07 - CIDEHUS’ e-Working Papers
Título/Title: Évora e a sua vocação de cidade-mundo
Autor/Author: António Valleriani Editores/Editors: Maria Teresa Santos, Maria das Dores Correia Data/Date: 2020
Assessor para a Série/Series Adviser: João Paulo Salvado Comissão Editorial/Editorial Board: Antónia Fialho Conde Graça Almeida Borges João Paulo Salvado Por favor, citar como / Please, quote as: Santos, Maria Teresa; Correia, Maria das Dores: CIDEHUS’ e-Working Papers, n.7, 2020
ISSN: 2183-8003
Este trabalho está licenciado sob a Licença Creative Commons Atribuição-SemDerivações 4.0 Internacional.
Évora e a sua vocação de cidade-mundo
António Valleriani Maria Teresa Santos (Universidade de Évora; CIDEHUS-UÉ) Maria das Dores Correia (Doutoranda de Filosofia / CIDEHUS-UÉ)
Abstract We present a translated unpublished article by António Valleriani, dedicated to Évora, integrated in an international program – Educating City – since 2010. The translation precedes two texts in order to answer two questions: one, why does Valleriani dedicate an article to Évora if he has never visited it?; another, what relationship is there between educating city and world-city? The first text aims to contextualize the relationship between Valleriani and Évora; the second one seeks in Valleriani's article categories used to link education and city. Keywords: Évora, «world-city», Educating cities, Philosophy of Education, Valleriani Resumo Apresenta-se a tradução de um artigo inédito de António Valleriani dedicado a Évora, Cidade Educadora, um programa internacional que integra desde 2010. A tradução precede dois textos de diferente autoria que correspondem a um testemunho e a uma abordagem de duas questões: uma, por que dedica Valleriani um artigo a Évora se nunca a visitou? outra, que relação há entre Cidade Educadora e cidade-mundo? O primeiro texto visa contextualizar a relação entre Valleriani e Évora, em registo de memória biográfica; o segundo, busca no artigo de Valleriani as categorias que servem de ligação entre o filósofo e a cidade, terminando com a articulação entre cidade-mundo, que Valleriani faz corresponder à vocação de Évora, e Cidade Educadora. Palavras-chave: Évora, cidade-mundo, Cidade Educadora, Filosofia da Educação, Valleriani
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Nota introdutória O falecimento de António Valleriani 1 em outubro de 2009, um mês antes de vir a Portugal apresentar o seu último livro – Al di là dell'Occidente. La svolta neobarocca dell'educazione (Testi e studi) –, terminou com o contacto pessoal estabelecido e deixou por publicar, sem revisão, um artigo que escreveu sobre Évora – «Memória e património na educação». Para melhor o dar o seu pensamento traduz-se o seu artigo. Seguem-se-lhe dois textos articulados que, apesar de não terem sido escritos a quatro mãos, partilham a mesma intencionalidade. O primeiro é de Maria das Dores Correia e a ele corresponde o título «Cidades educadoras são cidades-mundo onde o fruidor se assume co-produtor da obra que é a convivência humana». Narra-se o encontro com Valleriani, a razão de ser da redação do artigo e sublinha-se a generosidade académica do filósofo italiano. O segundo pertence a Maria Teresa Santos e intitula-se «Valleriani e Évora. A vocação de cidade-mundo». Nele se comenta a primeira frase do artigo de Valleriani, da qual arranca a reflexão sobre a vocação da cidade. Optou-se por uma abordagem algo descentrada para que o artigo traduzido não perdesse prioridade de leitura nem deixasse de mostrar a sua potencialidade dialógica. A tradução foi autorizada pela família e pode configurar uma homenagem póstuma, o que não deixa de ser justo. Todavia visou apenas criar oportunidade para reperspetivar a relação entre Filosofia e Cidade-Educadora e abrir o diálogo que gostaríamos de ter feito com Valleriani.
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Antonio Valleriani nasceu em 1940, em Montorio al Vomano, uma cidade nos arredores de Teramo. Formado em pedagogia e habilitado a ensinar filosofia, sempre se interessou pelos problemas da filosofia da educação sob influência de Paul Ricoeur, Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser. Nos últimos livros apropriou-se de conceitos da estética neobarroca para rever a educação, propondo a expressão Educação Neobarroca. Uma expressão que dá conta da complexidade relacional entre o ser humano e o mundo contemporâneo e que concilia a dimensão teórica da educação, centrada na pergunta sobre o sentido de educar, com a dimensão prescritiva da acção pedagógica. Tal conciliação é particularmente visível no livro acima referido e funciona como a trave mestra da sustentabilidade educativa. Antonio Valleriani faleceu em Montorio al Vomano a 7 de novembro de 2009.
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Memória e património na educação2 Antonio Valleriani Civitas romana Évora deve redescobrir a sua antiga vocação de "cidade-mundo", que deriva do facto de ter sido uma civitas romana. A cultura romana encontra um importante estímulo na religião que, ao contrário da grega, se funda num "rito sem mito”. Na Grécia antiga o "mito" é uma história que narra as vicissitudes fabulosas, a aventura excecional de um Deus ou mais deuses, protetores da cidade, e que assinala o nascimento de uma comunidade, isto é, define a sua origem. O mito representa, portanto, a história das origens da cidade. O rito é uma repetição do mito que serve para fortalecer o elo comunitário da cidade. É uma repetição do mito das origens que dá vida às experiências ou aos conteúdos privilegiados ou autênticos da vida, uma vez que se participa do divino através duma mediação da ordem sacerdotal, que preserva o segredo religioso. Esta é a religião grega, fundante da polis. Como refere Hegel, em Atenas e em outras cidades gregas há uma relação orgânica entre religião, arte e política que determina a identidade étnica: na estátua da divindade da polis, símbolo da cidade, está expressa essencialmente o espírito de comunidade. Em Roma, ao contrário, por trás da religião não é o mito que funda a comunidade (civitas). Dionísio de Halicarnasso afirma que Rómulo, fundador da cidade de Roma, rejeitou todos os mitos. Na cidade eterna repetem-se escrupulosamente, quase obsessivamente, ritos cujo significado é ignorado ou silenciado. É uma repetição ritual que é um fim em si mesmo. Fazem-se sacrifícios a deuses, dos quais apenas se conhece o nome e de quem não se quer saber se são homens ou mulheres. No mundo romano não existe um verdadeiro segredo sacerdotal: as mesmas pessoas às vezes acedem a eventos civis, outras ao sacerdócio, e, por vezes, mantêm cargos civis e religiosos ao mesmo tempo. O rito desmitificado é um procedimento
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Tradução de Carlos Júlio, Maria das Dores Correia, Maria Teresa Santos.
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vazio, mas eficaz. Contudo, o rito em Roma mantém sua a sacralidade. Assim, a característica fundamental da religião romana é a desmitização, o rito sem mito, que é a própria essência do caráter da romanidade. Isto significa que o rito da religião romana não participa, como na Grécia, da vida eterna e absoluta do mito, mas introduz-se na vida artificial, jurídica, isto é, cultural. Portanto, a função do rito desmitizado consiste, por um lado, em superar a naturalidade (a natureza) e em instaurar o mundo da cultura, quer dizer, culturalizar o presente e fazê-lo entrar na ordem da norma, do direito (fas). O rito sem mito da religião, em Roma, permite ao cidadão exercer uma criatividade cultural contínua em todos os setores da vida do estado. A religião de Roma é uma religião indeterminada, por isso não tem uma identidade derivada do mito original; por isso, como é indeterminada e privada de identidade, a própria Roma, cujo nome real é desconhecido, é colocada sob a proteção de um deus que também é desconhecido e que a pode proteger enquanto indeterminado. Esta dupla ocultação – privação de identidade e indeterminação – tem a função de impedir os inimigos de se apropriarem da identidade espiritual e cultural de Roma. A vida de Roma representa-se num labirinto como mostra o Troiae lusus, o jogo de Tróia (ligado a um momento fúnebre: faz parte da festa com a qual Éneas presta homenagem aos Mani, os antepassados já falecidos do seu pai) que tem o esquema de um labirinto. Existe uma relação entre a fundação da cidade e o labirinto, que é a de criar, construir do nada, ex novo. A celebração do Troiae lusus entra neste quadro que considera a indeterminação, a não identidade, meios indispensáveis para o sucesso de qualquer empreendimento. Segundo K. Kerényi, o labirinto está ligado à morte e ao renascimento, ou seja, à ideia de nova vida. No labirinto, no entanto, permanece-se na condição de vida-morte, que é a vida civil, onde são contínuas as repetições nas atividades, que se tornam rituais desprovidos de conteúdo, mas mantêm o rigor cerimonial. Consequentemente, a conceção romana do tempo não é cíclica, como a tradicional, típica das sociedades agrícolas, nem unidirecional e sempre nova, como a moderna. No calendário romano, os ritos retornam sempre mas não são idênticos, embora também não sejam diferenciáveis dos realizados no ano anterior e dos que serão 4
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realizados no ano seguinte. Em suma, há identidade e diferença. O retorno do tempo formal do calendário não é a repetição natural das estações do ano, nem sequer a re-atualização de um passado mítico, mas a reactualização do tempo, transformado em cultura, que é uma malha apropriada para conter o idêntico e o diferente, o previsto e o imprevisto, a conservação e a novidade histórica. Na sua essência, o pensamento "ritual" romano une de maneira paradoxal a regra mais rigorosa com a interpretação mais pragmática. O que significa que os romanos, por um lado, estão muito atentos à dimensão cerimonial, aos sinais, aos gestos e, por outro lado, rejeitam a significação unívoca e irrevogável destes, pelo que se formou uma mentalidade que torna fluidas, ambíguas e incertas todas as determinações. Neste paradoxo está o charme do pensamento romano. Assim, a indeterminação da religião romana consegue superar o essencialismo identitário, expresso por ritos que fazem reviver os mitos, como na Grécia, e responde a uma orientação filosófica, cultural e política de abertura para a diferença. É uma cultura que rejeita fundações míticas absolutas e aceita a relatividade, que não é relativismo, mas pluralismo. Reconhece o carácter mutável, sempre diferente da realidade histórica, de modo que a sua sabedoria prática, fundada no pragmatismo e na contingência, consiste no facto de se adaptar à ocasião e se apropriar dela. Mas fá-lo com prudência, porque é cautelosa em relação aos dados históricos emergentes (Perniola, 1985, p. 35-38, p. 109-122). Daqui resulta que o relacionamento com o passado está atento às exigências do presente. Mas acima de tudo afirma-se a ideia, inimiga da metafísica e do sujeito humanista, de que não somos os artífices do nosso destino, nem da nossa linguagem: eles não nos pertencem, mas nós pertencemos-lhes. O curso das coisas e das palavras não é reduzível a uma lei ou a um sistema humano, mas impõe-se ao homem que é forçado a aceitá-lo e a torná-lo seu. O que significa colocar-se, como M. Heidegger nos convida a fazer, à escuta respondendo positivamente ao apelo da história e da linguagem: este é o compromisso civil, no qual não somos nós que fazemos a história e a linguagem, mas é a história que se torna "evento" e a linguagem se torna palavra. A vontade do sujeito é confrontada com uma realidade que se lhe impõe do exterior, que acontece, que o encontra, perturba, transforma. 5
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Devemos, portanto, comprometermo-nos, envolvendo-nos nos acontecimentos através da palavra que gera um comportamento virtuoso, isto se forem usados o discernimento e a prudência, isto é, o espírito crítico que nos permite fazer escolhas prudentes. Assim, afirma-se, tanto contra a conceção linear e uniforme do tempo unidirecional, vazio e repetitivo do historicismo, como contra as pretensões da utopia de colocar a eternidade no tempo, uma ideia do tempo kairológico, do tempo oportuno (kairós), que é um tempo tipicamente humano, plural e cheio de possibilidades: somos convidados a aproveitar a ocasião propícia tendo em conta as circunstâncias favoráveis em que nos encontramos. Tudo isso permite a repetição e a transmissão da tradição histórica, que precisamente por carecer de uma origem, de uma identidade forte, pode estimular uma infinidade de relações, de ligações, sofrer uma multiplicidade de influências diferentes,
produzindo
associações,
combinações,
complexidades
e
relacionamentos muito diversificados. Estes fenómenos não dependem da vontade e do arbítrio individuais, mas são impostos pela condição histórico-linguística e pelo contexto situacional. Desta forma a mistura e a mestiçagem tornam-se as categorias culturais essenciais da civilização romana, onde a diferença e a alteridade encontram o seu habitat cultural. A cultura romana é, deste modo, movida por um pensamento "ritual", que é uma conceção original do rito, que esquece, anula, apaga o mito étnico original, criando categorias tão elásticas que podem ser usadas em todas as circunstâncias. É uma cultura que requer um pensamento de oportunidade, que não é de um mero utilitarismo, mas que oferece aspetos positivos em todas as situações para aqueles que o aceitam e tornam seu. Se o mundo em que vivemos não é o melhor de todos os mundos possíveis, ainda assim cabe-nos a nós compreender as chances positivas que a história e a linguagem nos oferecem e usá-las com êxito. É um pensamento que não olha para a origem, para aquilo que é mais autêntico e mais próprio, mas para a repetição, para aquilo que dele deriva. É um pensamento de repetição que pensa a diferença, a alteridade: é um sincretismo planetário (Perniola, 1985, p. 123-146, p. 174-185).
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No mundo romano não há uma identidade pura, expressão do mito, pois os seres não são cópias de um original ideal, como em Platão, mas uma multiplicidade de cópias sem original, como são todos os cidadãos romanos do império. Roma é, na verdade, uma cidade (urbs) que não teve uma verdadeira origem, mas apenas um início. Em Roma são todos estrangeiros, a começar pelo fundador Rómulo, que vem de Alba Longa, de Tito Tazio e de Numa Pompilio, que são de Sabina, de Mamurio Veturio, o primeiro artista de Roma, que é osco. Até Éneas, progenitor da linhagem romana, tem sangue grego. Todos em Roma vêm de outro lugar. A nova cidade, Roma, não nasce de relações tribais anteriormente existentes, mas de uma série de sem-pátria reunidos por Rómulo. O rito da fundação é ensinado a Rómulo por especialistas etruscos chamados para esse fim. Rómulo e os seus sucessores repetem o ritual dos sacerdotes etruscos com o máximo respeito, uma vez que não sabem o seu significado. Roma é desde o início uma cidade copiada, simulada, todavia análoga a uma cidade verdadeira. Também as divindades vêm de diferentes lugares e épocas. De facto, no panteão romano existem deuses de todos os territórios do império, que expressam as culturas mais díspares. Os ritos são repetidos, mas sem os mitos, porque os romanos esqueceram o seu significado. Portanto, Roma, embora não tenha uma identidade étnico-mítica, consegue fazer com que os seus habitantes, vindos de fora, não se sintam estranhos, marginalizados, mas cidadãos com plenos direitos. Cidadãos de uma "cidademundo". Como já dissemos, a religião romana oferece um exemplo de um rito sem mito, de uma repetição muito precisa e escrupulosa de atos culturais, cujo significado original é silenciado, esquecido, ignorado. O mito original, baseado na lembrança da vida excecional de um deus, que consegue estabelecer a ordem na Grécia, encontra um destino oposto em Roma: aqui não é o mito, mas o seu esvaziamento. A separação entre rito e mito é o que permite erigir a ordem. A sua eficácia não é dada pela re-atualização de um ato originário, mas pelo seu desaparecimento através da anulação deste. Isto permite a integração da diferença. A coesão da urbs não é monolítica, mas tem uma estrutura de mosaico, composta de pequenos pedaços. Assim, permite uma extensão e expansão ilimitadas, que se abre para a mestiçagem de todos os povos do império romano. Ao contrário da 7
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Grécia, onde o mito das origens determina uma forte identidade étnica, que impede a diferença, que é o espaço dos bárbaros, ou seja, daqueles que não são gregos. Por esta razão, Roma é uma "cidade-mundo", assim como o são todas as cidades do império, que partilham com a capital (caput) o mesmo prazer pragmático pela mistura de comportamentos, de estilos de vida e de mentalidades abertas a combinações sempre mais surpreendentes e inesperadas. Aqui todos, sem distinção de raça, religião e cultura, podem viver a sua vida com plenitude de direitos, porque a ‘civitas’ romana é a sincronia (sincresi) de todas as manifestações espirituais do império (Perniola, 1985, p. 149-172). Ethos barroco A civilização romana da "cidade-mundo", como mostra o filósofo italiano M. Perniola, encontra-se na cultura barroca. Uma cultura muito exuberante em Portugal no século XVIII, e também no presente, em Évora. O barroco, influenciado pela Contra Reforma católica, opõe-se à Reforma protestante que projeta os seres humanos não no mundo, mas em si mesmos, como revela H. Arendt, porque o nascimento do capitalismo que ela propicia, de acordo com M. Weber, leva à perda e à alienação do "mundo comum". Na verdade, a defesa da identidade subjetiva não nos faz entender a mudança, o devir, a diferença, que são imprevisíveis. O barroco opõe-se também ao humanismo renascentista que faz do homem o senhor do mundo e da história. Nesta luta, a cultura barroca recupera a temporalidade kairológica típica da ‘civitas’ romana, segundo a qual não somos donos do nosso destino, nem da nossa língua: não nos pertencem, mas nós pertencemos-lhes. O barroco sustenta que o fluxo das coisas na história não tem um desenho racional. Entre o otimismo estúpido e o pessimismo sem esperança, o barroco não propõe o caminho do meio, mas a aposta na diferença excessiva da história, que tem sempre outros resultados para além dos desejos e medos dos homens. De fato, não depende do homem escolher as cartas que lhe são atribuídas para enfrentar o destino, mas cabe-lhe decidir como jogá-las: não pode escolher o seu próprio jogo, mas pode agir de muitas maneiras. Portanto, como dizem os jesuítas, todas as oportunidades devem ser fruídas para a maior glória de Deus (ad maiorem Dei gloriam). Tal significa que toda a situação tem sempre uma hipótese de 8
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sucesso, apenas é preciso saber colhê-la. O mestre da temporalidade barroca, B. Gracian escreve: «Si sappia trasformare in trionfo la fine stessa. O Barroco é um pensamento de oportunidade, como o romano, através do qual é possível "sentir e saborear as coisas". Devemos estar prontos a escolher e a transformar qualquer situação. Portanto, na experiência dos seguidores de I. Loyola o mundo da história e da escolha não são opostos. Na verdade, o próprio mundo é assim, percebido como diferença, descontinuidade, inovações emergentes, que constituem os critérios de escolha. Assim, de acordo com a tradição jesuítico-barroca, não é a temporalidade o fundamento da historicidade mas, ao contrário, é a história que estabelece a temporalidade. Ora, este tempo como história não exclui o âmbito da utilidade, da economia, mas inclui também o que é inútil. Por fim, o barroco combate a modernidade cartesiana, fundada exclusivamente no "sentir a partir de dentro", que, fundando-se na subjetividade, não entende o mundo, e por isso também o amor pela salvação do mundo pode ser falsificado e pervertido. Também a importância que o conceito de ‘vida’ assume no catolicismo faz parte do processo de subjetivação e ideologização, ao qual é forçado a submeter-se a partir da Restauração. A referência à interioridade subjetiva e a aversão a todos os objetos e dimensões cerimoniais, percebidas como degradantes, são destrutivas para o ‘sentimento ritual’ que o barroco recupera da civilização romana. O barroco é outra racionalidade, uma racionalidade insatisfeita, rebelde ao discurso intimidatório da razão científica moderna: é a razoabilidade de outra modernidade. De modernidade do Barroco fala o filósofo mexicano B. Echeverria. Para ele, o ‘ethos’ barroco promove a resistência contra a desumanização capitalista e resgata a existência concreta no plano imaginário, como mostra a arte barroca que cria vida dentro da vida. A atitude barroca torna-se assim uma alternativa de vida futura mantendo-se fiel à dimensão qualitativa da vida. Em oposição ao monólogo da razão humanista, solar e mercantil. Como já referi, a modernidade barroca é uma outra modernidade, desiludida e ambígua, é a “modernidade sombria do Barroco”, como lhe chama I. Chambers, com
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o seu claro-escuro, adverso do logocentrismo, do antropocentrismo e do eurocentrismo. Para Christine Buci-Glucksmann, a razão barroca combate a modernidade logocêntrica humanista e cientificista e supera o seu racionalismo instrumental. É uma razão distinta da otimista no progresso, porque surge do fosso de uma crise e de uma história diferente, de dor e melancolia. Portanto, vai além do logocentrismo frio e abstrato da modernidade cientificista. Por isso, é uma ‘razão apaixonada’, que, situando-se entre o racional e o emocional, recupera os sentidos do corpo, a espessura material da sensibilidade, o calor da emoção, a criatividade da imaginação, a vertigem do sonho, a paixão pela singularidade, a novidade, o incomum. Alimenta o jogo, a intuição, a paixão, a liberdade. Revela um ‘sentimento interior’, mas não antropocêntrico, como mostra o "Barroco vertical" teocêntrico de J.A. Comenius. É uma razão retórica, versátil e protéica, que procura mais persuadir do que convencer, usando não a força, mas a ‘sedução’ através da emoção. Pode ser considerada teatral, pois opera num mundo entendido como um palco. É aberta à experiência e aprende através do sofrimento, por isso está sujeita à ambiguidade e à contradição num mundo imperfeito, instável e mutável; sujeita ao desgaste do tempo, à decadência, à ruína, como sabia W. Benjamin. Portanto, é operativa, pragmática, mas prudente: sabe contemporizar, improvisar, como refere J.A. Maravall. Filha do pensamento da Métis é intuitiva, inteligente, móvel, polivalente, movendo-se na ambiguidade e na imprevisibilidade, aproveitando o momento oportuno (kairós) para agarrar a oportunidade favorável. É a inteligência das situações que, recorrendo à ‘circunstância’, aborda de forma oblíqua o mundo. Ao contrário do logos universal abstrato, dedutivo e apriorístico, este é um conhecimento agudo, prático, situada, do particular. Captura as analogias, as diferenças entre as coisas vizinhas e as semelhanças entre as coisas afastadas, muitas vezes misteriosas, que compõem a extensa rede de relações que cercam a realidade. Fá-lo com um pensamento imaginativo/ metafórico que ‘mostra’ a verdade do objeto, sem ter que o demonstrar: uma verdade que não é uma adaptação da
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ideia à coisa, mas uma relação, que define a ‘essência’ de uma coisa na relação com as outras. Destaca o singular, o ocasional, o detalhe que torna o ‘efémero’ compreensível. A razão barroca é inimiga do antropocentrismo porque se afirma em “aquela sensação deslumbrante da natureza, como infinito", que tira o homem do centro de um mundo feito de propósito para si, como diz L. Anceschi. O barroco também expressa um ‘sentimento exterior’, o de Loyola, que é um ser-se ‘nada nem ninguém’ para conseguir sentir ainda alguma coisa, quando a subjetividade deixa de existir. Um sentimento semelhante à obsessão e à possessão, situado num espaço intermediário entre o sagrado e o profano. E o homem, para ser possuído por esses poderes externos, deve fazer um vazio dentro de si mesmo. Só então podem falar nele e por ele. É um conhecimento anti-humanista que, removendo o sujeito do centro, faz da ‘coisa’, cuja essência é impenetrável, o espaço de qualquer experiência profunda, diferente, perturbadora, cuja voz se escuta em silêncio. É a experiência de se tornar uma coisa entre as coisas, que não é uma penetração mística, mas um confronto com a sua enigmática impenetrabilidade. É um sentir ritual, é o saber ver com um olho que não me pertence a mim nem a ti, é o acesso a uma dimensão neutra e externa, é o distanciamento do que é íntimo e individual. Este é um ‘efeito egípcio’, como o padre A. Kircher refere, o que nos faz penetrar no estatuto de ‘coisidade’, uma vez anulado todo o tipo de prometeismo, toda a pretensão de possuir as coisas. A razão barroca opõe-se finalmente ao eurocentrismo, porque o espaço do barroco é também o espaço colonial que nos liga ao tempo do outro. De facto, o barroco na América Latina é um movimento de fusão de culturas, revelador para S. Arrarián de "um ethos (ao invés de um logos), isto é, de uma racionalidade mestiça ou híbrida". É a razão dos jesuítas que são pró-humanistas na Europa, mas pró-confucionistas na China, pró-hinduístas na Índia. É um pensamento da diferença que ensina a respeitar outras culturas, a não ter medo de misturas, consciente de que a mestiçagem é a base do mundo. Por esta razão, incorpora através da assimilação sucessiva qualquer elemento estranho ad maiorem Dei gloriam. Assim, enquanto o humanista é o homem da identidade por excelência, o jesuíta é o homem da 11
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diferença sem reservas. Deste modo, estar na diferença da história é a condição para se agir eficazmente no mundo. Assim, a história só se realiza quando se consegue aceitar a diferença, e o seu método adaptado às condições reais dos envolvidos. Por isso, contra a modernidade logocêntrica, antropocêntrica e eurocêntrica, confiante no progresso e na possibilidade de agarrar e dirigir o curso da história com o projeto, lá está a figura barroca de Quixote para mostrar que a vida é imprevisível e o curso dos acontecimentos é incerto. Para o esquecido cavaleiro errante todas as coisas fundamentais, como o amor, a felicidade, o sofrimento, acontecem por acaso ou pela graça, são eventos ou dons inesperados. Ele oferece-se à incerteza da vida, a sua verdade não está “na asfixiante autocracia da interioridade", mas no confronto com os outros, com as coisas, as cores, os cheiros, os sabores, os acontecimentos, os alimentos. Assim, a paixão torna-se nele uma partilha do mundo, uma aventura entre as coisas. A sua loucura vai para além da aparência das coisas, sabendo que o verdadeiro mistério está nelas e na paisagem. Portanto, como escreve C. Magris, ele não tem fé na vida, que não sabe o que faz, mas nos livros, que não dizem o que é a vida, mas o que lhe dá sentido (Valleriani, 2007, p. 42-44). Évora cidade-mundo Penso que a ‘civitas romana’ e o ‘ethos’ barroco, que são patrimónios de Évora, podem guiar a cidade alentejana para um horizonte cultural de sentido transcultural em que o conhecimento seja descolonizado, a chamada "transmodernidade" do filósofo argentino J.A. Comenius L. Anceschi A. Kircher S. Arrarián de "um ethos (ao C. Magris, ele não tem fé na vida, que não sabe o que faz, mas nos livros, que não dizem o que é a vida, mas o que lhe dá sentido (Valleriani, E. Dussel (2005, p. 1-28). Um "pluriverso" desprovido de incrustações essencialistas, que não é um multiculturalismo tolerante de um tecido social formado por ilhas culturais não comunicantes entre si, mas a hibridação intercultural com base na tradução de diferentes experiências e diversas narrativas (Marramao, 2008, p.194). A sociedade planetária, de acordo com N. García Canclini, consiste em cruzamentos, intersecções, mistura entre o tradicional e o novo, em que mesmo
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a cultura erudita, a cultura popular e a cultura de massa estão interligadas. Assim, o seu universo cultural é "híbrido" e esta hibridação manifesta-se no tecido social como uma heterogeneidade multi-temporal (Canclini, 1998, p.13), como "a não simultaneidade do simultâneo" (Rincon, 1995, p.226), como " justaposição descontínua" (Imbert, 1995, p.43-60). Quer dizer, existe uma co-presença de tempos históricos e de fragmentos de formas de existência social com diferente origem histórica e geo-cultural, que é o principal modo de existência da sociedade e da história (Quijano, 2006, p.351). O que sugere uma visão transdisciplinar para superar as rígidas distinções disciplinares que escondem os seus próprios processos de hibridização. Por isso, a sociedade atual precisa de uma "lógica mestiça", que decorre da "ideia de uma mistura ou de uma mestiçagem originárias dos diferentes grupos que se formaram no decurso da história humana", como sustenta J. L. Amselle (2004, p.42, p.69-70). Para É. Glissant o "mundo criouliza-se” cada vez mais e a crioulização é a mestiçagem mais o inesperado e o imprevisível (Glissant, 1998a, p.16-17). Em toda a tradição cultural, como mostra Stuart Hall, a alteridade habita no interior da identidade através da "duplicidade" de semelhanças e de diferenças. No sentido de que a tradição é pontuada de fraturas, descontinuidades, pois vivemos experiências compartilhadas com os outros, mas, ao mesmo tempo temos experiências diferentes igualmente constitutivas do "que somos realmente": é uma identidade composta de ‘devir’ e de ‘ser’, num movimento contínuo. Deste modo, as culturas são espaços heterogéneos que, além de serem "formas de vida", são "formas de luta", que se cruzam de maneira constante (Hall, 2006, p.60-70, p.319). A tradição é a "memória viva daquele que muda", no sentido de que é algo que resiste aos efeitos desagregadores e desestabilizadores da história (Gilroy, 2003, p.13, p.326). Nela desempenha um papel importante a memória que se abre para o futuro através do "desejo", que é "vontade do futuro". Assim, consegue estruturar as visões do mundo, a imaginação, os mitos, os sonhos de cada homem (Escolano Benito de 2002, p.272; 2004, p.58-76). Estas considerações obrigam a reflexão educativa a posicionar-se no "limiar do mundo" e a interrogar-se sobre a possibilidade de um modo diferente de vivenciá-lo, 13
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de maneira a que o moderno conviva com o arcaico. Por outro lado, Évora foi romana, sofreu invasões bárbaras, foi árabe e, finalmente, europeia; no percurso da cidade têm-se sucedido muitos estilos diferentes: românico, gótico, manuelino, renascentista, barroco, etc. É uma exigência que nasce da necessidade de dar visibilidade às culturas, aos marginalizados, às mulheres, aos excluídos de todos os tipos, a quem a "violência epistémica" (Spivak 2004, p.158) do colonialismo e do imperialismo reduziu ao silêncio e que agora estão a ascender de forma determinada ao palco da história na procura de perspetivas de emancipação. O discurso educativo deve reconhecer que a modernidade historicista está ‘em cinzas’, e deve projetar-se com imaginação num universo humano transnacional plural, atravessado por processos culturais profundos que se sobrepõem e se entrelaçam de um modo fluído, não previsível, nos fluxos ou correntes de pessoas, bens, ideias, tecnologias, capitais, imagens, frustrando as antigas certezas das ciências humanas. A educação encontra, aqui, uma fragmentação dos horizontes culturais que quebra qualquer paradigma conhecido, tornando cada vez mais difusas as tradicionais paisagens sociais, étnicas, políticas e económicas, cujas fronteiras são cada vez mais fragmentadas, esfrangalhadas, irregulares (Appadurai, 2001). Segundo o estudioso indiano H. K Bhabha, estão a emergir no planeta identidades culturais transnacionais em continua tradução, e cujos discursos são gerados pela história dos movimentos de deslocação e das violentas alterações culturais. Essas identidades culturais são infundadas, mutáveis, artificiais, e a sua historicidade desmonta a pretensão naturalista do purismo essencialista e re-propõe a concretude ou pragmatismo da "invenção das tradições" (Bhabha, 2006, p.238). Sicché, de acordo com S. Rushdie, o exilado ou imigrante, obcecado por um sentimento de perda e um desejo de reapropriação, deve perceber que a procura de uma origem ou fundação perdidas é inútil. Corre-se o risco de criar pátrias imaginárias, “Índias da mente" (Rushdie, 1991, p.14). G. Vattimo pensa que neste lugar de contaminação e de marginalidade manifesta-se hoje o sentido da existência (Vattimo, 1985, p.169-170). É nesse laboratório criativo que, de uma combinação de elementos pertencentes a diferentes sistemas, extrapolados a partir do contexto e misturados, está a nascer a ‘partir de baixo’ um 14
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novo sujeito social, inter(intra)cultural. É um espaço transnacional e transcultural de miscigenação e de ligações conceptuais: um "espaço intersticial" (in-between space) de "lugares de cultura", refere Bhabha (1997, p.241; 2006), onde se experimentam novas formas do humano emergindo de fenómenos sociais que a educação não pode ignorar se quiser "mudar as categorias e valores que guiam as nossas vidas" (Young, 2005, p.8, p.29). Portanto, deve afirmar o princípio ético de "aprender a viver no hibridismo como se fosse a sua casa" (Chambers, 2003, p.186) e “viajar-naresidência, residir-na-viagem” (Clifford, 1989, p.52). Mas para G. Chakravorty Spivak a identidade social inter(intra)cultural deve ser olhada de forma crítica, já que nas metrópoles multiculturais corresponde a uma minoria de pessoas, às vezes abastadas (Spivak, 2004, p.437). Devemos, por isso, evitar a "contemplação" de uma suposta liberdade de desenraizamento que pode reduzir a contaminação a “uma apologia meramente estética de identidades nómadas e ‘híbridas’”, ignorando a carga de ‘sofrimento e dor’ que acompanha as suas vidas. Só assim pode nascer um laboratório coletivo em que fermente "o aparecimento contraditório de uma nova figura do universal, que ainda está à espera de ser interpretado e valorizado politicamente" (Mezzadra, 2000, p.150-153). A educação deve então questionar-se, no sentido barroco, sobre como "contextualizar o universal, ao mesmo tempo que o preserva como uma ideia reguladora" (Ricoeur, 1997, p.97), porque o futuro do mundo, bem como dos ‘grandes eventos’, dependerá cada vez mais dos “condenados da terra” (Fanon, 1962). Portanto, é necessária uma lógica hermenêutica como ‘saber de fronteira’ que, no encontro com outras culturas, seja ‘multi-local’, isto é, enraizada em contextos diversos. Ela cruza narrativas com outros mundos culturais, sem os assimilar ou perder laços com o local de onde provêm, porque circula de um lado para o outro. Ou seja, é deslocada, descentrada, mas "não erradicada", cada um posicionando-se no seu lugar: "todos falamos sempre de um lugar específico, de uma história, de uma experiência e de uma cultura particular" (Hall, 2006, p.238-239). Os estudos culturais reivindicam vigorosamente o "posicionamento" da cultura, porque o conhecimento nunca é neutro, mas sim uma expressão de uma determinada historicidade local (Patella, 2005, p.28). No entanto, estar situado etnicamente 15
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permite-nos trocar histórias com outras etnias, pelo que a sua interpretação, para além de ter uma dimensão diacrónica, que é medida pela distância histórica, tem um carácter diatópico, que tenta perceber a diferença entre culturas de lugares diferentes (Panikkar, 2000, p.24-25). A educação neobarroca sabe que a sua missão é trabalhar para um propósito similar, a fim de ajudar o homem a dar sentido à contingência que o atravessa num mundo sem deuses que já não é o cenário de apenas uma única grande história contada pelo colonizador branco, mas povoada por uma infinita pluralidade de pequenas histórias em busca de serem contadas. Baseia-se numa ética animada por um espírito trágico que abre ao homem horizontes criadores de sentido. Isso orienta a pedagogia neobarroca, não tanto no sentido humanista em direção a um ‘mundo melhor’ a construir, mas num sentido pós-humanístico, embora não desumano, de forma a que o ‘outro no mundo’ possa ter voz. É uma pedagogia que coloca, no centro da reflexão, em lugar do homem, o sentido da existência que hoje se manifestada em metáforas como hibridização, mestiçagem, fronteira, alteridade, diferença. Com a sua alma barroca, tende a ‘superar a linha de cor’ que divide brancos e negros (Du Bois, 2007). E fá-lo com as categorias éticas da experiência do acolhimento e da hospitalidade. O que é válido para os indivíduos também é válido para a cultura, em que o acolhimento se manifesta sob a forma de hospitalidade linguística, como um ethos da tradução de uma língua para a outra e sob a forma de hospitalidade narrativa, como uma troca de memórias (Ricoeur, 1992, p.15-21). Deste modo, a hospitalidade gera um "conhecimento do limite" que é um compromisso, isto é, um ser com, um ser junto de – a alteridade – em que a diferença não é realçada, embora seja conhecida a sua irredutibilidade. Assim, o eu e o outro comunicam num excesso recíproco, em que a paixão de si e a paixão do outro geram uma tensão mútua que é compaixão, que é estar inserido na mesma paixão, o fluxo de um eu descentrado, exposto ao mundo para que o mundo se exponha (De Luca, 1995, p.12-14, p.94). O que leva o Ganese K. Wiredu, que reforça as ideias de Quine e Davidson, a invocar o princípio da caridade e do respeito como condição sine qua non da
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tradução/interpretação para reconhecer no diálogo entre diferentes culturas a humanidade do outro homem (Wiredu, 1998, p.144). Assim, a educação neobarroca deve procurar uma ética similar para tornar este sonho fecundo, precisamente porque a experiência não é ciência, mas paixão, exposição ao desconhecido, recetividade à diversidade, abertura à alteridade, partilha de caminhos num processo histórico sem fim. E a paixão é tensão entre liberdade e responsabilidade, entre prazer e sofrimento, identidade e diferença, vida e morte. Convida à educação para formar um homem experimentado, não sage mas sábio, não dogmático mas que saiba dar um sentido de solidariedade ao que é fragmentário. É uma sabedoria adequada a um mundo em que a crise das verdades absolutas dá lugar à contingência e à possibilidade de escolha, em que ganha novo vigor o antigo conhecimento de que a oportunidade tem a ver com a ocasião. É um universo tipicamente barroco que se enquadra com o espírito da Metis, filha de inteligência astuta, que é a perspicácia, a agudeza del ingenio de Gracián (Valleriani, 2006, p.55-64). A educação neobarroca, essencialmente, sabe que as coisas mais importantes não são ensinadas nem aprendidas, que cada um deve experimentá-las de forma direta, através de caminhos irrepetíveis e individuais. Que os homens, como diz T. Mann, são ‘diletantes da vida’ e que qualquer tentativa de os tornar ‘profissionais’ será em vão, uma vez que a experiência estará sempre inacabada (Bodei, 1991, p.114-115). No entanto, a herança desta sabedoria faz de Évora uma ‘cidade-mundo’ que, com a sua hospitalidade ética, anuncia ao mundo o sonho de um novo modo de ser humano: "o sonho de uma polis universal mestiça", como lhe chama o filósofo dos Camarões A. Mbembe. Uma cidade baseada na experiência de uma paixão comum pelo que nos diferencia (Mbembe, 2008, p.65) e governada por uma ética dos cuidados em relação ao outro e de que o mundo herdado em conjunto deve ser preservado. Modo de sentir atual Neste ponto surge a questão de como é que hoje podemos abordar corretamente os monumentos mais antigos e menos antigos de Évora. 17
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Devemos descartar imediatamente a ideia muito generalizada, mas anti-histórica, entre a massa não qualificada, de que é possível regressar ao tempo do artista e voltar a ter de novo as mesmas emoções e sentimentos experimentados pelos admiradores originais das obras do passado na época em que foram criadas. Um regresso impedido pela distância histórica que existe entre os monumentos e nós, que não pode ser abolida. Se o fizéssemos, abolindo o intervalo de tempo que nos separa deles, imporíamos a nossa forma de sentir à forma de sentir de uma época passada. Assim, perderíamos qualquer possibilidade de interpretar o significado e o valor desses documentos pétricos, que são textos para serem compreendidos e interpretados na sua realidade. Apenas podemos interpretar uma obra do passado, como sendo do passado. Mas como acontece esse trabalho hermenêutico? Um grande mestre da hermenêutica, H.G. Gadamer, ensinou-nos que nos aproximarmos de um texto, literário, filosófico, artístico, com os nossos ‘preconceitos’, que são do nível da pré-compreensão, da pré-lógica ou do inconsciente, e que permitem o ato de compreensão. No encontro dos nossos preconceitos com o texto, neste caso um texto artístico-cultural, ocorre uma ‘fusão de horizontes’ que conduz à interpretação do trabalho. E isso só é possível porque tanto a obra quanto os usuários pertencem à mesma tradição. Estabelece-se deste modo um diálogo entre o intérprete e o texto que possibilita o trabalho hermenêutico (Gadamer, 1983). A primeira objeção a Gadamer vem de P. Ricoeur, que observa que, desse modo, tanto o intérprete quanto a coisa a ser interpretada ficam esmagados sob o peso da tradição. Isso faz com que desapareça a distância histórica e, portanto, a voz ou as marcas do outro, que nos chega do passado distante, pelo que não é necessário o diálogo mas a narrativa, porque salvaguarda a alteridade. Ricoeur sugere inserir entre a compreensão e a interpretação do texto, os dois polos em interação de Gadamer, a "explicação", que cria o distanciamento da tradição, permitindo que a alteridade se manifeste em plena autonomia. A explicação filtra preconceitos, removendo tudo o que é subjetivo, óbvio e trivial, permitindo assim um ato cognitivo correto. Deste modo, a obra destaca-se do pensamento do autor, dos seus primeiros admiradores, da época em que foi produzida, e adquire uma vida e uma autonomia 18
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próprias no tempo e no espaço, para que possa reviver todas as vezes em que se encontra
com
um
intérprete,
culturalmente
alfabetizado,
que
a
interroga
(Ricoeur, 1989). Outra objeção à hermenêutica gadameriana, mas também à ricooeuriana, vem de H.R. Jauss, fundador da estética da receção da Escola de Constança, o qual afirma que, em vez da explicação, mais importante é a "separação de horizontes". Para Juass, portanto, devemos distinguir claramente o horizonte de quem interpreta da coisa a ser interpretada. Dessa forma, é possível restabelecer a distância histórica e salvaguardar a autonomia da alteridade, que assim pode fazer com que a sua voz seja ouvida do passado, ainda que atenuada. Referindo-se à estética de M. Bachtin, Jauss sugere entrar no horizonte do texto para identificá-lo e depois sair para enfrentá-lo e estudá-lo criticamente. O que significa que antes da "fusão de horizontes" proposta por Gadamar deve haver uma diferenciação de horizontes. Só assim será possível ter uma interpretação correta de uma obra de arte. Além disso, enquanto Gadamer pensa que deve ser o texto a interrogar o leitor, Jauss acredita que a pergunta deve partir do intérprete. Se uma obra não encontrar um admirador que a interrogue para tirá-la do esquecimento, ela permanecerá em silêncio (Jauss, 1987/88). W. Iser, um discípulo de Jauss, partilha a tese do seu professor e sublinha a importância, na interpretação de uma obra, do encontro entre a sensibilidade do fruidor e as solicitações do texto. Só assim nasce a interpretação de uma obra. Ele explica que a estrutura textual de cada composição artística é composta de zonas de "indeterminação", isto é, de pontos vazios, que a tornam ambígua, polissémica, pelo que se torna necessária a intervenção do leitor. Este último, portanto, com o seu contributo, deve preencher os "vazios" do texto, monumental ou documental, com o ato hermenêutico que torna compreensível a mensagem de uma produção artística. O ato de leitura deve, portanto, responder à "estrutura de apelo" do texto (Iser, 1987).
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Percurso hermenêutico Para concluir. Do diálogo entre esses estudiosos, referindo-se à leitura dos monumentos, acho que podemos dizer que: 1) entre nós e as obras do passado, que são textos para interpretar, há uma distância histórica que não se pode abolir sob pena de impossibilitar a compreensão da mensagem; 2) como não se pode voltar ao tempo em que a obra foi produzida, é necessário um olhar hermenêutico; 3) abordamos esses documentos com os nossos preconceitos, que chegam à linguagem através da compreensão; 4) a compreensão, o primeiro momento de aproximação a uma obra do passado, é o conhecimento inicial, ingénuo e espontâneo do texto em que prevalece a subjetividade do fruidor, que pode, sem inibições explicitar os seus preconceitos; 5) A explicação, segundo momento que aprofunda o primeiro, é o momento científico com o qual se deve filtrar e superar a própria subjetividade, que é dominante na compreensão. Trata-se de uma análise estrutural de tipo semiológico destinada a elevar a obra à categoria de entidade autónoma, regida por códigos próprios, que exclui a intenção de sentido, isto é de significado, desejado pelo autor e conjeturado pelo leitor; 6) a interpretação, resultado da dialética entre compreensão e explicação, é o momento final da autonomia relativa alcançada pelo fruidor da obra do passado; 7) isto acontece antes da chamada ‘separação de horizontes’, o do intérprete e o do texto a interpretar, para fazer com que surja, de forma autónoma, a mensagem do outro, isto é, o significado da obra; 8) só depois ocorre a ‘fusão de horizontes’ entre o fruidor e o produto artístico; 8) a interpretação é um ato hermenêutico em que na dialética com o texto a contribuição do leitor é fundamental. Este é o itinerário complexo para a interpretação correta das obras do passado (Rosa, 2009). Cenário influente de sentido Então, por vezes encontramos uma produção do passado, um pedaço do mundo que nos interpela, neste caso um monumento, uma igreja, um palácio, uma pintura, uma rua de Évora. O impacto força-nos a reagir com toda a nossa pessoa (mente, sentidos e coração), e o evento que ‘abre um mundo’, como diz Ricoeur (1989, 106107) ao referir o que é o mundo da cultura e da arte. Surge aqui o ato hermenêutico
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que, através da imaginação criativa, gera um cenário influente de sentido que nos cativa e nos seduz. Com esta operação hermenêutica interrogamos o objeto artístico e tornamo-nos, como diz G. Deleuze, ‘egiptólogos’ que estudam os ‘hieróglifos’, ou seja, deciframos os sinais emitidos pelo monumento, estátua ou frescos, que se revelam no encontro connosco. Portanto, pensar é interpretar, traduzir os sinais para captar os sentidos da linguagem secreta dos hieróglifos/monumentos. Só assim é possível "apresentar o ausente", já que a representação que temos é sempre uma mediação entre o visível e o invisível, entre a vida e a morte. A partir de então esse objeto nunca mais irá consentir ser tratado como algo frio e distante, porque é um vestígio do passado sedimentado dentro de nós, da composição da nossa forma de sentir, intrinsecamente ligada à nossa história pessoal, em que os olhos são a visão e o tato, influenciados pela ‘memória cultural’ que transportamos connosco. Outras vezes, os monumentos situam-se num plano estético diferente, não empático e emotivo, porque se mostram como uma fria essência impenetrável, um ‘enigma’, às vezes inquietante, ameaçador, cuja voz deve ser ouvida num silêncio profundo. Perniola falava de ‘emoção metafísica’, que interrompe o fluir histórico e silencia o sujeito, que é sequestrado pela presença monumental e experimenta um arrebatamento involuntário. Desde que o mundo está povoado de demónios, é preciso descobrir um demónio em todas as coisas para se ser possuído e experimentar a emoção metafisica. É a experiência neo-barroca da existência de uma coisa atrás de outra que sugere a ideia da sua impenetrabilidade enigmática, que faz da impenetrabilidade da ‘coisa’ o espaço (scrigno) da experiência profunda, diferente, perturbadora, cuja voz é escutada em silêncio. É o "sentir ritual", o saber ver, com um olho que não me pertence a mim nem a ti, o acesso a uma dimensão neutra e externa, o alheamento do que é íntimo e próprio. Esse "efeito egípcio" que nos faz penetrar no estatuto da ‘coisidade’, logo que qualquer subjetivismo, qualquer pretensão de nos apropriarmos da coisa, forem silenciados. Assim, cria-se o vazio em nós próprios e a força demoníaca da coisa penetra-nos, perturbando-nos (Valleriani, 2004, p.18-20).
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No final nada resta senão o silêncio com que esquecemos o barulho ensurdecedor do mundo e conseguimos capturar algum segredo essencial. Desta forma, ultrapassamos a face visível das coisas para penetrar no significado oculto do mundo. Isto só a arte nos pode permitir, uma vez que o objeto é sempre mais do que aquilo que a sua visão deixa entrever: "o corpo torna-se aqui o lugar privilegiado de contaminação entre ser e aparência, sendo a visão artística a coexistência corpórea com o mundo" (Valleriani, 2004, p.29-30). Esta experiência estética, que gera prazer estético, torna-se uma construção simbólica e o fruidor torna-se co-produtor da obra. Assim, o universo artístico de uma época passada, que é memória e história, torna a falar à nossa sensibilidade e a enriquecer o nosso imaginário. Deste modo se cria a irresistível atração que exerce a refinada cultura artística de Évora, mas sem se alimentar a ingenuidade quanto à possibilidade de recuperar um tempo original e uma experiência pura e autêntica, que são negados pela inevitável distância histórica (Valleriani de 2002, p.410-411).
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I. Cidades educadoras são cidades-mundo onde o fruidor se assume coprodutor da obra que é a convivência humana
«Para não temer o outro Combinar com o outro Para não temê-lo, olhá-lo, O medo do outro é o outro que não vejo: É A distância!» Di Tommaso3
O poema em epígrafe, que António Valleriani cita no final do seu último livro – Al di là dell’occidente –, poderá também ser convocado para explicação do encontro entre o professor Valleriani e duas estudantes portuguesas, e a sua subsequente escrita de um texto sobre Évora, intitulado «Memória e Património em Educação». As duas alunas do curso de doutoramento na área da Educação, orientado pelo professor espanhol Agustín Escolano Benito, tinham sido recomendadas por este ao filósofo italiano, para estudarem em conjunto algumas das suas propostas de uma hermenêutica distópica para a Filosofia da Educação. Com efeito, o professor Escolano (como é conhecido pelos seus alunos) seguia com atenção o trabalho «pedagógico cultural» que o «grupo de Teramo» (Itália), vinha desenvolvendo por altura dessa primeira década do século XXI, sob a direção de António Valleriani, e inspirado na hermenéutica de Paul Ricoeur com quem o filósofo italiano trabalhara poucos anos antes4. O encontro entre as alunas e o professor, próximo de Roma, teve inicio numa manhã de novembro de 2008, em trânsito. António Valleriani e a sua companheira Marilena Nibid, esperavam as estudantes portuguesas num ponto previamente combinado, na autoestrada que liga Roma a Montorio al Vomano, Teramo, onde os dois viviam. «Trânsito» é também um conceito defendido por Mário Perniola, outro filósofo italiano, contemporâneo, com quem Valleriani partilhava influências. «Eu acredito que há mudanças, mas que elas ocorrem lentamente. Há formas que atravessam os Di Tommaso, cit. por Valleriani em Al di là dell’occidente, 2009, p.144. De tais influências mútuas e partilhadas, num espírito de comunidade cientifica, dá conta o professor espanhol num dos seus mais recentes livros: «Os contributos dos trabalhos de Teramo é de grande valor porque todos eles radicam na experiência como fonte primária da cultura empírica da escola» (ESCOLANO, 2017, p.176) 3 4
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séculos e se desenvolvem de uma maneira lenta, por isso uso a palavra trânsito», explicava este autor, por altura da apresentação da edição brasileira do livro Pensando o Ritual. Sexualidade, Morte, Mundo. (PERNIOLA, 2000) 5 Antes desse encontro no trânsito de novembro de 2008, nenhuma daquelas quatro pessoas – que então se olharam, por uma primeira vez, num ponto previamente combinado – se sentia totalmente seguro, ou sabia se teriam algo para partilhar ou construir conjuntamente. Era apenas certo e seguro o desconhecimento do outro. Transportavam, contudo, uma referência comum que gerara aquela oportunidade de se encontrarem: o Professor Escolano. E transportavam ainda na sua bagagem o desejo de aprender e de ensinar a se libertar do medo do outro, do medo da diferença. As alunas aprenderam nesses dias, no ciclo de Teramo, que o Professor Valleriani propunha o ritual de olhar e acolher o outro. Defendia esse «rito sem mito» na sua Filosofia da Educação e exercitava-o na sua própria vida. Terá sido esse seu posicionamento, exposto no texto agora traduzido, associado à «vontade de combinar com o outro» plasmada no poema, que explicam o encontro, o acolhimento e a produção do ensaio que dois meses depois Valleriani intitulou «Memória e Património na Educação» e remeteu às duas alunas. O texto propunha-se ser um contributo generoso do filósofo da educação para as investigações que as estudantes portuguesas encetavam por essa altura. Constituía uma síntese orientada para respostas às questões colocadas no âmbito desses trabalhos em curso, a partir da sua reflexão sobre a Educação contemporânea, expressa no livro Al di lá dell’ocidente. A obra estava então no prelo e o professor Valleriani apresentou a estas estudantes, durante uma semana em sua casa, os traços que considerava mais expressivos do seu pensamento, exposto nessa sua ultima obra.
4.
Entrevista dada ao jornal O Estado de S. Paulo, em 3/12/2000, com o título «Ir à Roma antiga para entender o mundo moderno» https://operamundi.uol.com.br/analise/53428/da-roma-antiga-as-raizes-do-brasil; https://cienciadaabelha.wordpress.com/2009/12/03/mario-perniola/
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Uma das referidas investigações centrava-se sobre Évora para indagar sobre a sua dimensão de cidade educadora. Valleriani propôs que se pensasse a cidade-mundo a partir da cidade romana que, segundo estes filósofos italianos, se distingue da polís grega por vários itens a considerar. Mas, talvez, a principal diferenciação entre a polis grega e a cidade romana seja a origem associada ao mito, que na antiga Grécia era relevante e na cidade romana se perde, dando lugar à repetição, sem original, ou ao «rito sem mito» que Valleriani defende. Sobre o conceito de cidade-mundo, já explanado por M. Perniola, Valleriani associou-o neste texto ao «ethos barroco» e a «um modo de sentir atual», propondo que a educação na cidade contemporânea considere os universos artísticos, incluindo os de épocas passadas traduzidos em memória e história. Todas essas artes – que proporcionam a experiência estética que gera prazer e construções simbólicas – deveriam ser especialmente consideradas num processo educador. Ou seja, um processo onde o fruidor se torna co-produtor da obra. Vislumbra-se, por aqui, uma via possível para a construção da Cidade Educadora. A proposta de António Valleriani para a educação recomenda que a repensemos. Porque, como explica à entrada do livro Al di lá dell’occidente, enquanto emanação e resultado da modernidade ocidental que «se apresenta historicamente como modelo único e superior a todas as outras culturas do planeta, e exclui a infinita pluralidade das vozes da vida na periferia, cuja riqueza é redutoramente silenciada» (VALLERIANI, 2009, 9). Esta educação não responde às necessidades do tempo e do mundo contemporâneos. A mesma ideia, enquanto premissa principal do trabalho de Valleriani, surge reforçada, como que a insistir para que seja ouvida, no encerramento desse seu ultimo livro: Penso que o Ocidente deve interrogar-se sobre o seu projeto político pedagógico humanista, centrado sobre a copia conceptual do Bildung/Kultur, para ver se o ideal dessa classicidade grega ainda responde aos sinais do tempo odierno, desencantado, liquido e proteiforme. Ou se não se deve abrir ao pensamento della differenza, um pensamento de alteridade capaz de gerar “um olhar sem possessão”, discreto, porque traz em si a doçura do pudor, processos democráticos, que é acolhedor e hospitleiro,
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convivial e pacífico, que pratica uma pedagogia solidária. É um pensamento de quem sabe habitar a distancia sem erigir muros (VALLERIANI, 2009, 144).
O ensaio escrito por António Valleriani no início do ano da sua morte, destinado a constituir-se como contributo para duas teses de doutoramento sobre Educação em elaboração em Portugal, que permaneceu inédito e agora se publica, pode ser lido como uma introdução a esse seu último livro, apresentado nesse ano em Itália, mas que não conheceu, até este momento, tradução para a língua portuguesa. A intenção da publicação deste texto recupera esse desejo de, por via da publicação de Valleriani em português,
contribuir ou inspirar para outra educação, mais
sintonizada com o sentir do tempo que vivemos e dos espaços que habitamos.
II. Valleriani e Évora. A vocação de cidade-mundo de uma Cidade Educadora Retomamos uma das questões colocadas no resumo: por que razão Valleriani se refere a Évora se nunca a visitou? Dela tinha uma visão imaginada, sobretudo construída a partir da conversa com as duas doutorandas, tal como o testemunho anterior confirma. No imaginário construído, Évora afigura-se-lhe ser uma cidademundo com o cunho da civitas romana, duas noções nucleares do livro Al di la dell’Occidente. La svolta neobarroca dell’educazione e do qual não se pode desligar o texto inédito dado aqui a conhecer pela tradução, segundo vontade do autor. Escreve na abertura: «Évora deve redescobrir a sua antiga vocação de cidademundo, que deriva do facto de ter sido uma civitas romana». Inegavelmente Évora é, tanto quanto a arqueologia põe em evidência ou oculta para preservar, uma cidade inscrita na província da Lusitânia, honorificamente chamada Ebora Liberalitas Iulia6. No centro distingue-se o templo do século I 7, popularmente atribuído a Diana, e à sua volta são muitos os vestígios arquitetónicos padronizados pela política de romanização. Uma política feita de conquistas e alianças com os povos locais, mais ou menos resistentes, e firmado pela presença simbólica de Roma, instauradora de um modelo de civitas pautada pela identidade e diferença. Évora romana integrava 5
Jorge Alarcão distingue três níveis de aglomerados populacionais, pertencendo Évora ao primeiro tipo: «Temos ultimamente chamado a atenção para a existência, em Portugal, sob o domínio romano, de três níveis de aglomerados populacionais (cidades, civi e aldeias, incluindo nesta última categoria os castella ou castros romanizados) e para três tipos de povoamento rural disperso (villae, granjas e casais)» (ALARCÃO, 1998, 177). 7 Sobre o exemplo escolhido consultar DIAS, 2007, p. 195-212.
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uma rede de centros habitacionais beneficiados pela civilidade que conjugava hibridamente a identidade, derivada do reconhecimento da pertença comum a Roma, com a diferença própria de cada povo conquistado. É esta conjugação categorial – identidade e diferença – que origina uma multiculturalidade e uma mestiçagem desconhecidas da Grécia, tendencialmente eugénica, como lembra Richard Sennett: «Os gregos não cogitavam transformar os povos conquistados em atenienses. Roma, sim, queria exatamente uma metamorfose desse tipo» (1997, p. 87). Para além de ser romana por via da civitas outorgada, e neste sentido uma cidade do mundo romano, Évora reforçou o seu vínculo a Roma pelo catolicismo, representativo de uma outra onda de distensão e vinculação. O catolicismo foi uma onda ideológica que cobriu a Europa, a unificou e uniformizou mentalmente. Dois impérios – o da civitas e o da fé – que tornam Évora uma cidade duplamente conquistada por Roma. Nisto nada há de singular quando se consideram as demais cidades europeias. Todavia, a reduzir a amostra, é nela que no Renascimento têm lugar acontecimentos relacionados com a criação de um novo império, cujos ideais se transportaram em caravelas pelos oceanos e cujas fronteiras se fixaram noutros continentes. Nair Soares contextualiza essa expansividade: Falar de Évora no Renascimento é seguir os passos do nascente humanismo português até ao seu período áureo e ao seu declinar. E, antes disso, é fazer um percurso aliciante de um mundo em transformação. Em Évora, se despede do rei, Vasco da Gama, ao partir para a Índia, onde chega em 1498, marco universal do início da Idade Moderna (SOARES, 2018, p. 299).
Roma continuou presente em Évora, anichando os ideais contra reformistas e a Segunda Escolástica, precisamente na universidade eborense fundada em 1559 8. Centro de estudos filosófico-teológicos, muitos dos que participaram na difusão da fé enquanto se dilatavam as fronteiras receberam nela formação evangelizadora (SANTOS, 2009, p.111-136). Évora passou a representar um topos de apoio à 8
Convém não esquecer o lado tenebroso da cidade que montou o primeiro Tribunal da Inquisição, instituído por publicação da bula Cum ad nihil magis, a 22 de outubro de 1536 (Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa PT/TT/TSO-IL). Para aprofundar os princípios de funcionamento do Tribunal no quadro ideológico da época indica-se o livro Giuseppe Marcocci e José Paiva, História da Inquisição Portuguesa 1536-1821. Como lembra Eduardo Lourenço, o Tribunal tem servido de bode expiatório de certos traços da mentalidade coletiva tendente à mitificação (1992, p. 92).
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abertura do novo mundo, deixando de ser apenas um topos somado à conquista de César. Numa perspetiva hermenêutica repete-se a combinação das mesmas categorias – identidade e diferença – mas esvaziadas do sentido integrador da civitas romana. No século XVI, a identidade e a diferença estão plasmadas na estética barroca, que exprime o ethos da cidade pela participação na decisão expansionista ultramarina. Um ir e vir pelos oceanos. Um levar e trazer de continentes. Cornucópia de exotismos culturais em várias línguas, gentes, animais, matérias e formas. Tudo a criar a impressão de abertura, vitalidade exuberante e devir. A ostentação barroca encontra-se em algumas das igrejas de Évora, particularmente na pequena Igreja da Misericórdia revestida a azulejos e talha dourada. Essa ostentação imagética resultante da projeção do novo mundo – encontro experiencial com o diverso no seu todo – reflete-se depois na conceção estética que exorbita um mundo real até então pequeno e que pela imaginação revela a extravagância do que nele está contido. A estética barroca dá conta do atordoamento que o diverso provoca e do esforço de busca de uma identidade que tudo conjugue. Daí a sensação de esmagamento que as técnicas pictóricas estimulam e que Heinnrich Wölfflin categorizou em 1915: o trompe d’oeil para tridimensionar as representações com fluidez, as pregas e os contrastes entre claro e escuro para avolumar e criar profundidade, a mancha e a imprecisão para indeterminar ou os movimentos redondos orientados para o centro e fugindo do centro para dar dinâmica e introduzir a temporalidade (WÖLFFLIN, 2015). Toda esta representação cénica aglutinadora de narrativas é deliberada e sujeita a uma leitura ética que Valleriani faz pela ótica da transculturalidade descolonizada. Ora, e aqui se manifesta a nossa discordância, o ethos barroco está ancorado no colonialismo e não no seu oposto, cultiva dicotomias de domínio e subjugação e não investe na integração valorizadora da diferença e respeitadora de identidades. Quando Valleriani deduz da mentalidade estética do barroco a ética cívica, ignorando a intolerância e crueldade das decisões humanas, temos de ler ‘barroco’ por ‘neobarroco’. A seguinte passagem mostra o salto: Penso que a civitas romana e o ethos barroco, que são patrimónios de Évora, podem guiar a cidade alentejana para um horizonte cultural de sentido transcultural em que o conhecimento seja descolonizado, a chamada ´’transmodernidade do filósofo argentino 35
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E. Dussel (2005, p.1-28). Um ‘pluriverso’ desprovido de incrustações essencialistas, que não é um multiculturalismo tolerante de um tecido social formado por ilhas culturais não comunicantes entre si, mas a hibridação intercultural com base na tradução de diferentes experiências e histórias (Marramao, 2008, p.194).
Que a civitas romana seja património de Évora é mais evidente se comparado ao ethos barroco. As categorias identidade e diferença ficam sumidas no texto perante os adjectivos transcultural, descolonizado e hibridação intercultural, qualificadores do neo-barroco enunciado por Omar Calabresse (1999). É admissível que Valleriani estivesse a pensar positivamente numa cultura celebrativa dos múltiplos modos de pensar, sentir e ver, superadora do colonialismo, das dicotomias e do reducionismo. Uma cultura incorporadora de manifestações diferenciadas, fragmentárias, fracas, infantis, ou seja, estivesse a pensar numa cultura neobarroca; uma cultura capaz de ultrapassar a contenção emocional e o racionalismo; uma cultura que referencie a inclusão plástica de tudo num todo, seja pequeno ou parcial ou exótico ou mitológico. Daí retornar ao barroco para configurar a sua proposta. É a partir do fundo barroco que o neobarroco
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arranca para valorizar a
adaptabilidade, flexibilidade, coexistência do diverso, multiculturalidade e o pluritopismo integrador. Talvez, e voltamos a admitir o pressuposto, o filósofo tenha presente esta articulação, da qual se apropriou, e com ela tenha fundido as duas manifestações estéticas. Deste modo, os adjectivos ‘transcultural’, ‘descolonizado’ e ‘hibridação intercultural’ são transferidos e tornados próprios do ethos neobarroco. Então, retomando o raciocínio de Valleriani, qual o ethos neobarroco da cidade? Numa perspectiva urbana, há um pluritropismo e uma pancronia que descentraliza as cidades e centra nelas todo o mundo, com muitas margens e fronteiras, com muitas curvas, contracurvas e recurvas para nada excluir, com muitos tempos e muitas escalas de mínimos e máximos. O ethos neobarroco torna a cidade porosa e toda a cultura e vida transita pelos seus poros, activando complexas redes de contacto. Certo que se distingue do ethos barroco que faz da cidade expressão de um todo territorial integrador, organizado num espaço de limites alargados. O topos barroco tem uma elasticidade simultaneamente centrífuga e centrípeta que centra
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Aproxima-se, por isso, dos Estudos Culturais (Cultural studies), Estudos Pós-colonialistas (Postcolonial studies) e os Estudos Subalternos (Subaltern studies).
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em si uma identidade e se abre à diferença a partir de si, originado a miscigenação e implicando
uma
revisão
cultural,
porém
sem
anular
a
relação
conquistador/conquistado – dominador/dominado, e sem deixar de reforçar a ideia de universo. Pelo contrário, a cidade neo-barroca supera as dicotomias e é pluriversa, com raízes culturais rizomáticas. Nela se cruzam narrativas com outros mundos, sem os assimilar ou perder laços com o local de onde provêm, tornando-se cidade-mundo, na interpretação dada por Mario Perniola (1993). Neste sentido, Valleriani considera Évora uma cidade-mundo, como se lê na terceira de oito menções à cidade: No entanto, a herança desta sabedoria faz de Évora uma "cidade-mundo" que, com a sua hospitalidade ética, anuncia ao mundo o sonho de um novo modo de ser humano: "o sonho de uma polis universal mestiça", como lhe chama o filósofo dos Camarões A. Mbembe, baseada na experiência de uma paixão comum pelo que nos diferencia (Mbembe, 2008, 65) e governada por uma ética dos cuidados em relação ao outro e de que o mundo herdado em conjunto deve ser preservado.
Valleriani que nunca visitou Évora reconhece-lhe, pontuando momentos da sua história, uma vocação de cidade-mundo assente na relação unidade/diversidade com a qual contrai uma ética da responsabilidade cultural, ambiental, comunitária e existencial. No atual período de globalização e migrações, a incorporação de termos como transcultural, descolonizado e hibridação intercultural conota a complexidade da relação unidade/diversidade. Todavia é esta relação que no dia-a-dia determina as capacidades de decidir, imaginar, sentir, comunicar e pensar. Se o ser humano constitui e organiza a sua vida a partir de tal relação, a educação não pode ficar alheada. Não uma educação antropocêntrica e encarcerada no mundo do saber mental, sem questões e só memória, mas a que atenta à dinâmica da vida se instala na cultura, comunica pela cultura, conserva e recria a cultura que se mostra humanamente una e diversa. Logo, à cidade-mundo neo-barroca corresponde a educação neo-barroca. A articulação proposta por Valleriani é inusitada e, todavia, ressoa nela a idealização da república platónica que plasma a ideia de cidade pela ideia de humano e a de humano pela de cidade (PLATÃO, 1972). Daí que a educação da cidade seja a educação do humano e o governo da cidade sobre os cidadãos seja o governo do homem sobre si mesmo. Não é com o fundo platónico 37
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da unicidade orgânica e metafisica que Valleriani introduz a correlação cidadeeducação. A conexão vem pela ética e pela experiência de existir. Uma ética com compreensão transformadora; uma experiência de existir capaz de transformar a existência. Por isso Valleriani, muito ao gosto barroco e neobarroco, serve-se de uma panóplia de metáforas e conceitos (hibridização, mestiçagem, fronteira, alteridade, diferença, identidade, unidade, acolhimento, hospitalidade, …) para traçar o plano educativo que plasma o modo de existir na cidade. É nestes termos que o filósofo italiano apresenta a educação neobarroca: (…) coloca, no centro da reflexão, em lugar do homem, o sentido da existência que hoje se manifestada em metáforas como hibridização, mestiçagem, fronteira, alteridade, diferença. Com a sua alma barroca, tende a ‘superar a linha de cor’ que divide brancos e negros (Du Bois, 2007). E fá-lo com as categorias éticas da experiência do acolhimento e da hospitalidade.
Inverter o antropocentrismo educacional que durante séculos se justificou pelo alto ideal da perfetibilidade humana (paradoxalmente inibitória da livre experiência humana de ser), colocar a existência no centro de toda a atividade educacional e, ainda, assumir consciência da vulnerabilidade das condições do existir nas suas muitas vertentes implica contrariar a vectorialidade do processo pedagógico instalado. A educação deixar-se-ia então interpelar pelas questões da existência, começando por ‘dar voz’ àqueles e àquelas (incluindo não humanos) que no mundo a não têm tido e escutando essa ‘voz’ que manifesta outras experiências de ser. Deste modo não só a educação superaria a sua instância exclusivamente mentalizada como também a cultura sairia do seu estado asténico e buscaria novos sentidos. Valleriani nunca refere a instância ontológica que agrega a ação comunitária (sem estratificar e sem sufocar) e que vivifica a cultura. Por isso fica no ar a ideia de universalidade unificante, diferenciadora e difusora, enraizada do solo ontológico, onde se combina e expande a atividade de ser, de acolher e de estar em comum. Valleriani deixa no texto traduzido as coordenadas éticas para uma nova educação, nova cultura e nova comunidade. Para finalizar esta curta abordagem indaga-se sobre a articulação possível entre cidade-mundo, horizonte vocacional de Évora, e Cidade Educadora, programa
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internacional a que Évora aderiu, em 2010 10 . Consideramos apenas um traço distintivo: a dimensão inter-relacional. A cidade-mundo propõe-se como espelho quer de uma razão democrática assente na lógica da mistura e mestiçagem, quer de uma consciência relacional capaz de convivência, hospitalidade e solidariedade. Ela é uma comunidade-destino de visões e trajetórias culturais responsáveis por um futuro valorizador de sentir-se o que se é e de sentir-se de muitos modos. Para melhor recortar a sua proposta, Valleriani compara a cidade neo-barroca com a Cidade Educadora, escolhendo como termo comparativo a dimensão inter-relacional que se encontra na Declaração de Barcelona, documento que fixa os princípios regentes das Cidades Educadoras. Transcreve-se a passagem: É também uma cidade que não está fechada sobre si mesma mas que mantém relações com o que a rodeia – outros núcleos urbanos do seu território e cidades com características semelhantes de outros países –, com o objectivo de aprender trocar experiências e, portanto, enriquecer a vida dos seus habitantes (2.º parágrafo do Preâmbulo, 1994).
Neste parágrafo da Declaração, a relação estabelece-se de cidade para cidade (incluindo núcleos urbanos adjacentes) segundo o critério da similitude das características, sendo que o aprender e trocar experiências educativas contribuem para a circularidade sistémica de práticas das quais a cidade também se alimenta e reproduz. Por outras palavras, as Cidades Educadoras comunicam entre si a partir de corredores abertos por rasgos feitos nos seus perímetros identitários e movem-se no vórtice da totalização das experiências educativas que vão realizando, todas representativas de boas práticas. Tal dinâmica e trânsito são possíveis por haver entre elas uma comum intencionalidade dirigida para ‘pôr’ a educação em movimento, seja formal11, não-formal ou informal.
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Não é objetivo deste texto fazer uma leitura que coloque lado a lado o artigo de Valleriani e a Carta de Barcelona nem de explorar as contradições ou coincidências entre a vocação de Évora como cidade-mundo e o seu estatuto de Cidade Educadora, um exercício hermenêutico que poderia constituir um diálogo com Valleriani. 11 A respeito do contributo mútuo entre educação formal e Cidade Educadora, remetemos para o trabalho do Professor Agustín Escolano Benito (2017) sobre a cultura escolar, entendendo-a como potenciadora quer dos valores da cidadania democrática quer da memória dos saberes. O trabalho pode contribuir para melhor enquadrar a educação formal no quadro interventivo da Cidade Educadora, promovendo atividades que restaurarem/instaurarem a articulação entre vida política na comunidade e vida cultural da escola. Este nível de articulação entre educação formal e Cidade Educadora é fundamental para uma mudança (não relativizante e indiferente) dos modos contemporâneos de pensar, sentir e agir.
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A tónica discursiva das Cidades Educadoras tem recaído na integração de pessoas e na concretização de atividades que animam e dão coerência comunitária, no pressuposto de contrariarem o sedentarismo, a falta de vínculos de pertença e a perda de responsabilidade política (nada confundível com partidarismo). Esta conceção mental, caracterizada pelo otimismo do viver em comum e pela confiança na capacidade interventiva dos municípios em ordenar a vida comunitária mediante a educação de boas práticas, distancia-se bastante da leitura que George Simmel fez sobre a vida urbana no início do século XX, encontrada no ensaio A metrópole e a vida mental. Uma leitura sem margem para o otimismo e a confiança. A cidade, que Simmel pensa a partir da observação do frenesim berlinense e da sua rutura com as pequenas cidades vizinhas marcadas pela ruralidade, é imagem de um sistema organizado de desordens, de fragmentações e de exclusões. Na análise de Simmel sobre Berlim industrial, baseada na correlação entre vida cidadã e vida humana (o que Platão havia feito em A República numa visão cosmológica), sobressai a vulnerabilidade dos vínculos (parentesco e vizinhança) e a dependência mental dos cidadãos da organização mental da cidade. Berlim, como qualquer outra das grandes cidades, impunha condições vivenciais de controlo mental dos/as cidadãos/as, recorrendo a variados estímulos e múltiplas exigências: (pontualidade, exatidão, mensuração, indiferença e estranheza interrelacionais, entre outros). O cumprimento dessas condições de submissão ao complexo modo de viver colectivo foi interpretado por Simmel como imperativo para transformar as pessoas em multidões diferenciadas, transitórias e impessoais. Cidade e pessoas concentram-se no mesmo ambiente mental constrangedor, que teme a fragilidade e que qualquer dissentimento e disfunção poder perturbar: Se todos os relógios de Berlim avariassem de repente, de diferentes modos, mesmo que só por uma hora, toda a sua vida económica e comercial seria perturbada de forma duradoura. Por mais superficial que o significado deste facto possa parecer, tal situação revela que a magnitude das distâncias obriga as pessoas a esperarem ou a interromperem os seus compromissos, o que representa uma lamentável perda de tempo. Por esta razão, em geral, a técnica da vida metropolitana não se pode conceber sem que todas as suas atividades e relações recíprocas estejam organizadas e coordenadas da forma mais pontual num calendário determinado que transcende todos os elementos subjetivos. (Simmel, 1997 [1903], 36)
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A introdução do pensamento de Simmel ocorreu-nos por contraste com a Cidade Educadora, concebida para superar a lógica sincrónica da pressão mental que fecha a cidade sobre si mesma. Mas serão as Cidades Educadoras tão semelhantes entre si? Serão elas tão diferenciadas das outras? A ideia de similaridade não se aplica. A abertura da Cidade Educadora à influência de outras de características semelhantes é muito difusa. Pergunta-se: que haverá de similar entre Lomé, no Senegal, e Évora?: ou, desconsiderando a língua e a cultura que lhes são intrínsecas, entre a megapolis São Paulo e a pequena Évora? Este critério da relação por similitude de características que é extensivo a todas nem é generalizável a cidades da mesma dimensão e de estilo de vida próximo. Que hipótese são possíveis? Talvez a intencionalidade de desenvolvimento e coesão cultural identitária. Esta é uma hipótese fraca, pois é uma intencionalidade comum. Não se vai agora insistir na questão, mas a falta de resposta denota falta de clareza sobre a natureza da Cidade Educadora. Sabendo-se que o compromisso de um município para com o programa internacional de Barcelona pode ser anulado ou suspenso consoante os interesses de quem for eleito, então a Cidade Educadora está exposta à vulnerabilidade dos interesses políticos e o seu projeto pode ser descontinuado. Ora em face da instabilidade da vontade política, fica. então em aberto a questão da razoabilidade do estatuto das Cidades Educadoras. Não menos instigante é a eleição das boas práticas como programa próprio da Cidade-Educadora. O primeiro reparo a fazer é que as boas práticas não são apanágio destas cidades (uma concretude do tipo adequatio rei et intellectum) e qualquer uma as promove. Elas representam o elo de ligação entre as esferas concêntricas da educação (formal, não-forma e informal). Todavia há que encontrar uma racionalidade que faça emergir e reformule modos de saber, agir e fazer em comunidade e ir além, convocando entidades/instituições diversas para com elas configurar a Cidade Educadora que mais não é que um modo de particular atenção ao habitar e construir o mundo. Nenhuma entidade/instituição/empresa está desvinculada do compromisso educativo nem da responsabilidade de recuperar e recriar o mundo. Ora a Cidade Educadora tem uma dimensão ingente que o exercício das boas práticas não consegue revelar. E se a Cidade Educadora tem 41
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‘residência’ nos municípios, não é para enfatizar a operacionalidade técnica do pelouro da educação, mas para convocar e coordenar entidades/instituições instaladas no município e com elas racionalizar e projectar educativamente a sustentabilidade multidimensional e axiológica da cidade. Entenda-se que a crítica feita às boas práticas não as desvaloriza como possibilidades de exercício educativo. A crítica dirige-se para o carácter avulso dessas práticas, decorrente da geral incompreensão municipal da ideia de Cidade Educadora. Uma ideia que, em geral, os municípios esvaziam da sua intrínseca racionalidade. Nesta breve consideração para esclarecer a associação entre Évora Cidade Educadora e Évora com vocação de cidade-mundo importa sublinhar um aspeto diferenciador. A cidade-mundo corresponde a um conceito independente das instituições de poder e não obedece a um programa definido por atividades. Isto levanta outras questões: de que depende a manifestação substancial da cidademundo?; quem a reconhece como tal?; de que modo se funcionaliza? A diferença distintiva está na independência do poder local e por isso o estatuto de cidademundo não pode ser reivindicado, nem programado, nem expressivo da vontade política. A cidade-mundo excede a cidade situada porque a sua construção assenta na vida cultural dos novos habitantes, viajados e criativos, e dos habitantes de raiz, também viajados e criativos. Uma vida cultural resultante da experiência vivenciada e incorporada, aberta a outro pensar, sentir, fazer e agir. Ora, pergunta-se: uma cidade com tal excedente vivencial, imprevisibilidade e embate criativo necessita do consentimento do poder político local para acolher as mundivisões e os saber-fazer de que esses habitantes são portadores? Ainda: é necessário criar condições para a interação cultural democrática e global, de movimento difusor e recetor, integrador e superador? A admitir tal necessidade, o problema que se coloca é o da incompatibilidade entre a disrupção que a cidade-mundo pode introduzir na cidade municipalizada. Como Walter Benjamin constata a partir das reflexões sobre Paris: Capital do Século XIX, as cidades são denominadas pela estratégia niveladora e subordinadora das instituições. Citando:
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Para participar na vida social, política e económica da cidade, o indivíduo tem que subordinar parte da sua individualidade às exigências da comunidade mais vasta e, nessa medida, mergulhar ele próprio, nos movimentos de massas (BENJAMIN, 1997, p. 62).
A cidade-mundo não depende de uma autorização legal para existir e a sua homogeneidade comunitária não decorre de uma estratégia construtiva para a massa citadina, preocupada com a regulação. Esta diferença pode afastar a cidademundo da Cidade Educadora, dependente do município. Todavia Valleriani conciliaas mediante a introdução da educação neobarroca, isto é, da racionalidade e sensibilidade associadas à mistura e mestiçagem. Duas categorias culturais essenciais que dão lugar à diferença e alteridade constitutivas da cidade-mundo, seu habitat natural. Valleriani, em alinhamento com Mario Perniola, encara a mistura e a mestiçagem como geradoras de diálogos em busca instigante de convergências novas entre relações diversas do viver em comum (Perniola 1993, 134)12. Neste sentido os dois tipos de cidade aproximam-se e ilustram o intento contemporâneo quer de desenvolvimento relacional quer de conversão das entidades/instituições em plataformas de aprendizagem, fora das lógicas individualistas e competitivas13. Para concluir e retornando a Évora, a coexistência da Cidade Educadora e da cidade-mundo proposta por Valleriani pode ser possível. Évora ilustra mesmo tal possibilidade de entretecimento da educação e de abertura à imprevisibilidade do mundo. Para Valleriani Évora tem uma história que a lançou para além da vida circunstanciada das muralhas e essa história, agora em tela de fundo, serve de vantagem compreensiva para se aventurar, antes de mais, pelo pensamento sobre a identidade de ser cidade. Uma identidade que não se define apenas pelo património que a materializa e anima, mas (hoje quase que necessariamente) pela capacidade de se interpretar retrospectivamente a partir do futuro, ou seja, de cuidar 12
Na última frase do livro Do Sentir, de Perniola, pode-se recolher a ideia (com a ressonância socrática) do significado dado a habitar a cidade-mundo: «estar em qualquer lugar e sempre na meta, porque onde quer que seja está-se sempre a nascer» (1993, p.136). 13 A proposta de uma revisão de alguns aspetos do programa da Cidade Educadora está em cima da mesa: «(…) para que el proyecto de la ciudad educadora se materialice, habrá que dejar a un lado las lógicas individualistas y competitivas cada vez más presentes en la vida cotidiana, para assumir el desafio que comporta hacer el habitante impersonal un ciudadano activo, crítico, sensible y comprometido com el entorno en el que se desarrolla. Una necessidade colectiva e individual prioritária en la que la educación está llamada a jugar un papel determinante a la hora de impulsar processos participativos integrales y integradores» (Venezuela, Maroñas, Ferreira 2000, 63).
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existencialmente do futuro. A conjugação dos dois tipos de cidade – Cidade Educadora e cidade-mundo – e a capacidade de pensar a cidade com todos no seu todo, equacionam o desafio deixado por Valleriani no texto dedicado a Évora. Referências bibliográficas ALARCÃO, Jorge (1998) – Três níveis de aglomerados populacionais romanos. O Arqueólogo Português. Lisboa. Série IV, n.º 16, p. 175-186. AICE. Carta de las Ciudades Educadoras. Barcelona: Ajuntament de Barcelona. www.bcn.es/edcities/estatiques/espanyol/sec_charter.html BENJAMIN, Walter; SIMMEL, Georg (1997) – Paris: Capital do Século XIX. In Fortuna, C. (org.) Cidade, Cultura e Globalização. Trad. Vivina de Figueiredo. Oeiras: Celta, p. 68-80. CALABRESSE, Omar (1987) – L'età neobarocca. Bari: Laterza. DIAS, Rui (2007) – A cidade romana Liberalitas Iulia Ebora. Fórum e maqueta reconstituição do templo. A Cidade de Évora. Boletim de Cultura da Câmara Municipal. 2ª Série, n.º 7, p.195-212. ESCOLANO Benito, Agustín (2017) – La escuela como cultura: experiência, memoria, arqueologia. Campinas: Alínea. LOURENÇO, Eduardo (1992) – O labirinto da saudade: psicanálise mítica do destino português. 5.ª ed. Lisboa: Dom Quixote. MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José (2013). História da Inquisição Portuguesa 1536-1821. Lisboa: Esfera dos Livros. PERNIOLA, Mario (1993) – Do Sentir. Trad. António Guerreiro. Lisboa: Ed. Presença. PLATÃO (1972). A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: F.C-G. SANTOS, Maria Teresa (2009) – A filosofia na Universidade de Évora (1559-1759). Um percurso interrompido; um percurso esquecido. NUNES, Maria de Fátima;
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