Operação Mãos Limpas - Degustação

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Portuguese copyright © 2016 by CDG Edições e Publicações Do original em italiano: Mani Pulite - La vera storia © 2012, Chiarelettere editore srl All Rights Reserved. Autores: Gianni Barbacetto Peter Gomez Marco Travaglio

Revisão textual: Lúcia Brito Samanta Sá Canfield Capa: Pâmela Siqueira

Tradutores: Alexis Caprara Aline Pereira de Barros Cristhian Herrera Fernanda Junges Marivone Cechett Sirtoli Paola Aroldi Santagada

Assistente de criação: Dharana Rivas Diagramação: Dharana Rivas

Revisão técnica: Patricia Garcia da Rosa Sandra Regina Martini DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

G633o Barbacetto, Gianni Operação mãos limpas : a verdade sobre a operação italiana que inspirou a Lava Jato / Gianni Barbacetto, Peter Gomez, Marco Travaglio. – Porto Alegre: CDG, 2016. 896 p. Intrudução à edição brasileira de Sergio Moro. ISBN: 978-85-68014-29-5 1. Corrupção política. 2. Ética política. 3. Corrupção – aspectos econômicos. 4. Itália – Política e governo. I. Travaglio, Marco. II. Título. CDD - 320

Bibliotecária Responsável: Andreli Dalbosco – CRB 10-2272 Produção editorial e distribuição:

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SUMÁRIO

Introdução por Sergio Moro. . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Nota da revisão técnica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Prefácio à edição italiana. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Prólogo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24 1992. Mãos Sujas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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1993. Mãos Levantadas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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1994. Mãos Atadas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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1995. Mãos Baixas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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1996. Mãos Grandes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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1997-2000. Mãos Livres. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Post Scriptum. Os últimos dez anos. . . . . . . . . . . . . .

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Apêndice. Como terminaram. . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Ensaio crítico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Artigo por Sergio Moro: considerações sobre a Mani Pulite. . 874


INTRODUÇÃO

OPERAÇÃO MÃOS LIMPAS: a VERDADEIRA HISTÓRIA por Sergio Fernando Moro


“É evidente que todas as constituições que miram o interesse comum são constituições retas, enquanto conformes à justiça absoluta; as que visam ao interesse dos governantes são errôneas, constituindo degenerações com respeito às primeiras.” (Aristóteles, Política, 1279 a.C) O século 20 assistiu ao triunfo da democracia frente às demais formas de governo. Enquanto antes da Segunda Guerra Mundial e da derrocada dos regimes comunistas no Leste Europeu cogitavam-se outras formas de governo em concorrência com a democracia, depois desses episódios históricos a democracia afirmou-se, relegando as demais a formas anacrônicas ou produto de momentos históricos distorcidos, destinados, com o tempo, a serem superados. O triunfo não significa, porém, que a democracia não tem os seus próprios problemas. As frustrações com a sua morosidade decisória, a falta de interesse dos cidadãos na participação na política e o distanciamento entre governantes e governados são alguns deles. Outro, não propriamente peculiar à democracia, consiste na erupção e disseminação de esquemas de corrupção sistêmica. A corrupção ou a prática de suborno, com pagamento de vantagens indevidas por agentes privados a agentes públicos, sempre existirá. Homens não são anjos. Constituem amálgama de vícios e virtudes e mesmo em regimes utópicos pode-se cogitar que sempre haverá aqueles dispostos a decaírem. Outro juízo é cabível em relação à mencionada corrupção sistêmica, na qual a prática do suborno, de tão aprofundada e disseminada, passa a ser vista como “regra do jogo”, a dominar as transações entre o público e o privado. A corrupção sistêmica, ao contrário da corrupção isolada e individualizada, não é algo comum. Não existe em todo e qualquer lugar. Constitui uma degeneração da democracia. Talvez o termo cleptocracia seja mais adequado. Em regimes dominados por esquemas de corrupção sistêmica, os governantes passam a visualizar o exercício do poder não como uma forma de realizar o interesse comum ou o interesse público, mas como um meio para apropriação de riquezas privadas e também para, com elas, perpetuarem-se no poder. Trata-se de um mal que deve ser combatido e vencido. É certo que em uma democracia pluralista, no âmbito de uma sociedade de massa, cidadãos podem divergir razoavelmente acerca da caracterização do interesse público ou na formulação das melhores políticas para atingir o bem comum. Não há, porém, margem para divergência razoável quanto à caracterização da corrupção sistêmica como uma degeneração da democracia e quanto à necessidade de remediá-la. Os custos da corrupção sistêmica são enormes.


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Custos com o pagamento de propinas são usualmente embutidos nos contratos públicos, onerando o orçamento governamental e os contribuintes. Esquemas de corrupção sistêmica afetam, de forma ainda mais decisiva, a eficiência da Administração Pública, já que a necessidade de gerar recursos para pagamento de propinas pode afetar a formulação das políticas governamentais. Pode motivar a realização de obras desnecessárias ou de gastos governamentais ineficientes que podem afetar o orçamento público muito além do custo imediato para o pagamento da propina. Afastam o investimento interno ou externo, já que agentes econômicos importantes podem escolher se afastar de mercados dominados pela corrupção sistêmica e nos quais, por conseguinte, estarão sujeitos a cobranças indevidas ou a concorrências arbitrárias. Custos de propinas, decisões governamentais ineficientes na perspectiva econômica e afastamento de investimentos geram, por sua vez, incremento da dívida pública, perda de produtividade econômica e atraso no desenvolvimento. Esses impactos econômicos e no bem-estar geral não devem ser subestimados. O principal efeito deletério consiste, contudo, na afetação da confiança no próprio regime democrático. A democracia é fundada na idéia básica de que todos os cidadãos são livres e iguais e assim devem ser tratados pela lei e pelas instituições públicas. Demanda confiança na regra da lei, o que os anglo-saxões denominam de “rule of law” ou o que na tradição latina pode ser chamado do governo de leis e não de homens. Esquemas de corrupção sistêmica minam a confiança dos cidadãos na regra da lei ou no governo de leis. Quando parte dos governantes e dos governados agem em interesse próprio, em desrespeito à lei, quando não seguem as regras gerais e iguais, ao contrário têm as suas próprias regras do jogo especiais, obtendo, arbitrariamente, enriquecimento ilícito e perpetuação no poder, os demais, a maioria, sente-se desmotivada em agir conforme as regras gerais e iguais e, além disso, passa a ver a política como uma mera disputa de poder na qual o que conta são os interesses privados especiais e não o público. As soluções são simples, mas de difícil implementação. Para males democráticos, soluções democráticas são necessárias. O primado da lei deve ser restabelecido. As instituições judiciárias devem, respeitado o devido processo legal, punir aqueles que se valem da corrupção sistêmica. Para tanto, as disfunções do sistema de Justiça criminal, muitas vezes decorrentes de políticas motivadas por interesses especiais, devem ser superadas, a fim de garantir o seu bom funcionamento. No processo penal, o inocente deve sair livre e o culpado deve sofrer as consequências quando provada a sua responsabilidade. A incapacidade dos sistemas de Justiça criminal para levar a bom termo casos de corrupção sistêmica envolvendo importantes agentes públicos ou privados tem uma relação direta com o agravamento do problema. Impunidade e corrupção sistêmica andam de mãos juntas.


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Necessários, em esquemas de corrupção sistêmica, métodos especiais de investigação, pois a corrupção é praticada em segredo, não sendo facilmente descoberta ou provada. A colaboração premiada, que rompe a aliança entre corruptor e corrupto, é um desses métodos, mas não o único. Medidas judiciais fortes, como a prisão cautelar, podem mostrar-se também necessárias para romper o ciclo de reiteração delitiva e igualmente para prevenir indevidas interferências na colheita da prova e no normal andamento da processo. Em um contexto de corrupção sistêmica, penetrante, profunda e disseminada nas instituições e na sociedade civil, a adoção de remédios excepcionais não pode ser considerada uma escolha arbitrária, mas medida necessária, na forma da lei, para romper o ciclo vicioso. Mas o sistema de Justiça criminal pode oferecer apenas uma resposta limitada à corrupção sistêmica dada a dimensão do problema e a necessária e desejável vinculação da própria Justiça criminal a regras rigorosas de procedimentos e provas. Concomitantemente, outras instituições e mesmo a sociedade civil devem operar. O sistema político, por meio de eleições periódicas ou de seus organismos correcionais próprios, tem grande responsabilidade. Deve expulsar e condenar ao ostracismo políticos improbos. Para tanto, tem mais facilidade do que a própria Justiça criminal, já que não limitado pelas regras mais rigorosas do processo penal. Mecanismos que garantam transparência das ações governamentais e na formulação das políticas públicas são igualmente fundamentais. Liberdade de expressão e de informação e a imprensa livre são igualmente pilares essenciais no combate e na prevenção de esquemas de corrupção sistêmica. É a opinião pública bem informada a condição necessária para o bom funcionamento de todas as demais instituições, judiciárias ou políticas. A iniciativa privada, ou seja, as empresas livres, tem igualmente um papel especial. Não raramente esquemas de corrupção sistêmica envolvem não só o enriquecimento ilícito de agentes públicos, mas igualmente o favorecimento indevido de agentes privados, com afetação da livre concorrência e da liberdade de mercado. Atalhos para posições de predominância em licitações ou no mercado são, não raramente, motivadores do pagamento de vantagens indevidas. Se o mercado disser não à propina, por ação individual ou coletiva, esquemas de corrupção sistêmica não têm como prosperar. Ninguém se corrompe sozinho. O livro Mani Pulite: La vera storia, 20 anni dopo, de Gianni Barbacetto, Peter Gomez e Marco Travaglio, traduzido em boa hora para o português, é o mais detalhado relato histórico sobre a Operação Mãos Limpas. A grande investigação iniciada em 1992 revelou, sem precedentes equivalentes, que a Itália estava mergulhada em um esquema de corrupção sistêmica que envolvia os principais agentes e partidos políticos de então, além de grandes empresários. A narrativa é surpreendente e uma obra de ficção não estaria à sua altura. Da prisão em Milão de um agente público de médio escalão em 17 de fevereiro


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de 1992, seguiram-se novas prisões e processos e, especialmente, revelações cada vez mais extensas e profundas, em uma espécie de “efeito dominó”, no sentido de que havia se tornado a regra, na Itália, o pagamento da propina em contratações públicas. Os valores seriam destinados ao enriquecimento pessoal de agentes públicos e políticos, estando envolvidos inclusive primeiros ministros, e para o financiamento criminoso de eleições e de partidos políticos. Os números são superlativos. Considerando apenas os processos instaurados em Milão, os dados oficiais apontam para um total de quatro mil, quinhentos e vinte investigados, com cerca de oitocentos mandados de prisão expedidos nos dois primeiros anos da Operação Mãos Limpas. As investigações, todavia, se espalharam como fogo para outros foros italianos, confundindo-se em alguns com processos antimáfia, atingindo números ainda mais expressivos. O impacto político foi igualmente significativo. Dois dos principais partidos que dominaram a vida política na Itália após a Segunda Grande Guerra foram literalmente liquidados já nas eleições de 1994, abrindo espaço para novas agremiações. O apoio da opinão pública nos primeiros anos foi avassalador, identificando como verdadeiros heróis os magistrados mais diretamente encarregados dos processos. Diante de todo o ocorrido, seria de se esperar que esquemas de corrupção sistêmica tivessem sido obliterados da Itália. Mas a Operação Mãos Limpas não é apenas uma história de sucesso. É também reveladora das limitações institucionais da Justiça criminal que, sozinha, não tem condições de reformar democracias contaminadas pela corrupção sistêmica. Depois dos sucessos dos primeiros anos, o sistema corrupto contra-atacou. Diante da progressiva desmobilização da opinião pública e do comprometimento, pelo poder econômico e político, da vigilância proveniente da imprensa, o sistema corrupto passou paulatinamente a reduzir as consequências dos processos judiciais, anistiando crimes ou reduzindo penas, ou mesmo aprovando leis que simplesmente dificultavam as investigações e a persecução penal. Algumas das iniciativas mais acintosas de obstrução da justiça foram, de início, repelidas, mas várias delas, algumas mais sutis, foram progressivamente aprovadas. Os magistrados responsáveis foram, por sua vez, cada vez mais atacados por supostos excessos nos processos, ainda que se desconheçam casos de inocentes que tenham sido presos ou condenados indevidamente. O emprego de instrumentos processuais mais drásticos, mas também necessários para debelar o quadro de corrupção sistêmica, como prisões cautelares, passou a ser criticado como contrário ao Estado de Direito, como se a própria contaminação do regime democrático pela corrupção sistêmica não o fosse. A consequência mais direta foi a de que o elevado número de prisões não gerou número equivalente de condenações e mesmo para estas, devido às anistias


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parciais, as penas não foram tão significativas. Poder-se-ia cogitar que a falta de correlação entre as prisões cautelares e as condenações revelasse o exagero no emprego das primeiras, mas, de fato, as absolvições de mérito foram percentualmente muito pouco significativas. O que realmente provocou a discrepância foi a reação legislativa do sistema político corrompido. Indiretamente, a reação política teve como resultado uma avaliação controversa da herança da Operação Mãos Limpas. Apesar de toda a sua intensidade, há dúvidas se, na Itália de hoje, a corrupção é ou não menor do que a que vicejava no início dos anos noventa. Os esquemas de corrupção sistêmica talvez tenham apenas mudado de forma. Esse tipo de avaliação é extremamente complexo porque, como evidente, não existem dados estatísticos confiáveis acerca da quantidade e intensidade da prática da corrupção, salvo em relação àqueles descobertos pela Justiça e que, a depender da eficiência desta, podem ser maiores ou menores independentemente de sua ocorrência de fato. Mas, pelo menos, a percepção do nível de corrupção auferido por organismos como a Transparência Internacional é ainda muito elevada para a Itália. Impossível ainda dizer que a situação estaria melhor caso não tivesse havido a Operação Mãos Limpas, provavelmente não, pois, no mínimo, no seu momento de maior intensidade, houve um arrefecimento do esquema de corrupção sistêmica, o que diminuiu a sua escalada. A conclusão errada decorrente do resultado final consiste em culpar os magistrados ou a própria Operação Mãos Limpas. A responsabilidade é do sistema político que contra-atacou e das demais instituições da própria democracia italiana que não foram capazes, na janela de oportunidade gerada pelos processos judiciais, de aprovar as reformas necessárias para prevenir o restabelecimento ou a perpetuação da corrupção sistêmica. A lição a ser aprendida, aqui já exposta, é que a superação da corrupção sistêmica exige uma conjugação de esforços das instituições e da sociedade civil democrática, sendo a ação da Justiça uma condição necessária, mas não suficiente. O futuro, porém, não está escrito e nenhuma democracia está fadada a conviver com a corrupção sistêmica. O relato histórico do ocorrido, verdadeira novela de um estonteante sucesso judicial, seguido de frustrações decorrentes do sistema político, oferece uma aula acerca do funcionamento de uma democracia moderna, em uma sociedade de massas, e as possibilidades e as limitações dela no enfrentamento da corrupção sistêmica. Nessa perspectiva, essa história transcende em muito a Itália, pois não se trata da única democracia a enfrentar esse mesmo desafio. Que essa história não seja esquecida. Boa leitura. Curitiba, 1º de maio de 2016.

Sergio Fernando Moro

Juiz Federal


NOTA DA REVISÃO técnica


A investigação italiana denominada Operação Mãos Limpas revelou ao mundo, pela primeira vez, um esquema de corrupção sistêmica nas relações do poder público com as empresas privadas envolvidas em licitações. Foi descoberto, na Itália, um sistema que, em regra, era usado para remunerar os agentes públicos, partidos e políticos, através de contratos com o Estado. Neste sentido, a Mani Pulite não é só uma história italiana; é uma história que interessa a todos, porque demonstra com clareza o que é o fenômeno da corrupção sistêmica, tema que é extremamente relevante para as democracias modernas, sobretudo para países como o Brasil e o seu sistema democrático recente. Não existem soluções mágicas. Não há como fazer mudanças reais e significativas do dia para a noite. Acabar com a corrupção não é e nem nunca será fácil. Para alguns, é considerada uma utopia, para outros, um devaneio, mas prefiro acreditar que esta é uma guerra diária, que tem de ser lutada por cada um de nós no nosso cotidiano, e na base deste combate está o conhecimento. Ter noção crítica dos fatos e conhecer o problema são os primeiros passos para se lutar contra a corrupção, e esta não é uma batalha só do Estado, dos magistrados ou dos atores públicos. Esta é, também, uma luta do cidadão que acredita em um mundo melhor para si, mas, sobretudo, para as próximas gerações. Por que traduzir o livro Mani Pulite: la vera storia, dos jornalistas Gianni Barbacetto, Peter Gomez e Marco Travaglio? As respostas são múltiplas, mas me parece que a razão principal é que este livro foi considerado um verdadeiro relato histórico de como, pela primeira vez, foi descoberta a corrupção sistêmica, como ela se constituiu e como passou a integrar o cotidiano das relações entre empresários e políticos. Neste sentido, entendo que, mais do que narração de fatos, a história é processo. Assim, para que se possa compreender realmente os acontecimentos, mostra-se necessário examinar o processo histórico, com vistas a perceber todas as suas nuances e as transformações ocorridas a partir dele, bem como destacar os pontos que nos permitam construir uma história diferente para ajudar a melhorar a sociedade em que estamos inseridos. Este livro possibilita aos brasileiros conhecerem no detalhe o que aconteceu na Itália na década de 1990, fato que guarda inúmeras similaridades com o que acontece hoje no Brasil. Por que isto é relevante? Porque o caso italiano já foi concluído, e o leitor terá a oportunidade de ver como os políticos agiram para se proteger e quais foram os reais resultados desta operação. Aqui, há várias operações


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em curso, que têm revelado também o mesmo fenômeno de corrupção sistêmica e que ainda estão longe de um fim. O leitor perceberá que, no caso italiano, a ação do judiciário foi até um determinado limite: até o ponto em que o sistema político interviu. O significado disso e suas consequências são aspectos que realmente interessam à sociedade brasileira. Afinal, cabe a todo cidadão a responsabilidade de cobrar e fiscalizar os políticos já que, pelo menos em tese, estes são eleitos para buscar o bem comum da sociedade, não para atuar em seu interesse próprio. Quando a Citadel, por meio do seu editor, me convidou para fazer a revisão técnica deste livro, demonstrando, assim, a sua preocupação com a qualidade da obra, percebi imediatamente, por conhecer o livro, a complexidade e a grandiosidade do que tinha pela frente. Era necessário que o texto tivesse uma coerência interna e uma adequação da linguagem, e isso foi construído através de uma interferência crítica, buscando a correta adequação ao texto original, respeitando a ideia dos autores, mas adaptando-a ao significado em português. Afinal, se dissermos que “alguém está com a mão na geleia” não irá ter sentido, ao passo que se a expressão for “alguém foi pego com a boca na botija”, certamente será preservada a conotação pretendida pelos autores. Foi um trabalho desenvolvido por muitas mãos. Convidei a professora Sandra Regina Martini para dividir comigo esta empreitada voluntária, porque só pela paixão e pela crença de que podemos mudar o contexto em que vivemos poderíamos assumir uma responsabilidade como esta, e assim fizemos. O processo de revisão técnica foi artesanal, uma vez que havia seis tradutores envolvidos no projeto. Feita a primeira revisão, surgiram dúvidas em relação a diversas expressões. Então, recorremos a dois italianos: eu, a meu caríssimo amigo Adolfo Bracci; Sandra, ao professor Francesco Bilancia, os quais nos deram sugestões sobre a melhor tradução. Entretanto, o trabalho não estava concluído; iniciava a atividade de revisão da Samanta, revisora do português que, com sua astúcia, nos indicou alguns termos que ainda não estavam bem adaptados. Assim, foi feita mais uma revisão, buscando sempre a maior qualidade possível para esta edição em português, para que os leitores brasileiros tenham à sua disposição uma obra que esteja à altura da original. Procuramos preservar ao máximo o sentido primário da redação e encontramos inúmeras expressões idiomáticas, termos oriundos de dialetos, ditos populares cuja tradução violaria o sentido original ou era impossível de ser feita. Buscamos, através das notas de revisão técnica (nrt), juntamente com os tradutores e suas notas de tradução (nt), manter a redação fidedigna à original, mas sempre com o objetivo de conduzir o leitor de forma fluida por este vasto texto. Espero sinceramente que o objetivo tenha sido atingido, que tenhamos conseguido contribuir para que esta história, que guarda tanta semelhança com a nossa, possa ser conhecida no Brasil e, que daqui a alguns anos, seja possível ver


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que o resultado final das diversas operações em curso hoje no país seja diferente do desfecho da Operação Mãos Limpas. Por fim, gostaria de agradecer àqueles que contribuíram para que este trabalho pudesse ter sido realizado: Sandra Regina Martini, que me oportunizou a realização de um doutorado na Itália e com quem dividi esta revisão técnica; Adolfo Bracci e o professor Francesco Bilancia pela orientação; Samanta Sá Canfield e Lúcia Brito, ambas com um profundo conhecimento linguístico e vivência profissional, que aportaram ainda mais qualidade a esta edição brasileira; e, sobretudo, a toda equipe da Citadel Editora pela oportunidade e confiança. Patrícia Garcia da Rosa Advogada OAB/RS Nr. 81.298 Doutora em Direito Europeu pela Università Degli Studi Roma Tre - Itália sócia fundadora da D’Avila e Da Rosa Advogados e da Brasportsul Assessoria Comex Ltda.


Prefácio da edição italiana por Piercamillo Davigo*

Foi um dos magistrados da operação Mãos Limpas, depois tornou-se diretor do Tribunal de Apelação de Milão e da Seção Penal da Corte de Cassação (Corte di Cassazione, órgão máximo da justiça italiana). Desde abril de 2016, é presidente da Associação Nacional dos Magistrados. (NRT) *


Mãos Limpas. Vinte anos depois Passaram-se vinte anos desde que, no dia 17 de fevereiro de 1992, Mario Chiesa foi preso em Milão, fato que marcou o início das investigações que os meios de comunicação chamaram de “Mãos Limpas”. Não foi a primeira vez que um administrador público foi surpreendido em flagrante de corrupção, nem a última. Por que então esse acontecimento ainda é lembrado duas décadas depois, a ponto de levar à segunda edição um livro que reconstitui o episódio e tudo o que aconteceu depois dele? Acredito que a explicação esteja no surpreendente (até mesmo para os investigadores) desenvolvimento das investigações que eclodiram daquele episódio que, em um período relativamente curto (em particular, referindo-se àqueles tempos da administração judiciária), levaram à descoberta de um número impressionante de delitos e do envolvimento de milhares de políticos, funcionários e empresários. Qual foi a diferença entre aquela investigação e as outras precedentes e seguintes? Durante esses vinte anos, foram ouvidas muitas bobagens, como “todos sabiam”, “onde estava a justiça até agora?”, “foi um golpe” (orquestrado, segundo quem apoiava essa tese, pelos comunistas, pela CIA, pelos poderes fortes, etc.) e outras excentricidades. Antes de mais nada, não é verdade que “todos sabiam”. Mesmo tendo a percepção de que os crimes de extorsão, corrupção, financiamento ilícito dos partidos e falsificação contábil eram muito mais numerosos do que indicavam as estatísticas judiciárias, nem eu nem meus colegas imaginávamos a dimensão da ilegalidade descoberta por meio das investigações. Nem os cidadãos imaginavam que a corrupção tivesse alcançado tal dimensão e, sobretudo, que participantes de partidos com ideologias opostas estivessem dividindo as propinas. Eles ficaram surpresos quando Bettino Craxi falou, na Câmara dos Deputados, em 29 de abril de 1993, de um sistema ilícito de financiamento político no qual todos estavam envolvidos, sem que nenhum dos deputados presentes (entre os quais, certamente, havia alguns honestos, mas que desconheciam o que acontecia dentro de seus partidos) se levantasse para expressar surpresa ou desdém ao ser associado ao roubo generalizado. Além disso, segundo as estatísticas judiciárias, os crimes de corrupção pareciam (e ainda parecem) pouco numerosos, mas isso não causa surpresa. Na verdade, a


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corrupção tem algumas características inerentes à Máfia, entre elas a imersão e o contexto sigiloso, e tem um altíssimo saldo obscuro (a diferença entre os delitos cometidos e os denunciados). A corrupção não é cometida diante de testemunhas; é um crime com vítimas difusas, que não atinge uma pessoa específica que tenha interesse em denunciá-lo, e as ações compradas são quase sempre as mais “limpas”, as mais bem-cuidadas. Se somarmos isso ao fato de que as leis vigentes dificultam a descoberta e a repressão da corrupção, existem razões suficientes para explicar por que as estatísticas judiciárias anteriores (assim como as posteriores) revelaram muito pouco sobre o sistema de ilegalidade difusa que as investigações de 1992 a 1995 evidenciaram. Essas considerações também respondem à pergunta “onde estava a justiça até agora?”. Sempre me questionei por que essa pergunta nunca foi feita (pelo menos até onde sei, mas não me surpreenderia do contrário) também em relação aos procedimentos mafiosos. As investigações sobre a Máfia evidenciaram a existência da Cosa Nostra como estrutura unitária, com regras enraizadas, somente a partir da colaboração de Tommaso Buscetta. Antes disso, os magistrados e as forças policiais não tinham a mínima ideia de como funcionava a estrutura interna da organização. Contudo, é bem possível que alguns dos que fazem essas perguntas retóricas soubessem tanto da corrupção quanto da Máfia; portanto, a questão a ser direcionada a eles deveria ser: “Se você sabia, por que não informou a Procuradoria da República?”. Quanto à tese de golpe, um resquício de bom senso seria suficiente para lembrar que quem faz afirmações tão devastadoras deveria sustentá-las com fatos. Permanece a questão de que o resultado daquelas investigações foi diferente do obtido em investigações anteriores e posteriores, ainda que tenham sido conduzidas pelas mesmas pessoas e com a mesma determinação.

1992 - O sistema entra em crise Precisamos identificar, portanto, as razões pelas quais isso aconteceu naquele momento. Antes de tudo, porque, como ensinou o professor Franco Cordero, a caça e a presa são duas coisas distintas. Pode-se sair à caça seguindo as regras venatórias e voltar sem nada, assim como é possível ser um péssimo caçador com sorte, voltando da empreitada com um belo prêmio. No entanto, acredito que podemos individualizar alguns fatores específicos que podem contribuir para explicar o resultado particularmente favorável das investigações realizadas entre 1992 e 1995. A enorme dívida pública e a crise econômica de 1992 determinaram a redução da aquisição de bens e serviços, e isso, por sua vez, diminuiu as possibilidades que os corruptores tinham de transferir as propinas para a administração pública e esperar por futuros contratos lucrativos. Muitos empresários que até então haviam participado de esquemas de corrupção descobriram-se vítimas de extorsão e, em


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vez de unir forças com os corruptos, começaram a se livrar deles, fornecendo aos investigadores as informações sobre as propinas pagas. No início, os chefes dos partidos desdenharam os indivíduos que foram presos, descrevendo-os como casos isolados, “as poucas maçãs podres do partido”. Esses, sentindo-se abandonados pelos seus cúmplices, entregavam então o resto da cesta de maçãs. Isso gerou uma reação em cadeia de delações cruzadas e aquilo que neste volume chamamos de “efeito dominó”. As investigações revelaram que a corrupção é um fenômeno serial e difuso: quando alguém é pego com a boca na botija, normalmente não é sua primeira vez. Além disso, os corruptos tendem a criar um ambiente favorável à corrupção envolvendo outros indivíduos no crime, de modo a conquistar sua cumplicidade até que as pessoas honestas estejam isoladas. Isso induziu a encarar esses crimes com a certeza de que não se tratavam de comportamentos casuais e isolados, mas de delitos seriais que envolviam um número relevante de pessoas, a ponto de criar amplos mercados ilícitos. Em 1992, com o colapso das ideologias, também entrou em crise a tradição de os partidos serem instrumentos de agregação do consenso e objeto de total confiança de seus filiados. Lembro-me de uma transmissão televisiva em que, pouco depois da prisão do secretário municipal do PDS (Partido Democrático da Esquerda, que era, até 1991, o Partido Comunista Italiano–PCI), um filiado comentava que há trinta anos trabalhava como voluntário fazendo salsichão nas festas do L’Unità (jornal oficial do PDS) e agora vinha a saber que, enquanto ele preparava o salsichão, seus superiores roubavam. Ele concluía dizendo que todos deveriam ser presos. O conjunto dessas causas proporcionou a descoberta da vasta trama de corrupção. A reação da opinião pública, cuja sensibilidade estava aguçada pela crise econômica, teve efeitos (aparentemente) perturbadores no panorama político: cinco partidos desapareceram da cena política. O de maioria relativa, Democracia Cristã (DC), e outros quatro: Partido Socialista Italiano (PSI), Partido Social Democrático Italiano (PSDI), Partido Republicano Italiano (PRI) e Partido Liberal Italiano (PLI), três dos quais tinham mais de cem anos.

A restauração Na verdade, o sistema político se recompôs em novos formatos rapidamente, mas continuou menosprezando tanto o desejo da opinião pública (por exemplo, contornando o resultado do referendo sobre a abolição do financiamento público aos partidos políticos, que hoje obtêm mais dinheiro do Estado do que antes do referendo, justificado como reembolso pelos gastos eleitorais) quanto às exigências, impostas também pelos órgãos internacionais (ONU, Conselho da Europa, União Europeia, Fundo Monetário Internacional e Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), de restituir a legalidade e a


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transparência às instituições e ao mercado. Desde então (e há até pouco tempo), foi iniciada, ao invés disso, uma tentativa de restauração que obteve o duplo resultado de minimizar o número de condenações por corrupção e de fazer a Itália despencar para o penúltimo lugar nos índices de percepção da corrupção no mundo ocidental, atrás de muitos países africanos e asiáticos. O número de condenações por corrupção, reduzido a um décimo daquele de quinze anos atrás, não parece, portanto, ser fruto da diminuição da corrupção, mas de uma dificuldade em enfrentá-la. O clima no qual os magistrados trabalham há anos (atacados de todos os lados e continuamente “ameaçados” de reformas com o objetivo de reduzir sua independência e sua capacidade de ação) e a decadência da justiça, que, ao invés de ser impedida, foi acentuada pelas maiorias parlamentares que se alternaram transversalmente nesses vinte anos, explicam tanto as maiores dificuldades das investigações quanto o resultado negativo dos processos, sempre mais frequentemente concluídos com anúncios de prescrição. Portanto, não devemos ficar surpresos se a corrupção provavelmente aumentou e, se for o caso, devemos nos questionar por que esses crimes deveriam aparecer em procedimentos judiciários. A legislação sobre corrupção, pelo número e pela fragmentação das situações, permite que as provas sejam facilmente corrompidas: basta um olhar de entendimento entre dois indivíduos para passar, com leves alterações nas declarações, de extorsão à corrupção, de corrupção própria à imprópria, com consequências relevantes tanto na pena quanto na prescrição. Portanto, não se pode investigar um caso de corrupção se os protagonistas podem comunicar-se entre si. Além disso, os aspectos seriais e de facilidade de difusão desses delitos resultam quase sempre na reincidência. A experiência também ensina que esse perigo não diminui nem mesmo com o afastamento dos corruptos dos cargos públicos, porque dali a pouco eles se encontram exercendo o papel de intermediários entre os velhos cúmplices não descobertos. Em um interrogatório realizado em 1992, uma pessoa submetida à investigação, referindo-se a contratos relativos a um importante ente público nacional, declarou que existia um cartel de cerca de duzentas empresas que dividiam tais contratos e pagavam praticamente todo mundo, desde a estrutura do ente até os secretários administrativos dos partidos majoritários e dos principais partidos de oposição e que isso era “padronizado há pelo menos vinte anos”.* Sendo assim, de acordo com as regras do Código de Processo Penal, nenhum dos sujeitos que comete esse crime há anos, inserido em um contexto criminal e criminológico, deveria estar em liberdade. Contudo, as campanhas da mídia contra as supostas “algemas fáceis” (sabe-se lá por que relacionadas apenas aos crimes de colarinho-branco e não, por exemplo, aos batedores de carteira) fizeram efeito: hoje em dia, os magistrados prendem *  Ver P. Davigo, G. Mannozzi, La corruzione in Italia. Percezione sociale controllo penale. Roma-Bali: Laterza, 2007.


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muito menos por esses crimes e, mesmo assim, recorrem às prisões domiciliares ao invés de aos presídios, resultando em muitas investigações irremediavelmente contaminadas. Os investigados, mesmo quando fingem colaborar, confessam somente aquilo que não podem mais negar ou o que acreditam que será provado de qualquer maneira e contam ao seu modo, muitas vezes depois de acertar versões cômodas com os cúmplices, e omitem parte da história para assegurar seu futuro político e econômico baseado na capacidade de extorsão por seu silêncio. No sistema, existem menos falhas nas quais os investigadores podem inserir-se para descobrir a verdade. Segundo a lei eleitoral vigente, as eleições são definidas pela classificação na lista, de maneira que os vínculos com aqueles que formam as listas eleitorais se consolidaram, e a tendência a proteger-se prevalece sobre qualquer outra consideração. Em contrapartida, as relações diretas de corrupção parecem ser acompanhadas por uma rede de acordos, o que torna ainda mais difícil conduzi-las a tipificações penais, uma vez que o crime de tráfico de influência não foi inserido no Código Penal, inserção essa que as convenções internacionais obrigam a Itália a fazer. O único estímulo contrário à proteção da corrupção vem, de fato, de entidades internacionais. As poucas leis que pretendem tornar mais fáceis a descoberta e a repressão desses crimes derivam justamente de convenções internacionais. Contudo, a Convenção Penal sobre a Corrupção do Conselho da Europa, assinada em 1999, ainda não foi ratificada pela Itália. Outras convenções não foram cumpridas ou foram enfraquecidas durante o processo de ratificação. Por exemplo, o confisco por equivalência de preço (isto é, de bens de valor equivalente) foi introduzido no Código Penal, mas o confisco do lucro do crime, não. A lei, como confirmou um recente pronunciamento da Corte de Cassação em seções unidas em matéria de peculato, realmente não permite o confisco de bens equivalentes ao lucro subtraído. Pode-se confiscar somente o equivalente ao valor do crime. É como se, em um caso de assalto à mão armada, confiscássemos do assaltante apenas o equivalente ao valor recebido para realizar o crime, e não o equivalente ao valor da mercadoria roubada.

Lei salva-corruptos Em vez disso, a sequência de leis de origem exclusivamente nacional é de sentido oposto. Muitas sentenças de absolvição derivaram da incapacidade de utilizar provas que antes eram utilizáveis (graças a leis aprovadas nesse meio tempo) e, diante do silêncio dos meios de comunicação, apresentadas como atestados de inocência. Foi muito alto o número de sentenças não executadas devido à prescrição, jamais renunciada pelos acusados, nem mesmo por aqueles que ocuparam cargos públicos, esquecidos de que o artigo 54 da Constituição exige-lhes “disciplina e honra”, sem que ninguém os recordasse sobre o dever da honra.


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A lei “ex-Cirielli”, além de diminuir o tempo de prescrição e pulverizar dezenas de milhares de processos extras, surtiu um efeito frequentemente ignorado: antes, se um corrupto, por exemplo, recebesse propinas durante dez anos, todas elas caracterizavam-se como um único ato criminoso, e a prática continuada reduzia a sua pena, mas a prescrição decorria a partir do último episódio de corrupção. Em vez disso, com a lei “ex-Cirielli”, cada episódio em continuação prescreve autonomamente. A consequência é que não é mais possível voltar no tempo para investigar episódios precedentes, identificar cúmplices e analisar os fatos mais recentes sobre eles. Quem quiser subornar um funcionário público precisará de fundos irregulares, ou seja, deverá falsificar o balanço contábil. Por trás de um balanço falso, muito frequentemente, também se escondem propinas. As leis mais danosas foram, portanto, a aprovada pela maioria de centro-esquerda sobre os crimes financeiros e a aprovada pela maioria de centro-direita sobre o crime de falsificação contábil. A primeira reduziu a punibilidade para a emissão de faturas para operações inexistentes (o sistema mais utilizado para criar fundos irregulares) somente aos casos em que ultrapassam um certo limite da declaração de renda; ou seja, basta indicar despesas aumentadas ou inventadas entre os custos não dedutíveis em vez dos dedutíveis para obter recursos fora do balanço sem mais cometer um crime. Com a segunda (reforma da falsificação contábil, de 2001), as penas foram reduzidas e, portanto, a prescrição também, de maneira que é quase impossível concluir o processo em tempo hábil. Sobretudo, para as sociedades que não possuem ações cotadas na Bolsa de Valores, o delito tornou-se persecutório somente diante da denúncia da parte prejudicada, seja ela credor ou acionista. O credor não é prejudicado pela falsa comunicação, mas pela insolvência, ou seja, se for pago, não apresentará denúncia. Os sócios minoritários normalmente ignoram as falsidades contábeis, mas, se soubessem, também seriam subornados. O sócio majoritário normalmente é o mandante e o beneficiário do crime (senão, em vez de denunciar o administrador, o substituiria), de maneira que perscrutar a falsificação contábil a partir da denúncia do acionista seria como estabelecer a investigação de um roubo a partir da denúncia do ladrão. Com ambas as reformas, estabeleceram-se limites muito altos de impunidade: previu-se, assim, a legalidade penal de uma “quantidade moderada” de fundos irregulares, como acontece com as drogas! Os resultados dessas modificações normativas não tardaram: somente no processo por agiotagem da Parmalat, apresentaram-se cerca de quarenta mil partes civis, ou seja, quarenta mil vítimas que desejavam ser ressarcidas. Quanto é preciso para um ladrão fazer quarenta mil vítimas? Quanto ao abuso de poder (crime muito útil para iniciar a investigação), foi descriminalizado aquele não patrimonial, e foram reduzidas as penas para o patrimonial, proibindo, assim, a prisão cautelar. Atualmente, parece (parece?) que os partidos continuam, quase sempre, a defender os membros que acabam em maus lençóis. A chamada casta protege-se;


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(quase) ninguém é descartado. A opinião pública ficou indiferente, resignada ou simplesmente desinformada por muito tempo. Em 1992, os jornais e os canais de televisão contavam os fatos, e esses eram mais importantes do que os comentários, pois falavam por si só. Além disso, os comentários eram frequentemente favoráveis à operação de limpeza, como o editorial de Giulio Anselmi, La torta è finita, no Corriere della Sera de 2 de maio de 1992. Às vezes, eram até mesmo embaraçosos para os investigadores, como os artigos de Vittorio Feltri (mais tarde convertido), que chegava a escrever: “Que Deus salve Di Pietro” (L’Indipendente de 15 de junho de 1992) e a falar de “sistema podre” (L’Indipendente de 16 de dezembro de 1992) e muitos outros mencionados no livro. Sucessivamente, os fatos foram muitas vezes escondidos, filtrados e manipulados por uma mídia controlada por déspotas políticos e empresariais, frequentemente envolvidos em processos judiciais. Os comentários enganosos acabaram predominando nos noticiários, rebaixados a posições marginais para permitir que os meios de comunicação falassem de outras coisas. Foram muito frequentes os ataques individuais a magistrados, instituições judiciárias inteiras e à magistratura como um todo, mas, apesar disso, a justiça parece ter resistido. Nos anos 1980, quando passou pelo referendo sobre a responsabilidade civil, após as primeiras investigações sobre a corrupção e o crime organizado, a magistratura saiu mais enfraquecida do que parece agora (e ainda faltavam cinco anos para a operação Mãos Limpas).

Hoje, como em 1992 Pela ignorância de quem os lançava, os ataques atingiram não somente os magistrados do Ministério Público, mas também os juízes de todos os escalões, até as Seções Unidas da Corte Suprema de Cassação, obtendo, como resultado, a união dos magistrados. O fato de ainda existirem investigações e processos sobre crimes da classe dirigente em toda a Itália, nascidos quase sempre de iniciativas judiciárias e quase nunca de forças policiais (que não têm a garantia de independência do poder político que protege os juízes, de modo que não se pode exigir tal iniciativa delas), é sinal de que o judiciário conseguiu manter a sua independência. A crise econômica que hoje (2012) pesa sobre o país, assim como em 1992, provavelmente impulsionará tanto iniciativas sérias para reduzir a corrupção quanto, consequentemente, uma repressão mais incisiva. No entanto, muitos anos se passaram em vão, e é necessário recomeçar do início a enfrentar esses fenômenos que contribuem para tornar a Itália pouco eficiente e pouco crível internacionalmente devido ao enorme esbanjamento de recursos públicos (“como nos tempos bíblicos”) para a realização de obras públicas e à escassa qualidade dos bens e serviços adquiridos pelas administrações públicas, pelo menos em termos de qualidade/preço. Então, é necessário relembrar os fatos acontecidos vinte anos atrás,


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porque aquele foi o momento em que as reais dimensões da corrupção na Itália começaram a aparecer e, dos fatos comprovados, podemos retirar elementos úteis para enfrentar seriamente essas atividades criminosas. Este livro de Gianni Barbacetto, Peter Gomez e Marco Travaglio é uma ótima compilação dos fatos. A primeira edição foi lançada em 2002, dez anos após o início das investigações, no momento em que começávamos a esquecer tudo o que havia acontecido, e os meios de comunicação tentavam vender a ideia de que os magistrados haviam exagerado e sido parciais no passado, salvando algumas forças políticas, mas que agora tinham finalmente voltado à normalidade, em vez de olhar horrorizados para toda a sujeira que tinha aparecido, a hipocrisia de uma classe dirigente inteira e o evidente desprezo do juramento prestado por muitos funcionários públicos. A exposição dos fatos, reconstituídos com a paciência e a habilidade que distinguem os autores, varre para longe as bobagens e mentiras divulgadas durante anos pela mídia. Juntamente com os crimes cometidos, emerge claramente a incapacidade (senão algo pior) da classe dirigente deste país de criar as condições para que seja possível viver de acordo com as regras geralmente aceitas pelo mundo ocidental, ao qual declaramos o desejo de fazer parte. Esta obra é um vade mecum que ajudará a relembrar o que aconteceu, porque é o esquecimento dos crimes que consome lentamente a liberdade das instituições.


AGRADECIMENTOS Os autores agradecem, além das pessoas entrevistadas, todos aqueles que ajudaram no trabalho de coleta de dados, controle e releitura de documentos. Agradecimentos especiais a Paolo Biondani, Piero Colaprico, Luca Fazzo, Pier Francesco Fedrizzi, Luigi Ferrarella, Giuseppe Guastella, Paolo Flores d’Arcais, Daria Lucca, Caterina Malavenda, Marco Mensurati, Renato Pezzini, Mario Portanova, Emilio Randacio, Franca Selvatici, Leo Sisti, Carmine Spadafora e Corrado Stajano. “A execução das leis era venal e arbitrária. Um criminoso rico não apenas poderia obter a anulação de uma sentença de condenação justa, mas também infligir a punição que desejasse ao acusador, às testemunhas e ao juiz.” — Edward Gibbon, Declínio e queda do Império Romano, 1º volume, 1776–1788 “O crime, uma vez descoberto, não tem outro refúgio senão o descaramento.” - Tacito “O nosso trabalho estava remexendo as consciências, quebrando o sentimento de aceitação da convivência com a máfia, que constitui a verdadeira força dela [...]. A luta contra a máfia não deveria ser apenas um trabalho individual de repressão, mas um movimento cultural e moral que envolvesse todos, especialmente as gerações mais jovens, as mais capazes de sentir imediatamente a beleza do fresco perfume de liberdade que faz rejeitar o mau cheiro do comprometimento moral [...]. O período de “torcida” a nosso favor pareceu durar pouco, pois ele logo deu lugar à irritação, à impaciência com relação ao preço que os cidadãos precisavam pagar pela luta contra a máfia: a intolerância às escoltas, às sirenes e às investigações, a intolerância que acabou por legitimar um garantismo de retorno que, por sua vez, acabou legitimando procedimentos legislativos que obstruíram muito a luta contra a máfia ou, pior, forneceram um álibi para aqueles que não queriam – muitas vezes, intencionalmente; mais vezes ainda, culposamente – mais lutar contra a máfia...” - Paolo Borsellino, relembrando Giovanni Falcone, em 25 de maio de 1992, na igreja de San Domenico em Palermo, dois meses antes de morrer assassinado na rua d’Amelio “Legalidade”. “Moderamos os tons!”

- ElleKappa

“Uma vez, um juiz julgou quem havia ditado as leis. Primeiro mudaram o juiz. E logo depois, as leis.” - Fabrizio De André


Prรณlogo


Segunda-feira, 17 de fevereiro de 1992, 17h30min. Luca Magni, um empresário de 32 anos, comparece na Via Marostica 8, em Milão, no escritório de Mario Chiesa, presidente do Pio Albergo Trivulzio, histórica casa de repouso para idosos fundada no século 18. Magni é dono de uma pequena empresa de limpezas, a ILPI, de Monza, que trabalha também para o Trivulzio. Chiesa é um representante do Partido Socialista Italiano e não esconde suas ambições políticas: sonha em se tornar prefeito de Milão em um futuro próximo. Magni é recebido após meia hora de espera. Ele deve entregar quatorze milhões de liras a Chiesa, valor da propina negociada por um contrato de 140 milhões de liras.* Carrega uma caneta transmissora no bolso do casaco e segura uma maleta com uma câmera escondida. “Para dizer a verdade”, recorda Magni, “eu tinha muito medo, estava muito nervoso. O engenheiro Chiesa estava ao telefone, e tive de esperar dez minutos em pé até que ele concluísse a ligação. Então, dei-lhe um envelope que continha sete milhões de liras. Disse a ele que ainda não tinha os outros sete”. Chiesa não reage. Apenas pergunta: “Quando você trará o resto?”. “Na próxima semana”, responde o agitado Magni. Depois, despede-se e, ao sair, quase esbarra com um policial à paisana. Enquanto o empresário telefona para casa (“Para tranquilizar minha mãe e minha irmã, que sabiam da operação e estavam preocupadas comigo”), um pequeno grupo de investigadores cerca o presidente do Trivulzio, que entende ter sido vítima de uma armadilha. “Esse dinheiro é meu”, arrisca. “Não, engenheiro, esse dinheiro é nosso”, respondem os homens fardados. Em seguida, Chiesa pede para ir ao banheiro e livra-se de uma propina de 37 milhões recebida um pouco antes, jogando as notas no vaso sanitário. Depois, é preso e levado para o presídio de San Vittore. A operação foi cuidadosamente preparada. As provas são incontestáveis: uma em cada dez notas foi assinada pelo capitão dos Carabinieri,** Roberto Zuliani, e pelo procurador substituto Antonio Di Pietro. A empresa de Magni, que se ocupa de tratamentos hospitalares especiais, trabalha para o Trivulzio há alguns anos. Em 1990, com os primeiros contratos consistentes, vieram também as primeiras *  A lira foi a moeda oficial italiana até janeiro de 1999 e deixou de ser uma moeda de curso legal em fevereiro de 2002, quando sua taxa de conversão era de 1.936,27 liras para cada euro. (NRT) **  Os Carabinieri são uma das forças públicas de segurança da república italiana. (NRT)


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solicitações de dinheiro. Magni relata: “Chiesa pediu-me o dinheiro com poucas palavras secas, como de costume: ‘Você deve pagar-me 10%.’” O empreendedor levou cerca de quarenta milhões a Chiesa em menos de dois anos, em seis ou sete remessas de dinheiro dentro de um envelope branco. “Eu não imaginava o que aconteceria depois de ir aos Carabinieri. Para mim, era um problema econômico. Dez por cento é muito, até porque, no nosso setor, não podemos recuperar a perda aumentando os preços. Além disso, Chiesa queria o dinheiro imediatamente, enquanto nós receberíamos o pagamento muitos meses depois. Era uma situação insustentável.” Então Magni pede ajuda aos Carabinieri. No dia 13 de fevereiro, telefona para o quartel milanês da Via Moscova. O capitão Zuliani marca um encontro para as 10h do dia seguinte, sexta-feira, 14. Ele escuta, registra a denúncia e a apresenta ao magistrado com quem trabalha: Di Pietro. O promotor e o oficial preparam a ação para segunda-feira: naquele dia, Di Pietro estará de plantão; então, a investigação será atribuída a ele. O encontro fica marcado para as 13h de 17 de fevereiro, no quartel da Via Moscova. Luca Magni chega no seu Mitsubishi com os sete milhões. O capitão acompanha-o imediatamente até o Palácio da Justiça: “Eu estava um pouco tenso” recorda o empresário”, pois não esperava encontrar um magistrado, mas me tranquilizei imediatamente porque Di Pietro foi muito gentil. Ele solicitou que todos saíssem da sala, deixou-me à vontade e pediu que eu lhe contasse os fatos, sem qualquer atitude inquisitória”. No quartel, as notas são rubricadas e fotocopiadas. A caneta transmissora e a câmera da maleta (que no final das contas não será muito útil) são testadas. Então, uma procissão de quatro carros, o Mitsubishi de Magni e três viaturas dos Carabinieri, parte em direção ao Pio Albergo Trivulzio (o PAT, que os milaneses chamam carinhosamente de “Baggina”, pois localiza-se na estrada que leva a Baggio). Está nascendo a operação Mãos Limpas, o começo do fim de um sistema político, mas ninguém, naquele dia, ainda poderia imaginar.



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