecido e utilizado corriqueiramente hoje,
exemplos podem ser citados: "Fuga do
praticamente não existia, assim como não
Século XIII" ("Logan's run"), filme que
existia a mentalidade, a lógica que o
originou a série "Fuga das Estrelas"; e a
acompanha nos dias atuais.
Conceber
um
uma
futuro
sociedade
sem
ele.
série "Jornada nas Estrelas". Nos dois casos,
Embora o homem contemporâneo
229
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
descenda do medieval, e com ele se pareça
indicação da crescente aceitação da prática
mais do que se pode inicialmente imaginar,
da usura em seu tempo. Le Goff (2014), de
seu pensamento em relação ao dinheiro é
fato, dedica boa parte de sua obra para
muito diferente Tanto que Le Goff (2014, p.9)
explicar que o século XIII foi especialmente
lembra que "o dinheiro no sentido em que o
crucial para o avanço da retomada do
entendemos hoje (...) é um produto da
dinheiro na Europa. Mais importante é
modernidade". Ao homem da Alta Idade
ressaltar que, como todos os aspectos da
Média, era inconcebível a própria ideia de
vida cotidiana do povo medieval, o dinheiro
lucrar e acumular de riqueza, mais ainda se
também se submeteu, pelo menos por
baseada na exploração alheia. É claro que a
alguns séculos, a regras religiosas e éticas.
influência
da Igreja se fazia presente,
É como diz Le Goff (2004, p. 5), que destaca
fazendo prevalecer o pensamento cristão.
a relevância do tema - usura - na sociedade
Particularmente, havia a condenação à
medieval: "A usura. Que fenômeno oferece,
prática da usura, ou seja, receber dinheiro
mais do que este, durante sete séculos no
em pagamento do dinheiro emprestado. Le
Ocidente, do século XII ao XIX, uma mistura
Goff (idem, p.11) fala de dois períodos: o
tão explosiva de economia e religião, de
primeiro, de Constantino e São Francisco de
dinheiro e de salvação - expressão de uma
Assis, registrou um recuo, uma regressão do
longa Idade Média (...)?"
uso do dinheiro. Já o segundo, do século XIII
Já na Idade Média tardia (séculos XIV
ao XV, foi marcado pelo desenvolvimento de
a XV), o dinheiro começou a se firmar, como
uma pobreza voluntária, enquanto o espaço
consequência de uma série de movimentos
ocupado pelo dinheiro na sociedade crescia.
sociais,
que
resultaram
em
outros
Apesar de na Baixa Idade Média (XI a
fenômenos, como a valorização do trabalho,
XV) o dinheiro recuperar prestígio e lugar na
a prática da caridade (como esmola e ato de
sociedade (é o que se verá neste estudo),
solidariedade), o surgimento dos "novos-
mas ainda sem falar em pré-capitalismo, esta
ricos" e "novos pobres", e dos Estados
valorização foi lenta e gradual, e jamais sem
incipientes.
oposição, afinal, São Tomás de Aquino, no
concorrendo todos para o fortalecimento do
século XIII, condenou a usura em sua Suma.
dinheiro.
Na verdade, sua franca oposição é uma forte
dizer, referindo-se a negociantes italianos do
Os
fatos
se
relacionavam,
Duby (2011, p. 158) chegou a
230
José de Arimathéia Cordeiro Custódio
século XII, que o dinheiro "se tornou o
cristianismo um uso limitado mas importante
principal instrumento do poder, a mola das
do
promoções
manuseio
enfraquecer do século IV ao século VII".
É
deste
Neste período, também neste aspecto se
e
constata a influência da Igreja. O autor diz:
enriquece
sociais,
e
cujo
desmedidamente".
processo
de
enfraquecimento
dinheiro,
que
não
cessa
de
se
"A Igreja, e especialmente os mosteiros, por
fortalecimento que trata este estudo.
intermédio do dízimo, uma parte do qual
A Deus o que é de Deus Le Goff & Schmitt (2006, p. 213)
entra em dinheiro, e da exploração de seus
observam: "Na Idade Média, a moeda
domínios, entesoura a maior parte desses
metálica
rendimentos
testemunha
a
sobrevivência
monetários"
(idem,
p.
18).
recorrente da Antiguidade". Mas não em toda
Pirenne (1982, p. 18) vai na mesma direção:
a
se
"A Igreja, portanto, não foi somente a grande
desconhece a moeda e onde as peças
autoridade moral deste tempo, mas também
antigas jamais circularam, não houve um
um grande poder financeiro". E se havia
encorajamento
moeda
necessidade de moeda, ela era fabricada a
metálica Esta não constitui o único meio de
partir da fundição de ornamentos. Uma
troca, e a permuta permanece uma prática
prática que, para o medievalista, "atesta a
difundida até o final do século XI" (idem, p.
relativa fraqueza das necessidades dos
215). Porém, como sempre, vale ressaltar
homens da Idade Média em matéria de
que o homem medieval via a moeda de
moeda" (idem, p. 19). Isto ficou bem
maneira
autores
diferente séculos depois: "... a virada do
afirmam: "... mesmo nas regiões onde a
século XII para o século XIII marca sem
compra e a venda são monetarizadas, não
dúvida o apogeu e logo o declínio do papel
se vê na moeda algo além de uma
das ordens monásticas na circulação do
mercadoria; elas são vistas menos como
dinheiro" (idem, p. 39).
Europa:
"Nas
da
distinta
regiões
em
utilização
da
atual.
que
da
Os
unidade de valor do que como simples berloques.
Esta
desconfiança
nunca
desaparecerá completamente" (idem). Em outra obra, Le Goff (2014, p. 17) expõe assim: "O Império Romano lega ao
Metri (2014, p. 18) anota que a Europa Ocidental conheceu um período, mais intenso ainda durante dois séculos, em que "houve um desuso generalizado dos instrumentos
monetários.
A
moeda,
231
a
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
despeito de existir, não se configurava como
É a representação da caridade cristã,
a principal expressão da riqueza nem era
protagonizada
pelos
bispos,
como
usada em sua plenitude como instrumento
representantes
da
Igreja,
numa
de poder pelas autoridades centrais". Muito
implementação que teve início no século IV.
pelo contrário. A "remonetização do espaço
Este modelo se transformou na Baixa Idade
europeu", segundo o autor, só começou no
Média, como se verá adiante. Mas naquele
século XI.
momento, marca a transição da Antiguidade
Um documento que aponta para uma
para o Medievo num aspecto que tange a
percepção da felicidade sem a existência do
relação pobreza/riqueza. Como lembra o
dinheiro, na Alta Idade Média, está num texto
autor, a figura do pobre não tinha uma
de um cronista ibérico, um diácono do século
destacada função social no mundo antigo,
VII, citado por Zétola (2009, p. 11) como "um
mas o Cristianismo valorizava-o em sua
novo imaginário que se tornava hegemônico
própria condição. Logo, não se ocupou de
na cristandade ocidental". Era ainda um
reduzir
tempo de violência e desigualdades - afinal,
defendido o pobre em sua hipossuficiência
"sempre tereis os pobres convosco" (Mt
social. Em outras palavras, foi na Idade
26,11, retomando Dt 15,11) - mas o texto
Média que o pobre se tornou uma categoria
exprime uma realidade diferente, na qual a
social, "como substantivo, e não mais como
felicidade
condição
adjetivo" (Zétola, idem, p. 28), ou seja, como
econômica: "Em seu tempo, por meio de
pessoa. Porém, não eram pobres somente
suas preces, o Senhor repeliu doença, praga
os desprovidos de condições materiais, mas
e fome (...). E achou válido dar tanta saúde e
todos os humildes. Eis outra diferença em
tanta quantidade de delícias a todo o povo
relação à percepção contemporânea. Esta
que ninguém, nem mesmo um pobre, era
perspectiva medieval, acolhida por Santo
visto fatigado pela necessidade ou desejava
Agostinho, atravessou séculos, assim como
algo mais, de modo que os pobres, assim
o pensamento agostiniano o fez, imbatível,
como os ricos, tinham abundância de todas
por igual período.
está
apartada
da
as coisas boas, e todo o povo na terra parecia
regozijar
estivesse...".
como
se
no
céu
desigualdades,
embora
tenha
Mas, segundo Le Goff (2014, p. 24), foi Isidoro de Sevilha que situou o amor ao dinheiro à frente dos pecados capitais,
232
José de Arimathéia Cordeiro Custódio
prometeu aos ricos o Inferno e lembrou a
diversos dinheiros, sob uma designação
parábola do rico e do pobre Lázaro (Lc
comum, tinham um valor metálico diferente,
15,19-31), em que o primeiro queima no
segundo a sua proveniência" (idem).
Inferno, enquanto o outro, humilhado em
Pirenne (2009, p. 42) parece sugerir o
vida, ganha o Céu. Mas o dinheiro em si não
século IX como o auge de uma economia
é o problema - o pecado está na avareza e
ensimesmada, para consumo próprio, e de
na usura.
comércio (trocas) fraco. Por isso mesmo,
O medievalista menciona a Isidoro:
sem circulação de moedas, logo contra a
"monetta vem de monere, 'advertir', porque
acumulação, e é uma construção social:
põe em guarda contra toda espécie de
"Esta economia, na qual a produção só serve
fraude no metal ou no peso. É uma luta
para consumo do grupo que vive na
contra a 'má' moeda, a moeda falsa ou
propriedade, e que, por conseguinte, é em
falsificada (defraudata), um esforço em prol
absoluto estranha à ideia de lucro, não pode
da 'boa' moeda, a moeda 'sã e leal'" (idem, p.
ser considerada como um fenômeno natural
102).
e espontâneo". De fato, o autor fala em
definição
de
moeda
dada
por
Bloch (2009, p. 90) estuda o comércio
"desaparição do comércio no século IX"
medieval, fala da busca do lucro e das
(idem, p. 55). Porém, "a fraca existência de
formas
numerário em circulação" (idem, p. 167) se
de
pagamento.
Segundo
ele,
funcionava assim: "O devedor pagava muitas
tornou
vezes em mercadorias mas em mercadorias
fortalecimento do comércio e o surgimento
geralmente 'apreciadas' uma por uma, de
dos burgueses. Segundo o autor, o comércio
maneira que o total destas avaliações
libertou
coincidisse com um preço estipulado em
transformado em ornamentos suntuosos) e
libras, soldos e dinheiros". Bloch menciona
"reconduziu-o ao seu destino" (idem, p. 168).
uma "carência monetária", agravada ainda
E acrescenta: "Graças a ele, tornou-se o
mais
de
instrumento das trocas e a medida dos
moedas" que uma Europa politicamente
valores, e, visto que as cidades eram os
fragmentada
mercado
centros de comércio, necessariamente aflui
importante tinha que ter a sua oficina local,
para eles. (...) Ao mesmo tempo, seu uso
sob pena de falta de moedas. (...) Mas os
generalizou-se; os pagamentos em gêneros
pela
"anarquia gerou:
da "...
cunhagem cada
depois
o
do
século
dinheiro
XII,
com
entesourado
o
(ou
233
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
deram lugar cada vez mais aos pagamentos
início do século XII foi simultaneamente o
em moeda".
tempo da canonização - em 1204 - de Santo
Giordani (1997, p. 190) assinala que
Homebon, rico comerciante de Cremona (a
"a partir da metade do século XI até meados
bem dizer, apesar de sua riqueza), e da
do século XIII percebe-se na sociedade
glorificação da pobreza por São Francisco de
medieval uma necessidade crescente de
Assis" (2014, p. 32).
dinheiro. Explica-se esse fenômeno por uma
A usura e o purgatório
série de fatores vinculados à evolução
Le Goff (2014, p. 13) informa que o
econômica e às transformações sociais". O
uso do dinheiro era submetido a regras da
autor comenta que o aparecimento cada vez
Igreja, com base bíblica, especialmente
maior de dinheiro naquela época é tanto
passagens neotestamentárias. Dois trechos
causa quanto efeito das exigências sociais. A
do Evangelho de Mateus (6,24 e 19,23-24)
exploração de minas e o comércio com o
são exemplos: o primeiro adverte que não se
Oriente
pode servir a dois senhores - Deus e o
são
circunstâncias
duas
das
que
principais
impulsionaram
a
cunhagem e circulação de moeda metálica.
dinheiro. O segundo lembra que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma
Já Le Goff defende as Cruzadas, a
agulha do que um rico entrar no reino dos
partir dos estertores do século XI, como
Céus. Há ainda um trecho de Lucas (12,13-
evento que começou a impulsionar o uso de
22), que avisa ao homem que bens materiais
moeda. E da mesma forma que a Igreja
não garantem sua vida, e que os ricos
justificou
até
devem dividir sua abundância com os
Jerusalém, pouco a pouco ela foi justificando
pobres. Mas textos veterotestamentários
a tolerância à presença do dinheiro, antes
também
inexistente. Como também afirmam outros
Eclesiastes, que declara que "aquele que
medievalistas,
uma
ama o dinheiro nunca se fartará, e aquele
conjunção de fatos e fatores: crescimento do
que ama a riqueza não tira dela proveito.
comércio e das cidades, exaltação do
Também isso é vaidade" (Ecl 5,9). Enfim, a
trabalho, mudanças nas relações sociais e
avareza era condenada, enquanto a pobreza
jurídicas,
e a caridade eram exortadas.
as
campanhas
houve
na
entre outros.
militares
verdade
A complexidade
chega a ponto de Le Goff afirmar que "o
O
eram
autor
lembrados,
francês
como
descreve:
o
"As
234
José de Arimathéia Cordeiro Custódio
imagens medievais, onde o dinheiro aparece
che dal collo a ciascum pendea una
de maneira frequentemente simbólica, são
tasca
sempre pejorativas e tendem a impressionar
ch'avea certo colore e certo segno,
aquele que as vê levando-o a temer o
e quindi par che 'l loro occhio si pasca.
dinheiro. E de todos os que pecaram pelo
E com'io riguardando tra lor vegno
dinheiro, Judas Iscariotes foi o pior. Le Goff
in una borsa gialla vidi azzurro
cita um manuscrito ilustrado do século XII, o
che d'un leone avea faccia e contegno. Já
Hortus deliciarum (Jardim das Delícias), em
citamos
a
canonização
de
que Judas é retratado recebendo suas 30
Homebon, comerciante que, apesar de sua
moedas de prata pela traição a Jesus, junto
ocupação
pecaminosa
por
com
conseguiu
a
Outra
um
comentário:
"Judas
mercator
salvação.
natureza, história
pessimus significat usurarios quos omnes
emblemática é a de Godric de Finchale
expellit Dominus, quia spem suam ponunt in
(1065-1170), citada por Pirenne (2009, p. 92-
diviciís et volunt ut nummus vincat, nummus
5). Sua biografia é permeada por uma aura
regnet, nummus imperet" ("Judas é o pior
mística, e foi considerado santo por muitos,
dos comerciantes que encarna os usurários
embora
expulsos do Templo por Jesus porque põem
canonizado.
suas esperanças na riqueza e querem que o
fortuna tanto pela habilidade quanto pelo
dinheiro triunfe, reine, domine").
oportunismo diante das circunstâncias. Mas
nunca
tenha
Comerciante
sido
realmente
agressivo,
fez
Não à toa, a iconografia medieval
não sob a bênção da Igreja, como escreve o
escolheu uma bolsa pendurada no pescoço
autor: "O seu cuidado em procurar para cada
como principal símbolo do rico a caminho do
produto o mercado onde produzir o máximo
Inferno. É o atributo do usurário. Igualmente,
de ganho está em flagrante oposição com a
Dante Alighieri colocou pequenas bolsas nos
censura que a Igreja faz a toda a espécie de
usurários condenados (Inferno, canto XVII,
especulação e com a doutrina econômica do
versículos 52 a 58), carregando nelas o
justo
emblema da família:
converteu.
Poi che nel viso a certi li occhi porsi,
preço”.
Mas
depois
Godric
se
Le Goff (2004, p. 6) afirma que "a
ne' quali 'l doloroso foco casca
usura é um dos grandes problemas do
non ne conobbi alcun, ma io m'accorsi
século XIII. Nesta data, a Cristandade, no
235
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
auge da rigorosa expansão que empreendia desde o Ano Mil, gloriosa, já se vê em perigo. O impulso e a difusão da economia monetária cristãos".
ameaçam E
assim
os
velhos
como
os
valores concílios
eclesiásticos do século IV condenaram a usura, restringindo-a ao máximo na Alta Idade Média, os concílios do século XII e XIII também a combateram e a desprezaram, mas sem tanto sucesso, pois os tempos já eram outros. Ou, como diz o autor francês, "o século XIII é a época em que os valores se tornam mais terrenos" (idem, p. 63). Sobre a posição da Igreja, Pirenne fala mais (2009, p. 98): Para a Igreja, a vida comercial era perigosa para a salvação da alma. O mercador, diz um texto atribuído
Média, e é permitido acreditar que a Igreja contribuiu muito para este feliz resultado. O universal prestígio de que gozava agiu, como um freio moral.
O freio eclesiástico foi forte sobretudo na condenação da usura. Le Goff (2014, p. 109) descreve: "O código de direito canônico exprime melhor a atitude da Igreja em face da usura no século XIII: usura é tudo aquilo que se pede em troca de um empréstimo para além do empréstimo em si mesmo; pedir isso é um pecado proibido pelo Antigo e o Novo Testamento". O autor francês informa ainda que "a Igreja proibia que um credor cristão cobrasse juro de um devedor cristão" (idem), baseada numa passagem do Evangelho de Lucas (Lc 6,35: "emprestai sem daí esperar nada") e de trechos
a S. Jerônimo, só dificilmente pode agradar a Deus.
veterotestamentários, como Lv 25,36 ("Não
O comércio aparecia aos canonistas como uma
receberás dele juros nem ganho") e Dt 23,20
forma de usura. Condenavam a busca do lucro, que confundiam com a avareza. A sua doutrina do preço
("Poderás exigi-lo do estrangeiro, mas não
justo pretendia impor à vida econômica uma
de teu irmão").
renúncia; para dizer tudo, um ascetismo incompatível
Pirenne
com o natural desenvolvimento daquela. Todas as espécies de especulações se lhe afiguravam um pecado.
E prossegue (idem, p. 99): É preciso admitir, aliás, que esta atitude não deixou de ser benéfica. Teve certamente por resultado impedir a paixão do ganho de se expandir sem
(1982,
p.
19)
também
comenta a proibição da usura, ou do empréstimo a juros, citando que ela era considerada
uma
"abominação".
E
acrescenta: "Além disso, o comércio em geral não era menos reprovável do que o do
limites; protegeu numa certa medida os pobres
dinheiro. É também perigoso para a alma,
contra os ricos, os devedores contra os credores. O
pois afasta-a de seus fins últimos" (idem).
flagelo das dívidas, que na Antiguidade grega e na Antiguidade romana se abateu tão pesadamente sobre o povo, foi evitado à sociedade da Idade
As principais consequências deste pensamento, segundo Le Goff (2014, p.
236
José de Arimathéia Cordeiro Custódio
110), são três. Primeiro, a usura estabelece
Aquino disse: "Nummus non parit nummos".
o pecado mortal da cobiça (avareza), que por
Assim a usura se tornou um pecado contra a
sua vez conduz à simonia. Segundo, a usura
Natureza, ou seja, contra a criação divina.
é um roubo; um roubo do tempo, que
Por tudo isso, o destino fatal do usurário é a
pertence unicamente a Deus, pois a usura
danação. De novo Le Goff (idem, p. 111):
cobra
o
"Em 1179, o terceiro concílio de Latrão
empréstimo e seu pagamento. É o chamado
declarava que os usurários eram estranhos
"tempo usurário":
de
nas cidades cristãs e que a eles devia ser
modificou
recusada a sepultura religiosa. A usura é a
profundamente a concepção e a prática do
morte. Os textos narrando a morte horrível
tempo na Idade Média" (idem). Le Goff traz
do usurário são numerosos no século XIII". O
esta informação em outra obra (2013, p. 58):
autor traz uma citação de Thomas de
"No
acusações
Chobham, inglês formado pela Universidade
dirigidas aos mercadores figura a censura de
de Paris, que diz (idem, p. 112): "O usurário
que o seu ganho supõe um a hipoteca sobre
quer
o tempo que só pertence a Deus".
trabalho, até mesmo dormindo, o que vai
o
sublinhar
tempo
que
primeiro
transcorrido "Este é o o
plano
dinheiro
dessas
entre lugar
conseguir
proveito
sem
nenhum
E finalmente, a usura é um pecado
contra o preceito do Senhor que estabelece:
contra a justiça, como afirma São Tomás de
'Comerás pão com o suor do teu rosto'
Aquino. Le Goff (2004, p. 45) diz que "o
(Gênese 3,19)".
usurário, pior espécie de mercador,, é alvo
E acrescenta (idem, p. 113): "Durante
de várias condenações convergentes: o
a maior parte do século XIII, o único meio de
manuseio - particularmente escandaloso - do
escapar do inferno para o usurário era a
dinheiro, a avareza, a preguiça. A isto se
restituição daquilo que ganhara cobrando
acrescenta, como já vimos, as condenações
juros,
por roubo, pecado de injustiça e pecado
restituição era aquela feita antes de sua
contra a natureza".
morte, mas ele ainda poderia se salvar post
A
retomada
do
pensamento
quer
dizer,
a
usura.
A
melhor
mortem incluindo a restituição em seu
aristotélico forneceu aos escolásticos um
testamento",
caso
em
que
a
novo aspecto à natureza diabólica do
responsabilidade (e risco) recaíam sobre os
dinheiro no século XIII. São Tomás de
herdeiros ou executores do testamento. Por
237
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
isso, a morte súbita era muito temida, por
universidade entrou no debate. Le Goff
não deixar tempo para arrependimentos,
(idem)
conversões ou restituições.
universidades
aponta:
"A liga-se
fundação ao
das
problema
No imaginário medieval, o usurário era
intelectual, econômico e social surgido com o
comparado a um leão violento, uma raposa
crescimento da função do dinheiro na
pérfida, um lobo ladrão e glutão, que, na
cristandade medieval".
morte, perdia a pele, isto é, as riquezas
Exemplo desta nova indulgência está
roubadas em vida. Ainda no imaginário: ao
em sermões de Alberto Magno, que até
lado dos homens que rezam, que combatem
elogia os ricos comerciantes, que geram
e que trabalham (a sociedade medieval), o
empregos, embelezam a cidade com seus
diabo teria colocado mais um grupo: os
monumentos e fornecem bens para a
usurários. Jacques de Vitry, citado por Le
população. Mais que isso, na lista de
Goff (idem, p. 116), disse que "a quantidade
pecados
de dinheiro que eles recebem com a usura
encabeçá-la. A avareza caiu para terceiro
corresponde à quantidade de lenha enviada
lugar.
ao Inferno para queimá-los". De fato, a Idade Média
criou
uma
verdadeira
literatura
devotada à história e morte de usurários.
capitais,
Houve,
a
então,
luxúria
uma
passou
a
progressiva
justificação do empréstimo a juros. Em parte, porque os usurários temiam o Inferno, ao
O século XIII, porém, viu nascer uma
mesmo tempo em que a Igreja queria salvar
perspectiva ambígua frente ao dinheiro. Le
os piores pecadores. Uma saída sancionada
Goff explica: "O século XIII é na verdade a
pela Igreja foi aberta na segunda metade do
época em que o dinheiro dá motivo, nos
século XII, quando esta começou a falar do
meios eclesiásticos, ao debate teórico mais
Purgatório. Informa Le Goff (2014, p. 119):
consistente" (2014, p. 42). A hostilidade da
"A primeira salvação conhecida de um
Igreja começou a dar lugar a uma certa
usurário pelo Purgatório está no tratado do
indulgência, em grande parte graças às
cisterciense alemão Cesário de Heisterbach,
novas ordens religiosas, que nasciam não
em seu Dialogus magnus visionum ac
mais no campo, como a beneditina, mas nas
miraculorum [Grande diálogo das visões e
cidades,
e
dos milagres], cerca de 1220, no qual ele
incipiente
conta a história de usurário de Liège". Mas o
como
dominicanos.
os
Também
franciscanos a
238
José de Arimathéia Cordeiro Custódio
autor observa que o purgatório não foi criado
debate se instalou, como anota Le Goff
para salvar o usurário do inferno, da mesma
(2014, p. 127): "Como tinha havido no
forma que ele também não se constituiu no
domínio da alimentação o grande combate
principal meio de salvar o usurário do Inferno
do carnaval e da quaresma, houve no
a partir do século XII.
domínio do dinheiro o grande debate entre
Vale citar ainda, a história do usurário
riqueza e pobreza". Riqueza que não era
de Liège, contada por Le Goff (1995, p. 358-
mais de terra, de senhores e de mosteiros,
60). Comenta o autor:
mas de comerciantes, burgueses e usurários
a surpresa deste texto (que o foi provavelmente também para os ouvintes e os leitores deste
exemplum) é o fato de o herói, o beneficiário desta história, ser um usurário. Num momento em que a Igreja redobra esforços contra a usura severamente condenada no segundo (1139), terceiro (1179) e quarto (1215) concílios de Latrão, no segundo
- ricos em moeda. Tal riqueza trouxe significados
tanto
econômicos
quanto
sociais. Para Le Goff (2014, p. 70), "uma das razões da maior difusão do dinheiro no ou
concílio de Lyon (1274) e ainda no concílio de Viena
pelo Ocidente do século XIII foi também o
(1311), no momento em que se desenvolve entre a
desenvolvimento
cristandade
uma
campanha
contra
a
usura,
particularmente intensa no começo do século XIII na
do
luxo
na
sociedade
ocidental, senhorial e principalmente urbana,
Itália do Norte e em Toulouse, e em que a avareza
na camada superior dos burgueses". O
está em vias de roubar ao orgulho o primeiro lugar
medievalista francês (idem, p. 44) afirma: "O
entre os pecados mortais, quando os fieis têm sempre debaixo dos olhos esse tema favorito da
enriquecimento
proveniente
do
imaginária romana - o usurário, presa certa do
desenvolvimento do artesanato e sobretudo
Inferno, puxado para a geena pela bolsa recheada
do comércio é principalmente individual e
que lhe pende no pescoço, ei-lo, o usurário, salvo por uma hipotética contrição final e pela dedicação da
esposa,
apesar
da
resistência
da
Igreja
representada pelo topo da sua hierarquia.
Novos pobres e novos ricos Os escolásticos se debruçaram sobre as questões envolvendo as novas práticas econômicas em torno do uso do dinheiro, preocupados com a ética e a justiça. Também as ordens mendicantes olhavam de perto para tais práticas, de forma que o
familiar". Mas a cidade também passou a exibir poder: "O século XII é também a época em que começam a ser edificadas as 'casas de cidade', que mais tarde serão chamadas câmaras municipais. Prefeituras aparecem desde o fim do século XII" (idem, p. 45). E o autor bem lembra que o século XIII foi o tempo das grandes catedrais góticas, que exigiram grandes investimentos em dinheiro:
239
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
"... uma das razões de a economia europeia
pessoais ou familiares, "no momento em que
não ter decolado na Idade Média foi, com as
se acelera a distensão da economia, (...) em
cruzadas e a fragmentação monetária, o
que a moeda começa a desempenhar no
custo das catedrais" (idem, p. 48). Le Goff,
mais cotidiano da vida um papel capital, em
por sua vez, completa (2014, p. 202): "no fim
que por toda parte se difunde o uso da
do século XIV e no século XV, o luxo, já
palavra ganhar. É então que e descobrem,
crescente no século XIII, toma proporções
cada vez mais numerosas, menções de
espetaculares".
arcas ou de bolsas nos documentos de
É evidente que a condição econômica
arquivos, restos de chaves nos canteiros de
da população citadina da Baixa Idade Média
escavações,
acaba determinando inúmeros aspectos da
manifesta
vida urbana, além da esfera econômica.
naturalmente móveis...". Pirenne (2009, p.
Duby (1990, p. 178), por exemplo, descreve
71), referindo-se ao século XI, vai na mesma
a situação da moradia dos pobres: "Os
direção, ao afirmar que "com a extensão do
humildes se mudam frequentemente. A
comércio, o amor do ganho manifesta-se de
pobreza reduz o espaço privado, comprime a
modo
família (até a promiscuidade), ao mesmo
nenhum escrúpulo existe em face do lucro A
tempo que obriga a romper as solidariedades
sua religião é uma religião de gente de
privadas mais amplas (amigos, vizinhos) no
negócios
momento em que vão se formar". Outro
muçulmanos sejam inimigos de Cristo, se o
reflexo, segundo Duby, está no mobiliário:
comércio com eles pode ser proveitoso".
"Enriquecer, progredir na sociedade é, entre
indícios de
guardar
irresistível.
Pouco
Houve
de
para
Para
lhes
uma
os
si
em
bens
venezianos
importa
momentos
vontade
que
que
os
a
outras coisas, cuidar de seu mobiliário"
ostentação do luxo foi combatida. Carlos V
(idem, p. 187).
proibiu, no século XIV, que as mulheres de
Um item do mobiliário se destaca,
Montpellier usassem pedras preciosas. No
firmando seu espaço no imaginário popular:
século XV, Carlos VIII proibiu roupas de seda
a arca, como lugar de guarda do tesouro, ou
e de veludo. O luxo na mesa (glutonia) foi
seja, da riqueza acumulada. Duby (1990, p.
reprimido, ou seja, era praticado de forma
505-6) situa o fenômeno já a partir do século
escandalosa.
XII, como marca das conquistas econômicas
A circulação de mais moeda e a
240
José de Arimathéia Cordeiro Custódio
ostentação causaram, porém, aumento de
Se surgiram, então, "novos ricos",
consumo, o que levou, em dado momento, a
apareceram
um generalizado estado de endividamento
Entretanto, não mais uma pobreza como
da população. Le Goff (2014, p. 58) fala de
fruto do pecado, nem uma pobreza de Jó,
europeus que, no século XIV, gastavam
mas uma exaltada, porque espelhada na
quase a metade do salário apenas com a
imagem de Jesus - aquele que deu à
compra de grãos, e de 60 a 80% do
Humanidade o maior e mais verdadeiro
orçamento só com despesas alimentares. O
exemplo de pobreza. E se a riqueza provinha
consumo
a
do trabalho, já justificado, a pobreza passou
os
a ser uma escolha, uma opção - São
açougueiros, que se multiplicaram para
Francisco de Assis é outro exemplo. A
atender à demanda pelo produto. Em outras
esmola ganhou novos sentidos, e a caridade
palavras,
à
foi ainda mais exortada. Tanto, que fez
desigualdade social crescente nas cidades.
nascer na época as ordens hospitalares e
Ele
seus hospitais, nos centros urbanos.
de
aumentar
carne
tanto
o
também
uso
também
que
do
afirma
chegou
locupletou
dinheiro que
levou "um
dos
também
"novos
pobres".
endividamentos mais importantes foi sem
Outra noção que surge é aquela que
dúvida o dos camponeses" (idem, p. 107).
redundou, mais tarde, na ideia de que
Informa o autor que, até o século XIII, eram
"tempo é dinheiro". Diz Le Goff (2014, p. 61):
as instituições monásticas que emprestavam.
"A partir do fim do século XII observa-se a
Depois, quando o emprego do dinheiro se
sensibilidade cada vez maior do habitante
urbanizou, os judeus assumiram o papel de
das cidades quanto ao valor do tempo. Vê-se
emprestadores, uma vez que, segundo a
despontar a ideia de que tempo é dinheiro.
Bíblia, o empréstimo a juro era proibido entre
Cresce principalmente, no século XIII, o valor
cristãos, e entre judeus, mas não de uns
econômico, monetário mesmo, do trabalho,
para os outros. O medievalista francês expõe
inclusive do trabalho manual". Mais uma vez,
ainda que o endividamento, em regiões da
a base é bíblica: "o operário é digno do seu
Alemanha, que era de 1% em 1362, passou
salário" (Lc 10,7).
de 50% no século XV. Em Barcelona,
O medievalista francês afirma que "na
chegou a 61% em 1403; em Valência, a
Alta Idade Média, o trabalho durante longo
76%, em 1485.
tempo foi desprezado pelo cristianismo,
241
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
contabilidade
foi
também
original" (idem, p. 122). E continua: "Ora, a
embora,
dois
últimos
partir do século XII o trabalho foi objeto de
medievo, ainda fossem os comerciantes os
uma reavaliação marcante no sistema de
principais manipuladores de dinheiro.
considerado
consequência
do
pecado
nos
valores e de prestígio social das pessoas da
crescendo, séculos
do
Considerações finais
Idade Média, de modo quase paralelo quanto
Não resta dúvida que a moral cristã
à reavaliação da pessoa e do papel da
influenciou, como em tantos outros aspectos
mulher, favorecida pelo grande impulso do
do cotidiano medieval, o uso do dinheiro. Le
culto marial" (idem, p. 123). Assim, o homem
Goff (2004, p. 67-8) assim expõe o cenário:
passou de criatura punida e sofredora a um
"A Igreja, os teólogos, os canonistas e, não
colaborador da Criação.
os
esqueçamos,
os
pregadores
e
os
Finalmente, na Idade Média tardia
confessores da Idade Média, tratando de
(séculos XIV e XV), o desenvolvimento
questões religiosas, do pecado e de usura,
comercial
mostraram o impacto da religião sobre os
levou
à
criação
de
novos
instrumentos que pudessem atender às
fenômenos
necessidades monetárias. Surgiram, pois, a
'econômicos'". A fé se mistura aos costumes.
letra de câmbio e o contrato de seguro. Le
"O homem medieval pensa no cotidiano
Goff
uma
usando os mesmos moldes de sua teologia",
curiosidade: "a festa de São Miguel, no fim
afirma categoricamente Huizinga (2010, p.
de setembro, e a de Todos os Santos, no
375).
(idem,
p.
164)
até
conta
que
hoje
chamamos
início de novembro, tornaram-se datas de
Sabe-se que é assim. Ao tratar das
pagamento maciço". A letra de câmbio,
formas de pensamento na vida prática,
explica o autor, funcionava como um meio de
Huizinga (idem) explica: "Para compreender
pagamento de uma operação comercial;
o espírito medieval como uma unidade total,
valia como transferência de fundos entre
é necessário analisar as formas básicas de
lugares com moedas diferentes; era fonte de
seu pensamento não apenas levando em
crédito;
conta
e
era
ganho
financeiro
sobre
as
representações
da
fé
e
da
diferenças e variações de câmbio. As
especulação mais elevada, mas também a
práticas de endosso e desconto só surgiram
sabedoria de vida do cotidiano e das práticas
no
mundanas. Pois são as mesmas grandes
século
XVI.
Com
tudo
isso,
a
242
José de Arimathéia Cordeiro Custódio
linhas de pensamento que dominam tanto as
desencoraja
o
pensamento
expressões mais elevadas como as mais
capitalismo germinava na Idade Média.
comuns". O uso do dinheiro não é uma
Especificamente - ao tratar do crescimento
exceção, e aí vale o argumento do autor
urbano e comercial, com a adoção de moeda
(idem): "Tudo o que conquistou um lugar fixo
e o surgimento de banqueiros, o autor
na vida, que se transforma numa das formas
menciona
de vida, passa a valer como se tivesse sido
realmente acumularam fortunas. Porém, "é
ordenado por Deus, desde os usos e
preciso lembrar, com Ferdinand Braudel, que
costumes mais comuns até as coisas mais
as aventuras mais brilhantes do 'capitalismo
elevadas no plano universal".
financeiro', aquelas dos Bardi, dos Peruzzi e
alguns
de
que
empreendedores
o
que
apresentar
dos Medici de Florença, ou ainda dos
algumas ponderações de autores como Le
banqueiros de Gênova entre 1580 e 1620 e
Goff, que refutam a ideia de um pré-
de Amsterdã no século XVII, terminam todas
capitalismo no final do medievo. O autor
em fracasso; não há sucesso neste domínio
(2014, p. 193) sentencia: "o dinheiro não
antes de meados do século XIX". Ele refuta,
assumiu sua significação moderna senão a
ainda, historiadores (como Pirenne, 1982)
partir do século XVIII", ou seja, bem depois
que fincam as raízes do capitalismo na Baixa
do fim da Idade Média. E acrescenta (idem,
Idade Média, chamando esta postura de
p. 199): "a emergência e o crescimento do
"temerários erros de perspectiva" (idem, p.
mercado no fim da Idade Média nada têm ver
155).
Cabe,
com
uma
capitalismo,
neste
putativa são,
ponto,
transição ao
para
contrário,
O autor sintetiza o cenário (idem, p.
o
uma
reorganização do sistema feudal que o reforça consideravelmente". Mas diz mais: "na Idade Média a economia não apenas deixa de ser percebida mas não existe" (idem, p. 228). E ainda: "o essencial para mim é que não se pode falar de capitalismo antes do século XVI" (idem, p. 244). Baschet (2006, p. 260-1), igualmente,
150): Quanto às atividades especificamente urbanas - o comércio, a produção artesanal e o início da atividade
bancária
-,
elas
estão
longe
de
corresponder às normas da racionalidade econômica que o sistema capitalista estabelecerá a partir do século XVIII. É, então, mais do que perigoso falar, no que diz respeito à Idade Média, de mercado regido pela lei da oferta e da procura, ou ainda de livre concorrência. Na cidade, as atividades produtivas são organizadas em ofícios, cujos regulamentos detalhistas, estabelecidos a partir do século XII,
243
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo fixam as normas de produção e de qualidade dos produtos, os preços, os salários e as condições de trabalho.
Fourquin
(1986,
p.
299)
também
dedica algum espaço a esta questão, ao indagar se a expansão medieval teria sido de natureza pré-capitalista. Ele reconhece que houve homens de negócios poderosos antes do século XIII, mas sugere que não se pode falar no início do capitalismo a não ser no século
XVI.
Também
apresenta
alguns
argumentos que objetam a existência de um "capitalismo medieval". Em primeiro lugar, a economia do medievo estava assentada na doutrina canônica e em suas proibições, especialmente da usura, a procura do lucro desmedido e o individualismo - atitudes que negam a função social, moral e religiosa do produtor de bens, do artesão, do mercador e do banqueiro. Ainda assim, os avanços vieram, gradativamente. Mas isso porque, segundo o autor, "os homens de negócios souberam conciliar notavelmente a sua ânsia de lucro e os seus escrúpulos religiosos" (idem). O
medievalista
prossegue:
"A
segunda objeção diz respeito ao fato de a economia medieval se ter mantido como
economia
predominantemente
rural.
O
capitalismo 'agrícola' é geralmente coisa rara e superficial. Poderá argumentar-se que uma região pode conhecer o capitalismo, sem que este
se
alastre
a
todos
os
setores
econômicos" (idem). Já a terceira objeção defende que não houve mais capitalismo industrial do que capitalismo agrícola no medievo, graças à organização corporativa. As próprias regras das comunidades de ofícios restringiam a iniciativa individual de modo que represavam o desenvolvimento de indústrias suficientemente importantes, fosse quanto à intensidade de produção, fosse pelo número de operários. A conclusão de Fourquin (idem, p. 300) é que "o pré-capitalismo é portanto demasiado limitado e demasiado esporádico para que a vida material atinja a fase de verdadeiro
'arranque',
que
só
virá
a
concretizar-se no século XV". Já Le Goff conclui dizendo: "Na Idade Média o dinheiro, como também o poder econômico, não se emancipou do sistema global de valores da religião e da sociedade cristãs. A criatividade da Idade Média estáem outros pontos" (2014, p. 256).
244
José de Arimathéia Cordeiro Custódio
Referências: ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Edição bilíngue. Tradução e notas de Ítalo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34, 1998. BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. Rio de Janeiro: Globo, 2006. BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. BISSON, Thomas N. Moeda. In LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário
temático do ocidente medieval II. São Paulo, EDUSC, 2006. BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 2009. DUBY, George. História da vida privada 2: da Europa feudal à Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. _______ . Idade Média, idade dos homens. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. FOURQUIN, Guy. História econômica do ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1986. GIORDANI, Mario Curtis. História do mundo feudal II/1. Petrópolis: Vozes, 1997. HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2010. LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida. São Paulo: Brasiliense, 2004. _______ . A idade média e o dinheiro: ensaio de antropologia histórica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. _______ . O nascimento do purgatório. Lisboa: Estampa, 1995. _______ . Para uma outra Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Petrópolis: Vozes, 2013. METRI, Mauricio. Poder, riqueza e moeda na Europa medieval. Rio de Janeiro: FGV, 2014. PIRENNE, Henri. As cidades da Idade Média. Mem Martins (Portugal): Publicações EuropaAmérica, 2009. _______ . História econômica e social da Idade Média. São Paulo: Mestre Jou, 1982. ZÉTOLA, Bruno Miranda. Pobreza, caridade e poder: antiguidade tardia. Curitiba: Juruá, 2009.
245
O GÊNERO EPIDÍTICO NOS SÉCULOS IV E V: A RETÓRICA DO ELOGIO E DO ACONSELHAMENTO AO IMPERADOR José Petrúcio de Farias Júnior 1 Resumo: Apresentaremos nessa comunicação os principais tipos de texto pertencente ao chamado gênero epidítico. Para isso, utilizamos como referência os manuais de retórica de Aristóteles, Menandro e Aftônio, já que perfazem registros importantes sobre esse eixo temático. Informamos que nossa abordagem não se limita à identificação de tópicos de retórica, pois a retórica tardo-antiga não se resume a isso. Esse reconhecimento é, no entanto, necessário para que associemos determinadas narrativas a uma prática discursiva conhecida na Antiguidade Tardia. Assim, partimos do pressuposto de que pensadores romanos tardios, como Sinésio de Cirene, não utilizava manuais de retórica de maneira mecânica, como se fosse um jogo de quebra-cabeça que se pode montar e desmontar livremente. Palavras-chave:Retórica – Gênero Epidítico – Antiguidade Tardia -
Sinésio de
Cirene
1Universidade
Federal do Amapá.
246
José Petrúcio de Farias Júnior
Como muitos outros termos retóricos
perfazia a tarefa de louvar, elogiar ou
entre os pensadores gregos, a palavra
exaltar algo ou alguém, tendo em vista um
επιδεικτικό,
momentos
paradigma do belo e vergonhoso - το καλόν
históricos e até mesmo em determinado
κάι το ισχρόν (ARISTÓTELES, Retórica, I,
momento
diversos
9, 1358 b 28). Assim, a tarefa do orador
significados, isto é, tal termo foi usado de
epidítico consiste parte em louvar, parte em
maneira mais ou menos abrangente no
censurar
tocante à categorização de textos antigos.
Anaxímenes (séc. IV a.C), em Retórica a
Se
aos
Alexandre, tenha sido o primeiro a escrever
gêneros tematizados pela Retórica de
sobre retórica, é com Aristóteles (384 –
Aristóteles,
discurso
322a.C), alguns anos mais tarde, que
deliberativo - συμβουλευτικών, que se
questões atinentes ao gênero epidítico
dirigia à assembleia, seja para aconselhá-la
serão ampliadas. Todo o capítulo 9 do livro
ou
primeiro da Retórica é dedicado a esse
nos
em
diferentes
histórico,
manteve
detivermos
brevemente
identificaremos:
adverti-la
em
relação
o
a
decisões
laudandus.
o
Ainda
que
políticas a serem adotadas; o discurso
gênero
judiciário ou forense – δικανικών - que se
objetivo
endereçava aos tribunais, para acusar ou
escritos por Anaxímenes e Aristóteles –
defender,
o
consistiram em fornecer as características
passado e, por fim, o gênero epidítico –
gerais e teoria dessa vertente da retórica.
επιδεικτικός ou demonstrativo, o gênero do
Burgess (1902, p. 107) adverte-nos para o
elogio ou do vitupério, nosso objeto de
fato de que a retórica antiga não era
reflexão, caracterizado por Cassin (1993, p.
entendida por pensadores gregos antigos
39), como o gênero menos político, visto
como
que o mais retoricamente retórico, dos três,
estabelecidas para serem usadas por
declaração
repensada,
estudantes em suas composições, mas sim
analisamos
orientações a partir das quais oradores
discursos considerados epidíticos escritos
tardios pudessem se basear. Percebe-se
por
que, nos tratados e nos manuais de
portanto,
que
especialmente, pensadores
versava
pode
ser
quando que
sobre
exerciam
cargos
político-administrativos que datam do IV e
retórica
V séculos.
muitas
Tratava-se, em tese, de um gênero
discursivo. desses
uma
da
Pensamos
primeiros
série
de
Antiguidade,
divergências
que
o
tratados
–
regras
pré-
embora
haja
quanto
à
categorização dos discursos, é possível
discursivo voltado nem ao cidadão nem ao
identificar
juiz, mas ao espectador – θεôρος - e
apropriação de semelhantes topoi retóricos.
o
compartilhamento
ou
247
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Na Antiguidade Tardia, destacamos a influência do manual de retórica atribuído
histórico em questão.
tratados
Em Περί Επιδεικτικών, em particular,
epidíticos - Περί Επιδεικτικών, obra escrita
verificamos não só uma gama diversificada
em aproximadamente 273 d.C, e a Aftônio
de tipos de discurso que se ajustam à
Progymnasmata-
categoria de gênero epidítico, mas também
a
Menandro
(séc.
(séc.
III),
IV),
Προγυμνάσματα,
escrito
Dos
prática da eloqüência epidítica no momento
na
segunda
metade do IV século, os quais, no âmbito da
retórica
epidítica,
oferecem
vagas definições para identificação de tais discursos.
um
Assim, entendemos que o gênero
prontuário de grande aplicabilidade para
epidítico, no contexto da retórica tardo-
múltiplas ocasiões. A nosso ver, tais
antiga, é uma categoria que agasalha
autores representam uma referência para a
diferentes tipos de discurso, os quais
compreensão do gênero epidítico - γένος
comportam
επιδεικτικών - no Império romano tardio,
semelhantes, como enunciava Aristóteles.
objetivo
topoi
e
retóricos
de
Um topos marcante que caracteriza
Menandro e Aftônio podem ser aplicados
esse gênero consiste na extração de
em muitos discursos romanos do IV e V
fragmentos históricos ou mitológicos de
séculos e em grande parte dos panegíricos
obras-referência da cultura grecoromana
do período bizantino (GASCÓ, 1996, p. 18).
anteriores
porque
os
esquemas
retóricos
São manuais mais de caráter prático do
que
na
condição
de
argumentos de ampliação. Isso quer dizer que o discurso epidítico é constituído de
sistematizar, com base em uma extensa
επιδεικiς, ou seja, de uma preocupação em
prática discursiva precedente que remonta
mostrar diante de um público (BAILLY, s/d,
em grande medida a Aristóteles, um
p. 745). A ideia contida no termo parte do
conjunto de topoi, temas e objetos estético-
pressuposto
morais que podem constituir as diferentes
registra um exemplum para mostrar “mais”
narrativas epidíticas.
(επι) em função dele, além de mostrar o
linhas
porque
autor,
pretendem
Em
teórico,
ao
gerais,
essas
de
que
o
encomiógrafo
obras
que o orador-escritor sabe fazer, isto é, seu
oferecem orientações úteis para acentuar a
talento, “no mais”, para evidenciar seu
pretensão de elogio ou vitupério que se
objeto
de
elogio 2.
Além
disso,
quer imprimir ao discurso bem como denotam a permanência do ensino e da
2De
acordo com Gascó (1996, p. 22) o termo επιδεικiς, já
aparecia em fontes de Isócrates (Va.C) e, no transcorrer dos séculos, todas as peças de oratória que não se
248
José Petrúcio de Farias Júnior
diferentemente dos demais, sua narrativa
elogio ao imperador, ao governador, à
não concerne ao passado ou ao futuro,
cidade natal, à pátria ou à província, entre
mas ao presente - κατά τα úπaρχóντα
outros; e, como Aristóteles (Retórica, I, 9,
(CASSIN, 1993, p. 40).
1358b
Gascó (1996, p. 24) declara que, na época
imperial,
houve
um
8)
já
tratamento
nos
havia
desses
instruído,
temas
o
também
autêntico
possibilitava a veiculação da imagem do
crescimento de distintos tipos de discursos
encomiógrafo - rétor, filósofo ou sofista –
epidíticos, especialmente, na parte oriental
que,
do Império. A nosso ver, isso se deve ao
abastadas.
fato de se tratar de um tipo de composição literária
que
dissemina
princípios
de
em
geral,
pertencia
a
famílias
Queremos dizer com isso que muitos escritores,
como
Sinésio
de
Cirene,
fidelidade política de famílias abastadas
utilizaram essas composições para se
provinciais à corte imperial, especialmente
projetar socialmente em suas cidades,
ao imperador, indispensáveis à aquisição
províncias ou até mesmo no interior da
de honras e privilégios, derivados, em
corte imperial. Afinal, o pertencimento de
grande parte, da aquisição de cargos,
um escritor tardo-antigo a um grupo social
relações de amicitia e, por extensão, de
o qual detinha responsabilidades civis e
patrocínio.
uma
Afinal,
os
composições
mais
encômios 3 adequadas
são para
o
formação
retórico-filosófica
abrangente, colaborava para que seus registros se tornassem um instrumento útil para
promoção social, uma das práticas
ajustavam ao gênero deliberativo ou judicial, mas
indispensáveis a ocupação de cargos
continham aspectos da epídeikis, passavam a pertencer
imperiais
ao chamado gênero epidítico. A esse processo de
forma, o gênero epidítico se acomoda aos
categorização,
Anaximenes
e
Aristóteles
foram
os
principais responsáveis. 3A
respeito da utilização do termo εγκωμιον em discursos
pertencentes ao gênero epidítico, Navarre (1900, p. 84
apud BURGESS, 1902, p. 113) afirma que em geral
anseios
específicos. ou
Entendido
pretensões
de
dessa
influentes
agentes políticos locais comumente em busca de mais honras e privilégios.
eloqüência
Para além das contribuições de
epidítica em prosa por meio do vocábulo εγκωμιον. O
Anaxímenes e Aristóteles, identificamos em
objetivo do encômio é mostrar da melhor maneira possível
Περί
definiam-se
as
diversas
variedades
da
o caráter e as virtudes do objeto de elogio – Nicolau
Επιδεικτικών
orientações
mais
Sofista (Rhet. Gr. III, 479, 17), Hermógenes (II, 12, 5), Alexander Rétor (III, 2, 17); Juliano (Or. I), Isócrates
quanto um tom de elogio, como defende Nicolau Sofista
(Panatenaico, 123), entre outros. Além disso, εγκωμιον é
(apud BURGESS, 1902, p.114).
um discurso que pode comportar tanto um tom de censura
249
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
minuciosas
acerca
desse
gênero
Quanto à extensão da narrativa,
discursivo. (1) Discurso de chegada -
verificamos que o cirenaico excede a essas
προσφωνητικός, comumente dedicado à
orientações, possivelmente, por isso, tenha
cidade natal quando do regresso de uma
declarado que sua narrativa trataria de um
permanência fora, ou à cidade para onde
problema filosófico, sobre o qual poucos
se vai, ou a um governador que pretende
conseguiram
se estabelecer na cidade (MENANDRO, II,
relembramos aqui a afirmação de Sinésio
378-388); (2) Louvor a uma acrópolis; (3)
em que mito e presente, não são em
Mονωιδία, trata-se de um canto triste,
relação à verdade congruentes (SINÉSIO,
queixa ou lamentação. Um exemplo pode
De Providentia, II, 7.6), abordagens que se
ser encontrado em Libânio (Or. LXI) sobre
aproxima
a destruição do templo de Apolo; (4)
Menandro.
mitificar.
das
Também
recomendações
de
discurso de despedida - προπεμπτικòς
Em seguida, o rétor versa sobre (6)
λόγος. Podem ser divididos em três
os discursos genealógicos, comumente
categorias: se entre iguais, é de cunho
acoplados aos hinos ou a outros tipos
terno; se dirigido a um superior, de cunho
discursivos; e, para diferenciá-los dos
laudatório, ainda que um superior também
míticos, Menandro também apresenta (7)
possa se direcionar a um inferior, nesse
os discursos ficcionais; sobre eles o rétor
caso, o tom de conselho é predominante;
adverte não poder tratar simplesmente dos
por fim, quando se endereça a um
deuses
governante, assemelha-se a um Βασιλικός
nascimentos
λόγος; (5) discurso mítico - μύθος, que para
demasiadamente
Menandro, de nenhuma maneira admitem
máximo, dos deuses mais desconhecidos e
tratamento científico, quero dizer científico
de demônios (I, 341, 1-4), desde que as
às claras; pois se daria encoberto por meio
narrativas
de uma alegoria (κατ ‘υπόνοιαν), como de
mesmas e não comportem contradições ou
fato ocorre em muitos relatos sobre o divino
discrepâncias (I, 341, 30-32).
(I, 338, 24-27). Além disso, Menandro
discursos
tornam-se pesados de ouvir (I, 3393-4).
discurso
em
De
Providentia,
celebrados e
conhecidos,
sejam
nupciais de
e
cujos
poderes
coerentes
Ressaltamos
sugere que sejam breves, já que longos Sinésio,
mais
também -
são
mas,
ao
consigo
os
(8)
Éπιθαλαμιoν, (9)
felicitação
-
Γενεθλιακός,
também
proferido geralmente em aniversários; (10)
veicula a possibilidade de ser sua narrativa
discurso de consolação- Παραμυτητικός
mítica concebida como um discurso divino.
λόγος – que começa normalmente com
250
José Petrúcio de Farias Júnior
uma
lamentação;
(11)
discurso
sobre
funeral - επιτάφιος λόγος, pronunciado cada
ano
em
honra
aos
soldados
combatentes (II, 418, 5-8); (12) Σμινθιακός
λόγος, discurso em louvor a Apolo e (13) γαμικός
λόγος,
Éπιθαλαμιoν,
semelhante mas
que
ao trata
especificamente de pontos fundamentais do relacionamento dos cônjuges como
A categoria da laliá é muito útil para um sofista e parece formar parte de dois gêneros da retórica, o deliberativo e o epidítico (...) de uma parte, se quisermos elogiar um governador, proporciona uma abundante fonte de elogios, pois podemos inclusive, mediante a laliá, pôr em relevo seu sentido de justiça, sua sabedoria e demais virtudes; e de outro lado, também em forma de
laliá podemos dar conselhos a uma cidade inteira, a todos os ouvintes e, se quisermos, a um governador que tenha acorrido de bom grado a ouvir o discurso (MENANDRO, II, 388,15-26).
incitação à união (II, 405, 15-20); discurso
Verifica-se que essa modalidade
de desembarque - επιβατήριος λόγος; (14)
discursiva não apresenta um eixo temático
louvor a uma cidade; (15) louvor a uma
específico. Para Burgess (1902, p. 111),
cidade a partir de sua fundação; (16) louvor
ela aponta mais para um estilo discursivo
à pátria; (17) louvor a um porto e (18)
do que para uma categoria. As orientações
louvor a uma baía.
sugeridas por Menandro são marcadas por
A partir de agora, relacionaremos as principais
uma multiplicidade de temas que podem
modalidades discursivas que
ser aproveitados por outros autores, entre
direta ou indiretamente estão relacionadas
os quais chama-nos atenção o fim para o
ao
qual fragmentos históricos são apropriados
âmbito
político:
(19)
panegírico
-
πανηγυρικός λόγος, discurso proferido em πανηγυρiς, quer dizer, em uma assembleia ou festa solene, caracterizado, em geral, por
ser
um
louvor
a
uma
pessoa,
inicialmente o imperador, seguido de uma narrativa laudatória; (20) Λαλιά, pode ser traduzido como um bate-papo, conversa ou
discussão literária (BAILLY, S/D, p. 1166). Trata-se de um discurso que não se remete a uma situação específica; é, ao contrário, um tipo geral de composição informal 4. De
neste tipo de discurso: Se nos propusermos a pronunciar em forma de
lalíá um elogio a um governador de alguma província, pois bem, temos que examinar qual é sua atitude em relação aos imperadores (...) Para isso, tomaremos como exemplo um acontecimento antigo ou inventado por nós para não dar a impressão de que tratamos de fatos desnudos de si mesmos, já que isto não tem encanto; pois gosta a categoria da laliá da doçura e esquisitices dos relatos (MENANDRO, II, 389, 3-14).
Acerca dos conselhos, Menandro sugere:
acordo com Menandro, λαλιά e os sermões filosóficos e morais da época 4Para
Joaquin Gutiérrez Calderón, tradutor dos tratados
helenística – conhecidos pelo nome de διατριβαί.
de Menandro (1996, p. 177) há alguma relação entre
251
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo Na forma de laliá, podes dar conselhos a propósito da concórdia, à cidade, aos ouvintes, aos amigos, aos adversários políticos e aos agitadores da
orienta a partir de personagens fictícios: Tauro, Osíris e Tifo. Além disso, em comparação com a
ordem, induzindo-os a unir-se em um bom entendimento mútuo (MENANDRO, II, 390, 14-17)
Por fim, salientamos as orientações que remontam ao relacionamento recíproco entre conduta moral e ações humanas no contexto do elogio: Em muitas ocasiões te enganarás e censurarás sem dar nomes, caricaturizando, se quiseres, a
a
histórica,
narrativa
encomiástica é descontínua, e, muitas vezes, organiza-se em torno dos pares antagônicos vício e virtude; logo, comporta significativa orientação moral, caso em que os registros de Sinésio se encontram.
pessoa e censurando sua conduta; e de igual
Ainda que algumas narrativas, como De
maneira que ao fazer um elogio fosse possível
Providentia, sigam um plano cronológico, a
fundamentar os elogios em cada uma das virtudes, assim também
ênfase recai sobre o papel das virtudes e
te é possível, baseando-te em cada um dos vícios,
das ações do laudandus. A falta de
censurar
continuidade na narrativa mítica sinesiana
e
vituperar
quando
o
desejares
(MENANDRO, II, 391, 5-10, grifo nosso)
Os fragmentos acima apresenta um aspecto que contribui para diferenciarmos o discurso epidítico ou encomiástico dos demais discursos, entre eles, do histórico. A primeira característica da laliá que encontra ressonância nos discursos do cirenaico versa sobre a pouca frequência ou
narrativa
ausência
de
nomes
próprios,
de
pormenores técnicos ou acontecimentos precisos, principalmente como se observa em De Regno, discurso que, embora se dirija
ao
imperador
(supostamente
Arcárdio), em nenhum momento se reporta a nomes próprios ou a situações concretas vivenciadas pelo imperador, o que, de certa forma,
também
se
perpetua
em
De
Providentia, porquanto a narrativa se
pode
ser
observada
em
diferentes
momentos. No capítulo 13 do primeiro livro, por exemplo, Osíris é assassinado por Tifo, no entanto, ele reaparece nos capítulos seguintes sem que haja uma justificativa para seu ressurgimento; outro exemplo: no capítulo 18 do primeiro livro, Hórus, filho de Osíris, que continuaria a administração de seu pai após derrotar Tifo, aparece apenas neste capítulo, isto é, no último capítulo do primeiro livro e nem sequer é mencionado no transcorrer do segundo livro. Dito de outro
modo,
a
narrativa
encomiástica
obedece a uma lógica interna que não é prévia, uma vez que está mais subordinada a uma demonstração moral, arquitetada a partir das ações do laudandus. A narrativa histórica, por outro lado, está
mais
inclinada
à
narração
252
de
José Petrúcio de Farias Júnior
acontecimentos, à apresentação de fatos,
quanto de De Providentia, entre as quais
geralmente
salientamos:
em
ordem
cronológica,
e
pretende externar uma abordagem que pretende ser imparcial em relação a outras tipologias
textuais
(BURGESS,
1902,
p.116). Já o elogio, como observamos, não necessariamente narra, ainda que, em grande parte dos casos, faça referência a acontecimentos históricos contemporâneos à escrita do documento. Élio Aristide (séc. II d.C), em Panatenaico (apud CASSIN, 1993, p. 46-50), discurso de louvor a Atenas, reforça essa distinção ao sublinhar que o trabalho do historiador consiste em relatar todas as ações de Atenas, enquanto o panegirista faz uma escolha das ações mais célebres e mais relevantes. Assim, quando a narrativa se apresenta em forma de elogio, não o é à maneira dos historiadores,
mas
especialmente
uma
forma
ao
gênero
adaptada
epidítico (PERNOT, 1993, p. 668). Associado à laliá, Menandro também sinaliza (21) a laliá de despedida, discurso acompanhado de uma formulação de bons desejos para despedir-se daquele que parte; (22) o discurso imperial - βασιλικός λόγος, que se caracteriza como discurso de elogio
ao
Menandro orientações
imperador. oferece que
Neste
uma nos
tópico,
série
de
ajudam
a
compreender o processo de seleção e organização temática tanto de De Regno
a. (...) conterá um acréscimo convencional das boas qualidades que são próprias de um imperador e nada de ambíguo nem discutível se admite por ser ilustre a pessoa em grau máximo (MENANDRO, II, 368, 2 -7); b. Também admitem no prólogo do discurso ampliações a partir de exemplos ilimitados (MENANDRO, II, 368, 20-23); c. Depois do prólogo passarás ao tópico da pátria. Aí tens que refletir se é ilustre ou não (MENANDRO, II, 369, 19-20); d. (...) sendo todos os seus compatriotas dignos de elogios, sobressaiu apenas ele (o imperador), pois somente ele mereceu o Império. Logo poderás retirar exemplos da História (MENANDRO,II, 370, 3-6); e. É necessário ter em conta isto com todo rigor: que, se pudermos, mediante algum recurso, ocultar o indecoroso (...) temos de dizer que nasceu de deuses, faremos exatamente isso, se não, omitiremos (MENANDRO, II, 371, 1-3); f. Em caso de que haja algo assim em torno do imperador, desdobrá-lo e, se possível, inventá-lo e fazê-lo de maneira convincente, não hesiteis, pois o tema o permite, uma vez que os ouvintes são obrigados a aceitar os elogios sem examinálos (MENANDRO, II, 371, 10-15); g. Suas atividades serão objeto de exame (...), já que as atividades dão demonstração do caráter (MENANDRO, II, 372, 3-5); h. Segue às atividades, finalmente, o tratamento das ações. (...) as mencionadas ações as dividirás em dois tipos: relativas à guerra e à paz (MENANDRO, II, 372, 27-29); i. (...) as virtudes são quatro: valentia, justiça, prudência e sabedoria – e observa quais virtudes correspondem às ações (MENANDRO, II, 373, 79); j. Dentro da justiça, há de elogiar a amabilidade para com os súditos, o auxílio aos necessitados e a acessibilidade (MENANDRO, II, 375, 5-10);
253
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo k. Dirás que por nações, tribos e cidades envia governadores justos, defensores das leis e dignos
da
justiça
do
imperador,
não
recomendações,
a
instituições
político-administrativas,
arrecadadores de impostos (MENANDRO, II,
disputas
3375, 19-25);
imperial,
l. (...) o tirano entende mediante a sabedoria o que o convém legislar ou não, e legisla com
entre
fragmentação
pretendentes
surgimento
de
ao
de trono
autocracias
militares, desastres naturais, dificuldades
injustiça, enquanto o imperador com
econômicas em algumas províncias do
justiça (MENANDRO, II, 375, 31-32);
Império, mudanças na autorrepresentação
m. Depois da justiça elogiarás sua prudência, pois muito próxima à
e na ideologia imperiais e crescentes
justiça é a temperança.
conflitos civis bem como o recrudescimento
n. Não te vás esquecer da regra antes exposta, a
das migrações bárbaras (KENNEDY, 1994,
saber: de que em cada um dos capítulos terás comparações; mas estas serão parciais, por
p. 242), o que reivindicava a construção
exemplo, de educação com educação ou de
literária
moderação com moderação (...)(MENANDRO, II,
promover a unidade político-administrativa
377, 2-6);
São, com efeito, orientações sobre como
se
deve
fazer
imperador.
Elas
sintetizamos
acima,
um
elogio
formam, uma
ao
como lista
de
procedimentos, modelos e percepções e são facilmente identificadas nas narrativas de escritores tardo-antigos o que sugere que eles tenham feito uso de manuais de retórica ou de outros textos que tenham seguido
esse
formato.
Ressaltamos
de
um
imperador
capaz
de
e de socorrer as cidades provinciais diante da ameaça de incursões bárbaras. Ponce (1998,p. 232) esclarece que tais indicações explicam, em parte, o motivo pelo qual Menandro
elabora
uma
imagem
do
imperador de acordo com a chamada
Teologia da Vitória 5, com destaque para as ações de guerra sobre as de paz, em que a
valentia
se
torna
a
principal
virtude
imperial.
ademais que essas orientações não podem ser concebidas apenas como uma árida
5A
historiadora Maria Jesús Ponce (1998, p. 225) utiliza a
expressão Teologia da Vitória para se referir a uma
compilação de artifícios retóricos vazios de
prática político-cultural, que se fortalece a partir do II
implicações
das
século, no interior da qual imperadores romanos se
circunstâncias históricas que colaboraram
legitimavam no poder ao reclamar sua ascendência divina
políticas
provenientes
para sua produção.
e ao associar-se a símbolos celestiais, o que os tornava co-partícipes da ordem divina. No interior dessa estratégia
Como o manual de Menandro foi
de representação imperial, a vitória militar era a maior
escrito no final do III século, não podemos
prova dos dons sobrenaturais do imperador reinante, e a
desconsiderar, para a composição de suas
valentia o critério que diferenciava o verdadeiro imperador dos demais.
254
José Petrúcio de Farias Júnior
Queremos
dizer
com
isso
que
autores romanos tardios não transcreviam simplesmente recomendações ou normas já presentes em manuais de retórica que remontam a rétores gregos antigos, mas sim tentavam prescrever, como se observa nos fragmentos acima, por meio de sua própria perspectiva político-cultural, o que se institui como orientações adequadas a discursos epidíticos. Há
também
(23)
discurso
de
saudação ou cumprimento pronunciado em elogio a governadores, semelhante ao
βασιλικός λόγος, porém menos completo; (24)
o
discurso
de
coroamento
-
στεφανοτικός, segundo Menandro, deve inicialmente
estar
pautado
na
coroa,
particularmente seu valor simbólico, em seguida, na glória do imperador dizendo: (...) o poder divino se adianta em honrar-te com a própria coroa do império e todo o mundo civilizado a coroar-te com a coroa mais valiosa: suas bênçãos. Acode em teu encontro também nossa cidade, não inferior a nenhuma
podes se tu a isto consentires, socorrer; e ela depende de tuas vontades que, em nome de uma pátria, desta vez poderosa e próspera, eu venho trazer-te uma segunda coroa (SINÉSIO, De
Regno, 1056C).
A despeito das semelhanças, De
Regno não se resume a um discurso de coroamento, constituem
porquanto o
outros
núcleo
da
temas
narrativa.
Considerando o manual de Menandro, De
Regno se aproximaria mais
do
(25)
discurso de embaixada - πρεσβευτικός, escrito
na
situação
específica
da
embaixada e suas condições de realização. Trata-se de um discurso que congrega
topoi de diversos discursos, entre eles: βασιλικός λόγος e discurso de coroamento. A respeito do discurso do embaixador, o rétor recomenda que: Em caso de que tenhas de atuar como embaixador em favor de uma cidade em situação de desgraça, por uma parte tens de falar do mesmo que se tem dito antes para o discurso da coroa, mas, por ora, tens de ampliar em todo momento o sentido
das dos súditos nem em prestígio, nem em grandeza,
humanitário do imperador, dizendo que é bondoso
nem em formosura, coroando-te desta vez com palavras
e misericordioso com os necessitados e que, por
e com o diadema áureo (MENANDRO, II, 422, 5-15)
isso, a divindade o enviou à terra, porque sabia
Vejamos a semelhança deste trecho, guardadas as devidas proporções, com o fragmento presente em De Regno:
que era piedoso e que beneficiaria aos homens (MENANDRO, II, 423, 5-10).
Menandro
também
orienta
os
Cirene me enviou a ti para coroar tua cabeça de
leitores a elaborar dois tópicos importantes
ouro e tua alma, de filosofia; Cirene, uma cidade
sobre a caracterização da cidade natal: o
grega, nome antigo e venerável, mil vezes cantado pelos poetas de outrora; hoje, pobre e humilhada,
primeiro
baseado
na
ampliação
do
imensa ruína, e que pede ao rei a assistência
contrário, (MENANDRO, II, 423, 17) isto é,
eficaz
em um passado glorioso, farto e desprovido
que
parece
merecer
este
prestigioso
passado. Em sua aflição, que está no meu rosto, tu
de calamidades; o segundo consiste na
descrição detalhada (MENANDRO, II, 423,
255
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
20), em que, ao contrário do passado, o
1. προοίμιον ou prólogo apresenta
presente é marcado por desgraças e por
uma grande liberdade aos escritores no
um processo gradativo de decadência.
tocante à escolha do assunto. Entre as
Diante da descrição dessa situação de
fontes históricas do IV e V séculos, é
dificuldades, o rétor aconselha a inserir a
comum que o autor diga que seu discurso é
súplica do embaixador ao bom governante:
diferente
te pedimos, te suplicamos, caímos a teus
antecessores, ainda que o gênero seja o
joelhos, diante de ti estendemos os
mesmo. Trata-se, a nosso ver, de uma
ramalhetes de suplicantes (MENANDRO, II,
tentativa de demarcar a singularidade ou
423, 25-30), abordagem também mantida
especificidade da obra diante das demais;
por Sinésio (De Regno, 1056C).
artifício retórico que se encontra em ambos
Adicionado a isso, o rétor também
dos
escritos
por
seus
os discursos de Sinésio em análise, a
Em
um
modo
completamente
menciona (26) o discurso de convite -
saber:
κλητικός λόγος, em caso de convidar um
diferente,
governador a um festival e, por fim, (27)
entendê-lo,
προτρεπτικός
de
inteiramente divina, ela (a Filosofia) terá
συμβουλευτικών, discurso deliberativo com
para vós uma linguagem viril e digna e que
επιδεικτικών
repugna, ao preço de uma bajulação
λόγος, είδος,
uma modo
união de
ser
para
aqueles
com
que
uma
podem
excelência
sórdida, para comprar os favores de
encomiástico. retóricos
poderosos (De Reg.1053B); já em De
principalmente para descrição de pessoas
Providentia temos: Porque mesmo muitos
(laudandus) que constituem as narrativas
até agora, não encontraram problema
epidíticas foram catalogados pelo retor
filosófico determinado, espaço para uma
Os
Aftônio
principais
em
topoì
Προγυμνάσματα 6.
Pela
inspeção em nossa história fictícia (I, 1.2)
semelhança com o manual de retórica de
2. γένος descreve a descendência
Menandro e pelo caráter didático com que
imediata ou remota; neste topos pode-se
os topoí foram organizados, compomos a
também aludir à cidade, à província, à
lista a seguir:
nação
do
elogiado.
possibilidade 6De
acordo com o Dictionnaire Grec-Français (BAILLY,
s/d, p. 1631), Προγυμνάσμa é um vocábulo de sentido abrangente e significa exercício preparatório ou exercício
de eloquência. Trata-se, portanto, de uma obra que atende a fins práticos e não teóricos.
acontecimento
de
se
notório
Há referir
também a
a
algum
antecedente
ou
relacionado ao nascimento – γένεσις; 2.1 έθνος dirige-se à procedência étnica; em ambos os discursos de Sinésio
256
José Petrúcio de Farias Júnior
está bem clara a oposição do escritor
divina, oriunda da filosofia e as habilidades
diante do estrangeiro, concebido como
militares tangenciam a prática política do
objeto de desconfiança ou deslealdade.
imperador em ambas as narrativas.
2.2 πατρίς refere-se à pátria; em De
3.3 νόμοι simboliza a fidelidade aos
Regno, fala-se e louva-se Cirene (1056C);
costumes (mos maiorum) e, por extensão,
em De Providentia, o Egito ( I. 1.1).
às leis. Esse topos é importante para
2.3 πρόγονοι diz respeito à alusão aos antepassados;
compreender as diretrizes de legitimação do poder em Sinésio.
πατέρες
compõe-se
de
4. πραζεις (το μέγιστον κεφαλαιον) é
aos
Em
as
um dos tópicos mais importantes e comuns
narrativas do cirenaico, este é um locus
no gênero epidítico. Divide-se em duas
discursivo importante para consolidar o
categorias: ações que ocorrem em tempo
princípio
de guerra e ações que ocorrem em tempo
2.4 referências
pais.
dinástico
no
ambas
processo
de
legitimação do poder imperial. 3.
ανατροφή
de paz. Em geral, não são dispostas em às
ordem
De
menos uma das quatro virtudes socráticas:
Providentia, este topos localiza-se no
valentia, justiça, prudência e sabedoria
momento em que Sinésio discorre sobre as
(MENANDRO,
inclinações morais e culturais dos filhos do
entendido, as ações ou atividades do
rei egípcio Tauro com a finalidade de
elogiado
mostrar que suas ações contribuem para
comumente apregoada ao seu caráter.
identificação do caráter. (I, 2,3);
Sinésio manteve essa divisão em suas
circunstâncias
da
relaciona-se
juventude.
Em
cronológica
II,
e
congregam
373,
exemplificam
7-9). uma
pelo
Assim virtude,
3.1 επιτηδεύματα apresenta grande
narrativas: em De Regno, sinalizamos
variedade de definições e aplicações. Em
inicialmente as ações do imperador em
geral diz respeito à escolha de atividades
tempo de guerra, entre os capítulos 18 e
que possam revelar o caráter do elogiado.
21; em seguida, as ações do imperador em
Este topos envolve a πραζεις, isto é,
tempo de paz, entre os capítulos 22 e 30.
descreve, em linhas gerais, a ocupação
Em
política ou o papel social que o indivíduo
corresponde, a nosso ver, aos capítulos 05,
executa (BURGESS, 1902, p. 122).
12 e 13.
3.2 τéχνη denota um conhecimento, habilidade ou técnica adquiridos e que, portanto, pode-se exercer: a sabedoria
De
Providentia,
esse
topos
4.1 κατά ψύκην: sobre a alma. 4.1.1
ανδρεία
ou
coragem:
característica presente na representação
257
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
literária do imperador-soldado.
σύνκρισiς:
5.
4.1.2 φρόνησης ou prudência. Em
comparação
ou
sinaliza
contraste.
uma
Em
geral,
De Regno, Sinésio afirma ser a virtude que
espaço dedicado ao julgamento do escritor
mais caracteriza o bom governante (1064
sobre o objeto de elogio. Em muitas
C).
narrativas
encomiásticas,
De
como
4.2 κατά σώμα: sobre o corpo.
Providentia (I, 18 e II. 8) e De Regno, os
4.2.1 τάχος remete-nos à vivacidade
capítulos finais tornam-se um dos mais
do laudandus.
importantes para análise do ethos por meio
4.2.2 ρώμη reporta-se à força física, ao vigor do corpo.
de σύνκρισiς, haja vista a riqueza de juízos de valor legada pelo escritor, ora em
4.2.3 κάλλος ou beleza física
primeira pessoa, ora em terceira pessoa.
4.3 κατά τύχην: sobre a fortuna (destino, boa sorte), que se submete à
6. επίλογος pode ser traduzido como desfecho e sua forma e conteúdo, como o
providência divina em ambas as
προοιμίoν, depende do tipo de discurso e do tema escolhido. Em De Regno, por
narrativas sinesianas. 4.3.1 δυναστεία implica dominação, soberania e poder.
exemplo, Sinésio revela o desejo de cumprimento
4.3.2 πλούτος refere-se à riqueza (bens materiais)
de
suas
petições,
especialmente no tocante à compreensão do imperador acerca da representação
4.3.3 φίλοι ou, em latim, amici. Em
literária
do
monarca
ideal.
Em
De
De Regno (1072 A), os amigos do monarca
Providentia, o cirenaico deixa claro o
(geralmente
caráter preventivo com que organizou sua
imperiais)
seus
súditos
ocupam
uma
e
oficiais
posição
de
narrativa mítica, atributo de homens sábios.
destaque. Em De Providentia, o cirenaico
Assim, ambas incitam o interlocutor a
não se remete explicitamente à amicitia,
adotar posicionamentos que, sob a ótica de
mas sinaliza a identidade de caráter entre o
Sinésio, configuram-se como virtuosos.
monarca e seus amigos para contrastar com
a
relação
de
Tifo
com
seus
bajuladores 7.
Embora Sinésio não tenha dito explicitamente específico
que manual
fez
uso de
de
um
retórica,
reconhecemos que tais topoi são comuns a 7De
maneira semelhante, Dion de Prusa sugere a
muitos
manuais
da
Antiguidade,
de
semelhança, no âmbito das práticas morais, entre o
Aristóteles ( séc. V a.C) a Aftônio (séc. IV
monarca e seus súditos (“amigos”) na Oração 04, 42-45,
d.C). Certamente o tipo de discurso, os
83-85.
258
José Petrúcio de Farias Júnior
assuntos e as circunstâncias históricas
Whitmarsh
colaboravam para que houvesse uma
fortaleceu-se, entre os séculos IV e V, na
ênfase em um topos em detrimento de
parte oriental do Império, na esteira do
outro (WHITBY, 1998, p. 28) . No epitáfio,
fenômeno cultural e social denominado por
por exemplo, Menandro sugere que sejam
Filóstrato de Lemos, em Vida dos Sofistas,
empregados:
γένος,
γένεσις,
φύσις,
(2005),
o
elogio
retórico
de Segunda Sofística. Esse fenômeno, sob
άνατροφη, παιδεία, επιτηδεύματα, πράζεις,
a
τύχη, σύγκρισiς (I, 25-31), os quais se
entendido como uma prática discursiva -
assemelham, por sua vez, aos aplicados no
fomentada, em grande medida, por sofistas
desses
estudisos,
pode
ser
λόγος.
ou rétores - que se fortalece no Império
Importa-nos ressaltar que todos os topoi
romano oriental a partir do século I por
acima mencionados seguem os princípios
iniciativa do imperador Vespasiano (69-79
da excelência humana – αρεταί, termo
d.C) (PLEBE, 1978, p.79).
discurso
imperial
-
Βασιλικός
ótica
imbricado à concepção grega de paideia do período helenístico.
Para Anderson (1993, p. 17), duas características parecem ter sido constantes
Convém apenas reiterar que esses
no interior desse fenômeno: o helenismo,
manuais de retórica revestiam-se de uma
herdado do período arcaico e clássico, no
finalidade mais prática do que teórica.
interior do qual há constantes alusões aos
Whitmarsh (2005, p. 56) afirma que as
principais
tendências conservadoras desses manuais
fragmentos da história antiga; e uma
são contrabalançadas pelas demandas por
versatilidade que pode facilmente chegar
inovação e originalidade de pensadores
às raias da ambiguidade e do equívoco em
tardios, como mencionamos. Por essa
relação
deuses
aos
usos
da
mitologia
do
ou
passado 8.
a
O
razão, não podemos inferir que os manuais são uma evidência de uma cultura uniforme
8O
historiador Tim Whitmarsh (2005, p. 43) enfatiza, a
e congelada em normas ou regulamentos;
respeito do helenismo, mais uma conduta mantida por
cada escritor deve ser considerado um
muitos escritores romanos tardios que consiste em
pensador singular e ativo nos diversos
preservar o grego ático do século V a.C em suas composições como meio de denotar pureza cultural,
desdobramentos da retórica do elogio e do
tendência que não envolvia apenas o cuidado com a
aconselhamento.
seleção vocabular e com a sintaxe dos enunciados, mas
Para os estudiosos Laurent Pernot
também abarcava a postura, a fisionomia e a forma de se vestir do orador; o que, de certa forma, representava mais
(1993; 2006), Graham Anderson (1993),
uma estratégia de distinção, em nível retórico, do eu-
George
escritor diante dos outros. Advertimos, no entanto, para o
A.
Kennedy
(1994)
e
Tim
fato de que o cuidado com a manutenção da pureza da
259
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
historiador acrescenta que é comum, na
filosofia grega, especialmente de Platão e a
parte oriental do Império, que pensadores
excelência moral de gregos renomados do
romanos rememorem, em tom nostálgico, o
passado. Por isso, para o estudioso,
período clássico e isso se deve a uma
embora eles celebrassem e lisonjeassem
reação contra a impotência política das
imperadores e governadores romanos, e,
províncias orientais (1993, p. 101) e não
embora evitassem diretamente críticas a
uma resistência à administração imperial.
instituições políticas ou ao Cristianismo,
Dito de outra maneira, trata-se de um dos
seus
caminhos da sofística em, de um lado,
singular que pertence a eles, já que, como
concordar com a dominação política do
gregos, receberam-na por herança.
discursos
externam
uma
cultura
Império por sobre as províncias e, de outro,
Como se observa, tanto Anderson
mostrar que gregos, portadores de paideia,
(1993) quanto Kennedy (1994) enfatizam o
poderiam se acomodar ao Império, ou
caráter nostálgico com que o passado
melhor,
clássico era recuperado por escritores
a
sua
estrutura
político-
administrativa. O rótulo Segunda Sofística
tardo-antigos,
passa a designar, nesses termos, os
pensadores em diferentes províncias da
reflexos de uma glória emprestada do
parte oriental do Império compartilhassem
século V a.C. aos séculos iniciais da era
um sentimento patriótico comum que os
cristã (1993, p. 243).
singularizassem e os impulsionassem a
Para
o
historiador
George
A.
Kennedy (1994, p. 232), a mensagem
como
se
diferentes
retornar ao passado para manifestar as glórias de seu povo sob o Império 9.
legada por esses pensadores representava
Ao
contrário,
defendemos,
a
a expressão dos valores tradicionais da
despeito de qualquer sentimentalismo, que
cultura helênica em um período dominado
fragmentos do passado se acomodavam
pela
suas
muitas vezes posicionamentos político-
inclinações político-culturais e, mais tarde,
culturais de autores tardo-antigos, isto é,
pela ameaça do Cristianismo; valores que
estavam
incluíam, por exemplo, o idealismo da
propósito de suas obras no momento da
língua,
9Laurent
administração
referente
ao
romana
modelo
ático
e
não
é
uma
diretamente
relacionados
ao
Pernot (2006, p. 33) reitera que o complexo tema
particularidade do que chamamos de Segunda Sofística,
da identidade grega no Império romano é um dos
mas uma recomendação já presente em manuais de
assuntos mais frequentemente abordados, nestes dois
retórica como se vê em Perì hermenéias de Teofrasto
últimos decênios o que deu lugar a vários trabalhos
(372-287 a.C).
investigativos.
260
José Petrúcio de Farias Júnior
escrita. Isso explica o motivo pelo qual o
poder do divino; eles se reuniam como
recorte
de
acontecimentos
membros da elite educada - πεπαιδευμένοι,
gregos,
no
período
históricos tardio,
comumente para demonstrar e exercitar
incorporava diferentes abordagens a fim de
seu status, examinavam seus pares sobre
que atendessem a diferentes propósitos
como suas reputações foram construídas
enunciativos.
palavras,
ou enfraquecidas, testando o papel da
defendemos que o recorte de fragmentos
cultura helênica tradicional no interior de
históricos e mitológicos do passado denota
um
mais um resultado da aplicação de artifícios
aristocrática imperial.
Em
romano
outras
ambiente
exigente
da
cultura
retóricos previstos em manuais de retórica
Whitmarsh (2005, p. 05) adverte-nos
para atender aos propósitos do discurso
ademais para o fato de que a atribuição da
que
à
expressão Segunda Sofística a Filóstrato
desses
nos proporciona a falsa impressão de que
muitas
vezes
representatividade
se
relacionava
política
escritores diante de seus pares do que
refletimos
somente um fator de identidade política sob
Império romano a partir de suas próprias
o império.
categorias, como se nossa leitura fosse
Concordamos, dessa forma, com as considerações
do
historiador
Tim
sobre
práticas
culturais
do
inflexível às demandas culturais específicas atuais
da
academia.
Diante
disso,
Whitmarsh (2005, p. 03) para quem é difícil
cogitamos a possibilidade de a ênfase que
para
historiadores contemporâneos atribuem à
nós,
historiadores
modernos,
compreender a importância cultural dessa
expressão
prática discursiva sem recorrer a paralelos
apenas um anseio nosso em categorizar e
muitas
simplificar uma prática discursiva complexa
vezes
populares,
enganosos: eventos
festivais esportivos,
cunhada
por
Filóstrato
ser
dos anos iniciais da era cristã.
manifestação de agrupamentos religiosos e
Julgamos ser pouco provável que
formas de devoção íntimas e exacerbadas,
pensadores tardo-antigos como Libânio,
experiências de misticismo, modelos de
Temístio
homem
partícipes
divino
dotados
de
poderes
e
Sinésio desse
se
vissem
movimento
como literário
sobrenaturais, relações com o platonismo,
idealizado por Filóstrato ou que tivessem
judaísmo e cristianismo, entre outros. Os
consciência dele. Pensamos que não haja
espectadores, em eventos antigos, não
problemas em se apropriar de um termo
exercitavam
seus
direitos
consumistas
sobre o tempo livre ou testemunhavam o
antigo
e
reutilizá-lo,
desde
que
esclareçamos as limitações semânticas do
261
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
termo em uso e expliquemos de que
cultural multifacetado que abarca no limite
maneira as injunções de nosso tempo
quatro séculos e diferentes províncias
contribuem
determinadas
romanas orientais sob a égide de uma
práticas culturais. Enfim, questionamos a
vertente interpretativa que alinha discursos
viabilidade
com propósitos distintos.
para de
reler
envolver
um
fenômeno
Referências: ANDERSON, G. The Second Sophistic: A Cultural Phenomenon in the Roman Empire. London and New York: Routledge, 1993. APHTHONII SOPHISTAE. Progymnasmata Rhetorica. Intérprete Rodolfo Agrícola Phrifio. USA: Duke University Libraries, (s/d). ARISTÓTELES. Retórica. Trad. Quintín Racionero. Madrid: Gredos, 1990. BAILLY, A. Grec-Français.Paris: Hachette, 1950. BURGESS, T. C. Epideictic literature. Dissertation(Doctor of Philosophy) – Faculties of the Graduate Schools of Arts/ University of Chicago, 1902. CASSIN, B. Consenso e criação de valores- o que é elogio? In: CASSIN,B. & LORAUX,N. & PESCHANSKI,C. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Gregos,
bárbaros, estangeiros: a cidade e seus outros. RJ: Editora 34, 1993. KENNEDY, G. A. A new history of Classical Rhetoric. New Jersey: Princeton University Press, 1994. MENANDRO. Dos tratados de retórica epidíctica. Tradução de Manuel García García e Joaquin Gutiérrez Calderón. Madrid: Biblioteca Clásica Gredos, n.225, 1996. PERNOT, L. La rhétorique de l’éloge dans le monde gréco-romain: historie et technique. Tome I et II. Paris: Collection des Études Augustiniennes, 1993. PONCE, M. J. Menandro rétor y el discurso imperial. HABIS, n.29, p.221-72, 1998. SYNÉSIOS DE CYRÈNE. (De Regno) Les discours sur la royauté. In: LACOMBRADE, C. Le discours sur la royauté de Synésios de Cyerne à l’empereur Arcadios. Paris: Les Belles Lettres, 1951 SYNESIUS OF CYRENE. De Providentia: Egyptians or, on providence. In: CAMERON, Al. & LONG, J. Barbarians and Politics at the Court of Arcadius. Berkeley: University California Press, 1993. WHITMARSH, T. The Second Sophistic. Oxford, New York: Oxford University Press, 2005.
262
A ATUAÇÃO DO BISPO MARTINHO DE BRAGA NA ORGANIZAÇÃO DA IGREJA GALEGA: AS RELAÇÕES COM O REINO SUEVO E A RELIGIOSIDADE POPULAR (SEGUNDA METADE DO SÉCULO VI). Juliana Bardella Fiorot 1 Resumo : O período posterior a queda do Império Romano do Ocidente apresentou-se como um desafio para a Igreja Católica. Com as invasões bárbaras, somadas as mudanças geopolíticas de território e o paganismo arraigado principalmente entre as populações rurais, a Igreja perdeu grande parte do seu prestígio e se viu em uma encruzilhada: era necessário adaptar-se aos novos tempos ou sucumbir as recentes transformações. Desta forma, pretendemos abordar as relações entre Igreja, Religiosidade Popular e Monarquia Sueva na Galiza durante a segunda metade do século VI. A partir de uma revisão e análise da bibliografia específica que foi selecionada para este estudo, daremos uma atenção especial aos desafios enfrentados pela Igreja a fim de se adaptar a nova configuração espacial e política após a queda do Império bem como as frentes de ação desenvolvidas por esta instituição eclesiástica visando a sua reorganização e consolidação, destacando a figura do bispo Martinho de Braga que foi extremamente atuante neste processo. Palavras-chave: Martinho de Braga; Monarquia Sueva; Religiosidade Popular.
1Mestranda
(Unesp/Assis).
263
Juliana Bardella Fiorot
Após a chegada dos bárbaros na
da Igreja tanto no âmbito moral quanto no
Península Ibérica e o crescente processo
financeiro e ainda serviriam de exemplo
de ruralização que transformou os rumos
para o povo ao estarem professando a
econômicos e sociais pós queda do Império
“verdadeira
Romano, assistimos ao padecimento da
população também seria benéfica aos
Igreja Católica. Esta, que havia obtido
governantes, visto que esta possibilitaria a
sucesso ao efetuar suas pregações no
coesão
âmbito urbano entre os segmentos médios
significativamente para a concretização da
e inferiores durante o Império, via-se agora
unidade política do Reino Suevo 2. Neste
em uma nova situação. Com a emergência
processo de organização da Igreja galega
do campo seria necessário alterar as
destacamos a figura de Martinho de Braga.
estratégias
Pretendemos discutir a seguir as principais
para
atingir
as
massas
fé”.
da
A
evangelização
religião
da
contribuindo
camponesas e a nova aristocracia que
ações
estava se formando com o assentamento e
mosteiro
organização
instrumentalização do clero (enfocando as
dos
reinos
germânicos
(ANDRADE FILHO, 2012, p. 46).
desenvolvidas de
pelo
Dume,bem
bispo
no
como
na
discussões sobre a disciplina religiosa no
Especificamente no território galego,
Primeiro e Segundo Concílios de Braga),
cenário de nossa pesquisa, nota-se que os
evangelização das populações ruraise a
problemas enfrentados pela Igreja eram
relação próxima do bispo com o monarca
diversos, impossibilitando a reorganização
suevo Miro.
e
fortalecimento
aponta
Silva
da
instituição.
Como
Ao chegar a Galiza, Martinho teria se
(2008,
p.208):
“Neste
estabelecido em Dume onde um mosteiro
contexto, destacaram-se as dificuldades inerentes ao débil grau de cristianização da Galiza
e
à
funcionamento
não regular
manutenção das
do
instâncias
eclesiásticas”. A Igreja, desta forma, começa a
2
Os suevos teriam penetrado na Península Hispânica no
ano de 409, tendo sobrevivido do saque por um longo período, o que dificultou a fixação em um território. Relegados as zonas mais pobres do noroeste, com centro em Braga, expandiram seus territórios desde o oeste ao sul com seus primeiro monarcas – Hermerico, Réquila e Requiário. Entretanto, após um período de estabilidade e
articular estratégias eficazes para frear o
governança
avanço do paganismo, sendo a aliança
setentrional o reino sofre o ataque de Leovigildo,
dos
monarcas
soberano visigodo, que em
suevos
na
Hispânia
576, tenta unificar os
com os monarcas um fator extremamente
territórios hispânicos sob o credo ariano. Assim o Reino
significativo neste processo, uma vez que
Suevo cai em mãos visigodas. A partir de então, podemos
estes apoiariam as ações evangelizadoras
considerar o fim do Reino Suevo com a anexação de seu último território ao Reino Visigodo em 585.
264
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
seria
construído
através
de
recursos
escritório para a confecção de cópias de
financeiros obtidos junto aos monarcas.
códices e, obviamente, seminário para
Foi nomeado abade do mosteiro e tratou de
monges e sacerdotes. A Igreja, desta
transformar o mesmo em uma espécie de
forma, possuía o monopólio do ensino e
escola, onde a instrumentalização do clero
visava a uniformidade de comportamento
seria feita através do aperfeiçoamento
dos membros do clero. Com a morte do
doutrinal e leitura e análise de obras
bispo Lucrécio, metropolitano de Braga,
latinas. Martinho não teria formulado uma
Martinho assume também esta nova função
regra monástica a ser seguida pelos
acumulando os cargos de abade e bispo 3.
clérigos no mosteiro, mas trabalhou na
Com relação ao Primeiro e Segundo
tradução de partes do manuscrito sobre a
Concílios
Vida dos Padres do Deserto que acabaria
convocados
servindo
ensinamentos
Teodomiro (559-570) e seu filho Miro (570-
necessários. Esta obra, originalmente em
583). Embora estas reuniões não tivessem
língua grega, teria sido trazida do Oriente
como prioridade satisfazer os interesses
pelo próprio Martinho. A Vida dos Padres
régios
do Deserto abordaria questões como a
Monarquia Sueva possuía uma relação
penitencia,
pobreza,
próxima com a Igreja, podendo interferir
trabalho manual e outros tantos temas
nas mais diversas situações relativas a
relacionados a doutrina e os ensinamentos
organização religiosa na Galiza.
de
base
caridade,
aos
oração,
elas
de
Braga
estes
foram
respectivamente
por
nos
demonstram
que
a
dos abades egípcios. Este manuscrito teria
Importante observarmos a data de
se espalhado pelos demais mosteiros que
realização dos concílios. Sabemos que os
integravam a Galiza o que garantiria uma
mesmos foram realizados respectivamente
homogeneidade
e
nos anos de 561 (Primeiro Concílio de
doutrina entre os eclesiásticos da região.
Braga) e 572 (Segundo Concílio de Braga),
Os
portanto em um
mosteiros
possuíam
um
de
comportamento
fundados caráter
por de
Martinho
intervalo de onze anos
instituição
tivemos a segunda edição com um maior
bizantina e foram organizados no mesmo
número de participantes (oito bispos no
estilo dos monastérios orientais; estes
primeiro concílio e doze no segundo). Isto
ainda configurar-se-iam como modelo para os
futuros
monastérios
medievais
3
Embora não tenhamos como precisar a data correta da
possuindo diversas funções, tais como
elevação de Martinho a bispo de Braga, sabe-se que esta
escola, centro hospitalar e de caridade,
ocorreu a partir de 572 quando as atas do II Concílio de Braga o indicam como metropolitano desta sede.
265
Juliana Bardella Fiorot
nos mostra um fortalecimento da Igreja
Igreja da Galiza neste período procurou
local empenhada em combater as diversas
demonstrar nas atas sua segurança com
manifestações
relação aos problemas da fé na região:
religiosas
presentes
na
Galiza, tais como o paganismo e o priscilianismo, além de reforçar as regras de conduta do clero, o que garantiria uma homogeneidade no comportamento destes.
“Y puesto que con el auxilio de la gracia de Cristo, no existe afortunadamente ningún problema en esta província en torno a la unidad de la fé (...)”. – Segundo Concílio de Braga, 02.
Notamos
que no intervalo entre os
Para Silva (2007, p.211) “o segmento
dois concílios os problemas relativos aos
episcopal institui regras e busca garantir o
demais
cumprimento do estabelecido, condição
aparentemente já não se configuravam
necessária a sua coesão, estabilidade e
como um empecilho para a Igreja. Este fato
fortalecimento”.
demonstra
Entre as regras estabelecidas pela Igreja
nos
destacamos
concílios a
citados
preocupação
acima, com
o
credos
praticados
uma
na
controvérsia:
região
se
não
existiam problemas relativos a fé na Galiza deste período,
qual a necessidade da
realização de um concílio?
priscilianismo. No Primeiro Concílio de
Em primeiro lugar, verificamos que as
Braga dos vinte e dois cânones que
atas do Segundo Concílio abordaram a
integram as atas, dezessete referem-se ao
questão
priscilianismo, inclusive estipulando penas
comportamento
aos clérigos infratores que compactuarem
demonstra ser um problema relativo a
com esta doutrina. O restante das atas
unidade
tratam do modo comum como os bispos
comportamentos
deveriam se cumprimentar, a maneira
membros que faziam parte do corpo da
correta do uso da estola, as formas de
Igreja. Observamos que as preocupações
conduzir
discutidas nas atas demonstram serem
uma
missa
e
um
batizado,
comportamento em caso de mortes, etc. Com relação ao Segundo Concílio de Braga,
presidido
pelo
bispo
da
homogeneidade do
da
praticamente
clero,
fé,
as
o
pois
discrepantes
mesmas
de
que
já
notamos entre
os
apontadas
durante o Primeiro Concílio. O enfoque
Martinho,
maior se deu na proibição de que os bispos
destacamos que as atas se compuseram
não recebessem nenhum dinheiro por
de dez cânones sendo anexados a estes
desempenharem suas funções como, por
os Capitula Martini que focam na questão
exemplo, nas cerimônias de crisma ou nos
da instrução clerical, principal assunto
batizados.
abordado no concílio. Salientamos que a
266
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
A respeito dos Capitula Martini, texto
proporcionar aos seus adeptos a salvação
voltado para a instrução clerical e que foi
eterna pregada pela Igreja, sendo esta a
anexado as atas do Segundo Concílio de
única que possuiria o verdadeiro credo.
Braga, atentamos para o fato de que este
Para
traz diversas recomendações aos cristãos
divindades romanas e célticas seriam
e clérigos em geral a fim de evitar a feitura
demônios que agora habitavam os mares,
das práticas pagãs em seu cotidiano. Como
as fontes, os rios e as florestas, justamente
exemplo podemos apontar a proibição aos
os lugares e elementos cultuados pelos
clérigos de realizar encantamentos ou
habitantes da Galiza. Martinho de Braga
ligaduras, celebrar missa diante de túmulos
frisa ainda que a preocupação dos galegos
ou levar alimentos aos falecidos, celebrar
deveria ser com a salvação de suas almas
as festas das calendas, recorrer a ervas
e não com as dificuldades do mundo.
medicinais, observar o curso da lua ou das
Assim, observamos que uma das maneiras
estrelas, etc.
utilizadas pelo bispo para afastar estas
A galega
evangelização por
essencial,
Martinho já
que
da
população
de
Braga
estas
era
pessoas
o
bispo
de
Braga
as
antigas
pessoas de sua religiosidade, era fazê-los pensar em sua salvação e não em seus problemas diários.
representariam fiéis em potencial que iriam
Após estas reflexões constatamos
aderir ao projeto de unidade católica ao
que o processo de organização da Igreja
professarem a nova fé. Seu esforço pela
constituiu-se como uma tarefa árdua. O
evangelização
obra
problema da religiosidade popularainda se
extremamente conhecida escrita pelo bispo
arrastará por séculos na Galiza e não será
e intitulada “De correctione rusticorum” (Da
efetivamente erradicado. No entanto, o
correção dos rústicos).
Este sermão foi
próprio relaxamento do clero, nas mais
escrito por volta do ano de 572 a pedido de
diversas situações, como exposto acima,
Polêmio, bispo de Astorga, que teria
nos indica a falta de preparo da Igreja para
solicitado a Martinho instruções sobre a
a tarefa da evangelização. Para que a
correção dos “rústicos”. O objetivo de
unidade religiosa fosse alcançada um
renderá
uma
Martinho era frisar que as práticas pagãs estavam sob o patronato do mal, portanto a religiosidade popular 4 nunca seria capaz de
conteúdo preciso, e nem sempre é aceita e compartilhada pacificamente por todos os estudiosos.“(...) A religiosidade humana, no sentido mais amplo da palavra, tem fontes profundas e variadas, que coincidem com a condição
4
Segundo Oronzo Giordano a expressão “religiosidade
popular” carece de um significado unívoco, de um
existencial do homem e implicam na questão do seu próprio destino.” (1983, p.10-11)
267
Juliana Bardella Fiorot
respaldo político era necessário, mas não
era necessário que este se tornasse um rei
suficiente
deste
idealizado, isento de vícios e repleto de
objetivo. Seria necessária uma reforma
virtudes. A atuação da Igreja Católica no
dentro da própria Igreja como atestaram as
Reino Suevo vai buscar fortalecer a ideia
atas conciliares e as diversas ações
de que a monarquia seria uma incumbência
desenvolvidas pelo bispo de Braga.
oferecida por Deus ao soberano; assim a
para
a
concretização
Por fim, destacaremos a atuação de
Igreja
tentaria
relacionar
as
esferas
Martinho na escrita de obras dedicadas ao
celestiais com o governo terrestre no qual
rei Miro, que segundo a tese defendida
todos os males provinham do desprezo aos
pela pesquisadora Leila Rodrigues da
preceitos divinos (ANDRADE FILHO, 2012,
Silva, configuraram-se como um modelo de
p. 134). Martinho de Braga dedicou-se a
monarca
pelo
escrita de várias obras visando indicar a
governante suevo. No entanto, devemos
Miro, governante germano, um modelo de
nos
a
monarca ideal segundo os critérios do
os
cristianismo. Silva (2008, p.102) analisa os
governantes do Reino Suevo e os motivos
objetivos de Martinho com a escrita das
que teriam levado Martinho de Braga a
obras que compunham o modelo de
escrever.
monarca:
cristão
perguntar
intenção
da
a
ser
seguido
primeiramente Igreja
em
qual
moldar
Durante o século V a imagem do rei suevo era a de um líder guerreiro, capaz de garantir a segurança e a prosperidade do reino.
Ele
conduziria
as
batalhas,
negociaria quando fosse preciso e por fim conquistaria e defenderia seus territórios. Assim sendo, na história do Reino Suevo os critérios para legitimação do governante sempre foram baseados na valorização do elemento militar e na hereditariedade, critérios estes que não se mostravam suficientes
para
a
Igreja.
Para
esta
instituição religiosa a efetivação da unidade política do monarca deveria estar em conformidade com o cristianismo. Portanto,
“(...) Martinho ressaltou também a ideia de que cabia ao monarca um comportamento capaz de suscitar o respeito e a admiração de todos aqueles que o cercavam. Estas pessoas deveriam, pois, reconhecê-lo como uma referencia de conduta. Dessa
forma,
buscava-se
não
apenas
a
preparação de um governante de valores com o modelo apresentado, mas também a introdução de valores para o homem comum, cujo exemplo a ser seguido contribuiria para a cristianização”.
Martinho de Braga representou o auge da atuação eclesiástica no âmbito da política ao propor o modelo de monarca. Assim, o espaço de atuação da Igreja cresceu a medida que os eclesiásticos acumularam a função de conselheiros do monarca.
268
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Dentro
do
ressaltamos
que
corpus
Martiniano
que
dedicadas
próxima e que pode ser comprovada pela
visando um modelo de monarca são:
troca de correspondências que se efetuava
Formula
Exhortatio
entre os dois com certa frequência (grifo
humilitatis, Pro repellenda iactantia e De
acima). Poderíamos supor ainda que entre
superbia. O modelo de monarca, proposto
o metropolitano e o monarca Miro haveria
pelo bispo de Braga não encontrava-se,
uma relação que não se restringia somente
portanto, em apenas uma obra. Martinho
ao âmbito formal. Para Leila Rodrigues da
dedicou-se a discorrer uma série de
Silva (2008, p.98) a elaboração de quatro
escritos tendo como objetivos principais
obras por Martinho de Braga dirigidas ao
expor a ideia de um rei como homem
monarca Miro seriam evidências plausíveis
cristão integral, cujo exemplo de vida
de que entre os dois haveria um vínculo de
deveria ser seguido pelo restante da
amizade. Silva ainda reforça sua teoria a
população, além de uma concepção moral
partir
de monarquia.
Formula Vitae Honestae no qual, segundo
as
Vitae
obras
Honestae,
ambos
de
mantinham
um
fragmento
uma
relação
presente
na
Na maioria de seus escritos o bispo
a autora (SILVA, 2008, p.98), Martinho de
dedicava as linhas iniciais para referir-se a
Braga tece um elogio simples a Miro, mas
pessoa a quem a obra estava sendo
que demonstraria a cumplicidade entre o
dirigida. Com relação a Formula Vitae
tutor e seu pupilo: “No he escrito este libro
Honestae notamos que esta foi escrita a
de modo particular para tu instrucción,
partir de um pedido do próprio rei Miro a
siendo natural en ti la sagacidad de la
Martinho de Braga:
sabiduría (...)” (MARTIN DE BRAGA, 1990,
“No ignoro, Rey clementísimo, que la ardentísima sed
de
tu
espíritu
procura
permanecer
insaciablemente en las copas de la sabiduría, y
IV, p.157). Em Formula Vitae Honestae quatro
que andas ansiosamente en busca de las fuentes
características principais são elencadas por
de donde manan las águas de la ciência moral. Y
Martinho e que deveriam ser seguidas pelo
por eso, muchas vezes estimulas a mi pequeñez con tus cartasa que escribiendo con frecuencia
rei suevo. Destacamos: a prudência, a
alguna carta a tu alteza, te dirija algunas palabras
magnanimidade, a continência e a justiça.
bien sean de consuelo o de exhortación” (MARTIN
Estas seriam as quatro virtudes primordiais
DE BRAGA, 1990, I, p.157).
A
partir
do
fragmento
acima
observamos que o fato de Miro ter pedido instruções a Martinho de Braga nos indica
que garantiriam a honradez e os bons costumes do rei. Com relação a prudência, o bispo de Braga aconselha o monarca a ser prudente
269
Juliana Bardella Fiorot
em suas decisões. Em caso de dúvida o rei
excesso deveria ser evitada. Em situações
não deveria apressar-se para emitir um
difíceis o monarca deveria optar pelo
parecer sobre determinado assunto. O
perdão ao invés da vingança, mantendo
governante teria que refletir sobre suas
assim a serenidade e uma conduta honrosa
possibilidades para pensar nas resoluções,
(SILVA, 2008, p.111).
pautando-se sempre na razão e não na
O conceito de continência (também
dúvida. Seria necessário refletir sobre o
denominado de temperança por Martinho)
passado para tomar as decisões corretas
é a virtude que o bispo discorre com mais
no
erros
amplitude. Para ele a continência tem uma
anteriores), que por sua vez influenciaram
função que regularia a vida pessoal e social
o futuro do reino. Um monarca prudente é
do monarca. Com relação a primeira
aquele
aos
Martinho frisa que o governante deve cortar
acontecimentos porque os prevê e os
aquilo que for supérfluo e moderar seus
pressente,
seria
desejos, desta forma ele bastaria a si
surpreendido por qualquer fato. Todas as
mesmo.Procurando guiar o monarca em
conseqüências já teriam sido pensadas por
aspectos simples do seu cotidiano o bispo
ele anteriormente no momento da tomada
indica qual tipo de comportamento ele deve
de decisões. O governante deveria ainda
sustentar para atingir a continência. Com
ter precaução ao emitir suas opiniões a
relação a alimentação, por exemplo, o
alguém ou sobre algo e duvidar dos
conselho dado pelo bispo é que o monarca
elogios. O bispo aponta ainda para o efeito
sente-se a mesa apenas para saciar sua
negativo que o excesso de prudência
fome, não para seu deleite. Desse modo
poderia ocasionar: um rei extremamente
haveria um esforço por parte do rei para
prudente
afastar tudo aquilo que lhe proporcionasse
presente
(evitando
que
violento, qualquer
se
portanto
tornar-se-ia estando pessoa
cometer
antecipa nunca
desconfiado
disposto
a
e
acusar
baseando-se
em
argumentos fracos.
prazer:
“Pon
concupiscencia
freno y
y
límite
rechaza
a
todos
tu los
halagos que arrastan consigo placer oculto.
No que se refere a magnanimidade o
Come sin llegar a la indigestión, bebe sin
bispo ressalta a coragem e a clemência
embriagarte”. (MARTIN DE BRAGA, 1990,
como necessárias a um bom governante.
II, p.157).
Miro, não deveria guiar-se somente pelos seus
impulsos
guerreiros;
a
coragem
deveria ser prezada, mas a astúcia em
A continência regulando a vida social do
monarca
sugere,
tal
como
a
magnanimidade, uma conduta serena, na
270
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
qual os impulsos deveriam ser evitados
capacitado a ajudar a todos procurando
para que a moderação se fizesse presente
não prejudicar ninguém:
durante o governo. Além disso, Martinho frisa que o rei deve ter cautela com os falsos elogios recebidos, não permitindo que estes influenciassem nas decisões de seu
governo.
Há
também
uma
preocupação em elencar alguns cuidados que o monarca deveria ter no seu convívio social, tais como: não ser falso e fingir atitudes que não seriam próprias do seu ser somente para agradar os demais, discrição em suas atitudes e vida pessoal, moderação
na
linguagem
empregada,
compreensão nas mais diversas situações, dentre outros. A justiça,na concepção do bispo de Braga,se vincularia ao divino, sendo o rei um instrumento da vontade de Deus procurando ser justo com a população do reino
e
punindo,
quando
necessário,
aqueles que prejudicassem a harmonia política e social. Martinho questiona o que seria a justiça e chega a conclusão de que ela é uma convenção social que tem como objetivo garantir a ajuda mútua entre os homens, no qual os direitos de cada um seriam respeitados. Ela não seria ainda uma instituição criada pelos mortais, mas uma lei divina estando acima até mesmo do rei. Para que o governante fosse capaz de exercer a justiça primeiramente ele deveria
amar
a
Deus,
assim
estaria
“Todos aquellos, por consiguinte, que deseáis practicarla, ante todo temed a Dios y amadlo, para que seáis amados por Dios. Serás amable a Dios si ló imitas en querer favorecer a todos y no perjudicar a ninguno. Entonces todos te llamarán varón
justo,
te
seguirán
venerarán
y
amarán”(MARTIN DE BRAGA, 1990, II, p.157).
No caso da justiça, aplicada aos galegos
que
não
partilhavam
do
cristianismo, o monarca foi considerado um instrumento de autoridade pelo bispo de Braga, como atesta Leila Rodrigues da Silva (2008, p.119): “No caso do Reino Suevo, sabemos que a religiosidade
das
populações
visadas
pelo
processo de cristianização abarcava, sobretudo entre os habitantes do meio rural, práticas priscilianistas e pagãs. Assim, ao sublinhar a validade da justiça cristã para os que não compartilhavam da fé católica, Martinho conferia a Miro um instrumento de ação junto a todos os habitantes do reino, indiscriminadamente. Em outras palavras, oferecia-se ao monarca suevo, desde que estivesse pautado no conjunto de orientações presente nas obras a ele dirigidas, um importante instrumento ideológico de reforço a legitimação de sua autoridade”.
Ao contar com o apoio da monarquia a Igreja poderia impor pela força aquilo que não teria sido difundido pela palavra. A religião cristã apareceria como elemento de coesão do corpo social em uma época na qual tentava-se amenizar os efeitos da presença do sagrado que eram constantes na mentalidade do período (ANDRADE FILHO, 2008, p. 194).
271
Juliana Bardella Fiorot
Assim como as virtudes anteriormente abordadas são de extrema importância
corazón y manifestar outra con la boca.” (MARTIN DE BRAGA, 1990, III, p.88).
para a modelagem do monarca suevo,
O
governante
teria
ainda
que
destacamos ainda a humildade presente na
considerar que todos os resultados obtidos
Exhortatio humilitatis. Esta obra, de cunho
no reino seriam frutos da ação divina e que
essencialmente cristão, é a que mais se
seu poder inclusive lhe havia sido dado por
destaca dentro do corpus martiniano ao
Deus, portanto, qualquer tipo de elogio ou
exaltar
como
agradecimento dedicado ao rei suevo
essenciais para a constituição de um
deveria ser reconhecido como obra divina:
monarca
o
“Por tanto, la sola humildad de corazón que
governante somente alcançaria o modelo
se declara débil es la que todo lo puede y
proposto por Martinho se suas atitudes
la
estivessem inseridas em um ambiente
atribuyéndoselo simpre a Dios y no a si
marcado
próprio(...)” (MARTIN DE BRAGA, 1990,
os
preceitos
ideal;
pela
cristãos
consequentemente
religião.Cristo
seria
o
exemplo de comportamento e virtudes que deveria
inspirar
o
monarca
em
seu
que
todo
lo
obtiene
de
Dios,
VII, p.90). De maneira geral os princípios que norteiam a Exhortatio humilitatis referem-se
cotidiano e governo. Um monarca humilde deveria se
a um comportamento cristão que deveria
subordinar a Deus. Sendo instrumento de
ser cultivado pelo monarca tendo como
sua
deveria
eixos principais a subordinação ao poder
obedecer os mandamentos e influenciar
de Deus e atribuição a potência divina de
seus súditos com um bom modelo de
todos os feitos gloriosos de seu governo.
comportamento. Para alcançar a humildade
Assim,
plena o monarca prezaria ainda pela
sobretudo agradecer a Deus e buscar
verdade vista como essencial para a
valorizar
harmonia do reino. Portanto, o governante
honesto com seus súditos.
vontade
o
governante
deveria sempre optar por dizer a verdade
o
monarca sempre
a
humilde verdade,
deveria sendo
No que se refere as obras Pro
em qualquer tipo de situação, já que para
repellenda
iactantia
Martinho seria uma grande falta perante
atentamos para o fato de que estas não
Deus se o rei optasse pela mentira: “[...]
caracterizam as virtudes necessárias ao
grande y detestable falta ante los ojos de
bom monarca, mas sim os vícios que
Dios consiste en tener una cosa en el
deveriam ser evitados por este e que se
e
De
superbia
opunham as virtudes cristãs, inviabilizando
272
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
assim o alcance pleno do perfil de monarca
As
guerras
sempre
marcaram
a
elaborado por Martinho. Assim como em
história do povo suevo bem como o perfil
Exhortatio humilitatis Martinho enfatiza
dos monarcas, que eram reconhecidos por
nestas duas obras que a subordinação a
suas gloriosas conquistas. Desta forma, o
Deus e o reconhecimento do poder Deste
fato de Martinho ter se dedicado a discorrer
seriam de suma importância para que o
brevemente sobre a belicosidade nesta
modelo de monarca fosse alcançado com
obra
sucesso. Um monarca soberbo e jactante
preocupação do metropolitano diante da
não estaria valorizando a potencia divina e,
possibilidade de Miro desenvolver uma
repleto de orgulho e vaidade, consideraria
conduta marcada pela jactância ao atribuir
que todos os feitos gloriosos de seu
as glórias até então obtidas pelos suevos
governo eram advindos somente do seu
aos seus antepassados e a ele próprio
sucesso
(SILVA, 2008, p.130).
como
governante.
Martinho
pode
ser
como
uma
O critérios da
valorização militar e da hereditariedade,
ressalta: “Los reyes sueñan con poder lo que Dios puede. Y de este modo, buscando ser más de lo que son, roban hostilmente la gloria de la alabanza que en
que estavam presentes na monarquia sueva desde seus primórdios, não eram
realidad tan solo se le debe a Dios” (MARTIN DE
considerados
BRAGA, 1990, II, p. 75).
integrar o
O bispo de Braga também faz menção ao caráter guerreiro típico dos suevos. Sendo a atividade bélica tradicional entre este povo Martinho tratou de fazer suas ressalvas
justificada
quanto
ao
excesso
de
importância dada a esta, assim como a impetuosidade de seus líderes que muitas vezes atribuíam suas vitórias a si próprios, quando deveriam reconhecê-las como fruto da ação divina: “Finalmente, el mismo soldado, cuando una vez que ha tomado las armas y se va a la batalla,
estas
como
suficientes
para
perfil de um monarca cristão;
características
estariam
em
conformidade somente com um monarca germano. No trecho acima notamos que o bispo trata do assunto com uma certa carga de negatividade. Talvez seu objetivo fosse depreciar o passado de conquistas dos suevos que deveria ser esquecido para que uma nova conduta no reino fosse desenvolvida. Na obra De superbia, Martinho frisa principalmente os prejuízos que o monarca
desconociendo para quien se va a inclinar la
teria caso se desviasse de sua conduta e
victoria, con una presuntuosa arrogância de sua
dos preceitos cristãos. Segundo ele Deus
valentia, va tan ufano como se fuese ya vencedor” (MARTiN DE BRAGA, 1990, V, p.77).
abandonaria
o
monarca
deixando-os
perecer
no
e
seu
reino
pecado.
273
O
Juliana Bardella Fiorot
metropolitano
a
castigadas. No caso de Miro, este poderia
soberba como um tumor, ressaltando que
perder seu trono, pois só teria se tornado
este sentimento faz com que os homens
rei e alcançado bons frutos no seu governo
desejem ser Deus: “Este tumor de la
pela intercessão de Deus. Novamente o
soberbia,
bispo
por
chega
el
a
caracterizar
contrário,
se
dirige
alerta
o
governante
para
as
propriamente contra Dios, y por eso lo
vantagens de se posicionar de acordo com
considera como enemigo, puesto que
os preceitos divinos. Tais alertas estão
dirigiéndose contra o alto, el hombre
presentes em todo o texto e dialogam com
siempre desea lo que es proprio de Dios”
as ressalvas feitas por Martinho de que a
(MARTIN DE BRAGA, 1990, VII, p.83).
soberba ataca a todos, principalmente
Ao
longo
do
texto
encontramos
aqueles
que
possuem
material
e
altos
cargos,
menções a episódios bíblicos. O caso de
abundancia
perfeição
das
Lúcifer e Adão e Eva pode ser visto como
virtudes, fazendo uma referencia clara ao
estratégia utilizada pelo bispo para dar
governante.
credibilidade as suas palavras, já que
Ao final da obra Martinho nos deixa
estaria se apoiando em escritos sagrados,
claro que é dever do monarca eliminar
que
quaisquer
ao
seu
modo
de
ver,
seriam
outras
formas
religiosas
inquestionáveis. Os casos citados servem
existentes na região. O metropolitano
para ilustrar e demonstrar ao monarca o
associa as heresias, seitas e cismas a
que aconteceria e o que ele poderia perder
vanglória e a soberba, sendo que todos
se reproduzisse a mesma conduta soberba
estes vícios deveriam ser extirpados do
que
reino através do monarca ideal:
as
personagens
que
julgaram-se
“En efecto, la vanagloria genera de suyo la
semelhantes a Deus: “He aqui la muerte dada en la astucia engañosa de aquel primer veneno, que disfrazado con la miel amarguísima de la vana jactância, engañó el angel y al hombre. Por esto precisamente cayó la criatura celestial y la terrena. Por esto fueron expulsados de sus tronos: aquél del cielo y este del paraíso, y no pudieron permanecer en pie, porque
cayeron
gravemente”
(MARTIN
DE
que
as
BRAGA, 1990, V, p. 82).
Notamos
no
trecho
personagens perderam o lugar oferecido a elas por Deus (céu e paraíso) e foram
presunción
de
todas
las
novedades,
las
imaginaciones de los falsos dogmas, los embrollos de las cuestiones, las disputas, las herejías, las sectas, los cismas. La soberbia, a su vez, engendra la indignación, la envidia, el desprecio, el denigrar, la murmuración y lo es más detestable aún, la blasfemia. Si alguien desea extirpar de verdad las causas de estos males, arranque de si, antes de nada, los orígenes y las raíces de las mismas”(MARTIN DE BRAGA, 1990, X, p. 84).
Analisando o último período do fragmento
acima
(em
destaque)
observamos que Martinho deixa claro que
274
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
seria fundamental ao monarca eliminar
possuía uma espécie de missão. Sendo um
estes males pela raiz, seja internamente
instrumento de Deus, que o guiaria nas
(crença
ou
suas decisões, o sucesso de seu governo
Reino
estaria associado ao bem estar geral da
Suevo), pois somente desta maneira ele
população, contribuindo assim, para um
conseguiria
ambiente
favorável
soberba, vícios tão danosos para um
monarquia
e
governo.
súditos, mesmo que estes partilhassem de
do
próprio
externamente
O
monarca)
(religiosidade livrar-se
corpus
da
do
vanglória
Martiniano
dirigido
e
ao
da
a
aceitação
religião
cristã
da pelos
formas de religiosidades distintas.
monarca abarca comentários de Martinho
Considerações finais
acerca das virtudes e os vícios que
A relação que se estabeleceu entre
deveriam ser cultivados ou evitados pelo
Igreja e Monarquia foi fruto de um processo
governante. Desta forma, seus escritos e
lento
sua atuação perante Miro não se resumiam
compreende que para reconquistar seu
apenas a caracterização dos elementos
espaço como religião predominante após a
essenciais ao rei, mas auxiliavam, através
queda do Império não bastava fazer uma
de conselhos como conservar esta postura,
reforma dentro de sua própria instituição;
evitando os perigos ou pessoas mal
era necessário legitimar suas ações junto
intencionadas que poderiam prejudicar o
aos governantes, obtendo apoio e o
futuro
prestígio necessário junto aos mesmos ao
do
reino.
Para
Martinho
seria
e
gradativo,
no
qual
a
Igreja
essencial resolver as questões por via
professar
diplomática antes de deflagrar uma guerra,
Portanto, para a consolidação da unidade
como
Torres
religiosa seria necessário um esforço no
“Cuando
sentido de também organizarem não só os
demonstra
Rodriguez
(1977,
Casimiro p.217):
a
“verdadeira
e
única
fé”.
Leovigildo ataca Galicia en el 576, el Rey
vários
de los suevos Mirón, por consejo de San
encontravam desgastados, mas também
Martín con toda seguridad, no responde a
seria preciso organizar a instituição política,
la guerra con la guerra, sino que trata de
para que esta possuísse características
resolver
que estivessem em conformidade com a
el
conflicto
por
médios
diplomáticos.” A partir da breve explanação sobre
âmbitos
da
Igreja
que
se
doutrina pregada pela Igreja. Os critérios necessários para a sucessão do Reino
as características de cada obra, podemos
Suevo
como
compreender que o monarca na verdade
valorização
a
militar
hereditariedade não
se
e
a
mostraram
275
Juliana Bardella Fiorot
suficientes para que a monarquia fosse
novos cristãos se fizesse de forma tranquila
legitimada perante a concepção da Igreja;
e sem traumas que pudessem gerar
era necessário moldar o “monarca bárbaro”
revoltas. A evangelização das populações
segundo os princípios cristãos (SILVA,
pode ser observada como uma das etapas
2008, p.142).
do processo de reorganização da Igreja,
Assim,
de
forma
gradativa,
que contou ainda com a feitura de dois
observamos uma maior intervenção da
concílios no período que compreende esta
Igreja dentro da esfera política, processo
pesquisa.
que se acentuará durante o reinado de
Por fim, ressaltamos a intensa ação
Miro. A conversão significava legitimar as
de Martinho de Braga no processo de
ações tomadas pelo governante no poder,
reorganização da Igreja na Galiza. Como
sendo estas inquestionáveis, pois ele era
pudemos perceber, sua atuação se deu
considerado um instrumento do Senhor. O
sobretudo no âmbito da evangelização e da
rei deveria manter um comportamento ideal
criação de um modelo de monarca cristão.
perante a população procurando influenciá-
Graças
los na questão religiosa assim como Deus
aproximação entre Igreja e Monarquia,
deveria ser o exemplo de conduta a ser
Martinho pôde realizar suas ações sem
seguido pelo monarca.
grandes empecilhos, pois o terreno estava
Quanto aos desafios enfrentados pela Igreja
concluímos
processo
de
propício para que a receptividade de suas obras e de suas ações se fizesse de
popular foi o mais difícil a ser superado,
maneira mais fácil. O clero, no período do
constituindo-se como o grande empecilho
bispado de Martinho, representou o auge
para a efetivação da unidade religiosa. Não
da influência religiosa no meio político.
somente
outras
Observamos, desta forma, a efetivação da
período
unidade política do Reino Suevo através da
verificamos que a religiosidade pode ser
figura do monarca Miro. Com relação a
definida como um “problema” permanente
Igreja, concluímos que a sua reorganização
na sociedade, e que ainda se arrastaria por
desenvolveu-se plenamente auxiliada pela
toda a Idade Média. O trabalho de
monarquia e contou com várias frentes de
cristianização deveria ser feito de forma
ação para que a unidade religiosa se
paciente, onde as crenças pagãs fossem
efetivasse, no entanto, o processo seria
sendo eliminadas ou substituídas pouco a
lento e a presença do paganismo entre as
localidades
Galiza, da
a
gradativo
religiosidade
na
que
ao
mas
Europa
em no
pouco para que o projeto de aderência de
276
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
populações continuaria a comprometer a
busca pela plena unidade eclesiástica.
Referências: Fonte: MARTIN DE BRAGA. Obras completas.Edición castellana de Ursicino Dominguez del Val. Madrid: Fundación Universitária Española, 1990. Bibliografia: ANDRADE FILHO, R.O. Imagem e reflexo. Religiosidade e monarquia no reino visigodo de
Toledo (Séculos VI e VII). São Paulo: Edusp, 2012. GIORDANO, Oronzo. Religiosidad Popular em la alta Edad Media. Madrid: Editorial Gredos, 1983. SILVA, Leila R. Limites da atuação e prerrogativas episcopais nas atas conciliares
bracarenses. In: BASTOS, M.J; FORTES, C.C e SILVA, L.R (org.). Encontro regional da ABREM, RJ, 2007. _____________. Monarquia e Igreja na Galiza na segunda metade do século VI. O modelo
de monarca nas obras de Martinho de Braga dedicadas ao rei suevo. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008. TORRES RODRIGUEZ, Casimiro. Galícia Sueva. La Coruña: Fundación “Pedro Barrie de La Maza Conde Fenosa”. Instituto “P. Sarmiento” de Estúdios Gallegos, 1977.
277
O MILAGRE DA VIDA APRESENTADO EM DUAS CANTIGAS DE SANTA MARIA: ESTUDO DO TEXTO E DA IMAGEM Keila Mara Fraga Ramos de Oliveira 1 Resumo: No estudo do texto e da imagem, pesquisamos duas formas diferentes de arte, o verbal e o não verbal, que possuem suas estruturas próprias de significação e apreendem de forma bastante particular o real para reconstruí-lo na obra. Para Silveira (2009, p. 98, 99) esses são preciosos documentos linguísticos, uma verdadeira obra de arte literária e iconográfica que constituem fonte histórica inigualável de conhecimento dos hábitos, costumes e mentalidade da Idade Média. Sob a perspectiva literária, o núcleo é a ação redentora de Maria, diante de um contexto em que o “milagre manifesta-se como absolutamente necessário, testemunhando, por meio de um discurso bastante influenciado pela filosofia cristã medieval, até onde a sociedade admite a transgressão de normas estabelecidas e quais os padrões morais e de conduta”. Há uma infinidade de crianças retratadas da maneira em que viviam no âmbito familiar e fora dele, além de relatos nas cantigas de milagre, envoltas no ambiente religioso, que aparecem entre as mais diversas cantigas de Santa Maria, sendo salvas de acidentes, ou recebendo o milagre da vida novamente. Entretanto, os modelos infantis presentes nas Cantigas de Santa Maria devem ser vistos com cautela, porque não mostram com precisão a vida da época, mas sugerem, de acordo com a mentalidade e os costumes, como deveriam ser. Palavras-chave: Cantigas de milagre; Criança; Imagem.
1(PLE/UEM).
278
Keila Mara Fraga Ramos de Oliveira
A Idade Média termina com a Renascença,
individualizam pouco a pouco, como foram
que surge nos primeiros anos do século
reconhecidas a identidade e a originalidade
XV, em Florença e se expande por toda
das
Itália. Durand (1989, p. 6) explica que o
Durand (1989 p.7).
idades
Renascimento está diretamente ligado à
precedentes,”
explica-nos
Roma tornou-se oficialmente cristã,
Idade Média, que no século XV rompe com
a
nova
religião
a espiritualidade medieval, inaugurando
administrativa do Império. Durand (1989
com a descoberta da imprensa uma nova
p.9) explica que a “arquitetura adaptada
curiosidade nos domínios do pensamento.
aos
usos
estava
litúrgicos
e
na
estrutura
edificada
de
suntuosos monumentos religiosos, […]. A La Révolution française elle-même, jetant à bas les traces de la féodalité et les monuments de la religion, permit à Alexandre Lenoir de réunir au
assim
a
representação
de
grandes
musée de Petits-Augutins, à Paris, une collection
episódios da história cristã no vocabulário e
considérable de sculptures arrachées aux édifices
nas
du Moyen Âge, tandis que le musée du Louvre, créé
en
1793,
et
la
Bibliothèque
nationale
recevaient en désordre les vestiges épargnés de grands trésors médiévaux.(DURAND, 1989,
p.6) 2
O olhar nostálgico do Romantismo descobriu as grandes catedrais e as ruínas grandiosas
de
uma
civilização
inteira
voltada para Deus. O catolicismo encontra na Idade Média as fontes de “renovação espiritual e artística que vai até o começo do século XIX às obras neo medievais. A arte
pintura, o mosaico e a escultura tinham
gótica
e
a
arte
romana
se
técnicas
Entretanto,
da
entre
bárbaros
reunidos
Império,
mais
ou
plástica os
romana”.
diversos
nas
povos
fronteiras
menos
do
nômades,
ignoravam a arquitetura e sua cultura era essencialmente oral. O século IX no Ocidente foi marcado pelo
fenômeno
do
Renascimento
Carolíngio, que se manifesta por um retorno deliberado à Antiguidade e à tradição
greco-romana.
A
Renascença
carolíngia se caracteriza por uma série de reformas da língua, da escrita, do direito, da vida espiritual e religiosa. Durand (1989
do
p.15) comenta que essa arte se define
feudalismo e os monumentos da religião, permitindo a
como uma “restauração das ideias, das
Alexandre Lenoir de reunir no museu de Petits-Augutins,
formas e dos vocabulários antigos”. A
2 A revolução
Francesa desfaz-se dos
traços
em Paris uma coleção considerável de esculturas retiradas dos edifícios da Idade Média enquanto o Museu
imitação da Antiguidade é particularmente
do Louvre criado em 1796 e a Biblioteca Nacional
visível no interior da Capela-de-Aix, único
recebiam em desordem os vestígios dos grandes tesouros
elemento remanescente no conjunto de
medievais. (DURAND, 1989, p.6) Tradução livre.
279
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
edifícios construídos por Carlos Magno. Após sua morte, ocorre uma verdadeira
No fim do século XIII, a arte gótica
explosão da Renascença Carolíngia nos
realiza a conquista definitiva de toda a
diferentes centros do Império.
Europa, com sua área de expansão, ele se
Herdado dos carolíngios, a unidade
adapta no decorrer do século XIV e se
espiritual do mundo cristão sobrevive. Em
modifica no auge das sensibilidades locais,
909 foi fundada a ordem beneditina de
Durand (1989, p.73-75) nos mostra que
Cluny, forte estrutura espiritual e temporal
paralelamente a decoração monumental
independente do poder local que, em
evolui para um refinamento formal que
breve, possuiria abadias em toda a Europa.
combina com elementos a céu aberto,
O mundo cristão se reagrupa também em
agudas
torno de um ideal de reconquista contra os
quadrifólios. As novidades técnicas se
muçulmanos, na Espanha, a partir do fim
desenvolvem também no reinado de Filipe,
do século X e XI a arte reflete exatamente
o Belo, como a pintura em cinza e o
a
do
amarelo ouro no vitral, ou a aplicação de
Ocidente, de acordo com Durand (1989
esmaltes sobre o ouro, preenchidas de
p.23).
pequenas flores, trevos ou quatro folhas
situação
política
e
intelectual
La sculpture assure aussi, lorsqu'elle prend l'aspect d'un décor figuré, un rôle didactique
elevações,
rosas,
rosetas,
coloridas, pequenas joias ou elementos de decoração.
Ao lado do estilo cortês,
églises ou accompagnant la méditation des moines
preparado
pelo
dans le recueillement des cloîtres, elle met en
realismo se constitui uma segunda maneira
nouveau. Accueillant les fidèles aux porches des
images pour eux, dans la pierre ou le marbre, la Bible, les Évangiles, les vertus,l'intercession de la
naturalismo
gótico,
o
da arte do século XIV, observa Durand
Vierge ou l'exemple des saints, qu'elle s’oppose au
(1989,
péché originel, aux vices, au monde démoniaque
bizantina, a arte apresenta reproduções da
infernal et monstrueux. Les images s'organisent autour du thème de la lutte du bien et du mal, pour
p.77).
Introduzida
na
tradição
Virgem cercada de anjos, numa brandura e
prendre parfois la forme des visions saisissantes du Christ de l'Apocalypse ou du Jugement dernier.(DURAND,1989 p.39) 3
as virtudes, a intercessão da Virgem ou o exemplo de santos, que a Igreja se opunha ao pecado original, aos vícios, ao mundo demoníaco infernal e monstruoso. As
3A escultura fornece também, quando se leva o aspecto de uma decoração figurada, há um novo papel didático. Acolhendo os fiéis nos alpendres das igrejas ou acompanhando a meditação dos monges nos seus
imagens se organizam em torno do tema da luta do bem e do mal, para pegar as vezes a forma das visões impressionantes
do
Cristo
do
Apocalipse
ou
do
Julgamento final. (DURAND,1989 p.39). Tradução Livre.
recolhimentos dos claustros, ela coloca em imagens para eles, na pedra ou no mármore, a Bíblia, os Evangelhos,
280
Keila Mara Fraga Ramos de Oliveira
novo humanismo com detalhes realistas,
à vida e a vida à arte. O limite entre o
gestos e atitudes diferentes, drapeados e
período medieval e o renascentista foi
rostos.No começo do século XIV, a arte
traçado de forma nítida. O desejo passional
gótica italiana chega a mais perfeita
de revestir a própria vida com beleza, o
expressão, explica Durand (1989, p.84).
refinamento da arte de viver, o efeito
Até
o
movimento
em
que
o
colorido de uma vida vivida segundo um
Cristianismo foi reconhecido pelo Estado, a
ideal, não passam de antigas formas
Igreja tinha dominado o uso religioso de
medievais os próprios motivos usados
pinturas
por
princípio,
tolerando-as
pelos florentinos para o embelezamento da
somente
em
cemitério,
sob
vida, aborda Huizinga (2010, p. 57).
certas
condições específicas. Os retratos eram
No período final da Idade Média,
proibidos e as pinturas restringidas a
quando um novo espírito já estava em vias
representações simbólicas. Hauser (1998,
de surgir, existia somente, em princípio, a
p.140) explica que nas igrejas, o uso de
velha escolha entre Deus e o mundo: o
obras
terminantemente
completo desprezo de toda a maravilha e
proibido. Após a reconciliação da Igreja e
beleza das coisas terrenas e da vida ou a
Estado, o temor de uma recaída na idolatria
sua aceitação ousada, colocando a alma
ficou enfraquecido e as artes visuais
em perigo. Todo o conjunto da arte e da
puderam ser colocadas ao serviço da
literatura, em que o essencial do prazer era
Igreja. Somente no século V, a produção
a admiração, podia ser sacralizado, desde
desse tipo de pintura começou a florescer
que posto a serviço da fé. Ainda que o
com certa força. Outra raiz da ideia
divertimento da cor e da linha inspirasse os
iconoclástica, indiretamente associada à
amantes da pintura e das miniaturas, foram
aversão pela idolatria, foi a recusa dos
os temas sacros que retiraram o carimbo
cristãos primitivos em aceitar a cultura
de
sensual estética da Antiguidade Clássica,
característica que liga a cultura franco-
presente nas esculturas.
cavaleiresca
de
arte
era
pecado
do
prazer
do
da
século
arte. XII
A ao
O anseio por uma vida mais bela é
Renascimento é precisamente o intenso
considerado, normalmente, a característica
cultivo de uma vida bela sob as formas de
fundamental do período renascentista. A
um ideal heroico, aborda Huizinga (2010,
satisfação da sede de beleza dá-se tanto
p. 59).
na arte quanto na própria vida. Nesse momento, como nunca dantes, a arte serve
As época
emoções
tendiam
a
religiosas se
daquela
transformar
281
em
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
representações coloridas e profusas. A
ramificação,
e,
por
dedução
lógica,
mentalidade de então acreditava que tinha
aplicavam-nas aos assuntos da mente.
compreendido o mistério uma vez que o
A missão da arte é enfeitar as
tivesse diante de seus olhos. Esclarece
formas nas quais se vivia a vida com
Huizinga(2010, p. 333) que a necessidade
beleza. Não se buscava a arte em si, mas
de reverenciar o inexprimível sob a forma
sim a vida bela. Huizinga (2010, p. 416)
de símbolos visíveis resultou na constante
afirma
criação de novas imagens. No século XIV,
posteriores, não sai de uma rotina de vida
a cruz e o cordeiro já não eram mais
mais ou menos indiferente para desfrutar a
suficientes enquanto objetos visíveis do
arte em contemplação solitária, como
amor transbordante por Jesus: a eles
consolo e edificação.
que
ao
contrário
de
épocas
somava-se a veneração do próprio nome
A presença da infância na arte
de Jesus que, em alguns casos, até
Timidamente no início, a seguir com
ameaçava eclipsar a da própria cruz.
maior
frequência,
a
infância
religiosa
Em Deus, nada é vazio ou sem
deixou de se limitar à infância de Jesus.
significado. A ideia de Deus conceituada,
Uma iconografia inteiramente nova se
tudo o que partia Dele e que Nele
formou, multiplicando cenas de crianças e
encontrava o seu sentido se cristalizava em
procurando reunir, nos mesmos conjuntos,
pensamentos
palavras.
o grupo de crianças santas, com ou sem
Nasce, assim, a nobre e sublime ideia do
suas mães, explica-nos Ariès (1981, p. 20).
mundo
conexão
No grupo formado por Jesus e sua mãe, o
simbólica, uma catedral de ideias, a maior
artista sublinharia os aspectos graciosos,
expressão rítmica e polifônica de tudo o
ternos e ingênuos da primeira infância, a
que é imaginável. Para Huizinga (2010, p.
criança preparando-se para beijá-la ou
335) o modo simbólico do pensamento é
acariciá-la; brincando com o s brinquedos
independente e de valor igual ao modo
tradicionais da infância, com um pássaro
genético. Esse último, que compreendia o
amarrado ou uma fruta; ou comendo seu
mundo
mingau. Todos os gestos observáveis já
como
como
articulados uma
em
grande
evolução,
não
era
tão
estranho para a Idade Média quanto se
eram
reproduzidos.
imaginava. Mas para explicar o surgimento
realismo
de uma coisa a partir de outra, serviam-se
estender além das fronteiras da iconografia
de imagens ingênuas da procriação ou da
religiosa. A verdade é que o grupo da
sentimental
Esses
traços
tardaram
a
de se
Virgem com o menino se transformou e se
282
Keila Mara Fraga Ramos de Oliveira
tornou cada vez mais profano: a imagem
de seus pais. Observamos que as crianças
de uma cena da vida quotidiana, conforme
que cercam os defuntos nem sempre
nos mostraAriès (1981, p. 20)
estavam mortas: era toda a família que se
Essa iconografia, que de modo geral remontava ao século XIV, coincidiu com um florescimento de histórias de crianças nas lendas e contos pios,
reunia em torno de seus chefes. A grande novidade do século XVII é
como os dos MiraclesNotre-Dame. Ela se manteve
que a criança agora era representada por
até o século XVII, e podemos acompanhá-la na
ela mesma, enquanto que no século XVI,
pintura, na tapeçaria e na escultura. Dessa iconografia religiosa da infância, iria finalmente
com familiares. Ariès (1981, p. 25 -28)
destacar-se uma iconografia leiga nos séculos XV
explica que o costume de possuir retratos
e XVI. Não era ainda a representação da criança
de seus filhos, mesmo na idade em que
sozinha. As cenas do gênero e as pinturas anedóticas
começaram
representações
a
estáticas
substituir de
as
personagens
simbólicas. (ARIÈS,1981, p. 20)
O gosto novo pelo retrato indicava que as crianças começavam a sair do anonimato, pois tinham pouca possibilidade de sobreviver. O fato, que nessa época de desperdício demográfico se tenha sentido o desejo de fixar os traços de uma criança que continuaria a viver ou de uma criança morta, a fim de conservar sua lembrança. O retrato da criança morta, particularmente, prova que não era mais tão considerada como uma perda inevitável. Foi somente no século
XVIII,
com
o
surgimento
do
malthusianismo e a extensão das práticas contraceptivas, que a ideia de desperdício necessário desapareceu, segundo Ariès (1981, p. 23). O aparecimento do retrato da criança morta no século XVI marcou um importante
momento
na
história
dos
sentimentos. A criança, no início, não seria representada sozinha, e sim sobre o túmulo
eles ainda eram crianças nasceu no século XVII e nunca mais desapareceu. No século XIX, a fotografia substituiu a pintura. O sentimento não mudou e no século XVI, osputti (crianças nuas) invadiram a pintura e se tornaram motivo decorativo repetido. Foi no século XVII, porém, que os retratos de
crianças
sozinhas
tornaram-se
numerosos e comuns. Foi também nesse século que os retratos de família, muito mais antigos, tenderam a organizarem-se em torno da criança, centro da composição. Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representála. O mais provável é que não houvesse lugar para a infância nesse mundo. Uma miniatura otoniana do século XI vê-se a representação de adultos sem nenhuma diferença de expressão ou de traços apenas reproduzidos numa escala menor. O pintor não hesitava em dar à nudez das crianças, a musculatura do adulto. Embora exibisse mais sentimento ao retratar a infância, o século XIII continuou fiel ao esse procedimento. (ARIÈS,1981, p. 17)
No mundo das fórmulas românicas, e até o fim do século XIII, não existem
283
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
crianças caracterizadas por uma expressão
medieval, a religião não podia continuar
particular e sim homens de tamanho
tolerando
reduzido, nos explica Ariès (1981, p. 17).
independente, sem consideração de credo,
Por volta do século XIII, surgiram tipos de
tal
crianças próximos do sentimento moderno.
autônoma.
Surgiu
o
anjo,
representado
sob
abstrata
de
raciocínios;
a
arte
era
vista
originalmente como uma simples concessão feita às massas ignorantes que tão facilmente são influenciadas por impressões dos sentidos. Não
maternidade da Virgem e ao culto de Maria.
era certamente permitido que fosse “um mero
No início, Jesus era, como as outras
prazer para os olhos”, como afirmou São Nilo. O
crianças, uma redução do adulto. Na arte
caráter didático é a mais típica das características da arte cristã, quando comparada com as antigas;
era
os gregos e romanos usaram a arte com bastante
representada por uma criancinha nua e em
frequência como instrumento de propaganda, mas
geral assexuada, segundo Ariès (1981, p.
nunca a empregaram como simples veículo de doutrina. (HAUSER, 1998, p.129)
18, 19). A arte cristã não dispunha de qualquer outro elemento acessível e por isso empregava essas formas não porque desejasse preservá-las, mas simplesmente porque “as tinha à mão”. O novo ideal cristão de vida não alterou, no começo, as formas exteriores de arte, mas alterou sua função social. Para o mundo antigo, uma de
ciência
todos pudessem ler e acompanhar uma cadeia
pois a infância se ligava ao mistério da
obra
uma
tempos da Idade Média, a arte seria supérflua se
Menino Jesus, ou Nossa Senhora menina,
alma
aceitava
existência
era o objetivo a alcançar. Na opinião dos primeiros
as crianças pequenas da história da arte: o
a
não
com
era valiosa, pelo menos quando a máxima difusão
seguida, modelos e o ancestrais de todas
francesa,
como
arte
Como instrumento de educação eclesiástica, a arte
a
aparência de um rapaz muito jovem, em
medieval
uma
arte
primordialmente
tinha estético,
um
significado
mas
para
o
cristianismo seu significado era muito diferente. Hauser (1998, p.129) aponta a autonomia das formas culturais como o primeiro elemento que se perdeu da antiga
Copiar e ilustrar manuscritos foram um dos mais antigos motivos de fama para os
mosteiros.
Nas
dependências
beneditinas, havia os scriptoria que eram recintos espaçosos e de uso coletivo, enquanto em outras ordens, como a cisterciense, menores.
funcionavam Hauser
(1998,
em
celas
p.172-174)
comenta que os trabalhadores e artistas itinerantes também eram treinados, em sua maioria, nas oficinas monásticas, as quais eram, ao mesmo tempo, as “escolas de arte” da época, fazendo do treinamento de jovens artistas sua preocupação especial.
herança espiritual. Para a mentalidade
284
Keila Mara Fraga Ramos de Oliveira
A excessiva valorização do papel desempenhado
na
através da qual se olha para o mundo, o
história da arte originou-se no período
que induz os observadores a verem o
romântico e faz parte da lenda elaborada
espaço diante e atrás da “janela” como um
em
cuja
meio contínuo, é aí que, pela primeira vez,
sobrevivência ainda hoje nos dificulta, com
o espaço ocupado pelo quadro adquire
frequência, uma abordagem dos fatos
profundidade e realidade.
torno
pelo
da
monasticismo
considerada a moldura de uma janela
Idade
Média,
históricos isenta de preconceitos. A arte
Nesse
mesmo
contexto,
os
românica era uma arte monástica, mas, ao
trovadores como D. Afonso X e seus
mesmo tempo, uma arte da aristocracia. A
artistas compõem a mesma realidade.
combinação
Comprova-se que a arte pictórica falou por
muito
dessas
bem
qualidades
como
era
mostra
grande
a
solidariedade entre o clero e a nobreza
meio de traços e cores e a poesia pelas palavras e versos.
secular. Havia entre as duas aristocracias
No sul da França o ritmo de vida é
uma aliança de lealdade recíproca, ainda
favorável ao nascimento de uma cultura e
que nem sempre explícita, observa Hauser
de um lirismo vulgar. No século XI aparece
(1998, pp.175-178).
Guilherme IX, duque da Aquitânia, o
Como
consequência
da
primeiro
trovador
provençal,
com
sua
clericalização absoluta da cultura, a arte
poesia lírica, assim “na segunda metade do
deixou de ser vista como “um objeto de
século XII vibra já no sul uma verdadeira
fruição
primavera
estética”
para
ser
agora
de
canções
trovadorescas.”
considerada uma “extensão do serviço
Começa uma nova época e uma nova
divino, uma oferenda votiva e um presente
civilização na Europa Ocidental explica-nos
sacrificial”, conforme Hauser (1998, p.188).
Lapa (1973, p. 10). A influência cultural da
O escritor já não se coloca diante de uma
França condicionou a poesia trovadoresca,
obra de arte como se fosse o habitante de
anterior
outro mundo; foi atraído para a esfera da
nacionalidade portuguesa, com a vinda de
própria representação, e essa identificação
D.
dos arredores da cena representada com o
portucalense em 1094 ou 1095, quando
meio
houve a imitação da cultura francesa entre
ambiente
observador
se
em
que
encontra
o
próprio
produz,
a
Henrique
ela
e
para
à reger
fundação o
da
condado
pela
os galego-portugueses, semelhanças que
primeira vez, a completa ilusão do espaço.
se explicam por inevitável encontro de
Ora, quando a moldura do quadro é
285
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
ideias e expressões. (Lapa, 1973, p. 117 e
senhora amada é exaltada nos mesmos
p. 124).
termos,
adornada
com
as
A produção literária medieval é
qualidades,
dividida em duas épocas por Spina (1961,
encarnação
p.12): a primeira refere-se ao instrumento
favorecendo ao emprego das mesmas
linguístico galego-português de fins do
fórmulas retóricas nos textos poéticos, a tal
século XII até 1434, enquanto que a
ponto que se poderia pensar serem todos
segunda época pode ser marcada de 1434
pertencentes a um só poeta, explica
até o retorno de Sá de Miranda a Portugal,
Hauser (1998, p. 128). Tão poderosa era
inaugurando o Classicismo. O ano de 1198
essa moda literária e tão indiscutíveis as
foi
antiga
convenções da corte que “os poetas tinham
composição literária portuguesa, Cantiga
em mente apenas um ideal abstrato, não
da
trovador
qualquer mulher individual, de carne e
PaaiSoares de Taveirós, dedicada a Maria
osso, ou seja, seus sentimentos seriam
Pais Ribeiro (a Ribeirinha). A mais antiga
derivados mais de exemplos literários do
mística popular da Idade Média nasceu
que de qualquer pessoa viva. O louvor da
entre a primeira e a segunda cruzada
dama era puro, mas qualquer amor por
(1099-1147), em uma época de alteração
parte do cantor era apenas uma falsidade
religiosa
convencional,
a
data
provável
Guarvaia,
mística
e
da
escrita
pelo
econômica.
surgiu
trovadoresca
a
em
mais
Nesta
canção sua
cultura
de
forma
amor
representada
mesmas
da
virtude
fórmula
e
como da
a
beleza,
consagrada
de
louvor, observa Hauser (1998, p. 218).
clássica,
Estava inteiramente fora de questão
registra Lapa (1973, p. 5). A civilização que
uma dama retribuir o amor do trovador,
encontrou a sensibilidade humana soube
uma vez que sua posição social era
também encontrar o
superior a do trovador, a mais remota
(...) equilíbrio da alma e do corpo, do coração e do espírito, do sexo e do sentimento (...) reclamar a autonomia do sentimento e pretender que podia
sugestão de adultério seria violentamente punida pelo marido. A declaração de amor
haver entre os dois sexos relações diferentes das
era pretexto para o poeta desfiar seus
do
lamentos e queixumes a respeito da
instinto,
da
força,
do
interesse
e
do
conformismo, eram coisas em que havia algo de verdadeiramente novo. (LE GOFF, 2005, p. 352)
A lírica do trovador é “poesia de sociedade”,
na
qual
até
mesmo
as
experiências reais têm de se revestir das formas fixadas pela moda predominante. A
crueldade
da
lamentações
mulher eram
amada,
e
tais
concebidas,
na
realidade, como elogio à irrepreensível castidade da dama. O amor trovadoresco e a poesia amorosa do trovador duraram
286
Keila Mara Fraga Ramos de Oliveira
tempo
demais
para
que
se
suas críticas é moderado e gracioso; nas suas
possa
expressões líricas apresenta-se como um poeta de
considerá-los mera ficção, comenta Hauser
alta qualidade, um dos melhores, se não o melhor,
(1998, p. 219).
de quantos poetaram no seu século. Tudo justifica
O novo culto do amor e o cultivo da nova poesia
que a morte de D. Dinis tivesse sido chorada pelos
cortesã sentimental eram, preponderantemente,
trovadores com sincera tristeza. (CARVALHO,
obra desse elemento flutuante na sociedade.
1995, p.25)
Davam às homenagens que prestavam às damas a forma de canções de amorexpressas em termos corteses mas não inteiramente “fictícios”; foram os
Os mais antigos textos poéticos em língua portuguesa datam dos últimos anos
primeiros a conceder um lugar ao serviço de sua
do século XII, observa o autor e não se
dama, a par do serviço ao senhor; foram eles que
trata ainda de língua portuguesa, mas de
interpretaram a lealdade feudal como amor e o amor como lealdade feudal. Ora, nessa tradução
uma língua hispânica, falada aquém e além
de uma situação econômica e social para termos
do rio Minho, o galego-português, fase que
eróticos, os motivos de caráter psicossexual
passou o português arcaico antes de se
também desempenharam um papel, se bem que tais motivos também estivessem sociologicamente
construir uma língua independente. O modelo das cantigas de amor
condicionados. (HAUSER, 1998, p.221)
As disputas entre homens ricos da
chegou
da
Provença
e
os
poetas
nobreza medieval que eram o estrato social
acolheram e cultivaram academicamente
a
trovadores
“reproduzindo-o sem nota de originalidade
subdividiam-se em categorias segundo seu
e repetindo-o na forma, no metro, nas
grau de nobreza. Eram quatro essas
palavras,
hierarquias:
monotonia fastiosa e cansativa”. Carvalho
que
pertenciam
cavaleiros
os
ricos-homens, e
escudeiros,
infanções, por
ordem
sempre
e
sempre,
numa
(1995, p.45) elucida que a “mulher amada
decrescente da sua importância social. No
era
tempo a que se reportam as cantigas dos
“senhora”, à exceção em raríssimos casos)
Cancioneiros
a
e dela o poeta se considerava vassalo,
população portuguesa pouco passaria de
termo este que por vezes é concretamente
um milhão, e o número de pessoas nobres
usado”. O confronto entre senhor e vassalo
andava por cinco mil, nos explica Carvalho
faz imediatamente pensar na influência que
(1995, p.8). Os ricos-homens eram a fração
as regras da cavalaria medieval tiveram na
menor
poética amorosa do tempo.
da
galego-portugueses,
totalidade
dos
nobres
e
constituíam a alta nobreza. D. Dinis é, de longe, o mais representativo de todos os poetas dos Cancioneiros e nas 138 cantigas dele se conservam não se encontra uma só palavra que fira a sensibilidade do leitor. Nas
tratada
por
'senhor'
(e
não
por
Perante tão luminosa visão o poeta sentia-se
verdadeiramente
aterrorizado.
Carvalho (1995, p.46) esclarece que o trovador tremia com a ideia de encarar a
287
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
“senhor”, paralisava-se lhe a voz se tinha
iconográfica que constituem fonte histórica
oportunidade de lhe falar, chorava, gemia,
inigualável de conhecimento dos hábitos,
pedia a Deus que o fulminasse para pôr
costumes e mentalidade da Idade Média.
termo à tão grande “coita de amor”,
Sob a perspectiva literária, o núcleo é a
expressão usada para se referir ao seu
ação redentora de Maria, diante de um
sentimento amoroso.
contexto em que o “milagre manifesta-se
Apesar de lavados em lagrimas não havia da parte dos poetas a mínima intenção de conquistarem as damas dos seus sonhos para, prosaicamente, se
como
absolutamente
necessário,
testemunhando, por meio de um discurso
casarem com elas. De resto a “senhor” era, em
bastante influenciado pela filosofia cristã
princípio, mulher casada, e de alta condição. Esta
medieval, até onde a sociedade admite a
escolha, que não seria de prever mas que dá bem a tônica do convencionalismo elaborado, tornava o amor
mais
sofrido,
mais
saboroso
pela
transgressão de normas estabelecidas e quais os padrões morais e de conduta”.
impossibilidade de colher deles favores, e que quanto mais fossem as dificuldades mais poética se apresentava a situação. O marido da “senhor”
Nas Cantigas de Santa Maria, a articulação do discurso literário e de obras
não intervinha no jogo, embora haja exemplos de
de
casos em que o poeta se mostra descontente por
investigação muito significativo para o
ter notícia de que o marido da sua amada não aceitava bem as cantigas de amor. (CARVALHO, 1995, p.47)
A importância desempenhada pela
arte
constitui-se
um
caminho
de
nosso estudo. Na relação entre o verbal e o não
verbal,
o
próprio
texto
não
se
apresenta concreto em descrições dos
mulher no lirismo galego-português revela
fatos
o caráter popular. De acordo com os
contribuiu para a preservação da moral e
historiadores as mulheres desempenhavam
da fé religiosa. O sentido moralizante é
papel importante nas grandes cerimônias
bastante claro nos milagres que se referem
religiosas de Santiago de Compostela.
às mulheres e às crianças nas Cantigas de
narrados.
Desta
forma,
tudo
No estudo do texto e da imagem,
Santa Maria. Nos exemplares em que
pesquisamos duas formas diferentes de
essas figuras aparecem como personagens
arte, o verbal e o não verbal, que possuem
principais, “concebem os perfis da mãe que
suas estruturas próprias de significação e
pede proteção para o filho ou pela vida da
apreendem de forma bastante particular o
criança; mulheres judias ou mouras que,
real para reconstruí-lo na obra.
Para
depois do milagre realizado, convertem-se
Silveira (2009, p. 98, 99) esses são um
ou batizam os filhos; mulheres nobres,
precioso
como a infanta que se dedica à vida
verdadeira
documento obra
de
linguístico arte
e
literária,
288
Keila Mara Fraga Ramos de Oliveira
religiosa e aos doentes”, convocando Santa Maria para livrá-las da morte. A cantiga 122, Como Santa Maria
resucitouhu a infanta, filladun rei, e pois foi monja e mui santa moller, já referida anteriormente,
D.Afonso
X
narra,
em
primeira pessoa, o milagre operado pela Virgem na cidade de Toledo. A filha do rei Dom Fernando nasceu da promessa à Santa Maria, mas contraiu uma doença, fato comum na Idade Média com os recémnascidos e morreu, deixando a família desolada. A mãe lamentou e sentiu-se culpada e sua atitude imediata foi fechar as portas da capela e clamar a vida de volta à Virgem que, milagrosamente, atendeu a sua súplica. Assim que ela ouviu a menina chorar, agradeceu e entregou sua filha ao convento dasOlgas, na cidade de Burgos, cumprindo sua promessa (Jamais non me partirei / daquesta porta, ca de certo sey / que me dará a madre do bonRei / mia filla
Na Idade Média, acreditava-se que o Anjo Custódio caminhava ao lado das pessoas protegendo-as, principalmente, as crianças. As histórias de santos e dos anjos eram contadas como exemplos de fé e de proteção.
A
figura
acima
revela
um
fragmento de uma cidade, com as casas superpostas e a figura da mãe na varanda da casa, no momento da queda do menino. As
pessoas
assustadas
gesticulam
e
seguram as mãos de outra criança, que parece observar a mãe desesperada na varanda da casa. No destaque, à frente, a figura do santo suspenso, vestido de preto, que possivelmente vai salvar o menino. Evidencia-se a seriedade dos trajes, cores escuras e o vermelho no traje das crianças e nas casas. A outra imagem, denominada La
Nativité
(A
Natividade),
de
Giotto
(DELOBBE, 1999, p. 4),pintor italiano.
viva [...]”, declara Afonso X (1961, p. 61). A imagem Le Miracle de l'enfant (DELOBBE,
1999,
p.5)representa
um
milagre ocorrido com a queda de uma criança de uma varanda, sendo socorrida por um santo, e logo em seguida acolhida por pessoas do povo. Na observa-se
representação o
nascimento
de
Giotto
do
Menino
Jesus, relembrando o modo como os recém-nascidos eram vestidos. Período marcado pela intensa
289
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
religiosidade, a representação do menino
experiência ao pai, revelando que Santa
rei, salvador do mundo, em meio a um
Maria havia lhe dado a comunhão:
ambiente natural (rústico) rodeado de
lacomuyonfillou,/ logo dali se partia/ e
animais,
Virgem.
encas seu padr' entrou/ como xe fazer
cores
soya;/ e ele lle preguntou/ que fezera. El
representativas dos santos da Igreja, o
dizia:/ «A dona me comungou/ que vi so o
ouro e o azul, cores da santidade e da
chapitel.»
sendo
Observam-se
cuidado
nos
pela
trajes
as
Poi-
pureza da Virgem. Os rostos são estáticos
O pai ficou furioso e colocou o
e há também a sugestão dos gestos das
menino no forno: O padre, quand' est'
mãos que amparam o Menino Jesus na
oyu,/creceu-lli tal felonia,/ que de seu siso
manjedoura.
sayu;/ e seu fill' enton prendia,/ e u o forn'
A Cantiga 4 “A Madre do que livrou
arder vyu/ meté-odentr' e choya/ o forn', e
dos leões Daniel, essa do fogo guardou
mui mal falyu/ como traedor cruel. Sua
unmeno d'Irrael”, relata o milagre realizado
mãe, que o amava gritou e as pessoas
em favor de um criança judia numa
vieram ajuda-la, abrindo o forno onde
comparação com o texto bíblico. A cantiga
estava o menino, que havia sido guardado
narra que um judeu fabricante de vidro
e protegido pela Virgem, tal como havia
tinha um filho que estava aprendendo com
ocorrido
os cristãos na escola com o padre Samuel.
leões:Pois souberonsen mentir/ o por que
Na Páscoa ele entrou em uma igreja e os
ela carpia,/foron log' o forn' abrir/ en que o
jovens estavam distribuindo a hóstia e ele
moço jazia,/ que a Virgen quis guarir/ como
sentiu que era a Virgem Maria que as
guardou
distribuía
e
resolveu
aceitar
uma:
O
judeuco prazer/ ouve, calle parecia/ que
com
Daniel,
Anania/
na
Deus,
cova
seu
dos
fill',
e
alegria
e
senfalirqAzari' e Misahel. O
menino
saiu
com
ostias a comer/ lles dava Santa Maria,/ que
perguntaram-lhe o que sentia, respondendo
viiaresprandecer/ eno altar u siia/ e enos
que Santa Maria o tinha coberto com seu
braços ter/ seu FilloHemanuel.
manto: O moço logo dali/ sacaroncon
A Virgem observando a atitude do
alegria/ e preguntaron-ll' assi/ se sse
menino deu-lhe realmente a comunhão.
d'algun mal sentia./Diss' el: «Non, ca eu
Para ele, a hóstia foi mais doce que o mel:
cobri/ o que a dona cobria/ que sobelo altar
Santa Maria enton/ a mão lleporregia,/ e
vi/ con seu Fillo, bon donzel.»
deu-lle tal comuyon/ que foi mais doce ca mel.
De
volta
a
casa,
contou
sua
Concluímos que tanto nos textos poéticos das cantigas de Santa Maria de D.
290
Keila Mara Fraga Ramos de Oliveira
Afonso X, como nas telas os milagres
descasos
foram revelados, tendo como foco as
medieval.
dos
pais
e
da
sociedade
crianças que sofriam com os maltratos e os
Referências: AFONSO X, O Sábio. Cantigas de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann. 4 volumes. Coimbra, Acta UniversitatisConimbrigensis, 1959-1972. ARIÈS. Philippe. História Social da Criança e da Família. Tradução: FLAKSMAN. D. Rio de Janeiro; LTC, 1981. CARVALHO, Rômulo de. O texto poético como documento social.2ª. ed. Lisboa: Fundação Gulbenkian, 1995. DELOBBE, Karine. Des enfants au Moyen Âge. France: Pemf, 1999. DURAND. Jannic. L'art au Moyen Âge.Paris; Bordas,1989. HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. Mestre Jou, 1982. HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. São Paulo: Cosacnaify, 2010. LAPA, Manuel. Rodrigues. Lições de Literatura Portuguesa-época medieval. 8ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1973. LE GOFF, J. A civilização do Ocidente Medieval. Tradução MACEDO, J. R. São Paulo: Edusc, 2005. SILVEIRA, Josilene Moreira. O perfil das mulheres religiosas em Cantigas de Santa Maria
e Miniaturas. 2009. 182 f. Dissertação de Mestrado – Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2009. SPINA, S. Presença da Literatura Portuguesa. Paulo: Difusão Européia do Livro, 1961.
291
A RAINHA E O CORO EM AGAMÊMNON: FORMAS DE PENSAR A PRESENÇA DA MULHER NA SOCIEDADE GREGA Lisiana Lawson Terra da Silva 1 Jussemar Weiss Gonçalves 2 (Orientador) Resumo: Nosso trabalho trata de uma análise do diálogo entre o coro e a rainha Clitemnestra na tragédia Agamêmnon da trilogia Oresteia. Buscando mostrar como o autor, Ésquilo, articula duas formas de expressar a realidade, a do coro e a da rainha. Para isso utilizamos os diálogos como porta de entrada ao pensamento dos sujeitos dialogantes. Este trabalho visa demonstrar que para além das aparências sociais existe para os gregos uma peculiaridade no pensamento do feminino e que esta singularidade revela-se a partir do olhar masculino. A História Cultural mostra que se deve entender a cultura como pensamentos compartilhados e construídos pelos próprios homens para explicar suas realidades. O que se busca é, a partir, das formas de pensar do coro e da rainha as formas de compreensão do mundo masculino em relação ao feminino. A Pólis ateniense é o cenário da obra estudada e revela práticas culturais pertencentes ao modo de vida isonômico ou aristocrático e a consequente posição de mulher-esposa-mãe dentro de cada um desses estilos de organização social e que o diálogo estudado retrata. Assim, a mulher é representada pelo olhar masculino tanto dentro do mundo da cidade quanto pertencente ao universo mítico. Essas duas visões se contrapõem dentro da cena trágica. Palavras-chave: Tragédia; Atenas; Mulher.
1
Bacharel em História (FURG).
Este estudo é fruto do Grupo de Pesquisa Cultura e Política no Mundo Antigo
coordenado pelo Prof. Dr. Jussemar Weiss Gonçalves. CURSO DE HISTORIA, ICHI, UFRG. 2
FURG.
292
Lisiana Lawson Terra da Silva Jussemar Weiss Gonçalves
Introdução
gregos uma peculiaridade no pensamento
Este artigo trata de uma análise do
do feminino e que esta singularidade
diálogo entre o coro e a rainha Clitemnestra
revela-se a partir do olhar masculino.
na
Sendo
tragédia
Agamêmnon
da
trilogia
a
tragédia
um
acontecimento
Oresteia 3. Buscamos destacar que o autor,
essencialmente urbano e que tem início e
Ésquilo 4, articula duas formas de expressar
fim no século V 5, ela funciona como um
a realidade, a do coro e a da rainha, e que
espelho da cidade, onde seus cidadãos ao
existe a construção de um atrito que essas
mesmo tempo em que reconhecem as
diferenças produzem. Para isso utilizamos
situações encenadas, questionam a ordem
os mesmos como chave, porta de entrada,
política da polis ateniense (VERNANT E
ao pensamento dos sujeitos dialogantes.
VIDAL-NAQUET, 2011).
Este trabalho visa demonstrar que para
Para a análise proposta utilizamos
além das aparências sociais existe para os
como fonte a tragédia Agamêmnon, já que esta representa uma teia de pensamento e
3
A trilogia Orestéia está dividida em Agamêmnon,
práticas sociais de um período, Atenas
Coéforas e Eumênides. Agamêmnon é a primeira das três
século
peças e conta o retorno do rei Agamêmnon para Argos
indivíduos ou grupos, através de suas
após a guerra de Tróia e o reencontro com sua cidade,
representações, geram estruturas sociais
sua rainha Clitemnestra e seus cidadãos representados
V.
Como
coloca
Chartier,
os
em:
as quais dão sentido ao mundo que é o
ESCHYLE. Orestie. Paris: Belle Lettres, 1962. ÉSQUILO;
deles Chartier (1991). Partindo desse
TORRANO, Jaa (Org.). Agamêmnon: Orestéia I. São
princípio, os cidadãos atenienses viam a
pelo
coro.
Ver
mais
sobre
o
tema
Paulo: Iluminuras, 2004. Os três autores trágicos considerados clássicos são por
representação teatral das mulheres como
ordem de idade, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. São os
uma ocasião para pensar a diferença dos
três que mais deixaram obras completas e são os mais
sexos (LORAUX,1985).
4
difundidos e estudados. Ésquilo é o mais antigo dos três dramaturgos e é considerado criador da tragédia em sua
A história das mulheres pode ser
forma definitiva, nasceu em Eleusis aproximadamente em
considerada recente no campo histórico, é
ou 524, esteve presente nas batalhas de Maratona
com o impulso da Escola dos Annales que
5254
(490) e Salamina (480), ou seja, foi contemporâneo do final das Guerras Médicas até a democracia de Péricles.
são incluídas como objeto de pesquisa as
Em 474 seu corego, ou financiador, é o próprio Péricles, o
práticas cotidianas e privadas. Mas se por
que leva a crer que ele era um democrata. Ésquilo
um lado há uma escassez de informações
escreveu noventa tragédias das quais apenas sete chegaram até nós completas, Suplicantes (data incerta
acerca da vida dessas mulheres, por outro
entre 499 e 472), Os Persas (472), Os Sete Contra Tebas (467), O Prometeu Acorrentado (data incerta), e a trilogia Orestéia representada em 458.
5
Todas as datas são A.C
293
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
há
uma
abundância
de
imagens
e
pertencentes ao modo de vida isonômico
discursos. “As mulheres são representadas
ou aristocrático e a consequente posição
antes de serem descritas ou narradas,
de mulher-esposa-mãe dentro de cada um
muito antes de terem elas próprias a
desses estilos de organização social.
palavra” (DUBY, PERROT, 1990, p. 8). Na
Tragédia e Cidade
Grécia do séc. V os trágicos, escrevem
A tragédia grega é uma forma de
sobre mulheres, sobre o lugar delas, o que
expressão
fazem, quais os seus deveres. Através do
especificamente, e está associada ao
teatro a palavra feminina, sempre mediada
surgimento da pólis ateniense e, mais do
pelo homem, é representada na pólis.
que isso, ao surgimento do cidadão e da
cultural
do
século
V
O estudo dos diálogos tem como
atividade política. 6 O universo trágico gira
finalidade discutir sobre duas formas de
em torno de dois mundos, o mítico ou
pensar a condição feminina na pólis
lendário
ateniense. O coro, como um personagem
tradição, e o mundo da cidade com seus
coletivo, encarna na tragédia Agamêmnon
novos valores e contextos mentais e que
os anciãos atenienses e reproduz os
irá inaugurar um novo tipo de pensamento.
sentimentos
da
A tragédia funciona como uma instituição
comunidade cívica. Já a personagem da
social e um espelho da cidade, onde seus
rainha Clitemnestra encarna a figura do
cidadãos
herói cuja ação é o centro do drama e que
reconhecem
expressa outra realidade não pertencente à
questionam a ordem política da pólis.
pólis
Nesse sentido, a tragédia articula as
e
democrática
questionamentos
(VERNANT;
VIDAL-
ainda
ao
presente
mesmo as
tempo
situações
que
encenadas,
tensões
entre duas formas de pensar que é
democrático e seus conflitos e o mundo
analisada no trabalho. De um lado o
das potências divinas, ou seja, o universo
do
coro
na
entre
em
uma
NAQUET, 2011). São essas diferenças
pensamento
existentes
como
o
homem
tragédia
Agamêmnon que expressa uma realidade feminina pertencente ao estilo de vivência
6
Foi através do culto a Dionísio que nasceu a tragédia no
final do século VI A.C., realizavam-se concursos em que a
social da cidade e de outro o pensamento
própria população votava nos temas que mais a
de Clitemnestra que extrapola o limite do
interessavam e essas possuíam o direito de ser
oikos como parâmetro para suas atitudes.
encenadas. Essas encenações eram financiadas pelos cidadãos mais ricos da Pólis, e eram assistidas de graça
A Pólis ateniense é o cenário da tragédia
pela população. Desta maneira, Atenas conseguia que os
estudada
mais ricos financiassem cultura e educação para os mais
e
revela
práticas
culturais
pobres.
294
Lisiana Lawson Terra da Silva Jussemar Weiss Gonçalves
da cidade e o universo do mito, dos
presságios e os sacrifícios perpassam as
deuses.
obras.
Elas
são
conformadas
pela
Segundo Pierre Grimal, a instituição
conjunção de teologia e moral. Ésquilo
dos concursos de tragédia no mundo da
inova na tragédia ao incorporar mais um
cidade, através da festa ao deus Dionísio
ator e reforça a oposição entre partes
tem duas causas: a literária e a política,
cantadas,
Grimal (1978). A primeira é considerada
episódios, onde os personagens são os
uma descoberta atribuída ao poeta Téspis
heróis trágicos. O coro tem a função de
e a segunda ao desejo dos tiranos de
conselho em Agamêmnon e é, portanto, o
exaltar e legitimar seu poder. A novidade
representante do grau de verdade dos
da tragédia transformou a cultura grega nas
cidadãos atenienses. O estatuto do herói
suas instituições sociais com os concursos
trágico é questionado através dos valores
trágicos, nas suas formas literárias com o
morais e religiosos legados pela tradição,
aparecimento do gênero poético como
mas reavaliados pela cidade democrática.
forma de representação teatral e finalmente
Ele possui uma relação individual com o
no plano da existência humana, pois a
divino e com isso, um destino individual, já
encenação tem como objetivo o debate e o
o coro tem uma relação coletiva, uma vez
questionamento
que representa os valores da cidade. Esse
do
cidadão
ateniense
o
coro,
e
as
faladas,
os
mundo trágico permeado pelas relações
(VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2011). As tragédias de Ésquilo trazem em
entre deuses, heróis e cidade é o que
seu drama a permanente interligação entre
configura a tragédia esquiliana e que
mundo divino e mundo dos homens 7, os
mostra a justiça divina dispensada por Zeus aos homens. (...) podemos dizer que os Deuses constituem os
7
Segundo Jaa Torrano, tradutor de Ésquilo, na trilogia
aspectos fundamentais do mundo, os diversos
confundem-se quatro graus de verdade, ou pontos de
âmbitos
vista, o dos deuses, o dos numes, o dos heróis e o dos
fundamentos de todas as possibilidades que se
cidadãos da pólis. É na articulação entre esses graus de
abrem para homens e Heróis (TORRANO, 1997,
verdade que se constrói a dialética trágica, pré-filosófica,
p.31)
que
discute
o
mundo
da
cidade.
“Dentro
dessa
perspectiva, dá-se na tragédia o diálogo da pólis com o
de
atividades
e,
em
resumo,
os
Outra característica das tragédias de
legado de sua tradição religiosa e com as questões e os
Ésquilo é a confirmação da doutrina da
desafios impostos por sua práxis cotidiana, individual e
hýbris 8, que o autor coloca como tema
coletiva” Torrano (1997). Ver mais sobre o tema em: ESCHYLE. Orestie. Paris: Belle Lettres, 1962. ÉSQUILO; TORRANO, Jaa (Org.). Agamêmnon: Orestéia I. São
8
Hybris é uma ação que se caracteriza por romper um
Paulo: Iluminuras, 2004.
limite
determinado.
Este
rompimento
produz
295
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
central em Agamêmnon. Já na tragédia Os
En este terreno, el corifeo encuentra em
Persas, Ésquilo levanta o questionamento
Clitemnestra a una mujer que puede hablar com la sensatez y prudência propias de um varón.
de que a opulência e a grandeza são
Este
carácter
ambíguo
y
ambivalente
de
usurpações das características divinas e
Clitemnestra, pivotando permanentemente sobre
que,
rasgos femeninos y masculinos, pondrá em
portanto,
estão
proibidas
aos
evidencia que más que ante uma heroína estamos
humanos. Em Agamêmnon essa doutrina é reiterada,
pois
democrática
no
essas
contexto
da
características
em presencia de um travestimento de gênero que
polis
hace de la reina uno de los héroes del drama (GALLEGO, 2000 p.72).
de
soberba vão de encontro às formas de agir político do cidadão ateniense. Para os gregos do século V a soberba, riqueza, opulência, enfim, hýbris, de um soberano ou cidadão estão em desconformidade com as atribuições humanas. No Agamêmnon, o rei e a rainha desempenham a figura de soberanos e de heróis e são questionados pelo coro, representantes dos cidadãos, em relação aos seus comportamentos desmedidos, tirânicos (hýbris), incompatíveis, como já vimos, com os valores da pólis ateniense do século V. Clitemnestra, que como esposa deveria apenas representar um papel de complementaridade na casa, oíkos, exerce o poder de forma viril como mulher de um marido ausente e deve, portanto, ser respeitada pela cidade, com base nas leis de matrimônio. 9
As
mulheres
nas
tragédias
ao
mesmo tempo em que reafirmam sua condição na pólis, como filha-esposa-mãe de cidadão, mas sem qualquer participação política, contradizem essa condição quando personagens femininos como Clitemnestra de Agamêmnon aparecem como um desvio à regra. Antígona de Sófocles é outra personagem feminina de tragédia que dá um salto para além do limite colocado pela polis, pois se posiciona fortemente contra Creon e sustenta esse comportamento até o final. Esse tipo de enfrentamento era impensável para uma jovem solteira tanto dentro de casa quanto na polis. “Creon imagina que seu poder é ilimitado e vê seu mundo desmoronar; Antígone sabe que seu poder é limitado, mas, apesar disso, age como se fosse ilimitado” (VIEIRA, 2009, p.16).
consequências que alteram a ordem do universo. Ver mais sobre o tema, no livro: LE SENS DE LA
no
DÉMESURE: hubris et dike; Jean-Francois Mattei, Paris,
casamento?: a noiva no mundo grego (séculos IX-IV
Sulliver, 2009.
A.C.). In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História
9
As leis de matrimônio gregas regiam a vida social e
política dos cidadãos atenienses. Ver mais sobre o tema
das
capítulo:
LEDUC,
Mulheres: A
Claudine.
Antiguidade.
Como
470.
dá-la
ed.
em
Porto:
Afrontamento, 1990. p. 277-347.
296
Lisiana Lawson Terra da Silva Jussemar Weiss Gonçalves
Os autores Vernant e Vidal-Naquet
e existe uma peculiaridade no pensamento
ressaltam a particularidade da cidade
do feminino que é sempre representado
grega, que não é a única em excluir as
pelo olhar masculino. As tragédias eram
mulheres
sua
escritas, encenas e assistidas, em sua
singularidade está em fazer dessa exclusão
maioria, por homens. Nesse sentido, a
um dos motores da ação trágica, Vernant e
representação teatral das mulheres é a
Vidal-Naquet (2011).
expressão da contradição das relações
politicamente,
mas
Para o cidadão de Atenas, a apresentação teatral das mulheres já é, em si mesma, uma ocasião admirável para pensar a diferença dos sexos:
sociais e o protagonismo feminino, através da perspectiva masculina, revela uma
mostrá-la para confundi-la e depois reencontrá-la,
natureza atrativa e perigosa, como a cidade
mais rica após haver sido confundida, mas ainda
democrática em si (SUÁREZ, 2000). Esse
assim consolidada ao ser reafirmada no último instante. (LORAUX, 1985,p.12)
Partindo
desse
princípio,
os
cidadãos atenienses viam a representação teatral das mulheres como uma ocasião para pensar a cidadania na cidade, mas principalmente era a ocasião para debater problemas sociais e políticos de toda a sociedade. A ambiguidade é uma das características das personagens femininas das tragédias, uma vez que, ao mesmo tempo em que, os autores destacavam os valores patriarcais dentro de uma visão masculina de mundo, as protagonistas desempenhavam
papéis
fortes,
com
protagonismo feminino não indica somente as contradições das relações de gênero, mas sim de toda a sociedade ateniense. Clitemnestra, como uma heroína trágica, inverte a ordem social da pólis ateniense através de seu personagem, pois suas
falas
denotam
uma
virilidade
incompatível com o seu gênero. A atitude viril da rainha é apontada pelo coro como um desvio ao comportamento ideal de uma esposa, que tinha como característica o recato, o isolamento, a submissão e fundamentalmente o silêncio, que, como colocou Nicole Loraux era o ornamento das
e
mulheres (Loraux, 1985). Quando uma
Para os gregos a mulher 10 possui
retirada de seu comportamento ideal de
personagens
bem
caracterizados
diálogos bem estruturados. um lugar bem determinado dentro da pólis
mulher é qualificada de viril ela está sendo mulher de cidadão e colocada em outro patamar de ação, com mais autonomia e principalmente, neste caso, com direito à
10
PANTEL, Pauline Schmitt. Aithra et Pandora: Femmes,
Genre
et
Cité
dans
la
Grèce
Classique.
Paris:
L'harmattan, 2009.Neste livro a mulher é vista a partir de
uma possibilidade de interpretação além da tragédia, a partir do mito.
297
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
palavra. Ésquilo mostra uma rainha que
mulher exerce o poder na casa, o oikos de
ultrapassa o seu papel de esposa do rei,
Agamêmnon, a rainha Clitemnestra, e,
adotando a atitude política de um tirano,
segundo o vigia, ela exerce esse poder de
uma desmedida, o que para os cidadãos
uma forma viril, desmedida, acima do seu
gregos era motivo de crítica. E o coro, que
papel de esposa 11. Em segundo lugar é
é quem tem o papel de zelar pelos valores
dado a conhecer ao público que a casa é
da cidade, vai fazer essa crítica aos seus
desafortunada. Além da longa ausência do
soberanos através dos diálogos entre os
rei, existe algo que todos sabem, mas não
personagens.
ousam falar, que acontece dentro do
A Rainha e o Coro A primeira cena de Agamêmnon inicia com o personagem do vigia recitando
palácio.
Está
dado,
portanto,
nessa
primeira cena o cenário atual, onde a partir de então se desenrolará a tragédia.
o prólogo, onde ele descreve a sua tediosa
No párodo o coro de anciãos recita
vigília de um ano por seu rei que já está
seus primeiros versos e relata todos os
fora a dez anos guerreando em Troia. A
problemas
espera por um sinal que traga a notícia da
Atridas 12, a maldição da família 13, aos
vitória é sua sina, mas nos primeiros versos
vaticínios e o sacrifício corrompido da filha
que
afligem
a
casa
dos
deixa claro que obedece ao poder de uma mulher que tem o coração viril, ou seja, que exerce o poder e aconselha como um homem. Em seguida, cai em prantos, pois a casa de Agamêmnon não é mais a mesma, é uma morada que esconde algo.
HANDMAN,
11
Marie-Elisabeth. La
Violence
et
la
Ruse: hommes et femmes dans un village grec. Paris: Edisud, 1983,Neste livro a autora mostra como fica limitada a forma de expressão da mulher:ou ela usa a “ruse” ardil,astucia, a metis grega,ou desencadeia um
V. Aos Deuses peço: afastem essas fadigas,
processo de violência.
a vigilância de longo ano, (...)
12
.Agora aguardo o sinal do lampejo,
alimentou a imaginação dos grandes poetas trágicos do
a luz do fogo a trazer voz de Tróia
século V A.C. Atreu, rei de Micenas, teve dois filhos
e notícia da captura, tal é o poder
Agamêmnon e Menelau. MOSSÉ, Claude. Dicionário da
do viril coração de mulher.
Civilização Grega. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004 p
(...) choro e gemo a conjuntura dessa casa
51.
não como antes a mais bem servida. (ÉSQUILO,
13
2004, p.105, v1-19)
logo separados por um ódio intenso. Para vingar-se de
Os Atridas foram uma família célebre, cujo mito
Pélope e Hipodâmia tiveram dois filhos, Atreu e Tiestes,
Tiestes,que supunha ser o amante de sua esposa
Nesses primeiros versos da tragédia já se anuncia que em primeiro lugar uma
Aeropéia, Atreu matou os filhos que seu irmão tivera com uma Náiade e, fervendo os corpos, serviu-os a Tiestes em um banquete. Tiestes vingou-se de Atreu fazendo-o morrer pelas mãos de outro filho seu, Egisto. Idem, p. 51.
298
Lisiana Lawson Terra da Silva Jussemar Weiss Gonçalves
Ifigênia 14. Os primeiros versos do coro
pelo coro como Basileia 15 no verso 84,
indicam o tom de crítica à figura do herói,
dando
Agamêmnon e Clitemnestra. Mas é nos
reconhecem o poder dela como dirigente
diálogos entre o coro e a rainha que o
do palácio e da cidade. Esse seria o
autor, Ésquilo, articula duas formas de
primeiro sinal de estranhamento que o
expressar a realidade da presença feminina
público reconheceria em relação à figura
na cidade.
feminina, pois para o cidadão ateniense
No primeiro diálogo entre o coro de anciãos e Clitemnestra no primeiro episódio
a
entender
que
os
cidadãos
uma mulher ser nomeada Basileia é um despropósito.
nota-se uma reverência por parte do
Dando prosseguimento ao mesmo
primeiro em relação à esposa do rei. “C.
diálogo transparece uma descrença do
Venho reverente a teu poder, Clitemnestra,
coro em relação à palavra da rainha
pois justo é honrar a mulher do rei quando
quando ela diz que os aqueus 16 venceram
o
homem”
Tróia, uma vez que não existem provas
(ÉSQUILO,2004, p.123, v258-260). Isto se
concretas, mas sim visões e sonhos com
dá unicamente por respeito às leis do
os quais a rainha constrói a sua verdade, a
casamento e por estar o rei ausente de sua
posição do coro é de incredulidade e
casa. No palácio de Agamêmnon, assim
questionamento. Até que ponto a palavra
como em toda casa de cidadão grego, o
de uma mulher é confiável? Em que ela se
homem é o chefe e a esposa possui a
baseia? No caso de Clitemnestra ela se
função de complementaridade em relação
baseia nos sinais divinos, conforme fala da
à administração da casa, pois em última
rainha. “Cl. Hefesto emite em Ida nítido
instância as decisões são do marido. Mas
brilho. Facho envia facho do mensageiro
não é o que acontece nessa tragédia
fogo para cá” (ÉSQUILO, 2004, p.125,
especificamente, pois a rainha é nomeada
v281-283). Pois a palavra carece de
trono
está
ermo
de
verdade se não há um sinal divino. A rainha, então, passa a convencer o coro através da palavra, pheitó 17 de que sua 14
Agamêmnon organizou para vingar seu irmão a famosa
15
Basileu é o título dado ao primeiro entre os aristocratas
expedição da Guerra de Troia. Entretanto, reunidos os
que dirige a cidade, este título nada tem que lembre reis
navios gregos em Áulis, ventos contrários impediram que
ou tiranos orientais, já que é contingente.
partissem para a Ásia. Agamêmnon consultara o adivinho
16
Calcas, que lhe impôs o sacrifício de sua filha à deusa
17
Ártemis. Idem, p. 52.
aceitação do argumento do outro.
Os Aqueus são os gregos de Agamêmnon. Pheitó é persuasão, isto é, a obediência mediante a
299
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo em
versão é a verdadeira, mesmo que ele a trate
com
desconfiança
e
uso da palavra para persuadir homens também
causaria
público
de
masculino,
estranheza
tragédia já
que
na
em
sua
pheitó
um
maioria
pode
ser
considerada como pertencente mundo dos
masculina,
as
mulheres
na
mesmo
visão que
consigam interpretar os sinais divinos, são mais suscetíveis ao engano, podem ser induzidas ao erro pelos deuses. Essa é uma visão que vem do mito, da raça das mulheres 18, em que as mesmas são consideradas como fora da humanidade, elas não pertencem ao mesmo mundo dos homens e são, portanto, mais fracas e facilmente manipuláveis. La relación entre verdad e divinidad está mediada em el mundo terreno por la falabilidad humana.
no
hay
um
prudência, e a compara com um homem, uma
vez
que
esse
adjetivo
é
marcadamente masculino. C. Mulher, falas prudente qual prudente homem. Eu ouvi de ti confiáveis indícios e estou pronto a orar piamente aos Deuses: graça
não
sem
valor
se
cumpriu
por
fadigas.(ÉSQUILO, 2004, p.129, v351-354)
novo contasses” (ÉSQUILO, 2004, p.127, porque,
si
admirado com suas características, como a
o fim estas palavras e admirá-las como de Isto
garantia
coro, finalmente convencido pela rainha e
depois farei aos Deuses. Quereria ouvir até
319).
de
Este diálogo fecha com uma fala do
cidadãos da pólis. “C. Preces, ó mulher,
v317-
carece
pronunciamento divino. (GALLEGO, 2000, p 71)
certa
condescendência. Uma mulher fazendo
si
A
visão
Clitemnestra
do
coro
desempenha
é
de
um
que papel
masculinizado na tragédia, uma vez que possui uma autonomia que a nenhuma mulher-esposa do séc. V é permitida. Claro, que ela é uma rainha que deve zelar pelo seu palácio, mas ainda assim, o que se pode notar é um desvio do lugar ocupado pelo feminino. O seu modo de falar não é o que se espera de uma mulher, pois a rainha manipula a palavra conforme sua perspectiva, em um primeiro momento de maneira prudente (masculina) e em
Alguien pudo percibir mal o pudo ser engañado sin
segundo momento de maneira ousada e
darse cuenta. Esto es relevante porque la palabra
desmedida (métis) 19, mais de acordo com o comportamento feminino, ardiloso.
18
A Raça das Mulheres é um mito proveniente de obras
como Teogonia e Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo em
19
que o mito do surgimento da primeira mulher, Pandora, é
tipo de pensamento que não responde de uma forma
colocado como algo fora da humanidade. Para ver mais
linear, mas que constitui suas respostas mediante uma
sobre
of
visão que subtrai a certeza exata sobre o que se fala, isto
Athena: Athenian ideas about citizenship & the division
é, um pensamento insinuoso, cheio de curvaturas.
between the sexes. New Jersey: Princeton University
Especificamente sobre a natureza desse tipo de pensar
Press, 1994.
ver o livro de VERNANT, Jean-Pierre; DETIENNE,
o
tema:
LORAUX,
Nicole. The
Children
Méthis é astúcia, caracteriza o pensar feminino. É um
300
Lisiana Lawson Terra da Silva Jussemar Weiss Gonçalves (...) el corifeo encuentra en Clitemnestra a uma mujer que puede hablar com la sensatez y prudência próprias de um varón. Este carácter ambíguo e ambivalente de Clitemnestra, pivotando permanentemente
sobre
rasgos
femeninos
e
masculinos, pondrá em evidencia que más que ante uma heroína estamos em presencia de um travestimiento de gênero que hace de la reina uno de los héroes del drama. (GALLEGO, 2000, p.72)
Sem dúvidas que a citação acima expressa a forma da cidade e de seus cidadãos, representados pelo coro, de pensar a condição feminina na pólis, onde a mulher não possuía qualquer expressão política e era tratada como uma eterna menor.
Nesse
sentido
Ésquilo
coloca
Clitemnestra como um desvio a essa forma de pensamento, já que ela usurpa tanto o poder político quanto o familiar. E o coro reconhece
esse
caráter
ambíguo
da
personagem, por isso a qualifica ora de maneira masculinizada, com o uso da palavra viril, ora com adjetivos femininos como instabilidade e irreflexão. O coro acaba por aceitar, mesmo que com desconfiança, as palavras de Clitemnestra,
deixando
claro
que
as
mulheres são crédulas demais e que são tocadas pela graça antes que pela certeza. Assim, o valor da palavra de uma mulher é restrito, uma vez que pode ser alterada, pois ela possui uma certeza que não
pertence
ao
mundo
masculino
da
concretude. C. Convém ao mando de mulher aquiescer à graça antes de ver. Crédulo demais o gênero feminino vai a rápido passo; mas, com rápido fim, cantada por mulher, perece a glória. (ÉSQUILO, 2004, p. 137, v483-487)
No segundo episódio, quando o arauto traz, finalmente, a notícia da vitória sobre Tróia e confirma as palavras da rainha. O coro, então, tem a confirmação da verdade recitando que: “C. Não me vexa ser vencido por palavras” (ÉSQUILO, 2004, p.145, v583). Nesse sentido ele reconhece a verdade da palavra de Clitemnestra e admite ter sido persuadido a acreditar, mesmo que a contragosto, por uma mulher. Essa atitude do coro, que ora desconfia e ora acredita por convencimento na palavra da rainha, mostra a singularidade da tragédia,
pois
um
coro
de
anciãos
dobrarem-se ao poder de uma mulher é visto como um desvio pela cidade grega. Nesse episódio ainda Clitemnestra fala sobre como interpreta as palavras do coro a seu respeito. Para a rainha o coro a retrata de maneira instável, o que seria uma qualidade feminina, a irreflexão. “Cl. ‘É muito de mulher exaltar o coração’. A tais palavras
eu
parecia
aturdida,(...)”
(ÉSQUILO, 2004, p.145, v592-593). Junto a isso ela ainda coloca-se na posição que
Marcel. Les Ruses de L'intelligence: La métis des Grecs.
todos esperam de uma esposa que há dez
Paris: Flammarion, 1974.
301
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
anos espera pelo marido e que sempre zelou por seu patrimônio, quase uma Penélope. 20 Cl. Para a mulher que luz mais doce de ver que abrir portas, salvo o homem por Deus,
afrouxou-lhe membros ali mesmo e prostado dou-lhe o terceiro golpe,(...) (ÉSQUILO, 2004, p.201, v1372-1373 e 1384-1387)
Com isso há uma forte reação do coro que utiliza palavras como audácia e
salvo da guerra? Anuncia ao marido:
mulher imprudente, posição completamente
vir o mais rápido o amor do país,
contrária com o que disse no primeiro
e vindo veja no palácio fiel mulher tal qual deixou, cão do palácio,
episódio, quando chamava a rainha de
leal a ele, inimiga dos desafetos,
prudente. Quando o coro diz: “C. Pasma-
e no mais a mesma, sem ter rompido
nos tua fala pela audácia,(...)” (ÉSQUILO,
selo nenhum ao longo do tempo. (ÉSQUILO, 2004, p.145, v602-610)
Na citação acima o que se nota é a ambiguidade do personagem da rainha, ao mesmo tempo em que expressa qualidades masculinizadas para os gregos como o uso da pheitó, a persuasão, ela é acusada pelo coro de irreflexão e instabilidade, méthis, que são qualidades pertencentes ao mundo da mulher. Junto a isso coloca-se como uma esposa exemplar, aguardando por dez anos o retorno do marido. No quinto episódio, quando já é morto Agamêmnon, há um embate entre o coro e a rainha e parece haver uma inversão na fala de Clitemnestra. Ela abre o episódio admitindo o uso da mentira e da astúcia para conseguir seus objetivos e se vangloria de matar o marido.
2004, p.201, v1399), ele está colocando a esposa de Agamêmnon em seu lugar, como mulher desmedida e acometida de hybris. Em seguida a rainha interpreta as palavras do coro que a acusam de irreflexiva. Uma mulher para cometer tal desatino a agir com tamanha audácia só pode estar fora de si. “C. Ó mulher, que droga provaste (...)?” (ÉSQUILO, 2004, p.203, v1407). Há com certeza um desvio do lugar da mulher, não pela ação em si, mas sim pela audácia e pela fala da rainha que se coloca em igualdade com o coro de anciãos, colocando-se mesmo em papel de autonomia na tragédia. Para justificar-se acusa o marido de hybris, pela opulência de seu reinado e pelo sacrifício da filha e o
Cl. Não me envergonho de contradizer
coro de não ter enxergado isso. Existe um
muitas palavras antes oportunas.
enfrentamento com o mesmo e por isso a
Firo-o duas vezes e com dois gemidos
acusação de soberba e arrogância em relação à rainha.
20
Esposa de Odisseu, personagem da Odisseia de
Homero, considerada pelos gregos como um modelo de esposa.
O coro lamenta a morte do rei pela mão de uma mulher, com certeza uma
302
Lisiana Lawson Terra da Silva Jussemar Weiss Gonçalves
morte desonrosa para um guerreiro 21. A
Tanto que Clitemnestra coloca que o morto
morte de um guerreiro é sempre vista pela
irá encontrar-se com a filha Ifigênia, em
cidade como um momento especial de
alusão ao sacrifício da filha. “C. Pêgo quem
honrarias, mas para isso ela deve obedecer
pega, quem mata paga. Detendo o trono de
a certos preceitos, o principal deles era
Zeus, sofre quem faz: essa é a lei”
morrer em combate, mas o fato de ser
(ÉSQUILO, 2004, p.212, 213, v1562). A
morto por uma mulher é um completo
rainha para justificar seus atos perante o
desvio. “C. Por uma mulher perdeu a vida”
coro deixa claro o sentido de vingança, de
(ÉSQUILO, 2004, p.205, v1454). As honras
olho por olho, dente por dente, que ela
fúnebres eram parte essencial da cultura
defende. Essa atitude mostra que foi urdido
ateniense e a esposa era a responsável
um plano de vingança, dissimulado durante
pelo sepultamento e pelo ato de carpir,
muito tempo através da palavra, mas que,
chorar o morto. Junto a isso, cidadãos
enfim, vem à tona. La reina, em cambio, intenta mostrarse estable y
escolhidos por seu destaque na cidade
reflexiva tanto em sus atos como em sus palabras.
realizavam discursos em honra a polis e ao
Pero, em rigor, ambas nociones enunciadas por la
morto. Mas no caso de Agamêmnon o coro
esposa de Agamêmnon resultan ambíguas. Sus acciones y sus dichos muestran a um ser capaz de
manifesta a preocupação de que ele não
urdir
poderá ser enterrado com todas as honras.
plan em
función de um
objetivo
estrictamente personal, la venganza. (GALLEGO,
C. (...) Quem o sepultará? Quem o carpirá?
2000, p.73)
Ousarás fazê-lo: massacradora do próprio marido, pranteá-lo
um
No
último
episódio
da
tragédia
e sem justiça pelas grandes proezas
Egisto, o amante da rainha, em diálogo
celebrar o espírito ingrata graça?
com
Quem ao proferir com lágrimas elogio fúnebre ao homem divino
o
coro,
descreve
a
morte
de
Agamêmnon e revela que o ardil foi de
trabalhará com verdade cordial? (ÉSQUILO, 2004,
mulher. A rainha revela-se ardilosa e
p.211, v1541-1550)
astuta,
A maldição dos atreus é relembrada pela rainha várias vezes ao longo do diálogo com o coro no sentido de justiça.
através
da
fala
desses
dois
dialogantes, Egisto e o coro. Entre os dois há troca de palavras desafiadoras e acusações mútuas, quando, então a rainha intervém e de forma conciliadora encerra a
21
Nesse ponto pode-se fazer uma comparação com a
tragédia As Traquínias de Sófocles onde a personagem
discussão, exercendo mais uma vez seu
Dejanira mata seu esposo Hércules, pois ele leva para
poder através da palavra. Essa situação
sua casa outra mulher. Ela também pode ser acusada de
aos olhos do coro é uma completa
não feminina, pois mata-se de maneira pouco usual para as mulheres, com uma espada.
303
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
desmedida, uma mulher exercer um poder
de quem sabe qual é o problema e como
de forma quase tirânica.
resolve-lo; depois ela aparece se utilizando
Considerações Finais No final da tragédia fica explícito
da Pheito, a persuasão, que é o meio pelo qual a cidadania articula suas decisões na
duas formas de expressar a realidade do
assembleia.
papel feminino na pólis ateniense. O coro
instrumentos a partir de um problema
por um lado, representando a cidade onde
feminino, isto é, proteger sua prole, vingar
a mulher tinha um lugar bem específico e a
sua filha morta. É a família, tal como em
figura do herói representado pela rainha
Antígona que a obriga a agir. Seu problema
Clitemnestra que expressa um desvio à
não é usurpar o trono de Agamêmnon, mas
norma. Como coloca Jaa Torrano, o ponto
vingar-se, aliás um forma feminina de
de vista da verdade do coro é do humano,
resolver os problemas. Quando o coro
o ponto de vista da verdade heroica, nesse
nomeia a rainha de Basileia, viril, que sabe
caso o ponto de vista da rainha é de
usar a pheitó e que suas ações são
caráter numinoso 22, pois ela apresenta a
baseadas em sonhos e delírios, ele está
sua ação homicida como obra da justiça
mostrando que a postura mental da mulher
divina (Torrano, 1997).
é de outra natureza, mais fluida, menos
A mulher como representante de
controlada,
Mas
ela
desmedida,
utiliza
e,
esses
portanto
uma tradição, do mito e do divino, é a partir
contrária à visão de Ésquilo de ação
desse ponto de vista que a personagem de
pública. Apesar de sua postura “polites”,
Clitemnestra recita suas falas na tragédia e
isto é, defendendo a cultura da isonomia,
enfrenta tanto o rei como o coro. Esse
nota-se que a tragédia de Ésquilo, permite
enfrentamento se dá através do uso da
um
palavra, a rainha usa a arte da persuasão,
transparecer ambiguidades e contradições
pheitó,
que vão além das aparências sociais
para
impor
seu
pensamento
permanentemente interligado com o divino.
olhar
sobre
a
mulher,
deixa
gregas do século V A.C.
A rainha usa, a partir de uma artimanha
Ésquilo nos mostra através dos
feminina, o ardil, uma série de recursos que
diálogos de Agamêmnon dois pontos de
caracterizam a ação masculina na cidade:
vista divergentes e que se enfrentam, o da
primeiramente ela age como um Basileu, já
rainha e o do coro. O ponto de vista da
que o coro reconhece nela uma atitude viril,
rainha, que age como se fosse Basileu, toma decisões. Mas isto a partir de um
22
De caráter divino.
ponto de substrato mental feminino, isto é,
304
Lisiana Lawson Terra da Silva Jussemar Weiss Gonçalves
a méthis. O outro que o coro revela, mostra
tempo em que reafirma a ação masculina
a atitude da cidade diante de uma mulher
do cidadão, isto é, ser aquele que“age”.
viril e revela como ela deve ser, ao mesmo
Referências: CHARTIER,
Roger. O
Mundo
como
Representação. 1991.
Disponível
em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141991000100010&script=sci_arttext>. Acesso em: 08 abr. 2014 ESCHYLE. Orestie. Paris: Belle Lettres, 1962. ÉSQUILO; TORRANO, Jaa (Org.). Agamêmnon: Orestéia I. São Paulo: Iluminuras, 2004. GALLEGO, Julían. Figuras de la Tiranía, lo feminino y lo masculino en la Orestía de Esquilo. Studia Historica . Historia Antigua, Salamanca, v. 18, p.1-26, 2000. Anual. Disponível
em:
<http://campus.usal.es/~revistas_trabajo/index.php/0213-
2052/article/view/6211>. Acesso em: 10 jun. 2014. GRIMAL, Pierre. O Teatro Antigo. Lisboa: Edições 70, 1978. HANDMAN, Marie-Elisabeth. La Violence et la Ruse: hommes et femmes dans un village grec. Paris: Edisud, 1983. LEDUC, Claudine. Como dá-la em casamento?: a noiva no mundo grego (séculos IX-IV A.C.). In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História das Mulheres: A Antiguidade. 470. ed. Porto: Afrontamento, 1990. p. 277-347. LORAUX, Nicole. Maneiras Trágicas de Matar uma Mulher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. LORAUX, Nicole. The Children of Athena: Athenian ideas about citizenship & the division between the sexes. New Jersey: Princeton University Press, 1994. MATTÉI, Jean-françois. Le Sens de la Démesure: hubris et diké. Paris: Sulliver, 2009. MOSSE, Claude. La Mujer en la Grecia Clásica. Madrid: Nerea, 1990. MOSSÉ, Claude. Dicionário da Civilização Grega. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. PANTEL, Pauline Schmitt. Aithra et Pandora: Femmes, Genre et Cité dans la Grèce Classique. Paris: L'harmattan, 2009. SUÁREZ, Domingo Plácido. La Presencia de la Mujer Griega en la Sociedad: Democracia y Tragedia. Studia Historica . Historia Antigua, Salamanca, v. 18, n. 18, p.49-63, ago. 2000.
305
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Anual.
Disponível
em:
<http://revistas.usal.es/index.php/0213-2052/article/view/6209>.
Acesso em: 22 jul. 2014. TORRANO, Jaa. Mito e Violência na Tragédia Agamêmnon de Ésquilo. Letras
Clássicas, São
Paulo,
v.
1,
n.
1,
p.29-37,
jan.
1997.
Anual.
Disponível
em:<http://www.revistas.fflch.usp.br/letrasclassicas/article/view/663>. Acesso em: 29 jul. 2014. VERNANT, Jean-Pierre; DETIENNE, Marcel. Les Ruses de L'intelligence: La métis des Grecs. Paris: Flammarion, 1974. VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e Tragédia na Grécia Antiga. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. VIEIRA, Trajano (Org.). Antígone de Sófocles. São Paulo: Perspectiva, 2009.
306
PERSUASÃO: INDEPENDÊNCIA E CENTRALIZAÇÃO DE GUILHERME, O CONQUISTADOR, NAS FONTES ANGLO-NORMANDAS DO SÉCULO XI Lúcio Carlos Ferrarese 1 Jaime Estevão dos Reis 2 (Orientador) Resumo: Este trabalho tem como princípio a análise das fontes anglo-normandas do século XI referentes à figura de Guilherme da Normandia e seus seguidores, nos eventos anteriores, contemporâneos e posteriores à Batalha de Hastings de 1066. Essas fontes são a Tapeçaria de Bayeux e a crônica Gesta Guillelmi Ducis Normannorum et Regis
Anglorum, ou História de Guilherme, Duque dos Normandos e Rei dos Ingleses, escrita pelo capelão de Guilherme da Normandia, chamado Guilherme de Poitiers.A primeira se trata de uma narrativa imagética feita em bordado, enquanto a segunda é uma narrativa discursiva, ambas contemporâneas à vida dos retratados no século XI. Ao procedermos analise destas fontes é possível notar o aparecimento de vários indivíduos, ligados à narrativa. Essa singularização remete a uma sociedade na qual a mais importante relação política e social é o juramento da suserania e da vassalagem, feito de pessoa para pessoa, o que transforma as relações sociais entre esses senhores em um jogo político de interesses individuais. Palavras-chave:Idade Média, Guilherme, Política.
1PPH/UEM
2
UEM
307
Lúcio Carlos Ferrarese
A figura do duque Guilherme da
autores destas procuram enaltecê-lo como
Normandia, líder político e militar do século
seguidor de comportamentos cavaleirescos
XI, possui grande relevância histórica para
ilibados e incontestáveis. Da mesma forma,
o contexto social e político da Inglaterra
sua reputação como orador e persuasivo é
após o ano de 1066. Cognominado “o
retratada, visto esta ser uma habilidade
Conquistador” por invadir e conquistar os
imprescindível para se lidar com vassalos
ingleses na Batalha de Hastings, esse
que, muitas vezes, procuram estabelecer
senhor da guerra cristão e vassalo do rei
sua própria identidade e independência. A
francês
análise da presente pesquisa é fundada na
acabaria
por
reestruturar
as
relações feudo-vassálicas britânicas. Ao
observação
de
duas
destas
fontes,
adquirir as terras daquele reino em uma
contemporâneas aos eventos da Batalha
única geração, diferentemente da anterior
de Hastings do ano de 1066, criadas ou
história política da Inglaterra de lenta
modificadas após o desfecho desta.
absorção e várias invasões diferentes, ele
A primeira das fontes analisadas é a
pode centralizá-la ao redor de sua figura.
Tapeçaria de Bayeux. Esta é um longo
Entretanto, como suserano e conquistador,
trabalho em linho e lã, com cerca de 70
líder de vários vassalos, ele também possui
metros de comprimento por ½ metro de
a obrigação juramental de redistribuí-la a
largura, cujas linhas possuem cores como
seus seguidores, os quais permitiram sua
amarelo, marrom-amarelado, verde claro e
conquista e a quem ele deve apetecer.
escuro,
verde-azulado,
azul
e
cinza
Essa tensão entre os desejos de
(HICKS, 2007, p. 43-44). Em toda sua
unificação e centralização do indivíduo
extensão, apresenta imagens narrando
Guilherme e os desejos pessoais de seus
episódios da vida de Guilherme e de seu
seguidores marca também a trajetória
rival Haroldo Godwinson, imagens estas
deste homem. Líder político da região
por vezes acompanhadas de frases em
noroeste da França, ele é nominalmente
latim.
vassalo do rei francês, porém seu poderio é
Guilherme e de como este se tornou rei da
tal que ele exerce pleno domínio de suas
Inglaterra, em especial sua vitória na
terras,
Batalha de Hastings de 1066, ela se origina
recebendo
continental.
Sua
pouca posição
influência política
é
de
Narrando
um
ponto
parte
de
da
vista
história
de
obviamente
resultado de sua capacidade militar e sua
normando. A história se inicia no momento
reputação como cavaleiro é retratada nas
em que Haroldo Godwinson viaja para a
fontes como invejável, sendo que os
Normandia,
passandopelas
interações
308
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
amigáveis de Guilherme e Haroldo, a
a exaltar os seus feitos, comparando-o a
coroação contestada deste último e a luta
imperadores e guerreiros valorosos do
de ambos pelo reino inglês, se estendendo
conhecimento medievo da Antiguidade e de
até a derrota inglesano campo de batalha.
lendas e mitos.Diferentemente do feitio da
Sem autoria discernível, tanto o feitio
Tapeçaria
quanto
Guilherme de Poitiers tem seu autor
o
patrono
desta
fonte
são
desconhecidos.
de
Bayeux,
a
crônica
de
claramente definido. Este é o capelão de
A Tapeçaria apresenta a conquista
Guilherme, o Conquistador, um normando
de Guilherme como não apenas justificável,
nascido em Préaux, e que veio de uma
como sim o pleno restabelecimento da
juventude onde atuou como guerreiro.Sua
ordem social. Seu público alvo é não
posição como capelão de Guilherme faz
apenas Guilherme, mas também uma
com que possa entrar em contato com
exaltação de seus cavaleiros normandos, e
variados tipos de testemunhas dentro de
o convencimentode seus novos súditos
sua corte, e seu passado como guerreiro
ingleses de que a conquista é um desígnio
faz com que compreenda ao menos as
divino e uma punição pela traição vassálica
circunstâncias nas quais os combatentes e
de Haroldo (LEWIS, 1999, p. 22). A
o exército normando atuam durante a
narrativa faz uso de várias táticas para
guerra, fazendo-o observar as campanhas
isso, desde a afirmação direta através de
e ações de Guilherme a partir de um ponto
texto e imagem, até as representações das
diferenciado do de um escritor eclesiástico
fábulas e criaturas no cabeçalho e rodapé
que nunca tivesse experimentado a vida
da história, e passando por momentos de
militar.
ausência de explicações, de “silêncio”, que
A obra de Guilherme de Poitiers
os contemporâneos e conhecedores do
inicia sua narração com a morte do rei
contexto
Cnut, em 1035, até o assassinato de um
compreenderiam
tacitamente
(LEWIS, 1999, p. 32). Igualmente
dos vassalos de Guilherme, o Conde Copsi contemporânea
de
da Northumbria, em 1067. As descrições
Guilherme o Conquistador é a Gesta
referentes à Batalha de Hastings podem
Guillelmi Ducis Normannorum et Regis
ser
Anglorum, ou História de Guilherme, Duque
semelhantes aos da Tapeçaria de Bayeux,
dos Normandos e Rei dos Ingleses. Esta se
começando por uma descrição da condição
trata de uma crônica narrativa, que busca
de Eduardo o Confessor, a viagem de
apresentar a vida de Guilherme de maneira
Haroldo Godwinson até a Normandia, seu
já
percebidas
em
momentos
309
Lúcio Carlos Ferrarese
resgate e sua participação na guerra contra
conflito
com
o
exército
os bretões, seu juramento, a morte de
Godwinson, vencendo-o.
de
Haroldo
Eduardo e a coroação de Haroldo, as
Guilherme é então coroado em
tentativas diplomáticas e a preparação da
Londres no Natal de 1066 e a atuação
guerra, até afinal a batalha em si, onde
normanda
Haroldo finalmente é morto.
Inglaterra, sobretudo no que se refere às
Referentes
aos
mudará
os
destinos
da
acontecimentos
relações feudo-vassálicas, submetidas a
principais a que estas fontes se referem,
uma política mais centralizadora por parte
estas apresentam a conquista da Inglaterra
do rei. Em última instância, todas as terras
feita pelos normandos no ano de 1066. A
do reino pertencem ao monarca (BRIGGS,
Normandia e a Inglaterra do século XI são
1998, p. 64), o que facilitará a centralização
geograficamente
do
e
politicamente
muito
poder
dos
monarcas
ingleses
próximas uma da outra, visto que o rei
posteriores e diferenciará a Inglaterra da
Eduardo o Confessor (1004-1066), rei da
situação
Inglaterra, tinha como ascendentes os
Entretanto,
duques da Normandia por parte de mãe.
Guilherme tem de lidar com seus vassalos,
Ambas estas regiões têm um modelo de
lidar com seus desejos e anseios. Sua
suserania-vassalagem cujo princípio é a
vitória também é uma vitória da Cavalaria,
maior independência dos vassalos, de tal
tanto
forma que da morte de Eduardo, os lordes
armado, e ambas as fontes apresentam
ingleses reúnem-se em conselho para
episódios e personagens que exaltam esse
eleger um dos seus, Haroldo Godwinson,
conceito,
como rei apesar de não possuir nenhum
personagem principal que é Guilherme.
feudo-vassálica até
como
por
esta
instituição
vezes
continental.
vitória
triunfante
quanto
à
grupo
revelia
do
parentesco. Essa decisão é contestada
Na Tapeçaria de Bayeux, tendo em
pelo parente mais próximo de Eduardo,
vista a forma como as imagens e frases
Guilherme da Normandia, e o conflito pela
são representadas, a possibilidade de
coroa se inicia. Guilherme então prepara
observação destas exaltações pode ser um
suas tropas para cruzar o Canal da
reflexo de uma projeção posterior, visto
Mancha, entrando em contato com seus
desconhecermos as intenções dos autores.
aliados e vassalos (DEVRIES, 2009, p. 19-
Entretanto, considerando-se o contexto do
21), e acaba por desembarcar perto de
século XI, é possível verificar passagens
Hastings, onde ainda em 1066 entra em
onde tal celebração da cavalaria é feita, por vezes mesmo à efeitos cômicos. Desde o
310
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
início da Tapeçria vemos a união dos
os já mencionados Guy e Odo, bem como
conceitos de cavaleiros e de suserania-
Wadard, Vital, e uma figura apontando para
vassalagem, visto que a primeira figura
Guilherme durante um momento crucial da
apresentada, Haroldo Godwinson, é tanto
batalha,
vassalo do poderoso rei inglês quanto um
perdido, mas presume-se ser o vassalo de
poderoso
só
Guilherme, conde Eustacio da Bolonha
(GRAPE, 1994, p. 91-93). Deveras, figuras
(GRAPE, 1994, p. 161). Finalmente, em
posteriores de autoridade sempre estão
outros momentos ainda temos a atuação
acompanhadas de cavalos ou montadas,
simplesmente da própria cavalaria, não
como o Conde Guy da Normandia, o Bispo
nomeada, porém agindo impetuosamente
Odo de Bayeux, e o próprio Duque
mesmo à revelia das palavras de seu líder
Guilherme em batalha. A nomeação de
Guilherme, quando fazem uma investida
Guy, apesar de desempenhar um papel
enquanto o duque normando está a proferir
comparativamente
um discurso à suas costas (GRAPE, 1994,
cavaleiro
nobre
menor
por
na
si
história,
demonstra ainda sim sua capacidade de
cujo
nome
foi
parcialmente
p. 150-154).
influência, o bastante para ser retratado,
Quanto à crônica de Guilherme de
tendo de ser tutorado por Guilherme quanto
Poitiers, apesar da intenção autoral de
ao que fazer com o hóspede Haroldo
elevar
(GRAPE, 1994, p. 104-105).
vassalos são ainda mais proeminentes na
Outros
ações,
a
normando. Por exemplo, a atuação de
importância e união do cavaleirismo e dos
Rivoallon, senhor do castelo nas terras
juramentos sagrados, feitos durante as
aonde Conan da Bretanha e Guilherme da
promessas dos suseranos e dos vassalos.
Normandia iriam se degladiar (POITIERS,
Guilherme não só ordena Haroldo como um
1973, p. 36-37) é veemente ao pedir a seu
cavaleiro na tradição continental como
suserano ducal para que leve o combate
também obtêm dele juramentos para que
para outro local. Os feitos e nomes de
este ajude o normando a possuir a coroa
vários
inglesa por direito (GRAPE, 1994, p. 115;
mencionados, porém a mais emblemática
117).
vassalos
passagem da importância dos vassalos
importantes, cuja participação na história
cavaleirescos de Guilherme se refere ao
por vezes aparenta ser incidental, são
convencimento destes para que invadam a
claramente nomeados na Tapeçaria, como
Inglaterra:
Em
outros
momentos,
ações
senhores
são
do
os
demonstram
outros
das
suas
da
também
determinação
e
importantes
narrativa
pontos
Guilherme
líder
também
311
Lúcio Carlos Ferrarese
“Duke
his
seguem cegamente, utilizando de sua
supporters, and then decided to avenge this
diplomacia, ameaças, astúcia e promessas
William
sought
the
advice
of
insult and lay claim to his inheritance by force of arms. It is true that quite a few of his leaders did their utmost to dissuade him from it, as an enterprise at once too difficult and far beyond the natural resources of Normandy. In addition to its bishops and abbots, Normandy had among its
para angariar a força armada e o apoio necessário para a invasão da Inglaterra. Deveras,
quando
durante
a
preparação Guilherme consegue capturar
advisers at that time a number of outstanding
um espião de Haroldo, que tinha vistoriado
laymen, who added great distinction and renown
as forças invasoras, e o liberta sem temor
to its council-meetings: Robert, Count of Mortain; Robert, Count of Eu, the brother of Hugh, Bishop
algum, alguns de seus vassalos novamente
of Lisieux, […]; Richard, Count of Evreux, the son
expressam
of Archbishop Robert; Roger of Beaumont; Roger
paradigmático que Guilherme tem que
of Montgomery; William FitzOsbern: and Hugh the Viscount. Thanks to the wisdom and energy
temor
pela
campanha.
É
reafirmar seus votos individuais diante de
of these men, she had no occasion to fear for
todos para convencer esses indivíduos a
her safety. With such men to help her, the
manterem-se em curso:
Republic of Rome would have had no need for two hundred senators, even supposing that in our days it had still retained its erstwhile power. What is more, in all their deliberations, as I myself know full well, these men recognized the wisdom of their lawful prince, as if, by some divine inspiration, he knew in advance what was best to be done and what was better left undone. ‘To those who act according to His dictates, God gives wisdom’, as someone has said who knew His will. From his childhood onwards Duke William has been God-fearing in all his behavior. When he has given an order no-one has disobeyed it, unless there were some cogent reason for doing so” (POITIERS, 1973, p. 38).
Guilherme, cercado de tão augustos senhores, deve fazer com que sua decisão seja aceita, e procede a convencê-los um a um quando falha em convencê-los em concílio (ABBOT, 2009, p. 175). Indispostos a fazerem parte de uma empresa a qual temem ser infrutífera, Guilherme tem de lidar com esses vassalos que não o
“The duke restored their courage by making the following speech. ‘We all know about Harold’s military skill,’ he said. ‘If it fills us with fear, it also raises our expectations. He is using his wealth to no purpose. He may spend his money, but he is powerless to bolster up his throne. He lacks the daring and the strength of purpose to offer even the smallest portion of what those of my faction are prepared to promise. Those possessions, which are really mine, but which he pretends to be his, I hereby offer to you, and they will be distributed as I think fit. The man who is in a position to give away not only his own property but also the land which the enemy actually occupies cannot fail to win the day. […] Wars are won by courage, not mere force of numbers. What is more, Harold will be fighting to retain what he has stolen. We, on the other hand, will be striving to gain what we have accepted as a gift, what we have bought by services rendered. This firm conviction of the strength of our cause must set aside all sense of danger: it will ensure our happy triumph, proclaim our honour to the world and make memorable our name.’ ” (POITIERS, 1973, p. 41).
312
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Defesa de uma causa justa, riquezas
De maneira similar, o pensamento
a serem conquistadas e apelo ao ânimo
sócio-político
individual à piedade e também à ganância
relações homem-a-homem. O advento da
desses senhores medievais. Esses fatores
suserania-vassalagem faz com que as
demonstram a visão que os criadores das
promessas sejam o ritual pelo qual os bens
fontes
e os serviços são prestados: o suserano
anglo-normandas
tinham
dos
compõem. Embora pertençam a um corpo
individuo, e o vassalo promete servir
militar e político que possui similaridades,
àquele homem. O selo dessa aliança é o
são as ações individuais, não apenas das
recipiente do feudo colocar as mãos,
personagens principais, mas também das
unidas, dentro das mãos do doador, olhá-lo
secundárias, que determinam o papel
nos olhos e proferir suas palavras, um ato
desempenhado na história. Mesmo quando
completamente distante de ser impessoal.
não
são
Quando um dos lados falece, a promessa
tratados como indivíduos, unidos em busca
tem de ser refeita, seja explícita ou
de um objetivo comum.
implicitamente.
assim
Isso é reflexo também de suas
para
as
concede
ainda
terra
perpassa
indivíduos, mas não dos grupos que os
mencionados,
a
também
determinado
Por fim, isso também é reflexo do
sociedades, onde todas as formas de
pensamento
interação são pensadas pelo indivíduo.
Diferentemente de uma noção antiga de
Dentro do pensamento da cavalaria no
que todo o povo de um senhor deve se
século XI, não é o ataque em uma unidade
converter – como o fizera o Império
compacta, uniforme, que ganha a batalha,
Romano de Constantino, e os Francos de
mas sim as ações valorosas de cavaleiros
Clóvis I - a salvação da alma passa cada
nomeados, homens estes guiados por um
vez mais a ser escrutínio do indivíduo,
código de conduta deferente à tradição
evidenciado por suas ações. Numa Europa
guerreira
ao
cada vez mais cristianizada, a expansão do
cristianismo (KEEN, 2005, p. 13). A honra
cristianismo faz com que os conflitos
se ganha para si, não para seu pelotão,
internos não sejam mais uma luta entre o
quando mais este sendo famoso por ser
povo escolhido por Deus contra seus
uma coleção de cavaleiros individuais
inimigos, como foram os bárbaros e os
valorosos, como os 12 pares de Carlos
vikings. Agora que a maioria dos homens é
Magno
ao menos nominalmente cristã, deve-se
dos
ou
Redonda.
os
antepassados
cavaleiros
da
e
Távola
religioso
do
século
XI.
atentar para que não se desviem do
313
Lúcio Carlos Ferrarese
caminho da salvação confiado à Igreja. Os
apresentam uma maior atenção aos atos
indivíduos então são exaltados por suas
dos
virtudes próprias, ou condenados por suas
posteridade. Esse é o reflexo de uma
ações intransferíveis, tal qual em ambas as
percepção da história como consequência
fontes Guilherme é visto como instrumento
dos feitos de cada ser humano, atuador da
divino para a conquista da Inglaterra,
história, espelho de uma sociedade que vê
enquanto Haroldo é julgado por suas
um Deus que se encarna para levar adiante
ações,
um
seu plano divino. Tal cosmovisão abarcará
perjuro
todos os planos da existência – não são
que
quebrador
o
de
apresentam promessas,
como um
mentiroso que deve pagar por tal pecado. Neste momento de transição do século XI, a Tapeçaria de Bayeux e a crônica
de
Guilherme
de
indivíduos,
nomeando-os
para
a
“os”, mas “o cavaleiro”, “o rei”, “o homem”, remetendo ultima ratio a um único senhor, Deus.
Poitiers
Referências: ABBOTT, J. History of William the conqueror:markers of history. New York: Cosimo Classics, 2009. BARTHÉLEMY, Dominique. A cavalaria:Da Germânia antiga à França do século XII. Tradução: Néri de Barros Almeida e Carolina Gual da Silva. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2010. BLOCH, Marc. A sociedade feudal.Lisboa: Edições 70, 1987. BRIDGEFORD, Andrew. 1066: the hidden history in the Bayeux Tapestry.New York: Walker & Company, 2004. CARDINI, Franco. O guerreiro e o cavaleiro. In: LE GOFF, Jacques. O Homem
Medieval.Lisboa: Editorial Presença, 1989. DEVRIES, Kelly et al. Batalhas medievais 1000 – 1500:Conflitos que marcaram uma época e mudaram a história do mundo. São Paulo: M. Books do Brasil Editora Ltda, 2009. DUBY, Georges. A sociedade cavaleiresca. São Paulo: Martins Fontes, 1989. DUBY, Georges. O domingo de Bouvines:27 de Julho de 1214. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. DU PUY DE CLINCHAMPS, Philippe. História breve da cavalaria.Lisboa: Editorial Verbo, 1965.
314
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
FLECKENSTEIN, Josef. La caballería y el mundo caballeresco.Madrid: Siglo Veintiuno, 2006. FLORI, Jean. A cavalaria:a origem dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo: Madras, 2005. GRAPE, Wolfgang. The Bayeux Tapestry:monument to a Norman triumph. Translated from German by David Britt.Prestel-Verlag: Munich/New York, 1994. GRAVETT, Christopher. Hastings 1066:el fin de la Inglaterra Sajona. Madrid: Ediciones del Prado, 1994. GRAVETT, Christopher. Norman knight:AD 950 - 1204. Série Warrior, Volume I. London: Osprey Publishing Ltd, 1993. KEEN, Maurice. La caballería. Tradução de Elvira de Riquer e Isabel de Riquer. Barcelona: Ariel, 2008. KLEINSCHMIDT, Harald. Comprender la Edad Media:la transformación de ideas y actitudes en el mundo medieval. Madrid: Akal, 2009. LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média:tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa: Estampa, 1993. LEWIS, Suzanne. The rhetoric of power in the Bayeux Tapestry. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. MCNULTY, John Bard. Visual meaning in the Bayeux Tapestry: problems and solutions when picturing history. Wales: Edwin Mellen Press, 2003. POITIERS, William of. The History of William, Duke of the Normans and King of the English. In: THORPE, Lewis. The Bayeux Tapestry and the Norman invasion.London: The Folio Society, 1973, p. 33-55. PRESTAGE, Edgar (Ed.). A cavalaria medieval:ensaios sobre a significação histórica e influência civilizadora do ideal cavaleiresco. Porto: Livraria Civilização, s. d. SAUL, Nigel. The Oxford illustrated history of medieval England.Oxford: Oxford University Press, 1997. THORPE, Lewis. The Bayeux Tapestry and the Norman invasion. London: The Folio Society, 1973. VERBRUGGEN, J. F. The Art of Warfare in Western Europe During the Middle Ages: From the Eighth Century to 1340. Suffolk, Inglaterra: The Boydell Press, 1997.
315
O DISCURSO DE XENOFONTE E A REPRESENTAÇÃO DE AGESILAU II, NO SÉCULO IV A.C. Luis Filipe Bantim de Assumpção 1 Resumo: Uma análise aprofundada sobre as sociedades helênicas, do período Clássico, não pode se isentar de tangenciar os escritos de Xenofonte. A contribuição deste autor é de suma importância, em medida que ele vivenciou as guerras do Peloponeso, assim como experimentou os seus resultados de tal confronto frente às póleis da Hélade. No entanto, Xenofonte nos chama a atenção por ser um ateniense admirador de Esparta, cujos trabalhos por vezes elogiaram a constituição e os feitos dos espartanos de seu tempo. Para essa comunicação iremos nos enfocar sobre a representação que Xenofonte construiu do basileuAgesilau II de Esparta, onde o escritor euforizou as atitudes políticomilitares desse governante, como um exemplo de conduta e digno de ser seguido. Sendo assim, objetivamos por investigar a obra e o contexto social de Xenofonte, em conformidade com as suas possíveis intencionalidades, as quais teriam culminado neste particular elogio Agesilau II. Palavras-chave:Xenofonte; Esparta; Discurso.
1Prof.
Ms. NEA/UERJ
316
Luis Filipe Bantim de Assumpção
O período Clássico da Hélade foi marcado
transformações
período Clássico, e os seus opositores por
políticas, sociais, econômicas e culturais
vezes se utilizavam das vias literárias para
em, praticamente, todas as sociedades que
manifestarem as suas insatisfações com
circundavam o Mar Egeu. No entanto,
esta forma de governo.
dentre
por
as
destacar
intensas
partilhado por todos os atenienses do
póleis
helênicas
podemos
Atenas,
cujas
inovações
Contudo,
democracia
representação
a
como
um
regime
da
político
marcaram uma época, fazendo com que os
equilibrado e dotado de ampla aceitação
historiadores modernos a tomassem como
entre
um marco da Antiguidade. De fato, temos
historiografia por vezes sugeriu, pode ser
que concordar que a democracia, enquanto
questionada
forma de governo, representou a transição
documentação literária. Dialogando com
de um habitusaristocrático predominante
Alain Duplouy, este nos chama a atenção
entre os helenos para a ampliação dos
para
direitos de participação política a todos
representações
aqueles identificados como cidadãos.
constituições políades, pois, as mesmas
Todavia, a noção de “liberdade”
os
os
atenienses, a
partir
cuidados
tal dos
como
a
indícios
da
necessários
documentais
as das
foram construídas para corresponderem a
associada aos pressupostos democráticos,
um
bem como a sua valorização, teria sido o
atrelado ao contexto histórico em que
resultado de uma apropriação promovida
foram desenvolvidas. Sendo assim, ao
por
indagarmos
políticos
e
intelectuais
europeus
interesse
a
particular
diretamente
documentação
minimizar
modernos, na tentativa de consolidarem os
podemos
seus interesses político-sociais com base
historiográficos, e assim percebermos a
na Antiguidade. Desta maneira, o uso da
especificidade dos regimes políticos e dos
tradição e das práticas relacionadas ao
discursos documentais que nos chegaram,
Mundo Antigo seria capaz de legitimar os
em concomitância com os interesses de
governos que emergiam na Europa – como
cada polis (DUPLOUY, 2006, p.12-13).
uma possibilidade ao Antigo Regime – e as
Seguindo os pressupostos de Duplouy
tendências econômicas que prezavam pela
podemos enfatizar que ao analisarmos o
liberdade comercial até então restrita aos
discurso de um autor clássico específico
“homens do povo” (ASSUMPÇÃO, 2014,
podemos
p.72-73). Entretanto, devemos destacar
política em que o mesmo se encontrava,
que a democracia não foi um ideal
em conformidade com a sua sociedade.
obter
os
literária
indícios
generalismos
da
realidade
317
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Mediante o exposto somos capazes de
Já em “As Rendas”, Xenofonte havia
iniciar a nossa investigação acerca da
recuperado a sua cidadania e estaria
representação do basileu lacedemônio
escrevendo no final de sua vida, período no
Agesilau II, no discurso do ateniense
qual Atenas almejava a recuperação de
Xenofonte. Para tanto, torna-se necessário
sua
associarmos
(TUÑON, 2008, p.133-134). O referido
a
figura
de
Xenofonte,
posição
hegemônica
de
outrora
enquanto locutor, e as suas possíveis
pensador
motivações ao construir uma imagem
maneira de administrar a pólis ateniense
euforizada
sem que os seus cidadãos precisassem da
de
Agesilau,
no
contexto
político-social da Atenas do século IV a.C.
estaria
autoridade
Xenofonte foi um dos pensadores
demais
que
sugerindo
mantiveram
helenos
a
melhor
sobre
os
As
(XENOFONTE,
atenienses que mais produziu escritos de
Rendas, 1.1-2). Com isso, verificamos que
matriz literária. Do mesmo modo, podemos
o
observar que as obras de Xenofonte
transformado
tendem a nos fornecer indícios do contexto
circunstâncias históricas, onde o autor
histórico em que o autor se encontrava.
abandona uma perspectiva de oposição a
Podemos citar o caso da “Constituição dos
Atenas em medida que a sua relação com
Lacedemônios” e o “As Rendas”. No
a pátria ateniense foi restaurada e o
primeiro temos um locutor dedicado a
mesmo já não se encontrava sob a
exaltar a constituição de Esparta – em
proteção de Esparta.
grande
parte
tradicionalismo,
da
obra
que
–
ao
pelo
prezar
discurso
de
Xenofonte
em
das
Entretanto, o nosso enfoque no
pela
presente artigo é a representação que Xenofonte
elaborou
fez desta a pólis mais poderosa da Hélade
lacedemônio
Agesilau
discurso
decorrência
se
seu
obediência e a disciplina de seus cidadãos (XENOFONTE,
teria
Cons. Lac., 1.1-2). O
basileu
do II,
no
elogio
intitulado “Agesilau”. Nesta obra, podemos
ser
notar que o discurso do autor ateniense
à
manifesta um tom de defesa junto às ações
democracia ateniense que o havia exilado,
político-militares de Agesilau, mas também
mas também um aviso aos seus pares para
uma possível justificativa de suas próprias
os perigos oriundos dessa forma de
atitudes para com a sociedade de Atenas,
governo, no contexto histórico pós-guerras
no final do século V a.C.. Todavia,
do Peloponeso.
devemos “lançar luz” à figura de Xenofonte,
de
compreendido
Xenofonte como
poderia
uma
crítica
318
Luis Filipe Bantim de Assumpção
para daí obtermos os indícios necessários
circundante
para comprovar a nossa argumentação.
Jaeger pontua que o fim das Guerras do
Conjeturando a partir da obra de William
Higgins,
p.1215).
Peloponeso teria marcado a vida de Xenofonte, obrigando-o a tomar decisões
Xenofonte, enquanto ateniense e escritor,
importantes, ainda que fosse relativamente
reside no lugar que este ocupava em
jovem (JAEGER, 1995, p.1216). George
Atenas, na segunda metade do século V
Cawkwell
a.C. (HIGGINS, 1977, p.128). A assertiva
considerações dos pesquisadores citados
de Higgins pôde ser complementada por
acima. Nos dizeres de Cawkwell, as
MosesFinley, ao declarar que Xenofonte
escolhas
de
teria nascido nos primeiros anos das
associadas
ao
Guerras do Peloponeso, em uma família
pertencia, mas também a dura realidade
ateniense com recursos suficientes para
oriunda dos longos anos das Guerras do
conferir-lhe uma educação aprimorada. Os
Peloponeso. O referido escritor ateniense
traços
se
integrou o segmento censitário dos hippeis 2
manifestado em seu interesse por filosofia,
atenienses, composto por homens com
equitação e técnicas militares (FINLEY,
recursos suficientes para arcarem com as
1959, p.381). Por sua vez, E. Marchant
despesas
argumentou que as evidências históricas
cavalos, mas também a possibilidade de
sobre a vida de Xenofonte nos permite
servirem no exército como cavaleiros.
considerar que o mesmo perpassou por um
Segundo Cawkwell, com o decorrer das
processo educacional digno dos segmentos
Guerras do Peloponeso, os hippeis ficaram
sua
especificidade
1995,
de
de
a
(JAEGER,
formação
teriam
nos
permite
interagir
Xenofonte grupo
provenientes
estiveram
social
da
as
ao
qual
criação
de
mais tradicionais da pólis de Atenas, o que torna
aceitável
as
suas
críticas
aos
excessos da democracia (MARCHANT, 1968, p.ix). Tomando
Mediante os trabalhos de George Cawkwell e Peter
Jones, conjeturamos que os hippeis era um dos grupos censitários, nos quais os cidadãos atenienses eram
um
viés
relativamente
particular aos demais especialistas, Werner Jaeger
2
ressaltou
que
Xenofonte
identificados e cuja renda anual era de 200 a 300
medimnos(μέδιμνος) de grãos – cada medimno equivalia a um volume de aproximadamente 54 litros –, sendo
não
reconhecidos como o segundo segmento mais rico de
poderia ser compreendido como a típica
Atenas. Outro elemento que caracterizava os hippeis era
expressão de uma época, haja vista a sua
a capacidade de arcar com as despesas provenientes da criação de cavalos, o que lhes fornecia um lugar de
conduta político-militar e a maneira como
destaque junto ao corpo de combatentes e a sociedade
observava/representava
como cavaleiros (CAWKWELL, 1979, p.08; JONES, 1997,
o
mundo
pp.376, 378).
319
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
descontentes com a política de Atenas, em
tentativa de manterem o seu status político-
medida
se
social. Mediante tal perspectiva, somos
encontrarem propensas à devastação dos
capazes de inserir a figura de Xenofonte no
peloponésios
contexto descrito.
que
suas –
propriedades
liderados
por
Esparta
Em sua “Anábasis”, Xenofonte nos
(CAWKWELL, 1979, p.08). Dessa maneira, Eugene Tigerstedt sugeriu que Xenofonte
esclareceu
tenha aderido, e participado, diretamente
chamado Próxeno – o convenceu a integrar
da “revolta oligárquica”, a qual se realizou
o contingente militar sob as ordens do
em Atenas em 411 a.C. (TIGERSTEDT,
sátrapaCiro “o jovem”, levando o autor
1965, p.160). Sendo assim, podemos
ateniense a partir de sua pátria (Anábasis,
sugerir que Xenofonte foi adepto de um
III, 1.4).Nos dizeres de Carlos García Gual,
regime político oligárquico, o qual teria se
esta ocasião teria se dado no ano de 401
tornado intransigente com os ideias da
a.C., período no qual Atenas vivenciava um
democracia em decorrência dos anos de
ambiente político de muita tensão, em
guerra e dos gastos que os membros de
virtude da atuação dos “Trinta Tiranos” e
seu
das
segmento
detinham
para
manter
que
medidas
um
amigo
beócio
implementadas
–
pela
democracia, após a sua restauração em
Atenas no conflito. O período histórico de Xenofonte
403 a.C. (GUAL, 2010, p.15). As condições
suas
político-sociais da pólis ateniense teriam se
escolhas enquanto ateniense, guerreiro e
tornado intoleráveis para Xenofonte, onde o
cidadão abastado. Podemos sugerir que o
autor declarou que Próxeno o convidou a
contribuiu
estilo
de
diretamente
vida
as
hippeis
fosse
partir para a Ásia, tendo em vista que “[...]
dispendioso, não somente pela criação de
teria mais valor para sido que para a sua
cavalos,
própria pátria” (Anábasis, III, 1.4). O
mas
dos
para
pela
necessidade
de
demarcar a identidade dos seus membros,
discurso
os quais não eram vistos pela póliscomo
interpretado como um esclarecimento aos
sujeitos comuns. Com isso, a perda de
seus interlocutores acerca do motivo de
recursos ocasionada pelos conflitos nas
sua partida de Atenas, afinal, atuar como o
Guerras do Peloponeso, bem como pela
guerreiro para o qual foi formado e não
devastação das áreas rurais – e de
estar submetido às determinações políticas
produção de alimentos – dos homens ricos
da democracia, poderia ser um atrativo
de Atenas, fez com que os seus membros
para um homem oriundo dos hippeis
recorressem a outros mecanismos na
atenienses.
de
Xenofonte
pode
ser
320
Luis Filipe Bantim de Assumpção
Entretanto, devemos nos atentar
nosso trabalho, podemos afirmar que o
para a intencionalidade do discurso de
discurso de Xenofonte seria um mecanismo
Xenofonte, a qual perpassa por todas as
político-social empregado pelo autor/locutor
manifestações
na sua tentativa de transmitir e exprimir,
literárias
do
autor.
Tal
interlocutores,
argumentação não deve ser tida como uma
junto
crítica, pois, toda e qualquer palavra
representações que elaborou para justificar
proferida detém uma intenção visando uma
a sua conduta político-social frente a
finalidade. Para tanto, iremos empregar os
Atenas democrática.
aos
seus
as
conceitos de discurso e representação na
Retomando a figura de Xenofonte,
elaboração do presente artigo. Tomando
este nos informou que antes de decidir
como referencial os estudos de Pierre
quanto a sua ida para a Ásia, o mesmo
Bourdieu, este definiu o discurso como o
procurou o filósofo Sócrates com o intuito
ambiente
de se aconselhar. Sócrates temia que a
onde
ocorrem
as
relações
interpessoais – por meio do ato da fala –
pólis
com o objetivo de se transmitir valores,
Xenofonte por sua associação com um
representações
aos
sátrapa persa, e para tanto pontuou que
membros de uma sociedade. Bourdieu nos
era necessário consultar as designações
adverte para o fato do discurso de um autor
do sagrado, através do oráculo de Apolo
estar diretamente atrelado, e submetido, às
em
especificidades históricas de sua realidade
representação de Sócrates poderia ter sido
social (BOURDIEU, 2009, p.94). Por sua
construída com a intenção de demonstrar a
vez, a representação seria uma imagem
preocupação do filósofo, para com os
construída acerca de um objeto na tentativa
interesses da pólis, bem como para com o
de interpreta-lo/explica-lo em conformidade
próprio
com
podemos
práticas
e
os
nossos
junto
interesses
e/ou
de
Delfos
Atenas
viesse
(Anábasis,
Xenofonte. fazer
a
III,
Outra seria
reprovar
1.5).
Esta
leitura de
que
que
a
experiências sociais (BOURDIEU, 2009,
representação de Sócrates proposta por
p.46). Imersos nessa lógica, verificamos
Xenofonte, também estaria preocupada
que não existe um discurso neutro e
com os excessos da democracia, porém,
imparcial, aspecto esse que culmina na
devido ao seu conservadorismo político o
construção de representações específicas
mesmo preferiu que o seu amigo, e pupilo,
visando a legitimação da própria atividade
consultasse os desígnios divinos. Logo,
discursiva. Dessa maneira, adaptando o
podemos
arcabouço teórico de Bourdieu para o
representado na “Anábasis” seria um
supor
que
o
Sócrates
321
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
mecanismo do discurso de Xenofonte para
descrever o desfecho do conflito em
inocentar
as
Cunaxa, Xenofonte afirmou que Ciro seria
acusações que o levaram a morte, ou para
“[...] o homens mais capaz e digno de
enfatizar que o filósofo tinha conhecimento
governar dentre os persas que sucederam
o
seu
preceptor
frente
acerca
Ciro, o Velho” (Anábasis, I, 10.1). A
daqueles que se opusessem as suas
exposição da trajetória inicial de Xenofonte
determinações, sendo Sócrates uma de
na
suas “vítimas”.
importância,
da
conduta
dos
democratas
Ao partir para a Ásia, Xenofonte teria
Ásia
tornou-se em
de
demasiada
medida
que
em
decorrência desses eventos que o escritor
se encontrado em Sárdis com Próxeno e
ateniense
se
encontra
com
Ciro, local onde o ateniense estabeleceu
basileuAgesilau II da Lacedemônia.
o
relações de reciprocidade com o sátrapa.
Em aproximadamente 400 a.C., o
Todavia, Xenofonte esclarece aos seus
lacedemônio Tíbron foi enviado a Ásia
interlocutores que Ciro não havia informado
Menor na condição de harmoste para poder
os mercenários helênicos que a sua
combater o sátrapaTissafernes, que após a
expedição seria contra o “Grande Rei”
morte
Artaxerxes II – irmão do referido sátrapa
responsável pelas suas possessões e
(Anábasis,
Ao
agora exigia que os helenos das póleis
interagirmos com o discurso de Xenofonte,
jônias se submetessem ao “Grande Rei”.
o autor deixa transparecer que o insucesso
Nessa ocasião, os guerreiros helênicos
de Ciro ocorreu devido as atitudes do persa
remanescentes
Tissafernes, que ao tomar conhecimento
passaram para o comando de Tibrón
dos seus planos se encontrou com o
(XENOFONTE, Helênica, III, 3.1-5). Por
“Grande Rei” e lhe contou sobre os
sua vez, Xenofonte complementa a sua
preparativos de seu irmão mais novo
argumentação ao declarar que, ao chegar
(XENOFONTE, Anábasis, I, 2.4-5). Nesse
em
contexto, Ciro e Artaxerxes tomaram as
mercenários
medidas necessárias para o desenrolar de
Tibrón (Anábasis, VII, 8.24). No ano
um confronto bélico, o qual culminou com a
seguinte (399 a.C.), Tíbron foi acusado de
“batalha de Cunaxa”. Embora os helenos
atacar territórios aliados aos lacedemônios,
tenham vencido os seus opositores, Ciro
sendo
acabou sendo morto na tentativa de atacar
Dercílidas,
Artaxerxes (Anábasis, I, 9.27-29). Após
aproximadamente
I,
2.1;
III,
1.8-10).
de
Ciro,
Pérgamo
o
do
com
jovem,
exército
o
helênicos
substituído cuja
se
de
Ciro
contingente os
entregou
de a
esparciata
pelo
liderança dois
tornou
durou
anos,
por
até
322
ser
Luis Filipe Bantim de Assumpção
substituído pelo basileuAgesilau (em 396 (Helênica,
a.C.)
4.1-5).
pela sua interação com os persas ou com
Xenofonte
Esparta. Contudo, se nos fundamentarmos
podemos supor que o mesmo permaneceu
no discurso de Xenofonte e na sua
sob a autoridade político-militar de Esparta,
representação de Sócrates, podemos supor
a partir de 400 a.C.. Ainda que Xenofonte
que
não tenha informado se combateu ao lado
construída
dos lacedemônios na Ásia Menor, partimos
fornecido indícios quanto às motivações da
da perspectiva que sim, em virtude da sua
democracia em exilar Xenofonte. Com isso,
interação direta com Agesilau em 396 a.C..
podemos enfatizar que os democratas
De forma semelhante, devemos considerar
atenienses tenham retirado os direitos
que Xenofonte tenha ocupado uma posição
políticos de Xenofonte pela sua associação
de
com os persas, tendo em vista que Ciro era
Conjeturando
III,
a
prestígio
1.8-10;
Xenofonte pelos atenienses tenha ocorrido
partir
frente
de
aos
comandantes
a
imagem
lacedemônios, afinal, o mesmo conhecia os
aliado
guerreiros que haviam combatido com Ciro
espartanos
e
Peloponeso.
poderia
ser
empregado
como
um
intermediário entre os interesses mútuos de ambos os lados.
na
de
do
filósofo
“Anábasis”
Lisandro no
e
final
das
ateniense tenha
nos
financiou
os
Guerras
do
Ao situarmos Xenofonte em seu contexto histórico podemos iniciar a análise
Embora não possamos concluir que
de sua representação do basileuAgesilau II.
Xenofonte tenha atuado nas campanhas
Como nos esclareceu E. Marchant, o elogio
militares dos lacedemônios, na Ásia Menor,
a
o mesmo declarou que regressou a Hélade
Xenofonte pouco tempo depois da morte do
com Agesilau II (em 394 a.C.). Nesse
referido basileu, ou seja, por volta de 360
processo, Xenofonte teria combatido ao
a.C.. Segundo Marchant, o “Agesilau” de
lado do basileulacedemônio na batalha de
Xenofonte pretendia minimizar as críticas
Coroneia, onde acabou se opondo ao
que Agesilau sofreu pelas suas ações
exército ateniense (Helênica, IV, 3.15-21).O
político-militares,
autor ainda afirma que ao retornar ao
(MARCHANT,
território helênico se encontrava exilado de
perspectiva parece ter sido partilhada por
Atenas,
ÉdouardDelebecque,
sendo
favorecidopelos
Agesilau
II
teria
sido
após 1968,
a
escrito
por
sua
morte
p.xviii).
Essa
pois
o
mesmo
lacedemônios com o vilarejo de Escilunte,
enfatizou que ao se comparar a figura de
na região de Elis (Anábasis, V, 3.7-9). Não
Agesilau elaborada na “Helênica”, com a
podemos
representação construída em “Agesilau”,
precisar
se
o
desterro
de
323
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
podemos
notar
a
intencionalidade
do
interlocutores a se identificarem com a
discurso de Xenofonte. Delebecque expôs
representação
que os excessos de Agesilau na “Helênica”
maneira,
não são expostos da mesma maneira que
reconhecido como dotado de um ideal
em seu “Agesilau”, cujo principal propósito
“pan-helênico”,
seria elogiar as suas virtudes e feitos
militares foram para o bem da Hélade
pessoais (DELEBECQUE, 1957, p.462).
(HARMAN,
o
de
Agesilau
II.
Dessa
basileu lacedemônio seria cujas
2012,
ações
p.427-428).
políticoHarman
Dialogando com Steven Hirsch, no
declarou que a noção de “pan-helenismo”
discurso presente no “Agesilau”,Xenofonte
se fazia presente somente no âmbito
teria o objetivo de criar uma representação
“intelectual” – sobretudo de Atenas – onde
do basileu lacedemônio como um “herói
as
pan-helênico”, cujas atitudes pretendiam
poderiam acarretar no enfraquecimento e
beneficiar a Hélade e retribuir aos persas
desestruturação das sociedades envolvidas
as ofensas que outrora estes realizaram
(HARMAN, 2012, p.428-429). Devemos
com as Guerras Greco-pérsicas (HIRSCH,
enfatizar
1985,
ao
especialistas citados são uma possibilidade
fazermos a correspondência do discurso de
profícua do encômio a Agesilau II, porém,
Xenofonte na “Helênica” e no “Agesilau”
verificamos
iremos observar que muitos fatos de
identificados como a única possibilidade de
demasiada
análise.
p.42).
Hirsch
aponta
relevância
que,
histórica
foram
sucessivas
que
guerras
os
que
entre
helenos
apontamentos
não
dos
devem
ser
omitidos na segunda obra, ainda que
Ao iniciar o seu elogio a Agesilau,
tenham sido explicitados na primeira. Essa
Xenofonte esclarece que seria incapaz de
postura teria a finalidade de euforizar à
descrever todas as virtudes e a fama do
conduta
de
referido basileu, porém, faria essa tentativa
demonstrar a sua contribuição para os
para que um homem bom (kalós) pudesse
embates de Esparta e Tebas, os quais
receber as honras de sua “perfeição”
teriam culminado na derrocada espartana
(agathos) (Agesilau, 1.1). Em seguida, o
na batalha de Leuctra (371 a.C.) (HIRSCH,
autor
1985, p.47-48). Rosie Harman endossa os
Agesilau, tendo em vista que descendia de
pressupostos de Hirsch, ao argumentar que
Héracles e por ser basileu na pólis mais
a linguagem de Xenofonte no “Agesilau”
importante da Hélade (Agesilau, 1.2-3). Do
exaltava
mesmo
de
as
Agesilau,
ao
qualidades
invés
morais
do
governante, no intuito de levar os seus
ateniense
modo,
constituição
e
exalta
segundo o
regime
a
estirpe
de
Xenofonte, político
a
que
324
Luis Filipe Bantim de Assumpção
vigoravam
em
Esparta
ser
combateu os persas. Essa polarização
elogiados, pois diferentemente das demais
entre “helenos e persas” estaria atrelada a
formas de governo – democracia, tirania,
ideia de “pan-helenismo” proposta por
oligarquia e basiléia – somente entre os
Hirsch
esparciatas os basileus mantiveram suas
demonstra os prejuízos dos conflitos entre
prerrogativas
as póleis da Hélade, quando o verdadeiro
de
deveriam
maneira
ininterrupta
(Agesilau, 1.4). O discurso de Xenofonte
e
Harman,
onde
Xenofonte
inimigo seria o “Grande Rei” da Pérsia.
parece querer justificar a construção de um
Essa concepção pode ser verificada
elogio a Agesilau, onde não somente as
quando Xenofonte representa Agesilau
suas qualidades pessoais deveriam ser
como um comandante que não se alegrava
ressaltadas como também a sua linhagem
em vencer uma guerra contra helenos.
e a preponderância que Esparta detinha
Assim como o apresenta lamentando a
junto aos helenos.
morte de aproximadamente dez mil helenos
Todavia, se Xenofonte escreveu o
que pereceram contra os lacedemônios na
seu encômio após a morte de Agesilau, a
batalha de Corinto, pois, “[...] se os que
pólis
a
jazem aqui agora estivessem vivos seriam
exerceu
o suficiente para derrotar todos os bárbaros
sobre os helenos até a batalha de Leuctra.
em batalha” (XENOFONTE, Agesilau, 7.4-
Retomando a proposta de Steven Hirsch e
5). De acordo com Rosie Harman, esse
Rosie Harman, podemos sugerir que a
trecho do discurso de Xenofonte poderia
exaltação de Agesilau, assim como do
demarcar a maneira como o autor almejou
regime político de Esparta, seria um
desenvolver a imagem de Agesilau, ou
elemento “pan-helênico” do discurso de
seja, um sujeito preocupado com o bem
Xenofonte,
estaria
estar da Hélade (HARMAN, 2012, p.431).
demonstrando que o basileu lacedemônio
Imersos nessa ótica, podemos verificar que
detinha as características necessárias para
o discurso de Xenofonte estaria se opondo
comandar os helenos em prol de benefícios
a uma possível tendência helênica de
para a Hélade. Para tanto, ao findar os
criticar as atitudes militares de Agesilau.
seus
da
Com isso, não seria equivocado sugerirmos
Agesilau,
que além dos embates que o basileu
de
Esparta
hegemonia
já
não
político-militar
onde
o
que
mesmo
comentários
“superioridade”
detinha
acerca
heráclida
de
frente aos demais esparciatas e helenos,
lacedemônio
Xenofonte
determinadas sociedades da Hélade, o
maneira
inicia como
a o
sua
descrição
da
empreendeu
contra
basileu de Esparta
325
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
mesmo teria sido censurado por não se
basileu lacedemônio, ainda que excessiva,
opor a “Paz de Antálcidas” (ou Paz do Rei).
visava o bem estar da Hélade.
Devemos recordar que a “Paz de
Para corresponder a sua proposta,
Antálcidas” teria submetido às póleisda
Xenofonte se utiliza das virtudes e dos
Ásia
de
feitos de Agesilau para tornar evidente ao
Clazomenas, aspecto esse que colocava
seu leitor, como o basileu espartano agia
em “xeque” qualquer tipo de postura “pan-
em conformidade com os interesses da
helênica” em relação à Esparta. A figura de
Hélade. De forma semelhante, Xenofonte
Agesilau acabou sendo vinculada a esse
enfatizou
contexto, em medida que foi um dos
escrupulosamente
homens mais importantes e influentes de
determinações
sua pólis, e não ter manifestado oposição a
(Agesilau, 1.36). Assim como não era
estas
ganancioso,
Menor,
além
determinações
do
Chipre
políticas.
e
Charles
que
Agesilau às
leis
políticas
nem
se
de
obedecia e sua
aproveitava
as
pólis dos
esta
recursos políades, e além de beneficiar os
abordagem e, ao citar Xenofonte, pontuou
seus companheiros entregava todos os
que Agesilau se utilizou da “Paz de
presentes que recebia a pólis, inclusive
Antálcidas” para se promover junto aos
aqueles que poderia guardar para si
helenos como libertador – embora essa
(Agesilau, 1.17; 4.1-3). Aqui podemos
premissa seja contraditória –, mas também
situar a figura de Xenofonte, que por ser
para corresponder ao seu rancor pessoal
amigo de Agesilau recebeu o vilarejo de
contra os tebanos (HAMILTON, 1991,
Escilunte após ser exilado de Atenas. Do
p.95). Nas palavras de Scott Rusch, a
mesmo
atitude dos beócios para com Agesilau,
verificarmos aí uma tentativa de proteger o
durante o seu sacrifício em Áulis (Helênica,
basileu lacedemônio contra as possíveis
III, 4.4), teria contribuído para a política
críticas de seus opositores, haja vista que o
anti-tebana do referido basileu(RUSCH,
mesmo recolheu uma grande quantidade
2011, p.159). Logo, ao convergirmos os
de riquezas em sua expedição a Ásia, as
indícios documentais com a historiografia
quais foram introduzidas na pólis de
moderna
Esparta.
Hamilton
parece
corroborar
com
podemos
conjeturar
que
Xenofonte
estaria
interessado
em
demonstrar
aos
modo,
Xenofonte
não
seria
também
equivocado
destaca
que
interlocutores de seu
Agesilau sempre se mantinha preocupado
“Agesilau” como que a conduta deste
em respeitar as determinações do sagrado, as palavras dos oráculos e os juramentos
326
Luis Filipe Bantim de Assumpção
contraídos com terceiros. Podemos citar o
denunciá-lo frente ao “Grande Rei”. No
caso
decorrer
de
seu
acordo
com
o
de
grande
parte
do
trajeto
helenos
na
Ásia,
sátrapaTissafernes, o qual pressupunha a
percorrido
não
seus
Tissafernes foi quem mais os molestou.
exércitos. Contudo, devido à conduta do
Com isso, ainda que Xenofonte possa
referido persa, o mesmo não correspondeu
observar o costume dos persas com certa
às próprias palavras e ameaçou Agesilau
estranheza, as suas críticas mais mordazes
com a guerra. O basileu lacedemônio teria
se
respondido “[...] que estava profundamente
Steven Hirsch sugere que Tissafernes seria
agradecido pelo perjúrio, pois com isso
o ideal oposto a Ciro, o qual Xenofonte
[Tissafernes] ganhou a hostilidade dos
elogiou em sua “Anábasis” como um
deuses para si, tornando-os aliados dos
modelo
helenos” (Agesilau, 1.13). Tomando uma
p.40) 3.Imersos
atitude semelhante, quando estava com os
referido persa teria sido representado como
seus guerreiros em Éfeso, Agesilau propôs
um
competições atléticas voltadas para a
Agesilau. Hirsch afirmou que Xenofonte
preparação do seu contingente militar, e
não censurava todos os persas, afinal,
tanto o basileu como os seus subordinados
Farnábazo e Espitrídates foram tidos como
ofereciam guirlandas a deusa Ártemis,
homens dignos e virtuosos (Agesilau, 3.3-
divindade tutelar da pólis dos efésios
5), assim como não foi vergonhoso para
(XENOFONTE, Agesilau, 1.27). Novamente
Agesilau
agressão
aqui,
a
demonstra
mútua
entre
representação como
este
de
os
Agesilau
basileuera
pelos
direcionam
de
virtude
referencial
se
Megabates
sátrapaTissafernes.
ao
(HIRSCH,
nessa para
perspectiva, a
enamorar
(Agesilau,
1985, o
exaltação
pelo
5.4-5)
de
jovem
(HIRSCH,
um
1985, p.43). Podemos sugerir que os feitos
modelo de conduta político-social, cujas
de Agesilau e a descrição das suas
virtudes eram dignas de serem seguidas e
virtudes
admiradas.
contrapunham as de Tissafernes, enquanto
Dentre as exaltações de Xenofonte, o
contraponto
Agesilau
frente
do ao
comportamento
de
sátrapaTissafernes
ocupa um lugar de destaque no início de
seriam
aspectos
que
sujeitos e comandantes. Sendo assim, devido aos entraves que Xenofonte e os helenos
sob
o
comando
de
Ciro
perpassaram junto a Tissafernes, fizeram
seu elogio (XENOFONTE, Agesilau, 1.1035). Vale destacar que durante a expedição
3
de Ciro, foi esse sátrapa o responsável por
certa medida se assemelham as virtudes pessoais de
Na “Anábasis”, Xenofonte tece elogios a Ciro que, em
Agesilau (XENOFONTE, Anábasis, I, 10.1-31).
327
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
com que o escritor ateniense o retratasse
lacedemônio contrasta o “Grande Rei”
de um modo disforizado, onde o combate
persa, em medida que Artaxerxes se
promovido por Agesilau seria justo pelas
importaria com os seus próprios interesses,
suas motivações pessoais e pelo seu
tendo em vista que as suas determinações
caráter.
se
constituíam
nas
leis
dos
persas.
Xenofonte também se utiliza da
Segundo Xenofonte, Agesilau sempre se
representação de Artaxerxes II, “Grande
mantinha visto e prontamente correspondia
Rei” dos persas, para euforizar as virtudes
as necessidades daqueles que a ele
de Agesilau. Diferentemente da imagem de
recorriam, enquanto Artaxerxes raramente
Tissafernes, o “Grande Rei” foi considerado
aparecia em público e atendia lentamente
como um homem de excessos devido a
aos
proeminente posição social que ocupava
Verificamos no discurso de Xenofonte que
junto a sua sociedade. A hybris de
Artaxerxesrepresentaria os persas como
Artaxerxes II estaria na sua valorização da
um todo, ou melhor, a imagem que os
riqueza, do luxo e dos homens de recursos,
helenos construíram desta sociedade, de
aspectos dos quais Agesilau seria o
sua
oposto. O discurso de Xenofonte no
Retomando a perspectiva “pan-helênica” do
“Agesilau”
basileu
discurso de Xenofonte, onde as atitudes de
lacedemônio era digno de admiração por
Agesilau frente aos persas – e ao Grande
suportar mais fadigas físicas do que os
Rei – eram dignas e capazes de minimizar
seus próprios guerreiros, culminando no
o seu embate contra os helenos opositores
respeito e admiração destes para com
de Esparta.
expõe
que
o
Agesilau (Agesilau, 5.3). Nesse contexto,
seus
(Agesilau,
súditos
opulência
e
da
sua
9.1-2).
riqueza.
Por fim, a imagem de Agesilau
Artaxerxes II não seria dotado de tais
construída
qualidades,
em
compreendida não somente como uma
relacionava
diretamente
guerreiros,
medida
além
de
que com
não os
se seus
considera-los
defesa também
ao à
por
Xenofonte
basileu
pode
lacedemônio,
expedição
que
o
ser mas
escritor
submetidos e de uma estirpe distinta – e
ateniense empreendeu contra os persas, a
inferior – a sua. Seguindo essa perspectiva,
qual levou ao seu exílio de Atenas. O
Agesilau seria um governante que agia em
Agesilaurepresentado
benefício de Esparta, e em conformidade
deveria ser admirado por ter sido o único
com as leis e a determinação de sua pólis
heleno capaz de retribuir a ofensa dos
(Agesilau, 7.1-2). Essa imagem do basileu
persas de outrora – tentar submeter a
por
Xenofonte
328
Luis Filipe Bantim de Assumpção
de
ações militares de Agesilau frente à Ásia
lacedemônios frente às críticas que o
fossem justas, para Xenofonte, devemos
mesmo recebeu pelas suas campanhas
considerar que este não foi o único a tentar
militares e tomadas de decisão política. O
atacar
escritor
o
“Grande
Rei”.
O
próprio
defender
a
imagem
do
basileu
Hélade, nas Greco-pérsicas. Embora as
representouAgesilau
ateniense
Xenofonte, ao se associar a Ciro, teria
como
tentado empreender uma expedição contra
poderoso, obedecia escrupulosamente as
Artaxerxes II, ainda que não tenha tido
leis e os valores de sua pólis, ou seja, um
sucesso.
Na
“Anábasis”,
o
escritor
um
homem
sujeito
que,
dotado
(autocontrole
e
considera-lo o mais adequado a reinar
maneira,
discurso
(Anábasis,
moderação). de
Dessa
Xenofonte
10.1).
demonstra que Agesilau sempre agia em
referencial
a
conformidade com Esparta, o que poderia
verificamos
que
minimizar a disforização sofrida por este
Agesilau teria feito àquilo que os helenos
basileu após a sua morte. Xenofonte tenta
deveriam fazer, ou seja, ofender aqueles
justificar, através de sua obra, que a
que tentaram escravizar a Hélade. Logo,
expedição
esse
inocentasse
Agesilau – era justa simplesmente por
Agesilau, também fundamentava a ida de
tentar reaver uma ofensa sofrida, fazendo
Xenofonte e dos outros mercenários para a
do basileu lacedemônio um “herói pan-
Ásia. Afinal, se pudessem retirar Artaxerxes
helênico”. Todavia, podemos propor outra
do
governante
leitura do discurso de Xenofonte, onde o
relativamente favorável aos helenos (Ciro)
mesmo poderia estar tentando justificar a
haveria
sua empreitada contra o “Grande Rei”, bem
entre
os
persas
Tomando
como
documentação
citada
argumento
poder um
e
embora
inserir grande
um
I,
fosse
sophrosyne
de
ateniense justifica as atitudes de Ciro por
o
embora
benefício
para
a
Hélade. Sendo assim, podemos concluir que o “Agesilau” de Xenofonte tinha o objetivo
espartana
–
liderada
por
como a sua associação com Esparta, tornando o decreto de exílio dos atenienses injusto para com a sua pessoa.
Referências: ASSUMPÇÃO, Luis Filipe Bantim de. Discurso e Representação sobre as práticas rituais
dos esparciatas e dos seus basileus na Lacedemônia, do século V a.C. Dissertação apresentada para a obtenção do título de Mestre, pelo PPGH/UERJ. Rio de Janeiro, 2014.
329
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
BOURDIEU, Pierre. O Senso Prático. Trad.: Maria Ferreira. Petrópolis: Editora Vozes, 2009. CAWKWELL,
George.
Introduction.
In:
XENOPHON.
A
History
of
my
Times
(Hellenica).Trad: Rex Warner. London: Penguin Books, 1979. DELEBECQUE, Édouard. Essaisur la vie de Xénophon. Paris: Librairie C. Klincksieck, 1957. DUPLOUY, Alain. Le Prestige des Élites – Recherchessur les modes de reconnaissance
socialeemGrèce entre les X° et V° siècles avant J.-C. Paris: Les Belles Lettres, 2006.p.2006. FINLEY, Moses. The Greek Historians. New York: The Viking Press, 1959. GUAL, Carlos García. Presentación. In: JENOFONTE. Anábasis. Trad.: Ramón Bach Pellicer. Madrid: Editorial Gredos, 2010. HAMILTON, Charles. Agesilaus and the Failure of the Spartan Hegemony. Ithaca; London: Cornell University Press, 1991. HARMAN, Rosie. A spectable of greekness: Panhellenism and the visual in Xenophon’s “Agesilaus”. In: HOBDEN, Fiona; TUPLIN, Christopher (Ed.). Xenophon: Ethical Principles
and Historical Enquire. Leiden; Boston: Brill, 2012. HIGGINS, William. Xenophon the Athenian: The Problem of the Individual and the Society
of the Polis. New York: State University of New York Press, 1977. HIRSCH, Steven. The Friendship of the Barbarians – Xenophon and the Persian Empire. London; Hanover: TuftsUniversity, 1985. JAEGER, Werner. Paidéia – A Formação do Homem Grego. Trad.: Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995. JONES, Peter V. (org.). O Mundo de Atenas – uma introdução à cultura clássica ateniense. São Paulo: Martins Fontes, 1997. MARCHANT, E.C. Introduction. In: XENOPHON.ScriptaMinora. Trad.: E. C. Marchant. London: Harvard University Press, 1968. RUSCH, Scott M. Sparta at War: Strategy, Tactics, and Campaigns, 550-362 BC. London: Frontline Books, 2011. TIGERSTEDT, Eugene Napoleon. The Legend of Sparta in classical Antiquity. Vol. I. Stockholm; Göteborg; Uppsala: Almqvist&Wiksell, 1965. TUÑON, Orlando Guntiñas. Introducción de Los Ingresos Públicos o Las Rentas. In: JENOFONTE. Obras Menores. Madrid: Editorial Gredos, 2008.
330
AS LEIS MATRIMONIAIS NAS SIETE PARTIDAS DE AFONSO X, O SÁBIO Luísa Tollendal Prudente 1 Resumo As Siete Partidas compõem provavelmente a obra jurídica mais extensa e conhecida do reinado de Afonso X de Castela e Leão. Estão divididas em sete livros, cada qual legislando sobre assuntos essenciais para a organização da sociedade na época, e correspondem aos primeiros grandes esforços unificadores do direito régio na Península Ibérica. A pesquisa de mestrado que estamos atualmente desenvolvendo no programa de pós-graduação da Universidade Federal Fluminense, desenvolve-se a partir da análise do livro IV das Siete Partidas, o qual trata do direito matrimonial. As leis desse livro progridem em diferentes eixos interligados, que regralizam o noivado e o casamento; as relações de parentesco; os dotes, as arras, as heranças e outras formas de transferência patrimonial; os pecados e delitos que tangem o matrimônio; e, finalmente os laços de dependência feudal que unem os homens. A motivação maior do nosso trabalho é entender a articulação feita nessa documentação entre a palavra régia que normatiza a união matrimonial e as diferentes relações hierárquicas que dela derivam. Entendemos que essas não estão presentes no Livro IV de maneira fortuita, mas, antes, correspondem a uma intencionalidade clara derivada do contexto monárquico do momento, e que articulam elementos no texto de maneira a formar um ideário político sobre o qual o reinado de Afonso X se calcou. Palavras-chave: casamentos, Siete Partidas, Afonso X
1Mestranda
do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, setor temático de História Medieval; E-
mail: lu.tollendal@gmail.com ; orientação do professor Mário Jorge da Motta Bastos.
331
Luísa Tollendal Prudente
Siete
As
Partidas
compõem
monárquico do momento, e que articulam
provavelmente a obra jurídica mais extensa
elementos no texto de maneira a formar um
e conhecida do reinado de Afonso X de
ideário político sobre o qual o reinado de
Castela e Leão. Estão divididas em sete
Afonso X se calcou.
livros, cada qual legislando sobre assuntos essenciais
para
a
organização
da
As
considerações
apresentaremos a seguir são fruto da
sociedade na época, e correspondem aos
pesquisa
primeiros grandes esforços unificadores do
desenvolvendo
no
direito régio na Península Ibérica.
História
Universidade
A
pesquisa
de
mestrado
que
que
de da
mestrado
que
estou
departamento
de
Federal
Fluminense. Com o objetivo inicial de
estamos atualmente desenvolvendo no
estudar
programa
da
regulamentação dos casamentos e dos
Fluminense,
laços de parentesco no período de Afonso
desenvolve-se a partir da análise do livro IV
X de Castela e Leão (1252- 1284),
das Siete Partidas, o qual trata do direito
debruçamo-nos sobre o célebre código
matrimonial. As leis desse livro progridem
jurídico
em
Escolhemos o quarto livro, que legisla
de
Universidade
pós-graduação Federal
diferentes
eixos
interligados,
que
o
papel
afonsino,
da
monarquia
Siete
as
na
Partidas.
regralizam o noivado e o casamento; as
sobre o Direito Matrimonial.
relações de parentesco; os dotes, as arras,
progridem em eixos conectados, e as
as
de
regras ali presentes teorizam e normatizam
transferência patrimonial; os pecados e
assuntos como noivados e casamentos;
delitos
relações
heranças
e
outras
formas
que tangem o matrimônio;
e,
de
parentesco;
Suas leis
dotes,
arras,
finalmente os laços de dependência feudal
heranças e outras formas de transferência
que unem os homens.
patrimonial ou, ainda, pecados e delitos
A motivação maior do nosso trabalho é
entender
a
articulação
feita
nessa
relativos ao matrimônio. Também legislam acerca
das
dívidas
de
naturalidade 2
documentação entre a palavra régia que
existentes entre os homens, as relações
normatiza
entre servos e donos, vassalos e senhores,
a
união
matrimonial
e
as
diferentes relações hierárquicas que dela derivam. Entendemos que essas não estão presentes no Livro IV de maneira fortuita, mas,
antes,
correspondem
a
uma
intencionalidade clara derivada do contexto
2
Tomei o termo emprestado de MARTIN, Georges. Le concept de “naturalité” (naturaleza) dans les Sept Parties,
d’Alphonse
X
le
Sage.
In:
Revue
interdisciplinaire d’ études hispaniques médiévales et modernes, Paris, n. 5, 2008.
332
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
e, por fim, sobre a amizade. Percebe-se,
segundo, após iniciada a busca de Afonso
através da disposição dos títulos e leis, e
X pelo sucesso em ser sagrado imperador
da
do
imagística
verbal
envolvendo
a
Sacro
Império,
evento
que
ficou
dos
conhecido como o “fecho del imperio”
matrimônios, uma representação idealizada
(GARCÍA DE CORTÁZAR, 2002-2003, p.
da ordem social, e a articulação dessa
28). Foi provavelmente durante esses anos
construção com as prerrogativas judiciais
que as Siete Partidas foram compostas.
construção
e
a
justificação
As Siete Partidas constituem o maior
da figura régia. Afonso X de Leão e Castela (1252-
e mais completo dos códigos afonsinos, e
1284), conhecido pela alcunha de “O
se tornaram, ao longo do tempo, um dos
Sábio”, foi um dos grandes protagonistas
mais importantes para a história do Direito
do Renascimento cultural dos séculos XII-
espanhol.
XIII. Muitos estudiosos acreditam que, na
conhecidas hoje é posterior à denominação
Península Ibérica, a promoção das letras e
da época em que foram compostas, e
das ciências alcançou o cume durante o
deriva da sua divisão em sete livros. Em
seu reinado. Essa opinião tem suas raízes
seu tempo, foram chamadas de “Libro de
na
las leyes”, ou “Libro del fuero de las leyes”(
enorme
quantidade
de
textos
produzidos no âmbito de sua corte, e que tratam de variados assuntos, pertencentes
O
nome
pelo
qual
são
PÉREZ, 1992, p. 32). Inserem-se
no
contexto
de
aos mais diversos campos do saber então
florescimento do direito romano difundido
existentes. A sua obra jurídica, no entanto,
pela
é a que mais nos interessa nesta curta
geralmente
exposição,
especialmente
as
Siete
Partidas.
Universidade são
de
Bolonha,
classificadas
e
como
pertencendo a esta vertente. Mas possuem também grande influência consuetudinária,
Os labores jurídicos empreendidos
e o prólogo geral das Partidas ( e o da
por Afonso X estavam, dessa maneira,
Partida I), informa o leitor de que as leis ali
inseridos neste espectro mais amplo de
reunidas foram selecionadas a partir do
consolidação da expansão territorial e
direito natural, dos usos e costumes, e de
populacional do reino. Correspondiam à
“todos los otros grandes saberes”(PÉREZ,
intenção
e
1992, p. 35). É certo que as Partidas
politicamente os territórios castelhanos na
possuem influencias diferentes, apesar de
figura máxima do rei - em um primeiro
sua predominante romanização.
de
centralizar
jurídica
momento - e na do rei imperador, - em um
Os livros das Siete Partidas tratam 3 333
Luísa Tollendal Prudente
respectivamente
de:
a
fé
católica
e
matérias eclesiásticas (Partida I); das
propositalmente, sua memória não foi cultivada.
atribuições dos imperadores e reis, e dos
O Prólogo da Partida IV inicia-se
seus reinos (Partida II); da administração
com uma descrição do Gênesis e define o
da justiça ( Partida III); da regulamentação
casamento
dos casamentos e das relações deles
canônicas estabelecidas na quarta Decretal
derivadas ( Partida IV); dos contratos e
de Gregório IX (1234).
negócios (Partida V); das heranças e dos
casamento utilizando-se da Criação como
testamentos ( Partida VI) e, por fim, dos
metáfora, e, ao fazê-lo, diz que Deus
crimes e do direito penal ( Partida VII).
honrou o homem acima de todas as outras
conforme
as
disposições Conceitua o
Com relação à datação das Siete
criaturas (ALFONSO X, 1843, p. 465) pois
Partidas, até hoje não existe consenso
o criou à sua imagem e semelhança, e lhe
entre os especialistas. Também não se
deu o entendimento. Também o honrou
sabe
muito quando lhe deu mulher, e celebrou o
ao
certo
quantas
revisões
e
reescrituras existiram, e nem quantos ou
casamento
quais foram os manuscritos “originais”.
(ALFONSO X, 1843, p. 465).
dos
dois
no
Paraíso 3
Tampouco sabe-se com certeza quando
A descrição do primeiro casamento é
passaram a ter vigência legal, e nem as
feita da seguinte forma: a mulher foi dada
características
estão
ao homem por companheira, e nela ele
totalmente esclarecidas. Isso tudo se deve
deveria fazer linhagem. E Deus fez seu
ao fato de que as Partidas não foram
casamento, e pôs lei ordenada entre eles 4
desta
vigência
oficialmente promulgadas até, pelo menos, o reinado de Afonso XI, por causa dos
3
fizo muger, que le diesse por compañera”. In: Cuarta
numerosos embates entre Afonso X e
Partida. In: ALFONSO X. Las Siete Partidas (Glosadas
setores da nobreza castelhana, contrários a muitas
das
suas
disposições
por el Licenciado Gregório López). Madrid: Compañía
e
governanças. Destes, o levante da alta nobreza de 1272 costuma ser apontado
“E sin todo esto, ouole fecho muy grand honrra; que
General de Impresores y Libreros del Reyno, 1843. 4
“ e establecio el casamiento dellos ambos en el Parayso; e puso ley ordenadamente entre ellos, que assim como eran de cuerpos de partidos segun
como o principal. Além disso, o reinado de
natura, que fuesen vno quanto em amor, de manera,
Sancho
que non se pudiessen departir, guardando lealtad vno
IV,
quem
obteve
o
trono
levantando-se contra Afonso X, significou
a outro; e otrosi, que de aquella amistad saliesse linae, de que el mundo fuese poblado, e el loado, e seuido” .
um período de descontinuidade com a
In: Cuarta Partida. In: ALFONSO X. Las Siete Partidas
política de seu antecessor, durante o qual,
(Glosadas por el Licenciado Gregório López). Madrid: Compañía General de Impresores y Libreros del
334
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
(ALFONSO X, 1843, p. 465). Esta “lei
ordem do casamento. O matrimônio se
ordenada” consistiria em serem um só por
torna, assim, a primeira dívida dos homens
causa do amor que os uniria, apesar de
entre si. É uma dívida de naturalidade -
serem de corpos separados. De maneira
conforme a definição no título 24, criada
tal, que não pudessem se apartar e
por disposição divina de maneira que a
mantivessem lealdade um ao outro. Dessa
humanidade pudesse se desenvolver e se
relação deveria sair uma linhagem, através
organizar de acordo com esta ordenação
da qual o mundo fosse povoado, e Deus
hierarquizante do mundo. Por isso, diz-se
louvado e servido (ALFONSO X, 1843, p.
mais adiante no Prólogo que o matrimônio
465).
deve ser reconhecido como o Sacramento O objetivo primordial da criação do
que é “mantenimiento del mundo, que faze
homem e da mulher revela-se então na
a
linhagem, nessa filiação através da qual o
naturalmente, e sin pecado, e sin el qual
mundo pudesse ser povoado, e Deus
los otros seys Sacramentos non podrian
servido. Para que isso fosse passível de
ser mantenidos, nin guardados” (ALFONSO
acontecer,
primeiro
X, 1843, p. 465). A dívida do casamento
casamento, e o faz quando coloca “lei
também dará raíz às outras dívidas de
ordenada” entre o homem e a mulher, de
naturalidade entre os homens, as quais
forma que fossem um só. Essa linhagem,
incluem tanto aquela gerada pela filiação,
que é o objetivo maior do casamento,
como as dívidas com os senhores naturais,
representa a própria a espécie humana. A
e a dos vassalos com seus senhores
procriação permite que essa espécie se
(ALFONSO X, 1843, p. 614).
espalhe
Deus
pelo
realiza
mundo,
o
enquanto
los
omes
bevir
Sacramento
vida
o
O
casamento garante que ela louve e sirva
portanto,
corretamente a Deus.
multiplicação dos homens e
aquele
ordenada
matrimonial
que
garante
é, a
a sua
É feita a primeira dívida, a do
organização em sociedade. Assim, ordenar
homem com relação ao seu Criador. É a
o casamento significa ordenar também os
dívida de natureza definida na terceira lei
seus frutos, permitindo dessa forma a
do título 24. A segunda dívida seria aquela
organização correta da sociedade, quer
estabelecida pelo casamento, derivada do
dizer, segundo a vontade do Criador.
amor que ele encerra, e ela é a própria
Quando
se
pensa
dentro
dessa
perspectiva, pode-se ver que as leis da Reyno, 1843.
Partida IV, acompanhando a lógica do 5 335
Luísa Tollendal Prudente
prólogo, podem ser agrupadas em três
nas dívidas entre os homens, as quais
grandes
em
remontam à dívida de amor originada pelo
primeiro lugar, vêm as disposições a
casamento. Da boa linhagem deriva a
respeito da natureza do noivado – único
organização correta dos homens A Partida
antecedente
IV
esferas
interdependentes:
mencionado
para
o
está
composta
seguindo
essa
casamento – e do matrimônio. Ali são
organização divina do mundo. O monarca,
explicitadas as formas como devem ser
ao legislar sobre o casamento, ordena
realizados, quem os pode contrair e quem
também a descendência. Ao ordenar a
os pode celebrar. Discorre-se ainda sobre
descendência,
as uniões proibidas que impedem ou
manutenção da ordem do mundo, conforme
anulam
foi estabelecida na Criação.
os
condições
casamentos, e
doações
e
sobre
as
envolvidas
no
processo matrimonial.
O casamento
atua
prólogo como
garantido
também sendo
a
define o
o
primeiro
A Partida IV segue tratando da
sacramento e que garante a existência dos
filiação e das relações entre pais e filhos.
demais. Compara-o então ao Sol, que,
Primeiro vêem os filhos legítimos. Depois
estando no centro do céu, ilumina os sete
os naturais e ilegítimos; os filhos adotivos;
planetas. Também o associa ao coração,
o poderio dos pais sobre os filhos e as
que, estando no centro do corpo, leva a
regras básicas que envolvem a criação e a
vida ao todos os membros. A Partida IV,
educação. Em seguida os redatores da
por tratar do casamento e das relações
Partida IV tratam de outras relações, à
dele derivadas, é entendida segundo essas
primeira vista não derivadas do casamento.
mesmas idéias. Pretende-se assim que
Estas correspondem às principais dívidas
ilumine as outras e lhes forneça alimento
existentes entre os homens, em cada um
vital, de forma que possam existir e se
dos seus grandes estratos. São elas: a
manifestar. Essas associações justificam o
servidão,
posicionamento do casamento no meio das
a naturalidade (dos homens
livres), a vassalagem (os vassalos e seus senhores), e a amizade. Os títulos da Partida IV parecem
Siete Partidas. Lê-se: “E por esso lo pusimos en medio de las siete
Partidas deste libro; assi como el coraçon es puesto en medio del cuerpo, do es el spiritu del
seguir assim uma progressão, cujas bases
ome, onde va la vida a todos los membros. E otrosi
foram apresentadas no Prólogo. O livro
como el Sol que alumbra todas las cosas, e es
passa do matrimônio para a filiação e, por fim, para a sociedade, fundada com base
puesto en medio de los siete Cielos, do son las siete estrellas, que son llamadas Planetas. (...) Ninguna destas ( das outras seis partidas) non se
336
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo podria cumplir derechamente, si non por el linaje, que sale del casamento, que se cumple por ayuntança de ome e de muger.
E por esso lo
dotes – e as doações e as arras – (T. XI); as segundas núpcias (T. XII); os filhos
pusimos en la quarta Partida deste libro, que es en
legítimos (T. XIII); os filhos ilegítimos (T.
medio de las siete; asi como puso nuestro Señor el
XV); e os filhos adotados (T. XVI). 5
Sol en el quarto Cielo, que alumbra todas las estrellas, segund cuenta la su Ley.” (ALFONSO X, 1843, p. 466)
Os seguintes doze títulos – que constituem cerca de metade do total da IV
O direito matrimonial da Partida IV é
Partida – não correspondem aos temas da
herdeiro direto das Decretais de Gregorio
IV Decretal, e se referem, respectivamente:
IX (1234), adotadas como texto oficial da
às barregãs (T. XIV); ao poder dos pais
Universidade Bolonha. Muitas das ideias
sobre os filhos (T. XVII) e as razões porque
evocadas na Partida IV remetem para as
o podem perder (T. XVIII); à criação dos
disposições do quarto livro das Decretalium
filhos (T. XIX); aos criados – que não são
Gregorii
ao
filhos – (T. XX); aos servos (T. XXI); à
matrimônio. Inclusive, a própria disposição
liberdade dos servos (T. XXII); ao estado
das matérias na Partida IV é um reflexo da
dos homens (T. XXIII); às dívidas de
disposição da IV Decretal de Gregório IX
naturalidade (T.XXIV); aos vassalos (T.
(MARTÍN, 2001, p. 3-4).
XXV); aos feudos (T. XXVI); e à dívida de
IX,
também
dedicado
A IV Partida contém duzentas e
amizade (T. XVII) 6.
cinquenta e cinco leis distribuídas por vinte
A
conceituação
principal
do
e sete títulos. Desses, os quinze primeiros
casamento, correspondente ao conteúdo
correspondem majoritariamente aos temas
do
da Quarta Decretal. São, respectivamente:
configura-se como uma tradução da Quarta
noivados
Decretal – e, assim, como uma tradução do
(T.
casamentos
I);casamentos escondidos
(T.II);
(T.III);
as
primeira
Direito
metade
Canônico
da
Partida
matrimonial
IV,
clássico
condições colocadas nos noivados e nos
(MARTÍN, 2001, p. 4). As leis da metade
casamentos (T. IV); os casamentos dos
restante remetem em grande parte ao
servos (T.V); o parentesco e a cunhadia,
direito laico, muitas vezes oriundo da
que impedem os casamentos (T. VI); o
tradição jurídica castelhana, baseada em
parentesco por batismo e adoção, que
usos e costumes. Essas leis, nas quais o
impede
os
casamentos
(T.
VII);
a
incapacidade de consumar o matrimônio (T. VIII); as acusações para romper um matrimônio (T. IX); o divórcio (T.X); os
5GREGORIO
IX. Decretalium D. Gregorii Papae IX, Liber
Quartus. In: Corpus Iuris Canonici, v. 2. Leipzig: Akademische Druck-U.Verlagsanstalt Graz, 1959. 6Idem.
7 337
Luísa Tollendal Prudente
rei rege os frutos oriundos do casamento,
percebe
sejam eles a filiação ou a ordem feudal da
normatização do matrimônio e um modelo
sociedade, são aquelas onde melhor se
societal construído pelo rei.
uma
articulação
entre
a
Referências: Fontes:
Cuarta Partida. In: ALFONSO X. Las Siete Partidas (Glosadas por el Licenciado Gregório López). Madrid: Compañía General de Impresores y Libreros del Reyno, 1843. Bibliografia: FERNÁNDEZ-ORDOÑEZ, Inés. Evolución del pensamento alfonsí y transformación de las obras jurídicas e históricas del rey sábio. In: Cahiers de linguistique hispanique médiévale, Paris, v. 23,p. 263-283, 2000. GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel. De las conquistas fernandinas a la madurez política y cultural del reinado de Alfonso X. In: Alcanate: revista de estúdios alfonsíes. Puerto de Santa María, v. 3,p.19-54, 2002-2003. GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel. Alfonso X el Sabio: historia de un reinado (1252-1284). Burgos: La Olmeda, 1999. KLEINE, Marina. “El rey que es fermosura de Espanna” : imagens do poder real na obra de
Afonso X, o Sábio (1221-1284). Porto Alegre, UFRGS, 2005. MARTIN, Georges. Le concept de “naturalité” (naturaleza) dans les Sept Parties, d’Alphonse X le Sage. In: Revue interdisciplinaire d’ études hispaniques médiévales et
modernes, Paris, n. 5, 2008. MARTÍN, José-Luis. El processo de institucionalización del modelo matrimonial Cristiano. In: La família em la Edad Media: XI Semana de Estudios Medievales. Nájera, p. 151-171, 2001. PÉREZ, António Martín. La obra legislativa alfonsina y puesto que en ella ocupan las Siete Partidas.In: Glossae: revista de história del derecho europeo. Murcia, v. 3, p. 9-63, 1992. VALDEÓN BARUQUE, Julio. Alfonso X el Sabio: la forja de la España Moderna. Madrid: Temas de Hoy, 2003.
338
O RETRATO DO ARTISTA MEDIEVAL: SOBRE A AUTORIA E A POLIFONIA DO ROMAN DE LA ROSE EM TEXTO E IMAGEM. Luiz Fernando Alves 1.
Resumo: Objetivo, nesta comunicação, analisar como a forma literária do Roman de la Rose permite que se o entenda como uma polifonia onde as intenções dos poetas que o escreveram se escondem sob a forma do sonho, da alegoria e do decorum. Tanto Guillaume de Lorris quanto Jean de Meun utilizam-se de recursos retóricos a fim de que o poema se torne passível de múltiplas interpretações, uma plena obra aberta. As iluminuras que figuram Jean de Meun como autor também abrem a possibilidade de se apreender certo sentido de consciência autoral por parte de alguns artistas. Para defender esta última hipótese, comparo dois manuscritos: MS Harley 4425 e Genève MS 178.
Palavras-chave: Roman de la Rose; História Cultural; Cultura Visual.
1
Mestrando em História pela UNESP (FCL/ASSIS). Bolsista FAPESP.
339
Luiz Fernando Alves
1. Se Erich Auerbach dizia que “de
Sigo aqui a cronologia de Noah D. Guynn
cada obra de arte podemos dizer que é
(GUYNN; 2008, p. 48), mas no prólogo à
determinada essencialmente por três fatores:
edição espanhola, Carlos Alvar, “por distintas
a
a
referências internas da obra”, situa o início
singularidade de seu criador” (AUERBACH;
da escrita de Jean entre 1268 e 1278
2013, p. 17), então uma análise do Roman
(ALVAR; 1986, p. xi). Sobre Guillaume pouco
de la Rose que leve em conta sua tradição
ou nada se sabe, além de que era do norte
manuscrita, e não apenas sua publicação em
da França. Pode-se inferir questões a
edições
uma
respeito de seu status social a partir das
multiplicidade de Romances, determinados
referências eruditas do poema, mas não se
por uma contínua cópia a partir de diversas
pode dizer com certeza quem ele foi ou quais
origens (do século XIII ao XVI), lugares (da
eram suas intenções. Jean, que traduziu
França à Holanda) e mesmo criadores (a
para o francês a Consolação da Filosofia, de
interpolação de Gui de Mori no poema é só a
Boécio, e as Cartas de Abelardo e Heloísa,
mais
interessante
também foi professor em Paris. Contudo, no
história de transmissão de manuscritos e
processo de cópia de manuscritos, alguns
edições modernas do poema tem sido objeto
copistas como Gui de Mori, Girard Acarce e
de outros estudos (cf. FRIEDEN, 2012), e
Clément
por
aqui
poema (NICHOLS; 2006, p. 84), e também
detidamente; é suficiente dizer que nos
as iluminuras, como espero demonstrar,
restaram cerca de 300 manuscritos do
acabam guiando a leitura iconicamente, ou
poema,
mesmo
época
de
sua
origem,
modernas,
conhecida
isso
e
dela
que
lugar,
revelará
delas).
não
o
A
me
poucas
ocupo
obras
literárias
Marot
revelando
medievais rivalizam com o Roman de la
autoral por
Rose em termos de difusão espacial e
manuscritos.
temporal.
comunicação,
Guillaume
de
Lorris
começou
a
compor o poema na primeira metade do século XIII, talvez entre 1225 e 1245. Jean de Meun, entre 1268 e 1285, adicionou cerca de 18 mil versos aos 4 mil de Guillaume.
adicionaram
alguma
parte dos Para
o
escolhi
trechos
consciência
iluminadores propósito citar
ao
os
de
desta versos
seguindo a edição de Pierre Marteau (1878), que teve como base o texto de Dominique Méon, de 1814. 2.Quando se pensa no problema da autoria
na
moderna
crítica
histórica
340
e
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
literária, talvez o primeiro texto que se nos
autor não se está necessariamente falando
afigure à memória seja a conferência sobre
do problema do sujeito – tal como posto na
“O que é um autor” apresentada por Michel
metafísica, por exemplo.
Foucault
Societé
na
Française
de
Philosophie em 22 de fevereiro de 1969, posteriormente publicada no Bulletin da Societé na edição de julho-setembro daquele mesmo ano. Na ocasião da conferência houve um debate com M. de Gandillac, L. Goldmann, J. Lacan, J. d’Ormesson, J. Ullmo, J. Wahl. A tese de Foucault pode ser resumida
em
uma
frase:
há
poucos
fundadores de discurso.
Mesmo alguns escritores já haviam lidado com a questão, como Rabelais em
Contra a Alegoria, Proust em Contra SaintBeuve – onde desenvolve a teoria do eu profundo em contraposição ao eu social –, e Borges em Pierre Ménard, autor do Quixote. T. S. Eliot, em 1929, expôs a teoria de que o poeta fala não através de uma psique intencional/pessoal, mas de um meio poético que ele chama de “tradição”, em seu ensaio
de
Tradition and the Individual Talent. Émile
Foucault não era propriamente novo à
Benveniste em La nature des pronoms, de
época. Antes, estruturalistas, new critics, e
1956, propõe a noção de escriptor, que seria
formalistas russos, já se preocupavam com
um
questões como a da “intenção” do autor, a
linguístico, um ser de papel, não uma pessoa
fim de tentar assegurar a independência dos
no sentido “psicológico”; isto é, o sujeito da
estudos de textos literários em relação à
enunciação não preexiste à sua enunciação,
História e à Psicologia – por isso se
mas se produz com ela. Mallarmé buscou
destacavam
O
problema
posto
sujeito
no
sentido
gramatical
ou
de
fazer isso de sua obra: uma tentativa de
“intertextualidade”,
por
desaparecimento elocutório de si mesmo, a
exemplo. O autor era visto como resquício da
fim de que o poeta cedesse sua presença às
época do individualismo humanista ou do
palavras.
conceito de gênio: “a presença do autor
ocupara da questão em La mort de l’auteur,
enquanto ‘indivíduo’ em sua obra deriva da
de 1968; para ele, “o escritor não pode
teoria do ‘gênio original’, impossível antes do
definir-se em termos de função ou de valor,
século dezoito” (NICHOLS; 2006, p. 78).
mas apenas por uma certa consciência de
Importante lembrar que quando se fala em
fala. É escritor todo aquele para quem a
e
como
artigo
os
“literariedade”
conceitos
no
Também
Roland
Barthes
341
se
Luiz Fernando Alves
todo
l’Apocalypse de saint Jean à la Divine
aquele que experimenta a sua profundidade,
Comédie de Dante, ont joué un rôle
não a sua instrumentalidade ou beleza”
fondamental dans le développement de la
(BARTHES; 1987, p. 46).
religion
linguagem
constitui
Pode-se
um
encontrar
problema,
no
período
et
des
lettres
en
Occident »
(SCHMITT ; 1996, p. 5).
medieval alguns autores que em seus textos
Guillaume de Lorris começa o poema
demonstram certa consciência da vida em
nos falando de Macróbio, que foi um autor
relação à escrita, como as Confissões, de
latino que viveu em fins do quarto século. Em
Santo Agostinho, a Vita Nuova, de Dante
seu comentário ao “Sonho de Scipião”, ele
Alighieri, a Historia Calamitatum, de Pedro
estabeleceu
Abelardo, e a Carta à Posteridade, de
somnium, visio, oraculum, insomnium, visum.
Petrarca. O primeiro manuscrito assinado por
Os três primeiros tipos podem conter algo de
um
verdadeiro, mas precisam ser interpretados.
autor
medieval,
contudo,
seria
o
Canzoniere, de Petrarca, de 1300.
retórica
antiga,
“o
autor
enquanto
intenção e o autor enquanto estilo eram muitas vezes confundidos, e uma distinção jurídica – voluntas e scriptum – foi ocultada por uma distinção estilística – sentido próprio e sentido figurado” (COMPAGNON; 2003, p. 54). Penso que é essencialmente dessa forma que a questão do autor acaba se impondo no estudo do Roman de la Rose. A narrativa se passa num sonho que, na cultura medieval, também corresponde à “visão espiritual” – explica Jean-Claude Schmitt que ela é a « intermédiaire et médiatrice entre le corps et la raison : des genres
narratifs
s’y
déploient
gêneros
de
sonhos:
Provavelmente é esta a razão de o poeta
De acordo com Antoine Compagnon, na
cinco
qui,
de
medieval comentar nestes primeiros versos que se pode ter sonhos que se revelam verdadeiros depois que se analisa a sua « senefiance ». Sobre o sentido deste termo na idade média : « On appelle ‘senefiance’ le second terme du symbole, la leçon de morale ou de sagesse, l’application mystique et aussi l’exemple d’où une leçon est tirée » (GUIETTE ; 1954, p. 114). Portanto, o poeta nos convida a ler o texto do poema que se seguirá para além de seu significado literal. Ele continua a narrar um sonho que o Amante (L’Amant), então com 25 anos, tivera cinco anos antes, fazendo do Roman de la
Rose
provavelmente
o
primeiro
texto
alegórico medieval em primeira pessoa no
342
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
qual a personagem da trama é o poeta que a enuncia. Mas a questão da autoria aqui é obscurecida
por
inúmeras
contradições
internas do romance. O sonho revelaria algo de verdadeiro, pois há sonhos que à noite nos
contam
“secretamente”
coisas
que
depois se revelam “abertamente” (car li
plusors songent de nuitz / maintes choses couvertement
/
que
l’en
voit
puis
Imagem I
apertement), mas Guillaume insiste em adiar a revelação da « senefiance » do poema, e, por fim, o deixa incompleto. Depois, ao continuar a escrevê-lo, Jean de Meun dará um rumo totalmente diferente à trama, que se poderia entender quase como um poema completamente
distinto
–
tanto
que
a
dualidade do poema é um dos tópicos da historiografia sobre o romance; Alexandre Leupin, por exemplo, sugeriu enquadrar os dois autores em uma fita de möbius (figura 1), a fim de resolver o debate « de l’unité et de la dualité en représentant en même temps,
sur
une
surface
unilatère
qui
représente le texte, l’unicité et la différence réciproques. » (LEUPIN; 2006)
3. Stephanie Kamath (KAMATH; 2012, p. 25-26) lembra que Boaventura propôs a seguinte
distinção:
auctor
(aquele
que
compõe), scriptor (aquele que copia), e, entre estes dois, o compilator (que organiza a partir de obras de outros autores), e o
commentator
(que
faz
comentários
ao
trabalho do compilador) – estes não são, claro, conceitos fechados. A obra de Jean de Meun pode ser entendida, também, como a de um compilador. No trecho em que o autor
humildemente se desculpa às damas pelo romance, Jean diz que se parecesse “às damas honradas” que ele estivesse a escrever fábulas, não o tomassem por mentiroso, mas, antes, aos autores dos livros que escreveram as coisas sobre as quais ele diz e ainda dirá no poema (d’autre part,
dames honorables / s’il vous semble que ge di fables / por mentéor ne m’en tenés, / mès
343
Luiz Fernando Alves
as Auctors vous en prenés, / qui en lor livres
tantas outras características negativas que
ont escrites / les paroles que g’en ai dites, /
eram atribuídas às mulheres no período
et ceus avec que g’en dirai); que ele não faz
medieval. Porém, é necessário individualizar
senão “recitar” (ge n’i fais riens fors reciter),
o que as personagens dizem sobre o amor
e, que se adiciona alguma palavra à
ou as mulheres, pois a “voz” de Jean de
narrativa, é por intenção da arte do poeta
Meun se esconde sob as contradições que
que deseja ensinar deleitando e instruindo
suas personagens afirmam – há, no poema,
(profit
et delectacion / c’est toute lor
críticas veementes ao caráter dos homens,
entencion). Isso permite a Jean de Meun
por exemplo. Jean convida os Amantes que
dizer
contraditórias
o leem a verem nele seu “espelho de
escondendo sua intenção ao afirmá-las.
enamorados” (miroir aux amoureux), mas,
Passo a um exemplo. Nesta segunda parte
sem
do poema, há ataques às mulheres e ao
embaçado, como uma janela coberta de
casamento – o famoso topos medieval das
vapor na qual você passa a palma da mão a
moléstias das núpcias (molestiae nuptiarum)
fim de tornar a visão através dela mais clara,
–, que motivaram Christine de Pizan a
mas que logo depois volta a se cobrir de
levantar a primeira querela literária da
brumas. Há uma polifonia de vozes no
França, iniciada em 1399, a partir de
romance, e perceber isso é importante
L’epistre au dieu d’Amours (Epístola ao deus
porque permite relativizar leituras como a de
do Amor), algo como uma resposta ao
Howard
Roman de la Rose. Howard Bloch, já no
digressões de vários personagens alegóricos
século
a
que falam de acordo com sua natureza
misoginia – que, em seus próprios termos,
(decorum), e por isso alguns, por exemplo,
significa “um modo de falar sobre, distinto de
atacam
se fazer algo às mulheres, embora o
enquanto outros defendem sua liberdade
discurso possa ser uma forma de ação e até
contra a submissão aos homens. John Fyler
de prática social, ou, no mínimo, seu
diz que, assim como os Contos da Cantuária,
componente ideológico” (BLOCH; 1991, p. 4)
de Chaucer, “o Roman é uma obra com
– do poema, nos trechos em que afirma os
muitas vozes competitivas; e sua questão
tópicos da volubilidade e sensualidade e
central
as
XX,
coisas
analisou
mais
ostensivamente
dúvida,
trata-se
Bloch.
as
é
No
mulheres
se
alguma
de
um
poema
e
o
destas
espelho
desfilam
casamento,
vozes
344
é
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
autoritativa” (FYLER; 2007, p. 70). Será
permanece em completo contraste com o
possível sabê-lo? Para o próprio Fyler esta é
claro privilégio da fala masculina” (GUYNN;
uma questão inconclusiva.
2004, p. 658), e contradiz o argumento de
Se tomamos, por exemplo, o discurso de Velhice (Vieille), a partir dos versos 13766, lemos que ela afirma que a razão de queda das mulheres é a de serem leais a um só homem – elas nascem livres, mas são
Payen de que “o Roman de la Rose resiste ao seu próprio contexto cultural e oferece um manifesto fundada
para sobre
‘uma o
liberdade
livre
sexual
consentimento’”
(Ibidem).
constrangidas pelo casamento e a lei –, e os
O Roman de la Rose é, portanto, um
casamentos são infelizes pois não estão de
dos exemplos mais notáveis da poética da
acordo com os preceitos da Natureza. Assim,
contingência analisada por Daniel Heller-
ela diz ao Amante que não tenha dúvidas de
Roazen – este afirma que o sentido da
que Natureza fez “todas para todos e todos
linguagem
para todas”, “cada uma comum a cada um,
explicada por filósofos medievais, é uma
cada um comum a cada uma” (ains nous a
definição precisa da linguagem poética como
fait, biau filz, n’en doutes / toutes por tous et
“aquele discurso que, enquanto formalmente
tous por toutes, / chascune por chascun
indistinguível do discurso em sua forma
commune,
por
canônica, não predica, asserta, ou sustenta
chascune vv. 14487-14490). A Natureza é
verdade e falsidade, e, portanto, não é, num
implacável e logo cobra das mulheres que se
sentido estabelecido, discurso” (HELLER-
deixam aprisionar pela lei ou casamento, e
ROAZEN; 2003, p. 26). Além de Guillaume e
elas “se esforçam de todo jeito, para
Jean
retomarem suas liberdades” (Si s’efforcent
possibilitam múltiplas leituras do Roman,
en toutes guises / De retorner à lor
tornando-o uma autêntica obra aberta, as
franchises vv. 14497-14498). São versos
interpolações feitas no poema por outros
extraordinários
alguns
escritores reforçam este aspecto contingente
medievalistas, como Daniel Poirion e Jean-
da poética do romance. Mas penso que
Charles Payen, a considerar a poética de
também se pode perceber isso a partir da
Jean Meun subversiva. Para Noah D. Guynn,
consciência autoral de alguns artistas que
/
et
chascun
que
commun
levaram
da
utilizarem
contingência,
formas
tal
retóricas
como
que
contudo, “a mudez (speechlessness) da rosa
345
Luiz Fernando Alves
iluminuram manuscritos do poema, como
l’Acteur muë propos / pour son honneur et
passo a tentar demonstrar.
son bon loz, / garder, en priant qu’il soit
4.
Escolhi
para esta análise
os
quictes / des paroles qu’il a cy dictes).
manuscritos Harley MS 4425 (datado entre 1490-1500) e Genève MS 178 (copiado em 1353, mas não necessariamente iluminado neste ano).
Imagem III: Detalhe de miniatura do Roman
de la Rose, França (Paris), c. 1353. MS 178, f. 31v.
Outro recorte de iluminura (Imagem III).
Acima,
versos
em
vermelho
que
funcionam como legenda da imagem: só o último aparece, mas são três versos nos Imagem II: Detalhe de miniatura do Roman de la
Rose, Holanda (Bruges), c. 1490 – c. 1500. MS Harley 4425, f. 133r.
quais se diz que aqui começa o romance que o “mestre Jean de Meun” aperfeiçoará “até o fim”, e a seguir “Amante fala” (jusqu’en la fin;
Cortei aqui apenas o detalhe da
l’amant parle); abaixo, o Amante diz que por
iluminura que corresponde à imagem do
pouco não se desespera de haver perdido a
poeta (Imagem II). Em vermelho, segue a
esperança de colher a Rosa (et si l’ai-ge
inscrição de que a partir daqui, a fim de
perdue, espoir, / a poi que ne m’en
preservar sua honra e boa reputação, o autor
desespoir).
muda de propósito, e pede que seja isento das palavras ditas no romance (comment
346
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
O primeiro manuscrito é originário do
especialmente, ao vê-los com maior atenção,
sul da Holanda (Bruges), e pertenceu a
se percebe uma diferença fundamental na
Engelbert II, Conde de Nassau e Vianden (d.
disposição das duas colunas de texto: no MS
1504), e líder do Conselho Privado do Duque
178 a disposição do texto é indiferente, mas
da Borgonha. O segundo foi propriedade de
no MS 4425 há um espaço para o iluminador
Jean Budé, Conselheiro do Rei Charles V, e,
também atuar como autor. Talvez se possa
também, muito provavelmente, pertenceu ao
dizer, sem risco, que o iluminador fez uma
famoso Jean, Duque de Berry e Conde de
metalinguagem de seu próprio trabalho no
Poitou e de Auvergne. O primeiro foi
poema.
iluminado por um artista conhecido como Mestre do Livro de Orações, e o segundo pelo artista “L”, de um ateliê parisiense. Segundo a página da biblioteca britânica, o manuscrito Harley teria sido copiado de uma edição do romance impressa em Lyon, em cerca de 1487, e os iluminadores não teriam seguido os desenhos do exemplar impresso. Isso também diz algo sobre a cultura medieval: a imprensa de tipos móveis não deu fim imediato à cópia de manuscritos bela e ricamente iluminados. Mas, por que estes manuscritos são
5. Ao mesmo tempo em que o poema é uma narrativa em primeira pessoa de um Amante que se identifica com o poeta, a linguagem
alegórica
do
poema,
e
as
insistentes lembranças de que o significado do sonho será revelado – ainda que não o seja –, nos levam a considerar que há outra coisa ali que não se identifica com Guillaume de Lorris; ao mesmo tempo em que Jean de Meun faz uma apologia de si mesmo enquanto
autor,
compilador transferindo,
de em
coloca-se
como
autoridades algum
um
antigas,
sentido,
a
de interesse na análise? Além das diferenças
responsabilidade daquilo que diz, que se
espaciais, já ditas acima, há uma diferença
esconde sob o decorum com que é dito; ao
temporal de aproximadamente 150 anos
mesmo tempo que se trata de um único
entre o MS 178 e o MS 4425. As referências
poema, ele é escrito por dois autores em
de moda, naturalmente, são diferentes.
dois momentos históricos diferentes. Se
Enquanto o Amante do manuscrito de
lemos o poema a partir de determinado
Genève lembra um clérigo ou monge, o de
manuscrito, como o Harley 4425, é possível
Harley é um sofisticado cortesão. Mas,
encontrar um iluminador consciente de sua
347
Luiz Fernando Alves
própria intervenção na obra, multiplicando
que há tantos autores dos Romans de la
ainda mais a autoria. Talvez se possa dizer
Rose quantos são os manuscritos.
Referências: ALVAR, Carlos. Prólogo. In: LORRIS, Guillaume de; MEUN, Jean de. El libro de la Rosa. Madrid: Siruela, 1986. AUERBACH, Erich. A novela no início do renascimento: Itália e França. Trad.: Tercio Redondo. São Paulo: Cosac Naify, 2013. BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. Trad.: Madalena da Cruz Ferreira. Lisboa: Ed. 70, 1987. BLOCH, R. Howard. Medieval misogyny and the invention of Western romantic love. Chicago: The University of Chicago Press, 1991. COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria: literatura e senso comum. Trad.: Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: UMFG, 2003. DUBUIS, Robert APUD FRADE, José Manuel Oliver; DORESTE, Dulce María González. La mise en page de la fiesta en dos manuscritos del « Roman de la Rose ». In : REAL, E.; JIMÉNEZ, D.; PUJANTE, D. y CORTIJO, A. (eds.), Écrire, traduire et représenter la fête. Valência: Universitat de València, 2001. FRIEDEN, Philippe. « Le Roman de la Rose, de l’édition aux manuscrits », Perspectives
médiévales [En ligne], 34 | 2012, mis en ligne le 10 septembre 2012. URL : http://peme.revues.org/290 Consulté le 18 août 2014. FYLER, John M. Language and the declining world in Chaucer, Dante, and Jean de Meun. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. GUIETTE, Robert. Symbolisme et « Senefiance » au Moyen-âge. In: Cahiers de l’Association
internationale
des
études
francaises,
1954,
N°6.
pp.
107-122
url
:
/web/revues/home/prescript/article/caief_0571-5865_1954_num_6_1_2051 Consulté le 18 août 2014. GUYNN, Noah. D. Authorship and Sexual/Allegorical Violence in Jean de Meun’s “Roman de la Rose”. Speculum, Vol. 79, No. 3 (Jul., 2004). url : http://www.jstor.org/stable/20462976 Consultado em 18 de outubro de 2014.
348
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
GUYNN, Noah D. Le Roman de la rose. In: GAUNT, Simon; KAY, Sarah (org.). The
Cambridge Companion to Medieval French Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. HELLER-ROAZEN, Daniel. Fortune’s faces: the Roman de la Rose and the poetics of contingency. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, 2003. KAMATH, Stephanie A. Viereck Gibbs. Authorship and First-Person Allegory in Late Medieval
France and England. Cambridge: Brewer (« Gallica » 26), 2012. LEUPIN, Alexandre. L’hérésie littéraire : Paradigmes textuels dans le Roman de la Rose. In : BEL, Catherine Bel ; BRAET, Herman. De la Rose. Peeters : Louvain, 2006, pp. 59-80. url : http://www.alexandreleupin.com/publications/rose.htm Consulté le 19 août 2014. LORRIS, Guillaume de ; MEUN, Jean de. Le Roman de la Rose. Holanda (Bruges), Master of the Prayer Books, c. 1490 – c. 1500, Harley Ms. 4425, London, British Library. url: http://www.bl.uk/catalogues/illuminatedmanuscripts/record.asp?MSID=7465 Consulté le 19 août 2014. LORRIS, Guillaume de ; MEUN, Jean de. Le Roman de la Rose. MEUN, Jean de. Le Testament. França (Paris), 1353, Ms. fr. 178., Genève, Bibliothèque de Genève. url : http://www.e-codices.unifr.ch/fr/list/one/bge/fr0178 Consulté le 19 août 2014. MARTEAU, Pierre. Le Roman de la Rose. Tome premier/troisième. Orléans : H. Herluison, 1878
url
:
http://www.gutenberg.org/files/16816/16816-h/16816-h.htm
e
http://www.gutenberg.org/files/44403/44403-h/44403-h.htm Consulté le 19 août 2014. NICHOLS, Stephen G. The medieval “author”: an idea whose time hadn’t come? In: GREENE, Virginie (org.). The medieval author in medieval French literature. New York: Palgrave Macmillan, 2006. SCHMITT, Jean-Claude. « La culture de l’imago », dans Annales H.S.S., 51, 1996/1, p. 3-36. URL:
http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/ahess_0395-
2649_1996_num_51_1_410832 Consulté le 19 août 2014.
349
PROPRIEDADES MORFOSSINTÁTICAS DOS VERBOS ESTATIVOS: UM OLHAR SOBRE O SISTEMA VERBAL LATINO Luiz Pedro da Silva Barbosa 1 Lívia Lindóia Paes Barreto(Orientadora) Resumo: Este trabalho é uma amostragem dos estudos desenvolvidos durante o curso de mestrado em Estudos da Linguagem e tem como objeto de pesquisa o sufixo –ē, formador de verbos com valor de estado, em Latim. Verbos com esse sufixo estão enquadrados na chamada 2ª conjugação. A proposta de trabalho está dividida em suas etapas: em primeiro lugar, descrição dessas formações verbais, do ponto de vista histórico, sob aspectos mais concretos da linguagem – fonologia, morfologia e sintaxe; a segunda etapa enfoca uma análise da transitividade de construções com esses verbos, selecionadas apenas as mais prototípicas. Paralelamente, busca-se associar alguns dos parâmetros utilizados para a análise com as características de prototipicidade dos mesmos. Após a análise, os resultados foram bastante próximos do protótipo. Ainda restam diversas dúvidas envolvendo os verbos estativos, as quais esperamos abordar e investigar em trabalhos posteriores. Palavras-chave: Morfossintaxe; transitividade; verbos de estado
1
Universidade Federal Fluminense.
350
Luiz Pedro da Silva Barbosa
1- Introdução
o que ocorre apenas nos temas de
Este trabalho é um produto dos
infectum. Esse agrupamento é feito para
estudos realizados durante o mestrado em
facilitar o aprendizado daqueles que estão
Estudos da Linguagem e tem como foco de
dando os primeiros passos no Latim, mas
pesquisa o sufixo latino –ē, formador dos
poucos manuais há que lançam mão de
verbos
uma classificação descritiva e aprofundada.
de
segunda
conjugação,
que
indicam estado (cf. ERNOUT, 2002a, p.
Essa necessidade é atestada há muito: Resta-nos
144). Nosso trabalho apresenta um novo
clássica
olhar sobre a conjugação latina afastando-
sistema
verbal
em
verbos
tratar
latinos
da
divisão
em
quatro
falha, não só por não se poder aplicar em geral às formas do perfectum, como também, mesmo
tradição gramatical da Língua Latina, que o
dos
apenas
conjugações. Aliás, esta divisão é inteiramente
se daquele estabelecido ao longo da divide
agora
no que diz respeito ao infectum, por reunir
quatro
verbos com características diversas. (FARIA,
conjugações, de acordo com a vogal
1958, p.240)
temática.
Nossos estudos estão baseados nas
O trabalho está dividido em duas
descrições de MONTEIL, 1974, que aborda
etapas: a primeira etapa apresenta uma
o verbo latino a partir de características
descrição, do ponto de vista diacrônico, das
como seus processos de formação e
características desse grupo de verbos, com
flexão,
base em estudos anteriores, desenvolvidos
“conjugações”. A divisão, por ele utilizada e
por Faria, 1958 e Monteil, 1974. A segunda
aqui seguida, leva em conta também os
etapa enfoca uma análise do nível de
sufixos formadores dos temas.
transitividade
construções
utilizar
a
denominação
mais
A partir destes conceitos chega-se
prototípicas com os verbos estativos, a
ao grupo dos verbos estativos. São verbos
partir de exemplos de uso em textos
que compõem a chamada 2ª conjugação,
latinos, sob o viés da Linguística Funcional.
comumente chamada de conjugação com
quatro
em
sem
2- Breve histórico do objeto
“vogal temática” em ē, que, no entanto,
O sistema verbal latino é dividido em
consideramos como morfema e sobre o
tipos,
chamados
conjugações,
qual nos debruçaremos, em diferentes
agrupados segundo a vogal que segue a
níveis gramaticais – fonológico, morfológico
raiz, precedendo as desinências flexionais,
e sintático.
351
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
adjetivo aridus, que por sua vez dá origem
2.1- Fonologia: esse
ao verbo ardeo, arsi: se o perfectum
morfema é originado de uma forma “–eH 1 “
sonântico é o mais recente e o que se
indoeuropeia (cf. MONTEIL, 1974, p. 292),
tornou o principal na passagem do Latim às
que no seu vocalismo pleno se reduz, na
línguas neolatinas (cf. VÄÄNÄNEN, 1967,
passagem ao latim, ao um ē. A noção
p. 151), era de se esperar que ele
desse processo mostra o quão antigo é
aparecesse no verbo derivado (ardeo), já
esse sufixo nas línguas indoeuropeias. Em
que é o mais recente, o que resultaria em
grego, a evolução fonética também resultou
*ardui, e não arsi, forma atestada. A ruptura
em η.
com o esperado ainda aumenta quando
No
nível
mais
concreto,
2.2- Morfologia:
lembramos que o perfetum sigmático é
A partir do estudo da morfologia e da
derivado do aoristo (note-se o aoristo grego
sintaxe, chegamos ao estágio histórico da
em –σα), mas também que o próprio sufixo
língua, ou seja, fase apreensível por meio
estativo tem uma estreita relação com o
dos textos que chegaram até nós. Portanto,
aoristo.
o que se pode ver, no Latim, é um grupo de
momento, não é nosso objetivo estudá-la.
verbos bem determinados com valor de
Essa
Aliás,
o
dúvida
persiste
e,
no
–ē, no antigo estágio
estado (calleo – estar quente; frigeo – estar
indoeuropeu, era formador, justamente, de
frio; oleo – exalar odor), em sua grande
temas de aoristo, não de presente. O Latim
maioria com vocalismo zero do radical (cf.
inova ao utilizá-lo em seus temas de
MEILLET, 1948, p. 285).
infectum. A explicação para tal uso na
O sufixo estativo é registrado, com frequência,
apenas
nos
tempos
Língua Latina pode vir da semântica do
do
aoristo, que indica, geralmente, uma ação
infectum. O perfectum desses verbos,
que atingiu um certo estado (cf. MEILLET,
geralmente segue a formação de tipo
op. cit., p. 184).
sonântico, em –ui, porém dessa vez ligado
Interessante é ressaltar também que
diretamente ao radical, ou então do tipo
os verbos desse grupo apresentam, com
sigmático, em –si. Esta última formação
grande
levanta dúvidas em relação, por exemplo,
adjetivo em –ĭdus e um correspondente
ao verbo areo, arui que dá origem ao
substantivo em –ŏr. (calleo/callidus/callor –
frequência,
um
correspondente
352
Luiz Pedro da Silva Barbosa
quente/quente/calor,
modo que o valor original é muito menos
timeo/timidus/timor – temer/tímido/temor,
recorrente (note-se que ele continua seu
entre outros). Às vezes, a língua só registra
processo de mudança até alcançar o
estar
um
desses
derivados
doer/dor;
(doleo/dolor
placeo/placidus
agradar/agradável),
o
que
–
estágio de verbo auxiliar nas línguas
–
neolatinas).
permanece
O valor transitivo estaria reservado aos seus pares sem o sufixo, mas a
ainda sem explicação. Muitos desses verbos possuem um
analogia teria tornado cada vez mais opaca
par, sem o sufixo, mas com o mesmo
a diferença entre eles. Rubio (1989, p. 125)
radical, alocados na 3ª conjugação, por
esclarece que não há diferença entre os
fazerem um infinitivo em -ĕ (ferueo/feruo –
tipos de complementos usados nesses
iaceo/iacio
–
verbos; como todos são verbos com
jazer/atirar). De um modo geral, a presença
construção em acusativo, todos tem o
do sufixo torna o verbo intransitivo.
mesmo valor de objeto, uma vez que,
estar
fervendo/ferver;
Enfim,
novos
compostos
foram
criados, baseados nesses verbos, com a
segundo ele, os casos latinos possuem um valor unitário.
adição do sufixo incoativo –sc, que indica o
Portanto, é mais prudente afirmar
início de um processo (rubeo/rubesco –
que a transitividade ou intransitividade dos
estar vermelho/avermelhar; areo/aresco –
verbos estativos depende de fatores mais
estar seco/secar).
subjetivos empreendidos pelos autores,
2.3- Sintaxe: Os
estudos
relacionados de
Sintaxe
a
contextos
diversos.
A
Latina,
fronteira entre transitivo e intransitivo não é
tradicionalmente, afirmam que os verbos
clara e o uso será fundamental para a
estativos são intransitivos em sua origem,
descrição de características gramaticais (cf.
mas que ganham usos transitivos aos
ERNOUT, 2002b, p.211).
poucos. O caso mais interessante dessa mudança (e que mereceria um estudo à parte) é do verbo habeo, que originalmente intransitivo
significando
“estar
contido”,
passa ao valor transitivo de “possuir”, de tal
3-
Pressupostos
Teóricos
e
baseada
na
metodológicos para a análise Esta Linguística
análise
está
Funcional.
pressupostos
Entre
fundamentais,
os
seus
salienta-se
353
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
que a Língua é constituída em uma estreita
engenhosa e engraçada que muda a
relação entre o sistema linguístico e os
história da peça.
fatores
pragmáticos
envolvendo
as
e
situações
Os exemplos mostrados são os de
contextuais de
uso.
A
construções
entendidas
como
mais
gramática é vista como uma estrutura
prototípicas para os verbos estativos, com
dotada de certa maleabilidade por parte
base na teoria dos Protótipos desenvolvida
dos
pelo linguista Talmy Givón (apud PIRES,
usuários/falantes
que
atende
a
finalidades pragmáticas e discursivas. A
1999).
língua se manifesta no uso, portanto a
categorização possui um protótipo, cujos
pesquisa
estará
representantes
compartilham
uso
características
esperadas
amparada
funcionalista por
dados
sempre reais
de
Segundo
categoria.
linguístico.
esta
Assim,
os
teoria,
qualquer todas
para
as
aquela
exemplos
aqui
Por falar em dados, o corpus para
estudados são representantes prototípicos
esse trabalho será a peça Mostellaria, de
de construções com verbos estativos,
Plauto, comediógrafo do período arcaico da
porque possuem um claro valor de estado ,
Literatura Latina. A escolha desse autor
uma vez que
deu-se pela confiança de que sua língua
apresenta apenas um argumento – sujeito.
cada um de seus verbos
tem um caráter bastante popular, que o
Para a análise da transitividade
aproxima do falar vernáculo do grande
nessas construções, será usado o modelo
público de sua época, público para o qual
de transitividade oracional, proposto por
suas
(cf.
Hopper & Thompson (1980). São listados
MEILLET, 1977, p.176). A peça traz para a
10 parâmetros de transitividade, de modo
cena romana a história de Philolaches,
que, quanto mais desses parâmetros forem
jovem que usa as posses de seu pai
positivos,
Theopropides que estava em viagem de
oração 2.
peças
eram
direcionadas
negócios. Durante uma festa, o escravo
mais
Após
a
transitiva submissão
será
aquela
das
frases
Tranio chega abruptamente avisando que
retiradas do texto latino aos parâmetros de
Theopropides havia voltado antes da hora
transitividade, vimos o quão transitivas são
e chegaria a qualquer momento. Em meio ao pânico, o escravo tem uma ideia
2
O próprio Givón (2001) possui uma visão própria da
transitividade verbal (apud CUNHA & SOUZA, 2007, p. 31). No entanto, ela não será utilizada por enquanto.
354
Luiz Pedro da Silva Barbosa
as construções com verbos estativos.
pois eles já foram bem estudados por
Procuraremos associar cada um desses
Cunha e Souza (2007).
parâmetros
às
características
de
4.1- Participantes
prototipicidade das construções analisadas.
Para que ocorra transferência
Assim, esperamos chegar aos parâmetros
de ação, é necessário que ao menos dois
mais ou menos esperados para uma
participantes estejam presentes. Dois ou
posterior análise das construções menos
mais participantes apontam para maior
prototípicas envolvendo os verbos objetos
transitividade oracional.
deste estudo. (1)
4.2- Cinese
- Quin etiam illi hoc dicito/
Para que haja transferência
Facturum me ut ne etiam aspicere aedis
de
audeat.(v. 423)
movimento nela. Uma ação pode ser
- Pois também diga a ele isto: que
atividade,
é
necessário
que
haja
transferida, um estado ou um atributo não.
eu farei com que ele não ouse olhar para a
4.3- Aspecto
casa.
Uma oração com aspecto perfectivo (2)
- ...madeo metu. (v. 395)
aponta para maior transitividade, pois está
- ... estou molhado de medo
acabada
em
relação
a
um
aspecto
O exemplo (1) mostra um caso
imperfectivo. Isso ocorre porque uma ação
menos prototípico, pois o verbo destacado
acabada afetou totalmente seu objeto, uma
tem um complemento, que por acaso é
ação
inclusive uma oração inteira; já em (2),
parcialmente.
não
acaba
afetou-o
apenas
temos uma oração mais prototípica, sem
4.4- Pontualidade
complemento,
Quando uma ação é realizada de
apenas
com
um
termo
forma abrupta, ou seja, sem nenhuma fase
circunstancial. 4- Análise segundo os parâmetros de transitividade Não
é
de transição entre a afetação e nãoafetação do objeto, ela afeta seu objeto de
necessário
que
nos
demoremos sobre cada um deles. Será mostrada apenas uma breve explanação,
forma mais marcada do que uma ação que se prolonga ou que é contínua. 4.5- Intencionalidade
355
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
O efeito de uma ação é mais aparente quando ela é intencional do que quando é involuntária. 4.6- Afirmação Se uma oração é afirmativa, a ação ocorre, logo há transferência. Isso não
Individuado
Não-individuado
Próprio
Comum
Humano, animado
Inanimado
Concreto
Abstrato Plural
Singular
Incontável Não-
Contável Referencial,
referencial
definido
ocorre quando ela é negativa. Imagem I: Tabela de Cunha e Souza
4.7- Modo Partindo da distinção entre modo real e irreal, evidentemente uma oração em um modo real (indicativo) é mais transitiva do que uma oração em modo irreal (imperativo ou subjuntivo). com
alta
agentividade
podem efetuar transferência de ação, portanto
tornam
as
Ao todo, foram selecionados 14 fragmentos do texto contendo construções prototípicas com verbos estativos. A ordem de exposição dos resultados da análise
4.8- Agentividade Sujeitos
5- Resultados da análise
orações
mais
transitivas. 4.9- Afetamento do objeto Esse parâmetro se refere ao quanto o objeto é afetado. Quando ele é totalmente afetado, a oração é mais transitiva 4.10- Individuação do objeto Esse parâmetro se refere à distinção entre o objeto e o sujeito e também entre o fundo em que ele se situa. Para as propriedades de individuação do objeto, retiramos a seguinte tabela de Cunha e Souza (op. cit., p. 39) (Imagem I):
será do parâmetro mais regular para o mais variável, seja ele encontrado ou não. Ao fim, serão retomados aqueles que se associam ao protótipo da construção. 5.1- Participantes Todas apresentam
as
orações
apenas
um
estudadas participante,
portanto o primeiro parâmetro aponta para intransitividade. É importante notar que consideramos a existência de um único argumento
como
característica
de
prototipicidade dessas construções, assim é esperado um resultado diferente na análise de construções menos prototípicas. 5.2- Cinese Como se trata de verbos com valor de estado, seria difícil encontrar cinese nos
356
Luiz Pedro da Silva Barbosa
exemplos estudados, e assim foi. O valor
- Estou calado!
estativo se opõe ao movimento e, como ele
A frase é uma resposta a um
tace!.
a propriedade que define esses verbos,
imperativo
não esperamos resultados diferentes em
Theopropides
trabalhos posteriores. O exemplo a seguir,
intenção sobre esse estado, então nessa
retirado
frase, a intencionalidade do sujeito aponta
do
argumento
da
peça,
faz
referência a Theopropides, o pai de família
Se
está
a
personagem
calada,
ela
teve
para maior transitividade oracional.
e é um exemplo de uso sem qualquer
5.6- Aspecto
noção de movimento ao verbo:
Todas as frases analisadas estavam
(3)
- Post se derisum dolet (v.10)
no tempo presente, portanto o verbo apresentava
5.3- Pontualidade
resultado aponta para menos transitividade,
Esse parâmetro também não foi
contudo, nos textos, as frases podem
encontrado.
Acreditamos
que
o
radical
infectum. O
- Ele sofre após ter sido zombado
de
valor
aparecer também com aspecto perfeito, já
estativo se opõe à pontualidade porque o
que os verbos estativos possuem tema de
estado se prolonga no tempo e, portanto,
perfectum (alguns grupos não o possuem).
tende a ser menos pontual.
Para
que
se
obtivessem
resultados
5.4- Agentividade do sujeito
decisivos em relação a esse parâmetro,
Novamente, uma característica que
deveria ser feito um estudo muito maior, de
se opõe àquela considerada prototípica
caráter
para
frequência de uso de cada aspecto nesses
esses
verbos.
Afinal,
se
eles
representam estados, esse valor é oposto à
que
mostrasse
a
verbos.
ideia de agente.
5.7- Afirmação
5.5- Intencionalidade Consideramos que essa é uma outra
quantitativo,
Mais uma vez, o resultado foi unânime,
ou
seja,
frases
apresentaram
entanto, das orações lidas, é possível ver
positiva, porque são afirmativas, o que
um caráter intencional no sujeito de uma
aponta
delas:
realidade, essa propriedade depende muito (4)
- Taceo! (496)
mais
de
mesma
as
característica oposta ao valor de estado, no
para
a
todas
maior
polaridade,
transitividade.
circunstâncias
contextuais
357
Na e
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
pragmáticas do que do verbo em si,
segundo fatores diversos ao valor estativo
portanto está bem distante do protótipo de
desses verbos; esses aspectos foram
construção com verbo estativo.
Afirmação, Modo e Aspecto. Entre os
5.8- Modo
parâmetros que se aproximam do protótipo,
Por último, o mais flutuante dos
apenas um exemplo de maior transitividade
resultados. Das 14 ocorrências, sete delas
foi
encontrado,
estão com o verbo no modo indicativo, o
Cinese, Intencionalidade, Agentividade e
mais transitivo de todos; quatro têm-no no
Pontualidade.
subjuntivo; duas são formas de infinitivo; e um
imperativo.
Dos
modos
menos
são
Acreditamos intransitividade
é
eles
Partitipação,
que,
já
que
a
uma
característica
transitivos, não é possível ainda precisar
prototípica dos verbos com valor de estado,
uma escala de transitividade entre eles.
foi previsível que fossem encontrados tão
Mais uma vez, o uso do modo verbal
poucos exemplos de maior transitividade.
depende de vários fatores internos e
No entanto, acreditamos que a submissão
externos ao texto.
de construções menos prototípicas aos
Os
outros
dois
quesitos
dizem
mesmos
parâmetros
poderia
revelar
respeito aos complementos verbais, que
resultados, no mínimo, mais variáveis que
não fizeram parte de nossa análise. Assim,
os presentes. Este
esses quesitos também não entraram
trabalho
deixou
algumas
nesse trabalho. Mas eles podem ser
questões ainda em aberto, sobre as quais
retomados futuramente, em uma análise de
trabalhos posteriores serão empreendidos.
casos menos prototípicos.
A principal delas é a análise de orações
6- Considerações finais
com usos transitivos dos mesmos verbos.
Os resultados da submissão das
Elas terão mais de um participante, o que
orações aos parâmetro de Hopper e
pode causar uma diferença não apenas
Thompson
mostrou
baixa
nos parâmetros já estudados, mas também
transitividade
nas
prototípicas
suscitará a análise daqueles que não o
uma
orações
construídas com verbos com valor de
foram.
estado. Quase todos os exemplos de maior
Outra questão promissora seria a
transitividade são de aspectos variáveis
comparação desses verbos com seus
358
Luiz Pedro da Silva Barbosa
pares sem o sufixo –ē (como ferueo/feruo),
Finalmente, este trabalho é
sob a mesma perspectiva teórica. Isso
um passo inicial para um estudo maior
contribuiria para que tivéssemos uma
sobre o sufixo com valor de estado, que
noção do papel do sufixo na transitividade
deverá ser desenvolvido ao longo dos
dessas construções. Ainda está em curso
próximos
um estudo comparativo com os compostos
para o estudo e o ensino da Língua Latina.
meses.
Esperamos
contribuir
derivados pelo sufixo incoativo –sc (como
rubeo/rubesco).
Referências: BRITO, R. H. P. Teoria dos Protótipoo: um Princípio Funcionalista. Todas as Letras, São Paulo, No 1, p. 71-79, 1999 CUNHA, M. A. F.; SOUZA, M. M. Transitividade e seus contextos de uso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007. ERNOUT, A. Morphologie historique du latin. 3ed. Paris: Klincksieck, 2002. _________.; MEILLET, A. Dictionaire étymologique de la langue latine: histoire des mots. Paris: Klincksieck, 1959. _________.; THOMAS, F. Syntaxe latine. 2ed. Paris: Klincksieck, 2002. FARIA, E. Dicionário escolar latino-português. Belo Horizonte: Garnier, 2003. _________. Gramática Superior da língua latina. 2ed. Brasília: FAE, 1995. HOPPER, P.; THOMPSON, S. Transitivity in Grammar and Discourse. Language, Vol. 56, No. 2, p. 251-299, jun. 1980. MEILLET, A.; VENDRYES, J. Traité de grammaire comparée des langues classiques. 4ed. Paris: H. Champion, 1966. MONTEIL, P. Éléments de Phonétique e Morphologie du Latin. Paris : Nathan, 1974. PLAUTE. Mostellaire. Texte établi et traduit par Alfred Ernout. Paris: Les belles Lettres, 1933 RUBIO, L. Introducción a la sintaxis estructural del latín. Barcelona: Editorial Ariel, 1989. VÄÄNÄNEN, V. Introduction au Latin Vulgaire. Paris: Klincksiek, 1967
359
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Links para textos latinos: http://www.thelatinlibrary.com/ http://www.perseus.tufts.edu/hopper/
360
DA ESCRAVIDÃO ANTIGA À MODERNA: UM SEGREDO EM CERVANTES? Marcello de Albuquerque Maranhão 1 Resumo: Debate sobre as diferenças entre a escravidão Antiga e a Moderna. Possíveis origens da escravidão étnica no mundo ocidental identificadas naleitura do D. Quixote de Cervantes. Papel da Igreja na definição das fronteiras da escravidão moderna. Reflexão sobre a possível origem do preconceito étnico moderno no mundo ocidental decorrente da escravidão étnica. Palavras-chave: Escravidão; Escravidão étnica; Cervantes.
1
Marcello de Albuquerque Maranhão (UFPel), Especialista em História e Cultura Antiga (UFF). Projeto atual: A
HISTORIOGRAFIA GREGA ANTIGA SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE GREGOS E NÃO-GREGOS NA SICÍLIA ORIENTAL, DO SÉCULO VIII ÀS INVASÕES ATENIENSES: entre etnia, fronteira cultural e espaço geográfico. E-mail: brazidas@yahoo.com.br. O autor é Mestrando do PPGH Ufpel sob a Orientação do Prof. Dr. Fábio Vergara Cerqueira.
361
Marcello de Albuquerque Maranhão
Este não é exatamente um texto do
que
a
escravidão
sofreu
no
mundo
nosso projeto, mas é um texto derivado,
Ocidental, e ao mesmo tempo fazer uma
onde procuramos fazer um exercício de
ligeira comparação com algumas formas
reflexão sobre a História a partir de fontes
que a Escravidão assumiu a Oriente.
literárias antigas, ou seja, a Historiografia
Não sei quanto a vocês mas sempre
dos antigos, especialmente a dos gregos,
me pareceu estranhíssimo, cada vez que
que são a base das nossas pesquisas.
via a Escravidão ser citada na Antiguidade
Somada aqui com um avanço em direção a
e
uma
navegações
literatura
comparativamente
mais
no
mundo
moderno,
Europeias,
fator
me
pareceu
Embora
esta
escravidão moderna quando comparado
abordagem mais como Literatura e reflexão
com a escravidão geral do tipo praticado na
literária do que como História, e também
antiguidade.
percebamos
o
sempre
recente, o D. Quixote de Cervantes. atualmente
estranho
pós-grandes étnico
da
nos identifiquemos mais com aquela do
Na antiguidade não havia critério
que com esta, nossa formação em História
étnico para fazer de alguém um escravo e
nos permitiu fazer esta tentativa contínua
qualquer
de habitar a nebulosa fronteira entre as
escravos mostra isso. Não importava a
duas disciplinas.
etnia, cor da pele, região de origem, as
texto
antigo
que
mencione
A Escravidão é um dos modos que o
pessoas perdiam sua liberdade e sua
trabalho assumiu na Antiguidade. Não
individualidade, tornando-se propriedade
pretendemos entrar no debate se era a
legal de outra pessoa, basicamente por 2
forma predominante ou se os pobres livres
motivos:
superavam os escravos em número e
houvessem
produção
diversas obras literárias ou historiográficas,
(VEYNE,
1993,
p.63).
É
dívidas outros. do
ou
guerra.
Apesar mundo
Embora
disso, clássico
em
suficiente para a elaboração deste texto
especialmente
entendermos que a Escravidão foi uma
Heródoto, Tucídides, Diodoro Sículo para
forma importante de trabalho no mundo
citar apenas algumas que conhecemos
antigo e também mais tarde a partir do
melhor – vemos manifesta condenação de
século XVI, no mundo Ocidental. Nosso
escravizar pessoas da própria cultura e um
ponto é examinar algumas transformações
especial apreço por conquistadores que
362
–
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
evitassem incorrer nesta prática. Em linhas
tempo que variava, mas podia atingir
gerais,
alguns anos (VEYNE, 1989, p. 63).
porém,
pode-se
considerar
a
escravidão na Antiguidade como ampla,
Exceções fora, nos séculos XV-XVI
geral e irrestrita: qualquer indivíduo, fosse
vemos a Escravidão assumir uma forma
por dívidas ou por cair prisioneiro em
étnica e contribuir decisivamente para um
guerras, estava sujeito a ela, exceto em
racialismo – termo vulgarmente chamado
caso de decretos específicos proibindo a
de
escravidão
própria
conhecemos hoje: o preconceito contra as
comunidade, quase sempre por dívidas.
etnias africanas e descendentes, mais
Tais decretos em geral eram pensados
comumente conhecido como preconceito
para evitar a diminuição do número de
contra negros e afro-descendentes. Essa
cidadãos e portanto a ameaça à própria
escravidão
existência da comunidade.
contraste
de
pessoas
da
‘racismo’
–
na
étnica que
forma
moderna
salta
aos
como
o
faz
um
olhos
em
Então, do século XVI em diante,
comparação com a escravidão antiga. Um
cerca de onze séculos depois do fim do
contraste notável, mas muito pouco notado,
Mundo Antigo, vemos a escravidão no
menos ainda investigado e pouco – talvez
Ocidente – herdeiro mais direto do Mundo
nunca – explicado ao longo da História.
Clássico – assumir um formato étnico:
Mas essa constatação da sua mudança de
praticamente apenas negros de origem
natureza por si só, não nos deveria
Africana
com
tranquilizar enquanto acadêmicos. Urge
exceções pontuais, aqui e ali. Fossem
explica-la e penso que encontramos um
estas exceções casos particulares, fosse a
indício do que pode ter desencadeado essa
servidão
que
transformação no D. Quixote de Cervantes.
da
A Escravidão sempre foi debatida
América do Norte: o colono trabalhava de
desde a antiguidade. Embora fosse prática
graça até pagar passagem e equipamento.
difundida, não é correto dizer que todos a
Caso que em geral, não era uma dívida
aprovassem e mesmo os gregos deixaram
impagável. Assim como na Antiguidade
testemunhos escritos em que é possível
houve relatos de escravidão temporária:
ver uma desaprovação em princípio da
vender-se como escravo por um período de
Escravidão, como prática contrária à moral
aconteceu
eram
até
‘escravizáveis’
pagar
nas
as
colônias
dívidas, inglesas
363
Marcello de Albuquerque Maranhão
daquelas sociedades. Em Heródoto e
Europeus, e seus nativos são considerados
também Timeu, historiador grego do século
como possuidores de alma, sendo portanto
III
interdito
a.C.
é
possível
ver
uma
certa
sua
escravidão.
Nesse
curto
condenação da Escravidão ao tentarem
espaço de tempo houve uma mudança
atribuir a um determinado povo – os
significativa para a própria Igreja: sua
Eritreus da ilha de Eubéia, próxima a
redoma de vidro na Europa fora quebrada,
Atenas – a responsabilidade ‘por terem
rachada pela Reforma, pelo surgimento do
trazido a Escravidão para a Grécia’.
Protestantismo.
Apesar da bula eclesiástica Dum
cálculo
político,
Então ou
foi se
um
simples
quiserem
de
Diversas (1452) autorizando a escravidão
contagem de cabeças, perdão... de almas:
de muçulmanos e de negros, explicações
as almas perdidas na Europa poderiam ser
religiosas nunca me pareceram suficientes,
recuperadas na América.
pois as religiões procuram sempre se
Nada disso porém, nos explica o
adaptar às realidades de seu tempo. A bula
nosso problema: que houve de tão decisivo
não
como
na História dos séculos XV e XVI que
humanas,
fizesse a Igreja autorizar a Escravidão,
reconhecia
possuidores
os
de
categorizando-os
africanos almas
como
estando
numa
instituição
que
de
certo
modo
se
categoria inferior de existência em relação
notabilizara em combater – com exceções
ao conjunto da Cristandade que já fazia
pontuais – para melhor garantir o seu
essa diferença para os seguidores do Islã.
poder, até que acabara por posicionar-se
Quando
as
contra ela por completo? Afinal, quais
já
teriam sido os agentes motivadores dessa
estavam em andamento. E o banimento da
suspensão sobre o interdito da escravidão,
escravidão na Europa Cristã em séculos
ainda
anteriores,
europeus?
a
conquistas
bula
foi
promulgada,
portuguesas
que
tinha
na
servido
África
para
a
manutenção do poder da Igreja, não
que
fosse
apenas
para
não-
Em geral, como dissemos antes, as
precisava ser estendido aos povos do
religiões
continente africano. O engraçado é que
procurando passar a impressão de os
meros 100 anos depois, o continente
dirigi-los, de provoca-los. Quase sempre
Americano
isto é uma admissão implícita e encoberta
está
em
contato
com
os
adaptam-se
aos
tempos,
364
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Essas descrições que caem tão bem
de um estado de coisas, mas divulgam suas
decisões
como
tendo
sido
como‘retratos’ daquele tempo para nós,são
fundamentais para a mudança. E em D.
fruto
Quixote
Cervantes:
nos
capítulos
XXXIX-XLI,
na
das
próprias foi
experiências
soldado,
combateu
de no
e
nos
Mediterrâneo contra os Mouros, venceu, foi
‘História
da
ferido, perdeu os movimentos do braço
Mourisca’ é possível discernir algum indício
esquerdo, lutou em várias batalhas até ser
desta mudança.
capturado por corsários da Argélia e viver 5
chamada
‘História
do
capítulos
LXIII-LXV,
Cativo’ a
Retornando um pouco ao começo,
anos de sua vida como prisioneiro, não
ressalto que nunca vi ninguém procurar
sem tentar a fuga 4 vezes até finalmente
uma explicação para essa mudança no
ter seu resgate pago por parentes. E
caráter da Escravidão no mundo Ocidental.
também do conhecimento que tinha do
E embora eu mesmo tenha localizado uma
gigantesco
possível explicação em Cervantes, ressalto
Mediterrâneo e do qual ele também fez
que Cervantes não estava tentando propor
parte.
conflito
Quando
tal explicação, mas inadvertidamente nos
que
assolava
Cervantesnarra,
o
por
exemplo, que no dia da Batalha de Lepanto
conduziu a ela. A História do Cativo relata as
(1571), a armada turca é derrotada e “15
experiências de um prisioneiro dos Mouros.
mil cristãos foram libertos das galeras”
A descrição começa com as lutas entre
(CERVANTES, 2005,p. 239), é clara a
Mouros – um sinônimo para os seguidores
situação
do Islã no Mediterrâneo – e Cristãos,
capturados, pois o serviço de remador
avança até uma descrição vívida do
naquela época derivava de uma condição
cativeiro
servil.
e
mesmo
da
sociedade
de
escravo
dos
cristãos
Assim como pouco após (idem,
muçulmana do Mediterrâneo do século XVI
ibidem) a narrativa mostra os turcos
e termina com a fuga do cativo após
prontos a abandonar suas galeras na
algumas aventuras. A da Mourisca é
iminência dum ataque Cristão no ano
semelhante, embora trate de uma mulher
seguinte, (1572), em Navarino. O temor de
cristã capturada e disfarçada até tornar-se
serem capturados os movia, pois sabiam
capitã de navio.
que seriam reduzidos à escravidão.
365
Marcello de Albuquerque Maranhão
asHistórias
do
Aníbal no século III a.C. depois das suas
Cervantes
são
enormes perdas em 4 batalhas (apenas na
suficientes como explicação das mudanças
última grande batalha que perderam, foram
na atitude da Igreja e na mudança do
70 mil romanos e aliados mortos). Não era
caráter da escravidão de um caráter geral
algo como os recrutamentos feitos pelos
para um perfil étnico? Sozinha não é, mas
jovens patrícios de classe senatorial para
quando
apoiar Sila em sua ditadura no século I
Será
que
Cativo/Mourisca
em
pensamos
do
outro
lado...os
Turcos que lideravam o mundo muçulmano
romano.Pompeu,
por
exemplo,
nessa
desde o século XI – e o fariam ainda por 9
ocasião recrutara duas legiões entre seus
séculos depois disso – os Turcos que
próprios escravos, ganhando o favor de
tinham tomado Constantinopla 100 anos
Sila no processo. Então o que eram os Janízaros?
antes de Cervantes viver suas aventuras e combate-los... os Turcos mantinham um
Eram
regime de escravidão amplo em suas
permanente no mundo Turco Otomano.
terras. Na parte europeia, ficou famosa a
Uma instituição que cumpria múltiplas
tropa dos Janízaros, uma instituição que
funções. Recrutava-se desde os 7 anos de
vemos apenas raramente acontecer na
idade o primogênito de cada família cristã.
Antiguidade: um exército de escravos
Ao mesmo tempo que se diminuía os
recrutado pelos seus senhores.
Não era
recursos humanos dos povos sujeitados, se
um exército escravo rebelde formado em
acrescia ao poder do Sultão esta mesma
uma revolta servil contra seus senhores,
força subtraída de uma população com
como Espártaco o fora em Roma. Era
grande potencial de revolta. Esses meninos
antes algo comparável aos recrutamentos
eram treinados nas melhores artes militares
feitos por Espartanos entre hilotas nas
e constituíam uma tropa de elite. Uma tropa
horas de necessidade e que os premiavam
de Europeus brancos, sujeita ao Sultão e
com
sendo
sua ponta-de-lança nas piores batalhas.
novos
Mas ainda que estivessem armados, seu
membros do demos, novos cidadãos . Não
caráter era o de escravos. E nenhuma
era como quando os romanos recrutaram
surpresa há nisso. A instituição do Exército
legiões de escravos para fazer frente a
de Escravos já fora usada no mundo
uma
nomeados
cidadania os
relativa,
neodamôdeis
–
uma
instituição
de
caráter
366
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
muçulmano pelos Aiúbidas, dinastia do
o Mundo Ocidental conseguia penetrar e
Egito no século XII. Eles criaram os
fazer cativos.
Mamelucos
sua
tropa
para
combater
Martin Bernal com o seu Black
principalmente outros muçulmanos que os
Athena
ameaçavam e assim não incorrer na
importante para este trabalho, embora já
desobediência aos princípios do Corão que
tivéssemos feito algumas reflexões sobre a
interditava aos muçulmanos matarem-se
comparação entre Escravidão Antiga e
uns aos outros. Para o mesmo fim – entre
Moderna antes do lançamento de Black
outros – também serviam os Janízaros.
Athena. Mas o problema que Bernal
Assim
temos
uma
inspiração
procurou situar – o de posturas racistas e
Mediterrâneo do século XVI: lutas entre
nacionalistas nos Classicistas do século
Mouros e Cristãos onde os perdedores
XIX influenciando sua falta de percepção
eram
mundo
para elementos asiáticos na formação da
Muçulmano era fácil ver escravos brancos,
Grécia Antiga – este problema procuramos
ainda que fossem armados como um
aprofundar
e
exército, no mundo Ocidental, Europeu a
explicitando
um
associação
e
atitudes dos Classicistas do século XIX (o
escravos foi se tornando cada vez mais
racismo existia, mas existia a questão de
forte. A ponto de a Igreja finalmente
lutar para libertar a Grécia dos turcos,
sacramentar
–tal
tornando qualquer contribuição do Levante,
Nessas
que os Turcos dominavam no início do XIX,
lutas de fundo religioso, mas de impérios
difícil de obter reconhecimento por parte de
mediterrânicos que se combatiam entre si
Classicistas do mundo Ocidental). Não só
como mostrou Braudel (BRAUDEL, 1984,
aprofundamos a explicação de Bernal ao
vol. 2, pp 17-61; pp. 169-269; pp. 269-619),
sairmos do lugar-comum do ‘racismo’,
no mundo ocidental apresar muçulmanos
como começamos a refletir sobre as
foi cada vez mais ficando associado com o
origens da escravidão puramente negra na
apresamento de africanos, pois a África
Europa e na América, praticada pelos
tornou-se o lugar onde a Cristandade, onde
poderes coloniais. Algo que denominamos
entre
–
E
quadro
foi
do
escravizados.
o
(1996)
se
povos
sem
no
africanos
trocadilho
associação em formato oficial.
redimensionar pouquinho
não
só
melhor
as
‘Escravidão étnica’.
367
Marcello de Albuquerque Maranhão
Nossas indagações sobre as origens
civilizações.
Procuramos mostrar como
da escravidão étnica – e por extensão do
essas práticas sociais foram surgindo a
preconceito
etnias
partir de operações mentais, por sua vez
negras no Ocidente – nossas indagações
geradas por uma situação política de uma
nos levaram até aqui por pensarmos de
dada conjuntura de época e lugar.
racial
atual
contra
forma Historicista: todo comportamento
Pensamos que certas atitudes e
socialmente reconhecido, costume, prática
comportamentos
tem época e lugar, tem origens e difusão.
contudo tem seus motivos históricos de
Se há explicações biológicas, é um outro
origem. E o primeiro passo para extinguir
assunto, outros argumentos. Aliás, não sei
um
o que é mais perigoso: dizer que o racismo
compreendê-lo em sua formação, para
tem explicação, com origens, começo, meio
então desmontá-lo em seu raciocínio e aí
e assim podendo ter um fim, ou afirma-lo
sim, mostrar que motivos não constituem
como natural e biológico. Aqui procuramos
justificativas. A analogia que sempre faço
mostrar como as sociedades ocidentais
é que não se teria chegado a lugar algum
foram introjetando a visão do negro, do
quanto ao câncer evitando falar sobre ele.
outro como um inimigo, portanto alguém a
Mas foi preciso sim, fazer pesquisas
ser combatido, reprimido e inferiorizado a
profundas,
partir de práticas e vivências diárias do
Muito obrigado.
conflito,
do
choque
de
culturas
problema
não
é
são
justificáveis,
sempre
desagradáveis
e
estuda-lo,
dolorosas.
e
Referências: Fontes Primárias: CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote, col. Clássicos Jackson – Vol. VIII, ebooksbrasil, 2005. DIODORO THE SICILIAN. Historical Library. London, England: W.M.McDowell, 1814. PLUTARCO. Vidas Paralelas. São Paulo: Ed. Paumape, 1992. POLÍBIO. História.Brasília, Ed. UNB, 1985 TIMEU in JACOBY: Die Fragmenta der grieschichenHistoriker. Leiden, Netherlands: KoninklijkeBrill, 1999.
368
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
TUCÍDIDES.História da Guerra do Peloponeso. Brasília: UnB, 1986 VATICANO, Bula Papal Dum Diversas, 1452. Demais referências bibliográficas: BARON, Cristopher.Timaeus of Tauromenium and hellenistic historiography. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico. Lisboa, Portugal: Publicações Dom Quixote, 1984 BERNAL, Martin.The Black Athena, vol. 1. New Brunswick, USA: Rutgers University, 2003. FINLEY, Moses. Ancient Slavery and Modern Ideology.Princeton,USA: Marcus Weiner Publishers, 1998. MOMIGLIANO, Arnaldo. Essays in ancient and modern historiography. Middletown: Wesleyan University Press, 1977. ____________________.
The classical fundations of modern historiography. Berkeley:
University of California Press, 1990. PEARSON, Lionel. The greek historians of the west. New York: Oxford University Press, 1988. VATTUONE,
Riccardo
–
Sapienza d'occidente :ilpensierostoricodiTimeodiTauromenio.
Bologna: Patron Ed., 1991. VEYNE, Paul in: História da Vida Privada, vol1. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. WALBANK, Frank W. – Polybius. Berkeley, Los Angeles, London: UC Press, 1990.
369
A CANÇÃO DE ROLANDO : UM LEGADO MEDIEVAL ENTRE HISTÓRIA E FICÇÃO Maria do Carmo Faustino Borges 1 Resumo: A nossa proposta de comunicação é parte da dissertação de mestrado, O Maravilhoso
em A Canção de Rolando, de autoria própria, cujo enfoque inclui a relação entre o cotidiano e a literatura. Constitui-se de uma pesquisa bibliográfica, apresentando aspectos teóricos de Literatura (Vassalo, Candido, Todorov, D’Onofrio, Poirion), e de História (Le Goff, Grimberg e Vauchez), teorias que fundamentam as considerações referentes às relações socioculturais e literárias interligadas na criação e na construção da ficção. O estudo objetiva mostrar os caminhos para o diálogo entre História e Ficção, desvendando dizeres e fazeres do medievo.
A Canção justifica a escolha por tratar-se de uma obra literária que possibilita compreender como o processo se ocupa em reconstruir e em reviver valores sociais, transmitindo crenças, sentimentos e a cultura da sociedade medieval de um determinado período. Os elementos históricos referidos na obra são condizentes com a Alta Idade Média, ressaltando o evento da Batalha de Roncesvales (788) e o reinado de Carlos Magno à frente do exército franco. Buscamos, a partir desse norteamento, uma leitura na convergência desses elementos com a criação do enredo ficcional, o que coincide com o período de três séculos mais tarde, tempo do Feudalismo e das expedições religiosas francesas à Espanha. Concluímos nesta abordagem que História e ficção caminham juntas, e cumprem a função de transmitir a vivência e as evoluções do homem na sociedade. Palavras-chave: História; ficção; sociedade.
1
UEM.
370
Maria do Carmo Faustino Borges
tempo do Feudalismo e das expedições
Introdução Ao pensarmos a literatura em relação
religiosas francesas à Espanha.
socioculturais,
Essa obra é a representação da
deparamo-nos com elementos do plano real,
memória viva de Carlos Magno para a
alterados e transformados a partir do talento
sociedade medieval ocidental, revivendo em
e da criatividade do poeta/escritor em um
seus versos os ideais que sustentaram por
discurso elaborado capaz de criar uma nova
séculos uma coletividade iletrada, ameaçada
realidade. Assim, os fatos deixam de existir
pelas invasões bárbaras. Para a Literatura
enquanto
estabelecer
de um modo geral, tornou-se um dos pilares
relações de tempo e espaço, nos quais o
da forma épica. Depreendemos essas ideias
leitor pode se apoiar para melhor entender
pelo modo como o poeta organizou os
determinadas
eventos dentro da narrativa, pois, se a
a
dados
históricos
ou
informações
para
construções
dentro
da
História nos confirma que Carlos Magno não
narrativa imaginária.
A Canção de
conquistou Saragoça e que seu exército foi
Rolando, justifica-se por ser uma obra
dizimado em Roncesvales 2, a ficção vai dar
literária
compreendermos
continuidade, acrescentar e transformar o
como tal processo se ocupa em reconstruir e
acontecimento, como a expressão do seu
em reviver valores sociais, transmitindo
criador.
Este
estudo,
que
em
possibilita
crenças, sentimentos de uma cultura. Os
Perguntamos,
então,
como
elementos históricos referidos na Canção
compreender
referem-se
de
imaginário que se comunica dentro de um
Roncesvales (788), Alta Idade Média, e o
texto, se não nos inteirarmos do cotidiano da
reinado de Carlos Magno à frente do exército
sociedade e do período de sua criação? E os
franco. A ficção, por outro lado, é a
problemas criados, as reações humanas à
ao
evento
da
Batalha
simbologias
e
todo
o
reconstrução dessas experiências narradas em uma nova realidade. Buscamos, a partir desse
norteamento,
convergência desses
uma
leitura
elementos
com
na a
criação do enredo ficcional, o que coincide com o período de três séculos mais tarde,
2“Em
778, Carlos Magno tomou Pampeluna, mas não
atacou Saragoça [...]. Montanheses bascos armaram uma emboscada contra a retaguarda dos Francos [...] no desfiladeiro de Roncesvales, massacraram as tropas comandadas pelo senescal Eggiharde, o conde palatino Anselmo e o prefeito da Marca da Bretanha, Rolando.” (LE GOFF, 2005, p. 43 e 44).
371
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
mentalidade estabelecida? Sabemos que a
das palavras em um texto tão antigo, a partir
ficção
mas
de seu contexto. Segundo Candido (1985, p.
sabemos também que o espírito criador do
14), “[...] o fator social é invocado para
poeta/artista é fruto do contexto em que ele
explicar a estrutura da obra e o seu teor de
vive.
ideias,
cria,
reinventa,
Esse
transforma,
estudo,
assim,
objetiva
fornecendo
elementos
para
argumentar como o cotidiano e a literatura
determinar a sua validade e efeito sobre nós
caminham lado a lado, identificando o
[...]”. Constatamos que o cotidiano medieval,
homem na sociedade.
de maneira geral, tinha no sobrenatural o
D’Onofrio
a
instrumento que movimentava a ideologia
importância de se conhecer o contexto sócio-
cristã, fundamentada no teocentrismo. Ao
político-econômico de determinada época
transcender o plano real, por meio da
histórica, a fim de analisar uma obra literária
intervenção de Deus, dos anjos e santos, de
específica
A
objetos, de ritos, simbologias e outros, os
refere-se
fatos podiam ser alterados. Ocorre um
Rolando,
deslocamento do referencial de objetos, do
afirmando que no período histórico em que
tempo e do espaço, e a ficção, na utilização
foi escrita ocorreram expedições para libertar
de todo este imaginário, constrói a narrativa.
e
(1990)
o
ressalta
contexto
observação
deste
diretamente
À
abordado.
escritor
Canção
de
Saragoça e todo o vale do Rio Ebro do jugo
A Canção de Rolando 3, uma canção
muçulmano. Esta obra registra elementos do
de gesta, inicialmente na forma oral, e mais
ambiente político, como a expulsão dos
tarde escrita, aborda as invasões da Alta
mouros do território espanhol, e o religioso,
Idade Média, utilizando a realidade histórica,
visto que a Igreja organizava e apoiava tais
do
lutas com o objetivo de derrotar os “infiéis”
caracterizam-se pelo tema sempre voltado
(aqueles que não aceitavam o cristianismo).
aos feitos históricos de povos e heróis, às
mundo
cristão.
Estas
narrativas
Para alcançar os objetivos almejados,
guerras históricas e aos dramas lendários, e
pesquisamos teóricos de Literatura (Vassalo,
relatam também um confronto militar entre
Candido, D’Onofrio,Todorov, Poirion) e de
cristãos e pagãos. Eram difundidas pelos
História (Le Goff, Grimberg e Vauchez), leituras
que
aumentaram
o
nosso
entusiasmo em descobrir e entender, a arte
3
A versão de A Canção de Rolando utilizada neste estudo,
assim como as citações e versos transcritos da obra literária são de Ligia Vassalo (1988), e serão referenciados com as iniciais CR.
372
Maria do Carmo Faustino Borges
trovadores e, no decorrer do tempo e das
concomitantes e transformados em uma
gerações
sofreram
ação maior: a Batalha de Roncesvales. A
transformações e adaptações de acordo com
figura do herói, em torno da qual transcorrem
a vivência dessas mesmas populações até a
as
escrita que conhecemos e dispomos.
personagens distintas: Carlos Magno e
que
as
cantaram,
principais
ações,
identifica
duas
Nessa perspectiva, pensamos que na
Rolando. O primeiro, maior imperador da
Canção a função social do sobrenatural é
Idade Média; o segundo, o protagonista da
fonte fecunda nas discussões de se pensar a
lenda,
representação estética associada à vivência
valentia,
humana.
167),
Semelhantemente à construção feita em
fundamentando-se em Peter Penzoldt, assim
torno da figura de Carlos Magno, o poeta
define função social: “Para muitos autores, o
glorifica Rolando como o mais bravo de
sobrenatural não era senão um pretexto para
todos.
descrever coisas que não teriam nunca
respeitado
ousado mencionar em termos realistas”. A
adversários: “[...] É por isso que Rolando se
narrativa, neste particular, contempla vários
tornou o símbolo de uma concepção de vida
recursos
dessas
e o culto de sua personalidade mítica
possibilidades é o maravilhoso 4, que permite
atravessou as fronteiras do tempo e do
o diálogo entre a realidade e o sobrenatural.
espaço” (D’ONOFRIO, 1990, p.160).
Todorov
estilísticos
(1975,
e
p.
uma
Desenvolvimento
personagem
marcada
lealdade
Por
sua por
e
valentia seus
por
e
sua honra.
astúcia
é
companheiros
e
Para Grimberg (1940, p.148), Carlos
A narrativa épica em A Canção de
Magno foi o modelo do imperador cristão aos
Rolando aborda acontecimentos do período
homens de seu tempo; sua figura centraliza
Feudal e das Cruzadas, imbricados ao
as lendas e as canções de gesta e, por toda
reinado de Carlos Magno, que, embora
parte, “[...] a sua imponente personalidade
distanciados por quase três séculos, são
excitou a imaginação dos povos, que lhe
4
“O maravilhoso é a linguagem da coletividade onde esta
atribuíam
qualidades
sobrenaturais”. 5
se encontra para descobrir que, sem ser ilegítima, a linguagem não diz mais o cotidiano. O maravilhoso não é Segundo Le Goff (2009) o mito de Carlos Magno criou-se
outra coisa senão a emancipação da representação literária
5
do mundo real e a adesão do leitor ao representado, onde
nos domínios do espaço, devido a extensão de seu império;
as coisas acabam sempre acontecendo como deveriam
no das instituições, pela instauração de leis válidas em todo
acontecer” (BESSIÈRE, 1974, n.p.).
o império, as capitulares, e pela criação de representantes
373
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Apreendemos que os mitos e as lendas
Uma delas consiste na seguinte passagem:
permanecem no imaginário das populações,
“O emir invoca Apolo, Tervagante e também
e esse mesmo imaginário motiva uma
Maomé: ‘Senhores deuses meus, tenho-vos
sociedade a agir e a pensar. Os versos a
servido bastante. Farei todas as vossas
seguir, transcritos da Canção, referem-se
estátuas de ouro fino’” (CR, 1988, p.105). Na
aos franceses, cristãos, que alcançam a
obra, ocorrem alusões a uma tripla entidade
vitória
“sagrada”
sobre
(Saragoça)
pagãos
expressam
na
relação
aos
pagãos:
nacionalismo, comum nas canções de gesta:
homologia, remete-nos à Trindade Santa dos
“Os
cristãos:
Alguns
força
em
Tervagante, Maomé e Apolo, a qual, por
morreram.
a
Espanha do
pagãos
e
os
fugiram.
Pai,
Filho
e
Espírito
Santo.
Carlos ganhou a batalha. Abateu a porta de
Podemos, então, interpretar aquela trindade
Saragoça [...]” (CR, 1988, p.109).
como
uma
apropriação
ou
a
uma
Essa nova forma dada à realidade dos
representação de diferentes crenças pagãs
fatos, pensando como Candido (1985, p. 55),
da época. Em extensão a esta perspectiva, é
“[...] é superior à sua realidade presente,
também cabível supor que se trata de uma
ainda
cuja
tentativa
compreensão requer a própria poesia, que a
pagãos.
antecipa de maneira fantasiosa [...] mas só
A
não
compreendida,
e
de
cristianização
autora
enfatiza,
aos
deuses
também,
a
por meio dessa ilusão pode ser trazida à
manifestação de anacronismos 7 na obra, que
existência uma realidade que de outra
possibilita uma leitura do cotidiano, embora
maneira não existiria”. Não obstante, criação e construção estéticas estão ligadas aos
(articulação de significante + significado) ou entre partes
costumes, à organização social, às tradições,
desses signos, sobretudo os significados, sempre que duas
aos valores morais, enfim, à vida de uma sociedade. Vassalo (1988), na seção das notas, tece considerações a várias homologias 6.
estruturas se correspondam.” (homologia/linguística). Porto: Porto Editora, 2003-2011. Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$homologia-(linguistica)>. 7
“Anacronismo é a falta contra a cronologia. É um erro na
data dos acontecimentos que consiste em atribuir a uma época,
a
um
personagem
da
história,
sentimentos,
costumes que são de outra época. Falta de alinhamento, itinerantes do soberano, os missi dominici; e na cultura, pelo
consonância com um determinado período de tempo, com
estabelecimento de escolas [...]” (LE GOFF, 2009, p.72).
uma
6
De acordo com Saussure, “a homologia é uma relação de
não arbitrariedade estabelecida entre signos linguísticos
época.”
(Disponível
em:
http://www.dicionario
informal.com.br/definicao.php?palavra=anacronismo&id=15 764).
374
Maria do Carmo Faustino Borges
este recurso reflita a confluência entre os
uma
diferentes espaços de tempo (quase três
realidade:
se
registram
aparência
da
propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas,
tem mais de duzentos anos!” (CR, 1988, p. quais
uma
ilusório por meio de uma estilização formal, que
“Quero vos ouvir falar de Carlos Magno; ele nos
história,
[...] a literatura é uma transposição do real para o
séculos). Encontramos exemplos nos versos:
32),
nova
os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou
dois
social, e um elemento de manipulação técnica,
anacronismos: a idade do herói (mais de
indispensável à sua configuração [...] (CANDIDO,
duzentos anos), sendo ele jovem no período
1985, p. 53).
da Batalha de Roncesvales, 778; também o
Temos,
portanto,
que
as
título de “Magno”, que lhe foi atribuído muito
conjeturas de Vassalo (1988) sobre os
tempo mais tarde, no século XI.
anacronismos
e as
homologias
têm
a
O histórico e o ficcional entrelaçam-
identificação nas religiões que se misturam,
se, também, em relação ao objetivo das
nos pressupostos de desconhecimento do
guerras. No tempo de Carlos Magno, a
poeta sobre os fatos narrados, porém, esses
“Reconquista” histórica daquilo que fora
mesmos recursos, enquanto fatos históricos
território do Império Romano, não incluía a
não confirmados, têm a sua validade como
cristianização, e, sim, saques aos povos
elementos de apropriação do poeta na
dominados
imenso
tessitura do texto, característica pertinente
saque está nas mãos de seus cavaleiros:
ao trabalho estético da Literatura, que pode
ouro, prata, preciosas armaduras” (CR, 1988,
ser admitido como liberdade poética, pois
p. 21). Diferente, entendemos que no texto
permite ao autor criar, inventar e transformar.
literário somam-se aos interesses de poder a
Deste
evangelização
referencial
ou
derrotados:
e
a
“Um
propagação
do
modo,
depreendemos
histórico
que
transfigurado
o não
Cristianismo. Somente no século XI tal
representa o mundo externo (História), mas
cenário histórico se consolidará, quando
representa uma sequência significativa para
ocorre a militarização da sociedade feudal. O
a Canção. A obra tem explicação por si
trabalho talentoso do poeta, assim, tomou
própria enquanto arte, derrubando, desta
elementos do real e os transportou para o
maneira,
mundo fantasioso, criando e construindo
anacronismos
o
conceito aos
de
homologias
elementos
e
históricos
referenciados pelo poeta.
375
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Segundo Machado (1962), a
transformando-o
em
símbolos.
A
epopeia (forma estética idêntica à da canção
mentalidade medieval estava voltada para
de
distanciamento
Deus e para a Vida Eterna. As normas
cronológico entre o fato e a escrita do
instituídas pela Igreja, a partir da fé cristã,
gesta)
poema.
requer
A
Em
um
Canção
de
Rolando,
observamos que o poeta alcançou grande efeito ao criar a narrativa a partir de elementos
socioculturais
de
diferentes
épocas; um trabalho de intertextualidade com acontecimentos relacionados ao herói nacional (Carlos Magno) e ao período feudal e das Cruzadas, do qual se ressaltam o papel da aventura desempenhado pelo cavaleiro (Rolando) e o ideal cristão daquela sociedade. O mundo dos símbolos teve papel importante no quotidiano dos medievos. Os objetos, os gestos, as fórmulas tornavam-se necessários
às
representações
daquelas
coletividades.
representações
auxiliavam
o
mentais Essas
homem
a
expressar seu mundo interior, a interpretar e a buscar muitas explicações do mundo exterior e do desconhecido. Deste universo imaginário, a Canção sugere um amplo referencial
da
concepção
do
homem
medievo para sua existência e o mundo em que vivia. Como toda explicação provinha do mundo cristão, a contextualização desse inventário
remete-se
ao
plano
divino,
alcançavam o objetivo do controle e da manutenção da ordem pública: [...] Porque o mundo oculto era um mundo sagrado, e o pensamento simbólico [...] era mais que a forma elaborada, decantada, no plano dos doutos, do
pensamento
mágico
que
impregnava
a
mentalidade comum [...], para a massa, as relíquias,
sacramentos
e
preces
eram
seus
equivalentes autorizados. Tratava-se sempre de encontrar as chaves que abrissem as portas do mundo sagrado, o mundo verdadeiro e eterno, aquele onde se podia encontrar a salvação [...] (LE GOFF, 2005, p. 337).
A obra favorece-nos observar nos indícios dessa cultura alguns ritos religiosos até hoje praticados, principalmente pela Igreja Católica. O sinal-da-cruz, por exemplo, ato simbólico-gestual que coloca o homem em uma busca direta por Deus e, por consequência, o distanciamento do Mal, portanto,
um
contato
com
o
plano
sobrenatural. Em um dos excertos da
Canção,
encontramos
exemplo
desta
simbologia quando o imperador diz: “[...] Por tua graça, se te aprouver, concede-me o dom de vingar meu sobrinho Rolando! Assim ele rezou. Depois se levantou e, de pé, persignou-se com o sinal do poderoso [...]” (CR, 1988, p. 95). A Literatura, assim, por
376
Maria do Carmo Faustino Borges
meio do discurso, torna verdade aquilo que
investidura 9 ao cavaleiro, gesto que marcou
estava
coletividade,
a Idade Média. Esta aliança significava o
permitindo ao leitor atual concretizar o
compromisso de fidelidade, de manutenção,
diálogo entre simbologias de dois tempos
de defesa contra os invasores ao reino
históricos distantes entre si. Considerando
franco por parte do vassalo e, da parte do
ainda o imaginário, construído a partir do
rei, a proteção aos seus súditos. Um
cotidiano
a
exemplo desta comunicação acontece nos
passagem referente ao ritual do culto aos
versos em que Carlos entrega ao seu
mortos 8, celebração esta de extensão à Vida
cavaleiro Ganelão a missão de ir até
Eterna; os vivos acreditavam na entrega das
Saragoça para encontrar o rei Marsílio, e o
almas ao “outro” mundo:
rei diz:
na
imaginação
daquela
da
sociedade
temos
[...] e levam para uma mesma fossa todos os
[...] Ganelão, avançai e recebei o bastão e a luva
amigos
eles
[...] o imperador estende a luva com sua mão
absolveram os mortos e os benzeram em nome de
direita, mas o conde bem que gostaria de não estar
Deus; depois queimaram mirra e incenso, e todos
lá; no momento em que devia segurá-la, a luva cai
com ardor incensaram os cadáveres; em seguida
no chão e os Franceses dizem: “Deus, que
enterraram-nos com grande honra [...] (CR, 1988,
presságio é este? [...]” (CR, 1988, p. 27).
p. 91).
Esse discurso confirma um sinal de
Ainda
que
no
encontraram
âmbito
percebemos
fragmentos
comunicação
medieval
mortos
da
[...]
simbologia,
textuais pelos
da
gestos,
justificando uma sociedade em que a escrita ainda não estava ao alcance de todos. A oralidade e a gestualidade tinham sua importância na comunicação da cultura e das lendas das populações. No Feudalismo, a partir do século XI, firmou-se o ritual da
mau presságio para os franceses, contudo podemos interpretar tal gesto como a traição de Ganelão ao suserano: a quebra de fidelidade, quando ele deixa a luva cair. Registramos
semelhante
ocorrência
em
outro excerto, no gesto em que Carlos expõe a barba sobre o peito, isto significava um desafio, que constitui mais um costume entre 9A
lealdade e a honra complementavam o tratado: “A
“[...] Por isso vemos a Igreja [...] na época carolíngia [...].
concessão do feudo pelo senhor ao vassalo era feita numa
Tomou particularmente a seu cargo o culto dos mortos,
cerimônia, a investidura, que consistia num ato simbólico,
como o testemunha no século IX a instituição da festa de
na entrega de um objeto (estandarte, cetro, vara, anel, faca,
Todos-os-Santos, a qual veio satisfazer uma necessidade
luva, pedaço de palha, etc. Em geral ela ocorria após o
especial da piedade popular, sublinhando a vocação dos
juramento de fidelidade e a homenagem [...]” (LE GOFF,
fiéis defuntos para a salvação [...]” (VAUCHEZ, 1995, p. 30).
2005, p. 85).
8
377
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
de São Miguel do Perigo até Saints [...] em pleno
os medievos: “O imperador cavalga mui
meio-dia, surgem grandes trevas (CR, 1988, p. 54).
nobremente. Exibiu a barba sobre o peito, por fora da túnica de couro” (CR, 1988, p. 96). Percebemos que, além dos ritos da fé cristã
que
movia
os
ideais
daquela
sociedade, o imaginário retrata parte do comportamento social. A literatura, por sua vez, por meio das crenças populares, dos hábitos e costumes que determinavam uma postura existencial, favorece-nos uma leitura que comporta sua construção no contexto do maravilhoso, no espaço do sobrenatural. Na Canção, esse o imaginário é sustentado, ainda, em textos bíblicos. De acordo com o narrado na Bíblia, no dia da morte
de
Cristo,
ao
meio-dia,
houve
relâmpagos, trovões e trevas 10. A fé e a lealdade e a valentia do herói medieval são características que o diferenciam do homem comum, portanto ele é digno de honras e de culto: o poeta enobrece a figura do herói cristão, ao associar os fenômenos ocorridos entre tal evento e o da morte de Rolando: [...] na França há uma tormenta maravilhosa,
fortalecem
tal
objetivo
ideológico
pedagógico de cristianização,
e
como no
ataque de Rolando ao vingar o amigo, Engelier: “Com toda a força vai atacar o pagão. Sacode a lâmina: o pagão cai. Os demônios levam sua alma”.
A alma do
pagão não tem salvação, é levada pela entidade do Mal. Também, no final da história, os pagãos perdem suas riquezas e Saragoça para os Franceses, porque os bons sempre prevalecem sobre os maus. De outro modo, mas com o mesmo propósito, o caso de Bramimonda, esposa de Marsílio: ela continua viva porque aceitou o batismo e a fé cristã: “[...] ela ouviu tantos sermões e bons exemplos que quer acreditar em Deus e pede o batismo: batizai-a, para que Deus tenha sua alma. ‘− Assim seja, dizem os bispos, [...] batiza-se aí a rainha da Espanha’ [...]” (CR, 1988, p. 57; p. 117). A Canção mostra outras produções
tempestade de trovoada e vento, chuva e granizo
intertextuais com a Bíblia e, uma delas é a
em excesso, o raio cai a intervalos curtos e
partir do livro do Apocalipse, no conteúdo
repetidos e, com toda a certeza toda a terra treme,
10
Encontramos também passagens que
voltado ao Juízo Final 11; em torno do qual
“Desde o meio-dia até as três horas da tarde houve “Quem não temeria, Senhor, e não glorificaria o Teu
escuridão sobre toda a terra. Imediatamente a cortina do
11
santuário rasgou-se em duas partes, de alto a baixo; a terra
nome? Sim! Só Tu és santo! Todas as nações virão
tremeu e as pedras se partiram” (BÍBLIA SAGRADA, Mat.
ajoelhar-se diante de Ti, porque Tuas justas decisões se
26:45 e 51).
tornaram manifestas!” (BIBLIA SAGRADA, Apocalipse 15:4).
378
Maria do Carmo Faustino Borges
ocorreram várias especulações. Trata-se da
Virgem Maria evidencia o que ora afirmamos:
referência ao ano 1000 12, quando se previa o
“Ah! Diz o conde “ajuda Virgem Maria!” (CR,
final do mundo: “Todos aqueles que vêem
1988, p. 76). No mesmo sentido, temos o
tais coisas se espantam, e alguns dizem: É o
momento da morte deste herói, quando os
fim do mundo, a consumação dos séculos
anjos vieram buscar sua alma; também na
que chegou agora!” (CR, 1988, p. 54). O uso
passagem em que Carlos é ferido por
do texto bíblico serve para provocar, no
Baligante:
leitor/ouvinte, em um jogo arbitrário, a reorganização descrição
das
do
imaginário,
calamidades
pois pode
a ser
interpretada como o fim do mundo, em razão da densidade em que os fatos excedem o natural. intercessão de anjos e de santos, como mensageiros de Deus, na participação de eventos sobrenaturais. Estes desempenham geralmente a função de operar e conceder graças e milagres. Poirion (1982, p. 9) afirma que “[...] La Chanson de Roland emprunte à
entre
autres
traits,
le
merveilleux de cette communication divine [...]” 13. A cena em que Rolando tenta quebrar sua espada Durindana e pede ajuda à 12
mantinha a cabeça inclinada; com as mãos juntas chegou ao seu fim. Deus enviou seu anjo Querubim e São Miguel do Perigo; ao mesmo tempo que os outros, veio São Gabriel; levam a alma do conde ao Paraíso (CR, 1988, p.78). [...] Deus não quer que ele morra nem seja
O texto traz também a ocorrência da
l’hagiographie,
[...] São Gabriel pegou-a nas mãos. Sobre o braço
“[...] Perto do ano mil a atenção fixou-se, sobretudo no
Anticristo, hidra de cem rostos que incessantemente
vencido; São Gabriel voltou para perto dele e pergunta: Grande rei, que fazes então? Quando Carlos ouve a voz do anjo, não tem mais medo, não mais receia morrer; recobra o vigor e os sentidos retornam [...] os pagãos fogem, Deus não quer que eles fiquem, e os Franceses obtêm então o resultado que desejavam (CR, 1988, p. 108).
Observamos, nesses excertos como em outros, que a fé cristã em determinadas crenças e outras heranças culturais se preservaram e se mantêm no decorrer da História. Assim, segundo Bessière (1974), o maravilhoso cognitivos
torna
os
marcos
universalmente
sócioválidos,
independente de sua atuação espacial e
renasce e cuja vinda o clero julgava reconhecer nas
temporal, propostos pela História. Tanto a
vicissitudes da história: invasões, calamidades diversas,
Arte quanto à História colaboram neste
aparecimento de heresias. [...]” (VAUCHEZ, 1995, p. 65). 13“A
Canção de Rolando empresta da hagiografia, entre
outros traços, o maravilhoso dessa comunicação divina.”
processo, ao suscitar do leitor a pesquisa e o conhecimento das relações que interligam o
(Tradução nossa.)
379
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
homem à sociedade, comprovando, dessa
necessário fazer uma viagem para além dos
maneira, a necessidade de retomar as ideias
aspectos literários, e conhecer os elementos
de Candido (1985), quando afirma que as
culturais,
produções antigas devem ser estudadas
contexto. Estas características não podem
além dos aspectos literários, mas também os
ser separadas ainda das circunstâncias em
elementos culturais, históricos e sociais, na
que foram elaboradas e executadas.
sua totalidade.
históricos
Deste Conclusão
modo,
e
sociais
as
de
seu
referências
às
questões históricas, como a Batalha de
Concluímos que a leitura de uma obra
Roncesvales e o reinado de Carlos Magno
como A Canção de Rolando requer que
são elementos que se somaram à vivência
tenhamos
fatores
dos grupos sociais dos séculos XI e XII. Por
socioculturais e estéticos que influenciaram o
meio dos anacronismos e das homologias,
poeta na criação e na construção da obra.
observamos heranças culturais e tradições
Como
o
conhecimento
podemos
utilizados
dos
observar,
para
os
excertos
que foram cristianizadas e serviram de
exemplificar
nossa
contexto ao desenvolvimento da lenda de
abordagem de História e ficção foram, na maioria das vezes, criados a partir dos elementos
do
imaginário
medieval
Rolando. As teorias estudadas fortaleceram as nossas
convicções
de
que
as
fontes
correspondentes aos tempos da escrita do
socioculturais
texto.
presentes em uma obra literária. A literatura
e
literárias
estão sempre
O estudo da referida obra literária
popular-oral, vinculada ao contexto social, à
permite também concluir que a obra primitiva
cultura local, a hábitos e a costumes, utilizou
deve
características
o metafórico e o estético como recursos
semânticas.
discursivos, que podem ser até nonsense
Apoiando-nos em Candido (1985), isto quer
para nós, mas que têm sentido para a
dizer: pelo aspecto coletivo da criação, pois é
comunidade que o produziu.
ser
estruturais,
lida
por
suas
contextuais
e
380
Maria do Carmo Faustino Borges
Referências:
A CANÇÃO DE ROLANDO. VASSALO, Lígia. (Trad. Not. Pref.). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. Apocalipse. Português. In: Bíblia Sagrada. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 1990. p.1.531. Edição Pastoral. Bíblia. N. T. BESSIÈRE, Irène. Le récit fantastique: forme mixte du cas et de la devinette. In: ____. Le récit
fantastique. La poétique de l’incertain. Tradução Biagio D’Angelo. Paris: Larousse, 1974, p. 929. Colaboração de Maria Rosa Duarte de Oliveira. CANDIDO, A. Literatura e sociedade. 7. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1985. D’ONOFRIO, Salvatore. A Era Medieval. In: ____. Literatura ocidental. Autores e obras fundamentais. São Paulo: Ática, 1990. p.149-214. GRIMBERG, Carl. História Universal: das grandes invasões bárbaras às cruzadas. Tradução Jorge de Macedo. Lisboa: Publicações Europa-América, v. 6, 1940. LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Tradução José Rivair de Macedo. Bauru, SP: Edusc, 2005. Coleção História. ____. Heróis e maravilhas da Idade Média. Tradução Stephania Matousek. Petrópolis: Vozes, 2009. MACHADO, Luis Toledo. O Herói, o Mito e a Epopéia. São Paulo: Alba, 1962. Matheus. Português. In: Bíblia Sagrada. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 1990. p.1.216. Edição Pastoral. Bíblia. N. T. POIRION, Daniel. Le Merveilleux dans la literature française du Moyen Age. Paris: Presses Universitaries de France, 1982. TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Tradução Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975. Coleção Debates. 98. VAUCHEZ, André. A Espiritualidade da Idade Média Ocidental – Séc. VIII - XIII. Tradução Teresa Antunes Cardoso. Lisboa: Editorial Estampa, 1995. Nova História, 26.
381
UM TOQUE DE CULTURA LATINA NA MÚSICA NORDESTINA: LEITURAS DA ARS AMATORIA. Milton Genésio de Brito 1 Resumo: Nesta análise propomos um eixo de discussão confrontando dois campos – os de conhecimentos (saberes) e práticas (fazeres) -, ao estabelecer um exame comparado entre procedimentos que, transmitidos de forma escrita, e, portanto transformados em informações, seriam recorrentes na Antiguidade, com atitudes adotadas nas relações contemporâneas. Ou seja, sugeriremos a reflexão sobre até que ponto ideias e argumentações expostas em um texto clássico reverberam nas interações atuais, sem que disso nos apercebamos, em uma época de conhecimentos instrumentalizados. Efetuaremos uma analogia, nesse sentido, cotejando excertos de uma obra ainda polêmica de Ovídio, a Ars Amatoria – não a maior, porém, a mais conhecida de suas produções literárias -, e uma canção popular brasileira, vertida em um ritmo focado no lúdico da dança. Por meio dessa relação, procuraremos desvelar algumas interconexões, discutindo determinadas permanências ou ressurgências de concepções a respeito da sexualidade e da relação amorosa no mundo cotidiano. Finalizando formularemos ainda outras leituras do texto ovidiano, um dos cânones da literatura latina, apresentando aspectos possíveis, mas raramente aventados, pois, o documento não comporta em si uma interpretação definitiva. Palavras-chave: Ars Amatoria; Música Contemporânea; Relações Amorosas.
1
Doutorando em História Social (PPG UNESP – Assis).
382
Milton Genésio de Brito
INTRODUÇÃO
os quais demandam tempo e esforços em
“... A Antiguidade era familiar aos homens do século XVIII, e qualquer
espírito cultivado
manejava sem dificuldade as respectivas línguas
uma cultura baseada massivamente em noções
instrumentalizadas.
e literaturas. A cultura contemporânea não pode
consequência
recuperar tal exigência. Deve, no entanto,
tendência são as dificuldades, tanto de
encontrar espaço para essa herança preciosa, sobretudo no âmbito dos estudos que implicam uma reflexão sobre as formas de criação literária
que os rápidos resumos de uma história literária que,
amiúde,
evoca
modelos,
fontes,
arquétipos... sem os dar a ler. E, assim, com razão
que
nos
parece
espantoso
que
o
‘comparativismo’ se aplique tão raramente e com
evidente
dessa
abordagem como de compreensão, que deturpam a análise dos textos.
e da história das ideias. A literatura latina, em ambos estes campos, merece certamente mais
mais
A
Outra questão foi se seria possível estabelecer esse “comparativismo” entre obras
antigas
e
indagações
contemporâneas, desvelando a “preciosa herança”, no intuito de demonstrar uma
tanta dificuldade às relações entre textos antigos
permanência ou uma ressurgência de
e modernos. Haverá por trás de tal atitude algum
modelos e arquétipos que se espraiassem
tabu? [grifo nosso]”. (GAILLARD, 1992, p.7)
Quando fizemos a leitura desse trecho
da
obra
de
Jacques
Gaillard
algumas questões e ideias decorrentes da reflexão nos instigaram. A primeira delas foi com relação à pressuposta atitude de interdição referente às possiblidades de interligação entre textos, da denominada literatura clássica, e as inúmeras temáticas discutidas na atualidade. De fato, a leitura e a interpretação de autores antigos, no sentido de que o contexto que lhes deu origem já não mais existe,
constituem-se
em
uma
prática
restrita a um número cada vez mais reduzido
de
pessoas
devido
aos
conhecimentos especializados requeridos,
para além do campo literário no universo das relações humanas. Durante a leitura de textos de autores como Cícero e Sêneca essa probabilidade ficou evidente. Nesse sentido, a possibilidade de retomar a leitura de um dos textos de Ovídio e a ideia de coteja-lo com temáticas do contexto presente se consolidaram ao ouvirmos
e
ponderarmos
sobre
os
argumentos expostos na letra de uma música popular, da qual selecionamos uma das
gravações.
embasar
nossa
Porém,
antes,
para
análise
dissertaremos
inicialmente sobre o autor latino, suas obras e o contexto de recepção das mesmas.
383
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
SOBRE PÚBLIO OVÍDIO NASO
Menor e finalmente à Sicília, locais onde
Ovídio, ou Publius Ovidius Naso,
passou a frequentar ambientes intelectuais,
nasceu em 20 de março do ano 43 a.C., na
porém,
cidade
culturais de Messala e de Mecenas.
de
Sumo
-
hoje
denominada
ainda
distantes
dos
círculos
Sumona -, incrustada num dos muitos vales
Posteriormente, no seu regresso a
dos Apeninos a cerca de 140 quilômetros a
Roma, Ovídio foi apresentado ao círculo de
leste
por
Mecenas e conseguiu incluir entre as suas
pertencer a uma família da classe equestre
amizades os poetas Horácio e Propércio,
e de acordo com a vontade paterna, foi
chegando a ter contato com Virgílio. Sua
direcionada à carreira do Direito que,
vida pessoal, contudo, foi agitada, tendo se
posteriormente, deveria habilitá-lo para o
casado três vezes: seus dois primeiros
exercício de funções públicas reservadas
casamentos foram breves, somente se
ao seu nível social, dentre as quais a de
estabilizando com sua terceira mulher,
maior relevância política era a de Prefeito
Lívia, sobrinha de Otávio (HARVEY: 1998,
do Pretório ou comandante da Guarda
p. 372).
de
Roma.
Sua
educação,
Pretoriana, instituição responsável pela
Esta união, que propiciou à Ovídio
segurança, inicialmente na República, dos
uma aproximação com a casa imperial, não
comandantes em campanha, e depois dos
livrou-o, entretanto, no ano 8 d.C., do
imperadores quando do estabelecimento
banimento para Tômis
do Principado por Augusto.
Augusto,
mantido
por um édito de
3
por
Tibério,
seu
Entre seus primeiros professores,
sucessor, e que se prolongou até a morte
em Roma, incluíram-se grandes mestres da
do poeta em 18 d.C. A causa desse
eloquência e afamados gramáticos como
banimento,
segundo
Aurélio
referências
analisadas,
Fusco
e
Pórcio
Latrão
2.
Possivelmente, foi nesse período que
a
maioria teria
das
sido
a
disseminação dos princípios professados
nasceu o seu interesse pela Poesia o que fez com que sua formação seguisse um
3
curso diferente do planejado pelo pai,
vila na costa ocidental do Ponto Euxino - uma antiga
levando-o primeiro à Atenas, depois à Ásia
colônia formada por gregos de Mileto, cidade jônica da
Tômis, também referida como Tomos ou Tomoi, era uma
Ásia Menor ao sul do Mar Negro -, próxima da foz do Íster (Danúbio inferior), correspondendo aproximadamente à
2
Conforme: Laureados do Olimpo: Ovídio.
atual cidade de Contantza, na Romênia.
384
Milton Genésio de Brito
na Ars Amatoria. Todavia, o lapso temporal
Nesta mesma época compôs uma
entre a data de divulgação da obra e a do
série de cartas imaginárias, também em
desterro
dísticos
mantem
a
dúvida
sobre
tal
elegíacos
6,
denominadas
Heroidum libri: Cartas endereçadas aos
possibilidade. A ARS AMATORIA E SEU
amantes pelas heroínas da tradição épica e
CONTEXTO
dramática da Grécia. Ainda podemos citar,
A Ars Amatoria não foi a primeira,
como
anterior
à
obra
em
análise,
Medicamenta faciei feminae, um tratado de
nem a maior, das obras de Ovídio. Seu trabalho inicial, composto entre
cosmetologia para os rostos femininos.
22 e 15 a.C., foi Amores, uma coletânea de
Posteriores à Ars Amatoria são:
poemas elegíacos que se destinavam a
Remedia Amoris, diversos conselhos que
celebrar sua paixão por Corina, uma
têm por objetivo desarraigar do espírito os
cortesã e também personagem simbólica
efeitos de uma paixão amorosa não
que representaria todas as mulheres com
correspondida. Esta obra serviria como
as quais se relacionou. A primeira edição
alternativa
constava
compilados
sucesso com o uso da Ars Amatoria;
Segundo
Medea, uma tragédia que é citada por
Spalding (1968, p.154), no livro III, carta
autores posteriores, mas da qual não
XV, linha XVIII, desta obra, há uma
restaram
referência - Pulsanda est magnis area
Metamorfoseon libri, obra anteriormente
maior equis
citada;
de
cinco
posteriormente
4
para
livros, três.
-, que evidenciaria a sua
aos
que
não
sequer e
os
obtivessem
fragmentos;
Fasti,
poemas
que
intenção de “legar a posteridade” sua maior
homenageavam as festividades religiosas e
obra, Metamorfoseon libri, e a única escrita
cívicas romanas, procurando também dar
em hexâmetros datílicos 5, constituindo-se
explicações
numa
fundamentando diversos costumes, e, por
coletânea
de
mitos
gregos
e
romanos com funções didáticas.
sobre
o
calendário
e
esse motivo, deveria ser composta de doze livros, um para cada mês do ano, o que,
4 5
Com grandes cavalos, devo palmilhar uma área maior. O hexâmetro datílicos constituía a forma métrica
associada a poesia épica, tanto na literatura grega como na latina, exemplificado nas obras de Homero (Ilíada e
6
Odisseia) e Virgílio (Eneida).
elaboração de elegias (cartas amorosas) e epigramas.
O dístico elegíaco era utilizado principalmente na
385
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
todavia, devido ao édito imperial ficou
segundo
livros
são
direcionados
aos
limitado a seis volumes 7.
homens - as táticas de aproximação e
Após o édito Ovídio começou a
conquista, e os meios a serem utilizados
escrever ainda as Tristia ou Tristium libri,
para se manter a amada; o terceiro livro é
conjunto de epístolas em cinco livros, nas
dedicado às mulheres - quais os artifícios
quais suplicou a revisão do seu exílio pelo
para
imperador
duradoura, conforme Cardoso (2003, p.
Augusto:
segundo
Rocha
Pereira (1984: 378), na epístola IV, capítulo
tornar-se
amada
de
maneira
81).
IV, linha XV, a citação quia res est publica
Segundo Feitosa (2000), a Ars
Caesar tem por objetivo identificar Augusto
Amatoria, ao atribuir igual participação e
(César) como uma continuidade da Res
direitos à homens e mulheres na relação
Publica.
amorosa, representava uma transgressão
As Ponticae ou Epistulae ex Ponto,
às regras e valores morais arrogados pela
totalizando quatro livros, foram compostas
aristocracia para a união e as relações
algum tempo depois de sua chegada ao
amorosas. Dentre as três formas de união
Pontus Euxinus. Escritas em um ritmo
conjugais correntes entre os romanos 9, a
monótono, demonstram um tom nostálgico
mais difundida entre a aristocracia era a ad
em relação a sua vida na cidade de Roma,
manum, tradição herdada do período
e uma angústia diante da inutilidade de se
republicano
suplicar pela clemência imperial 8.
aristocrática era zelosamente ‘guardada’
A
Ars Amatoria, o eixo deste
trabalho, é um conjunto de três livros,
Entretanto, décadas
sedução”,
constituição
ao
clima
“uma
jovem
era escolhido por seu pai” ·.
Ovídio procura construir uma “teoria da contraposição
qual
para o casamento e o seu futuro esposo
escritos em versos elegíacos, no qual em
no
finais do
o da
período
entre
República
Império
e
implicou
as a em
moralizante da época: o primeiro e o 9
Por aquisição, mediante um pagamento simbólico pela
Nesta obra encontra-se a expressão paronomástica urbi
noiva; por coabitação, depois de um ano convivendo
et orbi, para a cidade (de Roma) e para o mundo
juntos ininterruptamente sob o mesmo teto; e por dote, ou
(conhecido).
ad manum, no qual o casamento constituía-se como um
7
8
De acordo com Harvey (1998: 374) diversas outras
obras são atribuídas à Ovídio de modo espúrio.
ato político e econômico, no sentido de fortalecer as relações entre famílias.
386
Milton Genésio de Brito
importantes
transformações
e
Neste sentido, a disseminação da
políticas: não mais as práticas de sucessão
Ars Amatoria - classificada por muitos,
e de transmissão de bens por meio de
mesmo atualmente, como obscena e imoral
herança, ou o cursum honorum, eram
-, ao realçar as práticas extraconjugais,
determinados por inter-relações entre as
seguia na contramão da política imperial,
famílias nas suas alianças políticas, mas,
mas também demonstrava a forte oposição
primeiro em razão das alternâncias entre
ao discurso moralizante e a necessidade
diferentes
de abrandamento das penas impostas pela
facções
dos
sociais
“senhores
guerra”, e os subsequentes
de
confiscos
sofridos pelos derrotados, e depois, a partir
política imperial. OS DEZ MANDAMENTOS DO AMOR E A OBRA OVIDIANA
de um poder centralizado - o Imperador. Tais fatos colocaram em crise a
Na analogia entre a obra ovidiana e
função político-econômica da instituição
uma música nordestina, os excertos foram
matrimonial, multiplicando o número de
retirados dos livros destinados aos homens
divórcios, estendendo o concubinato entre
no sentido de conquistar e manter as
livres e libertos e diminuindo o número de
mulheres amadas. Antes de cada excerto
filhos nascidos de união legítima. A política
há dois números: o primeiro, em algarismos
imperial, prevendo a iminente ruptura de
romanos, indica o livro do qual foi extraído;
sua
o segundo, em algarismos indo-arábicos
base
de
sustentação,
procurou
resgatar os antigos valores aristocráticos, o
indica a linha.
Mos Maiorum, revendo a legislação e
Os versos a seguir foram retirados
tentando regulamentar os comportamentos
da letra de uma música popular bem
na sociedade romana. A própria filha de
ritmada, conforme Moreno & Carvalho
Augusto, Júlia, sofreu o banimento imperial
(1998), e serão utilizados para sugerir
devido aos escândalos, à impudicícia e às
como
orgias
interpretada
noturnas,
reconhecimento complacência condutas.
demonstrando
público do
e
Imperador
o
a
Ars
Amatoria
pelo
seu
tende aspecto
a
ser mais
a
não
propalado – como um tratado de sedução -,
com
tais
o qual apresenta a relação amorosa equivalente a um jogo no qual o maior conhecimento das regras, de uma das
387
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
partes,
determina
a
sua
“vitória”
circunscrição causada pelo próprio autor ao início de sua obra: Se acaso existe alguém
entre esse povo que da arte de amar nada conheça, leia o presente livro – a ver se douto ficar nesta matéria que lhe interessa. (I, 1-2)
Deixa ela esperar.
–
10
O primeiro dos mandamentos pode ser relacionado com as seguintes linhas explicitando a definição do objetivo, o cerco e a aproximação, direta, mas afável: Se
vais para o amor como quem vai pela primeira vez ao fogo das pelejas, trata de
Os dez mandamentos do amor,
procurar, antes de mais, aquela a quem
Para conquistar uma mulher:
desejas (I, 35-36)
Tem que ter carinho; Tem que ter jeitinho;
11;
Procura então um
motivo de conversa (I, 143)
12;
e, Que tudo
Tem que dar aquilo que ela quer.
te sirva de pretexto para mostrares a tua
Primeiro, tudo começa com a paquera:
cortesia (I, 152)
O seu olhar bem dentro do olho dela. E com jeitinho lhe tire para dançar,
13.
No segundo dos preceitos há o
Dance macio para ela se aconchegar.
indicativo de que se deve buscar o
Segundo, um papo de derrubar avião:
estreitamento da distância, e, com uma
Vá de mansinho alisando a sua mão. Terceiro, é um cheiro para sentir o seu perfume,
persuasiva
argumentação,
fazer
uso
Olhando as outras para ela sentir ciúmes.
abundante de elogios e promessas: Senta-
O quarto, é brincar no escurinho:
te ao lado daquela que te agrada. Ninguém
Ser o lobo mau e ela chapeuzinho. Quinto, tem que ser bem safadinho.
te impede de te colares a ela (I, 139)
14;
Os
Preste atenção, agora
elogios agradam a mais casta. Vivem as
Ao sexto mandamento
virgens deslumbradas pela própria beleza e
Que ela não vai lhe esquecer Um só momento: Repita a dose se sentir que ela gostou,
não poucos cuidados lhe dedicam (I, 621622)
15;
e, Não sejas tímido a fazer
Na hora H lhe chame de meu amor. Sétimo toque é lhe falar de paixão: falar somente das coisas do coração. Oitavo mandamento diz para jurar
10
Principio, quod amare uelis repelire labora, Qui noua
Lhe ser fiel até a morte lhe levar.
11
No nono, você diz que vai voltar,
nunc primum miles in arma uenis.
Diz que amanhã vai telefonar.
12
Hic tibi quaeratur socii sermonis origo...
No décimo...
13
Quaelibet officio causa sit apta tuo.
14
Proximus a domina, nullo prohibente, sedetto...
Si quis in hoc artem populo non nouit amandi, hoc legat
et lecto carmine doctus amet.
15
Delectant etiam castas praeconia formae; Virginibus
curae grataque forma sua est.
388
Milton Genésio de Brito
promessas. As promessas atraem as
uma rival perigosa seu amor enfraquece.
mulheres (I, 629)
(II, 435-436)
16.
Atitudes
ambíguas
parecem
18
A defesa de uma postura ativa e ao
constituir o terceiro dos mandamentos,
mesmo
pois, ao mesmo tempo em que o homem
fundamenta
deve dar um “cheiro para sentir o seu
complementado pelo quinto, no qual se
perfume
uma
professa a impetuosidade na ação quando
pressuposta demonstração de interesse,
do crescente erotismo na interação entre
recomenda
as
ambos, considerando que caberia à mulher
outras” para que também (a mulher) sinta
a parte passiva no relacionamento: O pudor
ciúmes em relação ao homem. Porém,
impede a mulher de provocar certas
essa postura nolo volo pode significar
carícias, mas se é o homem a começar ela
simultaneamente o reconhecimento de um
recebe-as com delícia (I, 703-704)
dos atributos femininos e uma forma
mesmo sentido, Não molestes com beijos
deturpada de afirmação do próprio valor,
mal roubados os seus lábios sensíveis,
ações que na obra têm seus paralelos:
delicados; que queixar-se não possa da tua
Meio algum não desprezes para que fique
grosseria. Roubar um beijo e não roubar o
(a mulher) com essa convicção (de que o
resto é uma falta de jeito que merece
homem representa o papel de apaixonado).
perder os favores já concedidos (I, 665-
Não é difícil de ser acreditado. Dignas se
668)
(o
da que
mulher)”, continue
em
“olhando
julgam todas as mulheres de um amor inspirar (I, 610-611)
lúdica o
pelo
quarto
homem preceito,
19;
E, no
20.
Tais características, a postura ativa
nesse sentido, a
e a impetuosidade na ação, reiteradas em
coerência
na
outras partes da obra ovidiana, situam-se
argumentação do poeta - Sei de algumas
melhor no âmbito e na índole militar,
ambiguidade
17;e,
tempo
tem
mulheres a quem a receosa obediência do amante em geral aborrece; se não tiverem
18
Sunt quibus ingrate timida indulgentia seruit, Et, si nulla
subest aemula, languet amor. 19
Scilicet, ut pudor est quaedam coepisse priorem, sic alio
gratum est incipiente pati. 20 16
Nec timide promitte; trahunt promissa puellas
17
Haec tibi quaeratur qualibet arte fides. Nec credi labor
est; sibi quaeque uidetur amanda.
Tantum, ne noceant teneris male rapta lebellis, neue
queri possit dura fuisse, caue. Oscula qui sumpsit, si non et cetera sumpsit, haec quoque, quae data sunt, Perdere dignus erit.
389
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
atributos
alijados
progressivamente
da
aristocracia citadina a partir das crises
alimento que nutre o terno amor. [grifo nosso] (II, 151-152)
republicanas e da coeva proletarização do
22
No Sétimo ‘toque’ na letra da música
exército romano. Assim, propomos que, o
se
reitera
o
valor
da
seu incitamento no texto sobre o espaço
conhecimento
privado das relações seria uma forma de
romanos para o exercício da vida pública, e
catarse pela obliteração das mesmas no
aplicada no texto à relação amorosa: Se
espaço público durante o Principado.
queres que a tua amiga festeje a tua vinda,
fundamental
Retórica, entre
os
Em relação ao sexto mandamento,
prodigaliza-lhe a ternura das carícias e
mais do que repetir a ‘dose’, Ovídio
palavras que encantam os ouvidos. (II, 159-
recomendou como fundamental a atinência
160)
23.
a alguns detalhes, e procurou evidenciar
O Oitavo mandamento argumenta
que palavras ternas faziam-se essenciais
pela eficácia de um pressuposto juramento
em
e
de fidelidade até a morte, retomando o
principalmente nesse: Apressar o termo da
papel desempenhado pelas promessas
volúpia, acredite, não é conveniente, mas
para a conquista da alma feminina (sic):
depois de atrasos que a demorem chegar à
Faze promessas! Fazê-las não te custa.
meta insensivelmente [também não]. E
Com promessas enriquece muita gente.
antes de encontrares aquela região onde
Faze promessas! A esperança é duradoura
as carícias têm melhor acolhimento não te
desde que um grão de
impeça o pudor de a afagar (II, 717-720)
acrescente. És, Esperança, uma deusa
quase
todos
os
momentos,
21;
e, continuando, Longe de nós as ásperas
enganadora,
mas
discussões e os combates travados pelas
utilmente. (I, 441-444)
os
fé se lhe
enganos
teces
24.
línguas mordazes. Doces palavras, eis o 22
Este procul, lites, et amarae proelia linguae! Dulcibus
est uerbis mollis alendus amor. 23
Blanditias molles auremque iuuantia uerba. Adfer, ut
aduentu laeta sit illa tuo. 21
Crede mihi, non est Veneris properanda uoluptas, sed
sensim tarda prolicienda mora. Cum loca reppereris quae
24
Promittas facito; quid enim promittere laedit? Pollicitis
diues quilibet esse potest. Spes tenet in tempus, semel
tangi femina gaudet, non obstet, tangas quo minus illa,
est si credita, longum; Illa quidem fallax, sed tamen apta
pudor.
Dea est.
390
Milton Genésio de Brito
No nono preceito recomenda-se a
esta obra de Ovídio. Entretanto, diferentes
criação de uma expectativa de retorno:
interpretações podem ser feitas a partir
Seja tua a vantagem e a honra lhe
desse mesmo texto.
pertença. Nada perdes. Deixa-a estar
OUTRAS LEITURAS POSSÍVEIS
convencida que sobre ti exerce poderosa
Alguns dos próprios excertos que
influência. Se o amor da amiga conservar
foram
teus dias preocupa, em convencê-la que
“mandamentos
estás maravilhado com a sua beleza, a
empregados para exemplificar um manual
mente ocupa. (II, 293-296)
metodológico empregado em diferentes
O
décimo
25.
mandamento,
ao
utilizados
para do
fundamentar
amor”
podem
os ser
situações das relações humanas.
preceituar que se deve deixá-la esperar,
O primeiro mandamento ressalta o
representaria o fazer-se valorizar pela
princípio de qualquer ação que tenha por
amada em razão da ausência, ideias que
finalidade
se
argumento
objetivo, ou, Só o homem que a fundo se
ovidiano: Desejam as mulheres o que lhes
conheça pode amar sabiamente porque é
foge e detestam o que está ao seu alcance.
em relação às próprias forças que mede
Se insistires com mais moderação, maior
cada empresa. (II, 501-502)
será
sempre
desse momento, frisa-se a aproximação,
transpareça em teus pedidos o ímpeto da
com o uso de uma convincente, mas nem
paixão. (I, 715-717)
sempre
ressaltam
a
sua
no
seguinte
aceitação.
Nem
26.
o
sucesso:
a
consistente
definição
27.
do
A partir
argumentação
Por meio desses excertos extraídos
(segundo princípio): O homem que procede
da Ars Amatoria procuramos demonstrar a
com prudência sabe adaptar-se a esta
sua utilização, no sentido de um tratado
divergência [o fato de não poder se aplicar
prático de sedução, o que contribuiu para a
uma mesma tática por melhor que seja a
continuidade do preconceito em relação a
todas as situações] (I, 758)
28.
O fazer-se
notar e demonstrar os atributos pessoais 25
Vtilitas tua sit; titulus donetur amicae. Perde nihil: partes
illa potentis agat. Sed te, cuieumque est retinendae cura
insere-se no terceiro passo, como reiterado neste excerto: E, ainda, se tens outros
puellae, attonitum forma fac putet esse sua. 26
Quod refugit multae cupiunt, odere quod instat; Lenius
27
Qui sibi notus erit solus sapienter amabit, atque opus ad
instando taedia tolle tui. Nec semper Veneris spes est
uires exiget omne suas.
profitenda roganti...
28
Qui sapit, innumeris moribus aptus erit...
391
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
meios de agradar usai-os a todos, torna-os
lhe mostrem o teu rosto. E se razões
evidentes. (I, 594)
tiveres para acreditar que a tua amiga vai
29.
No quarto e no quinto mandamentos têm-se
a
relação,
como
descrito
anteriormente, com uma postura ativa na relação
o
que
comprometimento,
implica
sentir saudades e a tua ausência lhe dará desgosto,
e
por
repousar. (II, 347-351)
em
envolvimento
deixa-a
pouco
tempo
33.
E o décimo, apesar de enfatizar a necessidade
de
manutenção
de
uma
participação: Aprende a perder tempo às
relativa distância, espacial ou temporal, por
ordens da tua dona caprichosa (I, 503)
30;
uma das partes, busca ao mesmo tempo o
E, se no cerco puseres perseverança e do
estabelecimento da presença como defesa
tempo fizeres teu aliado há de a própria
contra possíveis revezes amorosos: Mas
Penélope render-se Ao assédio fatal dessa
que a tua demora seja breve: com o tempo
aliança (I, 475)
as
O
31.
sexto
e
o
sétimo
preceitos
acentuam a interação entre atitudes e suas
saudades
diminuem.
Apaga-se
a
imagem do ausente e logo a vida um novo amor desenha. (II, 357-358)
verbalizações em uma relação simbiótica
Muitos
dos
34.
aspectos
e
de reforço e reafirmação: Não mostres que
características aparentemente ambíguos
simulas nas palavras; que a expressão do
que destacamos, possivelmente, tiveram
rosto não desminta o efeito que busca a tua
seu
fala. (II, 311-312)
experiências pessoais do autor. Em razão
32.
No oitavo e o nono procuram
fundamento
na
agitada
vida
e
desse pressuposto, a Ars Amatoria pode
entre
ser utilizada em diversos sentidos, e
compromisso, esperança e expectativas na
múltiplas interpretações que consideramos
relação, de maneira oposta aos excertos
complementares entre si.
estabelecer
uma
relação
expostos anteriormente: Que a tua amiga
te veja e ouça sempre. Que a noite e o dia 33
Te semper uidebat, tibi semper praebeat aures;
29
Et, quacumque potes doce placere, place.
Exhibeat uultus noxque diesque tuos. Cum tibi maior erit
30
Arbitrio dominae tempora perde tuae.
fiducia posse requiri, Cum procul absenti cura futurus eris,
31
Penelopen ipsam, perstes modo, tempore uinces
Da requiem...
32
Tantum ne pateas uerbis simulator in illis. Effice, nec
34
uultu destrue dicta tuo.
Sed mora tuta breuis: lentescunt tempore curae,
vanescitque absens, et nouus intrat amor.
392
Milton Genésio de Brito
Um sentido que pode ser explorado
seja belo e o corpo impressionante. (II, 107-108)
de
da
amiga e não teres a surpresa de ser
argumentação de BARBOSA (2002, p.
abandonado,... Junta os dons do espírito às
156), que empreendeu uma análise sobre o
vantagens do corpo. A beleza é um dom
papel da amante na sociedade romana do
demasiado frágil, tudo aquilo que aos anos
século I d.C. e para quem “... Ovídio pagou
se acrescenta com rigor a beleza diminui: a
com seu exílio por sua ousadia em
própria duração a faz murchar. (II, 111-114)
incentivar um amor e um estilo de vida que
37;
os políticos consideravam prejudicial ao
que fique e a beleza do corpo assim se
Estado”.
fortifique. Só o espírito dura até à fúnebre
galanteio”,
como
no
viés
36;
Se pretendes guardar a tua
é a sua representação enquanto “manual
e, também, prepara desde já um espírito
Outro significado possível segue a
fogueira. Não te pareça um frívolo cuidado
análise de SILVA (2001) que ao interpretar
pelas artes liberais a inteligência enriquecer
esta obra do corpus bibliográfico ovidiano
e as duas línguas aprender. (II, 120-123)
em uma comparação com o Satyricon de
38.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Petrônio refere-se a ambos os textos como
A pesquisa e o estudo das obras de
formas de negação a uma sociedade
autores latinos, no geral, e da produção
nitidamente patriarcal, quase misógina, que
ovidiana, em particular, foram elucidativas
atingiu o absurdo e o grotesco em relação
no
sentido
de
evidenciar
que
os
à sexualidade feminina.
fundamentos
de
diversas
ideias
e
Como argumento final, o que mais
concepções difundidas pelo senso comum.
merece menção é o conceito ovidiano de
No mesmo sentido, muitos aspectos das
“essência da beleza” diluído no texto, e que, infelizmente, não é destacado quando
36
de sua análise: Convém aos homens a
forma dabit.
beleza descuidada... É a elegância simples e correta que nos homens agrada. (I, 507, 511)
35;
Para ser amado deve o homem ser
amável e não será bastante que o rosto
37
Vt ameris, amabilis esto, quod tibi non facies solaue Vt dominam teneas, nec te mirere relictum, ingenii dotes
corporis
adde
bonis.
Forma
bonum
fragile
est,
quantumque accedit ad annos, fit minor, et spatio carpitur ipsa suo. 38
Iam molire animum, qui duret, et adstrue formae: Solus
ad extremos permanet ille rogos. Nec leui ingenuas pectus coluisse per artes cura sit, et linguas edidicisse
35
Forma uiros neglecta decet... Munditie placeant...
duas.
393
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
culturas
(como
caso
da
música
vivido pelo poeta e seus
ideologias
do
mundo
Período de acelerada transição entre um
contemporâneo (dentre as quais os modos
cenário constituído por diversas forças em
de
confrontação,
confrontada)
e
no
relacionamento
entre
homens
mulheres),
apropriaram-se
argumentos
do
teor
em
destes
e
seus
cânones
mas
ainda
coetâneos.
aberto
a
manifestações claras, e um ambiente de poder
centralizado
que
paulatinamente
literários, apesar de desvincula-los da sua
reduziu o espaço de participação dos
tradição cultural de origem e, muitas vezes,
cidadãos na vida pública, deixando para a
distorce-los por uma arrogada tradução.
maioria apenas o universo das relações
No caso de Ovídio, procuramos demonstrar
como
descontextualizada
citação
suas opiniões de maneira metafórica,
fragmentos isolados pode deslocar várias
devido a progressivas medidas decretadas
de suas ideias expressas no texto, o que
de cerceamento e censura durante o
induz a diferentes linhas de raciocínio,
Principado, enquanto o jogo político se
desvelando a complexidade de sua obra.
institucionalizava cada vez mais pelas
ovidiano,
excertos
literário como única opção para expressar
ou
Essa
de
a
privadas e para uns poucos o campo
complexidade pressupomos,
no seria
texto
cartas marcadas.
a
reverberação do singular momento politico
Referências: Bibliográficas: BARBOSA, R. C. Sedução e Conquista: a amante na poesia de Ovídio. Curitiba, 2002. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Paraná. CARDOSO, Z. A.. A Literatura Latina. 2ª. edição. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Coleção Biblioteca Universal) GAILLARD, J. Introdução à Literatura Latina: Das origens a Apuleio. Sintra: Editorial Inquérito, 1992. Tradução de Cristina Pimentel.
394
Milton Genésio de Brito
HARVEY, P. Dicionário Oxford de Literatura Clássica: grega e latina. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1998. NOVAK, M. G.; NERI, M. L. (org..). Poesia Lírica Latina. 3ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Biblioteca Martins Fontes). OVÍDIO. Ars Amatoria. Tradução de Natália Correia e Davis Mourão-Ferreira. Edição bilíngue. São Paulo: Ars Poetica, 1997. (Coleção Poesia; Série Clássicos; Volume 1). ROCHA PEREIRA, M. H.. Estudos de História da Cultura Clássica. Volume II: cultura romana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. SILVA, G. J. Aspectos de cultura e gênero na Arte de Amar, de Ovídio, e no Satyricon, de
Petrônio: representações e relações. Campinas, 2001. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Campinas. SPALDING, T. O. Pequeno Dicionário de Literatura Latina. São Paulo: Cultrix, 1968. Eletrônicas: FEITOSA, L. M. G. C. O feminino, o desejo e o comportamento amoroso em Ovídio. In: Entretextos
Entresexos,
Campinas
/SP,
n.
4,
p.
53-68,
2000.
Disponível
em:
http://www.unicamp.br/nee/arqueologia/arquivos/historia_antiga/feminino.html. Acesso em 11 ago. 2014. Laureados do Olimpo: Ovídio. Disponível em: http://ocantoparnaso.blogspot.com. Acesso em 31 out. 2005. Discográficas: MORENO, D. D.; CARVALHO, J.. Os dez mandamentos. 68300597. Amelinha & Maurício Mattar (artistas SONY MUSIC). In: Casa do Forró. São Paulo: Polygram, 1998. Um CD (46 min.): digital, estéreo.
395
PÁSCOA CRISTÃ E JUDAICA: ESTRUTURA E HISTÓRIA DE LONGA DURAÇÃO Nathany A. W. Belmaia 1 Monica Selvatici (Orientadora) Resumo: Dado que a religião é um saber e uma forma de entender e interpretar o mundo, neste trabalho buscaremos fundamentar o sentido da comemoração da Páscoa segundo os textos sagrados do judaísmo e cristianismo, correspondendo, respectivamente, à Bíblia hebraica e os textos do Novo Testamento. Uma vez que o primeiro fundamenta-se sob a égide da proteção do sangue do cordeiro e a libertação do povo hebreu do Egito após a décima praga, o segundo, destaca-se apresentando a comemoração com um sentido atribuído à morte de morte de Jesus na cruz, ressureição e redenção dos pecados. Assim, buscaremos, por um lado, demonstrar como o evento teve fundamental importância no processo de marcação da construção do cristianismo como uma religião independente do judaísmo, e, por outro, que houve uma apropriação de um mesmo núcleo estruturante no qual se desenvolveram os símbolos e signos da comemoração cristã. Assim, partindo dos conceitos propostos principalmente em
“História e Ciências Sociais” de Fernand Braudel, trabalharemos com
conceitos de estrutura e da história de longa duração, afim de demonstrar como a comemoração tal como prescrita pelo judaísmo estava de tal forma arraigada culturalmente em um contexto da expansão do cristianismo até o século V, que impusera-se como barreiras estruturais de difícil modificação, elemento presente em uma história longa, onde a atribuição de novas significações pelo cristianismo só se estabelece a partir de um núcleo estruturante comum que a conforma e, ao mesmo tempo, permite a construção de símbolos de uma religião independente. Palavras-chave: Páscoa cristã, Páscoa judaica, estrutura.
1
Universidade Estadual de Londrina (UEL)
396
Nathany A. W. Belmaia
1.1 Fundamento da comemoração da
portas de suas casas. Isto constituiria-se na
Páscoa judaica
marca do povo de Deus, para que, quando
As festividades de fundo religioso
o anjo da morte que passasse pelo Egito,
auxiliam na construção e manutenção de
não levasse consigo o primogênito dos
uma identidade que une pessoas de
lares assim demarcados, como descrito em
diversas origens e nações sob um mesmo
Êxodo:
credo. A Páscoa, ou Pêssach judaico, neste caso, se destaca como um dos principais eventos do calendário judeu, onde, através de comemorações com símbolos e rituais especiais, evoca eventos passados, como a libertação da escravidão
E eu passarei pela terra do Egito esta noite, e ferirei todo o primogênito na terra do Egito, desde os homens até aos animais; e em todos os deuses do Egito farei juízos. Eu sou o Senhor. E aquele sangue vos será por sinal nas casas em que estiverdes; vendo eu sangue, passarei por cima de vós, e não haverá entre vós praga de mortandade, quando eu ferir a terra do Egito.
E este dia vos será por memória, e celebrá-lo-eis
e o êxodo do Egito. Segundo a Bíblia hebraica 2, o Faraó, que negara a libertação do povo de Deus,
por festa ao Senhor; nas vossas gerações o celebrareis por estatuto perpétuo. (ÊXODO 12:12-14 grifo meu)
(águas
Ainda de acordo com o Êxodo, o
transformadas em sangue, rãs, piolhos,
anjo enviado por Deus arrebatou a vida de
moscas, pestes no gado, úlceras, chuva de
todos os primogênitos egípcios, desde os
granizo, gafanhotos, três dias de escuridão
animais até o filho do Faraó. Após o
e morte dos primogênitos). Antes, porém,
episódio da mortandade, o Faraó, temendo
da execução da décima praga, a morte dos
sofrer mais retaliações advindas da ira
primogênitos,
foi
daquele Deus (que já o “castigara” tirando
divinamente designado para voltar ao Egito
a vida de seu próprio filho), decide libertar o
e liderar a partida dos hebreus rumo à terra
povo de Israel, fato que deu início ao êxodo
prometida.
daquele povo para a terra de Canaã.
condenara o Egito a dez pragas
o
profeta
Moisés
famílias
A explicação de como se constituiria
hebréias a sacrificar um cordeiro e molhar
o fundamento da realização da Páscoa, e
com o sangue do animal o umbral das
que a data seria guardada e comemorada,
Assim,
ele
instruiu
as
2Livro sagrado dos judeus, cuja autoria é atribuída à Moisés,
que corresponde aos cinco primeiros livros do Antigo Testamento da Bíblia Sagrada Cristã. Moisés é considerado libertador do povo de Deus.
vem da memória deste dia de libertação. Na frase destacada na citação anterior (de
397
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Êxodo 12:12), encontramos a prescrição para que a celebração se torne um estatuto perpétuo.
E, em seguida, continua no
mesmo capítulo: Portanto guardai isto por estatuto para vós, e
este dia nas vossas gerações por estatuto perpétuo. (ÊXODO 12:15-17, grifo meu)
Pode-se
ver,
que,
embora
a
celebração seja tratada como única (dado que os rituais da Páscoa judaica ocorrem
para vossos filhos para sempre. E acontecerá
durante sete dias atualmente), ela adveio
que, quando entrardes na terra que o Senhor vos
da fusão com uma outra festividade, que,
dará, como tem dito, guardareis este culto. E acontecerá que, quando vossos filhos vos
possivelmente,
poderia
ter
um
outro
disserem: Que culto é este? Então direis: Este é
fundamento, que não é citado na Bíblia.
o sacrifício da páscoa ao Senhor, que passou as
Assim, temos que, mesmo antes da data
casas dos filhos de Israel no Egito, quando feriu aos egípcios, e livrou as nossas casas. Então o
ser associada à libertação do povo e a
povo inclinou-se, e adorou. (ÊXODO 12:24-27)
passagem pelo deserto em busca da terra
Portanto, conclui-se que o motivo
prometida,
atribuído
à
comemoração
judaica
da
Páscoa se dá em função do êxodo do Egito. Mas, os versículos 15 a 17 do capítulo 12 de Êxodo, mencionam que, no mesmo dia do evento da libertação, já existia uma outra comemoração, a festa dos pães ázimos (pães sem fermento), que, naquele momento, ocorria no mesmo dia da Páscoa. Esta “junção" serviu como base para inferência de procedimentos de como a data deveria ser observada pelos fiéis: Sete dias comereis pães ázimos; ao primeiro dia tirareis o fermento das vossas casas; porque
a
festividade
já
existia
anteriormente: Com a inserção da Páscoa no contexto do Êxodo tudo se transformou. O relato dos capítulos 11 e 12 (do Êxodo) combina intencionalmente dois temas independentes, a décima praga e a Páscoa. Tal união mudou o sentido dos velhos ritos dessa festa de pastores, tornando-os históricos. [...] (RAVASI, 1985, p.59-60)
De acordo com Ravasi (1985, p.59), antes de Moisés, a festividade que fora posteriormente
designada
"Pêssach
judaico", estava sob o pano de fundo de uma sociedade de base agrícola, regida pela mudança das estações, ciclos lunares, migrações pastorais, uso do bastão e
qualquer que comer pão levedado, desde o
sacrifícios, onde, por exemplo, um animal
primeiro até ao sétimo dia, aquela alma será
era sacrificado (sob os cuidados de não ser
cortada de Israel. Guardai, pois a festa dos pães
ázimos, porque naquele mesmo dia tirei vossos exércitos da terra do Egito; pelo que guardareis a
despedaço durante o ato), para que pudesse retornar na forma de maior
398
Nathany A. W. Belmaia
vitalidade e fertilidade para o rebanho.
o sacrifício do cordeiro para evitar as
Conforme o livro de Deuteronômio:
mortes dos primogênitos, a erva amarga
Então sacrificarás a páscoa ao Senhor teu Deus, das ovelhas e das vacas, no lugar que o Senhor escolher para ali fazer habitar o seu nome. Nela
(representado pela escarola) que marcaria o sofrimento dos escravos no Egito, o
não comerás levedado; sete dias nela comerás
charósset (mistura de nozes, amêndoas,
pães ázimos [sem fermento], pão de aflição
tâmaras, canela e vinho), fazendo alusão
(porquanto apressadamente saíste da terra do Egito), para que te lembres do dia da tua saída
ao trabalho dos judeus nas edificações do
da terra do Egito, todos os dias da tua vida. [...]
faraó, o karpás e o salsão (considerado o
Seis dias comerás pães ázimos e no sétimo dia é
“sabor” do Êxodo) entre outros. Cada um
solenidade
ao
Senhor
teu
Deus;
nenhum
trabalho farás. (DEUTERONÔMIO 16:1-8)
As prescrições de Deuteronômio sobre a forma de comemoração da Páscoa, solidificam e estreitam os laços com relação à festa dos pães ázimos, primeiro, por atribuir-lhe uma historicidade associada à “pressa que o povo saiu do Egito” (que não teria lhes dado tempo hábil para fermentar o pão que os alimentaria), e, depois,
pelo
fato
de
incorporá-la
ritualisticamente, sinalizando, por exemplo, a não ingestão de fermento durante os dias que antecedem a comemoração pascal. De acordo com Tomaz (2008, p.1314) o Sêder de Pêssach (jantar de Páscoa), é preparado com alimentos que contém toda uma simbologia associada ao evento, evocando os motivos da comemoração. Dentre eles há, por exemplo, três matzots (os pães sem fermento),
um pedaço de
desses alimentos é disposto e consumido segundo formas e rituais específicos, que incluem desde a ordem da ingestão de cada alimento bem como momentos de bênçãos,
agradecimentos,
pedidos,
narrações de história, cânticos etc. 1.2 Fundamento da comemoração da Páscoa cristã Na
teologia
cristã,
os
eventos
iniciados desde a última ceia até a ressurreição, são chamados de “Paixão de Cristo”, aludindo aos sofrimentos físicos e mentais que Jesus passara nas horas que antecederam seu julgamento e execução na cruz. Partindo dos relatos dos apóstolos no Novo Testamento sobre a última ceia, a crucificação e a ressurreição, nas seções seguintes faremos uma retrospectiva dos principais eventos em torno da Paixão, que teriam culminado na constituição de toda a
osso do cordeiro ou ovelha, que simboliza
399
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
base do ritual e significância da Páscoa
apóstolo ouvira o galo cantar. Lembrando-
cristã.
se da previsão, chorou copiosamente. 1.2.1 Última ceia "Última
ficou
discípulos podem ser encontrados em
conhecida a refeição que Jesus dividiu com
Mateus 26:23-25, Marcos 14:18-21, Lucas
seus apóstolos em Jerusalém antes da
22:21-23 e João 13:21-30. Em Mateus
crucificação.
canônicos
26:23-25 e João 13:26-27. Após sair do
compartilham relatos de que a Última Ceia
cenáculo, Judas, a troco de 30 moedas
acontecera próxima do fim da Semana
(Mateus 26:15 e 27:3), acorda a delatação
Santa, após a entrada triunfal de Jesus em
de Cristo. De acordo com os evangelhos
Jerusalém e o encontro com judeus e
sinóticos, o beijo de Judas foi o sinal que
anciãos (ou, a data que corresponderia
identificou Jesus aos soldados que foram
posteriormente ao “Domingo de Ramos”).
prender-lhe.
Durante
Ceia"
Os
a
é
Os relatos sobre a traição de um dos
evangelhos
refeição,
acontecimentos
como
giraram
os
principais
em
torno
A instituição da Eucaristia, evento de
da
centralidade da fé católica, consta em
preparação dos discípulos para a partida
Lucas e na epístola de Paulo aos Coríntios
de Jesus, as suas previsões sobre a
como se segue:
negação do apóstolo Pedro, a traição de um dos discípulos e a repartição do pão e vinho
(considerada
a
fundação
da
entreguei, que o Senhor Jesus na noite em que foi traído, tomou pão e, havendo dado graças, o partiu e disse: Este é o meu corpo que é por vós; fazei isto em memória de mim. Do mesmo modo
Eucaristia). Mateus 26:33-35, Marcos 14:29-31, Lucas 22:33-34 e João 13:36-38, citam a previsão de Jesus sobre a negação de Pedro, de que o apóstolo o negaria três vezes antes que o galo cantasse no amanhecer do dia seguinte. E assim se deu, de modo que, após negar que conhecia
Pois eu recebi do Senhor, o que também vos
Jesus
pela
terceira
vez,
o
tomou o cálice, depois de haver ceado, dizendo: Este cálice é a nova aliança no meu sangue; fazei isto todas as vezes que o beberdes em memória de mim. (I CORINTIOS, 11:23)
A expressão “fazei isto em memória de mim” em ambos os textos citados, é o dado que institui a Eucarístia como estatuto a ser ritualmente repetido. E, ademais, as narrativas da repartição do pão e vinho feitas por Jesus foram relacionadas ao Êxodo 24:8, quando faz referência ao
400
Nathany A. W. Belmaia
sacrifício de sangue que Moisés ofereceu
Então, Jesus fora levado a Pôncio Pilatos,
para selar a aliança com Deus no Antigo
governador da província romana da Judéia,
Testamento. Jesus tornava-se, assim, ele
com o pedido de que se decretasse a pena
mesmo o próprio sacrifício, o “cordeiro” de
de morte, sob as alegações de "perverter a
Deus.
nação", "proibir o pagamento de tributos" e
1.2.2 Morte e Crucificação de Jesus
"sedição a Roma”. (cf. Lucas 23:1–2)
As narrativas sobre a morte e
No
Evangelho
de
Lucas,
ao
crucificação de Jesus constam nos quatro
descobrir que Jesus era galileu, Pilatos
evangelhos canônicos, Mateus 27:33-44,
envia-o a Herodes de Antipas, entendendo
Marcos 15:22-32, Lucas 23:33-43 e João
que o caso não caberia à sua jurisdição.
19:17-30.
Este, por sua vez, não vendo em Jesus
Após a Última Ceia com os doze
nenhuma ameaça, o devolve a Pilatos, que
apóstolos, Jesus foi preso no Getsêmani,
por
jardim situado ao pé do Monte das
acusações. Mas Pilatos atende o pedido da
Oliveiras, em Jerusalém, onde orava com
multidão,
os discípulos. De acordo com Mateus
publicamente suas mãos, deixando, assim,
26:57, uma vez capturado, Jesus foi
a responsabilidade pela morte de Jesus em
julgado pelo Sinédrio, sendo levado para a
aberta. Após este ato, manda açoitá-lo e o
casa de Caifás, o sumo-sacerdote, onde os
entrega
escribas e anciãos estavam reunidos.
27:24–26)
De acordo com os relatos bíblicos,
fim
declara mas
para
Jesus não
ser
inocente
antes
crucificado.
de
das lavar
(Mateus
Uma vez no Gólgota, colina do
os
Cálvario, foi pregado à cruz, erguida entre
poucas
outras duas, de ladrões condenados. (João
respostas e quase nenhuma defesa, Jesus
19:17–18) De acordo com Marcos, Jesus
terminou
pelas
resistiu por aproximadamente seis horas,
autoridades judaicas por blasfêmia, pela
da hora terça (aproximadamente 9 horas
afirmação de ser o Filho de Deus. No
da manhã) até a sua morte na hora nona
entanto, a
(três da tarde, detalhe mencionado apenas
Jesus
fala
muito
interrogatórios.
Romano
por
pouco
Assim, ser
durante com
condenado
regra universal do Império limitava
a
pena
capital
em Marcos 15:34-37).
estritamente ao tribunal do governador.
401
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Durante
a
crucificação,
vários
entrada do túmulo; que Jesus ressuscitado
eventos sobrenaturais foram relatados,
escolheu aparecer pela primeira vez para
incluindo uma escuridão entre as horas
as mulheres (ou mulher) e pediu-lhe(s) que
sexta e nona, o rompimento do véu do
proclamassem este acontecimento para os
templo e a ressurreição dos Santos, como
discípulos.
atesta o relato mencionado (apenas) por
descoberta do túmulo vazio, os evangelhos
Mateus:
relatam que Jesus
E eis que o véu do templo se rasgou em dois, de alto a baixo; e tremeu a terra, e fenderam-se as pedras; E abriram-se os sepulcros, e muitos
Após
a
apareceu diversas
vezes. Entre elas estão: a aparição para os discípulos, onde Tomé não acreditou até
foram
ser convidado a tocar com seus próprios
ressuscitados; E, saindo dos sepulcros, depois
dedos as chagas de Jesus; a aparição na
corpos
de
santos
que
dormiam
da ressurreição dele, entraram na cidade santa, e apareceram a muitos. E o centurião e os que
estrada para Emaús e no Mar da Galiléia.
com ele guardavam a Jesus, vendo o terremoto,
Sua aparição final ocorreu quarenta dias
e as coisas que haviam sucedido, tiveram grande
após
temor, e disseram: Verdadeiramente este era o Filho de Deus. (MATEUS, 27:51-54)
a
Após ser julgado e condenado pelo suportar as diversas humilhações que lhes foram impingidas até ser crucificado e morto. A continuação deste episódio pode ser encontrada em Mateus 28, Marcos 16, e
divergências
João nos
20.
Embora
relatos
sobre
haja a
ressurreição e posteriores aparições de Jesus, citados
podemos acima
dizer
os
concordam
evangelhos em
Jesus
ascendeu ao céu, onde o evangelho diz até o dia do seu retorno. 2. PÁSCOA E A HISTÓRIA DE
Sinédrio e pelo povo, Jesus tivera que
24
quando
que ele está com o Pai e o Espírito Santo
1.2.3 Ressurreição de Jesus
Lucas
ressurreição,
alguns
pontos: quanto à visita ao sepulcro, feita no domingo pelas das mulheres; a atenção dada à pedra pesada que fechava a
LONGA DURAÇÃO Ao
elegermos
como
objeto
de
estudo os fundamentos e influências da constituição
da
Páscoa
como
comemoração, estamos trabalhando com porções de longos períodos temporais, que datam da expansão do cristianismo, no século I d.C., até, pelo menos, meados dos séculos
V,
quando
a
comemoração,
apropriada do judaísmo, consolida-se. Para o escopo teórico-metodológico, dado que trabalhamos com recorte de um
402
Nathany A. W. Belmaia
grande período temporal, escolhemos partir
ocorrer, faz mais “ruído", ou, se manifesta
dos referencias e conceitos elaborados por
de uma maneira mais imediata. Para
Braudel sobre estrutura e a história de
Braudel,
longa duração.
enganadora
Introduziremos
uma
pequena
esse
tempo das
seria
“a
mais
durações”,
de
acontecimentos inebriados por crenças,
discussão acerca do conceito de história de
ilusões
longa
ofuscando as estruturas e percepções mais
duração
de
Braudel.
Após,
e
representações
sociais,
da
profundas dos entrelaçamentos históricos,
Páscoa, afim de demonstrar de que forma
que só poderiam ser evidenciados na longa
a Páscoa cristã rompe com a Páscoa
duração.
procuraremos
verificar
a
estrutura
Assim,
judaica se apropriando da estrutura já
esta
massa
de
existente, mantendo um núcleo em comum,
acontecimentos “ruidosos" não constituiria,
mas, atribuindo-lhe outros signos.
para Braudel, toda a realidade e toda a
2.1 Breve discussão acerca da história de
espessura da história, que, para além dos
longa duração de Braudel.
ruídos, também reside nos "silêncios". O
Braudel estabeleceu uma divisão
autor busca passar do tempo breve, para
tripartite da noção de tempo: o estrutural e
um tempo mais longo, que dá conta não
imóvel,
tempo
somente das ”explosões” que caracteriza
pela
um acontecimento, mas também dos “céus”
da
conjuntural,
longa médio,
duração;
o
caracterizado
mudança, dado pelas oscilações cíclicas da
que as suportam, as estruturas. Há dificuldades em se romper com
história; e por fim, o tempo breve, dos acontecimentos, próprio da vida quotidiana,
alguns
da curta duração.
geográficos, realidades biológicas, limites
Este acontecimental,
tempo, se
chamado
caracteriza
traços
culturais,
marcos
da produtividade e reações espirituais. Há
pelos
estruturas de vida tão longa que se
acontecimentos breves do cotidiano, o
convertem em elementos estáveis de uma
tempo do cronista, do jornal.
infinidade de gerações, que se constituem,
Ao observar a realidade histórica, a
pois, em apoios e obstáculos, dos quais o
atenção pode dirigir-se para aquilo que se
homem e sua experiência não podem se
move rapidamente, pois, o que acaba de
emancipar.
403
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Para
o
historiador,
assim,
uma
estrutura não se caracteriza apenas pelas mudanças, mas também pela permanência, aquilo que fica e se repete ao longo do tempo. Este é o tempo das estruturas, que atravessam imensos espaços de tempo sem se alterar. Um conteúdo social pode se renovar por inteiro algumas vezes, sem afetar traços estruturais profundos que persistem na história, e, por vezes, mudam apenas na superfície. Assim, há que se captar, além dos fatos singulares, a repetição, aquilo que persiste na longa duração, tanto nas realidades
conscientes
como
nas
inconscientes. A história se explica dentro do seu tempo e suas manifestações singulares, mas também fora do seu tempo, pela sobreposição civilizações
de que
conteúdos
de
atravessaram
várias grandes
espaços de tempo, construindo estruturas que, uma vez solidificadas, demora
a
desgastar,
o tempo
permanecendo
estruturalmente em uma história de longa duração.
Desta
forma,
procuraremos
demonstrar abaixo como a estrutura da Páscoa se mantém numa história de longa duração sobrevivendo, na sua essência, mesmo ao rompimento que culminou na
independência do cristianismo em função da religião judaica. 2.2 Estrutura Páscoa judaica e Páscoa cristã - similaridade e re-significações Até de fato se encontrar sob pilares estáveis, a comemoração da Páscoa, tanto no cristianismo quanto no judaísmo, foi tomando corpo e forma ao longo de vários e vários séculos, se inserindo em uma história de longa duração que data antes mesmo da escrita do livro de Êxodo. Como
mencionado
no
capítulo
12:15-17 de Êxodo, a festa dos pães ázimos deveria também ser guardada porque naquele mesmo dia aconteceu a libertação do povo de Deus da terra do Egito. Sendo assim, a incorporação serviu para balizar prescrições de como a data deveria ser respeitada, introduzindo a não ingestão de fermento e a retirada do mesmo das casas sete dias antes da comemoração. Na
medida
que
não
há
mais
menções sobre a celebração de ázimos, em Êxodo ou outros livros sagrados, a Bíblia deixa em suspenso qual era o sentido e o contexto que a festividade se inseria antes da fusão com o judaísmo. Alguns estudiosos, como Ravasi (1985,
404
Nathany A. W. Belmaia
p.59-60), associam a comemoração à uma
conhecesse as comemorações baseadas
festividade feita por povos que viviam em
no Velho Testamento, fato que podemos
uma sociedade de base agrária, marcados
constatar pela Bíblia. O Novo Testamento
pelas estações do ano e as épocas de
faz menções à datas comemorativas do
plantio e colheita. Disto, temos o dado
calendário litúrgico em I Coríntios
primordial abordado por Braudel, o homem
Atos 2:1, relatando episódios ocorridos na
em sua relação direta com a natureza,
festa dos ázimos, e, Atos 12:3 e 20:6,
estabelecendo elementos culturais numa
mencionando o dia de Pentecostes . Assim,
história de longa duração, que se repete
na Igreja Primitiva,
ciclicamente, dado a natureza de sua
Páscoa pelos cristãos se deu de forma
ligação original.
difusa,
16:8 e
a comemoração da
num misto de permanência das
Desta forma, vemos os limites, ou,
práticas anteriores, e, ao mesmo tempo,
as prisões de longa duração a que se
tentativas de diferenciação das tradições
refere o autor. Se o traço encontra-se
judaicas na qual a celebração estava
profundamente arraigado numa história
conformada.
longa, só se consegue superá-lo muito
Como atesta Eusébio de Cesaréia,
lentamente. A incorporação é uma das
ao tratar do caso das Igrejas da Ásia,
formas,
o
vemos que até meados dos século III a
significante dentro da mesma estrutura,
Páscoa ainda era comemorada segundo o
criando pontos de fissura até que a
calendário judaico, no 14 de Nissan:
estrutura
onde,
anterior
pode-se
seja
ampliar
complemente
corrompida pelo desgaste do tempo, e, enfim, seja vinculada à outras relações, a ponto de que seu início se encontre esquecido, à margem de uma história longa.
1. Por este tempo levantou-se uma questão bastante grave, por certo, porque as igrejas de toda a Ásia, apoiando-se em uma tradição muito antiga,
pensavam que era preciso guardar o
décimo quarto dia da lua para a festa da Páscoa do Salvador
[14 de Nissan ], dia em que os
judeus deviam sacrificar o cordeiro e no qual era necessário a todo custo, caindo no dia que fosse
Quando o cristianismo começa a se estruturar, nos séculos de I a IV, não existiam caráter
consolidadas identitário
festividades
cristãs,
embora
na semana , pôr fim aos jejuns , sendo que as igrejas de todo o resto do mundo não tinham por costume realizá-lo deste modo, mas por tradição
de
apostólica,
se
prevaleceu até hoje : que não é correto terminar
guardavam
o
costume
que
os jejuns em outro dia que não o da ressurreição
405
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
De acordo com Silva (op. cit.), a
de nosso Salvador . 2. Para tratar deste ponto houve sínodos e reuniões de bispos, e todos unânimes, por meio de cartas, formularam para os
fiéis
de
todas
as
partes
um
decreto
eclesiástico: que nunca se celebre o mistério da ressurreição do Senhor de entre os mortos em outro dia que não no domingo, e que somente
autoridades imperiais foi importante para afirmação do ciclo litúrgico imperador Constantino I
. Em 321, o ,
designou o
nesse dia guardemos o fim dos jejuns pascais.
domingo como dia oficial de intervenção
[...] (CESARÉIA, 2002, p.118)
religiosa e marco do início da semana . Até
Disto,
podemos
retirar
duas
questões: a comemoração da Páscoa no 14
aproximação entre o episcopado e as
de
Nissan,
considerada
apenas
“tradição”, e, as mencionadas reuniões, que, por unanimidade, acarretaram na formulação de cartas, contendo decretos eclesiásticos para que a comemoração se estabelecesse no domingo. “O dia do Senhor substituiu o Sabbath [sábado], e a festa cristã da ressurreição
, a Páscoa
judaica. A data da Páscoa tinha que se calcular eventualmente de tal maneira que impossibilitasse
a
sua
coincidência”
(MARKUS apud SILVA, 2009, p.11). A
comemoração
no
domingo
distinguia a Páscoa cristã do calendário judeu, visto que o Pêssach poderia ocorrer em qualquer dia da semana seguindo o 14 de Nissan. Com exceção apenas dos chamados
quartodecimanos,
que
defendiam a manutenção da data, os demais
aspiravam
a
celebração no domingo.
consolidação
da
então, o ‘dia de Saturno’ , sábado, ocupava lugar privilegiado no calendários romano (e judaico).
Além disso ,
em
314,
na
assembléia eclesiástica de Arles , e, ainda de forma mais contundente , em 325, no concílio de Nicéia (a ser tratado em seções posteriores),
“buscou-se a aceitação
romana quanto à comemoração da Páscoa, em
tons
marcadamente
anti-judaicos.”
(idem ibid) O ciclo temporal pascal representava, assim, um duplo fenômeno de complexificação do Domingo da Páscoa: alusivo tanto à complementação de festas e temporadas de interdição precedentes e posteriores ao evento , quanto à adesão de ritos preferencialmente ministrados neste período. (SILVA, 2009, p. 11) Assim, quando a Páscoa começou a ser celebrada pelo cristianismo, revestiu-se de uma outra roupagem que marcaria sua individualidade independente
como do
nova
judaísmo.
religião, O
Novo
406
Nathany A. W. Belmaia
Testamento
reformulou
o
da
foi a de Noé, que, mesmo após o dilúvio,
Páscoa judaica atribuindo-lhe, por um lado,
sacrificou animais “limpos” como graças
outras
outro,
(Gênesis 8:20-21). Já para Abraão, em
Antigo
Gênesis 22:10-13, Deus é que ordenara
significâncias
estabelecendo
sentido
e,
ligações
por
com
o
Testamento.
que ele sacrificasse seu filho Isaque.
Se a Páscoa de Israel foi a libertação de escravos
políticos
e
econômicos
para
transformá-los em pessoas livres, aliados de
Quando ele estava prestes a executar o que lhe fora pedido, Deus interveio e
Deus e possuidores de esperanças, a Páscoa de
substituiu a morte de Isaque pela de um
Jesus é a libertação da causa de todas as
carneiro.
escravidões, a elevação de homens e mulheres à dignidade de filhos e filhas do pai celeste e
Assim, temos no Velho Testamento
herdeiros da vida eterna. (VIEIRA, 2010)
que, para obter o perdão, aqueles que se
A nova simbologia atribuída ao
arrependeram de seus pecados, deveriam
evento, centralizava a figura de Jesus, cuja
fazer sacrificios à Deus (cf. Levítico 4). De
divindade fora atestada com a ressurreição
acordo com Levítico 1:1-4, o animal tinha
depois da morte na cruz. Assim, ele
que ser perfeito, e, quem oferecia o
tornara-se o próprio “cordeiro de Deus que
sacrifício, deveria se identificar com ele. E,
tira os pecados do mundo”, tal qual
no “dia da expiação”, baseado em Levítico
anunciado
16, o sacerdote cumpria um ritual com dois
por
João
1:29
quando
o
encontrou pela primeira vez.
bodes, onde um era sacrificado pela
Para compreender a ligação entre
expiação, e o outro era solto no deserto,
cordeiro e redenção, é preciso voltar ao
afim de que levasse para longe os pecados
início do Velho Testamento. Uma das
nele depositados.
primeiras menções a sacrifícios podem ser encontras
em
onde
duas Páscoas. A figura a seguir (Figura 1)
apenas Abel consegue agradar a Deus,
esquematiza resumidamente a espinha
trazendo
suas
dorsal que estrutura o campo semântico
ovelhas, e da sua gordura” como oferta,
atrelado às celebrações de ambas as
enquanto as frutas de Caim não recebem
religiões.
“dos
Gênesis
(4:3-5),
Com isto, podemos investigar as
primogênitos
das
atenção. Outra oferta que agradou a Deus
407
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
que
voluntariamente
Jesus
deixara-se
sacrificar para redimir toda a humanidade e convertera-se
no
próprio
"cordeiro
de
Deus", enviado para expiar os pecado da humanidade, aquele que, da Última Ceia até o momento de sua crucificação, não
Figura 1. Esquema estrutural Páscoa.
apresentou defesa ou resistência.
Dentro do limite, a figura deixa clara
Ainda que sob outras conotações,
a similaridade entre ambas estruturas. O
temos a mesma estrutura do cordeiro
que não significa, em nenhuma hipótese,
(encarnado por Jesus), que, uma vez
que o sentido atribuído seja o mesmo.
sacrificado,
De
um
lado,
temos
a
auxilia
na
obtenção
de
Páscoa
libertação. Mas, desta vez, se trata da
judaica, que trás o signo do cordeiro
libertação não apenas de um povo, mas de
associado ao sacrifício. A décima praga
toda a humanidade.
requisita o sangue da imolação para
Assim, trata-se de uma ruptura com
demarcar as portas das casas a fim de
a estrutura anterior, mas não completa,
protegê-las do anjo da morte. E, uma vez
dado
sacramentada
dos
estruturais. No entanto, o principal ponto de
primogênitos, o Faraó concede a libertação
ruptura para com a estrutura judaica se dá
do
com
Egito.
a Este
mortandade evento
funda
a
que
a
ainda
guarda
introdução
do
similaridades
conceito
da
comemoração da Páscoa, instituída como
“ressurreição”, fato que, para os cristãos,
estatuto perpétuo em Êxodo.
atesta a condição divina de Cristo como um
De outro lado, temos a formação de
ser designado para salvar o mundo, filho
um evento em torno da figura de Jesus,
enviado por Deus, e, por isto, detentor de
que é vinculado à simbologia do "cordeiro",
plenos poderes e direito para redimir os
presente na Páscoa e nas práticas de
pecados de todo o mundo. Este conceito,
sacrifício indicadas no Velho Testamento.
para além de fundamentar a Páscoa,
Seguindo a mesma idéia de substituição
contribui com a constituição teológica e
(na qual o animal era morto no lugar do
base ritual da própria religião.
pecador,
ou,
para
expiar-lhe
seus
pecados), é na qualidade de filho de Deus
408
Nathany A. W. Belmaia
Após a Páscoa, a Igreja Católica
dialoga com práticas do Velho Testamento,
Romana remete-se à memória da Última
ainda que no intuito de mudar-lhe o curso,
Ceia cumprindo o rito do mistério da
pois, a partir de então, não seria mais
“transubstanciação”, onde o vinho e o pão
necessário
convertem-se no corpo e sangue de Cristo,
pecados já foram saudados pelo sangue do
permitindo que a comunidade se lembre do
sacrifício do filho de Deus (SANTOS, 2011,
sacrifício feito por Cristo, e reafirme sua
p. 102). Assim, através dos conceitos de
ligação com ele através da eucaristia.
morte,
sacrifício
ressurreição
animal,
e
pois
redenção
os
dos
Desta forma, concluímos que, pelo
pecados, atribui-se uma nova dimensão à
fato da Páscoa cristã se desmembrar da
Páscoa, onde a ressurreição vinculada aos
Páscoa judaica,
é possível notar um
outros elementos, se constitui em um dos
mesmo pano de fundo estrutural baseado
“novos" dados estruturais colocados pelo
na
cristianismo. A Páscoa comemorada sob as
noção
mesmo
que
cordeiro-sacrifício-libertação, as
atribuições
sejam
diferentes. Não obstante, o sacrifício de Cristo vincula-se não apenas com a Páscoa, mas
novas insígnias cristãs foi fundamental para demarcar o cristianismo como religião distinta do judaísmo, norteada pela figura de Jesus.
Referências: Fontes: BÍBLIA, Português. Bíblia Sagrada. 45a. edição. Petrópolis: Vozes, 2001. CESARÉIA, Eusébio de. História Eclesiástica. Tradução de Wolfgang Fisher. São Paulo: Novo Séulo, 2002. Referências bibliográficas e bibliografia: BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. Lisboa: Presença, 1990. MATOS, Júlia S. Lucien Febvre e a quádrupla herança: aspectos teóricos do campo
biográfico. Biblos: Revista do Departamento de Biblioteconomia e História, Rio Grande, Ed. da FURG, n. 20, p. 165-178, 2006.
409
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
POMIAN, Krzysztof. A história das estruturas. In: LE GOFF, Jacques. A história nova. 4. ed. São Paulo. Martins Fontes, 1998. RAVASI, Gianfranco. Êxodo. São Paulo: Edições Paulina, 1985. REIS, José Carlos. Escola dos Annales: a inovação em história. São Paulo: Paz e Terra, 2000. SANTOS, Sônia Duarte. A última Páscoa de Jesus e a Santa Ceia. Universidade Presbiteriana Mackenzie. Cadernos da Pós-graduação. Vol.11, n.1, 2011. Disponível em: http://www.mackenzie.br/fileadmin/Pos_Graduacao/Mestrado/Letras/Volume_11/ SILVA, Paulo Duarte. Ciclo Pascal e normatização litúrgica no século VI : análise comparativa
dos casos de Arles e Braga. Rio de Janeiro , 2009. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009 VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e História cultural. In: CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS, R. (Orgs.). Domínios da história. 7 ed. Rio de Janeiro: Campus, 1997 VOVELLE, Michel. A história e a longa duração. In: LE GOFF, Jacques. A história nova. 4. ed. São Paulo. Martins Fontes, 1998. VIEIRA, Luiz Soares. Lições de Páscoa. Folha de São Paulo. São Paulo 04/04/2010. Caderno Opinião. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0404201008.htm, acesso 2013. DOSSE, François. A história em migalhas: dos “Annales” à “Nova História”. São Paulo: Biblos, Rio Grande, 1 (1): 55-67, 2010. 67 Ensaio; Campinas: Ed. da Unicamp, 1992. JONES, P. PENNICK, N. A history of pagan Europe. London: Routledge, 1995. LE GOFF, Jacques. A história nova. In: A história nova. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. VOVELLE, M. Nouvelle Histoire e tempo histórico: a contribuição de Febvre, Bloch e Braudel. São Paulo: Ática, 1994. ROJAS, Carlos Antônio Aguirre. Os Annales e a Historiografia Francesa: tradições críticas de
Marc Bloch a Michel Foucault. Maringá: EDUEM, 2000. ROBINSON, James M.. The Story of the Bodmer Papyri, the First Christian Monastic Library. Nashville: [s.n.], 1987.
410
Nathany A. W. Belmaia
SAVEDRA, M et al; Questões de interculturalidade no ensino da língua alemã como segunda
língua DaZ (DeutschalsZweitsprache) – O caso dos “ovinhos de Páscoa” (Ostereier). Pandaemoniumgermanicum
16/2010.2,
p.204-219–
disponível
em:
www.fflch.usp.br/dlm/alemao/pandaemoniumgermanicum TOMAZ, P. C., et AL. A celebração da Páscoa judaica e as tradições culturais – simbologia e significado. Anais do 1º Encontro do GT Nacional de História das Religiões e Religiosidades –
ANPUH. Maringá: 1º Encontro do GT Nacional de História das Religiões e Religiosidades – ANPUH, 2008.
411
NOBREZA E RELAÇÕES DE PARENTESCO: IDENTIDADES SOCIAIS NO SÉCULO XIII Neila M. de Souza 1 Resumo: O trabalho aqui proposto é apresentar o projeto de pesquisa incialmente desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense. Assim, serão abordadas e colocadas em discussão as ideias em pleno curso de desenvolvimento, portanto, ainda sondagens e possibilidades de investigação do estudo proposto. Nosso objeto de pesquisa é a nobreza do século XIII e suas relações identitárias e de poder. A metodologia a ser utilizada consiste na escolha e delimitação das fontes, elaboração de quadros de grupos familiares e suas respectivas redes de ligações, leitura e análise de bibliografia especializada. A formação de linhagens entre a nobreza está intimamente ligada ao seu processo de afirmação social. Desse modo, identidades formavam-se pelos sentimentos de pertença a um grupo com interesses comuns. As linhagens ganhavam então lugares privilegiados junto ao poder real e senhorial. Ancorado pelo sentimento de grupo propiciado pelo agrupamento familiar, mesmo artificial, já que não biológico, o homem medieval garantia seu lugar na sociedade. A não pertença familiar denotava um grau de perigo representado por todos aqueles que à margem da sociedade entregavam-se ao banditismo e à desestruturação social. Pretendemos abordar aqui as relações entre a formação de linhagens e a construção de identidade para o grupo nobre. Palavras-chave: Identidade; Poder; Linhagem.
1
Doutoranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense sob orientação do Prof. Dr. Mário Jorge da Motta
Bastos.
412
Neila M. de Souza
O espaço delimitado por nós é o Ocidente
Medieval
do
décimo
terceiro
servindo a esses príncipes, se entregam a justas, se lançam desafios, demonstram
século, em virtude da Cavalaria ter sido uma
boas
instituição predominante no mundo então
(BARTHÉLEMY,
conhecido daquela época e por apresentar
cavalaria clássica é marcada já pelo signo da
características gerais e comuns aos mais
nobreza. Só podia ser cavaleiro então,
diferentes lugares em que ela atuou. No
aquele que descendesse de pai e mãe
entanto, pretendemos focalizar a abordagem,
nobre. A fusão entre cavalaria e nobreza era
de acordo com o andamento da pesquisa,
inevitável, visto que esta última era pouco
em Portugal, visto que nossa fonte principal
numerosa
foi levada a esse país difundindo diversos
diminuía ainda mais seus membros pelos
valores representados nessa obra literária. O
nascimentos de indivíduos deficientes que
século XIII é considerado pelos especialistas
geralmente eram entregues a mosteiros;
como a época em que a cavalaria já se
Léopold Génicot assinala que entre as
encontra plenamente constituída de seus
deficiências que atacavam os filhos oriundos
elementos
de
éticos,
morais
e
religiosos,
maneiras
e
o
casamentos
entre
2010,
p.
casamento
inimigos”. 15-16).
Essa
endogâmico
endogâmicos
estavam:
paralíticos,
caolhos,
formando desse modo uma instituição capaz
mancos,
de conferir identidade, pertença grupal e
manetas, quase todos oriundos de um
valores a homens dedicados aos trabalhos
casamento nobre. Além disso, muitos de
com a guerra. De acordo com Dominique
seus homens sofriam com as guerras e
Barthélemy é na França do século XII que
mortes conseqüentes delas. Havia assim
surgem
“Cavalaria
uma diminuição constante em sua formação.
clássica”, aquela dos grandes torneios, das
“Desta forma, aparecem vazios em suas
disputas entre cavaleiros, das cortes repletas
fileiras. Os casamentos das mulheres ou das
de homens buscando a fama e o prestígio.
viúvas
Assim aparecem nas crônicas um tipo de
pertencentes ao grupo, as nuptiae impares
Cavalaria justiceira, destinada a proteger a
(“bodas desiguais”), menos raros do que se
Igreja e os pobres e uma “verdadeira
pensa, são incapazes de preencher aqueles
Cavalaria de ato performático e espetáculo –
vazios”. (GÉNICOT, 2006, p. 282).
os
elementos
da
cegos,
da
nobreza
com
maridos
não
aquela dos jovens nobres que, em tudo
413
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
É indissociável a análise da relação
espiritual, ela se diferencia do outros homens
entre Cavalaria e Nobreza. Não há muito
e mantém-se entre seus iguais. Um nobre,
consenso a respeito entre os especialistas,
portanto, se casa na sua classe. Traço particularmente
dado a dificuldade de afirmação sobre um
significativo, ele não se mistura com a massa dos
grupo que agregava diferentes homens que
fiéis. Nem na vida nem na morte. Ele é o chefe da
viriam a se tornar cavaleiros nobres pelo contato
com
os
grandes
senhores
paróquia, assiste aos ofícios na sua capela junto com os seus ou se isola no coro da igreja. É
e
enterrado no seu domínio, em um setor reservado
casamentos com mulheres da nobreza.
do cemitério ou em um cemiterium nobilium. E
Muitos historiadores defendem que a fusão
quando as estruturas eclesiásticas forem definidas
entre nobreza e cavalaria ocorreu ainda no
e erguidas, o decano da cristandade realizará seu funeral (GÉNICOT, 2006, p. 280).
século XI e para outros isso só aconteceu no século XII. Em qual século os dois grupos se fundiram não é o principal, o mais importante é como se deu esse processo e como foram as influências estabelecidas entre ambos. Nobreza e cavalaria tornam-se um só corpo social, mas nem por isso homogêneo. Seu quadro é marcado por diferenças hierárquicas
fundadas
exatamente
na
linhagem. Nesse sentido, não bastava ser cavaleiro, ganhando um estatuto nobre; era preciso também descender de uma família “nobre” e respeitada, de homens de valores, que ganharam honra e fama e transmitiram essas virtudes aos seus descendentes. De acordo com Léopold Génicot as relações
da
nobreza
dão-se
indissociavelmente com a realeza e a Igreja, visto que seus membros compõem esses grupos. Assentada, pois no poder material e
Mas para evitar seu próprio fim fadado pelos casamentos endogâmicos, a nobreza abre-se para a Cavalaria, tomando do brilho guerreiro a renovação para seus membros. Embora seja reconhecido que a nobreza se assente no nascimento, ela nunca foi uma classe hermeticamente fechada. “A nobreza não tem nenhuma política familiar. Padece com as revoltas que acabam mal e perde muitos homens nas guerras privadas e nas vinganças. Dessa forma, aparecem vazios em suas fileiras” (GÉNICOT, 2006, p. 282). Para sobreviver diante de tantas mudanças que se impunham no mundo da qual fazia parte, sua renovação – ainda que comedida –
tornava-se
realmente
necessária.
Os
cavaleiros que tão próximos viviam dos poderosos, pois eram seus braços armados, acumulavam, entre tantos privilégios, a isenção
de
impostos.
Foi
assim
que,
414
Neila M. de Souza
servindo de mãos armadas à aristocracia,
nobiles resistem mais tempo à invasão dos
esses
milites” (GÉNICOT, 2006, p. 282).
cavaleiros
se
fundem
a
ela,
conjugando costumes e mentalidades e obtendo
também
socioeconômica propiciado
uma
elevada,
por
matrimoniais.
fato
vantajosas
“A
cavalaria
A
proposta
de
pesquisa
aqui
condição
apresentada articula-se com os fundamentos
que
teóricos
foi
alianças
em
parentesco
torno e
dos
indivíduo.
conceitos O
de
parentesco
ornamenta-se
constitui-se como um conjunto de relações
assim com um tal esplendor que se subtrai
socialmente definidas e construídas. Aliada
consuetudines
das
julgadas
ao conceito de parentesco está a noção de
indecentes et contra ordinem militarem,
família, não com as conotações do século
derrubando desta forma uma das barreiras
XIX, em que se confundia ordem de
que impedem o acesso à nobreza. Ela
parentesco com residência. Família é aqui
concede
entendida por nós pela relação de laços
mais
comuns
brilho
que
o
sangue”
(GÉNICOT, 2006, p. 284).
identitários,
afetivos
e/ou
biológicos
de
É com o prestígio cada vez maior que
interesses conjugados. Tomemos o enfoque
essa instituição vem ganhando que ela
dado por João Bernardo ao afirmar que os
consegue confundir-se com a nobreza, no
sistemas familiares sofreram modificações
quadro
Génicot
com a crise dos Carolíngios: “As formas de
ressalta, contudo, o cuidado que deve ser
indivisão, ou as formas de exclusividade na
tomado ao falar da fusão entre cavalaria e
herança, nomeadamente a primogenitura,
nobreza, pois isso não ocorre de forma
[...],
homogênea e igual nos diversos lugares; é
transformações operadas gradualmente num
preciso levar em consideração os planos
sistema em que todos os herdeiros eram
jurídico, social e político. Ainda segundo ele,
beneficiados pelas partilhas”. (BERNARDO,
essa fusão ocorre mais cedo nas regiões
1997,
impregnadas de romanidade. “No Norte, que
transformações operadas no quadro familiar
não
mundo
torna-se necessário o deslocamento dos
germânico e conserva viva a noção de
filhos segundos que partem em busca de
hierarquia e de seus graus, os generes
melhores
condições
alcançar
o
geral
esquece
da
a
aristocracia.
ideologia
do
resultaram,
p.
pelo
129-130).
tão
de
contrário,
Com
vida,
sonhado
de
essas
podendo
casamento,
415
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
camada superior dos bandos integrava os juvenes
conquistar terras e estabelecer-se em um
de origem aristocrática, ligados por elos de
senhorio.
fraternidade e que tantas vezes se subordinavam à
Numa época de constantes conflitos
autoridade de um filho segundo de uma família perante a qual as suas estavam em situação de
sociais e medos variados, como a Idade
vassalagem; na camada inferior contavam-se
Média, a família apresentava-se como uma
rurais
instituição seguradora de afirmação social e
marginalidade.
eram
lançados
Jogados
à
ter-se
excluídos
da
família
sem
entretanto haverem fundado um núcleo familiar próprio”. (BERNARDO, 1997, p. 131).
Faziam
camponeses agricultores
parte
desse
grupo:
se
alugavam
como
que ou
pastores,
guerreiros
da
aristocracia em busca de fortuna ou por feitos fáceis de armas, clérigos de ordens menores. De acordo com Bernardo, unidos pela mendicidade esses homens formavam famílias
artificiais,
que
reproduziam
as
hierarquias existentes: [...].
E tanto mais
fortemente
os
laços
se
estreitavam quanto, numa sociedade que pensava
Analisando a solidão e a emergência do
indivíduo
própria se reuniam em formas de família artificial. A
XI-XIII,
Duby
as pessoas se arriscavam fora da clausura doméstica, era ainda em grupo. “Todas as viagens eram feitas pelo menos em dupla, e se os companheiros não eram parentes, ligavam-se
pelos
ritos
da
fraternidade,
constituindo, pela duração do deslocamento, uma família artificial” (DUBY, 1990, p. 503). Ancorado
pelo
propiciado
pelo
sentimento
de
agrupamento
grupo familiar,
mesmo artificial, já que não biológico, o homem medieval garantia seu lugar na sociedade. A não pertença familiar denotava um grau de perigo representado por todos entregavam-se
família
séculos
artificiais pelos laços de fraternidade: quando
não
com
no
também assinala a formação de famílias
aqueles
estabelecer-se
social,
p. 135).
tudo em termos familiares, os filhos segundos que conseguiam
estabilidade
dos senhores sobre os rurais. (BERNARDO, 1997,
homens eram chamados de “juvenes” ou
encontravam
da
os germens de um restabelecimento do controle
dificilmente podendo constituir família, esses
abrangendo todos aqueles adultos que se
afastado
reconstituíam-se as hierarquias e desenvolviam-se
errância,
tratava de uma condição etária, mas social,
vadios,
precisamente entre as pessoas que mais pareciam
na
“pueri”, os jovens. Essa designação “não se
clérigos
desagregara os principais centros de autoridade e
encaixavam em seu quadro, visto que os dele
bandoleiros,
prostitutas. E assim, no âmago da crise que
mesmo de controle para aqueles que não se excluídos
tornados
que
à
margem ao
da
sociedade
banditismo
e
416
à
Neila M. de Souza
desestruturação
social.
Entretanto,
esse
combatendo como mercenário; constitui-se
quadro familiar, também significava um
assim
“aprisionamento da individualidade”, assim a
reconhecendo-se o indivíduo como tal, que
partir do século XI teria sido possível
mesmo consciente enquanto pessoa sabia
perceber
uma
da importância e da necessidade de formar
individualidade observada nos romances de
uma família, de fazer parte de um grupo, de
cavalaria, pelo desejo do guerreiro em
está vinculado a outros e ser por isso
conquistar e cultivar a fama, transformando
considerado pertencente ao corpo social. É
em identidade pessoal as características de
nesse cenário que a consciência aflora e o
sua prática guerreira. De acordo com Aaron
indivíduo passa a refletir sobre suas ações.
Gourevitch:
Essas questões a respeito do indivíduo são
o
nascimento
de
O problema do indivíduo comporta, acreditamos, dois aspectos diferentes ainda que muito ligados: o da pessoa e o da individualidade. A pessoa pode
uma
facilmente
valorização
identificadas
da
pessoa,
em
alguns
personagens da Demanda, como Lancelot,
ser definida como um “elo intermediário” entre
numa passagem em que ele encontra-se em
sociedade e cultura. O indivíduo torna-se uma
provação
pessoa ao interiorizar a cultura, o sistema de valores, a visão de mundo que são próprios de
quanto
a
sua
identidade
cavaleiresca. Sem ter o que comer e beber o
uma sociedade ou de um grupo social. Nesse
cavaleiro dispõe-se a devorar carne crua,
sentido, toda sociedade, em qualquer época, é
evidenciando o conflito entre a selvageria
feita de pessoas. De seu lado, a individualidade, é uma pessoa que se voltou a uma auto-reflexão e
dessa
condição
e
(GOUREVITCH , 2006, p.621)
Lancelot passa pela prova de sua existência.
do
século
XII,
com
o
desenvolvimento das cidades, da maior circulação de moedas, da melhoria das estradas, etc. há uma recorrência crescente no sentido de ganhar – para os cavaleiros isso se traduzia em ganho –, além de riqueza,
de
fama,
de
prestígio,
reconhecimento e admiração. Tudo isso era possível de ser adquirido pelos cavaleiros em torneios, servindo a um grande senhor,
meio
civilidade
cavaleiresca.
partir
no
sua
que se pensa como um eu particular, único.
A
Perdido
a
natural,
Sua herança literária é a de um cavaleiro cortês, educado, civilizado. No entanto, nesta altura da narrativa, ele deve enfrentar uma aventura que põe em xeque sua identidade. A partir de então, o cavaleiro pecador terá provado seu valor e seguirá no caminho da redenção, embora seu arrependimento não seja completo, pois volta a cometer os mesmos erros de traição com a rainha
417
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
seu
principais homens das redondezas e mesmo
processo de mudança, visto que numa
de lugares muito distantes desejavam que
transformação a passagem de um estado
seus filhos servissem a um grande senhor,
para
importante e poderoso. Assim, “os juvenes
Guinevere.
Mas
outro
características
isso
sempre
só
enfatiza
carrega
anteriores,
algumas
marcando
um
saídos da classe dominante integraram-se
processo de identidade e de alteridade.
muitas vezes na domesticidade guerreira dos
A identidade desse cavaleiro também pode
senhores de maior fortuna, de monarcas até,
ser sentida pela sua herança genealógica.
na esperança de virem um dia a ser
Na Demanda do Santo Graal não há
instalados em senhorias próprias, e para isso
detalhamentos sobre a ordem de nascimento
freqüentemente
dos filhos, assim não sabemos quem são os
distâncias”. (BERNARDO, 1997, p. 132).
primogênitos, exceto nos casos de Artur, o
A formação de grandes linhagens estava
pequeno, filho único do rei Artur, e de
também diretamente relacionada com o
Galaaz, também filho único. Mas, no caso de
estabelecimento de acordos de casamento.
Lancelot, podemos arriscar dizer que ele foi
Assim, além da coesão das famílias por
o primeiro filho da rainha Helena e do rei
consangüinidade, natural e irrefutável, havia
Bam, visto que era o principal representante
também a união por alianças matrimoniais,
de sua linhagem e o mais importante
que sempre selavam o fim de uma disputa
cavaleiro da corte arturiana: todos os outros
entre duas linhagens, reafirmavam o desejo
companheiros
de ligação entre dois grupos, promoviam
seguiam
suas
instruções,
atravessaram
econômicos
e,
grandes
consideravam suas atitudes e respeitavam
acordos
principalmente,
suas ações; nenhuma grande aventura
restabeleciam a paz. Contudo, todos os
estava, de fato, começada se não contasse
homens estavam ligados pelo parentesco
com a presença de Lancelot, e nenhum
espiritual, a comunidade cristã, reafirmado
torneio era importante o suficiente se dele
pelo batismo, um elemento estruturador
não participasse “o melhor cavaleiro do
daquela sociedade. “A consangüinidade,
mundo”.
definida por regras de natureza social e não
A linhagem fundamentava a vida e a
biológica, rege o recrutamento dos grupos de
organização do reino mítico de Artur, através
parentes, mas também a transmissão dos
dela estabeleciam-se hierarquias e por ela os
bens materiais e simbólicos” (GUERREAU-
418
Neila M. de Souza
JALABERT, 2006, p. 322). Este regime de
confirmação reiteram os laços de parentesco
parentesco era muito importante no meio
espiritual cristão. Assim, o batismo é um
cavaleiresco,
elemento
no
qual
os
grupos
de
crucial
de
estruturação
da
cavaleiros, distantes de sua família de
sociedade. “Ele permite pensar e organizar
origem, porque precisavam partir para uma
na prática a relação dos homens com Deus,
corte e aprender o manejo das armas,
assim como dos homens entre si por
ligavam-se
intermédio
por
laços
simbólicos
de
de
Deus,
e
fundamenta
a
camaradagem, convívio, divisão de tarefas;
instituição central e sacralizada que é a
passando
Igreja” (GUERREAU-JALABERT, 2006, p.
mais
tempo
com
pessoas
desconhecidas e aprendendo com elas a, de
322).
fato, enfrentar a vida, acabavam por formar
Sobre a consangüinidade temos dois
uma verdadeira família, em que todos eram
tipos de organização: os sistemas unilineares
“iguais” e possuíam um sentimento de
e os sistemas cognáticos. Os primeiros
pertença grupal. No entanto, essa união não
caracterizam-se pela filiação e transmissão
era assim tão harmônica, visto que as
por um sexo, excluindo o outro. Assim, no
disputas entre os próprios integrantes da
sistema patrilinear, por exemplo, só é
corte
socialmente aceita a relação através dos
eram
muito
comuns
e
com
homens. Nesse tipo de classificação de
consequências desastrosas. Ao tratar do conceito de parentesco
parentes e não-parentes formam grupos
não podemos deixar de assinalar o fato de
pequenos,
existir no Ocidente cristão desde o século IV
automaticamente fixado pelo nascimento,
um tipo de parentesco classificado pelos
que o autoriza a ter acesso ao nome, aos
antropólogos
ritual
bens, ao estatuto, aos privilégios, aos
(parentesco de sangue ou adoção). No
direitos diversos que uma filiação comporta,
Cristianismo, essa forma de parentesco é
mas que também o submete a obrigações e
evidente pela identidade religiosa, reafirmada
deveres” (GUERREAU-JALABERT, 2006, p.
por ritos de inserção do indivíduo na
322).
sociedade espiritual da qual faz parte, como,
indiferenciados, o processo de transmissão e
por exemplo, pelo batismo. Somado a esse
reconhecimento consangüíneo passam tanto
sacramento
pelos homens quanto pelas mulheres. Por
como
o
parentesco
apadrinhamento
e
a
Já
“aos
nos
quais
sistemas
um
indivíduo
cognáticos
419
é
ou
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
conseguinte, não separação entre os grupos,
em nossa época, pode ser datado na Idade
visto que cada integrante está ligado ao
Média europeia.
mesmo tempo à linhagem de seu pai e à de
Acreditamos,
portanto,
que
esses
sua mãe, cruzando redes familiares, ligado a
conceitos (e provavelmente outros que se
parentelas
conjunto
fizerem necessários) serão cruciais para a
diverso de pessoas que têm um parente em
problematização do objeto de pesquisa aqui
comum. O sistema cognático, ainda em vigor
proposto
compostas
por
um
. Referências: BARTHÉLEMY, Dominique. A Cavalaria: da Germânia Antiga à França do século XII. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010. BERLLIOZ, Jacques. Monges e Religiosos na Idade Média. Lisboa: Terramar, 1994. BERNARDO, João. Poder e Dinheiro: do poder pessoal ao estado impessoal no regime
senhorial, séculos V-XV. (Parte II: Diacronia – conflitos sociais do século V ao século XIV. Porto: Edições Afrontamento, 1997. BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Lisboa: Edições 70, 1987. CARDINI, Franco. “O Guerreiro e o Cavaleiro”. In: LE GOFF, Jacques. O Homem Medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989. CARDINI, Franco. “Guerra e Cruzada”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (org).
Dicionário Temático do Ocidente Medieval . São Paulo: EDUSC, 2006, v.II. DUBY, Georges. “História Social e Ideologia das Sociedades”. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (Orgs.). História: Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. DUBY, Georges. “A Emergência do Indivíduo: a solidão nos séculos XI-XIII”. In: ÀRIES, Philippe e DUBY, Georges. História da Vida Privada: da Europa Feudal á Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. DUBY, Georges. As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo. Lisboa: Editorial Estampa, 1982. DUBY, Georges. Guilherme Marechal ou o Melhor Cavaleiro do Mundo. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1987.
420
Neila M. de Souza
DUBY, Georges. Guerreiros e Camponeses. Tradução de Elisa Pinto Ferreira. 2ª ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. DUBY, Georges. O Domingo de Bouvines: 27 de julho de 1214. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. GANSHOF, F. L. O Que é o Feudalismo? Portugal: Publicações Europa-América, 1974. GAUVARD, Claude. “Violênciia”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (org).
Dicionário Temático do Ocidente Medieval . São Paulo: EDUSC, 2006, v.II. GÉNICOT, Léopold. “Nobreza”. LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (org). Dicionário
Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2006, vol.2. GOLDMANN, Lucien. Sociologia do Romance. São Paulo: Paz e Terra, 1976. GOUREVITCH, Aaron. “Indivíduo”. LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (org).
Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2006, vol.1. GUERREAU, Alain. “Feudalismo”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude.
Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2006, v.I (p.437-455). GUERREAU-JALABERT, Anita. “Parentesco”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, JeanClaude (org). Dicionário Temático do Ocidente Medieval . São Paulo: EDUSC, 2006, v.II. GUREVITCH, Aron. As Categorias da Cultura Medieval. Lisboa: Caminho: 1990. LAPA, M. Rodrigues. Lições de Literatura Portuguesa. Coimbra, Coimbra Ed., 1973. LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. São Paulo: UDUSC, 2005. LE GOFF, Jacques. Para Um Novo Conceito de Idade Média. Lisboa: Editorial Estampa 1993. IOGNA-PRAT, Dominique. “Ordem (ns)”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (org). Dicionário Temático do Ocidente Medieval . São Paulo: EDUSC, 2006, v.I. MATTOSO, José. A Nobreza Medieval Portuguesa: a família e o poder. Lisboa: Editorial Estampa, 1990. MATTOSO, José. “Cavaleiros Andantes Cavaleiros Portugueses no Ocidente Europeu”. In:
SEPARATA de Presença de Portugal no Mundo (Atas do Colóquio). Lisboa: Academia Portuguesa de História, S/D. MEGALE, Heitor. O Jogo dos Anteparos. A Demanda do Santo Graal: A Estrutura Ideológica e
a Construção da Narrativa. São Paulo: T. A. Queiroz Ed., 1992.
421
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
OBOLENSKY, D. e KNOWLES, D. Nova História da Igreja: a Idade Média. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1983. SARAIVA, A. H. e LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Ed., 1978. ZINK, Michel. “Literatura”. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude (orgs.). Dicionário
Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2006. ZUMTHOR, Paul. A Letra e A Voz. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1993. WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores,1979.
422
RAINERUS: O COPISTA DE CAMBRAI E OS ARTISTAS NO MEDIEVO Pamela Wanessa Godoi 1 Angelita Marques Visalli 2 (Orientadora) Resumo: O trabalho artístico no medievo tem sido alvo de muitas discussões no campo da história. Os estudos que utilizam imagens como indícios para construção do conhecimento histórico, têm aberto caminhos na área de pesquisa da Idade Média. Esses estudos tem também, sido fundamentais para acrescentar novas discussões a respeito da devoção e da religiosidade medieval. As iluminuras, imagens pintadas nos manuscritos, são parte essencial da imagética que foi produzida durante o período medieval. Neste trabalho a discussão sobre os artistas que pintavam essas páginas, foi direciona para a iluminura de
Rainerus. Em um manuscrito conhecido como Homiliário de Cambrai, produzido no século XII, o copista pintou-se na primeira página do códice, e depois acrescentou seu nome a outra pintura de si, no fólio seguinte, beijando os pés do Cristo. Com a análise dessa miniatura, podemos acrescentar ainda mais elementos na discussão sobre o papel que o artista ocupou no medievo. Palavras-chave: iluminuras; artista; Cambrai.
1
UEL
2
UEL
423
Pamela Wanessa Godoi O estudo de imagem do período
Para Peter Burke as relações não-
medieval levantou a discussão para o uso
verbais de uma sociedade, podem ser mais
da
o
bem compreendidas quando analisamos a
uma
documentação imagética existente nessa
expressão relacionada a uma fazer menor,
sociedade: “Pinturas, estátuas, publicações
ou seja, a arte foi, por muitos anos,
e assim por diante permitem a nós,
considerada um fazer coadjuvante entre as
posteridade, compartilhar as experiências
expressões humanas.
não-verbais ou o conhecimento de culturas
palavra
“arte”.
renascimento
Usada
era
desde
considerada
A disciplina da história da arte,
passadas.” (2004, p. 16-17).
depois de institucionalizada, pouco se aventurou
nos
anos
medievais.Jean-
Esses humanos,
tipos que
de
relacionamentos
utilizaram
de
outras
Claude Schmitt sugere que houve um
linguagens, além da falada, ou da escrita,
grande desencontro entre a história e a
apontam para importantes caminhos sobre
história da arte no começo do século XX,
os sentimentos e os sentidos que os seus
atrasando em muito as possibilidades de
ambientes atribuíram a algo ou alguém. As
troca que essas duas disciplinas iriam
manifestações que não usaram de linguem
realizar anos depois (SCHMITT, 2007, p.
falada,
11-22).
intimamente ligadas ao universo mental
Foi doravante a possibilidade do
dos
podem
homens.
estar A
partir
ainda das
mais
imagens
encontro dessas disciplinas que consolidou
produzidas conseguimos perceber com
a imagem como objeto autônomo de
maior
estudo para história. A interdisciplinaridade
simbolismos,
as
praticada no campo intelectual hoje é o que
desprazeres,
entre
abre
expressões existentes nessas sociedades.
ainda
mais
caminhos
para
a
construção do conhecimento sobre as imagens e a partir delas.
número
de
especificidades
os
importâncias,
os
outras
tantas
Segundo Eliade (1952, p. 25) é possível perceber o encaminhamento dos
Segundo Martine Joly os registros
sentidos
que
uma
sociedade
dá
ao
visuais ganharam ainda mais importância,
movimento religioso, ainda que ela não
pois “[...] a análise da imagem, inclusive da
seja de todo consciente. Isto é, paraEliade,
imagem
desempenhar
mesmo o produtor, está tão imbuído das
funções tão diferentes quanto dar prazer ao
relações existentes dentro de seu ambiente
analista.” (1996, p. 47).
que, ao produzir algo, ali expressa, deixa a
artística,
pode
marca que seu tempo deu ao que faz,
424
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
mesmo que não fosse essa sua intenção
que
primeira.
superadas, o trabalho da história com e das
Foi assim com Dante que, ao
existam
dificuldades
a
serem
imagens tem sido fundamental para a
escrever a Divina Comédia, marcou um
construção
espaço importante na literatura, e ainda
sociedade.
do
conhecimento
sobre
a
mais na expressão dos valores e símbolos
Não é diferente com o campo
existentes em seu tempo e lugar. É assim
medieval. A possibilidade de se olhar para
com as imagens, que podem nos indicar,
as
ainda que não fossem feitas com essa
acrescentou muitos elementos aos estudos
intenção, os valores que esses homens
do período. No entanto a palavra imagem
queriam dar a elas, ou mesmo como e o
foi confirmada pelos estudos recentes
que usavam para manifestar esses valores.
como muito mais adequada do que “arte”,
É ainda mais importante perceber
quanto se trata das produções visuais
que a imagem, independente do período
imagens
produzidas
no
medievo
feitas antes do Renascimento.
em que foi produzida, é expressão de um
Não podemos perder de vista que é
“feixe de significações” (ELIADE, 1952, p.
necessário distanciar a imagem feita e vista
16). Ela não é apenas uma verdade, nem
pelo medievo disso que hoje chamamos
se constrói a partir de um único referencial,
imagem.
Ainda
que
mas
recente,
vários
historiadores
tem
à
sua
disposição
tantas
seja
um
campo tem
se
referências quanto o seu produtor pôde ter.
dedicado nos últimos anos a pensar a
Portanto Eliade alerta:
imagem no medievo, e a partir de estudos
Traduzir
uma
imagem
numa
terminologia
concreta, reduzindo-a a um só dos seus planos de referência, é pior que mutilá-la: é aniquilá-la,
de casos percebemos que houve, já, a construção de alguns conceitos básicos
anulá-la como instrumento de conhecimento.
que não devem ser descartados no estudo
(ELIADE, 1952, p. 16).
dessas figuras feitas no período medieval.
Com
a
indicação
de
alguns
benefícios em determinados estudos, as imagens ganharam e ainda vem ganhando espaços no meio da pesquisa acadêmica; de vários tipos e épocas diferentes os documentos visuais têm sido recorrentes nos trabalhos de diversas áreas das ciências humanas, nos últimos anos. Ainda
A palavra “imagem” proveio do termo latino
imago
que
era
usado
pelos
medievais para definir a imagem. Contudo, Jean-Claude Schmitt alerta: Não
convém
semelhanças
se
deixar
fonéticas
e
enganar pelo
pelas
parentesco
etimológico. Quanto mais o vocabulário parecer próximo do nosso, que dele é herdeiro, mais devemos
desconfiar
a
priori.
A
diferença
425
Pamela Wanessa Godoi essencial é que a noção medieval de imago se
objetos figurados (retábulos, esculturas, vitrais,
inscreve num contexto cultural e ideológico bem
miniaturas, etc.), mas também às ‘imagens’ da
diferente do nosso. (SCHMITT, 2007, p. 12-13)
linguagem, metáforas, alegorias, similitudines,
No latim antigo imago pode ser
das obras literárias ou da pregação. Ela se refere
traduzida
como:
imagem,
também à imaginatio, às ‘imagens mentais’ da
retrato,
meditação e da memória, dos sonhos e das
aparência; mas sua construção em relação
visões (SCHMITT, 2006, p. 593).
à aparência é o mais destacado (ERNOUT; MEILLET, 1985, p. 309).
Ao se preocupar como era chamada a imagem medieval, Schmitt se deparou
Quando o Ocidente se encheu de
com um termo que significava também
cristianismo e a Bíblia passou a ser o texto
muitas outras coisas. Perceber a relação
base dessa parte do mundo, o termo
de tais coisas foi o que definiu o termo
imago, assim como a sociedade, tomou
imago como sendo o ideal para identificar
formas
os elementos figurativos produzidos no
cristãs
e
ganhou
importância
segundo os sentidos encontrados nos
medievo.
textos bíblicos. E é já nas primeiras linhas
A imago pode se definir como uma
desse livro que encontramos a imago em
representação visual de algo real, simbólico
uma importante função: designar o homem:
ou mesmo imaginário; ela procurou tornar
“Então disse Deus: Façamos o homem à
visíveis os sentidos humanos, nela tinha-se
nossa
a oportunidade de expressar não só o
imagem,
conforme
a
nossa
semelhança” (Gênesis 1, 26) 3. Para
Schmitt
a
“imago
visual é
o
já
existente,
mas
também
as
mentais
que
enchiam
de
construções
cristã”
sentidos as narrativas medievais. Assim as
(SCHMITT, 2007, p. 13). Em um período
imagens produzidas no período medieval
onde o ideal cristão foi base para todas as
têm suas características articuladas em
relações, a palavra que na Bíblia destacou-
meio à ambiguidade que a palavra imago
se para identificar o homem, é também a
nos oferece.
fundamento
que
foi
da
preferida
antropologia
para
denominar
as
produções visuais. Mas não só as produções visuais foram chamadas de imago: [...] no centro da concepção medieval do mundo e do homem: ela remete não somente aos
3
Em latim: “ait: Faciamus hominem ad imaginem
etsimilitudinemnostram”.
Neste universo de vários sentidos e funcionalidades, o papel de retrato, que a imagem medieval pôde vivenciar foi muito reduzido. Isso de deveu em muito a sua relação com a mimese. Apresentar a realidade, inferir na produção visual a construção da realidade material não era uma das necessidades medievais. Ou seja,
426
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
vemos que na Idade média a produção visual não busca uma apresentação do que era visto. A imagem era feita também a partir daquilo que queria que fosse visto. Contudo, a possibilidade de algumas representações
que
procuraram
visualmente produzir a imagem de alguém podem ser encontradas no medievo. Este trabalho
procurou
trabalhar
com
uma
delas 4. Em um manuscrito feito na primeira metade do século XII em Cambrai, região norte da França, encontramos na primeira página do códice a figura de um copista. Na página seguinte, ele novamente se pintou, e ali escreveu seu nome: Rainerus.
Figura 1 - Copista. BM Cambrai Ms 0528-fólio 01r.
No primeiro fólio do manuscrito, a imagem de página inteira chama bastante à atenção. Temos um homem, sentado em um banco, com os pés apoiados; curvado, ele olha para um livro que esta a sua frente, sendo segurado por um púlpito, onde dois corpos de leão se fundem a uma única cabeça para apoiar a base; no livro há as primeiras palavras escritas no Homiliário de Cambrai.
A discussão sobre o manuscrito que segue está
Nas mãos, o homem segura os
vinculada ao trabalho de pesquisa de mestrado em
instrumentos de escrita, apoiados em um
andamento, desenvolvida por mim no programa de pós-
fólio, já dividido ao meio com. É um copista.
4
graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina, a ser defendida em 2015 com título “A
É o copista deste códice.
PRESENÇA DIVINA NAS ILUMINAÇÕES MARIANAS:
Suas
estudo de miniaturas de Reims e Cambrai feitas no século
coloridas.Desde
XI e XII”, sob orientação da professora Angelita Marques
vestes os
são
muito
primórdios
do
Visalli.
427
Pamela Wanessa Godoi fortalecimento do movimento monacal, a
Isso também seria agravado pela
cor do hábito foi um elemento de distinção.
tonsura possível de observar em sua
No século XI e XII os tecidos coloridos ou
cabeça. Cortar o cabelo de forma a raspar
com ornamentos eram preferidos pela
a parte superior da cabeça no formato de
nobreza, e para se diferenciar os hábitos
um
de cores homogêneas foram preferidos.
ordenação de um religioso. Instituído desde
A cor preta foi a escolhida pelos monges cluniacenses; nem todos seguiram
círculo
fazia
parte
do
ritual
de
o século VI esse corte no cabelo era sinal de distinção entre leigos e clérigos.
esse caminho, até por que a tintura no
Portanto, caso fosse um leigo a
tecido era bastante cara, em muitos casos
peculiaridade de estar tonsurado, assim
tecidos rústicos sem tingimento nenhum
como, a de estar fazendo um livro e se
foram usados para a convecção dos
pintando nele, traria inúmeros problemas
hábitos.
bastante
As roupas coloridas do copista de Cambrai
são
muito
particulares,
incomuns
para
o
período.
Enquanto que a opção de termos a pintura
as
de um copista religioso, que preferiu ser
escolhas na pintura de suas vestes foram
caracterizado por roupas coloridas, parece
claramente distinguidas do que era a regra
ser
do uso de roupas por monges neste
confirmar.Atémesmo por que, já no século
momento. Ou seja, o copista optou por ser
XI há reclamações de monges que em vez
pintado com características diferentes do
de
comum nas vestimentas monacais. É difícil
tracionais, preferiam usar as vestes de
dizer se ele realmente se vestia assim.
seda como os nobres (SANTOS, 2006).
mais
plausível
usarem
As cores tão vibrantes e coloridas
No
seus
entanto,
e
possível
hábitos
é
difícil
rústicos
afirmar
de
e
a
das vestes do copista podem ser também a
identidade do copista só por suas roupas.
indicação de que esse homem era um
Mas são elas que indicam que outro
trabalhador leigo; ainda tão singular quanto
homem pintado no manuscrito também é o
um monge de roupas coloridas, seria um
copista. Somente ele aparece com essa
leigo se retratando em um livro litúrgico,
roupa:
não só por se pintar, o que era muito incomum, mas por ser um leigo que executou o trabalho, em um momento que ainda a copia e iluminação era em grande parte feita por monges.
428
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
nenhum
outro
manuscrito
com
sua
assinatura. Feito em pergaminho, esse livro mede 44,5 cm de altura por 33,8 cm de largura. Sua encadernação é de madeira, e possivelmente passou por modificações, já que muitos dos fólios apresentam um corte, principalmente na parte superior, que exclui parte do texto ou de imagens. Ou seja, em algum momento entre sua produção e hoje, as folhas foram cortadas, sem muito cuidado, para ficarem uniformes. Contém 274 fólios que, segundo a biblioteca, são todos da produção original. Neles é particularmente interessante notar que
a
pele
tem
muitas
indicações
singulares: há várias fissuras que podem Figura 2 - Rainerus. BM Cambrai Ms 0528-fólio 002r.
Na segunda imagem do manuscrito, O Cristo entronizado é figurado no interior da letra Q. O prolongamento da letra é o homem da primeira página, que segura o pé esquerdo e beija o pé direito de Cristo, ele tem a mesma roupa do copista e ao lado de sua cabeça, tonsurada se identifica como RAINERUS. Rainerus foi um nome bastante comum no século XII, e encontramos pelo menos seis homens diferentes que se chamavam Rainerus, ligados a Cambrai no século XII. Assim pouco se pode afirmar sobre esse copista que não nós deixou
ser encontradas nos fólios, algumas têm uma
espécie
de
costura
para
tentar
minimizar o furo, em outras há apenas o rasgo. Isso
acontecia
principalmente
quando a pele estava sendo tratada para ser usada como fólios; durante o período que se esticava e secava a pele, podia acontecer dela rachar. Como era comum ter muitas dificuldades para a obtenção do material, como preço e tempo de trabalho, era comum também, que mesmo as peles que
rachavam
fossem
usadas
em
manuscritos de menor importância. Feito para o uso durante a liturgia da missa, o Homiliário de Cambrai
429
Pamela Wanessa Godoi contém homilias para serem estudadas nas bibliotecas
e/ou
lidas
durante
A cidade, que está a 160 Km de
as
Paris, foi durante a antiguidade chamada
celebrações na igreja. Homilia é um texto
de Camaracum, aparecendo como ponto
preparado para um sermão que ao final
militar importante nos mapas do século IV.
apresenta uma moral para a história
Durante o século VII o poder imperial, da
evangélica. Seu estudo e sua leitura
casa
durante a missa faziam parte da liturgia e
cristianismo na região e desenvolveu a
ela própria, fazia parte da regra monástica
aldeia rural ali instalada com a construção
que atribuiu aos monges o cuidado com o
de igrejas e de um castelo. Já durante o
campo espiritual.
período Carolíngio, a cidade ficou no meio
dos
merovíngios,
estabeleceu
o
Este códice foi feito pela Abadia de
das disputas dos filhos de Carlos Magno.
Saint-André-du-Câteau. Ela foi uma abadia
Lotário II e Carlos o Calvo brigaram por
beneditina do norte da atual França,
essa região, até que os normandos em 850
consagrada pelo bispo de Cambrai, Gerard,
e os húngaros em 953 destruíram a cidade
em torno do ano de 1020 e confirmada pelo
e se estabeleceram na região.
imperador Henrique III em 1048. Gerard de
Diante
dessas
disputadas
Cambrai ou Gerard de Florennes foi um
envolvendo o poder politico mais elevado,
importante
bispo
os governantes locais tomaram-se fortes e
ativamente
esteve
do
século
envolvido
XI
que
com
as
foram
criando
redes
de
relações
e
discussões a respeito da “Paz de Deus”.
instituindo preceitos sem se alinharem
Foi aluno em Reims e mantinha forte
diretamente com o poder de imperadores e
contato com essa região.
bispos. Cada vez mais esses poderes
Possivelmente não chegou a ver o códice de Cambrai. Seu sucessor Gerard II diferente de muitos religiosos de seu período, defendeu ardentemente o celibato
foram se tornando simbólicos fora das suas regiões de origem. A
população
se
formou
na
coexistência de várias tribos, que ali foram
e esteve intimamente ligado a “questão das investiduras” 5.
bispos da Igreja. Já em Reims havia um grupo de religiosos que era favorável ao Estado e aceitava a
5A
questão das investiduras foi um conflito entre Igreja e
Estado
onde
alguns
religiosos
lutaram
contra
interferência do poder leigo durante a escolha de
a
superiores. A questão se alongou pelos anos até que eu
intromissão do Estado nas nomeações de cargos
1122 na Concordara de Worms chegou-se ao um acordo
importantes na Igreja. Gerard II de Cambrai era
que ao papa cabia a investidura espiritual e ao imperados
extremamente contra e acreditava que cabia apenas aos
a investidura temporal. Na pratica pouco resolveu, e as
próprios religiosos decidirem quem seria papa, abades e
discussões de poder voltaram a aparecer.
430
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
se instalando em meio a essas disputadas
usado para o estudo, há nele muitas notas
de poder ocorridas desde o fim do século
e glosas na lateral do texto.
IV. Pessoas que descendiam dos que
Mas se não há a identificação por
chegaram à região no tempo do Império
dedicatória a um destinatário específico,
Romano, outras que chegaram com as
temos uma peculiar identificação, a do
migrações de grupos que viviam mais ao
copista.
norte, outras ainda vindas de grupos
Aqui acrescentamos a discussão
oriundos do sul; juntos se fortaleceram,
sobre o papel que o artista desenvolveu
criando um grupo heterogêneo, mas que
na relação com sua obra.A ideia de artista
procuravam
não era entendida como hoje, e as
inibir
os
excessos
dos
senhores.
iluminações e mesmo os vitrais ou outros
Houve várias revoltas populares no
tipos de pinturas não eram vistos como
século XI, os bispos ora instituídos pelo
hoje, sua conotação não passava pela
poder Imperial, ora pelo Papa, estavam
ideia que temos atualmente de obras de
sempre em desacordo com a população,
arte.
mas
desvalorização da produção imagética
em
1077
o
bispado
reprimiu
Não
queremos
fortemente as revoltas, que, no entanto
medieval,
iriam
renascentistas,
apenas
oposição
relação
continuar
com
um
forte
poder
comunal até o século XII. Em meio a tantas discussões e mudanças no poder é difícil afirmar quem pode ter sido o mandatário do manuscrito feito em Cambrai. O comum era que fosse feito uma dedicatória, onde o comitente oferecia o manuscrito a alguém. Afirmar que as disputas políticas estavam diretamente relacionadas com a falta de dedicatória do livro é precipitado, contudo pode ser um dos elementos que explica não haver nenhum nome, em especial, que fosse o responsável pela produção do manuscrito. Certo é que ele foi
como em
invocar
uma
fizeram ressaltar ao
que
os sua hoje
entendemos como arte. Concordamos que: O historiador da arte que se dedica ao período medieval deve reconhecer que seu objeto de estudo, estritamente falando, não existe. Afinal, como é bem sabido, o termo "arte", tal como o concebemos atualmente, é uma construção que data do Renascimento. Seu quase equivalente latino, ars, não se reveste dos mesmos sentidos, sendo mais apropriado para designar, por exemplo, algum tipo de habilidade especial. Da mesma forma, um dos mais importantes termos dele derivado, artista, não possui exatamente o mesmo significado na Idade Média que na atualidade. Tampouco consegue-se resolver o impasse com a utilização do termo artesão, porque seria rebater um anacronismo com outro: a noção atual de artesanato é tão anacrônica
431
Pamela Wanessa Godoi para a Idade Média quanto a de arte. (PEREIRA, 2011).
Assim, aquele que produzia a imago, esteve constantemente no alvo de um problema de definição, que a Idade Média não
se
preocupou
designando-os próprios,
ou
em
pelos mesmo
resolver,
seus pela
nomes profissão
exercida, como pintor, escultor, pedreiro, arquiteto, entre outros. O
iluminador
desejava
como
recompensa fazer parte do esforço para agradar a Deus (CASTELNUOVO, 1989, p. 145-162). Sua autoridade em relação à obra não envolvia a noção de criação, que designava somente a prática exercida pelo poder máximo do criador maior: Deus (PEREIRA, p. 2011). O destaque estava na própria obra, não na autoria desta. Assim, a questão do indivíduo produtor não se apresentou como uma preocupação cotidiana do medievo, a função do produtor não acarretava
a
necessidade
de
ser
conhecido enquanto indivíduo, ou mesmo sendo parte ou dono da obra. Suas técnicas e seus conhecimentos deviam ser usados para, de forma coletiva, exaltar o divino, era um profissional que servia como instrumento para que a sociedade glorificasse a Deus. A produção não era feita em larga escala. Poucos homens conheciam as
técnicas para a produção das imagens, isso já os fazia diferentes dentro da sociedade e facilitava o conhecimento e mesmo o reconhecimento pessoal. Não necessitavam
diretamente
apresentação
vinculada
de ao
uma suporte
material da imagem. A produção feita em escalas
mais
restritas
apontava
que
técnicas específicas eram usadas em cada local ou mesmo por cada artista, tornando-os conhecidos sem que seus nomes fossem diretamente citados nas obras. Neste
contexto
percebemos
a
produção imagética até o final da Idade Média,
entrando
inclusive
no
Renascimento, onde a noção individual começa a se pôr com mais ênfase. Porém, percebemos que as exceções a partir
do
século
IX,
principalmente,
começam a ser gestadas e o nome do artista ou mesmo a representação da sua figura começa, ainda que discretamente, a aparecer. A historiadora Maria Cristina C. L. Pereira
trabalhou
apresentando criação
e
em autoria:
essa seu as
texto
questão “Sobre
‘assinaturas’
epigráficas no ocidente medieval” uma breve pesquisa a respeito da identificação de uma espécie de assinatura onde a imagem apresenta, junto ao nome do
432
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
produtor, a legenda “me fez”. Interessante
personagem em alguma cena específica
ressaltar como a
pintada no manuscrito. Porém, assim
[...] construção da frase se mostra como um desvio, ou mesmo uma tática – consciente ou não, voluntária ou não – que evita o discurso direto do criador. Ou seja, uma vez que a criação é uma atividade eminentemente divina, pretender imitá-la seria incorrer no pecado do orgulho. (PEREIRA, 2011).
Segundo Schmitt (2002, p. 597), a utilização dessa expressão “me fez”, nos remete a uma observação que apresenta como o produtor procura se esconder atrás de sua obra, esta fala em primeira pessoa, indicando que sua relação com o produtor é ainda a de sujeito, tratando-se de dois seres. Notamos também que:
como as inscrições citadas por Pereira, são exceções e se configuram posteriores ao século XI, no mínimo. Claro que o reconhecimento e o pagamento dos trabalhos faziam parte dessa
profissão,
porém
o
engrandecimento pessoal do artista não é claramente Muitos
notado
desses
nessa
sociedade.
profissionais
eram
disputados por seus excelentes trabalhos prestados; porém, na obra em si, seu nome como indivíduo não tinha espaço. Essa ideia, ao longo dos quatro
[...] no contexto da produção de imagens cristãs,
séculos, foi sendo modificada, e no século
geralmente a autoria implica pelo menos três
XV já percebemos grandes mudanças no
instâncias, sejam elas pessoas ou grupos de pessoas: o comitente, o conceptor e o executor.
que diz respeito às necessidade dos
E esquecendo-se também que muitas vezes ela
artistas em tornarem-se parte da obra
simplesmente nem é mencionada. (PEREIRA,
com sua assinatura efetivamente. No
2011).
Na
iluminação,
apresentação
de
uma
esse
tipo
relação
de entre
produtor e produção se dá, ainda que com dificuldade da própria figuração da cena. Em muitos casos temos a apresentação de um ou de mais de um personagem da instância citada por Pereira. Assim, temos cenas iluminadas em manuscritos onde encontramos o bispo responsável pela produção
do
manuscrito
pedindo
a
bênção da divindade representada, ou mesmo
do
próprio
executor
como
caso dos iluminadores, essa questão torna-se um pouco mais complexa, pois a arte produzida nos livros ainda não alcançava, mesmo nesse período, um grande reconhecimento como em outras artes: a pintura em afrescos, ou mesmo as telas. Nas iluminações, considerando e comparando a outros tipos de produção, a questão da posição do artista ainda podia ser percebida com dificuldade. Não há grandes nomes de iluminadores, mesmo porque muitos deles exerciam também
433
Pamela Wanessa Godoi outras funções de mais destaque, como a
visuais feitas por ele para se representar
de ourives (CASTELNUOVO, 1989, p.
em dois fólios do Homiliário de Cambrai,
145-162).
podem nos dizer mais sobre ele e sobre o
Perguntamo-nos então, qual era o papel de Rainerus, e como as escolhas
papel que os homens produtores de manuscritos tinham no período medieval.
Referências : BASCHET, J. Introduction: l’imagem-objet. In: L'IMAGE: Fonctions et usages des images dans
l'Ocident médiéval. Paris: Le Léopard d'Or, 1996, vol5, p. 7- 26.
___________. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. BLOCH, M. Apologia da História ou O ofício de historiador. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 2001. BURKE, Peter. Testemunha Ocular – história e imagem. Bauru: Edusc, 2004. CASTELNUOVO, Enrico. O Artista. In: LE GOFF, Jacques. O homem medieval. Lisboa: Presença, 1990. ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Rio de Janeiro: Record, 2010. ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. Lisboa: Arcádia, 1952. ERNOUT, A. E MEILLET, A. Dictionnaire de la étymologique Latina. 4. Ed. Paris: Klincksieck, 1985. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo. Cia. das Letras, 1987. ______. Indagações sobre Piero. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. ______. Olhos de Madeira – Nove reflexões sobre á distância. São Paulo. Cia. das Letras, 2001. JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas, SP: Papirus, 1996. LE GOFF, Jacques. Uma longa Idade Média. Civilização Brasileira, 2008. LE GOFF, J. et SCHMITT, J-C. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006. PASTOUREAU, Michel. Símbolo. In: LE GOFF, J. et SCHMITT, J-C. Dicionário Temático
do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, p. 495-510. ______. Une histoire symbolique du Moyen Âge Occidental.Editions du Seuil, 2004.
434
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
PEREIRA, M. C. C. L. Sobre criação e autoria: as "assinaturas" epigráficas no Ocidente medieval. In: Anais da X Jornada de Estudos Antigos e Medievais. Maringá, UEM, 2011, CD. RUSSO, Daniel. O conceito de imagem-presença na arte da Idade Média. In: Revista de
História, São Paulo, n. 165, jul./dez. 2011, p. 37-72. ______. Les représentations mariales dans l’art d’Occident: Essair sur la formation d’ une tradition iconografique. In: IOGNA-PRAT, Dominique; PALAZZO, Éric; Russo, Daniel.
Marie, Le Culte de la Vierge dans la sociéte médiévale. Paris: Beauchesne, 1996. SANTOS, Georgina M. de Casto. A roupa, a moda e a mulher na Europa ocidental
medieval.Brasilia: UNB, 2006. (Dissertação) SCHMITT, J-C. Imagens. In: LE GOFF, J. et SCHMITT, J-C. Dicionário Temático do
Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2006 p. 591-605. ______. O corpo das imagens: Ensaio sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru, SP: Edusc, 2007.
435
A SISTEMATIZAÇÃO DO SABER E DO FAZER DO CAVALEIRO: UMA ANÁLISE DA OBRA O LIVRO DA ORDEM DE CAVALARIA, DE RAMON LLULL Paula Carolina Teixeira Marroni 1 Resumo: Este trabalho tem por objetivo apresentar a obra O Livro da ordem de Cavalaria (1279 – 1283) como uma sistematização do saber e do fazer do cavaleiro medieval sob a perspectiva do monge Raimundo Lúlio (1232 – 1316). O trabalho é pautado na perspectiva da História Social, consideramos como recorte temporal o século XIII no ocidente medieval, período de grandes transformações na sociedade medieval, tais como o renascimento das cidades e do comércio e a criação das Universidades. Após apresentar brevemente a vida de Lúlio no contexto do século XIII, a obra O Livro da ordem de Cavalaria é objeto de análise no que se refere à perspectiva luliana de que a cavalaria só seria uma ordem respeitada se seus conhecimentos fossem redigidos de forma teórica, com letras e ensinadas em escolas como as demais ciências. Concluímos que com esta obra, Lúlio se preocupou em demonstrar o conhecimento e o saber acumulados a respeito do ofício de cavaleiro em forma de teoria escrita. Palavras-chave: Ramon Llull; História da Educação; Medievo; Cavalaria.
1PPE/UEM
– GETSEAM – CAPES
436
Paula Carolina Teixeira Marroni
Este trabalho objetiva analisar as
mudar a concepção positivista de história e
proposições sugeridas pelo monge medieval
sugerir o que conhecemos hoje por História
Ramon Llull, ou Raimundo Lúlio (1232 –
Social. Este percurso advém da revolução
1316) no que se refere à sistematização do
documental pela qual a constituição da
saber e do fazer do cavaleiro na obra O Livro
história, enquanto disciplina, passou desde o
da Ordem de Cavalaria. Destacamos, no
fim do século XIX e início do século XX. Uma
ocidente medieval no século XIII, a função de
destas
cavaleiro como uma importante ocupação
perspectiva tradicional é o movimento dos
social,
monge
Analles (1929) conduzido por Bloch e
medieval. Consideramos este um manual de
Febvre, que se abriria às demais ciências
educação da cavalaria que apresenta a ótica
humanas e possibilitaria um aperfeiçoamento
de Lúlio com objetivo de sistematização do
metodológico que ao mesmo tempo alargava
conhecimento do saber e do fazer do
as possibilidades de objetos de estudo e
cavaleiro.
interesses históricos.
objeto
A
de
partir
reflexão
da
do
expressões
O
fundamentação
panorama
de
ruptura
de
com
a
transformações
metodológica pautada na História Social,
sociais, da vida no ambiente citadino, da
considera-se
de
crescente troca e comércio de mercadorias,
produção da obra, bem como a trajetória de
dos ofícios próprios da vida em sociedade no
vida do autor, suas relações sociais e a
século XIII e, principalmente, o florescimento
ambiência cultural à que ele pertence para a
das
compreensão do olhar que Lúlio apresenta
compreensão
para a educação do cavaleiro medieval.
intelectuais da época em sistematizar o
Castro
importante
contexto
auxiliam
preocupação
na dos
educação
escolas, confiram grau de honra às ciências.
convencional limitavam-se, antes da década
Nesse período, segundo Oliveira (2007), o
de 1960, a descrever os fatos. Em meados
renascimento das cidades, a intensificação
dos anos 60, em meio a tentativas de
do comércio, as navegações, entre outros
rupturas, novas perspectivas para a história
acontecimentos, auxiliaram para que novas
e historiografia da educação emergiram.
relações se apresentassem na sociedade.
Estas perspectivas ocorreram de forma a
Cogitamos que, para Lúlio, a educação,
história
da
que
da
nos
conhecimento, de forma que os livros, as
e
aponta
Universidades
a
historiografia
(1997)
o
437
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
pautada nos livros, no saber escrito, pode
ao estudo da doutrina cristã e também da
trazer reconhecimento à ordem de cavalaria
língua árabe. Partindo do propósito de
assim como as outras ciências.
converter os infiéis à fé cristã por meio do
Para compreender este processo, retomemos, Raimundo
brevemente, Lúlio.
Nascido
Espanha),
filho
a
vida
em
de
Maiorca
diálogo e da fundamentação racional, Lúlio dedicou-se
ao
aproximadamente
estudo nove
do
árabe
por
com
um
anos,
nobre
sarraceno que teria sido comprado por ele
possuidor de terras que fazia parte da corte
para, como escravo, ser seu preceptor na
do rei Jaime I, cresceu no ambiente de corte.
língua.
(Palma,
de
um
Lúlio foi pagem e mordomo nesta corte, e foi
Eco (2001) salienta a relação direta
educado desde criança para a carreira das
que existe entre a perspectiva luliana de
armas. Não há muitas informações a respeito
aprendizado da língua do infiel com o
da sua vida durante sua juventude, mas
contexto de sua infância em Maiorca, que
alguns indícios sobre sua vida pessoal antes
agregava
da conversão e da escrita de suas mais de
cristãos e muçulmanos, na época, chamados
200 obras podem ser encontrados na obra
por Lúlio de sarracenos. Convém lembrar
Vida Coetanea (1311). Esta obra, ditada aos
que Lúlio também escreveu em latim e em
monges da ordem Cartuxa de Valverde, é
catalão e, por serem consideradas suas as
atribuída como a autobiografia de Raimundo
primeiras obras em expressão escrita em
Lúlio e muitos dos dados sobre sua vida são
catalão, Lúlio é considerado pai desta língua.
retirados da mesma. Ela indica que Lúlio foi
Lúlio
a
convivência
escreveu
entre
sobre
judeus,
diversos
casado, teve filhos, e aos 32 anos de idade,
assuntos. Sobre animais, no Livro das
teve um conjunto de visões que o fizeram
Bestas, sobre a educação das crianças para
converter-se ao cristianismo com profunda
a fé cristã em A Doutrina para crianças,
veemência, a ponto de desligar-se de sua
sobre a conversão de um gentio em Félix ou
família
o Livro das Maravilhas, entre outras obras.
e
empreender
diversas
viagens
missionárias. Após
São mais de 200 obras escritas em latim e sua
conversão,
que
teria
catalão arcaico, compreendendo diversas
acontecido por receber cinco visões do
esferas da vida da sociedade do século XIII.
Cristo crucificado, Lúlio passou a dedicar-se
Anjos, amigos, provérbios, explicação do
438
Paula Carolina Teixeira Marroni
mundo para crianças, explicação do mundo
ensinadas em escolas e em livros. Este
para adultos não cristãos não convertidos e
elemento de nova ordem é apresentado por
explicação
adultos
Lúlio ao descrever que a cavalaria não tem a
convertidos a outra religião deveriam, para o
devida honra por não ser ensinada em livro
autor, serem feitas de formas diferentes pois,
nem possuir escolas para isso.
do
mundo
para
para o adulto que já possuía uma fé, não
O Livro da Ordem de Cavalaria
bastava somente falar da fé cristã. Era
demonstra o código de conduta do cavaleiro,
necessário um fundamento racional, ao
sua função, a honra que deve ser prestada a
ponto de fazer com que uma pessoa
ele, como funciona o processo de entrada na
abandone uma fé por outra fé.
cavalaria, o exame que o escudeiro deve
Um indício de que ele sabia o
realizar, a cerimônia de recebimento da
cotidiano da vida do cavaleiro medieval é a
cavalaria e informações sobre a origem da
obra O Livro da Ordem de Cavalaria (1232-
função de cavaleiro. Cabe ressaltar que Lúlio
1316). Este livro é considerado por vários
buscava a valorização do cavaleiro em
autores (entre eles COSTA, 1997, 2000,
relação à sociedade.
2001; ZIERER, 2008, STARLING, 2009) um
A obra possui um Prólogo redigido em forma de narrativa, que se completa com
manual de educação do cavaleiro medieval. Para nós, no ambiente do século XIII,
sete capítulos. Neste Prólogo Lúlio narra o
no qual as cidades se revitalizavam, o
encontro
comércio
mercadorias
buscava tornar-se cavaleiro e um velho
a
é
ermitão que já havia sido cavaleiro em sua
importante pois indica a tentativa de Lúlio em
juventude. Ambos conversam durante um
sistematizar um saber não antes descrito em
longo tempo, e o velho ermitão percebe que,
livros, exceto pelas novelas de cavalaria.
em sua opinião, o jovem escudeiro não sabia
Lembramos
as
o que era necessário saber para se tornar
universidades salpicavam de intelectuais que
cavaleiro e pertencer ao que ele chamava de
passavam
estrutura
Ordem de Cavalaria. Para ele, muitas
tradicional da igreja. O crescimento da
informações faltavam ao jovem, e assim
ciência,
e
floresciam
a
troca
cada
que, a
das
aumentava
vez
a
de mais,
neste
questionar
obra
contexto, a
de
um
jovem
escudeiro
que
instituições
universitárias,
como a ele, aos outros cavaleiros. Por isso
importância
das
os cavaleiros estavam se turvando ao mal e
ciências
439
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
perdendo
as
características
que
os
Não sendo ensinada em livros, não
colocavam em evidência, tais como levar a
era conhecida, e por isso a cavalaria era
palavra de Deus aos infiéis, defender a fé
desmerecida entre as outras artes, ou entre
Cristã e as pessoas mais frágeis.
os outros afazeres. Essa observação de
Essas informações, que iam desde a
Lúlio nos é muito importante, uma vez que
origem da cavalaria Cristã, das obrigações
nos direciona para a ideia de que O Livro da
dos cavaleiros, de como deve ser o processo
Ordem de Cavalaria pode se tratar da
de avaliação de um escudeiro para saber se
teorização a qual Lúlio se refere, e da sua
ele possui características necessárias para
preocupação
ingressar na ordem, de como seria o
conhecimento adquirido a respeito de um
processo de recebimento da ordem de
fazer não antes descrito em livros.
em
sistematizar
o
cavalaria, do significado que cada arma e
Esta situação gera um conflito na
vestimenta do cavaleiro possui em relação à
narrativa, que se resolve com a entrega de
simbologia da Igreja Cristã e das virtudes, da
um livro, por parte do velho ermitão, ao
honra que deveria ser feita ao cavaleiro, não
jovem escudeiro. Este livro deveria ser lido
eram mais elementos de conhecimento dos
pelo escudeiro e levado por ele para o reino,
cavaleiros em geral.
para ser distribuído a todos os outros
Isso ocorria, segundo Lúlio, porque a
cavaleiros. Este livro continha todas as
arte da cavalaria não era ensinada em
informações
escolas ou em livros como as outras
cavaleiro. Este era o próprio Livro da ordem
ciências:
de cavalaria, que se apresenta nos capítulos
Ora, se os clérigos têm mestre e estão em escolas para serem bons, e se há tantas ciências que se encontram em forma de doutrina e letras, injúria
necessárias
ao
ofício
do
seguintes. Sendo assim, o livro que lemos seria o mesmo livro a que o jovem escudeiro
muito grande é feita à Ordem de Cavalaria porque
estaria lendo durante o processo. As paginas
não é uma ciência ensinada pelas letras e por não
de todo o corpo do livro fazem parte,
ter escolas como têm as outras ciências. Logo, por isso, aquele que compõe este livro suplica ao
indiretamente, da história narrativa, uma vez
nobre rei e à toda sua corte que está reunida pela
que Lúlio nos conta que o escudeiro leu o
honra da Cavalaria, que seja satisfeita e restituída
livro todo e agradeceu imensamente ao
a honrada Ordem de Cavalaria, que é agradável a Deus (LÚLIO, 2000, p.21)
ermitão por ensinar a ele os ofícios da ordem de cavalaria:
440
Paula Carolina Teixeira Marroni
O cavaleiro entregou o livro ao escudeiro; e
defender. A primeira parte é o começo de
quando o escudeiro acabou de ler, entendeu que o
Cavalaria; a segunda, do ofício de Cavalaria; a
cavaleiro é um eleito entre mil homens para haver
terceira, do exame que convém que seja feito ao
o mais nobre ofício de todos, e tendo então
escudeiro com vontade de entrar na Ordem de
entendido a regra e a Ordem de Cavalaria, pensou
Cavalaria; a quarta, da maneira segundo a qual
consigo um pouco e disse: - Ah, Senhor Deus!
deve ser armado o cavaleiro; a quinta, do que
Bendito sejais Vós, que me haveis conduzido em
significam as armas do cavaleiro; a sexta é dos
lugar e em tempo para que eu tenha conhecimento
costumes que pertencem ao cavaleiro; a sétima, da
de Cavalaria, a qual foi longo tempo desejada por
honra que convém que seja feita ao cavaleiro.
mim sem que soubesse a nobreza de sua Ordem
(LÚLIO, 2000, p.3)
bem a honra em que Deus pôs todos aqueles que
Segundo suas palavras, que são
são da Ordem de Cavalaria (LÚLIO, 2000, p.11)
Observamos que, de acordo com a narrativa constante no Prólogo, após entrar em contato com o conhecimento sintetizado a respeito do fazer da cavalaria, o escudeiro, que aspirava a cavalaria, passou a conhecer a ordem de uma forma mais profunda que antes de lê-lo. O conteúdo da obra, pelo qual Lúlio faz uso da intertextualidade, é o próprio conteúdo
dos
sete
capítulos
do
livro.
Justificando a existência de sete astros no céu para que existam sete capítulos, Lúlio constrói sua teoria enfatizando os elementos que considera importantes para a ação ou o oficio da cavalaria. Lembramos que para Jerkovic e De Boni (2012), os sete astros conhecidos no século XIII eram o Saturno, Júpiter, Marte, Vênus, Mercúrio, o Sol e a Lua. Vejamos as palavras de Lúlio: Por significação dos VII planetas, que são corpos
apresentadas logo após a ação de graças e oferenda do livro a Deus, sua teoria é dividida em sete partes e estas devem, ao final, provar como os cavaleiros possuem honra e senhorio para governar as pessoas e as defender. Conforme Lúlio apresenta sua teoria nos sete capítulos, compreendemos a importância da fé Cristã, da virtude, da honra e da nobreza no
ofício da cavalaria.
Percebemos também, no decorrer da obra, como
Lúlio
salienta
a
importância
do
cavaleiro possuir a fé cristã como foco principal, mas não precisar deixar de realizar suas atividades de cavaleiro, como jogos e torneios. Essa questão da vida cotidiana do cavaleiro,
que
inclui
relações
amorosas,
jogos, o
torneios
diferencia
e do
pensamento de outros autores que também,
celestiais e governam e ordenam os corpos
segundo Flori (2005), teorizaram a respeito
terrenais, dividimos este Livro de Cavalaria em VII
da
partes, para demonstrar que os cavaleiros têm honra e senhorio sobre o povo para o ordenar e
cavalaria.
sacralização
Para da
este, cavalaria
a
crescente medieval,
441
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
principalmente após o século XI, influenciou
mais como monge do que como um
a elaboração de tratados a respeito da
cavaleiro.
relação entre a ética cristã e a cavalaria
diferença afirmando que Lúlio evidencia uma
medieval. O grupo, denominado por Flori
perspectiva nova, a de um cavaleiro que
(2005)
era
possui todas as características de força e
formado por Bernardo de Claraval (1090 –
coragem mas que sabe que deve dedicar-se
1153), Jean de Salisbury (1115 – 1180) e
à defesa da fé cristã em primeiro lugar. Não
Raimundo Lúlio (1232 – 1316).
precisa afastar-se dos torneios, justas, nem
de
“teóricos
da
cavalaria”,
Para ele, quando se refere aos “teóricos
da
cavalaria”,
afirma-o
por
Costa
(2000)
salienta
esta
mesmo das relações amorosas, mas deve fazê-lo pautado em preceitos da fé cristã.
considerar que este grupo foi responsável
É possível perceber a preocupação o
por tentar inserir nos ideais cavaleirescos,
autor com a escrita dos saberes relativos à
elementos da doutrina cristã. Pautado nas
cavalaria como forma de receber a aceitação
teorias de Flori (2005), Starling (2009) afirma
da sociedade. No século XIII, período de
que os teóricos da cavalaria buscavam
renascimento urbano e de estabelecimento
ordenar as ações dos cavaleiros através da
de novas relações entre os seres humanos,
criação de um estilo de vida novo, onde os
a sociedade precisava de modelos a serem
cavaleiros poderiam se reconhecer através
reproduzidos
de um objetivo comum, de forma que a ética
valorização dos afazeres cotidianos. Este
cristã dentro da cavalaria auxiliava no
período
controle das ações cavaleirescas.
transformações na forma de pensar do
foi
e um
buscava período
também marcado
a por
Entretanto, mesmo sendo considerado
homem medieval que, segundo Oliveira
o terceiro teórico da cavalaria por Flori
(2011), aos poucos, ia libertando-se de uma
(2005), cronologicamente atrás de Bernardo
visão de mundo pautado somente nas
de Claraval e de Jean de Salisbury, que
explicações divinas.
escreveram, respectivamente, Elogio à nova
Os debates que conferiam ao homem
Milícia e Policráticos, Lúlio se difere dos
a unidade e individualidade da forma de
demais, uma vez que os dois primeiros
pensar, travados principalmente por Tomás
tratavam do cavaleiro em seu aspecto
de Aquino (1225 – 1274) e Boaventura de
missionário e cristão, comportando-se muito
Bagnoregio (1221 – 1274), contemporâneos
442
Paula Carolina Teixeira Marroni
a Lúlio, mostram que o período em quem
não é ensinada nem em escolas e nem pelos
Lúlio vivia e escrevia suas obras é marcado
livros escritos, o que, para ele, faz com que
pela preocupação com sistematizações de
seja tratada como prática inferior a outras
saberes
práticas ensinadas em escolas e em livros.
e
reflexões
a
respeito
das
necessidades da sociedade. Lúlio
tentou
responder
Esta preocupação reflete a ambiência de que a
estas
Lúlio fez parte, o ocidente medieval no
necessidades por meio da sistematização
século
XIII,
e
a
preocupação
com
a
dos saberes que conhecia a respeito da vida
sistematização do conhecimento a respeito
do cavaleiro. Percebemos que o autor
dos saberes e fazeres do homem medieval.
preocupa-se com uma ocupação social que
Referências: LÚLIO, Raimundo. A Doutrina para Crianças (1274 – 1276). Tradução: Prof. Dr. Ricardo da Costa e Grupo de Pesquisas Medievais UFES III. Vitória, Marfil, 2010. LÚLIO, Raimundo. O livro da Ordem de Cavalaria. Trad. Ricardo da Costa. São Paulo: Giordano, Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull), 2000. LÚLIO, Raimundo. O Livro das Bestas. Trad. Ricardo da Costa. São Paulo: Editora Escala, 2006. LÚLIO, Raimundo. Vida Coetania. Tradução: Luísa Costa Gomes. Disponível em: http://www.ramonllull.net/sw_studies/l_br/t_luisacosta.htm Acesso em: 25 jun 2013 CASTRO, Hebe. História Social. In: CARDOSO, Ciro.Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. (orgs).
Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. COSTA, Ricardo da. O Livro da Ordem de Cavalaria. Tradução, notas, prefácio, autor e obra, cronologia de obras. São Paulo: Giordano, Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull), 2000 COSTA, Ricardo da. Ramon Llull (1232-1316) e o modelo cavaleiresco ibérico: o Libro del Orden de Caballería. Revista Mediaevalia. Textos e Estudos 11-12 (1997), p. 231-252. Gabinete de Filosofia Medieval da Faculdade de Letras do Porto e Faculdade de Teologia da Universidade
Católica
Portuguesa
(ISSN
0872-0991).
Disponível
em:
443
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
http://www.ricardocosta.com/artigo/ramon-llull-1232-1316-e-o-modelo-cavaleiresco-iberico-olibro-del-orden-de-caballeria Acesso em 20 abr 2012 ECO, Umberto. A busca da língua perfeita. Tradução de Antonio. Angonese. Bauru: Edusc, 2001, 458 pp. FLORI, Jean. A Cavalaria. A origem dos nobres guerreiros da Idade Média. Trad. Eni Tenório dos Santos. São Paulo, Madras, 2005. JERKOVIC, Jerônimo. Notas. In: BOAVENTURA, São Cardeal (1217 – 1274). O itinerário da
mente para Deus. Tradução e notas de Jerônimo Jerkovic e Luis Alberto de Boni; prefácio de Alessandro Ghisalberti. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012 OLIVEIRA, Terezinha. Os mendicantes e o ensino na universidade medieval: Boaventura e Tomás de Aquino Anais Associação Nacional de História – ANPUH XXIV Simpósio Nacional De História, São Leopoldo, 2007. OLIVEIRA, Terezinha. Ensino e debate na universidade parisiense do século XIII: Tomás de Aquino e Boaventura de Bagnoregio. Prefácio de Jean Lauand. Maringá: Eduem, 2012. STARLING, B. P. . A ética cristã e o ideal cavaeiresco no Livro da Ordem de Cavalaria de Raimundo Lúio. Revista tempo de conquista, v. n. 6, p. 01-16, 2009 ZIERER, Adriana. O modelo Pedagógico de Cavaleiro segundo Ramon Llull. In: OLIVEIRA, T. e MACHADO, M. C. G. (Org.). Educação na Historia. São Luiz, MA. Editora UEMA, 2008.
444
CULTURA ALIMENTAR E SAÚDE PREVENTIVA NA CATALUNHA DO SÉCULO XIII: AS REGRAS DE SAÚDE A JAIME II DE ARNAU DE VILANOVA (1308) Renato Toledo Silva Amatuzzi 1 Resumo: Na região da Catalunha no século XIII, destacou-se a figura de um importante médico/físico Medieval, Arnaldo de Vilanova. Famoso por tratar a saúde de reis e papas, este homem das ciências foi precursor da medicina prática e preventiva. Neste trabalho, será analisada a obra “As Regras de Saúde a Jaime II”, escrita em 1308, destinada ao rei de Aragão, Jaime II. Neste pequeno regimento, disposto ao longo de 18 capítulos, minha análise delimitara-se aos oito capítulos dedicados exclusivamente ao alimento, assim como sua função preventiva e nutricional aliadas ao prazer de degustar. Esta fonte revela ao leitor a riqueza do cardápio medieval catalão, e através dele é possível explorar as transformações culturais e sociais que aconteciam em tempos de grande estabilidade na Europa da Baixa Idade Média. Palavras-Chave: Arnaldo de Vilanova; História da Alimentação; Saúde Preventiva.
1
Mestrando em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, orientado pelo Prof. Dr. Antônio Paulo Benatte
(UEPG) e co-orientado pela Prof. Marcella Lopes Guimarães (UFPR). Professor da rede pública de ensino e especialista em História Antiga e Medieval pela ITECNE (Curitiba).
445
Renato Toledo Silva Amatuzzi “Apenas o cidadão comum se contenta com o que o território fornece. A mesa do príncipe deve oferecer de tudo e suscitar maravilha somente ao
Al-Andaluz, Córdoba e Toledo tornaram-se famosos pela preservação, tradução e
se vê-la.” (Cassiodoro, século VI d.C)
difusão de textos canônicos da medicina
O objetivo deste trabalho é identificar
arábica na Península Ibérica. Nos centros
a relação estabelecida entre dietética,
catalães
saúde preventiva e culinária na medicina
idiomas: o latim, na literatura teológica e
medieval. Como fonte, foi utilizado o
filosófica, e o árabe, predominante nos
regimento de saúde catalão “As Regras de
“saberes da natureza” (Goldfarb, 1991: 34).
Saúde a Jaime II” (1308), traduzido
É digno de nota, também, o número de
recentemente para o português, da autoria
intelectuais dedicados a traduzir, preservar,
do físico/médico Arnaldo de Vilanova. Este
compreender e, inclusive, aplicar ao próprio
conjunto de regras possui ao todo dezoito
ofício obras clássicas da medicina islâmica.
capítulos, no qual oito são dedicados
Autores como Qusta Ibn Luqa (820-912),
exclusivamente
Al-kindi (801-8873), Avicena (980-1037) e
para
os
alimentos
e
de
ensino
utilizavam-se
dois
bebidas. O regimento era destinado ao rei
Averróis
Jaime II de Aragão, que na época, solicitou
traduzidos durante os séculos XII e XIV,
os serviços do médico para o tratamento de
tornaram-se
sua hemorroida. Devido o caráter universal
médica.
das regras, advertências e sugestões, que variam
desde
banhos,
equilíbrio
de
(1126-1198), frequentes
largamente na
literatura
Exemplo de tradutor e pensador que encontraremos nesse contexto é o médico
humores até sugestões de cardápio, as
catalão
regras de saúde revelam ao leitor toda a
iniciado seus estudos na Espanha, seguiu
complexidade
depois para Salerno (Itália), transferindo-se
e
riqueza
salutar
e
alimentícia do universo catalão medieval. A Catalunha no século XIII era uma região
espanhola
rica
e
de
grande
Arnaldo
de
Vilanova.
Tendo
posteriormente para Montepelier (França), onde deu aulas, vindo a residir, por fim, nas cortes
onde
seus
serviços
eram
diversidade cultural. Ali coexistiam três
convocados, muitas vezes para tratar da
culturas distintas: a judaica, a cristã e a
saúde de papas e reis. Arnaldo traduziu
islâmica. O convívio desses três povos por
vários textos originais árabes para o latim,
aproximadamente sete séculos foi talvez o
o
principal responsável por uma intensa
enriquecer sua formação como médico
produção intelectual, inclusive no campo do
prático (Carreras i Artau, 1954: 12). O
saber médico. Os califados mulçumanos de
método
que
certamente
prático,
que
contribuiu
para
valorizava
446
a
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
experiência
como
indicações de grandes nomes da época,
habilidades essenciais do bom médico, foi
colocaram-no a serviço do rei Jaime II de
uma corrente médica que ganhou prestígio
Aragão, que lhe confiou vários partos de
entre
como
membros de sua família, a começar pelos
consequência do encontro entre a medicina
da rainha, Dona Branca (1280-1310), além
popular europeia e a atividade médica
de colocar em suas mãos, também, a
monástica (Crosseti, 2009: 42).
saúde de seu sogro, Carlos II, rei de
os
e
a
séculos
observação
XII
e
XIII,
Arnau é um dos precursores de uma
Nápoles.
medicina que privilegia a experiência e a
Arnau se responsabilizou por fazer
razão como instrumentos importantes no
um regimento de saúde 2 especificamente
tratamento salutar e na cura. Integrando a
para o rei, assim como havia feito outros
anamnese do paciente, incorpora a seus
para o Papa Clemente IV e para o exército
estudos o diálogo com diversos campos do
do reino de Aragão durante o Cerco de
conhecimento,
Almería
sobretudo
as
Ciências
(1308).
Este
regimento
foi
Ocultas, a Astrologia, a Quiromancia e a
traduzido para o romanesco pelo também
Dietética.
intelectual
catalão
Sariera.
Neste
Apesar de recorrer frequentemente
documento medieval é possível perceber
aos mais diferentes e inusitados saberes, a
as diversas características que marcaram a
medicina medieval mantém forte vínculo
Idade Média central, tanto nos saberes
com
médicos quanto na cultura alimentar.
a
Teologia,
responsável
pelos
cuidados com a alma, que, habitando o
Logo no prólogo de “As Regras de
corpo, é no entanto eterna e objeto dos
Saúde a Jaime II”, Sariera ressalta a
cuidados de Deus. Deste modo, nas
relação
palavras de Carreras i Artau, convém ter
medicina e o ofício da cura:
sempre presente que “o médico é um servo
entre
“Como
Deus
Deus,
conhecimento,
Todo-Poderoso,
cheio
de
misericórdia, criou o homem, que não tem
de Deus, devendo invocar a Ele quando
nenhuma possibilidade de fazer algo nem
não houver mais solução plausível ao
qualquer razão a não ser pelo poder, e o poder
alcance da Ciência e da Razão” (Carreras i
não é nada sem a saúde, e a saúde não é nada sem a igualdade de compleição, e a igualdade de
Artau, 1947).
compleição não é nada sem o temperamento dos
Arnau foi um grande nome da medicina medieval, favorito entre reis,
2
papas e nobres durante toda sua vida. Sua
destinadas a manter a saúde e a prevenir enfermidades –
ampla experiência médica, bem como
de um indivíduo, de um determinado grupo, de uma
O regimento de saúde era um conjunto de prescrições
comunidade, etc.
447
Renato Toledo Silva Amatuzzi humores, por isso, Nosso Senhor Deus, ao criar o homem, quis amá-lo e inspirá-lo com a graça acima de todos os animais, e o fez à Sua
o
documento
pudesse
tornar-se
universal.
que
Embora as orientações referentes à
pudesse ter o temperamento dos humores para a
nutrição só apareçam no capítulo VIII, ao
semelhança,
dando-lhe
remédio
para
conservação da saúde iluminada pelo desejo dos sábios médicos, e, dentre os demais filósofos e
longo
dos
capítulos
introdutórios
a
mestres da Medicina, o mui sábio Arnau de
alimentação correta é sempre mencionada
Vilanova, acima de todos os mestres, pois
na
conhece e ordena quantas maneiras a saúde é conservada.” (Sariera, página 99-101).
Tentarei, neste trabalho, analisar as relações que Arnau de Vilanova estabelece entre a alimentação e a saúde preventiva, ambas envoltas pela Teoria dos Humores. O
Regimento
de
Saúde
possui
dezoito capítulos e, na versão original, 29 páginas. Utilizarei a versão de 1947, da Editora Barcino, transcrita e prefaciada por Joaquim
Carreras
i
Artau.
Ali
encontraremos, ao longo de cem páginas, um
que
compêndio
instruções,
de
dirigidas
advertências ao
rei,
sobre
e a
sua
relação
com
as
atividades
cotidianas, como o repouso, os banhos e os exercícios físicos, sendo indicadas e proibidas diferentes comidas em cada uma dessas situações. No capítulo IV destacase a importância de bem se alimentar, enfatizando-se as medidas
e porções
ideais, assim como os períodos do dia e o que beber durante as refeições para melhor aceitação do alimento pelo corpo. Não somente a mastigação e a apreciação do sabor são consideradas importantes, mas também a bebida, sobretudo o vinho e o
pigmentum. 3 IV.VII- Do beber: (...) A esse respeito, deve-se
importância da manutenção da saúde e o
evitar que o vinho seja rascante, ou ardente, ou
equilíbrio dos humores corporais, por meio
espesso e doce. No verão deve-se preferir o vinho branco, e no inverno o rosado e tinto. Em
de exercícios, banhos, descanso, a pureza
relação à substancia, deve ser sempre clara e
do ar e, principalmente, a dietética.
suave, sabor simples,, agradável e de odor
As prescrições dietéticas de Arnau
suavíssimos (...) Assim, convém sempre evitar
são sua resposta a um pedido do rei Jaime
vinhos mesclados com gesso ou cal, e aqueles
II de Aragão, que sofria de hemorroidas. O regime, muito detalhado, foi tão bem aceito que passou a ser divulgado por todo o
3
O consumo anual de vinho e pigmentum – um tipo de
vinho suavizado com mel, pimenta e canela – chegava a ultrapassar os 270 litros per capita entre as camadas
reino de Aragão e, em seguida, pelo
populares; a elite palaciana consumia, em média, o dobro
território catalão, omitindo-se, porém, o
(Cortonesi, 2009: 417). Esses números elevados se
capítulo XVIII - “Das hemorroidas”, para
explicam, parcialmente, pela má qualidade da água potável da época, que induzia os habitantes das cidades a bebê-la sempre misturada ao vinho e assemelhados.
448
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo que são conservados em vasilhas e fechados
não tiver manchada, a água é saudável (Arnaldo
com pez.” (Vilanova, Pág ?, grifo nosso).
de Vilanova, 1992, pág. 132-133)
Embora o vinho não fosse restrito
Além de perseguir o equilíbrio de
somente à nobreza, uma série de regras
humores e a saúde, a preocupação com a
cercava o seu consumo, a começar pela
alimentação e com a qualidade da bebida
qualidade das uvas, depois as técnicas de
tinha outro objetivo. Ao contrário do que
retirar
pela
afirma o senso comum contemporâneo, o
fermentação, armazenagem e as adegas
homem medieval não via com bons olhos a
onde seria armazenado. Na Itália, as
figura do glutão. O homem extremamente
regiões
Gênova
gordo afrontava os padrões da estética
destacavam-se pela alta qualidade da
medieval, habitava um universo moral
produção vinícola, e na França eram
cheio de culpa, era inapto para a guerra e a
notáveis as regiões de Champagne e
batalha,
Bordeaux. Por mais distante que possa
considerado grotesco (gros).
seu
da
suco,
passando
Borgonha
e
tinha
pouca
mobilidade,
era
parecer a Idade Média, esses mesmos
Ao longo do regimento percebe-se a
critérios de escolha de um bom vinho –
preocupação constante do médico com a
incluindo a região de sua produção - são
obesidade, contrariando a crença moderna
observados até hoje pelos conhecedores
de que o homem medieval valorizava a
dessa antiquíssima bebida.
obesidade e as formas desproporcionais
Ainda sobre o que se beber, em um
como símbolo de poder e riqueza:
segundo Regimento de Saúde, o Regimen
“a comida que é recebida sem o desejo da natureza é conduzida pelo ventre e pelos outros
Castra Sequentium (1310), Arnau destaca
membros como um fardo e se corrompe mais
a importância de se identificar a água
que se transforma, já que, quando é recebida,
potável, sugerindo, para tanto, técnicas a
não há esforço do corpo em alterar sua substância em caso haja, o faz muito tibiamente.”
serem adotadas durante o colhimento de
(Vilanova, Pág. 117).
cisternas e de poços artesianos: Se for numa cisterna, não utilize a água, mas, se
Mais adiante, Vilanova alerta sobre
for num poço, você deve esvaziá-lo e drená-lo
os perigos do excesso de refeições diárias,
primeiro. Se você não pode fazer tal exame,
com consequências tanto biológicas quanto
então umedeça completamente um pano fino e
religiosas, pois a gula é um dos pecados
de linho branco na água e dobre-o livremente sem apertar; após dobrá-lo, deve amarrá-lo com
capitais e a Igreja Católica estimulava
uma corda, suspendê-lo ao sol ou no ar, e ,
periodicamente
quando
calendário litúrgico. Além do mais, comer
secar,
desdobrá-lo.
Se
aparecer
manchas nele, independentemente da cor, com certeza a água deve estar contaminada, mas, se
em
excesso
o era
jejum, um
conforme
o
“comportamento
449
Renato Toledo Silva Amatuzzi
tipicamente pagão” (Freedman, 2009: 164-
recomendações de Arnau de Vilanova
165), o que era repudiado pela instituição
acima citadas.
católica:
“Por
frequentemente
isso, ficam
os
glutões
doentes
e
Os capítulos VIII ao XVII das Regras
não
de Saúde dedicam-se especialmente à
chegam a uma velhice natural” (Vilanova,
alimentação; não apenas ao ato de comer,
Pág. 118-119).
mas também às técnicas, condimentos,
Novamente o autor volta a advertir
modos
de
preparo,
temperos,
contra a obesidade, um “excesso de
armazenamento e mesclas de carnes,
superfluidades e inflamação entre a carne e
massas,
a pele” (Pág. 115), alertando também sobre
Encontramos então, a seguinte divisão nos
os perigos do excesso de peso:
capítulos: VIII – Grãos; IX – Legumes; X –
“(...) os que se alimentam de poucas refeições chegam a uma velhice avançada e saudável, enquanto que os que se afanam a engolir uma
frutas,
legumes
e
bebidas.
Frutas; XI – Hortaliças; XII – Raízes; XIII – Carnes; XIV – Derivados de animais; XV –
miríade de refeições, ou bem morrerão antes da
Peixes; XVI – Condimentos e por último o
velhice, ou bem sua velhice será prematura e
capítulo XVII – Do ato de beber.
imundíssima,
como
acontece,
muito
frequentemente, com os habitantes do norte.”
Dentro de cada capítulo há uma
(Vilanova, Pág. 120).
série de subdivisões, onde se detalham os
Circulavam pelas cidades, nessa
tipos e espécies frutíferas, tipos de carnes,
época, as Ordens Mendicantes, entre as
legumes etc., o que nos proporciona uma
quais se destacava a franciscana, que
visão mais ampla da riqueza e variedade
defendia um estilo de vida frugal, ascético e
alimentar, além das sofisticadas técnicas
moderado. Seus preceitos constituíam uma
de preparo e combinações da Idade Média.
crítica à secularização sofrida pelo Clero
Se verdadeira a hipótese de que as
com o enriquecimento das abadias e
prescrições dietéticas de Arnau guiavam-se
monastérios
e
na
pela disponibilidade alimentícia do reino de
alimentação,
que,
outrora
moderada,
Aragão e da Catalunha, as subdivisões
excessiva.
(Vigarello,
capitulares de “As Regras de Saúde a
tornara-se
com
agora
mudanças
2012: 41).
Jaime II” oferecem ao historiador um
Desta forma, no século XIII as
panorama detalhado da cultura alimentar e
pressões sobre o corpo obeso provêm
da arte culinária medieval, se levarmos em
tanto do campo moral-religioso quanto das
conta que ao ato de comer associa-se todo
exigências
saúde
um conjunto de rituais, normas, hierarquias
preventiva – o que se evidencia nas
e aparatos técnicos que tornaram os
da
cavalaria
e
da
450
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
estudos dos hábitos à mesa uma eficaz
comidas; 8- do leitão; 9- do assado com
forma de analisar o comportamento do
fígado de porco e especiarias; 10- das
homem de outrora (Montanari, 2008: 386).
carnes brancas; 11- do coração e de outros
A cultura alimentar medieval, assim
membros. 12- do fígado; 13- do fígado de
como em todos os períodos históricos,
cabrito; 14- do cérebro do cabrito; 15- do
transforma o alimento num signo de
coração do cervo; 16- do ventre da galinha
distinção social. Na Idade Média não seria
e do ganso; 17- das orelhas, da cabeça e
diferente: com o surgimento de uma
dos pés; 18- dos pulmões e 19- dos peitos.
burguesia enriquecida, manifesta-se no
Da Idade Média até a modernidade
interior das cidades a necessidade de se
sempre houve leis que limitavam a caça
estabelecerem
somente
distinções
–
em
também relação
à às
mesa
–
origens
aos
reservando
a
membros
da
carne
determinados
de
nobreza,
campesinas dos novos senhores; uma
animais para o consumo de um grupo
destas maneiras foi a culinária (Cortonesi,
seleto da população. Além do mais, a caça
1998: 410).
era considerada um nobilíssimo esporte e
O alimento mais nobre na dieta dos
uma atividade de lazer para os nobres.
nobres, ricos e reis é a carne, mas não
O grande destaque que os homens
qualquer carne, e sim a carne vermelha, de
desse tempo conferem à carne deve-se a
carneiro, cordeiro, cervo e corça. A seguir
mítica de que esta foi por muito tempo
vêm as carnes brancas - de faisão, ganso,
cercada. Assada, temperada, sangrenta,
capão - e alguns peixes, sendo esta última
suculenta e farta, a carne é, desde muito
limitada
tempo,
às
datas
religiosas.
Arnau
um
símbolo
de
poder,
força,
subdivide o capítulo XIII do seu regimento
riqueza, potência sexual, energia vital e
em 19 tópicos: 1- das carnes que podem
uma
ser utilizadas em todas as épocas do ano;
alegria - a de comê-la fartamente ao redor
2- das carnes mais convenientes no verão;
da mesa. Numa sociedade dirigida por
3- das carnes mais convenientes no
guerreiros e cavalheiros, a carne ajuda a
inverno; 4- do cervo e da corça; 5- do
reforçar a lenda que relaciona sua ingestão
galeirão-comum e dos patos; 6- das aves
à força física e aos poderes duradouros
domésticas; 7- das aves domésticas, de
(Riera-Melis, 2009: 407).
das
principais
manifestações
de
como se devem preparar as outras carnes,
Ao longo das Regras de Saúde,
quando devem estar mortas antes que
Arnau também fala sobre os grãos –
sejam
capítulo VIII – estes, por sua vez, são de
comidas,
e
como
devem
ser
451
Renato Toledo Silva Amatuzzi fundamental
importância
na
hora
de
Percebe-se aqui quão importante é o
preparar os pães, que tem um capítulo
papel do cozinheiro, pois ele possui a
dedicado somente a eles. Os grãos devem
mesma sistemática do saber médico, além
ser colhidos frescos da terra e são de
do domínio da técnica, do preparo e da
grande proveito a cevada, o centeio, o
ideia de que o prazer e a saúde devem
milho, a aveia, o joio, a sêmola, o amido e
caminhar juntos (Montanari, 2013:13-14).
a aletria (Vilanova, Pág. 134-139). Também
No capítulo IX o físico catalão dá
neste caso a distinção social se faz
destaque a grãos como o feijão e o grão-
presente: o pão consumido pela nobreza é
de-bico,
o pão branco, com sal, a cuja massa
técnicas
misturam-se legumes, milhete, cevada,
primeiro subitem do capítulo ensina a
ervilhas e pedaços de carne, para que fique
preparar estes grãos para que fiquem mais
mais saboroso e nutritivo.
saborosos e sejam melhor aproveitados.
A
prescrição
referente
ao
geral: quando forem preparados os legumes, isto é, sem carne, deve-se fritar uma cebola redonda
são
e branca, cortada bem picadinha e frita com muito azeite doce, e só depois acrescentar o legume. No fim, deve-se colocar leite de
prisão de ventre e o ressecamento do bolo mortais
de
no
são os menos danosos. Esta deve ser a regra
dadas ao rei para ajudá-lo a combater a inimigos
temperos;
dentre esses três, os feijões redondos e brancos,
quente ou duro (Vilanova, pág. 138-139).
fecal,
e
feijões redondos, os grãos-de-bico e as favas, e
muita farinha, não devendo ser consumido provavelmente,
preparo
suas
legumes menos danosos aos corpos, estão os
com pouca levedura, pouco sal e sem
indicações,
de
sobre
IX.I – Dos feijões e dos grãos-de-bico: Dentre os
pão
estabelece que o mesmo seja fabricado
Estas
estendendo-se
amêndoas. Isso é especialmente necessário
suas
caso se comam favas, sobretudo favas frescas.
hemorroidas. Arnau recomenda, para isso,
(Vilanova, pág.139).
a substituição da levedura – mais pesada e
Encontramos
ali,
também,
a
fermentada – pela cevada (Capítulo VIII,
recomendação de se ingerir caldo do feijão
subitem VI):
e grão-de-bico todas as noites, pois isso
Mais proveitosa ainda é a comida feita de
“limpa as veias chamadas capilares (as
cevada, cozida até que se quebre, e que depois
quais estão no fígado e nas vias urinárias).”
seja lavada com muita água fria e cozida e amassada com muito leite de amêndoas até que
(Vilanova, pág.139). A ingestão desses
seja indistintamente encorpada. Tal comida é
caldos
muito conveniente àqueles que têm hemorroidas
especialmente os órgãos vitais, e o prepara
pulsantes. (Vilanova, pág. 136).
aquece
o
corpo
por
dentro,
para dormir, além de ser “a água louvada
pelos sábios” (pág.139).
452
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Adiante, Arnau passa a discorrer
ameixas e cerejas, figos e uvas, pêssegos
sobre as frutas, o capítulo mais longo de
e damascos, pepinos, melões e melancias,
seu Regime, com 37 subitens sobre uma
pêssegos e romãs doces, e os frutos das
ampla variedade frutífera, assim como suas
sorvas com nêsperas não podem ser
combinações, limpeza, escolhas, mesclas
comidos juntos, pois causam prisão de
com outros alimentos e, principalmente, os
ventre, flatulência, febres, sudorese e
cuidados da ingestão, pois como adverte,
aumentam a cólera.
“não é proveitoso ao corpo temperado
O Regime indica, também, frutas
substituir a comida pela fruta, a não ser
capazes de amenizar as altas temperaturas
medicinalmente” (Vilanova, pág. 141).
do verão quente e seco da Catalunha:
O Regimento estabelece, também, agora no capítulo X, regras que o leitor
pêssegos,
ser
consumidas
laranjas,
Como já observamos acima, na
e
Idade Média a ideia de boa alimentação
conhecimento
estava intimamente associada à ingestão
devido sobre sua natureza, maduras, sem
de altas quantidades de carne; consumiam-
vermes; não se deve comer diversos tipos
se, sobretudo proteínas, em detrimento das
de
é
frutas, legumes, hortaliças e verduras.
seu
Devido ao desconhecimento das vitaminas,
aspecto. Consumidas em excesso, sem
dos nutrientes e dos seus efeitos sobre o
observação
corpo
ordenadamente,
fruta
ao
indispensável
com
o
mesmo observar
dessas
moderada
peras,
nêsperas, etc.
deve observar antes de ingerir frutas. Elas devem
cerejas,
tempo,
e
sempre
regras,
o
as
frutas
(as
propriedades
alimentos
exemplificado abaixo no caso das amoras:
recente), não havia como estabelecer
X.IV- Das amoras: Exceptuando as amoras, as bem maduras a ponta de estarem negras, porque
uma
descoberta
dos
causarão ao corpo sérios danos, como é
quais não devem ser consumidas até que sejam
são
químicas
muito
equivalências, e as frutas, por isso, eram indicadas ou banidas tendo em vista,
são alimentos de aranhas, sujam a apodrecem o
exclusivamente, o bom funcionamento do
sangue,
intestino.
engendram
e
multiplicam
bubos,
carbúnculos e também bubos negros. Por isso, nas regiões quentes e úmidas, no ano de época
Comer e beber exigem, para Arnau,
a
a observância de um conjunto de regras
pestilência, caso o fluxo do ventre não seja
destinadas a fazer com que o corpo
de
amoras
reinas
a
epidemia,
isto
é,
embargado (Vilanova, pág.143, grifo nosso).
Nos próximos subitens do capítulo X Arnau indica as combinações danosas:
aproveite ao máximo o alimento, estabilize os humores e livre-se das pestilências. Vão nessa direção as advertências sobre se
453
Renato Toledo Silva Amatuzzi alimentar
além
daquilo
que
o
corpo
consegue suportar:
videiras, amoras, ameixas, cerejas, sêmola, pães
Capítulo IV. I: Qual hora é conveniente para comer: Uma coisa é o corpo que sente a necessidade de comer, pois manifestadamente
brancos
com
grãos,
legumes,
hortaliças, vinhos brancos, tintos e rosados, cebolas,
cenouras,
carnes
de
leitão,
tem fome. Por isso, é mais necessário àqueles
cabrito, cervo, corça, galeirão, ganso,
que têm o corpo temperado e abundante de
peixes, enfim, uma grande variedade de
sangue que somente comam quando tem fome, já que a natureza do corpo não recebe o que não
alimentos das mais diversas categorias
deseja, pelo contrário, a recusa e, por isso, a
compunha
comida que é recebida sem o desejo da natureza
possibilidades de cardápios, combinações
é conduzida pelo ventre e pelos outros membros como um fardo e se corrompe mais do que se
e
uma
técnicas
mesa de
com
múltiplas
armazenamento,
transforma (...)”. (Vilanova, Pág.116)
evidenciando a riqueza alimentar da Idade
Arnau também adverte sobre o ato
Média central, que se afastava dos longos
de se alimentar apressadamente, contra o
tempos de penúria dos séculos X e XI e
qual apresenta dois bons motivos: quando
experimentava um período de estabilidade
mastigado
e consolidação das instituições.
devagar,
o
alimento
será
corretamente triturado e não provocará
As Regras de Saúde a Jaime II,
“injurias a natureza” (Vilanova, pág 117),
como vimos, nada mais é do que uma
nem terá como efeito “inflamar o ventre”
coleção
(pág.118);
que
preservar a saúde e atingir uma velhice
devoram apressadamente o alimento, sem
saudável. As regras pretendem propiciar ao
degustar, apreciar e mastigar com calma,
rei Jaime II uma refeição rica, variada e
assemelham-se à imagem de “loucos”
saudável, que previna doenças, equilibre
(Pág.118) e de pessoas que se comportam
os humores, aqueça os órgãos e assegure
“de modo indiscreto” (pág.118)
longa vida àquele que rege e governa o
além
Pêssegos, nozes,
avelãs,
disso,
aqueles
melancias, figos
secos,
melões, uvas
de
de
prescrições
destinadas
a
seu povo, pois a saúde do rei é a esperança de saúde do povo.
Referências: ARNAU DE VILANOVA. Obres catalanes. Volum II: Escrits Médics (org. Pe. Miquel Batllori, S. I.). Barcelona: Editorial Barcino, 1947. ALFONSO-GOLDFARB, A. M;PERASSOLLO, M.A.P.: O Universo cultural e científico
valenciano durante os séculos XIII e XIV e a contextualização da obra de Arnaldo de
454
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Vilanova. In: História, Ciência, Sáude – Manguinhos, Vol: II (3): 32-43, Nov. 1995 – Fev.1996. CARRERAS I ARTAU, Joaquim. “Pròleg. Les obres mèdiques d’Arnau de Vilanova”. In: ARNAU DE VILANOVA. Obres catalanes. Volum II: Escrits Médics (org. Pe. Miquel Batllori, S. I.). Barcelona: Editorial Barcino, 1947, p. 09-51. CORTONESI, Alfio. Cultura de subsistência e mercado: alimentação rural e urbana na Baixa Idade Média. In: ________ (Org). História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. Pág. 409-421. COSTA, Ricardo da; SILVA, C. Matheus. O Regimen Sanitatis (1308) de Arnau de
Vilanova (c.1238-1311) e sua prescrição de boa dieta. Palestra proferida no I Seminário Capixaba de Humanidades Médicas, evento realizado no Centro Universitário do Espírito Santo (UNESC), Colatina/ES, 11 de Outubro de 2013. DESPORTES, Franços. Os ofícios da alimentação. In: FLANDRIN, Jean-Louis e MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. Pág. 422-436. FLANDRIN, Jean-Louis e MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. FREEDMAN, Paul (org.). A História do Sabor. São Paulo: Editora Senac, 2009. MONTANARI, Mássimo. Comida como cultura. São Paulo: Editora Senac, 2008. RIERA-MELIS, Antoni. Sociedade Feudal e alimentação (séculos XII-XIII). In: FLANDRIN, Jean-Louis e MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. Pág. 387-408. VIGARELLO, Georges. As metamorfoses do gordo: História da Obesidade. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2012.
455
IMAGEM DE DOM SEBASTIÃO COMO ELEMENTO EDUCATIVO: REPRESENTAÇÃO MENTAL E ICONOGRÁFICA – SÉCULO XVI Sandra Regina Franchi Rubim 1 Resumo: Esse texto analisará as imagens vinculadas ao rei D. Sebastião durante o século XVI, em Portugal, como elemento educativo. Pretendemos verificar de que forma essas imagens, impulsionadas pela Igreja e pelo Estado Monárquico influenciaram na divulgação de uma figura ideal de rei, tanto laico quanto cristão, em um momento de consolidação do poder real dos Estados nacionais no período moderno. Portugal, nesse período, estava em uma situação de crise e de indefinição política, em virtude disso, disseminou-se a crença mítica de um rei que iria governar como uma postura de rei cavaleiro-cruzado que oportunizasse a continuidade da Dinastia de Avis. Acreditamos que, nesse sentido, a linguagem imagética oportunizava a formação de uma mentalidade coletiva de novos conceitos, bem como valores morais, sociais e políticos. A abordagem metodológica será a da História Social e a da História da Educação, pois oferecem a oportunidade de compreendermos as produções humanas, em especial a linguagem imagética e a educação, como resultantes das múltiplas vinculações articuladas pelas relações sociais. Consideramos, desse modo, que a análise da imagem, como uma das formas de expressão do homem, permite-nos a compreender como se construíam as relações e, por conseguinte, as práticas formativas.
Palavras-chave: História da Educação Medieval e Moderna; Monarquia Absolutista Portuguesa; Linguagem imagética.
1
PPE/UEM-GETSEAM
456
Sandra Regina Franchi Rubim Introdução
da sensibilidade, tornam possível identificar
Convivemos de forma cada vez mais
as posições éticas, estéticas e políticas que
intensa com um cenário em que circulam
o indivíduo, como autor da obra, assume
pessoas,
principalmente,
diante das lutas históricas do presente em
imagens, as quais nos transmitem, de
que vive, como aprovação ou negação, que
forma
diversas
são as formas de se relacionar com o
informações e mensagens. Como temos
mundo. Com efeito, entendemos que a
que
essa
capacidade intelectiva do homem nos dá a
produção infinita, melhor será aprendermos
possibilidade, como potência de ação, de
a avaliar uma infinidade visual, sua função,
deixarmos a posição de observadores
sua forma e seu conteúdo, pois a criação e
passivos para ocupar a de expectadores
a
e
críticos, participantes e exigentes diante da
da
leitura de textos, imagens, cidades, rostos,
produtos
explícita conviver
ou
implícita,
diariamente
apreciação
privilegiam
e,
da
arte
o
com
possibilitam
aperfeiçoamento
sensibilidade humana. Assim, por meio da arte,
poderemos
compreender
gestos, cenas, pintura, dentre outros.
as
Para
alcançar
esse
objetivo,
transformações que ocorrem em nosso
entretanto, faz-se fundamental que todo o
tempo histórico. As criações artísticas
sujeito
precisam
estabeleça
sentidos
ser da
fruídas, sutileza,
despertando da
os
sensibilidade
do
conhecimento contato
com
histórico diferentes
produções de épocas passadas e atuais,
estética, do belo, do conhecimento e da
mergulhe
visão crítica de mundo. Nesse sentido,
observando e identificando informações
confirma
48):
nas mais diversas formas de linguagem
“Apreciaremos melhor a arte do passado e
que lhe são apresentadas pelo avanço
a do presente se lhe conhecermos melhor
tecnológico
a
nossa
fotografias, objetos, jornais etc.). Esses
sensibilidade estética só pode se refinar
procedimentos, por sua vez, oferecem ao
pelo estudo”. Como a leitura de imagens
historiador a possibilidade de ele ampliar
implica
seu
Francastel
significação
(1993,
humana
compreensão,
[...]
p.
entendimento
e
olhar,
no
universo
(imagens,
textos,
questionar e
da
articular
as os
ciência,
mapas,
fronteiras
significação, é preciso ir além do que se vê,
disciplinares
saberes,
romper com a superficialidade do visível e
buscando a inteligibilidade do real histórico.
imediato, aprofundar o diálogo sugerido e
Mediante às considerações tecidas,
implícito na obra. A apreciação e a análise
pretendemos, nesse trabalho, refletir sobre
de imagens, por meio do conhecimento e
a linguagem imagética como expressão da
457
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
construção mental e social que fundamenta
Nessa perspectiva, trabalharemos
as práticas educativas e as identidades
com
a
análise
de
humanas. Nesse sentido, pretendemos
representações
analisar a imagem de D. Sebastião (1554-
veiculadas no século XVI, em um momento
1578), como representação do Cristianismo
de consolidação do poder real dos Estados
e da constituição do Estado Português,
nacionais, no período moderno.
do
imagens
rei
de
messiânico,
influenciando na divulgação de uma figura
Pretendemos, assim, refletir alguns
ideal de rei, tanto laico quanto cristão, no
aspectos sobre o arcabouço teórico, nas
período em que se delineava o processo
diferentes
social de mudança entre o medievo e a
configurações
modernidade.
relação a esse personagem emblemático.
Destacamos que nossa abordagem
Nessas
linguagens, que
condições,
se
das
inúmeras
delinearam entendendo
em a
da linguagem imagética de situa nos
linguagem imagética como transposição
campos da História Social e da História da
das necessidades e das aspirações dessa
Educação, os quais têm como uma de suas
época, interessa-nos perceber a função
finalidades a compreensão das origens das
educativa
instituições,
dos
dessas imagens e a possibilidade da
pensamentos que permeiam a educação
construção de uma representação social
contemporânea.
pela
mítica desse rei. Salientamos, assim, que
por
compreendemos que a educação vincula-
crermos em sua potencialidade de educar
se com o pensamento de homem e de
os homens e, em consequência, participar
sociedade que se constitui em cada
de forma considerável no processo de
período histórico. Relacionamos, então,
formação social. Acreditamos que cada
essa contestação com o conceito de
momento
uma
imagem proposto por Schmitt (2007, p. 12):
pensar,
“[...] Pelo termo ‘imagem’, designamos em
correlacionada à maneira como se constrói
todos os casos a representação visível de
a existência do ser humano. Desse modo,
alguma coisa ou de um ser real ou
podemos
imaginário”.
linguagem
dos
conteúdos Nossa
imagética
histórico
determinada
forma
afirmar
que,
e
escolha
se
justifica
produz de
por
meio
das
que
perpassa
Nesses
a
termos,
veiculação
podemos
imagens, constroem-se discursos cujos
inferir que o termo imagem pode ser
sentidos difundem-se com uma intenção
considerado tanto na dimensão material
formativa para uma construção social.
quanto no mental. Observamos que a constituição de uma imagem mental e
458
Sandra Regina Franchi Rubim material é precedida por uma construção
Entendemos
mental.
desenvolvimento do Estado Moderno e da
Dessa
surgimento
e
o
Monarquia Absolutista não ocorreram de
necessidade de se considerar a pluralidade
um dia para o outro; o processo de sua
e a diversidade das ações humanas desse
formação atravessou séculos até chegar ao
período, situando-as em um contexto mais
momento em que, de fato, se consolidou na
amplo,
sociedade. Torna-se necessário, assim,
seja,
ressaltamos
o
a
ou
maneira,
que
nos
campos
social,
simbólico e cultural 2.
conhecer o processo de constituição da
Imagens de representação social do rei D.
monarquia portuguesa, do surgimento do
Sebastião
Reino de Portugal no século XII, do a
aumento crescente do poder régio e da
consolidação da nação portuguesa, é
especificidade com que se estruturou o
preciso um estudo de longa duração 3.
Estado lusitano ao longo dos séculos
Para
compreendermos
seguintes. 2
Para Geertz (1989) o conceito de cultura denota um
padrão,
transmitido
historicamente,
de
significados
Segundo Sousa (1993) a origem do
corporizados em símbolos, um sistema de concepções
Estado
herdadas, expressas em forma simbólicas, por meio dais
Reconquista (séc. XI ao XV), processo que
quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem
ocorreu
o seu conhecimento e as atitudes perante a vida. A
português na
está
Península
relacionada Ibérica
com
à o
cultura compartilhada possibilita a sociabilidade nos
objetivo de expulsar os mouros (árabes)
agrupamentos humanos e oferece inteligibilidade aos
que haviam se fixado na região, a partir do
comportamentos sociais.
séc. VIII. Tanto a autonomização política
3
Entendemos que na História, as transformações não
ocorrem apenas pela vontade de uma pessoa, mas estão
quanto o alargamento territorial do reino de
intimamente
Portugal, foram resultantes da luta contra
ligadas
às
circunstâncias
econômicas,
sociais e culturais. Concebemos a história e as ações humanas da perspectiva de longa duração, já que a
os
muçulmanos
que
dominavam
a
história de curto prazo tem suas limitações no sentido de
Península. Ao mesmo tempo em que se
apreender e explicar as permanências e as mudanças. O
expandia o território para o Sul, D. Afonso
conceito de história de longa duração surgiu com o
Henriques e os seus sucessores dividiam
historiador Fernand Braudel (1902-1985), cujo artigo A
Longa Duração foi publicado na revista Annales, em 1958.
os seus esforços no povoamento, na
Seu objetivo era demonstrar que o tempo avança em
organização administrativa, econômica e
diferentes velocidades. Segundo ele, a história situa-se
social das áreas conquistadas, elementos
em três grandes ritmos de duração ou três histórias: a micro-história, uma história que atenta ao tempo curto, ao média
história em profundidade, uma história estrutural de longa
amplitude, com duração de alguns decênios, ou seja, uma
duração, que põe em causa os séculos (BRAUDEL,
história conjuntural, que segue um ritmo mais lento e a
1972).
indivíduo,
ao
acontecimento;
a
história
de
459
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
fundamentais para a consolidação das
em torno da Coroa, de prestar vassalagem
fronteiras do Reino.
ao rei. O principal instrumento de que se
Para Amaral (2000), nesse sentido,
serviram os reis da dinastia de Borgonha
a concentração de poder político pelo rei
para superarem os senhores foi a guerra
fez-se ancorado em valores e práticas
externa, cuja liderança lhes possibilitava
feudais, ou seja, ao invés do modelo “rei-
conquistar terras para o Reino. E, para
aniquila-poder-dos-senhores
feudais”.
construir o Estado, sublinhamos o papel
Observa-se que o rei se fortalecia na
que a justiça régia adquiriu sobre as
medida em que se tornava um senhor com
jurisdições locais, nas diferentes regiões do
mais
poder
historiadores séculos
do
que
nos
XIII
crescentemente
e
os
outros.
Os
Reino. Se a Coroa não dispunha de
revelam
como,
nos
aparelho administrativo e funcionários para
XIV, as
o
rei
funções
assumia
cada
setor
públicas,
possuía,
da
administração
entretanto,
os
pública,
juízes
que
retirando-as dos senhores, ou seja, o rei
trabalhavam pela Coroa por todo o reino,
trazia para si um poder já existente,
fazendo valer a lei régia sobre os ditames
atribuições que ele não inventara. Fazia-o
locais que vigoravam anteriormente e que
amparado em uma estratégia política que
variavam bastante nas distintas partes do
ao mesmo tempo erigia a singularidade do
território.
poder régio e reservava aos nobres um
Durante a dinastia de Borgonha
espaço de prestígio e de atuação junto à
(séc. XI-XIV), Portugal deu continuidade às
Coroa, por concessões de privilégios e de
guerras de Reconquista, ampliando seu
prerrogativas, como a tarefa de arrecadar
território. A economia portuguesa, no final
certos tributos, por exemplo.
desta
dinastia,
sofreu
um
impulso
O autor afirma que as funções
significativo com o surgimento de uma nova
estatais em Portugal desenvolveram-se, de
rota comercial que ligava as cidades
fato, com Afonso III (1248-1279). Para a
italianas à região de Flandres, fazendo
organização estatal, foi preciso, ao longo
escala em Lisboa.
dos séculos XIII e XIV, organizar as
fortaleceu o grupo mercantil português.
Isto, sem dúvida,
finanças régias, fortalecer o tribunal e a lei
Saraiva (1993), pois, destaca que a
régia em detrimento das justiças locais,
definição do espaço territorial português
criar um corpo de funcionários burocráticos
ficou concluída em 1297 com a celebração
e, ainda, fazer surgir um complexo de
do Tratado de Alcanices, assinada, no
regras de cortesia, uma maneira de viver
mesmo ano, pelo rei D. Dinis (1261-1325).
460
Sandra Regina Franchi Rubim Fixou-se assim de forma praticamente
ainda enfatiza que, para a maioria dos
definitiva,
historiadores, o coroamento de D. João I
a
Portugal
fronteira
estabelecia
Leste assim,
do
País.
ainda
no
marcou o início da monarquia absolutista
século XIII, as fronteiras do seu território,
em Portugal e a formação do Estado
que com pequenas alterações posteriores,
Nacional. Em relação à manutenção de
permaneceram até aos nossos dias.
resquícios medievais, foi nesta ocasião que
Sabemos, pois, que no ano de 1383,
se iniciou o incentivo ao comércio, uma
o trono português ficou sem herdeiros
recompensa ao apoio da burguesia ao
masculinos com a morte do rei Fernando I
coroamento do Mestre de Avis. Esse apoio
(1345-1383), chegando ao fim à Dinastia
possibilitou definitivamente a centralização
de Borgonha. Nesse período, afirma o
do poder em Portugal em torno do rei,
autor supracitado, deu-se a crise de 1383-
quando se formou uma nova nobreza, com
1385, momento de guerra civil e anarquia
burgueses
da História
conhecida
nomeados cavaleiros. Resolvida a questão
como Interregno, uma vez que não existia
da independência, ao menos até o episódio
rei no poder. Nesse contexto, o reino de
da União Ibérica em 1640, Portugal se
Castela tentou reivindicar o domínio das
tornou
terras lusitanas. Sentindo-se ameaçada, a
absolutista europeu.
burguesia
de
lusitana
Portugal,
primeiro
títulos
Estado
e
sendo
Nacional
uma
No processo de consolidação das
resistência ao processo de anexação de
monarquias, percebemos que a justificativa
Portugal formando um exército próprio. Na
religiosa teve grande influência para a
batalha
os
unificação dos territórios. Apoiados pela
burgueses venceram os castelhanos e,
Igreja, os reis que surgiram na Europa,
assim, conduziram D. João (1349-1387),
entre a Idade Média e o Renascimento,
irmão bastardo de D. Fernando, ao trono
eram julgados como representantes dos
português,
o
desígnios sagrados. Deveras, ao longo de
primeiro rei da Dinastia de Avis 4. O autor
sua trajetória, o regime absolutista buscou
de
empreendeu
o
recebendo
Aljubarrota
tornando-se,
(1385),
em
1385,
meios que minimizassem os limites que 4
Dinastia de Reis de Portugal, que reinaram o país entre
1385 e 1580. Genealogia da Dinastia de Avis ou Joanina: D. João I, o Mestre de Avis (1385-1433); D. Duarte, o
distinguiam a vontade divina das ações tomadas pelo rei.
Eloquente (1433-1438); D. Afonso V, o Africano (14381481); D. João II, o Príncipe Perfeito (1481-1495); D. Manuel, o
Venturoso (1495-1521);
D.
João
III, o
Piedoso (1521-1557); D. Sebastião, o Desejado (1557-
1578);
D.
Henrique, o
Casto (1578-1580);
António, Prior do Crato (1580-1582) (SERRÃO, 1978).
461
D.
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Na
Península
Ibérica,
de
forte
Castela (1527-1598), estava, pelo menos
tradição católica, essa cultura parece ter
momentaneamente, resolvida. Em virtude
granjeado bastante força, tendo em vista as
de ser um herdeiro tão esperado para dar
miraculosas teorias que rondaram o rei D.
continuidade à Dinastia de Avis, ficou
Sebastião. Quando ainda muito pequeno,
conhecido como O Desejado.
já o indicavam como o herdeiro do trono
Pires (1969) enfatiza que a chegada
português e mantenedor da dinastia de
dessa
Avis, salienta Hermann (2000). Vamos,
acontecimento efervescente para a vida do
então,
histórico.
reino. A corte, de um lado, concretiza sua
Falaremos, pois, sobre o reinado desse
vontade de perpetuação e conservação do
monarca.
poder
darmos
um
pulo
criança
se
institucional,
revela
como
político,
um
social
e
Durante boa parte do reinado de D.
territorial por meio da figura do neto recém-
João III (1502-1557) os problemas que
nascido de D. João III. De outro, o
diziam respeito à política externa e interna
nascimento do rei Desejado simbolizava
de
questão
certo alívio para Portugal. Representava
sucessória, afligiam a nação portuguesa.
uma trégua à ameaça que pairava sobre o
Aconteceu, pois, a morte de todos os nove
reino de se ver sob a dependência do
filhos do rei e, consequentemente, o quase
reinado
rompimento
representava, pois, a possibilidade de
Portugal,
do
somados
fio
a
hereditário,
que
de
com relação à Castela. Dos nove filhos de
territórios iniciado pela dinastia de Avis
D. João III e de Catarina de Áustria (1507-
(1385-1580).
dois
atingiram
de
nascimento
retomar
apenas
política
Este
determinava a independência de Portugal
1578),
a
Castela.
conquista
de
a
D. Sebastião, filho do príncipe D.
adolescência: o príncipe D. João (1537-
João e de D. Joana de Áustria (1536-
1554) e a infanta D. Maria (1527-1545).
1573), nasceu em Lisboa em 1554 e
Dois anos após o seu casamento, estando
morreu em Alcácer Quibir em 1578,
sua mulher quase de parto, o príncipe D.
destaca Loureiro (1978). Décimo sexto rei
João falece e foi com júbilo que, onze dias
de
depois, a nação acolhe o nascimento de
menor, ficou como regente sua avó D.
um herdeiro, D. Sebastião. A ameaça de o
Catarina. Sua mãe, D. Joana, de acordo
trono ter de passar para o outro neto de D.
com o contrato nupcial, teve de regressar
João III, para o príncipe D. Carlos (1545-
a Castela após a morte do príncipe D.
1568), filho de D. Maria e de Filipe de
João. A regente D. Catarina, acusada de
Portugal
(1557-1578).
Como
era
462
Sandra Regina Franchi Rubim sofrer influências da Corte espanhola,
dos
pede a demissão de regente nas Cortes
retomada de territórios que outrora eram
de Lisboa de 1562, continuando, no
cristãos, bem como a retomada da honra
entanto, como tutora do futuro rei. Foi
portuguesa.
eleito como regente, nessa altura, o
resquícios medievos da guerra justa,
cardeal D. Henrique (1512-1580), tio do
herdeira das cruzadas. Nessa batalha,
infante. D. Sebastião, então, teve uma
pois, morre o rei e uma grande parte da
educação cuidada. Quando atingiu os
juventude portuguesa. Este desastre vai
catorze anos, em 1568, passa a reger o
ter as piores consequências para o país,
país e logo trata de reorganizar o exército,
colocando
preparando-se para a guerra. As lutas
independência.
que, entretanto, houve no Norte de África,
mouros,
que
representava
Assim,
em
Nesse
a
percebemos
perigo
contexto,
a
a
sua
linguagem
levavam-no a pensar em futuras ações
imagética, cotejada com a literatura, com
nesse continente.
as crônicas, com a historiografia, tornou-
Podemos
entender,
segundo
se
um
elemento
significativo
na
Casquilho (2012), que era natural que o
construção de justificativas, na projeção
rei desejasse se tornar um guerreiro e
de interesses e objetivos coletivos, na
lutar como um cavaleiro medieval contra
criação de necessidades e na modelagem
os infiéis mouros na África. D. Sebastião
de valores e condutas. Era necessário
criado órfão e rei de Portugal, com o
recorrer
encargo de salvar o país e transportando
legaram ao rei a representação de um rei
o peso da história do santo (com o qual
desejado (durante seu reinado) e de um
recebeu seu nome), se vê diante da
rei encoberto (após sua morte).
à
linguagem
simbólica
que
missão de herói nacional. Entretanto, para
Convém assinalar que o símbolo, o
o país, o grande problema era o da
mito, a imagem, pertencem à substância
sucessão do rei, pois era solteiro e
da vida espiritual; pode-se ocultá-los,
parecia não se preocupar com isso,
degradá-los,
tendo-se malogrado várias negociações
erradicá-los. O pensamento simbólico não
matrimoniais. O próprio rei, contrariando
é domínio exclusivo da criança, do poeta,
inúmeros conselhos, parte à frente de um
mas é inerente ao homem. Ele precede a
exército, o qual foi derrotado em Alcácer
linguagem e a razão discursiva. Eliade
Quibir,
aqui
(1979, p. 171), “[...] afirma que a função
também a força simbólica da submissão
de um símbolo é justamente a de revelar
em
1578.
Observamos
mas
nunca
se
poderá
463
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
uma
realidade
total,
inacessível
aos
coletiva, ou seja, a formação de estruturas
outros meios de conhecimento [...]”. As
de
imagens,
constitutivas do Estado Nacional. Por isso,
os
respondiam
símbolos,
necessidade
de
pertencimento
as imagens, como um dos meios de
preenchiam uma função, condizente com
comunicação entre monarcas e súditos,
o
foram
tempo.
uma
mitos
e
e
seu
a
os
vinculação
Nesse
momento,
as
utilizadas,
principalmente,
para
distintas linguagens educavam o povo no
educar e instruir a sociedade. Era desejo
sentido
as
dos monarcas formar indivíduos para a
representações de um rei que manteria a
sociedade, cujo governo estava edificado
emancipação lusitana e a posição de um
nas bases do poder absoluto. Nesse
reino
sentido,
de
como
crer
e
cabeça
aceitar
de
um
império
a
linguagem
imagética
se
ultramarino. Assim, observando, por meio
constituiu como um recurso pedagógico
das imagens, a coexistência entre antigas
capaz de influenciar o pensamento e as
e novas formas de pensar, sentir e agir,
atitudes dos homens, levando-os a aceitar
podemos acompanhar a direção que a
o comando do monarca. Podemos afirmar,
educação também foi assumindo nessa
assim,
época.
construíam-se discursos com a finalidade
Consideramos veiculadas
sobre
que D.
as
imagens
Sebastião,
se
constituem como uma evidência histórica,
que,
por
meio
das
imagens,
de se difundir um ideal formativo com o fito de forjar a figura de um rei ideal, tanto laico quanto cristão.
cujos significados simbólicos 5 e estéticos 6
Podemos, nessas condições, nos
auxiliam-nos na compreensão das relações
aproximar do entendimento de como a
sociais e de poder presentes no processo
mentalidade do homem, que se constrói
social da Idade Média para a Idade
pelas produções intelectuais e influência do
Moderna. Nesse processo, delineava-se
conhecimento popular de cada período
um momento único na vida dos homens,
histórico, é refletida nas imagens como
um momento de redefinição da identidade
representação mental e material. Dessa forma,
as
reflexões
concernentes
ao
São as diferentes formas de apreensão do real, seja por
imaginário se instituem relevantes. Torna-
meio dos signos lingüísticos ou das figuras mitológicas
se imprescindível, portanto, nos atentarmos
5
seja da religião ou de conceitos do conhecimento científico (CHARTIER, 2002).
às formas de pensar, não de um indivíduo,
Corresponde à dimensão da sensibilidade humana. Para
mas de um grupo que pode ser traduzido
Hegel (1996), estética é a filosofia, é a ciência do belo, do
como a alma coletiva de um povo.
6
belo artístico, que exclui o belo natural.
464
Sandra Regina Franchi Rubim Concordamos, nessa perspectiva, que a linguagem imagética é inerente à existência
do
homem
interpretações singelas.
sujeito
Abalizamos, enfim, a necessidade
histórico, já que o discurso tem uma
de a Educação adentrar no campo de
intencionalidade formativa. Os símbolos e
estudo das imagens. Torna-se crucial
mitos,
humanizar
como
como
indispensável para que se escape de
linguagem
representaram
uma
simbólica,
possibilidade
de
os
desenvolver
sentidos
a
do
homem
sensibilidade
e
humana,
construção mental e social de um tempo
ampliando, assim, a dimensão da reflexão.
datado historicamente, século XVI; por
Acreditamos que esses requisitos podem
meio deles o homem construía suas
ser desenvolvidos por meio da capacidade
práticas educativas e suas identidades.
reflexiva dos homens e do conhecimento.
Assim,
as
Sublinhamos que o conhecimento é um
representações iconográficas constituem
elemento fundante da formação humana.
instrumentos
Isto é um desafio histórico posto a cada dia
podemos
concluir
que
imprescindíveis
para
a
formação do indivíduo e para a construção
para
aqueles
que
trabalham
da sociedade, pois, ao mesmo tempo em
preocupam com a Educação.
e
se
Considerações finais
que se aprende se educa pela imagem. As importante
Conduzimos, assim, nossa atenção
sócio-cultural
para as distintas formas nas quais os
porque
se
homens
sistema
de
determinado tempo histórico. Desse modo,
significações específicas que conduzem à
nossa leitura do discurso implícito nas
reflexão, ação e expressão do homem em
imagens incide em explicitar de que forma
relação a si, aos demais indivíduos e ao
determinadas práticas obtiveram sentido e
meio em que vive.
se difundiram no interior das relações
imagens
representam
elemento
da
humana,
principalmente
apresentam
um
atividade como
Quando
se
um
fala
de
imagens,
sociais,
foram
nos
educados
apontando
em
um
indícios
da
portanto, são infinitas as possibilidades de
necessidade de se construir um Estado
abordagem que se abrem ao pesquisador,
Português centralizado em um ideário de
que, por isso, considera a pertinência de
rei.
buscar uma formação que lhe ofereça a
multiplicidade de linguagens atuou como
capacidade de compreendê-las. Nessas
elementos
condições,
concluir que elas tenham influído nas
o
conhecimento
é
Destacamos,
assim,
educativos,
que
sendo
uma
plausível
atitudes humanas, especialmente no que
465
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
diz respeito à premente aceitação da
transformações históricas e o surgimento
centralização
de novas concepções de vida e de mundo
do
Estado
Absolutista,
representado na figura do rei. As imagens,
para
portanto,
se
instituíram
o
homem
moderno.
Como
como
uma
transposição das necessidades e das
construção
da
aspirações dessa época, faz-se possível
representação, mental e social, de D.
compreender a função educativa que a
Sebastião, no século XVI, tanto como um
veiculação
rei laico quanto um rei cristão.
Inserida nessa ótica, enfatizamos que o
possibilidade
Nessa
de
atendia.
meio que envolve o homem passa a ser
linguagem imagética tanto como veículo
objeto de estudo, pois esse influenciará a
formador quanto como evidência histórica.
forma de pensar e de agir do homem, bem
Entendemos que as diferentes expressões
como as suas criações materiais.
homens,
aceitamos
imagens
a
dos
perspectiva,
dessas
sinalizavam
as
Referências: AMARAL, Diogo Freitas. Afonso Henriques - Biografia. Braga: Círculo de Leitores, 2000. BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1972. CASQUILHO, José Pinto. Sebastião de Portugal: 20 de janeiro de 1554 -? Revista Triplov
de Artes, Religiões e Ciências. Nova série, n. 23-24, 2012. Disponível em: < http://www.triplov.com/novaserie.revista/numero_23/jose_casquilho/index.html >. Acesso em: 16 jun. 2014. CHARTIER, Roger. A História cultural: entre práticas e representações. Lisbos-Portugal: DIFEL, 2002. ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. Lisboa: Arcádia, 1979. FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa: elementos estruturais de sociologia da arte. São Paulo: Perspectiva, 1993. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1989. HEGEL, George Wilhelm Friedrich. Curso de estética: o belo na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996. HERMANN, Jacqueline. 1580-1600: o sonho da salvação. Coleção: Virando Séculos. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2000.
466
Sandra Regina Franchi Rubim
LOUREIRO, Francisco Sales. D. Sebastião e Alcácer-Quibir. Lisboa, PT: Publicações Alfa, 1978. PIRES, Antonio Machado. Dom Sebastião e o Encoberto: Estudo e Antologia. Lisboa, Fundação Calouste Gulbekian, 1969. SARAIVA, José Hermano. História de Portugal. Lisboa: Publicações Alfa, 1993. SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru: EDUSC, 2007. SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. O século de ouro (1495-1580). Vol. 3. Póvoa de Varzim/Portugal: Editorial VERBO, 1978. SOUSA, Armindo de. A monarquia feudal (1096-1480). In: MATTOSO, José (dir.). História
de Portugal. Vol. 2. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.
467
MOEDA E PODER NO PENSAMENTO DE NICOLÁS DE ORESME Talles Henrique P. Maffei 1 Jaime Estevão dos Reis 2(Orientador) Resumo O Pequeno Tratado sobre a primeira invenção das moedas, obra escrita pelo clérigo francês Nicolás de Oresme entre 1355 e 1358, constitui-se numa importante fonte para o estudo do pensamento econômico medieval. As questões debatidas por Oresme derivam das transformações em curso no Ocidente desde fins do século X. É neste período quese inicia um processo de dinamização, impulsionado pela intensificação do fluxo comercialcom base em dois eixos principais: o círculo do Mar do Norte e o círculo mediterrânico. Tal processo resultou em mudanças fundamentais, que viriam a minar a velha ordem estabelecida pela realidade feudal. A moeda angaria crescentemente importância, e concomitantemente ao seu desenvolvimento, florescem os diferentes meios de sua alocação.Na esteira do desenvolvimento econômico, alguns pensadoresse dedicam a refletir sobre a legitimidade de tais mudanças sob o prisma dos princípios cristãos, o que, naturalmente, leva adebates acerca das relações entre o material – o econômico - e o espiritual. Nesse contexto, se insere o pensamento de Nicolás Oresme, que buscamos analisar. Palavras-chave: Moeda; Poder; Nicolás Oresme.
1
PPH/UEM
2
UEM
468
Talles Henrique P. Maffei Introdução
especialmente o tratado analisado na
A análise do contexto medieval onde
presente pesquisa.
são privilegiados os fatores econômicos e
Sob um aspecto mais amplo, a
políticos conduz a um método de pesquisa
produção
onde a unificação de tais fatores se dá por
sintomática
meio da análise das ideias que permeavam
Ocidente
tal panorama histórico. Nesse sentido, é
avultosamente em todos os aspectos. Um
digno de nota o fato de que algumas fontes
processo
medievais são valiosas no sentido de
impulsionado no século X pela atividade
elucidar tais escopos por meio de seus
comercial minou a estabilidade da ordem
registros, sendo um notável exemplo a obra
feudal, tendo como um dos principais
do clérigo francês e eminente intelectual
efeitos a inserção da moeda no cotidiano
Nicolás de Oresme, Pequeno Tratado da
medieval. Tal progresso é interrompido em
primeira invenção das moedas, escrito entre
meados do século XIV, em um contexto de
1355 e 1358.
crise econômica, no qual as monarquias
Nicolás de Oresme nasceu em 1320, na Normandia, originário de uma família de
intelectual de
um
de
contexto
cristão de
Oresme
é
onde
o
transformava-se
crescimento
econômico
europeias buscam organizar a estrutura administrativa e fiscal de seus estados.
abastados agricultores. Foi aceito em 1348
A moeda passa ser um fator de
no Colégio de Navarra, onde obteve o título
preocupação e, nesse sentido, o Pequeno
de mestre em 1356, em um momento onde
Tratado
a Universidade de Paris passava por uma
moedas,desponta como uma preciosa fonte
reformulação intelectual, na esteira do
de estudos sobre o contexto econômico e
pensamento de Guilherme de Ockham – e
político medieval. A obra aborda desde
naturalmente
–
questões ligadas à origem dom uso da
embebida em uma maior preocupação com
moeda até destaca conceitos adotados
problemas de cunho prático, em outras
posteriormente pela Ciência Econômica
palavras, mais voltado ao cotidiano da vida
moderna.
oposta
ao
tomismo
da
primeira
invenção
das
humana e seus aspectos (ORESME, 2004).
A dinâmica econômica medieval: o
Oresme ganha notoriedade ao destacar-se
contexto de Nicolás de Oresme
no Colégio de Navarra e conquistar a
O
desenvolvimento
da
economia
amizade do rei Carlos V - do qual se tornou
medievalfoi um processo marcado pelo
conselheiro pessoal e para o qual dedicou
contraste entre a realidade econômica em contínuo processo de transformação, e os
469
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
preceitos da moral cristã. (ARENBERG;
séculos da era cristã. No contexto da
POLANYIL, 1975, p. 100-201). Em outras
decadência do Império Romano, fazem-se
palavras, tratar da existência da economia
imprescindíveis
medieval implica em reconhecer que esta
muralhas diante de sucessivas invasões. A
se situa historicamente incrustrada no
sociedade
labirinto das relações sociais, efeito, este,
existência na terra e na vida rural. Em
naturalmente reproduzido no mundo das
simples palavras, a Europa encastela-se e
ideias. A dinâmica econômica medieval é
feudaliza-se, e o poder fragmenta-se. O
marcadamente entravada e distorcida por
movimento é de um empobrecimento geral,
conceitos
como
dadaà necessidade de produzir-se tudo
preço-justo, usura e caridade (LE GOFF,
aquilo que se pode consumir. A pobreza é
2012, p. 195).
vista como de origem divina e considerada
O
morais-religiosos,
processo
de
tais
decadência
do
Império Romano alterou pouco a pouco o cotidiano de seus domínios, na medida em quea
violência
insegurança
passou
construções a
encontrar
de sua
sob o ponto de vista teológico como necessária. O advento do século X soprou novos
se
ventos na história econômica da Europa
espalhavam ou se acentuavam nas várias
Ocidental – mais especificamente a partir
regiões. Inicia-se o lento processo de
de sua segunda metade. Inicia-se um
abandono
movimento
das
e
as
cidades
e
busca
de
definido
por
alguns
segurança na vida campestre.As invasões
historiadores como a Revolução Comercial
bárbaras,
da Idade Média. Após um período de
inauguradas
pelas
tribos
germânicas, somaram-se a outras várias
regressão
invasões empreendidas por outros povos
monetária e no nível de intensidade das
nos três últimos séculos que precedem a
trocas em geral, inicia-se a formação e
virada do primeiro milênio, o que resulta no
consolidação de um fluxo comercial que
atenuarda
abarcou
insegurança
e
instabilidade
disseminada no Ocidente europeu. Ao Oriente, o Islã expandia-se a passos largos desde
o
inevitavelmente
século as
VII,
atingindo
margens
do
Mediterrâneo.
em
a
termos
maior
de
parte
do
circulação
Ocidente
europeu. A moeda, por sua vez, angaria cada vez mais importância. O processo de monetarização
das
trocas
adquire
notoriedade já no século X, sendo a massa
De fato, o comércio enfrentou um
monetária um montante crescente, gerando
vigoroso declínio durante os dez primeiros
por efeito um processo inflacionário desde
470
Talles Henrique P. Maffei o período (LOPEZ, 1976, p. 81). A
era ainda absolutamente a maior atividade
cunhagem de moedas em ouro, estagnada
econômica,
desde
Magno,
demasiadamente vulnerável a catástrofes
retomam atividade no período, a fim de
climáticas, que por sua vez ocorreram entre
atender a crescente demanda por moedas,
1315 e 1317. Em contrapartida, excelentes
um importante sinal de que a economia do
colheitas foram realizadas entre 1325-45
Ocidente havia adentrado uma fase de
(LOPEZ, 1976, p. 164-165), o que não
dinamismo sem precedentes.
significou a atenuação das devastações
os
tempos
de
Carlos
O dinheiro angaria para si uma
e
por
natureza
impostas pela Peste Negra anos à frente.
importância sem precedentes. A Igreja,
As guerras eram um terceiro fator
tradicionalmente hostil às exuberâncias
catalisador do processo de estagnação
proporcionadas pelas fortunas acumuladas,
econômica que o Ocidente europeu passa
permaneceu em uma constante adaptação
a enfrentar no século XIV. Os conflitos
e revisão de seus dogmas enquanto a livre
cobriam toda a Europa, destacadamente
iniciativa dispunha de um arsenal cada vez
ocorrendo
nos
maior de métodos, recursos e mecanismos
econômicos
do
referentes
econômicas
França (Guerra dos Cem Anos) e as
(CARMEM; PARRA, 2001). Tal mudança
cidades italianas, pautadas numa histórica
de postura é cristalizada no ano 1199, ano
rivalidade.As guerras medievais, por sua
no qual o papa Inocêncio III canoniza o
vez,
comerciante Homobonus de Cremona dois
centralização do poder nas mãos dos
anos após sua morte (WOOD, 2003, p.
monarcas,
165). “A busca e uso do dinheiro, seja por
durante a maior parte da Idade Média pela
indivíduos ou estados, viram-se pouco a
extrema
pouco legitimadas, apesar das condições
geopolítico ocidental. Em outras palavras, é
impostas a sua justificação pela Igreja,
o processo de construção do Estado-nação
aquela que inspira e dirige” (LE GOFF,
empreendido pelas monarquias europeias,
2012, p. 28).
no qual tais conflitos inserem-se.
às
operações
inserem-se
principais continente:
no
Inglaterra,
contexto
relativamente fragmentação
centros
de
impotentes do
quadro
A prosperidade seria estagnada a
As jovens e crescentes monarquias
partir de meados do século XIV, quando o
não poderiam sustentar-se sem recursos
Ocidente deparou-se com uma implacável
financeiros, ocupando então a moeda um
tríade: fome, doenças e guerras. Apesar
papel
dos progressos concebidos, a agricultura
geopolítico. O orçamento real caminhou
primordial
em
tal
panorama
471
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
durante boa parte da Idade Média sob uma
termos econômicos, sociais e políticos. Em
tênue linha, já que os súditos eram
termos monetários, tema da obra de
extremamente resistentes à imposição de
Nicolás
novas
novos
assustadoramente frequente.“Só em 1348
subterfúgios foram utilizados com o objetivo
calculam-se não menos de onze alterações
de engordar as contas principescas com o
de valor da moeda, nove em 1349, dezoito
consentimento dos súditos – ou sem que os
em 1351 e o mesmo em 1355”. (ORESME,
mesmos dessem conta do fato.
2004).
taxações.
As
Naturalmente,
Oresme,
a
instabilidade
monetárias
Mais precisamente, é durante o
tornam-se recorrentes nas monarquias em
governo de João II e Carlos V, monarcas
formação do Ocidente europeu, praticadas
diretamente envolvidos com a figura de
com o objetivo de angariar novos fundos
Oresme, que a França passa por períodos
aos monarcas e suas máquinas estatais
críticos
em estado prematuro. Estas ocorrem,
aspectos. A própria sucessão real entre tais
simplificadamente, pelo recolhimento da
figuras ocorreu em uma situação onde o rei
massa monetária circulante e a diminuição
João II encontrava-se como refém dos
ou deterioração da composição metálica.
ingleses após um sequestro em uma
Com as sobras de metais produzidas são
batalha com estes. Ambas as figuras
cunhadas novas moedas e assim utilizadas
também
para as despesas reais. As manipulações
envolvidos
provocaram grandes danos econômicos
populares conta a opressão dos impostos,
pela instabilidade cambial e pelo processo
naturalmente reflexo da demanda por
inflacionário produzido.
maiores gastos com os combates. As
Na
manipulações
de
França,
foi
recorrente
a
realização de alterações na moeda real. A monarquia
francesa
manipulações
várias
recorreu vezes:
a
tais Em
1295,1303,1306,1311, 1313, 1318 e 1330 (LE GOFF, 2012, p. 122).O caso da monarquia francesa é, em certo sentido, peculiar, já que no contexto de vida de Nicolás Oresme o reino encontra-se numa instável e desconfortável situação em
de
instabilidade
se com
encontram episódios
em
diversos
diretamente de
revoltas
afirmações de Nobert Elias caminham no mesmo sentido: Sob Carlos V, conforme já mencionado, as aides
sur Ie fair de la guerre tomaram-se impostos permanentes como a própria guerra. Foram um peso sobre umpovo que já estava sendo arruinado pela devastação, o fogo, os problemas decomércio e ainda por constantes assaltos de tropas
que
alimentavam
queriam pela
ser
força.
alimentadase Cada
vez
se mais
opressivos se tomavam os impostos exigidos pelo rei e, cada vez mais, julgava-se que o fato de se tomarem a regra, e não a exceção, o que
472
Talles Henrique P. Maffei constituía uma violação das tradições. (ELIAS, 1990, p. 178).
Porém,
tal
instabilidade
é
acompanhada por um incessante zelo por parte de Carlos V em buscar a estabilidade monetária do reino, o que naturalmente nos leva a pensar que já havia uma concepção de
que
a
estabilidade
monetária
prejudicava toda a dinâmica econômica. A obra de Nicolás de Oresme emerge como peça fundamental nesse sentido, auxiliando o
reino
de
França
no
alcance
da
estabilidade monetária durante reinado de Carlos V. O pensamento econômico medieval e o tratado de Nicolás de Oresme Faz-se imperativa a necessidade de uma breve reflexão conceitual acerca da natureza de um pensamento econômico medieval. De forma mais geral, tratar de economia reconhecer
na
Idade
que
Média
esta
existiu,
significa
implica-se o reconhecer de que esta situase historicamente incrustada no labirinto das
relações
delineada,
sociais.
limitada
e
Sendo
então
distorcida
por
conceitos morais-religiosos predominantes em tal panorama. E outras palavras, o pensamento
econômico
medieval
não
existe de maneira independente, e jamais é tratado nas fontes de forma isolada da cartilha moral cristã imposta pela Igreja. O
Pequeno Tratado da primeira invenção das moedas se insere nesse sentido, onde economia,
filosofia,
política
e
religião
dialogam entre si, havendo uma conotação de privilégio de fatores materiais. Nas palavras da historiadora Diana Wood: En el mundo medieval no había econometria ni mercados
globales,
sino
<<economía
teológica>>. La economía como disciplina por sí misma no existia, es decir, que en sentido estricto, El pensamiento econômico medieval es
porém,
um nombre inexacto. [...] Esto significa que hay
totalmente imbricada aos demais aspectos
que rastrear buena parte del pensamiento
da sociedade medieval, particularmente aqueles de cunho cultural e religioso. Em outras palavras, a dinâmica das trocas na Idade Média enfrentou durante toda sua existência, obstáculos que impediram por ora
sua
autonomia,
relacionados
principalmente aos preceitos morais e religiosos do contexto. Assim, ao tratar da produção das ideias
acerca
da
economia
medieval
econômico en obras de teología escritas por escolásticos, muchos de los cuales eran frailes mendicantes. Como es de esperar, las ideas económicas
medievales
se
mezclan
con
problemas éticos y morales. (WOOD, 2003, p. 15).
É ainda elucidativo o destaque a alguns fatores de aspecto geral acerca da natureza
do
pensamento
econômico
medieval. As sagradas escrituras são sem dúvidas uma importante fonte de referência para o pensamento medieval como um
473
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
todo, o que inclui naturalmente a esfera econômica. aspecto
Em
concomitância
teológico,
o
com
o
pensamento
De
tal
constatação
maneira, pode
uma
ser
segunda
observada.
O
conhecimento de que as moedas por si só
econômico medieval remonta suas origens
não
ao mundo antigo, mais precisamente em
logicamente para a noção de oferta e
clássicos tidos como base para a filosofia
demanda,
moral e religiosa medieval. O exemplo mais
Escola Clássica de economia, incorporada
típico a ser citado são as obras que
por Adam Smith num sentido de ataque
compõem em conjunto o legado da filosofia
contra os preceitos mercantilistas, por sua
de Aristóteles, de extrema influência na
vez
formulação
acumulação irrestrita de metais preciosos
das
concepções
filosóficas
medievais e naturalmente no conjunto de ideias
que
compõem
o
a
riqueza
conceitos
assíduos
extrapola-se
consagrados
defensores
de
na
uma
para uso como moeda.
pensamento
econômico em tal contexto.
garantem
Estabelece então uma topografia irregular para a história das ideias que
O Pequeno tratado da primeira
compõem o pensamento econômico: havia
invenção das moedas se insere em tais
entre os pensadores medievais – sendo a
aspectos, pois, sendo Oresme tradutor de
obra de Oresme o parâmetro – a noção de
algumas
Aristóteles,
que a abundância de moedas não é
compartilhava da teoria do filósofo em
sinônimo de riqueza. Tal conhecimento
relação à origem da moeda, sendo criada
seria
de forma espontânea entre homens para a
posteriormente,
facilitação das trocas:
econômico de cunho mercantilista torna-se
obras
de
Porém, como surgissem nessa forma de permuta e de troca das coisas muitas dificuldades e controvérsias,
os
homens,
engenhosos,
esquecido
de
quanto
forma o
obscura
pensamento
predominante, sendo então retomado por Adam Smith e os economistas clássicos.
descobriram uma maneira mais ágil de fazê-lo,
A observação de tal topografia no
isto é, fazer uso da moeda, a qual foi o
mundo das ideias inseridas no universo do
instrumento para permutar e comerciar entre si suas riquezas naturais. E como unicamente
pensamento econômico, sendo a obra de
estas, por si próprias, satisfazem diretamente as
Oresme
elucidativa
necessidades humanas, todo o dinheiro é dito
esclarece
a
riqueza artificial e não poderia ser de outro modo, podendo acontecer que alguém que as tenha em
nesse
participação
do
sentido, contexto
medieval na construção das bases que
abundância possa até morrer de fome ao lado
estabeleceram posteriormente a ciência
delas. (ORESME, 2004, p. 35).
moderna, confrontando as visões onde a Idade Média emerge como uma era de
474
Talles Henrique P. Maffei estagnação do conhecimento – em outras palavras, a “idade das trevas”.
Tal lógica é também referida à
Ainda sim, a obra de Oresme é marcada
por
característica
seu de
contexto todo
o
e,
como
usura, prática econômica presente na esteira
do
desenvolvimento
econômico
pensamento
medieval e frequente alvo de condenações
econômico medieval, marcada por sua
por parte daqueles dedicados ao zelo da
relação com os preceitos morais cristãos.
conduta cristã ideal. Segundo Oresme, a
No caso do Pequeno tratado da invenção
alteração das moedas emergecomo um
das moedas, o autor trata de conciliar tais
pecado ainda mais mortal:
preceitos, de forma que a benesses para o príncipe em agir virtuosamente encontramse tanto na esfera material como espiritual. Primeiramente,
é
necessário
o
esclarecimento de que, para Nicolás de Oresme, a manipulação monetária por parte do rei é um ato condenado e pecaminoso, salvo os casos em que o mesmo considera justo. Por admitir a noção aristotélica da origem da moeda, Oresme a extrapola para o caso da manipulação das moedas por parte do príncipe, o que o mesmo observa ser motivo contribuinte da grande instabilidade geral observada no reino em seu contexto. Logo: Por essa razão, com efeito, Aristóteles prova, no
[...] auferir ganho na alteração da moeda é pior ainda do que a usura. O usurário empresta o seu dinheiro a alguém que o recebe voluntariamente e de bom grado e que, ainda, com esse dinheiro pode beneficiar-se e socorrer-se segundo a sua necessidade. O que ele devolve ao usurário, além e acima do que ele recebeu, vem de um certo contrato existente entre eles, e com o qual ambos estavam de acordo. Mas o príncipe, por alteração indevida e inconveniente da moeda, toma o dinheiro dos seus súditos de fato e não por vontade deles, pois ele proíbe o curso da moeda anterior, que vale mais e que cada um preferia ter ao invés da nova moeda má, para, depois, sem necessidade alguma, utilidade ou proveito que dali possa advir aos súditos, devolver-lhes uma moeda pior. (ORESME, 2004, p. 67).
Logo, a alteração das moedas seria ato mais pecaminoso do que a usura pelo fato de não ser consentida pelas partes
primeiro livro da Política, que a usura é coisa
envolvidas. A ação implica por sua vez em
contrária à natureza, pois o uso natural da
um ato tirânico por parte do príncipe,
moeda é que ela seja instrumento para permutar e comprar as riquezas naturais, como ele afirma
postura essa que pode ser decisiva para o
várias vezes. Quem, portanto, faz uso dela de
reino como um todo. Um principado tirânico
outra maneira, comete um abuso e age contra a
representa o presságio da ruína – o que
instituição natural da moeda, querendo que o dinheiro se reproduza parindo outro dinheiro, o que é coisa antinatural. (ORESME, 2004, p. 64).
soa como um alarde sugestivo em um período em que a França constantemente
475
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
assediada
pelos
ataques
alguma ela perderá seu reino, que passará para
ingleses.“Por
outras mãos. (ORESME, 2004, p. 85-90).
essas coisas e exemplos, o príncipe ou rei
Conclusão
deveter horror de tais atos tirânicos, como é o caso da alteraçãodas suas moedas, que é coisa tão perigosa e prejudicialpara toda a sua posteridade”.(ORESME, 2004, p. 70). A
associação
entre
o
governo
tirânico e a alteração das moedas seria clara nesse sentido, já que ambos são elementos
que
agem
em
favor
da
instabilidade do reino. Oresme encerra sua obra afirmando o caráter passageiro de um reino
tirânico
que,
diante
de
tais
inconveniências por ele geradas, não pode durar muito tempo. [...] sempre que o reino se transforma em
O Pequeno tratado da invenção das
moedas, de Nicolás de Oresme insere-se em um contexto onde os esforços no mundo das ideias dirigem-se cada vez mais para
a
compreensão
das
questões
materiais, mas sem perder sua natureza associativa com os princípios cristãos ainda enraizados na sociedade em fins do século XIV. Isto se refletena tentativa empreendida por ele de harmonizar o conflito entre as mudanças
impostas
pelo
progresso
econômico – no caso, a exigência de uma estabilidade monetária – e os princípios filosóficos e morais de sua época.
governo tirânico, não pode depois ser preservado
A contribuição de Oresme é tida
nem defendido por muito tempo. É essa a forma
como significativa por alguns historiadores
pela qual se prepara a diminuição do seu território, a perda do poder [...]Quaisquer uns que
econômicos, uma vez que suas prescrições
quisessem portanto, de alguma maneira, atrair e
acerca
induzir os soberanos da França a um regime
relevantes para a construção de uma
tirânico, com certeza exporiam o reino a grande perigo e vergonha, e o preparariam para seu fim;
da
temática
monetária
foram
moeda sólida no território do reino francês.
pois nunca a linhagem muito nobre dos reis da
(ARTIGAS,
França aprendeu a tiranizar, nem, por outro lado,
reconhecida como pioneira em sua época,
o povo gaulês jamais se acostumou à sujeição servil. Por isso, se a linhagem real da França abdicar de sua primeira virtude, sem dúvida
1989,
p.34).
A
obra
é
por dedicar-se exclusivamente ao tema da moeda e suas implicações.
Referências: ARENBERG, C.; POLANYIL, K. Trade and Market in the Early Empires. Paris. 1975. ARTIGAS. Mariano.Nicolás Oresme gran maestre del Colegio de Navarra, y el origen de la ciência
moderna.
In:
Príncipe
de
Viana,
ano
IX,
nº
9,1989.
Disponível
476
Talles Henrique P. Maffei em:http://dspace.unav.es/dspace/bitstream/10171/7377/1/Nicol%C3%A1s%20Oresme.pdf . Acessado em 05/08/2014. CARMEM, Maria Del; PARRA, Concha. Las férias medievales, origen de documentos de
comercio. Valencia: Universidade de Barcelona. 2001. ELIAS, Nobert. O Processo Civilizador: Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, vol. 2, 1993. LE GOFF, J. La edad media y el dinero: ensayo de antropología histórica. Madrid: Akal, 2012. LOPEZ, R. A revolução comercial da Idade Média: 950-1350. Lisboa: Presença, 1980. ORESME, Nicolás. Primeiro Tratado da Invenção das Moedas. Curitiba: Segesta. 2004. WOOD, D. El pensamiento económico medieval. Barcelona: Crítica, 2003.
477
UMA INVESTIGAÇÃO REFLEXIVA SOBRE A PRODUCAÇÃO DO CONHECIMENTO NA UNIVERSIDADE MEDIEVAL Tatiane Palmieri Erzinger 1 Resumo: Examinaremos aqui a contribuição da educação, nas universidades medievais, para a formação do homem dessa época e de que maneira ela moldou seu comportamento, influenciando sua prática social. O presente material é o resultado de um estudo da historiografia relativa ao tema. O fio condutor de nossa exposição é que, no século XIII, as cidades, fruto da expansão do comércio, estimularam a vida intelectual. Por isso, nesse século, verificou-se a consolidação de uma nova instituição: a Universidade. Ela surgiu em cidades como Oxford (Inglaterra), Paris (França) e Bolonha (Itália). Essas instituições eram protegidas pela Igreja, pelo Rei, pelos grandes senhores feudais e pelos ricos moradores das cidades. Nelas, estudava-se Medicina, Direito, Teologia e Filosofia. Acorriam às universidades estudantes de diferentes partes da Europa. O método de ensino era a Pedagogia escolástica, porque duvidando é que se pensa e questionando se debatia e se chegava a determinadas conclusões. O conhecimento tinha que ser memorizado, porém, temos o conhecimento vinculado ao mundo racional, devido a falta do progresso científico, era devido a necessidade da época. A universidade é a resposta às necessidades então colocadas pelo mundo medieval. A Universidade e a Escolástica contribuíram para a expansão do mundo feudal, da ciência, do comércio, criando as condições para a formação do mundo moderno. As Universidades, como meio social, tornaram-se mais centros de formação profissional ao serviço dos Estados do que centros de trabalho intelectual e científico, desinteressados, modificaram a sua função e fisionomia social. Palavras-chave: Educação; Universidade Medieval; Conhecimento.
1
Mestrado em Formação de Professores/UNESPAR/Paranavaí
478
Tatiane Palmieri Erzinger A
universidade
medieval
proporcionava um mundo cosmopolita, um
progressos, como instituição para além dos desejos do outro ( GOFF, 1980).
centro universalizante, com uma língua comum,
o
Latim,
que
unificava
a
Lentamente, a instituição passa a cercear o acesso de estudantes pobres,
diversidade dos grupos que a compunham
por
e,
estabeleciam
ainda,
garantia
a
unidade
de
pensamento e de expressão.
intermédio
de
estatutos
valores
que
constantes
e
variados, pagos à instituição, sob as
Pernoud (1981, p. 104) afirma que:
diversas
Estudantes e professores são frequentadores
presentes, que em verdade eram garantias
das
estradas
reais,
a
cavalo
e
mais
frequentemente a pé percorrem léguas e léguas,
contribuem para a extraordinária animação que reinou nas nossas estradas, na Idade Média...
Pudemos, assim, visualizar o quanto a produção do conhecimento e da razão científica nascente estava próxima e até entrelaçada com a vida cotidiana. Esta autora descreve a pregação como um elemento
fundamental
na
educação
medieval; os indivíduos eram educados pelo ouvido, pelas palavras do outro, pelo que viam e viviam junto com os que os instruíam. Baseando-nos na obra de Le Goff,
Para um Novo Conceito de Idade Média, devemos observar, com detalhes, uma grande mudança: como a Universidade de Pádua se descaracteriza de suas primeiras formas de identificação, ou seja, com a cidade e com a comunidade, de modo que acaba por produzir uma identidade própria comprometida
consigo
e
com
seus
caixa,
propina
e
de pagamentos aos mestres. Podemos arriscar também que a
dormindo em celeiros ou hospedarias. Com os peregrinos e os mercadores, são eles quem mais
formas:
instituição
busca
juntamente
com
a
construção de uma identidade, também uma
elitização
de
seu
produto,
o
conhecimento. De modo que acaba por instaurar
uma
ascendência
à
hereditariedade masculinos
nova
já
categoria
de
Universidade,
a
paterna detentores
(indivíduos de
títulos
universitários). Le Goff prossegue mostrando-nos a construção da identidade do universitário, ou
seja,
a
consciência
que
estes
estudiosos tinham de si e de sua nascente profissão
amparados
pela
instituição
universitária, ao mesmo tempo em que a influenciavam e eram por ela influenciados. Se até então os embates eram acerca de ser o trabalho segundo o conceito da época algo bom ou não, digno ou não de pagamento, no presente momento o autor nos apresenta uma segunda discussão quanto ao conceito de trabalho: a divisão
479
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
deste mesmo conceito agora em trabalho
de si toma uma forma mais intransigente.
intelectual e trabalho manual. Para tanto
Nesse
centra seu estudo em autores como
precisa ser humilde, pois humildade opõe-
Abelardo, Felipe de Harvengt, Siger de
se à magnanimidade, as coisas carnais e
Brabante e Gerson, identificados em seus
temporais,
respectivos
que
interessa é o conhecimento da verdade, o
abarca desde o século XII até o XV,
objetivo final do homem. Deste modo,
período este de intensas mudanças para o
percebemos,
profissional e a instituição universitária (
pensadores universitários como uma classe
GOFF, 1980).
cuja
momentos
históricos
Notamos que os dois
momento,
não
o
lhe
universitário
importam;
nesse
identidade
não
o
que
momento,
intelectual,
os
que
está
primeiros autores acima citados estão
assegurada e justificada, garantida por
diretamente envolvidos com a formação da
virtudes
identidade profissional, ou seja, o papel do
científicas. A universidade é agora definida
mestre
como Mãe dos estudos, mestra da ciência,
universitário,
o
que,
segundo
Abelardo, é definido como sendo um Filósofo, de acordo com o conceito antigo
propriamente
intelectuais
e
ensinadora da verdade. ( GOFF, 1980). Ruy
Nunes
apresenta-nos
com
dos pagãos que reconheciam a supremacia
detalhes alguns aspectos da vida das
da Razão sobre a autoridade. Felipe de
universidades européias no decorrer do
Harvengt é apresentado pelo autor como
século XIII, assim como caracteriza o termo
aquele que procurou tanto a conciliação
escolástico como uma criação original da
quanto
Idade Média, com notáveis contribuições
uma
hierarquia
entre
trabalho
intelectual e trabalho manual, mosteiro e
para a cultura humana (NUNES, 1979).
escola, isto é, a religião e ciência. De modo
No entanto, as universidades, com
que podemos visualizar a universidade
os seus estatutos, com sua organização
como uma grande corporação de ofícios,
jurídica e com os graus acadêmicos,
cujo produto é o saber. Para Le Goff, a
surgiram espontaneamente no seio da
legitimidade do trabalho universitário é
cristandade medieval e foram uma das
confirmada com S. Tomás: “O universitário
suas originais criações.
tem seu trabalho manual mas que não
Ruy
Nunes
deixa
claro
que
a
perca tempo com que o lhe não diz
instituição universitária ocupa posição de
respeito”( GOFF,1980, p. 178).
primordial importância no interior da cidade
Já para a segunda metade do século
e do mundo medieval por se tratar de
XII, a consciência que o universitário tem
matriz do pensamento, de agência do
480
Tatiane Palmieri Erzinger saber, do progresso científico, filosófico e
Direito e Teologia passam a responder aos
literário, assim como por ser a fonte
interesses
geradora de profissões
e empregos que
reconheceu de fato a existência das
orientam a direção e a conservação da vida
cidades, também, o direito canônico legisla
social (NUNES, 1979).
e permite os privilégios dos universitários.
Desde o fim do século XII, à imitação
da
época.
E
o
direito
A nova instituição se formou em
das guildas dos mercadores, passou-se a
consequência
falar
e
escolas episcopais, dos novos métodos
efeito,
didáticos, do aumento do saber em função
autênticos trabalhadores intelectuais. No
das traduções das obras gregas e árabes,
entanto, o saber passou a estar ligado ao
da proteção de príncipes e papas, mas o
trabalho, ao mundo urbano e não mais às
fator essencial para sua criação foi o
questões
primeiro
caráter corporativo que assumiram as
momento em que os filhos dos burgueses
escolas de Artes, Direito, Teologia e
buscam,
Medicina. (NUNES, 1979).
das
corporações
estudantes,
que
eram,
religiosas. um
de
Foi
mestres com
o
conhecimento
mais
elaborado.
do
desenvolvimento
das
O direito romano foi retomado com o
O mundo universitário está ligado à
surgimento das cidades e teve um papel de
produção, às necessidades das cidades;
primordial
elas só existem porque há homens que
reconhecimento
precisam dela. Passou a ser necessário, a
privilégios dos universitários, já que os
produção da ciência, portanto, nenhum
estudantes eram pobres e essa era a forma
conhecimento produzido na faculdade era
de incentivar e atrai-los para seguir a
em vão. Os intelectuais elaboravam as
carreira intelectual.
teses para contestar alguns princípios da
Convém
importância da
para
autonomia
sabermos
e
o dos
que
as
religião que não respondia aos anseios da
faculdades de medicina se organizaram no
sociedade.
século XIII, mas isso se deu em grande
Nesse sentido, notamos que houve
parte graças ao aumento do acervo de
um rompimento das universidades com a
obras médicas elaboradas pelos médicos
Igreja, porque se necessitava produzir
da escola de Salerno, no Sul da Itália que,
conhecimentos
no século XI, já era um centro famoso de
para
aresolução
dos
problemas que existiam.
medicina, mas que, no entanto, nunca veio
Com as transformações ocorridas no
a possuir universidade. Enquanto Salerno
interior da sociedade, as Universidades de
teve ensino médico sem universidade,
481
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Montpellier projetou-se desde o século XII
limitados
com suas escolas de Artes e de Medicina
estudantes e mestres.
graças
à
sua
privilegiada
situação
O
pelas dever
assembléias mais
dos
importante
dos
geográfica e condição política e à sua
conselheiros era eleger o reitor que devia
“florescente burguesia” (NUNES, 1979).
ser estudante, clérigo, solteiro, de vinte e
Notamos
que,
das
cinco anos, ter estudado leis durante cinco
universidades de Bolonha (Direito Civil e
anos, ser membro da universidade que o
Direito
e
escolheu, ser adornado das virtudes da
Teologia) e de Montpellier (Medicina),
prudência e da honestidade. Cabia ao
surgiu a primeira universidade inglesa em
reitor-estudante exercer jurisdição civil e
Oxford. Mas é preciso destacar que não
criminal sobre os alunos e os professores e
houve
o
resolver as pendências entre as escolas de
aparecimento das universidades. As bulas
direito. Vejamos quem eram as pessoas
pontifícias e as cartas patentes dos reis
que ajudavam os reitores para o bom
foram expedidas numa data determinada,
funcionamento das universidades.
Canônico),
uma
ao
de
data
lado
Paris
precisa
(Artes
para
mas só vieram consagrar o que era fato consumado, ou seja, a constituição de uma corporação de mestres e estudantes. Com efeito,
as
primeiras
universidades
formaram-se espontaneamente e reis e papas apenas reconheceram oficialmente Convém, ademais, observar que as universidades de início não eram escolas saber
universal,
mas
institutos
especializados numa determinada área do conhecimento, mas as aulas eram públicas, acessíveis aos alunos de qualquer país e de qualquer condição. Em continuidade, verificamos que o principal
cargo
da
universidade
apreender
que
outros
componentes da administração universitária que cooperavam com o reitor eram os síndicos que deviam rever os atos dos reitores. Um advogado ou
síndico
reitorperante
cuidava o
foro
dos público.
interesses Seis
do
clérigos
prudentes eram incumbidos de revisar os livros que circulavam nas universidades. Os livreiros, sttionarii, promoviam a cópia e vendiam-nos. Os
as novas instituições (NUNES, 1979).
de
Conseguimos
era
exercido pelo reitor, que tinha seus poderes
clérigos adstritos ao exame da lisura das cópias e da correção dos textos eram os peciari, do termo pecia, seção do original aprovado de um manuscrito. Os massarii eram os tesoureiros, um para cada universidade. O notárioredigia os processos, anotava as matrículas e copiava os estatutos.
Finalmente,
acompanhavam
os
osbedéis
reitores
nas
gerais
cerimônias
públicas (procissões ou funerais), anunciavam os debates, as aulas, os feriados, a venda de livros e viviam da generosidade dos estudantes, enquanto os bedéis especiais cuidavam da limpeza e de outros aspectos materiais da escola. (NUNES, 1979, p. 222)
482
Tatiane Palmieri Erzinger Constatamos que os professores de
o papado insistia em afirmar sua jurisdição
Direito em Bolonha recebiam, de início, os
sobre as universidades e em nela ter o
seus
dos
monopólio da colação dos graus, éque as
estudantes. No fim do século XIII a
universidades preenchiam aos seus olhos
Comuna ou a municipalidade pagava os
funções
salários
serviço da Igreja, assim consideravam as
salários
dos
nas
universidades
professores
de
algumas
cátedras.
essencialmente
religiosas,
ao
universidades como instituições a serviço
No entanto, podemos definir que as universidades
do
século
Santa
Sé,
os
papas
procuravam
eram
introduzir nelas as categorias de clérigos
constituídas de caracteres essencialmente
que dependiam diretamente deles e eram
democráticos.
os agentes privilegiados da centralização
Porém,
XIII
da
“os
legados
pontifícios podiam desempenhar um papel importante, estatutos
outorgando eprivilégios,
pontifícia (VERGER, 1990).
oficialmente
anulando
Diante destes acontecimentos, a
certas
universidade fora vítima das ambiguidades
decisões, arbitrando nos conflitos entre
de sua situação: tendo no início esperado
outras tarefas” (VERGER, 1990, p. 51)
tudo do apoio da Santa Sé, foi incapaz de
Durante o século XII, os papas
resistir-lhe quando Alexandre IV mostrou
haviam favorecido o desenvolvimento das
brutalmente que a finalidade do papado
corporações universitárias. Nos lugares em
não era a de favorecer o desenvolvimento
que as universidades nasceram de escolas
das universidades e sua autonomia, mas
pré-existentes,
a
sim a de colocá-la a seu serviço, nelas
escapar ao controle das autoridades locais,
introduzindo seis partidários mais seguros,
eclesiásticas ou leigas, confirmando suas
os religiosos mendicantes, que tiveram
liberdades e franquias, colocando-as, em
como preceptores, São Domingo e São
alguns pontos, sob a jurisdição direta da
Francisco.
o
papado
ajudou-as
Santa Sé. Porém, não poderíamos deixar
Verificamos
também
que
os
de destacar que essa atitude não era
universitários contavam com um papel de
absolutamente desinteressada. Dentre os
destaque perante toda a sociedade, esse
interesses, estava a ideia de que as
fato
universidades
privilégios que os estudantes tinham:
deviam
permanecer
instituições eclesiásticas, onde o ensino, sobretudo o ensino superior, era uma das funções essenciais da Igreja. Sendo assim,
se
confirma
ao
destacarmos
os
“Certos privilégios tinham alcance local; visavam a por os
universitários ao abrigo de certas
coações que pesavam
sobre o resto da
população urbana. Compreendiam a isenção de
483
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo qualquer forma de serviço militar e sobretudo vantagens econômicas; os universitários não pagavam os auxílios cobrados aos habitantes da cidade; eram
dispensados dos impostos de
terrádigo e dos direitos, as mercadorias que mandavam vir para seu uso, sobretudo o vinho e a cerveja. Na própria cidade, lucravam com a
modificações
de
seus
programas,
a
evolução da faculdade de Artes ao longo do século XIII. De simples faculdade preparatória, dialético
que
ensinava
fundamental
o
aos
método estudos
taxação de certos preços, particularmente dos
superiores de Direito e de Teologia, ela foi
aluguéis para os quartos que alugavam aos
se tornando uma faculdade autônoma,
burgueses.(VERGER, 1990, p. 65)
Além desses privilégios, notamos uma forte proteção que os estudantes recebiam
dos
eclesiásticos
e
dos
governantes. Diante disso, para conhecermos a função essencial das universidades e averiguarmos o valor exato dos estudos universitários
torna-se
imprescindível
conhecer conteúdo desse ensino, a sua essência. Tais
problemas propriamente filosóficos, numa perspectiva diferente da faculdade de Teologia, que tinha como objetivo estudar a doutrina acerca das coisas divinas, doutrina da religião cristã. Em todas as faculdades, o ensino era, dominado por dois tipos fundamentais de exercícios: a aula e o debate. A primeira visava a fazer conhecer ao estudante as “autoridades” e, através delas, permitir-lhe dominar o conjunto da disciplina que estudava; a segunda era, ao mesmo tempo, para
programas
consistiam
essencialmente em textos, pois, através da leitura dos textos, que em cada disciplina era fundamental, formavam a base do ensino e do saber. À leitura dos livros fundamentais
consagrando-se aos estudos de livros e de
acrescentava-se
a
dos
comentários, antigos e modernos, mais autorizados que facilitavam a compreensão dos mesmos. Dentre os programas destacamos o quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia), que permanecia em honra nas faculdades de Artes de Pádua, Bolonha e, sobretudo, Oxford. Outro ponto a ser destacado é a apreensão através das
o
professor,
livremente
o
meio
certas
de
questões
aprofundarmais do
que
num
comentário de texto, para o estudante, a ocasião de por em prática os princípios da Dialética, de experimentar a vivacidade de seu espírito e a precisão de seu raciocínio. (VERGER, 1990, p. 56)
É
interessante
destacar
que
o
debate era o exercício primordial da pedagogia. A disputa através da questão se tornou um exercício autônomo próprio do mestre universitário que a organizava para os seus estudantes. Nessa ocasião os mestres
de
Teologia
ou
de
Artes
sustentavam uma disputa em que os temas eram imprevistos por serem escolhidos na
484
Tatiane Palmieri Erzinger hora pelos assistentes e as perguntas podiam referir-sea qualquer assunto.
Podemos
concluir
que
os
universitários surgiram para a história dos
Desse modo, podemos inferir que a
homens comprometidos com a razão eo
universidade medieval era um ambiente
conhecimento, construíram sua identidade
animado
profissional de trabalhadores intelectuais e
pelas
investigações,
pelos
debates e pela atividade dos alunos e
científicos,
professores. Ela não se fundamentava
identidade foi comprometida e corrompida
nesse processo didático atual, onde o
à medida que primaram por privilégios,
monótono e rotineiro de meras aulas
regionalizações,
expositivas e de modo algum os alunos se
ideológicos,
mostravam ouvintes passivos a repetirem
estado, uma classe a mais nas relações
cegamente as palavras do professor.
sociais, uma casta e não mais a Razão e o
Pudemos
entender
que,
na
no
entanto,
esta
poderes
mesma
políticos
favorecendo,
assim,
e um
intelecto como meio de se chegar ao
instituição, juntamente com a construção
conhecimento.
de uma identidade, houve também uma
Quanto
à
questão
do
termo
elitização de seu produto, o conhecimento.
Escolástica devemos entender que não é
De modo que acaba por instaurar uma
sinônimo de obscurantismo. A escolástica é
categoria de ascendência à Universidade, o
a filosofia crista, que se desenvolveu desde
nepotismo,
o início da Idade Média e que atingiu o seu
quepassou
a
imperar
na
distribuição dos cargos docentes atribuídos
apogeu
aos parentes, filhos, irmãos ou sobrinhos
declínio nos séculos XIV e XV. Faremos a
dos doutores em exercícios. Portanto, nos
caracterização geral desse termo:
séculos XIV e XV diminuiu a autoridade do Colégio dos Doutores que tinha o encargo de examinar os estudantes e de conferir o Durante os séculos XIV e XV o conceito que os universitários tem de si, está comprometido com uma moralidade e
consciência
século
XIII,
entrando
em
...A escolástica foi um método de pensamento e de ensino que surgiu e se formou nas escolas medievais e se plasmou de modo inexcedível nas universidades do século XIII, máxime através do magistérioe das obras de Santo Tomás de
grau de doutor.
religiosa
no
conservadora, primeira
de
perdeu
sua
profissão
Aquino. O termo escolástica, porém, significa ainda
o
conjunto
das
doutrinas
literárias,
filosóficas, jurídicas, médica e teológicas, e mais outras
científicas,
que
se
elaboram
e
corporificam no ensino das escolas universitárias do século XII ao século XV... (NUNES, 1979, p. 244)
corporativa e transformadora.
485
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Sendo assim, podemos questionar? O porquêdo método de ensino medieval ter sido a pedagogia escolástica? Porque duvidando é que se pensa, e questionando se debate e chega a conclusões. Devido a necessidade da época, o conhecimento na Idade Média tinha que ser memorizado, porém, temos o conhecimento vinculado ao mundo racional devido a falta do progresso científico.
raciocínio, a prática da reflexão filosófica, a disposição do pensamento em argumentações silogísticas, o recurso à dialética, o gosto das discussões. Se o escolástico trabalha com textos e
se
ampara
nas
autoridades,
eleconfia
igualmente no poder da razão, investiga as regras do pensamento racional e as aplica às suas investigações filosóficas e só admite uma conclusão
depois
de
acirradas
discussões
maduro e
exame, de
de
completa
demonstração com o emprego de silogismo. (NUNES, 1979, p. 245 e 246)
Quanto a essa característica da
Quando se considera o conjunto de doutrinas que o termo Escolástica abrange e quando se observa que é a filosofia a disciplina que exprime
Escolástica, onde se dá importância ao uso constante do raciocínio, Pedro Abelardo
interrogação
assídua
ressalta
(...)que a escolástica é um modo de pensar e um
define-se como a primeira chave da
sistema de concepções em que se valoriza a vida terrena como dom admirável de que usufruímos para o nosso bem e para o nosso desenvolvimento pessoal e em que se admite que o ser do homem não se esgota no breve tempo da sua existência terrena, uma vez que o
que
“a
os seus aspectos mais salientes, pode afirmar-se
sabedoria e é duvidando que se chega à verdade”. (NUNES, 1979, p. 247) A primeira forma fundamental do ensino, o processo básico, era a lectio, a
homem tem um fim supraterreno e eterno e o
leitura dos textos que proporcionava a
destino de uma vida interminável, sobre poder
aquisição do conhecimento e constituía o
crescer ainda neste mundo na vida sobrenatural que ele obtém através do batismo... (NUNES, 1979, p. 244-245)
A universidade e a escolástica é a
marco inicial da formação da cultura. O fator mais relevante para o desenvolvimento
da
Escolástica
foi
a
resposta teórica as necessidades postas
introdução das obras de Aristóteles na
pelo mundo medieval e contribuíram para
corrente latina dos estudos e a sua
que houvesse a transição do feudal ao
prescrição no currículo universitário. Com
mundo burguês.
Aristóteles
Por
outro
lado,
o
pensamento
medieval
determinado essencialmente pelos dois fatores da auctoritas e da ratio. Esses fatores do
entrava
no
pensamento
ocidental a convicção de que a filosofia é disciplina racional autônoma, relacionada
por sua vez, condicionaram o
intimamente com as outras e com a crença
desenvolvimento do método escolástico através
religiosa, mas distinta e independente na
pensamento,
de processos de ensino e de técnicas de trabalho em grupo.(...) A ratio, por sua vez, vem a ser a
sua constituição e operação.
razão humana, isto é, o uso constante do
486
Tatiane Palmieri Erzinger No século XII, penetram no mundo ocidental
concepções
que
não
se
educação moral e da instrução, formularam conceitos
metafísicos,
políticos,
enquadravam com a antiga escolástica de
psicológicos
orientação agostiniana.
concernentes à educação do homem.
quando
tratamos
Esse fato serve,
da
invasão
dos
e
éticos,
estritamente
técnicos,
O saber que o profissional do ensino
ensinamentos do aristotelismo árabe no
precisava
campo da escolástica, e que se opunham
corporações de ofício, produção e ao
frontalmente às verdades fundamentais do
mundo urbano.
deter
estava
ligado
as
Cristianismo, tal como a doutrina da
A universidade medieval só existe
eternidade do mundo, a interpretação do
porque os homens precisam dela, porque
intelecto agente e possível, de modo a
os mercadores lutaram para que ela se
negar a personalidade e a mortalidade da
formasse
alma humana, a limitação ou negação
respondeu as questões de sua época.
absoluta da Providência divina e também a negação do livre-arbítrio. Consultando
atradução
enquanto
instituição.
Ela
No século XVI houve a separação entre burguesia e plebeus para adentrar a
feita
universidade, somente o nobre poderia
diretamente do grego, Santo Tomás de
estudar, já os pobres estavam barrados de
Aquino recuperou o pensamento original de
ter acesso ao ensino universitário.
Aristóteles. Mais que isso, fez as devidas
Para Le Goff, o conceito que os
adaptações à visão cristã e escreveu uma
universitários têm de si, no século XV, está
obra monumental, a Suma Teológica, onde,
comprometido
uma vez mais, as questões de fé são
religiosa
abordadas pela “luz da razão” e a filosofia
consciência
é o instrumento que auxilia o trabalho da
corporativa e transformadora.
teologia. É com Aristóteles cristianizado que surge então a filosofia aristotélicatomista. Na Idade Média, desde o século XIII, os temas educacionais foram examinados principalmente na área da Ética, uma vez que educar é agir moralmente e não só aplicar regras ou técnicas psicológicas. Em suma, os pedagogos medievais trataram da
e
com
uma
moralidade
conservadora, primeira
perdeu
de
sua
profissão
Considerações Finais
A pesquisa
ideia
de
sobre
conhecimento
desenvolver a na
uma
produção
do
universidade
medieval, partiu da preocupação de compreender que não existe um ideal de educação, e sim uma educação própria às exigências de cada época.
487
Saberes e Fazeres na Antiguidade e no Medievo
Deste
modo,
preocupamo-nos
em
estudar que fatores contribuíram para
razão e o intelecto como meio de chegar ao conhecimento.
sua formação, como se dava seu
Vimos como a educação nas
processo educativo e qual o papel da
universidades medievais atuaram na
universidade no processo de formação
formação do homem desse período e
e da educação do homem medieval.
de
Acreditamos com esse estudo,
que
maneira
comportamento
moldaram
influenciando
seu seu
poder observar e analisar o período
desempenho na sociedade em que
medieval, buscando nele, entender que
estava inserido. Pretendemos verificar,
os
e
o quanto a educação esteve envolvida
pensavam segundo as questões do seu
na conduta dos homens na medida em
momento e, que, ao analisar esses
que estes se deparavam com os
fatores, poderemos adquirir um valioso
problemas e os resolviam, quando
instrumento
tinham que superar suas dificuldades e
homens
do
passado
para
agiam
compreender
as
questões relativas à educação em
na maneira como pensavam e agiam. Acreditamos que Le Goff e sua
nossa sociedade. Na obra “Para um Novo Conceito
obra nos ajudou
a atingir os nossos
de Idade Média de Le Goff”, usado em
objetivos,
nossa pesquisa, podemos entender que
comportamento, o pensar e a sociedade
os
do homem medieval e entender o papel
universitários
surgiram
para
a
compreender
história dos homens comprometidos
da
com
conhecimento,
medievais. Afinal, fica claro que a
construíram sua identidade que foi
motivação primeira deste autor são os
comprometida e corrompida a medida
problemas
que
pretende, com sua obra, atuar sobre os
a
razão
primaram
e
o
por
privilégios,
regionalizações, poderes políticos e
educação
homens,
de
na
o
sua
universidades
época
e
que
modificando-os.
ideológicos, uma casta e não mais a
488
Tatiane Palmieri Erzinger Referências BARK, William Carroll. Origens da Idade Média. 3. Ed. Rio de Janeiro, Zhar, 1974. DUBY, Georges. As três ordens do Imaginário do Feudalismo. Lisboa: Estampa. GOFF,Jacques Le. Para um novo Conceito de Idade Média.Lisboa. Estampa, 1980.
GUIZOT, François. História da Civilização da Europa. Lisboa. Livraria Editora, 1907. __________. Mercadores e Banqueiros na Idade Média. São Paulo. Ed. MartinsFontes, 1.991. __________Homens e saber na Idade Média. São Paulo. Edusp, 1999. __________ A Civilização no Ocidente Medieval. São Paulo, Editora Martins Fontes, 193. __________Para um novo Conceitode Idade Média, Lisboa, Editorial Estampa, 1980. __________O apogeu da cidade medieval. São Paulo, Editora Martins Fontes, 1992. __________Os Intelectuais na Idade Média. LISBOA: Gradiva. 1984. NUNES, Ruy. História da Educação na Idade Média. São Paulo. Edudp, 1979. PERNOUD, R. Luzsobre a Idade Média. Portugal: Europa, América, 1981. SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo: Abril Cultural (Col. Os economistas), 1983. VERGER, Jacques. As universidades na Idade Média. Unesp: São Paulo, 1990. ___________. Homens e saber na Idade Média. São Paulo. Edusp, 1999.
489