G riffo's
Edição 01 Nov 2017
Vídeo
Luther
Mensageiro das cores Escrever é um risco Compartilhar saber é aprender
Uma vida dedicada à arte Reportagem Exclusiva
Conteúdo # Janela Lateral ..... (04) # Mãos à obra ..... (05) # Manhã de Agosto ..... (06) # Mensageiro das cores ..... (11) # Dois lados do mesmo Eu ..... (19) # Escrever é um risco ..... (23) # Sofia ..... (26) # Protagonistas das ruas ..... (27) # Boa leitura! ..... (28) # Rompendo barreiras .....(30) # Influências e processo criativo .....(31) # Compartilhar saber é aprender! ..... (35) # Responsabilidade social ..... (40) # Como será o amanhã? ..... (43)
Editorial
Griffo's Um instante de cor Edição 01 Novembro 2017 Revisão Geral Suelly Maux Edição Geral Cy Baptista Editora de Arte Cy Baptista Repórter Cy Baptista Capa e Fotografia Cy Baptista Contato E-mail: cileide.batista.cbs@ gmail.com Telefone (83) 98634-3862 Redes Sociais @cybaptista
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lassificar Luther não é tarefa fácil. Grafiteiro, artista, militante, arte-educador, escritor das ruas, guerreiro... Cada uma dessas palavras foi ouvida durante o percurso dessa reportagem, portanto, para ampliar ainda mais o vocabulário da personalidade do grafiteiro, arriscamos chamá-lo de cronista urbano. Um ser vibrante, semelhante às cores que projeta nos muros, um ser inconformado por causa da injustiça praticada contra seu povo. Um homem rodeado por vozes da periferia e não se cala diante das adversidades. Enganam-se quem pensa que ele é um ser humano passivo. A leitura e contemplação do cotidiano são ingredientes para a produção dos seus grafites. Busca alimentar-se das histórias de grandes líderes negros, como um caminho de fortalecer a própria identidade. Esta edição da Revista Griffo's apresenta a história de Luther, revelando as ações desenvolvidas em benefício ao desenvolvimento da arte urbana. Assim, numa extensa reportagem transparecemos a dimensão da sua vida. Cy Baptista Editora
"Para criar inimigos não é
necessário declarar guerra, basta
dizer o que pensa" (Martin Luther King)
COTIDIANO URBANO:
uma expressão do grafite de Luther Por Cy Baptista
Janela Lateral
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Foto: Arquivo Pessoal de Luther
quela não era uma janela lateral do quarto de dormir, da canção do Milton Nascimento. Aquela era uma janela lateral de um ônibus qualquer no vaivém da vida. Uma janela que revelava uma natureza exótica, com pessoas mudas e sem tempo. Quantos de nós corremos de um lado para o outro, tentando não atrasar nossos compromissos? Às vezes, ficamos cegos e não percebemos o universo ao nosso redor, tão vivo, tão colorido. Confesso que tenho uma mania intrigante. Tento ler as vitrines das ruas. Leio outdoor, leio placas, leio pessoas e leio muros. Nessas leituras, encontrei rabiscos, cores e gritos nas ruas da cidade do Recife. Cores de protesto, cores de amor, cores de ódio, cores de sorrisos... cores! Não consigo imaginar as ruas sem cores. Não consigo enxergar muros e paredes brancas, sem sentimentos, sem xingamentos, sem pichações e sem grafites. Num passeio pelo Cais de Santa Rita, localizado no bairro de São José, no Recife, tive a minha primeira experiência sensorial com o grafite de Luther, por volta de 2010. Um grafiteiro que reflete o cotidiano e a sociedade, a partir de uma arte revolucionária contra o preconceito, a hipocrisia e as pressões do sistema. Não sabia ao certo o dia, mas naquele momento tive a certeza que precisava contar a história dele. Descobrir sonhos e pesadelos do mundo real que estão representados na grafitagem. Percebi que os grafites de Luther despertam a consciência das desigualdades e intolerâncias sociais e o sofrimento do ser humano na singularidade do dia a dia.
Luther desenhou este grafite na parede de um galpão antigo, localizado no Cais de Santa Rita, em Recife Nov 2017 4
Cores, palavras e esperança para as ruas do Recife
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contato com Luther aconteceu no primeiro semestre de 2017, sete anos depois de apreciar os dizeres da parede do Cais de Santa Rita, uma busca acirrada, já que a única informação que possuía era o pseudônimo do grafiteiro. Assim que consegui o telefone dele, enviei uma mensagem no aplicativo whatsapp e esperei por uma resposta positiva. Dias depois, a resposta veio, aquele era realmente o número correto. No perfil do aplicativo não havia nenhuma foto de Luther, apenas uma imagem da máscara de Guy Fawkes, acessório usado pelo protagonista dos quadrinhos e do filme “V de vingança”, um herói misterioso que lutou contra um sistema fascista, da obra que foi adaptada para o cinema em 2005. A máscara também esteve associada aos diversos protestos ao redor do mundo e tem sido utilizada como instrumento simbólico global da liberdade contra a opressão. Luther mostrou-se apreensivo durante o primeiro contato pelo whatsapp, ele disse que não teve uma vida fácil, o passado era marcado por muitas dificuldades na vida, talvez ele
acreditasse que sua história não deveria ser contada, ou talvez não gostasse de entrevistas. Expliquei a importância de ouvi-lo e o quanto eu gostaria de conhecer seus pensamentos, processo de criação e o seu trabalho de grafitagem. Segundo ele, a maioria dos jornalistas quer contar apenas a relação do artista com o grafite e omitir a história do homem, deixando de lado o sofrimento e a opressão vivenciada por ele. Mas a vida não pode ser descrita apenas a partir das vitórias, conhecer alguém é ir além, é mexer nas feridas mais profundas e revelar as dores. Luther disse que uma grande empresa de comunicação do Recife chegou a oferecer dinheiro para que ele concedesse uma entrevista, mas ele negou. Esconder dor e tortura era o mesmo que ferir suas ideologias. Decidimos marcar um encontro presencial, perguntei onde seria o melhor lugar para encontrá-lo e combinamos o dia. Ele explicou que participava da ONG Cores do Amanhã e durante as manhãs dos sábados ministrava uma oficina de grafitagem com dois amigos. 5 ◊
Griffo's
Foto: Cy Baptista
Mãos à obra
Manhã de agosto
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Foto: Cy Baptista
hovia naquela manhã de sábado, um viaduto preservava um grafite de dia 26 de agosto. A chuva Luther, possivelmente um sinal de boas castigava o Recife e a região vindas, estávamos no bairro do Totó, metropolitana. Quem conhece bem a na Zona Oeste do Recife. Mais à frente, cidade sabe: basta uma “chuvinha” avistei um presídio, uma placa informava para as ruas ficarem alagadas. A capital nossa localização, aquela era a “Avenida pernambucana é conhecida como Liberdade”, uma contradição, já que “Veneza Brasileira” e está localizada ali a esperança está enjaulada. O local próxima ao litoral, o excesso de chuvas abrigava as três unidades do Complexo elevam o nível do mar e as oscilações Prisional do Curado e uma lista de das marés podem provocar enchentes. problema, com registros de rebeliões e Além disso, o acúmulo de lixo jogado na mortes de detentos, um confinamento rua é um dos motivos que contribuem cercado por grades e muros. Lá fora, para o entupimento dos canais e na rua ao lado do presídio, chegamos a canaletas da cidade. Mas apesar desses ONG Cores do Amanhã, um espaço de problemas, a cidade atrai visitantes esperança, onde não há muros físicos, de diferentes locais, motivados pela nem ideológicos, onde a imaginação história, arquitetura, gastronomia local, parece ter asas. A comunidade ganha música ou boemia do Recife. vida, as paredes dos prédios e boxes O dilúvio não impediu minha da vizinhança são destinadas às cores e missão de conhecer Luther e o lugar Cores, elas ganham tons que refletem que fabricava sonhos, num encontro as questões dos negros, das mulheres acertado via mensagens no celular. e o cotidiano do bairro, o grafite é Sai sem saber como chegaria ao meu transformado em poesia visual. destino, pois havia visitado o local apenas pelo google. Mesmo assim não hesitei, coloquei meus instrumentos de trabalho na bolsa – bloco de notas, gravador, celulares, canetas e uma máquina fotográfica – e peguei o primeiro ônibus que avistei, com sentido ao centro do Recife, depois de esperar por quase meia hora. Estava com medo de chegar atrasada. No caminho, optei por um carro de aluguel, perguntei ao motorista se A rua do Cores do Amanhã funciona como uma galeria de arte, ele conhecia a localidade, expondo as produções de alunos sorte que ele morava perto. Notei que
Foto: Cy Baptista
Grafites com a temática da Consciência Negra estão expostos na rua do Cores do Amanhã
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uando cheguei, as portas da Cores do Amanhã ainda estavam fechadas e pensei: a culpa foi da chuva! Luther também não havia chegado. Duas senhoras conversavam num banco de cimento, na frente da ONG, três crianças brincavam e dois jovens esperavam o início da oficina de grafite ministrada pelos grafiteiros Boris, Luther e Florim. Minutos depois, as portas são abertas por Jouse Barata, 34 anos, coordenadora e uma das fundadoras do Cores do Amanhã. Assim que a avistei, a reconheci, pois havia assistido a uma entrevista na TV, onde Jouse contava a história do Cores do Amanhã. Outras pessoas chegaram, perco a conta, sentadas no chão, elas aguardavam o início da oficina de grafitagem. Naquela manhã, quem iria ministrar a oficina era Boris, mas ele não chegou. Jouse estava ansiosa com o atraso, ligou para Luther que já estava a caminho. Dias antes, eu havia marcado com ele aquele encontro no Cores para conhecê-lo pessoalmente, já que nosso contato era apenas virtual,
por meio de conversas no celular. A oficina tem sido frequentada por crianças, jovens e adultos. Duas meninas ouviam música no celular, ao mesmo tempo em que folheavam um gibi, dois adolescentes desenhavam, ao mesmo tempo em que outros quatro adolescentes conversavam e brincavam. Percebi uma jovem que fitava um livro, de longe consegui ler o título: “A cor de cada um”, de Carlos Drummond de Andrade. Ah, não posso esquecer o gato branco. Um felino que mendigava por atenção e carícias. Jouse percebe minha queda por animais e pergunta se eu gostaria de adotá-lo. Sorrio e digo: “já tenho três.” Ouço quando Jouse fala: “Luther chegou”. Ele entra no Cores preocupado e pede desculpas por causa do atraso. Jouse diz de longe: “Luther, essa moça espera por você”. Luther aproxima-se e eu digo: “Você é o famoso Luther?”. Ele responde: “sou Luther sim, mas não sou famoso”. Um sorriso no rosto e um aperto de mãos. 7 ◊
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Fotos: Cy Baptista
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stamos no térreo, um tapete no chão, lá ficam todos os sapatos e as sandálias dos frequentadores do Cores. Ao lado, outro tapete com cinco puffs, uma estante de livros infantis, enfeitados com três ursinhos de pelúcia e uma pequena placa na parede escrita: “Cantinho da Leitura”, uma atmosfera que permite o desenvolvimento da imaginação. Do outro lado, havia um carretel de madeira, com toque rústico, ornamentado por jarros de plantas naturais. Nas paredes, também havia fotografias e uma área destinada aos avisos. Uma placa proibia a entrada de alunos sem camisa. Perto do espelho, os objetos de artesanato estavam pendurados. Nov 2017 8
Entrada da ONG & Cantinho da Letura
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uther vestia uma Oficina de grafitagem camiseta branca, uma bermuda azul e um boné na cor preta. Um homem negro, tímido, com olhos que expressam tristeza. Logo depois de se apresentar, ele pega um cavalete flipchart de madeira, com papéis pendurados e inicia a oficina. Luther explica que as imagens ao nosso redor são compostas por linhas geométricas e descreve como é feita a composição desenhos e Luther observa cada um, de do personagem no grafite. Observo a pé ou sentado no chão, ele faz elogios. aula sentada num puff. Chega a hora Compreendo que as aulas ultrapassam de colocar em prática os ensinamentos a fronteira da técnica, os incentivos da aula, Luther pede que todos fiquem acontecem através do reconhecimento mais próximos, ele se vira para mim e são realizados diante dos demais e diz “se quiser participar, fique à alunos. vontade”. Informo que não sou muito Após a aula, Luther faz um convite talentosa com desenho, mesmo assim, para que eu possa conhecer as outras pego alguns papéis e lápis, mas não dependências do Cores do Amanhã, me arrisco a desenhar, prefiro observáapresso meus passos. Estamos no los. Os alunos e alunas iniciam os térreo, logo após a primeira sala, onde aconteceu a oficina há um novo cômodo, uma pequena cozinha, com meia parede que divide o ambiente numa outra acomodação uma estreita sala de artesanato. Observo uma estante repleta de peças artesanais, onde objetos sem vida ganham texturas, formas e contornos. Mais adiante, vejo um banheiro e uma escada que dá acesso ao Alunos aprendem técnicas de desenho primeiro andar. Fotos: Cy Baptista 9 ◊
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escola, ruas e casas, Luther contou que algumas delas são construídas em terrenos invadidos. Luther conta os desafios durante o processo de construção do Cores do Amanhã, primeiro deles foi encontrar um bom imóvel. Ele disse que o espaço era um pequeno box, somente no térreo. Com empenho e muito trabalho dos três grafiteiros Luther, Boris, Florim e da grafiteira Jouse Barata o local cresceu, juntamente com os sonhos, os tijolos foram colocados um a um, com muito suor e confiança. Depois do tour, optamos para conversar no primeiro andar. Inicio a conversa apresentando a proposta da grande reportagem, explico que algumas perguntas estão comigo num papel e que outras surgirão espontaneamente no decorrer da nossa conversa. Ele pede para ler as perguntas. Com um olhar concentrado Luther percorre cada linha, em seguida entrega o papel, mas não sugere nenhuma mudança.
Foto: Cy Baptista
ubimos a primeira escada, com cuidado para não bater a cabeça no teto, pois é bastante baixo. O primeiro andar tem mais um banheiro e uma sala ampla, com uma mesa e cadeiras que estão perto de outro lance de escadas. Aquela sala é usada nas práticas de esportes, aulas de violão e quando a ONG confecciona faixas e painéis para o público externo. Logo na entrada, somos recepcionados por um grafite de um negro na parede lateral. Não existem janelas, o vento vem pelas escadas, mas as imagens das janelas do Cores do Amanhã estão representadas nas vivências e oportunidades que o espaço oferece aos moradores do bairro. Caminhamos mais um pouco, na direção do segundo andar, um terraço coberto por telhas de alumínio, no final uma sala que serve de depósito. Céu nublado, um vento gelado soprava entre nós, mas a chuva tinha ido embora, lá de cima, é possível vermos alguns tons do bairro do Totó. Apartamentos,
Sede do Cores do Amanhã Nov 2017 10
Foto: Cy Baptista
Mensageiro das Cores
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agner Cleiton dos Santos, 35 anos, um pernambucano nascido na cidade de Jaboatão dos Guararapes e morador do bairro de Cavaleiro, um bairro vizinho ao Totó localizado ao sul do Recife. Mede cerca de um metro e sessenta e cinco de altura, um típico jovem da periferia, com olhos que refletem o sofrimento de uma vida inteira, porém, seu olhar não costuma encarar por muito tempo o interlocutor. A voz suave, expressiva e convincente revela os traços de identidade e negritude. Apesar de tatuar as ruas, com cores e palavras, Luther não tem nenhum desenho em seu corpo, ele informa que as pessoas geralmente ficam surpresas quando descobrem a ausência de tatuagens na sua pele. A aparência simples das suas vestes já foi motivo de situações de preconceitos, conforme revela Raquel Araújo dos Santos, 44 anos, amiga, voluntária e coordenadora pedagógica do Cores do Amanhã. Raquel diz que apesar da hostilidade praticada contra Luther, o grafiteiro tenta mudar o pensamento das pessoas a partir da educação, com frases encorajadoras e provocativas, “Luther está o tempo todo batalhando, botando frases para que a gente possa pensar no que está acontecendo…”, revela. Ela também contou que Luther motiva os meninos através de frases, desenhos e riscos, como uma forma de expressar os desejos e os sentimentos.
Dono de uma arte transgressora, os grafites de Luther ultrapassam a extensão dos muros, isso acontece por causa da forma como os discursos são apresentados nas ruas, sendo captados pelos olhares atentos das pessoas. 11 ◊ Griffo's
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aquel relatou que uma vez, os muros de uma escola foram cedidos para que Luther desenvolvesse um projeto, a temática da educação serviu de pontapé para o processo de criação. Ela disse que Luther provocou os alunos com alguns questionamentos: “O que é escola para vocês? O que representa? Como pode melhorar?” A experiência do trabalho foi positiva para os jovens aprendizes, a amiga esclarece:
Foto: Arquivo pessoal de Raquel
"Através do grafite a criança pode ter empoderamento. A gente viu os resultados nos desenhos. Ficou linda a escola. Tá lá a escola grafitada pelos próprios alunos", diz Raquel.
Raquel Araújo, voluntária do Cores do Amanhã
Foto: Cy Baptista
Dono de uma arte transgressora, os grafites de Luther ultrapassam a extensão dos muros, isso acontece por causa da forma como os discursos são apresentados nas ruas, sendo captados pelos olhares atentos das pessoas. Raquel disse que encontrou um grafite de Luther no bairro de São José, no Recife, nas proximidades da própria residência, no pedaço de muro da antiga Escola Sérgio Loreto estava escrito: “o sistema fecha escolas e abrem presídios…”, ela informa que existem várias crianças na localidade, mas nenhuma escola, nenhum posto de saúde.
Ruína da Escola Sérgio Loreto, no Bairro de São José, em Recife Nov 2017 12
Foto: Cy Baptista
Saiba mais! Artivista é o artista que faz da arte a sua forma de ativismo. O artivista encontra na arte um convite à militância, seja ela política, ecológica, social ou espiritual, expressando através da literatura, pintura, escultura, teatro, cinema, música, performance os seus pontos de vista e leituras sobre a vida e o mundo.
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orém, as ruas não conhecem Fagner, as ruas conhecem o artivista e revolucionário, cujo pseudônimo é Luther. A sonoridade do nome Luther ecoa na minha mente a ideia de luta, logo compartilho essa abstração com o grafiteiro e ele concorda.
“Uma palavra forte, que remete à luta, porque querendo ou não, a gente vive uma guerra constante, né? É triste vê ainda assim, que o morador de favela, a moradora de favela não se reconhece ainda como morador de favela… eu me reconheço como escravo, através disso a pessoa tenta buscar a liberdade diária… quem não se reconhece, não sente força para lutar. Eu acho que a palavra também busca muito isso, a favela guerreira que tá na correria do dia a dia da batalha, as pessoas precisam ter orgulho de onde moram, se reconhecer. Através desse reconhecimento, as pessoas vão conseguir saber quem são os verdadeiros inimigos, porque querendo ou não, o povo ainda não reconhece quem é o verdadeiro inimigo, porque o sistema faz o povo lutar contra o povo, pobre matando pobre e é isso que o sistema quer, né?”, ressalta Luther. 13 ◊ Griffo's
Foto: Cy Baptista
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uther mora com a mãe, Maria de Lourdes Ramos, 70 anos, mais conhecida por Dona Lourdes, o pai, Samuel José dos Santos é falecido, ambos estudaram até o ensino fundamental. Luther fala do pai com emoção, com uma voz trêmula relembra que os pais são exemplos de força e dedicação, batalhadores, nunca deixaram as dificuldades bater na sua porta. Teve um lar movido por valores morais e sentimentais, respeito e humildade. A amiga Jouse teve pouco contato com a família de Luther, mas ela diz que o amigo é um “dono de casa, cuida da mãe dele e é um filho maravilhoso.” “Minha infância posso dizer que foi bem tranquila. Estudar, brincar com brincadeiras que as crianças gostam: pião, bola de gude, jogar futebol, soltar pipa... se divertir como o tempo de criança tem que ser. Aproveitei bastante esse período e foi bem marcante positivamente”, recorda Luther. Com segundo grau completo, Luther sempre estudou em escola pública, na Escola Souza Brandão, no município de Jaboatão dos Guararapes, e é formado nos cursos de torneiro mecânico, maçariqueiro e logística. Mas atualmente trabalha na função de educador social na Fundação Fé e Alegria e na Escola Edwiges de Sá Pereira, que pertence à rede estadual de ensino, localizada no bairro de Tejipió, em Recife. O grafiteiro acredita no valor dos estudos e tem o sonho de fazer algum curso técnico, ou superior, porém, prefere dizer que abraçará as oportunidades ofertadas pela vida. Nov 2017 14
“Minha infância posso dizer que foi bem tranquila. Estudar, brincar com brincadeiras que as crianças gostam: pião, bola de gude, jogar futebol, soltar pipa... se divertir como o tempo de criança tem que ser. Aproveitei bastante esse período e foi bem marcante positivamente”, recorda Luther.
Foto: Cy Baptista
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as horas vagas gosta de andar de bicicleta, ler, fazer grafite, assistir um bom filme. Geralmente, opta por ler biografias dos líderes negros e histórias de pessoas da periferia, por exemplo, MV Bill, Eduardo Taddeo e Sérgio Vaz. Com relação ao poeta Sérgio Vaz, Luther diz: “sou fã desse cara, ele faz uns trabalhos lindos nas favelas...” A cor favorita de Luther é azul, ele também conta que gosta muito da natureza e dos animais: “seria muito importante se os homens observassem mais os comportamentos da natureza e dos animais, é uma linda lição de vida”, explica. Luther gosta de
acordar cedo e brinca: “descansar, só quando morrer”, porém, ele tem medo dos castigos do tempo, “esperei tanto tempo, mas o tempo nunca esperou por mim.” A felicidade para Luther resume-se nos momentos simples: andar de bicicleta, observar as pessoas e as paisagens ao redor, saber que de algum modo foi útil na vida de alguém e viajar nos livros. Quando o assunto é comida, ele revela ser apaixonado pela comida regional. Um belo prato de feijão com arroz, cuscuz com charque e cuscuz com guisado de boi. Além disso, não perde a oportunidade de comer inhame com carne, batata doce, mão de vaca e pirão de arroz. Antes de participar do Cores do Amanhã, já desenvolvia projetos individuais com a grafitagem no bairro, numa dessas ocasiões conheceu Adelson Boris, Florim Maia e Jouse Barata. Ninguém imaginava que aquela parceria iria dar frutos e impactar tantas vidas. A gestação do projeto do Cores do Amanhã iniciou no terraço da casa da mãe de Jouse Barata, dona Maria de Lourdes. O grafite uniu o quarteto e a partir dele, o grupo de amigos venceu um concurso cultural promovido por uma empresa de produtos de higiene bucal. Com a premiação em dinheiro, eles compraram um box na comunidade e pouco a pouco ampliaram suas atividades e agregaram novas ações culturais, tais como: a dança, o artesanato, atividades esportivas, música, teatro, ballet e yoga.
A felicidade para Luther resume-se nos momentos simples: andar de bicicleta, observar as pessoas e as paisagens ao redor, saber que de algum modo foi útil na vida de alguém e viajar nos livros.
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ouse conheceu Luther em 2007, ela diz que Luther tem uma visão de rua revolucionária, mas as barreiras não impediram do grafiteiro ir atrás dos sonhos. A amiga reconhece que Luther é “um cara reservado, que fala pouco em público, mas quando tem uma amizade ele é bem aberto, conversa bastante e é um cara muito bom, com um coração enorme, tá sempre dando conselho, tentando ajudar as pessoas” e destaca a habilidade do amigo: Foto: Arquivo pessoal de Jouse
"Dentro do Cores do Amanhã, Luther é um educador social exemplar, muito companheiro, muito parceiro, é um cara que eu conto para tudo, todas as emergências. A gente tem que fazer um almoço, Luther tá aí, a gente tem que fazer um evento, Luther tá aí, a gente tem que fazer o Dia das Crianças, Luther tá aí, então, é um irmãozão da vida, que a vida trouxe pra gente, porque o Cores virou uma família", afirma Jouse. Grafiteira Jouse Barata
Blog: http://coresdomanha.blogspot.com.br/p/ contatos.html Facebook: Cores do Amanhã E-mail:movimentoculturalcoresdoamanha@gmail. com / Telefone: (81) 98876.3593 Nov 2017 16
Foto: Cy Baptista
O projeto Cores do Amanhã nasceu em 30 de março de 2009, para atender a comunidade do Totó a partir de ações sociais e educacionais. Quatro jovens grafiteiros: Adelson Boris, Florim Maia, Jouse Barata e Luther uniram forças e criaram um espaço de diversão e aprendizado. As primeiras ideias do grupo surgiram no terraço da casa da mãe de Jouse, dona Maria de Lourdes, atual presidente do Cores. Atualmente, a ONG sobrevive do voluntariado, doações e do trabalho de grafitagem. Além do quarteto, o Cores também conta com a participação de volutários (alguns deles são ex-alunos), reunindo educadores, artistas pláticos, grafiteiros, bboy's, bgirl's, MC's, DJ's, artesãos, músicos e artistas de diversas áreas. A sede está localizada na Rua Garota de Ipanema, box 2, no bairro do Totó, em Recife.
A oficina de grafite acontece aos sábados de 9h às 12h
Foto: Cy Baptista
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uther gosta de ouvir diferentes estilos musicais reggae, samba, MPB, pop rock e rap. O rap, o grafite e o breakdance são elementos inerentes ao movimento hip hop, apesar de praticar apenas a arte do grafite, Luther também aprecia os demais componentes do movimento e destaca a importância de conhecer e vivenciar o trabalho desenvolvido por DJs, MCs, Bboys e Bgirls. Ele admite que gosta de se vestir com roupas largas, que remetem à cultura hip hop. Admirador do estilo musical rap, o ritmo surgiu nas comunidades pobres dos Estados Unidos, com rimas e poesias que relatam as desigualdades e o pensamento do gueto, sendo um símbolo de resistência daquele povo. Através da música, Luther descobre os nomes de alguns líderes negros: Malcolm X, Emiliano Zapata, Panteras Negras, Dandara, Anastácia e Martin Luther King Jr.
Martin Luther King Jr, pastor, ativista político e ícone da luta das questões negras nos Estados Unidos, tornou-se um personagem admirado pelo grafiteiro. A partir daí, o nome Luther foi adotado e passou a ser usado como assinatura ou tag durante as intervenções urbanas. Antes mesmo de iniciar o trabalho com o grafite, o olhar de Luther sempre esteve voltado para o cotidiano das ruas, admirando as intervenções de outros grafiteiros da cidade. A contemplação deu espaço à iniciativa, ele decide praticar a arte do grafite, mas não queria nada semelhante daquilo que já existia nas ruas. Surge então a ideia de revelar a realidade social a partir de frases de questionamento somadas ao estilo de bomber throw-up - caracterizadas pela escrita arredondada, num estilo mais elaborado, às vezes sem preenchimento, produzido com duas ou três cores.
A contemplação deu espaço à iniciativa
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“Conhecia o grafite muito por teoria, gostava de ler e olhava as artes de grafiteiros antigos do Recife. Tive a vontade de fazer grafite, mas um grafite que tenha um diferencial, que levasse uma ideia para a galera refletir, para o povo pensar e também poderia ser uma ideia de protesto. A gente acredita que mudança do povo só vai vir com a indignação do povo e essa indignação parte muito de uma revolta. A gente explica que o brasileiro quando fala em revolta, revolução, pensa que revolução é quebrar tudo, mas se a gente for no dicionário a palavra revolução tá escrito lá mudança”, comenta o grafiteiro.
Foto: Cy Baptista
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uther acredita no poder das palavras, apoiado nas ideologias de grandes líderes negros, ele tentar conscientizar as pessoas das diferentes contextos sociais, sugerindo a reflexão e mudança, seja no modo de pensar ou agir. Ele conta que os amigos destacam suas qualidades de gostar de ajudar as pessoas, ser um bom ouvinte e trabalhador. Luther gosta de somar, colaborar com algo que possa ser positivo na vida de alguém. Mas admite um defeito: “tenho que acreditar mais em mim, persistir mais nos estudos.”
Luther desenha sua tag, um símbolo que marca seu presença nas ruas Nov 2017 18
Dois lados do mesmo EU
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o arranjo da sociedade, é comum assumimos diferentes papéis sociais, desse modo, temos a padronização das funções, dos comportamentos e das imagens daquilo que somos, esses papéis variam de acordo com os espaços ocupados e o tempo, assim, somos filhas, filhos, pais, trabalhadores, aprendizes e educadores. Não é diferente com Luther, o grafiteiro reflete a respeito do papel do educador e da atuação enquanto artivista das ruas. Durante a relação educador-aluno, Luther trabalha por meio do universo lúdico, com diálogos que encorajam os aprendizes a contarem suas respectivas histórias, a partir da expressão artística, eles expõem os pensamentos em forma de desenhos, cores e mensagens. Foto: Cy Baptista
“O grafite em si tem aquele cunho político e social, ou seja, o grafite tem toda aquela metodologia de ensino, o grafite transmite uma educação, através de uma pintura. Quem trabalha com criança, jovens e adultos, você vê que por trás de um desenho têm várias coisas, como por exemplo, através de um desenho de uma criança, que ali ela tá mostrando várias coisas, como é o seu dia a dia, como é o seu comportamento, como é sua vivência, através de um símbolo, de uma frase, de uma palavra, de uma escrita que uma pessoa faz, que aquilo ali tá querendo dizer algo. A grafitagem transmite uma educação boa, positiva, muda o aspecto físico do local, muda o comportamento das pessoas… levar uma mensagem positiva, mensagem essa que levanta a autoestima das pessoas, é mudar, tentar levar uma melhoria”, argumenta Luther. Confira o áudio da entrevista!
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Foto: Cy Baptista
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m educador atento às produções dos alunos, ele incentiva a criatividade e busca encorajálos para enfrentar seus dilemas, seus medos e seus obstáculos. Luther informa que as ideologias do educador e do artivista caminham lado a lado, porém cada performance tem um propósito ímpar. A primeira tenta desmitificar a imagem do grafite, imprimindo o valor do contexto, da forma e do conteúdo. A segunda eleva o grafite à categoria de suporte de críticas, quando o grafiteiro desempenha o papel de porta voz dos gritos da periferia, que lamenta por causa dos direitos não alcançados, e esclarece:
"Na rua é o grafite vandal, ou seja, é aquele grafite que você bate de frente com a sociedade, bate de frente com o poder público, quando as pessoas dizem que não pode fazer, por que não pode? Por que é proibido? Ou seja, aqui no Brasil tem aquele negócio de querer parar a rua, sempre proibir, sempre calar a rua e na rua a gente tem aquele punho forte, queira ou não de resistência. Costuma dizer que o nosso grafite de rua é mais que resistência, já tá sendo insistência! Porque algumas autoridades usam a dor para impor respeito e através dessa dor é que querem parar, ou seja, pressão psicológica, abordagens totalmente erradas, que tentam parar tanto a pichação, como o grafite… isso não pára, só gera mais revolta, indignação. Não se pode calar a rua, a rua nunca foi calada, a rua sempre vai ter voz, sempre teve voz e sempre vai ter", diz Luther. Nov 2017 20
Foto: Arquivo pessoal de Luther
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ouse evidencia o teor político contidos nos grafites de Luther, ela acha que as pessoas agora estão começando a entender que o grafite pode ajudar de alguma forma e aponta a extensa visão de mundo do grafiteiro, com relação à liberdade, à justiça e lutas por direitos:
"A ideologia dele não é só pintar, por pintar, mas sim levar uma mensagem acompanhada com seu grafite. Admiro o trabalho dele, porque até hoje ele vem resistindo, é difícil você tá na rua sempre pintando. Eu sempre vi em Luther um menino de comunidade, que tinha muitos sonhos de falar através da sua arte e ele consegue porque ele tem um público muito forte com o pessoal do pixo, o pessoal do bomber… ele é um cara que... é um líder", diz a amiga. Jouse informa que Luther tem um trabalho fixo nas ruas, nas horas vagas ele coloca as frases de protesto com o objetivo de mobilizar as pessoas para pensarem num contexto maior, e diz: “ele quebra muito essa barreira de colocar uma frase na rua, um grafite, que faz a gente passar num ônibus lá, lotado, olhar pra aquele grafite por alguns segundos e parar para refletir.”
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Foto: Arquivo pessoal de Luther
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É comum Luther escrever questionamentos ao lado das tags
a vitrine das ruas vemos muros, paredes e viadutos cobertos por grafites e pichações, com cores e mensagens ideológicas, contudo, quando não há a prévia autorização desses espaços públicos e privados, as leis brasileiras consideram tais manifestações de crimes ambientais. Apesar disso, Luther diz que a grafitagem tem ganhado visibilidade na mídia, ele acredita que esse conhecimento permite a queda da repressão, um dos lemas utilizados pelo grafiteiro é: “em muros velhos, fazemos coisas novas.” Porém, quando um aluno, ou pais de alunos questionam se ele é o mesmo Luther das ruas, ele prefere não se revelar, com receito de que aquela informação possa gerar preconceito e confusão quanto ao trabalho de educador social. Nov 2017 22
Escrever é um risco
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Foto: Arquivo pessoal de Luther
Luther apresenta uma reflexão sobre a relação dos negros com a liberdade
vigilância nas ruas é constante, o medo é um parceiro durante as aventuras urbanas, mas a ameaça não intimida, com traços e cores as ideias saem da mente e ocupam cada espaço em branco, onde as vozes silenciadas das favelas ficam ali representadas. O temor torna-se uma sombra presente no interior do grafiteiro, Luther fala da possibilidade de não voltar vivo dessas caminhadas, o perigo parece observá-lo a cada esquina. Mas as manifestações dos muros não revelam o preconceito, nem a profundidade das agressões policiais sofridas por ele.
"Fazendo o grafite, independente do lugar assim é… a repressão policial, quem é grafiteiro e grafiteira de rua sabe disso muito bem, nunca deixou de existir, nunca. Existe grande preconceito mesmo por parte de várias autoridades que trabalha de forma que eu acho que não é correta, abordando totalmente de forma desnecessária. O preconceito parte muito de vários itens, parte do item que é uma arte do que veio da classe pobre, é uma arte que quem faz é os menos favorecidos, né… uma arte que é feita por pessoas negros e negras, grande parte. A abordagem desnecessária parte muito também desses quesitos e também parte do preconceito e do racismo... muito enraizado em algumas autoridades ”, revela Luther.
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uther conta que já foi vítima da violência, a má conduta dos policiais foi exteriorizada por meio de palavras racistas e agressões físicas, que foram acompanhadas de questionamentos sobre o uso de drogas. “Já sofri violência por parte da polícia, não foi uma vez só. Eles agem do jeito que acham melhor, espancando, batendo”, lamenta. Tintas derramadas no chão, Luther recorda num tom de amargura das dores provocadas por chutes, coronhadas e pisões contra o pescoço. Mesmo diante do despreparo policial, Luther não generaliza os representantes da lei, ele diz que em toda profissão existem “os bons profissionais e os profissionais ruins.” O grafiteiro já foi encaminhado numa das ocasiões para uma delegacia, onde houve o preenchimento do Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), registro efetuado quando uma autoridade quer tomar conhecimento da infração, mas ele nunca foi preso por causa da materialização das ideias em forma de cores e palavras.
“Luther é um cara que tá pintando e a polícia pára, a polícia revista, é o tempo todo, por ele ser negro, que a gente sabe que isso é uma realidade, a gente, o fato de ser negro já é uma barreira muito grande e ainda mais pintando na rua, você está exposto”, confirma Jouse. Foto: Arquivo pessoal de Luther
Grafite feito em parceria com o grafiteiro Pepi
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Foto: Arquivo pessoal de Luther
O conteúdo lido por Luther é compartilhado em forma de mensagem junto ao grafite
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cenário da rua esconde as histórias de outros grafiteiros, grafiteiras, pichadores e pichadoras que se arriscam com o intuito de expor para a sociedade com seus discursos. A maioria deles pôde vivenciar situações parecidas com a de Luther, contextos de quebra de direitos e abuso do poder policial. Apesar dos riscos, os seguidores da cultura hip-hop seguem unidos, estampando as ruas com mensagens de irreverências, questionamentos e gritos da periferia. “O cotidiano, a realidade das favelas, como as pessoas vivem… eu acho que cada escritor e escritora têm muito isso, esses acontecimentos e essas vivências transmitem essa inspiração para a pessoa desempenhar algo que queira fazer”, reflete Luther.
Confira os áudios da entrevista!
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Foto: Arquivo pessoal de Luther
Sofia
O mundo da pequena Sofia
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m grafiteiro nunca sabe o que pode encontrar nas ruas. Talvez aquele dia tenha amanhecido igual aos outros, com chuva ou sol, talvez ele tenha repetido as roupas, ouvido os mesmos sons de carros e buzinas. Poderia ter pego o mesmo atalho em busca de um local mais apropriado para imprimir seu recado. Topou-se com os velhos grafites e pichações gravados nas paredes e muros de prédios abandonados. Procurou o melhor lugar e então decidiu deixar o seu registro. Tirou o spray da mochila e foi contornando as inquietações com a mesma energia de sempre. Mas uma surpresa o esperava. Como de costume, Luther foi abordado pela polícia, que pediu documentos e perguntou o que ele estava fazendo naquela área. Luther falou que acabara de fazer uma intervenção artística. Um dos policiais olhou o grafite e indagou se ele realmente era o grafiteiro Luther, ele disse que sim, mas ficou com receio, pois a identidade nas ruas geralmente não é revelada para as autoridades. Foi quando o policial falou de Sofia, “minha filha é fã do seu trabalho”, disse. Luther Nov 2017 26
não esperava ouvir aquilo, nem mesmo conhecia o rosto de Sofia, apenas sabia uma única informação ao seu respeito, a filha do policial era sensível à arte urbana. Sem demora, o policial pediu uma prova daquele encontro, um desenho para Sofia. Luther riscou no papel sua tag, uma mensagem e dedicou para a menina. Com o sorriso no rosto, o policial agradeceu o presente, finalizou a conversa e liberou Luther. O grafiteiro relembra a história sem saber o resultado daquele acontecimento. Sofia havia gostado do grafite levado por seu pai? Luther diz que não é fácil encontrar pessoas que compreendem a grafitagem, mas Sofia entendia. O olhar curioso de menina foi suficiente para que o pai tivesse um comportamento de tolerância e respeito com Luther. Curiosamente, decidi procurar o significado do nome de Sofia, durante a investigação descobri que seu nome representa sabedoria. A questão agora é: Será que existem outras Sofias espalhadas pelo mundo, com o propósito de mudar a mentalidade das pessoas?
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á mais de treze anos, Luther expõe a opressão das pessoas menos favorecidas, preenchendo o espaço urbano com técnicas do grafite, relacionadas às frases de líderes negros, trechos de músicas e indagações pessoais. “O grafite desperta em mim o desejo de mudança e a sensibilidade”, afirma. A atmosfera da rua amplia o olhar das pessoas, principalmente, daquelas que trabalham com o grafite, além disso, o ambiente possibilita a relação com o outro. Enquanto Luther colore as ruas, é comum que as pessoas se aproximem dele. Certa vez, um carroceiro acompanhado por um amigo fiel, um cachorro, parou diante das cores e mensagem do grafite. Ao perceber o interesse do anônimo, o grafiteiro aproveitou para fazer um pequeno intervalo, descansou um pouco, repartiu um lanche com o desconhecido e ambos compartilharam ideias. "Um morador de rua pára, naquele momento que ele poderia ir para outro lugar, mas ele parou, se deparou com aquela pintura, aquela frase, aquela ideia. Ali tem aquele contato, uma conversa mínima, aquilo ali motiva você, gera alguma coisa no seu pensamento, no seu psicológico e só quem vive isso é quem sente algo diferente", diz Luther. O grafiteiro acredita que a rua aguça os sentimentos, os efeitos desses encontros não programados influenciam Luther e o resultado realiza-se no momento da sua arte. O grafite vem da rua, a todo o momento essa expressão estar se reinventando, sem perder a essência original.
- O que é a rua para você, Luther? - O morador de rua, a prostituta, o engraxate, o cheira cola, essas pessoas para mim na minha visão são verdadeiramente a rua, né? Essas pessoas para mim vivem a rua, tiram seu alimento da rua, tiram seu sustento da rua, vivem da rua. Ou seja, têm muito grafiteiro que fala que é a rua, mas para mim a gente só representa um movimento que é de origem das ruas. Quem é rua de verdade é o morador de rua, prostituta, cheira cola… essas pessoas que estão frequentemente em contato com a rua. Luther acredita que o grafite extrapola os limites dos muros, para ele o grafite “é vivência, experiência, um aprendizado mútuo, uma troca de experiência, uma conversa, um diálogo, um sentimento, valorização das pessoas que são sofredoras no dia a dia, guerreiras”. O grafiteiro conta que a rua é bem valiosa, um ambiente fértil, além disso, ele diz que sua percepção de mundo mudou quando iniciou na grafitagem. Foto: Arquivo pessoal de Luther
Protagonistas das ruas
Um dos desenhos do muro da Escola Municipal Olavo Bilac 27 ◊ Griffo's
Boa leitura!
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grafite é considerado uma arte efêmera, cuja beleza estética fascina por causa da diversidade da temática, contrastes dos tons, evolução da técnica e habilidade dos grafiteiros e grafiteiras. Além disso, o conteúdo produzido pelas formas verbais, icônicas ou pela junção das duas formas, a mista, atuam no imaginário social, gerando novos significados. Luther grafitava um prédio abandonado localizado no bairro de Piedade, na cidade de Jaboatão dos Guararapes, a ação aconteceu em parceria com um amigo de tinta conhecido por Chothi. Quando o parceiro foi comprar biscoito, água e refrigerante, ele avistou um velho senhor, que sobrevivia de catar lixo, o homem já tinha visto que os dois grafiteiros estavam ali, colorindo o prédio. Enquanto conversavam, o catador disse que era morador de rua há dez anos, ele acompanhava as pinturas deixadas nos muros e gostava muito das ideias de um grafiteiro. Curioso, Chothi perguntou quem era o grafiteiro, o catador disse que gostava de observar as ideias divulgadas por Luther. Chothi informou que era Luther quem estava no alto do prédio, sem demora ele foi contar para o amigo o quê ouviu daquele senhor. Nov 2017 28
Foto: Arquivo pessoal de Luther
Grafite feito para o peojeto 'Colorindo o Recife'
O cenário das ruas nem sempre revela um clima hostil para o Luther, aquele dia foi marcado por descobertas e uma atitude inesperada. Apesar de não lembrar o nome do catador, Luther não esquece daquele episódio. “Quando o colega meu falou, eu parei de pintar, desci e fui conversar com o senhor lá. Ele disse que ficava andando na rua… ficava procurando os materiais para poder ganhar um dinheiro. Ele sempre passava diante do muro e ficava procurando para ver se tinha alguma escrita, alguma frase, alguma coisa para ele ficar refletindo, para ele ficar pensando. Ele disse que sempre nas frases tinha uma interrogação, ele disse que aquelas interrogações das perguntas que tinham nos muros fazia com que ele passasse o tempo dele trabalhando, mas pensando em algo”, recorda Luther.
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Foto: Blog da Rua
conversa durou até o entardecer, o catador disse que gostava muito de ler e tinha um presente para Luther, um livro de versos, “um livro que ele tinha achado no lixo”, que o grafiteiro guarda até hoje. No início, Luther ficou sem jeito de aceitar aquela lembrança, mas o gesto pareceu tão sincero, tão verdadeiro que não teve como recusar. Luther diz que “no Brasil, as pessoas jogam livro no lixo, eu costumo até O contato com a rua é indispensável para quem faz grafite escrever em alguns do grafite na vida de alguém. “Cada lugares que no lixo tem fortuna, as grafite que a gente faz é como se pessoas conseguem sobreviver catando tivesse um pedaço do sentimento, que lixo, através do lixo, o lixo que para a gente deixa na parede, a gente faz ele era uma fonte de renda, também e deixa a rua se transformou em decidir o que faz presente.” com ele”, revela O que fica é um o grafiteiro. sentimento de Jouse fala da gratidão e respeito, relação de Luther Luther acredita que com a leitura, seus passos estão “ele ler muito e na direção certa, eu gosto muito já que aquele porque ele não momento com o foge do foco dele, catador de lixo foi que é representar tão intenso, talvez sempre os o morador de rua grandes nomes tenha descoberto da História. o valor implícito Tá sempre do grafite, desde lendo textos o primeiro contato importantes, com aquela arte. “O tá sempre grafite está sendo atualizado sobre visto pelas pessoas tudo o que acontece e tá passando isso que a gente quer mesmo”, orgulha-se para os jovens” nas oficinas, com a Luther. O tempo de duração da arte de divulgação de ideais de luta do povo, rua nos painéis urbanos é incerto, o conforme reflete Jouse. mesmo podemos dizer da interferência
“Cada grafite que a gente faz é como se tivesse um pedaço do sentimento, que a gente deixa na parede, a gente faz e deixa a rua decidir o que faz com ele”, informa Luther.
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Rompendo barreiras
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o contrário do que a maioria das pessoas pensa, para se tornar um grafiteiro e acima de tudo um artivista das ruas é preciso vencer alguns obstáculos. O primeiro deles diz respeito ao preço do material do trabalho, a lata de spray, que pode custar até R$ 25,00 nas lojas de materiais de construção da cidade. Luther revela que com a situação de desemprego no Brasil, existem grafiteiros que ficam divididos entre comprar o alimento do dia a dia ou a lata de tinta. Alimentar o espírito inquieto, buscando nutrir a mente, ou alimentar o corpo com o sustento? Apesar da dúvida, eles acreditam na importância de expor as convicções e ideais, mesmo tendo que abrir mão algumas vezes da comida. Como alternativa para driblar o preço elevado, eles optam por tintas com prazo de validade vencido comercializados nos armazéns, outra forma é adquirir uma tinta de qualidade inferior, de baixo custo, por exemplo, o látex. Porém, as latas também podem ser encontradas nos eventos culturais de hip hop, ou durante as visitas às feiras informais, também conhecidas como feira do troca-troca. O aperfeiçoamento da técnica também preocupa quem se lança no grafite, “cabe muito da pessoa tentar buscar o conhecimento, tentar evoluir, tentar buscar coisas novas, técnicas novas, ou seja, quanto mais conteúdo a pessoa tiver é que vai deixar ele um pouco melhor de buscar a sua evolução, buscar sua criatividade e tentar buscar seu ganha pão. Complicado é, difícil é, mas não é impossível. Tentar fazer seu diferencial, procurando estudar, procurando buscar técnicas novas, procurando sempre evoluir”, orienta Luther. Nov 2017 30
No entanto, as barreiras não estão situados apenas nos elementos essenciais para a produção do grafite, Luther alerta que um dos motivos do preconceito é a falta de conhecimento sobre a arte, preocupado com isso, ele tenta transformar o olhar desconfiado das pessoas quando ministra oficinas nos bairros de Olinda e Recife, bem como, quando ele é abordado por alguém durante uma intervenção urbana. Porém, ele realça que o prejulgamento também atinge parte dos policiais que representa a segurança no estado. Apesar disso, “é possível viver do grafite, como toda profissão tem as grandes dificuldades”, o trabalho possibilita a troca de saber, a percepção do outro e do próprio espaço na sociedade. “Eu trabalho como arte-educador, é bem prazeroso você participar um pouco daquela fase da criança, da adolescência, do jovem, mostrando aquele outro lado da grafitagem. Como é uma arte que as pessoas criticam muito, uns não entendem e diz que é pichação, outros dizem que é coisa marginal, mostrar que a grafitagem pode ser diferenciada, também transmite uma educação. É bem valioso e você agrega vários valores”, destaca Luther. O processo de troca de conhecimento é contínuo, Luther diz que cada dia ele aprende mais com o público infanto-juvenil, novidades que fortalecem o grafiteiro, pois a vivência torna os dias melhores.
Foto: Arquivo pessoal de Luther
Influências e processo criativo
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s paisagens das ruas são um mix de belezas naturais e um ambiente físico modificado pela ação do homem, o contato com o meio permite que Luther descubra uma dessas intervenções humanas, o grafite. Ele conta que costumava observar o trabalho dos grafiteiros mais experientes do contexto local, por exemplo, Galo de Sousa, Zone, Olho, Guga e Guerreiro, que transformaram o espaço urbano numa galeria de arte a céu aberto, podendo ser contemplada por qualquer transeunte, com uma trajetória semelhante aos demais grafiteiros e grafiteiras. Esses territórios de interferência e contrastes urbanos fazem Luther lembrar-se da música do Rappa,
conhecida por Monstro Invisível, cujo trecho apresenta: “Brilhante idéia de uma cabeça nervosa / Grafitando um outro muro de raiva / Eles já sabiam, mas deixaram a sina guiar a sorte”. Entre becos, ruas e vielas, no contato com a street art, Luther conhece o trabalho visual de Florim, um grafiteiro veterano do bairro, com quem aprende o ofício, “via muito o grafite de Florim, foi ele quem passou para mim os contatos, me ensinou o início da grafitagem e tudo. Aprendi grafite com ele na melhor escola, a rua. A gente pintava muito, foi a partir de Florim que tive os primeiros contatos de como fazer o que a gente chama de bomber, throw-up, as letras rápidas na rua, preenchimento, contorno, bonecos…”, esclarece. 31 ◊ Griffo's
“Brilhante idéia de uma cabeça nervosa Grafitando um outro muro de raiva Eles já sabiam, mas deixaram a sina guiar a sorte”
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rinaldo Maia de Lima, 35 anos, filho do bairro do Totó, referência no ramo da arte urbana, adotou a tag Florim, o primeiro envolvimento dele com a arte de rua aconteceu a partir da pichação, posteriormente, abre mão da vida clandestina e dedica-se ao desenho, atualmente, desenvolve trabalhos na função de grafiteiro e tatuador. Florim menciona que conheceu Luther numa oficina que realizou na Escola Professor Moacyr de Albuquerque, no bairro de Cavaleiro, onde ensinou os primeiros traços, mas admite que hoje ele aprende com o parceiro, principalmente, com as ideias de revolução disseminada por Luther. Para Florim, o amigo é um “homem cheio de ideias”, lembrando do início da parceria dos dois: “no começo ele me seguia, hoje em dia ele já abriu um parada na rua e ele tá lá firme e forte, colorindo o Recife com as ideias dele, bem revolucionárias. Um cara ótimo, amigo, parceiro e irmão”, diz. A amizade, a parceria e a admiração é uma via de mão dupla entre os amigos Luther e Florim. Apesar da timidez, Florim revela que Luther tem uma ideologia forte, “ele é ótimo no que faz, ele chama e vai lá e faz acontecer”, ressalta.
Fotos: Arquivo pessoal de Florim
Florim é tatuador e grafiteiro
Parceria dos amigos para pintar os muros da Biblioteca Comunitária Educacionista Alcides do Nascimento Nov 2017 32
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quantidade das letras no estilo bomber, throw-up era crescente nas ruas, porém, Luther quis inovar, quando decidiu unir a imagem da tag, que representa sua assinatura, com um conteúdo mais subjetivo, formado por mensagens de grandes nomes da resistência negra, textos poéticos, letras de música, pensamentos e sentimentos. Esse estilo foi adotado, por se tratar de uma prática mais rápida próxima ao ritmo das ruas, porém, além dos bombers, Luther também costuma desenhar personagens. Grafitar é “colocar para fora o que você acha que as outras pessoas gostariam de escutar, né? É você ler um livro e ver alguma escrita massa lá, alguma ideia massa lá, que muitas pessoas não têm o acesso ao livro, por ’n’ motivos, né? E você pensar: pô, isso aqui seria legal alguma pessoa também saber disso. Você escutar uma música e em determinada parte da música, algum cantor ou cantora falar alguma coisa que você também diga: poxa, essa palavra aqui vai fazer um choque positivo massa. É você também criar algo em contato com a rua, automaticamente, você põe aquilo para fora e deixa registrado no muro”, explica Luther. Antes do cheiro da tinta exalar, das frases e das cores preencherem as paredes cinza, Luther caminha de um lado para outro das ruas, em busca de um lugar mais adequado, às vezes acontece de procurar um lugar e achar outro, tudo depende do momento e do clima da cidade. Funciona como num processo de descoberta, geralmente, um espaço visível, onde transitam um grande número de pessoas e carros. É comum também optar por lugares onde o grafite possa permanecer por mais tempo, demorando um pouco mais para ser apagado ou substituído por cartazes de propaganda.
Foto: Cy Baptista
Grafitar é “colocar para fora o que você acha que as outras pessoas gostariam de escutar, né? É você ler um livro e ver alguma escrita massa lá, alguma ideia massa lá, que muitas pessoas não têm o acesso ao livro, por ’n’ motivos, né? E você pensar: pô, isso aqui seria legal alguma pessoa também saber disso", diz Luther. 33 ◊ Griffo's
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om relação ao processo criativo, Luther costuma abordar questões político-sociais nos muros, expressas em forma de protesto, que levam informação e conhecimento ao povo. O fluir das ideias tem como ponto central o contato com a rua, “vê o barulho da cidade, aquela agitação toda, aquele fluxo de pessoas passando, aquilo ali, não sei nem se pode dizer se gera uma inspiração, mas aquilo ali já interfere no modo como a pessoa ia desempenhar a arte. Ou seja, pintando na rua, a inspiração vem da vivência da rua, do comportamento das pessoas, do barulho e da agitação… e as pessoas transitando, né? Pessoas diferentes transitando, batalhando no seu dia a dia”, relata.
Dessa forma, o grafiteiro com base nas suas leituras, procura compartilhar, criar e adaptar as ideias junto ao grafite, ou seja, ressignificando esses símbolos para o nosso contexto. Para ele, “o conhecimento tem valor quando se é espalhado, dividido, né? Somar com as outras pessoas… uma ideia mais focada em construção”.
Foto: Arquivo Cores do Amanhã
Quando assume o papel de artivista, Luther executa sua militância com as cores que possui, se nas andanças tiver a sorte de encontrar um grafiteiro ou grafiteira, ele aproveita o instante para dividir ideologias e um bocado de tinta. Mas, quando se trata de um “trampo” profissional, indicado ou requisitado por alguém, o enredo muda, pois cada contratante diz o que deseja, assim, o trabalho requer o uso das cores correspondentes ao tipo de desenho.
Confira os áudios da entrevista!
Grafite feito para o projeto Colorindo o Recife Nov 2017 34
Compartilhar saber é aprender
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se tornem mais conscientes do mundo ao redor, além disso, ele colabora para o crescimento pessoal dos aprendizes. Em passos lentos, Luther diz ser possível alcançar os objetivos a partir da atividade de grafiteiro, é visível a predominância de duas características nele: a parceria e a coletividade, ele reforça esse ponto de vista:
"Na batalha, no suor mesmo, a gente do grupo trabalha muito pensando em construir junto, quando o pensamento de um pode ajudar com o pensamento do outro. Pensando junto a gente consegue as coisas mais fáceis, a coisa vai chegar mais rápido do que a pessoa se isolar no seu mundo só, individual".
Foto: Arquivo pessoal de Luther
urante a semana, Luther trabalha na Fundação Fé e Alegria, com uma das unidades localizada na cidade de Olinda, a instituição desenvolve ações socioassistenciais que visam a inclusão e a promoção social de pessoas em situações de riscos. Aos sábados, ele dedica-se às atividades de grafitagem na ONG Cores do Amanhã, mas sua entrega nos demais projetos do Cores não tem um tempo fixo de empenho, pois basta acioná-lo para imediatamente ele se deslocar ao local, disposto a ajudar a quem precisa. Orgulhoso, Luther fala da relação das pessoas com o grafite, “quando as pessoas e a juventude se interessam pela grafitagem, eu sinto um prazer muito grande, é bem marcante porque a gente ver que estão começando a se identificar com aquilo que pertence de fato a comunidade”. Ao utilizar as paredes como papel, as pessoas colocam nas ruas muito mais que tintas, elas expressam “os valores sentimentais”. Porém, Luther diz que a função dele não é formar grafiteiros e grafiteiras, mas permitir o acesso do sujeito ao conhecimento, para que elas
Muros, paredes e viaduto servem de suporte para o grafite de Luther. 35 ◊ Griffo's
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delson Boris, um jovem de 29 anos, morador do bairro do Totó, é grafiteiro e arte-educador no Cores, ele destaca a capacidade de Luther de dialogar com as pessoas, um dos pontos mais marcantes do perfil do grafiteiro, “Luther tem uma eloquência de rua de saber conversar e eu percebo que ele tem uma coisa de mensageiro mesmo, uma coisa bem simples de saber dialogar e as pessoas prestarem atenção”, aponta. Boris também valoriza a coletividade do parceiro, que se coloca à disposição nas horas mais difíceis, “ele é muito aquela coisa de reunir, de grupo, embora a democracia não exista, ele prega muito a democracia”, afirma. Boris conheceu Luther durante uma oficina de grafite, segundo ele, Luther é um sujeito inquieto, revolucionário, que geralmente fica incomodado com aquilo que desagrada, aquilo que pode passar despercebido, em geral, pelos outros indivíduos. Boris informa que de todos os grafiteiros conhecidos por ele, Luther foi quem estreou com essas abordagens mais raciais no grafite, “ninguém trabalhava com isso, ninguém questionava isso, e ele começava com frases, que para mim serviu muito de reflexão para o meu autoconhecimento enquanto negro”, relata. Boris compreende que o grafite de Luther ultrapassa as questões estéticas, apesar de ser uma produção menos elaborada, o conteúdo e as mensagens políticas interferem no cotidiano da sociedade. “No contexto da rua, em geral, Luther tem um certo respeito, por grafiteiros, por pichadores e vândalos”, ideia de grafite que ultrapassa a habilidade técnica, mas sustenta a capacidade de conversação, de manter um diálogo através da representação, complementa. A nomenclatura de artista, não costuma ser utilizada com muita frequência por Luther, Boris passou um Nov 2017 36
tempo para entender esse ponto de vista do amigo, hoje, ambos se consideram pessoas que produzem arte, como uma tentativa de tirar a ideia elitista de que só os ricos produzem arte, mas colocar nas mãos da periferia a capacidade de reconhecer que qualquer um pode ser produtora ou produtor de arte, sendo o “grafite a maior forma democrática que existe”, observa Boris. Foto: Arquivo de Boris
“Luther tem uma eloquência de rua de saber conversar e eu percebo que ele tem uma coisa de mensageiro mesmo, uma coisa bem simples de saber dialogar e as pessoas prestarem atenção”, diz Boris.
Foto: Cy Baptista
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luta da comunidade é diária, Luther, Boris, Florim, Jouse, os voluntários e as voluntárias do Cores do Amanhã buscam trabalhar o meio social, despertar nas pessoas o interesse de participar das atividades culturais e mudar a realidade dos filhos e filhas de carcerários que estão vinculados às ações do Cores, dando a eles uma oportunidade de fugir do ócio e dos problemas. Apresentar uma situação diferente do contexto da criminalidade tem sido um trabalho desafiador, mas Luther não desiste e segue acreditando na mudança e capacidade do seu povo:
A kombi do Cores do Amanhã precisa de ajuda para continuar levando cores ao Recife
"É o que a gente tenta fazer devagar, mais aquele trabalho mesmo de formiguinha, lento, a gente sempre tem que acreditar nas pessoas, né? A gente não pode dizer não isso aí não tem jeito, a gente chega para a pessoa e diz que tem um espaço que ela pode vir a hora que quiser, que se sentir à vontade, que o espaço vai estar aberto. E mostrar para a pessoa que ela tem o potencial, só depende dela", explica Luther. 37 ◊ Griffo's
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athália Carvalho Ferreira, 23 anos, estudante do curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Pernambuco, conheceu Luther durante no mutirão de grafite coordenado pelo Cores do Amanhã, no viaduto do Shopping RioMar, localizado na Bacia do Pina. Após o primeiro contato com a ONG, ela decide fazer o curso de grafitagem, tendo como primeiro mentor o grafiteiro Luther, depois de finalizar o curso, Nathália torna-se grafiteira, preferindo a tag Nathê.
Foto: Arquivo de Nathê
“O meu primeiro grafite fora do Cores foi Luther quem me deu as latas, ele dividiu as latas comigo. Então, ele me ajudou de várias maneiras, tanto me dando dicas, me incentivando, na questão técnica e histórias da vida dele, enquanto homem negro, que se parece muito comigo, né?”, relata a ex-aluna. Nathália também informa que apesar dele parecer “durão”, risos, ele é bem “humildão”, por a todo o tempo ajudar os alunos, segundo ela, Luther desenha bem, mas prefere fazer o bomber junto com as frases, “as mensagens que ele deixa é às vezes mais importante do que o ‘trampo’ estético”.
Nathê diz que o trabalho de grafiteiro vai além das vias públicas, pois envolve “a questão educativa que ele tem da rua”, ela informa que existem lugares em que há uma grande quantidade dos grafites de Luther e destaca que aquele é “único espaço artístico que aquela comunidade teve acesso”. A aluna também menciona as oportunidades oferecidas por ele, após o curso, quando surgem trabalhos de grafitagem, Luther convida os antigos aprendizes para pintar, em troca eles são remunerados.
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Foto: Arquivo de Nathê
Confira o vídeo da entrevista com Luther!
“Ele dá a oportunidade para os meninos que estão começando a grafitar, às crianças também. É mais um cara preto, de periferia que dá uma oportunidade, é muito fácil quando você está no meio da rua, à mercê de tudo, inclusive do uso de drogas, né? Então, Luther é um cara que não fuma, né? Um exemplo quebrado, assim, ‘não é porque eu sou grafiteiro que eu sou drogado, que eu cometo crimes, enfim…”, valoriza Nathália. Antes do grafitagem, Nathê estudava na área de exatas, ela conta que o grafite deu incentivo para que ela pudesse seguir nas áreas artística e educacional, atualmente, professora e feminista, tem a oportunidade de viajar para divulgar a arte do grafite em diferentes estados do Brasil.
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Responsabilidade social
Foto: Cy Baptista
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carro chefe da ONG Cores do Amanhã é a grafitagem, o dinheiro chega através do trabalho com o grafite, aerografias, painéis e doações de voluntários, mas nenhum fundador ou colaborador recebe salário mensal, todo dinheiro é destinado para custear as despesas do Cores, por isso, é preciso trabalhar muito para manter o lugar. As solicitações chegam por indicações de amigos, contato via telefone ou redes sociais, assim os grafiteiros e grafiteiras saem colorindo a comunidade, bairros vizinhos e instituições públicas e privadas. Luther explica que o grupo já realizou trabalhos para o Instituto Peixe-Boi, em Itamaracá, ele diz que a maioria do trabalho é realizado na região metropolitana do Recife, por exemplo, na Secretaria de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, no Departamento de Polícia da Criança e do Adolescente, na Secretaria de Direitos Humanos, Prefeitura do Recife e nos muros de escolas públicas, outra intervenção artística aconteceu na ONG Muzenza, em Fernando de Noronha, mas já houve ações realizados no interior do estado. A produção realizada com o Cores não impede Luther de pintar com outros grafiteiros, “a frequência de pintura é mais com os grafiteiros daqui mesmo, mais de perto, mas a gente sempre interage com outros grafiteiros, às vezes encontra outros grafiteiros na rua, às vezes tá pintando um determinado bairro e do nada encontra com três, quatro grafiteiro, um grupo e faz aquela pintura que não estava marcada no momento , mas todo mundo pinta junto”, diz.
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jaga, Louco, Templo, Tces são grafiteiros que também pintam regularmente com Luther, mas nada impede dele grafitar com os outros parceiros das ruas, “a gente sempre trabalha em ciclo, como se fosse uma rede, mais de momento assim, às vezes do nada encontra o pessoal, nada marcado, nada planejado e acontece aquela pintura ali. Tenta cada um respeitar seu espaço, mas quando é para interagir, todo mundo tenta interagir e trabalhar com uma ideia só, que é colorir as ruas, levar a cultura do grafite onde ela tem que chegar”, explica. Todos e todas com o desejo de mudança, que utilizam os outdoors das ruas como suporte para manifestar o pensamento, expondo ideologias com ideias fortes e marcantes, tem o respeito de Luther. A Revista Salve S.A., produzida por
Confira os áudios da entrevista!
Foto: Arquivo pessoal de Luther
grafiteiros do Recife, possui registros dos trabalhos feitos pelo Cores, além da Revista Da Rua pra Rua, produzida por grafiteiros de fora de Pernambuco. Luther avisa que tem um currículo artístico e um portfólio individual, porém admite a necessidade de investir mais na organização do seu trabalho, pois nem todos os registros são efetuados, principalmente quando se trata do grafite vandal. Todavia, é possível encontrar algumas das suas artes nas redes sociais dele e do Cores do Amanhã. Além do projeto com o Cores, Luther nutre seu espírito revolucionário a partir de um projeto denominado de “Ideias De Revolução”, o IDR, que realiza em parceria com outros grafiteiros da cena pernambucana, com o objetivo de colorir o Recife com mensagens com caráter transformador. Luther ensina a técnica do grafite para aluno da Fundação Fé e Alegria 41 ◊ Griffo's
Viadutos do Bairro de São José, Recife
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Foto: Cy Baptista
uitas pessoas procuram o espaço Cores do Amanhã para desenvolver trabalhos de grafitagem, entrevistas, parcerias e trabalhos vinculados às instituições de ensino, em geral, Luther transmite as informações a respeito da origem da ONG e dos projetos desenvolvidos, conversa com a imprensa e demais pessoas que desejam participar das atividades. É comum também a visita de pessoas que desejam apenas conhecer o grafiteiro, com o intuito de trocar algumas ideias, mas existem ocasiões em que o espaço é visitado por estudantes, por ser algo referente à educação, Luther costuma ser prestativo:
“Quando a gente vê que a ideia segue a linha mesmo da educação, de levar um conhecimento positivo para todos e todas é bem-vindo. Quando a gente percebe que vai agradar a maioria é aceito, quando a gente percebe que vai agradar a minoria dominante, aí não é do meu interesse”, comunica Luther. Ele também confessa que não gosta de dar entrevistas pessoais para a imprensa, pois geralmente a mídia omite as problemáticas vivenciadas por ele nas ruas. Além disso, Luther informa que algumas pessoas já o procuraram para desenvolver produtos, por exemplo, camisetas, o convite foi recusado, pois não seguia a linha ideológica do grafiteiro. Nov 2017 42
Áudio extra! Grafites em espaços públicos
Como será o amanhã?
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tualmente, Luther, Boris, Florim e Jouse têm oferecido um universo de oportunidades para as crianças e os jovens do bairro, como um pequena semente plantada na vida de cada pessoa que participa das diferentes atividades do Cores. Luther espera que o projeto tenha continuidade, aquele talvez seja o desabrochar de novos indivíduos com o mesmo desejo de melhorar a comunidade. Luther deseja que projetos semelhantes ao Cores do Amanhã possam surgir, dando continuidade as ações no bairro, “Se pudesse ter outros em outras comunidades, acreditamos que outros jovens também gostariam de ter e seria tipo uma saída, um modo das pessoas ocuparem o tempo livre com alguma coisa de lazer, alguma coisa valiosa”, comenta Luther. Com relação à arte, embora exista a opressão do sistema, Luther espera que o grafite esteja ainda mais forte, com mais praticantes e com menos preconceito. Daqui a quatro anos, Luther pretende fazer o curso e Serviço Social, com o intuito de ampliar suas ações sociais,
mas está disposto a abraçar as chances que serão ofertadas ao longo da vida, “sempre um ser humano aberto às mudanças”, reflete. Além disso, ele pretende continuar com a arte do grafite, levando cada vez mais uma mensagem de esperança e conscientização. E quem sabe até, ir conhecer a mãe África. - Qual o teu maior sonho Luther? Automaticamente, Luther sorri, e diz que uma vez leu um livro, lá, estava escrito que sonho é algo bem distante, sendo assim, as pessoas deveriam ter desejos e vontades, por ser algo mais próximo, possível de ser realizado. “Minha maior vontade é que acabasse, ou diminuísse um pouco o ódio que as pessoas têm, que não vai acabar, né? Que diminuísse um pouco o racismo, o preconceito”, confessa. Em seguida, Luther cita um trecho de Martin Luther King: “aprendemos a voar como pássaros e a nadar como os peixes, mas ainda não aprendemos a simples arte de conviver como irmãos” e complementa que vivendo em paz, as pessoas conseguir quase tudo, elas podem ir atrás dos seus objetivos e realizar seus planos.
Foto: Arquivo pessoal de Luther
“aprendemos a voar como pássaros e a nadar como os peixes, mas ainda não aprendemos a simples arte de conviver como irmãos” Grafiteiros e grafiteiras enfrentam problemas todos os dias, mesmo assim, Luther acredita que o grafite resiste 43 ◊ Griffo's
"Uma grande vontade minha é que as pessoas possam ter o mínimo, né? Ou seja, direito à educação, saúde, moradia. Não adianta eu querer pensar só em mim, né? Eu acho que meu povo precisa muito disso, o básico, que o sistema tira das pessoas: saúde, educação, moradia e emprego. Uma grande vontade minha era ver o país pautado de igualdade", diz Luther
C
onfesso que fiquei surpresa com a resposta, pois é muito mais fácil diante de uma pergunta sobre o sonho, as pessoas voltarem-se para a própria vida, preocupando-se com as realizações e conquistas individuais. Mas Luther, não esquece dos irmãos e irmãs afrodescendentes, não esquece dos parceiros e parceiras de tinta e não esquece das pessoas que vivenciam a mesma situação social. Ele combate com cores vibrantes e palavras de resistência, gritando alto, invadindo os espaços cinzas, batendo de frente com o sistema e dizendo que os invisíveis estão ali, prontos, guerreiros e guerreiras! Luther mostra o tempo todo a importância da mudança de pensamento e postura, que a arte de rua sobrevive, essa mudança acontece e é recíproca, tanto para quem faz, quanto para quem recebe, pois as imagens passadas diante dos nossos olhos são reflexos da realidade das pessoas. O grafite invadiu as ruas, pontes, muros, paredes… e mostra ao povo a necessidade de refletir, embelezam cada canto da cidade, ao mesmo tempo em que critica a sociedade alienada. O grafite é um atalho, segue na pele da cidade, como um caminho enérgico de dar voz ao povo e Luther tem sido um dos mediadores da “favela guerreira”, quando realça a cada jato de tinta suas convicções! Viva as cores, viva o grafite e viva a cultura!
Nov 2017 44