Marias de luta

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EXPEDIENTE

Texto e Edição: Ana Eliza Barreiro Clarice Bertoni

Ilustrações: Ana Eliza Barreiro Edição de Imagens e Design de capas: Ana Eliza Barreiro

Diagramação: Orientação:

Clarice Bertoni

Rafael Venncio

Co-Orientação: Gerson de Sousa Vanessa Matos

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Sumário 1.

Marias de Luta ........................................................................ 9

2.

Iraci Diouse ........................................................................... 14

3.

Lourdes Inês Vieira ............................................................... 44

4.

Maria José dos Santos .......................................................... 74

5.

Maria Aparecida Oliveira ..................................................... 101

6.

A Questão Fundiária no Brasil ............................................. 124

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1. Marias de Luta

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Maria é um nome incerto. Sua origem remonta aos primórdios dos homens. Procedente do hebraico “Miryam”, significa “senhora soberana, pura e forte”. Pode datar de tempos ainda mais remotos, ramificado da palavra “mr”, o amor em egípcio, ou seja, “senhora amada”. Costumeiramente ligado à mãe de Jesus, é um título comum na Bíblia, citado 52 vezes nas Escrituras, é também o único nome feminino a ser mencionado no Alcorão. De concreto, sabemos que é um dos nomes mais adorados há séculos. E pelas estradas deste país, tantas Marias se fazem senhoras do próprio destino, puxando com força as rédeas de suas vidas. No interior do Brasil, existem histórias heroicas. Histórias que ninguém vê, vidas de sujeitos que resistem e seguem lutando. Cada um ao seu modo, com seus passos únicos, sonhando em um mundo que insiste em lhes desiludir. Mulheres que vêm de todos os cantos, comprando passagem só de ida para a guerra cotidiana. Desejam dignidade em um país de desigualdades. São Marias de alma, carregam na pele os signos que compõem a palavra. Ocupam lugar de destaque quando o verbo é resistir. Tantas Marias, iguais e únicas, prosseguem com coragem. Fazem de suas histórias atos de bravura diária. São mulheres com fé, que sorriem com ternura, agradecidas por seus percalços e sedentas por realizar mais e mais sonhos. Creem na garra e fazem com braço forte o correr da luta. Tivemos a honra de conhecer algumas dessas mulheres. Talvez cansadas da rotina da imparcialidade das notícias, trajamos 10


as vestes de garimpeiras e fomos buscar histórias inspiradoras que, como pedras preciosas, precisam de um olhar aguçado que enxergue seu imenso brilho no meio das rochas. E nisso essas mulheres se unem: são fortes. Partimos por essas rodovias meio perdidas, meio sem respostas, meio inseguras. Partimos com sede. Nesta trajetória fizemos conexões, redes de sororidade e grupos de irmandade. No início, nosso primeiro contato

foi

maternal e meigo em todas as horas. A Marivalda de Jesus Alves Barreiro, mãe e guerreira e Maria Aparecida Vernutti, nossa querida Tidda, leal aos seus ideais e aos seus amigos, nosso singelo obrigada. Com elas aprendemos que a solidariedade e além, a amizade, são coisas preciosas. Foram nossas guias por essas estradas, porteiras e matos. Por intermédio delas, firmamos laços com mais Marias de Luta. Guiaram-nos generosamente até quem precisa de ajuda ou, apenas, ser ouvida. Por inúmeras vezes seguimos juntas rumo ao assentamento rural Egídio Brunetto. É a primeira organização sem-terra da macroregião de Barretos, SP, entre os municípios de Altair e Guaraci. Encontra-se entre fazendas improdutivas, pertencentes a uma rica senhora sem herdeiros diretos. Aqueles cantos são conhecidos nacionalmente pela famosa festa do peão de boiadeiro, com seus rodeios internacionais. Embora, a terra do peão tenha mais de terra dos benefícios aos latifundiários. Antes de avistarmos os lotes, adentramos um mar de canade-açúcar. Passando pela pequena porteira, podemos conhecer as 11


famílias que partilham a mesma guerra por direitos à terra e, ademais, vamos entendendo suas lutas e seu modo de viver e resistir. Mulheres que fortificam seus lares e não têm medo de pegar no batente. Tínhamos muitas perguntas e na busca por respostas, nos deparamos com as verdadeiras autoras desta obra, as Marias de Luta. Quatro mulheres que se dispuseram a nos receber em suas casas e a contar suas vivências: o que as levou até aquele lugar e a força necessária para viver em barracos nas bordas das estradas. Soberanas dos próprios caminhos, flores de aço que crescem belas, apesar da secura que as rodeia. Ali conhecemos exemplos de fortaleza, ternura, generosidade e alegria. Acreditamos que palavras são poucas para expressar nosso agradecimento pela parceria e principalmente, pela confiança. Esses relatos fortes, trazem lições que a lombada deste livro sozinho não conseguiria carregar. São histórias que se fazem importantes por serem reais e vividas pelas tantas Marias, entre a correria do dia a dia. Relatos de gente comum, que possui força para lutar e que portanto, fazem da lida o rosto divino do homem. Existem realidades tão próximas e tão distantes de nós, que é sábio conseguir calar-se para escutá-las. Poder ter a honra de conhecer essas mulheres foi a lição importante que carregamos do lado esquerdo do peito. Emergimos em encontros com a comunidade, aprofundamos a relações em entrevista, nos propusemos a pesquisar as situações abordadas pelas mulheres, buscamos documentação legitimadora, 12


escrevemos com a alma e com a lógica, reescrevemos em estilos diferentes e reescrevemos de novo, procurando identidade. Mas o principal foi nos deixarmos enternecer. E mais, conseguirmos aprender com elas a ter fé no destino. No fim, experimentamos e deixamos aflorar toda a sensibilidade que este trabalho nos trouxe. Guardamos nestas linhas um ângulo humanizado e por que não dizer, poético, para contar as histórias dessas mulheres que resistem. Não apenas nas dificuldades de viver em um barraco, mas também nos problemas comuns a tantas outras mulheres: violências, desilusões amorosas, desigualdades, lutos e saudades... Elas são únicas, mas trazem vivências que cabem em muitas. Para a realização deste material jornalístico, não podemos deixar de agradecer, a Gérson de Souza, pois sem ele sequer teríamos estruturas para propor esta experimentação, a Rafael Venâncio, por nunca nos deixar desistir de sonhar alto e Vanessa Matos, por nos relembrar que para se concretizar um ideal é preciso bagagem e pé no chão. Nos orgulhamos em saber que este livro é fruto de muita dedicação. Foram muitas viagens, apuração, pesquisa, noites em claro esperando a inspiração dar as caras, mas principalmente, paixão pelas histórias. E acreditamos que não desistimos de refazê-lo em tantos momentos, por que levamos um pouco desta coragem das Marias de Lutas no peito. Só temos a agradecer.

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2. Iraci Diouse

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“Maria, Maria É um dom, uma certa magia Uma força que nos alerta Uma mulher que merece Viver e amar Como outra qualquer Do planeta” Milton Nascimento É preciso saber enxergar as pepitas de ouro que se revelam quando escutamos vivências. Basta ouvir mais que falar. Partimos sedentas por escutarmos pequenos atos diários de coragem. Não sabíamos o que nos esperaria na virada daquela esquina de terra, erámos apenas mulheres sedentas por escutar outras mulheres e os tantos segredos que cada uma possui dentro do peito. Foi então, naquela casa ensolarada, com um riacho ao fundo, que ela nos encontrou. Na varanda, um menino brincava com sua bicicleta e, assim como a mãe, nos recebeu com um abraço apertado. O sorriso terno e largo de Iraci é seu traço mais marcante. É uma mulher alegre, sorridente, que acolhe seus visitantes com simpatia. Observando em um primeiro momento aquela energia, não se imagina todas as adversidades que a vida lhe impôs. Nêga, para os mais próximos, carrega histórias de luta em seu semblante leve. A pele negra e o sangue negro que correm em suas veias carregam narrativas que atravessam gerações. Histórias de mulheres 15


tão fortes como Iraci, que pelas estradas caminharam por trilhas cheias de pedras, mas não desistiram de seguir mesmo com os calos machucando a sola dos pés. Seu rosto não carrega linhas de expressão dos tempos difíceis. Nela, vemos uma sabedoria que vem de tantas vivências e uma esperança que salta ao olhar. Esperança: eis a palavra-chave. Talvez a vida seja uma linha frágil em que é preciso se equilibrar e crer na própria força para dar novos passos, seja confiando nos céus, no destino ou na sorte dos acasos. É seguir com um sorriso no rosto apesar da inconstância e sonhar, quem sabe, com uma casa em frente ao azul do mar, com a família e amigos ao redor de uma mesa farta, como Iraci sonha. E como se desenhando na memória olha para além do horizonte, e nos diz: — Olha, minha história é longa. Essa força, ela garante, vem de longe... Vêm de porões de navios negreiros, onde forçados os antepassados de Nêga vieram, resistindo à dor, humilhação e açoites. Para a família de Iraci restou um sobrenome, herança africana, uma lembrança de força. O sobrenome Diouse veio da família paterna, que segundo os relatos contados pelas gerações vieram acorrentados em porões de navios. Grandes barcos que mais se pareciam com tumbas cheirando a doença e morte. Muitos preferiam saltar ao mar. Talvez o abraço frio das águas profundas fosse mais doce que a loucura de estar sendo carregado, como animal, para uma terra desconhecida. Talvez a liberdade cantada por sereias existisse apenas junto aos corais no 16


fundo dos oceanos, tão imensos e azuis como o céu que de braços abertos esperava as almas cansadas. Os antepassados de Nêga, porém, insistiram em sobreviver. Nenhuma chibata ou tortura os impediu de resistir. A realidade seguiu e cada qual tomou um rumo, e tratou de sobreviver e dar continuidade ao sangue negro que construiu e constrói esse Brasil. E o passado se torna presente na persistência da memória. O cotidiano dos pais de Iraci não foi regado de privilégios e facilidades. Se outrora gente de seu sangue lutou contra escravidão, em outros tempos houve luta contra a fome, a falta de uma moradia própria e o preconceito. Tudo isso foi criando em Nêga uma casca dura; não no sentido de uma armadura triste ou amarga, mas uma coragem de seguir a batalha. Hoje ela enfrenta com resiliência um sistema antigo de poderes de terra e segue no confronto diário de ser uma mulher independente num assentamento agrário. Todo começo é singular, embora este, em particular, possa parecer,

em

tantos

detalhes,

outras

infâncias

brasileiras:

Brincadeiras populares entre um mundaréu de crianças nas ruas de terras, pés descalços e tantas inocências. Nascera no interior paulista, em Presidente Prudente e cresceu rodeada de irmãos. Seus pais tiveram seis meninas e adotaram um sétimo filho. Com o fim do relacionamento entre dona Maura de Souza Diouse e senhor Joaquim Santuário Diouse, seu pai biológico, e com o passar do tempo, um novo casamento da mãe trouxe novos membros para a família: o padrasto, José Antônio de Jesus e seus quatros filhos. Ao 17


final, eram treze pessoas convivendo diariamente em uma casa singela. E a vida foi se desdobrando, os mais velhos cuidando dos mais novos, enquanto cresciam e passavam a cuidar dos mais novos ainda. Dona Maura batalhava pelo pão com o suor de seu trabalho na lida do dia a dia. Afinal, não se criam filhos apenas com amor. Crianças precisam comer, estudar. Enquanto as lembranças distantes ressurgem, Nêga sorri ao contar que não entende por que as pessoas reclamam tanto, se hoje as coisas parecem tão mais fáceis. Chinelo novo, pasta de dente, roupa passada... Detalhes pequenos hoje em dia, mas naquele tempo, para aquela família, eram praticamente inalcançáveis. Certa vez, com a barriga roncando e ouvindo os meninos pedindo um pouco de comida, sua mãe se viu sem nada na dispensa. A solução de dona Maura foi cozinhar batatas doces, plantadas ao lado de casa e dar aos 11 filhos como café da manhã. Abençoadas batatas! Fontes de energia, davam conta de afugentar a fome que quando não havia o arroz com feijão nas “panelas”. A panela era uma lata de tinta improvisada e as canecas eram latinhas de óleo. Saudosa, Nêga relembra o gosto das batatas doces e o cheiro de chá de erva doce que a mãe colocava de manhãzinha no fogão a lenha para esquentar o corpo. Com tantas bocas para serem alimentadas, quando tinha um frango no almoço, os pedaços pareciam pequenos:

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— Um pedaço de frango a gente cortava no meio, dividia e ainda ficava alguém sem comer. Isso quando tinha uma carninha pra colocar debaixo do feijão e do arroz. A ida à escola era momento de alegria, mas também uma recordação daquilo que não se tinha; lápis e agendas de marcas, como aqueles das crianças que apareciam na televisão. O estudo em primeiro lugar, mesmo carregando bolsas improvisadas, feitas de sacos de arroz e com alças de calças jeans velhas, explica. Na bolsa ia o caderno e nos pés um sapato de missa de domingo, rigorosamente guardado quando voltava para casa. Além desse calçado especial, tinha um chinelo e se por acaso ele quebrasse, a solução era arrumar com arames, porque conseguir outro era tarefa ardilosa. As roupas deviam ser bem zeladas, tomando cuidado para que ao passá-las, com um pesado ferro à brasa, não se torrasse o tecido. Nêga conta que sorte tinham quando vizinhos doavam peças. Mas, em sua inocência e sede de descobrir o novo, a menina se arrumava no capricho, mesmo que na falta de uma pasta de dente, escovasse a boca com cinza de fogão ou com sabão em pedra. O gosto do sabão permanecia na garganta, porém não impedia que suas pernas finas e magras seguissem firmes no caminho da escola. A falta de acesso a tratamento bucal de qualidade e pasta de dente por parte da população brasileira é um dos resquícios da nossa desigualdade social que se reflete no cotidiano de muitas famílias. Problemas dentários, como as cáries e consequentemente perda de 19


dentes, podem resultar desta situação complicada de saúde pública. É interessante ponderarmos que desde 1974, conforme a Lei Federal Nº 6.050, é obrigatório que o abastecimento de água em nosso país contenha a substância flúor. Este elemento, quando utilizado em quantidades corretas combate a formação das bactérias da cárie. Isto foi uma medida necessária para tentar conter doenças bucais, proveniente das cáries, já que o investimento em odontologia de qualidade e gratuito demorou a ser impulsionado. Apesar das questões decorrentes da desigualdade sóciopolítica enfrentada, a família seguia firme. Mesmo com a fome, a falta de tratamento bucal adequado, as crianças não deixavam de ir à escola. As irmãs de mãos dadas prosseguiam como equilibristas entre a realidade, a poesia existente nas páginas dos livros e certa magia que as letrinhas na lousa escura possuíam. O que lhes faltava materialmente sobrava nas matérias fluídas dos sonhos, leves como brisas, mas essenciais para manter a chama acesa. O relógio tratou de correr. E como toda flor que antes de desabrochar é pequeno botão, pouco a pouco a menina em frente ao espelho se transformava, ganhando contornos de mulher. Iraci virou moça. Com a mocidade, vieram as tempestades típicas de adolescentes: os primeiros amores, as decepções, as mudanças. E, ano após ano, as irmãs iam percorrendo seus destinos, procurando novas trilhas para marcarem seus rastros. Nêga deixa claro que as meninas seguem unidas até hoje, comunicam-se pelo grupo do whatsapp “As Poderosas”, onde mantêm contato. Todavia, houve 20


tempos de encontros e despedidas, como geralmente acontece em tantas famílias, quando a vida adulta afasta entes queridos em distância, mas não em afeto. O amor veio de perto do mar. Iraci não o esperava, simplesmente aconteceu. Como toda história de amor, contada ao pé do ouvido e almejada pelos mais românticos. Acaso, destino, sorte, descuido... Sem explicações nem pontos finais, mas cheio de vírgulas e poréns. A trama se debruça nos longos capítulos de um romance folhetim, com um roteiro cheio de idas e voltas, surpresas e reviravoltas. Mas, era romance da vida real, feito de concreto e chão. Esse, não é perfeito como nos livros e foi construído de reencontros, aos pedaços, costurados por diálogos e lágrimas. Tudo aconteceu aos 16 anos, quando ela foi passar uma temporada na casa da irmã Iranilda em Peruíbe, na Baixada Santista: — Aí apareceu um brotinho. Foi aquela troca de olhares, arrepios na pele e aquela paixão. O nome do rapaz era Reinaldo, parente do marido da irmã. E o que para Nêga poderia ter sido apenas um romance de verão, bom para se guardar na memória, se tornou algo maior. A viagem teve fim e ela voltou para a casa da mãe no interior, sem saber que a história teria continuação. No mês seguinte um susto, suas regras não vieram. No outro mês a mesma coisa e a confirmação final. Estava grávida e cheia de dúvidas e receios. A barriga foi crescendo, e Iraci não sabia como contar para a mãe. 21


O corpo de mulher se preparava para semear vida no ventre, mas a mente continuava jovem e se assustava com o futuro. Com vergonha, Iraci preferiu calar-se e não procurar o pai do bebê. Diz que para Dona Maura, o correto era seguir as normas de engravidar e logo casar. Iraci calou-se. Hoje, madura, relembra os medos que carregou e as incertezas que teve naquele tempo quando ainda era uma jovem com responsabilidades grandes: — Na época eu era tão besta, por que hoje em dia só engravida quem quer, né? Antigamente as meninas eram inocentes. Na atualidade, a taxa de gravidez em mulheres jovens em nossa nação continua alta. Conforme relatório da ONU em 2017, um a cada sete recém- nascidos são filhos de mães entre 15 e 19 anos. Isso significa que as inseguranças em relação à maternidade são elementos marcantes para muitas, que como Iraci, sentem-se no momento perdidas quanto ao futuro. Nêga relembra as mudanças em seu corpo, que era magrelinha e de repente começou a engordar: — E como eu ia contar para minha mãe? Nisso a barriguinha foi crescendo. Um rapaz gentil de Presidente Prudente, Donizete, se interessou por Nêga e começaram a se envolver. O moço, encantado com o jeito e energia da namorada, rapidamente pediu para morarem juntos. E aí foi preciso passar por cima dos receios e revelar o mistério: estava grávida. Donizete aceitou registrar a criança como se fosse carne de sua carne. Iraci, num misto de 22


carinho pelo gesto e alívio por não ter que carregar a dura carga de ser mãe solteira em um país machista, aceitou o convite. Restava confirmar a união e pedir a benção para a mãe. E qual não foi sua estranheza ao descobrir, pela boca da mãe, que ela não seria castigada, não precisava sair de casa e que há muito a gravidez já não era uma surpresa: — Filha, onde comem 3, 4, também comem 5 ou 6. Nega, com os olhos marejados, recorda das palavras sutis ditas com serenidade por sua mãe. O casamento às pressas, sem pompas ou festas, aconteceu. Algum tempo depois, uma menininha nascia: Danúbia “a Estrela mais Brilhante”. Quando nasce um bebê, nasce também uma mãe que engatinha até aprender os primeiros passos de como cuidar e educar uma pessoinha novinha em folha. E Iraci garante que o amor de uma mãe por um filho é algo inacreditável e que cada um é uma joia abençoada, venha como e quando Deus mandar. A saudade daquela menininha protegida em seus braços bate forte e no meio dos relatos, pela primeira vez sentimos a voz de Nêga embargar. Hoje sua filha está longe, marchando em um país estrangeiro atrás de seu sonho. Resta a saudade e mais uma vez, a companhia da esperança. O nascimento de um filho traz para a mãe um renascer como mulher. E como todo renascimento, as mudanças vêm temperadas de inúmeras sensações. Existe um adeus ao modo de vida antigo, sem filhos, e à frente existe um novo horizonte de possibilidades, agora com alguém tão frágil dependendo de você. Nascia uma mãe, 23


nascia vida nova e também um novo sentimento: um amor tão grande que a emociona ao tentar explicar com palavras. Tem certas coisas que não tem expressões na língua falada ou escrita, só dá para sentir, Nêga explica. E esse amor cresceu junto a cada novo passo dado pelo seu bebê, a cada nova etapa na escola, a cada novo aniversário, a cada tropeço que se sente doer como se na própria carne, a cada puxão de orelha necessário para educar: — Só Deus mesmo para explicar o amor de uma mãe. Por um filho se você precisar tirar seu braço direito, você faz. E você

consegue entender o tamanho desse amor depois de se tornar uma. Por dois anos tudo seguia bem no lar que construíra com fé ao lado do marido, que tinha emprego fixo na fábrica de biscoitos Liane. Nêga esperava seu segundo filho, e tudo corria bem, receita certa de felicidade. Mas o tempo desnuda as pessoas diante dos nossos olhos. O novo membro na família, Thalles, nasceu quando Danúbia fazia dois anos. Donizete, até então um “paizão excelente”, nas palavras de Nêga, começou a mudar. Passou a fazer diferenças entre seu menino de sangue e a filha. E aquele homem, tão gentil no início, que apoiou a companheira em momentos difíceis, se transformou. Ou apenas tirou a máscara e se revelou por inteiro. Donizete levava presentes e bolachas recheadas para o pequeno Thalles. A irmã, vendo os mimos e presentes não entendia o porquê de não ganhar também. A mãe intercedia para dividirem, e o marido foi se tornando violento sempre que Nêga ia tentar educar o menino: 24


— Eu dizia, você é pai de um, eu sou mãe dos dois. E aos primeiros sinais de uma chinelada na bunda do rebento preferido, o pai intervia com a mão em punho contra a esposa. Nessa época, a semente da batalha pela reforma agrária tinha sido plantada. Ela, o marido e os filhos seguiram o grupo do líder José Rainha Júnior, que Iraci considera particularmente um amigo e homem de valor, que fazia trabalho de base nas periferias das cidades da região. Explicava as razões pelas quais tinha gente recorrendo àquela loucura de fincar barracas nas estradas e lutar com unhas e dentes por um pedacinho de chão, para plantar a própria comida e não ver os filhos chorando de fome. Nêga se interessou por aquela nova perspectiva, não tinha nada a perder a não ser seus grilhões. Seguiram confiantes para o acampamento Dorcelina Folador, na região da cidade de Teodoro Sampaio, SP. Muita terra, pó e lona, uma nova maneira de viver e de repente aquela loucura fazia todo o sentido. Entre tantas fazendas, foi pegando o gosto e as manhas da sobrevivência na lona. Tudo em nome de um ideal, deixar algo para os filhos. Saiu a reintegração de posse por parte do fazendeiro. Sua barraca no chão não ceifou sua vontade de continuar, então migraram para outra fazenda. A primeira série de Danúbia, aos cinco anos, foi dentro do assentamento Areia Branca, entre os municípios de Marabá Paulista e Teodoro Sampaio. Era a virada do século e dessa vez a terra quase saiu. Mas o desejo de conquistar o lugar escorreu pelas mãos, pois 25


não houve homologação e as propriedades foram divididas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) para os companheiros mais antigos no MST. A burocracia desmantelou os planos de muitos que ali estavam. Em casa, a vida seguia com aquele eterno pisar em ovos com o esposo. Não reconhecia o homem que dormia ao seu lado, que lhe jurava amor eterno, mas lhe marcava a pele e a alma. Aos poucos, se tornaram dois estranhos, dois rivais. Discussões viraram rotina, humilhações eram normais, tapas faziam parte do cotidiano. Nêga perdeu o brilho, ficou amuada, sem vontade de se arrumar nem se olhar no espelho. A depressão passou a rondar-lhe: — Minha vida era aquela: muito ciúme, muita ignorância. Se eu passava um batom ele pensava que era porque eu estava me arrumando para sair com outro homem. Eu tinha um cabelão bonito, minha filha, mas olha como que é uma depressão, estava mal e durante o dia só amarrava uma fralda no cabelo e não penteava por nada. Quando tinha uma reunião na escola é que eu desembaraçava o cabelo. Menina, nem pente eu tinha, não é vergonha eu falar não. Nessa época eu pegava uma escova de roupa molhada e só passava e amarrava, fazendo um coque e pronto. Como tantas mulheres no Brasil e no mundo, Iraci viveu um relacionamento tóxico. Esse tipo de relação é baseada em ciúmes, intimidações e controle por parte de um dos parceiros e pode desencadear violência doméstica, seja física ou psicológica. A pessoa mais fragilizada tem a autoestima minada, fica manipulada 26


pelo companheiro e sente-se presa nesta situação e portanto, terminar um relacionamento destrutivo não é tarefa fácil. Agressões e humilhações rondam o cotidiano dessas vítimas. Aliás, segundo o Relógio da Violência do Instituto Maria da Penha em 2017, a cada 2 segundos uma mulher é agredida fisicamente ou verbalmente em nosso país. Esse problema, que também atinge tantas outras Marias, pode ter diferentes desfechos. Para Iraci, acabar com a situação abusiva foi uma reação corajosa em um período de instabilidade emocional. Foi num natal que as coisas mudaram. Iraci sentiu tamanha falta do lar quente e terno da mãe, que arrumou as malas com o intuito de passar alguns meses na companhia da família. Pela primeira vez saiu daquela bolha de aparências e respirou com alívio o aroma da liberdade. Nêga estava mudada. É o que as irmãs cochichavam e a mãe percebia só de olhar. Ela relembra como se escondia das visitas e encarava o vazio com os olhos cabisbaixos. Calada pelos cantos, já não havia tantos de seus antigos sorrisos iluminados. Se chegava visita, refugiava-se na escuridão do quarto. Não queria ver ninguém, preferia passar os dias calada. Naquele fim de ano, coincidiu de sua irmã da baixada Santista também ir visitar a mãe. E entre confissões, Iraci desabafou e chorou toda aquela angústia que estava lhe afogando há anos. A vida com Donizete não estava nada boa e ela, machucada, já não conseguia sequer gritar socorro. Sua irmã, entendendo a situação lhe perguntou porque não largava o marido. A pergunta parecia 27


simples, mas Nêga diz que como tinha o Thalles e a Danúbia pequenos para olhar, se amedrontava de não conseguir sustentar as crianças. Estava tão presa ao relacionamento que a saída parecia impossível. Mas Nêga transpôs, por que embora não percebesse nos tempos difíceis, sua força continuava pulsando. O convite da irmã para ir morar com os filhos em Peruíbe pareceu, em um primeiro momento, um devaneio. A irmã pagaria as passagens, mas ela recusou. Seria uma fuga irreal. Um retorno de fragmentos mortos do passado. Estava em Presidente Prudente desde dezembro, e ao chegar fevereiro sentiu que era hora de retornar para sua rotina em Teodoro Sampaio, com as obrigações para com o marido. Chegou até a rodoviária, e na hora do adeus, desabou: — Me deu aquela crise de tristeza, o coração começou a acelerar, só de lembrar que eu voltaria para lá me deu uma vontade de chorar. Relembrar o passado é também conseguir desfiar o tecido do tempo e buscar na memória aqueles momentos em que foi preciso ser mais forte. O aroma da liberdade se tornara tão precioso, que já era

impossível

viver

sem

se

inebriar

daquele

perfume.

Definitivamente era hora de desatar aquele nó para novamente voltar a sorrir sem nenhum motivo evidente, sorrir só pelo fato de estar bem consigo mesma, voltar a ser a Nêga. A rodoviária é lugar de despedidas e ali ela deu adeus àquela relação tóxica. E mesmo com um frio na barriga, respirou fundo e reescreveu com suas letras, as páginas de linhas tortas de um novo amanhecer. Pegou um 28


ônibus que ia direto para Santos, não precisava de paradas, tinha destino certo. Segurou nas mãos dos filhos e prosseguiu. Sua bagagem era humilde, mas sua esperança de recomeçar era grande. Nos ombros apenas uma sacolinha de plástico, contendo umas poucas roupas suas e das crianças, uma mamadeira e seus documentos. Não deu tempo sequer de ligar avisando sobre a mudança de planos para a mãe: — Fui praticamente sem roupa, meus filhos também. Dinheiro só tinha o da passagem e nada para comer. Minha mãe, ela ficou preocupada, com medo que o Donisete tivesse me matado e enterrado os meninos. Com menos de uma semana em Peruíbe, mais uma reviravolta na vida. Reinaldo, o primeiro amor, ficou sabendo de seu retorno. Fazia anos desde aquele encontro adolescente, mas a face da jovem ficará marcada em sua mente. E como Nêga diz entre risos, não tinha como esconder a paternidade pela semelhança entre o pai e a menina. A solução encontrada foi entrar com parte no Fundo Social pedindo um exame de DNA, para então registrar a menina com o nome do pai biológico. Reinaldo e Nêga foram se reencontrando nos sentimentos, afinidades e resolveram morar juntos. Nessa época as crianças estavam com 8 e 6 anos respectivamente. E ela foi clara desde o início, se fosse para desfazer do Thalles como o ex-marido fizera

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com Danúbia, era melhor nem começar. O homem afirmou que assumiria o papel de pai para ambos e cumpriu sua palavra: — Até hoje ele continua sendo pai dos dois e tem gente que diz que o Thalles se parece mais filho dele que meu. Onde um vai, o outro está atrás. Nêga e o companheiro permaneceram juntos em Santos, se ajudando e construindo uma vida à quatro. Reinaldo havia crescido na firma e se tornado carpinteiro. Ela fazia faxina na casa dos outros. Às vezes, ia pra o trabalho de bicicleta, pedalando pelas ruas, levando os filhos na garupa, se equilibrando pelas curvas das esquinas. Porém, uma pontinha daquela sede de independência ainda a atiçava. Saudades do povo simples da roça, conversas na frente do portão das casas, meninos descalços brincando no meio da rua pacata: — Lá é assim, se o vizinho está doente você só fica sabendo quando a ambulância está saindo da casa. No fim das contas, apesar do mar, Santos lhe parecia uma cidade cinza. Em uma das férias escolares das crianças, Nêga resolveu visitar sua irmã Ivanilda, que há pouco havia conquistado um lote no assentamento Zumbi dos Palmares, na região de Iaras, SP. Ivanilda, vendo os olhinhos da irmã brilharem frente as plantas e flores semeadas ao redor daquele lar, convidou a irmã a morar ali, dizendo-lhe que um novo acampamento estava se formando. Seria uma chance de voltar às raízes do interior e se reinventar: 30


— Na segunda-feira que vem eu venho pro acampamento. Uma da tarde você pode me buscar lá na rodoviária de Iaras, que estarei lá junto dos meus filhos. Difícil foi convencer o marido a topar embarcar nessa, acrescenta. Reinaldo era homem urbano, acostumado tumulto e cheiro de combustível. Adorador de pequenas grandes coisas como chuveiro elétrico, televisão e outras coisas que não existem em um assentamento. No fim chegaram num acordo: ela lutaria no campo e ele na cidade. Chegou o dia da partida. Nêga foi com os filhos e a irmã não estava no terminal de São Paulo como havia combinado, pensara que era apenas uma brincadeira e que a irmã não iria. Nêga, Danúbia já moça, aos 14 e Thales adolescente, com 12, estavam perdidos entre a estação Jabaquara e Barra Funda. Desesperada, a sua menina chorou. Iraci relembra que não sabia se segurava à mão dos filhos, agarrava os sacos ou entrava em um dos metrôs. Por fim um táxi, pago com dinheiro contado, solucionou o problema. Chegou ao assentamento Maria Cícera, em 26 de Abril de 2009. Nêga passou a viver em um barraco, dormindo em camas improvisadas, vigilantes contra os perigos da estrada e da intolerância. A água potável não era de fácil acesso, geralmente era necessário descer até um riacho e subir com baldes cheios. O processo da homologação de terra era complicado, mas como já estava acampada há algum tempo, teria prioridade na divisão das terras. Portanto, optou por procurar um acampamento com pouca

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gente, foi compor a luta do Egídio Brunetto, ao lado do município de Altair e Guaraci. Diferentemente do que acontecia nos outros lugares, que Nêga lidava bem com o fato de morar no barraco, após quatro meses no acampamento se sentia amuada e com enjoo. Foi ao médico pois não fazia ideia do que poderia ser. Chegou ao hospital com o estômago revirado e o doutor a assustou quando lhe disse que tinha duas notícias para dar. A boa notícia era que o mal-estar não passava de gravidez e a má era que por conta do esforço físico, a sua placenta estava descolada. Deveria repousar e descansar, mas morando em uma ocupação sem-terra, isso não seria tarefa fácil. E embora não fosse fácil conviver com um barrigão de grávida em um acampamento nas estradas, seu neném nasceu forte: — Não deu tempo nem de ir fazer a ficha. Eu estava na maca ainda, o Renan já tinha nascido. Renan Augusto Diouse Pereira nasceu sem-terra e só por isso já era um vencedor. Passou por muitas dificuldades no ventre de uma mãe guerreira. Mas outros desafios estavam pelo caminho. Em um acampamento tudo é improvisado. Não tem água encanada, geladeira, paredes, fogão elétrico, energia, enfim, faltam coisas que muitos de nós achamos simples e rotineiro. Para se virar com um neném então, imaginem: as mamadeiras, por exemplo, são esquentadas em latinhas. Esse é um dos muitos jeitinhos necessários para sobreviver nas lonas. Por outro lado, como colocar alimento na mesa sem que algum membro da família esteja trabalhando? É por 32


esse motivo que muitos dos acampados precisam continuar trabalhando fora, enquanto outros familiares resistem nos lotes, assim como Iraci e seu parceiro. A união da comunidade sem-terra é algo essencial para ajudar os companheiros a não desistirem, ela nos revela. Ao falar da importância de um grupo unido com laços de amizade para a luta seguir firme, Nêga lembra com carinho especial de Diolinda Alves de Souza, esposa de Zé Rainha. Sobre a ex liderança, ela deixa claro que prefere não entrar em detalhes, sequer dar opinião sobre os problemas enfrentados pela organização de Zé Rainha, que encarou conflitos com o movimento e rompeu com o MST, fundando a Frente Nacional de Lutas no Campo e na Cidade (FNL). Esta é apenas sua percepção pessoal sobre uma parceira que a ajudou quando embarcava pela primeira vez na luta e sentia-se perdida. Em Teodoro Sampaio, Nêga foi amparada com seus pequenos em uma casa central, onde serviam leite quente à noite para aquelas que não tinham nada. Diolinda ia de família em família toda semana acompanhar como estavam os companheiros, tendo o cuidado de procurar saber se as pessoas precisavam de alguma ajuda, se as crianças seguiam na escola ou apenas desejando um bom dia e oferecendo uma xícara de café. A amiga de tempos atrás ia de madrugada procurar as mães com maiores dificuldades para poder acolher melhor. Por causa das atitudes de Diolinda, Nêga ainda guarda com afeto a cumplicidade em Teodoro Sampaio. E confessa que gostaria que o seu atual 33


assentamento tivesse os mesmos laços, apoio e preocupações entre a comunidade da forma que já conviveu no passado. Às vezes o mais importante para Iraci seria sentir a camaradagem dos dirigentes, sentir que realmente existe solidariedade e que todos se considerem iguais: — Diolinda era assim. Não tinha essa de ser mulher de dirigente, ela fazia questão de pegar nas mãos de cada um e ser parceira não apenas na Assembleia. Eu ainda tenho vontade de ver o menino deles, o Júnior, grande. Atualmente no acampamento Egídio Brunetto, onde aguarda as documentações finais, comprovando seu direito àquela terra, onde deu à luz ao menininho, ainda espera para definitivamente ter seu nome assinado naquele pedaço de chão. A terra já se tornou seu lar, sua morada. Reinaldo ainda vive e trabalha em Santos, de onde envia boa parte do salário para ajudar a sustentar a família em Altair. Continuam parceiros de jornada, cada um ao seu modo, batalhando dia após dia para deixar heranças aos filhos. O seu caçula, Renan, hoje aos cinco anos, cresce pulando, correndo de bicicleta, aprendendo a ler na escola, vivendo como uma criança livre. Thalles é parceiro da mãe, ajuda a manter o lote: planta, capina, enfim, é quem produz na terra. Mas a realidade dentro dos assentamentos também não é fácil. É preciso batalhar para trazer energia elétrica, construir a casa, arcar com as despesas das plantações. Engana em grau e gênero quem pensa que os sem34


terra não têm mais a dureza do prélio após a divisão dos lotes. Pelo contrário, esse é apenas o início de outra luta. Ela pondera: — Falam pra gente vir para o campo para parar de sofrer com opressão de patrão na cidade, mas eu te falo sinceramente, que até você ter o seu lote fia, tem que engolir muito sapo. Só Deus na nossa causa. Hoje a família têm uma casa, construída com o suor de muito trabalho, onde Nêga batalha e nos diz ser feliz. Nela, continua a sorrir mesmo quando o cansaço pesa sobre seus ombros. É o lugar para onde Nêga escolheu ir e reescrever as linhas de sua história. Aquela casinha, é a marca que sim, ela venceu e vence todos os dias. Na parede da sala, estão as fotos dos filhos, ao lado de um relógio com a imagem de sua querida mãe. Entre os cômodos da casa, um quarto caprichosamente feito para Renan e Danúbia, a filha que Nêga espera retornar graduada. Essa espera é motivo de ansiedade e também de muita esperança. Danúbia Diouse de Castro sempre quis ser médica. Sua mãe relembra que desde pequenininha, quando lhe perguntavam o que queria ser quando crescer, a menina tinha a resposta na ponta da língua. E ainda arriscava uma futura especialidade, pediatria. A menina cresceu e enjoou das bonecas, que eram suas pacientes nas brincadeiras de hospital. Se tornou moça, mas o desejo de cuidar das pessoas fragilizadas e doentes continuou em seu coração. Nasceu para ser médica, disso sabia, bastava a oportunidade. 35


É que para uma mulher negra, pobre e filha de assentados do movimento de reforma agrária, se tornar médica é difícil, algo pouco provável em um país elitista como o nosso. Constata-se no Questionário

Socioeconômico

do

Enade

(QSE)

de

2012,

direcionado para estudantes de graduação, que nossas comunidades acadêmicas são até 20% mais branca que a sociedade brasileira como um todo. Ainda de acordo com esta pesquisa, nos cursos de medicina do país, 74% dos universitários que chegam aos últimos anos do curso são brancos, contra 2% de negros. Isso entre os estudantes ao final da graduação, pois entre os ingressantes 80% são caucasianos. Os gastos com a mensalidade de um curso particular seria maior que a renda familiar de Iraci. Isso porque conforme o Mapa do Ensino Superior no Brasil 2017, o preço médio de mensalidade em Medicina é R$ 6,2 mil. Por outro lado, os cursos em universidades públicas são extremamente concorridos, além do que, ao ingressar, há os custos com moradia, equipamentos, livros. Para se entender, o perfil socioeconômico observado pela análise do Enade 2012 também ressalta que entre os matriculados em Medicina no país, 44% advém de famílias com mais de 10 salários mínimos. Entre ingressantes, o percentual bate 67%. Neste contexto da análise, pode-se concluir que alunos de medicina brasileiros são até 6% mais ricos que a maioria da sociedade. O cenário definitivamente não era favorável, mas Danúbia herdou um sobrenome de força. Acreditou, ousou tentar e a chance, 36


finalmente veio. A jovem, assim como a mãe, chegou num ponto da vida em que precisou escolher qual o próximo passo para reescrever as novas linhas da sua história. Decidiu aventurar-se. Aceitou o desafio, arrumou as malas, tentou engolir o choro preso na garganta e seguiu. Hoje, quase 6.000 km distanciam mãe e filha, que foi estudar medicina em Caracas, na Venezuela. Mas, por mais clichê que possa soar, a verdade é que para o amor não existe fronteiras. De um lado existia a saudade, de outro uma trajetória sonhada. Danúbia afirma que sabia que não seria fácil, mas, segundo suas próprias palavras, é preciso sofrimento para se dar valor nas coisas conquistadas: — Está sendo uma quebra de tabus eu estar lá. Ainda mais filha de pobre, negra. Sempre tem preconceito e é difícil nos ver fazendo medicina. Tenho todas as dificuldades, mas eu tenho que superar, pela minha mãe e meu pai. Não posso simplesmente dizer que não vou. Decidiu aceitar o desafio. Arrumou

as

malas,

tentou

engolir o choro preso na garganta e seguiu, com coração apertado e a mente a um milhão. A universidade em que está se formando, é uma iniciativa chavista que possibilita que jovens de comunidades pobres de todo o mundo tenham oportunidade de estudar no curso de Medicina Integral Comunitária, com enfoque humanizado, tendo aulas com docentes cubanos e residência em hospital de área periférica. O contexto sócio-político em que a Venezuela se encontra no momento, entretanto, não é dos melhores e isso se 37


reflete nas condições desta universidade internacional. Danúbia em um período de escassez de alimentos na escola, onde almoça e janta, teve que comer apenas batatas durante meses: — E ainda agradeço por terem batatas e não passarmos fome. Às vezes tinha almoço e não tinha janta. Esta crise foi desencadeada em 2013, com a morte de Hugo Chaves, líder conhecido pelas políticas públicas de saúde, educação e moradia em favor às classes mais pobres na chamada “Revolução Bolivariana” e ascensão do chavista Nicolás Maduro na presidência. A morte do socialista aconteceu paralelamente a uma

queda

mundial no preço do petróleo, atividade forte na economia venezuelana, que fragilizou a estrutura financeira do país, que agora passa por uma recessão de alimentos, remédios e apresenta queda na geração de empregos. Aliado a isto a instabilidade política aumentou com a disputa política-ideológica de grupos distintos, opositores e aliados das perspectivas chavistas: — No hospital chegam muitos casos de hipertensão, e uma das causas disso é a falta de medicamentos e o estresse. A oposição é suja e bandida, contratam franco-atiradores, para atirar para matar durante as marchas. Certa vez minha professora, chavista, mal conseguiu aplicar uma prova por medo, pois haviam a ameaçado de morte, junto à sua filhinha. Não abandonar o curso é uma manobra de fibra. No Brasil, Nega e Reinaldo desdobram-se para enviar algum dinheiro à filha 38


no exterior. Na Venezuela, a situação de crise faz com que milhares migrem para outros países e permanecer no país é um desafio. Para se ter noção, segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) mais de 1 milhão de venezuelanos partiram de sua nação entre 2014 e 2017. Mas Danúbia insiste em acreditar que a educação é libertadora e se dedica aos estudos, para se tornar uma médica consciente: — A base de tudo é o estudo, então temos que nos dedicar. Mas também aprendemos lá, que devemos ser humanitários, pois um médico que só entende de técnicas da medicina, muitas vezes, nada sabe. A estudante prossegue acreditando naquele antigo sonho, como aquela menina que um dia brincou de ter esperanças. Com ela, cresce a sede de cuidar e proteger os fragilizados, independentemente de cor ou status. O verdadeiro médico é aquele que tem amor pelo que faz e que se dedica a ajudar. Nos diz que sua mãe sempre lhe pede que, quando for profissional em um consultório, receba pessoas simples e não tenha nojo de ir examinálos. Isso porque Nêga, junto ao caçula, sentiu na pele situações de descaso médico. Certa vez, chegou ao ápice da revolta quando seu pequeno, com a garganta inflamada, foi diagnosticado com afta por um médico que sequer lhe examinou. Nunca mais se esqueceu desse episódio, em que o profissional de saúde, em seu pedestal de conhecimentos, não teve a coragem de tocar sua criança doente.

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Ao se lembrar da filha, que por causa da distância e dos altos valores das passagens aéreas, vem poucas vezes ao Brasil ver a família, Iraci se emociona. É doloroso saber que sua menina passa tantas dificuldades, não tendo, por vezes, a alimentação garantida. Definitivamente, essa mãe tira da boca para dar à filha, de quem tem orgulho e apoia na caminhada. Pela primeira vez entre as nossas tantas conversas, vimos que mesmo sofrendo por dentro prefere mostrar um belo sorriso para todos: – Eu vivo com o básico que é a comida. É tudo por ela e meus outros filhos. Ela vive com 300 ou menos por mês. Ano passado ela estava passando mal e comendo manga verde por que não tinha comida. Me diz como uma mãe pode ficar bem sabendo que uma filha está passando fome, só tendo manga e sal, e não ter mais condições financeiras de ajudar? Inenarrável. Nada poderia expressar tão bem essa dor como a sentença melancólica do silêncio. Não tem o que ser dito. A promessa de um amanhã mais confortável, um trabalho bem remunerado, um futuro bonito, parece distante perto da situação atual. Nega diz saber que esses desafios são em prol da realização de um sonho e que mais tarde, se a filha terminar o curso, poderá ajudar a família, mas não deixa de preocupar-se. O peito segue apertado. Um turbilhão de emoções precisam ser controlados para se manter resistente e obstinada na vitória, tanto de sua filha como da terra que peleja ser finalmente sua por direito. Então escolhe seguir de cabeça erguida: 40

Iraci


— Ás vezes eu estou com o coração sangrando, mas o sorrisão tá aqui. Muitas vezes, em assembleias ou festinhas, eu estava rindo, mas por dentro, somente Deus sabe. Naquela casa, perto do riacho, mora uma mulher que se veste com o manto da coragem. Ao acordar, ela coloca esta armadura, dá seus passos pela casa, cuida do filho pequeno e prossegue corajosamente acreditando que é uma vencedora por estar ali e principalmente, por ter aprendido a sorrir quando poderia chorar. Ela respira fundo e nos recebe com alegria. Sentimos que nesse fio da meada, quem muito repensou a vida fomos nós e talvez você, que esteja lendo. Notamos que rodoviárias foram recorrentes nessa trajetória. Talvez uma metáfora poética que se encaixa bem nessa existência repleta de idas e vindas, encontros e desencontros. Cheia de uma essência que somente os livres de espírito conseguem carregar. Local dos aventureiros, aparato dos independentes e a parada obrigatória daqueles que não tem medo de pisar o desconhecido; reduto dos incansáveis caminhantes. Nêga marca as pessoas que a conhecem. Não dizemos apenas porque sua energia contagie, é que seus relatos nos revelam uma mulher corajosa. Aguentou no lombo pesadas rochas, mas não parou de andar para frente. Traçou novas rotas, se perdeu e se encontrou em novos mapas e reescreveu sua história inúmeras vezes. Insiste em ser feliz. Não fugiu do adeus, muito menos das surpresas dos reencontros. Permaneceu independente, confiante em 41


suas próprias pernas; Essa carga não são todas que conseguem suportar. O necessário é invisível aos olhos e Nêga tem a sagacidade de compreender que sua maior bagagem é aquilo que carrega dentro do peito. Não é necessário milhares de malas, muito dinheiro ou pompa para se fazer uma boa viagem, mas

sem

esperança, aí sim, não se levanta sequer da cama. E talvez por isso, ela nunca se cansou dos inúmeros acampamentos onde fincava a esperança junto com a estaca que é o alicerce do barraco. Talvez por isso não tira o sorriso do rosto, por saber que nosso lar não é feito simplesmente de paredes, concreto e portas, mas é onde aqueles que amamos recorrem, independentemente de estarem ao lado ou morando há quilômetros de distância. Essa história, não tão longa como Iraci nos alertou no início, tampouco termina por aqui. Resta aprender que não há o que temer. Devemos enfrentar nossos próprios fantasmas e quem sabe, embarcar no próximo sonho. Danúbia seguiu os passos da mãe e encarou um avião que ainda vai lhe fazer decolar como mulher negra sem-terra e médica. Sua mãe garante que será a primeira a aplaudir, de pé, na formatura. E Como tantas Marias, Dandaras, Severinas, Cíceras, Dorcelinas, Marivaldas, dona Iraci tem aquela certa magia sabe? Consegue mesclar dor com alegria e ainda, acha graça em enfrentar um dragão por dia. Esse relato é mais um, das tantas brasileiras, tantas Marias de alma, que trazem marcadas na pele o sinônimo de força. Marias que merecem amar e serem amadas. Carregam nos 42


ombros o peso de histórias tão reais, e tão sublimes em sua concretude, que lombada que nenhum livro suportaria carregar. É preciso ter raça, é preciso ter fé e conseguir pintar a todo instante o cinza que insiste em se confundir com a aquarela do horizonte. São Mulheres de cor, que misturam amarelo alegre e rubro sanguíneo a monotonia cinzenta. Nêga fica na frente da varanda, abraçada a seu menino, enquanto damos a volta e seguimos viagem para ouvirmos outra história. Outra Maria de Luta nos aguarda seguindo as curvas empoeiradas de terra ver

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3. Lourdes InĂŞs Vieira

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“Maria, Maria É o som, é a cor, é o suor É a dose mais forte e lenta De uma gente que ri Quando deve chorar E não vive, apenas aguenta” Milton Nascimento Por onde for carregue poesia. A meiguice de certas pessoas nos lembra que existe força nas sutilezas dos gestos, na amabilidade dos modos e que a poética pode sim existir em cada detalhe, perpassar as veias e se refletir na simplicidade de um olhar. A poesia é uma composição de linhas tortas, palavras rimadas ou perdidas e a expressão de um sentimento que nasce por dentro, faz o coração bater até encostar no céu da boca e só acalma quando é transformada em estrofes, versos e rimas. Vai muito além de um texto frio escrito em um papel infinito. É feita de vida, da banalidade do cotidiano e do trabalho daqueles que sustentam suas famílias com suor e dedicação. Acreditamos que existe poesia e por que não dizer, existe certa magia, nas pessoas que mesclam a ternura das palavras sutis, gestos humildes e demonstração de carinho por cada pedacinho de seu lar e de suas conquistas. É, antes de tudo, enxergar por um ângulo sensível as adversidades e conseguir seguir confiante.

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Essa é Lourdes Inês Vieira. Em sua simplicidade traz a grandeza dos versos tímidos, não ditos, mas exalados pelos poros. Com semblante calmo e sorriso sereno, Dona Lourdes nos recebeu com braços abertos, nos mostrando desde o primeiro instante que existe afeto em cada pequeno detalhe do seu cantinho. Naquela tarde quente de outono, estava acompanhada daqueles que tanto ama: sua família. Seu marido, Senhor Antônio, companheiro de toda uma vida, estava ao lado, trabalhando a terra. Pelo quintal, cheio de flores e plantas, dois netinhos brincavam com a supervisão da avó que, à distância, observava-os com ternura. Seu lar fica na beira de uma reserva natural, composta por mata fechada, com árvores de grande porte e muitos animais silvestres, que passeiam distraídos e causam surpresas dentro do lote. Por vezes, como Lourdes relembra, macacos se aventuram, rondando sua casa para roubar milho. Ela sorri e confessa que acha graça em ver os macacos com os filhotinhos nas costas, correndo por entre as plantações. Ela e o esposo sonhavam ter um lugar com muito verde e ar puro para morarem. Dito e feito, o destino os reuniu ali: — O meu lote é perto da reserva e é o cantinho que eu pedi para Deus. Ela nos acolhe em sua casa e enquanto nos mostra os cômodos, nos convida a ouvir e conhecer a sua história. Aquela terra, esperada por quase 10 anos, se fez morada de tudo aquilo que afirma lhe ser tão caro: uma vida tranquila, onde se pode escutar o 46


canto dos pássaros nas manhãs ensolaradas, onde é possível sentir a brisa perfumada da natureza nos fins de tarde, onde se tem o céu estrelado típico das noites no campo para admirar, um lugar onde pode abrigar seus filhos e netos com carinho. — Na roça, quando chega à noite, a lua e as estrelas iluminam tudo, fica clarinho. Quando a lua está cheia, lá pelas oito, nove horas da noite, ela nasce no meio da árvore, aquela bola amarela, é lindo. Na cidade não tem isso. Enquanto ela vai entrando e mostrando minúcias da residência, vamos devagarzinho entrando em sua história, ansiosas por escutarmos quais são suas relações com aquela terra, e principalmente, consigo própria. O cuidado com que cada pormenor é posto, separado minuciosamente dentro dos cômodos, nos parece revelar gratidão por cada conquista. Seu marido criou cada móvel: uma mesa com cadeiras, cama de casal, armário, mesa de canto, organizadoras e estantes, todos feitos de pallet. As paredes de lonas pretas, muito bem esticadas e presas por ripas, recortam portas e janelas. No teto, madeiras e telhas de amianto sustentam a construção. Tudo moldado com firmeza para resistir à chuva forte ou ventanias. À frente da casa tem uma horta com verduras, legumes, especiarias, ervas e algumas árvores frutíferas. Local onde Lourdes semeia com zelo os alimentos que irão para a mesa da família. Além dos canteiros com verduras em broto e outras já prontas para serem colhidas, há centenas de pequenas mudas e sementes 47


coloridas esperando o plantio. À direita da casa fica a área do roçado, um alqueire de onde o casal acabou de colher sementes de milho crioulo e a atual palhada logo dará lugar à safrinha. Seu sorriso tímido traz a poesia simples daqueles que entendem que toda gotinha de chuva, cada pequena semente e que o suor de todo e qualquer trabalho é sagrado. Dona Lourdes vai se revelando aos poucos, com sutilezas e verdades ditas por silêncios e pausas. Ela nos passa uma leveza que acolhe, aquece e que se revela por etapas, para além das palavras. Sua face corada, tom rosado que traz jovialidade, emoldura seus olhos castanhos. Prefere nos falar do presente e seu passado é uma afirmação constante do que a tornou a mulher de hoje. Enquanto vai relembrando sua história, seus olhos passeiam junto à brisa como que se perdendo e se encontrando em tantos causos guardados dentro de um baú antigo. Foi desvendando os traçados do passado dentro da memória, enquanto seguia atenta aos movimentos dos netos que brincavam por perto. Pique-esconde, amarelinha e de repente reencontrou aquela menina do passado. Tão distante e tão perto, como uma moleca feita de fragmentos de memórias, que num instante se configurou em sua mente. Reviveu então sua infância na roça, onde seu amor pela terra e pela proximidade com a natureza começou. Hoje, aos 58 anos, Lourdes Inês Vieira mora no seu pedacinho de chão. Mas nem sempre foi assim... Sexta filha de nove irmãos, nasceu e se criou na fazenda Campo Verde, no município de Avanhandava, interior de São Paulo. Seu pai, Senhor João, era o 48


retireiro e administrador das terras do Doutor Valdir. Além do salário mensal, o pai tinha direito a morar com a família nas terras, economizando com transporte, aluguel e energia. Em contrapartida, era responsável pelo cuidado de todo o gado da fazenda, que também contava com grandes plantações de café. Sua mãe, Dona Maria, cuidava dos nove filhos e da casa em que viviam, mas também trabalhava como diarista na casa doutor e na roça em época de plantio e colheita.

do

Cresceu

observando ao longe uma casa grande, ao seu redor uma colônia formada por casinhas simples, onde os peões moravam e uma escola. Lourdes e os irmãos também ajudavam na lida, ela relembra que viviam entre as pernas do pai. Revela que faziam de tudo um pouco, apartavam o gado, tiravam leite e iam para a roça. Mas não era só obrigação não, se divertiam também. Andavam a cavalo, tomavam banho de rio e brincavam com os bichos. Com um largo sorriso no rosto, conta dos tempos de meninice com carinho. Lembra-se que era feliz, e diz que era feliz porque a vida na fazenda era livre. Foi assim que passou a infância: brincava, estudava e trabalhava sem preocupações. Até que aos 10 anos tudo mudou, sua família foi para a cidade. Rumou na esperança de maior qualidade de vida. O pai não queria mais trabalhar no meio rural, almejava um emprego melhor em Avanhandava. Acontece que o município, que faz parte da grande região de Bauru, não tinha empresas e indústrias. Os 49


serviços encontrados eram nas usinas, ou em fazendas da região, no plantio e colheita da cana de açúcar, como boia-fria. Em busca de salários melhores ou buscando novas ocupações em função dos maquinários modernos no campo, milhares migravam para municípios pequenos ou metrópoles. O processo de êxodo rural no Brasil se intensificou a partir dos anos de 1960, quando a modernização do campo e investimento governamental nas indústrias, começou a atrair os moradores rurais para a zona urbana. Entre as décadas de 1970 e 1980, época da infância e mocidade de Lourdes, 30% da população rural migrou para o meio urbano. Isso significa que, neste período, cerca de 12 milhões de pessoas saíram das fazendas e vilarejos para morarem em cidades, consoante aos dados do IBGE. Se em 1960 a maioria da população nacional residia na zona rural, com aproximadamente 39 milhões, em 2010 a densidade demográfica urbana era maior, com população urbana de 109 milhões em contraste com 29 milhões residentes no campo. Ainda como consta nos levantamentos de Censos Demográficos do IBGE. Esse fluxo migratório contribuiu para o processo de urbanização do país. Por outro lado, também foi um fenômeno que colaborou com as desigualdades nas cidades, dividida entre centros e periferias. O aumento dos cidadãos urbanos, revelou as facetas do desemprego e consequentemente, as dificuldades de acesso à moradia, saúde e educação de qualidade para todos.

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De fato, Lourdes expressa que não foi uma boa fase, pois a vida na cidade era mais difícil. Como em toadas tristes de viola, onde o violeiro chora a saudade do sertão, a família sentiu falta dos encantos da roça. De escutar a barulheira dos pássaros nas matas quando a madrugada vinha, do céu cravejado de estrelas e o clarão do luar, dos galopes rápidos à cavalo percorrendo os pastos, da comunidade simples e companheira. Com a desvantagem de o pai não ser mais mensalista e de ter que arcar com as contas e adversidades extras de morar no meio urbano, a família acabou voltando para a roça, mas desta vez, não como moradores, se tornaram diaristas rurais. Com o pai contrariado por um salário incerto ao final do mês, a mãe trabalhando sazonalmente nas colheitas, assim como os oito irmãos mais velhos, que já não podiam estudar porque precisavam trabalhar, sentia saudade da vida no campo. Afirma que só quem já sentiu o gosto de viver tranquilo na paz da fazenda pode entender como é difícil se acostumar com um novo ritmo urbano, somado isso ao trabalho cansativo e mal remunerado. Nesta época, apenas o irmão caçula havia arrumado emprego na cidade, se tornando ajudante em uma oficina mecânica. O fluxo sempre segue. Segue em diferentes curvas, enchendo diferentes afluentes, sem saber direito em que queda d’água pode desaguar. E assim os sonhos e brincadeiras de menina foram passando... Quando menos esperava, olhando no canto do espelho, se viu moça. E com a mocidade, novos sabores. Aos 14 51


anos se mudou de bairro junto aos pais e irmãos e foram morar justamente ao lado da família de um rapaz da mesma idade, que tinha uma história parecida com a sua. Mal sabia a jovem que aquele moço a acompanharia por toda uma vida. Como sua família, a de Antônio Donizete Vieira também havia morado na roça por muitos anos. Assim como ela, o vizinho também sentia saudades da infância na fazenda e sonhava com seu pedacinho de terra. Enquanto isso não era possível, trabalhava na cidade, em uma olaria. Um passado em comum foi uma desculpa para as primeiras aproximações. Apaixonaram-se logo que se conheceram, e começaram a namorar quando Lourdes estava com 15 anos: — Quando se é mais nova a gente tem o sonho de ter filho, casar, de ter uma casa pra poder cuidar, cuidar dos filhos, ter uma pessoa pra estar junto. Eu pelo menos sempre sonhei com isso, aliás, eu acho que é o sonho da maioria das pessoas, né? Casar, ter os filhos e ter uma vida feliz, uma família feliz. Graças a Deus eu construí isso. Estava com 18 anos quando ficou grávida da primeira filha, Vanessa. Trabalharam na construção de uma casinha, para viverem juntos com a filha que estava para nascer. Assim que a casa ficou pronta, se casaram. Era apenas o começo da vida em família. Pouco tempo depois ficou grávida de sua segunda filha, Vânia. Cuidava da casa e do bebê, enquanto Antônio fazia tijolos e telhas em uma cerâmica. 52


Avanhandava fica na beirada das águas do Tietê. Graças a presença do barro em abundância, por anos a economia das cidades da região girava em torno de olarias simples, fábricas de cerâmicas, uma das referências no balanço econômico e geração de empregos. Como tantos trabalhadores, Antônio realizava um ofício artesanal e árduo: sujava as mãos na coleta do barro, o expunha ao calor do sol, moldava-o no formato escolhido e levava-o até as grandes caieiras fumegantes. Este era o sustento da jovem família. Por 14 anos, desde a mocidade, Antônio esculpiu em olarias. Até que na década de 1980, houve uma enchente do Rio Tietê que inundou as barreiras, em decorrência da criação da usina hidrelétrica Nova Avanhandava. Lourdes relembra que várias olarias da região precisaram ser fechadas devido ao aumento dos custos da produção, já que a matéria-prima se tornou escassa. Quem continuou o trabalho, precisava pegar barro fora da cidade. Ela recorda com indignação os pais e mães que perderam o sustento, que a seu ver foram prejudicados por decisões políticas tomadas sem levar os anseios da comunidade em consideração: — A enchente foi por causa da barragem. O homem mexeu no salto e deixou o lugar sem barro, fechando as olarias e desempregando a população. O Salto de Avanhandava nada mais era que uma majestosa catarata no baixo Tietê. Significa na língua nativa, indígena tupi, “Lugar de Forte Correnteza”. Por causa do volume de água na região, em 1983, no município de Buritama, foi criada a usina 53


hidrelétrica de Nova Avanhandava, em concordância com a historiografia da Companhia Energética de São Paulo (CESP). Para sua inauguração foi causada a inundação do rio para fundar a represa do Salto. O reservatório alagou 210 km². Para o funcionamento da usina foi necessário também a construção das barragens e duas eclusas de navegação, o que alterou de vez a cultura e economia de toda a região dos “campos de Avanhandava”, que comporta os munícipios de Penápolis, Avanhandava, Buritama e Barbosa. O resultado é que a catarata do salto de Avanhandava já não existe. Preocupado com a crise no setor em que trabalhava, seu marido decidiu procurar alternativas para não ser surpreendido por necessidades financeiras. Estudou, dedicou-se e prestou um concurso da polícia militar, ansioso por ser aceito e confiante em poder proporcionar melhores condições para a esposa e filhos. Lourdes seguia com sua fé inabalável, colocando nas mãos de Deus a decisão. Ao final, Antônio foi aprovado, acalmando o coração esperançoso de Lourdes. Novos rumos foram tomados, o recémpolicial foi mandado para servir em São Carlos. Foram todos para a nova cidade: o casal, as duas filhas e o primeiro menino, Israel. Era a primeira vez que se afastava de seus pais e irmãos, mas a sua própria família precisava desse sacrifício. No começo, se acostumar na nova cidade não foi tarefa fácil. Passava o dia em casa com os três filhos pequenos, não conhecia o lugar, não tinha amigos ou parentes para ajudá-la ou para lhe fazer companhia. A profissão 54


do marido deixava-lhe aflita, afinal ele se colocava na linha de frente contra os conflitos diários. Tinha medo de acabar sozinha com as três crianças, que logo seriam quatro, pois carregava no ventre o segundo menino, Anderson. Era preciso ter coragem para conseguir tranquilizar-se: — Policial é aquela coisa, você sabe que está saindo para o trabalho, mas nunca sabe se vai voltar. A polícia militar, instituição que seu esposo trabalhava, é o órgão responsável pela repressão imediata de atos considerados criminosos e ilícitos. Ao contrário da polícia civil, que ocupa as investigações criminais, o militar encontra-se nos confrontos rotineiros utilizando fardas. A preocupação de dona Lourdes é justificável em um contexto de segurança pública ineficiente, tanto para quem trabalha para o Estado quanto para a população civil como um todo. A quantidade de policiais mortos em serviço e principalmente, quando reconhecidos em horários de folga, é alta. No estado de São Paulo, entre 2008 e 2017, por exemplo, 680 policiais foram assassinados, sendo destes 523 mortos sem fardas em suas folgas, conforme levantamento da Secretária da Segurança Pública e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Também em 2017 o instituto “Sou da Paz”, lançou pesquisa sobre a violência brasileira. Chegaram à conclusão que entre 2013 e 2014, em SP, 70% dos policiais mortos estavam de folga contra 7,5% em serviço. Por outro lado, o Brasil é um dos países com maiores taxas de violência policial do planeta. Em 2015 foram 55


notificadas 3.320 mortes em decorrência de intervenção policial, o que significa que a polícia brasileira é a mais violenta do mundo, de acordo com pesquisas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Núcleo de Violência e por especialistas do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo). Ou seja, em nossa nação, o quadro de inteligência policial e planejamento de segurança pública se revela problemático em geral. Neste ponto, conseguimos entender o receio de dona Lourdes pelo marido e por sua família. Temente a Deus, ela diz que procurava agradecer mais pela vida do que se angustiar pelos seus medos. Não viviam com luxo e supérfluos, mas o principal, que é ter comida na mesa para alimentar as crianças, nunca lhe faltou. Necessidade mesmo, ela afirma que nunca passou. Em algumas fases da vida, mais difíceis, passaram sufoco, mas nesses momentos se uniam para superar os problemas. Ela acredita que dias difíceis são necessários, pois é na superação destes que se aprende a valorizar os dias bons. O correr dos anos refletiu em seus pais. Com tristeza foi avisada por telefone que o pai estava doente. Depois de uma vida trabalhando na roça para tomar conta de sua família, Seu João não conseguia mais trabalhar e precisava ser cuidado. Alguns anos depois a notícia trágica foi sobre sua mãe, que sofrera um derrame. Sempre foram rígidos, porém bondosos e trabalhadores, sempre apoiando e cuidando dos filhos e por isso, vê-los tão frágeis cortava o coração. Poucas vezes observamos tristeza no olhar da mulher de 56


sorriso terno à nossa frente, mas ao falar dos pais, observamos que seus olhos marejavam: — Pai e mãe você nunca esquece. Lourdes, morando longe dos pais, se ressentia por não poder ajudá-los, mas as crianças ainda precisavam de atenção e ela não podia se ausentar, então seguia confiando que os pais estavam sendo bem cuidados por sua irmã mais velha. A ameaça da morte acaba deixando aqueles que seguem firmes atentos de que o mundo é apenas passagem, e que é preciso celebrar com alegria a saúde junto a família enquanto se tem vida correndo nas veias. A doença dos pais, por outro lado, acabou unindo os irmãos. E nas férias do marido, iam com as crianças para Avanhandava. Era uma festa, nos retrata. A família se reunia, passeavam na casa de todos e as crianças tinham a oportunidade de conviver com os avós, tios e primos. Lá também ficava o sítio da irmã de Antônio, onde Lourdes adorava ir com os filhos, pois achava importante que as crianças respirassem ar puro e pisassem na terra molhada, afinal ela queria que seus filhos experimentassem e, quem sabe, pegassem o gosto pelo campo: — Sempre fui do mato, e queria que meus filhos pudessem ser também. E assim a vida foi passando, os pais partiram deixando boas lembranças do seu amor, os irmãos continuaram com seus laços fraternos e as crianças foram crescendo sem nunca lhe dar 57


problemas. Dona Lourdes faz questão de destacar seu orgulho e elogiar cada um. À medida que foram ficando mais velhos, se tornando mulheres e homens maduros, começaram a trabalhar e a casa se tornou grande e vazia. Lourdes, que nunca teve medo de arregaçar as mangas e colocar as mãos no batente, resolveu fazer faxina como diarista, para ter seu próprio dinheirinho e aplacar a quietude que sentia sozinha dentro de casa. Trabalhava três, quatro dias na semana. Assim conseguia conciliar a demanda do lar com a limpeza da casa dos outros. Os filhos sempre a ajudaram. Se tornaram independentes mas colaboravam com as despesas de casa. Diz que a receita para a harmonia dentro de quatro paredes é a paciência e a capacidade de ponderar os impulsos na hora da raiva. Como uma amiga experiente, dona Lourdes nos dá essa dica valiosa: — Dentro de uma família, se não tiver união e às vezes a tolerância, não se tem nada. Em discussões com irmão, com o filho, você tem que ter a tolerância de saber a hora de parar e assim não viver em pé de guerra. O ingrediente secreto para esta receita de harmonia é o companheirismo.

Ela nos

fala do

marido

com brandura.

Construíram uma trajetória de parceria diária juntos. Conta que às vezes discutem, se chateiam, há brigas, mas sempre passa. Seu esposo tornou-se confidente de segredos só deles, segurou a barra em momentos complicados, sustentou os filhos com dignidade e lhe deu a mão na alegria e na tristeza. Sem companheirismo nada vai 58


pra frente, ela sintetiza. O casamento, para além das dificuldades que explodem pelo grau de intimidade, foi também onde ela aprendeu que a reciprocidade é um elo que sustenta a família. Não importa o tamanho do problema, é preciso não esmorecer e arranjar forças pra poder ajudar o outro a levantar: — Estamos na luta juntos. Quando um desanima, o outro precisa levantar o ânimo, porque se os dois desanimarem a vida não funciona. Com os filhos encaminhados, a família unida, faltava apenas realizar um último desejo: ter o seu cantinho na roça, onde poderia, junto ao esposo, voltar a ouvir o canto dos pássaros ao entardecer e sentir o cheiro da terra até o fim dos seus dias. Lourdes e Antônio almejavam comprar um sítio para viver após a aposentadoria. Apesar de todo o trabalho e economia, não conseguiram. A especulação e os altos valores das terras na região tornaram impossível que o sonho do casal se realizasse. Mas Lourdes é mulher de fé e sempre acreditou em amanhãs melhores, então confiou nas tramas do destino e continuou agradecendo pelas conquistas diárias. Durante uma das viagens para Avanhandava, em um feriado de Corpus Christi em 2009, o casal conheceu o padre Severino, da Pastoral da Terra da Igreja Católica, que acompanhava outros militantes do Movimento Sem Terra (MST), fazendo trabalho de base na cidade. Ela, que sempre ouvira sobre o movimento, pois um dos irmãos era assentado perto de Prudente e uma cunhada em 59


Iaras, se viu prestes a entrar no movimento. Mas por esse contato, dona Lourdes também sabia das dificuldades dentro de um acampamento, e pensava que aquela peleja não era para si. Apesar do desejo de conquistar sua terrinha, tinha alguns receios: ficar na beira da estrada, passar por situações difíceis, não ter energia, água encanada, rede de esgoto. Conforto e itens básicos do dia a dia não existem na lona. O marido insistiu que deveriam tentar. E ela, que nunca fugiu da luta, concordou. Seguiram novamente unidos, desta vez para uma realidade bem diferente da qual estavam acostumados em São Carlos. No começo os filhos não apoiaram a decisão, tinham receio de que os pais sofressem represálias, porque a discriminação aos assentados é grande. O sonho, porém, já parecia configurar-se a um palmo de distância. Desistir não era uma alternativa para o casal, então seguiram unidos, carregando suas lonas e a esperança no porta-malas do caroo. Montaram a habitação perto da Agrovila Central de Promissão, município próximo a Avanhandava. Agora era preciso se despir de luxos e conforto. Tinha que aprender a viver sem chuveiro com água quente, geladeira, televisão. Às vezes precisava de algo e constatava que naquele lugar não havia. Aprendeu a viver sem as benesses de uma casa na cidade, passou a valorizar detalhes: — Você aprende a dar valor no que você tem, no que você conquista, no que você pode ter lá dentro daquele barraco. O dia a

60


dia não vou falar que é fácil. Tem que ter opinião e esquecer o supérfluo. Os laços foram sendo feitos entre a comunidade. Passou a conviver com os assentados. Fez amizade com as mulheres, frequentava as reuniões e coordenava as finanças do acampamento. Nas horas em que a solidão apertava, Lourdes ia conversar com os companheiros. A amizade ia dando apoio nas horas de insegurança. Um sonho dentro do peito e muita lona, muito chão, para viver na incerteza de poder realizá-lo. Nestes momentos, quando resistir parecia impossível, dona Lourdes orava. Buscava sempre um ângulo positivo para não desistir. Fortalecia-se e procurava ver beleza na dificuldade. Resiliência a cada instante. Seus filhos acabaram ficando de acordo com a decisão dos pais. Inclusive começaram a visitá-los, levando os netos para passar as férias. Mas eles não eram unanimidade nos municípios próximos. Recebiam olhares de desaprovação, eram criticados e chamados de bandidos pelos moradores, que os acusavam de roubar terra. Durante os anos em que ficou na beira da estrada queria revidar, evitava. Depois deixou de se importar, pois entendia que as pessoas têm uma visão muito errada do povo sem-terra: — Quando nós morávamos nos barracos na beira da pista os outros passavam, xingavam, gritavam vai trabalhar vagabundo! Estava em Promissão, sem perspectiva de um lugar certo para ocupar na região, quando a fazenda Santo Antônio, no 61


município de Guaraci, passou por uma vistoria que a considerou improdutiva e a declarou de interesse social para reforma agrária: — A fazenda da Dona Eunice era improdutiva e ela não tinha herdeiros, por isso que deu a reforma agrária lá. Foram em 2011, com outras 19 famílias, para a fazenda Santo Antônio. Lá, uniram forças a 10 famílias locais que haviam acampado nas terras mas tinham sido despejadas pela polícia. Recomeçava novamente do zero. O acampamento recém-formado, não tinha sequer nome. Cerca de um mês após montarem acampamento em Guaraci, um acidente de carro tirou a vida do dirigente do MST Egídio Brunetto e como eles ainda não tinham um nome para o assentamento, decidiram homenageá-lo. Brunetto sempre estava com sementes crioulas no bolso e aonde chegava, distribuía aos punhadinhos, para que elas se multiplicassem. Ela nos conta que foram uns dos primeiros grupos do movimento na região e chegaram para ficar, o que não foi bem visto por alguns moradores de Altair e Guaraci. Como as cidades são pequenas, menciona que bastava ir com o marido até mercados para se sentirem julgados. No começo da ocupação da fazenda Santo Antônio, houve coerção policial, na tentativa de dissuadir o grupo de se alojarem na Vicinal Farid Nicolau Mauad, que além de levar à fazenda, era caminho da usina de cana de açúcar Vertente. Lourdes expõe que Antônio, por décadas policial, sentia-se revoltado com a repressão advinda de ex-companheiros de farda. Não eram 62


criminosos, eram trabalhadores. Revela-nos que em dado momento, preferiam nem comentar que o marido era policial aposentado. O grupo MST continuou se mobilizando para ter acesso à educação infantil e saúde pública, cedidas pelas prefeituras. Realizavam marchas e caminhadas para mostrar que existiam e resistiam naquela região. Entre tantas, uma em especial marcou Lourdes. E dessa não guarda boas lembranças. Estavam organizados para realizar a Romaria da Terra, animados e emocionados por poderem pedir bênçãos. Como a maioria dos assentados é católica ou evangélica, escolheram Altair como ponto de partida para uma longa marcha. Mas a cerimonia que seria bonita, não pode ser. O padre de Altair fechou as portas da igreja justamente no horário combinado. Quando o peso da cruz que carregavam nos ombros machucava e continuar caminhando parecia impossível, queriam apenas se render a algo maior e capaz de apaziguar suas dores. Foram impedidos de se aconchegar naquilo que consideravam mais sagrado. Eles só queriam dobrar os joelhos e pedir forças diante do Sagrado... As orações foram celebradas do lado de fora da casa de Deus, entre lágrimas e indignação, mas também com muita fé e alegria por não desistirem de caminhar até a terra sonhada. Não eram criminosos, eram apenas cristãos: — O padre de Guaraci proibiu nossa entrada na igreja durante a Romaria da Terra. Era afilhado da dona Eunice e achava que a gente estava tomando a fazenda dela. Até hoje ele ainda é meio arrogante, 63


mas hoje quem quer pode frequentar sua missa. Não se pode fechar a porta da Igreja. Dona Lourdes é católica mas está afastada. Prefere fazer suas preces em casa, acende uma vela, pede proteção ao anjo da guarda e a Deus, agradecendo o que ele lhe deu. Acredita que o importante é ter fé, ter esperança, independentemente de sua religião. Como o Egídio Brunetto continuava firme e forte, com o tempo a polícia deixou de aparecer e os moradores das cidades vizinhas foram aprendendo a lidar com os novos moradores do município: — Fomos conquistando o nosso espaço dentro da cidade. Perceberam que a gente não estava aqui para fazer baderna. Hoje o povo já aceita e é bem melhor, pois já são nossos conhecidos, então somos bem recebidos. Ela assumiu a função de coordenadora no Egídio Brunetto. Hoje, faz parte da direção da Regional pelo assentamento. Marca reuniões e rodas de conversas, desenvolve projetos, resolve problemas internos. Nos confessa aos risos que se a mesma Lourdes de anos atrás visse seu engajamento, na certa estranharia. Ela sente que sua trajetória a transformou enquanto pessoa. Contou que existe uma política do MST que divide as tarefas por gênero, valorizando a mulher na luta pela terra. Não só na coordenação, a prioridade é que a terra saia no nome da mulher, para não acontecer do homem ir embora, vender a terra e colocar a mulher na rua: 64


— Vemos só os homens com seus poderes, né? A mulher também pode fazer e conquistar os seus espaços. Tem que ter o seu domínio também, e a confiança para conquistar o seu. Uma das coisas que Lourdes mais valoriza é poder morar pertinho dos filhos e dos netos. Tem cinco netos, logo serão sete. É por eles que lutou para conseguir essa terra. Para ajudar os filhos a lhes dar uma vida melhor, com uma alimentação de qualidade, para que pudessem crescer saudáveis. Diz isso porque em seu lote planta sabendo o que está plantando, o que está colhendo. Ela e o esposo dividem o lote com o filho mais velho e a nora. O caçula e a mulher estão em um lote próximo. Suas duas filhas trabalham e moram em São Carlos. Desde a infância Lourdes gostava do cheiro de mato. A natureza era um lugar que lhe fazia bem. Plantava como quem faz uma oração ao solo e roga nascimento. Hoje, respira aliviada por ter conseguido resistir e conquistar seu chão. Mora na beirada da mata e acha graça em dormir ouvindo os sussurros vindos do fundo da floresta. Preservar o meio-ambiente é assunto sério para ela. A forma que encontrou para trabalhar em comunhão com o equilíbrio ambiental é respeitar os ciclos das plantas e as dinâmicas naturais, evitando o uso de aditivos químicos para acelerar a produção. Ela não usa agrotóxicos no lote. Explica que eles fazem mal para quem planta e para quem consome o alimento. Está trabalhando com produtos sem veneno, mas para que consiga o selo de produtor agroecológico, ainda falta muito. Isso por que o 65


processo de transição exige uma restauração daquele solo, castigado por décadas com monocultura, defensivos agrícolas e gado. Ao redor da área de reforma agraria se vê apenas cana. O que significa que para serem 100% agroecológicos, também precisariam convencer as usinas de cana da região a não passar com o avião de combate por cima da área do assentamento, pulverizado o produto responsável pela maturação da cana-de-açúcar: — É um produto abortivo e dependendo da cultura, a planta morre. A maioria do assentamento já perdeu plantação e horta por causa do produto da cana. O avião passa tão rasteiro, que às vezes temos que correr para que o veneno não caia em nossas cabeças. Falando

especificamente

de

Brasil,

muitos

podem

argumentar que o alto índice de utilização de agrotóxicos estaria ligado ao fato de que somos uma

potência de exportação de

commodities e que o agronegócio necessita de alta produtividade para lucrar. De fato, existe um lucro enorme para grandes latifundiários e multinacionais produtoras de toxinas agrícolas. Em 2013, por exemplo, o agronegócio brasileiro movimentou 1,15 milhões. E entre 2000 e 2012, nosso país teve um aumento de 162,32% no uso e comercialização de defensivos agrícolas. Mas, como consequência, 70% dos alimentos in natura brasileiros contém resíduos de agrotóxicos. Esses dados estão expostos no Dossiê Abrasco, 2015. Entre as pesquisas realizadas por este dossiê, é observada a contaminação dos alimentos, solo, águas e até do leite materno. E cada vez mais são desenvolvidas análises relacionando 66


estes resíduos com doenças. Como alergias, impotência sexual, má formação fetal, cânceres, mal de parkinson, problemas no coração ou mentais, entre outros. Não há um limite diário seguro dessas substâncias. Os pesticidas, herbicidas e fungicidas já fazem parte da nossa rotina, seja no campo ou dentro de casa. Levamos para as mesas de nossas famílias cerca de 5 litros de veneno por ano, conforme orienta o Instituto Nacional de Câncer (INCA). Essa relação de uso indiscriminado de tóxicos agrícolas, pode estar diretamente ligado ao aumento de câncer no Brasil, que de 2005 a 2015 aumentou 31% e levou a óbito no fim daquele ano 223,4 mil pessoas segundo dados da OMS, 2017. Estatística crescente, assim como a comercialização de agrotóxicos. O governo brasileiro tem parâmetros considerados pouco rigorosos se comparado às regras estabelecidas em países do velho continente, conforme o estudo “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia” de Larissa Bombardi, 2017. Segundo as comparações realizadas pela pesquisa, temos 504 agrotóxicos liberados por Leis. Destes, 30% são proibidos na União Européia. Aqui a legislação permite um limite de contaminação de água 5 mil vezes maior que o que é permitido na Europa. Esta pesquisa salienta que oito pessoas são intoxicadas por dia, isto entre os casos registrados. Para cada notificação, 50 não são registradas. Ou seja, em números absolutos, chega-se à conclusão que entre 2007 e 2014, mais de um milhão de pessoas foram contaminadas. No 67


caso, o recorte desta análise cerca apenas as consequências da intoxicação direta com o produto agrícola, não a doença crônica à longo prazo, de quem consome os alimentos. A análise mais recente sobre contaminações foi realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) com o ministério da Saúde, revelando que em 2017, houve crescimento de intoxicações e óbitos por agrotóxicos no país. Ano passado, foram notificados 4.003 casos, praticamente 11 por dia e 164 mortes. Os latifúndios com monocultura, como os de cana-deaçúcar, abundantes na região que se insere o assentamento Egídio Brunetto, obtêm maiores lucros utilizando produtos que aceleram a produção. Desta forma, os grupos poderosos da região prejudicam a produção natural de agricultores próximos, pelo volume de toxinas que pulverizadores distribuem na atmosfera. Lourdes e o esposo ainda não conseguem se intitular como produtores agroecológicos pelos resquícios de venenos agrícolas no ar e solo. Mesmo assim ela procura não se abater e seus olhos brilham ao falar de como observa as mudanças na terra após o manejo orgânico: — A região aqui é monocultora e a gente está plantando com policultura. Antes aqui era só gado e cana. Agora tem de tudo e já vemos diferenças no clima. Mas afinal o que diferencia a produção orgânica de dona Lourdes da agroecológica? Ambos os tipos de plantações tem o 68


objetivo de frutificar alimentos isentos de toxinas agrícolas com a meta de preservar o equilíbrio de determinado ecossistema, de acordo com a Lei Nº 10.831, 2003, que legitima e regulariza as características destas produções. Porém, a Agroecologia é uma mudança de estilo de vida, entendendo a agricultura inserida e utilizando técnicas artesanais e culturais de plantios de agricultura familiar em todo o processo. Essa prática significa uma alternativa contrária ao próprio modelo capitalista do agronegócio, é um resgate ao valor da relação do homem, sua alimentação e a natureza ao seu redor. Desse jeito, o selo agroecológico só é obtido por propriedades em que não haja sequer resquícios de agrotóxicos. A burocracia para conquistar este selo é grande. É obrigatório ser certificado pelo Instituto de Mercado Ecológico (IMO). A

valorização

pela

coletividade

e

cooperação

dos

agricultores é uma das marcas do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, fundado em 1984. Por isso, o discurso agroecológico vem tomando corpo nas últimas décadas, pelo entendimento que a continuação das famílias na terra ocupada não pode simplesmente envergar aos caminhos do agronegócio. Segundo pesquisa desenvolvida por Juliano Borges em 2009, o discurso agroecológico foi

incorporado

ao

MST

em

1995,

em

ocasião

do

3° Congresso Nacional do MST, cujo lema era “Reforma Agrária, uma luta de todos”. Hoje existem assentamentos divididos enquanto produções orgânicas, em transição e agroecológicas. Um dos exemplos atuais 69


de produção agroecológica do movimento que deram certo, é a marca Terra Viva, arroz natural produzido por uma cooperativa de 22 assentamentos no Rio Grande do Sul. São 14 anos de colheita orgânica, e em 2017, com estimativa de produção de 27 mil toneladas se tornaram a maior referência em Arroz orgânico da América Latina. Mas algo que aflige dona Lourdes é a falta de apoio. Produzir com selo agroecológico é um processo longo. Ela afirma que não tem incentivo nem subsídio do governo ou do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Nunca foram procurados por agrônomos e não tem acesso a maquinário para recuperação do solo. Ultimamente, a única ajuda que vem de fora é a do Núcleo de Apoio à Reforma Agrária (NARA) de São José do Rio Preto/SP, reconhece. Muitos dos assentados precisam trabalhar fora, nas cidades da região ou fazendo diárias para fazendeiros ou produtores de cana, para sobreviver e conseguir recurso para investir na terra. Mesmo assim, ela levanta a bandeira de uma agricultura saudável, tanto para quem semeia como quem se alimenta no meio urbano. Como Egídio Brunetto, homenageado pelo assentamento, dona Lourdes planta as suas heranças: sementes coloridas de milho crioulo em um alqueire. Argumenta que apesar dessa iniciativa não ser tão produtiva, dispensa o uso de fertilizantes que degradam o solo e contaminam a água. Os milhos crioulos crescem coloridos, vermelhos e roxos, sendo vistosos e adocicados. Na última safra, 70


porcos do mato se empanturraram no milharal. Quase comeram tudo. Lourdes sorridente não esmorece e tranquiliza: — Se a gente cruzar os braços não come nem nós, nem nossa família, nem o pessoal da cidade, menos ainda os porcos. O casal mantêm a antiga casa de São Carlos montada e fechada porque, periodicamente, precisa estar na cidade. Com o passar dos anos, o marido desenvolveu uma hérnia no intestino. Já operou quatro vezes, mas o problema não se resolveu e o Senhor Antônio precisa de cuidados constantes. Lourdes, sempre ao lado do esposo, precisa de repouso enquanto o marido se recupera no hospital. Apesar dos municípios próximos disponibilizarem tratamento, a gravidade do quadro pede especificidades que os pequenos municípios não conseguem suprir. O casal deposita toda a economia no lote para poder trabalhar, tirar o sustento e construir o sonho de viver da terra. O futuro é incerto, pois ainda não houve homologação do assentamento. A seu ver, falta empenho do Incra e do Governo Federal. Apesar do medo de ser removida, garante que vai lutar com toda a força para que o projeto do assentamento dê certo e a Reforma Agrária continue sendo feita. Vê beleza nessa trajetória. Conta que uma das muitas fazendas de uma senhora adoentada e sem filhos deu a oportunidade para que 85 famílias tirassem seu sustento. Gente trabalhadora que morava de aluguel e desejava trabalhar na terra. 71


Diz que valeu a pena todo o esforço. Diferente de quando era criança no sítio, onde os pais trabalhavam para terceiros, aqui ela está no seu lar, plantando para produzir para si, para sua família e para quem está na cidade. Produzindo alimento nutritivo e saudável. Cultivando e contemplando a natureza. Na fazenda se sente feliz: — Aqui tem essas coisas, como poder olhar o céu estrelado. A noite parece até dia. É tudo quieto, o ar puro, o céu bonito. Quando chove as plantas começam a sair, os pássaros cantam. A vida é melhor na fazenda. Lourdes Inês termina de contar suas histórias do mesmo jeito que começou, o sorriso tímido de canto de boca, os gestos humildes e o olhar atento aos seus meninos, alternando entre lembranças e o imediato. É uma mulher que transmite estar bem consigo. Contente com suas escolhas, não se lamenta pelos obstáculos e encontra maneiras positivas para contorná-los. Nos ensina que é preciso ter doçura para vencer a amargura que nos corrompe a todo instante. Talvez adoçar a vida seja uma maneira poética de procurar ser feliz. A forma com que Lourdes encara a vida é como uma chama que se mantêm acesa. Ela escolhe o ângulo da felicidade e ao final do dia, agradece em silêncio. Se apega a seu pedaço de chão e segue ao lado dos que ama, fortalecendo a união e companheirismo, valores do qual não abre mão. É uma amante da natureza e vê arte 72


desde o amanhecer até as madrugadas no mato. A lua, tão clara, é testemunha do amor naquele cantinho na beirada da reserva verde. Saímos desta entrevista com o espírito leve, carregando um pouco da mansidão de dona Lourdes. O seu afeto por aquele chão nos inunda, e respiramos lentamente a última brisa florestal que perfuma toda casa antes de partimos, como que guardando o cheiro na memória. Quando pensarmos em desistir ou abandonarmos desejos por causa das dificuldades, lembraremos daquela que faz da vida poesia e observa o horizonte com sensatez. Ao darmos adeus, uma andorinha nos segue até a porta do carro, como se pudesse nos guiar até o próximo lote.

73


4. Maria JosĂŠ dos Santos

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“Mas é preciso ter força É preciso ter raça É preciso ter gana sempre Quem traz no corpo a marca Maria, Maria Mistura a dor e a alegria” Milton Nascimento Às vezes um abraço apertado, um aconchego e palavras amigas, são essenciais para nos fazer esboçar um sorriso sincero e salvar um dia amargo. O que a solidão castiga e a angústia arrasta, o amor é capaz de reconcertar. Nesses atos de solidariedade, vamos nos aquecendo. E o maior calor vem da crença de que não estamos sozinhos e que é preciso ter confiança que alguém nos guia quando escorregamos em nossos passos errantes e caímos de cara com a desilusão. O que nos move? Na hora em que apenas a insegurança se coloca como futuro, buscamos proteção. Isto por que é preciso encontrar fortaleza dentro da fragilidade humana para se fazer resiliente. É preciso ter fé, é preciso ter alma. Perceber

cores,

lapidar sentimentos, ser capaz de recriar cada momento e enxergar beleza nos mistérios. Maria José Francisca dos Santos tem aquele abraço quente, apertado. É toda feita de sentimentos e impulsos do coração. É inteira alma que pulsa e incendeia coragem. E talvez nisso se faça exatamente brava, afinal, coragem é a ação com o coração. É viver com o coração. É ter medos sim, inseguranças também, saber rir e 75


chorar, mas no fim conseguir enfrentar o desconhecido.

Maria

pensa que seu defeito é ser sincera demais, deixar o coração falar na hora que o sangue ferve e por isso não saber a hora de calar-se. Ser mais fria seria negar quem é. Afinal, passar pela vida sem sentir, profundamente, cada pedacinho do infinito em cada segundo não seria viver. Acreditamos que seu maior ato de bravura seja crer nas horas escuras. Quando o temor da realidade toma conta de todo seu ser, Maria consegue acreditar. Ora e na oração refaz suas travessias, se lança no cais com a certeza que um manto sagrado lhe acolherá. E quem não procura vigor no que acredita ser sagrado quando as trevas seguem? É preciso respirar fundo, encontrar suas verdades para então continuar a lida. Na conceição da Mãe cristã, na santa Aparecida de pele preta e misericórdia pelo povo faminto, Maria José lança toda sua devoção. Inúmeras vezes ela nos diz que pensou em desistir, mas da esperança em Nossa Senhora fez seu escudo e sua espada contra os leões diários que enfrenta. Com a fé moveu as montanhas que a impediam de enxergar o brilho de um novo amanhecer. Às vezes ela revela cansar-se de tanto correr a fim de ancorar seus sonhos. Viu a cara da fome, da morte, da incerteza. Redescobre-se mais forte quando ora, preenche novamente sua alma de amor e piedade. E nunca se esquece de agradecer. Este relato tem vários recomeços e está longe do final. Cremos que a beleza seja a fibra desta Maria que teve coragem de 76


enfrentar tantas idas e vindas. Esta mulher, tão Maria como tantas outras Marias que não se cansam do correr da luta, mas ao mesmo tempo, tão rara como as flores mais exóticas que crescem em solo castigado pela sede. Generosa por convicção, corajosa por aprendizado. Nordestina de fé e de fibra. Retirante e sem-terra com orgulho. Já se exala do célebre Os Sertões, de Euclides da Cunha, que “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Dessa máxima se fez o destino de Maria, nascida e criada em Canguaretama, no

Rio

Grande do Norte, de onde migrou há décadas atrás. Ela não se arrepende de ter vivido o que viveu para ser a mulher que é. Suas mãos calejadas, demonstram que foi preciso trabalho árduo para se chegar onde está. Do Nordeste ao interior Paulista, sua vida foi feita de recomeços e de fé. De tantos caminhos e tantos anos de enxada e viagens, ela se encontrou na 322-SP. O recomeço desta história surgiu quando esta Maria José se cansou de enriquecer as lavouras de quem já tinha tanto. Rebelou-se e mesmo rodeada de incertezas, se juntou a uma gente marcada, viajantes de tantos cantos, para conquistar um lugar que hoje chama de lar. E foi ali, em um lote cheio de verde que ela nos confiou suas memórias: — A nossa vida é mesmo uma história. Maria José nos contou sobre suas muitas trilhas com expressões dúbias na face, por horas entre lágrimas, emocionada e 77


em determinados momentos entre gargalhadas. E nesse misto de sentimentos nos emocionamos juntas. Ela carrega um sotaque cantado, nortista, como costuma se designar. No dia

em que

chegamos para conversar pela primeira vez, ela preparava as malas para reencontrar sua mãe no nordeste. Sua casa é cheia de netos, 13 ao total. Têm bichinhos de estimação, cachorros, papagaio, porcos, vacas, galinhas e perus. Observamos uma grande família que fala alto, ri e chora unida. Todos os filhos moram próximos, conseguiram lotes. São praticamente 10 anos morando em lonas. Ela vai mostrando os detalhes e bonitezas do seu cantinho. Entre tantas rosas e outras plantas que adornam a lateral da sua casa, uma nos chamou a atenção, Maria plantou um espécime raro, a pitaya tem uma flor de perfume exótico e uma fruta de cor vibrante. Talvez Maria goste de levantar-se da cama e vislumbrar a beleza, para se lembrar de que a dureza da lida pode desabrochar na delicadeza de uma rosa e que da terra mais seca o milagre raro pode acontecer. No quarto, a imagem de Nossa Senhora de Aparecida parece velar o leito do casal. Sua fé não sobrevive apenas de missas em igrejas, pelo contrário,

ela menciona que não anda frequentando

assiduamente, faz suas orações em casa, pedindo por sua família e amigos. Lembra-se das vezes em que era menina e sua mãe no nordeste rezava terços nas vizinhas. A crença em Maria é um traço típico da religiosidade brasileira. A santa, benevolente aos mais pobres, foi ganhando a 78


simpatia dos povos sofridos ao longo dos séculos de colonização. A devoção a Maria da Conceição de Aparecida começou em 1717 quando, segundo a tradição, uma imagem esculpida da santa surgiu das águas brasileiras numa época em que a fome abatia uma vila pobre de pescadores. Os pescadores Domingos Garcia, Filipe Pedroso e João Alves, no rio Paraíba do Sul, no interior paulista, primeiro acharam seu tronco e depois sua cabeça e então a aparição trouxe muitos peixes, saciando o povo faminto. Sua cor era igual ao do povo escravo. Em 1743 o padre José Alves Vilela registrou, pela primeira vez, a aparição da imagem, relatou os seus milagres e enviou um pedido de construção de igreja para culto à santa ao bispo do Rio de Janeiro, Dom Frei João da Cruz. A igreja foi construída no Morro dos Coqueiros, na cidade de Aparecida, SP. Em 1930 o papa Pio XI declarou Nossa Senhora Aparecida como Padroeira do país. A crença popular na santa continua firme e a basílica, atualmente, tem capacidade de acolher 12 milhões de peregrinos por ano, de acordo com as estatísticas do próprio santuário. Maria José é uma devota que crê fielmente. Conta-nos que duas bênçãos a marcaram. Uma no centro cirúrgico, quando pensavam que ela estava com câncer nos seios e o médico não achou que era caso para cirurgia pois o nódulo havia sumido. A outra graça é uma promessa que cumpre no dia das crianças. Estava na beira da pista, quando uma ordem de despejo chegou, restando 3 meses para o final do ano. Os netos pequenos estavam terminando a 79


unidade escolar e choravam por ter que abandonar a escolinha e a professora quando estavam perto de passar de ano. Para Maria, que nunca pode estudar, isso doía muito. Afinal, diz que as crianças não tinham culpa daquela realidade. A fé do pobre é sua artimanha nas horas turbulentas, orou novamente e prometeu que se seus meninos pudessem terminar o ano escolar, daria uma festa para sete crianças. A liminar do despejo sumiu. Hoje a promessa se estendeu, e ela, agora com o seu lote, realiza uma festa para todas as crianças do assentamento no dia 12 de outubro, que é o dia da padroeira: — A primeira festinha foi feita para sete crianças e contou com sete presentinhos. Ainda faço o bolo, compro guaraná, fazemos pacotinhos de presentes, com a ajuda dos companheiros. Eu fui abençoada não apenas por mim, mas pelas crianças e a luta de todos. Guarda princípios valiosos e acredita que ajudar é sua missão. Quando era coordenadora, relembra que o essencial era dividir as doações e auxiliar aqueles com maiores necessidades. Ela ainda quer ter a oportunidade de servir em um asilo de velhinhos. Foi com sua mãe que aprendeu valores preciosos como a generosidade. Ainda relembra o que ela lhe dizia. “o que a gente dá com a mão esquerda, que a direita não veja”. Maria aprendeu que para fazer o bem, se deve fazer em silêncio, sem querer se mostrar bondoso para os outros: — Para mim o amor é lindo. Eu amo meus filhos e amo todas as crianças. O que eu puder fazer eu faço. Não gosto de ver ninguém 80


judiando de velho, de aleijado, de animal, de criança. Isso não aceito. Eu dou o que eu puder dar a qualquer um. Não sei fazer um tipo de comida e negar. Eu já passei por muita necessidade nessa vida, mas ter coração ruim de renegar comida eu não tenho. O amor maior para ela, no entanto, é de mãe e filho. Tanto que quando a visitamos, Maria estava preparando-se para uma viagem longa, passaria uma temporada perto de sua “mainha”, uma senhorinha de 77 anos, que mora perto de Natal. A saudade é grande, fazia dois anos que não via a mãe, que está doente. Teve que fazer uma escolha: ou gastaria o dinheiro para comprar passagens e reservar para a viagem ou usaria a renda para fazer uma casinha; desejo há 10 anos. Escolheu ver sua querida mãe. Estava atrás de um presente para a idosa, e qual não foi nossa surpresa ao descobrirmos que o que a velhinha pediu era um dinossauro de brinquedo, destes que piscam os olhos e fazem sons robóticos. Ela não esconde as lágrimas. Desabafar lhe parece importante; diz que dói estar distante da mãe acamada: — Agora estou pelejando. A vida é assim. Tenho muitas companheiras aqui, mas sinto saudades do aconchego materno. Quando eu saí de perto dela, ela tinha duas pernas, agora estou indo e ela tem só uma. É duro, tem hora que a gente não tem com quem conversar. Em tudo a humildade e o carinho vão nos tocando. A família batalha em cada um dos atos rotineiros. Na roça nada é automático como na cidade, Maria pegou dois frangos e uma galinha gorda para 81


matar, depenar, cortar, temperar e só assim preparar. Fomos ajudála a depenar e enquanto nos contava suas histórias. E assim nos perdemos em meio aquele ambiente tão familiar, cheio de conversas atravessadas e crianças brincando. Entre uma pena e outra, ela ia passeando na memória. Nasceu em 1966 em Canguaretama, RN. Nos diz que a infância era difícil, a mãe vendia bijus e o padrasto trabalhava em canaviais para sustentar as crianças. No roçado da família havia plantação de jerimum e fabricavam farinha. Cuidava dos irmãos na ausência dos pais, não frequentou escolas e como morava

no

interior não havia lugares de lazer para passear. Desde os 12 colhia feijão e adubava a cana. Sua mãe teve nove filhos e criou cinco. Quatro foram levados pelos fantasmas da pobreza. Desde cedo descobriu que precisava ser forte. Maria nos diz que a mãe nunca escondeu de quem ela era filha, porém o pai não mantinha contato, então revela que não teve carinho paterno. Quando ela tinha oito meses, sua mãe se uniu a um senhor viúvo e continuam juntos há quarenta anos. Os dois estão doentes, usando fraldas, mas moram na mesma casa. Quando ela se lembra da situação da mãe que lhe deu tanto, o aperto volta. Segundo o que nos diz, nunca foi mulher de farra, mas às vezes se aventura nos forrós e resenhas com os companheiros do próprio Egídio. Agora evita ao máximo sair, pois quando vai ao espelho se arrumar parece que vê a mãe doente deitada em seu leito.

82


— Mãe é uma coisa muito especial. Eu acho que uma mãe, uma amizade verdadeira, são coisas muito boas, por que a gente só é feliz quando estamos rodeados de carinho e amor. De todas as agruras de quando era menina, o que faz mais falta e a entristece é o fato de não ter tido a oportunidade de aprender a ler e escrever. Foi uma das heranças que a carestia deixou. Nos fala, apontando para nosso caderno de anotações, que a única coisa que cobiça é o domínio das letras. Contudo, hoje ela acredita ser tarde pois, por mais que se esforce na escola do EJA, é complicado entender aquelas letrinhas. A vida de menina e de moça era assim, ajudar a mãe e de vez em quando, aos fins de semana, ir se divertir com as irmãs, assistindo jogos de futebol dos meninos da região. Não era nada especial, apenas um momento de encontro entre amigos. Entre os rapazes que jogavam a pelada, tinha certa birra por um em particular. Manuel Francisco de Oliveira era um rapaz de olhos bonitos, perdidos entre nuances esverdeadas, que a tirava do sério. Eles foram criados juntos, vizinhos de sítio. Ela conhecia seus pais e ele os dela. Manuel trabalhou desde os oito anos com o pai no corte de cana. Neco, seu apelido, tinha a mania de dizer para todos que Maria seria sua esposa. Ela diz que morria de raiva e revidava a brincadeira dizendo que não queria. No fim, Maria cedeu aos encantos de Neco. Em sete meses namoraram, noivaram e se casaram. Maria estava com quatorzes anos e o marido com 21. A 83


festa simples foi cheia de ternura, ajeitada pelas irmãs e cunhadas. Entrou de branco no altar. Ela diz que graças a Deus, se uniram daquele momento para sempre. Com pouco tempo de casamento os filhos vieram, sete no total: Conceição, Nilson, Janaína, Verônica, Maria Verônica, Rafael e Carlos André, todos nascidos no Nordeste. Maria revela que seu amor por eles é imenso, e que a sua família é o mais importante. Ser mãe também carrega uma ponta de dor para ela. A gravidez da terceira filha foi de risco, a placenta havia se alojado numa posição incorreta dentro do ventre, atingindo a vagina. Maria quase morreu com o procedimento ginecológico que foi necessário para deslocar o bebê, mas ambas sobreviveram. O médico insistiu para que ela ganhasse o neném no hospital, em razão da situação ter riscos. Porém, próximo ao mês de dar à luz, foi até a cidade com a cunhada fazer compras. Sentiu dores e observou alguns coágulos de sangue na urina. Não imaginou que fosse piorar, então foi sozinha para sua casa. Mas as dores voltaram com maior intensidade e ela se deitou para tentar amenizá-las. Quando deu por si, estava sozinha em trabalho de parto. Sua cunhada ouviu os gritos e ao ver a situação correu para chamar a parteira. O bebê nasceu antes que ela pudesse chegar e chorou normalmente. Sua menina foi crescendo frágil: — Não conto muito essa história. Mas foi 1 ano e 3 meses de sofrimento. Ela não andava, não tomava leite, tinha alguns problemas de saúde. Estava nos planos de Deus ser minha filha. 84


Para ela, sua filha Janaína foi um presente de Deus com hora marcada para retornar ao céu. No fim, se tornou um anjinho que segue no coração de seus pais. Três dias antes de sua partida, a menina estava adoentada, com febre e vômito, e Maria foi até o hospital, onde a longa espera por atendimento, observações intermináveis e nenhuma resposta só a angustiavam. Coração de mãe não se engana, afirma. Maria conta que sentiu que era a hora da filha descansar e a levou de volta para o lar, para perto daqueles que a amavam. A neném estava arisca, mordendo todos e Maria recordase de como passou três dias “aperreada”, com o peito apertado. No último dia da sua breve passagem a menina acordou calma. Observou o pai que acordava cedo para o trabalho e quieta, sentou-se na cama e o abraçou ternamente. Neco não esperava por aquela demonstração de carinho, e animado, comentou com a esposa que a filhinha estava melhorando e logo estaria pulando com os outros meninos. Infelizmente, era uma despedida: – Foi o último abraço. O sentimento nunca morre e Maria nos diz que se sua menina ainda estivesse viva completaria 37 anos. Cada filho que vai precocemente leva um pouco de sua mãe. Superar a perda é tentar não se deixar abater pela loucura da dor. Maria José revela que coloca sua filha em orações e se conforta com os desígnios do destino. Chora e nas lágrimas que vão caindo, explode uma saudade doída que mora silenciosa dentro dela. A vida seguiu, logo veio 85


outra filha e superar a tristeza era importante para conseguir cuidar de seus outros pequenos. Era preciso recomeçar e o casal foi viver junto à mãe de Maria, numa casa de tábuas. No nascimento do caçula ela levou outro susto. A ineficiência dos médicos que a atenderam quase causaram uma tragédia no parto. Maria chegou ao hospital com dores, pronta para dar à luz, mas o doutor falou que não era hora. A criança nasceu depois da hora certa, com a cabeça e os olhos escuros pela falta de oxigenação. Após o parto sentiu-se mal, desmaiou e teve sangramentos. Se não melhorasse seria necessário ir para o centro cirúrgico. Agradece a Deus por ter se recuperado, assim como seu menino, que cresceu forte. O descaso no atendimento obstétrico, pela saúde pública, foi um fator preocupante para Maria José. Na década de 1980, o atendimento era precário porém, ainda hoje, mesmo com a implementação do Programa de Humanização do Pré-Natal e do Nascimento (PHPN) em 2000, pelo Sistema único de Saúde, ainda

temos ineficiência no atendimento a gestantes e parturientes. Em 2016, dos 36 mil óbitos infantis e fetais no país, 24 mil foram por causas evitáveis, de acordo com o Painel de Monitoramento da Mortalidade Infantil e Fetal. Segundo este levantamento, podemos considerar que dentre as causas evitáveis, está a inadequação do atendimento pré-natal. Para os pesquisadores Carla Betina Andreucci e José Guilherme Cecatti, as metas do PHPN ainda não eram cumpridas por muitos postos de saúde 86


brasileiros. As mulheres grávidas representam outra parcela de risco. Em 2013, 1.567 foram à óbito por complicações antes, durante e após dar à luz. De acordo com o Ministério da Saúde, em 2015 foram 62 casos a cada 100 mil nascimentos. Além disso, a violência obstétrica, que é caracterizada pelo descaso médico pela mulher em trabalho de parto, constitui ainda a realidade. Médicos que como aquele do passado de Maria José duvidou de suas dores e adiou o parto ainda existem. A analise “Mulheres Brasileiras nos Espaços Público e Privado”, 2010, da fundação Perseu Abramo, revelou que 1 a cada 4 mulheres sofre algum tipo de violência no parto. Em geral, a forma que a medicina pública trata as mães demostra um descompasso na igualdade de gêneros em instâncias de saúde. Apesar das situações de assistência hospitalar defasadas, Maria José revela que o importante foi ter seu filho nos braços e ele ter crescido sadio. A família enfrentou outras tribulações, como o desemprego e a fome. Os seis filhos eram pequenos quando o mercado de trabalho começou a se restringir para o casal. Naquela época, década de 1990, a economia do país ia mal com inflações absurdas por instabilidades políticas da Era do presidente Collor. A crise se refletiu no ambiente familiar, e Maria José chora ao lembrar como a situação estava insustentável; seus meninos pediam leite, mas não tinha nada para comer. Neco ficou desesperado com a fome 87


rondando sua família e por não conseguir nenhum serviço digno. Pensou em cometer loucuras: — Não havia comida dentro de casa e as coisas tinham piorado. Meu marido estava tão agoniado que cavou um buraco e mandou nossos filhos o enterrarem dentro. A angústia era tanta que morrer parecia mais leve. Mas foi necessário sossegar os lamentos, sua família precisava. Após Neco se acalmar e refletir melhor, concluiu que a única solução seria partir de Canguaretama. Manoel resolveu tentar a sorte no Mato Grosso do Sul, trabalhando em usina de álcool e enviando dinheiro para a esposa. Enquanto isso, Maria José começou a lavar roupa, ajudar nas tarefas domésticas de uma comadre, que a ajudava doando arroz, feijão e leite. Na primeira viagem o marido ficou 9 meses fora, depois retornou por mais 3 meses. Ela ficava nervosa com aquela situação, queria que o esposo retornasse para o Rio Grande do Norte, pois não queria ter que abandonar a mãe. Mas para que sua família pudesse seguir unida, deveria partir. O ano era 1995 quando resolveram ir juntos para o Mato Grosso do Sul. Por ironia do destino, depois de venderem suas coisas e juntarem economias para passagens, chegaram à rodoviária mas não havia lugares para todos no ônibus. Neco confortou a esposa prometendo que primeiro iria e logo depois arrumaria condições para buscar a família. Se na época ela ficou contrariada, hoje respira aliviada por seus pequenos não terem ido naquele dia: 88


— Foi uma coisa que Deus fez. Uma estória complicada este trabalho dele. Neco ficou três meses sem me dar notícias. No retorno ao MS, no município Maracaju, Neco ouviu os conselhos um fiscal que prometera trabalho em uma

grande

fazenda. Foi para o meio do mato, como Maria costuma dizer e por lá ficou em um barracão amontoado junto aos companheiros da lida. As condições de segurança e acomodação eram insalubres, faltava alimentos e não existia meios de se comunicar com os parentes. Durante três meses não podiam pedir demissão, não receberam e ainda deviam ao patrão pelas acomodações. Eram como escravos. Os trabalhos análogos a escravidão são marcados pelo aliciamento de trabalhadores, obrigados a exercer funções em condições precárias, recebendo nada ou um valor irrisório como salário. Em 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso reconheceu que a escravidão moderna era uma realidade do país. Precisamente em 20 anos, entre 1995 e 2015, 50 mil trabalhadores foram liberados de condições semelhantes a escravidão, como orientou o Ministério do Trabalho no período. Neco viveu nessas circunstâncias que afligem tantos inclusive atualmente, pois consoante ao Observatório Digital de Trabalho Escravo no Brasil, entre 2003 e 2017 ainda, cerca de 43 mil pessoas foram resgatadas. Neco

estava

sofrendo

naquela

situação

quando

a

preocupação com sua família falou mais alto, pois não conseguiu enviar nenhuma renda para o sustento dos filhos. Resolveu enfrentar o gato, e pedir dinheiro para partir dali já que faziam três meses de 89


trabalho e nada de remuneração. Maria José diz que Neco foi com a cara e coragem e o inesperável aconteceu, pois o inspetor resolveu deixar que ele mais dois parceiros fossem embora. Os três homens receberam 150 reais apenas (50 cada). Partiram para a capital, Campo Grande. De lá, com promessa de oferta de emprego, Manoel seguiu para o interior paulista. Chegou sem dinheiro e com fome, pediu para um condutor de ônibus que o levasse para a usina de açúcar e álcool em Clementina, SP. O motorista comovido, cedeu o lugar. Durante a ausência do esposo, Maria foi segurando a barra. Neste meio tempo o pequeno Rafael teve grave disenteria e uma de suas meninas sofreu com apendicite e precisou operar. O marido, que não conseguia dar telefonemas ou enviar cartas, não sabia destes problemas com as crianças. Apenas na usina, finalmente conseguiu ligar para a família e prometeu à esposa que enviaria o dinheiro das passagens para que pudessem se reencontrar. Maria aponta que para isso foi preciso a ajuda de um amigo: um colega de Neco na usina se solidarizou, foi generoso e emprestou a quantia necessária. No nordeste a despedida de Maria José e sua mãe foi dolorosa, eram unidas e o conforto de ambas foi se apegar à santa de devoção. No dia em que foi embora, as malas não lhe pareciam tão pesadas quanto a saudade. Com seis filhos ao redor, ela seguiria um roteiro incerto. Atravessando, seguindo, era melhor não olhar para trás. 90


O sertão se tornaria lembrança com a estrada. Orava para que a fome não batesse novamente em sua porta. Baixinho, entoava uma Ave Maria... E a poeira a afastava da terra onde nascera. Sozinha, a fé em algo maior era como uma janela luminosa em meio ao encarceramento do medo. Sua querida mãe ficara para trás e agora, era preciso pensar em criar seus filhos. A mãe querida lhe deu um frango, farinha e algum dinheiro. Era vital que ela encontrasse o pai de seus filhos. Ganhou o mundo e recomeçou suas batalhas em outro estado. O sol iluminado, as areias brancas e o mar azul continuariam na memória. Essa história era antiga: Procurando melhores condições de trabalho, milhares de nordestinos também saíram de suas terras. A região nordestina tem um histórico de migrações que remete ao século XIX. Para Wilson Fusco e Ricardo Ojima, desde os censos de 1872, se pode observar o declínio rápido da população nordestina, explicados pelas ondas migratórias para a Amazônia no “Ciclo da Borracha”. Fugindo das secas ou em busca de melhores condições socioeconômicas, aproximadamente 300 mil saíram do nordeste apenas nas primeiras décadas do século XX. Ao longo deste tempo, o êxodo rural contribuiu com a industrialização das cidades, além de escancarar suas desigualdades. A partir de 195060, uma onda migratória intensificou- se por causa dos investimentos governamentais de Juscelino Kubitschek pela industrialização. De lá para cá, a região sudeste foi a que mais recebeu nordestinos e isso se reflete até hoje em seu perfil cultural. 91


Em 2015, 12,66% da população residente no estado de São Paulo era de origem nordestina, segundo dados do IBGE 2015. A viagem parecia interminável. Chuva e sol, poeira e carvão, mar e seca: Ela recorda que foram três dias inteiros dentro do ônibus com seis crianças. Naquela lamúria, chegaram ao encontro do pai. Tudo era muito diferente nas terras paulistas: o povo, a comida, o clima. Foram direto para Clementina e unidos trabalharam duro, para nunca mais ficar sem comida na mesa. Maria trabalhava como diarista rural, Neco tinha carteira assinada na usina e conforme os meninos iam se tornando mais velhos, com 15 e 18 anos, ajudavam em colheitas de pimenta. Depois seguiram para a cidade de Barbosa, SP, e como não arranjaram emprego, resolveram provar que eram bons na lavoura. Combinaram com um fazendeiro que trabalhariam de graça e somente depois do serviço comprovado, receberiam. Lavoraram com eficiência para provar que eram dignos de receber. Sozinha, a família cuidou de 15 mil pés de tomates, aumentando a produção em até 25 mil pés. O patrão precisou contratar mais mão-de-obra para dar conta da demanda. Porém, na hora do acerto, quem disse que o encarregado não repassou o valor acertado. Após o desgosto com o desrespeito no cultivo de tomates, o casal resolveu retornar ao corte da cana, como boias-frias. Ficaram na atividade por oito anos e, em 2002, juntaram dinheiro para comprar uma perua Kombi e viajarem para o Rio Grande do Norte.

92


O relógio corria e quando se deram conta alguns de seus filhos já eram adultos, casados e independentes. O tempo é mesmo uma engrenagem louca, onde passado e futuro vivem se chocando. Nesta trajetória de trabalho, luta e recomeços, as mãos calejaram. Era tanta batalha incansável na dureza de ser pobre, que esqueceuse de sonhar. Então tudo mudou, Neco começou a cogitar um cantinho de terra somente deles, para viverem sem patrão e exploração. No caminho para o trabalho, passavam por um assentamento e o marido afirmava que ainda morariam por ali. Maria José retrucava que o marido fosse sozinho, pois para ela, que ainda não conhecia o movimento, aqueles acampados não passavam de uma cambada de ladrões. Nas idas e vindas atrás de trabalhos temporários, se candidataram para trabalhar em mais uma usina de cana. Neco foi chamado, mas Maria não foi contratada por ser considerada gorda, embora apta à função de acordo com o exame médico. Se sentiu tão mal que desmoronou. A depressão chegou melancolicamente e se apossou de sua mente. A depressão é uma doença psiquiátrica séria, que necessita de tratamento psicológico adequado. Se configura por um quadro de constante angústia, desesperança e baixa estima. Os níveis desta doença podem variar entre leves, moderados e graves e, em alguns casos, há a necessidade de ingestão de medicamentos prescritos por psiquiatras. Algumas situações complicadas podem ser verdadeiros gatilhos emocionais para as pessoas depressivas. Em 2015, a 93


Organização Mundial da Saúde estimou que existiam 322 milhões de depressivos no mundo, sendo 11,5 milhões no Brasil. Nosso país, portanto, tem a maior taxa de prevalência desta doença na América Latina. Neco, vendo a tristeza da mulher, ficou cabisbaixo também e resolveu largar o emprego naquela usina. Não obstante, aquele cenário injusto aumentou o seu desejo por terra. Em 2009, conheceram o MST. Joãozinho e Márcia eram amigos que faziam parte da militância e após um convite, Manoel se interessou em participar, enquanto dona Maria José desconfiava. O marido, que se identificou com a causa, insistia para a esposa acompanha-lo. A filha Conceição resolveu que iria, assim como a nora Edna, esposa de Nilson: — Eu dizia que não estava louca, para ficar de baixo de lona. Achava que era um bando de vagabundo. Estávamos com 28 anos de casados, então mandei ele escolher entre eu ou os sem-terra. O marido foi para um acampamento próximo à cidade, na esperança de conquistar um lote para a família morar em paz. Dona Maria José começou a repensar se valeria a pena abrir mão de tantos anos de companheirismo por capricho. Aos poucos, passou a frequentar o acampamento e foi pegando gosto pela causa, criando laços com a comunidade, até resolver ir de vez para a lona. Descobriu que o povo que estava acampado era tão trabalhador quanto sua família. 94


Foram todos para a lona. Até que o primeiro despejo veio e Maria conta que foi tumultuado, avião passando por cima dos barracos, tropa de choque da polícia, adultos e crianças correndo agitados. Saíram de lá sem ter para onde ir. Ficaram por quatro meses na Agrovila Central de Reunidas, local do movimento destinado a quem não tem perspectivas de acampar ou casa para morar. Logo partiram para a ocupação Argentina Maria, e ela, que sempre gostou de criar animais, levou uma porca amarrada, uma cabritinha criada na mamadeira, porcos, carneiros e galinhas. Veio outra reintegração de posse e desta vez a repressão policial era mais intensa. Muitos carros da polícia, ambulância, conselho tutelar, tratores passando por cima de lonas compuseram uma cena digna de cinema; Um filme de terror orquestrado. Todos foram despejados em um dia. A família então desmanchou

o

barraco e dona Maria ficou por último, para organizar como levariam embora os bichos. Não deu tempo dela carregar os animais e logo os policiais vieram derrubar o singelo chiqueiro de Maria. Aqueles animais eram uma alternativa que ela havia criado para uma hora de necessidade. E ainda, dona Maria tinha criado afeição pelos bichos. Então, naquele momento de aflição, agiu no impulso, se colocando na frente do chiqueiro: — Olha, para os senhores fazerem isso tem que passar por cima de mim, por que os bichos são inocentes. Os senhores irão escolher: ou me dão algumas horas ou passa junto por cima de mim.

95


Partiram cabisbaixos, mas não se abateram. Continuariam juntos na próxima ocupação. O desejo de Neco havia se tornado o objetivo de todos. Saíram de lá e montaram acampamento na vicinal que sai da BR 153 e vai até Promissão, ficando ao menos oito por ali. Mas o futuro era incerto. A reintegração poderia vir a qualquer instante ou poderiam não ser homologados em lotes pelo INCRA. Em 2011, numa fazenda entre as cidades de Guaraci e Altair, SP, um novo grupo precisava ser formado para pressionar a liberação de uma terra considerada improdutiva e apta à reforma agrária. No início, 16 famílias iriam compor a recente ocupação e, alguns membros da Coordenação, entre eles Maria, foram designados para marcar terreno. Foram com a perua Kombi de Maria e Manoel na calada da noite. Mal amanheceu e a polícia estava por lá interrogando quem eram, o que faziam, para onde iam. Dona Maria articula que tiveram muito jogo de cintura para conseguir manter diálogo. Apesar dos obstáculos, resistiram de 2011 à 2014 nas lonas. Chegou a criar 150 vivendo na rodovia. Os netinhos cresciam saudáveis e estudavam para orgulho da avó. A aventura estava começando. Ou recomeçando. As dificuldades não eram poucas, as ameaças de desapropriação se acumulavam, à princípio os cidadãos dos municípios vizinhos eram desconfiados e a própria prefeitura mostrava restrições a eles. De todas as fases, a que mais machucou Maria foi à recusa do padre em Altair em abrir a igreja e recebê-los para tomar bênçãos em uma marcha chamada Romaria da Terra. Se ofendeu profundamente com 96


o padre, que segundo ela, por ser amigo da dona das fazendas age desta forma. Por meses ficaram sem água e Maria José foi a pé até o município para se encontrarem com o prefeito de Guaraci reivindicar água para matarem a sede. Ele, generosamente enviou. De brinde vieram besouros e larvas. A solução foi cavar uma mina d’água e construir um poço num açude próximo e resultado foram bolhas dolorosas nos pés de Maria. Ela decidiu tentar com a prefeitura de Altair, novamente calçou suas sandálias e rumou, apesar dos machucados. O governo de Altair resolveu enviar água de rio. Devido à situação precária, muitos saíram do Egídio e em determinada época, sobraram 25 famílias. Maria nos revela que, por diversas vezes, pensou em desistir: – Teve dia de não ter um tico de leite pras crianças. Eu só tinha as porcas então colocava para vender. Não pagaram nem o que valia, mas eu precisava comprar comida. Agradeço primeiramente Deus, aos amigos que me ajudam e depois meus bichos, por que já me salvaram de muita coisa. Era meado de 2014 quando na beirada

daquelas

propriedades mortas, junto a uma porteira velha e esquecida, o povo finalmente marchou com bandeiras vermelhas e enxadas em punho. Naquele andar silencioso, só se ouvia o bater dos corações agitados. Cada qual carregava sua cruz, andando de mãos dadas com aquilo que lhes era mais precioso. Juntos, começaram a entoar cantos, talvez para que a coragem de seguir adiante os animasse. 97


Apegavam-se na oportunidade de não passar fome ou de ter algo para chamar de seu. Chegaram com o peito rasgado, somente com os céus como testemunhas, para ocupar um direito. Direito a dignidade. Na frente, com a pele vermelha de sol, cabelos castanhos longos e um ímpeto comovente, nossa Maria marchou com convicção. Vestiu a armadura de sua fé inabalável em Nossa Senhora. Tinha caminhado tanto para chegar até ali. Por tantas vezes avistou a morte e sentiu saudades. Mas dentro dela pulsava vida e viu ali uma forma de plantar e colher o pão de cada dia. Mesmo cansada, com bolhas nos pés a machucando, ela lembra que seguiu até a porteira trancada com um cadeado enferrujado. As chaves guardavam uma propriedade improdutiva. Maria avançou sobre todos e seus joelhos exaustos tocaram o chão. Joelhos cansados das viagens em busca de vencer a fome. Joelhos exaustos desde sua jornada retirante do sertão até o interior do país. Recobrou as forças numa oração. Que Nossa Senhora, sua padroeira, intercedesse junto a Deus, e abençoasse. Que fosse feita as vontades sagradas e que assim na terra como no céu, fosse santificado aquele sonho. Maria José crê. E incansavelmente deposita suas angústias e pede vigor para continuar. A emoção tomou conta de seu corpo, o coração na boca, a língua seca e lágrimas desciam pela face. Recorda que naquela tremedeira toda, levantou-se. E finalmente entraram na fazenda carregando suas lonas pretas. 98


O assentamento foi recebendo mais parceiros para somar. Dois anos depois, as famílias receberam seus lotes. E todos os parentes foram contemplados. Quando finalmente recebeu a benção de ter seu lote, a sensação de agradecimento foi forte. Maria e Neco enfim, estavam realizando um sonho e uma necessidade. Antes de tudo colocaram uma bandeira com Nossa Senhora na frente da terra que a duras penas foi conquistada: – Eu fiz uma roda com meus filhos, meus netos, e nós fizemos uma oração. São nove anos morando em barracos e cada um dos treze netos nasceu e cresceu dentro desta batalha. Ao longo desta história fomos rindo, chorando e nos envolvendo naquele abraço apertado. Não existe um final, a poesia dos dias não acaba em um ponto. Maria finaliza o prato saboroso com os frangos caipiras. Nutre quem ama, com o melhor que pode, em qualquer pormenor e em todos os sentidos. Bota água no feijão e nos convida para o almoço. Cada traço de sua personalidade é acolhedor. Nos ensina que tudo que se move é sagrado: A voz da primavera que sussurra dentro das sementes, cada amanhecer, o canto dos pássaros, a vida de todos. E no fim, é tudo resumido como amor. Nos sentamos à mesa com todos e depois de partilharmos tantas conversas distraídas e soltas naquele almoço, nos damos conta que as horas correram rápido demais. Nossa próxima Maria nos aguardava em outro lote. Despedimo-nos como velhas amigas e Maria José correu para finalizar as malas para reencontrar sua mãe, 99


sua rocha, que está fragilizada. Partirá feliz, porém segue com uma ponta de tristeza por que afinal, com a escolha de gastar com as passagens, não conseguirá construir uma casa segura de cimento e tijolos. Ela não sabe a surpresa que a aguarda no retorno da viagem. Sua filha nos revela em segredo, que ela e os irmãos, com a ajuda de amigos, irão construir finalmente a casa protegida com telhados e portas que Maria tanto deseja. Nos arrepiamos, parecia um sinal de que a fé realmente tem poder e que no final, depois da tempestade fria, existe uma força maternal que nos ampara como o calor do sol. Talvez o Sagrado também estivesse nos envolvendo como a brisa do vento que nos rodeava; e ponto final.

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5. Maria Aparecida Oliveira

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“Mas é preciso ter manha É preciso ter graça É preciso ter sonho sempre Quem traz na pele essa marca Possui a estranha mania De ter fé na vida” Milton Nascimento Era uma vez uma menina franzina, que tinha desejos grandiosos. Costumava se imaginar dançando em longos vestidos esvoaçantes, com seus cabelos longos e escuros voando, quando brincava com suas bonecas no milharal. O brinquedo era feito de imaginação e sabugo de milho. O vestido da boneca amarela era de retalhos simples, tecidos catados pela casa e cuidadosamente selecionados, que em sua cabecinha se transformavam numa peça ordenada digna de cinderela. Os fios da espiga eram as madeixas mágicas de Rapunzel que se enrolavam e desenrolavam na criatividade. Era um faz-de-conta inocente. Uma princesa feita da simplicidade, mas nem por isso menos real na mente da criança. Corria com o vento e brincava de inventar reinos distantes, vidas distintas. Uma espiga poderia bastar para quem muito viajava por entre nuvens. Bastava a si mesma no reduto de sua meninice cândida. Até que aos oito anos, junto ao pai pelas andanças nas vielas da cidade, pelas feiras e mercados cheios de gente e sabores, 102


avistou uma boneca com olhos de vidro. Tinha uma carinha miúda imitando recém-nascido, boca rosada, pele aveludada e cheiro de plástico. Vestia uma roupinha cheia de rendas e laços. E os olhos... brilhavam e a fascinavam. Pela vitrine se encantou com aquele mimo. Era pequena, mas já sabia que certos luxos não eram acessíveis a todos. Já entendia que existiam meninas em seus castelos, rodeadas de porcelanas e cetins, cheias de bonecas louras que choram e falam, e existiam meninas mestiças, das casinhas de pau à pique, cercadas por seus sonhos, aspirações gigantes e a liberdade dos pés descalços na terra molhada, que tinham a companhia de espigas amarelas como bonecas. Queria o brinquedo que chorava para dormir agarrada e transformar aquela fantasia em realidade. Muito além de capricho, era um pequeno sonho. Toda criança tem direito ao seu. Talvez fosse uma desculpa para cuidar de um serzinho além de si. Nesta história, diferente do faz-de-conta do adormecer, não existiam fadas madrinhas. Existia Maria, seus tantos irmãos, os pais lavradores, a casa humilde e sua avó. A velhinha se sensibilizou e como não tinha condições de fornecer o neném de mentirinha, que custava tantas notas, lhe deu uma franga para apartar a desilusão. Maria sabia que nessa estória, apenas ela poderia ser a guerreira, a mocinha e a fada mágica do final feliz: aguardou a franga virar galinha e botar ovos. Dos ovos, 12 pintinhos. Com os 12 filhotes, esperou no sol da feira alguém para comprá-los e enfim, juntar sozinha o necessário pela boneca de olhos de vidro. 103


Neste conto de realidade, a vida imitou a arte e a galinha de penas e bico se transformou na galinha de ouro da pequena. E por alguns anos, entre cantigas de roda, cirandas, passa-anel e tantas espigas douradas pelo sol, a boneca foi feliz junto a ela. A criança cresceu, virou mulher de fibra e hoje nos relata seus decursos. Se lembrou da boneca que chorava e que, como as fotografias antigas que se rasgam pelo tempo, se perdeu nas curvas do passado. É que a gente quer crescer e quando cresce quer voltar ao início, onde existia apenas inocências. O mimo foi guardado com carinho até depois de seu casamento e se perdeu quando Maria já não era mais uma garota sonhadora. Se perdeu quando ela já tinha seus bebês para amamentar, cuidar e amar. O brinquedo porém, vive ainda na memória. Talvez uma lembrança de seu primeiro triunfo conquistado com suor. Se fosse para existir certezas, nada teria graça em nossos passos. Maria de Aparecida da Silva Oliveira ainda carrega muito daquela menina que alçava coisas maiores e não as descartava até conquistá-las. Carrega no aspecto a firmeza daqueles que procuram incansavelmente reinventar as linhas da sua história correndo atrás do melhor. Nesses atos de coragem diários, se descortina muito da essência. Ela, aquela garota que não pediu a boneca aos pais, mas correu atrás de consegui-la, é agora uma senhora de gestos singelos e postura altiva. Sentimos que nesta longa trajetória, a todo instante ela empreendeu seus desejos e correu atrás de capturá-los. Transformou-se. Aceitou os obstáculos e procurou alternar caminhos até almejar a tranquilidade e o sabor da vitória. Embora 104


ela também entenda que às vezes é mais sábio sobreviver e buscar novos sonhos, ao insistir em algo fora das suas possibilidades. Sua pele mulata, acobreada de sol, estampa a cor do Brasil de tantas misturas. Calça salto alto e apesar da altura mediana, sua postura impõe respeito. Respeito por sua longa história. Carrega simplicidade, não obstante a aura elegante parece fazer parte de quem é. É alguém que diz muito pelas entrelinhas e que nos desafia a descobrir mais sobre sua essência a todo instante. Sua face parece nos dizer muito, como que por signos, ao mesmo tempo em que ela se mantém calada. A capa dura e bonita protege um interior recheado de vivências, segredos, magias, poemas concretos e sem fim. Maria não se desnuda no primeiro instante, é preciso mais, é preciso conquistar sua confiança para alcançar seus detalhes. É uma mulher com firmeza no olhar e o semblante sábio daqueles que, entre tropeços, aprenderam a ser grandiosos por defender, com unhas e dentes, aquilo que deseja e que acredita. Ao chegarmos em seu lote, a avistamos ao longe. Caminhou até nossa direção com um sorriso sincero no rosto, nos dando boas vindas de forma carinhosa. Junto a ela

duas menininhas com

olhinhos cor de mel. A senhora tem negros cabelos amarrados em um coque perfeitamente ajustado e uma saia comportada até os joelhos, o que demonstrava seu estilo clássico e traços de sua crença, cristã protestante adventista. Mostrou-nos orgulhosamente a estrutura da casa nova, toda construída em madeira e com espaço suficiente para abrigar ela, o marido, o filho Valcir, a nora, e as 105


duas netinhas. A casa é impecavelmente organizada. No quintal de seu lar tem um canteiro com algumas flores perfumadas. E na área de cultivo, uma extensa plantação de mandiocas: — Decidimos juntos que ele iria ficar para ser o nosso herdeiro. Porque senão a gente trabalha, constrói e então, quem vai ficar com tudo aquilo que construímos? Ela se senta com as pernas cruzadas no sofá da sala e discretamente vai se ajeitando, até se sentir em posição confortável. Lembrar-se do passado nem sempre é simples, é preciso ser paciente e resgatar memórias afogadas. Junto às lembranças, voltam uma chuva de sentimentos incontroláveis, que pensamos estarem estabilizados no fundo da mente e do coração. Sentar-se nos parece uma boa opção e a acompanhamos. As meninas brincam com suas bonecas aos pés da avó e Maria não deixa de destacar como se surpreende com as mudanças dos comportamentos, valores e objetos, como a facilidade do acesso das crianças de hoje aos brinquedos, ao comparar o passado com o presente. Dona Maria Aparecida não deixa de admirar como as gerações se modificaram. Olha para as meninas pela sala, distraídas, inventando nuances encantadas para as bonecas e então compara esta nova geração com a sua. Ela tem dois bisnetos e sete netos. As filhas de Valcir moram junto a ela. Antigamente as crianças não tinham tantas perguntas complicadas. Hoje já nascem perspicazes, cheias de personalidade. Nos fala que quando criou seus filhos, meia palavra bastava para que se aquietassem com medo de 106


palmadas. Suas netas, entretanto, precisam de horas de diálogo para compreender a raiz dos ditames: — Eu falava uma vez só e eles obedeciam. Agora não, a gente fala com o neto e parece que estamos falando com a cadeira. É bem diferente. Acho que hoje em dia as crianças nascem muito inteligentes, já nasce decidido com que quer ser, não tem como ficar interferindo não, por isso precisa conversar bastante. Sua infância não foi regada apenas de sonhos e calmaria. Nasceu em Goiás, numa fazenda na cidade de Caçu, em março de 1963. Os pais, Araci e Alaor, eram lavradores. Faziam cerca, derrubavam mato, arrancavam toco, plantavam. E como todo um povo caminhante, com as solas dos pés duras e marcadas de tantas andanças, a vida da família era retirante. Sempre em busca de sobrevivência. Seus pais criaram cinco rebentos trabalhando em fazendas nos municípios de Caçu, Itaguaçu, Cachoeira, Jataí, Rio Verde e tantas outras cidadezinhas goianas que Maria já nem se lembra mais. Aparecida foi criada em casinhas de pau à pique e sapê. Os córregos próximos forneciam água para beber, cozinhar, tomar banho e lavar roupa. Quando o frio apertava, as crianças se aqueciam com sacos de estopa. Naquela época e naquelas condições, estudar era luxo longínquo. Estudava seis meses em um lugar, se mudava e começava tudo de novo. Aos oito anos ela tentou frequentar a escola da fazenda, mas não continuou. Não tem um diploma e disso Maria se ressente, dizendo que nas fazendas não tinha a mínima condição de estudo. 107


Segundo dados do Ministério da Educação, na década de 70, apesar do campo abrigar 13% dos estudantes brasileiros, metade das escolas do país estavam localizadas na esfera rural. Porém, a média do tempo que o aluno permanecia na sala de aula neste meio é de menos de quatro anos, enquanto nas cidades, a média da escolaridade é de sete anos. Além disso, 50% das escolas rurais apresenta somente uma classe, onde alunos de diferentes idades estudavam juntos, ao contrário do perímetro urbano, em que cada fase da criança possui uma sala com professora e conteúdo próprio. De acordo com um levantamento da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), de 2002 até o primeiro semestre de 2017, cerca de 30 mil escolas rurais no país deixaram de funcionar. Os governantes passaram a investir nos meios de transporte escolares, buscando as crianças na zona rural e levando-as às escolas urbanas. Uma pesquisa de 2014, também da UFScar, aponta que entre os jovens das 923.609 famílias que viviam em 8.763 assentamentos no Brasil, 15,58% não foram alfabetizados; 42,27% cursaram apenas até a antiga 4ª série; 27,27% concluíram o ensino fundamental; 7,36% fizeram uma parte do ensino médio e 6,04% concluíram a Educação Básica. A falta de incentivo e de estrutura corrobora com esses números. Invisível ao Estado, sonhava poder ir à escola. Não tinham televisão, sequer energia. À noite brincava à luz do luar ou sobre as vistas de lamparinas. Tudo era suado, conquistado a duras penas.

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Coisas simples, como uma fruta, era algo distante para aquela família: — Eu achava que maça era comida de rico e que pobre não podia comer. Na primeira vez que comi, aos 11 anos, pensei que estava rica. Atualmente o senhor Alaor e dona Iraci têm 81 e 82 anos respectivamente e residem em Paranaiguara, Goiás. Dias antes de dona Maria Aparecida ter nos recebido em sua casa, seus pais haviam passado uma temporada junto à filha. Ela nos conta que se surpreende com a consciência e tranquilidade deles. Estavam mais ou menos bem de saúde, afinal, com a terceira idade vêm às fragilidades dos corpos. Seu pai é calmo, possuí a paciência dos sertanejos antigos, personalidade que trouxe para a velhice. Ele carrega a sabedoria daqueles que viveram e passaram por muitas porteiras. A sua mãe mudou junto com o tempo e agora se perturba por não ter conseguido providenciar estudo de qualidade para os filhos. Aparecida sabe que a mãe era amorosa e fez o melhor que podia dentro de suas possibilidades: — Acho que eu não tenho sorte com estudar. Tenho comigo que hoje minha cabeça está pior, esqueço tudo, então acabo desistindo. Minha mãe é revoltada com o passado por que nós não tivemos oportunidade de ir para a escola, não fizemos curso superior, não temos formação nenhuma, nós não temos uma profissão, digo eu e os meus irmãos. Estudar naquela época era muito difícil, mas eu tentei. 109


Desde menina achava bonito as salas de aula, a lousa escura, o giz branco, as mesinhas enfileiradas, o ABC nas paredes e o empenho da professora. Sempre tentou fazer parte desse mundo distante. Quis tantas vezes somar aos meninos uniformizados escrevendo concentrados em seus cadernos. E tantas vezes se viu obrigada a desistir. Maria se entristece por não ter aprendido em escolas e universidades, o verdadeiro significado das letras. Em dado período houve Educação de Jovens e Adultos (EJA) no assentamento entretanto, a senhora diz sentir muitas dificuldades e por isso desistiu de tentar. Ela acredita que seu tempo passou, não tem paciência e sempre acaba deixando para lá. Ia finalmente pegar o diploma da segunda série, mas ele nunca chegou. Tentou tantas vezes que se revoltou com o destino e ao invés de sofrer novamente por não conseguir aprender aqueles símbolos difíceis, preferiu não mais tentar. Os altos índices de abandono dos alunos do EJA chamam a atenção pois, em muitas salas, o número de alunos evadidos chega a ser superior ao número de alunos aprovados e tem servido como pretexto para o fechamento de muitas classes. Para Campos, em “A Infrequência dos alunos adultos trabalhadores, em processo de alfabetização”, a evasão escolar na EJA acontece por razões de ordem social e principalmente econômica. Abandonam porque precisam trabalhar, por ter responsabilidades com o cônjuge e os filhos, pelas dificuldades de aprendizado e descrença no método usado para ensino. 110


Talvez por isso, se orgulha tanto em ver as netinhas na escola. A menina mais velha nos faz cartinhas com desenhos coloridos e escritos de quem está aprendendo o ABC. Levamos a carta com carinho como recordação. Aos 17 anos, Maria trabalhava com um primo em uma sorveteria na cidade de Paranaiguara, em mais uma tentativa de frequentar a escola. Seus pais, nessa época, moravam na fazenda de um senhor chamado Norberto. Mas acabaram se mudando para trabalhar numa olaria, o que a fez novamente ter que largar os estudos para ajudar os pais na fabricação de tijolos. A família seguia unida e trabalhando para não faltar alimentos na mesa. Mas ela, particularmente, não gostava de lá, tinha que cortar o tijolo manualmente e usar pó de mico nos procedimentos, deixando o corpo com coceira. Mesmo contrariada com a função, algo ali lhe interessou, seu vizinho na olaria era Antônio Jesus de Oliveira. Já se passam mais de trinta anos desde o primeiro encontro. Dona Maria sempre foi destas mulheres decididas. Desde o começo soube o que queria. Um dia, conversando com as colegas na vizinhança, avistou o futuro esposo pela primeira vez ao longe, ficou atraída e brincando afirmou para as colegas que um dia o namoraria. As moças gargalharam com aquela súbita certeza de Maria, que mesmo sem o conhecer, gostou logo de cara de Antônio. O rapaz havia descido de uma carroça, pois tinha ido buscar barro na lagoa e na primeira troca de olhares ela se encantou. Perguntou as colegas por que riam, afinal o moço bonito era comprometido? As vizinhas responderam que não, para alívio de Aparecida, mas era 111


separado e tinha um filho. Ela não ligou para as minúcias. Começaram a trocar recadinhos apaixonados. Ela retornou para a cidade e o enamorado ia a seu encontro. Quando a moça deu por si, estava totalmente envolvida e disposta a cometer loucuras por amor. — Eu o conheci no início de Janeiro e em Novembro nós fugimos. Fomos embora para a casa dos pais dele, que moravam em outra olaria. Maria e Antônio se uniram em matrimônio há 37 anos. Com tantos anos de intimidade, ela nos revela que dentro de um casamento existem certos costumes. O companheirismo na criação dos filhos tornam as pessoas cúmplices. Dona Aparecida diz que o respeito é essencial para manter uma relação sólida, mas que isso não significa obedecer o marido. Ela também gosta de impor suas opiniões. Após a união, foram viver em Itajaí, GO, aonde o sogro de Maria tinha uma olaria, a “Olaria da Fumaça”. Certas datas são marcantes para o coração de uma mãe. Dona Aparecida relembrasse destas: em 1982 sua primeira menininha nascia, Valdirene e com ela um amor incondicional crescia no peito; em 85 foi a vez de um garotão vir ao mundo, Valmir; em 86 outra garota Tudo ia bem, nas graças divinas. Seus filhos frequentavam a escola, seu esposo tinha emprego fixo e não faltava alimento no almoço e jantar. Ser mãe tem dessas coisas, se deitar e rezar baixinho para que os filhos não sofram, se assustar com joelhos ralados, mas controlar e ter um jeitinho todo especial para acalmar a criança que chora, dar um beijinho mágico que 112


afasta os fantasmas no escuro. Tem dessas de querer proporcionar o melhor e estar atento a cada passo. É saber educar com pulso firme e quando necessário, dar palmadas na bunda por molecagens arteiras, mesmo que doa mais em si mesma que na criança. Ser feliz pelas vitórias de cada filho e também se entristecer com suas desilusões. Pelo menos para ela, ser mãe é um dom divino, é maravilhoso poder ajudar os filhos desde quando criancinhas até se tornarem adultos independentes. Estar ao lado nas tomadas de decisões é seu papel enquanto responsável, então Maria se vê como uma mãe que apoia, conversa e resolve conjuntamente às adversidades. Hoje, com os filhos adultos, maduros e casados, ela busca não se intrometer nas famílias deles, pois sente que é preciso deixá-los livres com suas escolhas. Quando pedem opinião, aí sim, ela diz o que pensa de forma sincera. Seria lindo se todas as mães vivessem felizes com seus filhos até quando já cansadas e dormissem para toda eternidade acolhidas no calor dos afetos. Seria ótimo se todas as mães vissem seus filhos indo na escolinha, depois se formando no colegial, descobrindo seus amores, indo atrás do próprio sustento,

até

virarem mulheres e homens independentes. Mas a realidade se difere dos contos encantados. Nem sempre a história é escrita por linhas e letras bonitas, perfeitamente alinhadas. Para a família de dona Maria uma mancha dolorosa do passado ainda machuca. Valderlei, o caçula, era ainda um garotinho aprendendo os primeiros passos quando partiu para uma nova passagem nos céus. 113


Um acidente tirou sua breve vida. A criança, era apenas um neném quando se transformou em um anjinho. O pequeno correu inocente, um caminhão manobrava e então não deu tempo, foi tudo muito rápido. Dona Maria correu para acudir seu bebê amado, mas já era tarde. Não há como calcular a dor desta mãe, nem maneiras bonitas de escrever e amenizar a tragédia. Só podemos nos calar e nesta mudez, respeitar uma ferida dolorosa. Resta o conforto de saber que Deus o acolheu e que na proteção divina existe uma imensidão de amor. Gostamos de pensar que o céu o acarinhou com asas de mãe e que ele, tão puro, caminha sorridente, esperando aqueles que por pouco tempo tanto amou. Por um instante compartilhamos o silêncio. E nisso existe beleza. Interessante como o vazio preenche perfeitamente as lacunas quando não se pode, não se quer e nem se consegue expressar em palavras o que se sente. Existem mulheres que insistem em ter fé. Aparecida nos ensina que é preciso correr atrás da própria felicidade, que não se pode desistir de tentar mesmo quando o universo ao redor parece o desestimular e que é preciso continuar vivendo mesmo quando parte de si está morta. Como todas as mães que perdem seus anjos, uma parte de si se foi. Mas seu peito é grande e nele cabe o infinito. Seguiu com força, insistiu e ralou com todo o vigor que possuía para manter seus outros filhos com saúde, amor e união. Sua postura até hoje impõe respeito por que sua história não foi escrita para os fracos. Insistiu e conquistou motivos para voltar a sorrir.

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Depois do acidente, tudo em Itajaí ficou cinza. A leveza de antigamente, a tranquilidade com todos os filhos, a estabilidade... Nada mais importava. Dona Maria Aparecida perdera seu bebê e caminhar por aquelas ruas, conversar com toda gente que havia conhecido seu menino, era doloroso. Ela nos diz que tudo parecia ruim, insosso, com sabor de fel. Ela e o esposo decidiram que era preciso aceitar a perda para continuar vivendo. Concordaram em buscar novos ares em outra cidade. Aparecida colocou novamente o pé na estrada. O casal se tornou parceiro também nas dores e no recomeço. Saíram de Goiás e rumaram para Minas Gerais dois anos após o acidente. Uberlândia, no Triângulo Mineiro, foi o local escolhido pelo destino. Dizem os uberlandenses que sua cidade pouco tem de mineira. Dizem também que encontrar um uberlandense nato pelas ruas é raridade. É antes uma terra de encontro: goianos, matogrossenses, paulistas, baianos... É a segunda maior cidade de Minas. Naquela grande cidade, o casal deixou de trabalhar com o campo ou cerâmica. Maria tornou-se camareira no Hotel Presidente, e Antônio era encanador. Durante nove anos a cidade lhes proporcionou acesso ao estudo, à saúde pública e transporte coletivo. Eles residiram no bairro Chácaras Eldorado, onde construíram uns cômodos simples em um lote, posteriormente foram para

o

Chácaras Tubalina, perto do terminal de ônibus. Seus filhos já eram jovens quando boas oportunidades de trabalho surgiram em São José do Rio Preto, SP. Migraram unidos para o interior paulista. Rio Preto era uma cidade grande, embora 115


menor que Uberlândia e por lá residiram durante um ano. Foi em Barbosa, SP, pequeno município interiorano, que puderam retornar às suas raízes. Lá, conseguiram juntar as economias de uma vida e compraram uma olaria em 2003. Durante oito anos o negócio prosperou. Maria era organizada, guardava notas fiscais, certificava os pormenores. Vendia tijolos, comprava lenha, tudo documentado. Empreendeu e as coisas pareciam bem encaminhadas, desafiando o sistema, ela chegou lá, se tornou patroa. Na olaria, chegaram a contratar 10 funcionários registrados. O destino porém, insistiu em seguir outras trilhas. A economia da firma desacelerou e as coisas foram se tornando difíceis. Como era um empreendimento de pequeno porte, com o avanço das dívidas não conseguiram conciliar o quadro de pagamentos com a margem de lucros. Decidiram que o melhor caminho era fechar o negócio para não perderem o pouco que ainda restava. Era preciso retornar as estradas para mais uma vez lutarem para sobreviver com dignidade. Nesta altura da vida, era preciso uma reunião em família para decidir, unidos, para onde seguir. Haviam passado tantos recomeços juntos que se distanciarem era opção descartada. Os rebentos já haviam se tornado responsáveis e a maioria havia constituído sua própria família. Em um diálogo entre mãe e filhos, o adeus e a distância pareciam inevitáveis. Foi quando um casal de amigos ligados ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Cido e Roseli, comentaram sobre as terras improdutivas

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próximas aos municípios de Altair e Guaraci, SP e a possibilidade de conseguir um lote. Maria resolveu encarar o desafio. Seus pais passavam fome por não terem direitos sobre a terra em que plantavam e colhiam, não era um crime tentar rever tantos séculos de exploração. Talvez fosse Deus lhe fechando uma porta, mas escancarando uma janela. Ela havia crescido entre fazendas e campos, seus irmãos em Goiás ainda mexiam com plantações. Logo, não seria um ambiente estranho. E como

tudo em suas

vivências, sabia que se acostumaria. Ter algo em seu nome para descansar na velhice e ter os filhos unidos num local que possa chamar de lar era um sonho e também um desafio que se descortinava. Ela chegou decidida, afirmando aos filhos o que faria com seu futuro e os convidando a segui-la. Maria recorda perfeitamente suas palavras: — Vou para os sem-terra, porque lá a gente conquista algo nosso para viver para o resto da vida. Então já não restavam dúvidas, cancelaram a firma, venderam maquinários e equipamentos, e marcharam para um acampamento de reforma agrária chamado Egídio Brunetto, nas fazendas São José e Santo Antônio da Bela Vista. O casal resolveu arriscar, já não tinham nada a perder. Chegaram em 2011. Foram com pouca bagagem e muita esperança. Traziam colchão, uma mala de roupas e plástico. Os filhos chegaram meses depois. Maria nos conta que ficaram mais de um ano acampados na Vicinal Farid Nicolau Mauad, passagem para a usina Vertente. 117


Veio o despejo, mas a comunidade não podia desistir após tantos dissabores resistidos. Foram meses sem energia, tendo que buscar água em um córrego com baldes, passando por chuvas e chão lamacento, frio e calor. Foram para a rodovia na entrada da propriedade e por lá ficaram oito meses. Montaram suas barracas bem aos olhos da sociedade, que de passagem para Altair ou Guaraci era obrigada a enxerga-los. A senhora Eunice, uma rica velhinha, tinha várias propriedades rurais e nenhum herdeiro, era ela a dona das fazendas. Nunca foi até o Egídio Brunetto, pelo menos Maria Aparecida relata nunca a terem visto por aquelas bandas. De certo, Eunice morava em outra sede de suas tantas terras, pensa Maria. Os acampados permaneceram na rodovia pressionando a deliberação da reforma agrária, crescendo com a chegada de outras famílias, até que o juizado liberou a entrada na fazenda. Ficaram outros dois anos esperando em suas lonas ao redor da sede. Entre as reuniões, Aparecida recorda que o pessoal resolveu organizar como separariam os lotes das famílias que permaneceram na luta. Hoje aguardam a deliberação final. A atual composição governamental nacional vem cortando investimentos destinados aos movimentos agrários. A burocracia torna o processo lento. A preocupação é que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), resolva desconsiderar os anos e laços criados por essa comunidade e realoque algumas famílias, embora todos já tenham construído neste chão seus lares.

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Maria gosta de seu canto. Às vezes é cansativo, confessa, não ter energia elétrica. A rotina de lama, calor e chuva debaixo das lonas estragou os móveis, terão que comprar tudo novo, sabe-se lá quando. Todavia, no presente, as casa nos lotes são mais confortáveis e ela se sente mais acolhida. Quando estavam nos barracos na rodovia, se chateava com os muitos motoristas que passavam buzinando aos berros de “bando de vagabundos, preguiçosos, vão trabalhar!”. Venderam tudo em busca de um ideal e ainda ouviam ofensas de todo tipo. Nos revela que aquela mudança foi brusca por que antes era proprietária de firma, respeitada, podia ter os caprichos de andar de salto e ser bem recebida onde chegasse. Depois se viu nas dificuldades das lonas, sendo maltratada por desconhecidos. É nítida sua revolta quando relembra como era insultada no início da vida como sem-terra. Ia aos mercados nas cidades próximas e se sentia julgada. Eram situações corriqueiras de afronta. A forma com que eram ultrajados era a parte mais complicada para Maria: — E acontecia comigo, que era acostumada a chegar, como se diz? De Salto. Quando a gente ia aos mercados em Altair, Guaraci, as pessoas nos olhavam diferente, como se estivéssemos sujos, como se estivesse chegando os ladrões, os briguentos, os vagabundos. As pessoas não conhecem como funciona e por isso não nos aceitam. Então é difícil, temos que ter muita força de vontade, porque se não acabamos desistindo.

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Atualmente ela expõe que é diferente. Os moradores lhes desejam bom dia e é bem recebida em . Chegam a lhe perguntar se vende frutas ou legumes e ela se sente dignamente tratada. Nunca teve vergonha de assumir fazer parte do movimento e hoje ela observa que os residentes dos municípios sentem, na verdade, curiosidade em descobrir como é viver em acampamentos e assentamentos. Maria Aparecida diz que já respondeu

com

paciência perguntas do tipo “o que vocês fazem para viver no escuro?”. Velas e mais velas, para apartar as sombras e rogar preces. E quantas preces. Do nascer ao pôr do sol, ora em silêncio por estar segura e com os filhos ao lado. Há cinco anos é batizada na Igreja Adventista. O sábado é guardado e não cria porcos, conforme a crença, orienta. Desabafa que mesmo com as orações caseiras, se sente em falta com o sagrado por não ser assídua nos cultos em Guaraci. Tem receio de participar e não a aceitarem bem, a olharem com desprezo. Tinha esta apreensão particularmente enquanto morava na vicinal e rodovia. Nos fala isso e em seguida repensa, rindo, sobre a bobagem que lhe soa a própria timidez. Reflete que o homem pode até olhar de lado, mas o que lhe basta é Deus a olhando de cima. Contudo as regras de sua

igreja são

rígidas e por não ir regularmente aos cultos ela acredita não estar digna do Paraíso. Sorri, brincando com a preocupação e afirma que ainda está desviada portanto, longe de alcançar esta graça. Não conseguimos imaginar que Maria esteja a tantos quilômetros de merecer os céus, mas respeitamos sua opinião. Ela busca se 120


comprometer com frequência em sua igreja todavia, a distância até a cidade e o cotidiano na lida, lhe diminui as horas vagas. Gosta mesmo é de plantar e em cada sementinha que cava, faz uma oração para que a terra lhe devolva bons frutos. Fez uma horta, já plantou quiabos e quinze mil pés de mandiocas. Não utilizam agrotóxicos, então é preciso cuidado redobrado no manejo. Aparecida observa que existe dificuldade nisso, muitas mudas se perdem. Seu filho Valcir a ajuda no campo e por enquanto o marido continua construindo obras na cidade, para não passarem apertos financeiros. Entre as tarefas domésticas e compromisso com seus cultivos, ela arranja tempo para exercer a função de dirigente do assentamento, junto a mais três companheiros. Sempre foi metódica e organizada. Ela sente que abraçou a causa do MST e se anima em poder organizar eventos e buscar parcerias. Ficará na direção por mais dois anos, até que o mandato acabe e então sejam realizadas eleições na comunidade. Ela diz preferir assim, para dar espaço aos mais jovens. A vida no movimento de reforma agrária lhe valeu a pena, pois manteve seus filhos e netos por perto. Valcir será o herdeiro do lote dos pais. Valmir e Valquíria estão morando em cidades próximas. Apenas Valdirene está longe, pegou um lote a 300 kg dali, em Gália, SP. Mas volta e meia está por aquelas bandas, já que sua filha, Ana Carolina, está casada e mora com o esposo no mesmo assentamento que a avó.

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No

fim,

aquela

mulher

discreta,

caprichosamente

organizada, nos parece uma fortaleza. Como aquela menininha determinada do passado, que se segurou com firmeza nas suas convicções, conquistando seu desejo. Segue apostando na própria garra. Como tantos retirantes que trilham novas estradas, ela não desistiu de seguir na busca de seu próprio paraíso terrestre. Sofreu, amou, sorriu, viveu e vive intensamente cada hora que o tempo lhe concede. Como tantas Marias, nomeadas com o significado de “rainha soberana”, carrega na alma a essência de ser senhora de seus destinos. Nós, mergulhamos em seus mistérios buscando capturar alguns resquícios marcantes em seu oceano de memórias. E com tantas vivências, tantas emoções, Maria é aquela que muito sente e pouco fala. As coisas se revelam sutilmente. Transforma-se em rocha e merece nosso respeito. Saímos daquele encontro com a certeza que também carregamos um pouco de Maria. Levamos conosco a firmeza que a mantém enraizada em suas verdades e a leva a empreender suas vontades. Maria carrega o consolo de suas tristezas e não tem medo de erguer a cabeça. Afinal, não adianta apagar as páginas da história, sequer adianta passar uma borracha no que está escrito. Você pode fazer o que quiser, mas ela nunca vai deixar de existir. Então melhor ter fé e aprender a lidar com as perdas. Marias de luta trazem no espírito a resiliência. Para além do nome, são Marias nos gestos e atos. Mulheres que se acostumaram a guerrear ao mesmo instante que esbanjam ternura. Seguimos. Mas seguimos cúmplices dessas histórias reais de tantas e todas Marias. 122


O anoitecer vinha cobrindo o céu com suas nuances e as primeiras estrelinhas ameaçavam surgir no alto. Era hora de seguirmos nossos rumos, mesmo que com ainda tantas outras histórias importantes dentro do assentamento. Ser jornalista tem disso, ter que saber a hora de dar o ponto final (mesmo que este seja mera simbologia). Temos apenas duas mãos e todo o sentimento do mundo, como já dizia o poeta Drummond. E falamos isso para explicar que as vidas tem uma dimensão maior que as páginas de um livro. Quem sabe no raiar de um novo dia não teremos outras guerreiras dispostas a nos contar um pouquinho de quem é e o que faz por essas bandas? Mas isso fica para outro livro... Dentro do peito carregamos muito além de entrevistas, carregamos carinho especial por cada mulher disposta a dividir suas experiências conosco. E esperamos que as nossas histórias juntas possam estar apenas começando.

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6. A Questรฃo Fundiรกria no Brasil

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No ano de 1500, os portugueses chegaram em nossas terras e durante as três primeiras décadas, a única atividade desenvolvida foi a extração de Pau-brasil. A madeira era utilizada na construção civil e naval, mas o emprego principal era na remoção de um princípio colorante denominado brasileína1, usado para tingir tecidos e fabricar tinta vermelha, com alto valor comercial na Europa. A partir de 1530, o rei de Portugal, Dom João III, delega a exploração e a colonização aos interesses privados, aplicando o sistema experimentado nas terras africanas e orientais, o regime de capitanias hereditárias. No total eram 14 distritos, partilhados em 15 lotes e repartidos entre 12 donatários. Juridicamente, seu controle se estruturava através de dois documentos: Carta de Doação2 e Carta Foral3. Foi inserido o sistema de sesmarias4, um regime de distribuição de terras que, através da doação de enormes faixas de terras, transferia ao sesmeiro apenas a posse destas, ficando responsável por cultivá-las e colonizá-las. Entretanto, este tipo de política de ocupação acabou por transmitir áreas de terras muito

1

De acordo com o Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa Michaelis, brasileína - bra·si·le·í·na, sf. Quím Substância de um vermelho muito forte que se forma pela oxidação espontânea da brasilina. 2 Estabelece os limites geográficos da capitania e proíbe o comércio das suas terras, aceitando a transferência territorial apenas por hereditariedade; regulamenta os limites das capitanias; da jurisdição civil e criminal sobre a área da capitania. 3 Fixava os direitos e deveres do capitão donatário. 4 Lei das Sesmarias, 1375.

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extensas para um pequeno número de pessoas, dando ensejo assim, ao surgimento dos latifúndios. Este tipo de distribuição de terras foi mantido até 1822. Isso ocorreu porque as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas5, que regulavam o regime de sesmaria, fizeram parte de nosso ordenamento até a Proclamação da Independência do Brasil. Durante os próximos trinta anos houve um hiato na legislação acerca do regime de terras no Brasil e a questão fundiária foi ignorada pelo legislativo nacional. Em 1850 o Império, em comum acordo com os grandes fazendeiros produtores de café, decretou a Lei de Terras6. Tinha como objetivos principais: proibir o domínio sobre as terras devolutas, legitimar a propriedade dos detentores de sesmarias não confirmadas e transformar a posse pacífica em aquisição de domínio.

Assim,

mantinha

inalterada

a

estrutura

agrária,

colaborando com a ampliação do poder dos latifundiários. 5

Foram três Ordenações Portuguesas impostas ao Brasil: Ordenações Afonsinas (vigorou de 1446 até 1514); as Ordenações Manuelinas (vigorou de 1521, até 1595); e as Ordenações Filipinas (vigorou de 1603 até 1916, sendo esta data a prescrição da matéria civil, pois a primeira Constituição do Brasil, de 1824 já revogou quase toda Ordenação Filipina). 6 Lei nº 601 de 1850. Proibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não seja o de compra. Definiu como terras devolutas “as que se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial, municipal; as que se não acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta de cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura; as que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta Lei; as que não se acharem ocupadas por posses, que apesar de não se fundarem em título legal, forem legitimadas por esta Lei (art. 3º).

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Com a Proclamação da República Brasileira, foi criada a Constituição de 18917, que versava que as terras devolutas passariam a integrar o patrimônio da União. Na prática, acabou por assegurar o controle da elite agrária sobre a máquina administrativa, política e econômica do país, por propiciar que uma pequena aristocracia permanecesse no controle das maiores propriedades. Tornaram-se frequentes os protestos a favor da elaboração de um Código Rural, que regulamentasse os problemas fundiários. Contudo, o primeiro documento que surgiu após o início dos movimentos rurícolas foi o Código Civil de 1916, que regulava relações jurídicas rurais mais relacionadas aos contratos agrários, do que efetivamente as questões de política agrária, como a redistribuição de terras. Após a redemocratização de 19458 e com o advento da industrialização, a sociedade passou a debater mais sobre a questão. Tais debates culminaram no surgimento das Ligas Camponesas no nordeste, cujo objetivo era lutar pela reforma agrária e a posse da terra. E o Governo criou a Superintendência de Reforma Agrária (Supra), primeiro órgão público a tratar do tema.

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Art. 64 Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus respectivos territórios, cabendo à União somente a porção do território que for indispensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais. 8 Em 2 de dezembro de 1945, foram realizadas eleições para a presidência da República e para a formação de uma Assembleia Nacional Constituinte. O chefe de governo era José Linhares, que assumiu em 30 de outubro, após à ação militar que depôs Getúlio Vargas e pôs fim ao Estado Novo.

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No regime militar foi criado O Estatuto da Terra, lei 4.504/64, em resposta ao clima de insatisfação no meio rural brasileiro e ao temor do governo e da elite conservadora pela eclosão de uma revolução camponesa. Tal documento esclarece o procedimento, a finalidade e como o governo deve agir para que se alcance a função social da propriedade através do eficaz uso da terra9. Com a legitimação de que a reforma agrária teria como um de seus instrumentos a desapropriação, começaram a surgir, no ordenamento jurídico, legislações que tivessem como objetivo disciplinar tal procedimento. O primeiro ato normativo que regulou esta matéria foi o decreto 554/69, que dispõe sobre desapropriação por interesse social, de imóveis rurais, para fins de reforma agrária10. Em 1970, resultando da fusão entre dois órgãos, foi criado o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), através do Decreto nº 1.110, com a missão de regularizar a situação fundiária do país e incorporar milhares de pessoas ao sistema 9

O art. 1º do estatuto conceitua reforma agrária como: conjunto de medidas que visam promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e aumento de produtividade. O parágrafo 2º do mesmo artigo, traz o conceito de Política Agrícola como sendo o conjunto de providências de amparo à propriedade da terra, que se destinem a orientar, no interesse da economia rural, as atividades agropecuárias. 10 Art. 1º A União poderá promover a desapropriação, por interesse social, de móveis rurais situados nas áreas declaradas prioritárias para fins de reforma agrária, nos termos do artigo 157 da Constituição Federal, com a redação que lhe foi dada pelo Ato Institucional nº 9 de 25 de abril de 1969. Revogado pela Lei Complementar nº 76 de 1993.

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produtivo. Àquela época, seu propósito era, além de realizar a reforma agrária, colonizar a Amazônia, oferecendo incentivos fiscais a empresas. Com a redemocratização do país, em 1984, criou-se o Decreto nº 97.766/85 que instituiu o novo Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que pretendia assentar 1,4 milhão de famílias até o final de 198911. E embora não tenha atingido o patamar pretendido, conseguiu resultados positivos. Contudo, a falta de respaldo político e a pobreza orçamentária paralisaram a reforma agrária no país. No mesmo ano, centenas de trabalhadores rurais se reuniram em 1984 no “1º Encontro Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra”, na cidade de Cascavel, no Paraná. Ali, decidiram fundar um movimento camponês nacional, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com três objetivos principais: lutar pela terra, lutar pela reforma agrária e lutar por mudanças sociais no Brasil. A Constituição Federal de 1988 traz o Capítulo III – Da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária, contendo os artigos 184 a 191. O principal instrumento para realização da Reforma Agrária é, então, a desapropriação dos imóveis que não

11

Paralelamente, a violência no campo aumentou. http://g1.globo.com/natureza/noticia/2011/06/nem-10-dos-homicidios-nocampo-desde-1985-foram-julgados-diz-cpt.html

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cumpram a função social, expostos na Constituição 12. Passou a prever a expropriação de terras e a realizar reforma agrária em fazendas que utilizassem mão de obra escrava e que não produzissem adequadamente: utilização dos recursos naturais, preservação do meio-ambiente, produção e bom uso do solo 13. Diante da generalidade do texto constitucional, foram sancionadas as Leis: n. 76/9314 e n. 8629/9315, para possibilitar a efetivação da reforma agrária e definir o Incra como órgão competente para fiscalizar o cumprimento da função social. Mas na prática ela continuou de difícil execução. Há uma discordância entre os artigos 18516 e 186 da Constituição Federal. O parágrafo único garante tratamento especial à propriedade produtiva. Diante deste dispositivo, basta a propriedade ser declarada produtiva, mesmo que 12

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. 13 Ser proprietário e possuidor de grandes terras rurais é legal. O que não é legal, por ir contra o princípio da função social da propriedade, é deixá-la improdutiva. 14 Dispõe sobre o procedimento contraditório especial, de rito sumário, para o processo de desapropriação de imóvel rural, por interesse social, para fins de reforma agrária. 15 Dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal. 16 Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária: I - a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; II - a propriedade produtiva. Parágrafo único. A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social.

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não esteja produzindo, para o imóvel não ser suscetível de desapropriação. Em 1996, a questão se tornou diretamente vinculada à Presidência da República, que criou o Ministério Extraordinário de Política Fundiária (MEPF)17. Em junho deste ano, o então ministro, Raul Jugman escreveu um artigo à Folha de São Paulo, afirmando que “a reforma agrária readquiriu projeção, situando-se no primeiro plano da atividade política e no cenário econômico-social do Brasil” e que “a meta de assentar 60 mil famílias este ano será alcançada” 18. Segundo dados do Incra, a meta foi alcançada19. No ano seguinte, 1997, as fazendas Santo Antônio da Bela Vista e São José, 1.363,5142 hectares de terra entre os municípios de Altair e Guaraci, na região de São José do Rio Preto, SP, foram consideradas não produtivas pelo Incra, que expediu um laudo de improdutividade20. Por intermédio de seus advogados, a proprietária das terras, Eunice Carvalho Diniz, entrou na justiça contestando os

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Que imediatamente se incorporou ao INCRA. Artigo de Opinião publicado em 2 de junho de 1996, no jornal Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/6/02/opiniao/8.html. 19 Dados do Incra apontam que 62.044 famílias foram assentadas em 96. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2014/01/numero-de-familiasassentadas-sobe-mas-e-menor-que-de-anos-fhc-e-lula.html. 20 O imóvel rural é considerado improdutivo quando, ao aferir sua produtividade, o órgão constatar que o imóvel não alcança os graus de exploração exigidos por lei. 18

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argumentos usados no laudo do Incra e afirmando que suas terras são produtivas e utilizadas na pecuária21. Natural de Olímpia, SP, dona Eunice nasceu em uma família humilde. Era pequena quando o pai abandonou a mãe e os oito filhos para constituir outra família. Se formou professora e trabalhou durante cinco anos dando aulas à crianças, na cidade de Cajuru, SP. Aos 24 anos casou-se com o fazendeiro José de Carvalho Diniz e mudou-se para um apartamento na Praça da República, São Paulo, onde morou por toda a vida. Depois de casada, começou a trabalhar como empresária rural. Tornou-se viúva em 1972. Em 14 de janeiro de 2000, o decreto nº 3.338 cria o "Ministério do Desenvolvimento Agrário" (MDA), órgão ao qual o INCRA foi vinculado. Três anos depois, foi revogado pelo Decreto nº 4.723/03, que manteve o nome do ministério e definiu suas competências22: reforma agrária; promoção do desenvolvimento sustentável

pelos

agricultores

familiares;

identificação,

reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombolas. “A área é produtiva e estamos questionando a avaliação do Incra judicialmente”, afirma Eunice Carvalho Diniz para o Jornal Ifolha de Olímpia. Disponível em: http://www.ifolha.com.br/print_noticia.php?id_j=5625. 22 Art. 1º O Ministério do Desenvolvimento Agrário, órgão integrante da administração direta, tem como área de competência os seguintes assuntos: I - reforma agrária; e II - promoção do desenvolvimento sustentável do segmento rural constituído pelos agricultores familiares. III - identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos. 21

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Na região das terras em disputa, há um hospital que é referência nacional no tratamento e prevenção do câncer, o Hospital do Câncer de Barretos (HCB). No início de 2002, o hospital adquiriu equipamentos e se endividou. Acordava com fornecedores e bancos uma negociação dos prazos de pagamentos e duplicatas quando Eunice Carvalho Diniz quitou a dívida de 2 milhões de reais23 e tornou-se apoiadora constante do HCB. Os imóveis de Eunice foram vistoriados novamente em 2007, e mais uma vez considerados improdutivos. Após o prazo para recurso administrativo, em maio de 2009, as fazendas foram decretadas como imóvel de interesse social para fins de reforma agrária. Conforme dados do Incra, após a assinatura do decreto, o órgão pôde ajuizar a ação reivindicatória de desapropriação. Em dezembro de 2010, 35 famílias integrantes do MST, se instalaram às margens da estrada vicinal Farid Nicolau Mauad, ao lado da fazenda Santo Antônio. O local do acampamento está cerca de 5,5 quilômetros de Guaraci, na estrada que liga o município a Altair. O grupo tentava garantir lotes na fazenda, mas o acampamento foi desmontado por ordem judicial. Desde então, grupos do MST se revezavam na vigília à área. Em novembro de 2011, o processo de desapropriação tramitava na 2ª Vara Federal de São José do Rio Preto24, quando o Incra Livro “Acima de tudo o amor. Relatos: As pessoas que fazem história no maior polo de luta contra o câncer do Brasil, Henrique Prata. 24 PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. DECISÃO LIMINAR DE JUÍZO DE 1ª INSTÂNCIA (SÃO JOSÉ DO RIO PRETO - 2ª VARA FEDERAL) QUE PROIBE O INCRA 23

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(AUTORIZADO POR DECRETO PRESIDENCIAL) DE AJUIZAR AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO DE IMÓVEL RURAL, COM IMPRODUTIVIDADE RECONHECIDA. AMPLA VIOLAÇÃO DO DIREITO CONSTITUCIONAL DE ACESSO AO PODER JUDICIÁRIO, EM DESFAVOR DA UNIÃO (INCRA). AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO, EM DECISÃO MONOCRÁTICA DO RELATOR, FULMINANDO O "DECISUM". PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO CONHECIDO COMO AGRAVO LEGAL, CUJAS ALEGAÇÕES (CERCEAMENTO DO DIREITO DE DEFESA, PORQUE A DECISÃO UNIPESSOAL PRESCINDIU DE CONTRAMINUTA - POSSIBILIDADE DO QUANTO DECIDIDO EM 1º GRAU) FICAM AFASTADAS. IMPROVIMENTO DO AGRAVO LEGAL. 1. Agravo de instrumento ajuizado pelo INCRA questionando decisão que o proibiu de ajuizar ação de desapropriação de imóvel rural improdutivo, embora autorizado por decreto presidencial. O Relator, entendendo que a decisão agravada representava flagrante ofensa contra a Constituição Federal, aplicou o artigo 557, § 1º-A, do Código de Processo Civil, para o fim de dar provimento ao agravo de instrumento, anulando, ab initio, a interlocutória recorrida. 2. "Pedido de reconsideração" conhecido como agravo legal, em favor de Eunice Carvalho Diniz. 3. Não há que se falar em cerceamento de defesa. Primeiro, porque o regramento legal tanto do agravo, quanto da faculdade capitulada no artigo 555 do Código de Processo Civil, não condiciona o julgamento unipessoal do Relator à prévia audiência do agravado; segundo, porque o § 1º do artigo 557 faculta à parte a interposição de agravo legal, no prazo de 5 dias, o que lhe possibilita contrastar a decisão. Logo, inexiste cerceamento de defesa pelo fato do Relator haver proferido decisão monocrática em sede de agravo, ab initio, sem colher contraminuta do agravado que sucumbiu. 4. Se cabe ao Poder Executivo Federal promover a reforma agrária através da ação de desapropriação de imóvel rural declarado improdutivo (artigo 184 da Constituição), onde está a base legal para uma decisão judicial que impede a União de desempenhar uma atribuição a ela conferida na Constituição? É prerrogativa da União, através do INCRA, valer-se do processo judicial para a expropriação destinada à reforma agrária, após decreto de improdutividade que tem prazo de caducidade; logo, onde está a legitimidade do Judiciário para impedir que a União compareça perante ele mesmo para cumprir seu mister, com isso fazendo com que a decisão judicial "proibitiva" provoque a caducidade do decreto (artigo 3º da LC nº 76/93)? 5. Ao obstar o acesso do INCRA ao Poder Judiciário a decisão "a qua" ofendeu o disposto no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, e até Declaração Universal de Direitos proclamada em 10/12/1948 pela ONU. 6. Sobre a matéria constitucional tratada na decisão unipessoal, mutatis mutandis, registra-se precedente do STF, verbis: "...Negar ao Município a possibilidade de executar seus créditos de pequeno valor sob o fundamento da falta de interesse econômico viola o direito de acesso à justiça" (RE 591.033, Relatora: Minª. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 17/11/2010, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-038 DIVULG 24-02-2011 PUBLIC 25-02-2011 EMENT VOL-02471-01 PP-

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depositou em juízo os valores indenizatórios previstos em lei25. No mesmo mês, 20 famílias foram deslocados pelo MST para unir forças às famílias anteriormente despejadas pela polícia. Cerca de um mês após o grupo montar acampamento na fazenda, um acidente de carro na rodovia MS 164, no interior de Mato Grosso do Sul, tirou a vida do dirigente do MST e fundador da Via Campesina Internacional26, Egídio Brunetto27. Como o acampamento ainda não tinha um nome, em assembleia os assentados decidiram homenagear o líder morto. Com o dinheiro da indenização das duas fazendas, dona Eunice apoiou a edificação de uma nova unidade do HCB em Jales, 00175). 7. Nega-se provimento ao agravo legal. (TRF-3 - AI: 30576 SP 2009.03.00.030576-6, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL JOHONSOM DI SALVO, Data de Julgamento: 17/05/2011, PRIMEIRA TURMA) 25 R$ 13.712.990,53. Destes, R$ 12.520.733,40 são referentes à terra nua, resgatados em Títulos da Dívida Agrária (TDAs), e R$ 1.192.186,19 trata-se do valor total das benfeitorias pagas em dinheiro. 26 “Via Campesina é um movimento internacional autônomo, pluralista, e multicultural, sem filiação política ou econômica, em defesa da agricultura sustentável como forma de promover a justiça social e dignidade além de se opor as multinacionais do agronegócio, que estão destruindo os bens naturais e as pessoas. Reúne hoje milhões de camponeses, pequenos agricultores, estudantes, sem-terra, povos indígenas, migrantes e trabalhadores agrícolas de todo o mundo”. Disponível em: https://feab.wordpress.com/via-campesina-emsp%C2%B4s/. 27 Filho de camponeses sem-terra, começou a trabalhar na roça ainda criança para ajudar o pai. Envolveu-se com a Pastoral da Terra, na região de Xanxerê, município de Santa Catarina. Na década de 80, foi para o Mato Grosso do Sul lutar pela Reforma Agrária e por mudanças sociais. Lá conheceu Atiliana, indígena, com quem teve o filho Giovanni Ernesto, uma homenagem ao seu pai e a Che Guevara, e a menina Anahi, uma homenagem a índia Guarani que defendeu seu povo contra os espanhóis. Contribuiu com a organização do MST em todo o país e com as lutas dos trabalhadores rurais pela terra, pela reforma agrária e por transformações sociais.

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SP. Com os 5 milhões doados, foi construído um Centro Cirúrgico, 10 leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e 30 de internação, sendo seis para crianças e 24 para adultos. No ano seguinte, doou 1 milhão de reais para a restauração da Paróquia Nossa Senhora da Consolação, em São Paulo 28. Em 2015 o Incra/SP conseguiu a posse das terras, que têm capacidade para assentar 80 famílias, e iniciou o processo de seleção das pessoas acampadas nas redondezas das duas fazendas, candidatas a beneficiárias de reforma agrária. Para ser considerado assentado e ter direito à terra, é necessário que o candidato prove que é trabalhador rural, não seja aposentado urbano e resida na região do assentamento há pelo menos dois anos. Em 2016, o presidente em exercício Michel Temer transferiu, por meio do decreto Nº 8.780, a administração das cinco pastas responsáveis pelas políticas de reforma agrária do governo federal e o Incra para a Casa Civil, comandada pelo ministro Eliseu Padilha. No mesmo ano, o Incra criou oficialmente o assentamento e em parceria com as prefeituras de Altair e Guaraci, 85 famílias foram inscritas no Cadastro Único do governo federal, um dos critérios para acesso à terra e então alocadas nos lotes. E em novembro, dona Eunice29 morreu aos 90 anos de idade, com Livro “Acima de tudo o amor. Relatos: As pessoas que fazem história no maior polo de luta contra o câncer do Brasil, Henrique Prata. 29 Foi considerada a maior colaboradora pessoa física no HC de Barretos, construiu o Hospital dos Olhos de Olímpia, colaborava com diversas entidades assistenciais, destacam-se as doações que há anos fazia em prol da APAE, Abrigo São José, Santa Casa de Olímpia, entre outras. 28

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falência múltipla dos órgãos. Não deixou filhos, mas duas irmãs e muitos sobrinhos. De acordo com o Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), “todos os assentamentos do Estado são atendidos por equipes do Itesp compostas por engenheiros agrônomos, técnicos agrícolas, veterinários, zootecnistas e assistentes sociais. Recebem cursos de capacitação em diversas atividades que compõem um modelo de desenvolvimento sustentável, com geração de emprego e renda. O Itesp elabora os projetos técnicos para obtenção de crédito do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e do Fundo de Expansão da Agropecuária Paulista (Feap). Em 2018, as famílias assentadas no Egídio Brunetto não foram homologadas30 e não receberam o título de domínio 31 o que, além de não lhes garantir a posse definitiva do lote, dificulta a obtenção de créditos. Alegam que nunca receberam a visita de engenheiros, técnicos, veterinários e zootecnistas. O único apoio são dos assistentes sociais do Núcleo de Apoio à Reforma Agrária (NARA), que fazem visitas frequentes ao acampamento.

Segundo o Incra, “Homologação é o ato formal de aprovação do candidato. Os nomes dos candidatos são divulgados pelo Incra no documento chamado Relação de Beneficiários (RB)”. Disponível em: http://www.incra.gov.br/acessoterra. 31 De acordo com o Itesp, “documento que garante a posse definitiva do imóvel ao seu ocupante”. Disponível em: http://www.itesp.sp.gov.br/br/info/instituicao/faq.aspx#perg8. 30

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