edifício almeida

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edifĂ­cio almeida clarissa mohany



clarissa mohany

edifício almeida trabalho final de graduação apresentado à coordenação da escola da cidade como requisito para a conclusão do curso de arquitetura e urbanismo.

orientadora: joana barossi

são paulo 2018


GRAZIANO, Clarissa Mohany de Almeida Edifício Almeida / Clarissa Mohany de Almeida Graziano. São Paulo: Escola da Cidade, 2018. 163 p. 1. arquitetura 2. narrativas 3. memórias 4. São Paulo 5. Mooca I. GRAZIANO, Clarissa Mohany de Almeida II. Título



Agradeço aos meu pais, Cida e Romeo, por seis anos de companheirismos em noites mal dormidas e uma vida de dedicação. A minha avó Irma, por sua excelente memória e meu avô Leandro pela herança do desejo em fazer um trabalho bem feito, pelo simples prazer da coisa benfeita. Aos meu tios Aurea e Manoel, por me incentivarem na profissão que agora compartilhamos. A Instituição Escola da Cidade, pela formação acadêmica e social, pelos anos de aprendizagem e por me abrir horizontes. A todos os amigos e colegas que direta ou indiretamente contribuíram com meu crescimento profissional e pessoal. A minha orientadora Joana Barossi - e Leonora (6 meses) - por aceitar viajar comigo sessenta anos no tempo, pelo carinho e motivação, por me dedicarem suas quartas-feiras na hora do leite. A todos os professores que participaram da minha formação e agregaram este trabalho. Agradeço a todos aqueles que apreciam uma boa história e fazem parte das minhas memórias.


Em memória de Leandro Gonçalves de Almeida

“A memória é a alma da própria alma, ou seja, a conservação do espírito pelo espírito”. Ecléa Bosi

“Habitar um quarto, o que é isso? Habitar um lugar é apropriar-se dele? A partir de quando um lugar se torna verdadeiramente seu?” Georges Perec


O trabalho se constrói ao redor de lembranças afetivas e fragmentadas que aos poucos erguem, aos olhos do leitor, um edifício construído por meu avô - artífice, construtor e autodidata - no bairro da Mooca. Revisito de maneira poética e gráfica o edifício que abrigou parte da minha família e, logo, parte da minha infância, trabalhando uma narrativa particular a partir de minha memória infantil e relação com o edifício – acrescida de pesquisa, bibliografia, entrevistas e resgate imagético. Meu objeto de estudo se confunde entre a figura de meu avô e a obra arquitetônica construída por ele, mesclando a altura dos olhos da criança que fui e o olhar analítico da arquiteta que sou.


personagens

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o prédio

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projeto completo

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cone da memória

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oratório, 1897 ap.01

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leandrinho na janela

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artur na garagem

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mickey no quintal

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cida na cozinha

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leandro no bar

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arthurzinho na sala

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memória plantada

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apartamento 05

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edifício almeida

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outras obras mooca

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ficha de imagens

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bibliografia

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Filho de português, vô Leandro nasceu em Guanhães-MG, na fazenda Gonçalves. Seu pai José chegou ainda pequeno com seu pai, também Leandro Gonçalves, que tinha como ofício restaurar igrejas. José, viúvo com sete filhos, casou-se com Augusta, nasceram vô Leandro e mais seis - dos quais lembro-me apenas de Célia e Carmem. Ainda menino construiu uma pequena casinha de pau-a-pique para brincar com os irmãos na fazenda.

minha avó Irma, costureita, cozinheira, dona de casa e contadora de histórias.

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— Chique sua mãe não? — Você que fez esse vestido? — Parece que foi, não sei, não lembro. — Era piquet. — Era piquet? então foi!

minha mãe Cida

— O Leandrinho veio morar com a gente quando ele tinha 7 anos. Quando ele nasceu meu irmão falou “ele vai ter o nome de uma pessoa muito especial” Quem diria que ele ia acabar sendo nosso filho em?

meus tios Artur e tia Eliane com Leandrinho e Arthurzinho, filhos do tio Paulo irmão da vó Irma

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meu pai Romeo e minha irmã Nayara

minha mãe, meu irmão Daniel e Kuki I

Mickey, o pequinês da minha mãe

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o prĂŠdio



Se o avô estivesse aqui teria 97 anos agora. Depois que ele veio pra cá nunca mais quis sair. Que ano ele veio? Isso eu não sei, nunca perguntei direito, só sei que ele veio pro Alto da Mooca, me conheceu e vocês tão aí! Ele saiu de Minas novinho, acho que tinha uns dezoito anos, serviu o exército e foi trabalhar com minério de ferro e na mina de ouro, até chegar no Rio de Janeiro. Depois resolveu vir pra São Paulo, ele e um amigo, se não desse certo, voltariam pra Belo Horizonte. Aprendeu a desenhar sozinho, foi comprando as folhas, as réguas... o Dr. Zannon, que era engenheiro da prefeitura, que assinava os documentos pra ele, e com o tempo ficaram amigos. Quando seu vô precisava aprovar uma planta ele falava: “olha lá Leandro, vou confiar em você viu?”. Nunca caiu nada, graças a Deus. Era considerado um dos melhores pedreiros que tinha por aqui, uma pessoa pra quem se podia dar qualquer serviço na mão sem falar mais nada. Muito sério, muito trabalhador. E a primeira casa que ele fez, com um engenheiro junto, né, foi a casa do meu pai. Quando começou a trabalhar numa companhia chamada Varella, o gerente indicou ele para o meu pai, que era encanador e queria construir uma casa ali na rua Madre de Deus. O Seu Rubens falou assim: “você faz a casa, mas eu vou te mandar aquele pedreiro, que é o melhor que eu tenho”. Eu trabalhava numa fábrica na rua Cassandoca, a Santa Luzia, aí a fábrica fechou e meu pai falou que eu não precisava mais trabalhar, pra ficar em casa ajudando. Um dia eu passei na Fernando Falcão, logo na esquina onde hoje tem uma loja de bolo, e o Leandro tava lá. Ele gostava de tocar gaita, o pessoal ficava tudo em volta. Aí ele disse pro meu irmão:

— Eu vou casar com essa menina! — Fique sabendo que ela é minha irmã e ela namora.

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— Pode ser tua irmã, mas ainda não casou. Minha mãe me mandava lá na obra de tarde levar café pra eles. Seu vô falava assim: “nossa, que bolo gostoso, sua mãe que fez?” Daí um dia eu fiz um bolo de queijo, justo pro mineiro! Só faltava o chapéuzinho vermelho, eu chegava com a cesta, com o bule... e ficava esperando eles terminarem pra levar tudo embora. Eu aprendi a fazer aquele bolo e nunca mais fiz igual. Meu namorado não tinha ciúmes, todo mundo gostava do seu avô. Quando a obra ficou pronta e o Leandro ficou amigo do meu pai, ele vinha muito lá em casa. Eu mal sabia que ele gostava de mim. Nos casamos em 1951 e depois ele trouxe a família dele pra cá. Sabe ali na rua Sebastião Preto, 179? A gente morava de aluguel, ele inventou de fazer uma pequena fábrica de granito, mas não deu certo. Era uma casa bonitinha, mas a gente já tava com aluguel mais de 3 meses atrasado. O sócio roubou dinheiro dele e ele já tava com problema na coluna... Naquele tempo, quando você queria vender uma casa, anunciava no jornal, no Diário Popular. E um homem que tinha vindo da Espanha viu aquele anúncio e veio ver a fábrica, que era justamente o que ele precisava! Ele trabalhava com granito e ficou com a casa. Depois que vendemos a fábrica, fomos morar no meu pai. No mesmo dia chegou o Demétrio, um velho conhecido nosso, que queria que o Leandro fizesse um sobrado ali na rua Oratório. Teu avô sabia fazer orçamento muito bem, tudo direitinho, mas quase que não sabia escrever, eu que escrevia pra ele. Aí o Seu Curti, um amigo do Demétrio falou “ah, você tá falando tão bem desse moço, acho que vou dar meu sobrado pra ele fazer”. O homem morava na Bixira e queria um sobrado parecido com o que seu avô tinha feito pro Demétrio. Então o Seu Curti disse assim: “vamos fazer uma coisa? Eu tenho uma casinha velha pra vender, tô pedindo 400 mil cruzeiros, se você fizer a minha casa, a casinha velha entra no negócio”. E foi assim que a gente comprou aqui.

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O Seu Davidão, que tinha um palacete em Santos e vivia lá e cá, morava perto e sabia o que todo mundo tava fazendo. Ficou conhecendo o Leandro e foi dando tanto serviço pra ele que até comprou uma caminhonete pra ajudar ele a trabalhar. Quando soube que teu avô queria construir um prédio aqui, pediu o orçamento e disse que emprestava o dinheiro. Foram 2 milhões. Seu Davidão dizia: “o que eu tô fazendo por você nem um pai faz pra um filho”. Quando inaugurava o telhado, costumava dar uma festa pros empregados, pra família... Eu não sei nem quantos pernis eu assei! Aí botava uma arvorezinha em cima do telhado pra mostrar que tava pronto. Você olhava já e sabia. O pessoal falava: “o cara mal chegou de Minas e já tá fazendo um prédio”. Quem diria? Ficou famoso, todo mundo conhecia ele, já pensou? Uma pessoa que não sabe ler nem escrever... Ele ia na escola, mas não conseguia aprender. Como pode alguém fazer uma coisa dessas, tão difícil, sozinho? Ele foi um grande homem mesmo.

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cone da memรณria



Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, ”descola” estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora. (BOSI, 2003, p.36).

Dia 30 de julho encontrei, no guarda-roupas do quartinho da frente da casa da minha avó, uma caixa com centenas de slides. Eu já teria visto esta caixa outras tantas vezes, mas agora, com outros olhos, mergulhei nas memórias familiares. Como no “cone da memória” de Henri Bergson, interpretado por Ecléa Bosi em O tempo vivo da memória, encontrei o fio - ou o cone – condutor que me levou ao passado, formalizando para mim o sentido deste trabalho.

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A partir desta janela para o passado, sobreposta ao edifício que ainda existe e às pessoas que ainda podem contar essa história, passei a refletir. Como erguer nestas páginas o espaço de um edifício? O espaço de um edifício construído por meu avô, habitado por minha família e experienciado por mim? Como desenhar uma arquitetura que se funde ao convívio familiar, à figura de meu avô, de minha avó, de minha mãe? Como contar a memória infantil, tão inspirada pela presença de alguns objetos, fotos, anedotas? Decidi não contar sozinha. Impensável não mesclar as memórias infantis da pequena Clarissa com o olhar da arquiteta que estou me formando. Inconcebível contar as memórias desse edifício sem a ajuda de pessoas que lá viveram. Assim, recorri a outras personagens, e dei voz as falas que complementam minhas memórias. Em meio a fotos de viagens, casamentos e bodas, selecionei retratos e procurei todas as fotos tiradas no prédio construído por meu avô. Guardei. No domingo seguinte voltei ao prédio com o projetor de slides e o carrossel com as fotos selecionadas. Luzes apagadas, chamei vó Irma para assistir a uma sessão. — Que gozado, o cachorrinho tá parado. — Tá parado porque não é vídeo, é foto, vó. — Cada fora né? Faz tempo que eu não ria assim. — Cê gosta de ir ao cinema? — A coisa que as pessoas mais gostavam era cinema. — Você ia muito? — Muito, muito, não. Mas ia bastante. Sentada na sala da sua casa - ap. 01 do Edifício Almeida - vó Irma assiste e comenta cada foto que selecionei com imagens do prédio. O estímulo provocado no presente – de onde parte o chamado ao qual a lembrança responde – pelo ato de observar estes slides, alarga sua percepção e permite que as lembranças acumuladas no passado venham à tona.

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“O espaço profundo e cumulativo da memória se estreita e penetra no real”¹, trazendo para o presente uma mistura entre o passado e as percepções - embora “na realidade, não haja percepção que não esteja impregnada de lembranças”.²

passado

lembranças

presente

percepção

“Na base estariam as lembranças que “descem” para o presente, no vértice estariam os atos perceptuais que se cumprem no plano do presente e deixam passar as lembranças”. (BOSI, 2003, p.38).

1. BOSI, 2003, p.40 2. BOSI, 2003, p.36 apud BERGSON, 1959, p.183. . 39 .



edifĂ­cio almeida oratĂłrio, 1897 ap.01

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leandrinho na janela



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— É o tio Leandro vó? — Não... — É sim mãe! Ele cresceu demais! Olha essa calça. — Mas quem é esse homem aí? — O Leandro! — Ah, o Leandrinho! A veneziana era verde, era bonito esse prédio. A gente lavava as janelas... tá vendo as pedras que limpinhas? Olha o prédio lá de baixo. Essa rua era bonitinha, era duas mãos e ali era a casa da Magda, depois já era uma casa que o vovô fez. Aqui a da Guiomar, a da Renata, depois a do João. Bem em frente a casa do Décio, a casa da amiga da mamãe que fazia óleo essencial, lá embaixo o velhinho que vendia frango assado aos domingos e na esquina o salão da Neusa. Um pouco pra baixo ficava uma casinha que tinha uma alça de metal grudada no chão, bem na porta, pra tirar o barro dos sapatos. Sempre achei que era a alça de uma maleta que ficou presa. Tropecei muito naquele lugar. Aqui na frente era a Sabesp. Tinha uns pinheiros e às vezes o pessoal ia jogar vôlei lá. Era tudo aberto, não tinha muro. Ali pousavam aqueles aviões pequenos. Olha que carrão bonito! E o vestidinho dela que gracinha!? Esse casarão que ficava ali embaixo era de um ator da Globo, a mãe dele ficava lavando a louça. Tinha galinha e cachorro, eram os zeladores da caixa d’água. Vovô levava a gente passear pela rua. Atravessava na esquina, “oi seu Otávio!” e passávamos no bar do Toninho pra pegar torresmo. Cruzávamos a rua Oratório, fazíamos uma parada na lotérica. Depois um sorvete. Sempre a mesma conversa:

— Olha minhas netas! — Nossa, como estão grandes.

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Isso é pedra mineira sabia? Olha como são bonitas! Nessa época ninguém fazia isso, ficar pichando... estragaram a fachada toda! Mamãe encostava o carro, nós descíamos. Vovô aparecia na janela: “Caissinha, Nayarinha!” E, rapidamente, estávamos as duas tentando nos pendurar nas grades e alcançar a janela. Eles adoravam ficar na lá olhando a rua, falando com as pessoas... Quase sempre passava alguém que chamava pra dar um oi. Às vezes tava na sala e ouvia alguém chamar “Dona Irma!, Seu Leandro!”. Eu olhava pela janela e via só os olhinhos do moço com o carrinho vendendo alho e mandioca. Lá fora sempre apareciam cabeças ou mãozinhas acenando. Todas as janelas, menos o vitrô da cozinha, tinham uma grade branca de ferro. Gostava em especial da que tinha na janela da sala. Alta, larga... eu cabia direitinho entre a grade e o vidro. O Kuki também. Na hora de ir embora vô e vó voltavam para janela e a gente ficava dando tchau até se perder de vista.

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artur na garagem



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Seu tio era um doido, viu? Era cada uma que ele aprontava... uma vez ele queria pegar o carro pra sair com um amigo e o pai dele falou que não tinha nada que sair de carro naquele dia. Quando foi de madrugada, e eu sempre acordava com falta de ar, abri a janela pra respirar e vinha vindo um carro. Sabe quem era? Ele, seu tio, claro! Aí o avô foi lá e disse: “põe o carro pra dentro, amanhã nós vamos conversar.” E deu um puta de um pega nele! Mas não era só ele não, vários amigos dele pegavam o carro do pai, do tio, e iam passear. Olha só o perigo? Quando a garagem não guardava mais o Santana preto do vovô - que ainda chegamos a passear um pouco - ou não abrigava uma festa, ela era a oficina do vovô. A gente chegava na casa e corria pra pegar o controle da porta da garagem que ficava escondido - em cima do altar - e ir xeretar as ferramentas do vô. Ele passava horas lá dentro inventando coisas. Tinham vezes que a porta ficava aberta pra rua, todo mundo passava e ele tava lá. Ele era o professor pardal. Tava sempre inventando alguma coisa. Às vezes ele passava a noite lá na prancheta. Quando fez a casa, ele colocou uma caixinha de rádio lá no banheiro, cabia direitinho no espaço de um azulejo, pra ligar tinha que ir lá atrás do bar. Vó Helena, depois de operar a perna pela segunda vez, não podia subir as escadas. Vô Leandro logo arranjou uma solução, pegou uma das cadeiras da cozinha, pregou duas tábuas de madeira nas laterais e por vários dias ela foi carregada como uma egípcia até o apartamento 04. Sua última engenhoca foi uma escrivaninha de dois lugares, um para mim, outro para minha irmã, Nayara. Era branca, maciça e pesada, com espaço pro material escolar embaixo, duas gavetas, banquinhos e um tampo de lousa verde que inclinava e virava uma prancheta.

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A gente tinha uma perua, a Veraneio, “nóis” era rico! Só que eu nunca dirigi, grande assim, eu não tinha coragem. Cabiam parece que nove pessoas. Comprou zerinho pra gente ir pra Minas. Colocou bagageiro, mala, sanfona, tudo lá em cima e fomos.

— Precisava ver o número da chapa mãe! — Ainda ganho no bicho. Vou comprar um bilhete! — Eu não consigo ler... 23 00 25? — Anota! A caneta tá lá na cozinha.

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mickey no quintal



Olha o meu Mickey. ô Mickey... o coitadinho morreu... eu levei ele embrulhado no lençol. Tem que ver que bonitinho que ele era. Nós temos uma fotografia dele, não sei nem quanto tempo ela ficou na vitrine ali na Rua da Mooca, de tão linda! Eu que fiz a roupinha da menina, tirei da revista! A gente não trancava o portão, as pessoas chegavam e batiam palma. Não tinha tanto bandido ainda, tava começando, tanto é que aquele entrou por aí... Depois eles aumentaram o muro, aqui você consegue ver como era o portãozinho. Olha a telinha que a gente colocou pro Kuki não escapar. Olha o piso de caquinho... A vó Aurea encerava, nossa como encerava! Quando ia lavar o quintal, sabe o que a gente fazia? Passava sabão e ficava escorregando, dava impulso e ia de joelho até bater ali. O quintal era um verdadeiro parque de diversões, onde vô Leandro era o construtor, dono e funcionário. Um par de balanços cor de laranja amarrados no telhado que ele se revezava para empurrar minha irmã e eu. Um escorregador rosa de pedrinhas, de difícil acesso e estranhamente colocado ao lado da escada, onde eu me pendurava e vovó pendurava toalhas. A descida era curta, lenta e dolorosa, me levava até o final da escada, onde vó Irma tinha um grande vaso de flores vermelhas, chamadas Antúrios, que pareciam de plástico. Nos dias de calor vovô montava a piscina azul ou transformava o parque em restaurante. Tio Artur comandava a churrasqueira:

— Quem quer picanha? — Passa o “toicinho” de porco.

Quem se divertia mesmo era o Kukinho, que passava de um lado pro outro em busca de um pedaço de carne. Suas melhores e mais fartas férias, foram na casa do vovô, onde comia comida de gente e passeava todas as tardes. Ele adorava cachorro, dizem que ensinou Mickey a sentar e Kuki a falar “tonyu”.

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O Artur ficava louco atrás de cachorro, ele gostava! Mas quem cuidava era eu. Uma vez ele bateu o carro do amigo subindo pra Paes de Barros, aí ele, muito inocente, saiu para telefonar pro amigo e, quando voltou, o homem tinha ido embora e deixado um cachorrinho. O que ele ia fazer? Pegou o cachorrinho, colocou no carro e trouxe pra casa. Ele chegou quietinho, não falou nada. Escutei um barulho no quintal, levantei, era o cachorro que queria sair. Eu falei “Artur!, quem mandou trazer esse cachorro?” Eu dava pros outros, eu não queria cachorro aqui. Atrás do portão de entrada, uma pequena porta branca com janelas de vidro: o porão - ou casinha de boneca. Eu adoraria montar uma casa lá, igual a que mamãe conta que vô Leandro fez para ela - e que eu nunca vi, mas imaginava ela toda na minha cabeça. O armário a esquerda, o sofá com a mesa para o chá nos fundos. Cortina branca de renda nas janelinhas. Olhando da rua , pareciam próximas do chão. — Quando você montou a casinha no porão? — Ah, essa época já brincava com a Aurea e a Maria José, colocava todo mundo lá dentro. A Aurinha era brava, ela só queria se agarrar na Neide. O meu pai falou “só tem Arthur! Essa menina vai chamar Aurea”. Ela não gostava do nome. Quando o Artur nasceu o Leandro quis colocar o nome do meu pai, eu fiquei tão feliz! Aí registrou sem o “h”... Quando ele era pequeno falava que queria mudar o nome pra ficar igual ao do avô. Os almoços no quintal eram a maior festa. Todos lá fora. Vó Irma debruçada no alto da escada com a travessa de macarronada na mão. “olha, alguém pega isso aqui?” A comida na mesa. O portão aberto. Papai resolvia lavar o carro “posso ajudar?” Gustavinho queria tirar as pichações da parede “se esfregar bem eu acho que sai!” Mamãe chamava pra comer a sobremesa:

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— Fechou o portão? — Fechei — Cadê o Kuki? — Acho que esqueci lá fora! — Achei! ta embaixo da mesa.

Mamãe trazia a sanfona e tocava Beijinho-Doce, a música que vô Leandro cantou pra vó Irma na roda-gigante. Às vezes ele acompanhava com a gaita, outras com as colheres.

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cida na cozinha



Olha a Cida que xereta! O que ela tava fazendo ali? Ai como esse fogão era bom! O chão era de granito rosa e tinha uma muretinha que vinha até aqui, um pequeno balcão que a gente punha uns vasinhos. Minha geladeira era bonita, importada, custou não sei quanto... ai que geladeira linda! Durou 37 anos, era verde. Se você visse as comidas que a gente fazia, cada bife... Eu forrava o chão todo de jornal pra gordura não sujar, mas fazia cada bife... Quando cozinhava, vovó se fechava do outro lado da cozinha, correndo as grandes portas de vidro para o cheiro não escapar. A vela acesa ao lado do filtro de barro, o feijão com pedacinhos de linguiça na panela, o forno elétrico assando algo que cheirava bem... “tá pronto!”. As portas se abriam, e lá vinha ela. Avental na cintura, o lencinho tricotado que escondia os cabelos enrolados com bobes “abre espaço, tá quente!”. Puxei o vovô e o cheiro do peixe me incomodava. Preferia o bife com uma bolinha de manteiga e ervas em cima, de vez em quando me esforçava só pra poder comer nos pratos com formato de peixe. Exceto em duas grandes ocasiões do ano, quando vô Leandro preparava as deliciosas almôndegas para dar de presente aos seus médicos, e quando passava horas, dias, fazendo o curau de milho verde, quem comandava a cozinha era vó Irma. Famosa por suas costelinhas de porco, ela sabia agradar não só o mineiro mas a família toda. A cozinha sempre foi lugar de se reunir: nos almoços do meio de semana - quando éramos poucos e todos podiam sentar em seu lugar na mesa: vô Leandro na ponta, eu à sua direita, Nayara à sua esquerda, papai do meu lado, vovó e mamãe buscavam sempre o lugar mais próximas do fogão -, nos lanchinhos da tarde no domingo - quando tia Bete, tio Leandro e as meninas chegavam com pães e doces da padaria Jupan -, e nas festas de aniversário que enchiam a cozinha.

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— Tem que abrir a mesa, ou não vai caber todo mundo — Os pequenos comem no quartinho, na mesinha E assim nós éramos deslocados para o antigo escritório do vovô. A mesa ficava próxima o bastante para que nos observassem, mas longe o suficiente para que pudéssemos escapar quando terminássemos de comer – evitando os contorcionismos habituais para sair por baixo da mesa da cozinha. Depois do almoço o quartinho se transformava em sala de jogos, apostávamos feijões.

— Dois patinhos na lagoa — A idade de cristo — Bingo!

Aos domingos, quando raramente dormíamos lá, tomávamos o café da manhã nesse cômodo. A mesa de madeira, com quatro cadeiras de coração, era perfeita para nós quatro. Vó Irma abria as venezianas, ia até a cozinha e voltava com ovos cozidos, bem molinhos, para comer na xicrinha. Próximo do almoço íamos à feira comprar verduras, frutas e comer pastéis. Esse forninho elétrico é muito bom, tá com a gente tem bastante tempo. Eu tinha um outro, menor, mas um dia eu e o vô passamos em uma loja, eu vi esse e ele falou “vamos comprar”. Chegou em casa ele era tão grande... não tinha nem onde colocar. Mas é muito bom, assa que é uma beleza. Quanta coisa boa a gente já fez aí, não? E o biscoito da Bisa, hum... Qualquer dia vou te ensinar a fazer aquele pão de forma que eu faço, é muito fácil. Eu peguei a receita numa revista lá na Neusa Cabeleireira. Os armários amarelos - do mesmo tom do azulejo de florzinhas da parede - deixavam a cozinha inteira com um filtro de luz amarelado no final da tarde, quando a gente chegava da natação para o lanchinho, e trazia bolo de caçarola e broas de fubá - os preferidos do vovô. O chá de erva-doce também não podia faltar. Lembro de um inverno, quando vô Leandro inventou um

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dispositivo de madeira que segurava uma panelinha bordô de metal, embaixo uma vela. Passamos dias sentados nas cadeiras de madeira, trançadas de palha, envolta do novo brinquedo, derretendo pequenos pedaços de queijo. Às vezes a cozinha era tomada por tia Carmem, que vinha fazer uma visita e preparava deliciosas coxinhas e docinhos de coco. Um dia trouxe do sítio duas galinhas, que viveram por pouco tempo no quintal. Depois não me lembro mais. Uma vez, em Ilhabela, uma mulher pediu uma carona pro seu avô, “sobre ai”, ele disse. Passou uma semana ela veio com uma galinha de presente e ele trouxe pra casa. Ela tava maaagra. Deixou lá na lavanderia, que era bonita e bem arrumada. A galinha subiu e deixou cair uma coisa. Eu peguei ela, puxei o pescoço e matei! Quando ele chegou... Ele também era bem doido o seu avô, doido mesmo! Ele mandou fazer uma gaiola desse tamanho, assim de alta, ia pendurar na parede perto de onde tá a pia e botar a galinha ali. Lá não era lugar de galinha! Eu fiquei com tanta raiva que puxei o pescoço dela! Onde já se viu prender a galinha? Ele perguntou dela quando chegou e eu falei “ah, a galinha, o Paulo meu irmão levou para um terreno”, mas a galinha já tava num saquinho plástico dentro da geladeira. Ele achou que era verdade. De vez em quando ele falava assim, “será que a galinha tá engordando?” Eu dizia que não sabia. Um dia ele perguntou dela e eu falei “a galinha você já comeu Leandro”. Ele ficou quieto, não falou nada...mas ele aprontava cada uma também!

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leandro no bar



Tinha um bar! Você tem que ver que bonito que era... todo revestido com eucatex nas paredes e fórmica azulzinha na bancada. O mais bonito de todos foi aquele. Tinha as garrafas tudo pra cá, a porta não era ali, era mais pra lá, com as prateleiras de vidro... E aqui era uma cristaleira, tinha me esquecido completamente dela! Tinha até uma luzinha. O bar era em forma de um arco, o vô abria a porta de trás e entrava por baixo. As garrafas ficavam dentro. A pessoa puxava a banquetinha que ficava guardada embaixo e sentava. Seu avô ficava lá dentro servindo. Não conheci o bar, quando nasci já tinha sido substituído pelo painel de madeira que escondia as escadas, e exibia as fotografias dos netos, a coleção de enciclopédias e guardava as louças da vovó - inclusive os pratos de peixe. O quadro de madeira com a imagem de uma vila medieval - feito pela tia Marlene - ficava perto da cozinha, ao lado do interfone, e cobria o quadro de luz. Eu ficava muito tempo olhando e me perdendo naquela vila de madeira em miniatura. Do outro lado, um grande quadro com uma torre de relógio, que depois deu lugar ao cuco. Quando o teu avô comprava um presente pra mim, ele comprava um igualzinho pra tia Neide. Quando comprava um relógio, ele comprava três, quatro, pra dar de presente. Ele abraçava nós duas! Ela gostava do dele... como gostava! — Eu lembro do vô arrumando o cuco. — É mesmo! Não tive sorte com esse relógio, não canta. Vi várias vezes, Vô Leandro em cima da escadinha cutucando o relógio pro cuco voltar a funcionar. O danado do passarinho até chegava a sair da casinha algumas vezes, mas não demorava muito para se esconder e não sair mais. Em 2007 foi a última vez que vi ele se preocupar com o cuco, Vô Leandro morreu naquela noite, em 10 de junho de 2007. Depois vovó o substituiu definitivamente pelo quadro das bodas de 50 anos.

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Esse foi o último pedaço do apartamento que mativeram com o piso de pastilhinhas em formato de colmeia coloridas, em tom pastel. No fundo, embaixo da escada, o buraco que guardava um monstro e o aspirador de pó. Dentro, atrás das fotografias, os sapatos enfileirados lado a lado. No alto, longe do nosso alcance, um pequeno altar. Aqui embaixo era um jardinzinho e acho que aquela estante era aqui, e ali o aquário que a noite dava pra ver do meu quarto. Ele ficava embutido, teu avô colocou ele do lado de lá, com o espelho e o vidro pra cá. Era bonita essa sala, a criançada vinha e sentava embaixo dele. Passavam uns moços aí e diziam: “ai dona Irma, posso entrar? tô com uma saudade daquele aquário com os bichinhos...” ficava tudo contente!

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arthurzinho na sala



O avô foi fazer uma fábrica pra um amigão nosso - uma fábrica de televisão - e o dono da fábrica mandou uma televisão de presente pra gente. Eu tinha saído, quando vinha voltando vi uma caminhonete parada aqui em frente. Ele deu uma pra gente de presente. Mandou até a mesinha! Era uma caixa desse tamanho de fundura, bem linda a madeira, quadrada assim. Colocava no canto, era moda. Os meninos dessa rua vinham tudo correndo pra assistir televisão aqui em casa. Depois do almoço deitávamos na sala para ver sessão da tarde e a novela das seis, quando vô Leandro não estava assistindo seu seriado de cowboy americano. Aos domingos não cabíamos todos na sala - sem chance de deitar. Vovô gostava de nos colocar no colo e cantar “serra, serra, serrador, serra o papo do vovô”. Assistimos o Brasil ser campeão na copa de 2005 ali. Uma das minhas primeiras memórias é na sala da casa dos meus avós. O sofá na frente da janela, eu escondida atrás surpreendendo alguém que estava sentado e que fingia se assustar. No teto um ventilador de madeira, com a mesma palhinha das cadeiras da cozinha, e duas correntinhas que mudavam a velocidade e que eu nunca alcancei. Uma mesa de centro com tampo de vidro onde vivíamos debruçados. O cavalinho de porcelana branco da vovó de um lado pro outro. — Cadê seu cavalinho? — Acho que quebrou, mas agora você fez bem de me lembrar, porque eu vou comprar um cavalinho, não de verdade, claro. Eu sempre gostei de cavalos, sou fã! Meu avô tratava dos cavalos. Eu não sabia, quando cresci minha mãe me contou que ele trabalhava no Hipódromo. Durante a Revolução de 1924, dos mineiros contra os paulistas, o pessoal que fugiu se escondeu lá dentro do Hipódromo. Meu avô e o amigo acharam que tava tudo muito quieto, que tinha acabado. Quando olharam do portão, os mineiros estavam

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lá em cima, onde hoje é o supermercado Extra, e atiraram neles! Ele morreu ali, sem saber nada. Eles entravam nas casas e pegavam tudo que tinha. A minha mãe ficou sem pai e viu tudo isso. Então eles não gostavam de mineiro. E eu fui namorar logo com um! Esse negócio aí acho que era um sofá marrom. Era bonita essa sala, agora ficou muito feia. Tá feia demais. Ela já mudou várias vezes. Quando a casa ficou pronta, tinha um sofá laranja, salmão, todo de gomos, era assim ó, ia ali e fazia a curva. E duas poltronas pequenas, uma azul que ficava aqui e outra salmão lá. Como todos os velhinhos, os dois gostavam de dormir a tarde e sempre tentavam nos levar junto. Deitávamos, Nayara e eu no meio dos dois. Vó Irma puxava o cobertor paraíba xadrez e acendia o abajur só com um toque em cima, bem na pontinha. Começava o mexe-mexe, eu não queria dormir. Escorregava pra baixo, assim que ouvia o primeiro suspiro deles, e fugia para sala. Minutos depois o sininho tocava, era um dos dois que chamava no quarto. Vó Irma pedia uma massagem e as meias no pé. Na penteadeira - na frente do espelho com fotos dos netos - escolhia um frasco de creme, puxava o banquinho de crochê e sentava no pé da cama. Para me fazer dormir, só no quartinho da frente. De tarde, o sol que batia na cortina deixava o quarto todo azul. Aquela cortina me dava um sono... Na casinha que tinha aqui, sabe o quarto lá da frente? Era um jardim. Só mineiro pra fazer isso mesmo, sabe o que seu avô plantou? Rabanete, tomate... a couve crescia desse tamanho! O vizinho aí do lado e falava “oxa Seu Leandro!” Olha, podia se falar que a nossa casa, daqui da rua, era a mais bonita. Ele era muito caprichoso.

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edifĂ­cio almeida apartamento 05

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clarissa no ap.05



Em setembro ocupei o apartamento 05 no segundo andar, desocupado há um ano e meio. Bastou um pouco de massa corrida, duas latas de tinta branca e três longos dias para que o apartamento ficasse habitável novamente. Papai, que tem apenas meu quarto e nosso banheiro no seu currículo de pintor, me ajudou na empreitada. Começamos tampando os cinquenta buracos de pregos deixados pela última moradora. Depois pintamos as esquinas, rodapés e gesso do teto. Doze horas depois tínhamos quatro paredes e meio teto pintados. “Engraçado, por que será que o vô fazia as paredes com esse chapisco? Uma vez, quando nós morávamos aqui no 02, eu tentei refazer numa parede que precisou arrumar”. No outro dia precisamos comprar uma segunda lata, serviu para terminar o teto e dar a segunda demão nas paredes. Me senti uma mineira no túnel - no caso cubículo - ao descascar as paredes e encontrar camadas: — Olha, tá descascando uma parte aqui do lado do banheiro, embaixo era azul clarinho. Posso descascar o resto? — Não ia pintar só a sala? Agora vai querer mexer no apartamento inteiro? — Não, mas se sobrar tinta posso pintar o banheiro? O apartamento estava muito mal cuidado e por isso eu ficaria apenas com a sala, já que a cozinha não tinha torneiras e o forro do quarto estava com problemas. Ainda assim não podia me conter, queria tirar o resto de cola de carpete dos tacos, pintar as portas e rodapés, arrancar as janelas de plástico azul colocadas na varanda. Reaproveitei todos os móveis que ocuparam esta sala - alguns voltaram a ocupar a sala onde um dia já habitaram. O sofazinho verde da mamãe, que já compôs a sala do ap.02, voltou para o prédio, e a mesinha lateral da tia Maria José também voltou para sua primeira casa. Resgatei três grandes lousas, para dar cor e organizar meu trabalho, e nosso velho baú de bonecas. Trouxe de volta a antiga prancheta do vovô para me ajudar a redesenhar sua história.

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Sempre gostei das pastilhas hexagonais coloridas do piso, e me permiti comprar um assento rosa-claro para o vaso do banheiro – que no final mamãe decorou todo de rosa, da toalha ao sabonete. Descobri o aconchego que traz aos pés pisar em um tapete, e peguei emprestado de casa um branco redondo tricotado. Matei, sem querer, quase todas as plantinhas que mamãe me trouxe de presente “Essa é a avenca, eu adoro! O hortelã é pra você fazer um cházinho de tarde, e o alecrim ajuda na concentração”. Motos, ônibus e caminhões passam pela rua Oratório o dia inteiro, agora entendi por que vó Irma sempre reclamou do barulho. O fim de tarde é lindo daqui de cima. Tirei sonecas da tarde. Combinava com vovó de tomar o chá da tarde, por vezes acompanhado de mingau, às 18h. Descia para jantar sopa quase todos os dias. Uma noite o cheiro de comida invadiu a sala, abri a porta e comecei a procurar, guiada pelo nariz. Vinha do ap.04, a casa da vó Helena. Toquei a campainha “hoje eu venho jantar aqui”. Na outra noite foi ela quem bateu na minha porta, com um prato de bolinhos de carne. Quase todos os dias ia ao apartamento trabalhar sobre os relatos e fotografias do antigo prédio, me transportando 60 anos para trás. Vez ou outra recebi amigos para uma pizza ou noite de jogos. O apartamento 05 foi minha sala de trabalho por 50 dias. Invadi o apartamento vazio. Habitei meu trabalho, meu tema, minhas lembranças. Pude experimentar e experienciar, de outro modo, o edifício construído por meu avô. Constatei que a qualidade de uma arquitetura está, no fundo, em sua capacidade de tocar alguém e, assim, estabelecer relações emocionais. Esta breve vivência, dentro do meu objeto de estudo, me ajudou a reconstruir algumas memórias e construir outras tantas.

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outras obras mooca

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Teu avô no começo fazia tanque, pedra de poço, fossa e balaústre. Eu trabalhei sempre na construção, o que eu vendi de material pra ele… Meu pai era carpinteiro, depois abriu um depósito ali na rua Natal, como o Leandro já tinha a marmoraria, a gente começou a comprar material dele. Eu nasci naquela rua, morei lá, casei lá e comecei a construir aqui em 1965, terminou dia 28 de julho de 1966. Eu comprava o terreno e mandava construir, umas casas eu vendia, outras alugava. Cheguei a ter umas vinte casas, meu irmão outras vinte. Esse terreno aqui eu comprei pra fazer minha casa, o Leandro falou “pode deixar que eu faço essa”. O Leandro e o Davi Miranda de Brito, o Davidão, fizeram muito por nós. Tinha uma turma boa pra contar história, viu? A casa aqui ficou um espetáculo! Um amigo meu que trabalhava como correspondente de um jornal de Tóquio fez até uma reportagem. Era linda, o símbolo da França Carvalho! O teu avô caprichou mesmo. Aqui era tudo de pastilha da Sulamérica. Chamamos um engenheiro, fizemos a planta direitinho, e aí ele tocou a obra. O Leandro fazia tudo. Essa escada aqui foi ele que fez, a da frente ele errou um pouquinho, ficou pequena. Embaixo dessa tinha um jardinzinho artificial, o piso era lindo, mas deu cupim. — Seu avô era a cara do Nelson Gonçalves. — Pai, o avô dela era aquele que parecia com o Nelson? Eu lembro dele! Mas ele era igualzinho mesmo. — É, falavam que era ele ou então era irmão dele. Também, com o mesmo sobrenome... Ele era gozador, nem era de beber, mas quando a gente saía, fingia que era ele e davam bebida de graça pra gente! Antônio Coelho Mooquense, amigo e cliente Morador da casa França Carvalho, 240

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“a serralheria é sempre parecida, fazia com um serralheiro amigo dele, o Andol”

rua josé veríssimo, 58

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a escada da frente que ele errou um pouquinho e ficou pequena

sobrado Antônio Coelho rua frança carvalho, 240

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3

detalhes em pedra mineira

sobrado Guette rua madre de deus, 1152

4

mistura de materiais: pastilhas, pedras, granilite e piso de caquinhos

rua prof. oliveira fausto, 190-194

5

“não tinha essa cobertura era muito bonitinho, mas sem isso”

rua rivadávia , 42-36

6

se usava muito pastilhas

rua do oratório, 2853-2837 . 141 .


7

a fábrica que deu a tv de presente

fábrica Vozzo televisores rua bixira, 87

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sobrado que o Seu Curti queria igual “era uma sapataria famosa embaixo”

sobrado Demétrio rua do oratório,1498

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9

“ chamava edifício três irmãs, por causa das netas dele”

prédio Davidão rua bixira, 142

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“a porta de redinha na área de serivço é igual a do nosso quintal”

rua avaí, 219

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mesmo estilo de janela e varanda

rua do oratório, 2699 . 143 .



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ficha de imagens p.3: Eu, 5 anos p.9: caixa do correio | corredor de entrada p.10: quadrinho de madeira “o bom mineiro” | entrada ap.01 abajour que acende com o toque (3 níveis) | quarto vô e vó retrato casamento Irma e Leandro estatua de cavalo branca esmaltada da vovó | mesinha de centro sala p.11: vô Leandro | casa de ilhabela vó Irma com vaso de flores antúrios | quintal p.12: ventilador de madeira e palhinha | teto da sala relógio cuco | parede da cozinha na sala quadro talhado em madeira, presente tia Marlene | quadro de luz sala p.13: mãe Cida, com perua Chevrolet | rua José Vveríssimo máquina de costura Singer, da vovó | quartinho da frente tia Eliane, tio Leandro, Arturzinho e tio Artur | quarto da frente p.14: filtro de água, São Pedro | cozinha azulejos | cozinha prato de cerâmica em formato de peixe | cozinha cadeira coração | mesa do escritório cadeira de madeira e palhinha | mesa da cozinha p.15: meu pai Romeo e minah irmã Nayara | cozinha ap.02 minha mãe, meu irmão Daniel e Kuki I | em frente a janela da sala Mickey deitado de coroa | caminha na sala p.17 e 19: slide vô leandro com perua Chevrolet | rua José Veríssimo p.21: certidão militar vô p.23: vô Leandro e amigo | belo horizonte, MG - p.26: anotação vó Irma | verso

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p.27: 3x4 vô Leandro | 1988 - 1960 p.32: monóculo com slide, vó Irma e tio Artur | porta do quintal p.34: vó Irma em sessão de slides | sala p.36: diagrama vó Irma, eu e minha mãe | sessão de slides na sala p.39 e 43: slide tio Leandro lavando as venezians verdes | escritório p.45: rua josé veríssimo sentido professor oliveira fausto | janela escritório p.47: mãe e Miguelzinho em frente carro e casarão sabesp | rua José Veríssmo p.49: Giba, “menino baixinho que morava aqui perto” | em frente janela porão p.50: vô Leandro e nayara | janela de fora do quarto vô e vó p.51: vô Leandro, Nayara, mãe e Mariana | porta de entrada rua do Oratório p.55 e p.59: slide tio Artur na moto Yamaha | porta da garagem p.61: tio Artur correndo na moto | rua José Veríssimo, sentido rua do Oratório p.63: Miguelzinho com carro | em frente a garagem p.65: aniversário Bianca priminha na garagem vó Helena, Nayara, Eu, Bianca, Tinga e tia Tata p.67: Chevrolet veraneio branca | em frente a garagem p.71 e 75: slide Mickey, cachorro mãe | quintal p.77: Eliane, primeira nenê do prédio e Mickey | fotótica rua da Mooca p.78 : võ Lenadro e Mickey sentados | casa tia Carmem

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p.79: Mickey sentado | sofá da sala p.81: tia maria josé e tia neide voltando da feira | portãozinho do quintal p.83: Eu e Nayara depois da festa junina no Reencontro | balanços do quintal p.87 e p.91: slide mãe fritando bife | cozinha p.95: mãe no fogão fazendo comida | cozinha ap.02 p.99: receita do pão da vó Irma | caderno de recietas vó - p.96: verso p.99: vó Irma e bisa Aurea com Bruna no colo | cozinha p.103 e p.107: slide vô Leandro na poltrona | em frente o bar na sala p.109: mãe aniversário 15 anos | em frente o bar na sala p.111: vô leandro, vó irma com bruna no colo e thiago | sala p.115 e p.119: slide Arturzinho na sala | em frente a janela p.121: mãe na poltrona da sala | em frente a janela p.122: tia Maria josé no aniversário da vó | sala p.123: tia Neide, dona Nilha, vó e vô no aniversário da vó | sala p.125: tio Artur a Daniel brincando no sofá | em frente a janela da sala p.127: Eu de pano na cabeça - igual vó Irma- Nayara e Gustavinho | sala p.135: Eu e a prancheta do vovô | sala do ap. 05 p.137: Eu e meu pai pintando o a sala | ap.05

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p.139: Eu me sentindo como um mineiro em um túnel | hall banheiro ap.05 p.141: Planta original, fotos e slides p.142: plantinhas e quadrinho | ap.05 p.143: Sala apartamento 05 | segundo anadar p.145: colagem edifício almeida | ap.01, 02, 04 e 05 p.148: sala e escada | casa frança carvalho p.150: mapa outras casas | mooca p.151-154: casas, sobrados e prédios construídos por vô Leandro p.156: vô Leandro cortando grama | casa ilhabela -p.157: anotação vó Irma |verso p.163: edifício almeida | rua oratório, 1897

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bibliografia BARBOSA, Adoniran. Abrigo de vagabundos. São Paulo: Odeon, 1958. 3min. Disponível em: https://www.letras.mus.br/adoniran-barbosa/43962/. Aceso em: 02.12.2018. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade - lembrança de velhos, São Paulo: Companhia das letras, 1994. BOSI, Ecléa. O Tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social, São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. CARTAS, Mino. Histórias da Mooca: com a bênção de São Gennaro, São Paulo: Berlindis Vertecchia, 1982. SUPERMEMÓRIAS. Direção: Danilo Carvalho. 20min. Disponível em: https:// vimeo.com/35252608. Acesso em: 16/10/2018. GATTAI, Zélia. Anarquistas, graças a Deus, São Paulo: Companhia das Letras, 2009. JUNIOR, Lindener Pareto. O cotidiano em construção: os práticos licenciados em São Paulo (1893-1933), Dissertação (Mestrado - História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo) FAUUSP, São Paulo: 2011. MELLO, Joana. O arquiteto e a produção da cidade: a experiência de Jacques Pilon em pesrspectiva 1930-1960. Tese (Doutorado - Área de Concentração: História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo - FAUUSP, São Paulo: 2010. MARTINELLI, Pedro. Casas paulistanas: pequenos tesouros da Móoca na transformação de São Paulo. São Paulo: Casa Paulistana de Comunicação, 1998 PEREC, Georges. A vida modos de usar: romances, São Paulo: Companhia de Bolso, 2009. SANTIAGO. Direção: João Moreira Salles. 80min, p&b. Disponível em: https:// vimeo.com/235942043 . Acesso em: 17/10/2018. SENNETT, Richard. O artífice. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2012. SIMON, Alberto. As arquiteturas anônimas de São paulo em “tamanho_M”. 2005/2006; In: In: Nexo Jornal. Disponível em: ww.nexojornal.com.br/expresso/2018/04/14/O-trabalho-do-artista-que-documenta-%E2%80%98arquiteturas-an%C3%B4nimas%E2%80%99-de-S%C3%A3o-Paulo. Acesso em: 16/04/2018 ZUMTHOR, Peter. Atmosferas, Barcelona: GG, 2006;

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