ANTÔNIO CARLOS CINTRA DO AMARAL
FRAGMENTOS DE MEMÓRIA
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© 2010 Antônio Carlos Cintra do Amaral Edição e produção Edições Jogo de Amarelinha Projeto gráfico e diagramação Jairo de Souza Design Capa Cristiane Takeda Revisão Carla Mello Moreira Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Amaral, Antônio Carlos Cintra do Manga com leite: fragmentos de memória / Antônio Carlos Cintra do Amaral . – São Paulo: Edições Jogo de Amarelinha, 2010.
ISBN 978-85-99188-04-0
1. Amaral, Antônio Carlos Cintra do, 19322. Contos brasileiros 3. Memórias autobiográficas I. Título. 10-12649
CDD-920 Índice para catálogo sistemático: 1. Memórias autobiográficas 920
Impressão: Digital Page Acabamento: Futuro Mundo ISBN 978-85-99188-04-0 Todos os direitos reservados ao autor – 2010 Edições Jogo de Amarelinha www.jogodeamarelinha.com.br amarelinha@jogodeamarelinha.com.br Tel./Fax: (11) 3676 0157 Antônio Carlos Cintra do Amaral www.cintradoamaral.com.br www.celc.com.br cintradoamaral@celc.com.br 1a edição 1a impressão
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Sumário APRESENTAÇÃO – Manga com leite faz mal? 7 A Visita 9 Manga com Leite 11 Um Passeio pelo Passado 15 O Anjo da Guarda 18 A Confissão 24 O Orador 28 Zemaria 30 O Retorno de Zemaria 35 Universos Paralelos 39 Desvio de Rota 47 O Sumiço do Morto 57 A Carta do Morto 60 Doutor Argemiro 65 Aeroporto 72 Nostalgia 74 Farofa com Carne de Sol 78 50 Anos de Formatura 80 Antes na Terra do que no Céu 84 O Ladrão de Batina 87 Declaração de Voto 90 Síri 94 Visita ao Túmulo 98 O Berço 101 A Dupla Morte do Velocista 105 História de Família 108 Zé Luiz Ganha Apartamento Novo 111 Zé Luiz Perde o Apartamento Novo 116 Casamento Aberto 120 Idiossincrasia 124 O Autor 131
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Manga com leite faz mal? Depois de consagrar-se como conceituado autor de livros jurídicos, Antônio Carlos presenteia seus leitores com uma outra faceta, até este momento oculta: a de narrador de histórias. As considerações legais dos livros técnicos dão lugar, agora, ao imaginário, às teias entre as quais seus personagens se apresentam, aos cenários que revolvem a memória afetiva de um narrador colado em seu criador. Antônio Carlos comprova que seu Desvio de rota (livro lançado em 2006) fora apenas um ensaio de orquestra a despertar a veia de um mestre ficcionista. Resguardado pelos fatos de sua própria trajetória política, aquele livro de memórias libertou, provou e provocou o autor a ousar. Afinal, como ele mesmo ali se pergunta: “Somos nós que escolhemos nossas rotas, ou são elas que nos escolhem?”. Os contos de Manga com Leite traduzem a capacidade supreendente de um homem que soube reinventar-se. Nesta obra, Antônio Carlos mistura diferentes antídotos em seu caldeirão memorial, unindo o que se supunha indissoluto e puro veneno. Nas histórias que você, caro leitor, encontrará adiante, permita-se ser conduzido pelos fragmentos de memória de um narrador maduro que desenha o fluxo narrativo com a precisão de quem sabe construir pontes de acesso entre passado e presente. 7
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É essa ousadia, cheia de coragem e pulsão de vida, de quem se recusa a estacionar em seu próprio tempo interior, que faz de Antônio Carlos Cintra do Amaral um autor renovado, capaz de resgatar, por meio da revisitação da memória, personagens e situações que traduzem os mais diversos perfis da natureza humana. Estes contos encantam pelos contrastes que representam. Porque no fundo Antônio Carlos sempre soube: manga com leite NÃO faz mal!
Leonardo Chianca editor e escritor
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A Visita Em uma bela tarde de domingo, com muito sol, desci do carro de aluguel que me levara a Olinda, diante de uma casa ampla e agradável. Paguei ao motorista e dirigi-me ao portão. Bati palmas. Apareceu uma empregada e perguntou-me o que queria. Disse-lhe que gostaria de falar com o dono da casa. Logo a seguir, ele apareceu. Afável, bem-humorado, convidou-me a entrar. Subimos a escada, de três degraus, que dava acesso ao terraço, e entramos na primeira porta à direita. Abriu a porta envidraçada, também à direita, e tivemos acesso à sala de visitas. Sentamo-nos. Indagou-me se aceitava um cafezinho. Aceitei. “A que devo sua visita?”, perguntou-me. Expliquei que residia em São Paulo, onde era advogado, mas que havia nascido em Olinda, ali adiante na Rua do Sol. Que morara naquela casa onde estávamos a conversar, dos sete aos dez anos de idade, e que buscava visitar locais que me recordassem a infância. Notei sua estranheza. É provável que tenha duvidado de que aquela casa fosse antiga o suficiente para que nela eu tivesse morado aos mais ou menos dez anos. Mas não contestou. Conversamos longamente, ele indagando como era São Paulo e se estava adaptado a uma cidade tão maior que Olinda e Recife. Eu, perguntando-lhe sobre o que fazia, sobre sua família e outras coisas mais. 9
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A conversa estava muito agradável, mas a noite já ia chegando. Disse-lhe que estava na hora de voltar. No dia seguinte deveria embarcar para o Sul. Levantou-se e conduziu-me, pelo braço, para conhecer sua família. Apresentou-me sua mulher, suas filhas, seus genros e seus netos. Disse-me que tinha um filho médico, que residia no Rio. E apontou-me a criança, de cerca de dez anos, que corria no quintal atrás de uma bola. “É o meu caçula.” Chegara a hora da despedida. Cumprimentei a todos. O dono da casa levou-me ao portão. Fitamo-nos nos olhos e nos abraçamos afetuosamente. “Gostei muito de sua visita”, disse-me ele. A distância, surgiu um bonde. Tomei-o com destino ao Recife. Não poderia dizer àquele senhor, quase vinte anos mais moço do que eu, que ele teria apenas seis dias de vida, e que eu tinha ido visitá-lo para o abraço de despedida que não tivera oportunidade de dar-lhe mais de seis décadas atrás.
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Manga com Leite Quando meu pai morreu, há mais de sessenta anos, fui despachado para a casa do pai de um dos meus cunhados. Só voltei após o enterro, já que naquela época costumava-se afastar as crianças de um contato mais direto com a morte. O que me deixou mais impressionado, nos dias que se seguiram, foi a história que me contaram. O motor do carro fúnebre que transportava o caixão não funcionou. Não lembro se conseguiram consertá-lo ou se substituíram o carro por outro. Mas a partir desse fato construiu-se uma tese que se espalhou pela cidade: meu pai estava esperando alguém. Poucos dias após – não sei de quem foi a iniciativa – organizou-se o que hoje chamamos de “bolão”, em que os participantes faziam suas apostas para tentar acertar quem seria aquele, ou aquela, que estava sendo esperado. O dono da loja de miudezas, Toinho Nigro, amigo do meu irmão mais velho e que gozava de alto conceito, abriu um de seus cadernos de capa dura, onde anotava suas vendas diárias, e assumiu o controle das apostas. Os elegíveis não seriam todos, mas só os idosos, assim considerados os de idade igual ou superior a quarenta anos. Os nomes dos apostadores e apostados, bem como o valor das apostas, eram mantidos em rigoroso sigilo, sob a guarda do coordenador da loteria. 11
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Desde logo passaram a realizar-se reuniões diárias na Praça do Carmo, onde se discutia o assunto e se administrava a tensão que se apoderara da população idosa da cidade. Dessas reuniões participava um cidadão, cujo nome não lembro, porque era conhecido pelo apelido: Livre Pensador. O Livre Pensador proferia discursos veementes contra a medida adotada. Em parte porque era contra os jogos de azar. Mas sobretudo pelo absurdo da crendice popular, contrária a tudo que lhe era indicado pela Razão. O fato é que muitos foram os apostados. Dizia-se, à boca pequena, sem nenhuma base de sustentação, que os mais apostados eram o prefeito, o delegado e os padres. Digo padres, no plural, porque a cidade se destacava pelo grande número de igrejas. Só em torno de minha casa, em um raio de quinhentos metros, contavam-se cinco delas, todas frequentadas por minha família. Já naquela época me espantava o número de igrejas, mas confesso que nunca tive a coragem de indagar o porquê. Meu pai morreu em novembro. Foram três meses de extrema ansiedade. Em fevereiro do ano seguinte, estourou na cidade a notícia. O farmacêutico, Seu Freitas, havia falecido de repente. Embora não houvesse evidência de que Seu Freitas era aquele que havia provocado o defeito no carro fúnebre, não ocorreu a ninguém duvidar desse fato. Sobretudo – argumentava-se – porque Seu Freitas havia sido muito amigo do meu pai, se bem que esse argumento nunca me convenceu, pois quase todos na cidade tinham sido muito amigos do meu pai. 12
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As apostas foram reveladas e o valor global apostado distribuído entre os vencedores. O que causou estupefação, à cidade e sobretudo a mim, foi a revelação de que um dos premiados tinha sido o Livre Pensador. Vejam vocês que já naquela época não se podia confiar nos livres pensadores... Ao lembrar-me desse episódio, que marcou minha vida, recordo a figura de Seu Freitas, que acumulava as funções de farmacêutico e médico para pequenos problemas de saúde. Era um homem de cabelos brancos, cordato, prestimoso, não só respeitado mas também amado por aqueles a quem atendia. Sua morte, embora repentina, não surpreendeu a ninguém, porque já era bastante idoso, próximo à casa dos sessenta. Naqueles dias foi comum ouvir, em todos os cantos da cidade, a lamentação: “Eu devia ter adivinhado que era Seu Freitas!” Mas ao falar em Seu Freitas lembro-me de outro episódio a ele ligado, ocorrido dois ou três anos antes. Ele tinha um filho adolescente. Não lembro se era filho único. Morreu de repente, antecipando, pode dizer-se assim, a morte do pai. Uma única reunião na Praça do Carmo foi suficiente para o veredicto oficial. A morte se tinha devido a uma mistura de manga e leite, que havia comido horas antes. Alguém pode pensar que estou a fazer humor. Mas naquela época era comprovado pela ciência que comer manga com leite poucas vezes deixava de levar à morte. No mínimo, deixava sérias sequelas em quem cometia o desatino de efetuar a mistura. Ao pensar nisso, aliás, sinto-me abalado pela rapidez com que os cientistas costumam abandonar suas crenças, mesmo as mais sólidas como essa... 13
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Conto esses dois fatos para mostrar que eles me marcaram até hoje. Quando compareço a enterros, não consigo relaxar enquanto o carro fúnebre não dá saída rumo ao cemitério. Nos últimos tempos, ando mais tranquilo, porque raras vezes o velório não se realiza no próprio cemitério. Quanto à mistura de manga com leite, esclareço que comprovei a veracidade da afirmação de que ela é mortal. Jamais comi manga com leite e não há dúvida de que devo a isso o fato de continuar vivo, na minha idade, gozando de plena saúde.
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Um Passeio pelo Passado Cheguei ao aeroporto às sete da manhã. Tomei um táxi e dirigi-me à cidade onde nasci. Fui direto à Praça do Farol. Era onde o bonde fazia o retorno circular para voltar ao Recife. Na época de minha infância, Olinda terminava aí. Tanto é que o bairro que foi construído depois chamou-se “Bairro Novo”. Desci do táxi e resolvi voltar a pé. Vim pela Rua do Sol. Passei defronte da casa de Seu Egídio. Seu Egídio tinha um armarinho, A Carinhosa, localizado na Rua da Imperatriz, no Recife. Era muito amigo do meu pai e tinha um filho, Geraldo, que hoje está na Academia Brasileira de Letras. Defronte, vi a casa onde nasci. O terreno ia da Rua do Sol até a areia da praia de São Francisco. Hoje, o mar destruiu metade do passado. Restou a casa, que se tornou um bar, ou restaurante, de segunda categoria. Continuei a andar. Passei pela casa de Seu Figueiredo, onde morei. Retifico, passei pelo terreno onde outrora se erguia a casa de Seu Figueiredo. Daí datam as primeiras memórias de minha infância. Não lembro o lugar exato em que se situava a farmácia de Seu Freitas. Talvez onde hoje existe uma das funerárias que, por estranho paradoxo, se instalaram na Rua do Sol, como se o sol da rua fosse poente, e não nascente como é. 15
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Rememorei, no fim da Rua do Sol, a loja de miudezas de Toinho Nigro. Não sei se era descendente de italiano, porque na época eu sequer sabia o que era italiano. Cheguei à Praça do Carmo. Era o centro da cidade, no sentido de que era lá que se buscava seu referencial. Vi o prédio onde se localizava o Cine Olinda, em que assistia às séries de cinema e aos filmes do Gordo e o Magro, e que fora, segundo me diziam, o Cassino Olindense, clube do qual meu pai havia sido diretor. Subi a ladeira de São Francisco. Logo no início, a casa onde moravam meus padrinhos de batismo. Mais adiante, a igreja de São Francisco, onde entrei para rememorar as missas que lá assisti. Continuei subindo em direção ao Alto da Sé. Diferente do meu tempo de criança, com muito mais crianças, só que estas necessitadas, como tive a felicidade de não ser. Vi a Academia Santa Gertrudes, que frequentei no jardim de infância. Na época, só o jardim de infância era misto. Minhas irmãs, mais velhas do que eu, foram alunas da Santa Gertrudes. Percorri a Rua do Amparo, desci pela Rua de São Bento, onde funcionava o Instituto Domingos Sávio, em que estudei, e cheguei à igreja de São Pedro. Para minha surpresa, encontrei-a aberta, já que o padre só costuma abri-la para as missas matutina e vespertina. Visitei, na igreja, o local onde estão os ossos de meus pais e de duas das minhas irmãs. Não sabia, mas lá também estão, em dois outros jazigos, os ossos de meus avós paternos, falecidos no século XIX. 16
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Passei pela Praça da Preguiça. Quando criança, conheci a preguiça em pessoa. Hoje, não existe mais preguiça, mas o nome continua. Vi, no alto, a Matriz do Carmo. E entrei na Avenida Sigismundo Gonçalves. O grupo escolar continua lá, igual a como estava há décadas. Relembrei as boas “peladas” que joguei no seu pátio. Olhei a casa onde meu pai morreu e vi que ela estava à venda. Não resisti e entrei. Estava igual à imagem que dela fazia, eu que de lá saí aos dez anos de idade. Fui à Praça do Jacaré, que, diferente da preguiça, não era verdadeiro, mas de pedra. Passei pelos Quatro Cantos, onde retenho as primeiras memórias do carnaval de Olinda. Voltei ao Recife, e de lá a São Paulo, onde estão meu presente e meu futuro.
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O Anjo da Guarda Não creio em bruxas, duendes, fantasmas, macumba, vodu ou sortilégios de qualquer espécie. Mas tenho sérias dúvidas quanto à existência de anjos da guarda. Não sei se isso se deve ao fato de que minha mãe me incutiu, entre outras crenças, a de que cada indivíduo contava com a proteção divina, delegada a uma figura mítica que era o anjo da guarda. Para contar com essa proteção, não era necessário pagar um preço muito alto. Bastava ir à missa todo domingo, rezar, antes de dormir, um padre-nosso e uma ave-maria e confessar-me e comungar pelo menos uma vez por mês. Não era obrigatório, mas recomendável, rezar o padre-nosso e a ave-maria também ao acordar e, uma vez ou outra, a salve-rainha e o credo, até mesmo para não esquecer as letras. Pago esse preço, que – repito – não era alto, adquiríamos o título de cidadania religiosa, que tal como ocorre com a cidadania política era conferido a todos aqueles que cumpriam seus deveres. A diferença básica consistia no fato de que o exercício da cidadania política não conferia ao eleitor – e muito menos confere na atualidade – o direito de contar, nos cargos eletivos, com a proteção – e sequer com o respeito – dos eleitos. Foram inúmeros os episódios em que me envolvi e em que tive a impressão de contar a meu lado com a proteção 18
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do anjo da guarda. Mas são poucos os que posso citar sem me comprometer, ou comprometer outras pessoas. Ou, pelo menos, sem me envergonhar de contar. Às vezes me indago por que o anjo da guarda continua a meu lado, já que há muito tempo não pago o preço correspondente à manutenção da cidadania religiosa. A explicação que me ocorre é que, por algum motivo, consegui saldo suficiente para ser considerado uma espécie de “sócio remido”. Para os que não sabem o que é sócio remido, explico que é aquele que usufrui todas as regalias do sócio, sem precisar pagar contribuições – diárias, mensais, bimestrais, trimestrais, semestrais ou anuais – ou porque já as quitou, ou porque delas foi dispensado. Por ora, conto apenas dois desses episódios, a meu ver exemplares. Ambos ocorridos há muito tempo.
v Certa vez, em um feriado religioso, tive a infelicidade de, em uma partida de futebol, fraturar a tíbia e o perônio. Antes que alguém me chame de antiquado, ou ignorante, esclareço que sei muito bem que com a evolução da medicina nenhum ser humano tem mais tíbia nem perônio. Um deles – não sei qual – foi substituído pela fíbula. O outro por um osso do qual não recordo o nome. Com a perna engessada, passei a fazer de táxi o percurso entre minha casa e o local de trabalho. Ida e volta. A relação custo-benefício apresentava saldo a meu favor, já que a alternativa seria deixar de trabalhar, e em consequência de receber meu salário. 19
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Ao tomar um táxi de volta para casa, poucos dias após a fratura, deparei com um espetáculo aterrador: o motorista era um homenzarrão, com uma barba imensa e expressão de extrema ferocidade. Verificando que não podia mais saltar do veículo sem correr o risco de nova fratura – ou sacrifício considerável de minha autoestima –, acomodei-me no assento traseiro e indiquei o destino a alcançar. Para minha surpresa, o motorista falava. Disse-me ele, a título de saudação: “Jovem! Você percebeu que alguém entrou no carro, a seu lado?” Como estávamos apenas eu e ele no veículo, meu apavoramento dobrou. Não foi suficiente para acalmar-me o que disse a seguir: “Jovem! A seu lado está sentado alguém cuja missão é protegê-lo.” Pensei de imediato no anjo da guarda. Imaginei que por algum motivo – cumprimento de outros deveres, folga semanal ou até mesmo preguiça – não havia ele me acompanhado ao jogo em que eu quebrara a perna e agora, movido por sentimento de culpa, não me deixava um só minuto sem proteção. Mas esse raciocínio também não foi suficiente para acalmar-me. Era noite, e eu imaginava que a qualquer momento o motorista pararia o carro, sacaria de uma peixeira e – quem sabe? – arrancaria meu fígado para comê-lo cru, a fim de repor suas reservas de ferro porventura comprometidas. 20
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Mas a viagem seguiu sem incidentes até minha casa. Paguei a corrida e, por precaução, abri a porta e deixei-a aberta por um minuto, para que meu companheiro pudesse saltar. Raras vezes senti a presença do meu anjo da guarda como naquela noite.
v Em outra oportunidade, fui convidado para participar de um comício a ser realizado, em uma cidade do interior, em defesa de uma reforma estrutural, que não lembro qual era. O comício estava marcado para as dezoito horas. Para estar lá a tempo, deveria viajar às dezessete. Atrasei-me, porém, e saí pouco antes das dezoito. Busquei tirar parte do atraso e pisei no acelerador. Já perto da cidade a que me destinava, vislumbrei um vulto, iluminado à luz dos holofotes do meu carro, atravessando a estrada. Pisei no pedal do freio, mas não deu tempo. Senti o baque, de algo que se chocara com a dianteira do veículo. Saltei do carro em pânico. Tinha atingido algo, ou alguém. Precisava saber o que ocorrera. Não vi nada em redor. Nem animal, nem ser humano, nem qualquer objeto que pudesse justificar a sensação de choque. Perto, a cerca de cem metros, vi um posto de gasolina e algumas poucas casas. Estacionei o carro no acostamento, com os holofotes acesos, e andei em busca de ajuda. 21
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Ao relatar o fato, várias pessoas ofereceram-se para acompanhar-me ao local do acidente, a fim de descobrir o que tinha acontecido. Esquadrinhamos a estrada, o acostamento, os arredores. Nada encontramos. Examinei o carro e não vi nada que indicasse ter havido um choque. Quando percebi que as pessoas em torno já começavam a olhar-me enviezado, talvez em dúvida quanto à minha sanidade mental, tratei de agradecer-lhes a ajuda e escapuli com rapidez. Cheguei à cidade quase às vinte horas. A praça, bastante grande, estava lotada. O palanque, montado em frente à matriz, apinhado de gente. Deixei o carro em uma rua próxima e dirigi-me ao local do comício. Não sei quando nem por que percebi que algo estava errado. Mas antes de subir procurei identificar algum dos oradores programados, entre aqueles que abarrotavam o palanque. Não vi ninguém conhecido. Com muita cautela, dirigi-me a um dos populares que rodeavam o palanque e indaguei: “Como é, meu amigo? O comício está correndo bem?” “Claro! Depois que expulsamos aquela corja imunda que estava aqui, tudo ficou ótimo.” Antes que me ocorresse qualquer outra pergunta, acrescentou: “Cambada de comunistas! Pensam que podem fazer comício a favor de reformas na praça de nossa cidade? Defronte da igreja matriz? São muito atrevidos!” Nada mais foi dito nem lhe foi perguntado. Apressei-me a bater em retirada. 22
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Mais tarde, naquela mesma noite, soube que mal o comício havia começado travou-se uma verdadeira batalha campal, entre os favoráveis e os contrários à reforma. E que os antirreformistas conseguiram derrotar os reformistas e tomar de assalto o palanque. Foi um dos maiores comícios contra as reformas realizados, na época, em toda a região. Soube também que foram muitos os feridos na batalha, alguns em estado grave, quase todos nas hostes reformistas. Na volta à capital, passei pelo local onde julgava ter havido o acidente. Tudo calmo, nenhum sinal de que algo anormal tivesse ocorrido.
v Às vezes, perguntam-me se acredito em anjos da guarda. Costumo responder cautelosamente: “Sei não, sei não... Talvez, quem sabe?”
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A Confissão
Fiz meu curso primário em uma escola católica, mas nela não havia uma rígida postura religiosa. Aos dez anos fui transferido para um colégio de padres. Neste, os alunos – pelo menos os menores – eram obrigados a confessar-se e comungar uma vez por semana, sempre aos sábados. Na primeira semana, estranhei o procedimento. Não me haviam alertado que deveria fazer um prévio exame de consciência, a fim de organizar o relato dos pecados cometidos. Chegada minha vez, dirigi-me ao confessionário. Ajoelhei-me e o padre me perguntou: “Vamos lá, meu filho. Quais foram seus pecados?” Recordo que tentei lembrar-me de algum, mas não consegui. Com a honestidade própria da infância, respondi que não tinha pecado a relatar. O padre me interpelou: “Não é possível, meu filho. Se porventura você não pecou por haver praticado alguma má ação, pelo menos teve um mau pensamento. Diga-me: o que você pensou ofendendo a Deus?” Até que me esforcei, mas não consegui lembrar-me de nada: “Nada, padre, nenhum pecado.” 24
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O padre insistiu: “Nada, meu filho? Alguma coisa você deve ter feito de mau. É a hora de confessar e obter a absolvição.” Continuei negando, e o padre insistindo. Até que me ocorreu mentir. “Ah, padre. Lembrei-me agora. Há poucos dias fui à despensa, subi numa cadeira e tirei duas bananas da prateleira do alto, escondido.” “Muito bem, meu filho. É assim que deve ser. A verdade antes de tudo. Sua mãe autorizou que você fizesse isso?” Não podia contar ao padre que na verdade minha mãe me obrigara a comer as bananas. Eu nem gostava de bananas. Se o fizesse, começaria tudo de novo. Respondi: “Não, não autorizou.” O padre explicou-me que o que eu fizera a rigor se caracterizara como um furto, mas o pecado não tinha sido grave. Absolveu-me e deu-me, a título de penitência, ou ato de contrição – não lembro bem a terminologia correta –, a tarefa de rezar cinco padre-nossos e cinco ave-marias. Saí do confessionário desnorteado. Havia entrado no confessionário sem pecado a relatar e dele saíra com um pecado cometido. Mentira para o padre. Durante a semana não parei de pensar no assunto. O que fazer no próximo sábado? Decidi dizer a verdade. “Quais são seus pecados, meu filho?” “Só um, padre.” “Grave?” 25
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“Acho que sim.” “Qual foi, meu filho?” “Menti para o senhor, padre.” “Mentiu para mim?”, espantou-se o padre. “Sim. O senhor lembra a história das bananas que lhe contei no sábado passado?” “Lembro perfeitamente.” “Era mentira. As bananas me foram dadas por minha mãe. Eu nem as queria comer, já que não gosto de bananas. Mas fui obrigado.” O padre me fez um sermão daqueles. Eu não deveria mentir. A mentira era um pecado grave. No meu caso, gravíssimo, já que fora dita no ato sagrado da confissão. E durante a semana, o que tinha a contar? “Nada.” “Não é possível. Passou uma semana sem pecar? Diga-me a verdade, meu filho.” Pensei: pronto, lá vem a mesma história da outra vez. E decidi cortar a pressão no nascedouro: “Padre, se eu não furtei as bananas, desta vez ataquei a geladeira para tirar um copo de leite, sem autorização.” “Muito bem, meu filho. É assim que se faz. Dizer logo de cara a verdade. Mas eu o absolvo, apesar da mentira referente às bananas.” Mandou que rezasse quinze padre-nossos e quinze ave-marias, dez pela mentira na confissão e cinco pelo episódio do copo de leite. 26
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Saí do confessionário novamente desnorteado. Mentira outra vez. Se não gostava de banana, detestava leite. Minha mãe é que me obrigava a tomar cinco copos de leite por dia, para me fortalecer com o cálcio. Passei a semana refletindo. Se voltasse a dizer a verdade, ou seja, que mentira outra vez, tudo recomeçaria. O padre me pressionaria para contar o segundo pecado, já que para ele era impossível que uma criança de dez anos passasse uma semana sem pecar. Na sexta-feira, ocorreu-me a solução. “Muito bem, meu filho. O que você tem a me contar hoje?” “Padre, beijei a menina que mora na casa ao lado.” “Que escândalo, meu filho!” Preocupado, perguntei: “Vou ser absolvido?” Disse-me o padre: “Apesar da enormidade do pecado, dar-lhe-ei a absolvição. Reze trinta padre-nossos e trinta ave-marias.” Daí em diante, eu tinha sempre um pecado a contar. Às vezes contava dois ou três, todos imaginários. Acho que foi nessa época que comecei a revelar minha vocação de ficcionista...
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O Orador
Estava eu em uma cidadezinha do interior, daquelas com rua, praça e igreja na praça. Logo, notei um ajuntamento. Era um homem, em pé na carroceria de um caminhão, discursando. Aproximei-me do grupo. O homem tinha a pele – lembro ainda hoje – bastante queimada de sol. Sulcos em seu rosto confundiam o observador que tentava avaliar sua idade. Sua linguagem, rude, revelava ignorância. Mas era inteligível e vibrante. Não havia dúvida que se tratava de alguém inteligente, dotado de um extraordinário poder de comunicação. Falava de um futuro promissor. Inebriado com suas palavras, vi-me transportado para esse futuro. Meus filhos estudariam e trabalhariam com seus filhos, suas oportunidades seriam iguais, seus sonhos seriam comuns. Meus netos brincariam e cresceriam com seus netos, na mais absoluta liberdade. Por um momento, a imaginação daquele homem rústico e simples confundiu-se com a minha. Ele conseguiu transmitir-me a ideia de que nossos anseios eram convergentes. Não só isso, mas que também nossos interesses eram comuns. De repente, percebi que algo anormal estava acontecendo. Alguém tentava subir na carroceria do caminhão, 28
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superando a resistência que lhe era oposta. Um homem irrompeu no palanque improvisado. Era pequeno e mirrado. Mas trazia na mão um revólver. Caminhou em direção ao orador, encostou o revólver em sua cabeça e disparou.
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Zemaria
Ao chegar em casa, servi-me de uma boa dose de uísque com soda, peguei uns queijos saborosos e sentei-me à frente da TV para assistir, pelo canal pago, a um jogo de futebol da Copa dos Campeões da Europa. Mal havia ligado a TV, tocou a campainha da porta. Tentei imaginar quem seria. Não esperava nenhuma visita. Aliás, diga-se de passagem, quase nunca espero. Abri a porta. Diante de mim estava um homem de cerca de trinta e poucos anos, vestido com humildade e calçando alpercatas. Perguntei-lhe o que desejava. Indagou, com ar e voz tristonhos: “O senhor se lembra de mim?” Respondi-lhe que não. Que nunca o tinha visto na vida. “Eu sou o Zemaria.” A menção ao seu nome não me acrescentou nada. “Eu participei com o senhor de umas três ou quatro reuniões, já há algum tempo.” “Quando?” “Há pouco mais de quarenta anos.” Indaguei, surpreso: 30
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“Quantos anos você tem, Zemaria?” “Trinta e cinco, doutor.” “Se você tem trinta e cinco anos, como podemos ter-nos encontrado há quarenta?” Pensei, com certa intranquilidade, que estava diante de um louco. Respondeu-me: “Porque já morri, doutor.” Continuei a raciocinar com base na lógica. Ou ele era um louco ou um fantasma. E em fantasmas não acredito. Como se lesse meu pensamento, acrescentou: “Isso mesmo, doutor. Sou um fantasma.” Fitei-o nos olhos. Não percebi sinal de ameaça. A curiosidade suplantou o medo e convidei-o: “Você quer entrar? Gostaria que me explicasse melhor essa história.” Levei-o até a sala de estar e ofereci-lhe um uísque. Respondeu-me que não. Ofereci-lhe queijo. E esclareci: “O uísque é escocês, de doze anos, e o queijo é brie, importado.” Insisti. Respondeu-me de novo que não. Perguntei-lhe por quê. “O senhor está me decepcionando, doutor. Deveria saber que fantasmas não bebem nem comem.” Voltei a sentir uma vaga inquietação. Controlei-me e perguntei: “Por que um fantasma vem me procurar?” 31
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“Para conversar.” “Sobre o quê?” “Sobre o que o senhor me disse há quarenta anos.” E contou-me a razão de sua visita. Disse-me que havia participado comigo de três ou quatro reuniões, em que me relatara que os patrões da região em que trabalhava no campo submetiam, ele e seus companheiros, a um regime de trabalho subumano. Sequer pagavam salário-mínimo. E que ele e mais dezenas de outros trabalhadores estavam dispostos a organizar-se para lutar por seus direitos. Disse-me, mais, que eu lhe havia afirmado que reconhecia nele um líder nato e que o incentivara a agir. Que ao lado deles estava aquele negócio, “Como é mesmo, doutor?” “A Constituição.” Isso mesmo! E ainda acrescentara que a polícia não iria persegui-los e espancá-los, porque sua função no regime, “Como é mesmo, doutor?” “Democrático.” Isso mesmo! A função da polícia no regime democrático era a de proteger os cidadãos diante da violência dos mais fortes e de assegurar a liberdade de todos para fazer cumprir a tal da Constituição. “Lembra-se, doutor?” Comecei a lembrar-me. “Só que a polícia mudou, doutor. De um dia para o outro ela começou a perseguir-nos, eu fui preso, torturado e morto.” 32
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Fiquei em silêncio. “Deixei viúva e um casal de filhos. Eles passaram necessidades. Suas vidas pioraram. Minha filha cresceu, foi para a capital e prostituiu-se. Meu filho, assim que completou dezoito anos subiu no pau de arara e mandou-se para o Sul. Começou como boia-fria, terminou como marginal. Foi preso e torturado pela polícia, e assassinado por seus companheiros de prisão. Entende agora, doutor, por que vim procurá-lo?” Cada vez mais inquieto, respondi-lhe que não, que não conseguia atinar para a razão de sua visita. Destacando bem as palavras, falou: “Eu vim acusá-lo, doutor, de me ter vendido uma ilusão!” Levei alguns momentos para recobrar o autocontrole. A seguir, ponderei: “Zemaria: não vendi a você uma ilusão. Transmiti-lhe uma ilusão que eu próprio havia comprado. Na época, Zemaria, eu estava convicto de que o mundo seria melhor, e que isso dependeria de homens e mulheres como você, organizados e liderados por quem viesse a emergir da própria sociedade. Hoje eu sei que era ilusão, Zemaria, mas naquela época era um ideal.” “Doutor, eu sei que o senhor tem cinco filhos. Como eles se criaram?” “Zemaria, minha vida talvez tivesse sido melhor se eu não houvesse comprado aquela ilusão. Mas não posso reclamar. Todos os meus filhos cursaram os melhores colégios e as melhores faculdades. Dois deles se graduaram 33
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duas vezes e um é pós-graduado. Eu mesmo sou pós-graduado, e renomado na profissão.” “É isso aí, doutor. O senhor vê: por isso é que vim aqui acusá-lo de me ter vendido uma ilusão!” Levantou-se, desejou-me boa-noite e desapareceu...
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O Retorno de Zemaria Dois anos após escrever o relato sobre a visita que me fez Zemaria, estava eu no escritório de meu apartamento, em uma manhã de sábado, quando tocou a campainha. Levantei-me e fui atender. Ao abrir a porta, deparei com um homem rústico, aparentando trinta e poucos anos. A fisionomia me era familiar. Estava certo de que já o havia encontrado, mas não recordava quem era. “O que deseja?”, indaguei. “O senhor não está me reconhecendo? Eu sou o Zemaria. Gostaria de lhe falar.” Continuei na mesma. Convidei-o a entrar. Dirigimo-nos à sala, onde se sentou em uma poltrona. “Estou à sua disposição”, disse-lhe. “Doutor, o senhor não se lembra mais. Eu estive aqui há cerca de dois anos, para denunciá-lo.” Só então consegui recordar quando e onde o vira antes. Ele me procurou uma noite para denunciar-me por ter-lhe vendido uma ilusão. Havia sido uma conversa estranha, da qual me lembrava bem. Indaguei: “Por que você voltou? Uma nova denúncia?” “Não, doutor. Pode ficar tranquilo.” “O quê, então?” 35
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Explicou: “Sei que o senhor escreveu um relato sobre nosso encontro. Como esse relato não está fiel, decidi visitá-lo novamente para fazer algumas retificações.” Fiquei perplexo. Como ele poderia saber do meu relato? “Em que não fui fiel, Zemaria?” “Primeiro, eu não me chamo Zemaria.” “Mas você disse que era esse o seu nome!” “Não foi bem assim, doutor. Eu usei o nome de Zemaria como poderia ter usado vários outros, todos de pessoas que o senhor conheceu e estimulou, e que tiveram histórias semelhantes à minha.” Avaliei a situação e decidi: “Está bem. Farei a retificação, mas deixe-me continuar chamando-o de Zemaria. Facilita a comunicação. Mais alguma coisa?” “Sim, doutor. Tenho outra retificação a pedir. Eu não sou um fantasma, como o senhor disse em seu relato.” Comecei a impacientar-me. “Essa não, Zemaria. Você me disse que era um fantasma, sentado aí onde está agora.” “Não, doutor. Foi o senhor quem me fez dizer que era um fantasma.” “Mas por que eu faria isso, Zemaria?” “Para camuflar a verdade, doutor.” “E qual é a verdade?” “O senhor sabe, doutor, que eu não estou morto, e que 36
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por isso não posso ser um fantasma. O senhor sabe, doutor, que faço parte de sua memória, onde permaneço vivo. Eu e os outros.” Fiquei inquieto. Será que essa era a verdade? Decidi: “Está bem, Zemaria. Farei essa retificação. Nos meus relatos quem manda é o personagem, e não o autor. Mais alguma coisa?” “Sim, doutor. Da maneira como o senhor contou, fica parecendo que o regime da época era democrático. Não era! Se fosse, eu e os meus companheiros não precisaríamos lutar para que a Constituição fosse cumprida. O senhor sabe, doutor, onde há democracia há cumprimento das regras.” “Zemaria, você me surpreende! Você leu Bobbio?” “Claro que não li nada, doutor. O senhor sabe que não sei ler nem escrever. Sou analfabeto.” “Mas deve haver alguma explicação para o fato de você fazer um comentário desse tipo.” “Talvez, doutor, porque tenha aprendido muito no lugar onde estou, mesmo sem saber ler e escrever.” Ansioso para pôr fim à conversa, indaguei: “Terminou, Zemaria?” “Uma última retificação, doutor. Prometo-lhe que depois o senhor poderá voltar para seu escritório.” “Qual é?” “O senhor, no final do relato, diz que eu desapareci, como se não soubesse para onde fui. Mas o senhor sabia muito bem!” 37
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“Para onde você foi, Zemaria?” “Para o lugar de onde vim. De volta para sua memória.” Ocorreu-me perguntar-lhe: “Explique-me uma coisa, Zemaria. Meu relato data de quase dois anos. Você diz que o conhecia e demonstrou isso em nossa conversa. Por que só agora decidiu procurar-me?” “Porque o senhor, na época, não estava pensando em publicá-lo.” “Mas eu continuo pensando em não publicá-lo.” Dirigiu-me um olhar de descrença. Em seguida, levantou-se, desejou-me bom-dia e desapareceu. Um momento! Para evitar uma terceira visita de Zemaria, retifico: levantou-se, desejou-me bom-dia e voltou para o lugar de onde viera...
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Universos Paralelos No hall do hotel onde me hospedara, cruzei com um senhor que me pareceu familiar. Não consegui lembrar quem era. Para minha surpresa, parou, voltou e dirigiu-se a mim com a mão estendida: “Faz muito tempo que nossos caminhos se separaram.” Confuso, apenas instantes após consegui apertar a mão estendida e responder, inseguro: “Mais de quarenta anos?” Confirmou. Avaliamo-nos mutuamente. Ele tinha uma vasta cabeleira, eu usava bigode, ele parecia mais jovem, eu mais robusto, mas tínhamos pontos de acentuada semelhança física. Após breve conversa, marcamos jantar no restaurante do próprio hotel em que estávamos hospedados. Cinco minutos antes da hora marcada, desci para o jantar. Não esperava encontrá-lo. Mas ele estava lá. Pontual. Sentamo-nos. Fizemos nossos pedidos. Após algum tempo em silêncio, indagou-me o que fizera nas últimas quatro décadas. Reservado como sou – e inquieto como estava – seria de esperar que me recusasse a atender seu pedido. Mas sem saber por quê, vi-me a resumir os principais acontecimentos de minha vida, alguns maus, outros bons. Ouviu-me com atenção, até o fim do relato. 39
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Foi então a minha vez. Devolvi-lhe a pergunta que me fizera. Contou-me que após exercer alguns cargos importantes – e isso eu já sabia – havia sido eleito deputado estadual, federal e senador. Aquela conversa me deixava cada vez mais inquieto. Como se estivesse lendo meus pensamentos, acrescentou: “Entendo sua perplexidade. Como eu poderia ter sido tudo isso sem que você tomasse conhecimento? Lembro-me do homem lógico, cartesiano, que você era, e com certeza continua sendo. Jamais aceitava que a realidade podia ser irreal, que a vida podia transcorrer em caminhos ou universos paralelos, em linhas não convergentes.” E acrescentou, com rudeza: “Talvez não lhe tenha faltado inteligência. Mas no quesito imaginação sua nota não foi alta.” A inquietação desapareceu. Era como se só naquele momento eu tivesse compreendido a situação, impossível apenas na minha cabeça. A certa altura, comentei que não só nossas vidas haviam seguido rumos diversos, mas era como se o país em que ele vivera até agora fosse também diferente do meu. O dele, muito melhor. Concordou. Teríamos prolongado a conversa pela madrugada se não nos avisassem que o restaurante iria fechar. Estendeu-me a mão em despedida. E disse-me, para terminar: 40
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“Espero que nos reencontremos em breve.” Já tranquilo, respondi: “Eu também.” Mas ambos sabíamos que isso não ocorreria. Vivíamos um desses raros momentos mágicos, em que as linhas da vida costumam cruzar-se. Logo mais ele voltaria para seu universo paralelo...
v Acordou cedo, sem saber onde estava. Essa sensação era normal quando despertava em um quarto que não era o seu. Pensou em acender as luzes mas desistiu. Lembrou-se de que estava hospedado em um hotel e levaria algum tempo para descobrir qual botão deveria apertar. E antes de acender as luzes ligaria a TV e o ar-condicionado, para só depois acertar o interruptor da luz que seria aquela que não desejava. Detestava hotéis. E sobretudo detestava quartos de hotel. Recordou o sonho que tivera naquela noite. Jamais tivera um sonho tão estranho. Gostava de registrar por escrito o que lhe ocorria no dia a dia. Mantinha um diário. Seus amigos indagavam-lhe por que perdia tempo organizando um diário, ele que sempre fora um homem bastante ocupado. Deixava-os sem resposta. Guardava consigo o segredo: pretendia, na época oportuna, escrever sua autobiografia. Se lhe faltasse a sensibilidade para perceber qual seria a época oportuna, pelo menos deixaria um registro para alguém que se interessasse em escrever sua biografia. Pena 41
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que o dom de escrever a própria autobiografia após a morte tivesse sido conferido apenas a Brás Cubas. Olhou o relógio e viu que eram seis horas. Como seu primeiro compromisso seria comparecer a uma audiência com o ministro às onze, tinha tempo suficiente para escrever um relato sobre o sonho que tivera, antes que ele sumisse de sua memória. Foi o que fez. Meia hora após estava sentado à mesa com papel e caneta na mão. Eis o relato: Cruzei com ele no hall do hotel. Ele me era familiar. Logo descobri o porquê: éramos muito parecidos fisicamente. Sempre me disseram que de uns tempos para cá passara a ser muito imaginativo, dotado mesmo de um sexto sentido. Talvez por isso me ocorreu, de imediato, que acabara de cruzar comigo mesmo. Convém esclarecer que décadas atrás tivera eu a percepção de que minha vida se bifurcara. Não irei explicar a razão dessa percepção porque não se tratava de nada racional. Basta registrar o fato. Sem hesitar, dirigi-me àquele senhor, da minha idade, e disse-lhe que fazia muito tempo que não nos encontrávamos. Notei, de pronto, sua perplexidade. Mas sua resposta, intuitiva, confirmou que ele era quem eu pensara que fosse. Foi dada em tom hesitante e sob a forma de pergunta, mas foi esclarecedora: “Mais de quarenta anos?” 42
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A situação era curiosa. Dos dois, eu era o único que sabia o que estava acontecendo. Acredito que a mesma explicação se passasse por sua cabeça, mas ele relutava em admiti-la, talvez por falta da imaginação necessária. Conversamos um pouco e marcamos um jantar no próprio hotel em que estávamos hospedados. Desci pouco antes da hora marcada. Cinco minutos após, ele apareceu. Notei duas coisas. Ambos éramos pontuais. E ele não esperava encontrar-me. Após pedir nossos pratos, iniciamos a conversa. Indaguei como passaram, para ele, essas últimas quatro décadas. Descreveu-me, em breves palavras, os detalhes de sua vida. Gostei de sua concisão. Mas, político que sou e sempre fui, o que me importava mesmo era saber sobre sua vida pública. Indaguei se ele exercera nesse período alguma atividade política. “Nenhuma.” O que fizera? “Exerci minha profissão, escrevi artigos e livros, mas nada de política.” Nunca pensara nisso? “Nunca. Por volta do início dos anos 80 senti que tinha chance de tentar, mas sabia que seria um erro, provavelmente irreversível. Como dizia Heráclito: ‘não se pode entrar duas vezes no mesmo rio’.” 43
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Arrependera-se? “Não. Em nenhum momento.” Não me contive e cheguei a ser rude: “E o espírito público que sempre o caracterizou? E seu idealismo?” Respondeu-me: “Curioso. Há décadas que não ouço essa expressão: espírito público. Quanto a meus ideais, constatei que eram ilusões. A utopia morreu.” Não sei se fiquei indignado com essa resposta, ou apenas perplexo. Procurei saber mais detalhes. Fiquei sabendo que no mundo em que vivia a realidade não era animadora. Os políticos, em geral, eram carreiristas. As instituições estavam em frangalhos. O Estado havia sido desestruturado. Interrompi: “O Estado foi desestruturado? Explique melhor.” Explicou-me, em poucas palavras: “Surgiu uma ideologia, hegemônica, que defendia o Estado-mínimo. As funções estatais deveriam ser privatizadas. Você sabe: era o anarquismo com nova roupagem. Os donos do poder não perceberam – ou não lhes interessava perceber – que a desestruturação do Estado conduziria – como de fato conduziu – à quebra do monopólio da força. Criaram-se Estados paralelos.” Novamente interrompi: 44
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“Quer dizer que o objetivo era acabar com o Estado? E como assegurar a democracia sem Estado?” “Eles não perceberam – ou não quiseram perceber – que o Estado Democrático de Direito pressupõe a existência de um Estado minimamente forte.” “Dê um exemplo prático.” “O crime organizado. Montou-se um Estado paralelo, que chega a acuar as populações das principais cidades, sem que o Estado oficial lhe possa opor resistência.” “E as autoridades?” “Vou contar-lhe um episódio recente. Em uma solenidade, o Presidente repreendeu pública e duramente um ministro. Após a solenidade a imprensa questionou o ministro: o senhor irá pedir demissão? Surpreso, ele indagou: por quê? Responderam-lhe: porque foi repreendido desse modo, em público. Isso não significa que ele não mais o prestigia?” “E o que ele respondeu?” “Que essas divergências de opinião eram saudáveis no regime democrático. Além do mais, ele não era representante de si próprio, e sim do partido a que pertencia.” “E qual era o partido a que ele pertencia?” “Aí é que está a questão. No meu mundo, os políticos costumam mudar de partido como jogador de futebol muda de time. E às vezes pelo mesmo motivo... A pergunta que você me fez, se tivesse sido bem formulada, seria: a qual partido ele pertencia no momento?” 45
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O relato já começava a incomodar-me, embora – esclareço – não por culpa de quem o efetuava. Agradou-me, por isso, a mudança de assunto, por ele provocada ao indagar-me o que tinha feito no período. Passei a contar-lhe, com a mesma concisão que caracterizara sua narrativa. Ao final do jantar, despedimo-nos. Escrito o relato, ele ficou a pensar. O sonho que tivera foi tão realista que ele estava a duvidar se tinha sido sonho. Veio-lhe à cabeça uma dúvida, que o deixou inquieto. E se o sonho não tivesse sido dele, e sim do outro? Fora o outro que frequentara o seu sonho, ou o contrário? Como distinguir sonho e realidade? Levantou-se e disse a si mesmo que não era filósofo e sim político, e político pragmático. Já estava chegando a hora de sua audiência com o ministro e ele tinha que cumprir seu dever. O espírito público é que o fazia, já aposentado, viajar e aguentar dormir em quarto de hotel para defender, junto ao ministro, sem remuneração, o interesse do povo de que fazia parte. Era melhor apressar-se, porque o ministro a qualquer momento poderia demitir-se. Bastaria que o Presidente manifestasse, de maneira explícita ou implícita, que ele não era mais de sua confiança.
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Desvio de Rota A situação era caótica no Estado. As principais autoridades haviam sido depostas e presas. A insegurança era generalizada. Garcia pertencera ao grupo político que fora derrotado. Começou a receber pressões. Pressões e prisões. Havia três correntes de opinião entre os vencedores do conflito. Os adeptos da primeira corrente sustentavam que Garcia poderia, com o tempo, reconhecer seu erro no passado e ser útil às forças dominantes. Nas palavras deles: poderia ser absorvido pelo sistema. Os adeptos da segunda corrente, mais realista, entendiam que Garcia jamais faria isso, quer por força de suas convicções, quer pela firmeza do seu caráter. Melhor seria tentar afastá-lo, exilá-lo, podendo, até, facilitar-se esse afastamento. Já os demais defendiam solução mais simples. Argumentavam que Garcia, como de resto todos os integrantes mais destacados do grupo político derrotado, deveriam ser literalmente exterminados. Os adeptos da primeira corrente cedo se convenceram de que a absorção pretendida era inviável. E incorporaram-se à corrente n° 2. Garcia gostaria de enfrentar as pressões e dizer, alto e bom som, que jamais o expulsariam do lugar em que nascera. Mas de que adiantaria? Garcia era pragmático. Não tinha vocação suicida. Sabia que fora derrotado. Antes, porém, de tomar uma decisão, procurou Orosimbo, bem mais velho do que ele e amigo de sua família. 47
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Orosimbo era ligado ao grupo político vencedor. E como tal, muito bem informado. Perguntou a Orosimbo o que deveria fazer. Recebeu a seguinte resposta: “Está na hora de jogar a toalha. Vá embora. E rápido! Não há tempo a perder.” “E se eu não for? Se decidir permanecer aqui?” “Você é louco?” “Não.” “Então vá embora!” Acrescentou: “Você é jovem. Tem potencial político. Pertence a uma família tradicional na política. Você acha que eles tolerarão sua permanência aqui? Mais: você não foi cassado. Aliás, nenhum de nós dois sabe o porquê. Ninguém sabe o que irá acontecer em um futuro próximo. Se dentro de dois anos houver eleição, você poderá candidatar-se. E eles nada poderão fazer para impedir. Você acha que a corrente mais radical irá aceitar? Já que você não foi cassado, irão continuar caçando-o.” “Mas não cometi crime algum. Limitei-me a defender meus ideais. Trabalhei no sentido de fazer respeitar a Constituição e a Lei. Não acha que é injusto expulsar-me do Estado?” “Meu filho, você está sendo ingênuo. Direito é Força. Como esperar que eles sejam justos com você? Aliás, o que é Justiça? Se você souber, diga-me. Na minha idade, que já é avançada, ainda não descobri resposta para esta pergunta.” 48
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“O que faço, então?” “Vá embora, repito. Se você for embora, aqueles que integram a corrente dos que gostariam de deixar de pressioná-lo, desde que você se retire do Estado, conseguirão prevalecer ante os que querem destruí-lo. Poderão, até, facilitar sua saída.” “Caso contrário...” “Caso contrário você estará fazendo o jogo dos que pretendem destruí-lo. Os que querem seu afastamento do Estado não são seus inimigos. Eles desejam ajudá-lo. Gostam de você. Por isso, dão-lhe uma saída honrosa. Você foi político. Por pouco tempo, mas foi. Sabe que política é feita de compromissos. Você sai do Estado. Não foi cassado. Se daqui a dez, vinte anos, os vencidos voltarem, como você não ostentará a medalha do “Mérito da Cassação”, não terá mais possibilidade de retornar à política. Será difícil explicar ao eleitorado que você foi mais do que cassado, foi caçado. O povo não perceberá a sutileza.” “E se eu voltar à política no novo Estado em que me radicar?” “Esqueça. Não deixarão. Seus passos serão acompanhados. Qualquer tentativa de voltar a exercer atividade política será abortada. E dessa vez não o pouparão. Pior: se a ditadura se perpetuar, os problemas que você enfrentou aqui serão pequenos em comparação com o que poderá sofrer.” “Quer dizer que não tenho opção?” “Tem. Mas você, responsável por mulher e quatro filhos, não a escolherá.” 49
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Garcia saiu da conversa desanimado. Mas decidiu tomar o único caminho que se lhe abria...
v Garcia deixou sua terra e foi aventurar-se em outras plagas. Construiu nova vida. Quarenta anos depois, procurou Orosimbo. Este já andava perto dos 120 anos. Encarquilhado, mas como sempre lúcido. E dotado de memória prodigiosa. Garcia falou a Orosimbo: “Estou com vontade de escrever um livro sobre minha experiência naquele período. O que você acha?” “Escreva! A História costuma registrar apenas as memórias dos vencedores. Por que você não conta sua versão, a versão de um vencido, que, aliás, foi vitorioso em outra terra e outra atividade? Além do mais, irá fazer-lhe bem. É bom exorcizar nossos demônios.” Estimulado, Garcia passou a escrever o livro. Pensou em intitulá-lo Seis anos que mudaram minha vida. “Pedante, pretensioso”, sentenciou Orosimbo. “Procure um título mais simples, mais literário.” Foi assim que Garcia escreveu Desvio de Rota...
v Convivi com Garcia nos últimos quarenta anos e nunca tive coragem de indagar-lhe por que saíra de sua terra natal. 50
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Ele era – e continua sendo – muito reservado. Mas ao escrever e publicar Desvio de Rota rompeu a barreira. Senti-me estimulado a fazer-lhe perguntas que jamais faria antes. Convidei-o para uma happy hour em meu apartamento. Copos de uísque à mão, salgadinhos e outros petiscos, sentados confortavelmente, iniciamos uma agradável conversa. Começamos, como sempre, falando de futebol. Ambos acompanhávamos os principais campeonatos do planeta, em especial a Copa dos Campeões da Europa. Quando a conversa já estava bastante animada, perguntei a Garcia: “Como vai seu livro? Boa receptividade?” “Satisfatória. Não pense, porém, que ele irá agradar a todos. Muita gente não gostará.” “Garcia, tenho uma curiosidade. Você estampou, em um dos anexos do livro, a fotografia publicada em um importante jornal do seu Estado, mostrando você preso, atrás das grades. Admiro sua coragem, mas não sentiu constrangimento ao fazê-lo?” “Nenhum. Seria absurdo publicar o livro sem a fotografia. Ela é a imagem emblemática da violência que sofri.” “Mas não receou que os leitores ficassem chocados?” “Eu, no lugar deles, ficaria. Mas não vejo como isso poderia atingir-me. A fotografia mostra um cidadão, em pleno gozo de seus direitos políticos, preso sem amparo na Lei e na Constituição. Diz a notícia que a acompanhou que eu teria cometido o crime de ‘ativismo’. Não sei o que é isso. A fotografia condena a autoridade que 51
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ordenou minha prisão e o jornal tendencioso que a publicou com estardalhaço para agradar alguns poderosos da época.” “Houve quem lesse seu relato e dissesse que você transmitiu emoção. Você diz isso no Diálogo Final. Mas houve quem dissesse o contrário. Por exemplo: o que você sentiu quando foi preso pela segunda vez, sem qualquer motivo para isso?” “Motivo não houve. Mas o objetivo me ficou claro de imediato: expulsar-me de minha terra.” “Mas o que você sentiu quando, já solto, viu a fotografia no jornal?” “Raiva. Vontade de reagir. Mas ao mesmo tempo uma terrível sensação de impotência, já que nada havia a fazer. Uma das piores manifestações de violência é a violência do Estado.” Comecei a perceber que a conversa já o estava incomodando. Procurei abreviá-la. “Garcia, uma última pergunta. Por que você não escreveu sua autobiografia, abrangendo os últimos quarenta anos? Afinal, aqui você pode considerar-se vitorioso.” “Minha vida foi uma vida comum. O período que abordei no livro é o único que merece ser relatado. Além do mais detesto essa história de dizer que fulano foi vitorioso, ou que beltrano foi derrotado.” “Insisto. Você deveria escrever sua autobiografia.” “Meu amigo, repito que minha biografia nada tem de incomum. Só naquele período aconteceram episódios 52
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que vale registrar. Por outro lado, já houve quem dissesse que biografias só têm sentido depois que o biografado morre. E o dom de escrever memórias póstumas foi conferido apenas a Brás Cubas. Você já ouviu falar da autobiografia de Chateaubriand? Não o Assis, mas o François René?” “Confesso minha ignorância. Nunca ouvi.” “Chateaubriand escreveu Mémoires d’outre-tombe e assinou contrato com um grupo de editores com a condição de só publicá-las após sua morte. Antes disso a obra estaria incompleta. Chateaubriand viveu até os 80 anos, idade que equivale, nos dias de hoje, a pelo menos 100. Há uma frase dele que considero genial: ‘Quem vive muito, morre vivo!’” “Traduza.” “Tradução literal: vamos passar para outro assunto.” Conversamos até a madrugada. Prudentemente, desviei a rota.
v Parece que escrever e publicar suas memórias sobre o período em que exerceu atividade política, por isso terminando preso, deixou Garcia propenso a lembrar os maus momentos que passou. Há pouco tempo mostrou-me uns papéis contendo algumas de suas reflexões. Salientou que eram lembranças vagas do que sentira na época. Tirara uma cópia para me entregar. Reproduzo-as aqui, tal como ele as escreveu. 53
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Quando fui preso, não sabia o que iria acontecer. Tinha a convicção de que não cometera nenhum crime, não ferira nenhuma lei. Pelo contrário: lutara para que a ordem jurídica fosse cumprida. Sempre tivera forte convicção democrática. Meu socialismo nada tinha a ver com o chamado socialismo real, quer o soviético, quer o cubano. Estava muito mais para o socialismo inglês. Mas não me iludia. Inglês, soviético ou cubano, socialismo, para quem assumira o poder, era heresia inaceitável. No primeiro momento, não tinha certeza de que escaparia com vida. Não sabia o que estava acontecendo, nem o que aconteceria. Nem no Estado, nem no País. Quando fui atirado a uma solitária, foi como se tivesse sido encaminhado ao corredor da morte. Pessimismo? Alguém pode apontar-me um único motivo para ser otimista naquele momento? Conduzido para o hospital, pensei que ainda não chegara minha hora. Mas continuei a não ter a mínima ideia do que aconteceria no dia seguinte. Nem na hora seguinte. Ou no minuto seguinte. Aos poucos, passei a sentir-me um sobrevivente. Percebi que o importante, naquela hora, não era viver. Se eu viveria ou não, era uma decisão que estava fora do meu alcance. Sobreviver dependia de mim. É difícil passar dia após dia sem liberdade de locomoção, vendo pela janela as pessoas caminharem à vontade pelas calçadas, e sem saber qual 54
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seria meu destino. Nenhuma notícia concreta, nenhuma definição. Em certos momentos, tinha vontade de dizer que decidissem logo o que fazer comigo. Mas dizer a quem? Não havia interlocutor. Além do mais, era necessário sobreviver... Com o tempo, a vigilância afrouxou. Creio que de tanto ver um preso no mesmo local, a sentinela termina se convencendo de que ele não tentará a fuga. Aliás, não tentaria mesmo. Para quê? Para onde? Passaram até a permitir que conversasse, uma vez ou outra, com outro preso que, também doente, estava alojado no quarto ao lado. Mais velho do que eu, e experiente em prisões anteriores, indagou-me certa vez: “Ansioso?” “Claro!” “Não adianta. Quem está lá fora não imagina como o tempo aqui dentro passa devagar. Quem está lá fora não tem pressa. E para quem está aqui dentro não adianta ter pressa.” Certa vez, precisei fazer um requerimento dirigido a uma repartição oficial. Preso, mas não condenado, fui afastado com vencimentos, conforme determinava a lei. Pelo menos essa lei foi respeitada. Obtive papel almaço, pautado (não sei se ainda existe) e escrevi o requerimento “de próprio punho”, como se costumava dizer na época. Só que a única esferográfica à minha disposição tinha tinta vermelha. O funcionário do protocolo não aceitou o requerimento. Só com tinta azul ou 55
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preta. Até hoje lamento não ter indagado se aceitariam tinta verde... Aos poucos, passei a receber visitas de pessoas de minha família. Minha mulher. Minha mãe não reunia coragem para fazê-lo. Minhas irmãs. Duas delas se deslocaram do Rio de Janeiro e passaram alguns dias na cidade para tentar apoiar-me. E meu sobrinho mais velho, que se encarregava de trazer-me objetos necessários. Finalmente fui solto. Ou melhor: ampliaram as dependências de minha prisão. Ao invés de um quarto no hospital, uma cidade inteira. Daí, fui transferido para outra cidade... No início, fiquei preso em um quartel. Logo a seguir, em uma sala. Poucos dias após, em uma solitária. No mesmo dia, em um quarto de hospital. Quatro meses após, na cidade. Parece até história de Cortázar. Veio a redemocratização. Liberdade, ainda que seja tarde! Nova república, novos dirigentes, nova realidade, novos caminhos, novas esperanças, novas frustrações, novas decepções... Novo Brasil?
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O Sumiço do Morto Sua morte deveu-se à velhice. Já há muito passara dos noventa anos, e embora gozasse de perfeita saúde, perdera o interesse pela vida. Sentia-se cansado. Cada dia que passava era por ele contabilizado como mais um passo para o final que passara a desejar. Como tinha certeza de que esse final estava próximo, preparou seu testamento, dispondo dos parcos bens de que dispunha, todos de valor estimativo, com exceção da casa onde morava. Não tivera filhos e sua mulher há muito que se fora. Restavam-lhe poucos sobrinhos, pois mesmo seus irmãos – que tinham sido três – também já haviam partido. Deixou para os sobrinhos o pouco que lhe restara. E um único pedido: que fosse enterrado na cidade onde nascera, a cerca de mil quilômetros da casa onde habitara nos últimos sessenta anos. Logo após sua morte, os sobrinhos, todos educados em observância a rígidos padrões de ética e religiosidade, tomaram as providências para levar seu corpo à distante cidade da qual saíra o tio, para viver sua discreta existência. Contrataram um carro fúnebre para levar o caixão e, como seria impensável programar um cortejo por mil quilômetros, tomaram seus respectivos automóveis e dirigiram-se à cidade onde seria realizado o sepultamento e nascera não apenas o tio, mas também seus pais. 57
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Após viagem de várias horas, chegaram à cidade e hospedaram-se no único hotel habitável que lá havia. No dia seguinte, logo cedo, tomaram todas as providências cabíveis, marcaram o sepultamento para as dezesseis horas e passaram a esperar o carro fúnebre, cuja chegada estava prevista para mais ou menos doze horas. O tempo foi passando e o carro fúnebre não chegava. Quando o relógio marcou onze horas, era evidente a ansiedade do grupo. Ao meio-dia, fizeram breve reunião e decidiram que já era hora de averiguar o que estava ocorrendo. Telefonaram para a funerária que alugara o carro fúnebre. De lá, disseram-lhes que estavam certos de que o carro já havia chegado ao destino, mas procurariam obter informação sobre o que ocorrera. Às duas da tarde, a ansiedade se transformara em desespero. Contataram a polícia, os bombeiros e os hospitais, se bem que a rigor era insólito procurar saber se um morto dera entrada em um hospital. Às dezesseis horas, sem notícias, não tiveram alternativa. O enterro foi cancelado, por falta de comparecimento do morto. Aguardaram o resto do dia. Modificaram seus planos, para pernoitar na cidade. Não conseguiram dormir. O sol nasceu e nada de notícias. Tomaram a decisão de esperar até o meio-dia. Se não descobrissem o paradeiro do morto, retornariam a suas casas. Meio-dia, e nada! Pagaram a hospedagem e voltaram à estrada. Ao chegarem a suas casas, buscaram, ainda sem êxito, solucionar o mistério. 58
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Só quatro dias após conseguiram a explicação. O motorista do carro fúnebre, bem como seu copiloto, tomaram umas e outras pelo caminho e terminaram aportando em uma cidade próxima, de nome parecido, onde entregaram sua carga, que terminou sendo enterrada em cova rasa, como indigente. Os sobrinhos ficaram revoltados com o comportamento dos dois “gatos pingados”, que foram demitidos. Sentiram-se eles atingidos em suas convicções éticas e seu senso de religiosidade. O único que não se importou foi o morto...
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A Carta do Morto
Ao chegar em casa à noite, encontrei um envelope embaixo da porta de entrada. Peguei-o e verifiquei que não continha indicação do destinatário, endereço, nem remetente. Mas como estava no meu apartamento, deduzi que seria para mim. Abri-o. Continha uma carta, sem indicação do destinatário e do remetente, cujo teor reproduzo a seguir: Prezado Senhor: Dirijo-me a V.S.ª para expor o seguinte: Um amigo meu, alma caridosa, trouxe-me ao conhecimento um relato que o senhor teria elaborado sobre os desastrados acontecimentos que caracterizaram meu enterro, decorrentes da incompetência e irresponsabilidade de dois infelizes, que não estavam capacitados a desincumbir-se da sagrada missão de levar mortos à sua derradeira morada. Nesse relato, o senhor confunde humor com ironia. Homem culto, que diz ser, já deve ter lido Comte-Sponville. Se o fez – como acredito que sim – sabe que o humor se inclui entre as grandes virtudes do ser humano, enquanto a ironia não passa de uma reles agressão. 60
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Com ironia – e não humor – o senhor achincalha a ética e a religiosidade e ridiculariza sobrinhos zelosos, preocupados com o cumprimento da última vontade do tio, chegando a atribuir-lhes a estupidez de admitir que um morto pudesse dar entrada em um hospital. Mas o crime maior que o senhor comete – e podemos chamar mesmo de crime – é afirmar, sem qualquer base científica, que o morto não se importou com a confusão armada pelos dois aludidos sacripantas. Se o senhor tivesse mais sensatez, entenderia que não é confortável estar-se em um caixão de defunto, sem espaço para qualquer movimento, por mínimo que seja. Não pretendo dizer que um morto possa movimentar-se, mas é desagradável saber que mesmo se se pudesse fazer algo não se poderia fazê-lo. O senhor não imagina o que é estar dentro do caixão, em um carro fúnebre, e percorrer cerca de mil quilômetros em estradas malcuidadas, esburacadas, como costumam ser as estradas deste nosso infeliz país, sem passado de que nos orgulhemos e sem esperança para o futuro. Além do mais em um carro fúnebre dirigido por dois bêbados, que mal conseguiam permanecer na estrada. Houve momentos em que o caixão quase foi arremessado para fora do carro, o que infelizmente não ocorreu. A cada cinquenta quilômetros, os dois infelizes paravam o carro à porta de um botequim e 61
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desciam para tomar boas talagadas. Eu, que em vida fui abstêmio convicto, vi-me exposto à sanha de dois cachaceiros. Se isso não bastasse, terminei na cidade errada, que sequer conhecera em vida, enterrado em vala comum como indigente. Logo eu, que tomara tantas precauções para ser enterrado na cidade onde nascera. À vista de tudo isso, como o senhor ousa afirmar que eu não me importei? Espero que este esclarecimento faça com que o senhor dê, a seu relato, o destino adequado, que certamente não será a publicação. Ou então que o publique, mas acompanhado desta minha carta, em seu integral teor. Esperando encontrá-lo em breve, envio-lhe minhas respeitosas saudações. P.S. Como as comunicações por aqui andam difíceis, solicito o especial obséquio de procurar meus sobrinhos e dizer àqueles mal-agradecidos que até hoje não foi tomada nenhuma providência para trasladar meu caixão para a cidade onde deveria estar. Após longa meditação, decidi manter meu relato, divulgando a carta acima, em sua íntegra, em respeito ao sagrado direito democrático de resposta. Tomada a decisão, sentei-me à mesa de trabalho e redigi a seguinte carta a ele dirigida: 62
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Prezado Senhor: Recebi sua carta de protesto. Como o senhor me deu opção, decidi manter o relato e, se ele for publicado, anexar-lhe a carta que me enviou. Esclareço que não pretendi, em nenhum momento, fazer ironia. Nem mesmo humor, virtude da qual – reconheço – sou carente. Se houve humor em meu relato, isso se deveu não a mim, mas às características peculiares da situação. Enfim, não é todo dia que acontecem fatos como o que tive oportunidade de narrar. O senhor há de reconhecer. Não tive a intenção de chamar seus sobrinhos de parvos. Em uma situação tão confusa, como a que enfrentavam naquele momento, seria natural que lhes viessem à cabeça as mais disparatadas ideias. Não poderia imaginar os problemas que o senhor enfrentou. Em minha concepção, a morte acaba com tudo, tornando as coisas, por mais importantes que as vejamos em vida, sem qualquer importância. O senhor há de convir que seu conhecimento a respeito desse assunto é privilegiado. Ao contrário do senhor, jamais morri. O paradoxo apontado, de que, abstêmio convicto, acabou sendo transportado para sua derradeira morada (adoro essa expressão!) por dois cachaceiros, leva-me a crer que, se isso se tornar regra, terei amplas chances de ver meu carro fúnebre conduzido por dois abstêmios convictos. Já em relação a terminar sendo enterrado em outra 63
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cidade, em cova rasa, como indigente, não vislumbro o porquê de sua indignação, pois a morte costuma igualar a todos. De qualquer maneira, o senhor, precavido como era, poderia ter evitado essa situação se tivesse tido o bom senso de optar pela cremação, muito mais racional e higiênica do que o enterro. Espero ter-lhe dado as explicações necessárias. Se elas não o satisfizerem, pelo menos fico eu com a consciência em paz. Cordialmente, P.S. Já estou procurando o endereço de seus sobrinhos, a fim de transmitir-lhes o recado. Só após escrever esta carta é que caí em mim. Como poderei enviar a resposta se não sei qual é o endereço do destinatário? Já que a escrevi, porém, irei guardá-la para entregar-lhe quando o encontrar, o que espero seja o mais tarde possível...
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Doutor Argemiro Eu o conheci no lançamento do livro de um colega meu, em concorrida sessão de autógrafos. Estava isolado em um canto, quando percebi um senhor, vestido com terno azul-marinho e portando uma bengala com castão de ouro. Ele dirigiu-se a mim e foi direto e objetivo: “Eu li e gostei de seus livros.” Agradeci e aguardei. “É um prazer conhecê-lo.” Indaguei como se chamava. “Argemiro Valverde, a seu dispor.” “Advogado?” “Não. Cirurgião.” “Geral ou especializado?” “Dentista.” Contou-me que era amigo fraterno do pai do autor, mas que não comparecera à reunião apenas por isso, mas sobretudo porque lera os originais do livro que estava sendo lançado e gostara muito. Comentou: “Impressionou-me, sobretudo, a capacidade que teve o autor para estabelecer uma ponte entre o positivismo kelseniano e a teoria da argumentação de Perelman. Tal como, aliás, preconiza o jurista espanhol Prieto Sanchís. Conhece seus livros?” 65
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Respondi: “Prieto Sanchís é um dos meus autores favoritos. Recentemente tive oportunidade de ler seu último livro, Apuntes de teoría del Derecho. Muito bom!” A este passo apercebi-me de que estava sendo conduzido para um caminho no mínimo incômodo. Mais um pouco, passaria a discutir teoria geral do direito com um cirurgião-dentista. Perguntei, com alguma hesitação: “Dr. Argemiro: sendo o senhor um cirurgião-dentista, como está tão enfronhado em teoria do direito?” Esboçou um sorriso e explicou: “Embora a imagem do cirurgião-dentista não seja das melhores, no sentido de que só entendem de dentes e dentaduras, muitos de nós, assim como alguns advogados, buscamos adquirir cultura geral. No meu caso – é difícil explicar – um dos assuntos que mais me fascinam é a teoria do direito.” Passamos a conversar como se fôssemos velhos conhecidos. Eu levava certa desvantagem em relação a ele. Dr. Argemiro incursionava com inegável desenvoltura no meu ramo e eu nada sabia sobre o dele. A livraria já cerrava suas portas quando nos despedimos. Trocamos cartões, com endereços e telefones, mas tinha pouca esperança de voltar a encontrá-lo. Eu estava enganado. Algum tempo após, reencontramo-nos na recepção de um casamento. Ele era amigo do pai da noiva, eu do pai do noivo. Vestia terno azul-marinho e empunhava sua bengala de castão de ouro. 66
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Abraçamo-nos cordialmente. E logo, logo ele já estava fazendo comentários invulgares para um cirurgião-dentista. “Este casamento tem tudo para dar certo!” Indaguei por quê. Explicou-me: “O noivo é médico. Formado há poucos anos, já é considerado excelente cardiologista e tem reconhecido seu talento. Quanto à noiva, obteve há pouco o título de doutora em economia, com uma tese sobre adaptação do pensamento keynesiano à sociedade moderna globalizada. Dois talentos, duas cabeças portentosas, perspectiva de um casamento sólido e duradouro.” Não consegui atinar com a lógica do raciocínio, mas preferi não polemizar. Impressionou-me, porém, saber que alguém tinha conseguido doutorar-se em economia, nos dias de hoje, defendendo as ideias de Lord Keynes diante dos fundamentalistas neoliberais. Tal como na vez anterior, passamos a conversar. Só nos despedimos quando constatamos que restavam na festa apenas os pais dos noivos e alguns poucos parentes. Quanto aos noivos, haviam saído fazia tempo. Tinham outra coisa a fazer... Daí em diante encontramo-nos várias vezes. Em lançamentos de livros, casamentos, batizados, aniversários e até em velórios, enterros e missas de sétimo dia. Foi em um velório que o encontrei há poucos dias. No dia 10 deste mês, recebi a notícia do falecimento, no dia anterior, do pai do autor do livro em cujo lançamento encontrei pela primeira vez o Dr. Argemiro. Cerca de uma hora antes do enterro cheguei ao local onde se realizava o velório. 67
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Cinco minutos após, senti alguém pegando no meu braço. Era o Dr. Argemiro. Notei que não estava tão bem como nas outras vezes em que o encontrara. Atribuí o fato à sua amizade com o morto, que me relatara em nosso primeiro encontro. Tristonho, comentou: “Este homem era para mim mais que um amigo: era um irmão. Estávamos, ambos, doentes, com problemas cardíacos que, segundo os médicos, poderiam dar um basta a nossas vidas a qualquer momento. Mas tanto ele quanto eu tínhamos senso de humor. Ele costumava chamar-me de Defunto nº 1 e eu retribuía apelidando-o de Defunto nº 2. Muitas vezes, surpreendíamos outras pessoas quando nos encontrávamos. Eu o saudava como Defunto nº 2 e ele retribuía com um ‘Olá, Defunto nº 1!’. O senhor não imagina a estupefação dos presentes, que não conheciam a brincadeira.” Fez uma pausa e indagou: “Repugna ao senhor tratar da morte com senso de humor?” Respondi: “Não. Tanto é que ando escrevendo alguns textos em que busco tratar, com humor, acontecimentos ligados à morte. Se bem que esse tratamento não tem sido muito bem aceito por algumas pessoas, que consideram mórbidos relatos como ‘O Sumiço do Morto’ e ‘A Dupla Morte do Velocista’, que me parecem divertidos. Pelo menos me diverti ao escrevê-los. Um dos meus filhos chegou a indagar-me se eu estava com fixação na ideia de morte.” 68
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“E o que o senhor lhe respondeu?” “Que o simples fato de fazer humor com a ideia de morte já indicava que eu não a estava vendo muito próxima. Creio que se estivesse pensando muito nela não teria coragem para fazer humor.” Olhou-me fixo e disse: “Nisso discordo do senhor. É possível fazer humor com a morte mesmo quando percebemos que ela se aproxima de nós. E até mesmo depois da morte.” A esta altura, não me contive e fiz uma piada infame, do que me arrependi de imediato: “Aliás, Dr. Argemiro, a morte, no seu caso, inverteu a ordem prevista. O Defunto nº 2 passou na frente do Defunto nº 1.” Não manifestou qualquer irritação com a infeliz tirada. Limitou-se a responder: “Quase... quase...” Olhei-o, perplexo. Concluí que não havia entendido o que eu desastradamente dissera. Ainda bem! O caixão já estava sendo lacrado. Apressado, convidei-o para o lançamento do meu livro de contos, a realizar-se quinze dias após. Prometeu comparecer. Entreguei-lhe um exemplar do convite e despedimo-nos. Cada um buscou seu destino: ele, eu e o morto. Isso ocorreu no dia 10. No dia 14, li o anúncio da morte do Dr. Argemiro Valverde, que falecera no último dia 8. A família convidava para a missa de sétimo dia, a ser realizada no dia 15. 69
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Tive um choque. Estivera com ele quatro dias antes. Essas mortes inesperadas costumam levar-nos a afirmações do tipo “E ele estava tão bem quando o vi pela última vez!”. Isso lembra o Senhor De La Palice, que morreu em combate no século XVI e foi homenageado por seus comandados com um poema que continha um verso singelo, que dizia que ele estava vivo quinze minutos antes de morrer. É evidente que os autores do poema pretenderam dizer que ele estava em pleno combate e esbanjando vitalidade poucos minutos antes de ser abatido e morto. Mas a singeleza do verso acabou por impor-se, daí a expressão, ainda hoje utilizada, “verdade paliciana”. Que o Dr. Argemiro estava vivo quatro dias antes de morrer era uma típica verdade paliciana. Volto ao relato, do qual não sei por que me afastei. De repente ocorreu-me que havia algo estranho. Reli o anúncio fúnebre e busquei estabelecer a cronologia dos fatos. O Dr. Argemiro Valverde havia falecido, segundo a notícia, no dia 8. Seu amigo, no dia 9. O velório a que comparecêramos foi no dia 10. Logo, o Dr. Argemiro Valverde a que o anúncio fúnebre se referia não era o meu amigo. Tratava-se de um homônimo. Decidi tirar a limpo a questão. Telefonei para a casa do Dr. Argemiro. Atendeu uma voz feminina e indagou-me o que queria. Identifiquei-me e disse-lhe que gostaria de falar com ele. Respondeu: “Quem fala aqui é a viúva do Argemiro. O senhor ainda não sabe? Ele faleceu no último dia 8. A missa de sétimo dia será realizada amanhã.” 70
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Desnorteado, pedi-lhe desculpas pelo telefonema e apresentei-lhe minhas condolências. No dia seguinte, compareci à missa. Nela, senti falta da presença do Dr. Argemiro. Ainda chocado, escrevo este relato. São 16 horas do dia 25. Às 19, estarei lançando e autografando meu novo livro. Não sei se o Dr. Argemiro comparecerá. A lógica diz que não. Minha intuição, porém, diz que sim. Se ele não pretendesse ou não pudesse comparecer ter-me-ia dito no dia 10. Ele jamais faltara a um compromisso antes. Por via das dúvidas, separei um exemplar, com uma longa dedicatória ao meu amigo Dr. Argemiro Valverde. Sei que ele, se comparecer, gostará de recebê-lo...
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Aeroporto
Tomei um táxi às pressas. Estava atrasado para pegar o avião, a fim de comparecer a uma importante reunião. Cheguei a tempo ao aeroporto. Após o check-in, dirigi-me à sala de embarque. Lá, fiquei apreciando o movimento e sentindo a ansiedade coletiva, comum ao ambiente. Não sei ao certo o que ocorreu. Adormeci. Acordei sobressaltado, com a recepcionista de uma das companhias de aviação tocando no meu braço: “Senhor, senhor...” Ao verificar que eu abria os olhos, indagou-me: “Seu avião atrasou? O senhor perdeu o avião?” Respondi: “Não sei. Por que pergunta?” “O senhor está aqui desde a manhã. Já é noite. Qual a companhia em que irá viajar?” “Não sei.” “Para onde pretende ir?” Estranho! Não me lembrava. Disse-lhe que não sabia. Em tom bondoso, sugeriu-me que voltasse para casa. Concordei. Saí da sala, atravessei o saguão e entrei em um táxi. O motorista olhou-me e perguntou: “Para onde?” 72
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“Para casa”. “Onde fica?” Cada vez mais perturbado, respondi: “Não sei”. Naquele exato momento percebi o que estava ocorrendo. As perguntas eram todas claras e pertinentes. De onde vim, o que faço, para onde vou. Só que eu não conhecia as respostas. Mais ainda: compreendi que elas não eram – e nunca tinham sido – necessárias. Em paz, saltei do táxi e fui a pé para casa.
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Nostalgia
Estava passando uns dias na cidade de onde saíra há quarenta anos. Não sei por quê, mas em uma noite clara e agradável tive súbito desejo de visitar a Faculdade onde estudara há mais de meio século. Peguei um táxi e dirigi-me à praça onde se situava o imponente prédio que a acolhia. Passeei um pouco pelas ruas que a cercavam. Estavam mais sossegadas do que esperava. Para minha surpresa, avistei uma lanchonete com o mesmo nome e aspecto da que costumava frequentar no meu tempo de estudante. Por incrível que pareça, situada no mesmo local da anterior. Dirigi-me para lá e decidi entrar. Notei de imediato que os donos, talvez herdeiros do proprietário original, tinham conseguido restaurar a lanchonete nos mínimos detalhes. Não observei alteração, pelo menos de monta, com a ressalva de que a memória é traiçoeira. Até o lanche destacado no cardápio era o mesmo da época: cartola, com vitamina de bananas batidas com leite no liquidificador. Não resisti e, apesar de ter jantado há pouco, pedi a cartola com a vitamina. O ambiente nostálgico deve ter contribuído para que por alguns instantes me desligasse da realidade e voltasse a meus tempos de estudante. Era como se tivesse passado para outra dimensão, imerso em lembranças de fatos que sequer sabia que recordava. 74
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De repente, algo acordou-me daquele estado de letargia. Percebi que entrara na lanchonete um rapaz de pouco mais de vinte anos, cuja fisionomia me era familiar. As mesas estavam todas lotadas. A que eu ocupava tinha uma vaga, à minha frente. O rapaz, que portava sob o braço um Vademecum, daqueles antigos, dirigiu-se a mim e indagou, com educação, se me incomodaria se sentasse à mesma mesa que eu. Convidei-o a sentar. Estranhei seu traje. Um terno de linho diagonal, sem gravata, pouco encontradiço hoje, mesmo nas regiões mais quentes do país. Continuei com a certeza de que ele me era conhecido, mas não consegui lembrar onde o encontrara. Contive-me para não indagar seu nome. Era evidente que para ele o meu não importava. Perguntei se era aluno da Faculdade. Era. Estava no 3° ano. Curioso, busquei saber o que pensava um estudante de Direito na época atual. E passei a entabular conversa nesse sentido. Para minha surpresa, mencionou que acabara de sair de uma reunião em que se discutira o futuro do socialismo no mundo. Entusiasmado, disse-me: “Penso eu que socialismo e democracia não são incompatíveis. O marxismo é utópico, sobretudo porque pressupõe a extinção do Estado após um processo de fortalecimento do aparelho estatal. É ingenuidade acreditar que os detentores do poder aceitarão despojar-se desse poder em nome de ideais. Não há solução satisfatória para os 75
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problemas sociais sem fortalecimento da democracia. A ditadura do proletariado é, como o próprio nome indica, uma modalidade de ditadura, e como tal execrável. Todas as ditaduras são ruins.” “Quer dizer que você é anticomunista?” “Não, não! Não tem sentido alguém definir-se como anti qualquer coisa. Para construir algo de sólido e durável, é necessário ser a favor de ideias, e não contra as ideias dos outros. Mas alguém já disse que a pior democracia era melhor que a melhor das ditaduras. O senhor concorda comigo?” “Com uma ressalva, sim.” “Qual?” “Você nunca viveu sob uma ditadura, correto?” “Correto.” “É aí que reside a diferença entre nós.” “Como assim?” “Você imagina que a pior democracia seja melhor que a melhor das ditaduras. Eu não imagino: eu sei que é!” Gostei do jovem. Pareceu-me meio ingênuo, talvez imaturo, mas transmitiu-me confiabilidade. Ouvi, por mais de uma hora, suas ideias. E senti seu idealismo latente. Ele me perguntou o que estava fazendo ali. Expliquei que era um passeio nostálgico. E foi a nostalgia, de que estava acometido naquela noite, que me levou a rememorar os tempos de estudante. Súbito, ocorreu-me que aquelas reminiscências deveriam estar cansando meu jovem companheiro de mesa. Parei de chofre e fitei-o, a fim de avaliar o estrago que nele 76
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estava fazendo o relato das memórias de um velho. Mas para minha surpresa sua fisionomia não expressava enfado ou aborrecimento, apenas um evidente desconcerto. Estava pasmo! Perguntei-lhe se o tinha cansado com meu monólogo. Titubeante, respondeu: “Não.” E acrescentou, logo a seguir: “Mas não consigo entender. Os professores que o senhor mencionou são ou foram também meus.” Quase caí da cadeira. Hesitante, reuni coragem para fazer-lhe a pergunta que passara a ser inevitável: “Qual é o seu nome?” Disse-me. Lembrei, de imediato, onde e quando o conhecera. Desnorteado, levantei-me sem terminar de comer o lanche que encomendara, e sequer me despedi. Caminhei para a porta de saída, em busca do ar fresco da noite. Não consegui ainda recuperar-me do impacto do insólito encontro que tive naquela noite. Não sei se voltarei a ver o jovem estudante de Direito. Mas sinto como se ele tivesse estado comigo todos estes anos...
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Farofa com Carne de Sol
“Josefa! Prepara, pro jantar, farofa com carne de sol. Zelão vem jantar aqui hoje.” Era a ordem de D. Maria, pelo menos três vezes por semana. Não precisava acrescentar que esse era o prato favorito de Zelão, noivo de Eliana, uma das seis filhas de Maria. Passara dois anos estudando na Alemanha, de onde voltara falando alemão e inglês, para assumir importante cargo na cadeia de lojas do padrinho, sueco de nascimento e alemão por formação. Zelão era, na época, o que se costumava chamar de “partidaço”, e havia o consenso de que ele deveria ser tratado a pão de ló. Ou melhor: a farofa com carne de sol. O noivado durou cerca de dois anos, após o que casaram com grandes esperanças, sobretudo dos pais da noiva, já que esta ainda contava com apenas dezoito anos e não estava, assim, capacitada para discernir o que seria melhor para seu futuro. Mal casaram, Zelão teve séria conversa com sua mulher, pedindo-lhe para transmitir à distinta senhora sua mãe que carne de sol ele ainda poderia comer uma vez ou outra, mas farofa, Deus o livrasse de comer outra vez aquele troço! Ele tinha comido esse tempo todo só por educação. D. Maria teve um peripaque. Como podia ter pensado que Zelão gostava de farofa? Com isso, quase frustrara o 78
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promissor casamento de sua filha. Toda vez que pensava nisso, sentia um friozinho na barriga. Mas o casamento emplacara, apesar da bobagem que fizera. Passaram-se décadas. Todos na família contavam a história, repetida entre risadas gerais. Por sorte – diziam – o episódio não fora suficiente para desestimular Zelão. Só Eliana costumava acrescentar baixinho, para que ninguém a ouvisse: “Infelizmente não, infelizmente não...”.
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50 Anos de Formatura Quando concluí meu curso superior, não imaginava que estaria vivo para comemorar os 50 anos de formatura. Para minha surpresa, porém, consegui sobreviver para fazê-lo. Há cerca de dois meses recebi o convite, assinado pelo presidente da comissão organizadora. Transcrevo a carta que me foi encaminhada: Prezado colega: No próximo dia 22 de dezembro, estaremos comemorando os 50 anos de nossa colação de grau. Não preciso salientar a importância dessa data para nossas vidas, pelo que nós, da comissão organizadora, estamos certos de contar com sua presença, que será de grande importância para o evento. O abraço cordial Seguiam-se o nome e a assinatura do presidente da comissão. Preparei-me psicologicamente para comparecer. Há quarenta anos estou afastado da terra onde estudei e me formei e há décadas não vejo a quase totalidade dos colegas. Assim, o reencontro teria forte dose de emoção, sobre80
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tudo porque seria inevitável a ausência de grande parte dos antigos colegas de turma, ou porque já não estão no mundo dos vivos, ou porque é como se não mais estivessem... A fim de amenizar eventuais e desagradáveis surpresas que teria de volta à minha terra, escolhi com cuidado os termos de resposta: Caro colega presidente da comissão organizadora: Pode contar com minha presença. Solicito, apenas, que me confirme se lá estarão colegas que me eram mais próximos, cujos nomes relaciono anexos. O abraço cordial. E relacionei cerca de vinte nomes. Poucos dias após, recebi nova carta do presidente da comissão organizadora: Prezado colega e amigo: Em resposta à sua indagação, esclareço que dos colegas elencados só dois estarão presentes às comemorações, os de números 5 e 10. Os de números 6, 12 e 18 não poderão comparecer por motivo de saúde. Quanto aos demais, estão vivos apenas em nossa memória. O abraço. 81
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Dirigi-me mais uma vez ao colega-presidente: Prezado colega: Gostaria que me informasse – se existir registro a esse respeito – quantos colegas permanecem conosco e quantos estão presentes apenas em nossa memória. Veio a resposta: Caro amigo: Dos 144 formandos de nossa turma, sobrevivem 82, inclusive eu e você. Anexo, encaminho-lhe relação detalhada dos sobreviventes. Como pode verificar, o índice de sobrevivência é de 57% do total, que talvez possa parecer baixo, mas só à primeira vista, já que dados confiáveis mostram que ele é o mais alto de todos os tempos. O tempo foi passando. À medida que se aproximava a data fatídica, passei a sentir palpitações, sonhar com os colegas mortos e acordar de madrugada encharcado de suor. Até que uma semana antes da data marcada reuni coragem e tomei a decisão:
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Prezado colega e amigo, presidente da comissão organizadora: Seria, para mim, motivo de grande alegria estar aí presente, no próximo dia 22, comemorando com os colegas de turma os 50 anos de nossa formatura. Mas não poderei fazê-lo. Por um lado, porque não sei se conseguiria voltar no dia 23/12, a fim de comemorar, com os filhos e netos, a data natalina. Sabe o prezado amigo que os filhos e netos são o nosso futuro... Por outro, diante do caos do transporte aéreo que ora se abate sobre o país, vejo como possível a perspectiva, nada agradável para pessoas de nossa idade, de submeter-me a uma espera de várias horas, tanto no aeroporto daqui quanto no daí. Assim, solicito transmitir aos caros colegas minha saudação. Acreditem que meu coração estará com vocês durante todo o dia, acompanhando-os nas várias comemorações programadas. O forte abraço. Enviei a correspondência. Nessa noite não tive palpitações, não sonhei com os colegas mortos, não acordei suado. Prometi a mim mesmo que irei participar de comemorações pela data de nossa formatura se, onde e quando pudermos reunir a totalidade dos colegas de turma . . .
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Antes na Terra do que no Céu
O sinal estava verde para pedestres. Atravessei a rua. Fui colhido em cheio por um automóvel que, em alta velocidade, avançara o sinal vermelho. Recuperei a consciência já no hospital. Mas senti como se estivesse no meio de uma nuvem. As imagens eram indistintas. Aos poucos fui conseguindo ouvir os sons e perceber o que se dizia. Notei um vulto branco que se aproximava. “O que aconteceu com esse aí?” “Foi atropelado.” “E como está?” “Em coma. Não dura muito.” Tentei dizer que não estava em coma. Mas não consegui. “Vale a pena operar ou é inútil?” “Totalmente inútil. É possível até que já esteja com morte cerebral. Mas acho que nem adianta fazer os exames.” Não estou morto! Minha cabeça ainda está funcionando! Façam os exames! “O que sugere?” “Chamar um padre.” Imbecis! Para que um padre? Eu preciso é de atendimento médico! Percebi que se afastavam, deixando-me na UTI. 84
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Como se estivesse olhando a cena “de fora”, assistindo a um filme, vi um vulto na névoa. Vestia-se de preto. Era o padre, pensei. Aproximou-se: “O que fizeram com você, meu filho? Não lhe contaram, padre? Fui atropelado! “Você é católico, não é?” Oh, padre! Isso é relevante neste momento? “Seja ou não católico, meu filho, você tem salvação.” Isso, padre! Mas não adianta dizer a mim! Chama aqueles caras de branco e diz a eles. Diz isso aos médicos, padre! Diz que ainda tenho salvação. Se demorar, minha salvação vai para o brejo! “Vou ministrar-lhe a extrema-unção, para que você possa entrar no Paraíso.” Eu não quero ir para o Paraíso, padre! Quero ficar por aqui mesmo! Chama os médicos! Quis gritar. Mas não conseguia me mexer, nem emitir qualquer som. Contra a vontade, recebi a extrema-unção. Padre, agora que me deu a extrema-unção, por favor, chama os médicos! Eu preciso de atendimento, padre! Meu desespero ia crescendo. Se a situação permanecesse assim, logo, logo estaria no Paraíso. Apareceu um vulto de branco. Segura ele, padre! Não deixa fugir! Diz a ele que ainda tenho salvação! 85
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Mas os dois vultos, o de preto e o de branco, se afastaram juntos, deixando-me só. Fiquei chocado. Sem assistência médica não terminaria o dia vivo. Ocorreu-me uma dúvida. Se eu morresse, quem teria me matado? O irresponsável que me atropelara? Os médicos, que não me deram a devida atenção? O padre, que em vez de incentivar-me a sobreviver preferira, com a peculiar resignação cristã, encomendar minha alma? Ou todos juntos? Movido pelo mais arraigado instinto de sobrevivência, decidi reagir. Como consegui fazê-lo, não sei, mas o certo é que movi o corpo o suficiente para cair da maca. Na névoa, vislumbrei vultos de todas as cores. A confusão era generalizada. Pessoas agitadas gritavam, davam ordens, corriam de um lado para outro. Foi um caos no hospital! A queda salvou minha vida. Conseguira derrotar, ao mesmo tempo, a Loucura, a Ciência e a Religião, que se articularam, sem êxito, para enviar-me desta para melhor. . .
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O Ladrão de Batina
Zoroastro é ladrão, filho de ladrão e neto de ladrão. Seu avô havia sido financista. Lidara com vultosas somas em dinheiro. Enganou muita gente. Mas, competente, fugiu para a Europa antes de ser preso. Multimilionário, passou o resto de sua vida instalado em uma mansão à beira do Mediterrâneo, com passaporte europeu, em país sem tratado de extradição conosco. Seu pai aplicava golpes em desavisados, vendendo-lhes bens inexistentes a preços irrisórios. Ganhou pouco dinheiro, terminou preso, embora não por muito tempo. Hoje está aposentado, recebendo uma pequena ajuda financeira do sindicato dos ladrões, que foi criado para defender os direitos de seus sindicalizados e dar assistência aos mais necessitados. O sindicato surgiu para atender à demanda do mercado, pois crescera bastante o número de ladrões nos últimos anos. Já Zoroastro está em plena atividade, sendo sua especialidade praticar pequenos furtos, sobretudo em supermercados que não adotaram ainda circuito interno de televisão. À vista deste relato, percebe-se com nitidez a decadência profissional da família. O expediente utilizado por Zoroastro para praticar furtos nos supermercados é original. Enquanto seus concorrentes costumam utilizar longos casacos, embaixo dos quais escondem os objetos furtados, ele prefere usar batina. Seus concorrentes não percebem que ao entrar em supermercados, 87
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vestidos com pesados casacões sob um calor de 40º à sombra, estão pedindo, por favor, que sejam presos. Já ele pode utilizar batina durante o ano inteiro, sem despertar suspeita. E, sobretudo, com ela inspira respeito. Quando lhe indagam como pode suportar o calor vestido de batina, retruca que pertence à ala conservadora da Igreja e intercala nas respostas frases em latim, que aprendeu quando coroinha. Esse expediente vem sendo por ele utilizado há muito tempo, com pleno êxito, sem que lhe tenham surgido maiores problemas. Apenas uma vez enfrentou uma situação complicada. Após passar pelo caixa de um supermercado com vários objetos contrabandeados sob a batina, Zoroastro já começava a afastar-se pela calçada quando ouviu um barulhão, a que se seguiram gritos histéricos de pessoas alvoroçadas. A multidão correu em direção ao meio da rua e Zoroastro, curioso, seguiu com ela. Fora uma atropelamento. Um senhor, idoso, acabara de ser atropelado por um caminhão e estava estendido no chão. Os pedidos de ajuda ecoaram no ar. Um médico! Um médico, por favor! Um cidadão adiantou-se, identificou-se como médico, abaixou-se com um estetoscópio na mão, examinou o atropelado, levantou-se e deu o diagnóstico, em voz grave: “Está morrendo.” Calhou de Zoroastro ser visto por uma senhora grisalha que já estava de terço na mão. Ela se agarrou a sua batina, quase a arrancando, o que seria um desastre, já que haveria uma derrama de objetos furtados pelo chão: 88
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“Padre, a extrema-unção!” A primeira ideia que ocorreu a Zoroastro foi empurrar a fervorosa católica e sair correndo do local do crime. Mas se apercebeu de que lhe seria impossível furar o bloco de circunstantes que se formara em volta. Pelo menos sem se complicar, o que ocorreria ao deixar cair o produto de sua feira. Conseguiu controlar os nervos e dirigiu-se ao local onde estava o atropelado. Ajoelhou-se, fez o sinal da cruz e, recordando sua prática de coroinha, rezou um padre-nosso e uma ave-maria e terminou com algumas palavras que havia aprendido nas missas de sua infância, rezadas na época em latim: “Dominus vobiscum. Agnus Dei, qui tollent peccata mundi, orate pro nobis.” E encerrou com a frase que ele – como de resto grande parte dos que frequentavam naquele tempo as missas dos domingos – mais apreciava: “Ite, missa est.” Fez o sinal da cruz e aproveitou a balbúrdia criada com a chegada de uma ambulância para levantar-se e afastar-se, a passos majestosos, daquela incômoda situação. Dizem que Zoroastro passou seis meses sem adotar o truque da batina. Mas que já se recuperou do trauma que sofreu.
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Declaração de Voto Não sei como Zoroastro descobriu meu endereço. O certo é que recebi ontem, dentro de um envelope pardo, um curioso documento por ele assinado, com o título Declaração de Voto. Transcrevo seu teor: Diante da aproximação das eleições nacionais, marcadas para o próximo mês, dirijo-me a todos os que conheço para conclamá-los a votar no digno deputado Aristarco Zebedeu, candidato à reeleição. Conheço o ilustre deputado há muito tempo. Destaco nele três virtudes capitais, que o habilitam e recomendam para exercer um novo mandato: a honestidade, a sinceridade e o espírito público. Não se trata, como muitos desavisados poderiam supor, de retórica vazia, típica desses políticos que andam por aí. A fim de provar esta afirmação, relato três fatos, que falam, melhor do que o meu arrazoado, em favor de sua candidatura. Vejamos. Honestidade Estava eu a sós com ele em seu gabinete quando testemunhei um fato digno de ser divulgado. O deputado recebeu a visita de um cidadão com um embrulho de jornal na mão. Não sei seu nome, nem me foi ele apresentado. 90
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Dirigiu-se ao deputado, entregou-lhe o embrulho e disse que podia contar o dinheiro. O deputado escandalizou-se. Como poderia duvidar de um cidadão irreprochável? Confesso que na hora pensei que irreprochável era seu nome. Depois é que o culto deputado desfez a confusão, explicando-me o significado da palavra. O aludido cidadão despediu-se. O deputado abriu o embrulho e contou o dinheiro nele contido. Súbito, dirigiu-se a mim e pediu que o alcançasse antes de sair do prédio. Corri e ainda o peguei na saída. Voltamos ao gabinete. E aí ocorreu uma cena dignificante. O deputado mostrou ao irreprochável cidadão que o embrulho continha trinta e dois mil reais, quando deveria conter apenas trinta mil. Ato contínuo, devolveu os dois mil excedentes. Esse fato, por si só, atesta a honestidade do deputado Aristarco Zebedeu. Sinceridade Acusado de haver recebido propina, o deputado compareceu à CPI de plantão e apresentou defesa. Nela, foi de uma sinceridade edificante e de uma lógica irreprochável (aprendi!). Como poderei representar meu eleitorado nesta Casa, com a parca remuneração que me é paga pelo exercício do meu mandato? Foi a pergunta irrespondível que dirigiu aos membros da Comissão. 91
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Em vez de tentar engabelar (palavra que usou na ocasião) seus pares, buscando um acordo reles e desprezível, o deputado admitiu a propina, calculou quanto tempo faltava para o término de seu mandato, fez uma análise de custo-benefício, e renunciou. Esse fato, por si só, atesta a sinceridade do deputado Aristarco Zebedeu. Espírito público O deputado destina dez por cento de sua remuneração fixa mensal para entidades de interesse público. Mais exatamente: para uma entidade de interesse público, que é o sindicato dos ladrões. Não fossem homens de sua estirpe, eu e muitos dos meus colegas de profissão estaríamos na rua da amargura. Vejam meu caso. Em decorrência do desenvolvimento tecnológico, o furto em supermercados em breve desaparecerá. Breve não haverá supermercado que não conte com aparelhos de detecção de furtos cada vez mais sofisticados, o que inviabilizará o exercício da atividade que há anos venho exercendo com o máximo escrúpulo profissional. Não fosse o sindicato, que me garantirá uma aposentadoria condigna, minha única saída seria mudar de ramo. Dedicar-me-ia a assaltos armados? Sequestros? Aderiria a uma organização criminosa? Qualquer que fosse minha opção, tornar-me-ia um elemento muito mais perigoso para a sociedade do que sou hoje. 92
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É necessário muito discernimento, aliado a profundo espírito público, para perceber o interesse da sociedade na existência de um sindicato de ladrões, como o fez o ilustre deputado Aristarco Zebedeu. Por tudo isso, dirijo-me a você, concidadão ou concidadã, para fazer-lhe um apelo. Nós, eleitores, apenas temos oportunidade de influir nos destinos de nosso país quando exercemos nosso voto. Não o desperdice. Compareça às urnas. Vote no deputado Aristarco Zebedeu! Seguem-se a assinatura de Zoroastro e o número de sua inscrição no sindicato. Notei que não mencionou o partido a que se filia o deputado. Talvez porque considere esse um detalhe de menor importância.
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Síri Revi em um bar, um jovem escritor com quem me encontrara, há cerca de um ano, em uma recepção de casamento. Seu nome é Tales. Ofereci-lhe um uísque. Aceitou. Passamos a conversar sobre seu último livro, intitulado O assassino inocente. O enredo gira em torno da ideia de que muitas coisas parecem ser sem ser, enquanto outras tantas são sem parecer ser. É um bom livro policial, sobre o qual não farei maiores apreciações, já que, se o fizer, correrei o risco de revelar seu criativo final a um leitor desavisado. No meio da conversa, já pelo quarto ou quinto uísque, revelei que estava a escrever contos e relatos. Eu, que em toda minha vida escrevera apenas sobre assuntos jurídicos. Disse-me ele: “Cuidado com as palavras!” “Por quê?”, indaguei. Tirou da pasta um livro com uma capa esquisita, azul, semelhante a um caderno, abriu em uma página marcada com um papelzinho amarelo e leu (reproduzo de memória): Palavras são reais. Tudo que é humano é real, e às vezes sabemos coisas antes que aconteçam, mesmo sem ter consciência disso. Vivemos no presente, mas o futuro está dentro de nós a todo momento. Talvez seja isso escrever. Não registrar eventos do passado, mas fazer as coisas acontecerem no futuro. 94
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Continuou a ler: Às vezes, sabemos das coisas antes que aconteçam, mesmo não sabendo que sabemos. Não entendi nada. Pedi-lhe para explicar em palavras que fossem compreendidas por um pobre mortal, não intelectualizado, como eu. Esclareceu que as palavras que havia lido eram do personagem John Trause, escritor, no livro Noite do Oráculo, do romancista norte-americano Paul Auster. “Mas Trause é um anagrama de Auster”, interrompi. “Isso mesmo. Auster surpreende com a utilização desses estratagemas. Na Trilogia de Nova York ele aparece como personagem, em um livro do qual é o autor.” “Mas continuo a não entender o significado do que você acaba de ler.” Deu-me um exemplo. Contou-me que certa vez foi apresentado a uma moça, norueguesa, alta, esguia, de olhos azuis. O nome dela era Síri. Parou, pensou e acrescentou: “Não sei se o nome dela era mesmo Síri. Talvez esteja fazendo confusão com o nome da mulher do personagem Paul Auster, na Trilogia de Nova York, de autoria de Paul Auster. Ou com o nome da mulher do autor, também escritora.” Continuou pensativo. Paciente, esperei. Era evidente que ele estava sofrendo da síndrome do quinto uísque. 95
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Voltou a falar. “O que mais se destacava nela era a pele, como se fosse de porcelana. Impressionado, ao chegar em casa escreveu um texto, que a rigor era um poema, e não um conto.” Tirou da pasta uma folha de papel e leu: Faz muito tempo. Sequer consigo situar a época. Era uma moça linda. Parecia feita de porcelana. Não foi uma paixão. Mais adequado é descrever o que senti como desejo. Desejo alimentado por muito tempo, até que vim a ser por ela correspondido. Finalmente nos encontramos. Pela primeira vez contemplei seu corpo, que – repito – era como se fosse feito de porcelana. Meu desejo chegou ao ápice. Desejei abraçá-la, acariciar sua pele, cobrir de beijos aquele corpo alvo, tão alvo que parecia de porcelana. De repente não aconteceu. Não a abracei, não acariciei sua pele, nem a cobri de beijos. Sequer a toquei. Tive receio de quebrá-la... Estendeu-me o texto, dizendo que poderia levá-lo. Tinha outras cópias. A partir daí, esse texto mexeu com sua cabeça. Ele não era e nunca fora poeta. Sequer gostava de poesia. Mas percebeu que esse texto era poesia pura. Se boa ou má, não se sentia qualificado para avaliar. 96
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O fato é que Síri não abandonou seus pensamentos. Percebeu que após escrever o texto passou a desejar reencontrá-la. Era como se suas palavras tivessem feito as coisas acontecerem, como disse Auster, ou melhor, Trause, talvez mesmo Auster. Objetivo, indaguei: “E daí? O que aconteceu?” “Nada. Jamais a reencontrei.” Impaciente, insisti: “Conclusão?” “Nenhuma.” E calou-se, ainda pensativo. Observei que já era tarde, despedi-me e saí pela noite afora, procurando esquecer Trause, personagem e anagrama de Auster, que em outra ocasião fora personagem dele próprio, Auster, que tinha como mulher Síri, talvez Íris, personagem de Tales, que não sei se é poeta sem parecer, ou parece poeta sem ser.
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Visita ao Túmulo
Violeta era viúva há cerca de dez anos. Tinha duas filhas universitárias: Leila e Berenice. Logo no início da viuvez, costumava ela, com suas filhas, visitar o túmulo do marido e pai no dia de Finados, levando flores e mantendo-o limpo e conservado. Com o tempo, passaram a relaxar. Há três anos que não iam ao cemitério. Certo dia, conseguiram harmonizar os horários e dirigiram-se, juntas, para cumprir o que consideravam dever elementar. Chegando ao destino, tiveram a desagradável surpresa de encontrar o túmulo em péssimo estado. O mato e o lodo acumulados não permitiram sequer a leitura do nome do falecido e das datas de seu nascimento e morte. Somente conseguiram identificar as três primeiras letras do prenome – R, O e B, de Roberto. Nada mais. Revoltadas, foram à Administração do cemitério, onde procuraram registrar sua queixa. Foram recebidas por um funcionário de mau humor, que informou que quaisquer reclamações deveriam ser encaminhadas por escrito. Três dias após, Violeta voltou ao cemitério e protocolou a seguinte reclamação: “À Administração do Cemitério Paz e Saudade. Prezados Senhores: Na qualidade de viúva do senhor Roberto Santos, 98
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cujo corpo se encontra enterrado na quadra nº 75, túmulo 109, deste cemitério, dirijo-me a V. S.as para protestar contra o péssimo estado de conservação do seu túmulo, fato que foi constatado, por mim e pelas minhas duas filhas, por ocasião de nossa visita ocorrida no sábado passado. Com efeito, o túmulo se encontra coberto de mato e lodo, de tal modo que sequer pudemos ler o nome completo do meu marido, bem como as datas de seu nascimento e morte. Tratando-se de cemitério municipal, e portanto público, seria de esperar que V. S.as zelassem melhor pela conservação dos túmulos nele existentes, retribuindo com isso os elevados impostos que nós, contribuintes, somos obrigados a pagar. Além do mais, a incúria dessa Administração contraria a caridade cristã, revelando total menosprezo pelos nossos mortos. Espero que V. S.as tomem de imediato providências para regularizar a situação. Atenciosamente...” Decorridos dez dias, Violeta recebeu o seguinte ofício, a ela dirigido pela Administração do cemitério: “Prezada Senhora: É o presente para informar a V. S.a que já providenciamos a limpeza e restauração do túmulo nº 109, localizado na quadra 75, deste cemitério, em atendimento à sua reclamação. 99
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Aproveitamos a oportunidade para sugerir a V. S.a que, antes de reclamar dos outros, procure olhar para o próprio umbigo. Se o fizer, verificará o flagrante desrespeito que revelou não pelos mortos em geral, do que nos acusou, mas pelo seu morto em particular, ou seja, seu finado marido e pai de suas filhas. O túmulo acima referido, que foi visitado por V. S.ª em companhia de suas filhas, não é do senhor Roberto Santos, e sim do senhor Roberval Carvalho. O túmulo do seu marido localiza-se na quadra 109, nº 75 – e não o contrário – e está em perfeitas condições de limpeza e conservação. Se V. S.ª e suas filhas tivessem, pelos mortos em geral, a mesma consideração que pretendem exigir de nós, teriam efetuado, com relativa facilidade e em pouco tempo, a limpeza do túmulo do senhor Roberval Carvalho. Com esse ato de caridade cristã, teriam não apenas prestado um serviço à memória daquele morto, como descoberto o absurdo e indesculpável engano que cometeram. Mais ainda: teriam evitado dirigir a esta Administração a correspondência acima referenciada, poupando-nos de aguentar desaforo de tão irresponsáveis criaturas. Atenciosamente...”
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O Berço
Durante alguns anos, tive uma pequena casa de campo. Certo dia resolvi reformá-la, trocando inclusive os móveis, que estavam em péssimo estado de conservação. Entre eles, um berço velho, do começo do século XX. Perto da casa morava um casal humilde, com um filho recém-nascido, que dormia em um colchão estropiado, colocado no chão. Ofereci-lhes o berço, que se não era lá essas coisas pelo menos era mais acolhedor do que o cimento batido. A aceitação foi imediata, e o presente foi considerado como de um verdadeiro anjo. Voltei à capital e contei à minha mulher a satisfação do casal ao receber o berço, aceito como se fosse novo. Para minha surpresa, a reação foi agressiva. Disse ela, irritada: “Como você ousa desfazer-se daquele berço sem me consultar? Ele tem uma história familiar. Aquele berço é de minha irmã! Foi nele que seus filhos dormiram e será nele que seus netos dormirão. O berço não é seu, nem meu. Repito: como você ousa dar o que não é seu?” E concluiu com uma ordem: “Tome-o de volta!” Constrangido, voltei à casa de campo, para retomar a posse de tão precioso bem. Eu acreditava que presente dado não se tomava. Por outro lado, achava ridículo esse apego a um berço quebrado, com a pintura descascada, as 101
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dobradiças enferrujadas e um colchão de palha rasgado. Talvez até estivesse infestado de cupins. Além do mais, sempre tive horror ao tipo de atitude que levava a afirmações como “Fulano tem berço”, “Nasceu em berço de ouro”, ou, pior, “Nesse berço dormiu fulano, ou fulana, de tradicionais troncos de...”. Ficava possesso quando lia, no obituário de um conceituado jornal da capital, a notícia de que falecera fulano, ou fulana, “de tradicionais troncos do estado”. Há pouco, lera a notícia do falecimento de uma senhora “pertencente a tradicionais troncos franceses”. Concluí que os bisavós ou trisavós da falecida haviam escapado da guilhotina... Imaginei os bisnetos ou trinetos de minha cunhada dormindo, no século XXI ou XXII, naquele berço, mesmo restaurado, enquanto as crianças filhas de seus amigos “sem berço” dormiriam em camas bonitas, confortáveis, modernas, funcionais, dotadas de todos os aperfeiçoamentos da mais recente tecnologia. Imaginei os pais dessas crianças “de berço”, ou seja, “de tradicionais troncos”, nascidos duzentos ou quase duzentos anos após a fabricação daquele berço, explicando aos amigos que ele constituía uma prova de sua ascendência aristocrática. Imaginei, ainda, os amigos ouvindo essa baboseira com alguma condescendência, se é que conseguiriam ter alguma condescendência. Mas fui em frente. Procurei os pais presenteados e tive com eles uma conversa franca. Expliquei-lhes a importância do berço, o que ele representava para a família de minha mulher, os valores que incorporava, enfim, tudo aquilo que deveria dizer, embora em nada disso acreditasse. E propus uma troca: os pais da criança devolveriam o berço 102
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e eu lhes pagaria um berço novo, a ser adquirido em uma boa loja da cidade. Os novos donos do berço não entenderam nada do que lhes foi explicado. Mas, entusiasmados, concordaram com o negócio e partiram de imediato para comprar o berço novo, antes que me apercebesse da tolice que estava cometendo. Além do mais, já haviam detectado alguns cupins que começavam a aparecer naquela joia requisitada pelo doador. Devolvido o berço, mandei desarmá-lo e empacotá-lo e enviei-o para a cunhada, que, segundo minha mulher, era a verdadeira proprietária daquela preciosidade. Paguei, pela remessa, cerca de duas vezes o preço de um ótimo berço à venda no mercado. Solucionada a questão, comuniquei à minha mulher a decisão tomada. Ela não gostou. Alegou que o que queria mesmo era que o berço permanecesse na casa. Mas com isso não concordei: era contra meus princípios apoderar-me de coisas alheias. Alguns dias após, indagei: “E o berço? Chegou em ordem?” “Chegar, chegou. Mas houve um problema.” “Qual?” “Era o berço errado.” “Como?” “Aquele não era o berço em que minha irmã e filhos dormiram. Era outro, que ela comprou para uma empregada doméstica quando lhe nasceu uma criança.” 103
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“Quer dizer que era um berço sem história familiar?” “Era.” “Vejamos se entendo. Você está a me dizer que era um mísero berço plebeu, e não um verdadeiro berço aristocrático?” “Isso mesmo.” “E não dava para distinguir um do outro?” “Não.” “Vejamos de novo se estou entendendo. Você quer dizer que o que distinguia um berço do outro era quem havia dormido em um e no outro?” “Exatamente.” Nada comentei. Limitei-me a dirigir à minha mulher um olhar carregado de fúria assassina...
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A Dupla Morte do Velocista O rapaz era um atleta perfeito. Recordista nacional dos cem metros rasos, sem que jamais tivesse sido acusado – como tantos outros já tinham sido – de uso de anabolizantes ou de qualquer outro tipo de doping. Mas um dia, em plena corrida, desmaiou. Levado às pressas a um hospital, teve seu óbito constatado. Seus parentes e amigos providenciaram o velório e o enterro. Já se aproximava a hora do enterro, quando de repente – incrível! – o defunto deu um salto, olhou em volta assustado, saiu do caixão e desatou a correr. Vários parentes e amigos correram atrás. A confusão foi medonha. Alguns gritavam: “O morto fugiu!”. Outros, “Pega o defunto”, “Segura o cadáver!” A correria atraiu os olhares dos que passavam pelo local. Tratava-se, é claro, de uma perseguição inútil. O período em que permanecera morto não tinha sido suficientemente longo para que ele perdesse a velocidade. E aos poucos foi-se distanciando de seus perseguidores. Mas eis que de repente dá uma guinada à esquerda e tenta atravessar correndo a avenida. Foi atingido em cheio por um ônibus que passava. Novamente transportado ao mesmo hospital em que dera entrada há menos de vinte e quatro horas, teve mais uma vez constatada sua morte, agora por fratura do pescoço. 105
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Novo velório, só que desta vez o número de presentes foi calculado em cinco vezes o do dia anterior. Comentou-se depois que este fora o velório mais concorrido na cidade, pelo menos nos últimos dez anos. Aproximava-se a hora do enterro. A expectativa era grande. A tensão, insuportável. Como se comportaria o defunto desta vez? Mas ele não esboçou reação quando os funcionários do cemitério colocaram a tampa no caixão. Mesmo assim, ninguém arredou pé. Há quem afirme que nenhum dos presentes ao velório deixou de acompanhar o cortejo até a sepultura. O caixão foi carregado por seis dos seus melhores amigos, todos atletas como ele fora. De repente, um deles tropeçou, caiu e o caixão desabou com todo o seu peso. A tampa abriu-se e o defunto foi arremessado longe no gramado. O pânico foi enorme. As pessoas corriam a esmo, chocavam-se, pisoteavam outras que caíam. Foram muitos os feridos, nenhum com gravidade. Só alguns poucos ficaram parados, junto ao caixão: os corajosos e os que não conseguiram sair do lugar, tal o pavor que os acometeu. O cadáver permaneceu imóvel. Mais uma vez nenhum esboço de reação. Os que conseguiram controlar os nervos recolocaram o corpo no caixão e o tamparam. Desta vez com o cuidado que a situação estava a exigir. O cortejo chegou a seu destino. 106
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Após dois ou três discursos, todos realçando a fibra que o morto revelara nas pistas, nunca desistindo antes de esgotar todas as possibilidades de vitória, o corpo baixou à sepultura. Daí em diante não foi registrado qualquer incidente. Em sua maioria os presentes saíram frustrados, lamentando não terem comparecido ao primeiro enterro. O segundo quase não tivera graça...
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História de Família
Ele era contador. Ela, diplomada em letras. Quando se casaram, o marido abriu um caderno de capa preta, destinado a registrar os acontecimentos da vida da família recém-inaugurada. De um lado, pôs a coluna Haver; do outro, a coluna Deve. Machista ferrenho, colocou seu nome na primeira coluna; o da mulher, na segunda. Dois anos após, nasceu-lhes uma filha. O pai abriu o caderno de capa preta e colocou seu nome na coluna Deve, abaixo do nome da mãe. Mais dois anos, nasceu o filho, cujo nome foi colocado na coluna Haver, abaixo do nome do pai. Ao completar quinze anos, a filha era bonita, magra e elegante. Descoberta por uma agência especializada, iniciou uma carreira promissora de modelo. Cedo, ganhou muito dinheiro. O pai, orgulhoso, abriu o caderno de capa preta e transportou o nome da filha, da coluna Deve para a coluna Haver. Aos dezoito anos, o filho repetia, pela segunda vez, o 3° ano do ensino médio. Era baixo, gordo e feio, e não primava pela inteligência. O pai, tristonho, abriu o caderno de capa preta e transportou o nome do filho, da coluna Haver para a coluna Deve. 108
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A mulher decidiu escrever um romance. Foi sucesso de vendas, o que lhe proporcionou considerável quantia, a título de direitos autorais. O marido abriu o caderno de capa preta e transportou o nome da mulher, da coluna Deve para a coluna Haver. O pai perdeu o emprego que tinha na firma de contabilidade. Passou a depender da mulher e da filha. Abriu o caderno de capa preta e, honesto como era, transportou seu nome, da coluna Haver para a coluna Deve. A filha casou com um vigarista, que se encarregou de jogar fora toda a fortuna que amealhara. O pai abriu o caderno de capa preta e retornou o nome da filha, da coluna Haver para a coluna Deve. O filho, que não havia conseguido terminar o ensino médio, não era tão burro como parecia ser: casou-se com a filha única de um rico comerciante. O pai abriu o caderno de capa preta e retornou o nome do filho para a coluna Haver. O filho conseguiu que o sogro designasse o pai para o cargo de diretor-financeiro da empresa. De biscateiro, o pai passou a ser um grande financista. O pai abriu o caderno de capa preta e recolocou seu nome na coluna Haver. A filha separou-se do marido, contratou um ghost-writer e escreveu suas memórias, de modelo famosa que fora. O livro foi um best-seller e rendeu muito dinheiro à autora, que se transformou em consultora especializada de modelos em ascensão, profissão que todos sabem ser, além de lucrativa, de grande importância social. 109
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O pai, eufórico, voltou a colocar o nome da filha na coluna Haver. Pela primeira vez os quatro ficaram juntos, todos na coluna Haver. Passaram-se os anos. O pai morreu, e a mãe o acompanhou pouco depois. Os filhos se reuniram para inventariar os pertences do casal. Encontraram o caderno de capa preta, do qual nunca tinham ouvido falar. E leram as anotações meticulosas do pai, com as respectivas datas. Sentiram muita emoção. O que mais os sensibilizou foi descobrir o talento do pai. Sem que ninguém suspeitasse, ele havia sido um extraordinário memorialista, ao registrar, de forma concisa, objetiva e original, a bela história da família.
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Zé Luiz Ganha Apartamento Novo
“Doutor, consegui realizar o sonho de minha vida: fui sorteado com um dos apartamentos distribuídos pelo Estado. Vou conseguir deixar de pagar aluguel. Tirei a sorte grande, doutor!” Com essas palavras fui saudado por Zé Luiz, paraibano pequeno, porém decente, em uma das vezes que solicitei sua vinda, com o táxi, para levar-me ao centro da cidade. “Parabéns, Zé Luiz!” Eufórico, contou-me em detalhes como era o apartamento e as pequenas reformas que pretendia nele fazer. Estava feliz. “A mulher também está muito satisfeita e meus filhos vão ficar cada um com seu quarto. Sabe como é, doutor, os filhos são adolescentes e não dá certo um rapaz e uma moça dormirem no mesmo quarto. Perdem a liberdade.” “Palavras sensatas, Zé Luiz. E no resto?”. “Para completar, meu pai esteve aqui me visitando. Foi a primeira vez que ele veio a São Paulo. Mora no interiorzão da Paraíba.” “E o que ele achou daqui, Zé Luiz?” “Ele gostou, mas estranhou duas coisas. A primeira foi que a gente não deixou ele sair sozinho. Podia se perder. Ele não se convenceu. Alegou que se se perdesse perguntaria o caminho a alguém conhecido.” 111
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“E a segunda?” “A segunda foi que não conseguiu entender onde conseguiram tanto cimento para construir todos esses prédios.” Chegamos ao destino e despedimo-nos. Fiquei satisfeito com a felicidade de Zé Luiz. Nos seis meses subsequentes, toda vez que ele ia me buscar o assunto era o apartamento novo e o que ele estava fazendo para preparar em alto estilo a mudança, que não era apenas de moradia, mas de vida. Certo dia entrei no táxi e logo me foi dizendo: “Doutor. A mudança está marcada. Será daqui a vinte dias.” “Parabéns, Zé Luiz!” Na semana seguinte, pedi para buscar-me a fim de ir ao aeroporto. Ao entrar no táxi, percebi que algo não estava bem. Pela primeira vez em vários meses, Zé Luiz estava triste e não me recebeu com as notícias mais recentes sobre o apartamento novo. Cauteloso, busquei descobrir o que acontecia. De início, esquivou-se a qualquer conversa. Mas logo não aguentou e se abriu. “A mulher não quer mais se mudar.” “Por quê, Zé Luiz?” “Sabe como é, doutor. A mulher tem amigas onde a gente mora e não quer ir para outro bairro.” “Mas ela pode visitar as amigas, pelo menos nos fins de semana.” 112
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“Foi isso que eu falei a ela. Mas a mulher é cabeçuda. Não quer porque não quer. E pior: convenceu os filhos a se oporem à mudança.” “Mas o apartamento novo não é melhor que o atual?” “É.” “O bairro não é mais perto do seu ponto de táxi e do centro da cidade?” “É.” “A mobília não é toda nova?” “É.” “E então, Zé Luiz? Por que ela está reagindo?” “Vamos fazer o seguinte, doutor. Um fim de semana desses eu pego o senhor em casa para que possa tentar convencer disso aquela mulher burra e cabeçuda.” Senti que a situação estava a exigir um recuo estratégico de minha parte. O meu amigo Zé Luiz estava em uma enrascada daquelas! Passei dois meses sem vê-lo. Certo dia precisei do seu táxi. Telefonei-lhe e marquei hora para buscar-me em casa. Entrei no carro. “Bom dia, Zé Luiz!” “Bom dia, doutor.” “Dia bonito, hein?” “É, doutor.” E demonstrou com clareza que não estava para conversa. 113
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Não me contive e indaguei: “Mudou-se, Zé Luiz?” “Mudei-me.” “Que tal o apartamento novo?” “Bom.” “E sua mulher, você conseguiu convencê-la?” “Não. Estou morando sozinho.” Achei que o melhor era ficar calado. Mas foi ele quem continuou: “Vida de pobre é uma desgraça, doutor. Eu queria livrar-me do pagamento do aluguel e morar em um apartamento que fosse meu. Continuo pagando o aluguel do apartamento da mulher e dos filhos, o casamento de quase trinta anos foi para o brejo, separei-me dos meus filhos e estou largado no apartamento novo. A mulher é muito burra e cabeçuda, doutor. Não tem jeito, não!” Pensei em ponderar que há males que vêm para o bem. Mulher nenhuma fica burra e cabeçuda de um dia para o outro. Talvez a separação tivesse sido a melhor solução. Mas achei mais prudente ficar calado. Zé Luiz tem vindo de vez em quando buscar-me para uma corrida. Como sempre, entro no táxi e faço a saudação: “Bom dia, Zé Luiz!” “Bom dia, doutor.” “Como vai o governo?” “Qual deles, doutor? O federal, o estadual ou o municipal?” “Qualquer um, Zé Luiz.” 114
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“Vão todos eles muito mal.” E argumenta em favor de sua tese com exemplos tirados das notícias que naquele dia ouviu no rádio do carro desde cedo, quando saiu de seu apartamento novo para trabalhar.
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Zé Luiz Perde o Apartamento Novo
Há cerca de três meses, telefonei para Zé Luiz pedindo para buscar-me, a fim de ir ao centro da cidade. Zé Luiz é aquele motorista de táxi que se meteu em uma confusão danada, com a mulher e os filhos, ao conseguir um apartamento do programa habitacional do Estado. “Bom dia, Zé Luiz! Tudo bem com você?” “Bom dia, doutor! Faz um tempão que o senhor não me chama. Trocou-me por outro?” “Não, Zé Luiz. É que me tenho limitado a ir de casa para o escritório e voltar para casa. Para isso, uso meu carro.” “Ah! Bom.” Percebi que ele estava bem-humorado, diria mesmo alegre. Por isso, atrevi-me a perguntar: “E o apartamento novo?” A resposta me surpreendeu: “Devolvi ao Estado.” “Por quê, Zé Luiz?” “Minha mulher procurou-me, junto com os filhos, e pediu-me para voltar. Mas disse logo que estava irredutível: não iria morar longe das amigas. Fiquei em uma enrascada. De acordo com o contrato, era obrigado a morar no apartamento durante pelo menos cinco anos. Não poderia transferi-lo. Mas já estava cansado de morar sozinho e com 116
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muita saudade dos filhos. Pensei: de que vale ter um apartamento novo se não posso nele morar com os filhos? Decidi devolver o apartamento, próprio, e voltei para a casa antiga, alugada. Fiz certo, doutor?” “Não sei, Zé Luiz. Mas concordo com você que os filhos valem mais do que bens materiais e que o convívio com eles compensa sacrifícios.” “Ah, doutor. Eu sabia que o senhor iria concordar com minha decisão.” Calma, Zé Luiz! Não foi bem isso que falei. Calma! Em voz alta indaguei: “Você está satisfeito com a mudança?” “Muito, doutor. A mulher está até mais tranquila. Parece que aprendeu com a separação.” “Ótimo!” Chegamos ao destino, paguei a corrida e despedimo-nos. Passei quase dois meses sem solicitar os serviços de Zé Luiz. No fim do mês passado, voltei a fazê-lo. Já especialista em oscilações do humor de Zé Luiz, percebi, logo ao entrar no táxi, que sua alegria de dois meses atrás desaparecera. Decidi não provocar conversa sobre assuntos pessoais. “Bom dia, Zé Luiz! O tempo hoje está ótimo. Ensolarado e sem muito calor.” “É, doutor.” Calou-se. Precavido, fiz-lhe companhia no silêncio. Passados alguns minutos, não aguentou: 117
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“Doutor, o senhor se lembra de nossa última conversa?” “Quando você me disse que havia reatado com sua mulher e voltado a morar com os filhos?” “Isso!” “Lembro-me muito bem.” Hesitou um pouco e desabafou: “Doutor, quem nasce burro morre burro. Eu nasci burro, vou morrer burro. Voltei para a casa antiga, mas durou pouco. A mulher brigou comigo, eu saí novamente de casa, estou morando em um quarto de pensão, alugado.” “Por que ela brigou com você?” “Sei lá! Da primeira vez foi porque não queria ir para o apartamento novo. Desta vez não tenho a menor ideia. Eu disse ao senhor há muito tempo: aquela mulher é doida. Só que eu sei que é doida e apesar disso voltei a confiar nela. Eu sou burro, doutor! Muito burro!” Fiquei calado. Não pensei em nada a dizer. “Pelo menos agora estou morando perto dos filhos. Pelo menos isso. Vejo-os mais do que quando morava no apartamento.” Animei-o: “Isso, Zé Luiz! Ainda bem que você vê as coisas por esse lado.” Chegamos ao destino. Antes que eu descesse, ele repetiu, como se estivesse falando consigo mesmo: “Eu nasci burro e morrerei burro. Não tem mesmo jeito.” 118
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NĂŁo sei quando voltarei a encontrar ZĂŠ Luiz. Mas estou pensando em ir dar um passeio no centro. Estou ansioso para saber os Ăşltimos acontecimentos.
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Casamento Aberto Era uma cidadezinha perdida no mapa. Como toda cidade que se prezava, tinha um prefeito, um delegado e um padre. O juiz era o da comarca, cuja sede ficava em uma cidade próxima, um pouco maior. O delegado, Dr. Janjão, tinha um sítio, onde fazia plantação e criava algumas vacas. Fora isso, seu trabalho era resolver pequenas rixas e mandar prender bêbados que se tornassem inconvenientes. A cidade era tranquila. Basta dizer que o último homicídio de que se tinha notícia ocorrera há mais de vinte anos e envolvera dois forasteiros que bebiam suas cachaças em um boteco, aproveitando uma noite de passagem pela cidade. Certo dia estourou a notícia de que o sacristão, o Lourencinho, havia sumido, sem qualquer aviso nem satisfação. O fato pegou de surpresa o próprio padre Olinto, que não soube explicar o que ocorrera. Ávida por novidades que quebrassem a monotonia imperante na cidade, a população passou a levantar hipóteses e espalhar boatos. Três dias após, o Dr. Janjão recebeu uma carta anônima com o seguinte teor: Senhor Delegado: O sacristão, Lourencinho, foi assassinado pelo farmacêutico, Emerenciano, que era por ele, sacristão, presenteado com um par de chifres, já 120
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que mantinha um caso extraconjugal com a mulher do dito cujo elemento, que atende pelo nome de Ermelinda. O Dr. Janjão supôs que o autor dessa carta havia sido Mané, o escrivão, que era o único na cidade, fora ele, a usar tal linguajar. Mas não importava quem havia sido o autor. Importante era apurar os fatos. Mandou o único soldado da cidade buscar, preso, Emerenciano, com quem teve uma conversa franca: ou confessava o crime ou seria submetido a exercícios no pau de arara, que havia sido adquirido há pouco e que ele, Dr. Janjão, ansiava por inaugurar. Ante a ameaça, o farmacêutico admitiu que sua mulher tinha um caso com o Lourencinho, mas que isso era com seu conhecimento e consentimento, já que seu casamento era um casamento aberto, que, tal como lera certa vez em uma revista, ocorria com frequência em países mais adiantados da Europa. Mas que nada tinha a ver com o desaparecimento do Lourencinho. Isso jurava pela memória de sua mãe. O Dr. Janjão, que nunca tinha ouvido falar nesse tal de casamento aberto, encaminhou Emerenciano ao pau de arara. Bastaram cinco minutos para fazer o farmacêutico esquecer sua mãe, confessar que matara o sacristão e descrever, de maneira detalhada e convincente, como se desfizera do corpo e de todos os pertences do morto na cachoeira do rio que passava pela cidade. O caso teve ampla repercussão e o Dr. Janjão foi convidado a conceder entrevista a uma televisão da capital, na qual descreveu detalhes do brutal homicídio que havia 121
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sido cometido – detalhes esses que, acentuou, revelaram a extraordinária inteligência criminosa do assassino –, bem como do escabroso amor adúltero entre o sacristão e a mulher do farmacêutico, tudo conforme registrado na sua confissão. Quinze dias após, o Dr. Janjão foi procurado pelo maior fazendeiro da região, o coronel Quirino. “Dr. Janjão, o senhor sabe que sou homem de honra”, começou o coronel. Inquieto, o Dr. Janjão apressou-se em concordar, acrescentando com certa prudência: “De muita honra, coronel!” “Por isso mesmo, vou-lhe mostrar uma carta que acabei de receber da minha filha Zizi, que está na capital. O conteúdo desta carta, porém, ficará entre nós.” E mostrou-a ao Dr. Janjão. Nela, Zizi dizia ao pai que se apaixonara por Lourencinho e que por isso fugiram para a capital a fim de se casarem, e que estavam, ambos, muito felizes. O Dr. Janjão podia ser truculento, mas também era homem de honra. Mandou libertar Emerenciano e providenciou junto ao promotor e ao juiz o arquivamento do caso, sob a alegação de que o cadáver havia sido visto passeando na capital. Aliviado, Emerenciano, que sabia não haver matado ninguém, apesar da reconhecida inteligência criminosa para fazê-lo, foi solto e reabilitado. Só que com frequência alguém com quem cruzava na rua saudava-o com os dois indicadores ao lado da cabeça e acima da testa. Mas Emerenciano era um homem paciente e tolerante, e sabia que acabariam cansando dessa tolice. 122
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Para o lugar do Lourencinho, chegou à cidade o novo sacristão, Lourival, rapaz bem apessoado, que cedo se entrosou com todos, sobretudo com a formosa e simpática Ermelinda, digna esposa do farmacêutico. Logo, logo, passou a correr na cidade o boato de que Ermelinda e Lourival estavam tendo um caso. A vida transcorria como sempre. Uma vez ou outra, alguém que cruzava com Emerenciano levava os indicadores à testa. Mas isso se tornava cada vez mais raro. Poucos meses após, estourou na cidade a notícia: o Lourival desaparecera, sem deixar rastro. Mas desta vez ninguém se importou. Ele devia estar passeando na capital, talvez – quem sabe? – com o Lourencinho...
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Idiossincrasia
Em uma cidade do interior, os habitantes pertenciam todos, sem exceção, a uma de duas famílias: a Sezefredo e a Raminho. O esporte favorito dos membros da família Sezefredo era matar um Raminho. E vice-versa. Mas eram homens de caráter. Regiam-se por um rígido código de honra. O resultado do confronto deveria ser justo, ou seja, o número dos Sezefredos mortos deveria equivaler ao dos Raminhos assassinados. Morto um Sezefredo, deveria esperar-se a morte de um Raminho. E vice-versa, até poder dar-se continuidade ao ciclo. É evidente que essa situação incomodava e preocupava as autoridades do Estado. Mas não tinham como consertá-la. Criou-se uma comarca, com o objetivo de impor a Justiça na cidade. Mas, cedo, o juiz para lá nomeado, que não era Sezefredo nem Raminho, foi jurado de morte pelos dois clãs, o que motivou sua fuga precipitada do lugar, com a convicção de que o problema era insolúvel. O promotor foi cooptado pelos Sezefredos e o delegado pelos Raminhos, o que assegurou o equilíbrio de forças, característica de tantos anos de convivência. Certa vez, o partido há décadas dominante no Estado escolheu como candidato a governador um homem sensato, inteligente e culto. Em sua campanha política, fez 124
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questão de programar um comício na cidade, que reuniu Sezefredos e Raminhos na mesma praça. Comício que se realizou, como de hábito na região, em frente à igreja. O discurso do candidato foi considerado o mais bonito de todos os tempos, embora ninguém entendesse o que ele pretendeu dizer. Mas o final, de um brilho inexcedível, impressionou a todos e terminou por fazer história na cidade. Citando os Evangelhos, e sobretudo o Sermão da Montanha, o candidato lembrou, aos Sezefredos e aos Raminhos, que deveriam amar-se uns aos outros. E terminou com um apelo que impressionou os que o ouviam: “Vocês precisam restabelecer a paz na cidade. E para isso precisam eliminar a idiossincrasia.” Encerrado o discurso, antes mesmo do candidato abandonar a cidade, o coronel Segismundo Sezefredo, líder máximo da família, convocou para a mesma noite uma reunião extraordinária dos principais chefes do clã, que estavam em torno de vinte. Abriu a reunião com palavras da maior objetividade: “Foi-nos aconselhado, pelo digno futuro governador, restabelecer a paz mediante a eliminação da Idiossincrasia. A questão a enfrentar nesta reunião é: quem é essa Idiossincrasia que deveremos eliminar?” Todos compreenderam de imediato a complicada questão levantada, já que não lhes ocorria ninguém com esse nome. Hermengardo Sezefredo, um dos dois barbeiros da cidade (diga-se de passagem que cada família tinha seu barbeiro, 125
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em face do inegável risco que envolveria a procura do barbeiro da família inimiga), tomou a palavra e disse: “Não conheço nenhuma Idiossincrasia, e também não creio que alguém aqui presente conheça. Sugiro ouvirmos o Mitotônio, que é o encarregado do registro civil. Ele, melhor do que ninguém, poderá dizer quem é essa pessoa.” Mitotônio Sezefredo pensou um pouco e respondeu: “Nunca registrei o nascimento de nenhuma Idiossincrasia. Se o tivesse feito, me lembraria, pois minha memória, graças a Deus, continua excelente, apesar de já haver passado dos cinquenta anos.” Os presentes se entreolharam, desanimados. Ninguém conhecia criança, adolescente, moça, senhora ou velha que atendesse pelo nome de Idiossincrasia. Mitotônio concluiu: “Se nós não conhecemos ninguém com o nome de Idiossincrasia, é porque ela pertence à família Raminho.” Surgiram de imediato manifestações de concordância. Era isso: só poderia ser alguma Raminho. Hermenegildo Sezefredo, ferreiro conceituado na cidade, ousou discordar: “Se Mitotônio não se lembra de ninguém registrado com esse nome é porque ninguém foi registrado com esse nome. Devemos lembrar que Mitotônio registra não apenas os Sezefredos, mas também os Raminhos. Além do mais, qualquer um de nós conhece todos os habitantes da cidade e atrevo-me a dizer que não existe nenhuma Idiossincrasia Sezefredo, nem tampouco Idiossincrasia Raminho.” 126
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O silêncio foi geral. Mitotônio voltou a falar: “Há uma explicação, que me está ocorrendo agora. É possível que Idiossincrasia tenha sido registrada com nome falso.” Toinho Sezefredo, que não gostava lá essas coisas de Mitotônio, desde que este andara insinuando que a mulher de Toinho lhe arranjara um par de chifres, discordou: “Isso é pura tolice. Quem faria uma coisa dessas? Não tem lógica. É absurdo!” Mitotônio não se abalou: “É possível, sim, senhor. Vai ver que Idiossincrasia foi enviada pelo diabo e o pai camuflou o nome.” Toinho perdeu a calma: “E o que é que um nome, tão original e bonito como Idiossincrasia, tem a ver com o diabo?” “Não sei, nem quero saber. Mas que é possível, é.” Verificou-se uma clara divisão de opiniões entre os presentes. Mitotônio ponderou: “Há pouco mais de vinte anos, fui procurado por Biu Raminho para registrar uma sua filha com o nome de Maria da Gláucia. Registrei-a como pediu, mas depois ele andou me atacando, dizendo que o nome que me tinha transmitido era Maria das Graças. Mas eu nunca errei um registro de nome. A filha dele era mesmo para ter sido Maria da Gláucia.” Toinho estava cada vez mais irritado: 127
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“E o que isso tem a ver com Idiossincrasia?” “É simples. Vocês conhecem alguma outra Maria da Gláucia? Claro que não. Conhecem alguma Idiossincrasia? Claro que não. Logo, Maria da Gláucia pode muito bem ser Idiossincrasia.” Houve terrível confusão. Os participantes da reunião dividiram-se em dois grupos: um considerando que Mitotônio era um perfeito idiota, o outro entendendo que seu argumento era irrefutável. O coronel Segismundo Sezefredo entendeu que já era hora de intervir. Ele costumava deixar que todos expressassem suas opiniões. Mas ao fim das reuniões tomava a decisão que lhe parecia ser a mais sensata, não admitindo qualquer interrupção ou contestação. Disse ele: “Ouvi todos os pronunciamentos. Uma coisa é certa: nosso eminente futuro governador deixou claro que só teremos paz na cidade quando eliminarmos essa tal de Idiossincrasia. Embora meus inimigos não reconheçam, eu desejo a paz, indispensável ao progresso de nossa cidade. Não ficou determinado, em nossa discussão, quem seria Idiossincrasia. Mas há razões para crer que Mitotônio esteja certo: Idiossincrasia é Maria da Gláucia. Por isso, decido que Idiossincrasia, vulgo Maria da Gláucia, seja eliminada.” Dito isto, declarou encerrada a reunião. Vinte e quatro horas após, o coronel Godofredo Raminho reuniu as lideranças de sua família. Mal havia aberto a reunião, entrou Tião Raminho afobado na sala e bradou: assassinaram Maria da Gláucia, filha de Biu Raminho. 128
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A perplexidade foi geral. Há décadas que as duas famílias adotavam a máxima “Matai-vos uns aos outros”, mas era a primeira vez que a vítima era uma mulher. Estupefato e revoltado ao mesmo tempo, o coronel Godofredo declarou que a agenda da reunião estava modificada. Já não era mais investigar quem seria a tal da Idiossincrasia, mas escolher, dentre as Sezefredos, a próxima vítima. Olho por olho, dente por dente. Janjão Raminho, o rábula da família, esboçou um protesto. Lembrou que a reunião deveria ater-se à pauta objeto da convocação. O olhar que lhe foi lançado pelo coronel Godofredo assustaria qualquer valentão. E Janjão nem valente era, pelo que de imediato admitiu que havia ocorrido fato superveniente e imprevisível, justificador da alteração na pauta, decidida pelo coronel. Nos quatro anos que se seguiram, a cidade contabilizou onze mortes violentas de mulheres, incluída Maria da Gláucia. Havia divergência de opiniões. Uns achavam que com tamanho morticínio certamente Idiossincrasia havia sido eliminada. Outros, mais céticos, duvidavam disso. Como o placar apontava seis mortas do clã Sezefredo, era de esperar-se, para os próximos dias, a morte de mais uma Raminho. Quanto ao número de homens mortos, a média anual manteve-se estável. Sempre meio a meio. Decorridos esses quatros anos, novo comício foi marcado para a cidade. O candidato a governador pelo partido dominante era ainda mais culto e inteligente que o anterior, aquele que tão luminosamente havia sugerido a eliminação da Idiossincrasia. 129
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O discurso do novo candidato foi mais brilhante do que o proferido quatro anos atrås pelo candidato anterior. E terminou de maneira candente, conclamando os dois clãs a restabelecerem a paz, eliminando a cizânia...
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O Autor Antônio Carlos Cintra do Amaral nasceu em Olinda, Pernambuco. É advogado em São Paulo e consultor, parecerista e professor de direito administrativo e econômico. Escreveu vários trabalhos para revistas especializadas e nove livros jurídicos, dos quais os mais recentes, publicados pela Editora Fórum, de Belo Horizonte, foram: Teoria do Ato Administrativo (2008), O Positivismo Jurídico (2010) e Licitações e Contratos Administrativos – Estudos, Pareceres e Comentários (3ª edição revista e ampliada, 2010). Escreveu e publicou, ainda, em 2006, um livro autobiográfico, Desvio de Rota, em que relata a perseguição política que sofreu na década de 1960, o que o forçou a abandonar Pernambuco e radicar-se em São Paulo.
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Nas hist贸rias de Manga com Leite, permita-se ser conduzido pelos fragmentos de mem贸ria de um narrador maduro que desenha o fluxo narrativo com a precis茫o de quem sabe cons truir pontes de acesso entre passado e presente.