Mapa Teatro - perspectivas bárbaras da violência

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC - SP

Mapa Teatro perspectivas bárbaras da violência

Clara Barzaghi de Laurentiis Mestrado em Psicologia Clínica

São Paulo 2019



Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC - SP

Mapa Teatro perspectivas bárbaras da violência

Clara Barzaghi de Laurentiis Mestrado em Psicologia Clínica

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Psicologia Clínica, sob a orientação do Prof. Dr. Peter Pál Pelbart.



Banca examinadora



Agradecimentos Ao Peter Pál Pelbart, orientador atencioso, cuja combinação de rigor e leveza me permitiu traçar percursos estranhos e heterogêneos sem perder totalmente o fio da meada, por sua sensibilidade discreta e aguçada que ajuda a encontrar intercessores numa existência a n-1. À Christine Greiner, pela generosidade de aceitar participar da banca. Ao Laymert Garcia dos Santos por sua leitura crítica e provocativa na qualificação e por ter aceitado repetir a dose. Ao Jonnefer Barbosa, por receber o convite com entusiasmo. Ao Rafael Urano, pelo encontro singular na Arquitetura e por suas leituras deste trabalho que me desestabilizaram e incentivaram. À Vera Pallamin, por sua contribuição generosa não apenas na qualificação, mas em toda minha vida acadêmica. À Mônica, do programa de pós graduação em Psicologia Clínica da PUCSP, pela paciência ao me ajudar com a burocracia. À Heidi Abderhalden, que me lembrou que a História oficial já está contada, por sua intensidade acolhedora e intempestiva. Ao Rolf Abderhalden, que me deu muitas das pistas para traçar esta cartografia, por sua delicadeza e seu olhar arguto. À Ximena Vargas, por toda ajuda e carinho ao longo do processo. Ao Juane Díaz, por me chamar a atenção para a importância dos sons nas obras do Mapa Teatro. Ao José Ignácio Rincón, por sua presença cativante. À Laura Wiesner, por me ajudar a me situar em Bogotá quando a pesquisa ainda engatinhava, e por me levar à Barranquilla. Às pessoas com quem tive o prazer de conviver ao acompanhar o trabalho do Mapa Teatro: el gran Miche Molina, Liz, Agnes, Andrés, Julián, Santiago e Jeff. Ao Ricardo Muniz, pelos delírios compartilhados. Ao Érico Peretta, à Marina Matheus, à Joana Ferraz e à Letícia Kamada, pelo trabalho junto. À Marina, minha irmã, sem quem eu não saberia respirar, por ser a pessoa mais ética que eu já conheci. Pelo cuidadoso trabalho de revisão do texto, crucial para me ajudar a definir o peso de certas palavras. À Laura, que aparece no texto como mamãe, por ser culpada, sim, por tudo que me livrou de uma vida de merda. À Thaisa Burani, por suas leituras e pelas parcerias por vir. 6

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À Thais Marcussi, pela amizade que nos acompanha conforme nos transformamos. À Giovanna Saquietti, por aquela primeira cerveja e por todos os encontros e desencontros que vieram e virão. À Gabriela, que desde cedo me ajudou a ser América Latina. À Vânia Lúcia, por todo carinho e desvario que me ajudaram a criar um território, sem o qual eu não teria conseguido escrever. Ao Acácio Augusto, pela parceria que se reinventa. À Bianca Dunder, pelo bom encontro e pela generosidade. Àqueles que contribuiram com seus olhares em diferentes momentos de angústia e inquietação: Isabela Sanches, Maurício Pellegrini, Paula Morillas, Beatriz Cyrineo, Guilherme Pianca e Fábio Arevalo. Ao Pedro Taam, por me lembrar que a vida é mais que meus sujos segredinhos familiares. Ao Guilherme Ponce, por ser meu AT quando o meu mundo cambaleia. À Karina Acosta, por sua sensibilidade e escuta singulares. Ao Candido, por sua curiosidade surpreendente, sua leitura rigorosa e seus comentários precisos. Ao Tchutchu, ao Beto e à Ilana por serem, cada um à sua maneira, aqueles para quem eu pediria ajuda. Ao Strausser e ao Ivan, que vieram de brinde. Ao Otávio Coelho, ao Danilo Hideki, à Juliana Knobel, ao Ruy Luduvice, ao Gabriel Marchi... porque não me deixam esquecer que a alegria segue sendo a prova dos nove. Ao Rodrigo, por ter me dado espaço para construir um território inédito onde me permito habitar o silêncio. À Suely Rolnik, pela cumplicidade que me ajudou a atravessar o Aqueronte inúmeras vezes para inventar uma escrita crocodilo. Ao Fernão, por não se contentar em ser sempre meu porto seguro, mas por tê-lo sido nos momentos críticos da escrita. Mais do que isso, por não querer impedir que eu seja lançada em alto mar, mas deixar comigo a corda que pode me trazer de volta se eu estiver me afogando. Ao Gil (Churros) e ao Vanessa, pela companhia nas madrugadas de trabalho, que os tornou as maiores testemunhas de todo o processo.




Resumo LAURENTIIS, Clara B.. Mapa Teatro: perspectivas bárbaras da violência. Dissertação. Programa de pós-graduação em psicologia clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2019. O laboratório de artistas Mapa Teatro, ao optar por fazer uma Anatomia da violência na Colômbia, abandona a univocidade de documentos históricos, para combiná-los com verdades inventadas ou mentiras sinceras e criar etnoficções, suscitando perspectivas que não correspondem à narrativa dominante da História. Tendo como referencial teórico a noção de etnoficção, termo cunhado pelo antropólogocineasta Jean Rouch, esta dissertação analisa algumas das obras do Mapa Teatro que articulam documentos históricos e ficção para olharem criticamente determinados contextos. É apresentada, aqui, uma cartografia do percurso traçado pelo grupo, cuja abordagem abandona o discurso unívoco que costuma qualificar a violência ou delegar seu monopólio legítimo ao Estado. Ao admitir múltiplos pontos de vista, que se manifestam na produção do Mapa Teatro, esta dissertação apresenta perspectivas que se deslocam da codificação teórica estatal da violência, possibilitando análises não moralistas ou morais das variadas formas sob as quais a violência se distribui pelo corpo social. Tal aproximação considera as diferentes maneiras como o grupo trabalha a violência enquanto matéria-prima, entendendo-as como atitudes crítica e esteticamente orientadas. Palavras-chave: etnoficção; violência; artes vivas; teatro



Abstract LAURENTIIS, Clara B.. Mapa Teatro: perspectivas bárbaras da violência. Dissertação. Programa de pós-graduação em psicologia clínica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2019. When Mapa Teatro laboratory of artists chooses to develop an Anatomy of violence in Colombia, the group abandons the univocality of historical documents to combine them with fake truths or sincere lies, in order to create ethnofictions which raise perspectives that do not correspond to History’s dominant narrative. This dissertation has as theoretical reference the notion of ethnofiction, term coined by the antropologue and filmmaker Jean Rouch, and seaks to analyze some of Mapa Teatro’s works that articulate historical documents and fiction to look critically towards certain contexts. I present a cartography of the course mapped out by the group, whose approach abandons the univocal discourse that usually describes violence or delegates its legitimate monopoly to the State. By admitting multiple points of view, which are manifested in the production of Mapa Teatro, this dissertation presents perspectives that move from State's theoric codification of violence, allowing for non-moral or moral analysis of the various forms under which violence is distributed by the social body. Such an approach considers the different ways the group works violence as raw material, understanding them as critical and aesthetically oriented attitudes. Keywords: ethnofiction; violence; living arts; theater



Introdução e sumário As páginas que seguem compõem algo próximo a um diário de bordo, criado na relação com o laboratório de artistas Mapa Teatro e sua produção. O Mapa Teatro foi fundado em Paris, em 1984, pelos irmãos Heidi, Elizabeth e Rolf Abderhalden, artistas colombianos de origem suíça, com o objetivo de ser um laboratório de artistas dedicado à criação transdisciplinar. Atribuem a Julio Cortázar papel importante na concretização do grupo (Abderhalden, 2014). Com a notícia da morte do autor argentino, em 12 de fevereiro de 1984, Rolf e Heidi Abderhalden se comprometeram a encenar o conto Casa Tomada, que traz um duo de irmãos acuados em sua própria casa por ruídos que, gradativamente, invadem os cômodos da residência. Em 1986, Rolf desembarcou em Bogotá, onde Heidi o alcançaria um ano mais tarde para as apresentações de Casa Tomada, no Teatro de la Candelaria, fundado em 1966 por um grupo de artistas de teatro experimental. O primeiro processo criativo do grupo em território latinoamericano foi iniciado em 1988, a partir da obra de Samuel Beckett, autor que influencia ainda hoje a “cartografia ética e estética do Mapa Teatro” (Abderhalden, 2014: 95). O resultado desse processo, que durou dois anos, foi o poema cênico-visual-sonoro De Mortibus: réquiem para Samuel Beckett. Desde então, vivem na capital colombiana, onde passaram a investigar processos de experimentação artística “que se desenvolvem em distintos âmbitos e cenários da realidade colombiana” (Mapa Teatro, s/d: web). Aqui, não há o menor interesse em fazer análises formais ou escrever críticas que estejam contidas somente no campo da arte. Não é um trabalho sobre arte, cuja intenção residiria na interpretação e categorização das obras. O esforço consiste em uma aproximação às formas como a produção do grupo cria sensações que instauram um plano de composição e o extrapolam à medida que encadeiam outros conjuntos de sensações e pensamentos. Trata-se de uma tentativa de encontrar palavras que falem do mundo que se apresenta à medida em que passo a fazer parte da composição. Uma tradução do mapa de sensações e pensamentos que tracei ao percorrer a poética do Mapa Teatro, ou seja, dos termos que se estabeleceram em meu encontro com o grupo. Tentativa de traduzir um mundo possível.

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De certa maneira, me propus a cartografar inquietações suscitadas pela produção do grupo. “Numa cartografia, podese apenas marcar caminhos e movimentos” (Deleuze, 2010: 48), ensaiar dizer e fazer ver uma análise dos espaços, das linhas, dos devires. Cartografia de um objeto que é também sujeito de criação, ou seja, busco identificar o que meu objeto constitui como relação social e aquilo que é formulável nos termos de uma relação entre mim e o Mapa Teatro. O procedimento utilizado aqui é influenciado por aquele operado pelo diretor do grupo, Rolf Abderhalden, ao comentar o processo de criação do qual faz parte por mais de três décadas. Nesse sentido, considero que opero acordos entre coisas e pensamentos, na tentativa de reproduzir as sensações engendradas pelos trabalhos do grupo. “É, pois, um trabalho de tradução que empreendo aqui, ou melhor, de traduções, no plural, de uma língua a outra, de uma linguagem a uma outra, de um corpo a outro, de uma forma de pensamento a outra, após os haver devorado e incorporado por todos esses anos” (Abderhalden, 2014: 21). Vale lembrar que tradução sempre pressupõe equivocação, uma vez que configura um ponto de vista. Pois bem, o que apresento é nada mais que uma perspectiva, pois é preciso “tomar partido” (Viveiros de Castro, 2002: web). Sendo assim, o texto se constrói como uma colagem, composta com elementos provenientes de três crivos de análise, a saber a montagem, a dimensão histórica e a micropolítica, “operando alianças aqui e ali conforme o caso, linhas de transformação que saltam para fora do teatro e assumem outra forma” (Deleuze; Guattari, 2010: 64). A escolha desses três crivos é fruto da relação com o trabalho do grupo, pois é nas escolhas de montagem que o Mapa Teatro opera torções no tempo histórico, criando personagens que não pertencem à versão unívoca da História sem, no entanto, deixar de lado os fatos históricos em suas obras. Um bairro desapropriado, a morte de Fidel Castro, a assinatura do Acordo de Paz na Colômbia se misturam com territórios existenciais construídos a partir de relatos, com matas de coca dançantes e com revolucionários de látex. Personagens que são existências em nome das quais o grupo advoga configuram outros, que “são mundos possíveis, aos quais as vozes conferem uma realidade sempre variável, conforme a força que elas têm, e revogável, conforme o silêncio que elas fazem” (Deleuze; Guattari, 2010: 77).


Colagem parece o termo adequado para definir o composto apresentado, pois, dentro do todo, cada texto parece autônomo e formaliza com vozes diferentes os seres que se manifestaram ao longo da pesquisa. Matas, traficantes, paramilitares, testemunhas, poetas, carrascos, vítimas... História, Verdade e memória não cessam de voltar às cenas múltiplas, para serem repensadas e recontadas, a partir de vozes que se recriam na escrita que tenta traduzir encontros e sensações. É por meio de torções da História, fabulações e testemunhos que a poética do Mapa Teatro cria um plano de composição pelo qual pude percorrer traçando diferentes linhas que se encontraram com outros planos de existência e formalizaram as palavras que seguem. Como entrar na obra do Mapa Teatro? Todas as entradas são válidas, desde que as saídas sejam múltiplas, mas como saber por onde começar? Tentei seguir à risca a primeira orientação que recebi de Peter Pelbart, que me disse para escrever “a partir da experiência singular” que eu tive com o grupo - à época ele se referia a uma residência que fiz com o Mapa Teatro no final de 2016, período que coincidiu com a morte de Fidel Castro, com a assinatura do Acordo de Paz e também com a primeira reunião em torno da criação da peça La despedida. Ora, começo falando sobre produção urbana, ponto de entrada não muito surpreendente considerando minha formação em Arquitetura e Urbanismo. Mas um olhar mais cuidadoso revelará que a desapropriação de El Cartucho e sua versão mais recente manifesta na desapropriação do Bronx, ambos bairros centrais de Bogotá, têm algo em comum com todas as outras peças comentadas aqui: a violência é o tema compartilhado pelos textos que compõem este trabalho. Os ritmos variam e as entradas possíveis em cada obra são múltiplas. Um bilhete amassado é possibilidade de entrada tal como a figura de um mega narcotraficante; o mesmo vale para uma experiência pessoal de violência ou relatos de outrém; uma mata que se torna personagem, um acordeonista que conta uma outra versão da história ou uma miss descoroada seriam entradas possíveis quid juris! “Entrar-se-á, então, por qualquer parte, nenhuma vale mais que a outra, ainda que seja um impasse, uma trincheira estreita, um sifão, etc. Procurar-se-á somente com quais outros pontos conecta-se aquele pelo qual se entra, por quais encruzilhadas e galerias se passa para conectar dois pontos, qual é o mapa do rizoma, e como

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ele se modificaria imediatamente se entrasse por um outro ponto. O princípio das entradas múltiplas impede, sozinho, a entrada do inimigo, o Significante, e as tentativas para interpretar uma obra que apenas se propõe, de fato, à experimentação” (Deleuze; Guattari, 2010: 10).

Começo e termino naquele que parece ser um mesmo ponto, mas que nunca será o mesmo. Passei, e – espero – o leitor também passará, inúmeras vezes pelos mesmos elementos, sem que eles coincidissem com o que costumavam ser. Tudo se repete e nada se repete de fato, pois a repetição dos elementos nas obras do Mapa Teatro ou neste texto não está atrelada ao curso da História, ela engloba o que existe no entremeio das atitudes, no interior do sujeito, na micropolítica. Arrastada pela circularidade que se manifesta na produção do grupo, eu mesma dou voltas e saio transformada. Traço um mapa do Mapa Teatro, que “é aberto, é conectável em todas suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente” (Deleuze; Guattari, 2011: 30). Seu traçado interessa à medida em que produz inconsciente enquanto trabalha num entre História, Verdade e memória. La despedida era a terceira peça do tríptico e acabou por ser a quarta. Bom, para começar falamos de um tríptico com quatro partes, como 2 e 2 são 5! A peça esperou o momento histórico e a assinatura do Acordo de Paz, mas é a dimensão do desejo que se destaca nas escolhas do grupo. Não há por que fazer uma peça sobre algo que ainda não está lá para ser dito. Da mesma forma, não há porque escrever sobre algo que não pediu palavras.

Também eu me tornei testemunha de um mundo que surgiu na cartografia do Mapa Teatro, traçando linhas que se cruzam para formar o material que traduzo em palavras. Nas produções do grupo, vi surgirem mundos, todos eles apresentaram diferentes olhares sobre a violência, com seus personagens e discursos. A análise aqui proposta esposa todos esses movimentos, pois “[o] desejo passa evidentemente por todas essas posições e esses estados, ou antes, segue essas linhas: o desejo não é forma, mas processo, procedimento” (Deleuze; Guattari, 2010: 18).


Insisto: não se trata de um trabalho sobre arte, o que apresento é um trabalho sobre a violência, entendida enquanto relações de força que operam, física e subjetivamente, entre os corpos individuais, coletivos e sociais. Para além de um aspecto da violência referente às relações de poder, interessam aqui, para olhar a produção do Mapa Teatro, formas como essas relações são codificadas segundo determinadas regras e normas que distribuem “esses poderes e essas relações de força num campo social dado” (Lapoujade, 2015: 79), influenciando as formas de nomear, qualificar e perceber a violência. Existe um discurso que legitima o uso da violência pelo aparelho de Estado e a renomeia justiça. Define-se, assim, o que será ou não considerado violento - será sempre o que vem de fora, o bárbaro, o outro. Frequentemente evocada pelos diretores do Mapa Teatro como referência para sua compreensão artística, a noção de etnoficção aparece nas palavras do grupo ao falar de seu trabalho, pensamento-criação, para distanciálo de certos formalismos cênicos (Abderhalden, 2014: 375). No entanto, são sempre sucintas as passagens dos Abderhalden pelo tema, e costumam resumi-lo a fórmulas simplificadas sobre a “permanente fricção entre o que é real e a ficção” (Pearson, 2017). Evocada incisivamente pelo grupo em sua produção, a noção parece operar em textos que comentam seus trabalhos sob variadas formas. Sánchez evoca uma ética do testemunho, inseparável da memória do corpo e daquela que se constrói nos relatos (Sánchez, 2016); Vignolo entrelaça história e memória, jogo, tortura, massacre, não sabe mais quem é carrasco ou vítima (Vignolo, 2015). Senra e Dos Santos (2012), torcem o tempo histórico e encontram diferença na repetição. Por outro lado, algumas miradas preferem aproximar certos procedimentos do Mapa Teatro a Brecht e um a uso supostamente revolucionário da montagem teatral (Palladini, 2018). Todavia, o termo emprestado de Jean Rouch fica restrito às declarações do grupo acerca de seus processos. Aqui optei por destacá-lo, compreendendo que fazer etnoficção não é unicamente um procedimento poético ou uma preferência estética, mas também é optar por um deslocamento de ponto de vista. O que nada tem a ver com uma inversão dicotômica, pois basta um pequeno deslocamento para que se desloque de novo e a cada vez de novo traçando uma rede que admite múltiplas ocupações de espaço-tempo. Criada por Jean Rouch, a ideia de etnoficção é frequentemente comentada ou definida em relação à

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produção do antropólogo-cineasta, que compreendia uma série de escolhas estéticas, com seus temas e procedimentos. Mas ao trazê-la para um encontro com o Mapa Teatro, o que me interessou foi o plano de pensamento traçado por Rouch ao criar suas imagens e composições, ou seja, a possibilidade de pensar etnoficção como um método que opera também como conceito que quebra o sistema de julgamento, vinculado à moral. É, portanto, um desvio da narração verídica e unívoca em direção a potências do falso que destronam a Verdade e a História, ao passo que constroem narrações falsificantes que não pressupõem territórios contínuos ou a linearidade do tempo. A partir daí, ao entrar no plano de composição instaurado pelo Mapa Teatro, um primeiro momento consiste em deixar de lado pressupostos que “bloqueiam a renovação da percepção” (Lapoujade, 2017: 48) para poder, então, encontrar outros pontos de vista que se constroem conforme personagens se manifestam. A investigação que começou colocando em cena dois irmãos encurralados em sua própria casa, multiplicou suas formas ao longo das últimas três décadas, durante as quais entrou em La Picota, prisão situada em Bogotá – onde eram internos vários sicários vinculados a Pablo Escobar –, para fazer uma versão de Horácio, de Heiner Müller; testemunhou o desaparecimento de um bairro tomado por violento, mostrando que para garantir o monopólio da violência pelo Estado as despossessões são também territoriais; presenciou uma festa de (santos) inocentes que reivindicam seu direito à violência, operando-a em um espaço-tempo que escapa ao aparelho de Estado; acompanhou o curso da História para destruir os limites de sua linha narrativa e trazer à tona múltiplos e animados pontos de vista que permitem repensar os discursos que justificam a violência dos aparelhos de poder e do Estado. O trabalho apresentado aqui acompanha esses movimentos e traça um mapa, cujo relevo crítico-clínico oferece imagens e pensamentos que acompanham o Mapa Teatro em seus percursos, encontrando outras abordagens que escapam à grade de codificação e descodificação do que se costuma entender como violência e suas implicações subjetivas, bem como de suas manifestações macropolíticas.


Certa vez Júlio Cortázar disse que citar é citar-se. Citando-o, então, me dou ao direito de roubar algo de seu procedimento ao apresentar a ordenação de Rayuela (Cortázar, 2007), pressupondo ao menos dois livros: mantive os textos que compõem esta dissertação na ordem correspondente à qual foram escritos, mas poderiam ser lidos pela ordem cronológica de criação das obras, portanto a deixo indicada no índice que segue. A única exceção é esta introdução, à qual cabe a árdua função de justificar a existência de cada linha que segue (e meus fantasmas garantem que é empreendimento quixotesco). A opção em manter a sequência original é justificada pelo fato de que a escrita foi orientada não apenas pelo calendário gregoriano, mas principalmente pelo desejo. O mesmo se passa com a própria produção do Mapa Teatro, que se propôs a fazer um tríptico, cuja terceira parte foi a quarta a ser desenvolvida na cronologia da Anatomia da violência da Colômbia. A seguir, apresento textos convocados por um encontro. Cada um, à sua maneira e levando em conta os três crivos estabelecidos, se desenrola do seu próprio modo e existe por si só. Todos compartilham um espectro de pensamento, no qual se inscrevem leituras que visam a uma analítica não dicotômica, tampouco moralista, da violência. Na esteira de Cortázar, indico duas maneiras de se ler o conjunto, ainda que o leitor possa preferir escolher uma terceira, quarta, quinta... Nada o impede de começar pelo meio, ou mesmo - o que alguns aconselham sobre qualquer livro - pela conclusão. Dito isso, boa viagem...

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Lado A

Lado B

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Encontros com a violência

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Tentativa de contar o não contado

48

Pronto viviremos un mundo mucho mejor

74

Etnoficções, fabulações e equívocos

112

Em cierta ciudad muy lejana...

132

Testemunhar a violência

152

Conexões parciais

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Bibliografia + Anexos

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Encontros com a violência

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Testemunhar a violência

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Em cierta ciudad muy lejana...

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Etnoficções, fabulações e equívocos

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Tentativa de contar o não contado

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Pronto viviremos un mundo mucho mejor

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Conexões parciais

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Bibliografia + Anexos

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Encontros com a violência: divagações entre a experimentação, a memória e o real. 1 Personagem de Esperando Godot, de Samuel Beckett.

Em meio às polêmicas em torno do Acordo de Paz, sentada em um café, me ocupo de tentar estender e acelerar o tempo, quando começam a ecoar gritos, vindos de um ponto que não se vê bem na noite que chegou fria. Surgem homens corpulentos e engravatados, que perseguem uma criança sem camisa e a atiram em direção a uma vitrine. Perco o ar enquanto a aglomeração saca seus smartphones e aponta para o moleque. Mais gravatas e camisas brancas se inserem na cena em meio a socos que deixariam Pozzo1 com inveja. “Sem dúvida sou pouco humano”, diz este, enquanto aqueles hão de bater no peito se orgulhando de serem cidadãos, sentarão em suas salas de jantar e comerão coxas de frangos vorazmente, chupando as ossadas deliciados. A Colômbia é um país violento, generalizam. Ouve-se falar da violência das guerrilhas, dos paramilitares, dos moradores de rua, mas não haviam me dito nada sobre linchamentos. O cidadão-polícia que aparece num piscar de olhos para executar o que qualifica como justiça em seu espectro moral. Quer dizer que a produção institucionalizada da violência expande seus limites incessantemente, se embrenhando nos corpos, compondo possíveis grupos de linchadores? O que há de tão humano nessas pessoas? São os mesmos que arrastam um cavalo com as pernas quebradas pelo asfalto quente, forçando-o a se levantar, quando este já não pode. Imagem abominável que volta a me assombrar frequentemente, mesmo tantos anos depois. O sangue da criança-cavalo espalhado pelo vidro emana frio como a noite e enche meu pulmão, que se tornou pedra, enquanto tento levantar cambaleando em direção a qualquer lugar onde encontre o silêncio, a ausência de outro, podendo, então, duvidar da existência. A tentativa de traduzir em texto uma experiência é, em si, outra experiência que se abre para percursos pelos quais o corpo hesita transitar. Não consiste em falar sobre uma experiência, mas em experimentar um outro estado que permita dar voz a algo que já existe e, no entanto, ainda não é. Uma tentativa de acessar pontos da memória que se atualizam conforme as palavras se formam, criando maneiras de elaborar o que parece indizível. O intolerável do linchamento permanece no corpo e inunda as lembranças das ruas do centro de Bogotá, pelas quais vaga uma grande quantidade de gente desde a desapropriação do Bronx, uma favela da região, em junho

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de 2016. À época, foi declarado estado de sítio e, como consequência da operação policial de desapropriação, as ruas foram tomadas por mendigos e zumbis que buscavam, no lixo espalhado pelas vias, uma refeição para compartilhar com seus cachorros vira-latas, impressionantemente gordos. O cenário, algum tempo depois, não mudou tanto, ainda que a quantidade de indigentes pareça menor. O que mais chama a atenção é a ausência da atmosfera alarmista que se instaurou logo após a desapropriação. As coisas voltaram ao normal. Sabe-se lá para onde foram as pessoas removidas de suas casas; alguns foram “reabilitados”, dizem os jornais no marco dos seis meses da operação policial. E completam, se referindo àqueles que não abriram os braços para a chamada reinserção social: “a atividade delinquente fere os direitos humanos” (Lo que viene..., 2016: web). Frente ao desalojamento forçado, ou se aceita ajuda do Estado, ou se entra para a estatística como delinquente, parte dos “titulares privilegiados e exclusivos dos comportamentos ilegais. Pessoas rejeitadas, desprezadas e temidas por todo mundo” (Foucault, 2006: 47).


A pretensa solução vem com o já tradicional nome de Renovação Urbana, tentativa de reinvestimento financeiro na região que busca impulsionar a transformação da população que lá reside, na pretensão de dar “uma nova cara ao setor” (Lo que viene..., 2016: web). Em algum tempo, o lugar será lembrado por ter sido um antigo ponto do narcotráfico, com sua violência e seus horrores, e será apagada a memória das pessoas que viviam ali. Não é de hoje, nem de ontem, que muitos setores de centros urbanos passam por processos semelhantes, ainda que, muitas vezes, estes se apresentem nas roupagens mais palatáveis do assistencialismo ou da Cultura. “Vamos dar vida à cidade e trazer as pessoas de volta às ruas!”, celebram jovensvelhos artistas e políticos, ignorando – por egocentrismo ou má fé? – que as ruas nunca deixaram de estar ocupadas por aqueles que tendem a ser desaparecidos. E, tijolo após tijolo, memórias vivas de bairros inteiros são demolidas. Apaga-se a memória inscrita nos corpos, transformando-a em dados para estatística, em deslocamentos forçados, em histórias oficiais sobre bairros violentos e mal frequentados. Em Bogotá, isso não é novidade. Anos antes, na virada do século, um antigo “bairro de delinquentes” foi feito tabula rasa para dar origem ao Parque Tercer Milenio, projeto que encarnava certa esperança quixotesca de reivindicar a capital colombiana como a Atenas sul-americana. Seja como for, como resultado de um único projeto megalomaníaco, 600 prédios foram demolidos no terreno de 16,5 hectares que abrigava o bairro Santa Inés – ou El Cartucho, como era conhecido pelas ruas. Antigos moradores explicam que “o que chamavam de Cartucho é ali na onze com a décima. Esse é o tal Cartucho, mas o Cartucho é o bairro Santa Inés, é um bairro, foi um bairro, o Cartucho está no pé da 11 em San Vitorino” (Mapa Teatro, 2001). Não tanto um lugar com delimitações físicas, mas demarcado pelo espectro da violência que paira pelas ruas nas mãos de delinquentes – segundo os discursos oficiais, claro. Discursos esses que se embrenharam no imaginário dos moradores da cidade, tornando-se motivo de medo e fantasia, “um sítio específico do medo – o centro de temor – da cidade” (Abderhalden, s/d: web). E os discursos extraoficiais? A quem importam? Busco por eles nos arquivos do Mapa Teatro, grupo que trabalhou, por cerca de meia década, no sítio onde costumava ser El Cartucho, acompanhando sua destruição, bem como a construção do Parque Tercer Milenio.

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Em meio a pilhas de relatos transcritos de gravações, aos poucos se esboça uma população que se distingue daquela pintada pelos relatos homogêneos da televisão ou da publicidade do Estado. Não que se negue a presença do consumo e do tráfico de drogas na região; no entanto, a paisagem que se constrói é menos bicolor, preto no branco, do que pregam os discursos oficiais. Recicladores, pequenos comerciantes, migrantes de outras partes da Colômbia que chegaram ao bairro fugindo da fome ou da violência, famílias, pessoas sozinhas, prostitutas e comerciantes informais, entre outros, compunham o grupo heterogêneo que habitava o bairro. Nos relatos, isso fica claro e aparecem nuances inesperadas, somadas a recordações afetivas de ruas, cruzamentos, edifícios, em suma, de tudo o que viria a ser destruído. E foi justamente a partir de relatos que o Mapa Teatro, junto a uma equipe transdisciplinar, optou por trabalhar com a temática da desapropriação seguida de Renovação Urbana. O projeto C’úndua, como ficou conhecido, se desdobrou em diversas ações que se relacionam, de forma a não se resumir apenas a gestos poéticos pontuais, mas também ao arquivo que se construiu ao redor da experiência de artistas, antropólogos, arquitetos, geógrafos e antigos moradores do bairro. Quando chegaram ao bairro pela primeira vez, em 2001, o projeto urbano já estava em andamento e o cenário era de uma paisagem urbana em vias de ser devastada. Simultaneamente, avançavam as obras da primeira fase de construção do parque e a compra dos imóveis restantes para demolição. Em um relato sobre o projeto, Rolf Abderhalden, co-fundador e diretor do Mapa Teatro, conta sobre a “demolidora” sensação ao visitar, junto à equipe do Mapa, o bairro que se transformava em canteiro de obras:


“A imagem aterradora da demolição das casas desalojadas despertou imediatamente em nós o impulso de querer deter o tempo e de não deixar se apagarem as marcas tangíveis da história. O patrimônio arquitetônico da cidade colapsava frente aos olhos de seus moradores e aos nossos” (Abderhalden, s/d: web).

Se corpo e espaço se articulam de maneira inseparável, há de se levar em conta que construções – ou demolições – de qualquer natureza despertam questões subjetivas, impulsos que podem ser cognitivos, bem como afetivos. Para além da memória arquitetônica, eram demolidas a memória social da cidade e a memória viva dos moradores retirados de suas casas. Esta última talvez seja, em um primeiro momento, mais facilmente acessada a partir da oralidade, que recria imagens e narrativas sem suprimir o corpo de quem fala. Afinal, “a memória viva depende sempre da memória dos corpos. Os inimigos da memória são os mesmos que atentaram e atentam contra os corpos” (Sánchez, 2016: 315). A partir dos relatos é possível produzir uma memória de corpos afetados pela experiência da vida no bairro, bem como pela experiência de sua demolição.

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Em Prometeo 1o e 2o atos, ações que compõem o projeto Cúndua, os artistas optaram por trabalhar com a versão de Heiner Müller do mito de Prometeu, a partir da qual os moradores de El Cartucho reconstruíam suas próprias memórias. Ao ser libertado, Prometeu já não se distinguia das correntes que o prendiam, tampouco da pedra. Pertencia a sua prisão, era ele mesmo sua prisão. Temia mais a liberdade do que a águia, pois sua existência não se separava mais da existência do pássaro. "Prometeu entregou o raio aos homens, mas não os ensinou a utilizá-lo contra os deuses [...]. Por causa desse ato, ou melhor, por causa dessa omissão, foi atado a mando dos deuses ao Cáucaso, por Hefestos, o ferreiro. Ali, uma águia com cabeça de cão devorava diariamente seu fígado, que sempre se regenerava. A águia, que o tomava como um pedaço da rocha, capaz de movimentos parciais e de emitir um canto dissonante, sobretudo quando era comido, também defecava sobre ele. O excremento era seu alimento. Ele o devolvia, transformado em seu próprio excremento, sobre a pedra abaixo, de forma que quando Hércules, seu libertador, escalou depois de três mil anos a montanha vazia de homens, foi capaz de localizar o cativo desde muito longe, todo branco e brilhante de excremento de pássaro. Porém, repelido continuamente pelo muro de hediondez, deu a volta na montanha por mais três mil anos, enquanto a águia com cabeça de cão seguia se alimentando do fígado do prisioneiro e alimentando-o com seu excremento, de tal forma que a hediondez aumentava à medida em que o libertador se acostumava. Ao fim, favorecido por uma chuva que durou quinhentos anos, Hercules pôde chegar à distância de um tiro, tapando o nariz com a mão. Três vezes errou [...]. A terceira flecha feriu levemente o prisioneiro em seu pé direito. A quarta matou a águia. Segundo dizem, Prometeu chorou ruidosamente pelo pássaro, seu único companheiro por três mil anos, seu sustento e seu alimento por duas vezes três mil anos. ‘O que vou comer? suas flechas?! [...] ‘Coma a águia’, disse Hércules. Mas Prometeu não podia compreender o sentido de suas palavras. Ademais, sabia muito bem que a águia era seu último laço com os deuses [...].


Mais agitado que nunca em suas correntes, ultrajou seu libertador, chamando-o de assassino [...]. Hercules se contorcia de asco, mas buscava os grilhões que atavam o enfurecido a sua prisão. O tempo, as intempéries e o excremento haviam impossibilitado distinguir carne e metal e ambos de distinguir da pedra. Afrouxados pelos movimentos mais violentos do prisioneiro, puderam se diferenciar. Pôde-se ver que estavam devorados pelo óxido. [...] Prometeu poderia ter facilmente libertado a si mesmo, se não tivesse medo da águia, estava sem arma e esgotado por milênios. Que tenha tido mais medo da liberdade do que do pássaro, é o que demonstra seu comportamento durante a libertação. Gritando e cuspindo defendeu com unhas e dentes seus grilhões contra seu libertador. Libertado, de gatinhas, uivava de agonia por ter que mover seus membros adormecidos, clamando por seu lugar tranquilo na pedra, debaixo da asa da águia [...]. Hércules teve que carregá-lo sobre os ombros para obrigalo a deixar a montanha. Três mil anos durou a descida para a humanidade. Enquanto os deuses arrancavam a montanha de sua base, a descida mais parecia uma queda, em meio a um turbilhão de pedras [...]. Agarrado ao pescoço de seu libertador, Prometeu o indicava em voz baixa a direção dos projéteis, assim puderam evitar quase todos. No meio tempo, gritava aos céus [...] afirmando ser inocente de sua libertação. Prosseguiu o suicídio dos deuses. Um após o outro, se jogaram de seu céu sobre Hércules e se destroçaram contra os escombros. Prometeu retomou um lugar sobre os ombros de seu libertador e assumiu a postura do vencedor que, montando um burro empapado em suor, avança em meio aos aplausos da população." (Müller apud Mapa Teatro, 2001)

E se fizermos uma viagem do pensamento na qual somos nossa própria versão de Prometeu, ou da pedra, ou das correntes, ou da águia, ou, então, de todos simultaneamente? Quais mundos seriam possíveis, ainda que no mundo atual não os vejamos mais do que como parte de um antigo mito? Como o mito pode, enfim, funcionar como potencializador e transformador de relatos? Ora, são respostas que não estão dadas, mas que se constroem na medida em que deparamos com as questões.

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É em uma atmosfera de incertezas e percursos indefinidos que o Mapa Teatro propõe a um grupo de moradores de El Cartucho ao que trabalhem com o texto de Müller. Por um ano, realizaram um laboratório do imaginário social, noção trabalhada pelo próprio Müller, no qual sua versão de Prometeu se tornou um objeto que era incessantemente modificado, transformando-se na versão pessoal do mito de cada um dos participantes. Por fim, os gestos poéticos que sugiram ao longo do laboratório foram apresentados em uma noite de dezembro de 2002, no bairro semidestruído (Abderhalden, s/d). No entanto, o mito revisitado não se esgotou e, um ano mais tarde, o segundo ato de Prometeo foi apresentado, no bairro cada vez mais virado em ruínas. O resultado desses dois primeiros anos da experiência é comovente. Lidando com a burocracia do Estado, tentando encontrar formas de não serem transformados em artistas redentores ou assistencialistas, o grupo, junto à comunidade experimental que se formou, inventou maneiras de fazer ser vista a desaparição forçada dos moradores do centro da cidade.


A luz que entra pelas grandes janelas do casarão, sede do Mapa há mais de uma década, ilumina o fogo das milhares de velas que aparecem nas fotografias de um lugar que conheci quando já não mais existia. Às imagens, somam-se ecos de textos e conversas sobre Prometeo que, em coro com as chamas, cintilam pontos nodais de uma rede pela qual embrenho uma narrativa. Na noite do bairro demolido, as chamas das velas reconstituem caminhos e limites de residências de antigos habitantes. Partindo de suas experiências, esses moradores optavam por reconstruir um dos cômodos de sua antiga casa e resgatar objetos pertencentes a esse lugar, para poderem ocupar, por uma noite, um novo e breve espaço que se construiu. As pequenas ações, individuais e coletivas, que se desenvolveram ao longo da noite, contrastavam com a grandeza das telas, nas quais era projetado em vídeo o que havia acontecido na vida dos moradores e do bairro, ao longo de um ano. Por fim, as ruínas de Santa Inés/El Cartucho se tornam palco para uma multidão que dança ao som de um bolero, como um lampejo de vida que se alastra pela destruição.

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2 Essa definição do Absurdo me foi dada por Camus, em O mito de Sísifo. Roubada de Camus, revolta é, aqui, entendida como o intempestivo. Se atualiza e se transforma a cada instante e é, antes de uma perspectiva voltada ao futuro, uma relação de si para consigo, uma tomada de consciência que se afirma como postura ética, intimamente vinculada à liberdade. É antes um exercício desindividualizante situado no presente, do que a busca de uma promessa de futuro... revoltar-se...voltar a si mesmo.

Se estamos acorrentados a um modo de existência condicionado pelos modos de produção, seria possível pensar em romper a corrente? Ou, como Prometeu, frente à libertação, preferimos (e somos) nosso algoz? O que existe nesse espaço de uma noite sobre ruínas que escapa a esse modo de produção? Reconstrói-se parte do bairro, mas nesse gesto o que se constrói é outro lugar. E o povo deslocado se torna um povo que volta e que, por um tempo que talvez não caiba em um relógio, permanece. Não ouso querer dizer o que os participantes desse gesto poético sentiram; se o retorno ao bairro causou aos antigos moradores o impacto que eu gostaria de imaginar; se compartilham de minha emoção diante de um bolero sobre ruínas; se buscavam uma maneira de se despedir do passado ou de olhar para o futuro; se pretendiam resgatar e construir memórias individuais e coletivas. Não seria possível pensar pelo outro, ou como o outro. Posso, apenas, pensar em relação ao outro, ou desde minha relação com esse outro. O bolero soa como um respiro diante da violência brutal que se faz visível à medida que o fogo ilumina o enorme canteiro de obras. A sensação do absurdo, a revolta da carne2 frente à produção do espaço e dos corpos nas grandes cidades aos poucos abrem caminhos para a criação de um outro espaço, talvez interno, no qual as relações que se estabelecem formam a materialidade que constitui a memória do bairro. Pontos de presença viva que se expandem, formando uma superfície de permanência. Instaura-se um mundo memória, que extrapola os limites físicos do lugar e chega ao casarão que abriga o Mapa Teatro, invadindo seu interior com marcas das existências de El Cartucho, ocupando seu exterior com projeções da demolição, formalizando a intervenção Re-corridos (2003).


3 Frase conscientemente, e sem pudores, roubada de Kafka. “É esse o ponto que deve ser alcançado”, conclui o autor.

Caminho pela casa vazia tentando voltar à terra firme depois de um mergulho no arquivo, procurando ecos de alguma existência. Engasgo com as sensações que não sabem ao certo onde se posicionar na rede narrativa criada ao meu redor. O barulho da rua cria o silêncio que me leva a uma fresta no piso de madeira quente, que após instantes – ou séculos – começa a rachar, me devolvendo ao mundo do qual acabei de sair. A partir de certo ponto, não há mais retorno3. A casa é tomada por objetos, sons, vídeos e imagens que a transformam em muitas das casas do bairro destruído. No pátio central da sede do Mapa, pedaços dos escombros da última casa de El Cartucho são iluminados por uma grande tela que mostra sua destruição. O contraponto é feito por uma segunda tela que arrisca inverter o curso do vídeo, reconstruindo a casa. Televisões e rádios espalhados pelo espaço não transmitem o discurso homogêneo ao qual estamos habituados, mas relatos dos antigos moradores de Santa Inés. Um a um, os ambientes da enorme casa se tornam portas de entrada para esse mundo memória, que escapa à história oficial e apresenta múltiplos pontos de vista que (re)constituem a história afetiva de Santa Inés/El Cartucho.

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4 Sobre o uso do termo “capitalístico”, ver: Guattari; Rolnik. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis-RJ: Vozes, 2011.

E por que não deixar a memória invadir o museu? Essa temida sala branca e sem vida que despotencializa as obras de arte, alvo de ódio e desprezo por parte de muitos novos artistas. Ou, no lugar do cubo branco, novos projetos, com formas extraordinárias, de arquitetos de grife que auxiliam no aumento do valor do metro quadrado e valorizam bairros inteiros. Afinal, no lugar de um parque, El Cartucho poderia ter se tornado um museu para ineditíssimas obras contemporâneas de artistas emergentes, misturadas com grandes nomes da arte. Bom, não é de se espantar que o mercado de Arte esteja inscrito no modo de produção que norteia nossa existência capitalística4. No entanto, há de se encontrar táticas para respirar, para se embrenhar pelas temidas garras do mercado, para, talvez, conseguirmos corporificar um conjunto de sensações que vislumbrem – inventam? – novos modos de existir. Então, vejo o Mapa Teatro inserindo no museu seu arquivo, mas um arquivo que não se contenta em representar a história, mas sim em apresentar dispositivos para reconstituição, ou criação, de memórias. Trazendo para dentro do museu as imagens do bairro demolido. O que os diferencia dos artistas-ativistas? Não há o tom de denúncia dos artistas-redentores que representam a miséria e carregam uma necessidade narcísica de elucidar a sociedade ou de “portar a voz” dos oprimidos. Articulando movimentos que se aproximam mais da ideia de desvio do que de uma prática de denúncia, o grupo Mapa Teatro ativa impulsos sensíveis que desencadeiam pensamentos críticos frente a produção dos espaços e dos corpos. Um dos trabalhos de Hércules, salvador de Prometeu, nomeia uma das ações do projeto do Mapa Teatro. Ah, Hércules! O que fazemos com a liberdade? Por que ousou salvar Prometeu, que já não saberia ser salvo? Apenas fez com que este entrasse em tuas costas diretamente para o mundo, ao som da admiração do público, quando todos os deuses já estão mortos. Ora, nem sempre precisamos entrar em cena montados em alguém. Ou sempre vamos nos apaixonar pelo poder? Digressões que talvez levem a lugar nenhum.


La limpieza de los establos de Augías (2004) consistiu em uma videoinstalação que relacionava dois lugares da cidade em tempo real: o lote onde estava sendo construído o Parque Tercer Milenio e o Museu de Arte Moderna de Bogotá. Esse enlace foi construído a partir da elaboração da transmissão de dois distintos espaços e tempos: “um memória do passado (o testemunho do último dia na última casa do bairro) e outro do presente, o registro cotidiano da construção de um parque sobre as ruínas do bairro” (Mapa Teatro, s/d: web).

O mundo-memória do bairro invade o museu, tempo e espaço se entrelaçam e exalam o odor dos estábulos que costumamos varrer para debaixo de nós mesmos, enquanto mostra a construção do parque que tem por nome uma promessa de tempo que já é passado, mas almeja ser futuro. Sei que este último morreu com a utopia moderna, que continua viva em alguns desavisados, capengando, mas viva. Há, ainda, quem chore a morte de um ditador. Então, o Futuro ainda está vivo? Há esperança? “Há esperança infinita, mas não para nós”, respondeu Kafka, se referindo a um tempo no qual não havia a promessa apocalíptica do fim do mundo por autodestruição a cada instante e no qual, simultaneamente, essa mesma promessa não nos condicionava e nos controlava. A fim de nos salvar da crise planetária, nos vemos assujeitados a condutas ecológicas, sustentáveis, enquanto continuamos construindo cubos sobre cubos que formam habitações sociais de baixa ou média renda, dependendo dos critérios mais ou menos higienistas do governo, nas quais todos vivem sob o mesmo teto, com a exceção de que é outro, formalmente igual.

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Tentando chegar ao Parque Tercer Milenio, tenho problemas nas estações do Transmilenio, um transporte público que costuma funcionar bem para alguém que, como eu, circula apenas pelas zonas centrais de Bogotá. Quando, finalmente, consigo descer na estação frente ao parque, tento alcançar a mancha verde à minha direita. Atravesso, perigosamente, um cruzamento mal sinalizado e me vejo em frente ao edifício de Medicina, o único que não foi demolido na Renovação Urbana. Penso que é dia e estarei segura. Segurança... Com repulsa combato em mim mesma essa ideia. Logo eu, que odeio a Polícia, “sempre odiei, está nas minhas entranhas”. Recorro à ideia da repressão porque “eu” não sou assassinada diariamente por ela. Algo em mim se rompe. Caminho pelo parque e sou eu mesma responsável pelo bairro que foi destruído. “Eu” é o que a Renovação Urbana almeja. A noção de Segurança não orienta apenas diretrizes de planejamento urbano e de políticas públicas, mas também a forma como nossos corpos se inserem no espaço. E nesse lugar de fala onde me encontro, talvez tenha de me contentar em sempre ser um corpo que expulsa e, por isso, um corpo que anseio expulsar de mim. Mas que vá para o inferno essa categorização. Se os corpos são mutáveis, podem habitar o lugar que quiserem, sem se preocupar com sua fala, ou sua língua, ou sua identidade. Opa! Calma, calma... Esse lugar de fala não se refere à experiência singular de quem fala, é antes uma categoria que opera no campo macropolítico e se refere às formas como a autorização à fala variam em função de contextos sociais. Aqui o movimento consiste justamente em sair de certas configurações, pois se primeiro passo é reconhecer seu próprio lugar de fala, que por vezes é seu privilégio, o segundo é não se fixar nessa identidade. É um combate constante contra si mesmo, luta contra certo mundo que é também contra mim, tentativa de deslocamento constante de pontos de vista. Diante do ensaio de uma banda de militares, busco escapar de qualquer lapso de som que me ressoa como o estampido das bombas de gás lacrimogêneo, devolvendome, prontamente, ao lugar em que as vivi. Busco o silêncio, que a existência da banda não permite, para que eu possa me esquecer desse “eu” turista para encontrar um “outro” que gosto de pensar que ainda sou ou poderia ter sido. O parque me parece desproporcional à escala da cidade – não é possível que alguém tenha levado em consideração todas aquelas pessoas antes de projetá-lo. Por que, se fossem menos pessoas, seria aceitável?, pergunto a mim mesma, já enojada pela resposta. Se a cidade se expande de acordo com a demanda, há de se deslocar os que não consomem, ou que consomem mal. Consuma Cultura para conseguir qualidade de vida ou consuma qualidade de vida para conseguir Cultura, poteito, potato...


O entorno, no entanto, claramente não se enquadra nos padrões de segurança da população. População, conceito em nome do qual se extermina pessoas. Deu no jornal! A área voltou a ser cercada por delinquentes! “Vitória! resistência!”, penso, aliviada, com a ingenuidade idealista de quem joga pedras em fachadas de bancos. A história dos espaços é, ao mesmo tempo, a história do poder, e tantos já as discutiram que parece pífio retomar essas questões. Porém, ao encontrar um lugar que conheci apenas por relatos, imagens, sons, vídeos, já não posso vê-lo sem projetar uma outra imagem, que nunca atingirá o real. Já não posso ver o mundo do mesmo jeito. O curioso – talvez nem tanto – das grandes metrópoles é que, apesar de suas especificidades, muitas passam por processos urbanos semelhantes. Barcelona, Nova York, Cidade do México, Bogotá... São Paulo é como o mundo todo? Um contundente não somado a um sim esparramado configuram uma resposta possível a essa pergunta. É no centro de São Paulo que mais uma vez me vejo em Bogotá, vagando pelas ruínas de El Cartucho, rodeada por escombros de vidas que sobrevivem ao redor da Sala São Paulo. 5 Sinfonia n. 9, Beethoven. Recomendo vivamente a versão da Deutsche Kammerphilharmonie de Bremen, regida por Päarvo Jarvi.

Na estreia da temporada da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo a Nona5, e nada menos que isso, me espera, depois da passagem pelo portal que leva a um mundo onde os indigentes não são permitidos, tampouco ousam entrar. Duas taças de espumante preparam o corpo ansioso para subir, certeiramente, as escadas, degrau a degrau, rumo aos lugares privilegiados que meus ingressos presenteados propiciam. Tolas tentativas de repressão à culpa burguesa se desfazem à medida que a luz diminui e caminho com a sensação de correr até alcançar meu lugar. O primeiro movimento me arrebata e lágrimas saem dos meus olhos, que não descolam da coreografia orquestrada pela regente. Tento conter o pensamento acelerado para me ocupar única e exclusivamente da música, no entanto tijolos esfacelados chovem sobre minha cabeça e, apesar de saber onde estou, me vejo em outro lugar, que já não posso reconhecer. Visualizo pelo centésimo octogésimo grau da visão a plateia que olha, atentamente, a orquestra quando não seria necessário, bastaria fechar os olhos e deixar o som correr junto ao sangue. Cada sopro, cada dedilhado, cada batida, estão presentes no som que toma a sala, mas há algo de pouco humano naqueles que os produzem e isso prende a atenção. O segundo movimento é a desorganização do corpo, sou eu mesma a poeira dos tijolos e, tendo sido outrora parte de um todo que costumava existir, trago em mim memórias de tantas vidas que não seria capaz de contar.

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Sou El Cartucho, desmoronando, mas sou o que o bairro pode ser em mim. Fibras e músculos e membranas contorcidas, pressionadas por uma tensão que já não os permitem mais se recompor a partir das mesmas partículas. Terceiro movimento. Então, me lembro, é para isso que serve [a arte]. Para podermos nos reconfigurar em uma forma que ainda não conhecíamos, que mescla de maneira inesperada tudo o que existe em nosso corpo, construindo um novo presente. As colunas da sala se movem na frequência do som, o corpo se expande e é também o espaço. Deságuo em direção a um mundo. Quarto movimento, irônica Ode à Alegria, entendo que devo voltar ao mundo lá fora – comumente conhecido como real –, que será concretizado com a saída do prédio. Mulheres com cabelos pintados de cores que denunciam sua tentativa de disfarçar a idade têm seu celular roubado por um moleque – em realidade, não passa de uma tentativa de roubo mal sucedida, mas creio que a reação seria a mesma, ou pior. Escuto-as reclamando da insuficiência da polícia e não posso deixar de notar seus perniciosos comentários sobre como esses vagabundos estragam o dia. Simultaneamente, observo intrigada um morador de rua, ajudante de madames nas noites de gala, praguejando contra o menino que fugiu – de bicicleta, com uma destreza invejável. Não deixo de achar graça, tampouco de me sentir mal. 6 A equiparação entre o Absurdo e a Náusea é uma referência à bem humorada aproximação que o próprio Camus faz em seu ensaio. “Esse mal-estar diante da desumanidade do próprio homem, essa incalculável queda diante da imagem daquilo que somos, essa ‘náusea’, como diz um autor de nossos dias, é também o absurdo” (Camus, 2012: 29).

Mal estar diante das contradições expostas cruamente. O horror, o absurdo, a náusea6, frente a uma sala de concerto em meio à famigerada cracolândia. A mesma sensação frente ao parque construído sobre a vida de centenas ou milhares de pessoas. De que interessa falar de um lugar em vias de ser destruído? Contribuindo para atrair entusiastas da arte, como eu, a ver o passado. Talvez – e só talvez – para que, por um momento, possamos respirar e pensar que não estamos sós no balaio dos gatos pingados que travam um combate contra si mesmo. E encontrar, na negação da Arquitetura e do Urbanismo, formas de intervenção no espaço urbano que não passam por uma discussão da cidade como um todo que deve seguir diretrizes determinadas, tampouco pela setorização hierárquica de pequenos “todos”, mas pela construção de breves espaços de liberdade, ou de pensamento-criação, tentando construir superfícies pelas quais se pode transitar tranquilamente.


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Tentativa de contar o não contado Em uma peça de teatro, nunca se sabe ao certo o que pode acontecer. Não há a definição de um filme, já gravado, que será sempre o mesmo, ainda que seja outro a cada vez que o vemos. No teatro, mesmo que já conheçamos a peça nos seus menores detalhes, cada vez é uma nova vivência não só para os espectadores, mas para os atores do acontecimento. Por que insistimos em assistir muitas vezes o mesmo filme ou a mesma peça? Ou, então, por que escutar a mesma música tantas vezes a ponto da respiração seguir seu ritmo? Uma resposta possível e otimista: às vezes experimentamos sensações que não somos capazes de traduzir imediatamente em palavras. Daí surge o interesse em reavivar ou reviver essas sensações inúmeras vezes, procurando encontrar formas que possam dar conta dos vetores de força que nos atravessaram. Em relação a Los incontados: un tríptico, essa urgência de encontrar formas para o pensamento e as sensações pareceu atravessar o corpo, não tanto porque sinto a necessidade de tornar públicas minhas sensações, mas porque busco traduzir para mim mesma a profundidade das marcas na pele que tendem a se transformar em lágrimas, gritos ou delírios. Como aquilo que nos tira a respiração é, também, o que faz nosso pulmão expandir para todos os ares desconhecidos? Cada palavra parece ser um mergulho no mundo dos indizíveis, pelo qual tateio receosa até emergir verborrágica e eufórica, numa dança comigo mesma e um outro que se desloca a cada possibilidade de consolidação de território seguro. O que pode ser visto se não foi contado? As lágrimas dos lustres acima da plateia apagam e se vê a cortina vermelha que parece filtrar uma voz amplificada que fala de um padre favorável à expropriação dos bens da Igreja. Como bom padre, acredita que se deve deixar de lado o carnaval, para que se possa – será mesmo padre? – , enfim, começar a Revolução. A recordação de um discurso de Camilo Torres, transmitido na rádio em 20 de junho de 1965, é a porta de entrada do tríptico que deveria ser síntese mas surge no meio da Anatomia da violência traçada pelo Mapa Teatro. À medida que a cortina se abre, o que se vê é um aquário no qual tristes crianças participam de uma festa estática e quase silenciosa, mas há o discurso no rádio que se espalha pelo espaço em uma bifurcação clara e é preciso escolher qual caminho se vai seguir.

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“Amigo leitor, você sabia que a expressão ‘oligarquia’ significa ‘insulto’ para a classe alta e para a classe baixa ‘privilégio’? [...] Você sabia que a expressão 'violência' significa, para a classe alta ‘bandoleirismo’ e para a classe baixa ‘inconformismo’? Você sabia que a expressão ‘grupos de pressão’significa para a classe alta ‘casta seleta’ e para a classe baixa ‘exploradores’? Tanto no campo como na cidade... Você sabia que a expressão ‘Revolução’ significa, para a classe alta, ‘subversão imoral’ e, para a classe baixa ‘mudanças estruturais’? Você sabia que a expressão ‘mudanças estruturais’ significa, para a classe alta, ‘Revolução’ e, para a classe baixa, ‘mudanças fundamentais’? Você sabia que a expressão ‘Reforma agrária’ significa para a classe alta ‘expropriação indevida’e para a classe baixa ‘aquisição de terra pelos pobres’’?[...] Você sabia que a expressão ‘partidos políticos’ significa, para a classe alta, ‘grupos políticos democráticos’ e para a classe baixa ‘oligarquia’ [...]?” (Mapa Teatro, 2014).

A sala, envidraçada como aquário, é preenchida pela angústia daqueles que esperam uma festa que ainda não se sabe ao certo se chegará a acontecer. E o rádio insiste, ora com as dicotomias, ora com o último creme hidratante que vai transformar sua vida. A menor das crianças, uma menina, se move e sobe em um banco, de onde ordena uma marcha tocada por seus companheiros que repetem os sons até certo ponto em que meu corpo os acompanha, mas não os das crianças que marcham firmemente, e conforme saem da redoma, o som aumenta e já transforma o ritmo da respiração que avança com feroz afirmação.


A pequena menina já não comanda os músicos, que marcharam – quem marcha é soldado, cabeça de papel – para qualquer outro lugar. Silenciosa, ela ocupa, junto a uma adulta que se misturava com as crianças, a sala que parece trazer o peso da História. O antigo rádio é que traz o som, o discurso do padre guerrilheiro, Camilo Torres. O peso da História pende sempre para o lado de quem a narra e abordá-la pode parecer um embate romântico daqueles que pensam poder reescrevê-la e, facilmente, caem em seu papel de vanguarda no teatro dos que se acham especiais, ou, ao contrário, dos que buscam um objetivo futuro que promete fazer valer a mediana existência. De nada adianta ir contra a História, tentar negá-la é batalha perdida e desgastante. Mas se pode atravessá-la, perfurá-la e deambular por seus pequenos buracos não preenchidos, ou por aqueles pontos tão saturados que podem se tornar negação de si mesmos. O discurso de Camilo Torres se torna um estranho nó da História e da peça que se desenvolve com a quase solitária menina interagindo com um boneco ventríloquo e o acomodando em uma cadeira, anteriormente ocupada por um de seus companheiros marchantes. A sala, vedada por paredes de vidro que a separam da plateia, é preenchida por uma fumaça branca que sai do teto e sufoca, deixando apenas pequenas frestas de visão nas extremidades do aquário que se torna uma espécie de ampulheta de fumaça, dissolvendo o tempo e sua linearidade. A voz amplificada ressurge em meio à fumaça e um sorriso militante se esboça quando a memória de Camilo Torres nos lembra que a Revolução é uma festa e, prontamente, se desfaz quando é proibido de cantar. Porque se não posso cantar, gritar, desvairar ou dançar, não quero ser parte da sua Revolução. Talvez o problema seja ainda escrever Revolução com R maiúsculo. revolta.

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Um mágico, que parece mais triste do que se espera em uma festa, faz surgirem panos estampados com ícones, como aquele homem cuja imagem foi reproduzida à la Warhol nas mais diversas peças de roupa, inclusive o primeiro biquínide-mulher das meninas que começaram a ter seios nos anos 2000. Aquele belo revolucionário com quem meninas e meninos tanto sonharam em sua passagem para a vida adulta e que orientou os parâmetros estéticos, se tornando uma espécie de príncipe encantado da militância. “Sejam como Che Guevara” diziam os outdoors de Santa Clara, cidade cubana onde está o mausoléu do dito cujo, que apodreceu como todos nós o fazemos diariamente. Àquela época, em um 26 de julho que parecia arder nas chamas do inferno, se comemorava 55 anos do assalto ao quartel Moncada, evento que marcou a Revolução, concretizada, segundo El Comandante, em primeiro de Janeiro de 1959. 7 Me lembro de um outdoor que trazia ilustrada uma colher com proporções fantasiosas, repleta de grãos de milho, sendo despejada no capô aberto de um carro. “El absurdo primer mundo”, dizia o texto acompanhando a imagem. Não posso deixar de concordar.

Em Santiago de Cuba, o povo saía às ruas para ver Raúl Castro declamar seu discurso7, lembrando do evento histórico às vésperas do cinquentenário da Revolução, exaltando a figura inesquecível de seu irmão, que insistiu na ideia de salvação da América Latina a partir de sua união e libertação do domínio imperialista. Oito anos depois, estava em Bogotá, mergulhando no arquivo do Mapa Teatro, quando vi chorarem a morte do Ditador Fidel Castro. Penso duas vezes antes de admitir compreender certa admiração pelo sujeito, e sinto aquele comichão moderno


que ainda pensa em dicotomias e sonha com uma síntese que mostrou levar a lugares nefastos. O problema da síntese é não levar em consideração a multiplicidade de caminhos possíveis, tendendo a retornar a uma nova versão de seu ponto de partida. Me recuso a chorar a morte de um Ditador. Mamãe lembra de Fidel como um fantasma, ela estava comigo em Santiago e éramos constantemente abordadas por jovens homens que nos confundiam com turistas do velho continente: “Fidel Castro povoou a minha infância com fantasias sobre comunistas... e seguiu como um herói canalha pela juventude e vida a fora”. Camilo Torres aparece como primeira memória de Heidi, a dona da voz amplificada, como um desses sujeitos importantes que produzem as maiores inquietações em quem ainda se dá ao benefício da dúvida. Em que momento os heróis se tornam canalhas, ou será que assim se constroem? Há o boneco ventríloquo em cena e o mágico o insere no plano principal ao alimentá-lo, mas não se sabe ao certo o que aquela criatura assustadora faz ali. Não cabe aqui discutir meu trauma com bonecos falantes, mas chama atenção que Danilo Jiménez apareça como ventríloquo de si mesmo. A presença do cantor, com suas mangas bufantes vermelhas e canções anacrônicas, arranca risos da plateia que silencia à medida que vê o letreiro no qual Danilo narra sua experiência como músico nas noitadas del Patrón – sim, ele, o pop star do narcotráfico, senhor Pablo Escobar, aquele que levou a cocaína ao status de ouro, uma espécie de anti-herói que os jovens pensam ser quando sentem, pelos primeiros anos, a neve colombiana em sua corrente sanguínea. Esses jovens se exibem por aí contando sobre suas proezas com a droga, seja o tráfico ou o uso, chegando a adquirir certo status e capacidade de ostentação com sua drogadição. A cocaína é uma droga do mal, a maconha é do bem. “Nunca vi ninguém ficar viciado em maconha”, disse o sujeito que não dorme se não der um pega. Se Pablo Escobar causa certa admiração, penso ser por sua clareza em relação ao negócio; não cabe juízo moral, mas o critério do lucro, do dinheiro e, acima de tudo, do poder. Há também certo fetiche em relação às ilegalidades e ao self made man que não dependeu da caridade de algum burguês ou do Estado para conquistar o que queria. Como um jogador de futebol que sai da várzea para o mundo; o capitalismo e a democracia nos insistem em dizer que “todo mundo pode chegar lá”.

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Por que, então, não sonharíamos em ser Pablo Escobar? Se, em 1975, Fidel defendia a libertação da América Latina frente ao imperialismo estadunidense, o traficante colombiano dominava, no final da mesma década, 80% do tráfico de cocaína do mundo e, em 1981, apareceu – audaciosa ou despretensiosamente? – retratado junto a seu filho em frente à Casa Branca de Reagan, então presidente dos Estados Unidos (Carretero, 2015). E quando 4 a cada 5 cocainômanos estadunidenses dependem do produto de Escobar, talvez as relações de poder mereçam ser revistas, mas o império contra-ataca, garantindo que as drogas se tornassem alvo de perseguição, em 1986, quando Reagan revisita a iniciativa de Nixon de “Guerra às drogas” (Uchoa, 2014) e considera os entorpecentes o principal problema do país. E não foi o próprio Escobar quem prometeu negociar sua não extradição com a oferta de quitar a dívida externa colombiana (Vignolo, 2015)?


8 Referência a Mar português, de Fernando Pessoa. Ainda admito concordar que “tudo vale a pena se a alma não é pequena”.

A cortina atrás do cantor se abre lentamente, transformando a noção de profundidade que até então se tinha como certa. A casa medíocre, com cores de burro quando foge, trazendo o peso do ocre, do tapete e do sofá que parecem cheirar a mofo, se transforma e um véu permite a visão de vultos que afirmam a existência. A voz amplificada volta e a escutamos contar uma memória pessoal sobre um de seus aniversários, o que pode haver de interessante nisso? Heidi, a dona da voz, agora está em cena e fala de uma viagem que fez para Guapi, nos confins da Colômbia, mas à beira-mar – Ó mar salgado, quanto do seu sal não será sangue dos indígenas e negros de Guapi?8 –, para celebrar seu aniversário, em 28 de dezembro, data que coincide com a festa dos Santos Inocentes e por isso a escolha do destino remoto, rodeado de selva e água.

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Diga a ela que é um jogo, mas não a assuste. Diga que ela pode olhar pela janela, mas não a diga o que acontece lá fora. Diga para ela não fazer barulho e para ser disciplinada... que não faça barulho... Diga a ela que se for leal, ganhará um pedaço de bolo. Diga a ela que é preciso se afirmar diante do inimigo. E para não se mover. Diga que se ela não se mover, eles irão embora, como mágica. E que seja alegre Porque a Revolução é uma festa. Mas ela não pode cantar. Los incontados: un tríptico. Mapa Teatro, 2014.


Uma festa de origem religiosa, cujo nome se refere ao massacre de Herodes, que ordenou o assassinato de todos os meninos com menos de dois anos em Belém, “a fim de impedir o advento do Messias” (Sánchez, 2016: 283). Dizem por aí que era o rei dos judeus, veja bem, sou ateia e tenho que admitir – porque confessar é coisa de cristão – que não sei nada de testamentos, seja novo ou velho, mas simpatizo com alguns santos. Santa Clara padroeira da televisão, clareou e sempre pus ovo para que ela abrisse o céu. Nunca choveu. Pulo sete ondinhas todo ano só para garantir. Não mexe comigo! É do ouro de Oxum que é feita a armadura que cobre meu corpo, mas também estou vestida com as roupas e as armas de Jorge, esse que a gente vê na lua quando tira tempo para olhar para o céu, se é que em metrópoles o que se vê se pode chamar de céu. Dizem que vai cair, ou que já caiu, quando Nós chegamos. Dizem, também, que na hora da morte ninguém é ateu. Quantos massacres foram justificados por religiões? Em nome do amor a Deus, signo incessantemente interpretado em suas mais inimagináveis adaptações, se justificaram e justificam genocídios, massacres, torturas, escravidões, humilhações e tantos outros nomes que as faces da violência podem levar. Veja bem, não vá por aí. Voltemos às festas religiosas. Salve, Salve o Carnaval, esse grande bacanal neoliberal! Viva o amor livre mercado! “Está na hora de parar com o carnaval e começar a Revolução” ecoa a gravação com o discurso do padre guerrilheiro. 9 Me dou o prazer de dizer, em nota, que só pude compreender o mundo ao ler O processo, de Kafka. Hoje, quando uso a palavra no contexto da burocracia, em geral ela carrega o peso do livro. E destaco a imperdível adaptação para o cinema de Orson Welles, que produz a sensação do livro em imagem.

O dia dos Santos Inocentes, em Guapi, tem sua origem religiosa sobreposta pela memória da escravidão, trazendo reminiscências de uma época, nos idos do século XVII, quando os negros arrancados de sua terra natal invertiam as ordens, por um único dia, açoitando seus capatazes. Hoje, a festa talvez não passe de um carnaval singular, que passeia pelas violências diárias que perfuram os mais diversos corpos. Vestidos de mulher, os mascarados se espalham pelas ruas. Os não mascarados se dispõem a serem chicoteados e assim se passa a festa, ainda hoje, com a diferença fundamental de que escravos se tornaram minorias, democraticamente aceitas e com direito a representação nos órgãos do Estado, essa grande burocracia que se retroalimenta e torna qualquer processo9 infindável, que chama atenção para sua ineficácia e disfarça os verdadeiros problemas. Estado, com E maiúsculo! A festa resgata a memória da dor que parece estar inscrita nos corpos e se recusa a sair, gruda na pele. A violência da escravidão – creio eu – gera raízes que atuam como carrascos da existência e nos fazem colar às imagens de vítima e algoz.

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Em Guapi, Heidi compartilha um hotel com policiais, que tomam café da manhã usando chinelos e metralhadoras. “Porque a polícia se hospeda no hotel do povo?” Se pergunta. Serão militares ou paramilitares, ou os dois? me pergunto. O relato continua, com a recomendação de que a turista veja a festa pela janela, como a antropóloga francesa, que esteve ali estudando essa Cultura, fez. Heidi quer ir às ruas, onde acontece a festa, mas ainda não é hora e, em seu quarto de hotel, encontra um pedaço de sabão amarelo, à medida que o véu que criava a parede se abre como cortina e a profundidade aumenta, parecendo focar em um ponto de sucção em direção ao qual todos somos puxados. Ela adormece e tem um sonho. A música onírica que domina o espaço é acompanhada por textos que se lê enquanto se sonha e só poderiam ser um pesadelo. Como se o presente fosse um sonho no qual nós mesmos somos sonhados e a cada instante nos desmanchamos para nos tornarmos outro sonho.


“Ordens não são questionadas [...] uma única metralhada foi o suficiente”, diz o ex-chefe paramilitar Éver Veloza, codinome HH, extraditado em 2008 para os Estados Unidos da América, onde terminou, em 2016, de pagar sua pena referente ao narcotráfico, conquistando liberdade da qual deveria gozar pouco, porque ainda deve pagar a pena decretada pelo tribunal de Justiça e Paz, na Colômbia, que seria de 08 anos, o máximo permitido por essa lei, em troca de confissão de todos os delitos e reparo às vítimas. Ele foi o primeiro dos grandes chefes paramilitares a ser condenado no tribunal de Justiça e Paz e reconheceu mais de 3000 delitos.

O aniversário de Heidi é invadido por uma figura que ela acredita não conhecer, mas da qual se recorda em algum lugar da memória. Conforme fala, um homem surge, está parado e, no entanto, surge, na cena, ao fundo, como uma camada que não se vê bem, mas que assombra a todos. E sua voz toma o espaço, ao som de um rap, no qual nomes e mais nomes surgem, HH está lá, o texto parece borrar as barreiras entre o narcotráfico e o paramilitarismo, o rap reitera um lugar de poder paralelo, porque todos sabem que o rap é compromisso e representa uma afirmação de poder, inclusive quando negocia com o Estado. A música muda e se torna dançante e personagens mascarados correm pelo espaço, são os carrascos, silêncio. Música e carrascos agora são vítimas, felizes, pois sabem que voltarão a ser carrascos. Todos, em algum momento, seremos carrascos. As camadas do cenário, com a profundidade que se construiu, trazem as distintas formas de violência e há uma transparência em algumas dessas camadas que deixa dúvidas, pois a violência institucionalizada, seja das guerrilhas, dos paramilitares, do Estado, é terrível e criticável, mas até que ponto não sou eu mesma um potencial linchador? Há prazer

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em ser carrasco, e em ser vítima. E já me vejo correndo vestida de menina com um chicote na mão, me vingando de toda violência que sofri com chicotadas doloridíssimas. E também encherei o peito como uma pomba ao dizer que fui violentada, e que sou uma vítima indefesa de algum monstro que merece o linchamento. Como pomba porque é rato, com asas. Você é uma mulher ou um rato? Me perguntaria mamãe. Rato, definitivamente rato. Ou serei mulher?, o que definem como mulher. A invejosa, a ciumenta, a histérica, a louca, a descontrolada. Descontrole repleto de lógica, que é apresentado no palco à medida que carrascos e vítimas se alternam e que faz sentir que a vida é isso, medíocre e violenta. Alternância entre dicotomias, ainda não nos livramos do bem e do mal. Ou, ao contrário, devemos arcar com a ideia constante de que somos ao mesmo tempo algoz e vítima de distintos aspectos dos poderes que estruturam nossa constituição.

A festa de aniversário de Heidi é construída em torno da festa de Guapi, com barulho e silêncio, com ritmo que se alterna e parece brincar com a densidade do relato que carrega a memória de HH ou de Escobar, são o mesmo e, ainda assim, serão mesmo equiparáveis? “Os estragos causados pela corrupção, pela guerrilha, pelo paramilitarismo e pelo narcotráfico, ressoam entre músicas dançáveis, disfarces ostensivos e música colorista” (Sánchez, 2016: 283). Festa e violência se mesclam pelas máscaras e chicotes que trazem, ao mesmo tempo, horror e diversão (um espécie de purga?). As máscaras carregam o horrível da realidade, sensação que parece flertar com o indizível – mistura com a culpa e já não sabemos mais que personagem interpretar no sonho da realidade. Por trás das máscaras, a música e o cenário de festa parecem acompanhar o movimento dos relatos que insistem em reaparecer, realidade e ficção se misturam e a História não parece mais definitiva.


Talvez tenhamos uma capacidade de nos tornarmos carrasco com mais facilidade do que se gostaria de admitir. Ou, então, usamos da posição de vítima em função de nossos interesses pessoais, de forma que o papel da vítima se torna potencialmente violento. Então, colada no papel de vítima, tomo em minhas mãos o chicote com o qual açoitarei a todos que considerar carrascos. E meu lugar de vítima justifica toda violência e revanchismo que possa vir de mim. Meu sofrimento justifica toda a agressão que eu produzir em qualquer outro que não seja uma imagem do lugar do qual eu falo. “É sempre possível dizer ‘Ah, sofri um tipo de violência e isso me dá permissão para agir de acordo com o signo da ‘autodefesa’. Muitas atrocidades são cometidas sob o signo da ‘autodefesa’, que, justamente por obter uma justificativa moral permanente para a retaliação, não conhece um fim e não pode ter fim. Tal estratégia desenvolveu uma maneira infinita de renomear sua agressão como sofrimento, e assim fornece uma justificativa infinita para sua agressão” (Butler, 2015:131). O mágico volta à cena, faz mais um truque, no qual um dos balões da festa que nunca aconteceu estoura, espalhando um pó branco – que, por se tratar da Colômbia, todos imaginam o que seja, porque os clichês existem por um motivo – por todos os lados, ao mesmo tempo que Danilo volta a cantar suas canções anacrônicas, enquanto é dublado por si mesmo com o relato de uma festa na qual Pablo ordenou que todos, inclusive os músicos, tirassem a roupa. Seguir ordens, escolha repulsiva, mas que, em nome da sobrevivência, se faz. “Primeiro a sobrevivência, depois a dignidade” diz o cantor em seu relato. Afinal, El Patrón era seu patrão e o comandava ao longo das horas contratadas. A voz macia que antes cantava rap nos envolve em um discurso tranquilo, prometendo tirar a Colômbia dessa escória conhecida como terceiro mundo e tornar o país referência na Cultura e na arte, a partir de uma produção artística que transformará a sensibilidade. Bom, e não somos nós que falamos que a arte interessa na medida em que nos permite outras sensibilidades? O discurso continua e pretende legalizar a cocaína, o ouro branco, e alguém, em sã consciência, seria contra isso? Pergunta que se responde enquanto se escreve ao evocar o lucro gerado pelo narcotráfico, também o encarceramento em massa – o controle social que se garante com proibicionismos e que investe na segurança e no consequente encarceramento dos delinquentes (Rodrigues, 2003). A descriminalização das drogas é assunto urgente e as guerras travadas contra elas não passam de afirmações de poderes.

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O proibicionismo trabalha com uma condenação ao uso de drogas, buscando sua extinção, mesmo sabendo que isso é improvável, senão impossível. A História reafirma a existência dos entorpecentes, que insistiram em existir antes da noção de História constar no vocabulário da civilização ocidental. Esse combate, então, não passa de jogo de poder e “o que acontece é um círculo infindável de violência, sujeições e subjetivações: o traficante, o usuário, o policial, o moralista anti-drogas, a vítima, o anti-proibicionista profissional, o militante de rua e assim por diante. Essas subjetivações fazem parte das fixações de conduta que servem às práticas difusas de governo. Os negócios no neoliberalismo são potencializados na confluência entre legalidade e os muitos ilegalismos. Por isso, é preciso um olhar que rompa as fronteiras entre legal e ilegal, pois o capitalismo opera com a força de ambos” (Rodrigues, 2017: web).

Não parece, então, um desvario pensar que, na situação de tensão que a Colômbia se encontrava no final do século XX, Pablo Escobar sonharia com a presidência, escancarando os jogos de poder que coreografam a violência, a corrupção e o narcotráfico. O cenário, com a profundidade exuberante da mata, acompanha o descomedimento das festas del Patrón na fazenda Nápoles, das quais fala Danilo Jiménez. A música volta, soando como natureza tecnológica, enquanto Heidi, transformada em folha de coca, se espalha frenética pelo fundo do palco, que agora parece ter profundidade infinita de mata tropical, ainda sob uma camada de véu quase inexistente em sua espessura. Que culpa tem a mata? A “mata que mata” era justamente o lema da campanha antinarcóticos do uribismo (Vignolo, 2015: 155), período no qual um dos medidores do sucesso das operações das forças de segurança era enquadrar “pelo menos 1000 cultivadores de coca por ano” (Uprimny; Guzmán; In: Labate; Rodrigues: 2016: 98). “Nem daqui sou”, pode pensar, veio trazida sem pedir e se tornou inimigo número um dos que combatem uma luta que não lhe diz respeito. Saltitando pela profundidade que se construiu no espaço, a Erythroxylum coca parece excessiva em sua existência debochada e isso é o que a faz girar em cena como uma espécie de luz que lhe dá autonomia, como se escapasse ainda mais da linearidade não-linear da peça. Não se pode confundir a mata de coca com a cocaína, a vida de muita gente depende de cada uma delas para serem pensadas como uma coisa só.

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E, insisto, que culpa tem a mata? Logo ela, que garante a vida de milhares de camponeses na Colômbia, no Peru e na Bolívia, e isso não é vinculado a uma sede por benefícios, dinheiro ou poder. “[...] não é um indício de sua cumplicidade com o mal, nem de seu desejo de obter grandes benefícios, mas das políticas neoliberais que, aplicadas à agricultura, privilegiam a atividade das grandes empresas especializadas em monocultura. A expansão dos cultivos de coca foi uma estratégia de sobrevivência para muitos camponeses e trabalhadores deslocados” (Sánchez, 2016: 299). O problema é mais amplo e, em 1999, o governo lançou o Plano Colômbia e iniciou as fumigações, apoiadas pelos Estados Unidos da América, que tiveram como resultado não a redução do potencial produtivo de drogas, mas um efeito negativo nos ecossistemas e comunidades do país, além de terem causado abortos e problemas de pele na comunidade ao redor da área afetada (Rico et al., 2016). Uma mulher, com ares de burguesa, dança com os ombros, enquanto figuras disformes ocupam a mata a sua volta. E quando a mata começa a falar, uma música de rádio romântica enche os corações envergonhados de prazer quando ouvem explicações astrológicas que justificam a existência del Patrón.


“O sal é tão vicioso quanto a cocaína”, diz a burguesa na rádio, uma espécie de Virginia Vallejo do imaginário coletivo que traz as notícias que a grande mídia (na gravação de Camilo Torres, se chama apenas “mídia” para a classe alta) usa para chamar a atenção do público. Dizem que uma vacina pode anular os efeitos da cocaína, nada resta a não ser a sensação de desperdício de dinheiro – e quem quer isso? A erva asiática vai resolver o seu problema com vícios, já tomei, não funciona. Vamos legalizar a cocaína? Mas não serei eu que carregarei o estigma de cocainômano, ainda quero ser miss e o narcotraficante patrocinador do evento não ficará feliz se eu me intrometer em seus negócios. Tudo o que você fizer poderá ser usado contra si, caso seja cocainômano. Diga-me com quem andas, te direi o que usas. Drogadito é um apelido carinhoso? “As dez máfias mais perigosas do mundo são: Os jamaicanos e britânicos Yardies, a máfia albanesa, a máfia sérvia, a máfia israelense, a máfia mexicana, Yakuza do japão, tríades chinesas, cartéis colombianos, a Cosa Nostra da Sicília e dos Estado Unidos e a máfia Russa” (Mapa Teatro, 2014).

O rapper, por detrás de uma parede de véu, nos esclarece que não adianta combater os vícios, eles permanecerão. A fina camada que nos separa do cantor cria uma sensação fantasmagórica que um entorpecido pode reconhecer na pele. A obra é construída em camadas espaço-temporais que permitem saltos de pensamentos e sensações e encadeia um fluxo narrativo irregular que se constrói à medida que criamos conexões com alguns pontos nodais de uma memória relacionada a afetos, e não apenas às imagens criadas enquanto a peça se apresenta. O véu-parede é retirado enquanto o narcotráfico aparece como o primeiro negócio verdadeiramente globalizado. “Tudo é negociável e todos negociam”.

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A burguesa do rádio reaparece com novas notícias sobre a cocaína. A Bolívia expulsou de seu território a Coca.... Cola e Diego Maradona parece ter passado da linha – ou da carreira? Meus jovens, deixem as drogas. Deixem todas para mim. Meia tonelada de cocaína apreendida num helicóptero e atribuida um senador brasileiro. Um presidente andou dizendo por aí que vai apoiar a descriminalização das drogas, não é novidade, ouvi dizer que em Amsterdam tudo pode, mas é mentira. Talvez os alucinógenos não sejam nem tão nocivos quanto a cocaína, nem tão rentáveis. O canto de Danilo Jiménez reaparece e me pergunto o que ele faz ali. Seus relatos surgem sobrepondo seu corpo ventríloquo e trazem suas memórias, com as quais não queremos lidar. Certa tristeza acompanha a canção, o corpo se contorce e, quando pensa chegar o silêncio, é bombardeado por uma voz de veludo, vinda de um homem mascarado que não consegue ficar em pé. No entanto, quem parece falar é o boneco ventríloquo, e o mascarado não passa de seu dublador.


10 Este texto não é uma transcrição fiel do texto apresentado em Los incontados: un tríptico. Configura uma tradução livre e influenciada pelas sensações provocadas ao longo da experiência da peça.

“Em 3 de abril de 193010, o último mês de minha vida Tive o mesmo sonho que sonhei por todas as noites no último ano Sonhei que estava no metrô de Moscou, em um trem que corria a uma velocidade vertiginosa. Eu estava fascinado pela velocidade, porque amava o futuro e as máquinas. Mas agora, sentia ânsia de sair, enquanto manejava, insistentemente, o objeto que levava em meu bolso. Então, para acalmar minha ansiedade, pensei em me sentar. Sentei ao lado de uma senhora, com vestes negras, carregando uma sacola de compras entre as pernas. Assim que me sentei, a senhora se levantou assustada. ‘Sou tão feia?’, pensei. Sorri para a senhora e disse ‘não tenha medo, eu não sou mais que uma nuvem. Não tenho nenhuma pretensão que não seja sair desse trem’. Por fim, o trem parou em uma estação qualquer e eu sai, sem prestar muita atenção. Fui ao primeiro banheiro que encontrei e tirei um objeto que estava em meu bolso. Um pedaço de sabão amarelo, como aqueles que as lavadeiras usam. Abri a torneira e, com o sabão, comecei a lavar minhas mãos minuciosamente. A sujeira que parecia estar em minhas mãos se recusava a sair. Então, guardei o sabão no meu bolso... e segui adiante. A estação estava deserta... Ao fundo, havia um cartaz, abaixo do qual estavam três homens. Polícia Política, disseram os três homens em uníssono. Controle de Segurança. Levantei meus braços. Enquanto me revistava, me perguntou o que eu trazia em minha mão. Não sei. Não sei nada dessas coisas, digo com orgulho. Sou apenas... uma nuvem. ‘Isso é sabão!’, sussurrou o homem que me interrogava traiçoeiro, ‘e é evidente que tem lavado suas mãos com frequência. O sabão ainda está molhado!’ Não disse nada e sequei minha testa que estava coberta de suor. 'Venha conosco', disse o homem, me agarrando pelo braço enquanto os outros dois o seguiam. Subimos uma escada e desembocamos em uma grande estação ao ar livre. Diante da estação, havia um tribunal com juízes vestidos de militares e um público de crianças vestidas como estudantes colegiais. Os três homens me conduziram ao banco dos acusados e deram o sabão a um dos juízes.

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O juiz pegou um megafone e disse: ‘ele foi detido em flagrante delito, ainda carregava o objeto de sua atividade deplorável’. Me condenaram à locomotiva e me vestiram com um enorme casaco amarelo. Havia um carrasco, com capuz de carrassco, e um chicote nas mãos. ‘Agora veremos o que você sabe fazer’, me disse o carrasco. A locomotiva partiu”.

Vou lavar as minhas mãos. Apenas não suporto mais lavar as mãos. Na locomotiva, me vejo segurando um chicote em minha mão, e me perguntando onde está o carrasco, que me denomina um condenado à locomotiva. A música beira o insuportável enquanto se repete em torno do discurso do condenado, que levava um pedaço de sabão amarelo. Os homens e mulheres macilentos que me olham levantam o braço, em sinal de resistência, ou aprovação à condenação. Pequenos parecem os carrascos, quando um condenado atravessa a grande Rússia comunista. A música é inquisidora e, ao mesmo tempo, cria um espaço de experimentação; cria um incômodo que começa como culpa e culmina em liberdade. Já não sei se sou eu ou o carrasco de mim mesma, lavo as mãos tentando tirar a sujeira que está enraizada ao corpo, correndo pelas veias que se preenchem do odor fétido da sensação de vergonha de existir, de ocupar lugares que despertam as disparidades e as palavras de ordem; me vejo assistir, de camarote, aos massacres do cotidiano, oscilando entre a culpa e a revolta da carne. “Essa gente espera por seus versos, disse o carrasco. ‘Canta, poeta!’, e me açoitou. Comecei a recitar meus piores versos. Versos cheios de exaltação e retórica. Enquanto eu os recitava, via as pessoas levantarem seus punhos. E me maldiziam... e maldiziam minha mãe. Então, Vladmir Maiakovski, poeta e revolucionário, acordou, foi ao banheiro para lavar as mãos.”

Tentando acalmar a ansiedade, penso em acender um cigarro, e o odor enche minhas mãos e meu corpo, esfregar até que não haja mais pele parece a única solução. A peça, construída em camadas, faz desmoronar estratos da violência que existem em mim, violência que cola no corpo e da qual não sei como me livrar. O sabão evidencia a existência suja e as camadas e mais camadas de violência se condensam e colam no corpo, impedindo o exercício da vida. Sou uma nuvem, que se desfaz ao som da vertiginosa música, vertiginosa por sua simplicidade e por me levar a lugares de mim que condeno. Afinal, a vertigem não passa do medo de querer se atirar em direção a qualquer lugar que me afaste do mal-estar na civilização, ou de mim. Assim, se torna fácil culpar a civilização e chamar aqueles que personificam um Mal de carrascos, enquanto lavamos as mãos tentando nos limpar de nós mesmos.


11 Viva! a Judith Malina, das mulheres artistas mais bárbaras da América! O texto se refere à versão partigiana da canção Bella Ciao. Ver: BELLA CIAO! con Judith Malina al Teatro Valle Occupato (YouTube). 12 Referência à música A las barricadas; memória afetiva dos meus anos 2013 e hino anarquista. Ver: CNT Guerra Civil, A las Barricadas (YouTube).

O tom ocre da sala que, no início da peça, espera a Revolução, parece trazer a existência de quem vive na normalidade, recalcando aquilo que não sabe ao certo por onde deixar percorrer, as pulsões que fagocitamos diariamente, a fim de neutralizar. Afinal, ninguém quer passar por louco. Ou quer, se isso for rentável para seu autoempreendimento identitário. A sensação de recalque e angústia ante o cheiro de mofo que sai do sofá, se dissipa lentamente enquanto as camadas se abrem, levando a uma espécie de sem-fim da mata amazônica; aos poucos, a promessa de revolução silenciosa dá passagem a um espaço interno desgovernado e ingovernável, que saltita pela mata e corre livremente pelas vozes e lembranças e discursos, sem patrão, um partigiano11 que talvez, um dia, seja morto pela liberdade. A névoa que preenche o espaço e faz explodir a sala de estar medíocre, parece lembrar das negras tormentas que agitam os ares, das nuvens escuras que nos impedem de ver. Hay que derrocar a la reación!12. Prefiro correr o risco de sucumbir à desordem psíquica, do que passar a vida tentando evitá-la, criando normas e seguindo ordens.

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A sala, quando se desfaz, abre espaço para o respiro e para o desvario que dá seus pulos pela História e pela memória. A pulsão encontra diversas passagens e parece chegar a seu limite – como atingir o limite sem soçobrar? – quando se reinventa e corre livremente pelas impressões da peça que, mais do que compreender racionalmente, sentimos na pele. Os distintos lampejos de memória que surgem ao longo da peça fazem com que se iluminem aspectos da vida que a História deixa passar. Não há bem ou mal, há camadas de violências e existências. A História é atravessada por relatos e recordações que nos permitem passear pela temporalidade da apresentação deixando o pensamento dar os mais absurdos, e revoltosos, saltos. Já não há caminhos pelos quais se é induzido o percurso.


A marcha das crianças volta, longínqua. Elas seguem seu caminho de volta a sua redoma, entrando no cenário da festa que parece nunca ter começado. Um vídeo de uma manifestação nas ruas de Guapi, contra o paramilitarismo e a guerrilha, é acompanhado de um relato sobre a festa dos Santos Inocentes, que encerra de maneira precisa, conforme a luz se apaga. “É preciso ser daqui para sentir certo prazer com a dor”. De Guapi, da Colômbia, da América do Sul ou, quiçá, de qualquer país onde a escravidão marcou a passagem da História e continua, ainda hoje, deixando suas marcas. Com a diminuição da luz, a redoma de vidro se torna um espelho, no qual a plateia se vê, e se constrange diante do peso da responsabilidade, que agora está em suas mãos.

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13 Título de uma música que apareceu nas primeiras discussões em torno da concepção da peça. Rock dos anos 1970, cheio de esperança, tocado pela banda colombiana Los Flippers. Ver: Los Flippers - Pronto viviremos un mundo mucho mejor (1973). (YouTube).

Pronto viviremos un mundo mucho mejor13 No sientas temor de la vida actual Pronto pasará tanto descontrol Y organizarán una sociedad Que pueda vivir sin el capital Mira más allá de la realidad Así sentirás menos soledad Una vez allí no vuelvas atrás Hay que esperar un cambio social Pronto viviremos un mundo mucho mejor [...] Los Flippers

La despedida tem como porta de entrada uma notícia de jornal: El Borugo, antigo acampamento guerrilheiro, será transformado em um museu vivo para não deixar que se esqueçam dos horrores da guerrilha. Então, os militares se dispõem a organizar uma encenação que, didaticamente, expõe a violência dos acampamentos guerrilheiros. Tantas contradições se revelam em uma única notícia de jornal que não é de se espantar que uma peça de teatro se construa a partir dessa notícia.

Em setembro de 2016, deu no jornal que o antigo acampamento de Mono Jojoy, chefe do bloco oriental das FARC, seria transformado em um museu, com direito a militares interpretando guerrilheiros e uma atriz especialmente escalada para ser Ingrid Betancourt, tudo com a intenção de mostrar “ao mundo” o que configurará como o discurso oficial de uma história que ainda está sendo contada e que, como toda a História, será contada por aqueles que decidem seu curso. La despedida. Do que estamos nos despedindo? Pergunta que me passa pela cabeça desde dezembro de 2016, quando acompanhei as discussões de Heidi, Rolf, Ximena e Juane em torno da obra, que ainda não existia. Em tempos de acordo de paz, como tratar do tema da guerrilha? Aquele que faltava para terminar o tríptico de Mapa Teatro a respeito da violência na Colômbia, sempre com olhos em sua faceta festiva.

Festas que não conseguem começar... a constante sensação de morrer na praia acompanha o começo de La despedida, logo ficamos sabendo que as festas em El Borugo só aconteciam quando estavam reunidos todos os cabeças da

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organização, é o que conta um dos militares convertido em ator desse teatro que, em suas palavras, busca representar a Verdade sobre os horrores da guerrilha. Verdade essa que consiste em comparar o acampamento guerrilheiro a campos de concentração e tende a apagar as violências diárias de exércitos e polícias, que se orgulham de prestar serviços ao Estado – afinal, bandido bom é bandido morto, alguns insistem em pensar. O caráter documental se constrói ao longo da primeira fala de Rolf, diretor da companhia ao lado de Heidi, que relata uma troca de mensagens com as forças armadas colombianas a fim de infiltrar os participantes do Mapa Teatro no teatro do acampamento guerrilheiro. O palco é tomado de assalto pelos integrantes do grupo e, conforme a suave voz de Rolf os enuncia, reconhecem quem são para depois saírem de cena, um a um, deixando para trás o mundo ao qual pertenciam. Uma antena parabólica no centro do palco é a tela para a projeção de um vídeo documentário que acompanha a fala inaugural da peça, que parece assumir o caráter de arquivo como ponto de partida. O vídeo traz um narrador francês que conta ao público as origens das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo. O documentário, de 1965, tem um ponto de vista distinto do que trazem os soldados fantasiados de guerrilheiros e o narrador francês fala da vida no interior da Colômbia e das guerrilhas de autodefesa camponesas que resultaram na estruturação das FARC-EP. Se o teatro de militares que quer contar a Verdade não hesita em vincular a violência à guerrilha, o documentário projetado na antena parabólica – dessas que se via na Berlim comunista – é o contraponto dessa História que já nasce

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mal contada, pois relaciona o surgimento das guerrilhas, ou mais especificamente das FARC-EP, ao período da História colombiana chamado La Violencia – “La Violence”, diz o narrador francês, “A violência”, digo eu. A Violência, meu caro, não é a consequência da existência da guerrilha; do alto de seu eurocentrismo, o narrador francês conta que, apesar de parecer um país pacífico, a Colômbia, assim como toda a América do Sul, tem como marca registrada a Guerra Civil. Um músico barranquilleño toca acordeão, dando início a uma linha narrativa da apresentação. El Gran Miche Molina, filho de uma Revolução que não se concretizou, toca o Vallenato, ritmo guerrilheiro – ele é, mesmo, filho de uma promessa de futuro de paz que não se concretizou... lhe prometeram um sonho revolucionário, agora vive uma peça de teatro.


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A cortina brechtiana, que não cria uma parede, feita a partir de tecidos camuflados desses típicos do exército, cai no chão de supetão e revela totalmente o palco, onde vemos a projeção dos militares que encenam efusivamente as cenas de horror de El Borugo. Homens camuflados falam sobre os homens projetados em antenas parabólicas, revelando as identidades de quem atua e de quem é atuado no teatro militar. A cortina que acaba de cair no palco é vista também no vídeo que registra El Borugo, atualizando na cena a realidade do antigo acampamento, criando um salto no tempo e no espaço do que já foi visto e do que será contado. A rádio Sutatenza, fundada em 1947 por um sacerdote com a intenção de prover uma educação informal aos camponeses, pretendia transmitir-lhes a ideia de buscar o desenvolvimento em função de seu próprio bem-estar. A rádio ecoa no espaço que é prontamente ocupado pelos diferentes sentidos atribuídos pelas classes alta ou baixa a determinadas expressões. Seria Fidel Castro líder comunista ou chefe revolucionário? Em meio à mata tropical, guerrilheiros mascarados e sem calças trazem instrumentos e ameaçam iniciar uma marcha que não começa, como se tudo voltasse sempre à estaca zero. A imagem bastante improvável – e, no entanto, registro real – de militares se dedicando à atuação colide com a presença viva da guerrilha seminua, fazendo que o caráter documental que tomava conta da obra se desestabilize. A racionalidade parece estremecer e se anuncia uma transformação – será que a festa vai, enfim, começar?


A rádio fala de um ursinho rebelde que deveria ser punido por sua indevida rebeldia, enquanto a movimentação do cenário dispara uma mudança na linearidade do tempo que traz um presente, no qual Che Guevara e Fidel Castro disputam uma partida de dominó, enquanto afirmam que a Revolução ou se faz, ou se morre por ela. São vistos através de um delicado filtro esbranquiçado, o que cria uma sensação fantasmagórica que nos joga de volta a um passado já remoto e se torna difícil saber se eles são mesmo os líderes revolucionários - ou não passam de atores com máscaras que os põe nessa posição?

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A tensa sonoridade da partida intensifica o jogo de dominó que não sai como esperado e um vídeo o projeta ao vivo, revelando as peças do jogo, que formam três letras que antecipam um futuro passado dos ícones revolucionários: um discurso ecoa enquanto a sombra de um homem se transforma em carne e osso que carrega um livro vermelho, do qual saem os mais tolos truques de mágica e as três letras do jogo agora fazem sentido: M-A-O. Uma diva de vermelho aparece como truque de mágica e parece ser a composição de uma de assistente dos mágicos de festa infantil e musa da revolução.

Os aplausos soam forçados a cada truque de mágica vermelha, não poderíamos levar a sério tal líder revolucionário. Como Mao Tsé-Tung foi parar na mata tropical colombiana, acompanhado de uma musa de lantejoulas escarlate que toca uma lira para incentivar os truques de seu líder? Uma música intermitente impede as questões e já esquecemos do jogo de dominó que insiste em não terminar antes de formar uma estrela de cinco pontas – mais um dos inesquecíveis ícones do comunismo, quase tão explorado e comercializado que a cara de Che Guevara, este último uma das primeiras imagens em cena, estampada na camisa vermelha de um guerrilheiro. O som do acordeão reaparece, com cortes precisos entre uma nota e outra, músicas se alternam com notícias da rádio e estampidos que soam como tiros. Os cortes e a alternância dos sons sobrepõem diversos planos que, quando se mesclam, abrem espaço para o caos. Quando, enfim, o silêncio aparece, 14 Poema do livro Entremilênios, de Haroldo de Campos.

“A musa não se medusa: contra o caos faz música”14.


Empunhando uma bandeira vermelha, a diva dispara uma canção que atribui sua existência rebelde ao mundo, o grande responsável por fazê-la assim: rebelde e cheia de dor. E quando o acordeão volta a uma posição de narrador, cresce a sensação de que a musa está prestes a celebrar a festa que ameaça acontecer, mas volta a ser impedida pela rádio que comemora a despedida do maoísmo do território colombiano. O sangue esquenta conforme a música acelera, a musa retoma seu canto e faz meu ranço militante perder toda a timidez, os ícones trazidos pelas máscaras de Fidel e Che voltam a ser Deuses e logo estou com o punho esquerdo fechado, preparado para se erguer em nome da Revolução. Mas quando um baile entre Che e Fidel começa em cima da mesa, antigo campo de batalha de dominó, me lembro que os ídolos devem todos morrer com sua ladainha de perspectiva

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histórica. A dupla se separa e se contenta em ensimesmados dois para lá dois para cá, enquanto a diva nada tímida avança em direção à plateia e a Revolução nunca esteve tão próxima. “Eu sou rebelde porque o mundo me fez assim Porque ninguém me tratou com amor Porque ninguém nunca me quis ouvir eu sou rebelde porque sempre e sem razão me negaram todo aquilo que pedi e me deram somente incompreensão” "ACUSAMOS O MAOÍSMO DE ATRAPALHAR OS INTERESSES REVOLUCIONÁRIOS COLOMBIANOS!"– e vejam bem.... a China segue bem, obrigada! “Eu sou rebelde por que sempre e sem razão me negaram tudo aquilo que pedi e me deram somente incompreensão”


O MAOÍSMO FOI EXPULSO DA COLÔMBIA! VIVA! _ E vejam bem.... a China segue bem, obrigada! Mas, cá entre nós, ninguém defende fervorosamente a China, não é? Só Cuba passou no teste, está aprovadíssima e ainda tem praias paradisíacas! O quê? A Venezuela? Não, Não, não vamos perder o foco. A aguda voz da vívida cantora entra pelos ouvidos e parece se espalhar pelo corpo e, quando a cortina militar volta a se fechar, todos se mexem nas poltronas ao som de um pancadão que faria qualquer diva perder a compostura. Em uma projeção na antena parabólica, guerrilheiras organizadas dançam acompanhando a batida que toma o espaço e os corpos. “Não somos contra o Sistema, o Sistema é contra nós!” ecoa por todo o teatro, enquanto a legenda diz que se eu não puder dançar, não farei parte de sua Revolução – maldita Emma Goldman que se embrenha como um demônio em meio às máscaras dos homens que violentaram e assassinaram em nome de uma promessa de Futuro que nunca chegou. “Erro! Erro! Erro no Sistema!” Um pico de velocidade instaurado pela música faz não sobrar pedra sobre pedra em opiniões pré-concebidas sobre a violência das guerrilhas e das Revoluções, tampouco permite que se mantenham discursos ideológicos pelos quais qualquer um que já ousou sonhar com um mundo melhor volta, vez ou outra, a se apaixonar. A racionalidade estremecida agora já colapsou e o corpo faz parte da peça e toma as rédeas do pensamento, que atinge uma velocidade alucinante, a ponto de tensionar os músculos e dar nó no peito que parece prestes a gritar – à merda todos os Estados!

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Gênios, deuses e ícones de repente se tornam imagens fajutas às quais insistimos por tanto tempo em nos apegar, buscando escapar da mediocridade do presente. Quando a música desaparece prontamente a cortina com estampa militar volta a cair revelando homens camuflados que, em seu descamuflar, revelam a presença de Simón Bolívar, aquele grande descolonizador liberal e aristocrata, entendido como líder revolucionário. Líder por líder, cada um se contenta com a Revolução que lhe cai bem. Em um salto para um passado, Bolívar rouba a cena com sua máscara, entrando para o panteão dos ícones a quem são atribuídos feitos que parecem sempre mal contados ou inventados. O salto temporal ridiculariza os revolucionários consagrados do século XX e conversa com o processo de criação da própria peça, que foi


feita como terceira parte de um tríptico, no entanto é a quarta obra da série de Mapa Teatro que pretende realizar uma anatomia da violência na Colômbia. A peça parece surgir, então, do passado: como uma das antessalas que resultaria em Los incontados: un tríptico. E se a Anatomia pode ser pensada como a arte de dissecar as partes dos corpos organizados para lhes estudar a estrutura, em La despedida é a guerrilha que é jogada no palco para ser dissecada na estrutura da História – e lembremos: “a História oficial já está contada, nunca tivemos um dia de paz!”, bradou Heidi Abderhalden em um dos primeiros encontros de criação da peça, poucos dias após a assinatura do Acordo de Paz entre o Estado Colombiano, representado pelo presidente Juan Manuel Santos, e as FARC, em 24 de novembro de 2016. Enquanto vemos em cena a máscara de Bolívar, corpo quase morto carregado por figuras camufladas, a antena parabólica traz uma notícia bombástica: a espada de Simón Bolívar foi roubada, em sua própria casa. O gesto foi a estreia performática e propagandista do grupo guerrilheiro Movimiento 19 de Abril (M-19), fundado e comandado por Jaime Bateman Cañon. O grupo hoje em dia é um partido, mas antes de capitular foi responsável por outra ação marcante da história das guerrilhas colombianas:

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em 1985, o M-19 ocupou o Palácio da Justiça exigindo a punição do então presidente Belissário Betancourt, por crimes contra a população (Oliveira, 2013). Hoje em dia, o Estado é acusado na Corte Interamericana, consequência da atuação assassina do Exército, que invadiu o lugar e fez o que sabe fazer de melhor... voltemos aos horrores das guerrilhas. Bastaria o roubo da espada para trazer Bolívar de volta ao imaginário popular, mas o ícone seria notícia uma vez mais quando ninguém menos do que Hugo Chávez aparece em vídeo defendendo a exumação de seu corpo, alegando que Bolívar foi assassinado por arsênico, administrado em pequenas doses. No panteão dos revolucionários surge, então, essa outra figura que, no entanto, não aparece com sua máscara, mas em vídeo, completamente calcado na realidade. Talvez Chávez não seja lembrado pela História por liderar uma Revolução, não é digno, portanto, de máscara – já para fora do panteão! A anatomia da violência orquestrada pelo Mapa Teatro ultrapassa os limites territoriais e já se espalha por outras partes da América Latina. O líder popular venezuelano emerge para nos lembrar do mais nefasto desdobramento das guerrilhas latino-americanas e quando um regime totalitário se consolida a cada dia, o Nobel da Paz ser dedicado a um acordo bastante polêmico, para não dizer duvidoso, não parece assim tão absurdo (El presidente..., 2016). A música suave passa a ser acompanhada pelo acordeão e, quando o bumbo começa a soar, o cenário se move e a música abre espaço para o vulto do dito descolonizador, Bolívar. Não passa de um vulto que leva sua espada, preso em um passado como ícone que continuará sendo evocado de tempos em tempos em nome de algum interesse político. Conduzida pelo acordeão e pela lembrança da espada, a peça se torna palco de outro vulto que se apresenta prontamente: Jaime Bateman Cañon.

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Vos fala Jaime Bateman Cañon, comandante e membro fundador do M-19, revolucionário de tempo completo. A oligarquia ensinou ao povo que a Revolução é um desastre e que a Revolução é uma hecatombe. Mas o povo pensa o contrário, porque para ele a Revolução é uma festa. Não é necessário discurso ideológico para vincular as massas à Revolução [...]. Não podemos esquecer a maneira de fazer política bem. Fazer política bem é como servir um sancocho; tem que colocar a batata, a mandioca, o plátano, tem que mexer e colocar música, fazer sombra debaixo da amendoeira, porque sem música e sem amêndoa não há sancocho que fique bom. Tem que cantar, tem que sorrir e tem que ser alegre! Porque a Revolução é uma festa! La despedida. Mapa Teatro, 2017a.


O discurso manda às favas a teoria por trás da Revolução, foca no povo e termina com a entusiasmada afirmação de que a Revolução é uma festa. O acordeão endossa o efusivo discurso e a musa cantora volta a aparecer, no entanto, abandonou seu traje vermelho e parece próxima a realizar seu maior sonho: ser miss. A festa que começa não é aquela prometida por Bateman, mas um barulhento concurso de Miss Universo apresentado por um sujeito vestido de branco que tem sua imagem duplicada em uma projeção na antena parabólica. O apresentador da televisão prepara o público para saber quem será a escolhida a mulher mais bela do Universo, enquanto seu duplo de carne e osso cria suspense batendo os dedos no microfone, criando palpitações que arrastam consigo as batidas dos corações ansioso em saber o veredito. “A miss universo 2015 é...”

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A guerrilheira repaginada em miss, com seu vestido branco e não mais escarlate, invade a cena com sua aguda voz, em inglês, interrompendo um breve silêncio do apresentador. “Me!” [eu] canta ela por um longo intervalo de tempo e seu canto é endossado pelo apresentador que declara, efusivamente, a vencedora: Colômbia! Guerrilheiros mascarados se entusiasmam e miram suas armas em direção à plateia, disparando ruidosos tiros de serpentinas que se espalham desgovernadas pelo espaço. A canção da miss se desdobra em exaltação ao seu lindo país e o apresentador, embrenhado na mata que ocupa o palco, cria tensão ao jogar todo o peso do futuro da História na escolha entre Sim e Não.


O onírico concurso se torna o momento da Verdade, trazendo às vistas a discussão em torno ao Acordo de Paz, tema que tomou conta do cenário político colombiano ao longo de 2016, rejeitado em plebiscito por pouco mais de 50% da população que foi às urnas em função de duas palavras antagônicas. A democracia tal como a conhecemos parece tropeçar cada vez mais diante dos resultados de votações dicotômicas, nas quais ambos os lados parecem tender a 50% dos votos. Inevitavelmente, após a vitória do Não, veio a pergunta: quem seria contra a Paz? Mas a Colômbia está salva! Já é miss, escolheu dizer Sim, ignorando o plebiscito e abrindo seus braços calorosos para a Paz. Um taxista me contou que muita gente a favor do Não na verdade só estava tentando sobreviver, pois se viam ameaçados pelas guerrilhas dissidentes das FARC – camponeses constantemente ameaçados para garantir o sucesso deste Estado paralelo. Ora, não serão esses camponeses – muitos deles dependentes da produção de coca (a planta) para garantir sua sobrevivência – que ocuparão cargos nos órgãos burocráticos da democracia representativa. As FARC, afinal, vão se tornar partido , para que se oficializem como mais um dos grupos que atuam a fim de garantir a manutenção do Estado.

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A rainha da beleza continua sua canção sobre as maravilhas de seu reino, enquanto se vê um guerrilheiro levantando timidamente uma bandeirola da Colômbia, será mesmo que deveríamos comemorar? A voz aguda da musa da Revolução convertida em miss é interpelada pelos apresentadores do concurso – o de carne e osso, representação, e o resgatado em arquivos, registrado em vídeo para poder ser reproduzido para todo o sempre – “Excuse me!” [Desculpe-me] dispara a voz aveludada, fazendo com que a música e o canto da miss sejam abruptamente interrompidos. Segundos de silêncio criam o mal-estar que se traduz na fala do apresentador projetado na antena: “Houve um engano...” A Colômbia não é a miss, afinal de contas. Silenciada pelo descoroamento, a musa, que deixou de lado o escarlate revolucionário para vestir o branco da Paz, finalmente parece frente a frente com a irrelevância das decisões que não levam a nada. Nunca tivemos – teremos? – um dia de Paz.

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Com auxílio de uma guerrilheira, a rainha descoroada, que agora traz um canto triste e sem esperança, sai lentamente de cena. Simultaneamente, uma das máscaras icônicas que pairam como espectros fantasmagóricos durante a peça surge por trás da cortina brechtiana, totem de um discurso caduco. Fidel-máscara é acompanhado em seus pequenos e endurecidos movimentos pelo registro sonoro de um discurso com tom de despedida: “Devo, em breve, cumprir 90 anos, eu nunca teria pensado em tal ideia e isso nunca foi o resultado de um esforço, foi capricho da sorte. Logo serei como todos os demais. A todos nós chegará a vez, mas ficarão as idéias... Talvez seja das últimas vezes que eu fale nesta sala. Empreenderemos a marcha e aperfeiçoaremos o que devemos melhorar, com a máxima lealdade e força unida, como Martí, Maceo e Gómez em marcha imparável” (Mapa Teatro, 2017a).


A militância inquestionável de Fidel faz pensar no momento em que perdemos a esperança, se é que um dia houve esperança para Nós, que nos organizamos de maneira exploratória e violenta não só com as pessoas, mas também com a Terra. A despedida de Fidel termina povoada pelos outros ícones das ideologias e poderes de esquerda do século XX. Ícones mascarados que fazem pensar nos mascarados da festa dos Santos Inocentes, em Guapi, confins da Colômbia. As máscaras de Los Santos Inocentes parecem fazer coro com as indefinidas máscaras guerrilheiras, mas não com os Ícones da Revolução, que carregam o peso de uma História que já virou Memória. Ao panteão dos deuses ideológicos se junta Lenin pelo entre da mata. Não são eles, os líderes revolucionários, que aparecem em cena, mas suas máscaras esbranquiçadas que lembram cadáveres. A ânsia pela putrefação dos ídolos e ícones é interrompida pela miss, rainha descoroada, que se desembrenha da mata para declamar um sonho, no qual jovens que parecem fantasmas se dirigem à morte. Cantam e trazem a lembrança de jovens latinoamericanos sacrificados. Seguem cantando... Esse canto é nosso amuleto.

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O delírio da miss evoca o canto dos jovens, o cenário rodopia e as luzes vindas da projeção se espalham disformes pelo espaço, criando um plano que parece – quase ao final da peça – acolher todos os desdobramentos da apresentação, que antes apenas pairavam pelo palco. O movimento do cenário é acompanhado por um canto que não se percebe direito de onde vem, uma sonoridade estranha e, ao mesmo tempo, avassaladora, acompanhada pelas luzes da projeção que tinham como alvo a tela de um dos módulos do cenário. E faz com que se movam as luzes da projeção, movimento que ocupa todo o espaço do teatro, mergulhando a plateia em um mundo que se cria conforme o canto se espalha. Talvez não um mundo, mas um percurso que não se resume a ponto de partida ou chegada, se expande e se encolhe conforme a vida se faz nesse território.

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E, quando o palco para de girar, surge um xamã acompanhado de uma guerrilheira que veste uma máscara de cor cadavérica já reconhecida como elemento estruturante da peça, no entanto os traços do rosto pálido são inéditos. É Karl Marx o ícone esbranquiçado com o qual se depara o Xamã. O indígena traz consigo um caricato cocar adereçando sua cabeça, objeto que contrasta com a camisa branca social que veste, “que índio é esse?” alguém poderia se perguntar – "índio bom é índio nu", completaria tal indivíduo, insistindo que respeita os pobres índios primitivos, quem sabe não acaba fundando uma ONG que abate seus impostos garantindo o alívio no peso na consciência? Além da propaganda positiva que vem do tocante gesto altruísta, o que garantirá que você seja visto como um benfeitor da high society, que sonha com o fim da desigualdade social e com o fim da corrupção... desde que índio continue tendo “cara de índio”, porque se for para ter cara de “pobre normal”, melhor ir fazer assistência social em favela, não é mesmo?


O charuto cubano, que aparece em cena sendo prazerosamente fumado pelo xamã, se torna interlocutor de Marx que, com sua folha de palmeira tropical, parece espantar a fumaça, tentando dissipar aquilo que existe para além de sua compreensão, aquilo que ousa existir “em nome de”. Em nome de quê?! Em nome de quê insistimos em existir? Um índio de camisa social rompe com um romantismo que ainda corremos o risco de evocar ao falar dos índios: “oh! como eles são puros e veja só a habilidade com que ela faz aquelas pinturas...”. Eles quem, cara pálida? Guarani, Munduruku, Marubo, Ticuna, Waunana, Matipu, Mapuche, Nasa, Yanaconas... “Índio” não existia antes da chegada do Branco, esse tipo colonizador, extrativista, amante do Estado e da propriedade privada. Verdadeiros carrascos ou carcereiros dos modos de existência que não aceitam se assujeitar ao único ponto de vista admitido por esses Homens que se fazem donos da terra. “Índio” é categoria inventada por aqueles que prezam pelo já caduco discurso dicotômico Eu/Outro, os mesmos que escravizaram os povos africanos e a esses corpos desapossados de si nomearam “Negro”. Subsídios raciais explorados pelo Capitalismo, modo de produção que não se “limita a produzir mercadorias, mas também raças e espécies” (Mbembe, 2018b: 4). 102 103


“Negro” criado como categoria nos idos do século XV, não por mera coincidência, nos primórdios do Capitalismo. Portugueses e espanhóis alegavam ter descoberto um Novo Mundo, onde sua ânsia exploratória se espalhou como peste branca, deixando um rastro de extermínio a cada metro de terras das quais se tornavam proprietários. Propriedade essa construída em cima de sangue indígena e que se tornaria palco para a Escravidão, uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica, na qual a carne humana foi transformada em mercadoria (Mbembe, 2018b). “Índio” e “negro” seguem sendo, hoje, categorias que se referem a um outro que mal é considerado humano, muito menos cidadão de bem. Guarani é transformado em índio para poder ser desindianizado, o que não se resume a vestir camisa social ou ver a novela das oito. A operação principal consiste em cortar as relações que Guaranis-MundurukusMapuches-e tantos outros que agora são “Índio” estabelecem com a terra; em “separar os índios (e todos os demais indígenas) de sua relação orgânica, política, social, vital com a terra e com suas comunidades que vivem da terra — essa separação sempre foi vista como condição necessária para transformar o índio em cidadão. Em cidadão pobre, naturalmente. Porque sem pobres não há capitalismo, o capitalismo precisa de pobres, como precisou e ainda precisa de escravos” (Viveiros de Castro, 2016: 16).


Em cena se vê um índio de calça e camisa social que só não é um cidadão aceitável porque leva um cocar em sua cabeça; “mas até branco usa cocar no carnaval, então tá liberado. Bem-vindo à Civilização, meu bom selvagem!”. Agora você adentra o mundo dos pobres, ou quasenegros de tão pobres... quase? Primeira lição: a partir daí é impossível voltar a ser índio, a meta é ir virando branco (mas é impossível virar branco completamente) (Viveiros de Castro, 2016). Bororo que virou índio que virou cidadão será jogado nas periferias da civilização, em meio a uma guerra da qual ele, involuntariamente, é tornado parte. Trata-se de uma guerra que não atravessa as fronteiras de um Estado-nação e constitui um mecanismo de governo da população que opera não apenas na esfera macropolítica, guerra civil generalizada, mas também engendra guerras das subjetividades (Pelbart, 2017: 21). Dizendo em palavras roubadas de outrém, a população segue sendo o fim último do governo e a guerra como estratégia do poder não deixa de existir, mas não se trata mais apenas do biopoder que garante o corpo são de um cidadão assujeitado ao Estado e enamorado por sua possibilidade de livre circulação e respiração (Sennet, 2003). Estamos embrenhados em uma guerra total que não visa à paz, “mas à manutenção de um estado de insegurança generalizado [...] (Pelbart, 2017: 20). Guerra que já não serve aos interesses do Estado e sim do Capital e, nesse movimento, opera em nome da governança neoliberal, que age no sentido de conferir ordem à população. Para além de bastião da ordem, também máquina de produção de cidadãos, ou seja, guerra de subjetividades que opera na modulação da população e suas condutas, configurando uma guerra contra a própria população, com o objetivo de “manter e aprofundar clivagens que atravessam nossas sociedades, agora em nível planetário” (Pelbart, 2017: 6). Não, não, não! Veja bem, meu caro! A Colômbia assinou o Acordo de Paz com as FARC, mesmo após a maioria da população se posicionar, em um referendo, contrária ao acordo – e viva a Democracia! Juan Manuel Santos, o presidente responsável por tal façanha, foi coroado com o prêmio Nobel da Paz, dessa vez foi de verdade, não lhe arrancaram a coroa com um choque de realidade. A Paz está oficializada, voltem todos para suas casas ou barracos ou becos e durmam tranquilos. E não é que as FARC vão virar partido, seguindo o mesmo caminho do M-19? Será que acreditam mesmo ser possível combater o Estado estando inseridos em sua maquinação burocrática, atuando em consonância com sua lógica? E agora a classe média de esquerda vai se apaixonar pelos ex-guerrilheiros? Não importa, mais do mesmo... a pergunta é, antes, “a quem serve a Paz?”.

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Nasa virou índio e vestiu camisa social para virar cidadão pobre, ou melhor, Negro. Negro, sim, senhor, pois as guerras que se reiteram contra a população têm sua origem no colonialismo. Desterritorializados, índios são assistidos por autoridades estatais ou ONGs para se tornarem cidadãos pobres que, como é de praxe com os pobres, devém Negro. Pois a guerra seguirá sendo contra eles, uma vez que a lógica colonial segue operando nas periferias e “o tipo de ‘raça’ produzido pelo capitalismo da era neoliberal tem, no fundo, algo a ver com aquilo que constituía a condição negra entre os séculos XV e XIX. Trata-se de uma nova ‘raça’ que transcende as questões relacionadas a aparência, cor da pele ou origem. O Negro já não é apenas o homem negro, africano ou de origem africana, mas todos os que hoje formam uma humanidade excedente em relação à lógica econômica neoliberal” (Mbembe, 2018b: 27). Marx e Xamã em cena, o alemão e o índio, o europeu mascarado como ícone inquestionável não chegou a ver a sofisticação dos campos de concentração, e você já ouviu falar da Clevelândia do Norte, ali no finzinho do território de nosso Estado-Nação tropical e abençoado por Deus? Pois foi ali mesmo que o Brasil teve seu próprio campo de concentração e extermínio, no começo do século XX (Romani, 2003). Senhor Marx, não foi o senhor que defendeu a conquista do México? Veja bem, meu bem, tem coisas que uma pessoa só entende no corpo, aqui no Sul o solo fica mais fértil com o ferro do sangue de indígenas assassinados. Índios e também de negros, pobres, mulheres, gays, travestis, transexuais, drogados, prostitutas, andarilhos e também daqueles que não querem pertencer a nenhuma categoria. Em nome de Deus, na glória da pica e em função do Capital. E ressoa o relato da miss enlouquecida, descoroada, que se recusa a ser pacificada e se embrenha na mata:


“Vi una sombra diferente, como las que proyectan las nubes cuando se mueven aprisa por un gran prado, aunque esta sombra no la proyectaba ninguna nube,. Los vi. yo Estaba demasiado lejos para distinguir sus rostros. Pero los vi. No sé si eran jóvenes de carne y hueso o fantasmas. Pero los vi. Probablemente eran fantasmas. Pero caminaban y no volaban, como dicen que vuelan los fantasmas. Entonces que puede que no fueran fantasmas. Supe también que pese a caminar juntos no constituían una masa. Imaginé que también ellos habían vagado por las montañas nevadas y que allí se habían ido encontrando y caminando juntos hasta formar un ejército que ahora se desplazaba por el prado. Ellos por un lado y yo por el otro. Vi las cumbres alpinas como un espejo, abolidas las leyes de la física, con dos lados: de un lado del espejo había salido yo y del otro habían salido ellos. Caminaban hacia el abismo. Creo que eso lo supe desde que los vi. Sombra o masa de niños, caminaban indefectiblemente hacia el abismo. marchaban hacia la guerra entonando canciones. Los oí cantar, los oigo cantar todavía, ahora que ya no estoy en el valle, muy bajito, apenas un murmullo casi inaudible. Los oí cantar y me volví loca, los oí cantar y nada pude hacer para que se detuvieran, yo estaba demasiado lejos y estaba muy cansada para bajar al valle, para ponerme en medio de aquel prado y decirles que se detuvieran, que marchaban hacia una muerte cierta. Los muchachos fantasmas cruzaron el valle y se despeñaron en el abismo. Un tránsito breve. Y su canto fantasma o el eco de su canto fantasma, que es como decir el eco de la nada, siguia marchando al mismo paso que ellos. Una canción apenas audible, un canto de guerra y de amor, porque los niños sin duda se dirigían hacia la guerra pero lo hacían recordando las actitudes teatrales y soberanas del amor. Pero qué clase de amor poderian haber conocido ellos?, pensé cuando el valle se quedó vacío y sólo su canto seguía resonando en mis oídos. El amor de sus padres, el amor de sus perros y de sus gatos, el amor de sus juguetes, pero sobre todo el amor que se tuvieron entre ellos, el deseo y el placer. Y aunque el canto que escuché hablaba de la guerra, de las hazañas heroicas de una generación entera de jóvenes latinoamericanos sacrificados, yo supe que por encima de todo hablaba del valor y de los espejos, del deseo y del placer. Y ese canto es nuestro amuleto” (Bolaño apud Mapa Teatro, 2017a).

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Não bastasse o passado de colonização e etnocídio, os povos que sobreviveram em território colombiano, principalmente aqueles que habitavam e habitam a floresta – para falar como branca romântica que acha que índio é tudo igual –, vivem, hoje, uma versão da violência atualizada pelo neoliberalismo, são vítimas constantes de um conflito que não lhes diz respeito, suas mortes são “dano colateral” de operações paramilitares, estatais ou guerrilheiras. O canto xamânico é também o canto dos jovens que vão em direção à morte e evoca seus antepassados, testemunhas mudas da invasão colonialista, das carnificinas lideradas por paramilitares, dos assassinatos pelas mãos de guerrilheiros ou narcotraficantes, das mortes consequentes das fumigações aéreas, insistentemente ordenadas pelo Estado. E o velho alemão se apresenta ao Xamã, que reclama de seu atraso! Veja bem, todas as esperas estão mesmo por decepcionar, 200 anos de atraso! Tua máscara pálida não engana ninguém, caro Marx! Para além do Estado como monopólio legítimo da violência, que tal operar a violência em outro registro? Não se trata mais da perspectiva dos oficiais do exército, tampouco do francês narrador do surgimento das FARC-EP, tampouco das guerrilhas. O Mapa Teatro traça um plano cheio de contradições, constantemente em risco de perder seu contorno. O xamã de camisa social segue sendo nosso contato com o real, lembre que na selva amazônica não há primavera, os povos aqui fazem carnaval e são antropófagos! Veja bem, senhor Karl, isso que o senhor traz em palavras, aqui já vivíamos na pele... sociedades ditas primitivas recusam o Estado e se contrapõem à violenta subordinação das diferenças a uma unidade falsamente homogênea (Tible, 2018: 163). Não se trata, no entanto, de um ímpeto de abolição do poder, mas de um movimento anterior a isso, que consiste em reconfigurar as formas de trabalhá-lo. Não é abolir o poder, senão neutralizá-lo. Na tradicional divisão entre selvagens e civilizados, o aparecimento do Estado não é apenas o grande divisor entre as duas categorias, como o que traça a linha que transforma o Tempo em História (Clastres, 2017: 175). A opção de colocar em cena um Marx de látex acinzentado junto a um Xamã que fuma charutos cubanos nos lembra que a América Ameríndia extrapola as categorias de Tempo e Espaço dos ícones revolucionários.

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O que resta ao europeu macilento é ouvir o que tem a dizer esse selvagem que nada tem de Bom, nesses trópicos que nada têm de tristes. E o que o Mapa Teatro coloca em jogo e em cena é um encontro que, em sua qualidade de acontecimento, não se produz no tempo. O encontro final do tríptico formado por 1+1+1=4 do Mapa Teatro é acontecimento no qual o tempo não forma um círculo, tampouco uma linha reta cronológica. No encontro entre Marx e xamã, o Mapa Teatro traz à tona a ideia de Comunismo Primitivo; mas também podemos pensar em uma suficiência intensiva, ou seja, que comporta uma vida intensivamente suficiente e não quantitativamente ideal (Danowski; Viveiros de Castro, 2015). O encontro entre índio “pacificado” e revolucionário convoca um duplo do primeiro, um modo de desorganização que não corrobora com “a força atuante do Um, a vocação da recusa do múltiplo, o temor e o horror da diferença” (Clastres, 2004: 87). Senhor, Marx, estava sendo dito: seu mundo tem que acabar. E o meu, os nossos e de tantos outros que fazem parte do Mundo que há tanto tempo vem sendo aceito como o único possível. Como lembram Débora Danowski e Eduardo Viveiros de Castro: “Falar no fim mundo é falar na necessidade de imaginar, antes que um novo mundo em lugar deste nosso mundo presente, um novo povo; o povo que falta. Um povo que cria no mundo que ele deverá criar com o que de mundo nós deixamos a ele” (Danowski; Viveiros de Castro, 2015: 159). A luz diminui enquanto uma tela onde eram projetadas imagens de matas, fazendo o pano de fundo para o duo entre Marx e o xamã, se desfaz e, então, as luzes e cores projeção não têm mais uma superfície definida e se espalham pelas paredes e pelo ar. O espaço passa a ser iluminado por um feixe de luz vindo do projetor que se difunde pela fumaça, enquanto o canto amuleto impregna os corpos presentes, como um mantra que permite dissolver a lembrança dos ícones e suas máscaras opacas. A peça parece deixar em aberto caminhos futuros, caminhos estes que podem ser esperançosos para os mais otimistas, ou assustadores para quem já se cansou de esperar por um mundo possível. De todo modo, La despedida termina abrindo possibilidades para percursos incógnitos e permite dar um feliz adeus ao século XX.

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Etnoficções, fabulações e equívocos. O laboratório de artistas Mapa Teatro tem se destacado no contexto latino-americano por seu caráter experimental que se distancia dos formatos tradicionais das artes cênicas. O grupo transita entre as artes visuais e o teatro, desenvolvendo formatos múltiplos que são vistos mais como experiências do que como representações (Diéguez, 2005; Sánchez, 2016). Além disso, o Mapa Teatro concebe projetos nos quais participam artistas de diferentes disciplinas e, ao longo dos anos, “desenvolveram diversas propostas que expandem a teatralidade, tanto pelo modo como configuram o palco, pelos espaços nos quais intervém, como pelo trabalho humano e social no qual estão envolvidos” (Diéguez, 2005: web). Vale notar que, por não ter sido reconhecido como arte até o começo do século XX, o teatro se tornou um campo propício para aqueles que queriam transitar entre os limites de diversos códigos artísticos ou teóricos (Sánchez, 2007a). Nesse sentido, o Mapa Teatro se aproxima do que passou a ser conhecido como artes vivas. Relacionado frequentemente, em solo europeu, ao teatro documentário, o Mapa Teatro insiste em se afastar desta definição que carrega um compromisso representativo com a política e a militância – a saber, a macropolítica. A produção do grupo pode ser situada em um campo expandido do teatro, configurando um exercício de distanciamento da representação (Sánchez, 2016: 8). Este teatro em um campo expandido é, ainda, associado à variedade de mídias disponíveis que permitem explorar imagens que não se resumem à representação (Fabbrini, 2016: 20-36), ou seja, permitem utilizar os múltiplos meios disponíveis para habitar um espaço, configurando um teatro que modifique a matéria teatral e a matéria vida, tão fina. A opção em se distanciar de uma representação da realidade material, ou seja, a escolha de evitar um modelo de teatro preso na representação da realidade existente, é mais do que uma aposta estética do Mapa Teatro; essa negação da realidade como constante já estabelecida é o que abre passagem para uma pesquisa ética, estética e política, que permitiu ao grupo encontrar suas próprias formas de fazer e suas táticas de trabalho “na escrita e na encenação [mise en scène], que permitem revelar uma antropologia visual desordenada ou uma caprichosa etnografia experimental” (Mapa Teatro, 2017b: s/p).

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O grupo opta por vincular sua pesquisa, pensamento-criação, à noção de etnoficção, investigando o reencontro do ator com o testemunho, bem como do documental com a ficção (Abderhalden, 2014: 375). Nesse sentido, o trabalho do Mapa Teatro tem como referência a obra de Jean Rouch (1917 - 2004), que em seus filmes experimentou a aproximação da pesquisa etnográfica ao improviso frente às câmeras. Nem sempre é fácil definir a atuação de Jean Rouch. Antropólogo, cineasta, engenheiro civil, contador de histórias, explorador, são algumas das tentativas de defini-lo, porém não podem existir por si só, cada uma de suas ocupações parece ser vital no traçado de seu pensamento, todas parecem percorrer sua criação e não mais se desconectar dela, pelo contrário, se aproximam e encontram intensivamente, à medida que a produção de Rouch se constrói a partir de diferentes modos de operação do pensamento, transitando entre a ciência, a filosofia e a arte. Chamado aqui de cineasta ou antropólogo, suas mais recorrentes definições, Rouch instaura uma antropologia visual que criou composições inovadoras, e polêmicas, entre métodos e pensamentos de diferentes disciplinas, habitando uma fronteira – que não cessou de atravessar – entre o cinema e a antropologia. A produção cinematográfica de Rouch teve início nos anos 1950, cerca de uma década após sua primeira visita à África, ainda como engenheiro, em 1941. Seu interesse pelo continente africano – ou, ainda, por algo que o arrancasse de seu mundo e de si mesmo (Deleuze, 1985b)– o levou a desenvolver sua pesquisa de doutorado, sob orientação do antropólogo Marcel Griaule, em meio aos Songhay (Hikiji, 2013). Desde então, o engenheiro-antropólogo não se separou mais dos encontros vividos em diferentes regiões do continente africano, encontros que seriam, eles mesmos, os pontos de vista apresentados na vasta filmografia de Rouch. 15 "[...] é preciso filmar como se estivesse em transe para que o efeito do lme aproximese do efeito do ritual (Rouch 1978). [...] A câmera do cineasta que participa ativamente da cena filmada possibilita para o público ocidental uma experiência análoga à do ritual africano. Les Maîtres Fous não é apenas perigoso para eles, mas também para nós, espectadores" (Sztutman, 2009: 111).

O que interessa, aqui, na extensa produção cinematográfica de Jean Rouch são as interferências entre os planos da arte, da ciência e da filosofia que contribuíram para uma “reviravolta estética e epistemológica” (Sztutman, 2009: 111), inaugurando uma antropologia compartilhada. Compartilhada, pois suas documentações etnográficas eram submetidas a processos de “autoria múltipla” que, ainda que orquestrados pelo antropólogo, só poderiam existir em sua relação com o grupo filmado, que opinava sobre as imagens captadas por Rouch. Em relação à filmagem, para o cineasta não se tratava mais de registrar em vídeo um acontecimento, como um ritual de possessão, mas de viver um cine-transe, experiência na qual a câmera se tornava participante15 do acontecimento que filmava.


Ora, conquistara sua participação na vida do grupo e, com a câmera em mãos, vivenciara a seu modo o que queria dizer. Mas, para além de uma experiência que constrói uma sensibilidade singular no cineasta – como é dito comumente a respeito da prática de Rouch -, chama atenção o interesse em possibilidades de comunicação com o Outro, facilitada pela existência de imagens. As imagens registradas por Rouch eram apresentadas, primeiramente, aos participantes do filme, criando uma “possibilidade extraordinária de comunicação direta com o grupo[..]” (Rouch, 1974: 43). É a reciprocidade que parece interessante para o processo do cineasta, sua escuta do outro, “um tipo de trabalho a posteriori que já é uma nova maneira de relação entre o antropólogo e o grupo que ele estuda, o primeiro passo em direção ao que chamamos de ‘antropologia compartilhada’” (Rouch, 1974: 43). As imagens criadas nesses processos potencializam a dimensão compartilhada e não têm interesse em reproduzir um objeto de estudo tal como ele é. Elas querem dar passagem a dilemas conceituais que, lançados ao mundo, se espalham e delineiam discussões cruciais para “uma antropologia contemporânea” (Hijiki, 2013: 113), a começar por uma crítica às dicotomias que até então fundamentavam a Antropologia (Natureza/Cultura, Nós/Eles, Ocidente/ Oriente). O processo e, mais objetivamente, as imagens de Rouch produzem pensamentos inseparáveis de perceptos e afetos (Sztutman, 2009). Tecidas nos encontros entre arte, ciência e filosofia, as imagens dos filmes do antropólogo “torna[m]-se pensamento, capaz[es] de compreender o mecanismo do pensamento, ao mesmo tempo que a câmera assume diversas funções que equivalem verdadeiramente a funções proposicionais” (Deleuze, 2010: 73). Os filmes de Rouch borram a rígida linha divisora entre quem observa e quem é observado, divisão essa que, na Antropologia, “foi sempre consciente. O que caracterizou o modernismo na Antropologia foi a adoção dessa divisão como um exercício teórico através do fenômeno do trabalho de campo” (Strathern, 1987: 258). Sujeito e objeto deixam, nas provocadoras imagens de Rouch, de ser pressupostos e estáticos, indicando caminhos possíveis em uma busca pela simetria na relação com o outro, uma vez que este passa a ser entendido como observador. Vale notar que, em uma elaboração em palavras de algo que as imagens de Rouch já sussurravam, Eduardo Viveiros de Castro e Márcio Goldman consideram importante romper com dualismos da Antropologia, que são cada vez menos

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pertinentes. Propõem, no lugar disso, a elaboração de uma linguagem “centrada nas ideias de rede (que dissolve a distinção entre parte e todo), multiplicidade (que desloca o dilema da unidade e da pluralidade), e simetria ou simetrização (que extrai todas as consequências da falência do contraste entre primitivo e civilizado)” (Abaeté, s/d, web). Os filmes de Rouch extrapolam os limites do registro etnográfico para criar composições nas quais a realidade e o ficcional não se distinguem mais, composições essas que passaram a ser conhecidas como etnoficções. Ao lado daqueles que se tornaram seus companheiros, ou melhor, seus amigos, na produção cinematográfica dita etnoficcional – Damouré Zika, Lam Ibrahim Dia, Illo Gaoudel, Talou –, o francês parece buscar maneiras de traduzir em imagens os afetos vividos nas diferenças existentes em sua relação com o outro que já não é objeto de estudo, mas sujeito e, potencialmente, amigo (Hijiki, 2013: 116). As etnoficções de Rouch são contemporâneas a diversas produções no campo cinematográfico que traziam transformações do sistema de percepção de imagens, que não seria mais sensório-motor, como costumava ser no cinema clássico. Assim, o cinema de Rouch pode ser pensado em relação a um sistema óptico e sonoro, criador de uma outra forma de relação entre imagens, à medida em que uma imagem atual é vista sempre em


relação a uma imagem virtual, imagem mental, e ambas se perseguem em um circuito “em torno de um ponto de indistinção entre real e imaginário” (Deleuze, 2010: 71). O Mapa Teatro, ao destacar a importância dos caminhos abertos pelo cineasta-antropólogo, não limita seu interesse a buscar um método de pesquisa etnográfica que teria como resultado a produção de imagens inseridas em pressupostos formais. Para além de eleger um mestre, o grupo parece situar Rouch como interlocutor com quem o encontro apresenta possibilidade de nomear o que não queria caber nas palavras existentes até então. Trata-se de uma escolha (consciente) poética de se afastar de certos procedimentos atribuídos ao Teatro Documentário, forma teatral na qual a História é o herói principal, representada a partir da montagem, que se vale da articulação entre documentos para afirmar discursos que sintetizam uma postura política em relação a determinado conflito (Sarrazak, 2013). O que é escolhido pelo Mapa Teatro é uma entrada em um espectro de pensamento, um plano conceitual que transborda os limites da palavra e passa a carregar consigo um mundo, no qual o grupo decide habitar, ainda que não em sua totalidade espacial, tampouco temporal. Opta, com isso, transitar por caminhos que já não cabem em uma estrutura dialética e comprometida com os fatos previamente dados, tal como proposta pelo Teatro Documentário. Caminhos múltiplos que se encontram, se cruzam, se confundem e se distanciam, à medida que são percorridos. Percurso que parte de um ponto que não visa a um objetivo definido. Se desenvolve de ponto em ponto e, de repente, é muitos e metamorfoseia em traço intensivo. E pode acabar esbarrando em outros pontos que até então nem pareciam existir. Em 2011 veio à tona, vazou assim sem mais nem menos, um documento que até então estava em propriedade da CIA – parece que o vazamento foi intencional, mas provas não há. E quem poderia imaginar que aquele papel amassado, do qual só ouvimos falar como segredo, cadastrado como irrelevante no inventário, poderia reaparecer tantos anos depois. Finalmente trazido a público, o papel amassado se revela documento histórico importante, discurso escrito a punho por Pablo Escobar, assinado e tudo pelo que me disseram. Era para ser lido em ocasião de sua posse como presidente da Colômbia. Foi recolhido do bolso da camisa que usava no dia de sua morte, em 02 de Dezembro 1993, e, diz-se por aí, mantido em segredo para evitar a desordem.

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O papel amassado, revelado tanto tempo depois sabese lá com que intenção, se torna o ponto de partida de Discurso de un hombre decente (2012), segunda peça de uma anatomia da violência na Colômbia que o Mapa Teatro busca traçar desde o começo do século XXI. Ponto de entrada que, no entanto, tarda a ter seu conteúdo revelado. O que se vê em cena é um programa de auditório desses da televisão, com uma discussão em torno da guerra às drogas, um doutor especializado no tema é quem vai falar, fez sociologia parece, lá vem o sujeito defender a descriminalização das drogas e defender bandido. A apresentadora é a cara da Virgínia Vallejo, jornalista sabidamente envolvida com Escobar, trunfo que carrega consigo bem guardadinho e a permite se posicionar como expert no tema debatido. Seu tom sarcástico não impede que as perguntas deem espaço para o sabido falar. E não é que o suposto sociólogo era mesmo especialista em economia? A plateia descolada e bem vestida, que espera ansiosa para se mostrar eufórica ao ver o sujeito defendendo a descriminalização das drogas, se remexe na cadeira, contrariada e levemente embaraçada por constatar sua própria obviedade. Os trinta anos fracassados da guerra contra as drogas são apresentados pelo doutor como problema de gestão – o fim é correto e ainda falham insistentemente nos meios. "Ora, mas que bobagem!", poderíamos pensar, no entanto o pulha vem armado de uma série de alternativas possíveis que não passam por uma crítica à criminalização das drogas. Em meio ao debate se nota a presença de uma camada fantasmagórica, que se converte em telão ao longo da peça, sobre o qual se alternam documentos e desenhos animados, cinema mudo e textos cheios de subtextos e fotografias sabe-se lá de quem, mas já morreram com certeza.


Nas decisões de montagem são notáveis, em intensidades variáveis, os múltiplos caminhos escolhidos pelo Mapa Teatro, que definitivamente não seguem a linha reta da História, ainda que vez ou outra a cruzem, ou até a acompanhem por alguns momentos. Não é surpreendente que os Abderhalden tenham encontrado em Rouch a ressonância necessária para dar palavra ao que parecia afeto inominável – não que se tenha de nomear, etiquetar, tudo o tempo todo, apesar de ser o que fazemos de melhor. Mas, vez ou outra, para existir em relação ao mundo que nos é apresentado pela História, a escolha de uma palavra pode ser definitiva – para além de uma questão de vida ou morte literais, trata-se de afirmar em nome de quê se vive e se fala. Em nome de quê pode falar um poeta, um artista ou um filósofo? Não em nome da Verdade, uma vez que esta é o conteúdo de nossas palavras, um discurso, e não um nome. Só podemos dizer o verdadeiro, “e é essa falta de um nome que torna tão difícil a quem teria algo para dizer tomar a palavra. Só os espertalhões e tolos falam, e estes falam em nome do mercado, da crise, de pseudociências, de siglas, instituições, partidos e ministérios, frequentemente sem ter nada que dizer. Quem, afinal, encontra a coragem de falar, tem a consciência de falar – ou, eventualmente, de calar – em nome de um nome que falta. Falar – ou calar – em nome de algo que falta significa sentir e colocar uma exigência. Em sua forma pura, exigência é sempre exigência de um nome ausente. E, inversamente, o nome ausente exige que falemos em seu nome” (Agamben, 2018: 92).

A montagem, uma espécie de cut-up para além das palavras, não se apresenta como pano de fundo ou narrador. Tornase personagem ao se encontrar com os sons que passam de um informe oficial sobre os pertences de Escobar no dia de sua morte ao canto de Danilo Jiménez, saído de uma fita cassete encontrada entre eles. Nada do conteúdo do papel amassado. O debate segue e a apresentadora despeja verdades sobre a cocaína e o espaço acelerado é, então, ocupado por um sujeito gordo e sem camisa em meio à mata de coca que compõe o cenário. É ele, o discurso escondido del Patrón, hipnótico e com ares sedutores. “Compatriotas: me chamavam o monstro, o louco, o Robin Hood criollo, el Patrón, el Papá. Hoje me chamam presidente e tenho uma única certeza, sou o personagem mais importante do mundo... depois do Papa”.

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A paixão pelo poder que embala, com uma voz macia, as palavras é assombrosa – ainda que a palavra “assombrosa” seja frequentemente entendida como referente a algo que causa terror, a escolha em dizê-la para verbalizar a cena é devido a seu significado mutável, transeunte entre excesso de terror e excesso de admiração, neste caso específico habitante dos dois polos simultaneamente. Não é de se espantar que aquele cabra meio infrator, meio justiceiro, meio... são mais meios do que permitem os fins de nossas fantasias. O discurso antiestadunidense endossa o projeto nacionalista e belicoso de Escobar, que segue falando em nome da emancipação da Colômbia e valorização de suas riquezas, a começar pelo ouro branco. Mais do que descriminalizada, a cocaína se tornaria a principal indústria nacional e o mercado da droga nos EUA seria controlado pela Colômbia, não mais pelas máfias estadunidenses, grandes espoliadoras das condições de existência dos trabalhadores colombianos envolvidos com a narco-indústria. Impressionante o poder da linguagem, não é mesmo?


Enquanto somos mergulhados no mar de sensações e racionalizações que transbordam o discurso del Patrón, ele já não o é. O grande homem ventríloquo não é mais presidente, se levanta rapper que não faz rodeios: “tudo é negociável, todos negociam” e é mais uma vez el Patrón, cuja existência se mescla com a música cantada e não abre mão de terminar o discurso que já não pertence a ninguém, e se embrenha pelos buracos do corpo humano da plateia que o absorve e, dificilmente, conseguiria entender o que ele representa. Eis aí a escolha da palavra que se fala “em nome de...”, que carrega consigo um mundo no qual o discurso, porta de entrada da peça, não pretende representar nada. Ele se apresenta à medida que se revela. Seu significado não está dado de antemão e, para além de uma síntese previamente buscada em direção à Verdade e ao futuro, ele existe e é no Ali-e-Agora. Em posse de sua existência, o discurso faz fabular, falsificando memórias criadoras de um mundo que se encontra com aquele apresentado por Rouch, e com tantos outros mundos pelos quais poderíamos transitar. Já não vale a perspectiva única da História, uma vez que sua linha se estilhaçou em incontáveis pontos que se espalham pelo tempo e cintilam pontos nodais de cada uma das redes narrativas que se criam no encontro com os espectadores. Abandona-se a memória longa, intimamente ligada às representações e à continuidade, e o que toma conta da peça é memória outra, falsificada e falsificadora, memória curta que saltita descontínua para além do espaço-tempo da peça, atravessa a História e se compõe com memórias de quem quer que seja, criando algo outro a cada vez, cintilando pontos até então adormecidos de memória que já nem sabíamos existir. Múltipla, a memória curta não se resume a um instante e se porventura se encontra com a memória longa e seus decalques, de forma alguma se vê presa a eles, continua a agir à distância, uma vez que “as duas memórias não se distinguem como dois modos temporais da mesma coisa; não é a mesma coisa, não é a mesma recordação, não é também a mesma ideia que elas apreendem” (Deleuze; Guattari. 2011: 35).

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O discurso fictício de Escobar existe ao lado das canções de Danilo Jiménez, que em outros tempos animaram as festas del Patrón, e agora estão aqui num tempo que já não se sabe muito bem qual é, pois não pertence à linearidade cronológica da História, se multiplica em saltos e linhas que se conectam a pontos de memória dos espectadores. Pontos que ocupam as mais diversas posições e velocidades no tempo-espaço, memória curta daqueles que são arrastados pelos movimentos da apresentação. O espectador é agente que se associa às sensações do encontro com a peça, contato que se realiza como ato criativo e envolve condições que vão além do encontro predeterminado. Cria-se um território relacional composto de encontros, movimentos de pensamentos e esquecimentos, apresentando múltiplas entradas e saídas possíveis de uma função fabuladora “acionada pela via das emoções e, por isso, particularmente potente para criar deslocamentos, inventando modos distintos de ver e sentir a vida” (Greiner, 2017: 73). O discurso centralizador é insistentemente impedido de se enraizar na medida em que outros elementos e imagens da montagem surgem sem avisar; alguns voltando do passado cronológico da própria apresentação, talvez a risada aguda da apresentadora ou divagações sobre o debate inicial; outros não se sabe muito bem e, sem avisar, uma mata de coca se desprendeu da folhagem que compunha o cenário e parece sempre ter estado ali, e logo não está, sempre esteve em outro lugar; trechos de textos e imagens projetados na tela transparente, que poderia passar por uma mosqueteira protetora dos males da mata, da malária. O papel central que o discurso parecia ocupar, disparador inicial da trama da peça, é deslocado na imediatidade de cada encontro com uma imagem. Descolado de seu papel de história inventada, o discurso só se apossa de sua existência quando se embrenha em uma rede, pela qual percorre em direção aos encontros que pretendem surgir. E o discurso que faz fabular? cria redes pelas quais é criado e quando se diz já não é, pois está em tantas outras que o instauram como existente, e também se tecem à medida que os encontros se manifestam.

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Todos los hombres y mujeres que trabajan para mí, en este día glorioso de la patria, entrarán a formar parte de nuestra fuerza pública en comandos especiales que se consagrarán, día y noche, a combatir el terror. [...] Hoy quiero sentar un precedente inédito en nuestros anales patrios. Voy a entregarle al país, a esta nación amada, todas mis tierras. Desde hoy constituirán patrimonio público. Decreto que todo lo que poseo en finca raíz ingrese desde ya al tesoro nacional. Comuníquese y cúmplase. Yo soy un hombre con inclinaciones de izquierda aunque, en ciertos momentos, me han hecho inclinar a la derecha. Discurso de un hombre decente. Mapa Teatro, 2012


Em outras palavras, o discurso, tal como apresentado pelo Mapa Teatro, mentira sincera – falsificação –, só conquista sua existência nos encontros que não podem ser situados no Aqui-e-Agora. É nesse emaranhado de redes resultantes de encontros múltiplos que os sentidos se fazem e se desfazem, criando olhares singulares em direção aos mundos que se fazem ver ao longo da apresentação. Parece possível dizer, então, que uma rede não deve ser pensada como “uma coisa” , mas sim como uma perspectiva, interna ou imanente, o movimento que se registra conforme uma “coisa” se associa a outros elementos e, consequentemente, passa a diferir de si mesma. A partir dessa consideração, pode-se pensar que “não há pontos de vista sobre as coisas; as coisas e os seres são os pontos de vista” (Viveiros de Castro, 2007: 98). Ao falar dos filmes de Jean Rouch, alguns poderiam se contentar em dizer, levianamente, que o ponto de vista do outro ganha espaço... Não seria esse um comentário colonizador e assistencialista, além de tacanho? Seus processos cinematográficos não são generosos espaços onde os nativos podem apresentar seu ponto de vista; os filmes são pontos de vista. Pontos de vista múltiplos que não pretendem portar a Verdade, as chamadas etnoficções de Rouch expandem os limites não só do registro documental, mas também da própria noção de ficção, inseparável de um modelo de verdade que necessariamente reproduz aquele que considera o único legítimo ponto de vista (Deleuze, 2013: 182). O que da pesquisa do Mapa Teatro parece ressoar com as imagens-pensamento de Rouch é um deslocamento em relação a uma lógica dicotômica, na qual só haveria um ponto de vista possível em oposição à narrativa oficial e unívoca da realidade. As breves referências dos diretores do Mapa Teatro ao cineasta francês não são ignoráveis, pois comportam uma escolha decisiva para a produção do grupo. Falsificador, o Mapa encontra possibilidades de atualizar a História. Possibilidades essas que não se resumem a contestá-la, criticá-la ou reescrevê-la a partir de ficções. Não há qualquer interesse em ficcionar supostas linhas de fuga já previstas pela inquestionável Verdade; a ficção não passa de um artifício do qual alguns lançam mão para contar a Verdade de um jeito que os permita dormir em paz.

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O que interessa aqui é o discurso de Pablo Escobar, que já não o pertence, mas que mania de personalizar as coisas! O discurso se embrenhou pela duração da apresentação a ponto de ser tomado como verdade, com v minúsculo, ou ponto de vista. Um ponto de vista, que nada tem de oposição àquela Verdade com V maiúsculo, poderia se opor, antes, à ficção. Pois não é a Verdade, “que é sempre a dos dominantes ou dos colonizadores [...]” (Deleuze, 2013:183), a oposição da ficção, é a função fabuladora que se opõe a ela, mas esse duo não faria reativa a potência do falso? Sim ou não, não sei, a fabulação aparece como possibilidade de narração que já não cabe na linearidade da História, à medida que “afirma a simultaneidade de presentes incompossíveis” (Deleuze, 2013: 161).


O Mapa Teatro não parece interessado em recontar a História, não imprime julgamentos morais em relação à candidatura de Escobar à presidência, o bem e o mal não participam da composição, um tanto desencadeada, construída a partir de um pedaço de papel. O discurso de Escobar tenta enraizar-se, ambicioso e sedutor, mas as intervenções de seres, tempos e movimentos da própria peça, articuladas à memória curta dos espectadores – bom, falo por mim, talvez composta com outros – impedem que a peça se apresente como Verdade, pois não há oposição à História, memória curta não quer saber de Papai, Mamãe, Estado, Sociedade, não quer enraizar o sentido da apresentação em torno da imagem de um Homem que é tudo isso ao mesmo tempo. Bem feitas as contas, o disparador é mesmo o papel amassado - mais um ponto de vista. El Patrón é apenas a imagem que ocupa aquele lugar central ao qual voltamos insistentemente. E queremos voltar, memória longa é decalque e não abre mão da noção de falta que organiza o corpo e o pensamento em torno de Um. A mata de coca, o cantor de Rap, as desconexões do tempo e do espaço, a exposição quase cruel de Danilo Jiménez, ponto de conexão com o real, são existências que nem sempre têm voz, mas não permitem que o pensamento arboresça e se torne pensamento pronto, produto do já verdadeiro e assombroso discurso de Escobar.

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E, tentativa de árvore sem solo, Escobar não passa de porta-voz de um discurso feito verdade, autônomo em sua existência e em sua função fabuladora, que não exime a plateia de uma certa responsabilidade ao obrigá-la a deglutir a História e destituí-la junto a raízes de memória longa, decalcadas a partir de uma “concepção ditatorial do inconsciente” (Deleuze; Guattari, 2011: 38) – daí o assombro causado pelo discurso da imagem Escobar. Falsificado e fabulador, o discurso só pode existir na qualidade de equívoco, e é sua equivocidade que o permite (quid juris?) fabular. Assim como a fabulação não corresponde à ficção, tampouco se opõe ao real, o equívoco não corresponde ao erro e a Verdade não é seu oposto. O que se opõe ao equívoco é o “unívoco, enquanto pretensão à existência de um sentido único e transcendente” (Viveiros de Castro, 2009: 93). Se nas produções dirigidas por Rouch “é por intermédio da função fabuladora que o negro, o negro africano, vai reencontrar e reinventar seu relacionamento com seu povo” (Deleuze, 1985a: web), nas produções do Mapa Teatro a função fabuladora parece dar a fala a vozes da memória curta de quem assiste à apresentação, vozes e gritos inesperados – com diferentes durações e graus de intensidade – que nem sempre serão lembrados, o esquecimento é parte do processo. Para além do que é apresentado, e poderia ser reapresentado incontáveis vezes, pelo Mapa Teatro, algo se passa entre os diversos elementos da peça – imagens, sons, seres, lapsos da História, lampejos de memórias – e os espectadores, com velocidades e intensidades diferentes que instauram novas configurações existenciais, ou modos de existência. É precisamente nesta transformação, no movimento dessa transformação, que a arte encontra sua potência.

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En cierta ciudad muy lejana... O ponto de entrada em Los Santos Inocentes (2010) é uma visita de Heidi Abderhalden a Guapi, com a intenção de comemorar seu aniversário que coincide com o dia dos santos inocentes, 28 de dezembro. A visita de Heidi a esse povoado da costa pacífica da Colômbia foi o disparador da criação da primeira peça que compõe a Anatomia da violência na Colômbia. Em cena, Heidi conta ao público: “Nasci no dia dos Santos Inocentes, 28 de dezembro. Desde esse dia escuto piadas pesadas e coisas graves que não são certas. Houve um tempo em que comemorar meu aniversário me era completamente indiferente, mas em 28 de Dezembro de 2009 decidi comemorar meu aniversário em Guapi, uma população da costa pacífica colombiana. Todo ano, no 28 de Dezembro, se comemora ali a festa dos santos inocentes, uma festa que me era completamente desconhecida. Por terra, Guapi é uma população ilhada. No lugar de estradas há rios, selva, mar, o oceano pacífico” (Mapa Teatro, 2010).

Seu relato pessoal da visita a Guapi é a primeira cena da peça, que se desdobra pelas memórias pessoais e coletivas da História recente do país – conflitos que fizeram da Colômbia um dos países com maior número de deslocados internos no mundo. A memória de Heidi reaparece como etnoficção nas palavras de Julián Díaz, que entra em cena para se apresentar como nascido na costa pacífica colombiana, não sem antes desvincular sua negritude das categorias de africano, afro-americano, índio, europeu black. Nascido em Candelária, departamento Valle de Cauca, situada na região metropolitana de Cali, costa pacífica, Julián se embrenhou pela capital, onde se tornou um ator famoso e vive ainda hoje. Ri debochado e um pouco sádico para depois contar ao público que retornou a sua região ao visitar Guapi, aquele fim ou começo de mundo, com a intenção de gravar um documentário fictício, etnoficção, sobre a festa dos Santos Inocentes. Um telão transmite cenas de Heidi chegando a Guapi, enquanto o palco saturado de serpentinas, balões coloridos e outros apetrechos festivos é invadido por uma salsa temática de aniversário, acompanhada de pessoas dançantes e mascaradas que celebram o envelhecimento de Heidi. Quando a música para, um senhor – o único que não dançava – oferece um bolo à aniversariante, enquanto canta seus votos de felicidades. É Don Genaro, tocador de marimba, que canta e se move em um ritmo que destoa de seu entorno. Assim como Danilo Jiménez em Discurso

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de un hombre decente e Los incontados: un tríptico, o homem não parece pertencer ao todo, no entanto não é um outro, pois isso ainda implicaria uma relação.

Parece descolado de seu entorno, habita um outro plano, que vez ou outra se encontra com o plano onde a festa ocorre. Assim como Danilo Jímenez em Discurso de un hombre decente don Genaro dispõe “de um espaço próprio de atuação no interior do dispositivo cênico: ainda que coincida com o tempo, sua ação nunca chega a se enredar com a dos outros atores” (Sánchez: 2016: 91). Músico e espectador ao mesmo tempo, o cantor cala e o telão diz à plateia que o dia dos Santos Inocentes relembra o massacre de Herodes, rei que não suportou a ideia de perder a majestade para um bebê prometido a ser rei dos judeus. Pretendia executá-lo, ludibriando os três magos que iam em busca do menino, para que eles lhe contassem onde estava o bebê que nascera para ameaçar o poder do rei. Os três não abriram a boca e Herodes “que tinha sido enganado pelos magos, ficou muito irado e mandou massacrar em Belém e nos seus arredores todos os meninos de dois anos para baixo [...]” (Mateus, 2: 16).


Uma voz surge para declarar que todos são inocentes e não houve delito, a festa volta a acontecer e ainda não se sabe ao certo o que ocorreu quando Heidi volta a contar as lembranças de seu aniversário, já não é possível saber se são mesmo lembranças ou memórias inventadas. Chega no hotel, ocupado por policiais com suas metralhadoras, sem saber o que a polícia faz ali; quer ir às ruas para ver a festa, mas ainda é cedo. Nada resta a não ser ir ao quarto, onde vê uma cama na qual estão toalhas esculpindo uma borboleta, decorada com um pedaço de sabão. Faz um calor infernal, desses que faz lembrar que estamos nos trópicos, quase tristes por carregarem o ar pesado de umidade que imprime lentidão aos corpos, nada mais urgente que dormir. Heidi sonha com sua festa de aniversário, onde encontra seus amigos para comer e beber, até ver entrar um homem familiar, que, no entanto, não conhece. “Será um jornalista?[...] Será um ator de novela?[...] Será um ativista? [...] Será um político? Um congressista?”. Hum-hum, alguém responde no escuro a cada erro. Nada disso, dona Heidi, quem está em seus sonhos e agora aparece no telão é um tipo chamado Herbert Veloza, codinome HH, ex-comandante paramilitar, chefe do Bloco Calima, das Autodefesas Unidas da Colômbia. Amantes devotos da propriedade privada, os grupos paramilitares, ou autodefesas, pipocaram nos anos 1960 e são resultado da união de militares e proprietários rurais “com o objetivo de se interporem às ações das guerrilhas de esquerda” (Rodrigues, 2004: 195). O que Herbert Veloza nos conta é que o inimigo deve ser atacado no ninho, essa é a melhor maneira de exterminá-lo. E, assim, ao registro mítico de Herodes, se sobrepõe a memória, evocada pelo registro histórico, do massacre do rio Naya, levado a cabo por HH e outros na páscoa de 2001 (10 a 12 de abril). Assumindo o papel de “santos”, os paramilitares travaram uma espécie cruzada contra as guerrilhas que resultou na morte de cerca de uma centena de pessoas. Não vá pensando que eram guerrilheiros, eram indígenas deslocados da terra à qual pertenciam para a região entre Cauca e Valle, esta última – lembremos – terra de nosso famoso ator que saiu dali para conquistar as telas do mundo todo e agora volta a Guapi para ficcionar um documentário sobre a festa dos Santos Inocentes.

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No vídeo vemos HH e a legenda traz um relato do paramilitar rememorando a cruzada pelo rio Naya e alguns dos milhares de assassinatos cometidos por ele, que é também Champeta, Sancocho, Cachaco e todos os outros codinomes que vão surgindo bradados pelos mascarados em cena. Quem são esses seres mascarados e o que fazem aqui? Heidi desperta e caminha em direção à rua, onde encontra Julián, o ator que diz ter conhecido a caminho de Guapi. A rua está vazia, corre por aí a informação de que não haverá celebração este ano, pois no dia sete de dezembro, dia da Virgem Imaculada, uma granada explodiu na rua principal e as pessoas parecem ter medo de sair de suas casas. O telão mostra o registro de Julián caminhando com familiaridade pelas ruas de Guapi, enquanto Heidi, em cena, relata o passeio dos dois. No mercado, Julián recebe um peixe embrulhado em um jornal que traz um aviso que o ameaça e “parece ter sido escrito pelo próprio diabo” (Mapa Teatro, 2010). O vídeo se entrelaça com o relato de Heidi, que caminha pelo palco, e o movimento de um a outro instaura um duplo tempo-espaço, no qual duas celebrações se encontram e se misturam. Em cena vemos um calendário, cujas folhas são arrancadas ao longo da apresentação até chegar no dia 28, quando será comemorado o aniversário de Heidi; o telão mostra o vídeo que se pressupõe registro do aniversário da forasteira em Guapi, nos idos de 2009.


É a relação entre o que acontece em cena e o que se passa no vídeo que permite tal entrelaçamento espaço-temporal e “imagem e ação se projetam, portanto, como relações de produção de sentido, como suportes para a manifestação do presente, do passado e do futuro, como vetores de expressão de feitos e ficções, de tal modo que os espectadores têm a impressão de poder acompanhar o próprio processo que faz acontecer o acontecimento” (Senra; Dos Santos, 2012: 15). E, então, surgem os vejigantes, os mascarados, e o que “imaginávamos que ia ser festa se torna massacre” (Vignolo, 2015: 143). O episódio mítico é lembrado em um ritual marcado pela violência: homens mascarados, com trajes femininos, invadem a cidade empunhando chicotes, com os quais açoitam aqueles que passam pelas ruas. Dizem, em Guapi, que o diabo se meteu na festa e as figuras que aparecem no vídeo só podem ser bestas e demônios. As imagens seguem por tempo o suficiente para instaurar uma atmosfera de terror, intensificada pelo som que acompanha o vídeo.

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A memória popular nunca conta histórias limpas, não há memórias puras, límpidas. Não há memória própria. A memória é sempre suja, sempre impura, sempre uma colagem. Na memória dos povos colonizados achamos inúmeros fragmentos de algo que, num determinado tempo, se quebrou e não pode mais ser reconstituído em sua unidade originária. Assim, a chave de toda memória a serviço da emancipação é saber como viver o perdido, com que grau de perda podemos viver. Poder brutal, resistência visceral. Achille Mbembe, 2019.


Em cena, Heidi comemora seu aniversário e o acontecimento se apresenta em mais de um único presente. Se o espaço cênico, o teatro de maneira geral, pode ser pensado como heterotopia, na medida em que justapõe “em um lugar real vários espaços que, normalmente seriam ou deveriam ser incompatíveis” (Foucault, 2013: 24), o Mapa Teatro opera de maneira semelhante com o tempo. Instaura uma temporalidade outra, o circuito que se estabelece nos saltos do presente ao passado e de volta ao presente cria bifurcações que permitem a simultaneidade de presentes incompossíveis. Presente do ali-e-agora e presente de passado que são uma mesma celebração, o aniversário de Heidi em Guapi e sua apresentação em cena, também presente de futuro do brilho das serpentinas espalhadas pelo chão de uma festa que acabou, no entanto ainda não está na hora de ir embora. Tal ruptura na linearidade do tempo faz com que seja possível transitar por diferentes planos, articulando História, mito, realidade, memória e ficção. O mito fundador se atualiza nesse ritual de punição que não é composto por penitentes que se autopunem, mas por inocentes sujeitados a punições infligidas por outros que, deliberadamente, permitem que sejam seus algozes. O espectador é arrastado pelos movimentos desses três presentes que colidem e interferem entre si, se sobrepõem, apagam, desmentem, recontam, revolvem. Não se sabe ao certo o que é realidade e o que é fabulação – o próprio Julián já nos alertou que seu documentário é fictício, no entanto a agitação nas ruas parece real. Um outro (e é o mesmo) Julián, mascarado e usando vestido branco, ocupa o palco com chicote na mão, açoitando algo que existe em outro presente, mas não perante os olhos da plateia. O falso, aqui, se confunde com os registros documentais ou etnográficos que compõem a apresentação. Etnoficção que rompe com a linearidade cronológica e narrativa e que, por outro lado, não se desconecta da dimensão histórica. A dimensão individual trazida pela recordação de Heidi bem como a dimensão sacra do evento bíblico que origina a festa se mesclam com a História de Guapi e com a História da Colômbia, ambas marcadas pela violência. Para além do massacre de Herodes, o ritual de açoitamento pode rememorar os antepassados da população de Guapi, arrancados de suas terras nas costas Africanas e escravizados. “O mais surpreendente do ritual de Guapi é que os vizinhos se prestem a ser voluntariamente açoitados pelos falsos carrascos” (Sánchez, 2015: 61)”.

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Talvez um dos feitos mais intoleráveis da História seja aquele que ficou conhecido como Tráfico Negreiro e, hoje em dia, sabe-se muito bem que muitos enriqueceram graças à privação da liberdade, ao trabalho forçado e à morte de milhares de pessoas e que esse modelo econômico baseado na escravatura contribuiu decisivamente para a acumulação primitiva de capital (Mbembe, 2018a). Anos de escravidão nos fazem lembrar de que a carne negra foi mercadoria base para consolidação do mundo no qual vivemos. Vida escrava que constitui sujeito plástico, constantemente transformado por meio da destruição (Mbembe, 2018b), a tal ponto que não se sabe distinguir humano e animal. Para além de homem ou animal, carne que se torna mercadoria, mantido vivo, ainda que em “’estado de injúria’. O curso violento da vida do escravo se manifesta pela disposição de seu capataz em se comportar de forma cruel e descontrolada ou no espetáculo de sofrimentos imposto ao corpo do escravo. Violência, aqui, torna-se um componente da etiqueta, como dar chicotadas, ou tirar a vida do escravo: um capricho ou um ato de pura destruição visando incutir o terror” (Mbembe, 2018b: 29).

Mas nesse povoado ilhado da América do Sul, esses que perderam os direitos de seus corpos subvertiam a ordem por um dia e já não se deixavam ser açoitados pelos capatazes. Tomavam os chicotes eles mesmos “para flagelar seus iguais” (Sánchez, 2015: 51). O ritual parece ser, assim, uma maneira de não esquecer os horrores da escravidão, uma experiência na qual se recorda fisicamente da escravidão, mas também uma forma de se livrar dela, tomando o lugar do capataz. O que chama atenção são as máscaras; não, veja bem, talvez sejam os chicotes; não não, cada um com suas preferências! O conjunto tenebroso é o que salta aos olhos de forma dolorosamente sedutora – “É uma tradição que se perde com o tempo. É preciso ser daqui para compreendê-la. É preciso ser daqui para sentir certo prazer com a dor”, lembre-se! (Mapa Teatro, 2010).


O investimento do racismo na colônia se encarregou de transformar corpos em coisas, com rigidez próxima à de cadáveres. Tal operação caminha junto de uma dissolução da separação entre "eu" interior e o olhar exterior, bem como da redução da vida a si mesma (Mbembe, 2018b; Fanon, 1968). Considerando que a violência é estruturante dos países colonizados, com efeitos que se estendem para além de seus processos de independência, Frantz Fanon (1968) aponta que as opressões políticas, econômicas e culturais sofridas pelos colonizados têm reverberações nas formações subjetivas daqueles que, oprimidos, encontram na própria violência a possibilidade de revolta e libertação. Dentro de uma lógica de violência, as mutilações em Guapi, os prazeres múltiplos que se pode sentir com a dor, os revanchismos libertadores ou rancorosos, cada um a seu modo e com sua inegável força nos fazem lembrar que “sem a liberação do desejo e seu redirecionamento a novas afeições, não é possível, ao menos na lógica fanoniana, se livrar do fardo da raça” (Mbembe, 2018b: 19). E se o diabo se meteu na festa, na montagem do Mapa Teatro ele se personifica na presença de HH. Mais uma vez o ritual se atualiza e nos deparamos com a história recente daquele povoado, marcada pela violência das guerrilhas e dos paramilitares. O ritual de não esquecimento agora evoca também as vítimas do conflito que assombra a Colômbia contemporânea, dentre elas as 3 mil assassinadas por HH. “O Mal já não são os colonos escravistas, mas os paramilitares, os guerrilheiros, os sicários de homens muito poderosos que, muito longe de Guapi, observam o mundo de tão alto que não reconhecem outros corpos que não sejam os seus” (Sánchez, 2016: 298).

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E, ainda hoje, ali onde não há primavera e não se chega por vias terrestres, a lógica identificada por Fanon na organização das colônias parece se reproduzir, pois “aí, se nasce não importa onde, não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de quê” (Fanon, 1968: 29). Alvo de intoxicação por glifosato ou de ações do paramilitarismo e da guerrilha, a população de Guapi está sujeita ao extermínio. “Onde você vai? De onde vem? Por que essa cara? Por que sorri? Por que está suando? Por que está quieto? Por que está olhando para baixo? Por que essa camiseta branca? E essas botas? O que tem nos bolsos? Por que está usando esse chapéu? Para quem vende e de quem compra? Onde estão os outros? Quem é seu pai? Quem é seu irmão? Por quê sua pele é negra? Por que tem olhos pretos e o cabelo enrolado? Quem você está procurando? Por que tem pernas? Por que não tem pernas? Quem você está procurando? “ (Mapa teatro, 2010).

Delimita-se, inclusive geograficamente, uma população sobre a qual age aquilo que Mbembe (2018c) denominou necropolítica. Ou seja, uma população sobre a qual incide uma política de morte. Mas o direito de matar não se restringe mais ao Soberano ou ao Estado, e este já não detém o monopólio da violência. Na costa pacífica da Colômbia uma guerra é travada entre grupos variados, “instâncias jurídicas de facto geograficamente entrelaçadas [...]” (Mbembe, 2018c: 52), sendo alguns deles, os paramilitares, uma forma de extensão do Estado, enquanto os outros, guerrilheiros, organizações sem Estado, ainda que hierárquicas. Desde o final dos anos 1970 e começo dos anos 1980, a articulação com o narcotráfico resultou em grupos paramilitares com estruturas complexas e que, ainda que mantivessem seus objetivos contra-insurgentes, atuavam como empresas dedicadas à acumulação de recursos. Portanto, “o narcotráfico não apenas forneceu novas fontes de dinheiro aos atores armados, como modificou a configuração da guerra, alterando [...] a economia da violência política” (Grajales, 2011: 158). A guerra interna da Colômbia é travada por atores polimorfos, cujas relações com as formas estatais variam da autonomia à incorporação, podendo apresentar inúmeras conformações. Apesar de suas singularidades, a partir de certo momento passaram operar dentro de uma mesma lógica, configurando-se como mesclas de organização política e empresa mercantil (Valbuena, 2012: web).

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No entanto, nunca se falou de uma Guerra ao paramilitarismo como se falou de uma Guerra às drogas, não é mesmo? Ora, não é espantoso que, em um cenário onde o Estado não detém mais o monopólio da violência, aqueles que o defendem sejam alvo de certo favoritismo – e por que não aliados velados? Não que não tenham existido críticas e até mesmo tentativas de criminalização dos grupos paramilitares – estas não passaram de formalidade (Grajales, 2011). Fez-se vistas grossas e a violência dos paramilitares, bem como suas relações com o narcotráfico e com o Estado, acabaram passando batidas. Para que não restem dúvidas, é sempre bom lembrar que “setores das elites centrais e regionais e membros do exército perceberam o paramilitarismo como uma forma de mobilização armada que, por mais que fosse ilegal e ligada ao narcotráfico, era a manifestação de um direito legítimo à autodefesa e um auxílio útil na luta anti-subversiva” (Grajales, 2011: 163). O amor à propriedade privada não se separa do apreço à militarização, no final das contas... Heidi, ao chegar em Guapi, divide o hotel com militares, que bem podem ser paramilitares. E um bilhete escrito pelo diabo ameaça Julián no jornal de ontem que embrulha o peixe, vemos em seu documentário falsificado. Soubemos que explodiu uma granada nas ruas pouco dias antes, disseram por aí... ai, ai, ai... não vai mais ter festa. Foi há pouco mais de 10 anos que começaram as matanças e deslocamentos massivos (agora já são mais de 20 e muita coisa aconteceu). Foi na segunda metade dos anos 1990, especialmente após 1998, que os paramilitares e guerrilheiros se embrenharam por muitas zonas do pacífico colombiano de forma que “matanças e deslocamentos massivos se converteram em fenômenos cotidianos na região...” (Escobar, 2004: 56). Deslocamentos e matanças que hoje se exercem sobre múltiplos corpos, pois, nas condições contemporâneas, a desaparição da distinção entre mercadoria, ser humano ou coisa vai atingir negrxs, índios, mulheres, brancxs, homens, sem que ninguém possa escapar (Mbembe, 2019). O que fazer? Na selva amazônica não há primavera... (neste texto) talvez se trate do que se cria, neste aqui e neste agora sempre. Na repetição anual da festa dos Santos Inocentes, os jovens podem viver e construir suas memórias ou expurgar o presente, embriagando-se e expondose a uma violência que os faz sentir existindo mais


intensamente ou os anestesiam. Carrascos carnavalescos e enfurecidos tomam as ruas sem medo açoitando quem passar por ali e a dimensão festiva não se separa da dimensão histórica e as vidas coletivas e individuas se misturam e estão relacionadas com o tempo histórico. “O que ocorre é que o tempo histórico do povo de Guapi, por mais singular que seja e por mais isolado que o lugar esteja, não escapa do tempo histórico que molda a Colômbia contemporânea, tempo traumático de uma violência interminável que precisa ser conjurada, até que cesse o massacre de inocentes, até que todos possam se libertar desta violência” (Senra; Dos Santos, 2012: s/p).

Esse tempo histórico é trabalhado com procedimentos que aproximam o Mapa Teatro ao dramaturgo Heiner Müller, em função da maneira como operam os possíveis vínculos entre História e memória. Como Müller, os Abderhalden parecem articular as duas dimensões de forma que o presente não assume um traçado pré-determinado da História. O dispositivo criado pelo grupo, que coloca lado a lado diferentes linguagens e suportes, apagando linhas divisórias entre realidade, ficção, sagrado, profano, História, mito e memória, instaura uma dimensão espaço-temporal que estabelece uma circularidade entre o que se passa em cena e o que é projetado na tela – o documentário fictício de Julián que se mistura aos documentos históricos e a HH -, e também com as memórias – sempre da ordem da memória curta - que surgem à medida que a peça acontece. Ao ser triplamente trazida para o palco em suas franjas do presente - Heidi e suas recordações; o registro fictício, ainda que real, de Julián em Guapi; a festa que ocorre ou vai ocorrer ou já ocorreu no palco –, a celebração já não se resume a si mesma. Abre-se espaço para a falsificação da História e o passado oficial agora é obrigado a coexistir com outros passados que ainda estão sendo contados. Recontar passados para que se possa ser destituída a História, normalmente contada pelos colonos – e pelas figuras que assumem seus desdobramentos contemporâneos. História essa que não costuma ser contada do ponto de vista de regiões por eles saqueadas, pois é narrada com os olhos de nações construídas sobre territórios explorados e violados (Fanon, 1968).

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Aos poucos, as ruas deixam de ser palco de açoitamentos e dão passagem a um protesto político contra a presença dos paramilitares, bem como a dos guerrilheiros. Um coletivo se forma quando a repetição da violência dá passagem a uma força, uma capacidade de dizer não, na tentativa de conjurar a violência e “adquirir os meios para sonhar diferente, para passar a outro tipo de produção desejante” (Mbembe, 2018b: 19). Como apontam Senra e Dos Santos (2012), essa nova forma de habitar as ruas de Guapi instaura um presente que desvia do conjunto de condições designado pela história, pois pertence à dimensão do devir. O protesto passa como uma linha sem ponto de origem ou destino, energia positiva que pode responder ao intolerável e que não parte da História, ainda que recaia sobre ela. História de massacres e perseguições constantemente atualizada – HH está aí para não deixar dúvidas –, da qual tentam escapar, e às vezes desviam, ano após ano os matachíns que correm pelas ruas, para revivê-la no ano seguinte. Da tela que mostrava o protesto a atenção dos espectadores é deslocada ao presente do teatro, onde Julián cambaleia pela escuridão com seu vestido branco de inocente refletindo o pouco de luz que chega ao palco. E chicoteia aquilo que já não está lá, enquanto Heidi come seu bolo de aniversário, anunciando que a festa já vai chegando ao fim. A música suave tem como acompanhamento o estalo do chicote que bate repetidamente no chão e, conforme a luz diminui, o reflexo do vestido branco de Julián e o movimento de seu chicote são o que restou da comemoração. A festa acabou, o povo dormiu e amanhã será outro do mesmo dia, mas Julián continua, chicotada após chicotada, enquanto é projetado um vídeo de seu fim de festa em Guapi, com os pés na água e movimentos quase imperceptíveis.


E chicoteia... sozinho, permanece chicoteando, como se o estado da festa, do ritual, do protesto – de possíveis encontros e do desvio, pois – se sustentasse nesse ato que garante a continuidade desse estado por alguns momentos. Traz consigo a força de um esquecimento contido na revolta, para além da História ou da memória. Desviou e não quer mais voltar, trem descarrilhado que já não quer saber de trilhos e se por vezes é a chicotadas que a vida pede passagem, no outro plano se vê que também água corrente pode bastar. O que resta em cena é o reflexo da luz no vestido branco e no chicote que açoita o chão, ecoando estalos em uma repetição que parece interminável, enquanto a forasteira aniversariante apagada e sem energia come seu bolo e o mesmo Julián que está em cena açoitando fantasmas está também na selva amazônica onde não há primavera, ali na costa pacífica colombiana, com os pés no oceano.

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A festa acabou, o povo dormiu e entre as chicotadas e os pés n’água não há cronologia circular ou sequencial, Julián restou em cena e sua presença intensifica o espaço e produz o tempo. Sua presença acontece antes, durante e depois em planos que, por vezes, são inconciliáveis e isso faz o espectador habitar mundos incompossíveis. As máscaras, as festas, o ritual e sua transformação em protesto fazem irromper o estranho no espectador, que já não habita território conhecido. Estrangeiro que, em um primeiro momento, hesita em se reconhecer como possível carrasco, se justifica, quase como vítima: é “o inimigo que levamos dentro, o diabo que se meteu na festa” (Vignolo, 2015: 157); e então corre vestido de mulher açoitando a quem quer que seja, até mesmo à forasteira Heidi, que pergunta por que a açoitam e a resposta é precisa: “por inocente... por inocente” (Mapa Teatro, 2010). Ainda soam as chicotadas quando no telão passam os nomes, como se fossem os créditos finais de um filme, das mais de 3 mil vítimas confessadas por HH antes de ser extraditado para os Estados Unidos, em 2009. “Nós mataríamos todo dia. Em 30 de abril de 1995, Vidal Vega Ramírez foi assassinado; ele trabalhava na fazenda Amanda. Ele estava em uma festa na frente da cabana e foi assassinado ali. Em 17 de maio Edilberto Cuadrado Llorente , que estava em um carro, foi morto. Ele foi decapitado, para não ouvirem os tiros. Em 23 de maio , Walter de Jesús Dávila, Camilo Solano, Melquisedec Rentaria Machado foram assassinados. Em 14 de Julho nós matamos Julio Cesar Serna, gerente do bar Roble e atiramos no Umberto Achecho Castillo [...] “ (Mapa Teatro, 2010). Durante cerca de 3 minutos, que são sentidos segundo a segundo, nomes de vitimas e detalhes de seus assassinatos surgem na tela em frente à plateia. Não há para onde correr.

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Testemunhar a violência Não parece haver conclusões definitivas ou síntese quando se trata do laboratório de artistas Mapa Teatro. Ora, isso não é nenhuma novidade naquilo que se costuma chamar arte contemporânea, mas o grupo colombiano chama a atenção pelo fato de que sua produção frequentemente está relacionada ao curso da História, especificamente da história colombiana, e vem daí certa possibilidade de continuidade indeterminada de alguns processos criativos. Após acompanharem a demolição do bairro Santa Inés/ El Cartucho o Mapa Teatro detinha um vasto arquivo relacionado à demolição do bairro, bem como ao deslocamento forçado de seus antigos moradores. Ao longo de 4 anos o grupo instaurou um laboratório do imaginário social, noção proposta por Heiner Müller, emprestada pelo dramaturgo do filósofo Wolfgang Heise (1925-1987). Tratou-se, portanto de articular um grupo de pessoas que, a partir da construção e reconstrução de imagens e testemunhos compuseram um sujeito coletivo que trouxe relatos múltiplos para o espaço narrativo da cidade e com o qual se desenvolveram ações que ao atuar no âmbito do real atuavam também em um plano simbólico (Sánchez, 2007: 268-269; Abderhalden, 2014: 153-161). Durante o processo, os moradores e também os artistas se tornam testemunhas do desaparecimento do bairro. Seus relatos sobre a vida no bairro são o que permitirão mantê-lo existindo sob determinado aspecto; ou seja, a singularidade daqueles que tecem uma cartografia – que abrange aspectos afetivos e geográficos – do território ao qual pertenciam faz com que haja mais de um ponto de vista possível para pensar a vida no bairro e seu desaparecimento. As experiências do corpo coletivo que se formou foram colocadas em cena em Testigo de las ruínas (2005), apresentação que retomava insistentemente o processo de desaparecimento do bairro, articulando imagens de seu antes, durante e depois com os relatos de antigos habitantes do local. Quatro grandes telas recebem as imagens do bairro que se tornou canteiro de obras. Participantes do grupo movimentam essas telas pelo palco e, em meio a bolas de demolição, tapumes, vestígios de casas, montes de entulhos etc, vê-se também testemunhos dos desalojados.

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Há uma mulher em cena e durante todo o tempo da apresentação ela se dedica à mesma função que desenvolveu em sua casa, em El Cartucho, por vários anos. Trata-se de Juana María Ramírez, última moradora do bairro, que faz o que costumava fazer em seu dia-a-dia: arepas. Como que atualizando os testemunhos de seus vizinhos, projetados nas telas ao longo do espetáculo, Juana marca a colaboração de uma série de pessoas desalojadas com a realização dessa experimentação que envolveu um projeto artístico diretamente relacionado à destruição de suas casas. Ela não está ali como imagem do passado, mas como memória viva de territórios destruídos. Vale notar que a noção de território, aqui, se diferencia da noção de espaço uma vez que este se relaciona com a funcionalidade, enquanto aquele esta vinculado a modos de subjetivação individuais e coletivos. Ou seja, “o espaço funciona como uma referência extrínseca em relação aos objetos que ele contém. Ao passo que o território funciona em uma relação intrínseca com a subjetividade que o delimita” (Guattari, 1985: 110). As duas noções não se opõem, mas operam juntas. A demolição de um espaço, por exemplo, de um bairro, de suas ruas, casas, bares e becos, pode mutilar territórios existenciais.


Testigo de las ruínas, assim como os outros trabalhos do grupo relacionados à construção do Parque Tercer Milênio, tem como principal matéria prima os relatos e recordações de habitantes do bairro desapropriado em nome de melhorias urbanas. Mas aqui, nas quatro grande telas que se movimentam pelo palco, vemos a tentativa dos Abderhalden darem seu próprio testemunho do que vivenciaram ao longo da experiência com o coletivo que se formou, “o reconhecimento de que a memória do processo não é só dos que habitaram o bairro e foram desapossados, mas também dos que testemunharam e ficaram marcados fisicamente pela experiência de um tempo compartilhado” (Sánchez, 2016: 311).

O que o Mapa Teatro apresenta é um arquivo construído ao longo desse tempo compartilhado. Esses registros criam documentos que evidenciam como, em função do discurso de renovação urbana e segurança, “ainda em uma democracia, alguns setores da população têm que desaparecer pelo bem estar social” (Taylor, 2018: 322). Diana Taylor insiste em destacar as semelhanças entre planejadores urbanos e as forças militares da América Latina, que sabem há muito tempo que o extermínio pode “mudar o sentido e a memória que a sociedade tem de si mesma” (Taylor, 2018: 322). A cidade é um campo de batalha.

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Uma década depois, em 2016, o El Reina Sofia, dos mais importantes museus do mundo – seja lá o que isso quer dizer, e qual mundo é esse – , localizado em Madrid, se propôs a mostrar “el arte más político de su colección”. Deu no jornal! Seja como for, a obra do Mapa Teatro era uma Variação de Testigo de las ruínas. Já passou da hora em que posso admitir que adoro variações, apropriações, citações, roubos – Mapa Teatro roubando Heiner Müller me conquistou - talvez não tanto quanto sua grande deglutição de Samuel Beckett. Estreia do Mapa Teatro na América Latina, De mortibus: réquiem para Samuel Beckett já anunciava a preferência dos Abderhalden por processos que operam dentro de


uma lógica que evita a representação de narrações (Ponce de León In: Rodriguez, 2018) e trabalha o espaço articulando imagens e sons numa mistura entre o material existente e aquilo que o próprio processo se encarrega de inventar. Os quatro personagens habitam um mundo cinza e calado, no qual a língua míngua e dá espaço aos movimentos, cores e suas composições. Se ao longo dos anos o grupo encheu de cores suas apresentações – afinal estamos no território da cumbia e do vallenato -, seus processos seguiram influenciados por Beckett (Abderhalden, 2014) e os personagens que surgiram e seguem ressurgindo em suas produções não se vinculam facilmente a identidades, não apenas porque as perderam, mas porque estão sempre em vias de tornarem-se outrém. Ao colocarem em cena um personagem real, a última moradora de um bairro que deixou de existir, os Abderhalden conseguem escapar de uma possível espetacularização da miséria, pois a personagem que surge em Juana é composta de todos os relatos que aparecem ao logo da apresentação. Mais que isso, ela existe em seu ato e na reverberação desse ato, que a partir de um ponto não será mais dela e pode ele mesmo se tornar personagem. Testigos de las ruínas é, então, o nome da instalação derivada da performance homônima, e consiste em uma video-instalação composta de telas semelhantes às que compunham a performance original e também da máquina de fazer arepas. O material projetado nas telas é similar ao da performance original, mas Juana já não está presente e o que chama a atenção é como a máquina traz, em si, toda uma rede de relações que envolve um circuito mulher-máquinacomida que já não se refere à Juana que víamos em cena.

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A máquina, que chega a desaparecer quando olhamos a partir de certos ângulos, se compõe com os relatos projetados no telão e se torna um monumento que não celebra um passado, “é um bloco de sensações presentes que só devem a si mesmas sua própria conservação e dão ao acontecimento o composto que o celebra” (Deleuze; Guattari, 2009: 218). Se a oralidade é a via de acesso mais direta ao que o grupo chamou de arquivo vivo, o que permite que o registro não se resuma a documento histórico é a relação que se estabelece entre a disposição dos telões no espaço e a máquina de fazer arepas, pois é essa relação que estabelece a carga poética e política da obra, na medida em que em meio a imagens documentais, dá a ver territórios existenciais que se espalham para além dos mapas oficiais.


16 Agradeço à Ximena Vargas pela conversa realizada em novembro de 2016, quando me mostrou alguns registros das variações do Mapa Teatro, que à época eu mal conhecia.

As variações16 se tornaram experimentos recorrentes na produção do grupo e no mesmo Reina Sofia atualmente se encontra uma variação de Los incontados: un tríptico, peça cujo cenário se converteu em instalação, na qual “a caixa mágica da primeira cena adquiria protagonismo e o movimento das coisas já não requeria a colaboração do corpo vivo dos atores” (Sánchez, 2016: 320). O espectador pode adentrar aquela sala com ares de aquário com cheiro de ocre, pela qual se espalham a mata e também vestígios de uma festa que não vimos acontecer de fato. O cenário se torna território pelo qual o público pode transitar, enquanto vê projetadas cenas das peças que compõem a anatomia feita pelo Mapa Teatro.

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Em suas peças, instalações, performances etc., o laboratório de artistas Mapa Teatro não segue formatos pré-definidos, e as variações propostas pelo grupo são formas de criar um arquivo que não se resume a uma documentação burocrática de sua produção e possibilitam constantes atualizações dos temas trazidos por seus trabalhos. As instalações propostas a partir de Los incontados e de Testigo de las ruínas são autônomas em relação a qualquer drama, ou seja, não dependem da “atuação decidida das pessoas” (Sánchez, 2016: 320). Os vestígios da festa acompanham as projeções na estrutura tríptica e se tornam uma espécie de arquivo que não imita a História. De maneira semelhante, a máquina de fazer arepas carrega a potência poética da presença de Juana.


E se a máquina de Juana se torna uma espécie de monumento do arquivo de El Cartucho, o ponto de partida de uma das variações de Los Santos Inocentes não é um objeto, mas um gesto. Ao revisitar a festa de Guapi, o grupo inventou um mecanismo com um chicote acoplado que, ao movimentar-se, açoita uma parede. O movimento não varia de ritmo e a cada golpe o lado oposto da parede é iluminado com imagens da festa dos Santos Inocentes e a sala se enche com o som da chicotada. A violência que se espalhava pelas ruas da festa agora pertence a uma única máquina. A festa resta apenas como imagens que se projetam quase como fantasmas simultaneamente ao som do chicote que soa como um discurso de poder. A dimensão festiva que há no carnaval violento de Guapi é vinculada a comportamentos selvagens ou bárbaros, um espetáculo de violência que deve ser confiscado. Uma única máquina deterá o monopólio legítimo da violência. E seguirá chicoteando, sob o signo da justiça.

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De um lado da instalação temos a máquina, que captura a violência e a festa e chicoteia sistematicamente a parede. Do outro, as breves projeções mostram algo de incapturável, lembrança constante de que no ano seguinte as ruas de Guapi estarão cheias de homens emascarados, com seus chicotes na mão, na festa e na fúria. Com suas variações, o Mapa Teatro revisita seus trabalho e constrói o que chama de arquivo vivo, conceito encontrado nas proposições de Suely Rolnik (2006; 2012) sobre possibilidades de trabalhar com imagens e objetos para além da documentação. São formas de atualizar as inquietações encontradas ao longo dos trabalhos, revisitando-as e produzindo “memórias vivas” (Rolnik, 2006: web). Em suas instalações, o grupo transpõe suas ações para museus sem, no entanto, se restringir à documentação de arte, configura reflexões que buscam outras linguagens pensadas para outros espaços, operando de forma que o “vivo” não depende da presença dos atores.


Mas a noção de arquivo vivo não se restringe às variações pensadas para ocuparem museus. Já na experiência com Beckett é notável a opção dos Abderhalden em evitar representações tradicionais, preferindo trazer à cena os resultados de sua deglutição do autor. E antes de ser transformada em instalação, Testigo de las ruínas já constituía uma tentativa de colocar em cena, por meio do processo de montagem com todo o material registrado ao longo dos anos de trabalho em El Cartucho, um arquivo vivo em constante construção. O arquivo apresentado não se resume a registro de um passado, pois à medida que se apresentam os relatos que não sabemos mais se é de dona Elisa, Ernesto Carlos, dona Guillermina, ou de quaisquer outrém que talvez não constem sequer nos registros do Mapa Teatro, o que se ouve nem sempre corresponde ao que se vê projetado nas quatro grandes telas em cena. O que se vê nas imagens é o presente, o dia-a-dia do bairro que agora já foi o parque do futuro e nos dias de hoje voltou a estar rodeado dos ditos indesejados. Eventualmente, corpos que são telas onde se projeta o presente estão em cena e não podem nada além de ser testemunhas dos relatos dos outros. É o que cabe aos integrantes do grupo que entendem que unir seu corpo ao mundo de outros não é sobrepô-lo. Projetores e telas se movem e seus corpos são extensões dessas telas, que se manifestam na paisagem como testemunhas.

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O Mapa Teatro trabalha o material coletado ao longo dos anos, combinando o trabalho no canteiro de obras com as palavras trazidas pelas testemunhas e, nesse processo, não retornam ao passado. Não vemos imagens do que costumava ser aquele bairro sobre o qual falam aquelas pessoas, os elementos da peça existem apenas no presente. À medida que falam, os moradores constroem suas memórias daquele território, e na montagem e encenação o Mapa Teatro apresenta um presente que “coexiste com um passado e com um futuro sem os quais ele não passaria” (Deleuze, 2013: 52). A peça apresenta testemunhos de um passado que existe quando atualizado nesse presente sem imagem, que força o espectador a criar suas próprias memórias do bairro, bem como de sua desapropriação. O público é jogado em uma posição de agente, à medida em que os relatos fazem com que cada um da plateia se torne testemunha da desapropriação, destruição e revitalização de El Cartucho. Porém, os espectadores se deparam com a impossibilidade de serem testemunhas verdadeiras, por sequer terem vivido as memórias que criam enquanto assistem a Testigo de las ruínas. O que testemunham, afinal? Conforme o público se torna responsável por construir sua própria memória, não ocupa uma posição imparcial de apreensão do que vê. Os espectadores se tornam agentes cujas percepções deixam de ser neutras e podem suscitar “o desejo de testemunhar ‘a favor’ da importância ou da beleza do que elas viram” (Lapoujade, 2017: 22). A presença do público intensifica os territórios existenciais que aparecem conforme a memória do bairro se constrói nas articulações entre relatos e documentações e os espectadores.


O público pode, então, se tornar testemunha que tem “a responsabilidade de fazer ver aquilo que teve o privilégio de ver, sentir ou pensar” (Lapoujade, 2017: 22). Tal operação situa o Mapa Teatro na posição de uma espécie de advogado que convoca suas testemunhas, ou seja, o grupo cria situações poéticas que possibilitam um agenciamento com os espectadores e nessa articulação, advogados e testemunhas “fazem existir novas entidades, produzem novas realidades, onde antes ninguém tinha visto nada” (Lapoujade, 2017: 23). No entanto, para além dos registros de relatos orais ou das imagens documentais do processo de destruição do bairro é a presença de Juana em frente às telas, manejando sua máquina e fazendo arepas sobre uma mesa no centro do palco, que cava uma carga poética – por vezes incômoda - capaz de tornar a plateia parte do testemunho. A presença de Juana, manuseando sua máquina de fazer arepas, não representa nada. Sua presença viva traz consigo algo de seu território existencial que não se resumia ao espaço que já não existe. Ao longo de toda a peça a manivela da máquina segue, bem como a presença viva da última moradora do bairro demolido. Juana não é uma imagem, mas uma vida. Não faz parte do que se pode chamar de arquivo, seja ele vivo ou morto. Está em cena como convidada, não tanto testemunha, tampouco vítima. Sua presença em cena é a vida que, colocada em cena, agencia afetos e pode convocar sensações no espectador, que passa a ser testemunha da demolição do bairro e da destruição dos territórios de todos que contam suas memórias.

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Conexões parciais Diz-se que potência da arte se encontra nas possibilidades de reconfigurar nossos mapas existenciais, quiçá contribuir para engendrar uma nova lógica de valores que escapam a certo espaço-tempo. O uso da noção de etnoficção ajudou a escolher como entrar na obra do Mapa Teatro, ou melhor, no plano de composição traçado pela produção do grupo. Além disso, a palavra roubada de Rouch me permitiu dançar como mata de coca desvairada nesse plano, com passos estranhos e heterogêneos. As formas como o grupo atua nos diferentes contextos a partir dos quais desenvolve seus trabalhos não configuram um conjunto fechado de operações. De suas inquietações frente a determinados conflitos e tensões, o Mapa Teatro explora diferentes formatos, materiais e procedimentos que conversam com as perguntas levantadas em seus percursos. Nessa cartografia, composta por etnografias fabuladoras, diversos personagens se manifestaram, em uma espécie de carnaval no qual a História passa como narração que se cria conforme tais personagens se apresentam, se metamorfoseiam e se atualizam uns nos outros. Tornam-se testemunhas que transitam entre diferentes planos e registros criados nos processos, nas operações de montagem, nas apresentações e nas variações articuladas pelo Mapa Teatro. Os relatos de moradores de El Cartucho e de Danilo Jiménez se encontram com o de um Maiakovski mascarado que outrora corria pelas ruas de Guapi açoitando inocentes, que antes de tudo foi escravo e se vingava de toda violência sofrida reivindicando o chicote por um dia. Militares relatam os horrores da guerrilha em um teatro que narra a Verdade unívoca da História, o Mapa Teatro os coloca em cena ao lado de um panteão de líderes revolucionários sintéticos, promovendo encontros que existem no “aqui-ali-e-agora” e, quando recaem sobre a história, esta já não permite letras capitais. Ao optarem pela etnoficção, os Abderhalden encontraram sua própria forma de mapear conflitos do contexto colombiano, contando uma história do presente que existe na relação com personagens que a compõem, ao mesmo tempo que é criada pelas decisões de montagem ou apresentação de cada trabalho. Vale reiterar que a própria noção de etnoficção passou por deslocamentos conforme a aproximei da produção do grupo.

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As etnoficções aparecem como processos investigativos que deslocam o Sujeito – antropólogo, cineasta, artista, pesquisador etc. – de sua condição de detentor da Verdade. Configuram um experimento estético que é também uma entrada no pensamento de outrém a partir de uma experiência real. São criadas na relação entre “eu” e um “outro” que é sujeito e não objeto, um outro-personagem que não pertence mais a realidade ou ficção, se distancia de ambas e se põe a fabular. Ao passo que pressupõem paridade epistemológica entre os termos da relação, não se inserem mais em uma lógica dicotômica, admitindo múltiplos pontos de vista, pois “Eu” sou “outro”, que se torna “outros” que são muitos. Etnoficcionar é o movimento intensivo entre pontos de vista. São esses movimentos que criam personagens que serão novos pontos de vista, e vão desde um bilhete amassado a um revolucionário que aparece com um livro vermelho na mão, fazendo truques de mágica. E se vez ou outra coincidem demasiado com o curso da História, é porque dependem da realidade para se inventarem. E ficamos em dúvida se Pablo Escobar não escreveu mesmo aquele bilhete! Mas Don Danilo Jiménez não precisa de mentiras para fabular, sua cantoria basta, combinada com a legenda do telão que conta sua história; Juana faz suas arepas em cena, compõe-se com os relatos de moradores do bairro, esses que dançaram um bolero sobre ruínas de um bairro que deixou de existir. Por vezes, é na montagem que se verifica a função fabuladora, os pontos de vista se multiplicam e se metamorfoseiam, conforme se espalham pelo espaço e o tempo, compondo uma rede de pensamento e sensações. El discurso não acaba em si mesmo e volta a se apresentar em Los incontados: un tríptico, peça na qual diversas perspectivas se encontram e se confundem ramificando ainda mais as redes que se construíram, ampliando o território relacional habitado pelo grupo. Não é nem poderia se ser o mesmo que disparou os movimentos de Discurso..., Escobar é ele mesmo e também paramilitar e talvez até polícia amante do Estado e da ordem. As etnoficções do Mapa Teatro transbordam seus limites e formatos, reaparecem em outras configurações, estão em constante transformação, imprevisíveis.

Nas quatro peças que compõem o Tríptico sobre a violência na Colômbia vemos elementos que se repetem, se transformam, os personagens são os mesmos, ainda assim são outros – Pablo Escobar se transforma em um paramilitar, codinome HH, aquele que se satisfazia na posição de capataz ou carrasco reaparece como Maiakovski condenado à locomotiva que atravessa a grande Rússia.


Elementos cênicos reaparecem a ¬cada montagem, com outras formas, outras funções. A delirante mata de coca, encarnada por Heidi Abderhalden em Discurso de un hombre decente e Los incontados: un tríptico, se reconfigura como vestimenta de guerrilheiros camuflados na selva amazônica. As máscaras do ritual dos Santos Inocentes reaparecem como esbranquiçados e fantasmagóricos ícones da Revolução em La despedida. Brilhantes serpentinas se espalham pelos diversos palcos que dão lugar às facetas festivas da violência na anatomia realizada pelo Mapa Teatro. O pedaço de sabão que Heidi encontra no seu quarto em Guapi, pouco antes de cair no sono que se torna pesadelo que é relato histórico, reaparece no bolso do poeta que lava suas mãos e não consegue se livrar da sujeira, o sabão ainda molhado o faz ser condenado à locomotiva. Na anatomia realizada pelo laboratório de artistas Mapa Teatro, a presença da mata é inquestionável e esse ser parece reivindicar sua existência - o reconhecimento de sua existência - se torna personagem e invade a cena... é a folhagem dos trópicos, que isola o povoado de Guapi e foi testemunha de um passado escravocrata, também do massacre do Rio Naya, levado a cabo pelos paramilitares que acreditavam traçar uma Cruzada contra os guerrilheiros. Não há primavera na selva amazônica, tampouco existe pecado do lado debaixo da linha do Equador, aqui nesses trópicos que de tristes nada têm. Mata que reaparece como erythroxylon coca, que nem indígena é – mas que fique claro que não estamos falando de índios: “índios são os membros de povos e comunidades que têm consciência — seja porque nunca a perderam, seja porque a recobraram — de sua relação histórica com os indígenas que viviam nesta terra antes da chegada dos europeus” (Viveiros de Castro, 2016: 7). Indígenas são aqueles originados e pertencentes a suas terras, podendo ser categorizados como índios ou não. Mata não é mais cenário, senão inimigo público número um, personagem principal da História que se conta sobre a Colômbia. História que é despedaçada e recontada pelo tríptico do Mapa Teatro, em quatro partes que torcem a linearidade do tempo. A História oficial já não vale e cada apresentação parece recontála a partir de perspectivas que deslocam o espectador da Verdade enunciada por um ponto de vista único.

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Folhagem que se reconfigura em camuflagem guerrilheira e espera por uma Primavera que não virá! Na selva amazônica não há primavera! Em seus rearranjos, a mata marca sua presença como personagem da História colombiana, não apenas como “a mata que mata” do slogan uribista de combate às drogas, mas como personagem que se descola da plantação, planta de coca saltitante e tresloucada. O que começou paisagem do aniversário de Heidi, virou personagem em La despedida, humana camuflada que logo foi parar nas mãos de Karl Marx, para depois girar no espaço e se espalhar inconsequente. Mas a mata já apareceu em Discurso de un hombre decente, cenário de mata de coca responsabilizada pelos atos de outrem, mas passou a existir como personagem e dançou desgovernada pelo palco. E quando o cenário se torna personagem? Se põe a fabular. Em sua Anatomia o Mapa Teatro é testemunha da existência da mata; aquela acusada assassina, aquela assassinada. Mata pela qual se embrenham memórias da guerrilha, da escravidão, do campesinato, do paramilitarismo, do etnocídio. Personagem e também cenário pelo qual se perde uma miss desapossada de sua coroa. Em La despedida, a rainha descoroada é a imagem de um país que vê escorrer entre os dedos a possibilidade de Paz. Enlouquecida, emaranhada em serpentinas e vagando pela mata, a bela vai se despojando de tudo a tal ponto que o que fica é a impossibilidade de acabar com tudo; é levada pela catástrofe, arrastada por uma força que cria sua existência por diminuição, quando se perdeu muita coisa algo pode acontecer... E o que faz o Mapa Teatro é jogar no palco a fantasmagórica máscara de Karl Marx, que conversa sobre comunismo primitivo com um xamã de camisa social branca e cocar. A repetição de elementos ao longo da Anatomia estabelece um conjunto, as imagens se confundem e se misturam, agenciando planos distintos pelos quais os discursos trazidos pelo Mapa Teatro se espalham, criando ressonâncias entre si. Em suas peças, tudo se passa em um tecido de relações, operando com lógica semelhante à atribuída por Deleuze (2010: 75) às imagens do cinema moderno. O autor aponta como, após a II Guerra Mundial, há uma transformação nas imagens e no espaço, pois “aparece um tipo de espaço que procede por vizinhanças, de modo que as conexões de um pequeno espaço com outro se fazem de uma infinidade de maneiras possíveis e não predeterminadas” (Deleuze, 2010: 159).


As máscaras dos Ícones da Revolução, com sua plasticidade acinzentada, têm uma crueza que se diferencia das máscaras utilizadas pelos homens que correm pelas ruas de Guapi vestidos de mulheres no ritual dos Santos Inocentes. Estas são aterrorizantes e seu horror volta a aparecer quando uma delas porta a voz de Maiakovski em Los incontados: un tríptico. O mesmo carrasco que termina açoitando o nada na primeira peça do tríptico é quem sonha o sonho do poeta russo, acossado por carrascos que ordenam: “canta, poeta!”. É açoitado enquanto recita seus piores versos, cheios de exaltação e retórica. Esses elementos conectam todas as peças e o próprio Pablo Escobar de Discurso de un hombre decente não parece passar de um fantasma ou fantoche que reconta a História, reinventando-a. As máscaras são “operações pelas quais o corpo é arrancado de seu espaço próprio e projetado em um espaço outro” (Foucault, 2013: 12), no qual o próprio corpo se torna fragmento de espaço imaginário que pode habitar um lugar que não tem lugar diretamente no mundo e se comunicar com o universo do outro. Em suas reconfigurações, as máscaras parecem sempre acompanhadas de elementos sonoros que celebram algo que há de tenebroso na vida, certa dor com a qual se tem prazer, o diabo metido na festa! Ao colocar o arquivo histórico em cena, o Mapa Teatro dá saltos pela História e evoca outras fendas da memória do espectador. Os registros realizados no antigo acampamento guerrilheiro El Borugo, em 2017, se misturam com as lembranças trazidas pelo narrador francês do documentário sobre o surgimento das FARCEP, à beira do rio Chiquito, em 1964 (Mapa Teatro, 2017a). O teatro dos militares em El Borugo se pretende portador do único ponto de vista aceito como legítimo. E facilmente somos jogados de volta a 2009, ao falso testemunho de Julián Diáz em sua ida a Guapi, onde fingiu ter conhecido a forasteira Heidi Abderhalden e fora o fato de que a dita cuja é capricorniana, não se sabe de mais nada que seja verdade. O documentário fictício de Julián e Heidi não habita ou pertence mais ao mesmo plano de onde partem os discursos militares a respeito das guerrilhas. Falsificado, o documentário do qual fala Julián é etnoficção, verdade inventada que permite reescrever a história despedaçada de suas letras capitais. Fabulado e fabulador como o discurso de um homem poderoso que promete tirar o país da deprimente posição de Terceiro Mundo.

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O Mapa Teatro não parece interessado em representar a História, tampouco em elucidar a Verdade. Sua atividade artística mescla a documentação histórica com o exercício da fabulação, de forma que Sánchez (2016) situa a produção do grupo como parte da tradição denominada por Jacques Ranciére de “estética”, na qual elementos como a teatralidade e a representação ainda são vistos como possibilidade de ação política. Buscando uma unidade entre os regimes da arte e da política, a tradição estética se afasta da realidade e dá lugar a um modelo ético, situando-se “em um ponto intermediário entre a separação contundente estabelecida pela representação (entre o representante e o representado, a ficção e a verdade, o artista e o espectador...) e a dissolução de toda separação própria do modelo festivo” (Sánchez, 2016: 37). Em outras palavras, as separações não são vistas como abismos e sim como distâncias que permitem articulações, não há as tradicionais dicotomias da representação, tampouco a fusão total denominada aqui “modelo festivo”, no qual a sustentação ética só seria possível sem a mediação da representação. Recupera-se, assim, os valores positivos da ficção, o que permite que as apresentações do Mapa Teatro se distanciem do Teatro Documentário e seu discurso direto e militante. O grupo transita pelo entrelaçamento inevitável entre estética, política e ética, sendo esta última manifestada em seu constante combate contra as representações que compõem a Cultura, ou “os clichês da opinião” (Deleuze, 2009: 262). 17 A pergunta é originalmente atribuída a Walter Benjamin.

Ora, “toda manifestação de Cultura não é, ao mesmo tempo, uma manifestação de barbárie?17” (Mapa Teatro, 2017a) é a pergunta que Rolf Abderhalden deixa para a plateia no começo de La despedida. Se há um “eu”, sempre há outrém, e outrem de outrem. Nunca cheguei a perguntar a Rolf o que ele quis dizer com "barbárie”, mas tomo a liberdade de dizer que nessa pergunta encontramos o que pode ser a operação comum aos processos do Mapa Teatro com os quais tive contato. Cultura versus barbárie é a dicotomia desfeita por eles desde seus pontos de partida, no entanto a direção é sempre em um sentido muito claro, que não é nunca o das palavras com letras capitais. Manifestações bárbaras são o que os diretores, atores e colaboradores do Mapa Teatro cavam nos escombros de El Cartucho; reencenam, à sua maneira, a partir do teatro de militares no antigo El Borugo; criam em um discurso sedutor de um homem que nos parece decente e nos colocam em maus lençóis. Não pretendendo se excluir de seu contexto, partem da Cultura, da opinião, às vezes de lugares comuns ou notícias de jornal, e os torcem, pois lhes interessa o não-dito, o outro, a barbárie.


Os bárbaros são, para a opinião geral, os não civilizados, o que não é o centro, o que não sou eu. Ainda se vê muito militante da esquerda tradicional chamando alguma coisa de “barbárie” com ares de reprovação, em seu pedestal antropo-etno-logo-falocêntrico e revolucionário. Lá em casa “bárbaro” era adjetivo de mamãe para se referir a algo tão bom que não cabia em outros elogios, nunca foi outro, ainda que tenha sido estranho. A dicotomia se dissolve, pois a barbárie mencionada por Rolf não é a existência de um outro objetificado, vitimizado e amparado pelo artista redentor que critica o status quo. Cada “manifestação de barbárie” se apresenta como uma perspectiva que é a “expressão de um mundo possível” (Viveiros de Castro, 2002: web), na qual o grupo tenta habitar. Perspectiva que coexiste com outras incontáveis perspectivas e não reconhece um ponto de vista absoluto, ou a Verdade da Cultura, assim a combate sem participar de sua lógica. 18 Essa exatalção aos vândalos me remete a uma fala de Acácio Augusto, na qual ele comentava as manifestações de junho de 2013, enquanto ainda estávamos no calor do momento. Ver: Junho de 2013 em junho de 2013: sobre os vândalos - com Acácio Augusto (YouTube).

Viva os bárbaros! E também os vândalos18, que infernizaram o império romano, e todos o povos de fora que apresentaram e apresentam uma ameaça aos aparelhos de Estado, pois operam em regimes de velocidades e afetos que não estão compreendidos nas relações entre Estados. São máquinas de guerra cuja potência destruidora pode despedaçar a composição do espaço-tempo que dá à violência estatal o estatuto de justiça. Quanto mais contestam “os espaçostempos englobantes do Estado” (Lapoujade, 2015: 88) se tornam menos fixas a um único lugar. Na destituição do Uno como ponto de referência, manifestações bárbaras podem se espalhar por todos os lados, sem caminho traçado de antemão, desorganizam a ordem e operam em outros espaços-tempos criados em seus deslocamentos. Enquanto as máquinas de guerra operam em uma lógica externa ao aparelho de Estado, sua potência destruidora não existe em oposição a nada, está a serviço de uma fúria, manifestação de afetos que vem de fora e não têm objetivo futuro. Longe de ser dicotômica, pode ser pensada como multiplicidade, “irrupção do efêmero e potência de metamorfose” (Deleuze; Guattari, 2008: 13). Bem... sinto desapontar, mas é pouco provável que as barbáries apresentadas aqui sejam responsáveis pela destruição do aparelho de Estado – aquele da macropolítica, detentor do monopólio legítimo da violência. Independente disso, elas barbarizam ao sair da lógica estatal e sua univocidade, admitindo uma multiplicidade de perspectivas e, consequentemente, desviando do espaçotempo admitido como único pela soberania política.

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Mais do que isso, engendram múltiplos outros espaçostempos que ocupam de forma singular. Dito em outras palavras, povoam o mundo com novos modos de existência (Lapoujade, 2017: 20), que são guerrilheiras metamorfoseadas em rainhas descoroadas, matas de coca destrambelhadas e dançantes, carrascos que açoitam o nada e reaparecem como poeta, o som do acordeão que de vallenato se faz em narrativas de histórias que nunca existiram, um papel amassado, um documentário inventado ou até mesmo um bairro inteiro, reconstruído a sua maneira conforme foi testemunhado. Instaurar manifestações bárbaras é a operação presente nos mais variados movimentos do Mapa Teatro em sua Anatomia de Violência, que começa antes de começar oficialmente com a viagem de Heidi a Guapi e a criação de Los Santos Inocentes. Seu início é mais de uma década antes, com a demolição de El Cartucho e o projeto C’úndua, Prometeu relido por Heiner Müller relido por antigos moradores do bairro; a limpeza do estábulo de Augías que leva os destroços do bairro pra dentro do museu, mas são apenas fantasmas; O testemunho sobre as ruínas, que variou em instalação. Talvez até mesmo estivesse sendo preparada desde muito antes, lá nos primórdios do grupo, com sua primeira peça A casa tomada, de Júlio Cortázar. E com seu réquiem para Samuel Beckett, estreia dos Abderhalden na Colômbia, logo após a morte do dramaturgo irlandês, ele mesmo um instaurador de barbáries, sobre as quais podemos apenas silenciar agora. Talvez não parem por aqui e um corpo social em metástase continue sendo dissecado a cada novo projeto, com seus longos processos que se tornam atos poéticos eles mesmos. Porque não interessa o objeto de arte ou a apresentação por si só, quando se fala em um combate constante contra as representações da Cultura, os clichês da opinião, o unívoco, o ponto de vista absoluto, a Verdade, a História, o que está em jogo é a luta de uma vida, porque a dimensão ética configura uma prática que existe ao longo da experiência, e não pode ser situada pontualmente em uma reflexão sobre o que ocorreu ou ocorrerá (Sanchez, 2016: 22), ainda que se manifeste objetivamente nas opções escolhidas pelos artistas como formas de representação.


Paramilitares, indígenas, negros, camponeses, traficantes, guerrilheiros, comerciantes, sicários, prostitutas, drogaditos, múltiplas formas de vida se espalham pelos vídeos, pelas cenas, pelos pensamentos e se encontram e metamorfoseiam e quem era vítima corre o risco de se tornar carrasco. Um linchamento nas ruas de Bogotá fez surgir o primeiro personagem dessa dissertação, o cidadão-polícia que aparece para executar o que configura justiça em seu código moral. Sujeito organizado internamente como aparelho de Estado, de acordo com suas normas e regras, autorizando a si mesmo eleger quem deve morrer, sujeito necropolítico. A narcotraficantes, guerrilheiros, paramilitares e demais personagens do imaginário colombiano representantes da violência, soma-se o cidadão de bem aparelho de Estado. Esse que comemora o deslocamento forçado dos delinquentes que ocupam certos bairros mal falados... E que frequentemente celebram o massacre diário de minorias, mas tome cuidado para não se tornar aquele que reivindica seu lugar de minoria e passa a reproduzir a violência sob o signo da autodefesa. E fique longe de narcotraficantes, esses maus elementos! O proibicionismo opera como juiz que codifica quem pode ou não ser enquadrado como delinquente. Afinal, pra ser delinquente tem que “ter cara de bandido”, aquele seu amigo é só um cara com uma família problemática, gente de bem passando por momentos difíceis, sabe como é... como foi mesmo que um mega narcotraficante virou popstar? Cheio de pretensão e aprovação popular, ambicionou ser presidente, foi o que disseram por aí... e não é que seria possível? Mata, mas faz! Mata dançarina e delinquente, por onde se espalharam guerrilheiros e guerrilheiras seminus e revolucionários de látex. E que fez companhia para uma diva enlouquecida e eu mesma fui de tudo um pouco ou fingi que era só para poder escrever – etnoficção da etnoficção! Sonhei o sonho de Maiakovski e até hoje escuto aquela música quando vou dormir, por isso não durmo e corro pelas ruas de Guapi açoitando quem quer que seja, sina de toda miss descoroada. Sou assim tão feia? Não tenha medo, eu não sou mais que uma nuvem. Na selva amazônica não há primavera! Sabe o quê? Precisa ser daqui pra sentir certo prazer com a dor. Erro! Erro! Erro no sistema! Chega desse desvario!

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O imaginado ĂŠ parte inseparĂĄvel do acontecido e vice-versa.




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