O anjo da meia noite stokehurst #1 lisa kleypas

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Resumo

A cidade inteira exigia sua morte. Seria executada ao amanhecer acusada de assassinato. As provas eram determinantes, tinham encontrado Tasia coberta de sangue ao lado do cadáver do seu prometido, o príncipe Mikhail. Mas Tasia não se lembrava de nada. Graças à ajuda de uma criada consegue fugir encontrando refúgio na Inglaterra como professora da filha de lorde Stokehurst. Sua vida dá um giro de 180 graus. Adeus à rica herdeira comprometida com um príncipe de sangue real, destinada a reinar sobre uma legião de criados. Agora a criada era ela e devia servir a um homem acostumado a obter tudo o que deseja incluindo a própria Tasia. E ela não era indiferente ao charme de seu chefe. Poderia fugir eternamente de seu passado e dos ditames de seu coração?


Prefácio

São Petersburgo Rússia 1870 O guarda fechou a porta da cela atrás de si. – Dizem que é uma bruxa. Que ler as mentes. Explodiu em gargalhadas. – Em que estou pensando neste momento? Pode me dizer. Tasia tensa manteve a cabeça baixa. Isso era o mais desagradável de seu encarceramento: ter que suportar a odiosa presença de Rostya Bludov, esse caipira que se pavoneava como se o uniforme que oprimia seu enorme estômago bastasse para fazer dele alguém importante. Não tinha se atrevido a tocá-la até esse momento, mas estava cada vez mais insolente. Notou seu olhar sobre ela enquanto estava encolhida como um novelo de lã sobre a cama. Estes três meses de cativeiro a tinham marcado e sabia disso. Sempre tinha sido magra, mas agora beirava a desnutrição e o tom marfim de sua pele parecia agora mais pálido em contraste com a pesada cabeleira negra. Os passos se aproximaram. – Esta noite estaremos sozinhos – grunhiu Bludov – Escute, vou fazer de tua última noite inesquecível. Ela moveu lentamente a cabeça e o olhou com expressão vazia. No rosto marcado pela varíola de Bludov se desenhou um sorriso enquanto acariciava os testículos. Tasia o olhava sem pestanejar. Seus olhos um pouco oblíquos, herança de um antepassado tártaro, tinham a cor fria e pálida das águas do rio Neva no inverno,


cinza azulado. Alguns acreditavam que Tasia podia roubar suas almas só lhes olhando. Os russos eram um povo supersticioso e todos, do mais humilde camponês ao czar, viam tudo o que saía do normal com grande inquietação. O guarda não era uma exceção. Apagou o sorriso. Tasia o olhou fixamente até que as gotas de suor desceram pela testa do indivíduo. Retrocedeu horrorizado e se benzeu. – Bruxa! É verdade o que dizem de ti. Deveriam te queimar e te reduzir a cinzas em vez de só te enforcar. – Fora daqui – disse ela em voz baixa. Quando ele estava a ponto de obedecer, bateram na porta da cela. Tasia ouviu a voz de sua criada, Varka, pedindo permissão para entrar. Esteve a ponto de desfalecer. Varka tinha envelhecido terrivelmente nos últimos meses e a jovem custava muito olhar seu rosto sulcado de rugas sem começar a chorar. Com uma gargalhada malvada, Bludov deixou passar à criada e desapareceu. – Asquerosa bruxa de alma negra – murmurou antes de sair fechando a porta atrás de si. Varka, uma pequena e gordinha mulher, estava completamente vestida de cinza e levava a cabeça coberta por um lenço com um desenho em forma de cruz para afugentar os maus espíritos. Aproximou-se de Tasia. – OH minha Tasia! – exclamou com voz fraca olhando os ferros que lhe atavam os tornozelos. – Vê-la assim…? – Estou bem – murmurou Tasia tomando as mãos para consolá-la – Nada disto me parece real, é como se estivesse vivendo um pesadelo. Sorriu levemente. – Espero que termine, mas segue e segue… Veem, sente-se a meu lado. Varka secou os olhos com a ponta do lenço. – Por que Deus permitiu que… Tasia sacudiu a cabeça. – Não sei como pôde acontecer tudo isto, entretanto é sua vontade e devemos aceitá-la.


– Suportei muitas coisas em minha vida, mas isto… não posso. Tasia a fez calar com suavidade. – Não temos muito tempo Varka. Diga-me, entregou minha carta ao tio Kirill? – A entreguei em mãos como você me disse. Fiquei até que a leu e depois a queimou. Chorando declarou: “Diga a minha sobrinha que não a abandonarei, juro-o pela memória de seu pai, Iván, meu querido irmão”. – Sabia que podia contar com ele Varka… E o outro? Lentamente a velha criada vasculhou na bolsa que levava na cintura e tirou um frasquinho de cristal. Tasia o agarrou e levou um instante olhando pensativa para o escuro líquido oleoso enquanto se perguntava se teria coragem para beber. – Não deixe que me enterrem – disse fingindo despreocupação – se eu acordar não quero que seja debaixo da terra. – Minha pobre pequena E se a dose for muito forte? E se a mata? Tasia seguia olhando fixamente o frasco. – Então se terá feito justiça – disse com amargura. Se tivesse sido menos covarde, se tivesse acreditado mais na piedade de Deus, poderia confrontar a morte com dignidade. Tinha rezado durante horas diante da imagem que tinha pendurada em um canto da cela, suplicando em silêncio que lhe desse a força necessária para confrontar a morte com dignidade, mas tinha sido em vão, seguia estando aterrorizada. Todos em São Petersburgo pediam sua morte. Uma vida por outra. Nem sequer sua imensa fortuna tinha podido sossegar os gritos da multidão. Merecia esse ódio, tinha matado a um homem, ou ao menos isso acreditava. Os motivos, as circunstâncias e as provas a tinham apontado como culpada no julgamento. E, além disso, não havia outros suspeitos. Durante os longos meses de prisão, nos quais só a oração lhe impediu de voltar-se louca, ninguém pôde descobrir nada novo que criasse dúvidas sobre sua culpabilidade. Seria executada no dia seguinte, ao amanhecer. Mas a Tasia ocorreu um plano absurdo inspirado em uma passagem da Bíblia:


“Me esconderei em uma tumba e ninguém me descobrirá”. Esconder na tumba… Se ela pudesse encontrar uma forma de fingir que estava morta e escapar! Tasia agitou o conteúdo do frasco, uma mescla de diversas drogas compradas clandestinamente em uma drogaria de São Petersburgo. – Lembra-se de todos os detalhes? – perguntou. Varka assentiu com a cabeça fracamente. – Perfeito. Tasia quebrou o selo de cera com um gesto decidido e levantou o frasco simulando um brinde. – Pela justiça! – declarou antes de beber o conteúdo. O sabor era horrível e estremeceu de asco. Com a mão na boca fechou os olhos esperando que desaparecessem as náuseas. – Agora tudo está nas mãos de Deus – disse entregando o frasco vazio a criada. A pobre mulher baixou a cabeça para dissimular as lágrimas. – OH senhora… – Cuide de minha mãe, tente consolá-la – disse Tasia acariciando o cabelo cinza da criada – agora vá. Depressa Varka. Deitou-se na cama tentando concentrar-se na imagem da santa enquanto a criada se retirava. Tinha muito frio e os ouvidos zuniam. Assustada tentou manter uma respiração regular, o coração lhe golpeava no peito como um martelo. “Meus amantes e meus amigos afastaram-se, meus pais estão longe…”. O rosto doloroso da virgem estava desfocado. “Me esconderei na tumba e ninguém me descobrirá até que a ira tenha passado…”. Quis rezar, mas as palavras não saíam de seus lábios. Deus o que está acontecendo? Pai ajude-me… Então morrer era isto. Todas as sensações paravam e o corpo parecia de pedra… A vida escapava de Tasia como a maré minguante e também desapareciam suas lembranças deixando-a afundar-se em um mundo branco na fronteira entre a vida e a morte.


“Em minhas pálpebras pesa a sombra da morte…”. “esconda-me na tumba…”. Permaneceu muito tempo inconsciente e logo começaram os sonhos. Primeiro houve um caleidoscópio de imagens: adagas, rios de sangue, crucifixos e relíquias santas. Reconheceu os Santos de suas adoradas imagens, Nikita, Juan e Lázaro meio envoltos em seus sudários com seus grandes olhos fixos nela. As imagens desapareceram e foram substituídas por cenas de sua infância. Era verão em Dacha, a casa de verão dos Kapterev. Sentada em uma cadeira dourada, com os pés que não chegavam ao chão, estava comendo um sorvete em um prato de fina porcelana. – Papai posso dar as sobras a Fantasma? – perguntou enquanto uma cadelinha branca esperava balançando a cauda. – Se não quer mais, sim. O rosto barbudo de seu pai se iluminou com um terno sorriso. – Sua mãe acredita que deveríamos pôr um nome mais alegre a seu cão Tasia – continuou – Bola de Neve ou Raio de sol por exemplo. – Mas quando dorme em um canto do meu quarto de noite parece realmente um fantasma papai. Seu pai riu. – Então a chamaremos como você queira querida. A cena mudou: Tasia estava na biblioteca do palácio Angelovsky, lotada de livros encadernados em couro e ouro. Ouviu um ruído atrás de si e virou-se para encontrar-se frente a seu primo Mikhail. Ele cambaleava com o rosto desfigurado em uma horrível careta. O cabo de um cortador de papel em forma de adaga se sobressaía de sua garganta e um rastro de sangue caía por sua jaqueta de brocado. Tasia tinha as mãos e a parte dianteira do vestido manchada. Gritou horrorizada antes de sair correndo. Chegou à porta de uma igreja e a golpeou até que se abriu. A nave da igreja estava iluminada com milhares de velas procedentes das imagens santas. Os rostos dos Santos a contemplavam com dor. A Santíssima Trindade, a Virgem, Juan…


Caindo de joelhos apoiou a testa no chão e começou a rezar. – Anastásia Levantou os olhos e viu um homem, seus cabelos eram negros como o carvão e seus olhos queimavam como chamas azuis. Era o diabo que vinha lhe arrebatar a vida como castigo por seus crimes. – Não queria fazê-lo – gemeu – Não queria matar ninguém. Suplico – lhe, tenha piedade… Ele a ignorou e se inclinou sobre ela. – Não! – gritou Mas ele já a tinha pego entre seus braços e a levava. Depois desapareceu e voltou a encontrar-se sozinha, hesitante em um universo de ruído e de cores, com os nervos destroçados. Uma escura força a arrastava através de correntes de gelo e de dor. Ela tentava resistir, mas se via atraída inexoravelmente para a superfície. Quando Tasia abriu os olhos ficou desorientada e gemeu de dor. Imediatamente tamparam a chama da vela. O rosto de Kirill Kapterev, com o contorno impreciso, estava inclinado sobre ela. – Sempre acreditei que a Bela Adormecida do bosque só fosse um conto de fadas, entretanto aqui estar em meu navio – disse com voz tranquila – em alguma parte do mundo deve existir um Príncipe Encantado que está perguntando à lua onde se encontra sua amada. Ela tentou falar. – Tio – sussurrou trêmula. Ele sorriu embora sua larga testa tivesse rugas de preocupação. – Aqui está de volta ao mundo dos vivos, minha querida sobrinha. Tasia se sentiu tranquilizada por sua voz, tão parecida com a de seu pai. Todos os homens Kapterev se pareciam: rosto forte, grossas sobrancelhas, maçãs do rosto altas e a barba cortada da mesma forma. Mas ao contrário do pai de Tasia, Kirill tinha uma verdadeira paixão pelo mar. Quando era jovem serviu na marinha russa e mais tarde fundou sua própria companhia de navios mercantes.


Várias vezes ao ano levava ele mesmo seus navios da Rússia até a Inglaterra levando tecidos e equipamentos. Quando era uma menina Tasia adorava as visitas de Kirill, ele sempre tinha apaixonantes histórias para contar, trazia presentes de longínquos países e estava sempre impregnado de um delicioso aroma de iodo e água do mar. – Se não estivesse vendo com meus próprios olhos – disse – não poderia acreditar nesta ressurreição. Eu mesmo levantei a tampa do ataúde onde jazia fria e rígida como um cadáver. E agora estar aqui, viva de novo. Interrompeu-se antes de acrescentar brincando: – Mas possivelmente estou falando antes do tempo. Vamos, deixa que te ajude a te sentar. Tasia protestou com um gemido quando ele a levantou pelas costas para lhe deslizar um travesseiro por trás. Estavam em uma grande cabine com as paredes forradas de mogno e as escotilhas tampadas com cortinas de veludo. Kirill despejou água em um copo de cristal e o aproximou dos lábios dela. Deu um gole e imediatamente lhe veio uma náusea, então, muito pálida, negou-se a beber mais. Todos em São Petersburgo falavam de sua misteriosa morte – disse Kirill para lhe fazer esquecer as náuseas. – Muitos oficiais quiseram examinar seu cadáver, entre eles o governador da cidade e o ministro do interior, mas sua família já tinha ido te buscar. Sua criada confiou a meus cuidados e organizou os funerais antes que alguém tivesse tempo de entender o que acontecia. Os que assistiram a seu enterro não podiam suspeitar que o que se enterrava era um ataúde cheio de sacos de areia. Franziu o cenho tristemente. – Sua pobre mãe está desesperada, mas não lhe disse que estar viva. A realidade é que seria incapaz de guardar o segredo. É horrível, mas… Encolheu os ombros com resignação. Tasia sentiu uma imensa pena por sua mãe. Todo mundo acreditava que estava morta e era estranho saber que para todos os que tinha conhecido e amado durante toda a vida, tinha deixado de existir.


– Tem que tentar andar um pouco – disse Kirill. Ela deslizou penosamente suas pernas para a borda da cama, e deixando que seu tio a segurasse, ficou de pé. Doíam terrivelmente as articulações e os olhos se encheram de lágrimas enquanto Kirill a animava a caminhar. – Vamos tentar andar um pouco. – Sim… – respondeu ela com um soluço obrigando-se a obedecer. Tudo lhe doía, respirar, falar e andar. Tinha frio… nunca em toda sua vida tinha estado tão gelada. Kirill falava com calma animando-a a dar uns passos hesitantes com um braço segurando-a. – Seu pai deve estar me olhando com reprovação lá de cima por deixar que sua única filha se encontre nesta situação. Quando penso na última vez que te vi! Kirill sacudiu a cabeça tristemente. – Dançava uma mazurca no palácio de inverno e até mesmo o próprio czar parou para te admirar. Havia tanto fogo em ti, tanta graça e beleza! Seus pés quase não tocavam o chão. Todos os homens presentes queriam ser seus acompanhantes. Faz apenas um ano e parece uma eternidade. Certamente ela agora não parecia tão viva, cada passo que dava era uma tortura. – Não é coisa desdenhável atravessar o mar Báltico na primavera – continuou Kirill – Por toda parte há pedaços de gelo flutuando. Pararemos em Estocolmo para carregar ferro e em seguida nos dirigiremos a Londres. Sabe onde pode encontrar refúgio? Teve que repetir a pergunta antes que ela fosse capaz de responder. – Ashbourne – sussurrou por fim. – Os primos de sua mãe? Hum! Não posso dizer que goste, não aprecio muito sua família materna, e menos ainda aos ingleses em geral. – P… por quê? – São uns esnobes e uns imperialistas hipócritas. Os ingleses consideram a si mesmos como o povo mais civilizado do mundo quando seu verdadeiro caráter é brutal e cruel. Entre eles a inocência fica logo destruída, recorde-o bem. Nunca


confie neles. Kirill fez uma pausa ao dar-se conta de que suas palavras não eram precisamente tranquilizadoras para uma jovem que planejava refazer sua vida nesse país. Procurou desesperadamente algo que fosse adulador para os britânicos. – Por outro lado – declarou por fim – constroem belos navios. Tasia esboçou um sorriso forçado e parou apertando o braço de seu tio. – Spassivo – murmurou para lhe agradecer. Ele fez uma careta. – Niet, não mereço sua gratidão sobrinha. Teria que ter feito mais por ti, deveria ter matado eu mesmo a Angelovsky antes que pusesse suas garras sobre ti. E pensar que a descerebrada de sua mãe queria casar a sua filha com esse indivíduo imundo! Ouvir falar, de suas aparições em público disfarçado de mulher, dos dias inteiros que passava fumando ópio. Quanto a todas suas perversidades… Calou-se ao ouvir a exclamação de protesto de Tasia. – Mas é uma tolice falar disso agora. Quando terminarmos com este pequeno passeio, pedirei ao grumete que nos traga chá. E o beberá até a última gota. Tasia assentiu com a cabeça, tinha uma vontade louca de descansar, mas Kirill continuou torturando-a durante um bom momento antes de lhe permitir descansar em uma poltrona. Ela se deixou cair como uma anciã com artrite e ele lhe pôs uma manta nos joelhos. – Pequeno pássaro de fogo – lhe disse com carinho lhe agarrando a mão. – Papai… – murmurou ela com voz afogada. Dá, lembro-me de que te chamava assim. Para Ivan você era toda a luz e a beleza do mundo. A oropéndola, o pássaro de fogo, é o símbolo da felicidade. Foi procurar uns objetos e os pôs na penteadeira ao lado dela. – Sua mãe queria que estas coisas fossem enterradas contigo – disse severamente – guarde-as na Inglaterra, são retalhos de seu passado que te ajudarão a recordar… – Não. – Leve-os – insistiu – Algum dia te alegrará de tê-las.


Tasia se voltou para os objetos e sua garganta se fechou quando descobriu a cruz de filigrana de ouro que sua avó Galina Vassilievna, tinha usado durante toda sua vida. Era um diamante rodeado de rubis vermelhos como o sangue. Ao lado da joia estava uma pequena imagem da Virgem e o Menino com as auréolas pintadas de ouro. Os olhos de Tasia se encheram de lágrimas quando descobriu o último dos tesouros: Um anel de ouro gravado que tinha pertencido a seu pai. Agarrou-o e fechou seus finos dedos ao redor da joia. Kirill esboçou um sorriso de compaixão ao ver o desespero em seu rosto. – Agora estar segura – murmurou – e viva. Não esqueça… Isso te ajudará. Tasia o seguiu com o olhar enquanto ele saía da cabine. Passou a língua pelos lábios ressecados. Era certo que estava viva, mas segura? Ia passar o resto de sua vida como um animal encurralado, sempre se perguntando quando chegaria ao fim. Como seria sua vida nessas condições? Estou viva – repetiu em silêncio.


Um

Londres, Inglaterra Lady Ashbourne retorcia as mãos com nervosismo. – Tenho uma ótima notícia para lhe dar Luke, encontramos uma dama para ser a governanta de Emma. Uma maravilhosa jovem, inteligente e com uma educação irretocável perfeita em tudo. Tem que vê-lo por ti mesmo. Lorde Lucas Stokehurst, marquês de Stokehurst sorriu com ironia. – Eis o motivo por ter sido convidado a vir aqui hoje. E eu que acreditei que era por minha encantadora conversa. Fazia cerca de meia hora que estava bebendo chá e falando tolices no salão dos Ashbourne no Queen’s Square. Charles Ashbourne, seu melhor amigo desde que estudaram juntos em Eton, era um homem encantador, dotado com um estranho talento: sempre via o melhor de cada pessoa, qualidade que não compartilhava Luke. Ao saber que seu amigo estava passando o dia em Londres o tinha convidado a lhe visitar quando acabasse com seus compromissos. Assim que pôs os pés em sua casa, Luke soube que queriam lhe pedir um favor. – É perfeita – repetiu Alice – Não é verdade Charles? Charles assentiu com entusiasmo. – Certamente querida. – Saiu tudo tão mal com a governanta anterior – continuou Alicia – que tentei encontrar uma boa substituta. Sabe o muito que quero a sua filha e o muito que ela se lembra de sua mãe. Titubeou um momento. – OH Deus, não queria te recordar a Mary!


O sombrio rosto de Luke continuou imperturbável. Tinham passados vários anos desde a morte de sua mulher, mas ainda sofria quando alguém pronunciava seu nome. E seria assim até o último dia de sua vida. Continue – disse em tom neutro – Fala-me desse modelo de virtudes. – Chama-se Karen Billings, embora tenha vivido a maior parte de sua vida no estrangeiro, escolheu viver na Inglaterra. Viverá conosco até que lhe encontremos um trabalho adequado. Em minha opinião, é o bastante amadurecida para proporcionar a Emma toda a disciplina que necessita, e ao mesmo tempo é o bastante jovem para ganhar a simpatia da menina. Assim que a veja compreenderá que é exatamente o que necessita, estou segura disso. – Muito bem. Luke terminou seu chá, esticou suas longas pernas e disse: – Me mande suas referências, darei uma olhada assim que tenha tempo. – Bem… há um pequeno problema. – Um pequeno problema? – repetiu Luke levantando as sobrancelhas. – Não tem nenhuma carta de recomendação. – Nenhuma? O pescoço de Alicia se tingiu de rosa por cima das rendas do vestido. – Prefere não falar de seu passado. Por desgraça não posso te dizer por que, mas confie em mim. Depois de um breve silêncio Luke começou a rir. Era um homem bonito de uns trinta e cinco anos com o cabelo negro e os olhos muito azuis. Entretanto seu rosto era mais atrativo por sua virilidade que por sua beleza, a expressão de sua boca era severa e seu nariz um pouco maior do que o habitual. Tinha o sorriso levemente irônico de um homem que não leva a si mesmo a sério e eram muitos os que tentavam imitar seu cínico encanto. Quando ria como agora, a alegria não alcançava realmente a seus olhos. – Já ouvi o bastante Alicia. Certamente deve ser uma excelente governanta, um tesouro. Assim espero que outra família se aproveite desta joia. – Antes de te negar, fale ao menos com ela. – Não. Só me resta Emma e quero o melhor para ela.


– Miss Billings é a melhor. – Só é uma protegida sua – objetou Luke com ironia. – Charles… Alicia olhou implorante a seu marido para que a ajudasse. Qual o problema em conhecê-la Stokehurst? – perguntou a seu amigo. – Seria uma perda de tempo – respondeu Luke com um tom que não admitia réplica. Os Ashbourne trocaram um olhar de contrariedade. Reunindo toda sua coragem Alicia fez uma última tentativa. – Pelo bem de sua filha Luke, deveria aceitar conhecê-la. Emma tem doze anos, está a ponto de converter-se em uma mulher o qual é maravilhoso e terrível ao mesmo tempo. Necessita a alguém que a ajude a entender a si mesma e ao mundo que a rodeia. Você sabe que não recomendaria ninguém que não fosse adequada para esta situação. E miss Billings é tão especial… Permita-me que vá procurá-la em seu quarto. Não demorarei lhe prometo isso. Por favor… Luke liberou a mão que ela tinha posto sobre seu braço e grunhiu: – Traga-a antes que mude de ideia. – É um encanto. Alicia saiu rapidamente entre um murmúrio de seda. Charles se serviu de um conhaque. – Obrigado – disse – É muito amável de sua parte fazer este favor a minha mulher. De toda forma acredito que não te arrependerá de conhecer miss Billings. – Aceito vê-La, mas não a contratarei. – Poderia mudar de opinião. – Não há a mínima possibilidade. Luke se levantou e passou diante dos móveis sobrecarregados de adornos para se juntar a seu amigo em frente à mesa de mogno esculpida. Charles lhe serviu uma taça e, fazendo girar o líquido âmbar, Luke insistiu com um sorriso torto. – Do que realmente se trata Charles?


– Eu realmente não sei – respondeu Ashbourne um pouco incomodo – Miss Billings é uma perfeita desconhecida para mim. Chegou a nossa casa faz uma semana, sem malas nem bagagem, e sem um centavo que eu saiba. Alicia a acolheu com os braços abertos, mas se nega a me dizer nada sobre ela. Eu acredito que deve ser uma parenta pobre com problemas. Possivelmente um patrão tentou lhe impor seus cuidados, por exemplo, não me surpreenderia nada. É jovem e muito agradável aos olhos. Charles se interrompeu um instante antes de acrescentar: Reza constantemente. – Maravilhoso! Isso é exatamente o que necessito como governanta de Emma. Ignorando o sarcasmo Charles continuou: – Há algo nela… Não posso explicar. Aposto que lhe aconteceu algo fora do comum. Luke entrecerrou os olhos. – O que quer dizer com isso? Alicia voltou antes que Charles tivesse tempo de responder, seguida de um ser fantasmagórico vestido de cinza. – Lorde Stokehurst posso lhe apresentar a Miss Karen Billings? Luke respondeu à reverência desta com um simples gesto de cabeça, não tinha nenhuma intenção de fazê-la sentir-se confortável, então era melhor que ela entendesse o quanto antes, que não ia empregar alguém sem uma carta de recomendação. – Miss Billings, eu gostaria que ficasse claro… Dois olhos de gato se ergueram para ele. Eram de um azul cinzento bastante pálido, como a luz que transpassa um cristal com gelo, rodeados de longos cílios negros. Luke perdeu o fio de seu discurso e ela esperou que ele terminasse de olhá-la fixamente como se estivesse acostumada a provocar essa curiosidade. “Agradável de olhar” ficava muito longe da realidade. Ela era de uma beleza deslumbrante. O severo coque que levava na parte baixa da nuca haveria enfeado a qualquer mulher, mas nela este penteado ressaltava um rosto de extrema delicadeza, com as sobrancelhas retas e uma boca sensual e amarga ao mesmo tempo. Nenhum homem podia contemplar esses traços sem sentir-se


profundamente afetado. Foi ela quem rompeu o silêncio. – Obrigada por me conceder um pouco de seu tempo milorde – disse. Luke recuperou o sentido e fez um gesto de indiferença com a mão com que segurava a taça meio vazia. – Nunca saio sem terminar meu conhaque. Com a extremidade do olho viu como Alicia franzia o cenho, surpreendida por sua grosseria. Miss Billings não se alterou, manteve-se firme com a cabeça baixa em uma atitude de respeito. Entretanto havia uma certa tensão no salão como quando dois gatos se observam mutuamente. Luke bebeu um gole de conhaque. Quantos anos tem? – perguntou. – Vinte e dois milorde. – De verdade? Luke parecia cético, mas teve o bom gosto de não insistir. – E você se acha capacitada para educar a minha filha? – Tenho sólidos conhecimentos de literatura, história, matemática e não há nada que não conheça sobre as boas maneiras indispensáveis para uma jovem de boa família. – Música? – Toco o piano. – Idiomas? – O francês e um pouco de alemão. Luke deixou que se fizesse silêncio enquanto pensava no leve acento da jovem. – E o russo – concluiu. Uma luz de surpresa brilhou nos olhos dela. – E o russo – confessou – Como o adivinhou milorde? – Deve ter vivido ali muito tempo, seu acento inglês não é perfeito.


Ela inclinou a cabeça como uma princesa respondendo a um mal educado e Luke não pôde deixar de sentir-se impressionado por sua atitude. Suas perguntas não a tinham desconcertado e teve que reconhecer à contra gosto que sua filha, com sua indomável cabeleira ruiva e seus gestos de menino, necessitaria algumas lições de comportamento. – Trabalhou alguma vez como governanta? – Não milorde. – Então não tem nenhuma experiência com crianças. – Certo. Entretanto sua filha já não é uma menina propriamente dita. Conforme acredito tem treze anos. – Doze. – Uma idade delicada – comentou – não é nem uma criança e nem uma jovem… – É particularmente difícil para Emma. Sua mãe morreu faz muito tempo e ninguém soube lhe ensinar como deve se comportar uma jovem de sua condição. Este ano desenvolveu o que os médicos chamam uma enfermidade nervosa. Necessita uma presença maternal adulta para ajudá-la. Luke havia enfatizado as palavras “maternal” e “adulta” o que não se correspondiam absolutamente à pequena mulher que estava diante dele. – Uma enfermidade nervosa? – ela repetiu suavemente. Luke não estava interessado em perder mais tempo com ela. Não tinha intenções de falar da saúde de sua filha com uma estranha e, entretanto, ao encontrar-se com seu olhar se sentiu obrigado em certa forma a continuar, como se as palavras saíssem de sua boca por vontade própria. – Frequentemente chora, e às vezes se mostra caprichosa. Mede aproximadamente uma cabeça a mais que você e se desespera por isso já que ainda não terminou de crescer. Ultimamente é impossível falar com ela, diz que eu não entenderia o que sente se tentar me explicar isso e, entretanto Deus sabe… – Interrompeu-se assombrado por ter revelado tanto. Isso não era normal nele. Ela rapidamente preencheu o silêncio. – A meu modo de ver, chamar a isso “uma enfermidade nervosa” é um


absurdo milorde. – E a Senhorita o que sabe? – Quando eu era jovem vivi algo similar e minhas primas também. É algo normal na idade de Emma. Seu tom de voz calmo lhe impressionou. Além disso, Luke desejava desesperadamente acreditar. Fazia meses que vinha ouvindo as mais sinistras e misteriosas advertências dos médicos que prescreviam uns revigorantes que Emma se negava a tomar e regimes que se negava a seguir. Pior ainda, teve que suportar as recriminações de sua mãe e de seus amigos por não ter voltado a se casar. “Tem falhado em suas responsabilidades com Emma, dizia a duquesa, todas as meninas necessitam uma mãe. Vai se voltar tão insuportável que nenhum homem a quererá, ficará solteirona só porque seu pai não quis ter outra mulher depois de Mary”. – Estou feliz de ouvi-la dizer que os problemas de Emma não são sérios – disse bruscamente – entretanto… – Não disse que não eram sérios milorde, disse que eram normais. Ela tinha cruzado a fronteira que separa o amo do servo ao lhe falar como se fossem iguais. Ele franziu o cenho perguntando-se se essa insolência era inconsciente ou deliberada. Fez-se um profundo silêncio, Luke se deu conta de que havia esquecido a presença dos Ashbourne quando viu que Alicia tocava nervosamente as almofadas do sofá. Charles por sua parte parecia estar observando algo interessante pela janela. Luke olhou de novo a Miss Billings. Fazia anos que ninguém lhe superava na habilidade de olhar fixamente às pessoas e esperava fazer com que se ruborizasse ou que começasse a chorar. Mas o olhava com seus claros olhos incisivos e nada assustada. Por fim o olhar dela se pousou em seu braço. Luke já estava acostumado que algumas pessoas o olhassem com assombro e outras com asco. Tinha três dedos artificiais na mão esquerda, os tinha tido que amputar nove anos atrás para evitar a gangrena e só sua teimosia o tinha impedido de mergulhar na ira e no desespero. No fim havia se acostumado.


Observou Miss Billings esperando ver seu desagrado, mas ela só deu amostras de um leve interesse que lhe surpreendeu. Ninguém se atrevia a lhe olhar assim! Ninguém! – Milorde, eu decidir – ela disse com voz rouca – aceitarei o cargo. Vou buscar minhas coisas. Virou-se e se afastou com um murmúrio de anáguas engomadas. Alicia olhou radiante a Luke antes de precipitar-se a seguir a sua protegida. Ele olhou fixamente a porta boquiaberto antes de olhar Charles com incredulidade. – Ela decidiu aceitar o posto… – Parabéns – arriscou Charles. Luke sorriu ameaçadoramente. – Chama-a! Charles se zangou. – Espere Stokehurst. Sei o que vai fazer. Vai destruir Miss Billings e eu vou me encontrar com uma mulher chorando entre os braços. Deve acolher a essa jovem em sua casa umas semanas, até que eu possa lhe encontrar outro trabalho. Peço-te como prova de amizade que… – Não sou um estúpido Charles. Diga-me a verdade. Quem é e porque tenho que te livrar dela? Charles andava de um lado para o outro da estadia em um estado de agitação incomum nele. – É… Digamos que está em uma difícil situação, quanto mais tempo fique aqui, mas perigo corre. Esperava que a levasse contigo hoje mesmo para que estivesse segura em sua casa de campo. – Então está se escondendo, mas de que? – Isso é exatamente o que não te posso dizer. – Qual é seu verdadeiro nome? – Isso não tem importância. Rogo que não me faça perguntas. – Que não te faça perguntas! E quer que lhe confie a minha filha? – Não há nenhum perigo – se apressou a responder Charles – Deus, sabe o muito que Alicia e eu queremos a sua filha. Como pode acreditar que lhe


faríamos correr algum risco? – Confesso que neste momento já não sei o que pensar. – Só umas semanas – suplicou Charles – o tempo que vai levar em lhe encontrar outro lugar. Miss Billings reúne realmente todas as características necessárias para ser uma perfeita professora. Não só não incomodará a Emma, mas, além disso, pode ser uma influência benéfica. Sempre pude contar contigo Luke, e agora te peço que me ajude. Luke estava prestes a recusar quando recordou o estranho olhar de miss Billings. Ela tinha problemas e, entretanto tinha decidido confiar nele. Por quê? Quem era? Uma esposa em fuga? Uma refugiada política? Luke odiava os mistérios, tinha a legendária obsessão dos ingleses por rotular tudo, dando um sentido às coisas. Para ele nada era mais exasperante que uma pergunta sem resposta. – Maldição – grunhiu entre dentes antes de dirigir um breve gesto com a cabeça a seu amigo – Um mês e nem um só dia a mais. Depois me livre dela. – Obrigado. – É um favor que estou te fazendo Charles, não esqueça. Ashbourne esboçou um amplo sorriso de agradecimento. – De qualquer forma, não me deixará esquecer... Tasia contemplava a paisagem enquanto a carruagem atravessava a tranquila campina inglesa. Recordou seu país natal com seus quilômetros de campos sem cultivar e seu nubloso céu de cor azul cinzenta. Que diferença! A Inglaterra lhe parecia assombrosamente pequena para ser uma potência econômica e militar tão grande. Apesar da capital estar superpovoada, tudo ali eram barreiras brancas, cercas e pastos verdes. As pessoas com quem cruzavam no caminho pareciam mais felizes que os camponeses russos, estavam vestidos com roupas novas, suas pesadas carroças e os animais estavam bem cuidados, as aldeias, com suas granjas de madeira e suas casas com teto de palha, eram pequenas mais estavam limpas. Entretanto não se via casas de banhos como nos povoados da Rússia. Pelo amor de Deus! Onde se lavavam?


Não havia bosques de Bétulas e a terra era marrom em vez de negra. Tasia olhou em vão procurando uma torre com sino. A Rússia estava repleta de Igrejas, inclusive nos lugares mais isolados, as grandes cúpulas de ouro que se erguiam por cima das brancas torres, brilhavam no horizonte como círios para assinalar o caminho correto às almas perdidas. Além disso, os russos amavam o som dos sinos e suas chamadas à oração. Ela ia sentir falta de sua alegre cacofonia quando soavam. Os ingleses pareciam não gostar dessa música. Quando Tasia pensava em seu país, lhe encolhia o coração. Parecia-lhe que fazia uma eternidade que tinha aparecido na casa de sua prima Alicia. Esgotada, quão único pôde murmurar foi Zdrasvouity, bom dia, antes de cair meio desacordada nos braços de sua parenta. Uma vez que passou a surpresa, Alicia a acolheu calorosamente; era evidente que a ajudaria no que pudesse. A família eslava tradicional tinha um grande espírito de clã, mesmo Alicia tendo sido educada na Inglaterra desde menina, seguia sendo russa no fundo de sua alma. – Ninguém sabe que estou viva – lhe explicou Tasia – Mas se alguém descobrir o que aconteceu, adivinharia em seguida que procurei refúgio em sua família. Não posso ficar muito tempo com vocês, tenho que desaparecer. Alicia não precisou perguntar quem era esse “alguém”. As autoridades, pressionadas pelas incessantes revoltas e as intrigas políticas não iam muito longe em sua busca por justiça. Mas se os familiares de Mikhail chegavam a suspeitar que Tasia tivesse fugido, não descansariam até encontrá-la. Os Angelovsky eram poderosos e o irmão mais novo de Mikhail, Nicolas, era famoso por sua sede de vingança. – Vamos conseguir um posto de professora para ti – disse Alicia – Ninguém se fixa em uma professora, nem sequer os outros criados. É um trabalho terrivelmente solitário. Em realidade, um de nossos amigos poderia te contratar. Trata-se de um viúvo, pai de uma adolescente. Agora que tinha conhecido lorde Stokehusrt, não sabia o que pensar. Normalmente não demorava em conhecer o caráter de uma pessoa, mas agora estava um pouco confusa. Em São Petersburgo ninguém se parecia com ele, nem os oficiais da corte com suas longas barbas, nem os guardas imbuídos de sua própria importância, nem os lânguidos jovens aristocratas com que convivia habitualmente. Nenhum deles era tão… ocidental.


Tasia notava nele uma força extraordinária sob sua aparência fria e despreocupada. Lorde Stokehurst podia voltar-se perigoso para obter o que desejava. Teria preferido não ter nada a ver com ele, mas já não podia se dar ao luxo de escolher. Ele ficou tenso quando ela olhou seus dedos artificiais, no entanto ela não se surpreendeu, ao contrário, sem esse defeito ele teria parecido menos humano. Tasia tinha compreendido então que Stokehurst preferia inspirar medo antes que compaixão. Devia lhe custar um grande esforço esconder qualquer indício de vulnerabilidade. E muito orgulho. Durante todo o trajeto lorde Stokehurst não se incomodou em esconder seus dedos de metal que descansavam sobre sua coxa. Tasia se disse que o fazia deliberadamente para ver se ela ficava nervosa e por outra parte o estava, mas seu nervosismo não tinha nada a ver com o defeito de seu patrão. Simplesmente, nunca antes tinha estado a sós com um homem. Mas agora já não era uma rica herdeira destinada a casar-se com um príncipe e a reinar em palácios e exércitos de criados. Agora era uma criada e o homem sentado a sua frente era seu amo. Estava acostumada a viajar nas carruagens de sua família com os assentos revestidos de visom e punhos de ouro com o interior decorado por artistas franceses. Esta carruagem, apesar de ser luxuosa, não podia comparar-se nem de longe com as que ela estava acostumada. Com uma pequena careta interior, Tasia se deu conta de que nunca havia preparado ela mesma seu banho nem lavado sua roupa interior. Seu único talento com as mãos era a costura, desde que era muito pequena sempre levava consigo uma pequena cesta cheia de agulhas, tesouras e linhas de várias cores já que sua mãe se negava a ver uma criança ociosa. Afastou esses pensamentos de sua mente. Nunca mais devia pensar no passado e na má sorte de ter perdido seus privilégios. A riqueza não significava nada, a imensa fortuna dos Kapterev não tinha impedido que seu pai morresse nem a tinha consolado quando se sentiu sozinha. A jovem não temia a pobreza nem a fome. Aceitaria sem protestar o destino que Deus lhe tinha reservado. Luke observava intrigado a jovem com seus atentos olhos azuis. As dobras de


seu vestido estavam perfeitamente posicionadas e estava sentada muito direita no assento de couro sem mover um só músculo, como se estivesse posando para um quadro. – Gostaria de saber qual será seu salário? – perguntou de repente. Ela olhou as mãos cruzadas. – Estou segura de que será suficiente milorde. – Cinco libras ao mês me parecem uma quantia justa. Luke se sentiu irritado pelo simples gesto que ela fez com a cabeça. Ele estava lhe oferecendo mais que o normal, e esperava uma amostra de agradecimento por sua generosidade, mas não houve nada disso. Não acreditava que Emma fosse gostar dessa professora. Como uma criatura de outro mundo podia ter o menor ponto em comum com a malandra de sua filha? Miss Billings parecia perdida em um universo interior que gostava muito mais que a realidade. – Se não estiver completamente satisfeita, miss Billings – continuou ele severo – lhe darei tempo para encontrar um novo emprego. – Não será necessário. Ele bufou contrariado ante tal segurança. – É muito jovem. Algum dia se dará conta de que a vida nos reserva muitas surpresas. Ela esboçou um estranho sorriso. – Já descobrir milorde, acredito que os ingleses o chamam “a força do destino”. – E foi “a força do destino” o que a levou até a casa dos Ashbourne? – Sim, milorde. – Quanto faz que os conhece? O sorriso desapareceu. – Essas perguntas são indispensáveis milorde? Luke afundou mais no assento e cruzou os braços. – Embora não goste muito das perguntas, miss Billings, resulta que aceitei lhe confiar a minha filha.


Ela franziu o cenho como se estivesse tentando resolver um enigma. – O que gostaria de saber de mim milorde? – É parente de Alicia? – Uma prima longínqua. – Russa de nascimento? Ela fechou os olhos como se não lhe tivesse ouvido. Ao fim assentiu com a cabeça. – Casada? Ela não levantou as pálpebras. – Por que me pergunta isso? – Quero saber se tiver que esperar ver um dia um marido furioso diante de minha porta. – Não existe nenhum marido – ela respondeu com tranquilidade. – Por quê? Embora não tenha dinheiro seu rosto é atraente o suficiente para provocar algumas propostas interessantes. – Prefiro seguir sozinha. Ele sorriu pesaroso. – Eu também, mas você é muito jovem para resignar-se a uma vida de solidão. – Tenho vinte e dois anos milorde. – Bobagens – disse ele suavemente – Só é alguns anos mais velha que Emma. Ela o olhou com uma expressão severa em seu formoso rosto. – Os anos não são importantes na realidade não é certo? Algumas pessoas não são mais sábias aos sessenta anos que aos dezesseis. Há meninos que aprenderam por experiência e sabem muito mais que os adultos a sua volta. A maturidade não é fácil de medir. Luke olhou para o lado perguntando-se o que teria acontecido com ela e porque estaria sozinha. Tinha que haver alguém, um pai, um irmão, um tutor, que cuidasse dela. Por que estava sem nenhum amparo? Passou os dedos pela manga esquerda para sentir as correias de couro que sustentavam seus dedos artificiais. Essa misteriosa mulher lhe inquietava.


Amaldiçoou ao Charles Ashbourne em silêncio. Um mês. Um condenado mês inteiro! Tasia se absorveu na contemplação da paisagem enquanto chegavam aos subúrbios de Southgate. Southgate, em outra época aldeia do estado, converteu-se em uma verdadeira cidade pequena que possuía o mercado mais importante do condado. Estava rodeado de pradarias e de riachos e os magnífico edifícios que albergavam o mercado de trigo, o moinho e a escola, tinham sido ideados pelo avô de Luke. A igreja era uma construção austera com enormes vidraças que dominava o centro do povoado. No alto de uma colina se destacava a impressionante silhueta de uma mansão dominando os campos por quilômetros à sua volta. Miss Billings lançou a Luke um olhar interrogativo. – Isso é Southgate Hall – disse ele – Emma e eu somos os únicos Stokehurst que vivem ali. Minha irmã se casou com um escocês e vive com ele em Selkirk. O veículo percorreu o serpenteante caminho antes de atravessar uma porta que havia na muralha que antigamente protegia a fortaleza normanda sobre cujas ruínas se levantavam o castelo atual. Só a parte central datava do século XVI. Com suas incontáveis torres e pontas, era considerado como uma das mais pitorescas da Inglaterra e os estudantes de arte vinham frequentemente para desenhar sua original arquitetura. A entrada diante da qual se deteve a carruagem tinha na fachada um escudo com as armas da família. Depois que um lacaio com libré negro a ajudou a descer, Tasia levantou os olhos para o escudo, este representava uma águia que segurava uma rosa entre suas garras. Sobressaltou-se quando alguém lhe tocou o cotovelo. Lorde Stokehurst estava à contraluz com o rosto na sombra. – Entre – disse lhe fazendo um gesto para que lhe precedesse. Um mordomo ancião com queixo comprido e pouco cabelo na cabeça estava ao lado da porta de entrada. Lorde Stokehurst anunciou: – Esta é miss Billings, a nova professora, Seymour. Tasia se surpreendeu ao ver que ele a apresentava primeiro, mas logo


recordou que já não era uma dama a não ser uma criada de nível inferior e os inferiores sempre eram apresentados a seus superiores. Com um pequeno sorriso nos lábios, fez uma breve reverencia a Seymour. Entraram em um magnífico vestíbulo cujo centro estava ocupado por uma mesa octogonal e onde a luz entrava em torrentes pelas grandes janelas. Tasia se distraiu de sua contemplação, quando ouviu um grito de alegria. – Papai! Uma alta e desajeitada menina com uma abundante cabeleira avermelhada entrou correndo. Luke franziu o cenho ao ver Emma correndo atrás de um cão gordo, um mestiço de raça indeterminável que ela tinha comprado uns meses antes de um mascate. Ninguém em Southgate Hall, nem sequer aqueles a quem gostava dos animais, apreciavam muito a esse animal peludo de cor cinza e marrom. Tinha uns olhos pequenos, um enorme focinho e umas imensas orelhas que lhe penduravam e que tinham dado a Emma a ideia de lhe chamar Sansão. Seu apetite só era igualado por sua obstinada recusa a qualquer tipo de adestramento. Assim que viu Luke, Sansão se atirou em cima dele dando sonoros latidos de alegria. Logo se deu conta de que havia uma presença estranha e começou a grunhir mostrando os dentes. Emma o agarrou pela coleira e lhe ordenou ficar quieto enquanto gemia para soltar-se. – Para Sansão! Acalme-se tolo! Comporte-se bem. Luke interrompeu o discurso com sua voz grave. – Emma tinha te proibido de colocar esse cão em casa. Enquanto falava se pôs diante de miss Billings a qual o cão parecia que queria comer de um bocado. – Não é mal – protestou Emma lutando para mantê-lo quieto – só é ruidoso, nada mais. Luke estava a ponto de tirar o cão para fora quando notou que miss Billings já não estava detrás dele. Estava se aproximando do animal com os olhos entrecerrados e lhe falava em russo com voz suave e gutural. Luke não entendeu nenhuma só palavra, mas sentiu que lhe percorria um calafrio. Sansão deve ter notado o mesmo já que se tranquilizou e se limitou a olhar a recém-chegada com


seus pequenos olhos. De repente se deixou cair sobre o ventre e se arrastou para ela. Um gemido escapou de sua garganta enquanto golpeava o chão energicamente com a cauda. Miss Billings se inclinou para lhe acariciar a cabeça, então Sansão rodou sobre suas costas extasiado e permaneceu jogado aos pés dela quando ela se endireitava. Luke ordenou a um lacaio que tirasse o cão, Sansão obedeceu à contra gosto com a cabeça tão baixa que sua língua e suas orelhas virtualmente se arrastavam pelo chão. Emma foi à primeira em recuperar-se. O que lhe disse? Os olhos cinza azulado de miss Billings se detiveram na menina e sorriu. – Recordei os bons costumes. Desconfiada, Emma se voltou para seu pai. – Quem é? – Sua professora. Emma ficou boquiaberta. – Minha o que? Mas papai não me disse que… – Eu também o ignorava – cortou com ironia. Tasia seguia observando à filha de Stokehurst. Magra e um pouco desajeitada, estava a ponto de entrar na adolescência. Com seu cabelo encaracolado de um vermelho fogo, era impossível que passasse despercebida. Sem dúvida era o alvo de brincadeiras desumanas por parte de seus amigos, disse-se. Só o cabelo teria sido suficiente, mas é que, além disso, era muito alta. Possivelmente um dia chegasse a medir um metro e oitenta; mantinha-se encurvada em um esforço para parecer mais baixa, entretanto a saia ficava curta. Tinha herdado os formosos olhos azuis cor safira de seu pai, mas suas pestanas eram cor cobre e seu rosto estava cheio de sardas. Uma mulher alta com o cabelo cinza e aspecto altivo aproximou-se deles levando na cintura um enorme chaveiro símbolo de sua autoridade sobre os serventes. – Mrs. Knaggs – declarou Stokehurst – está é miss Billings, a nova professora


de Emma. As sobrancelhas da ama de chaves se uniram em uma. – Realmente… Terei que preparar um quarto. Suponho que o mesmo de sempre não? Por seu tom se adivinhava que esta professora não duraria muito mais que as anteriores. – O que decidir Mrs. Knaggs. Stokehurst depositou um rápido beijo na cabeça de sua filha. – Tenho trabalho – murmurou – nos veremos no jantar. Emma assentiu com a cabeça sem deixar de olhar para Tasia. – Vou me encarregar de suas acomodações – disse a ama de chaves – Quer uma taça de chá miss Billings? Tasia morria de vontade, o dia tinha sido longo e realmente ainda não tinha recuperado as forças desde que tinha chegado à Inglaterra, mas apesar de tudo disse que não. No momento o importante era dedicar toda sua atenção a sua aluna. – Preferiria conhecer a casa. Quer me acompanhar Emma? – Sim, miss Billings – respondeu educadamente à pequena – O que gostaria de ver? Há quarenta dormitórios e outros tantos salões. Também há galerias, pátios, a capela… Levaria um dia inteiro para mostrar tudo. – No momento nos contentaremos com o que te pareça mais importante. – Está bem miss Billings. Enquanto atravessavam o vestíbulo Tasia admirou o magnífico castelo, tão diferente da mansão vitoriana dos Ashbourne. Southgate Hall estava decorado com brancas molduras e mármore de cor pálida, os cômodos tinham os tetos altos e tinham muita luz devido às grandes janelas; a maior parte do mobiliário era francês como o que Tasia estava acostumada a ver em São Petersburgo. A princípio Emma não falou muito, limitando-se a lançar frequentes olhadas a sua acompanhante. Mas quando saíram do salão de música para atravessar uma longa galeria cheia de obras de arte, a curiosidade falou mais alto.


– Como papai a encontrou? – perguntou – não me disse em nenhum momento que ia trazer uma professora. Tasia tinha se detido diante de um quadro de Boucher, uma das numerosas obras modernas da galeria, todas elas de excelente gosto. Dirigiu sua atenção a adolescente. – Estava passando uns dias na casa de uns amigos, os Ashbourne, recomendaram-me muito amavelmente a seu pai. – Eu não gostava da professora anterior, era muito severa e nunca queria falar de coisas interessantes. Só livros, sempre livros… – Mas os livros são coisas interessantes. – A mim não me parecem isso. Prosseguiram lentamente seu caminho ao longo da galeria. Agora Emma olhava a Tasia sem dissimulação. – Nenhuma de minhas amigas tem uma professora como você. – Não? – Você é jovem e fala de uma forma estranha, além disso, é muito bonita. Você também – disse Tasia suavemente. Emma fez uma careta cômica. – Eu? Eu sou uma gigante com o cabelo de cenoura. Tasia sorriu. – Eu sempre quis ser alta para que me confundissem com uma rainha cada vez que entrasse em algum lugar. Só as mulheres altas como você são realmente elegantes. A menina avermelhou. – Ninguém nunca havia me dito isso… – Quanto a seu cabelo, é encantador – continuou Tasia – Sabe que Cleópatra e suas damas tingiam o cabelo de vermelho com henna? É maravilhoso ter essa cor de forma natural! Emma parecia cética. A seguinte galeria estava fechada com umas portas cristalizadas que deixavam ver uma luxuosa sala de baile decorada em branco e ouro.


– Vai me ensinar a me comportar como uma dama? – perguntou de repente Emma. Tasia sorriu Emma, era igual a seu pai, tinha o costume de fazer perguntas à queima roupa. – Deram-me a entender que necessitava alguns conselhos a respeito – reconheceu. – Realmente não vejo porque é necessário ser uma dama a todo custo. Todas essas condenadas regras e gestos, nunca o conseguirei! Fez outra careta. Tasia proibiu a si mesma rir, entretanto era a primeira vez desde por volta de um mês que algo despertava seu senso de humor. – Não é difícil, terá que levar como um jogo e então estou segura de que o fará perfeitamente. – Nunca faço nada bem quando não vejo uma razão para fazê-lo. Que importância pode ter que não utilize o garfo adequado se me alimento igual? – Quer a resposta filosófica ou a prática? – As duas. – A maioria das pessoas está convencida que sem etiqueta se viria abaixo toda a civilização. Primeiro desapareceriam os bons costumes, logo a moral e ao final chegaria à catástrofe como aconteceu aos romanos em sua decadência. Mais importante ainda: se cometer um equívoco em público, você mesma se sentirá chateada, igual a seu pai e isso te impedirá de atrair a atenção dos jovens cavalheiros. – OH! Era evidente que Tasia tinha conseguido despertar o interesse de Emma. – Os romanos eram realmente decadentes? Eu acreditava que se limitavam a guerrear e construir calçadas e fazer longos discursos profundamente aborrecidos. – Terrivelmente decadentes! – declarou Tasia – se quiser amanhã lerei algo de sua história. – De acordo.


Emma dedicou a sua nova professora um grande sorriso. – Venha à cozinha, eu gostaria que conhecesse a cozinheira, Mrs. Plunkett. É a pessoa que eu mais gosto da casa depois de papai. Atravessaram uma despensa cheia a transbordar de conservas e o lugar onde se faziam os bolos, mobiliada com mesas de mármore e cheia de toda classe de utensílios. Emma agarrou Tasia pelo braço e passaram na frente de várias criadas curiosas. – É minha professora, chama-se miss Billings – anunciou a menina sem deterse. A imensa cozinha estava cheia de serventes atarefados com a preparação do jantar. No centro havia uma longa mesa de madeira em cima da qual havia chaleiras, panelas e moldes de cobre. A seu lado estava uma mulher baixa, provida com uma grande faca ensinando a uma das criadas o modo adequado de cortar as cenouras. – Esta é miss Billings, Mrs. Plunkett – vozeou Emma sentando-se em um tamborete – É minha nova professora. – Não posso acreditar no que veem meus olhos! – exclamou a cozinheira – já era hora de ver caras novas por aqui. E é muito bonita. Mas olha-a… esta tão magra como o cabo de uma vassoura. Agarrou uma bandeja de bolos e tirou o pano que os cobria. – Prove estes bolos de maçã, meu cordeirinho, e me diga se o recheio está muito grosso. Tasia entendeu o afeto que Emma sentia pela jovial Mrs. Plunkett com suas bochechas vermelhas como maçãs, seus brilhantes olhos e sua calidez maternal. Vamos prove – insistiu a boa mulher. Tasia pegou uma, imitada por Emma que escolheu a maior e a mordeu com vontade. – Deliciosa! – exclamou com a boca cheia. Sorriu ao ver o olhar de reprovação de Tasia. – OH! Sei não se deve falar com a boca cheia. Mas eu consigo fazê-lo sem que se veja a comida.


Escondeu o pedaço de bolo na bochecha. – Vê? Tasia ia responder que de todas as maneiras não estava certo quando viu que Emma piscava a Mrs. Plunkett e não pôde evitar sorrir. – Temo-me Emma, que apesar de seus esforços um dia acabará salpicando de migalhas a um convidado importante. O sorriso de Emma se ampliou. – Isso! A próxima vez que lady Harcourt venha nos visitar encherei a cara de migalhas. Assim nos livraremos dela para sempre. Imagina a cara de papai? Ao ver o desconcerto de Tasia lhe explicou: – Lady Harcourt é uma das mulheres que querem se casar com papai. – Uma delas? Quantas há? – Muitas! Quando damos alguma festa ouço-as falar. Não pode imaginar as coisas que dizem! Geralmente não entendo a metade, mas… – Graças a Deus! – exclamou Mrs. Plunkett – Sabe muito bem que não deve escutar as conversas alheias. – É meu pai! Tenho direito de saber quem planeja lhe apanhar. E lady Harcourt está muito decidida. Antes que me dê conta estarão casados e me enviarão a um internato. Mrs. Plunkett bufou. – Se seu pai tivesse intenções de casar-se teria feito há muito tempo. Nunca existiu nenhuma outra pessoa além de sua mãe e duvido que isso mude. Emma franziu o cenho pensativa. – Eu gostaria de me lembrar melhor dela. Gostaria de ver seu retrato miss Billings? Está em um dos salãozinhos onde costumava tomar o chá, no primeiro piso. – Eu adoraria – respondeu Tasia dando uma mordida em seu bolo embora não tivesse fome. – Vai gostar daqui – a informou a cozinheira – lorde Stokehurst é generoso com seus serventes e a comida não é racionada. Temos toda a manteiga que queremos e presunto todos os domingos, assim como sabão, ovos e velas de boa


qualidade para nosso uso pessoal. Quando vêm visitas ao castelo nos inteiramos de algumas coisas por seus criados, alguns nunca comeram ovos. Teve sorte de que lorde Stokehurst a contratasse, mas estou segura de que você já sabe. Tasia assentiu distraída, estava se perguntando como teriam sido tratados seus próprios serventes na Rússia e se sentiu de repente terrivelmente culpada. Nunca tinha se preocupado em saber se estavam bem alimentados e se tinham suficiente para saciar a fome. Sua mãe certamente era generosa, mas... Possivelmente pensava muito nela mesma e em sua comodidade para preocupar-se com os outros, e nenhum deles se atreveria a lhe pedir algo. Deu-se conta de repente que Mrs. Plunkett e Emma a olhavam com estranheza. – Treme a mão – declarou Emma – Não se encontra bem miss Billings? – E, além disso, está muito pálida – acrescentou a cozinheira preocupada. Tasia deixou seu bolo de lado. – Estou um pouco cansada – confessou. – Estou segura de que seu quarto já está preparado – disse Emma – A acompanharei. Terminaremos a visita amanhã. A cozinheira envolveu o resto do bolo em um guardanapo e o deu a Tasia. – Agarre isto, cordeirinho. Logo lhe enviarei uma bandeja. – É muito amável de sua parte – respondeu Tasia com um sorriso – Muito obrigado Mrs. Plunkett. A cozinheira as seguiu com os olhos enquanto abandonavam a cozinha, assim que a porta se fechou todas as criadas ficaram a tagarelar ao mesmo tempo. – Viram seus olhos? Parecem os de um gato. – Está tão magra! A roupa lhe pendura por todos os lados. – E sua forma de falar! Algumas palavras não se entendem. – Eu gostaria de ter esse acento – disse uma delas sonhadora – é muito bonito. Mrs. Plunkett lhes aconselhou rindo que continuassem com seu trabalho. – Já falaram demais. Hannah termina com as cenouras. E você Polly, sobretudo não deixe de mexer o molho, se não acabará cheio de grumos.


Luke e Emma estavam sentados a grande mesa coberta com uma toalha de damasco. O fogo ardia na chaminé iluminando as tapeçarias flamencas e as esculturas de mármore que havia nas paredes. Um lacaio encheu de água a taça de Emma enquanto Luke bebia vinho francês. O mordomo tirou a tampa que cobria as bandejas e serviu uma cheirosa sopa de trufas nos pratos de sopa de fina porcelana. Luke sorriu a sua filha. – Sempre me preocupo quando tem esse aspecto satisfeito Emma. Espero que não esteja maquinando alguma travessura para chatear a sua nova professora como fez com a anterior. – OH, certamente que não! É muito melhor que miss Cawley. – Por Deus – disse relaxado – suponho que qualquer uma seria melhor que miss Cawley. Emma começou a rir. – É certo. Mas eu realmente gostei muito de miss Billings. Luke levantou as sobrancelhas. – Não te parece muito séria? – Não. Estou segura de que em seu interior está desejando rir. Luke voltou a ver o grave rosto de miss Billings. – Essa não é a impressão que me deu. – Miss Billings vai ensinar-me etiqueta, boas maneiras e tudo isso. Diz que não teremos que passar todo o dia na sala de aula. Que aprenderei o mesmo se levarmos os livros para lê-los lá fora sob os arbustos. Amanhã começaremos com a Roma antiga e depois somente falaremos francês até a hora do jantar. Prefiro te avisar papai, de que se me dirigir à palavra antes das quatro da tarde me verei obrigada a te falar em um idioma que não conhece. Ele a olhou com brincadeira. – Eu falo francês. – Você falava Frances – respondeu ela triunfante – Miss Billings diz que se não se praticar um idioma se esquece muito rapidamente.


Luke deixou a colher perguntando-se o que estava tramando a professora. Possivelmente tentava ganhar a amizade de Emma para, chegado o momento, utilizar a sua filha como uma arma contra ele. E ele não estava gostando de nada disso. Karen Billings faria melhor cuidando do que fazia ou faria com que se arrependesse do dia que tinha nascido… Só um mês, recordou a si mesmo tentando dominar seu mau humor. – Não te afeiçoe muito a miss Billings Emma, talvez não fique muito tempo conosco. – Por quê? – Podem acontecer muitas coisas, pode ser que não resulte ser uma boa professora, ou talvez decida pegar outro emprego. Não o esqueça isso é tudo – concluiu. – Mas se eu quiser que fique, ficará – insistiu Emma. Luke terminou a sopa sem responder. Logo mudou de tema e falou com sua filha sobre um puro sangue que queria comprar. Emma por sua parte evitou cuidadosamente qualquer outra alusão a sua nova professora. Tasia andava por seu quarto situado no segundo piso provido de uma encantadora janela oval voltada para o leste. Estava feliz ante a ideia de que os raios do sol a despertassem a cada manhã. A estreita cama tinha lençóis limpos e uma simples colcha de patchwortk. Em um canto do quarto havia um lavabo de mogno com uma bacia de porcelana com flores. Perto da janela havia uma mesa e uma cadeira e na parede oposta um armário com um espelho oval. O quarto era pequeno, mas estava limpo e proporcionava intimidade. Tinham deixado sua mala em cima da cama e tirou dela a escova de cabelo e os sabões com aroma de rosas que lhe tinha dado Alicia. Também graças a sua prima tinha dois vestidos, o cinza que usava nesse momento e um negro que pendurou no armário. A cruz de sua avó estava escondida sob sua roupa interior e não se separava dela, também tinha escondido o anel de seu pai dentro de um lenço amarrado dentro de sua toalha de banho. Por último levou a cadeira até um canto do dormitório onde poderia vê-la desde sua cama e depositou ali a imagem da virgem apoiando-a no respaldo. Seguiu com o dedo o contorno do suave rosto da Madonna. Era seu krasnyi


ugolok, seu “canto especial”. Todos os russos de religião ortodoxa organizavam deste modo em suas casas um lugar onde iam procurar a paz no início e no final do dia. Foi interrompida por um leve golpe na porta. Uma donzela, pouco mais velha que ela, estava na entrada, vestida com um avental engomado e com uma touca que lhe cobria parcialmente o cabelo. Era bonita, mas em seu olhar e seus lábios contraídos se via a maldade. – Meu nome é Nan – disse lhe estendendo uma bandeja coberta com um pano – este é seu jantar. Deixe isto no corredor quando terminar virei buscá-lo dentro de um momento. – Obrigado – murmurou Tasia incomodada pela atitude da outra. Parecia estar zangada, mas Tasia não sabia por quê. Entretanto não demorou para inteirar-se. – Mrs. Knaggs diz que sou eu quem deve ocupar-se de você. Não necessitava este trabalho extra, já me doem as pernas de tanto subir e descer as escadas durante todo o dia. Agora, em cima tenho que me encarregar de lhe trazer lenha, baldes de água quente e as bandejas com a comida. – Sinto muito, não necessitarei muito. Com um bufo de desprezo, Nan virou-se e saiu. Tasia foi deixar a bandeja na mesa olhando ao passar para a imagem da virgem. – Ver como são estes ingleses? – murmurou. O rosto da Madonna conservou sua placidez. Tasia levantou com cuidado o pano que cobria a comida e descobriu uns bifes de pato, uma tigela de molho de castanha, uma fatia de pão e verduras cozidas. Também havia uma taça de cristal que tinha uma espécie de pudim. Na casa dos Ashbourne se servia o mesmo, era curioso comprovar como os ingleses gostavam de comidas insípidas, Tasia pegou uma das violetas e voltou a pôr o pano na bandeja. Não tinha fome. Teria dado qualquer coisa por uma fatia de pão negro com manteiga, ou umas cebolas nadando em creme de leite fresco. Ou uns delicados blinis transbordantes de mel. Aromas e sabores familiares que lhe recordavam o


mundo do qual vinha. Nos últimos meses parecia que tinha sido arrastada por um tornado. Tudo tinha lhe escapado por entre os dedos como se fosse areia e não restava nada ao que agarrar-se. – Além de mim mesma – disse em voz alta. Começou a andar distraidamente pelo quarto e em seguida se deteve diante do espelho do armário. Fazia muito tempo que tinha visto sua imagem refletida além de umas rápidas olhadas para ver se o penteado estava em seu lugar e seu vestido estava corretamente arrumado. Viu que seu rosto tinha emagrecido, os delicados ossos de suas maçãs do rosto se sobressaíam de seu rosto e seu pescoço parecia muito frágil sob a gola do vestido. Sem dar-se conta Tasia esmagou entre seus nervosos dedos as violetas que deixaram escapar seu rico perfume. Não gostou de ver a imagem dessa jovem translúcida, uma desconhecida que a olhava com a confiança de um menino. Não queria ser vulnerável e se esforçaria em converter-se em uma mulher forte. Jogou a flor esmagada no chão e se dirigiu resolutamente para a bandeja. Deu uma mordida no pão e esteve a ponto de afogar-se, mas se forçou a comer. Terminaria o jantar e dormiria toda a noite sem despertar, sem sonhar… e pela manhã começaria uma nova vida.


Dois

A sala reservada aos criados fervilhava com o ruído das conversas, e cheirava a café, pão torrado e carne frita. Tasia alisou a saia, passou a mão pelo cabelo e com expressão neutra empurrou a porta. Os que estavam sentados em ambos os lados da grande mesa se calaram imediatamente e se voltaram para ela. Procurando um rosto conhecido Tasia encontrou o de Nan, que seguia mostrando-se hostil. O mordomo, Seymour, estava engomando um jornal e não levantou os olhos. Ia bater em retirada, um pouco perdida, quando o rosto amável de Mrs. Plunkett se materializou diante dela. – Bom dia miss Billings. Levantou cedo. É uma surpresa vê-la na sala dos criados. – Já vejo – disse Tasia com um leve sorriso. – Quase tinha terminado de preparar sua bandeja de café da manhã. Nan a subiria em seguida. Pela manhã prefere beber chá ou chocolate? – Poderia ficar aqui com os outros? A cozinheira pareceu perplexa. – Todos são criados comuns, miss Billings, você é professora, supõe-se que não deve comer suas refeições conosco. A professora de Tasia na Rússia não se viu tão isolada. Essa devia ser uma atitude tipicamente britânica. – Então tenho que comer sozinha? – perguntou irritada. – Sim, salvo quando a convidarem para compartilhar a mesa de Sua Senhoria e de miss Emma. Normalmente é assim. Riu ao ver a expressão da jovem. – Bom, cordeirinho, isso é uma honra não um castigo.


– Eu consideraria uma grande honra comer aqui com vocês. – Seriamente? Todas as cabeças se voltaram para olhá-la e Tasia se esticou para permanecer imperturbável apesar do rubor que lhe cobria as bochechas. Mrs. Plunkett á observou um instante antes de encolher os ombros. – Depois de tudo não vejo quem poderia impedir. Mas lhe advirto que somos pessoas muito simples. Piscou antes de acrescentar: – Inclusive há quem mastigue com a boca aberta. Tasia se dirigiu a um lugar que estava livre em um dos bancos. – Posso? – murmurou. Afastaram-se para lhe dar um lugar. – O que vai tomar miss? – pergunto uma donzela. Tasia olhou a fileira de tigelas e bandejas que havia sobre a mesa. – Uma torrada, por favor. E possivelmente uma salsicha… um ovo… e uma dessas coisas… – Uma bolacha de aveia – disse amavelmente a donzela lhe passando o que tinha pedido. Um dos lacaios sorriu ao vê-la encher o prato. – Parece um passarinho, mas seu apetite parece o de um cavalo. Ouviram-se umas amistosas gargalhadas e as conversas voltaram a começar como antes que Tasia chegasse. Ela se sentia feliz por participar dessa cordialidade, sobretudo depois de sua solidão dos últimos meses. Parecia maravilhoso estar sentada rodeada de gente. Quanto à comida, embora tivesse um gosto estranho, ao menos estava quente e era nutritiva. Por desgraça sua satisfação desapareceu rapidamente ante o agressivo olhar de Nan que parecia decidida a lhe fazer entender que não era bem-vinda. – Olhem como come, com pequenas mordidas como se fosse uma dama – gargalhou – e como bate delicadamente nos lábios com o guardanapo. Cerda


pretensiosa! Sei muito bem porque quer estar conosco, não serve de nada dar-se importância se ninguém está olhando. – Nan! – interveio outra donzela – Não seja má pessoa! – Deixa-a tranquila Nan – acrescentou outra. Nan se calou, mas continuou olhando para Tasia. Esta última tragou as últimas partes de seu café da manhã que repentinamente tinha ficado com sabor de gesso. Durante meses tinha sido detestada, temida e desprezada por camponeses que não a conheciam e por gente de sua mesma fila que a tinham abandonado covardemente, e agora era a vez de uma criada. Levantou a cabeça e olhou para Nan fixamente com os olhos entrecerrados, com o mesmo olhar gelado que tinha dedicado ao guarda da prisão em São Petersburgo. E a criada avermelhou e afastou a vista fechando os punhos. Só então Tasia se levantou para levar seu prato a grande pia de pedra. – Bom dia – murmurou ela dirigindo-se a todos. Respondeu um coro de vozes amistosas. Quando chegava ao vestíbulo se encontrou com Mrs. Knaggs que pareceu um pouco menos estirada que no dia anterior. – Emma está se trocando depois de seu passeio a cavalo, miss Billings – informou – agora tomará seu café da manhã e estará pronta para trabalhar as oito em ponto. – Monta a cavalo todos os dias? – perguntou Tasia. – Sim, com seu pai. – Parecem muito unidos. Mrs. Knaggs olhou rapidamente a seu redor para assegurar-se de que ninguém podia ouvi-la. – Lorde Stokehurst é completamente louco por essa menina. Daria sua vida por ela, de fato quase o fez uma vez… Tasia recordou os dedos de metal e inconscientemente acariciou a mão esquerda. – Por isso…


– Sim – respondeu Mrs. Knaggs que tinha visto o gesto – um incêndio em Londres. Lorde Stokehurst se lançou entre as chamas sem que ninguém pudesse evitá-lo. Toda a casa estava ardendo e os que viram a cena não acreditavam que fosse sair vivo. Entretanto saiu com sua esposa no ombro e a menina nos braços. A ama de chaves inclinou a cabeça como se estivesse vendo os fantasmas movendo-se diante de seus olhos. – Lady Stokehurst morreu essa mesma noite. Durante dias inteiros lorde Stokehurst esteve louco de dá pena. Por outra parte suas feridas lhe faziam sofrer terrivelmente, sobretudo a do braço esquerdo. A ferida se infectou e não havia outra opção; teve que amputar três dedos ou deixar que morresse. Ironias do destino! Até esse momento sempre tinha tido muita sorte e de repente perdeu tudo. A maior parte dos homens teriam ficado marcados para sempre, mas ele não. Nosso amo é forte. Pouco depois desse drama lhe perguntei se pensava deixar Emma aos cuidados de sua irmã Catherine que se ofereceu para cuidar dela o tempo que fosse necessário. “Não, respondeu-me, a menina é a única coisa que resta de Mary, nunca me separarei dela nem sequer por um dia”. Mrs. Knaggs se interrompeu e sacudiu a cabeça. – Mas estou falando muito verdade? Seria um mau exemplo para os outros se me vissem aqui tagarelando. Tasia tinha um nó na garganta. Parecia impossível que o homem descrito por Mrs. Knaggs fosse o aristocrata frio e distante que tinha conhecido no dia anterior. – Obrigado por haver me falado dele – conseguiu dizer – É uma bênção que Emma tenha um pai que a ame tanto. – Certamente! Mrs. Knaggs olhava para Tasia sem ocultar sua curiosidade. – A senhorita não é a classe de professora que lorde Stokehurst costuma contratar – continuou – É estrangeira não é assim? – Sim senhora. – Já se fala muito de você em Stokehurst Hall. Aqui ninguém tem nada importante para esconder, entretanto está claro que você tem muitos segredos.


Tasia, pega de surpresa, limitou-se a sorrir enquanto encolhia os ombros. – Mrs. Plankett tem razão – continuou a ama de chaves – disse que tem algo que faz com que a gente confie em você, possivelmente seja sua serenidade. – Não o faço de propósito senhora. É algo que herdei da família de meu pai, todos são tranquilos, quase reservados, entretanto minha mãe é muito charlatona e cordial. Eu gostaria de me parecer mais a ela. – Está muito bem assim – a tranquilizou Mrs. Knaggs com um largo sorriso – Agora devo me ocupar de meu trabalho. Hoje é o dia de lavanderia, não se termina nunca de esfregar, passar e engomar. Prefere ir à biblioteca ou ao salão de música para esperar por Emma? – Certamente, obrigado senhora. Tasia começou a andar pela mansão enquanto procurava o lugar onde queria ir. Sua visita do dia anterior tinha sido tão rápida que só recordava onde estava a cozinha. Entretanto chegou por acaso ao salão de música, uma sala circular iluminada por umas janelas e com umas paredes altas decoradas com flores de lis que se erguiam até encontrar-se com um teto com anjinhos pintados que tocavam diversos instrumentos. Tasia se sentou ao piano e tocou algumas notas, comprovou que estava perfeitamente afinado. Deixou que seus dedos vagassem pelo teclado procurando uma melodia que coincidisse com seu estado de ânimo. Como todos em São Petersburgo, sua família era uma verdadeira apaixonada por tudo o que vinha da França por isso começou a tocar uma valsa. Depois de tocar umas notas se deteve quando lhe veio à mente uma valsa de Chopin. Embora não a tocasse há muito tempo, recordava-a bastante bem e, com os olhos fechados, começou a tocar, lentamente no início e em seguida com maior segurança até abandonar-se completamente à música. De repente um ruído a obrigou a abrir os olhos e suas mãos se detiveram, geladas, sobre as teclas. Lorde Stokehurst estava ali, a seu lado com uma expressão estranha, como se acabasse de receber um terrível choque. – Por que esta tocando isso? – ladrou Tasia custou a falar devido ao susto.


– Sinto muito, se lhe desgostei… – levantou-se rapidamente e ficou detrás da banqueta como se quisesse proteger-se. – Não voltarei a tocar este piano, só queria ensaiar um pouco… – Por que essa música? – Milorde? – perguntou ela completamente desorientada. Se estava tão afetado por essa música sem dúvida se devia a que tinha um significado especial para ele. De repente o entendeu e os batimentos de seu coração se tranquilizaram. – OH! – murmurou – era sua peça preferida, não é assim? Não disse o nome de lady Stokehurst porque não havia necessidade. Ele empalideceu e ela soube que não se equivocou. Seus olhos azuis se iluminaram com um brilho perigoso. – Quem lhe disse? – Ninguém. – De modo que é uma simples coincidência? Sentou-se ao piano e tocou o único que… – interrompeu-se com as mandíbulas apertadas. Tasia deu um passo para trás. – Eu… Ignoro porque escolhi essa valsa – balbuciou – O senti isso é tudo. – Sentiu-o? – No piano. Silêncio. Stokehurst a olhava fixamente como se estivesse dividido entre a ira e o assombro. Tasia desejava poder comer suas palavras ou explicar-se melhor, o que fosse para quebrar essa insuportável tensão. No entanto ficou paralisada, sabendo que qualquer coisa que dissesse ou fizesse pioraria ainda mais a situação. Por fim Stokehurst se afastou murmurando um juramento entre dentes. – Sinto-o – repetiu Tasia que seguia olhando a porta pela qual ele tinha desaparecido. De repente viu que toda a cena tinha tido uma testemunha. Em meio de sua ira Stokehurst não tinha notado a presença de sua filha que estava escondida justo detrás da porta. Pela fresta da porta só se podia ver um de seus olhos. – Emma? – sussurrou Tasia.


A adolescente desapareceu silenciosa como um gato. Tasia voltou lentamente para o piano e voltou a ver o rosto de Stokehurst quando abriu os olhos. Contemplava-a com uma espécie de dolorosa fascinação. Perguntou-se que lembranças teria despertado nele essa música. Sem dúvida muito pouca gente tinha visto essa expressão em sua cara. O marquês era um homem que se orgulhava de seu sangue-frio, sem dúvida tinha convencido a si mesmo e a outros de que a vida continuava para ele, mas em seu interior sofria como um condenado. A reação da mãe de Tasia quando morreu seu marido tinha sido muito diferente. “Sabe que seu querido pai teria querido que fôssemos felizes, – havia dito Maria a sua filha – agora ele está no céu e eu sigo viva. Te lembre sempre dos que partiram, mas não pare. Seu pai não se desgostaria que eu visse outros homens e você tampouco deve preocupar-se. Entende-o Tasia?”. Tasia não o tinha entendido. Tinha odiado a sua mãe por esquecer-se tão rapidamente de Ivan. Agora começava a lamentar ter julgado tão duramente o comportamento de Maria. Possivelmente deveria ter levado luto durante mais tempo, possivelmente era egoísta e superficial, possivelmente saísse com muitos homens, mas ao menos não tinha uma ferida escondida em seu interior, uma chaga infectada. Era melhor viver plenamente que estar açoitado pelo que se perdeu para sempre. Luke não sabia aonde ia, mas se encontrou em seu dormitório. A maciça cama com cortinas de seda cor marfim estava instalada sobre um estrado retangular e só tinha sido utilizada por sua mulher e por ele. Era seu território sagrado e nunca permitiria que entrasse outra mulher. Mary e ele tinham passado sua noite de núpcias nessa cama e em seguida milhares de noites mais. Ali era onde ele a tinha abraçado quando estava grávida, e tinha estado a seu lado quando nasceu Emma. Sua mente estava cheia das notas da valsa. Com um grunhido que pareceu um gemido se sentou na beira do estrado e agarrou a cabeça com as mãos como se assim pudesse impedir que as lembranças saíssem à tona. Tinha sido difícil, mas tinha acabado por aceitar a morte de Mary e há muito tempo tinha deixado o luto. Tinha uma família, amigos, uma filha a que adorava


uma bela amante e uma vida muito plena para que sobrasse tempo para lamentar o passado. Entretanto, nos momentos de solidão… Mary e ele eram amigos de infância, muito antes que se apaixonassem um do outro. Era para ela que sempre se voltava quando queria compartilhar uma alegria ou uma tristeza, quando queria descarregar sua ira ou procurar consolo. Quando ela morreu ele perdeu ao mesmo tempo a sua melhor amiga e a sua esposa. E no fundo de seu coração ainda ficava um lugar desesperadamente vazio. Como em um sonho, voltou a vê-la sentada diante do piano com o cabelo brilhando por causa de um raio de sol. Estava começando a tocar uma valsa. – “Não é lindo”? – Dizia Mary com as mãos no teclado – Parece que estou fazendo progressos. – Com certeza – respondia ele sorrindo com a cabeça apoiada em seus luminosos cachos – mas leva meses tocando essa valsa Mary Elizabeth. Não gosta de tocar outra? Só pelo gosto de mudar. – Não antes de interpretar esta à perfeição. – Inclusive nossa filha já a conhece perfeitamente – se queixou Luke – E eu estou começando a ouvi-la inclusive quando durmo. – Pobre do meu querido! – respondeu ela alegremente sem deixar de tocar – Não te dá conta da sorte que tem de que te torture com uma peça tão bonita? Luke a beijou e murmurou: – Ah eu também encontrarei uma tortura para me vingar. Ela riu. – Não o duvido querido, mas enquanto o faz me deixe ensaiar. Pegue um livro, ou sua pipa, ou vá caçar algum pobre animal. Em resumo vá fazer o que seja que fazem os homens em seus momentos de ócio. Ele deslizou suas mãos sobre os redondos seios de sua mulher. – Geralmente preferem fazer amor com suas esposas. – Que burguês é! – protestou ela apoiando-se de boa vontade nele – e supõe que a estas horas deveria ir a seu clube para falar de política.


Estamos no meio da tarde. Ele a beijou no pescoço. – Quero te ver nua em pleno sol, veem para cama comigo. Ignorando seus protestos a levantou nos braços e ela soltou uma risadinha de surpresa. – Meus exercícios… – Podem esperar. – Possivelmente nunca consiga fazer nada importante em minha vida – disse – mas quando tiver morrido poderão dizer por mim: Tocava essa valsa perfeitamente. “Ela olhava por cima do ombro para o piano abandonado enquanto a levava para as escadas…”. A voz de seu criado de quarto quebrou o encanto. Luke se sobressaltou e se voltou para a mesa de mogno ao lado da qual estava Biddle com os braços carregados de camisas brancas engomadas e gravatas. Era um homem baixinho de uns quarenta anos e só era feliz quando começava a arrumar coisas. – Disse algo milorde? – perguntou. Luke respirou fundo com o olhar fixo no desenho do tapete. Os ecos do passado desapareceram lentamente. – Me prepare roupa de viagem, Biddle – disse com voz cortante – Passarei a noite em Londres. O lacaio não se alterou. Era uma ordem que já tinha obedecido muitas vezes e todo mundo sabia o que significava: esta noite lady Íris Harcourt ia ter visita. Tasia ainda estava sentada ao piano quando Emma voltou para o salão de música, usava um vestido de uma cor azul muita parecida ao de seus olhos. – Já tomei o café da manhã docilmente. Estou preparada para a lição. Tasia assentiu com a cabeça. – Vamos procurar alguns livros na biblioteca. Emma se aproximou do teclado e golpeou uma tecla. A nota ressonou no ar. – Estava tocando a valsa de minha mãe. Sempre me perguntei qual era. – Não lembra havê-la ouvido tocar? – Não, mas Mrs. Knaggs me disse que lhe encantava uma em particular, papai


nunca quis me dizer de qual se tratava. – Estou segura de que é doloroso para ele. – Poderia tocá-la para mim, miss Billings? – Não acredito que lorde Stokehurst o permitisse. – Então depois de que se vá. Ouvi quando Biddle, seu criado de quarto, dizia ao chofer que papai ia visitar sua amante esta noite. Tasia se surpreendeu ante a franqueza da menina. – Está a par de tudo o que acontece na casa não é certo? Disse com simpatia e os olhos de Emma se encheram de lágrimas. – Sim, miss Billings. Sorrindo, Tasia a pegou pela mão e a apertou com força. – Tocarei essa valsa para ti quando ele partir, quantas vezes quiser. Emma soluçou e secou os olhos com o dorso da mão. – Não sei por que choro tanto! Papai não gosta. – Eu sei exatamente porque – disse Tasia atraindo a adolescente para seu lado na banqueta – Às vezes, quando ficamos mais velhos, parece que as emoções nos transbordam e que façamos o que façamos não podemos contê-las. – Sim – assentiu Emma com um vigoroso movimento de cabeça – é horrível. Sinto-me tão desajeitada! – Todo mundo se sente assim em sua idade. – A senhorita também passou por isso miss Billings? Não a imagino chorando. – Sim, os anos seguintes à morte de meu pai era a única coisa que fazia. Ele era o ser mais importante do mundo para mim, depois de lhe perder me parecia que não tinha a ninguém com quem falar. Explodia em prantos com o menor pretexto, uma vez chorei durante uma hora porque tinha machucado um pé. Tasia sorriu. Mas passa logo – assegurou – você verá. – Isso espero! A senhorita era muito jovem quando seu pai morreu? – Tinha aproximadamente sua idade.


– Ficou de luto? – Sim, estive de luto durante um ano e um mês. – Papai não quer que eu o faça, inclusive se negou a permiti-lo quando minha prima Letty morreu porque lhe entristece me ver vestida de negro. – E tem razão. É um chateio vestir-se de luto. Tasia fechou a tampa do piano e se levantou. – À biblioteca – disse alegremente – O travail nous attend, Ma chére demoiselle – acrescentou em francês.

Lady Íris estava de pé ante o espelho de seu dormitório. Tinham-no posto aí não só para que ela pudesse ver-se estando de pé, mas também para outras ocasiões muito mais interessantes. Essa noite tinha posto um vestido dourado que lhe favorecia muito seu tom de pele cor pêssego e a seu cabelo ruivo. Passou o todo o dia preparando-se. Depois de relaxar com um banho perfumado se vestiu cuidadosamente com a ajuda de sua donzela e tinha suportado duas horas com os rizadores de cabelo Luke, que tinha chegado a elegante mansão de Íris sem ser anunciado, contemplava-a apoiado na porta com um semi sorriso nos lábios. Íris era o tipo de mulher que sempre tinha gostado, uma bela ruiva cheia de paixão e de encanto. Seu voluptuoso corpo estava estreitamente em forma, suas longas pernas escondidas sob o drapeado de sua saia e seus redondos seios modestamente tampados. Sentindo-se observada, Íris se voltou de um salto. Levantou as sobrancelhas. – Querido! É tão silencioso que não te ouvi chegar. O que faz aqui? – É uma visita surpresa. Luke se aproximou lentamente dela. – Boa noite – disse beijando-a. Íris aceitou o beijo com um sorriso satisfeito e entrelaçou os braços ao redor do pescoço dele. É uma surpresa com certeza. Mas já vê que estou arrumada para sair.


Estremeceu quando ele lhe mordiscou levemente o pescoço. – Um jantar – continuou ela. – Te desculpe. – Isso desorganizaria as mesas. E, além disso, estão me esperando. Soltou uma gargalhada quando Luke lhe desabotoou o primeiro botão do vestido. – Não querido! O que te parece se prometo me liberar logo para vir a seu encontro? – Não. Soltou-se um segundo botão. – Não irá a nenhuma parte. Íris franziu o cenho embora sua respiração se acelerasse. – É o homem mais arrogante que conheço. Tem uma estranha maneira de tratar com as obrigações sociais. Não digo que não tenha nada a seu favor, querido, mas cada qual tem que assumir seus defeitos. Luke deslizou uma mão entre o cabelo dela destruindo o sábio equilíbrio em que se mantinham seus cachos. – Precisaria séculos de educação para conseguir um espécime como eu. Se tivesse conhecido os primeiros Stokehurst! Me acredite, não era para sentir-se orgulhoso deles. – Acho – ronronou – estou segura de que eram completamente selvagens. Ele a apertou entre seus braços e brincou levemente com seus lábios antes de apoderar-se apaixonadamente. Íris gemeu esquecendo-se de sua intenção de sair. Arqueou-se contra ele, ávida por ser possuída, Luke era um perito e generoso amante que sabia como levá-la a beira da loucura para depois deixá-la esgotada e feliz. – Espera ao menos que tire o espartilho – sussurrou – A última vez estive a ponto de desmaiar. Luke sorriu contra seu cabelo. – Isso é porque deixa de respirar no momento crucial. Terminou de lhe desabotoar o vestido e o deixou cair no chão, logo desfez os


laços da anágua e do espartilho para descobrir o escultural corpo de Íris em todo seu esplendor. Ao menos poderia esperar um pouco como um homem bem educado – disse ela com uma pequena gargalhada. Isso de rasgar a roupa interior de uma mulher não se faz, pedaço de pirata. – Faça o mesmo com a minha. – Que generoso! É muito… O resto da frase ficou afogada pelos beijos exigentes de Luke. Algumas horas mais tarde jaziam entrelaçados no quarto iluminado somente por alguns candelabros e Luke seguia com suas mãos as curvas exuberantes de seus quadris. – Querido – murmurou ela rodando para ele – Tenho que te perguntar algo. – Hmmm? Luke continuava acariciando-a com os olhos fechados. – Por que não te casa comigo? Luke a olhou pensativo. Em todos os anos que durava sua relação nunca tinha pensado em casar-se com Íris. Tinham vidas separadas e só se necessitavam mutuamente de maneira superficial. – Não me quer? – insistiu ela mimosa. – É obvio que te quero – respondeu olhando-a nos olhos – mas não tenho intenções de me casar com ninguém Íris, e você sabe. – Nos entendemos muito bem, nenhuma pessoa no mundo poderia reprovar esta união e ninguém ficaria surpreso. Luke encolheu os ombros um pouco incômodo. – É porque não quer te atar só a mim? – prosseguiu Íris incorporando-se sobre um cotovelo – Eu não impediria que tivesse algumas aventuras de vez em quando se o desejar. Não te tirarei sua liberdade. Luke se sentou surpreso e passou uma mão pelo cabelo. – A liberdade de fazer amor com mulheres que me seriam indiferentes? Sorriu forçadamente. – Muito obrigado, mas já o fiz e não gostei. Não, eu não procuro esse tipo de liberdade.


– Deus! Realmente nasceu para ser um marido. – Sim, de Mary – murmurou ele com voz mal audível. Íris franziu o cenho. – Por que só ela? Luke ficou em silêncio um momento escolhendo cuidadosamente as palavras. – Quando ela morreu, compreendi…que uma parte de mim se foi com ela para sempre. Ao contrário do que você pensa, não tenho tanto para dar a uma mulher, não seria tão bom marido como o fui para ela. – Sua definição de um mau marido, querido, é muito mais que aquilo com o que os outros se conformam. Era muito jovem quando perdeu a sua mulher Como te atreve a dizer que nunca voltará a amar? Só tem trinta e quatro anos, poderia ter outros filhos, uma família… – Tenho a Emma. – Não acha que ela gostaria de ter irmãos? – Não. – Então perfeito. Eu tampouco tenho muito interesse em ter filhos. – Iris – continuou ele amavelmente – não tenho intenções de me casar, nem contigo nem com ninguém. Só quero o que agora compartilhamos, se esta relação não te agrada, se necessitar mais do que eu posso te oferecer, o entenderei. Muitos homens saltariam de alegria ante a ideia de casar-se contigo e Deus sabe que eu não me meteria em meio de… – Não! Íris riu com preocupação. – Sem dúvida estou sendo muito exigente, eu adoraria dormir contigo todas as noites, viver em sua casa e que todo mundo soubesse que te pertenço. Mas isso não quer dizer que seja desventurada com esta situação. Não se sinta culpado, nunca me prometeu nada. Se isto for tudo o que posso ter de ti já é muito mais do que qualquer outro homem já me deu. – Isso é falso – grunhiu Luke. Teria gostado de lhe oferecer tudo o que ela desejava, mas não suportava a ideia de viver com uma mulher que lhe amaria sem ser correspondida. Seria um matrimônio fantasma, uma paródia da felicidade que tinha conhecido com Mary. – É verdade! – insistiu Íris – Sempre sou sincera contigo Luke.


Ele beijou o ombro dela evitando seu olhar. – Sei. – Por isso vou te dizer algo Luke. Proibiste a ti mesmo te apaixonar depois de Mary, entretanto isso te acontecerá algum dia e não poderá evitá-lo. E espero ser a afortunada. Luke lhe pegou a mão que passeava por seu torso e lhe beijou os dedos. – Se fosse capaz de amar pela segunda vez dessa maneira a alguém, seria por ti Íris. É perfeita. Ela se deitou sobre seu amante provocadora. – Vou fazer com que mude de opinião, na verdade sou repugnante. Luke a fez rodar sobre as costas rindo e lhe acariciou os lábios tentando-a. – Me deixe te dar agradar… – Sempre me dá isso. Conteve a respiração enquanto ele a acariciava. – Tenho uma ideia bastante exata… Depois esteve muito ocupada com suas investidas para terminar a frase. Tasia estava em Southgate Hall por volta de duas semanas e fez um lugar na tranquila rotina da casa. Era maravilhoso viver em um lugar tão aprazível depois dos traumáticos meses que tinha vivido. Tinha sido o objeto de suspeitas e condenações durante tanto tempo que estava feliz de poder confundir-se com a decoração. Por outra parte Alicia Ashbourne tinha razão, ninguém se fixava em uma professora. Os criados eram amáveis com ela, mas não estavam realmente interessados em incluí-la no grupo. E estava muito por baixo, socialmente falando, de lorde Stokehurst e seus aristocráticos convidados para chamar sua atenção. Vivia em um mundo intermédio. Não só tinha um status muito particular, mas, além disso, era incapaz de abandonar sua extremada reserva exceto com Emma. Talvez os meses que passou na prisão lhe tivessem dado a impressão de que era uma espécie de fora da lei, uma pessoa diferente das outras. Resultava impossível confiar em alguém já que não confiava tampouco em si mesma. Davam medo seus próprios sentimentos e


sobretudo, tinha medo de recordar o que tinha feito à noite em que Mikhail Angelovsky morreu. Em seus frequentes pesadelos voltava a ver sangue e adagas, em seus ouvidos ressonava a voz de seu primo. Ainda pior, às vezes durante o dia tinha terríveis lembranças. Em um segundo voltava a ver o rosto de Mikhail, suas mãos, a sala onde tinha sido assassinado...Então, fechando fortemente as pálpebras, afastava essa visão. Mas estava nervosa como uma gata já que nunca sabia quando voltariam a persegui-la – as imagens de seu defunto primo. Graças a Deus, Emma monopolizava todo seu tempo, era bom ter a alguém em quem pensar, alguém cujos problemas e necessidades eram mais imediatos que os seus. A menina estava extremamente sozinha, necessitava a companhia de gente de sua idade, mas não havia nenhum entre os latifundiários dos arredores. Tasia e Emma passavam seis horas ao dia estudando temas que iam da filosofia de Sócrates à maneira de usar a escova de unhas. As orações diárias tampouco ficavam no esquecimento já que a educação religiosa de Emma tinha sido realizada de forma irregular por seu pai e os serventes. A menina aprendia com uma surpreendente rapidez, desfrutava de um dom para os idiomas e de uma intuição que não deixavam de assombrar a Tasia. Escapavam muito poucas coisas; sua curiosidade sem limites a empurrava a espiar a todo mundo, colocava seu nariz sem cessar em tudo em busca do mínimo rumor e logo o analisava cuidadosamente. Isso era tudo o que Emma conhecia do mundo: as oitenta almas que passavam a vida trabalhando como as engrenagens de um enorme relógio para fazer com que a casa funcionasse corretamente. Havia quarenta empregados na mansão e os outros quarenta trabalhavam nos estábulos, no jardim e no moinho. Havia dois serventes destinados unicamente a limpar os cristais. A maior parte deles levava anos servindo aos Stokehurst e eram muito poucos os que se foram. Como disse Mrs. Plunkett a Tasia, em Southgate Hall se tratava bem ao pessoal. – Aconteceu alguma coisa com Nan – disse um dia Emma. Ela e sua professora estavam instaladas no parque com um montão de livros e uns grandes copos de limonada.


– Não notou seu estranho comportamento destes últimos dias? – continuou – Mrs. Knaggs diz que é a febre da primavera, mas não acredito. Estou segura de que está apaixonada pelo Johnny. – Quem é Johnny? – Um dos lacaios, o alto com o nariz aquilino. Cada vez que se veem desaparecem os dois em um canto. Às vezes falam e se beijam, mas a maior parte das vezes ela chora. Espero jamais me apaixonar, a gente sempre parece desgraçada quando se apaixona. – Não deve espiar os criados Emma. Todo mundo tem direito a ter uma vida privada. – E não espio! – indignou-se Emma – Só me dou conta das coisas, e, além disso, você não tem nenhuma razão para defender Nan, todo mundo sabe quão má é com você. Seguro que foi ela que roubou o quadro da Virgem de seu dormitório. – A imagem – retificou Tasia – E não há provas de sua culpabilidade. Uns dias antes Tasia notou o desaparecimento de sua amada Virgem, e o havia sentido muitíssimo. A imagem tinha para ela um valor sentimental já que era uma parte de seu passado. O ladrão nunca saberia até que ponto a desesperava essa perda e não havia modo de recuperá-la. Na verdade, Tasia tinha se negado que Mrs. Knaggs revistasse os quartos dos criados. – Me odiariam – disse – lhe rogo, não os envergonhe procurando em seus dormitórios. Só era uma pintura feita em madeira, não tinha muito valor. – Certamente que sim – protestou Mrs. Knaggs – Me dava conta de como a punha em um lugar visível em cima da cadeira. Era importante para você e não me diga o contrário. – Não necessito imagens para recordar minha fé, basta-me olhar pela janela e ver a beleza que nos rodeia. – Isso é um bom pensamento, querida, mas este problema ultrapassa seus interesses pessoais. Nunca houve aqui nenhum roubo até agora, se não fazermos nada corremos o risco de que volte a acontecer. – Não o creio – declarou Tasia com firmeza – Por favor não levante suspeitas entre os serventes, e sobretudo não diga nada a lorde Stokehurst, não é


necessário. Mrs. Knaggs aceitou a contra gosto jogar terra sobre o assunto, murmurando que gostaria de ir dar uma olhada debaixo do colchão de Nan. A voz de Emma devolveu Tasia ao presente. – Esta bem empregado a Nan se é infeliz, é uma má pessoa. – Não devemos julgar a nossos semelhantes – disse Tasia delicadamente – lembre-se de que Deus pode ver o que há em nossos corações. – Você não odeia a Nan? – Não, compadeço-a, é terrível ser infeliz até o ponto de querer fazer mal aos outros. – Sem dúvida, mas não o sinto por ela. É ela que busca os problemas. Essa noite, depois do jantar, Tasia se inteirou da difícil situação de Nan. Ao lado da cozinha havia uma sala onde os serventes de maior fila se reuniam a cada noite convidados por Mrs. Knaggs. Seymour, Mrs. Plunkett e Mr. Biddle estavam ali, assim como o intendente e a primeira donzela. Estavam comendo umas finas fatias e queijo. Uma das ajudantes de cozinha trouxe café e bolachas. Tasia manteve-se silenciosa como sempre enquanto os outros falavam. – Há notícias de Nan? – perguntou a primeira donzela a Mrs. Knaggs – Inteirei-me do que passou esta tarde. Mrs. Knaggs fez uma careta. – Uma verdadeira catástrofe! O médico lhe receitou um purgante e afirma que vai se recuperar. Sua Senhoria estava muito zangado quando o disse. Quer que a leve amanhã mesmo ao povoado. – Há alguém com ela agora? – perguntou Mrs. Plunkett. – Não, não se pode fazer nada por ela salvo esperar. Por outra parte nenhuma outra donzela a aprecia o bastante para lhe fazer companhia. – E o menino? – insistiu Seymour franzindo o cenho. O intendente sacudiu a cabeça. – Declina toda responsabilidade. Tasia olhou para seus companheiros desconcertada, sem saber de que estavam falando exatamente.


– Qual é o problema de Nan? – perguntou. Era tão estranho que ela se metesse em uma conversa que os outros a olharam surpreendidos. – Não sabe? – respondeu por fim Mrs. Knaggs – Não, é obvio, passou todo o dia com a Emma. É muito desagradável…Nan tem um namorado. Tasia se surpreendeu ante essa palavra tão pouco corrente. – Um namorado? Quer dizer um amante? – Exatamente – disse Mrs. Knaggs olhando o teto antes de acrescentar: – E agora há…consequências. – Esta grávida? Várias sobrancelhas se ergueram ante essa franqueza. – Sim, e o escondeu. Tomou um punhado de pílulas e bebeu uma garrafa de um azeite especial para perder o menino. Quão único conseguiu a muito parva foi ficar doente. Graças a Deus não aconteceu nada com o menino. Agora vai ser despedida e certamente terminará na rua. Mrs. Knaggs sacudiu a cabeça como se o assunto fosse muito desagradável para dizer algo mais. – Ao menos já não a incomodará, miss Billings – disse a primeira donzela. Tasia estava horrorizada e cheia de compaixão para com a desventurada. – Está sozinha? – Não necessita de nada – respondeu Mrs. Knaggs – A viu o médico e eu mesma me assegurei de que tomasse o remédio que ordenou. Não se preocupe querida, necessitava uma boa lição. Foi sua própria loucura o que a levou a… Tasia colocou o nariz na taça de chá enquanto outros continuavam com sua conversa. Ao fim de uns minutos fingiu um bocejo. – Me perdoem – murmurou – O dia foi muito longo, acredito que vou me deitar. Tasia não custou encontrar o dormitório de Nan, do qual saía o horrível som de alguém vomitando. Chamou com suavidade à porta antes de entrar. O pequeno quarto era ainda mais diminuto que o seu, com uma só janela e o


papel pintado de um triste cinza. Reinava nele um pestilento aroma que lhe produziu náuseas. – Saia – Vociferou Nan feita uma bola na cama antes de inclinar-se para vomitar em uma bacia de ferro pintada de branco. – Vim para ver se podia te ajudar – disse dirigindo-se à janela para abri-la e deixar que entrasse um pouco de ar puro. Franziu o cenho ao olhar para a cama onde estava deitada uma Nan cuja cor se tornou verde. – Vá – gemeu – vou morrer. – É claro que não. Tasia se aproximou do lavabo onde se encontrava um montão de panos sujos, procurou por dentro de sua manga até encontrar um lenço limpo e o molhou na água da jarra. – Odeio – grunhiu fracamente Nan – Vá-se. – Primeiro vou te lavar o rosto e logo irei. – Assim poderá contar aos outros que é um bendito anjo vindo do céu – a acusou Nan. De novo se viu atacada pelas náuseas e cuspiu na bacia. Quando voltou a se deitar as lágrimas lhe caíam pelas pálidas bochechas. – Tenho a sensação de que vou vomitar as vísceras. Tasia se sentou com cuidado na beira do colchão. – Não te mova, está completamente suja. Nan riu. – Pergunto-me porque será. Estou vomitando até o primeiro mingau há horas. Calou-se ao sentir o frescor do lenço úmido na cara. Tasia nunca tinha visto alguém tão doente. Com amabilidade afastou as mechas de cabelo sujo da testa da criada. – Tem algo para amarrar o cabelo? – perguntou. Nan assinalou uma caixa de cartão que havia na cômoda. Tasia encontrou dentro dela um pente e algumas fitas velhas e começou a desenredar o cabelo de


Nan conseguindo mais ou menos recolher na nuca. – Assim – murmurou – Já não te incomodará. – Por que veio? – perguntou Nan com voz áspera olhando-a com seus olhos vermelhos e inchados. – Não me parecia certo que estivesse sozinha. – Sabe…tudo? – insistiu Nan assinalando seu ventre. Tasia assentiu. – Não pode tomar mais remédios Nan, nem pílulas nem tônicos. Poderia fazer mal ao menino. – Isso era o que desejava, pensei em me atirar do alto das escadas ou saltar de cima do pombal, o que fosse para me desfazer dele. Tasia estremeceu. – Fique um pouco mais por favor. Se ficar não morrerei. – É obvio que não vai morrer – prometeu Tasia lhe acariciando o cabelo – tudo ficará bem, já o verá. Nan começou a chorar. – Você parece um anjo – sussurrou com tristeza – Como pode ter um rosto tão doce? Parece-se com o do pequeno quadro de madeira que peguei. Sabe… Tasia a fez calar. – Shhh. Não importa. – Acreditei que me daria a mesma serenidade que a sua. Mas comigo não funcionou. – Está tudo bem, não chore mais. Nan se agarrava à saia de Tasia como se esta fosse um salva-vidas. – Não quero viver se Johnny me abandona. Diz que tudo é minha culpa e não dele. Vão me despedir. Meus pais são pobres e não me admitirão em casa, sobretudo se for com um bastardo nos braços. Mas não sou uma má garota miss Billings. Eu lhe amo. – Entendo. Não te excite Nan, te tranquilize.


– Por quê? – perguntou Nan com amargura apoiando a cabeça no travesseiro. – Vai necessitar de todas as suas forças. – Não tenho nem dinheiro, nem trabalho, nem marido… – Lorde Stokehurst se ocupará de que tenha um pouco de dinheiro. – Não me deve nem um xelim. – Tudo se arrumará – prometeu Tasia com firmeza – Eu me ocuparei disso. Levantou-se com um tranquilizador sorriso nos lábios. – Vou encarregar-me de que lhe troquem os lençóis, necessita-o. Volto em seguida. – Certo – disse a criada. Tasia foi procurar Mrs. Knaggs que estava nesse momento dando instruções a uma ajudante de cozinha. – Foi ver Nan – lhe disse a ama de chaves assim que viu sua cara – Tinha certeza de que o faria. – Está muito doente – respondeu Tasia gravemente. – É uma tolice preocupar-se com ela, de todos os modos logo estará morta. Tasia se assombrou pela reação de Mrs. Knaggs. – Não vejo porque não poderíamos lhe aliviar um pouco a dor senhora. Quer por favor dizer a uma criada que me ajude a levar lençóis limpos para trocar os que tem agora? Mrs. Knaggs sacudiu a cabeça. – Pedir às demais que não se ocupem dela. – Não é uma leprosa! Só está grávida. – Nego-me a expor às demais ao exemplo de uma qualquer. Tasia esteve a ponto de fazer um comentário sarcástico, mas mordeu a língua e disse prudentemente: – Não diz o segundo Mandamento “amará ao próximo como a ti mesmo”? E quando os fariseus levaram a mulher adúltera diante de Nosso Senhor para lhe perguntar se deviam apedrejá-la, não respondeu O… – Sei, “que esteja livre de pecado que atire a primeira pedra”. Conheço a Bíblia.


– Então tampouco ignorará isto: porque obterão misericórdia”

“Bem-aventurados os misericordiosos

– Tem razão miss Billings – se apressou a dizer a ama de chaves que via vir um interminável sermão – vou enviar alguém com lençóis limpos e água fresca. Tasia sorriu. – Obrigado senhora. Uma coisa mais… Sabe se lorde Stokehurst vai voltar esta noite? – Vai passar a noite em Londres – respondeu Mrs. Knaggs com segundas intenções – Já sabe o que quero dizer… – Perfeitamente. Tasia sentiu toda a amarga ironia da situação. Os deslizes dos homens eram acolhidos com uma piscada de cumplicidade e inclusive de admiração. Inclusive Johnny, o lacaio, não era o responsável pela gravidez, quão única pagaria as consequências seria Nan. Mrs. Knaggs a olhava intrigada. – Queria falar com ele? – perguntou. – Pode esperar até amanhã. – Espero que não seja sobre a situação de Nan. Milorde já tomou uma decisão e ninguém discute suas ordens. Não acredito que você seja o bastante parva para arriscar-se a lhe incomodar com este assunto. – É obvio que não. Muito obrigado Mrs. Knaggs. Luke voltou de Londres muito tarde para seu passeio diário com Emma por isso foi diretamente à biblioteca para trabalhar. A gestão de suas três propriedades lhe proporcionava um montão de correspondência com seus administradores e advogados. Cada duas cartas se dedicava aos livros de contas e às dúzias de faturas. O ambiente de trabalho se via aumentado pelo som rítmico do relógio de pêndulo que havia sobre a chaminé. Luke estava tão concentrado que mal ouviu a leve chamada à porta. Mas voltaram a chamar, esta vez mais forte. – Entre – disse sem deixar de escrever – Estou ocupado – grunhiu – exceto que se trate de algo muito urgente não quero que me int…


Interrompeu-se de repente quando, ao levantar a vista, viu miss Billings diante dele. Até esse momento seus encontros sempre tinham sido breves e impessoais, cruzavam-se por acaso no vestíbulo onde trocavam umas palavras sobre Emma. Luke tinha notado que a professora se esforçava por lhe evitar e que não gostava de encontrar-se no mesmo lugar que ele. Nunca tinha conhecido uma mulher tão fria com ela e tão…indiferente. Como sempre, o pequeno rosto dela estava muito pálido e tenso. Era miúda, com a cintura tão pequena que poderia abrangê-la com suas mãos. Quando ela moveu a cabeça, um raio de sol pôs reflexos dourados em seu cabelo de ébano. Olhava fixamente com seus alargados e exóticos olhos, com o aspecto de um gatinho desnutrido. Depois de haver despertado ao lado da voluptuosa Íris Harcourt com sua pele de cor pêssego, Luke se sentiu quase surpreso pela diferença entre as duas mulheres. Não entendia porque Emma gostava tanto de sua professora e, entretanto sua filha parecia, mas feliz dos que era desde fazia meses e temia que se afeiçoasse muito a ela. Na verdade, miss Billings não demoraria a partir, o mês quase tinha terminado e Emma teria que acostumar-se a outra pessoa. Embora tivesse êxito com Emma, miss Billings não ficaria ali, não inspirava confiança em Luke, era ardilosa, misteriosa, altiva e tinha todas as características de um gato. E Luke odiava os gatos. – Que deseja? – perguntou secamente. – Eu gostaria de falar com você de um problema que concerne a uma das criadas milorde, Nan Pitfield. Luke entrecerrou os olhos, não esperava isso. – A que foi despedida… – Sim milorde. Ruborizou-se levemente. – Todos sabem por que tem que partir. O pai do menino, um de seus lacaios se o entendi bem, declina toda responsabilidade. Vim pedir que lhe dê algum dinheiro para ajudá-la a sobreviver até que possa voltar a trabalhar. Sua família carece de recursos. Será difícil encontrar um lugar para viver.


– Miss Billings – cortou-a – Nan tinha que ter pensado antes. – Não lhe custaria demasiado – insistiu isso – para o senhor umas libras… – Não tenho a menor intenção de recompensar uma criada que não cumpriu corretamente com seu trabalho. – Nan trabalha duro milorde… – Já tomei uma decisão. Seria melhor que se ocupe de fazer seu trabalho miss Billings, quer dizer, educar a minha filha. – E que classe de educação lhe dá o senhor milorde? O que pode ela pensar de sua atitude? Atua sem a menor compaixão e sem a menor piedade. Seus serventes têm que ser castigados por ceder às tentações humanas normais? Não aprovo a conduta de Nan, mas tampouco a condeno por procurar um pouco de felicidade. Estava sozinha e sucumbiu ao encanto de um jovem que dizia amá-la. Tem que pagar por isso o resto de sua vida? – Já é suficiente – disse Luke com uma voz perigosamente suave. – O senhor não se preocupa com seus criados – prosseguiu Tasia com temeridade – Sim, proporcionas manteiga e velas. É um preço muito pequeno para que todos elogiem a generosidade do dono da casa. Mas quando se trata de lhes ajudar de verdade, de ocupar-se pessoalmente deles, foge de qualquer responsabilidade. Vai pôr Nan na rua e esquecerá inclusive de sua existência, que ela morra de fome ou que se veja obrigada a prostituir-se para sobreviver… – Fora. Luke ficou em pé de um salto, os dedos de metal arranhando a polida superfície da mesa antiga. A professora não se moveu. – Sua vida é tão impecável que se acha com direito de julgá-la? Se não me equívoco o senhor acaba de retornar da casa de sua amante! – Está se arriscando a ser despedida ao mesmo tempo em que Nan. – Pouco importa – respondeu Tasia com paixão – preferiria andar pelas ruas antes de viver sob o mesmo teto de um homem sem coração, um hipócrita. Luke perdeu toda a paciência, rodeou o escritório e agarrou Tasia pelo colarinho. Ela deu um gritinho assustado enquanto ele a sacudia como um cão sacudiria um camundongo.


– Por todos os demônios, não sei o que era antes de vir aqui – grunhiu – Mas agora você é uma empregada. Minha empregada. Deve-me uma obediência cega. Ninguém discute minhas ordens. Se voltar a me desafiar… Luke se interrompeu muito zangado para continuar. Tasia sustentava seu olhar apesar do terror que se lia em seus olhos. Ele notava seu fôlego no queixo e suas pequenas mãos tentavam em vão lhe afastar. A palavra “não” se formou em seus lábios. Luke sentiu a necessidade de dominá-la. Por suas veias passou um instinto primitivo de macho. Ela era tão pequena e tão frágil entre suas mãos… A fez perder o equilíbrio, obrigando-a a apoiar-se nele, cheirou seu aroma que era uma mescla de sabão e de pétalas de rosas e não pôde evitar baixar a cabeça para saboreá-lo e todo seu corpo ardeu. Desejava deitá-la sobre a mesa, lhe levantar as saias e tomá-la imediatamente. Desejava tê-la aberta sob seu corpo, senti-la arquear-se contra ele para lhe acolher melhor nela. Sonhou com suas finas pernas lhe rodeando pela cintura e fechou os olhos. – Por favor – murmurou ela. Notou como tragava saliva. Soltou-a bruscamente e deu a volta irritado pelo violento desejo que lhe assomou. – Fora! – ordenou. Ouviu o ruído de suas saias enquanto ela fugia, ouviu-a girar com estupidez o trinco da porta antes que este se fechasse com força detrás dele. Luke se deixou cair em sua poltrona e secou o suor da testa com a manga. – Deus! – grunhiu. Uns minutos antes tudo estava normal e de repente todo seu mundo tinha explodido. Com a ponta dos dedos seguiu a recente marca que havia na mesa. Por que miss Billings tinha se encarregado de falar a favor de uma criada que acabava de ser despedida? Por que lhe tinha desafiado arriscando-se a perder seu trabalho? Desconcertado, apoiou-se no respaldo de seu assento. Queria entendê-la e a


curiosidade que sentia por ela lhe incomodava. – Quem é? – murmurou – Maldita seja! Acabarei por descobri-lo. Tasia correu até seu quarto, fechou rapidamente a porta e se apoiou nela sufocada e aturdida por sua louca carreira nas escadas. Estava segura de que seria despedida, comportou-se como uma parva e merecia o que lhe acontecesse. Com que direito se dirigiu ao dono da casa para lhe dar um sermão por sua atitude? Era absurdo, e ainda mais se, se tinha em conta que ela nunca tinha tentado defender a seus próprios criados. Era ela quem merecia o qualificativo de hipócrita no fim das contas. – Tudo é muito diferente quando se esta no lado dos serventes – se disse em voz baixa esboçando um sorriso. Olhou-se no espelho para pôr um pouco de ordem em seu cabelo. Tinha que acalmar-se. Logo seria a hora da lição de Emma, caso lorde Stokehurst não a mandasse embora no mesmo instante em que aparecesse. Mas antes tinha que fazer uma coisa. Abriu o armário e, de detrás de sua roupa interior tirou o lenço amarrado onde escondia o pesado anel de seu pai. – Obrigado papai – murmurou – vou fazer um bom uso dele. Assim que saiu pela porta do quarto, viu que Nan, vestida dos pés à cabeça, tinha melhor aspecto que no dia anterior. – Miss Billings! – exclamou surpreendida. – Como te encontra esta manhã? Nan encolheu os ombros. – Bastante bem. Mas me parece que não poderia tomar nenhuma gota de chá, sinto-me bastante débil. Fez um gesto assinalando uma velha mala de vime. – Já quase terminei que fazer minha bagagem. – E o menino? Nan baixou os olhos.


– Parece que está bem. – Vim despedir-me – declarou Tasia sorrindo. – É muito amável por sua parte. Arrependida, Nan, levantou uma esquina do colchão e tirou a imagem. – Toma. Com o dedo desenhou o contorno do rosto da Madona com reverência. – É seu. Sinto muito o haver roubado miss Billings. A senhorita é pura bondade, deveria me odiar e entretanto… Tasia agarrou a imagem sagrada esforçando-se por dissimular sua alegria. – Queria te dar algo – disse entregando o lenço a Nan – Pode vendê-lo e ficar com o dinheiro. Nan, abriu o lenço com curiosidade e seus olhos se abriram de assombro ao ver o pesado anel de ouro. – Não, miss Billings, não posso aceitá-lo! Tentou devolver, mas Tasia se negou categoricamente. – Necessitará, para ti e para o bebê. Nan seguia duvidando. – Como o conseguiu? Tasia riu de boa vontade. – Não se preocupe, não o roubei. Esse anel pertencia a meu pai e sei que o aprovaria o que estou fazendo. Por favor aceita-o. Nan fechou seus dedos em torno da joia e começou a chorar. – Por que faz isto miss Billings? A resposta a essa pergunta era um tanto delicada. Tasia não tinha recursos suficientes para ser generosa mas era feliz por poder ajudar Nan. Durante uns minutos ao menos alguém a olhava com agradecimento, e ela se sentia forte e útil. E, além disso, tinha a criança. Tasia odiava a ideia de que um ser viesse ao mundo em umas condições tão adversas, sem pai, sem comida, e sem lar. Um pouco de dinheiro não resolveria todos os problemas, mas ao menos daria a Nan uma certa esperança.


Deu-se conta de que esta a olhava intrigada. – Eu também me encontrei uma vez só em uma difícil situação. Nan dirigiu os olhos para seu ventre. – Quer dizer que você… – Não era esse tipo de problemas – disse Tasia com um sorriso pesaroso – de algum jeito era igualmente grave. Nan abraçou impulsivamente a Tasia apertando bem o anel em sua mão. – Se for um menino lhe chamarei Billings. – Meu deus! – gemeu Tasia com um brilho de diversão nos olhos – melhor será que lhe chame Billy. – E se for uma menina a chamarei Karen. Acredito que esse é seu nome. Tasia sorriu. – Chame-a Anna – disse suavemente – ficarei contente.

Emma se mostrou ausente durante as lições da manhã respondendo pela metade às perguntas de Tasia. Deitado a seus pés, Sansão estava tranquilo como se tivesse compreendido que esse dia era melhor permanecer longe de amas de chaves hostis e pais irritáveis. De vez em quando Emma lhe acariciava o branco ventre com o pé e então ele a olhava com cara de cão feliz com a língua pendurando de lado. – Miss Billings? – perguntou de repente Emma interrompendo-se na metade de um parágrafo sobre a estratégia militar dos romanos – Nan vai ter um bebê verdade? Tasia se perguntou estupefata como podia haver-se informado a adolescente. – Essa não é uma conversa adequada Emma. – Por que ninguém quer me explicar isso? Não é melhor que me inteire da verdade da vida em vez de ouvir só rumores? – Quando for mais velha sem dúvida alguém te falará dessas coisas, mas


enquanto isso… – Isso acontece quando um homem e uma mulher compartilham a mesma cama não? Os olhos de Emma brilhavam de curiosidade. – Isso é o que aconteceu – continuou dizendo ante o silêncio de sua professora – Nan e Johnny dormiram juntos e agora vão ter um bebê. Por que Nan dormiu com um homem se sabia que depois ia ter um filho? – Não deve me fazer essas perguntas – disse Tasia suavemente – Não é minha função te informar dessas coisas. Não tenho a permissão de seu pai. – Mas então como vou me inteirar? Trata-se de algo que só as pessoas mais velhas podem entender? – Não é nada terrível – disse Tasia com o cenho franzido – só que é algo muito pessoal. Certamente haverá alguma mulher em que confie e a que queira, sua avó por exemplo, que pode responder a suas perguntas. – Confio em você miss Billings. E me sinto muito angustiada quando penso em coisas que desconheço. Quando tinha oito anos minha tia me viu beijando um menino do povoado e ficou furiosa. Disse-me que ia ter um bebê por havê-lo feito. É certo? Tasia duvidou um instante. – Não Emma. – Por que mentiu? É errado beijar um menino? – Certamente pensou que era muito jovem para escutar a verdade. Não, não fez nada errado, simplesmente sentia curiosidade. – E se agora beijasse um choco estaria errado? – Bom, não exatamente, mas… Tasia sorriu irritada. – Deveria dizer a seu pai que você gostaria de falar de certos temas com uma mulher Emma. Encontrará a alguém adequado. Parece-me que não se agradaria se fosse eu. – Porque brigou com ele esta manhã por culpa de Nan. Emma brincava com um cacho de cabelo vermelho evitando o olhar da professora.


– Escutando atrás das portas Emma? – pergunto Tasia com severidade. – Todo mundo falava disso. Ninguém discute nunca com papai. Os criados estão assombrados, pareces muito valente e um pouco louca. Dizem que é certo que a vão despedir. Mas não se preocupe miss Billings, não deixarei que papai a mande embora. Tasia sorriu enternecida pela inocente segurança da menina. Realmente era uma criatura encantadora, seria tão fácil deixar-se ir e querê-la… – Obrigado Emma, mas devemos acatar as decisões de seu pai sejam quais forem. Cometi um grave engano faz um momento ao tentar lhe impor meu ponto de vista. Comportei-me de maneira grosseira e ingrata. Se lorde Stokehurst decide me despedir terei isso como um bom castigo. Emma grunhiu parecendo-se de repente muito a seu pai e deu uma patada. – Papai não a mandará embora se eu não quiser! Sente-se culpado porque não tenho mãe e a avó diz que por isso me mima tanto. Gostaria que se casasse com lady Harcourt, mas eu não. – Por quê? – Lady Harcourt desejará me afastar de papai para o ter para só ela. Tasia não respondeu. Começava a compreender a união entre o pai e a filha, forjada pela perda de uma mulher a quem os dois tinham amado e que lhes tinha deixado ao morrer uma ferida que ainda não se fechou. Dava a impressão de que ficavam mutuamente como desculpa para evitar comprometer-se, arriscando-se a que lhes machucasse de novo o coração. Sem dúvida seria melhor que Emma crescesse em um colégio onde teria amigas de sua idade e onde poderia dar saída a sua energia transbordante, em vez de passar seus dias em uma mansão no campo espiando os criados. – Deveríamos terminar este capitulo e depois ir dar um passeio – disse ao fim – O ar fresco nos esclarecerá as ideias. – Não vai me dizer nada sobre Nan – suspirou Emma resignada antes de voltar sabiamente sua atenção para o livro de história. Lorde Stokehurst não apareceu em todo o dia. Permaneceu na biblioteca recebendo os camponeses e às pessoas do povoado.


As técnicas agrícolas – respondeu Seymour quando Tasia lhe perguntou para que tinham vindo essa gente – O senhor está realizando melhoras em sua propriedade para assegurar-se de que os lavradores trabalhem a terra o mas eficazmente possível. Alguns ainda usam métodos medievais. O senhor lhes põe à corrente dos métodos modernos e lhes dá ao mesmo tempo a oportunidade de arrumar suas possíveis diferencia com os administradores. – É muito generoso por sua parte – murmurou ela. Na Rússia os latifundiários se mantinham muito separados dos assuntos de suas propriedades. Contratavam administradores para economizar os incômodos e as preocupações. Tasia nunca tinha ouvido falar de camponeses que recebessem conselhos de seu senhor. – É uma boa política – Disse Seymour – Quanto mais investe Sua Senhoria em suas terras, mas proveitosas resultam para todos. O raciocínio certamente não carecia de lógica. – É admirável que Sua Senhoria não seja tão orgulhoso como para não falar com os camponeses. De onde eu venho um homem de sua posição só se comunica com eles por meio do administrador. Os olhos do mordomo se iluminaram divertidos. – Na Inglaterra não gostam muito que lhes chamem camponeses, preferem que lhes chamem granjeiros. – Granjeiros – repetiu ela docilmente – Obrigado senhor Seymour. O homem a gratificou com um de seus estranhos sorrisos antes de afastar-se fazendo uma saudação com a cabeça. Aproximava-se a noite e lorde Stokehurst ainda não tinha dado sinais de vida. Sem dúvida estava fazendo Tasia esperar deliberadamente para que ela tivesse tempo de perguntar-se quando a despediria. Pela primeira vez desde sua chegada jantou sozinha em seu quarto para evitar as olhadas curiosas e as perguntas dos outros. Comeu com lentidão, em tensão com os olhos fixos no céu que se ia escurecendo. Logo a mandariam embora de Southgate Hall e tinha que pensar no futuro. A ideia de voltar para casa de Charles e Alicia era bastante humilhante, mas talvez não se sentissem surpresos de que tivesse fracassado em seu primeiro trabalho.


Os Kapterev nunca se distinguiram por sua humildade. Em silêncio se prometeu conter a língua com seu próximo chefe. Um golpe imperioso fez tremer a porta do quarto. – Miss Billings! Miss Billings! – Nan! – perguntou Tasia surpreendida ao ouvir a voz da criada – entra. A donzela entrou no dormitório transfigurada, com os olhos brilhantes e as bochechas rosadas. – Disseram-me abaixo que estava aqui miss Billings. Tinha que vê-la em seguida. – Interrompeu-se um momento para recuperar o fôlego. – Acreditei que tinha ido Nan. Subir a escada correndo não é bom para ti… – É certo, mas queria lhe dizer… Nan explodiu em alegres gargalhadas. – Caso-me! – disse de repente. Tasia abriu os olhos. – Casa-te? Mas com quem? – Com o Johnny! Pediu-me faz dez minutos e me pediu perdão por tudo. Prometeu-me que seria o melhor marido que pudesse e lhe respondi que com isso bastava. Agora meu filho terá um sobrenome e eu um verdadeiro marido. Nan abraçou a si mesma saltando de alegria. – Mas como foi? Por quê? – Johnny manteve uma conversa esta tarde com lorde Stokehurst. – Lorde Stokehurst? – repetiu Tasia assombrada. – O senhor disse ao Johnny que nenhum homem em seu juízo perfeito teria vontade de casar-se, mas que de todas as formas teria que fazê-lo um dia ou outro e que um homem de verdade tinha que assumir as consequências de seus atos, e que se tinha deixado a uma garota grávida tinha a obrigação de dar seu sobrenome a ela e ao menino. Sua Senhoria inclusive nos deu dinheiro para que pudéssemos começar uma nova vida. Vamos alugar um pedaço de terra perto do povoado. Não é maravilhoso? Como podem mudar as coisas tão rapidamente? – Ignoro – respondeu Tasia sorrindo – É maravilhoso e me sinto feliz por ti Nan. – Vim para lhe devolver isto.


Entregou o lenço com o anel. – Não disse ao Johnny, teria sido capaz de ficar, mas lhe faz falta Miss Billings. Sua bondade será sua perdição. – Está segura de que não quer vendê-lo? – Agora tudo ficará bem com o menino e comigo. Volte a ficar com ele, por favor. Tasia agarrou o anel de seu pai e abraçou Nan. – Que Deus te abençoe! – murmurou. – E a você também miss Billings. Quando Nan deixou o quarto, Tasia se sentou na beira da cama com a cabeça dando voltas. Estava alucinada pelo gesto de lorde Stokehurst. Nunca teria lhe acreditado capaz de mudar tão rapidamente de opinião. O que tinha levado a fazê-lo? Por que tinha tido o trabalho de fazer com que Johnny se casasse com Nan lhes dando, além disso, um pequeno dote? Por mais voltas que lhe dava não encontrava nenhuma resposta. Estava ficando tarde, mas Tasia sabia que seria incapaz de dormir com todas essas perguntas lhe rondando na cabeça. Dando um suspiro deixou a bandeja no corredor e decidiu descer à biblioteca para pegar um livro grosso e aborrecido que a ajudasse a dormir. Isso é o que realmente necessitava. Em silêncio desceu pela escada de serviço antes de atravessar o grande vestíbulo como se fosse uma sombra. Todos já tinham ido dormir seguindo a mesma rotina de todos os dias. Toda a baixela já estava recolhida e os utensílios que ia necessitar Mrs. Plunkett no dia seguinte estavam preparados. Biddle tinha encerado as botas e os sapatos de seu senhor. Mrs. Knaggs sem dúvida estava em seu quarto e já quase não havia luz nos corredores. Uma vez na biblioteca acendeu um abajur fazendo brilhar os lombos dos livros que cobriam as paredes. Tasia adorava o aroma dos livros misturado com o do tabaco e do conhaque que flutuava no ar. O lugar era uma espécie de santuário masculino utilizado para falar de negócios ou de política e outros assuntos de índole privada. Estava impregnada de intimidade e de história familiar.


Foi de uma prateleira a outra procurando um livro que lhe desse vontade de dormir. Selecionou alguns volumes. – Os diferentes aspectos do progressismo – leu em voz alta piscando os olhos – Revolução e reformas da Europa moderna. Os prodígios do expansionismo britânico. Meu deus! Qualquer um destes deveria servir. Uma voz zombadora saiu das sombras sobressaltando-a. – Veio para o segundo round?


Três

A pilha de livros que Tasia estava segurando caiu no chão, prendeu a respiração, e virou-se na direção da voz. – OH! Lorde Stokehurst surgiu de um sofá que havia diante da chaminé, onde tinha estado na sombra, com uma taça de conhaque na mão. Deixou o copo em um pedestal de bronze que tinha a seu lado antes de aproximar-se da jovem. O coração de Tasia golpeava com força em seu peito. – …Porque não disse nada? – Acabo de fazê-lo. Stokehurst parecia ter passado todo o dia em seu escritório, o colarinho duro de sua camisa estava desabotoado e manchado de tinta, e a camisa aberta deixava ver um triangulo de pele bronzeada na garganta e algumas mechas de cabelo lhe caíam sobre a testa suavizando seus traços. Os olhos, de um azul profundo, estavam carregados de uma intensa curiosidade provocando um arrepio em Tasia. Não pôde evitar pensar no momento que tinha tratado de esquecer durante todo o dia, o momento de sua briga quando ele a agarrou pela frente do vestido. Quando sua agressiva virilidade a aterrorizou. Mas ao mesmo tempo em que o medo sentiu outra coisa, uma emoção que tinha demorado muito em desaparecer. Centrou sua atenção nos livros que estavam aos seus pés esperando que ele não a visse ruborizar-se. – Parece que tem medo… – Não é estranho quando um homem sai assim das sombras. Tasia engoliu em seco tentando acalmar-se, devia uma desculpa á lorde Stokehurst. – Nan veio ver-me milorde. – Não quero falar disso – cortou-a secamente.


– Mas lhe julguei mal. – Não. – Eu…ultrapassei os limites… Nisso Stokehurst não a contradisse, limitava-se a olhá-la com as sobrancelhas levantadas e expressão zombadora. Estava-a pondo terrivelmente nervosa com essa imobilidade, ele era todo sombras e poder diabólico sob seu aspecto humano. Tasia se obrigou a continuar. – Foi muito amável ao ajudar Nan, milorde, assim o bebê e ela ficarão bem. – A menos que considere que um homem que se casa contra sua vontade é melhor que não ter marido. Não quer casar-se com ela. – Entretanto você lhe convenceu de que esse era seu dever. – Isso não quer dizer que não baterá em Nan. Tasia encolheu os ombros. – Pelo menos o menino terá um pai. Tasia lhe olhou através das pestanas com cautela. – Tem…tem intenções de me despedir milorde? – Pensei-o. Deixou a frase em suspense deliberadamente. – Mas ao final renunciei a ideia – continuou por fim. – Então fico? – Por enquanto. Tasia se sentiu tão aliviada que os joelhos começaram a lhe tremer. – Obrigado – murmurou. Agachou-se para recolher os livros. Por desgraça lorde Stokehurst também se inclinou para ajudá-la, pegou dois grossos volumes sob o braço esquerdo e ao estender ao mesmo tempo em que ela a mão para agarrar o outro os dedos dos dois se tocaram. Surpreendida pelo contato, Tasia se sobressaltou e perdeu o equilíbrio. Encontrou-se de repente atirada de costas no chão tão atônita como humilhada. Ela nunca era tão desajeitada. E a risada de Stokehurst não ajudou a tranquiliza-la. Luke foi pôr os livros na estante antes de voltar junto a ela para ajudá-la a


levantar-se, a pequena mão de Tasia desapareceu dentro da sua. O gesto era amável, mas nele se escondia uma força inquietante. Ele poderia ter quebrado seu pulso como se fosse um fósforo. Afastou-se rapidamente dele, alisou a saia e arrumou o sutiã. – Que livro queria ler? – perguntou lorde Stokehurst com um brilho divertido nos olhos. Às cegas, Tasia pegou um da prateleira sem se dá ao trabalho de olhar o título, apertou-o forte contra seu peito como se fosse um escudo para defender-se da expressão zombadora de Luke. – Este será perfeito. – Muito bem. Boa noite miss Billings. Tasia não se moveu. – Se tiver um momento, milorde – aventurou indecisa – gostaria de lhe comentar algo. – Outra donzela maltratada? – perguntou ele com ironia. – Não milorde, trata-se de Emma. Ela…descobriu o que aconteceu com Nan. É obvio começou a fazer perguntas e eu pensei, milorde…bem, isso me fez recordar…perguntei a Emma se alguém lhe tinha ensinado…Veja, já é bastante crescida para…A esta idade a meninas…O senhor já entende. Stokehurst sacudiu a cabeça sem deixar de olhá-la. Tasia esclareceu a voz. – Refiro aos dias do mês em que as mulheres…– interrompeu-se de novo. Queria esconder-se debaixo da terra. Nunca tinha falado de algo assim com um homem. – Já entendo… Disse-o com um tom estranho e Tasia se atreveu a levantar por fim os olhos descobrindo em sua expressão uma cômica mescla de assombro e contrariedade. – Não o tinha pensado – grunhiu – Mas é uma menina. – Doze anos – precisou Tasia retorcendo as mãos nervosa – milorde eu não…minha mãe não soube me explicar isso e um dia…eu…tive muito medo. Eu não gostaria que acontecesse o mesmo a Emma. Stokehurst foi procurar sua taça de conhaque.


– A mim tampouco. Bebeu o álcool de um gole. – Então me permite que o eu diga? – Não sei. Negou-se a reconhecer que sua filha estava crescendo, a ideia de que se convertesse em uma mulher, com um corpo de mulher, emoções de mulher, desejos de…Era muito cedo, isso lhe desorientava. Tinha deixado de lado esses problemas até esse momento. Entretanto era necessário que alguém falasse com Emma das mudanças que iam acontecer com ela. Mas quem? Sua irmã vivia muito longe, quanto a sua mãe, seria capaz de lhe contar qualquer estupidez em lugar da verdade. A duquesa era uma dissimulada que inclusive desaprovava a decoração de Southgate Hall já que as curvas do estilo rococó lhe pareciam muito sugestivas e quase indecentes. Detestava ver as patas das cadeiras sem o amparo das capas… Pensando-o bem, não era certamente a pessoa mais qualificada para explicar a uma menina os segredos da anatomia feminina. – O que vai dizer? – perguntou bruscamente. Tasia entrecerrou os olhos surpreendida e tentou falar em tom razoável. – Só o que uma adolescente deve saber. Se não quiser que eu fale com ela, milorde acredito sinceramente que outra pessoa deveria encarregar-se de fazê-lo logo. Luke a olhava com intensidade. A preocupação dela pela Emma parecia sincera do contrário nunca teria abordado um tema que era evidente que a punha nervosa. E Emma queria muito a sua professora de modo que por que não ela? – Confio em você – disse com decisão – Mas não se aproveite e não lhe conte toda a Gênese. Não quero que Emma suporte sobre seus ombros a culpabilidade do pecado original. Tasia mordeu os lábios irritada. – Muito bem milorde. – Espero que sua informação sobre o tema seja correta – insistiu ele. Ela assentiu brevemente com a cabeça, completamente ruborizada. Luke sorria. Ela parecia tão vulnerável enquanto lutava para não perder a


calma, que ele não podia evitar divertir-se ante o espetáculo. – Como pode estar tão segura? – perguntou para alongar o momento. Ela se negou a morder o anzol. – Com sua permissão milorde, eu gostaria de me retirar. – Ainda não. Luke sabia que estava se comportando como um idiota, mas ele não se importava, só queria que ela ficasse. O dia tinha sido muito cansativo e necessitava uma distração. – Quer tomar uma taça miss Billings? Um pouco de vinho? – Não, obrigado. – Então me faça companhia enquanto eu me sirvo uma. Ela negou com a cabeça. – Sinto ter que rechaçar seu convite milorde. – Não é um convite. Luke assinalou uma poltrona ao lado da chaminé. – Sente-se. Ela ficou imóvel por um momento. – É muito tarde – murmurou. Por fim se dirigiu para o assento e se sentou na beira, deixou o livro sobre uma mesinha e as mãos nos joelhos. Ele encheu a taça com lentidão. – Me conte como é a vida na Rússia. Ela se esticou, preocupada. – Não posso… – Já confessou que procede dali – disse Luke sentando-se com suas longas pernas esticadas – deve ser capaz de me dizer alguma coisa, mas sem necessidade de me revelar todos seus apreciados segredos. Descreva-me seu país. Olhava alerta como se suspeitasse que ele estivesse fazendo uma brincadeira. – Na Rússia uma pessoa se sente pequena, as terras são imensas e o sol brilha menos que aqui na Inglaterra. Tudo parece um pouco cinza.


Nesta época do ano, em São Petersburgo, o sol não se põe. Nós lhe chamamos “noites brancas”, mas o céu não é branco a não ser rosa e violeta desde a meianoite até o amanhecer. As silhuetas escuras das casas se recortando contra o céu é algo lindo. As igrejas têm as torres redondas, assim… Suas pequenas e delicadas mãos desenharam uma cúpula. – No interior das igrejas não há estátuas a não ser imagens, pinturas religiosas de Cristo, dos apóstolos, da Virgem e dos Santos. Eles têm o rosto alongado, magro e triste, um aspecto muito espiritual. Os Santos das igrejas inglesas me parecem muito orgulhosos. Luke esteve de acordo. Sorriu ao pensar que os Santos de sua própria capela inclusive tinham um aspecto um pouco presunçosos. – Em nossa igreja não há bancos – continuou – é uma amostra de respeito para o Senhor permanecer de pé mesmo que a missa dure horas. A humildade é muito importante para os russos. O povo é pobre e trabalha duro. Quando o inverno dura mais do que o normal as pessoas se reúnem ao redor do fogo para fazer brincadeiras e contar histórias para esquecer a fome. A igreja russa nos ensina que Deus está sempre conosco e que tudo o que acontece, seja bom ou mau, é vontade Dele. Luke estava fascinado pela mudança de expressão no rosto da professora. Pela primeira vez a via relaxada em sua presença. Sua voz era suave e seus olhos se viam na penumbra mais felinos que nunca. Ela seguia falando, mas já não a escutava. Desejava acariciar o sedoso arbusto de cabelo, beijá-la e sentá-la sobre seus joelhos. Parecia tão leve! Entretanto, apesar dessa aparente fragilidade, tinha uma vontade e uma temeridade que admirava. Nem sequer Mary se atreveu a enfrentá-lo quando estava zangado. – Quando as coisas vão realmente mal – continuou – nós, russos, temos um dito: “Vsyo proïdyot”. Tudo acaba. Meu pai costumava dizer… – interrompeu-se bruscamente e conteve o fôlego. Era evidente que falar de seu pai a entristecia. – Me fale dele – murmurou Luke. Os olhos de Tasia brilhavam pelas lágrimas contidas.


– Morreu faz uns anos. Era um homem bom e nobre e as pessoas confiavam nele para arrumar suas diferenças. Sabia se colocar no lugar deles. Depois de sua morte nada voltou a ser igual. Esboçou um sorriso entre doce e amargo. – Às vezes tenho muita vontade de falar com ele e não consigo me convencer de que isso não acontecerá nunca mais. É ainda pior que viver longe de minha terra natal. Toda lembrança dele ficou ali. Luke a olhava fixamente, embargado por uma intensa emoção, muito perigosa para arriscar-se a analisá-la. Depois da morte de Mary concentrou todos seus esforços em sobreviver. Algumas de suas necessidades podiam satisfazer-se, já outras tinha renunciado para sempre. Seria melhor que despedisse sem mais a essa mulher antes que as coisas piorassem. A discussão por causa da criada grávida era a desculpa ideal para lhe mandar embora e que os Ashbourne fossem ao diabo. Entretanto não pôde fazê-lo. – Voltará? – conseguiu lhe perguntar apesar de ter um nó na garganta. – Eu… O olhar que lhe dirigiu era tão comovedor, parecia tão perdida que lhe cortou a respiração. – Não posso – disse ela. Um segundo depois tinha saído correndo esquecendo-se do livro que tinha ido procurar. Luke não se atreveu a segui-la, ficou paralisado pela emoção e pelo desejo, olhando o teto zangado. Deus sabia que não era um ignorante em matéria de mulheres, era o último homem capaz de apaixonar-se por uma misteriosa jovem caída em desgraça. Ela era muito jovem, muito estranha e muito oposta a Mary. Ao pensar em sua esposa, Luke se levantou e relaxou. Como podia trair desse modo a Mary? Recordou o prazer que obteve compartilhando sua cama, a maneira como ela se pegava a ele de noite e seus beijos pela manhã. Sempre tinham estado bem juntos. Depois de sua morte a natureza lhe tinha empurrado a procurar companhia feminina, mas não tinha sido o mesmo. Nunca poderia imaginar que desejaria a outra pessoa. Não assim, não desta


maneira incontrolável e puramente emocional. Esta jovem lhe obcecava cada vez mais e ele não via nenhuma saída. Além disso, nem sequer conhecia seu verdadeiro nome. Com uma pequena gargalhada zombadora para si mesmo, voltou a dirigir sua atenção ao conhaque. – A sua saúde – murmurou levantando a taça em direção ao sofá que ela tinha ocupado – seja quem for… Tasia fechou a porta de seu quarto. Tinha subido correndo os três pisos e se apoiou na parede para recuperar o fôlego. Não deveria ter fugido assim da biblioteca, mas se, se tivesse ficado teria acabado por desfazer-se em lágrimas. Ao falar de seu país se sentiu invadida por uma grande nostalgia. Queria ver sua mãe, voltar a ver os rostos e os lugares familiares para ela, ouvir falar seu idioma e que a chamassem por seu verdadeiro nome. – Tasia Pareceu que seu coração deixava de pulsar. Assustada olhou a seu redor no quarto vazio alguém havia dito seu nome ou o tinha imaginado? Percebeu com a extremidade do olho um reflexo no espelho do armário e se aterrorizou. Queria sair correndo dali, mas uma força irresistível a fez dar um passo e logo outro mais com os olhos fixos no espelho. – Tasia – voltou a ouvir. Retrocedeu aterrada, com a mão posta na boca para afogar um grito. O príncipe Mikhail Angelovsky a olhava do cristal com uns buracos negros no lugar dos olhos e o rosto ensanguentado. Seus lábios azulados estavam estirados em um arremedo de sorriso. – Assassina. Tasia não podia se mover do lugar, paralisada pela horrível visão, os ouvidos lhe apitavam, isso não podia ser real, era uma alucinação produto de sua imaginação e de sua culpabilidade. Fechou os olhos para livrar-se dela, mas quando os abriu a imagem seguia no mesmo lugar. Baixando a cabeça conseguiu murmurar:


– Eu…Eu não queria te matar Mikail. – Suas mãos… Tasia olhou as mãos tremendo, estavam cobertas de sangue. Escapou um grito afogado e fechou os punhos e as pálpebras. – Me deixe – soluçou – Não vou te escutar. Me deixe. Estava muito aterrorizada para fugir, para rezar e para fazer qualquer outra coisa que não fosse ficar aí petrificada. Em seguida, lentamente, o assobio em seus ouvidos se apagou, abriu os olhos e olhou suas mãos que agora estavam brancas e limpas. No espelho não havia nenhuma imagem. Como uma sonâmbula se sentou na cama sem preocupar-se com as lágrimas que lhe caíam pelas bochechas. Demorou muito tempo em acalmar-se e quando o medo por fim desapareceu, estava esgotada. Deitou-se na cama e olhou o teto. Não importava que não recordasse ter matado Mikhail, cada dia se sentia mais culpada. Tinha mais visões, mais pesadelos…Sua consciência não lhe permitiria esquecer ou ignorar o que tinha feito, esse assassinato seria sempre uma parte de si mesma. Gemeu de desespero. – Basta! – ordenou-se. Se deixasse que a lembrança de Mikhail Angelovsky a atormentasse se voltaria louca. O primeiro dia de maio foi um dia claro e luminoso, qualquer vestígio do inverno tinha desaparecido. Deitada sobre o tapete de um dos salões do piso de cima, Emma retorcia o ruivo cabelo, acovardada pelo que sua professora acabava de lhe dizer. – É asqueroso! – indignou-se – por que tudo tem que ser tão fastidioso para as mulheres? Os panos manchados de sangue, as dores de barriga, a obrigação de contar os dias do mês… por que esse chateio também não acontece com os homens? Tasia sorriu.


– Suponho que eles também terão o seu. E além isso não é asqueroso Emma. Deus nos criou assim. E como compensação por esse “chateio” como você diz, nós temos a sorte de poder ter filhos. – Que brincadeira! – disse Emma com amargura – É um consolo saber que vou ter a “sorte” de padecer das dores do parto. – Algum dia quererá ter um filho e não se preocupe com isso. A menina franziu o cenho pensativa. – Do momento em que me sinta indisposta serei já o bastante adulta para ter um filho? – Sim, se compartilhar a cama com um homem. – É suficiente compartilhando a cama? – É mais complicado que tudo isso, mas já se inteirará mais adiante. – Eu gostaria de sabê-lo agora miss Billings, se não, serei capaz de imaginar coisas horríveis. – O que acontece na cama entre um homem e uma mulher não é horrível. Disseram-me que inclusive é muito prazeroso. – Sem dúvida – contestou Emma pensativa – do contrário não haveria tantas mulheres convidando papai a ir a sua cama. De repente abriu os olhos sobressaltada. – A senhorita acha que terá feito filhos em todas miss Billings? Tasia avermelhou. – Seguro que não. Se se toma cuidado há maneiras de evitá-lo. – Cuidado de que? Tasia estava tentando encontrar o modo de evitar a pergunta quando bateram na porta. Era Molly, uma exuberante donzela de cabelo castanho e sorriso cativante. – Miss Emma – disse – Milorde me envia para lhe dizer que chegaram lorde e lady Pendleton. Quer que a senhorita desça imediatamente. – Porras! – exclamou ela precipitando-se para a janela – Sim, são eles, estão saindo da carruagem.


Voltou-se para Tasia erguendo os olhos ao céu – Todos os anos insistem em vir para assistir o baile de primeiro de Maio com papai e comigo. Lady Pendleton adora as festas “campestres” a muito esnobe. Tasia se reuniu com ela e viu uma mulher pequena e rechonchuda embutida em um vestido de brocado que franzia o cenho. – Parece bastante antipática – reconheceu. – Tem que vir conosco ao povoado miss Billings, do contrário morrerei de aborrecimento. – Isso não seria adequado Emma. Tasia não desejava participar de uma ruidosa festa no povoado. Não era adequado para uma professora que se supunha que tinha que manter a dignidade em qualquer circunstância, assistir a algo assim. Por outro lado os lugares cheios de gente a desgostavam. A lembrança da multidão gritando em seu próprio julgamento ainda estava muito viva em sua mente. – Eu fico aqui – disse com firmeza. Emma e Molly protestaram ao mesmo tempo. – Papai deu o dia livre a todos os serventes para que possam ir ao povoado. – Traz azar não assistir à festa de primeiro de maio – acrescentou Molly – Temos que dar as boas-vindas ao verão. Fazemos isso há séculos. Tasia sorriu. – Estou segura que o verão chegará tanto se lhe der as boas-vindas como se não. A donzela acudiu a cabeça com impaciência. – Ao menos venha esta noite, é o momento mais importante. – O que acontece esta noite? Molly parecia assombrada pela ignorância da professora. – O baile de primeiro de maio é obvio! Depois dois homens disfarçados de cavalo vão pelas casas do povoado seguidos por outros. Se pararem na sua casa trará boa sorte.


– De cavalo? – perguntou Tasia divertida – E porque não de cão ou de cabra? – Porque sempre foi assim – respondeu Molly – sempre foi um cavalo. Emma continha uma gargalhada. – Vou dizer a papai que miss Billings propõe que o cavalo de primeiro de maio se converta em uma cabra. O som de suas risadas ressonou nas escadas enquanto descia para reunir-se com seu pai e os Pendleton. – Emma não o diga! – gritou Tasia. Mas a adolescente não respondeu. Tasia se voltou para Molly com um suspiro. – Não vou assistir à festa de primavera. Se bem me lembro só é um ritual pagão, a adoração dos druidas, das fadas e tudo isso. – Não acredita nos contos de fadas miss Billings? – perguntou Molly com ingenuidade – Pois deveria fazê-lo já que a senhorita é justamente o tipo de pessoa que gostam de levar. Afastou-se com uma grande gargalhada, deixando atrás dela uma Tasia totalmente desconcertada. Os Stokehurst passaram à tarde no povoado com os Pendleton. A maioria dos criados não compareceram ao Buffet que tinha preparado Mrs. Plunkett, estavam muito ocupados arrumando-se antes que chegasse a festa de noite. Tasia estava convencida que a celebração da chegada da primavera só era uma desculpa para beber e paquerar livremente uns com os outros, e essa forma de divertir-se não lhe interessava. Trancou-se em seu quarto e se instalou ao lado da janela de onde podia ouvir as canções e a música. Olhando pelo cristal imaginou que as fadas que passeavam pelo bosque e que as luzes que piscavam nas tochas eram o reflexo de suas asas. – Miss Billings! A porta do quarto se abriu e três jovenzinhas entraram sem esperar convite. Tasia abriu os olhos com assombro ao ver Molly, Hannah e Betsy vestidas iguais com uma blusa branca e uma saia multicolorida e levando na cabeça uma coroa de fitas e flores.


– Miss Billings – começou alegremente Molly – Viemos procurá-la para levála ao povoado. Tasia sacudiu a cabeça. – Obrigado, mas não tenho nada que vestir. Fico, divirtam-se bastante. – Trouxemos roupa… Um montão de blusas e saias caiu em desordem em cima da cama. Hannah, uma empregada de cozinha loira e miúda lhe dirigiu um tímido sorriso. – Algumas coisas são nossas e outras de miss Emma. Pode ficar com elas se quiser, são velhas. Prove primeiro a saia vermelha, miss Billings. – Não vou – repetiu Tasia com firmeza. As outras tentaram convencê-la. – Tem que nos acompanhar miss Billings. É o único dia do ano que nos divertimos… – É de noite, ninguém a reconhecerá… – Vai todo mundo. Não pode ficar só aqui! Tasia viu de repente, com surpresa, Mrs. Knaggs na porta com os braços cheios de flores. A ama de chaves parecia zangada. – O que estou ouvindo miss Billings? Tasia sentiu alívio ao encontrar uma aliada. – Estão empenhadas em que vá com elas, mas a senhora sabe, Mrs. Knaggs, que isso não seria adequado. – Com certeza. O rosto de Mrs. Knaggs se distendeu com um inesperado sorriso. – Entretanto se não sair com elas esta noite, me sentirei muito contrariada, miss Billings. Quando for uma velha como eu, terá direito a ficar em seu quarto olhando pela janela, mas no momento sua obrigação é ir dançar. – Mas…mas… – balbuciou Tasia desorientada – não acredito em rituais pagões. Como todos os russos tinha sido educada com uma complexa mescla de


religião e superstição; era certo respeitar a natureza das coisas, mas Deus não gostava que se venerasse aos ídolos. O costume de primeiro de Maio era totalmente inaceitável. Molly começou a rir. – Não vá por questões religiosas, vá simplesmente para divertir-se. Alguma vez fez algo simplesmente por prazer? Tasia só desejava uma coisa: ficar sozinha. Tentou protestar, mas todas suas desculpas foram refutadas. – De acordo – cedeu ao final com um suspiro – mas com certeza não me divertirei. Enquanto ela se despia as outras começaram a tagarelar alegremente. – A saia vermelha – insistiu Hannah enquanto Molly elogiava a azul. – Nem sequer necessita sutiã! – disse Betsy olhando com inveja a magra figura coberta de linho branco. Molly lhe colocou pela cabeça uma regata com fitas. – Seus seios são um pouco maiores que os da senhorita Emma – disse amavelmente – Mas não se preocupe com isso miss Billings, uns meses mais com a comida de Mrs. Plunkett e suas formas ficarão tão arredondadas como as minhas. – Duvido – respondeu Tasia com cepticismo olhando de esguelha o exuberante peito da donzela. Não protestou quando as outras lhe desfizeram o coque; exclamaram admiradas ao ver a espessa cabeleira brilhante que lhe chegava até os quadris. – Que lindo! – suspirou Hannah Trançaram o cabelo com fitas e flores deixando cair a pesada trança livremente pelas costas, em seguida retrocederam para olhar com satisfação o resultado de seus esforços. – Estar encantadora – felicitou Mrs. Knaggs – Todos os jovens do povoado vão tentar lhe roubar um beijo. – Como? – escandalizou-se Tasia enquanto a arrastavam para fora do quarto. – É um costume – explicou Molly – Às vezes os rapazes se lançam sobre uma


moça para roubar um beijo. Traz boa sorte, não há nada de errado. – E se eu não quiser que me beijem? – Então pode fugir correndo…mas dá no mesmo. Se o rapaz for feio, pense que será breve e se for bonito…bom, então não quererá escapar. Fora estava escuro, a noite não tinha estrelas, mas o povoado estava iluminado com tochas e lanternas penduradas nas janelas das casas. A música foi ficando mais forte conforme iam se aproximando da festa. Como Tasia tinha previsto, o vinho tinha um importante papel na festa. Homens e mulheres bebiam diretamente da garrafa depois de cada dança. Agarrando-se pelas mãos começaram a rodear o grande mastro adornado com flores e começaram a cantar canções pagãs em honra às árvores, a terra e a lua. Essa sensação de liberdade e de alegria recordou a Tasia a voila dos russos, quando era permitido fazer qualquer coisa: beber, quebrar o que tivessem à mão, em resumo, voltar-se loucos. – Venha! – gritou Molly agarrando Tasia por uma das mãos enquanto Betsy se apoderava da outra. Levaram-na a roda de pessoas. – Não é necessário que cante miss Billings, simplesmente faça ruído e mova os pés. Isso não era muito difícil, Tasia se deixou levar pelo ritmo e repetiu as canções dos outros até que seu coração começou a pulsar com a força de um tambor. O círculo se quebrou e todos foram beber e descansar. Molly lhe ofereceu um odre de vinho e Tasia bebeu torpemente um gole do líquido vermelho escuro. Quando a música começou de novo, um bonito moço loiro se aproximou sorrindo e a agarrou pela mão para levá-la novamente à roda de pessoas. Ela não sabia se era devido ao vinho ou à excitação do baile, mas em qualquer caso estava começando a divertir-se. Todas as mulheres se lançaram ao centro do círculo e agitaram suas coroas por cima de suas cabeças. O perfume das flores, misturado com o aroma do vinho e do suor dava ao ambiente um particular aroma a terra. Tasia dançou e


dançou até que tudo girou a seu redor. Saiu do grupo de bailarinos e se afastou um pouco para recuperar o fôlego, tinha a blusa empapada de suor e se abanou, apesar do frescor da noite tinha calor e estava ruborizada e encantada. Alguém lhe ofereceu uma garrafa e deu um gole de vinho. – Obrigado – disse secando – a boca com o dorso da mão. Ao levantar a vista viu que a seu lado estava o loiro de antes que voltou a agarrar a garrafa e, antes que ela pudesse reagir, deu um beijo na bochecha. – Isso dá sorte – exclamou ele alegremente antes de voltar para baile. Tasia piscou surpreendida e se levou uma mão à bochecha. – Chegou o cavalo! – gritou um homem. A multidão rugiu entusiasmada. – O cavalo! O cavalo! Tasia começou a rir ao ver dois jovens com um velho disfarce de cavalo. Um deles levava a grande máscara que servia às vezes de cabeça, o pescoço estava enfeitado com uma coroa de flores e umas abas tampavam as pernas dos carregadores. Depois de dar umas voltas, o animal se dirigiu pesadamente para o centro do povoado seguido pela multidão. Agarraram Tasia pela mão e a serpente humana perambulou pelas ruas, passaram por uma primeira casa que tinha as portas totalmente abertas. Ao sair pela porta traseira, Tasia se deixou arrastar pelos outros. As pessoas enchiam as ruas para olhar os bailarinos enquanto davam palmadas seguindo o ritmo das velhas canções. Um grupo de homens estava perto do antigo mercado de trigo e alguns acariciando abertamente a suas companheiras. Quando um obstáculo invisível retardou o caminho da fila de bailarinos, estes começaram a dar patadas no chão enquanto cantavam. Tasia ouviu uns assobios e se virou para os bagunceiros, entre os quais viu com surpresa que se encontrava lorde Stokehurst, que sorria ante suas bobagens. Tasia se esticou preparando-se para fugir antes que ele a visse, mas já era muito tarde… Ele se voltou para ela ao mesmo tempo em que ela começava a partir. O deslumbrante sorriso dele se desvaneceu e lhe viu tragar saliva com esforço.


Depois abriu a boca tão surpreso como ela. Ele estava um pouco despenteado, sua jaqueta e sua camisa estavam desabotoadas à altura do pescoço, sob a luz das tochas, que punham reflexos dourados em seu cabelo, era a viva imagem de um bogadyr, o herói de um antigo conto russo. Os olhos azuis dele mantiveram cativos os de Tasia. Diretos e diabólicos como se estivessem vendo um espetáculo indecente. A serpente humana voltou a mover-se, mas Tasia sentia seus pés como se fossem de chumbo. Estava aí, petrificada e o homem que estava detrás dela protestou: – Vamos pequena, te mova ou sai da fila. – Perdão – disse ela retrocedendo de um salto. O lugar que deixou vazio foi imediatamente ocupado. Antes que pudesse escapar, lorde Stokehurst estava diante dela. Agarrou-a pelo pulso. – Venha comigo. Ela obedeceu confundida, sem pensar em resistir nem por um momento. Os homens assobiavam e os bailarinos gritavam enquanto entravam na casa seguinte, mas os batimentos do coração de Tasia afogavam todos os sons. Stokehurst avançava dando passos rápidos obrigando-a a correr detrás dele, estava zangado e com razão… Tinha cometido um equívoco ao fazer-se notar desse modo em vez de comportar-se com dignidade ficando na mansão. Agora, lorde Stokehurst ia lhe dar um sermão para possivelmente despedi-la depois. Levou-a até um bosque na beira do prado onde se celebrava a festa, longe das luzes do povoado. Finalmente, sob a copa de uma grande árvore, soltou-a. Ela levantou os olhos para ele, mas era incapaz de distinguir sua expressão na escuridão. – Não deveria ter vindo para o baile – murmurou ela fracamente. – Por quê? Esta noite todo mundo tem direito a divertir-se. Tasia abriu os olhos assombrada. – Não está zangado? Ele se aproximou dela ignorando a pergunta.


– Com esse penteado parece uma cigana. Essa observação tão pessoal desconcertou Tasia. Stokehurst não se comportava como habitualmente, parecia ter abandonado a contenção que lhe caracterizava. Em sua voz suave e seus gestos despreocupados se adivinhava uma nova ameaça. Deu-se conta repentinamente de que ele a sua maneira a estava cortejando. Retrocedeu assustada e tropeçou com a raiz de uma árvore. Ele a segurou pelos ombros, mas não a soltou mesmo depois que ela recuperou o equilíbrio. O calor de suas mãos a queimava através da blusa. O outro braço de Stokehurst se apoiou no tronco da árvore à altura da orelha dela. Tasia se sentia como em uma armadilha; deliciosamente consciente da proximidade do corpo do homem, apoiou-se na árvore. Está bêbado, pensou fugazmente, não é consciente do que faz. – Milorde…há…bebeu… – Você também. Ele estava o bastante perto para que ela notasse o doce sabor do vinho em seu fôlego, jogou para trás a cabeça tanto como foi possível. Por um instante a luz de uma tocha iluminou o rosto de Stokehurst antes de voltar a ficar entre as sombras. Ela notou seus dedos sob seu queixo e emitiu um gemido de protesto. – Não… – sussurrou assustada. – Não? – repetiu ele divertido – então por que me seguiu? – Eu…Acreditava… Custava respirar. – Acreditava que estava zangado, acreditei que queria me chamar atenção em particular. – E teria preferido isso a um beijo? – Sim! Ele riu ante a espontaneidade de sua resposta e sua mão se pousou em sua tensa nuca fazendo-a tremer com a calidez de sua pele. Soprava uma leve brisa, mas lorde Stokehurst era alto, largo e quente. Apesar da angústia que fazia com que seus dentes tocassem castanholas, Tasia se sentiu tentada a procurar refúgio nele. – Tem medo de mim – murmurou ele.


Ela assentiu com a cabeça com estupidez. – Por culpa disto? – perguntou ele lhe mostrando seus dedos metálicos. – Não. A verdade era que ela não sabia exatamente de que tinha medo. Uma estranha sensação tomou conta dela e estava alerta, temendo um perigo que não podia expressar. Os suaves lábios de Stokehurst agarraram uma pequena mecha de cabelo de sua têmpora e ela sentiu como uma descarga de eletricidade. Pôs lhe os punhos no peito para lhe empurrar. – Um beijo para atrair a boa sorte? – sugeriu ele – Às vezes acredito que precisa de sorte miss Billings. Uma risada nervosa lhe subiu à garganta. – Não acredito na sorte, só acredito na oração. – E porque não nas duas coisas? Não, não fique rígida, não vou lhe fazer mal. Inclinou a cabeça e ela virou o rosto. – Deixe-me ir… Cometeu o engano de tentar passar por debaixo de seu braço, mas ele foi mais rápido e a apertou contra seu corpo, enrolando a grossa tranca ao redor de sua mão para imobilizá-la. Dominava-a com sua alta estatura e ela fechou os olhos. Quando notou os lábios dele pousar-se suavemente no canto dos seus, estremeceu. Ele a apertou um pouco mais forte e acariciou os lábios fechados. Ela tinha esperado violência e impaciência, algo exceto a suavidade desse quente contato. A boca de Stokehurst vagou por sua bochecha, sua orelha e seu pescoço. A ponta de sua língua pousou por um momento na artéria do pescoço onde pulsava seu pulso e ela sentiu vontade de repente de se deixar cair contra ele cedendo ao desconhecido desejo que nascia em seu interior. Nunca antes tinha perdido o controle de si mesma diante de ninguém e esse pensamento lhe devolveu a prudência. – Não – disse com voz afogada colocando as mãos em seu cabelo – O suplico Pare!


Ele levantou a cabeça e a olhou nos olhos. – Que suave é! – murmurou ele. Em seguida soltou a trança depois de pegar uma flor dela. Com a ponta dos dedos delineou a curva da mandíbula dela. – Milorde… Ela respirou fundo. – Milorde…espero…que seja possível…esquecer o que acaba de acontecer. – Se realmente o quiser assim… Acariciou o queixo com os dedos que ainda conservavam o perfume da flor. Ela moveu a cabeça mordendo um lábio. – Foi o vinho. E a dança. Suponho que qualquer um teria se deixado levar pelo ambiente. – É obvio, os bailes folclóricos são um pouco mareantes… Tasia avermelhou compreendendo que ele estava burlando dela, mas não lhe importou já que tinha encontrado uma desculpa. – Boa noite – disse afastando-se da árvore Suas pernas pareciam de algodão. – Tenho que voltar para a mansão. – Mas só não. – Quero voltar sozinha – insistiu. Houve um breve silêncio e depois Stokehurst explodiu em gargalhadas. – De acordo, mas não se queixe se alguém a aborde. Embora haja poucas possibilidades de que isso aconteça duas vezes na mesma noite. Ela pôs-se a correr com sua magra silhueta confundindo-se com a noite. Luke apoiou o ombro no tronco da árvore e deu vários golpes nervosos com o salto de sua bota no chão. Comportou-se delicadamente com ela quando seu desejo tinha sido o de esmagar seus lábios com os dele e deixar marcas na fina pele dela. O desejo que ele acreditava morto há muito tempo acabava de ressuscitar, mas forte que nunca. Desejava levá-la a sua cama e conservá-la durante uma semana ou para toda a vida.


Odiava-a por transtornar assim sua vida, por afastar de sua mente a lembrança de Mary. Ela partiria logo, o mês passaria logo e Charles Ashbourne lhe encontraria outro emprego. Só tinha que ignorá-la até então. Frustrado, golpeou o tronco da árvore com seus dedos de metal arrancando uma parte de casca e em seguida se afastou dando grandes pernadas fugindo do baile e da festa. Tasia estava em frente à janela de seu quarto um pouco perdida. Ao recordar os mornos lábios dele sobre os seus, sua suavidade e sua força contida, estremeceu. Estava sozinha há tanto tempo! Estar entre os braços de Stokehurst tinha sido uma experiência deliciosa e ao mesmo tempo aterradora. O conforto e a sensação de segurança a tinham perturbado profundamente. Lentamente levou uma mão à boca. Stokehurst certamente tinha encontrado divertida sua inocência, nunca antes a tinham beijado, além de alguns beijos trocados com Mikhail Angelovsky justo depois do anúncio de seu compromisso. Mikhail, como lhe chamavam sua família e seus amigos, era uma extraordinária mescla de beleza e de excessos. Sua maneira de viver era despreocupada, vestia-se sempre de forma muito rebuscada, banhava-se em perfumes de aroma penetrante, levava o cabelo muito comprido e o pescoço sujo. A maior parte do tempo seus grandes olhos dourados só refletiam o vazio provocado por seu vício ao ópio. De repente umas vozes encheram a cabeça de Tasia, e cambaleou presa das náuseas. – Amo-te Mikhail. Mil vezes mais do que ela jamais poderá te amar. Nunca será capaz de te dar o que necessita. – Pobre velha louca, ciumenta e decrépita – respondeu Mikhail – Não tem nem ideia do que desejo. – As vozes se desvaneceram e Tasia franziu o cenho desconcertada sem saber se isso tinha sido uma lembrança ou o fruto de sua imaginação. Sentou-se com a cabeça entre as mãos, imersa na tortura de seus pensamentos. A temporada estava terminando em Londres e a alta sociedade ia fechando suas casas da cidade para retirar-se ao campo.


Lorde Stokehurst dava uma das primeiras festas do verão, um fim de semana de caça ao qual estavam convidados os vizinhos mais importantes. Para Tasia essa perspectiva não tinha nenhuma graça já que ia perturbar sua tranquilidade, entretanto a esperada assistência dos Ashbourne a tranquilizava. Sentia-se feliz por voltar a ver sua prima Alicia, o único vínculo que ficava com seu passado; esperava poder encontrar um momento para conversar com ela. A ninguém surpreendeu ver lady Harcourt como anfitriã. – Foi sua ideia – confiou Mrs. Knaggs uma noite aos criados de maior fila – Lady Harcourt quer que lorde Stokehurst e todos seus convidados se deem conta do bem que se desenvolve. Esta mais claro que a água: quer converter-se na senhora desta casa. Lady Harcourt chegou dois dias antes para assegurar-se de que tudo estava ao seu gosto. A partir desse momento na mansão se desdobrou uma atividade febril. Fizeram-se enormes acertos florais enquanto os músicos ensaiavam nos salões. Lady Harcourt fez um montão de mudanças que foram dos móveis ao menu previsto por Mrs. Plunkett. Emma estava tão desgostosa que brigou com seu pai, o tom de suas vozes ressonou pelo vestíbulo uma manhã quando voltavam de seu passeio diário. – Ela está pondo tudo de pernas para o ar, papai. – Dei carta branca, deixe de te queixar Emma. – Mas se nem sequer ouviste… – Disse que basta. Luke viu Tasia que vinha para procurar a sua aluna e empurrou a adolescente para ela. – Faça algo! – ladrou antes de afastar-se a passos rápidos. Era a primeira vez que lhe dirigia a palavra há vários dias. Tão zangada como seu pai, Emma olhou sua professora com seus olhos azuis brilhando de ira. – É um monstro! – gritou olhando furiosa para seu pai que se afastava. – Imagino que estavam falando de lady Harcourt – disse Tasia tranquilamente. – Não quero que pareça que está em sua casa porque não é assim – resmungou a menina – odeio que se encarregue da casa. E odeio a maneira que se pega sem cessar a papai com sua voz melosa. Põe-me realmente doente!


– Só é um fim de semana, deve te comportar como uma pessoa civilizada, Emma, e tratá-la com cortesia e respeito. – Não é só um fim de semana – murmurou Emma – Quer casar-se com ele. Com toda sua ira desaparecida levantou seu olhar cheio de tristeza para Tasia. – E se o consegue miss Billings? Teria-a em cima de mim toda a vida! De repente Tasia se encontrou com uma menina desconsolada de doze anos entre os braços. Abraçou-a com ternura lhe acariciando o cabelo. – Sei o duro que é para ti – murmurou – Mas seu pai está sozinho desde que morreu sua mãe sabe? A Bíblia diz “que cada homem tenha sua mulher”. Preferiria que nunca se casasse e que envelhecesse sozinho? – É obvio que não! – respondeu Emma em voz baixa – mas quero que se case com alguém que eu goste. Tasia começou a rir. – Querida, não acredito que pudesse gostar de uma pessoa que interessasse a seu pai. – Sim! – protestou Emma soltando-se de seus braços indignada – conheço uma que é exatamente o que necessita. É jovem, bonita, inteligente…Seria perfeita para ele. – E quem é? – Você! Tasia ficou boquiaberta por um momento. – Esqueça-se disso imediatamente Emma – conseguiu articular. – Por quê? – Para começar os homens como seu pai não se casam com professoras. – Papai não é um esnobe. Isso não lhe importaria. Não lhe parece bonito, miss Billings? – Nunca pensei nisso. E agora é a hora da lição Emma. – Está completamente vermelha! – disse triunfalmente a aludida apesar do severo olhar de Tasia – O acha bonito! – A beleza física não significa nada. – Papai é bonito também em seu interior – insistiu Emma – Não o dizia a


sério quando disse que era um monstro. A senhorita poderia tentar ser mais amável com ele, miss Billings, lhe sorrir de vez em quando. Tenho certeza que papai se apaixonaria por você se você tentasse lhe seduzir. – Mas eu não quero que ninguém se apaixone por mim! – respondeu Tasia reprimindo uma gargalhada ante as maquinações da menina. – Então não gosta de meu pai? – É um homem muito respeitável. – Sim, mas gosta? – Tudo isto é ridículo Emma, não conheço o suficiente a lorde Stokehurst para te responder. – Se, se casasse com ele já não teria necessidade de trabalhar. Se converteria em duquesa não gostaria disso? Não gostaria de viver para sempre conosco? – OH Emma… Tasia olhou a sua aluna com carinho. – É muito amável de sua parte te ocupar de meu bem-estar, mas há coisas que não entende e temo que não posso lhe explicar isso. Ficarei tanto tempo como é possível, isso é só o que posso lhe prometer. Emma ia responder quando viu que alguém se aproximava, fechou a boca e olhou fixamente à mulher com o cabelo cor mogno com uma antipatia mal dissimulada. – Lady Harcourt – anunciou entre dentes. Íris parou a seu lado, usava um vestido de seda vermelho escuro que realçava sua voluptuosa figura. – Me apresente a sua acompanhante Emma – disse com voz doce. Emma obedeceu com inapetência. – Minha professora, miss Billings. Lady Harcourt acolheu a reverência de Tasia com um gesto gelado. É curioso, segundo a descrição de lorde Stokehurst imaginava bem mais velha, entretanto é quase uma menina. – Se Emma ou eu podermos ajudá-la de algum modo com seus preparativos lady Harcourt – disse Tasia – estaremos encantadas. Não é certo Emma?


Olhou a sua aluna com severidade. – OH sim! – respondeu Emma com um meloso sorriso. – Obrigado. A melhor ajuda que podem me dar é manterem as duas afastadas dos convidados. – Certamente milady. Além disso, estamos atrasadas com a aula da manhã. – Nos manter afastadas? – repetiu Emma encolerizada – é minha casa… Viu-se interrompida por Tasia que a arrastou para a aula. – Começaremos com uma pequena redação sobre a educação – sussurrou pelo caminho. – Por que tenho que ser educada com ela se ela não o é comigo? Emma olhou a professora de soslaio. – Parece que você tampouco gosta muito dela, miss Billings – acrescentou. – Pareceu-me bem graciosa – respondeu Tasia com indiferença. Emma a olhou com atenção. – Estou segura de que a senhorita tem tanto sangue azul como ela, inclusive até mais. Mrs. Knaggs está segura. Pode me dizer quem é em realidade, nunca traio um segredo. Deve ser alguém importante, uma princesa que se esconde de algo, ou uma espiã, ou possivelmente… Rindo, Tasia a agarrou pelos ombros e a sacudiu levemente. – Só sou sua professora, isso é tudo. E não desejo ser ninguém mais. Emma a gratificou com um olhar sério. – Isso é uma tolice! Você é muito mais que uma professora, isso se vê a léguas. Os convidados foram chegando ao longo de todo o dia. Os criados passaram todo o tempo subindo e descendo as escadas atentos à comodidade dos convidados de seu senhor. As damas desapareciam em seguida para reaparecer com elegantes vestidos, enfeitados com rendas e com delicados bordados. Providas de elegantes leques, em seguida se reuniam nos salões para conversar enquanto bebiam um refresco. Tasia as observava recordando os bailes aos quais tinha assistido na Rússia


com sua família. Que vida tão protegida levava então! Seu mundo se limitava a São Petersburgo. Quanto tempo esbanjado! Inclusive as horas que tinha passado ajoelhada na Igreja agora lhe pareciam vazias. Teria sido melhor que as tivesse empregado ajudando aos pobres em lugar de limitar-se a rezar por eles. Aqui, na Inglaterra, pela primeira vez em sua vida, sentia-se útil e era uma sensação imensamente satisfatória. Embora tivesse opção não voltaria para a vida ociosa que tinha levado até há pouco. De noite se serviu um suntuoso jantar na sala de jantar, em umas luxuosas mesas. Houve pelo menos trinta pratos diferentes e o ar estava cheio de aroma de caça, salmão, aves e bolos. Quando passava diante da porta ouvia os brinde seguidos de gargalhadas. Imaginava lady Harcourt, magnífica, com sua cabeleira mais chamejante que nunca sob a luz dos candelabros. Lorde Stokehurst devia estar contemplando-a, feliz e orgulhoso, felicitando-se pelo êxito da festa. Tasia tirou o cenho que enrugava sua testa antes de reunir-se com Emma para jantar. As crianças nunca eram convidadas aos jantares privados e as professoras tampouco. Depois de comer, os convidados se separaram, as damas se reuniram em um salão para tomar uma xícara de chá enquanto os homens ficavam na sala de jantar para degustar uma taça de porto ou de conhaque. Por fim todos se reuniram no salão de verão para ver as atrações. Emma suplicou a Tasia que a deixasse descer. – Lady Harcourt contratou uma vidente, chama-se Madame Miracle e é muito boa. Miss Billings temos que ir vê-la. Imagine que diz algo sobre meu pai. Ficarei sentada sem me mover em um canto, me comportarei bem, prometo-o. Tasia sorriu. – Imagino que não há nada de mal em olhar um pouco sempre que formos discretas. Mas não espere muito dessa Madame Miracle, Emma. Com certeza é uma atriz sem trabalho. – Pouco importa! Quero ouvir tudo o que diga. – Muito bem – concordou Tasia examinando-a com olho crítico – Mas antes tem que te trocar, pôr o vestido azul e pentear seu cabelo.


Hoje não se deixa dominar, cada vez que me penteio se encrespa mais. Tasia riu. – Nesse caso o prenderemos. Enquanto ajudava Emma a vestir-se, Tasia começou a preocupar-se com as reações que ia provocar sua presença. Depois de tudo lady Harcourt lhes havia dito que se mantivessem separadas dos convidados…embora lorde Stokehurst não houvesse dito nada sobre isso em particular, certamente era da mesma opinião que lady Harcourt. Entretanto Emma levou muito bem todo o dia, tinha estudado e não tinha protestado quando se viu obrigada para jantar na sala de aula. Merecia uma recompensa. Todos, homens e mulheres elegantemente vestidos, estavam sentados em pequenos grupos nos sofás e poltronas enquanto que as luzes peneiradas faziam brilhar delicadamente a seda que recobria as paredes. As cortinas se levantavam pelo efeito da brisa. Assim que lorde Stokehurst viu sua filha se desculpou com uns amigos com que estava falando e se dirigiu para ela. Estava magnífico com seu traje escuro e seu colete de seda bordado. Beijou brevemente a Emma. – Não te vi em todo o dia – disse – Onde tinha te escondido? – Lady Harcourt nos disse que não… Emma se interrompeu ao notar que Tasia lhe dava uma discreta cotovelada. – Estivemos muito ocupadas trabalhando papai. – O que aprendeste hoje? – Esta manhã tivemos lição de comportamento e pela tarde estudamos a história da Alemanha. Levei-me tão bem que miss Billings me disse que podia ver Madame Miracle se fosse discreta. – Madame Miracle – disse lorde Stokehurst com uma pequena risada – aposto que é uma charlatã. Pode te sentar na frente comigo, Emma, com a condição de que me prometa que não acreditará em nada do que diga. – Obrigado papai!


Emma ia afastar-se com seu pai quando se deteve e se voltou para a Tasia. – Venha conosco, miss Billings. – Prefiro ficar aqui – respondeu esta. Olhou as largas costas de Stokehurst enquanto se afastava com sua filha, sentindo-se mal repentinamente. Ele a tinha ignorado deliberadamente sem olhála sequer, entretanto, sob sua frieza se podia notar algo terrivelmente ameaçador. Deixou de pensar nisso quando lady Harcourt levou ao centro da sala uma mulher completamente vestida de negro. – Se me permitirem eu gostaria de lhes apresentar uma convidada muito especial. Em Londres, Paris e Veneza, Madame Miracle é reconhecida por possuir um excepcional dom de vidência. Diz-se que alguns membros da família real a consultam regularmente. Por sorte aceitou unir-se a nós para que possamos desfrutar de sua habilidade fora do comum. Houve uma salva de entusiasmados aplausos e Tasia se refugiou ao fundo junto à parede com seu rosto inexpressivo. Madame Miracle era uma mulher morena de uns quarenta anos com os olhos delineados com khol e as bochechas coloridas. Levava um anel em cada dedo e nos pulsos uns pesados braceletes. Assinalou teatralmente o velador coberto com um pano negro e cheio de candelabros. Sobre a mesa havia outros objetos: uma taça cheia de pedras de cores, um jogo de cartas e algumas estatuetas. – Queridos amigos – adotou um tom dramático – chegou a hora de afastar as dúvidas e as barreiras terrestres para acolher os espíritos que esta noite serão um reflexo de nossas almas. Preparem-se para descobrir com eles os segredos do passado e do futuro. Enquanto a mulher continuava falando, Tasia ouviu que alguém pronunciava seu nome. Um calafrio lhe percorreu as costas e se virou com rapidez. Alicia Ashbourne estava sorrindo detrás dela. Obedecendo a seu sinal, Tasia se deslizou pela porta e se refugiaram rapidamente no deserto vestíbulo. Tasia abraçou encantada a Alicia. – Prima! Esta maravilhosa, este mês te fez maravilhas.


Tasia a olhou com cepticismo. – Não notei nenhuma mudança. – Seu rosto está relaxado e estas menos magra. – A verdade é que me alimentam bem. – Fez uma careta. – Comemos todas as horas. Alicia riu. Seja o que for, tem feito muito bem a ti. Diga-me, Tasia, como está? Tasia encolheu os ombros um pouco incômoda, queria falar de sua visão de Mikhail no espelho, de seus pesadelos, mas tudo isso se deveu a sua consciência pesada. Se, se desafogava com a Alicia só conseguiria preocupá-la. – Estou bem tanto quanto possível – respondeu por fim. Alicia estava cheia de compaixão. – Charles e eu somos sua família Tasia. Faremos tudo o que possamos para te ajudar. Lorde Stokehurst é amável contigo? – Não é desagradável – disse Tasia sem comprometer-se. – Me alegro muito! – exclamou Alicia lhe apertando as mãos com força antes de olhar a seu redor no vestíbulo – seria melhor que voltássemos para o salão, haverá outra ocasião para nos falar. Tasia esperou uns minutos antes de seguir a sua prima. Levantou as sobrancelhas surpreendida ao ver Emma sentada na mesa da vidente. Apesar da advertência de seu pai a menina parecia hipnotizada por Madame Miracle. – Vê algo? – perguntava com interesse. Madame Miracle estudava atentamente as pedras de cores dispostas na toalha. – Ah! – disse por fim com um grave assentimento como se as pedras lhe tivessem revelado seus segredos – tudo se esclarece. Tem um espírito rebelde e violentas emoções…mas tudo voltará para seu equilíbrio. Dentro de pouco sua capacidade de amar vai atrair ao seu redor muita gente que tentará beneficiar-se de sua força. Interrompeu-se, agarrou as mãos de Emma e fechou os olhos para concentrar-se melhor. – E meu futuro? – insistiu Emma.


– Vejo um marido. Um estrangeiro. Trará consigo conflitos, mas à força da paciência e de compreensão conseguirá viver em harmonia. Abriu os olhos. – Terão muitos filhos. Um belo futuro em perspectiva. – Que classe de estrangeiro? Um francês? Um alemão? – Os espíritos não dizem. Emma enrugou o nariz contrariada. – Pode perguntar. Madame Miracle encolheu os ombros e lhe soltou as mãos. – Isso é tudo – declarou com um tom que não admitia réplica. – Maldição! – grunhiu Emma – Agora estarei me fazendo perguntas cada vez que conheça um estrangeiro. Stokehurst sorrindo, fez um sinal a sua filha para que voltasse para seu lugar a seu lado. – Agora deixe outra pessoa carinho. – Miss Billings! – sugeriu Emma – Quero saber o que dizem os espíritos sobre miss Billings. Tasia empalideceu enquanto todas as cabeças se viravam para olhá-la. Converteu-se no foco de duzentos pares de olhos e um suor frio a invadiu. Por um instante pensou que estivesse de novo na Rússia no momento do processo, quando as pessoas a olhavam com uma curiosidade insalubre e hostil. Invadiu-a o pânico e sacudiu a cabeça, incapaz de pronunciar uma só palavra. Estava-se inundando cada vez mais no pesadelo quando ouviu a voz de lorde Stokehurst. – Por que não? – perguntou suavemente – Venha aqui miss Billings.


Quatro

Tasia desejou que a terra a tragasse. Enquanto, as pessoas começaram a murmurar. – Só é uma professora… – Por que lhe dedicar tanta atenção? Stokehurst olhava para Tasia fixamente. – Não deseja saber o que lhe reserva o futuro? – Meu futuro não interessa a ninguém milorde – respondeu ela com calma apesar da angústia que sentia. Stokehurst parecia querer castigá-La, mas ela não sabia o que podia ter feito para lhe desgostar. Emma olhava alternativamente para Tasia e para seu pai e seu sorriso se desvaneceu. – É realmente divertido, miss Billings – insistiu com voz um tanto hesitante apesar de tudo – por que não prova? Alicia Ashbourne se levantou bruscamente e declarou com tom cortante: – Eu gostaria que lessem o meu futuro. Não percamos o tempo com alguém que não o deseja. – Depois lady Ashbourne – respondeu delicadamente Stokehurst – Que os espíritos se centrem primeiro em nossa misteriosa professora. Alicia se dispunha a protestar quando seu marido a obrigou a sentar-se de novo lhe dando tapinhas na mão para tranquiliza-la. Íris Harcourt franziu o cenho. – Não atormente a pequena Luke, se não querer fazê-lo é melhor deixá-la em paz. Stokehurst a ignorou. Estava olhando fixamente para Tasia. – Vamos miss


Billings, não nos faça esperar mais. – Preferiria… – Insisto. Teria a última palavra embora para isso tivesse que provocar uma cena. Consciente de que não tinha escapatória, Tasia deu um passo para diante como se estivesse indo à fogueira. – Não tenha medo minha filha – disse Madame Miracle lhe fazendo um gesto para que se sentasse – pegue as pedras e esquente-as entre suas mãos. Tasia estava apanhada, a única coisa que podia fazer era confrontar a situação com a cabeça erguida. Tomou um punhado de pedras e as apertou com força em seu punho. Todos a olhavam fixamente e ela notava essas olhadas como se fossem adagas. – Agora – ordenou Madame Miracle – solte-as. Tasia abriu a mão e as pedras caíram na mesa e se dispersaram rodando em várias direções. A vidente baixou a cabeça, visivelmente afetada, depois recolheu as pedras e as voltou a pôr na taça. – Seria melhor começar de novo. – Por quê? – perguntou Tasia com voz indiferente embora adivinhasse a resposta. Era um mau sinal. Madame Miracle sacudiu a cabeça sem responder. Tasia voltou a lançar as pedras e uma caiu sobre o parquet. – Ah! – sussurrou a vidente – aconteceu de novo. Dois irmãos, a morte, o sonho. Inclinou-se para recolher a última pedra e a observou atentamente. Era de cor vermelha sangue com pequenas manchas negras. Por fim a depositou na mesa e pegou as mãos de Tasia. – Percorreu um longo caminho desde seu lar, viu-se arrancada de sua casa e de sua história. Interrompeu-se franzindo as sobrancelhas concentrada. – Não faz muito tempo as asas da morte a tocaram. Tasia estava em silêncio,


petrificada. – Vejo um longínquo país…Uma cidade construída sobre ossos, rodeada de bosques muito antigos. Vejo muito ouro e âmbar…palácios, enormes terras e muitos criados…E tudo seu. Vejo-a com um vestido de seda e pedras preciosas no pescoço. Lady Harcourt interveio bruscamente como se tudo isso lhe parecesse divertido. – Miss Billings é uma simples professora, nos explique, por favor, se puder como vai ter um futuro tão luxuoso. Casando-se com um homem rico? – Não estou falando do futuro – respondeu a vidente – mas sim do passado. No salão reinava o silêncio, Tasia, muito afetada, tentou liberar suas mãos. – Quero parar – murmurou com voz rouca. A vidente apertou mais seus dedos nos dela e Tasia notou como o suor umedecia suas mãos que se crisparam de repente como se houvessem sentido uma descarga elétrica. – Estou vendo-a em uma sala decorada com ouro, valiosos quadros e livros. Está procurando alguém. Uma sombra cai sobre seu rosto. Há um homem jovem de olhos amarelos. Há neste sangue caindo no chão. Você grita seu nome…algo como…Michael. Michael! – repetiu a mulher saltando para trás e soltando as mãos de Tasia. A jovem ficou sentada, gelada e aterrorizada. Madame Miracle retrocedeu vacilante, mostrando a palma de sua mão que estava tão vermelha como se a tivesse metido em água fervendo. – Queimou-me! – gritou – É uma bruxa! Tasia conseguiu levantar-se embora não estava muito segura de suas pernas fossem sustentá-la. – Já tive suficiente de suas ridículas mentiras – disse com voz trêmulas. Tinha um nó no estômago, mas conseguiu abandonar a sala como se fosse um autômato, com a cabeça erguida. Tinha que esconder-se em alguma parte. – OH Deus o que fiz? As vozes de seu passado lhe enchiam a cabeça.


– Deveriam te queimar… – Pobre pequena… – Não queria fazê-lo… – …te reduzir a cinzas… – Que Deus me ajude… – Bruxa! – Não! – gemeu pondo-se a correr. Fugiu, tropeçando, dos demônios que a perseguiam. Quando saiu, todos começaram a falar. As mulheres abriram seus leques para dissimular suas venenosas opiniões e alguns convidados formaram redemoinhos em torno de Madame Miracle crivando-a de perguntas. Impassível, Luke saiu em busca da professora. Ao chegar ao vestíbulo notou que alguém lhe agarrava pela manga. Deteve-se para encontrar-se frente a uma Alicia Ashbourne furiosa que lhe olhava franzindo os lábios e as bochechas avermelhadas. – Agora não – disse secamente. – Perdeu a cabeça? – perguntou Alicia fora de si. Arrastou sob as escadas, onde ninguém pudesse lhes ouvir. – Mereceria que Charles lhe matasse. Como se atreveu a fazer isto a minha prima? Pô-la diante de todos em um cenário quando sabe perfeitamente que tem que esconder-se… – Justamente, não sei nada dela. Salvo que estou farto de vê-la vagar pela casa como um fantasma com seu aspecto de mártir e seus olhares trágicos cheia de sombrios segredos. Só Deus sabe as consequências que isso pode ter em minha filha. Estou mais que farto – repetiu. Alicia se estirou em toda sua altura. – De repente decidiu envergonhá-la em público. Nunca pensei que fosse tão cruel. De acordo, vou procurar Tasia para levá-la imediatamente. Não me atreveria a impor um cão ferido a sua hospitalidade, e muito menos a minha prima. Luke a olhava com intensidade.


– Tasia? Esse é seu nome? Horrorizada, Alicia tampou a boca com a mão. – Esqueça-o. Esqueça-o imediatamente. Simplesmente deixe que a leve a Londres, prometo que não voltará a vê-la nunca mais. Ele apertou os dentes. – Ela não irá a nenhuma parte. Alicia lhe olhava como um poodle corajoso frente a um pastor alemão. – Já se colocou bastante em seus assuntos, obrigado. Supunha-se que lhe ia servir de refúgio provisório e, entretanto a pôs em perigo. Expô-la dessa maneira ante todas essas pessoas poderia significar sua condenação de morte e tudo por culpa de seu orgulho ferido. Assegurei a Tasia que você era digno de confiança, mas me equivoquei. Diga-me como se sente alguém quando arruína a vida de uma pessoa por um simples capricho? – Foi você quem a meteu nisso – sibilou Luke – Vou ficar louco se não consigo entender algo. O que quer dizer com “condenação de morte”? Por Deus o que ela fez? Alicia se virou franzindo o cenho. Luke se resignou a que sua pergunta ficasse sem resposta quando ela voltou a falar. – Não sei. Nem sequer estou segura de que ela mesma saiba. Luke soltou um juramento de frustração. – Vou procurá-la. Você volte com outros. – E quem protegerá a minha prima? – perguntou Alicia. – Eu. – Até agora não o demonstrou muito. Metendo-se no barulho de gente, Emma conseguiu aproximar-se de Madame Miracle e de lady Harcourt. Olhou-as duas com seus olhos azuis cheios de ira e as sardas perfeitamente visíveis em seu rosto empalidecido. – Emma – disse secamente lady Harcourt – neste momento quão último precisamos é um arranque de mau gênio de uma menina.


Emma a ignorou e se dirigiu a vidente. – Por que tinha que utilizar a miss Billings como um brinquedo? Não lhe fez nada. A mulher se sobressaltou de indignação. – Eu nunca utilizaria meus dons dessa forma. Revelei a verdade tal e como os espíritos me mostraram. Emma cruzou seus magros braços com autoridade. – Seria melhor que se fosse agora – declarou – vou chamar nosso mordomo para que a acompanhe. Se não dispor de carruagem lhe proporcionaremos uma. – Querida Emma – cortou lady Harcourt – Só porque sua impressionável professora se incomodou não vamos privar os outros convidados da distração. Isto é uma coisa de adultos e não de crianças. Por que não sobe para seu quarto e te ocupa de seus livros e de suas bonecas? Emma lhe lançou um olhar ardiloso. – De acordo. Mas eu não gostaria de estar no lugar de sua Madame Miracle quando meu pai voltar. Está muito zangado. Quem sabe do que será capaz? Com um perverso sorriso, a adolescente colocou as mãos na garganta emitindo uma espécie de ofego. A vidente estremeceu e começou a recolher todas suas coisas. – Deixe de inventar coisas sobre seu pai Emma – grunhiu Iris – Vá para seu quarto. Não vou tolerar suas tolices. A anfitriã sou eu e eu desejo que Madame Miracle fique. A expressão de menina travessa desapareceu do rosto de Emma dando lugar a uma de teimosia. – Fez com que miss Billings ficasse infeliz. Exijo que se vá. E esta é minha casa, não a sua. – Pequena insolente! Íris percorreu com o olhar o salão. – Onde esta seu pai? Emma encolheu os ombros inocentemente. – Não tenho nem a menor ideia.


Luke encontrou entreaberta a porta do pequeno quarto do segundo piso. A atmosfera era pesada e o silêncio opressivo. Viu uma cadeira caída e uma pequena imagem no chão. A professora…Tasia…estava em frente à janela. Ela soube imediatamente que ele estava na porta. – Milorde – disse sem voltar-se com uma voz carente de emoção. Ele compreendeu repentinamente que ela não estava zangada, nem irritada, nem sequer assustada. Estava simplesmente machucada. Ele lhe tinha causado muito mais mal do que tinha sido sua intenção, e de repente se sentiu cheio de vergonha e de remorsos. Aborrecido consigo mesmo esclareceu a garganta disposto a desculpar-se. – Vim ver como… – interrompeu. Se, se mostrava solicito era possível que ela tomasse como uma brincadeira já que ele era a causa de sua dor. Ela seguia lhe dando as costas e lhe falou com uma voz que se esforçava em parecer normal. – Estou bem milorde, mas preciso ficar sozinha uns minutos. Essa mulher era muito estranha verdade? Perdoe-me por meu acesso de mau humor, se puder partir…e deixar que me recupere. Só preciso estar sozinha – repetiu. Sua voz se apagou como uma caixa de música que se fecha e seus ombros caíram. – Por favor, saia. Luke esteve a seu lado com grande rapidez e tomou em seus braços seu pequeno e rígido corpo. – Sinto muito – sussurrou em seu cabelo – Sinto muitíssimo. Tasia se debateu tentando lhe empurrar, mas ao mesmo tempo era incapaz de ignorar o aroma de conhaque e charuto que desprendia a jaqueta de Luke. Um aroma viril e tranquilizador. Parou de lutar. Ninguém nunca a havia segurado assim, além de seu pai quando era uma menina quando ficava com medo da escuro. Lhe fez um nó na garganta. – Ninguém lhe fará mal – disse Luke com gentileza lhe acariciando o cabelo – me assegurarei disso, tem minha palavra.


Nunca lhe haviam dito que cuidariam dela e esse oferecimento por parte dele teve um estranho efeito em Tasia. Os olhos se encheram de lágrimas e moveu com fúria as pálpebras para contê-las. Lorde Stokehurst só o dizia para ser amável, não tinha nem ideia do que estava oferecendo nem de até que ponto ela necessitava ajuda. Nem do desesperadamente só que estava. – Não pode me prometer nada – disse trêmula – não o entende. – Então me explique. Colocou as mãos no coque dela e afasto seu rosto dele para vê-la melhor. – Me diga de que tem medo. Como podia ela dizer. Como lhe confessar que tinha medo de que a detivessem e a castigassem por seus crimes e sobretudo que temia a si mesma? Se soubesse o que ela tinha feito a odiaria. Se soubesse…se soubesse…a desprezaria. As lágrimas se transbordaram subitamente e ela se deixou arrastar com dolorosa violência. Quanto mais tentava acalmar-se maior era sua pena. Stokehurst, com um pequeno grunhido de contrariedade abraçou-a mais forte mantendo a cabeça dela apoiada em seu peito. Ela soluçava de um modo que doía o coração, pendurando-se em seu pescoço enquanto ele murmurava palavras tranquilizadoras em seu ouvido, seu fôlego cálido e confortador acariciava a garganta dela. Embalou-a desse modo uns minutos até que a frente de sua camisa esteve empapada. – Shh – murmurou ele por fim – vai adoecer. Shh. Acariciava as costas e os ombros dela enquanto lhe falava. – Respire fundo. Outra vez… – Eles…me chamaram bruxa – articulo ela destroçada – antes. Ele não queria interrogá-la, concederia o tempo que necessitasse. As palavras brotaram por fim como uma corrente. – Às vezes via coisas…sobre gente que conhecia. Eu…sabia quando ia acontecer um acidente…ou se alguém estava mentindo. Tinha sonhos, visões. Não muito frequentemente, mas…nunca me equivocava. Falava-se disso inclusive em Moscou. Diziam que eu era maldita. A única explicação para eles


era a bruxaria. Temiam-me. E o medo se transformou em ódio. Eu era um perigo. Estremeceu e mordeu o lábio temendo ter falado muito. Ele continuava abraçando-a. Pouco a pouco os soluços foram diminuindo e ela relaxou no largo peito dele. – Molhei a camisa – murmurou ela com uma patética voz. Ele tirou um lenço de seu bolso. – Toma. Sustentou-o no nariz dela e ela soprou com uma energia quase infantil que lhe arrancou um sorriso. – Está melhor? – perguntou ele gentilmente. Tasia pegou o lenço, secou os olhos e assentiu com a cabeça. Com as lágrimas se livrou desse nó doloroso que a asfixiava há meses. Stokehurst afastou uma mecha que escapou do coque e o pôs atrás da orelha. – Estava zangado comigo esta noite – sussurrou Tasia com voz ainda trêmula – por quê? Luke esteve a ponto de lhe dar uma das numerosas respostas que lhe vieram à mente, mas lhe devia a verdade. Seguiu o rastro de uma lágrima na bochecha dela. – Porque um dia ia desparecer daqui sem me haver dito quem é nem que problemas tem. O mistério que você representa aumenta a cada dia. É tão real como a bruma à luz da lua. Estava furioso por não poder conseguir algo, alguém, que desejava tanto. De modo que tentei feri-la. Tasia deveria ter se afastado dele e ele não a teria impedido. Mas estava hipnotizada pelo lento movimento de seus dedos em sua pele. Percorreu-a um delicioso estremecimento. Ele lhe levantou o queixo com ternura. – Me diga sua idade. Quero a verdade. Ela piscou pega de surpresa. – Já lhe disse…


– Quando nasceu? – insistiu ele. Tasia estremeceu. – Em 1852. Ele ficou um momento em silêncio. – Dezoito anos – disse por fim como se estivesse blasfemando – dezoito… Tasia sentiu a necessidade de defender-se. – Os anos não contam se, se pensa… – Me economize o discurso. A idade é de suma importância para o que eu tinha em mente. Sacudiu a cabeça como se os acontecimentos do dia fossem muito para ele. Incômoda por seu silêncio, Tasia se mexeu levemente. Ele parecia ter esquecido que ainda a estava abraçando. – Suponho milorde – disse inquieta – que agora me despedirá. – É necessário que o mencione cada vez que falamos? – grunhiu ele. – Pensei que depois do que tinha passado esta noite, você… – Não, não a vou despedir. Mas, maldição, se voltar a me fazer outra vez essa pergunta a levarei eu mesmo até a grade da entrada agarrada pelo pescoço. Particularizou esta declaração com um beijo na testa da jovem e em seguida se endireitou. – Sente-se melhor agora? Tasia estava completamente desorientada por sua atitude. – Eu…Não sei. Separou-se dele apesar da vontade que tinha de ficar ali para sempre, protegida do mundo. – Obrigado pelo lenço. Ele olhou o tecido empapado que lhe estendia. – Conserve-o. E não me agradeça. Foi culpa minha que o necessitasse. – Não – respondeu Tasia suavemente – Não foi sua culpa. Levava-o em meu interior há muito tempo…


Abraçou-se a si mesma e se voltou para a janela onde se refletiam suas imagens deformadas. – Sabe – continuou – que os antigos russos tinham o costume de construir suas fortalezas no alto das colinas? Quando os invasores tártaros atacavam, lançávamos água por todos os lados. A água se transformava rapidamente em gelo e os assaltantes já não podiam seguir subindo. O lugar durava tanto quanto o gelo e as provisões aguentavam. Seguiu com o dedo o contorno da madeira. – Faz muito tempo que estou sozinha em minha fortaleza. Ninguém pode unir-se a mim e eu não posso sair. E às vezes…faltam às provisões. Voltou seus imensos olhos, luminosos como duas opalas. – Estou segura de que o entende milorde. Luke a olhava com intensidade e ela não se moveu, mas ele podia ver uma veia que pulsava justo debaixo do pescoço de seda negra. Acariciou-a com a ponta de um dedo. – Prossiga. A magia do momento se viu bruscamente quebrada por uma voz cheia de falsa alegria. – Ah estavam aqui! Lady Harcourt estava na porta com um sorriso forçado nos lábios. Dirigia-se a Tasia, mas só olhava para lorde Stokehurst. – Estávamos muito preocupados com você querida. – Estou bem – murmurou Tasia enquanto Luke deixava cair sua mão. – Sim, já o vejo. – A festa não foi como eu esperava. Madame Miracle se foi e agora os convidados devem conformar-se ouvindo música. Felizmente temos alguns pianistas de muito talento. Lady Harcourt falava agora só para lorde Stokehurst. – Sua preocupação pelos criados é elogiável querido, mas já é hora de que se reúna com nossos amigos. Deslizou seu braço pelo dele e enquanto o levava para fora do quarto se voltou levemente.


– Sua pequena…particularidade, ou como quer que o chame, parece ter perturbado muito a Emma, miss Billings. Se, se tivesse a mantido afastada da festa como lhe disse, tudo isto não… Luke murmurou umas palavras e ela encolheu os ombros. – Como quer querido. Tasia, com o lenço feito uma bola em seu punho se manteve impassível enquanto o casal saía. Os dois eram bonitos, altos e magníficos. Stokehurst seria o marido ideal para Íris Harcourt e estava claro que ela morria de vontade de casar-se com ele. Uma imensa tristeza se abateu sobre ela e mordeu um lábio para impedir que tremesse. Muito devagar foi levantar a cadeira que tinha derrubado em sua pressa por estar a sós. Pôs a imagem em seu lugar e passou uma mão pelas doloridas pálpebras. – OH, miss Billings! Emma entrou com o cabelo revolto e os olhos brilhantes. – Essa horrível velha louca se foi miss Billings – anunciou – Era verdade o que disse? Você vivia em um palácio? Meu Deus, esteve chorando! Abraçou sua professora. – Papai não a encontrou? – Sim, encontrou-me – respondeu Tasia com uma pequena gargalhada cheia de incerteza. Enquanto desciam a escada, Íris olhou para Luke com uma contrariedade pouco dissimulada. – Bem, sua tímida professora conseguiu muito bem estragar a festa com sua afetação teatral. – Eu diria que a culpa foi de sua adivinha. – Madame Miracle se limita a repetir o que lhe dizem os espíritos – contestou Íris. – Pouco me importa se vê os espíritos dançando com uma cartola em cima da mesa, deveriam acabar com essa Madame Miracle – declarou Luke apertando os


dentes – e a mim com ela. Entre os dois pusemos a professora no pelourinho, portanto… – Miss Billings se pôs em evidência sozinha – retificou Íris – E o que aconteceu esta noite demonstra que é completamente imatura Luke. Deveria contratar alguém de uma idade mais adequada para Emma. As duas juntas fazem um bom par de intrigantes. Não queria lhe dizer isso, mas ouvi as duas conspirar para que te casasse com miss Billings. – O que? – Digo-te que estão urdindo um complô. Emma quer que te case com sua professora. É encantador, mas ao mesmo tempo deveria te perguntar se foi sensato contratar a uma ingênua menina recém-saída do convento para… – Não invente histórias! – cortou secamente Luke – Sei que minha filha está entusiasmada com sua professora, mas te asseguro que miss Billings não tem nenhuma ambição por casar-se comigo. – Como homem te deixa enganar por sua atitude. Mas é ardilosa e está tentado tirar vantagem da situação. Luke lhe lançou um olhar irônico. – Antes era ingênua e agora ardilosa? Em que ficamos? Te decida de uma vez. Íris se refugiou em sua dignidade. – É evidente que é você que tem que decidir. – Não tem nenhuma razão para estar ciumenta. – De verdade? E que acontece com a cena que acabo de presenciar? Pretende insinuar que essa garota te é indiferente? Teria lhe tocado assim se fosse uma velha? OH sim, está tecendo seus fios! Uma jovem bonita, só e perdida que lhe olhe com seus grandes olhos cinza te pedindo que faça o papel do Príncipe Encantado e que a salve de sua aborrecida existência…Como poderia um homem resistir a isso? – Não pediu nada – declarou Luke detendo-se para ficar frente a Íris – E seus olhos são azuis, não cinzas. – Já vejo – ironizou Íris com os punhos nos quadris – é a cor da bruma sobre o lago…ou das violetas sob a geada da manhã. Estou segura de que tem várias comparações tão românticas como essas. Por que não se retira para seu quarto e


lhe escreve um poema? E não me olhe com essa condescendência como se estivesse perdendo a cabeça. Nego-me a brigar por seus cuidados com uma menina magricela. Eu não gosto de competição e, além disso, mereço algo melhor que isso. – Isso é um ultimato? – Nunca! – grunhiu Íris – Não vou facilitar-te as coisas. Você gostaria que fosse eu quem fizesse a opção e desse modo tudo seria perfeito. Antes prefiro me arrancar à língua. Entretanto não cometa o erro de vir me buscar na minha cama esta noite nem nenhuma outra enquanto não me convença de que é em mim em quem pensa quando fazemos amor e não nela. Ele passeou um insolente olhar pelas exuberantes curvas de sua amante. – Não corro o risco de lhes confundir. Em qualquer caso não te imporei minha presença esta noite. – Melhor! – ladrou Íris antes de afastar-se sem mais demora com a saia movendo-se a seu passo. O resto da festa foi um verdadeiro fiasco. Para Luke pouco importava se os convidados se divertiam ou não e todos estavam reunidos na sala de música conversando. Charles Ashbourne se aproximou de Luke que estava no fundo da estadia. – Por todos os diabos Stokehurst – murmurou – O que está acontecendo? Luke encolheu os ombros apertando os dentes. – Desculpei-me por minha conduta com Tasia. Pode tranquilizar Alicia, tudo está arrumado. – Não posso tranquilizá-la se eu mesmo não estou convencido disso – suspirou – Alicia e eu gostaríamos que Tasia voltasse conosco. Encontraremos outro lugar. – Isso não será necessário. – Sim! Maldição, tinha te pedido que a protegesse e a escondesse e você vai e a exibe diante de seus convidados como se estivéssemos no Carnaval. Alicia renunciou a levá-la daqui esta mesma noite só para não atrair mais a atenção sobre ela.


O sangue de Luke subiu ao rosto. – Isso não voltará a acontecer. Quero que fique. – E isso é também o que ela deseja? Luke duvidou um momento. – Isso acredito. – Conheço-te muito bem Stokehurst – continuou Charles preocupado – Está ocultando-me algo. – Dei-te minha palavra, protegerei a Tasia. Diga a Alicia que lamento o que aconteceu. Convence-a de que é melhor que Tasia fique aqui. Juro-te que a partir de agora me ocuparei melhor dela. Charles assentiu com a cabeça. – Perfeito. Nunca faltou com a sua palavra e espero que não comece a fazê-lo agora. Ashbourne se afastou e Luke ficou sozinho invadido por um sentimento de culpa. Todos lhe olhavam de soslaio, intrigados, salvo Íris, que, sentada a poucos passos dele, esforçava-se por lhe ignorar. Se quisesse compartilhar sua cama essa noite teria que fazer alarde de diplomacia, desculpar-se e prometer uma visita ao joalheiro. Mas não queria fazer o esforço, pela primeira vez desde o começo de sua relação, a ideia de passar uma noite com Íris lhe deixava frio. Estava obcecado por Tasia e sua história, estava convencido de que ela tinha vivido coisas horríveis, tinha muita experiência por ser tão jovem e só tinha podido confiar em si mesma. Aos dezoito anos se negava a pedir ajuda e desconfiava dos que a ofereciam. Por outra parte ele era muito velho para ela com seus trinta e quatro anos e uma filha adolescente. Tinha pensado ela embora só fosse por um momento na diferença de idade que havia entre eles? Duvidavao. No momento ela não parecia estar interessada nem um pouco nele. Não lhe dirigia olhadas provocadoras, não procurava seu contato e não se esforçava por prolongar suas escassas conversas. Nunca a tinha visto sorrir e isso que ele se encarregou de provocá-la. Por ser um homem que as mulheres diziam ser um sedutor, não tinha se comportado com ela de um modo especialmente agradável. Tinha sido um verdadeiro animal,


mas era muito tarde para voltar atrás e arrumar os danos. A confiança é um sentimento frágil que se consegue pouco a pouco. Esta noite tinha destruído qualquer oportunidade de ganhar algum dia à confiança de Tasia. Entretanto isso não deveria lhe importar tanto. O mundo estava cheio de mulheres bonitas, inteligentes e voluptuosas, e sem pecar em ser vaidoso, Luke sabia que algumas delas estavam desejosas de cair em seus braços. Desde a morte de Mary nenhuma tinha sabido despertar seu interesse como Tasia. Sombrio. Luke bebeu mais da conta comportando-se de forma áspera, quase mal educada. Ignorou suas obrigações como anfitrião e pouco lhe importava o que os outros pudessem pensar de sua atitude. A maior parte dos rostos com que cruzava eram os da mesma gente que via nas festas que davam com a Mary. O mesmo cenário ano após ano se repetia como uma roda girando sem cessar. Sentiu-se aliviado quando o grupo por fim se separou para ir cada qual procurar o casal com o qual ia passar a noite. Biddle estava lhe esperando no dormitório se por acaso lhe necessitava. Luke lhe ordenou que apagasse os abajures e desaparecesse. Em seguida desabou em uma poltrona completamente vestido, levou uma garrafa de vinho aos lábios e bebeu diretamente dela. – Mary… – murmurou como se ao pronunciar seu nome ela fosse aparecer diante dele. Mas nada aconteceu no quarto escuro. Tinha se agarrado durante muito tempo a sua dor até que despareceu deixando atrás de si um nada. Ele tinha acreditado que a dor duraria para sempre e Deus sabia que teria preferido isso ao vazio. Já não sabia desfrutar da vida e, entretanto tinha sido tão fácil quando era menino…Mary e ele riam sem cessar, desfrutando de sua juventude e suas esperanças, confiando cegamente em seu futuro juntos. Voltaria a encontrar uma cumplicidade assim com outra mulher? – Provavelmente não, maldição – grunhiu levando de novo a garrafa à boca. Não podia suportar a perspectiva de uma nova desilusão, da tristeza e dos sonhos desfeitos. Nem sequer tinha desejos de tentá-lo. A meia-noite, Luke deixou por fim a garrafa vazia e saiu do quarto. Havia lua cheia, parecia um disco dourado no céu escuro, ele atravessou a casa vazia atraído pela leve brisa que soprava no exterior. Dirigiu-se para uma vereda que rodeava o


jardim até chegar a um caminho de cascalho. O perfume penetrante dos jacintos se mesclava com o dos lírios e dos heliotrópios. Sentou-se em um banco de mármore situado em meio de uma espessa grama e esticou as pernas. De repente uma frágil silhueta que se movia atraiu sua atenção. Acreditou que era uma alucinação, mas a sombra se moveu de novo como se flutuasse. – Quem está aí? – perguntou em voz alta, com o coração golpeando em seu peito. Ouviu que alguém continha a respiração, depois o som de passos, e ela apareceu diante dele. – Miss Billings! – exclamou surpreso. Estava vestida com o traje de camponesa que pôs na noite que ele a beijou, uma simples saia e uma ampla blusa. Seu cabelo caía livremente até suas nádegas e pôs um xale colorido na cabeça. – Milorde – sussurrou ela. – Parece um fantasma vagando deste modo pelo jardim. – Acredita em fantasmas milorde? – Não. – Às vezes penso que eu estou enfeitiçada. – Isso acontece às vezes; geralmente com as pessoas que têm um grande peso na consciência. Fez gestos para que se sentasse a seu lado e ela obedeceu depois de uma ligeira dúvida, cuidando de manter-se a uma distância respeitável dele. Permaneceram em silêncio, conscientes de estarem compartilhando um momento especial. O parque era um refúgio que lhes isolava do resto do mundo. Tasia se perguntava por que não havia se sentido surpresa ao lhe encontrar nesse lugar. Seu inato misticismo, mescla de religião e herança eslava, inclinavamna a aceitar sem problemas o destino. Estavam aí porque tinham que estar. E lhe parecia normal estar sentada a seu lado olhando uma lua que parecia brilhar só para eles. Ele se inclinou e tirou seu xale, incapaz de resistir o desejo de admirar a


cascata de cabelo escuro que caía pelas costas dela. – O que a preocupa? – perguntou ele. Tasia baixou a cabeça. – Não está cansada de carregar todos esses segredos? – insistiu ele brincando com uma sedosa mecha – O que está fazendo aqui fora a estas horas? – Estava me sufocando lá dentro. Não podia respirar, queria ver o céu. – interrompeu-se e lhe olhou timidamente. – E você? Ele a olhou de frente ficando agilmente escarranchado no banco. Tasia era terrivelmente consciente da proximidade de seu poderoso corpo. Mas ele não a tocou, simplesmente a atravessou com o olhar. – Você não é a única que recorda coisas que desejaria esquecer – disse ele – E isso às vezes me impede de conciliar o sono. – Sua mulher? Ele moveu lentamente seus dedos de metal que brilharam sob a lua. – É como uma amputação. Às vezes ainda desejo poder usar todos meus dedos, inclusive depois de tantos anos. – Contaram-me como tirou sua esposa e Emma do incêndio. Foi muito valente. Ele encolheu os ombros. – Não teve nada a ver com coragem. Não pensei, simplesmente fui buscá-las, isso foi tudo. – Outros teriam se preocupado com sua própria segurança. – Eu teria preferido estar no lugar de Mary. Quem fica é o que mais sofre. Franziu o cenho. – Não só perdi a Mary, também perdi a mim mesmo. Perdi a pessoa que era quando estava com ela. Quando só ficam as lembranças, quando ano após ano alguns detalhes se voltam imprecisos, a gente tenta agarrar-se a eles com mais força. Não esquecemos o suficiente para procurar alguém. – Às vezes Emma me pede que toque a valsa – disse Tasia com o olhar fixo no jardim invadido pelo canto dos grilos – escuta-me fechando os olhos e


pensando em sua mãe. Mary, perdão lady Stokehurst, sempre será uma parte importante dela. E de você. Não vejo que tem de errado nisso. Ao sentir um comichão Tasia fez um gesto no local para eliminá-lo quando viu uma aranha de enormes patas que subia ao longo de seu braço. Gritou ficando em pé de um salto, afastou à intrusa e começou a sacudir a roupa freneticamente enquanto soltava uma corrente de palavras em russo. Luke se levantou também estupefato. Quando compreendeu o que acontecia se deixou cair de novo no banco rindo como um louco. – Só era uma arranha – disse por fim entre duas gargalhadas – na Inglaterra as chamamos “incômodos”. Não picam. Tasia falou em inglês. – Odeio todas as aranhas. Continuava sacudindo a saia, as mangas e todos os lugares onde o inseto poderia esconder-se. – Tudo bem – disse lorde Stokehurst divertido – já se foi. Ela não estava tão segura. – E se houver mais? Ele agarrou seu pulso. – Deixe de mover-se tanto e me deixe olhar. Percorreu-a atentamente com o olhar. – Acredito que posso lhe assegurar que enviou todas as criaturas vivente a procurar refúgio. – Salvo você. – Eu não me assusto facilmente. Aproxime-se miss Mufflet. Obrigou-a sentar-se. – Fique perto de mim se por acaso volta. – Quem é miss Mufflet? – Um importante personagem da literatura inglesa. É de admirar que uma jovem tão culta como você não a conheça. Deslizou um braço ao redor da cintura dela e a apertou contra ele. Tasia estava vestida com menos roupa que o normal, não usava espartilho, de modo


que sentia os poderosos músculos dele grudados a ela e os tranquilos batimentos de seu coração. – Me solte – disse em voz baixa. – E se me nego? – Gritarei. Ele esboçou um luminoso sorriso. – Já o fez. Tasia não resistiu quando ele inclinou a cabeça para ela, lhe tampando a lua. Esticou-se, não por medo, mas sim de antecipação, fechando os olhos. A suave pressão de sua boca fez com que a percorressem calafrios de prazer. Aturdida pôs as mãos em seus ombros e ele a apertou mais contra seu corpo, beijando-a até que qualquer ideia de pecado, qualquer raciocínio e qualquer resto de prudência desapareceu. Ela abriu seus lábios e lhe devolveu o beijo com ardor. Luke não esperava essa paixão e o desejo se apoderou dele, selvagem e irresistível, varrendo tudo em seu caminho. A ilusão que se fez de conservar sua vontade quando se tratava dela despareceu para sempre. Ela era tão indispensável para ele como o sangue que corria por suas veias. Por alguma razão que seu coração entendia, mas não sua mente, ela enchia seu vazio. Tentou fazer com que seu abraço fosse mais inocente, mas ela não o permitiu, acariciava febrilmente as costas como se quisesse sentir melhor o calor dele através da fina camisa. Ele a pôs sobre seus joelhos e ela gemeu quando seus lábios se separaram. Luke a olhava maravilhado por sua beleza, pelo brilho de seu cabelo, a suavidade de sua boca e o arco de suas sobrancelhas. Seu corpo era leve e jovem. Soltou sua magra cintura para subir até o decote da blusa de camponesa e lhe baixou uma ombreira. Ele sentiu o coração de Tasia parar quando a mão dele moldou seu seio. Ele se apoderou de novo de sua boca em um interminável beijo seguido imediatamente de muitos outros mais breves, suaves, ternos e exigentes. Nos dedos dele o pequeno mamilo se endureceu de forma deliciosa. Tasia colocou os dedos entre o espesso arbusto de cabelo dele.


Todas as emoções que havia sentido anteriormente do mais profundo prazer até a maior das tristezas, empalideciam comparadas com a intensa satisfação que sentia ao lado desse homem. Ele era forte e bom e encarnava tudo o que sempre tinha sonhado. Mas tudo tinha sido destruído antes que se conhecessem. Ela tinha destruído tudo. Afastou-se com um grito de desespero. Ele abriu os olhos e, antes que ela pudesse dar a volta, pôde ver a angústia em seus olhos. Tasia desejava escapar, fugir das perguntas, das explicações que não podia dar. Os braços de Luke tornaram-se de aço ao aprisioná-la contra ele. – Isto não nos leva a nenhuma parte – murmurou ela. Ele acariciava as longas mechas escuras e soltou algo que pareceu uma risada, mas quando falou sua voz não tinha indício algum de diversão. – Se tivéssemos tido opção não teríamos chegado tão longe, de modo que agora O que poderia nos deter? – Minha partida. Você quer que conte tudo e eu não posso fazê-lo. Não quero que saiba quem sou nem o que fiz. – Por quê? Acha que vou me surpreender? Não sou um sonhador nem um hipócrita. De verdade acredita que seus pecados podem ser piores que os meus? – Sei que são – respondeu Tasia com amargura. Fosse o que fosse o que tinha feito, estava segura de que o crime não estava entre seus pecados. – É uma pequena louca arrogante – grunhiu ele. – Uma…? – Só importam seus sentimentos, ninguém sente tristeza exceto você. Pois bem, está equivocada. Já não se trata só de ti. Eu também conto. E que me condenem se deixarei que escape entre meus dedos só porque decidiste que eu não tenho lugar em seu futuro. – Você é a pessoa mais arrogante que já conheci. Fala como se soubesse algo de coisas que nem sequer conhece. O ardor de suas origens eslavas se fez notar, tremia pela vontade que tinha de


gritar, entretanto prosseguiu com uma calma mortal: – Pouco me importa seus sentimentos, não quero nada de você. Deixe-me, partirei amanhã. Não posso ficar depois do que acaba de acontecer. Já não estou segura em sua casa. Deu a impressão de que lhe ia quebrar os ossos. – Então vai seguir te escondendo, fugindo e te negando a que lhe queiram. Que vida! A vida de um morto vivo. Tasia estremeceu. – É a única vida que posso ter. – De verdade? A menos que seja muito covarde para tentar ter outra. Ela se debateu como uma gata enfurecida. – Odeio! Ao Luke não custou nada dominá-la. – Eu em troca te desejo. O suficiente para lutar por te conseguir. Se fugir de mim te encontrarei. Esboçou um sorriso predador. – Por Deus que maravilhoso é desejar de novo a alguém! Não trocaria esta sensação por todo o ouro do mundo. – Não lhe direi nada! – exclamou ela apaixonada – desaparecerei e em um mês já terá se esquecido de mim e tudo voltará a ser como antes. – Não abandonará Emma, sabe como ficaria triste. Necessita-te. Era uma baixeza falar de sua filha e os dois eram conscientes disso. – Nós precisamos de ti – concluiu carrancudo. – Sei que Emma me necessita, mas você…quão único quer é f…fornicar! – exclamou Tasia ultrajada. Ele se virou e lhe escapou um som afogado. Por um triunfal momento Tasia acreditou que lhe tinha envergonhado, mas logo se deu conta de que estava rindo. Furiosa se debateu com mais força, mas ele a apertou mais contra seu corpo. Ela notou o desejo dele e, assustada, ficou imóvel. Ele acariciou sua ardente bochecha.


– Não me atreveria a negá-lo. A…fornicação, como você diz, é um fator importante, mas não é a única coisa que desejo de ti. – Como se atreve a falar desse modo quando há uma mulher lhe esperando em seu dormitório? Já se esqueceu de lady Harcourt? – Tenho algumas coisas que acertar – admitiu ele. – Com certeza. – Íris e eu não temos nenhum direito um sobre o outro. É uma dama a que respeito e valorizo, mas entre nós não há amor e ela seria a primeira em reconhecê-lo. – Ela deseja casar-se com você – disse Tasia com tom acusador. Ele encolheu os ombros. – Por Deus, a amizade pode ser um excelente motivo para o matrimônio, mas não é suficiente e Íris está a par de minha opinião a respeito. Nunca a escondi. – Talvez imagine que mudou de ideia. – Os Stokehurst nunca mudam de ideia, somos terrivelmente cabeça dura e temo que eu seja o pior de todos. De repente Tasia teve uma sensação de irrealidade. Realmente estava falando assim com ele, sentada sobre seus joelhos na escuridão? Atreveu-se a lhe criticar e ele tinha aceitado de boa vontade. Era um sinal inequívoco e alarmante da mudança que se produziu em sua relação. Ele deve ter lido seu pensamento já que começou a rir e afrouxou seu abraço. – Vou te soltar agora – disse – Porque se seguirmos mais tempo assim não respondo por mim mesmo. Tasia se afastou, mas continuou sentada no banco a seu lado. – Pensava realmente no que disse…sobre minha partida. Eu…tenho um mau pressentimento. Luke lhe lançou um olhar perspicaz. – E aonde iria? – A um lugar onde ninguém me conhecesse, nem sequer os Ashbourne. Encontrarei um trabalho e tudo ficará bem. – Não poderá esconder-te – objetou ele – As pessoas sempre se fixarão em ti


em qualquer lugar que vá por muito que tente te confundir com a decoração. Não poderia mudar nem seu aspecto nem sua atitude embora o tentasse cem anos. – Não tenho outra opção. Ele agarrou sua mão com gentileza. – Sim. Tão terrível seria sair de sua torre de marfim? Tasia sacudiu a cabeça e seu cabelo se moveu delicadamente em torno de seu rosto. – Não seria prudente. – E se eu estivesse aí para te ajudar? Ela desejava tanto lhe acreditar! Tasia estava horrorizada de ver até que ponto estava perdendo o sentido comum. Uns poucos beijos sob a luz da lua e estava quase disposta a confiar sua segurança e sua vida a um homem que mal conhecia. – O que me pediria em troca? – pergunto com voz insegura. – Acreditava que tinha o dom da adivinhação. Utiliza sua intuição. Beijou-a e Tasia, surpreendida, não pensou sequer em lhe rechaçar. Inclusive lhe respondeu com uma sensualidade que nunca tinha suspeitado que tivesse. Seus corpos se falavam. Sentiu as mãos de Luke deslizando-se entre seu cabelo enquanto lhe segurava a nuca e era tão impactante que tremia de emoção. Ela se apertava contra ele com inocente paixão e ele levantou a cabeça. – Por Deus – murmurou – Não está pondo as coisas fáceis para mim sabe? Ela procurava sua boca e cobria sua cara de beijos rápidos, depois procurou os lábios de Luke com a ponta da língua e ele capitulou com um gemido. Seu beijo durou muito tempo, muito. Luke estava a ponto de explodir, entretanto, milagrosamente, encontrou forças para afastar-se dela. – Vá dormir – disse afastando-a – agora mesmo, enquanto ainda tenho forças para te deixar ir. Ela arrumou o decote da blusa lhe olhando com seus olhos de bruxa e depois se levantou lentamente como um fantasma sob os raios da lua. Luke a olhou e depois afastou o olhar. Ficou imóvel muito tempo depois de que suas leves pegadas deixaram de ouvir-se. Tentou entender o que lhe estava


ocorrendo. Se até então a ausência de sentimentos lhe preocupava, agora acontecia justamente o contrário. Muitos sentimentos e muito rapidamente. E isso sem contar com o risco de sofrer que tinha tratado de evitar tão cuidadosamente. Escapou uma rouca gargalhada. – Bem-vindo ao mundo dos vivos – disse a si mesmo fazendo uma careta. Não tinha opção. Tinha que aproveitar a oportunidade que lhe oferecia e chegar até o final. No sábado de noite puderam admirar em todo seu esplendor o talento de Íris Harcourt. A sala de baile branca e dourada, transbordava de arranjos florais que se refletiam até o infinito nos imensos espelhos que penduravam das paredes. Os músicos tocavam belas valsas e quando Emma e Tasia olharam pela janela da galeria viram às pessoas que dançavam e paqueravam admirando-se mutuamente, conscientes de formar parte de um espetáculo excepcional. – É maravilhoso! – disse Emma maravilhada. Tasia assentiu sem perder nenhum detalhe da cena. Os vestidos eram muito bonitos e não queria perder nada. O estilo era diferente do de São Petersburgo, a menos que ela tivesse sido muito tempo indiferente na moda para dar-se conta de que esta tinha mudado. Os decotes quadrados eram tão profundos que resultavam quase indecentes, mal cobertos por transparentes rendas. Os aros eram reduzidos, virtualmente inexistentes, e as saias se pegavam às pernas. Como podiam dançar as mulheres vestidas assim? Entretanto conseguiam fazê-lo com graça agarradas nos braços de seus acompanhantes, segurando as longas caudas com suas mãos enluvadas. Tasia olhou para seu severo vestido negro fechado até o pescoço sob o qual levava umas grossas meias e umas robustas botas de cano longo. Não pôde evitar sentir uma pontada de ciúmes ao ver a elegância das outras. Ela mesma havia possuído anteriormente vestidos muito mais bonitos que esses. O de cetim branco mal tingido de rosa, o de seda azul gelo que realçava seus olhos, o delicioso conjunto de crepe da China de cor lavanda…Seu cabelo estava então enfeitado com forquilhas de diamantes e sua cintura com cinturões de rubis e pérolas. O que diria lorde Stokehurst se a visse arrumada assim? Podia imaginar seu olhar brilhante de admiração.


– Que grosseira – murmurou para afastar esses vaidosos pensamentos – “O sentido comum é um luxo maior que todas as joias do mundo” Como isso não a consolou, recitou outros ditos de seu país. – “Feliz o pobre que anda com a cabeça alta” “A graça é trapaceira e a beleza vã”. Emma a observava intrigada. – Por que está falando sozinha miss Billings? Tasia suspirou. – Estava recordando a mim mesma algumas coisas importantes. Espera, escapou um cacho. Não te mova. Pôs em seu lugar a mecha rebelde. – Já esta bem? – perguntou a adolescente. – Está perfeita. Tasia sorriu, satisfeita com o aspecto de sua aluna. Com a ajuda de uma das donzelas passou mais de uma hora dominando a abundante cabeleira de Emma, afastando-a do rosto, trançando e amarrando os longos cachos avermelhados. A menina usava um vestido longo de cetim verde claro com renda e faixa de um verde um pouco mais escuro. O jardineiro tinha colhido as rosas mais bonitas, deliciosamente perfumadas e as tinham prendido no ombro de Emma, no cabelo e na cintura. A menina, radiante, disse que se sentia como uma princesa. Nesse momento, com os olhos brilhantes de prazer, tentava divisar seu pai pela janela. – Papai disse que viria por aqui depois de abrir o baile com lady Harcourt. Prometeu-me que poderia dar uma festa para as crianças na galeria o ano que vem enquanto os adultos dançam no salão de baile. Interrompeu-a uma voz grave. – Logo poderá estar no salão conosco. Emma virou-se ao ouvir seu pai e posou para ele com uma segurança quase cômica. – Me olhe papai!


Luke sorriu. – Meu Deus, como está linda Emma! Uma verdadeira mocinha. Isso é muito duro para seu pobre e ancião pai. Abraçou-a brevemente. – Esta noite te parece muito com sua mãe – murmurou. – De verdade? – perguntou Emma encantada – Que bom! Tasia olhava a pai e filha e se esticou ante o calafrio que a percorreu ao recordar o cabelo de Stokehurst brilhando sob a luz da lua e a suavidade de sua boca. Ele estava magnífico com sua jaqueta negra e colete branco. Sentindo-se observado, ele se voltou para saudá-la e ela se ruborizou como uma menina pega em flagrante. – Boa noite miss Billings – disse com excessiva amabilidade. Não precisava lhe olhar para adivinhar o brilho zombador que dançava em seus olhos. – Milorde – sussurrou ela. Emma não estava de humor para perder tempo. – Faz horas que estou esperando para dançar contigo papai. Ele riu. – Sim? Bom, pois vou te fazer dançar tanto que vai pedir clemência. – Isso nunca! Emma pôs uma mão no ombro de seu pai e a outra em seu pulso, ele a levantou primeiro com uma alegre pirueta que a fez rir e logo começaram a dançar com elegância. Era evidente que a menina tinha tomado lições de dança e ele as tinha aperfeiçoado praticando com ela. Encantada, Tasia retrocedeu até a porta para desfrutar de melhor do espetáculo. – Bonito casal verdade? – murmurou detrás dela a voz de Íris Harcourt. Tasia se sobressaltou. A mulher estava a poucos metros dela com um vestido de cetim amarelo pálido bordado com pérolas douradas e cujo decote deixava ver o nascimento do peito. Uns pentes de prender cabelos com diamantes e topázios


brilhavam entre seu cabelo mogno recolhido em um leve coque. Em sua garganta brilhava um formoso colar feito de pequenas flores cujas pétalas eram pedras preciosas e o centro diamantes. – Boa noite lady Harcourt – murmurou Tasia – O baile é um verdadeiro êxito. – Não vim procurá-la para falar do baile. Estou segura de que sabe exatamente o que quero lhe dizer. – Absolutamente milady. – Perfeito. Íris brincou um instante com a borla que pendia de seu leque. – Não me dá medo falar com franqueza. Sempre preferi confrontar os problemas de frente. – Nunca quis lhe criar o menor problema milady. – E, entretanto, já o fez. Íris se aproximou dela sem deixar de olhar os Stokehurst que agora estavam dançando na outra ponta da galeria. – Você é o problema, miss Billings. Afinal de contas sua presença nesta casa só pode trazer tristeza e complicações a todos: a mim, a Emma e, sobretudo, a Luke. Tasia, consternada, olhou-a sem piscar. – Não vejo como pode isso ser possível. – Você perturba Luke. Separa do que poderia lhe fazer verdadeiramente feliz: a companhia de alguém de seu mundo. Eu lhe compreendo, conheço há anos, da época em que Mary ainda estava com vida. A relação entre eles era especial, e o que eu posso lhe oferecer se aproxima muito a isso. Em realidade sou uma mulher agradável, miss Billings, apesar do que você possa pensar. – O que quer de mim? – Pelo bem de Luke lhe peço que parta. Se lhe apreciar um pouco o fará. Deixe Southgate Hall sem olhar para trás. Gostaria de ter este colar? – acrescentou Íris levantando a joia que brilhou sob a luz – Sem dúvida nunca imaginou possível ter algo assim não é certo? Vendendo, poderia viver comodamente o resto de sua vida. Poderia comprar uma casinha no campo e


contratar a uma donzela. – Não quero seu colar – respondeu Tasia terrivelmente mortificada. Íris abandonou seu tom meloso. – Diria que é uma mulher inteligente além de arrivista. Decidiu que Emma seria o meio para ter êxito. Ganhando o carinho da menina espera atrair a atenção do pai. Possivelmente tenha razão, mas não se equivoque, sua aventura só durará umas poucas semanas. Sua juventude tem possibilidades de lhe atrair no momento, mas você não tem o que se necessita para lhe conservar. – O que lhe faz estar tão segura? Tasia surpreendeu a si mesma ao fazer essa pergunta, e mordeu os lábios. As palavras lhe tinham escapado antes que pudesse contê-las. – Ah, por fim a verdade! – murmurou Íris – Você lhe deseja e alimenta a louca esperança de conseguir lhe conquistar. Isso deveria me incomodar, mas só sinto pena por você. Suas palavras estavam carregadas de ironia, entretanto Tasia sentiu a profunda tristeza que havia por trás delas. Esta mulher conhecia lorde Stokehurst intimamente, estremeceu com seus beijos e suas carícias, tinha sonhado convertendo-se em sua esposa, e agora se encontrava com que tinha que lutar para ter alguma possibilidade de lhe conservar. Tasia procurou algo que dizer para tranquiliza-la, depois de tudo lady Harcourt queria que fizesse quão mesmo ela pensava fazer: partir. Não podia ficar embora quisesse fazê-lo. – Não tem nada que temer lady Harcourt, acredite. Eu não… – Temer? – respondeu Íris com altivez – É obvio que não tenho nada que temer de você, uma professora sem dote e sem família e com um aspecto insignificante. – Só tento lhe dizer… – Não esbanje seus ares de mártir comigo pequena. Já lhe disse tudo o que tinha que lhe dizer. Pense-o bem, isso é tudo o que lhe peço. Antes que Tasia pudesse responder, Íris se afastou. Voltou-se para chegar à porta, brilhando com seu vestido dourado. – Que bom casal fazem! – disse a Luke e a sua filha – Emma dança como um


anjo. De todas as formas, quando acabar esta valsa, tem que voltar comigo para salão de baile, Luke. Depois de tudo o anfitrião é você. O baile se interrompeu para um jantar a meia-noite que durou duas horas, seguido depois de mais música, até que empalideceu a noite e se aproximou a aurora. Esgotados e levemente embriagados, os convidados foram para seus quartos e a madeira do chão rangeu com os passos cansados das pessoas que cansadas iam em busca da confortável cama. Dormiram boa parte do dia e tomaram o café da manhã ao meio-dia. Alguns deles se foram no domingo de noite e outros preferiram ficar até a segunda-feira. Íris Harcourt estava entre os primeiros. Entrou no dormitório de Luke para dizer enquanto ele se vestia. – Volto para Londres agora – declarou enquanto Biddle abotoava os botões dos punhos de seu senhor. Luke levantou as sobrancelhas. Vestiu uma jaqueta cor bordô e levou um tempo antes de responder, centrando-se primeiro em escolher uma gravata entre as quais lhe mostrava Biddle, para logo decidir não usar nenhuma. Ao fim se despediu do criado e se voltou para Íris. – Por que tanta pressa? – perguntou – parecia estar te divertindo muito. – Nego-me a passar outra noite esperando em vão ouvir o som de seus passos. Por que não veio para mim depois do baile? – Tinha me proibido de ir a seu dormitório, lembra-o? – Disse-te que não viesse se continuava pensando na pequena miss Billings, como é evidente que segue fazendo. Cada vez que me olha é a ela a quem quer ver. E faz semanas que isto acontece, tentei lutar, mas não sei como fazê-lo. Íris conteve o fôlego ao ver que a indiferença se apagava do rosto de Luke. Esticou-se por um instante presa de uma louca esperança. Depois o tom de pena na voz de Luke apagou o fugaz brilho de alegria. – Íris quero te dizer… – Agora não – disse ela retrocedendo – agora não. E se afastou com passos rápidos, decidida e apertando os punhos.


Como um perfeito anfitrião, Luke passou a noite com seus convidados. Falou com eles e sorriu com suas piadas, aplaudiu suas representações improvisadas, a suas declamações de poesia e às canções acompanhadas do piano. Estava cada vez mais impaciente e para tranquilizar-se dava golpes nervosos com o pé. Quando foi incapaz de seguir quieto por mais tempo, levantou-se e desapareceu discretamente murmurando uma desculpa. Vagou pelo castelo aparentemente sem saber aonde ia. Só queria a ela, embora só fosse para sentar-se e olhá-la em silêncio. Era uma verdadeira necessidade, como nunca antes havia sentido. Ela era a única pessoa de seu entorno que realmente lhe via e lhe conhecia. Íris acreditava que lhe entendia. A maior parte das mulheres alardeavam de possuir um profundo conhecimento da alma masculina podendo assim manipular os homens a seu desejo. Mas Íris jamais soube ver a dor que lhe rasgava. A tristeza, a ira, a vontade de sobreviver…e a solidão que sentia. Tasia, entretanto o entendia muito bem. Era isso, o vínculo entre eles, o tácito e mútuo respeito, o reconhecimento íntimo que lhe atormentava desde que se conheceram. Os dois se pareciam nisso. Enquanto andava por um corredor do primeiro piso cruzou com Mrs. Knaggs carregada com um montão de lençóis limpos. Deteve-se para lhe saudar. – Boa noite, milorde. – Boa noite, Mrs. Knaggs. Onde está… – Acima milorde. Com Emma no salão verde. Luke franziu o cenho. – Como sabia o que ia perguntar? A ama de chaves esboçou um sorriso de satisfação. – Depois de passar tantos anos servindo aos Stokehurst, não há muitas coisas que Seymour, Biddle e eu não saibamos, milorde. Luke lhe lançou um olhar de advertência e ela continuou seu caminho tão tranquila como sempre. O salão verde era confortável, bem iluminado e mais feminino que o resto das acomodações da casa, com seus enfeites e suas almofadas.


Luke ouviu a voz de sua filha que estava lendo um livro em voz alta. Tasia estava aconchegada em um sofá de brocado com o braço no respaldo. Assim que lhe viu se endireitou um pouco e pôs as mãos nos joelhos. Os dois primeiros botões de seu vestido estavam desabotoados deixando ver sua pálida garganta, mal iluminada pela vela. Emma lançou um breve sorriso a seu pai e logo continuou lendo. Luke se sentou em uma poltrona em frente à Tasia. Linda, teimosa, cabeça dura. Desejava-a, desejava cada polegada de seu corpo, cada pensamento secreto. Queria levantar-se cada manhã com ela em seus braços. Queria protegê-la, lhe proporcionar segurança até que desaparecessem as sombras de seus olhos. Ela se voltou para ele lhe interrogando com um ligeiro movimento das sobrancelhas. – Nunca sorriu para mim com certa selvageria. Nenhuma só vez. Pareceu que ela o lia como em um livro aberto. A curva de seus lábios se levantou levemente como se ele tivesse provocado esse débil sorriso só com a força de seu desejo, contra a vontade dela. Luke estava muito confuso. Pela primeira vez em sua vida dependia de alguém. Não podia tentar derrubar suas defesas, ela não resistiria. A única maneira de obter o que desejava era ter paciência. Necessitaria mais da que acreditava possuir, mas o conseguiria, não importava o preço. Nada seria muito duro, nem custoso, se ela acabava lhe amando.


Cinco

Assim os últimos convidados partiram na segunda-feira. Pela tarde, Luke esteve livre para ir à casa de Íris em Londres. Tinha chegado o momento de pôr um ponto final em sua relação. Íris certamente essa consciente disso. Luke desejava a uma mulher e só a uma, e tudo o que podia dar era para ela. Sem dúvida Íris se sentiria decepcionada, mas logo se consolaria. Possuía uma sólida fortuna e um montão de amigos leais, assim como mais de uma dúzia de homens que desejavam cortejá-la para lhe fazer esquecer sua desgraçada aventura. Se arrumaria sem ele, Luke estava convencido disso. Íris lhe recebeu em seu dormitório e lhe deu as boas-vindas com um lânguido beijo, seu corpo mal coberto por uma bata de seda transparente. Antes que Luke pudesse abrir a boca, lançou-se em um discurso preparado com antecipação sem lhe deixar a menor oportunidade para interrompê-la. – Concedo-te umas semanas para que te divirta com isso – declarou alegremente – Quando tiver te cansado pode voltar para mim e não voltaremos a pronunciar seu nome. Não tinha prometido te dar toda a liberdade que quisesse? Não quero que se sinta culpado. Os homens gostam de variedade e o entendo. Não há nada que perdoar. Sempre que voltar para mim… – Não! – cortou Luke bruscamente. Conteve-se respirando profundamente. Ela fez um gesto de impotência com a mão. – O que acontece? – perguntou queixosa – tem uma expressão que não reconheço. O que aconteceu? – Não quero que me espere. Não voltarei. Íris soltou uma gargalhada que beirava a histeria. – É necessário estragar tudo por uma aventura passageira? Não confie nas aparências querido. É uma bonita jovem com aspecto de menina abandonada que parece precisar de ti. Mas eu preciso de ti tanto quanto ela.


E quando tiver te cansado… A amo. Um pesado silêncio caiu no quarto. Íris engoliu em seco e se virou para esconder o rosto. – Não diria algo assim se não fosse verdade – murmurou por fim – Miss Billings deve estar muito contente de si mesma. – Ainda não disse a ela. Não está preparada para ouvi-lo. – Suponho – grunhiu Íris enfurecida – que a frágil criaturinha desmaiaria de emoção assim que o dissesse. Deus meu que ironia! Que um homem de sangue quente como você se apaixone por uma coisinha insignificante como ela! – Não é tão insignificante como acredita. Luke recordou como um relâmpago a Tasia no banco, a suave avidez de sua boca sobre a dele, suas unhas em suas costas…e começou a andar pelo quarto como um leão enjaulado. – Por que ela? – perguntou Íris lhe seguindo – Por que Emma gosta dela? Por que é jovem? – A razão não é importante – cortou ele secamente. – Sim é! Íris se plantou no meio do dormitório e começou a soluçar. – Se não tivesse te enfeitiçado ainda estaríamos juntos. Preciso entender porque ela e não eu. Quero saber o que fiz de errado. Com um suspiro, Luke a atraiu para si. Sentia-se ao mesmo tempo culpado e cheio de ternura por esta mulher que conhecia a tanto tempo, primeiro como amiga e depois como amante. Merecia muito mais do que ele era capaz de lhe dar. – Não fez nada de errado – disse. Íris apoiou o queixo no ombro dele e soluçou com mais força. – Então porque me deixa? Está sendo muito cruel. – Não o faço de propósito – assegurou gentilmente – Sempre terei muito afeto por ti. Íris se afastou lhe olhando zangada.


– “Afeto” é a palavra mais estúpida que conheço. Preferiria que não te importasse, desse modo poderia te odiar. Entretanto me aprecia…embora não o bastante. Vá ao diabo! Por que ela tem que ser jovem e bonita? Nem sequer posso falar mal dela com meus amigos. Tudo o que dissesse me faria parecer uma velha arpía ciumenta. – Impossível! – protestou Luke sorrindo. Íris se dirigiu para o espelho de marco dourado e pôs ordem em seus cabelos fazendo com que umas mechas caíssem sobre suas bochechas. – Vai te casar com ela? Luke lamentou que as coisas não fossem tão simples. – Se ela o desejar… Íris fez uma careta de desgosto. – Não acredito que haja a menor dúvida sobre isso querido. Nunca voltará a ter a oportunidade de conquistar um homem de sua categoria. Luke se aproximou dela e lhe agarrou uma mão. Seus olhos se encontraram no espelho. – Obrigado – disse tranquilamente. – Por quê? A voz de Íris tremia um pouco. – Por ser tão generosa e tão bela. Por ter feito com que me esquecesse de minha solidão tantas noites. Não me arrependo de nenhuma delas, e espero que você tampouco o faça. Apertou brevemente os dedos antes de soltá-la. – Luke… Ela se voltou para ele com os olhos cheios de lágrimas contidas. – Me prometa que se as coisas derem errado…Se te der conta de que te equivocaste…me Prometa que voltará para mim. Luke a beijou na testa. – Adeus – murmurou. Íris baixou a cabeça e uma lágrima lhe caiu pela bochecha. Em seguida se virou com os olhos fechados para não ver como Luke desaparecia de sua vida.


Luke chegou ao portão do castelo quando o sol estava se pondo. Tinha cavalgado em seu cavalo árabe desde a casa de Íris, feliz de sentir o vento no rosto e ver como desaparecia o sol. Estava coberto de pó e de suor e os músculos lhe ardiam de uma forma muito agradável. Deu as rédeas a um lacaio. – Te encarregue de que se ocupem dele – disse enquanto o criado levava a cavalo ao estábulo. – Milorde… Seymour estava na porta com uma expressão levemente contrariada, o que no mordomo significava uma grande catástrofe. Milorde, os Ashbourne… – Papai! Emma desceu as escadas correndo para lançar-se nos braços de seu pai. – Papai, me alegro tanto de que tenha chegado! Aconteceu algo terrível. Lorde e lady Ashbourne estão aqui. Estão falando com miss Billings na biblioteca há pelo menos uma hora. Luke se surpreendeu. Os Ashbourne tinham deixado Southgate Hall essa mesma manhã. Não era normal que houvessem retornado tão cedo. – De que falaram? – Não o ouvi, mas tinham uma expressão estranha quando chegaram e depois não se ouviu nem sequer um ruído. Por favor, vá ver o que acontece e te assegure de que miss Billings se encontra bem. Luke a apertou um momento contra ele. – Vou ocupar-me do assunto. Suba para seu quarto e deixe de preocupar-se. Retrocedeu um pouco para olhá-la nos olhos muito sério. – E não volte a escutar atrás das portas. Ela esboçou um sorriso de desculpa. – Então como me inteirarei do que acontece nesta casa? Ele a agarrou pelos ombros e entraram juntos no vestíbulo. – Deveria estar bastante ocupada com suas coisas para preocupar-se dos


assuntos dos mais velhos, querida. – Mas eu sou muito ocupada. Tenho Sansão, tenho meus livros e tenho miss Billings. Papai não deixará que ninguém leve miss Billings, verdade? – Não – murmurou ele depositando um beijo em seu cabelo. Agora vá para seu quarto carinho. Emma obedeceu docilmente enquanto Luke se dirigia para a biblioteca. Através das pesadas portas se ouvia o discreto som de uma conversa. Apertando as mandíbulas entrou sem bater. Os Ashbourne estavam sentados em confortáveis poltronas de couro enquanto Tasia tinha se sentado em uma ponta do sofá. O rosto de Charles manifestava uma grande ansiedade. – Stokehurst – disse incomodo – pensei que estivesse… – Passando a noite fora? – terminou Luke amavelmente – mudei meus planos. Explique-me porque estão aqui. Temo que há más notícias no fronte – respondeu Charles com um tom fingidamente leve – convencemos miss Billings para que venha conosco. O mês quase terminou Luke, e eu sempre cumpro minhas promessas. Ante a expressão desorientada de Tasia explicou: – Lorde Stokehurst aceitou que ficasse com ele um mês, para que me desse tempo de te encontrar outro emprego. – Mudei de opinião – disse Luke sem afastar seus olhos dela. Muito pálida, imóvel, ela tinha as mãos apertadas sobre os joelhos. – Miss Billings não sairá de Southgate Hall. Dirigiu-se ao armário de bebidas de mogno e tirou uma garrafa de cristal servindo uma generosa taça de conhaque que ofereceu a Tasia. Ela abriu lentamente os dedos e pegou o copo. Luke lhe levantou o queixo obrigando-a a lhe olhar à cara. Seus olhos estavam fixos e vazios, seus pensamentos ocultos atrás de uma espécie de tela. – Me diga o que aconteceu – disse suavemente. Foi Charles quem respondeu. – É melhor para todos que não saiba Luke. Nos deixe ir sem fazer perguntas.


– Alicia e você podem ir, mas miss Billings fica. Charles suspirou exasperado. – Ouvi esse tom milhares de vezes, Luke, e sei o que significa. – De todos os modos isso já não tem importância – cortou Tasia. Bebeu um grande sorvo de conhaque fechando as pálpebras quando o álcool lhe queimou a garganta. Depois se voltou para Luke com os olhos brilhantes, e lhe dedicou um sorriso trêmulo. – Não desejará que fique quando souber… Luke se apoderou do copo vazio. – Outro? – perguntou com frieza. Ela assentiu. Tasia esperou até que ele lhe desse as costas para falar com um tenso sussurro. – Sou lady Anastásia Ivanovna Kaptereva. O inverno passado, em São Petersburgo, acusaram-me do assassinato de meu primo, o príncipe Mikhail Angelovsky. Viu que Luke se esticava e se interrompeu um momento antes de concluir: Escapei do cárcere e me refugiei em Londres para escapar da forca. Tasia tinha pensado não dizer mais nada, mas, quase a seu pesar, começou a contar sua vida em São Petersburgo depois da morte de seu pai. Quase se esqueceu enquanto falava de que havia alguém escutando. Estava revivendo o passado. Voltou a ver sua mãe, Maria Petrovna, abrigada com uma capa de lince e enormes joias nos braços e no pescoço. E os homens que a rodeavam nas festas, na ópera, no teatro, no transcurso de intermináveis jantares… Tasia recordou o baile das debutantes, no qual se apresentava às jovens filhas da nata flor da aristocracia. Esse dia ela usava um vestido de seda branco com uma cintura de rubis e pérolas rosadas. Os homens a cortejavam com interesse, sem esquecer nem por um momento que algum dia seria imensamente rica. Entre todos seus admiradores o mais estranho era o príncipe Mikhail Angelovsky. – Mikhail era um animal – declarou Tasia com intensidade – Era um homem vicioso que só era suportável quando estava sob os efeitos do ópio. Nunca se separava de sua pipa. Também bebia muito. Hesitou e se ruborizou.


– Mikhail não gostava de mulheres. Seus pais sabiam, mas fechavam os olhos. Quando eu fiz dezessete anos, foram ver a minha mãe e fizeram um acordo: eu me casaria com Mikhail. Todos sabiam que eu não desejava esse matrimônio. Supliquei a minha mãe, a minha família, a nosso confessor, a todos os que estavam dispostos a me escutar, para que não me obrigassem a me casar com ele. Mas todos me respondiam quão bom seria unir duas fortunas tão importantes. Por outra parte, os Angelovsky esperavam que este matrimônio voltasse a pôr Mikhail no bom caminho. – E sua mãe o que dizia? Pela primeira vez desde que tinha começado com sua história, Tasia levantou os olhos para Luke. Ele estava sentado a seu lado no sofá com o rosto inexpressivo. Ao ver que ela estava apertando tão forte o copo que parecia que estava a ponto de quebrá-lo, Stokehurst, prudentemente, o tirou de suas mãos. – Minha mãe queria que me casasse – disse lhe olhando nos olhos – não gostava que seus pretendentes começassem a me notar. Eu me parecia muito ao que ela tinha sido e isso a incomodava. Disse-me que tinha a obrigação de me casar pelos interesses da família, e que logo seria livre para me apaixonar por quem quisesse, ter aventuras. Dizia que eu seria muito feliz me casando com um Angelovsky…sobretudo se este preferisse os rapazes. Stokehurst emitiu uma risada surpreendida. – E isso por quê? – Afirmava que Mikhail não me incomodaria com seus cuidados e que eu seria livre para fazer o que gostasse. Ao ver o olhar furioso de Stokehurst, Tasia encolheu os ombros. – Se conhecesse minha mãe o entenderia. – Entendo-o perfeitamente – grunhiu ele – Continue. – Desesperada, decidi ir ver Mikhail em segredo para lhe pedir ajuda. Pensava que poderia raciocinar com ele, havia uma possibilidade de que me escutasse. Então…então fui a sua casa. Tasia se interrompeu. As palavras se acumulavam, mesclavam-se, afogavam-na e já não era capaz de pronunciar nenhuma só palavra. Uma gota de suor frio lhe caiu pela têmpora e a secou com o dorso da mão. Isso lhe acontecia cada vez que


tentava recordar. Estava se afogando presa do pânico. – O que aconteceu? – perguntou Stokehurst em voz baixa. Ela sacudiu a cabeça, ofegando, tentando respirar. – Tasia… Ele agarrou as mãos dela entre as suas. – Me diga que aconteceu depois. Ela conseguiu articular enquanto os dentes batiam: – Não sei. Fui a sua casa, acredito…mas não me lembro. Encontraram-me no palácio dos Angelovsky com uma faca na mão…e o corpo de Mikhail…Os criados gritavam, ele tinha a garganta…Sangue! Meu Deus havia sangue por toda parte! Tasia se agarrava às mãos de Luke como se ante ela se abrisse um abismo e ele fosse a única pessoa que pudesse evitar sua queda. Tinha vontade de apoiar-se nele, de perder-se em seu aroma varonil, sentir seus robustos braços a seu redor. Entretanto não se moveu limitando-se a lhe olhar enquanto uma onda de ardentes lágrimas lhe ardia nos olhos. Ele estava estranhamente tranquilo, sólido como uma rocha, sem a menor expressão de horror ou de assombro. – Não havia nenhuma testemunha do assassinato? – perguntou. – Não. Só os criados que me viram depois. Então não há provas. Não pode estar segura de ter cometido esse crime. Luke se voltou para Charles. – Precisaria algo mais. Não se condena ninguém só por uma suspeita. Charles sacudiu a cabeça envergonhado. – Sua justiça não funciona como a nossa, infelizmente. As autoridades russas têm todo o poder, não necessitam provas nem testemunhas para condenar a alguém. – Certamente o fiz – soluçou Tasia – Sonho continuamente com isso. Acordo me perguntando se lembrei de algo ou se inventei. Às vezes me parece que vou ficar louca. Odiava Mikhail. Passei semanas na prisão pensando, sabendo que merecia morrer. O pensamento é tão grave como a ação não o entende? Rezei


para encontrar forças para aceitá-lo até que me sangraram os joelhos, mas não funcionou. Eu queria viver. Não podia evitar querer viver. – E então que aconteceu? – perguntou Luke atando os dedos com os de Tasia. – Na prisão tomei uma espécie de sonífero para que acreditassem que estava morta. Encheram o ataúde com areia e o enterraram enquanto eu…enquanto meu tio Kirill me trazia para a Inglaterra. Mas se correu o rumor de que ainda estava viva. As autoridades decidiram exumar meu corpo para esclarecer as coisas. Descobriram que tinha escapado. Por isso o tio Kirill enviou uma mensagem aos Ashbourne. – Quem a esta procurando? Tasia olhava fixamente suas mãos unidas sem responder. Charles se sentou mais comodamente em sua poltrona. As rugas de preocupação haviam desparecido de seu rosto como se por fim se sentisse aliviado de haver confiado em alguém. Inclusive quando era menino, Charles sempre havia se sentido horrorizado pelos segredos, era incapaz de não delatarse por sua expressão. – É algo bem mais complicado – disse pôr fim a Luke – O governo imperial tem tantos departamentos secretos e departamentos especiais que ninguém sabe exatamente quem é responsável por qual. Li à carta de Kirill ao menos uma dúzia de vezes tentando entendê-la. Parece que Tasia não só quebrou uma lei civil, como também riu do código penal ao minar a autoridade soberana…O qual representa um crime político castigado com a morte. O governo imperial não se preocupa muito com justiça, mas por manter uma aparência de ordem. Até que Tasia seja executada publicamente, os inimigos do czar vão utilizá-la para ridicularizar a coroa. – E realmente acha que serão capazes de vir procurá-la aqui para levar a Rússia? – cortou Luke – só para que sirva de exemplo? – Não – interveio Tasia em voz baixa – não chegariam tão longe. Enquanto sigo no exílio estarei a salvo. O problema é Nicolas. Luke a viu secar a testa com a manga e esse gesto infantil lhe comoveu. Esperou em silêncio até que ela continuasse apesar da impaciência que sentia. – Nicolas é o irmão mais novo de Mikhail – continuou – os Angelovsky querem vingar sua morte e Nicolas está me procurando. Me encontrará embora


tenha que empregar nisso o resto de sua vida. Luke se sentiu aliviado. Se só se preocupavam com o Nicolas Angelovsky, o problema estaria logo solucionado. – Que o tente e lhe mandarei direto de volta a Rússia! – Assim tão fácil? – perguntou Tasia franzindo o cenho. Luke sorriu imaginando um bonito principezinho efeminado com calças de cetim. – Não se preocupe. – Se conhecesse Nicolas não falaria assim. Tasia soltou sua mão e se acomodou mais no sofá. – Tenho que ir antes que agrave a situação. Você nunca entenderia alguém como o príncipe Angelovsky, ignora até onde é capaz de chegar. Agora que Nicolas sabe que estou viva só é uma questão de tempo. Não poderia cessar em sua busca nem que quisesse fazê-lo. Tudo o que ele representa, seu sangue, sua família, sua história, tudo, obriga a me fazer pagar pela morte de seu irmão. É um homem poderoso e perigoso. Luke quis falar, mas ela o impediu com um gesto de mão antes de dirigir-se para Charles e Alicia. – Agradeço tudo o que têm feito, entretanto não posso lhes implicar mais nisto. Encontrarei outro trabalho eu mesma. – Não pode desparecer sem nos dizer aonde vai estar Tasia – exclamou Alicia – lhe suplico, nos deixe te ajudar. Tasia se levantou com um amargo sorriso. – Foi maravilhosa prima, agora tenho que me arrumar sozinha. Spassivo. Olhou para Luke inexpressivamente, mas notou seu cansaço e sua necessidade de consolo…Soube o preço que tinha tido que pagar por sobreviver. Faltaram as palavras de modo que se virou bruscamente. Os homens se levantaram de um salto quando ela deixou a biblioteca. Luke ia segui-La, mas Alicia o impediu. – Deixe que se vá. Ele se virou, sombrio e furioso, preparado para a luta.


– Me escapou algo por acaso? – perguntou com acidez – O tal Angelovsky é só um homem afinal. Não há nenhuma razão para que destroce sua vida por culpa dele. – É mais que humano – respondeu Alicia – O príncipe Nicolas e eu somos primos em terceiro grau e conheço bem à família. Quer que te conte algumas coisas? – Me diga tudo o que sabes – ordenou Luke sem deixar de olhar para a porta. – Os Angelovsky são uns furiosos xenófobos, odeiam tudo o que não é russo. Estão aparentados com a família imperial por matrimônio e são uns dos maiores latifundiários do país, com propriedades repartidas por várias províncias. Possuem aproximadamente dois milhões de acres pelo menos. O pai de Nicolas, o príncipe Dimitri, matou a sua primeira mulher porque era estéril. Depois se casou com uma camponesa de Minsk que lhe deu sete filhos, cinco meninas e dois meninos. Nenhum deles dedicou nunca um só minuto de seu tempo em entreter-se com coisas como os princípios, a honra ou a moral. Atuam por instinto. Diz-se que Nicolas se parece com seu pai; é cruel e ardiloso. Se alguém lhe fizer algum mal o devolve multiplicado por cem. Tasia tem razão, nem sequer pode escolher vingar a morte de seu irmão ou não. Há um provérbio russo que diz: “O pranto dos outros só são gotas de água” é a filosofia dos Angelovsky, desconhecem o que é a piedade. Alicia procurou consolo nos braços de seu marido. – Nada deterá o príncipe Nicolas – suspirou. Luke lhes olhava com frieza. – Eu posso. E o farei. – Não deve nada a Tasia, nem a nós – protestou Alicia. – Já perdi muito. Nos olhos de Luke havia um brilho estranho. – Agora que por fim tenho uma oportunidade de encontrar a felicidade, que me condenem se permitirei que um porco russo sedento de sangue me arrebate isso. Charles estava tão assombrado como sua esposa. – Felicidade? – repetiu – De que está falando? Por acaso sente algo por ela?


Faz apenas vinte e quatro horas a envergonhava diante de seus convidados e… Interrompeu-se ante o negro olhar de seu amigo e continuou mais diplomaticamente: – Não me surpreende que você goste dela, é encantadora, mas te peço, por favor, que tente colocar seus interesses acima dos teus. É vulnerável e está aterrorizada. – E acredita que seu bem-estar consiste em abandoná-la a sua sorte? – ironizou Luke – Sem amigos, sem parentes, sem ninguém para ajudá-la. Por Deus! Sou o único que pensa com a cabeça em todo este assunto? Alicia se soltou dos braços de seu marido. – É melhor que esteja sozinha do que a mercê de um homem que se aproveite dela. Charles levantou as mãos, irritado, como se quisesse amordaçá-la. – Sabe muito bem querida que esse não é o estilo de Luke. Estou seguro de que suas intenções são honoráveis. – De verdade? – replicou Alicia desafiante – E quais são exatamente suas intenções Luke? Ele esboçou seu habitual sorriso irônico. – Isso só importa a sua prima e a mim. Eu gostaria de encontrar uma espécie de acerto que goste. Se não o conseguirmos partirá. No momento não tem nada que dizer disto não é assim? – Já não te reconheço! – indignou-se Alicia – acreditei que Tasia estaria segura contigo porque não é o tipo de homem que dá problemas, nunca te mete na vida dos outros. Gostaria muito que não começasse precisamente agora. O que te passa? Luke se trancou atrás de um muro de orgulho ferido. Estava surpreso de que seus amigos não tivessem entendido nem adivinhado nada. Quando estava segurando a mão de Tasia, enquanto a escutava relatar a odisseia que tinha vivido, tinha parecido que seus sentimentos enchiam a estadia. Amava-a. Estava aterrorizado ante a ideia de que ela pudesse desaparecer de sua vida, de que lhe abandonasse como tinha abandonado sua antiga vida. Não podia tolerá-lo, tanto pela segurança dela como por sua própria


felicidade. Queria fazer algo, mas havia tantas decisões a tomar…Se só pudesse pensar com claridade, sem estar esmigalhado entre o amor e o desejo que complicavam tudo! Os Ashbourne lhe olhavam fixamente, Alicia com recriminação e Charles com a intuição que caracteriza os velhos amigos. Olhou Luke meio divertido e meio preocupado enquanto impedia que sua mulher voltasse a falar. – Tudo ficará bem – disse a Alicia com calma – cada um atuará segundo sua consciência e tudo se arrumará. – Isso é o que diz sempre – queixou-se Alicia. Charles sorriu contente de si mesmo. – E sempre tenho razão não? Veem querida. Agora já não nos necessitam. Tasia viu desde sua janela como se afastava a carruagem dos Ashbourne. Depois de pendurar seu vestido cinza que tinha escovado cuidadosamente por costume, começou a fazer suas malas. Pôs suas roupas em uma mala enquanto a luz do único candelabro desenhava sombras no quarto. Embora só estivesse vestida com uma fina camisa de algodão, estava suando. Um sopro de ar que chegava do exterior a surpreendeu e esfregou os braços que ficaram arrepiados. Estava tentando não pensar e não sentir nada. Não queria que o gelo que a rodeava se quebrasse. Sua breve incursão na vida de Luke Stokehurst tinha terminado e era melhor assim. Não podia permitir a si mesma descansar sobre ninguém, estava sozinha frente a seu futuro. Perguntou-se como iria, como conseguiria dizer adeus a Emma sem encontrar-se com Stokehurst. Ele tornaria difícil sua partida, e pouco importava se, se mostrava amável ou cruel, de todas as formas seria extremamente doloroso. Ouviu passos no corredor, passos de homem, voltou-se com os braços cruzados sobre o peito e os olhos aumentados pela angústia. Não…Vá gritava sua mente enquanto seus lábios se abriam sem emitir nenhum som. A porta se abriu e voltou a se fechar suavemente. Stokehurst estava no quarto, seu olhar se deteve nas extremidades nuas dela e


sobre seu pescoço. Não havia dúvidas quanto à razão de sua presença. Usava uma camisa aberta que deixava ver sua pele lisa e dourada, sua expressão delatava desejo e amor. Permaneceu em silêncio. Uma espécie de gemido desesperado subiu à garganta de Tasia, mas não podia dizer nada que ele já não soubesse, seus medos e o que a atormentava. Avançou para ela. Depois de uma breve hesitação, Tasia lançou seus braços em volta de seu pescoço e se aferrou a ele com todas as suas forças. Sem mal poder respirar, com o coração pulsando com força e rígida, esperou. Ele a apertou contra seu corpo e se apoderou de seus lábios. Foi um beijo exigente, profundo, que não tinha em conta a inocência de Tasia. Ele se apertava a ela, acariciava as nádegas e ela sentia que se desfazia com suas carícias. Que voltava para a vida com seus beijos. Afastou a camisa para liberar as costas de Luke. Ele respondeu com um murmúrio de paixão e a liberou de sua camisola que caiu no chão. Em seguida se despiu e levou Tasia até a cama. Ela sentiu suas mãos sobre um seio e logo seus lábios e a percorreu uma espécie de descarga quase dolorosa. Ele beijou o outro seio, agarrou-o delicadamente em sua mão e ela se ergueu para ele ofegante, perdida. Essa fome desconhecida a estava deixando louca; queria sentir Luke dentro dela, queria que ele a esmagasse com seu peso. Tentou apertar mais contra ela, mas ele resistiu e sua mão desceu para os cachos escuros que ninguém antes havia tocado, sem deixar de olhá-la. Ela afogou um grito quando ele a acariciou procurando com cuidado a delicada entrada de seu corpo. Beijava-a e murmurava palavras de amor contra sua boca e Tasia o aceitou toda cheia de prazer. Ele abriu suas pernas e ela se perdeu na profundidade de seus olhos azuis. Emitiu um pequeno gemido de dor, mas ele se afundou mais profundamente tomando posse de seu corpo. Depois ficou imóvel respirando com dificuldade. Trêmula, Tasia lhe acariciou o rosto como se quisesse lhe dizer quão maravilhada estava pela beleza de seus dois corpos unidos. Ele lhe mordiscou a palma da mão enquanto se movia dentro dela delicadamente, ela se arqueou de forma instintiva. O ritmo lento dele a enchia e esquecendo sua tristeza lhe deixou fazer até que ela foi capaz de imitar seus movimentos enlouquecida pela paixão. Seus corpos se separavam e se uniam de novo com um prazer que estava


mais à frente do desejo físico. Depois ela deixou escapar um grito de êxtase. Luke não demorou a unir-se a ela no orgasmo. Com um grande estremecimento a apertou compulsivamente contra ele, assombrado por sentir-se tão satisfeito e feliz. Olhava-a enquanto dormia, podia distinguir o perfil de Tasia, a curva de um seio; ela era leve e suave junto a ele. As longas mechas escuras cobriam o travesseiro. Ela despertou e se esticou tremendo um pouco como um gato. Depois de várias piscadas lhe olhou assustada. Luke lhe sorriu e a reteve rapidamente quando quis levantar-se. – Está segura – murmurou. Ela se esticou e engoliu com dificuldade. – Não deveria preocupar-se mais por sua segurança? – disse ela por fim – Poderia ter… Ele a beijou na testa. – Cale-se! Tasia se virou. – Vi tantos horrores em minha vida, não quero que nada lhes aconteça nem a ti nem a Emma. Entretanto será inevitável se ficar aqui. Atrairia o perigo e a desgraça até vocês. Sacudiu-se com uma seca risada. – Agora já sabe que matei alguém. Não pode ignorar algo tão importante. – Em realidade se acha culpada? Tasia se sentou na cama subindo o lençol para tampar seu peito. – Tentei muitas vezes recordar o que aconteceu essa noite, mas não consigo. Tenho palpitações e náuseas e…me dá medo saber. – Eu não acredito que você o tenha matado. Inclusive estou seguro de que não o fez. Desejar ver alguém morto não é o mesmo que lhe assassinar, se o fosse, a metade da população seria culpada de homicídio. – E se o fiz? E se apunhalei a um homem porque lhe odiava? Vejo a cena em meus sonhos sempre, às vezes inclusive me dá medo dormir. Luke acariciou a suave curva de seu ombro. – Então cuidarei de ti enquanto dorme – sussurrou – E te proporcionarei


melhores coisas com que sonhar. Sua mão desceu e afastou ligeiramente o lençol antes de acariciar os seios erguidos. Ela inspirou profundamente enquanto um calafrio percorria seu corpo. – Não lamento que esteja morto – disse Luke com voz rouca – não lamento que esteja comigo neste momento. E não deixarei que vá. – Por que te comporta como se meu passado não tivesse nenhuma importância? – Porque não tem. Não para mim. Carregaria com prazer o peso de sua culpa se esse fosse o preço para te conservar. Tasia adivinhou que estava sorrindo. – Isso te diz algo sobre meu caráter? – continuou ele. – Que é um louco cego pelo desejo! Ele soltou uma gargalhada. – E algo muito pior! Abraçou-a mais forte e declarou com voz grave: – Por ti eu gostaria de ser perfeito, mas não o sou. Cometi muitos equívocos, tenho mau caráter, sou egoísta e tanto meus amigos como meus inimigos dizem que sou arrogante e autossuficiente. Sou muito velho para ti e, se por acaso não o tinha notado, faltam-me alguns dedos. Tendo em conta tudo isto – concluiu sorrindo – Acho que posso aceitar a ti e a seu passado sem problemas. – Não se trata de nós nem de suas falhas. E seu argumento não se sustenta. Não é porque temos defeitos que temos que estar juntos. – Isso quer dizer que nos entendemos. Quer dizer que vamos nos divertir como loucos os dois juntos. – Eu não chamaria isto de diversão – grunhiu ela tentando livrar-se de seu peso enquanto os lençóis se enroscavam ao redor dos dois. – Precisa um pouco de tempo para se acostumar – disse ele afastando tudo o que se interpunha entre seus corpos nus – a primeira vez é doloroso para a mulher, mas depois tudo ficará melhor. Já tinha sido o suficientemente bom, mas Tasia não tinha nenhuma intenção de adular sua vaidade confessando.


– Não poderia ficar embora o desejasse – disse ela um pouco ofegante – O príncipe Nicolas me encontrará, só é questão de tempo. – Eu estarei ao seu lado nesse momento e falaremos os dois com ele. – Nicolas não é um homem de palavras, não se pode dialogar nem negociar com ele. Exigirá sua ajuda para me mandar para a Rússia. – Enviarei ao inferno. – É tão arrogante e suficiente! – murmurou ela movendo-se sob ele – Não ficarei. É impossível! – Deixa de te mover ou acabaremos no chão, esta cama é muito estreita. Sentou-se sobre suas próprias pernas e colocou os joelhos dela entre os seus. Tasia se debateu em vão até que sentiu o ventre dele contra ela e sua boca em seus seios. Ele a agarrou pela garganta como se fosse o caule de uma flor e lhe perguntou com ternura: – Te machuquei antes? – Um pouco – sussurrou ela. Humm... Teria que lhe haver deixado fazer o que estava fazendo, era imoral e entretanto não conseguia afastar-se. Eram suas últimas horas com ele e a única coisa que desejava era perder-se de novo entre seus braços. Ele estava lhe mordiscando a orelha. – Desta vez terei mais cuidado, serei muito delicado. Foi delicado, com certeza, terno, e paciente. Ela gemeu quando sua boca se deslizou ao longo de seu corpo deixando-a louca de desejo. Ele murmurava sobre sua pele coisas que ela sentia mais que ouvia. Logo sua cabeça baixou mais e pressionou sua boca contra os sedosos cachos. Ela se sobressaltou assustada. – Não, não… Ele se endireitou imediatamente e a abraçou contra seu peito enquanto lhe punha os braços ao redor do pescoço. – Me perdoe. É tão linda…Não queria te assustar. Sua mão acariciou o lugar onde se concentravam todas as sensações de Tasia e ela afogou um soluço abandonando-se a ele em corpo e alma. Ele jogou com seus sentidos com uma habilidade diabólica.


Mas ela logo se deu conta de que suas ingênuas carícias também o afetavam profundamente. Explorou com deleite o musculoso corpo duro e suave dele. Finalmente Luke entrou nela muito lentamente e ela se abriu para ele com avidez. Luke riu encantado, como se estivesse ante uma criatura atracando-se de guloseimas. Estava no mais profundo dela e mal se movia, então ela se agitou com um gemido de protesto pedindo mais. – Ainda não Tasia – sussurrou ele. Apesar dos desejos dela, ele permaneceu imóvel, negando-se a lhe dar a satisfação que lhe pedia. Quando pôr fim a levou ao êxtase, no corpo dela não restava nenhuma energia. Sacudiu-a um violento estremecimento e escondeu o rosto no ombro masculino. Ele se deixou ir a sua vez, apertando os dentes, os músculos tensos, em silêncio. Em seguida dormiu imediatamente com as mãos colocadas entre o cabelo de Tasia que se aconchegou mais contra ele e fechou os olhos muito cansada para as preocupações, os pesadelos e as lembranças, feliz por essa pausa provisória que ele lhe oferecia. Tasia despertou mais tarde do que teria desejado. O sol já estava alto no céu e se ouviam os ruídos familiares do café da manhã na sala dos serventes. Notou com alívio que Stokehurst tinha desaparecido durante a noite, nunca teria tido a coragem de enfrentá-lo…Devia ter saído com Emma para dar seu passeio matutino, e ela já não estaria ali quando ele voltasse. Lavou-se, vestiu-se depressa e se sentou na mesinha para escrever uma nota para Emma. Minha querida Emma: Perdoe-me por te deixar sem te dizer adeus pessoalmente. Gostaria de ficar mais tempo e conhecer a maravilhosa mulher em que vai te transformar. Estou tão orgulhosa de ti! Certamente algum dia entenderá que foi melhor para todos que eu partisse. Espero que conserve uma boa lembrança de mim e te asseguro que tem todo meu carinho. Adeus Miss Billings Dobrou com cuidado a carta e a selou com umas gotas de cera. Em seguida


apagou a vela e deixou a carta dirigida a Emma bem à vista. Era melhor assim e estava contente de que quando partisse não se visse rodeada de discussões e abraços tristes. Entretanto um estranho mal-estar lhe oprimia o coração. Por que Stokehurst tinha desaparecido sem dizer nenhuma palavra? Por que a tinha deixado em liberdade para atuar? Ela esperava que o fizesse ao menos um último esforço para tentar retê-la; Não era dos que desistiam sem lutar, e se realmente a desejava como dizia… Mas era possível que já não a desejasse, ou uma só noite com ela tinha sido suficiente para ele. Ou agora que tinha satisfeito sua curiosidade… Esse pensamento a afetava profundamente e lhe oprimia o coração. É obvio, ele já não a necessitava, só tinha sido para ele um capricho passageiro e agora voltaria com lady Harcourt, uma mulher cuja experiência e sensualidade podiam rivalizar com as dele. Tasia tinha vontade de chorar, mas levantou resolutamente o queixo e desceu com as malas. Em toda a casa flutuava um aroma acre já que estavam limpando, os tapetes, os cobriram com folhas de chá e em seguida várias donzelas os sacudiriam energicamente. Mrs. Knaggs fiscalizava o trabalho passeando pelas salas com o engomado avental instruindo enquanto se movia. Tasia a encontrou em um corredor do primeiro piso provida de um pote de cera. – Mrs.… – Ah miss Billings! A ama de chaves estava vermelha de cansaço e se deteve quando Tasia se aproximou dela. – Os dias não são o suficientemente longos para que possa me ocupar desta imensa mansão – queixou-se. – Vim para lhe dizer… – Sei. Milorde me avisou esta manhã de que nos deixava. Isso tomou Tasia de surpresa. – Sim? – Sim. Ordenou que preparassem uma carruagem e que a levassem onde você quisesse.


Em vez de incomodar-se por sua partida, Stokehurst tinha arrumado tudo para lhe facilitar as coisas. – É muito amável de sua parte – murmurou. – Espero que tenha uma boa viagem – disse Mrs. Knaggs alegremente como se Tasia só fosse passar o dia na cidade. – Não me pergunta por que vou tão repentinamente? – Sem dúvida tem suas razões, miss Billings. Tasia tossiu desiludida. – Meu salário…Esperava… – Ah sim! – Milorde considerou que como não ficava todo o mês não lhe devia nada. Tasia ficou vermelha de raiva e de assombro ao mesmo tempo. – Só faltam uns dias! Quer dizer que não me dará nem um só xelim do que me deve? A ama de chaves virou a cabeça. – Isso temo. O muito estúpido! Infame indivíduo sem escrúpulos! Estava-a castigando por não lhe obedecer. Lutou para recuperar o sangue-frio. – Muito bem – disse por fim com voz tensa – Me arrumarei. Adeus, Mrs. Knaggs. Por favor, tenha a bondade de dizer a Mrs. Plunkett, a Biddle e aos outros que desejos toda a felicidade do mundo. – Direi – respondeu a boa mulher lhe dando uns amistosos tapinhas no ombro. Todos a queremos muito querida menina. Adeus. Tenho que me apressar, há quilômetros quadrados de parquet que terei que encerar. Tasia a olhou enquanto se afastava completamente desorientada por sua indiferente despedida quando esperava um pouco mais de emoção. Possivelmente o pessoal já sabia que lorde Stokehurst tinha passado a noite com ela. Os segredos não duravam muito em Southgate Hall. Sem dúvida essa era a explicação para a atitude de Mrs. Knaggs; estava desejando que Tasia fosse o quanto antes. Humilhada, a jovem se dirigiu para a entrada principal com um só desejo: estar longe de Southgate o mais rapidamente possível. Seymour a tratou com sua cortesia habitual, mas ela afastou o olhar quando


lhe pediu a carruagem. Suspeitaria ele também o que tinha acontecido na noite anterior? Converteu-se em uma mulher fácil; um novo pecado pesava agora sobre sua consciência. – Que direção devo dar ao chofer miss Billings? – perguntou Seymour com uma pequena dúvida na voz. – Amersham, por favor. O povoado em questão estava no percurso das diligências e tinha algumas antigas estalagens. Tasia se propunha passar ali uma noite, vender a cruz de sua avó como pudesse e depois contratar alguém do povoado para que a levasse para o oeste. Ali se esconderia em uma aldeia e procuraria um trabalho como donzela ou como criada. O lacaio pôs a bagagem na calesa e ajudou Tasia a subir. – Obrigado – murmurou ela antes de estremecer quando a porta se fechou atrás dela. Apareceu pelo guichê para ver pela última vez a Seymour. – Adeus, miss Billings, e boa sorte – lançou um sorriso um pouco envergonhado, sinal de uma grande emoção. – Obrigado – respondeu Tasia com falso entusiasmo antes de se deixar cair no assento lutando contra as lágrimas que subiam aos olhos enquanto a carruagem se afastava de Southgate Hall. Precisou uns minutos para dar-se conta de que não iam na direção correta. Primeiro foi uma vaga suspeita que rechaçou resolutamente. Depois de tudo, mal conhecia os caminhos da Inglaterra e só sabia que Amersham estava em alguma parte para o oeste de Southgate. Mas a carruagem não demorou em deixar o caminho principal para meter-se por outro mal pavimentado no meio do bosque. A menos que se tratasse de um atalho, não estavam indo para Amersham. Angustiada deu uns golpes no teto para chamar o chofer. Este a ignorou e continuou assobiando. Meteram-se mais entre as árvores, passaram por diante de um campo sem cultivar, um lago… e se detiveram diante de uma casinha de dois pisos meio escondida entre as trepadeiras. Assombrada se abaixou enquanto o chofer se ocupava de descer suas malas.


– O que fazemos aqui? – perguntou ela. Com uma piscada travessa, o homem lhe assinalou o alpendre no qual se perfilava uma alta figura. Havia um sorriso no olhar azul de Luke quando declarou travesso: – Não pensou que eu ia te deixar partir tão facilmente?


Seis

Tasia apertou os dentes, notava como a ira se apoderava dela. Era muito capaz de tomar suas próprias decisões e isso ninguém podia tirar dela. Esse homem acreditava que podia manipulá-la e lhe preparar uma armadilha para depois cair em seus braços com um suspiro de gratidão? Isso era ultrapassar todos os limites da arrogância! A carruagem se afastou pelo caminho atravessando o bosque deixando-a só com Stokehurst. Sem dúvida a maior parte das mulheres teriam considerado a situação como uma bênção, Stokehurst estava particularmente sedutor esta manhã, com uma calça escura e uma larga camisa branca, com o cabelo um pouco revolto. Imóvel, olhava-a com uma espécie de fascinação que ela não soube decifrar. Refez-se e declarou com uma voz tão fria e tranquila como foi possível: – As coisas serão assim quando Nicolas Angelovsky me encontrar. Não me deixará nenhuma escolha e se justificará a seu modo. Você é como ele, nenhum dos dois pode suportar que algo se interponha no que desejam. Teve a imensa satisfação de ver Stokehurst zangar-se. Cruzou os braços enquanto Tasia se aproximava dele. A fachada da casinha estava decorada com painéis de barro cozido e de tijolos decorados com o mesmo desenho do falcão e a rosa que Southgate hall, com as iniciais SW gravadas em intervalos regulares. Embora os anos tivessem apagado um pouco o desenho, a casa entretanto estava muito cuidada. As antigas colunas tinham sido substituídas por outras novas e recentemente a tinham branqueado com cal. Se tivesse estado menos zangada e menos desorientada, Tasia teria certamente apreciado essa casa de conto de fadas que o passar do tempo tornava ainda mais romântica. – William Stokehurst – comentou Luke ao vê-la olhar as iniciais da porta – um de meus antepassados construiu esta casa no século XVI para sua amante,


para tê-la perto de Southgate Hall. – Por que me trouxe aqui? – perguntou Tasia secamente – Para me conservar como sua querida? Ele pareceu pensar na resposta e Tasia se zangou ainda mais ao dar-se conta de que ele estava pensando como faria para tranquiliza-la. Ela não queria que a acalmassem e menos ainda que a manipulassem. Só queria que a deixasse em paz. – Eu gostaria de passar algum tempo contigo – disse ao fim – Com tudo o que aconteceu ultimamente, não conversamos de verdade. – Não conversamos de verdade nunca. Ele assentiu com a cabeça. – Agora poderemos fazê-lo tanto como queiramos. Tasia, com um suspiro irritado, separou-se da porta como se fosse a entrada do inferno. Dirigiu-se para a lateral da casa perto da qual, em um prado em sombra, um semental branco estava comendo feno. O animal levantou as orelhas e voltou à cabeça para ela com interesse. Ao ver que Stokehurst a tinha seguido Tasia se voltou apertando os punhos. – Me leve ao povoado! – Não – respondeu ele com suavidade sustentando seu olhar. – Então irei a pé. – Tasia… Aproximou-se dela e a segurou pelas mãos. – Fique aqui comigo só um ou dois dias. Ela tentou soltar-se, mas ele apertou os dedos. – Não a obrigarei a nada, não te tocarei se não quiser. A única coisa que te peço é que fale comigo. Angelovsky não representa um perigo imediato, aqui não te encontrará. Tasia…não precisa fugir o resto de seus dias, se tiver confiança em mim encontraremos outra saída. – Por quê? – perguntou ela um pouco mais calma. O tom de voz dele, tão doce, afetava-a de uma forma estranha. Nunca antes se dirigiu a ela dessa forma intensa e pausada ao mesmo tempo. – Por que deveria confiar em ti? – continuou, entretanto.


Ele abriu a boca para responder, mas depois se arrependeu, limitou-se a aproximar o pequeno punho de Tasia de seu peito, no lugar onde seu coração pulsava com força. Delicadamente, Tasia abriu a mão contra o compassado pulsado. Porque te amo – quis lhe dizer Luke – Amo-te mais que tudo no mundo além da Emma. Não é necessário que você também me ame, só quero te ajudar, só quero que esteja segura… Mas ela não estava preparada para ouvir essas palavras, teria medo ou lhe desprezaria. A seus trinta e quatro anos Luke tinha adquirido algumas noções de estratégia. Defendeu-se com um sorriso zombador. – Porque sou seu único recurso – disse – além dos Ashbourne. Se eu fosse você agradeceria qualquer ajuda, não pode dizer que lhe sobrem amigos. Tasia afastou a mão com expressão irritada. Pronunciou algumas palavras em russo (nada amável é obvio) e entrou na pequena casa fechando a porta atrás dela. Luke suspirou aliviado. Ela não estava contente por estar aí, mas ficaria. Com o passar do dia Tasia se trocou, vestiu sua roupa de camponesa e recolheu seu cabelo em uma pesada trança: já que Stokehurst ia ser a única pessoa que a veria, era melhor que estivesse confortável. Para falar a verdade, a casa era um lugar bem agradável para estar em cativeiro. Percorreu-a de cima abaixo, descobrindo tesouros em cada sala: livros raros, gravuras, miniaturas que representavam rostos altivos com cabelo negro, evidentemente os antepassados de Stokehurst. Toda a casa era antiga e confortável, com as paredes cheias de tapeçarias de cores esvaídas pelo tempo e móveis robustos e senhoriais. Uma maravilha. Não resultava difícil imaginar que William Stokehurst gostava de visitar sua amante, longe do mundo, só preocupado pelo prazer que encontrava em seus braços. Depois de ver a adega, foi dar uma volta pelo lago, o prado e a horta. Não sabia onde estava exatamente Stokehurst, mas estava segura de que não a perdia de vista. Graças a Deus tinha o bom senso de deixá-la em paz lhe permitindo assim acalmar-se.


Pela tarde lhe olhou enquanto treinava o semental lhe ensinando a girar sobre si mesmo com uma paciência exemplar. O cavalo, com as patas ligeiras e seus graciosos movimentos parecia estar dançando. Em conjunto se comportava bem, mas tinha alguns momentos de rebeldia rapidamente castigados com uns minutos de forçada imobilidade. – Horroriza estar quieto – explicou Luke que tinha notado a discreta presença de Tasia em um desses momentos – só tem dois anos. Tasia admirava em silêncio a cena que formavam o hábil cavaleiro e seu magnífica montaria. Stokehurst lhe guiava sozinho com a pressão de seus joelhos mantendo-se erguido inclusive durante os exercícios. Quando o cavalo terminou de dar uma volta perfeita, recompensou com generosas adulações. Finalmente Luke desceu do cavalo e se aproximou da cerca onde estava Tasia. – Lady Kaptereva me permita lhe apresentar Constantin. Tasia acariciou o focinho do semental que cheirou delicadamente sua mão aberta. Depois aproximou a cabeça da jovem obrigando-a a dar um passo para trás. Começou a rir. – O que é o que quer? Luke murmurou uma reprimenda antes de explicar: – Emma tem a irritante mania de lhe dar açúcar. Pegou o costume e agora está pedindo. – Guloso! – repreendeu Tasia lhe dando um pequeno golpe no pescoço. Constantin voltou à cabeça para olhá-la com olhos brilhantes. Stokehurst ainda estava ofegante, sua garganta e sua cara brilhavam de suor, a camisa grudava à pele marcando seus músculos. Era tão masculino, tão autentico tão diferente dos cortesãos russos com seus botões dourados, seus perfumes, suas pomadas e todos os artifícios que mascaravam suas emoções… Tasia recordou repentinamente um baile ao que assistiu, voltou a ver os húsares e aos aristocratas que a convidaram para dançar. O palácio de inverno, um imenso edifício com mais de mil salas cheias de tesouros inestimáveis, brilhava com as luzes afugentando as geladas sombras da noite. As longas galerias estavam bordeadas por oficiais uniformizados, os lacaios do czar passeavam pelos salões levando taças de prata cheias de perfume.


Fechando os olhos, Tasia podia voltar a cheirá-los como se estivesse ali. Tanto os homens como as mulheres estavam cobertos de joias que brilhavam sob a luz dos candelabros de ouro. Maria, a mãe de Tasia, tinha sido declarada uma das mulheres mais bonitas da reunião, com seus sedosos cabelos escuros recolhidos em um ralo de ouro e diamantes, seu vestido profundamente decotado e seu colar de pérolas e esmeraldas. Tasia tinha dançado, vigiada pelo atento olhar de sua dama de companhia, depois tinha provou de um prato de caviar e ovos de codorna. A nobreza russa vivia rodeada de luxo e ela o encontrava normal… Mas essa vida tinha terminado, agora estava em um prado vestida de camponesa. Era outro mundo oposto ao anterior. Entretanto experimentava algo que estava perigosamente perto da felicidade. – Esta pensando em sua antiga vida – disse Stokehurst astutamente – deve sentir falta dela. Tasia sacudiu a cabeça. – Não. Foi uma época interessante que eu gosto de recordar, mas…agora compreendo que esse não era meu lugar. Por outra parte não sei qual seria realmente meu lugar se tivesse oportunidade de escolher. – Tasia… Ela levantou os olhos. Ele a estava olhando com uma intensidade que a deixou petrificada. O silêncio se alongava, vibrava, tornando-se pesado entre eles. – Tenho fome – disse ao fim Tasia – Vi na adega… – Mrs. Plunkett mandou um jantar frio. Frango, pão e fruta. – Mrs. Plunkett sabe? Luke abriu os olhos inocentemente. – Se sabe o que? – Que estou aqui contigo. Tasia entrecerrou os olhos suspicaz. – Sabe! – continuou – leio em sua expressão. Todos em Southgate Hall sabiam que hoje me sequestraria. E Emma? Também disse? – Sim – confessou tendo a decência de parecer um pouco envergonhado.


Não era muito agradável saber-se vítima de uma conspiração embora esta tivesse sido urdida com a melhor intenção do mundo. Tasia se endireitou ferida em seu orgulho e se afastou sem dizer uma palavra. Ainda estava amaldiçoando enquanto punha a comida que Mrs. Plunkett tinha preparado em uma mesa da sala de estar. Era um verdadeiro festim de carne fria, salada, queijo e fruta e tudo isso coroado por um bolo. O sol estava se pondo no horizonte, lançando sua luz dourada através das portinhas meio fechadas quando Luke, depois de haver se lavado e trocado, desceu à adega para procurar duas garrafas de vinho. Tasia, lhe ignorando, tirou umas fatias de pão de um guardanapo de linho. Indiferente a seu silêncio, Luke se sentou em uma cadeira e começou a desarrolhar uma das garrafas segurando-a entre os joelhos. – É mais seguro se o faço assim – explicou ante o olhar intrigado de Tasia – Me custa agarrá-la com os dedos artificiais. Poderia segurá-la com o cotovelo, mas já perdi várias boas garrafas fazendo-o dessa maneira, e… Esboçou um travesso sorriso que apaziguou um pouco a Tasia. – Quem se ocupa da casa e do jardim? – perguntou ela. – O guarda que vive na colina. – Ninguém nunca viveu aqui? Ele sacudiu a cabeça. – É uma tolice manter uma casa que não serve para nada, sei, mas não posso me decidir a fechá-la. Eu gosto muito da ideia de ter um lugar secreto e afastado. – Trouxe outras mulheres aqui? – Não. – E…a trouxe? – insistiu Tasia em voz baixa. Os dois sabiam que estava se referindo a Mary. Luke permaneceu em silêncio um momento antes de voltar a negar com a cabeça. Tasia lhe olhou pensativa. Estava sem dúvida adulada e também um pouco incômoda. Começava a entender quão importante era para Luke e isso a perturbava até o inexprimível.


– Sinto muito haver te enganado – continuou Luke com um tom que pretendia ser leve sem conseguir totalmente – Não sabia como fazer para que viesse aqui. Tasia encontrou na gaveta de um baú uma grande vela que acendeu com um abajur que estava na parede e depois fez o mesmo com todos os candelabros da sala banhando-a com uma cálida luz. – Poderia simplesmente ter me convidado. – Teria aceitado? – Não sei. Certamente teria dependido da forma que me pedisse isso. Soprou a vela com cuidado e olhou para Luke através do véu de fumaça. Ele se levantou, foi até ela com os olhos como se fossem veludo e um atrativo sorriso. – Miss Billings, suplico que não se vá. Há um lugar ao qual eu gostaria de levá-la, uma casinha perdida no bosque. Poderíamos viver ali, só você e eu e nos esquecer do resto do mundo todo o tempo que quisesse, um dia, um mês, toda a eternidade… E o que faríamos ali você e eu? – perguntou ela seguindo com a brincadeira. – Dormiríamos todo o dia para despertar ao cair da noite. Beberíamos vinho, contaríamos nossos segredos e dançaríamos a luz da lua. – Sem música? Ele se inclinou para seu ouvido para murmurar em tom de confidência: – O próprio bosque é a música. Mas a maior parte das pessoas o ignoram, não sabem escutar. Tasia fechou um instante os olhos. Luke desprendia um fascinante aroma de sabão, cabelo molhado e linho engomado. – Poderia me ensinar? – perguntou em voz baixa. – Em realidade esperava que fosse você quem me ensinasse. Ela retrocedeu e o olhou nos olhos. E de repente os dois começaram a rir sem nenhuma razão em particular, sem dúvida porque a magia do momento os envolveu. – Pensarei – disse ela dirigindo-se para uma cadeira que ele aproximou


galantemente. – Um pouco de vinho? Tasia lhe estendeu seu copo. Ele se sentou frente a ela e brindaram em silêncio. O vinho era dourado, generoso e afrutado. Em resposta ao olhar interrogador de Luke, Tasia se virou para levar o copo aos lábios. Nunca tinha bebido mais que alguns sorvos sob o atento olhar de sua mãe e suas diferentes damas de companhia. Apreciava muito a possibilidade que lhe oferecia de beber tanto como quisesse. Comeram devagar enquanto o céu se escurecia e as sombras invadiam todos os cantos da sala. Luke estava sob seu encanto, viu divertido como Tasia enchia várias vezes o copo e lhe advertiu que no dia seguinte lhe doeria a cabeça. – Pouco importa – replicou – é o melhor vinho que provei. Luke explodiu em gargalhadas. – E parece melhorar com cada copo. Bebe tranquilamente carinho. Como sou um cavalheiro não poderei me aproveitar de ti se estiver bêbada. – Por quê? Bêbada ou sóbria o resultado é o mesmo não? – Ela deu outro gole jogando a cabeça para trás. – Por outra parte não é tão cavalheiro. Entrecerrando os olhos ele se inclinou por cima da mesa. Tasia ficou de pé de um salto contendo a risada, mas a sala começou a girar ao seu redor e ela se concentrou em conservar o equilíbrio. Quando o recuperou agarrou seu copo e começou a passear pela sala de estar. – Quem é? – perguntou assinalando o retrato de uma dama loira. Ao fazer esse gesto lhe derramaram umas gotas de vinho e franziu o cenho antes de terminar o que restava no copo para evitar outro acidente. – Minha mãe. Luke se reuniu com ela e lhe tirou o copo das mãos. – Já basta querida. Vai ficar doente. Já o estava. Luke era tão sólido e forte! Apoiou-se nele para admirar o retrato.


A duquesa era uma mulher formidável, mas seu rosto carecia de doçura, tinha os lábios franzidos, o olhar frio e penetrante. – Não te parece muito com ela – disse Tasia – com exceção, possivelmente do nariz. – Minha mãe era uma mulher de caráter a qual a idade não adoçou. Sempre jurou que morreria se chegasse a perder suas faculdades. Por agora não há perigo de que isso aconteça. – E seu pai como é? – Um velho patife com uma insaciável paixão pelas mulheres. Só Deus sabe por que se casou com minha mãe. Nela qualquer manifestação de emoção, incluída a risada, é surpreendente. Meu pai diz que ela somente lhe admitiu em sua cama o tempo indispensável para procriar. Tiveram três filhos que morreram quando criança e logo viemos minha irmã e eu. Com o passar do tempo minha mãe se tornou cada vez religiosa, deixando que meu pai fizesse o que quisesse. – Amaram-se? – pergunto Tasia distraidamente. – Não sei – suspirou Luke – Mas basta lembrar como se comportavam um com o outro, com uma espécie de cortês tolerância. – Que triste! – Quiseram assim. Por razões que só eles conhecem nenhum deles acreditava no matrimônio por amor. Por ironias do destino, seus dois filhos, entretanto, sim, o fizerem. Tasia se recostou mais a ele, feliz ao sentir seu robusto peito contra suas costas. – Sua irmã ama a seu marido? Sim, Catherine se casou com um maldito escocês cabeça dura como uma mula cujo temperamento rivaliza com o dela. Passam a metade do tempo brigando e a outra metade reconciliando-se na cama. As últimas palavras flutuaram no silêncio. Tasia se ruborizou ao recordar a noite anterior. Procurou pelo copo de vinho. – Tenho sede. Virou-se e tropeçou em Luke que a ajudou a recuperar o equilíbrio.


De repente ela deu um salto ao notar que lhe caía líquido no ombro. – Derramou o vinho! – protestou puxando sua blusa de camponesa. – Sim? Deixe-me olhar. Inclinou a cabeça e ela sentiu seus lábios na pele. Um pouco enjoada, Tasia pensou que estava a ponto de cair. O chão estava se aproximando de forma perigosa. Mas era Luke que a estava deitando no tapete. Antes que ela pudesse protestar notou mais gotas caindo sobre ela. – Fez novamente! Com uma desculpa fingidamente envergonhada, ele deixou o copo e puxou o cordão da blusa. A malha caiu por seus ombros ao mesmo tempo em que a saia se deslizava por seus quadris. – Meu Deus! – sussurrou ela olhando como perdia suas roupas. Mas Stokehurst por sua parte parecia encontrar isso perfeitamente normal. Recolheu com a boca algumas gotas dispersas e Tasia estremeceu. Deveria ter lhe detido, sabia, mas sua boca era tão cálida e suave… Pôs seus braços ao redor de seu pescoço. – Acredito que estou bêbada – disse com voz um pouco pastosa – nunca antes tinha estado, mas sempre pensei que seria assim. Todo esse vinho…O estou verdade? – Só um pouco. Ele continuava lhe tirando a saia e ela relaxou e lhe ajudou com uns chutes. Sentia-se muito bem e muito leve com as pernas livres da roupa, mas tentou pôr uma expressão severa. – Estar se aproveitando da situação – disse antes de afogar uma gargalhada virando-se de lado. Ele se deitou a seu lado e ela não pôde evitar seguir com um dedo a curva de seu sorriso. – Está me seduzindo? Ele assentiu afastando uma mecha de cabelo que lhe tinha caído na bochecha. – Não deveria desejá-lo, estou segura. Mas minha cabeça está girando. Tasia fechou os olhos e imediatamente a boca de Luke esteve na sua, quente e apaixonada. Agora já estava em cima dela, perfeito e forte.


– Me ajude a tirar a camisa – murmurou. Pareceu uma maravilhosa ideia, desejava sentir sua pele sob seus dedos e o tecido o impedia. Brigou com os botões que pareciam desagradavelmente recalcitrantes, então agarrou a camisa com as mãos e puxou até que se ouviu o som do tecido rasgando-se que lhe resultou muito satisfatório. Contente de si mesma contemplou o torso bronzeado, os olhos da cor do mar no verão, sem rastros de verde nem de cinza. – Como pode ter os olhos tão azuis? – perguntou – é um azul precioso. Ele baixou as pálpebras. – Que Deus me ajude Tasia. Se me deixar vai levar meu coração contigo. Tasia quis responder, mas ele a beijou e ela esqueceu as palavras que tinha estado a ponto de dizer. Como em uma nuvem lhe viu agarrar o copo e derrubar umas gotas de vinho em cima dela. Por que estava fazendo isso? Ele lhe disse que não se movesse e ela obedeceu aturdida, mas, entretanto não pôde evitar arquear-se suavemente quando a boca de Luke seguiu o caminho das gotas de vinho. Ela começou a rir quando ele brincou com seu umbigo, depois se calou quando ele abriu suas pernas, com sua vontade convertida em submissão. A mão de Luke desceu para os cachos escuros e ela gemeu concentrada no prazer. – Sim, OH sim! O desejo crescia como uma irrefreável maré e gritou quando tudo explodiu a seu redor e dentro de seu corpo antes que os deliciosos espasmos se convertessem em simples estremecimentos. Enjoada de prazer, Tasia relaxou quando ele deitou sobre ela e a penetrou com suavidade. Ela se pendurou nele para lhe sentir ainda mais perto, mas ele resistiu segurando-se com os cotovelos. – Tenho medo de te esmagar, é muito pequena e frágil, tão frágil como um pássaro. Seguiu a curva de seus quadris e beijou seus seios de marfim. Mas quando vejo que se apodera de ti a paixão, quando me abraça tão apertado, estou tentado a me esquecer de tudo. Entretanto não quero te machucar. – Veem – suplicou ela seguindo seus movimentos – não me quebrarei.


Mas ele não se deixou convencer por essas pequenas mãos em suas costas, nem pelos dentes que lhe mordiscavam o ombro. Esperou até que ela também esteve preparada e alcançaram juntos a cúpula do prazer. Passaram as horas seguintes em uma grande cama de colunas esculpidas coberta de seda azul. Suas incessantes brincadeiras abriram o apetite de Tasia e Luke a seguiu de boa vontade à cozinha onde pegaram frutas, queijo e bolos antes de voltar para a cama. Tasia se deitou atravessada na cama com os braços esticados, mas sem conseguir chegar à outra ponta. – É muito grande – se queixou sorrindo a Luke – vou me perder nela. Ele a pegou em seus braços. – De todas as formas te encontrarei. – Eu adoro isso tudo! – declarou ela com uma ingênua franqueza – Agora entendo porque tantas mulheres preferem ser amantes. – Isso é o que é agora? – perguntou ele lhe beijando o oco do ombro. Ela avermelhou desconcertada. – Eu…Eu não tinha intenções de substituir lady Harcourt. – Já não há nada entre Íris e eu. Fui ontem a Londres justamente para romper com ela. Tasia levantou as sobrancelhas surpreendida. – Por quê? – Não podia lhe oferecer o que ela desejava e tive o egoísmo de estar com ela mais tempo do que devia. Agora é livre para casar-se com um dos muitos pretendentes que a desejam há anos. Em minha opinião não demorará a fazê-lo. – E você? – perguntou Tasia soltando-se de seu abraço – vais procurar uma nova amante para substituí-la? Luke voltou a segurá-la com firmeza pela cintura. – Eu não gosto de dormir sozinho – confessou – suponho que poderia encontrar outra Íris e voltar para meus hábitos saudáveis.


Apesar do inesperado acesso de ciúmes, Tasia permaneceu em silêncio sabendo que não tinha direito a protestar. Luke leu seus pensamentos. – Mas – continuou com um sorriso – me pergunto o que faria então contigo. – Eu seria capaz de me arrumar sozinha. – Sei. Mas estaria preparada para te ocupar dos outros e deixar que eles a sua vez se ocupassem de ti? Tasia sacudiu a cabeça com o coração golpeando em seu peito. – Não te entendo. – Já é hora de que falemos a sério. Seus olhos azuis olhavam fixamente para Tasia. Luke respirou fundo e continuou. – Tasia…quero que forme parte de minha vida e da de Emma. Desejo que fique junto a mim. Mas para isso tem que te casar comigo. Tasia se apoderou do lençol para cobrir-se e manteve a cabeça agachada enquanto ele continuava: – Nunca pensei que poderia ser um bom marido para ninguém mais além de Mary, nem sequer tive desejos de tentá-lo antes de ti conhecer. Deu as costas e ele acariciou seus tensos ombros. – Não está segura do que sente por mim. Sei. Se tivéssemos tempo à situação seria diferente, cortejaria-te com toda a paciência que sou capaz. Entretanto te peço que te arrisque e que confie em mim. Por um momento Tasia considerou a ideia de compartilhar a casa de Luke, sua vida, levantar-se cada manhã a seu lado…em seguida essa visão desapareceu deixando um doloroso vazio. – Se eu fosse outra pessoa aceitaria – murmurou miseravelmente. – Se fosse outra pessoa não te quereria. – Nem sequer nos conhecemos. – Parece-me que nestas últimas vinte e quatro horas temos feito muitos progressos.


– Embora repita a mesma coisa mil vezes – disse ela com voz trêmula – não me escutaria. Fiz algo que nem sequer Deus me perdoará. Algum dia terei que pagar por isso de uma forma ou de outra. E como sou muito covarde para confrontar o castigo continuarei fugindo até que me peguem. – Então Nicolas Angelovsky é algo assim como o instrumento da justiça divina? Não acredito. Deus tem melhores métodos para castigar os pecadores, não precisa enviar um príncipe russo meio louco em seu lugar. Por outra parte enquanto não recorde o que aconteceu ou não me dê alguma prova, jamais acreditarei que você tenha matado alguém. E aconteceria o mesmo embora não estivesse apaixonado por ti. Por todos os diabos o que te faz te acusar de um crime que não cometeste? – Está apaixonado por mim? – repetiu Tasia afastando o cabelo para lhe olhar estupefata. Luke grunhiu de uma maneira que diferenciava muito com a imagem de um pretendente paralisado de amor. – O que acha que estou tentando te dizer? Ela soltou uma risadinha de assombro. – Tem uma maneira muito estranha de te expressar. – Acredite-me – insistiu ele carrancudo, como se estivesse incômodo pelo que estava a ponto de dizer – Você não é a candidata ideal. As mulheres se lançam ao meu pescoço há anos, algumas porque gostam e outras por meu dinheiro. – Eu também tenho bens na Rússia – lhe informou – terras, uma fortuna, palácios… – Então Madame Miracle não estava longe da verdade. – Certamente. – Não me importaria nem se fosse a filha de um açougueiro – disse ele – A verdade é o que preferiria. – Eu também – disse ela ao fim de um momento. Não se olhavam, os dois pensando no que tinha acontecido. Enquanto brigavam ele tinha pegado sua mão e ela lhe rechaçou. Mas ainda não tinha acabado. Embora tivesse vontade de chorar se conteve, ele a consolaria e não queria


que se aferrassem um ao outro justo agora que iam se separar para sempre. Apertou mais o lençol contra seu peito. – Luke – disse suavemente. Era a primeira vez que lhe chamava por seu nome e ele estremeceu. – Se está preparado para amar de novo, para te casar outra vez, encontrará sem problemas alguém melhor que eu. Alguém que se pareça com Mary. Queria lhe dar sua bênção, lhe oferecer um conselho desinteressado, mas ele a olhou fixamente com um olhar penetrante. – Então é isso? Se quisesse substituir Mary o teria feito faz anos. Mas não posso imaginar que meu segundo matrimônio seja uma repetição do primeiro. Isso eu não gostaria em nada. Tasia encolheu os ombros com falsa desenvoltura. – Agora diz isso, mas se te casar comigo te decepcionarei. Talvez não em seguida, mas depois de um tempo… – Me decepcionar? – repetiu Luke incrédulo – por que em nome do céu…? Não, não me diga, me deixe pensá-lo um momento. Ao ver que ela tentava falar de todas as formas, o impediu com um gesto. Era importante esclarecer qualquer mal-entendido nisto e tentava encontrar a forma de fazê-la entender, mas lhe parecia algo que estava por cima de suas forças. Tasia era ainda muito jovem e via as coisas em branco e preto, tinha ideais e não tinha aprendido ainda que o tempo mudava as coisas. – Era quase um adolescente quando me casei com Mary – disse ao fim escolhendo com cuidado as palavras – a conhecia desde sempre. Primeiro fomos companheiros de brincadeiras, depois amigos e por fim amantes. Nunca nos apaixonamos, simplesmente nos deixamos levar até que chegamos a nos amar. Estaria insultando sua memória se dissesse que não foi assim. Amávamo-nos profundamente, passamos maravilhosos momentos juntos e me deu uma filha a que adoro. Mas quando morreu me converti em outro homem. Agora tenho outras necessidades. E você… Agarrou a mão de Tasia e a apertou com força olhando sua cabeça encurvada. – Você trouxe para minha vida uma classe de paixão e de magia que não conhecia. Sei que parecemos um com o outro. Quantas pessoas encontram sua


alma gêmea? Passam a vida sem nunca consegui-lo. Por algum incrível milagre você e eu estamos juntos. Interrompeu-se por um momento. – Nos dê uma oportunidade – continuou com voz rouca – sabe o que desejo, mas não posso te obrigar a ficar. É tua decisão. – Eu não tenho opção! – gritou Tasia com os olhos cheios de lágrimas – Precisamente pelo carinho que tenho por Emma e por ti devo ir. – Minta a si mesma. Põe qualquer desculpa para não correr o risco a ser ferida. Tem medo de amar. – E se a razão não tivesse nada a ver comigo? – indignou-se ela cáustica – E se fosse por tua culpa? Talvez seja tão arrogante, tão egoísta e tão desonesto que não quero seu amor. Luke avermelhou de raiva. – Essa é a razão? Tasia lhe olhou entre suplicante e zangada. Ele a estava obrigando a pronunciar as palavras que machucariam aos dois. Oxalá aceitasse sua decisão e fosse menos teimoso! – Rogo, não faça as coisas mais difíceis. – Maldição! Vou tornar isso impossível! Atraiu-a para ele e afogou seus protestos com um apaixonado beijo. Em seguida lhe manteve a cabeça com firmeza. – Preciso de ti! Sua mão, um pouco trêmula, desceu sobre o seio de Tasia. – Preciso de ti de muitas formas. Não posso te perder carinho. Antes que ela pudesse responder ele a estava beijando de novo e ela não demorou em esquecer tudo o que não fosse o ardente desejo que os fazia tremer em uníssono. Quando ele entrou nela, ela se agarrou a seus ombros com uma paixão próxima ao desespero até que o prazer lhes consumiu mais uma vez. Quando recuperou o fôlego Tasia rodou para fora da cama. Com as pernas trêmulas agarrou a bata de seda que estava no tapete que era de Luke e que ficava


muito grande nela. A pôs como pôde antes de olhar para um Luke de olhar indecifrável. – Te machuquei? – perguntou ele tranquilamente. Ela negou com a cabeça, cheia de confusão. – Não, mas eu gostaria de ficar a sós um momento. Preciso pensar. – Tasia… – Por favor não me siga. Ouviu jurar entre dentes enquanto ela se dirigia à porta. Uma vez fora levantou a bainha da bata para não sujá-la com o barro. O céu era de veludo negro cheio de estrelas que se refletiam no lago. Aproximou-se da beira, um grupo de juncos se moveu quando duas rãs, prudentes, saltaram fora do alcance da intrusa. Tasia deu um chute para assustar a qualquer outra criatura e se sentou no chão colocando os pés na água. Então começou a refletir. Um homem apaixonado, o Marques de Stokehurst…Tasia rodeou suas pernas com os braços e apoiou o queixo nos joelhos. Necessitava desesperadamente que alguém a aconselhasse. Recordou a conversa palavra por palavra perguntando-se se ele teria acertado ao dizer que ela tinha tanto medo de resultar ferida que nunca entregaria seu amor a ninguém. Pensou nas pessoas a quem tinha amado. Seu pai, sua mãe, seu tio Kirill, sua donzela Varka. Tinha-os perdido. Sim, tinha medo. Já não sobrava muito coração. Recordou sua infância, seu desespero, sua solidão depois da morte de seu pai. Sua mãe lhe tinha carinho, mas sua principal preocupação era, e seguia sendo, ela mesma. Maria não podia amar realmente a ninguém mais. Quando era pequena, Tasia não o entendia e se acreditou indigna de inspirar amor. Merecia ter uma oportunidade para encontrar a felicidade? Devia fazê-lo? Não estava segura de qual era a resposta, mas o que devia a Luke caso que lhe devesse algo? Era um homem brilhante, inteligente, perfeitamente capaz de escolher e confrontar as consequências. Queria casar-se com ela porque estava convencido de que seriam felizes juntos. Se ele tinha tanta fé nisso ela também tinha que


acreditá-lo um pouco. Ele havia dito que a amava e Tasia estava confundida, não podia entender a razão desse amor quando ela tinha tão pouco a oferecer. Entretanto se ele sentia só uma pequena parte do prazer que ela sentia em sua companhia, possivelmente isso fosse suficiente. Uniu suas mãos, fechou os olhos e começou a rezar. Senhor não mereço isto, dá-me medo ter esperanças, mas não posso evitá-lo. Desejo ficar. – Desejo ficar – repetiu em voz alta. E soube que tinha encontrado a resposta.

Luke dormia deitado sobre as costas com a cabeça de lado, despertou com uma carícia em seu ombro nu e um murmúrio no ouvido. – Desperte, milorde. Acreditando que sonhava se moveu com um grunhido. – Veem comigo – insistiu Tasia puxando o lençol que lhe cobria. Ele bocejou e protestou: – Onde? – Aqui fora. – Seja o que for que deseje fazer por que não o faz aqui dentro? Ela riu tentando lhe levantar. – Tem que te vestir. Ainda meio adormecido Luke se vestiu com muita dificuldade sem se dá ao trabalho de calçar-se. Franzia o cenho desconcertado enquanto Tasia lhe abotoava a camisa. Não lhe olhava e, entretanto atuava com uma impaciência pouco contida. O puxou para fora da casa. – Veem – insistiu Tasia deslizando uma mão na sua. Ele queria lhe perguntar aonde lhe levava, mas parecia tão decidida que desistiu e se limitou a segui-la. Rodearam o lago antes de entrar no bosque estofado de folhas de pinheiro.


Luke estremeceu ao pisar em uma pedra bicuda. – Já chegamos? – perguntou. – Quase. Pararam só quando estiveram rodeados de árvores, o ar estava impregnado de aroma de musgo, resina e terra. Algumas estrelas brilhavam entre os ramos. Luke se surpreendeu ao ver Tasia voltar-se para ele, lhe abraçar pela cintura e ficar quieta apoiada nele. – Tasia o que… – Shh. Escuta. Luke obedeceu e, pouco a pouco, foi consciente dos sons. O ulular de uma coruja, o bater de asas de um pássaro, o canto dos grilos, o rangido das árvores e por cima de tudo o som do vento entre as folhas. As árvores pareciam tocar-se como se estivessem dançando, a música do bosque se erguia para o céu e ali se mesclava com outros ritmos eternos. Luke prendeu Tasia entre seus braços, pôs o queixo em seu cabelo, sentiu-a sorrir contra seu peito e se sentiu invadido por um grande sentimento de amor e de paz. Ela tentou mover-se, mas ele o impediu. – Eu gostaria de te dar algo – disse ela lhe obrigando a soltá-la. Agarrou a mão de Luke. – Pegue – disse respirando com dificuldade. – Um anel de homem! – Pertenceu a meu pai, é a única coisa que resta além de minhas lembranças. Ao ver que Luke permanecia em silêncio o pôs no dedo mindinho. – Perfeito – ele o usava no dedo anelar, mas era menor que você. Luke olhou por um momento o belo anel antes de olhar para Tasia tentando dissimular o medo que lhe afogava. – É um presente de despedida? – perguntou. – Não. Sua voz vacilava e seus olhos brilhavam como pedras de lua. – Não. É para te dizer que sou tua. Por inteiro. Até o fim de meus dias. Ele permaneceu um momento petrificado e em seguida abraçou-a tão forte


que pareceu que ia quebrá-la. Em vez de queixar-se ela riu com uma risada quase selvagem que era um reflexo da intensidade de sua alegria. – Será minha esposa! – Não vai ser fácil! – acautelou ela alegremente – Não demorará a querer o divórcio. – Sempre pensa no pior – protestou ele. – Não seria russa se não o fizesse. Luke explodiu em gargalhadas. – Tenho o que me mereço, uma mulher ainda mais pessimista que eu. – Não, você merece algo melhor que eu, muito melhor. Ele a silenciou com um beijo. – Não volte a dizer algo assim. Amo-te muito para ouvir essas tolices. – Sim milorde – respondeu ela docilmente. – Assim esta melhor. Examinou mais atentamente o anel que ela acabava de lhe dar de presente. – Há uma inscrição O que significa? Tasia ergueu os ombros. – Só uma frase que meu pai gostava. – Diga-me. – Diz: “O amor é uma lâmina de ouro que se dobra, mas não se quebra”. Luke ficou quieto e depois abraçou Tasia com uma infinita ternura. – Prometo que te amarei para sempre.

Decidiram conceder um dia a mais de descanso e Tasia foi feliz. Tinham selado um compromisso, mas entre eles reinava uma sensação de descobrimento que às vezes a punha nervosa. Nunca antes tinha falado com total liberdade com um homem. Luke conhecia seu passado, seus escuros segredos e, em vez de julgá-la, defendia-a de suas


próprias dúvidas e acusações. Tasia custava acostumar-se a essa intimidade. Entretanto não era incômodo, pensou sonolenta ao despertar entre seus braços a plena luz do sol. Era meio-dia e Luke a estava olhando. Há quanto tempo a estava olhando dormir? – Não consigo acreditar que esteja aqui, na cama contigo – murmurou ela – Estou sonhando? Realmente estou tão longe de meu lar? – Não, não está sonhando e seu lar agora é ao meu lado. Fez com que o lençol deslizasse até sua cintura e lhe acariciou o seio. – Meu tio Kirill não gostaria, não gosta dos ingleses. – Não vou me casar com seu tio Kirill. Por outro lado estou seguro que gostaria muito dele se me conhecesse. Não tenho palácios, mas te proporcionarei comida e teto. E cuidarei para que esteja tão ocupada que não te dê conta da modéstia a sua volta. – Southgate é um pouco mais que modesto – protestou Tasia com uma careta – Mas me sentiria muito feliz se vivesse o resto de minha vida nesta casinha sempre e quando eu estivesse comigo. – Isso é quão único desejas? – Bom… Olhou entre as pestanas, provocadora. – …Também gostaria de ter uns bonitos vestidos – confessou. Ele começou a rir. – Tudo o que queira. Salas inteiras cheias de bonitos trajes, e suficientes joias para pagar o resgate de um rei. Desceu todo o lençol para admirar seus quadris e suas longas pernas. – Sapatos de pele de avestruz, meias de seda, pérolas como cinturão e um leque de plumas de pavão. – Isso é tudo? – perguntou ela divertida. – Orquídeas brancas em seu cabelo – continuou ele depois de pensar um momento. – Certamente não passaria despercebida. – Mas eu te prefiro nua – continuou ele. Eu também.


Tasia rodou até ficar em cima dele. – É maravilhoso compartilhar a cama contigo – continuou ela apoiando os cotovelos em seu peito. Interrompeu-se um momento antes de murmurar pensativa: – Não esperava que eu gostasse tanto. Luke lhe acariciava suavemente a curva das nádegas. – O que esperava? – Acreditava que era muito mais agradável para o homem do que para a mulher. Certamente não podia imaginar que me tocaria desse modo e… Baixou o olhar presa de um súbito acanhamento. – Não sabia que…teria que mover-se tanto. Luke se esforçou por controlar a risada que lhe subia à garganta. – Ninguém lhe tinha explicado isso? – Bom, depois de meu compromisso minha mãe me disse que um homem e uma mulher se “uniam”, mas não me falou do que acontecia depois. Já sabe, todos esses movimentos e… – E o prazer? – continuou ele enquanto ela se refugiava em um casto silêncio. Ela assentiu de novo ruborizada, ele levantou seu queixo e a olhou diretamente nos olhos. – Então está satisfeita? – OH sim! – exclamou ela com uma paixão que adorou. A fez rodar sobre a cama. – Eu também. Apoderou-se dos lábios dela em um beijo interminável. – Nunca em minha vida o tinha estado tão satisfeita – disse ao terminar. Tasia passou os braços ao redor de seu pescoço. – Não compartilharia minha cama com nenhum outro homem por nada do mundo – declarou – Quando estava prometida a Mikhail sempre pensava que teria que lhe deixar que me tocasse.


Luke se mostrou repentinamente mais terno e atento. – E te dava medo? Ela levantou para ele seus olhos ainda cheios de tristeza ante a lembrança. Tinha permanentemente um nó no estômago feito pela angústia. A maior parte do tempo Mikhail parecia me ignorar como ignorava todas as mulheres. Mas outras vezes…me olhava com seus estranhos olhos amarelos e me fazia perguntas que eu não podia responder. Dizia que eu era uma flor de estufa e que não sabia nada do mundo nem dos homens. Que estaria feliz de fazer um experimento comigo. Eu tinha uma vaga ideia do que queria dizer e isso me aterrava. Calou-se ao ver uma sombra de ira atravessar o rosto de Luke. – Equivoco-me ao falar dele? – Não – tranquilizou suavemente – Quero compartilhar todas suas lembranças, inclusive as ruins. Tasia lhe acariciou a bochecha. – Às vezes me assombra, é tão bom e meticuloso…Mas quando me lembro de sua atitude com Nan… – A donzela que estava grávida? Às vezes me comporto como um imbecil – confessou com um sorriso de pesar – Mas você não se deteve em me fazer notar isso. A maioria das pessoas não se atreveriam a me enfrentar. Quando veio à biblioteca para me exortar tive vontade de te estrangular. Ela sorriu ao lembrar-se de seu aborrecimento. – Pensei que fosse fazê-lo. – Mas quando vi seus olhos me desafiando, quando senti seu coração pulsando sob minha mão, desejei-te com uma violência que mal pude conter. – De verdade? – perguntou ela com uma risadinha de surpresa – Não tinha nem ideia. – Depois pensei no que havia me dito. Eu não gostei, mas tive que reconhecer que tinha razão. Necessito alguém que possa me dizer, chegado o caso, que sou um asno. – Posso me encarregar de fazê-lo.


– Perfeito! Teremos mais discussões, ainda serei arrogante e teimoso, irei me irritar, provavelmente protagonizaremos umas terríveis cenas. Mas, sobretudo não duvide nunca de meu amor. Para desespero de Tasia, chegou o momento de pensar em voltar para Southgate Hall. Um dia mais – suplicou Tasia enquanto passeavam por uma verde pradaria. Luke moveu a cabeça. – Eu adoraria, mas já nos ausentamos muito tempo. Tenho responsabilidades que assumir e um matrimônio que preparar. Em meu interior já estamos casados, mas eu também gostaria que os outros soubessem. Tasia franziu o cenho. – Vou me casar contigo e minha família não sabe. Sabem que estou viva, mas ignoram onde me encontro. Eu gostaria de poder lhes dizer que sou feliz e que estou segura. – Não pode fazê-lo, isso facilitaria as coisas para Nicolas Angelovsky. – Não estava te pedindo permissão – grunhiu Tasia irritada por sua negativa – só estava dizendo o que pensava. – Bom, pois esquece imediatamente – ordenou ele – Não penso passar a vida esperando que Angelovsky apareça na porta de minha casa e enquanto não encontre uma solução para o problema sua identidade deve permanecer em segredo e não deve entrar em contato com sua família. Tasia lhe afastou a mão. – Não pode falar comigo como se fosse um de seus criados, a menos que esse seja o costume dos maridos ingleses ao dirigir-se a suas esposas. – Só estava pensando em ti – se desculpou Luke. De repente parecia dócil como um cordeiro, mas Tasia não se deixou enganar. Por enquanto ele dominava seu instinto de dominá-La, mas assim que estivessem casados ela se converteria legalmente em propriedade dele assim como eram seus cavalos. Não seria fácil lhe fazer mudar, mas estava desejando aceitar o desafio.


A primeira coisa que fizeram ao chegar a Southgate Hall foi procurar Emma para lhe comunicar seus planos. Assim que lhes viu, com o Luke agarrando Tasia pela cintura, compreendeu tudo. Tasia esperava que a menina ficasse contente, mas a explosão de alegria da Emma ultrapassou de longe suas expectativas. Ficou a dançar pelo vestíbulo rindo e dando gritos, abraçando todos os que passavam a seu lado. Sansão se uniu a ela dando saltos ao redor de sua ama dando sonoros latidos. Sabia que voltaria! – gritou Emma precipitando-se sobre Tasia com tanta energia que estiveram a ponto de cair – sabia que diria sim a papai. Veio ver-me na manhã de sua partida e me disse que iriam se casar embora você ainda não soubesse. – Sim? – perguntou Tasia séria franzindo o cenho. Luke simulou não dar-se conta de sua expressão e se concentrou em Sansão que corria sobre o tapete Oriental enchendo-o de cabelos. – Como é possível que cada vez que entro nesta casa encontro a esta condenada besta? – Sansão não é uma besta – se indignou Emma à defensiva – é parte da família. E a partir de agora também o é miss Billings – acrescentou alegremente – vamos ter que procurar outra professora? Nunca haverá outra que eu goste tanto como ela. – Mas é necessário. Miss Billings não pode ser ao mesmo tempo lady Stokehurst e sua professora. Luke olhou furtivamente para Tasia para medir suas forças. – Cairia de cansaço ao fim de uma semana – concluiu. Embora não fizesse nenhuma alusão ao sexo, Tasia se ruborizou ao recordar o muito que suas duas noites de amor a tinham esgotado. Luke sorriu como se tivesse lido seus pensamentos. – Agora já não é uma empregada, deveria pedir à Mrs. Knaggs que te instale em um dormitório de convidados. – O que tinha está bom – murmurou Tasia – Não para minha prometida. – Mas eu não… – Emma – cortou Luke – escolha um quarto para miss Billings e peça a


Seymour que leve ali suas coisas. Avise para que ponham outro talher na mesa de jantar. A partir de hoje miss Billings comerá conosco. – Sim papai! A menina se afastou dando saltos com Sansão nos calcanhares. Tasia se voltou para Luke um pouco preocupada. – Espero que não tenha a intenção de me visitar esta noite – sussurrou com firmeza. Ele sorriu com um brilho travesso em seus olhos azuis. – Já te disse que eu não gosto de dormir sozinho. – Nunca ouvi anda mais escandaloso! Empurrou quando ele deslizou um braço ao redor de sua cintura. Milorde! Os criados podem nos ver. – Embora dormíssemos cada qual em seu quarto todos pensariam que estamos juntos, então é melhor aproveitar – disse – Se formos discretos ninguém pensará mau. – Eu sim! – protestou Tasia completamente indignada – Eu…eu não…não farei amor contigo sob o mesmo teto que sua filha, seria a pior das hipócritas quando lhe desse lições de moral. A porta de meu quarto permanecerá fechada até o dia do casamento. Compreendendo que ela não ia mudar de opinião, Luke ficou imóvel e se olharam desafiantes. Depois se virou e saiu dando grandes pernadas. – Aonde vai? – perguntou Tasia presa de um repentino temor. E se ele mudava de opinião? – Preparar um matrimônio – grunhiu Luke – E não demorarei pode acreditar.


Sete

Nos dias seguintes se viram muito pouco, Luke passava quase todo o tempo organizando a cerimônia que se celebraria na capela do castelo e de noite voltava para Southgate Hall para passar algumas horas com Tasia. Ela nunca sabia de que humor o ia encontrar, passava da ternura à agressividade, às vezes a tratava como se fosse uma boneca de porcelana lhe murmurando ao ouvido palavras de amor, mas outras a empurrava contra a parede e se comportava com ela como se fosse um marinheiro de licença com uma rameira do porto. – Irei a seu quarto esta noite – declarou ele um dia depois de um episódio especialmente apaixonado em um escuro canto. – Passarei o ferrolho. Ele colocou uma perna entre as dela e se apoderou de seus lábios. – Tasia – grunhiu contra sua boca – Te desejo, desejo-te tanto que me dói. Agarrou a mão e a dirigiu a seu sexo inflamado. Ela perdeu por um momento a noção do tempo enquanto se beijavam com paixão. – Temos que parar! – disse ela ao fim – isto não está certo. – Esta noite! – insistiu. Tasia se separou dele um pouco surpresa ao dar-se conta de que os joelhos mal a sustentavam. – Não virá ao meu quarto – se negou – nunca lhe perdoaria isso. Toda a paixão contida de Luke explodiu em uma explosão de ira. – Maldição! Que diferença pode haver entre hoje ou dentro de dois dias? – Que então estaremos casados. – Antes aceitava compartilhar minha cama! – Não era o mesmo, então acreditava que nunca voltaria a te ver. Agora vou ocupar um lugar nesta casa e não quero perder o respeito de sua filha e de seus


criados me comportando como uma rameira – declarou ela com firmeza sem deixar dúvidas sobre sua determinação. Entretanto Luke não tinha intenções de renunciar, mudou de tática e começou a adulá-la. Todos lhe adoram e lhe respeitam querida e eu mais que ninguém. Necessitote, desejo fazer amor contigo, te fazer feliz, te dar prazer… Tasia, prudente, viu aproximar-se mais, mas quando ele fez um gesto rápido para agarrá-la, ela deu um salto mais depressa ainda ficando fora de seu alcance. – Por Deus! – trovejou ele enquanto ela se afastava rapidamente. – E não me siga! – gritou ela. No dia seguinte pela manhã, quando ele entrou na sala de jantar, Tasia, sentada na grande mesa de carvalho, olhou com um sorriso de dúvida. Ele despediu a donzela que estava tirando os pratos. – Bom dia – disse ele voltando a ser o aristocrata impassível, dono de suas emoções – Posso me unir a ti? Antes que ela pudesse responder ele se sentou a seu lado. – Vou a Londres dentro de uns minutos, mas tenho que te fazer antes duas perguntas. – Muito bem milorde – respondeu ela com a mesma seriedade. – Estaria de acordo em que os Ashbourne sejam as testemunhas na cerimônia? – Eu adoraria. – Perfeito. Também preciso saber se… Luke titubeou, roçando o joelho de Tasia. – Sim? – animou ela delicadamente. – Sobre a aliança… me perguntava se gostaria desta. Abriu a mão e mostrou um pesado anel de ouro, ela o pegou com cuidado e admirou o desenho de letras e rosas gravadas na polida superfície que ainda conservava o calor de Luke. – É uma joia de família – explicou ele – mas ninguém a usou há gerações.


Luke a observava enquanto ela brincava com o anel entre seus finos dedos, acariciando as flores. – Para os ingleses – continuou ele – as rosas são símbolo de segredo. Antigamente ficava uma rosa em cima da mesa para assegurar-se de que tudo o que se dissesse seria confidencial. De repente Tasia acreditou ver uma mulher e um homem em uma cama, a mulher oferecia seus dedos e o homem lhe punha a aliança. Ele era moreno, com barba e seus olhos eram azuis. A imagem desapareceu e Tasia fez uma careta de diversão. – Seu antepassado William a deu a sua amante verdade? Luke sorriu. – Dizem que a amou desde que a viu até o dia de sua morte. Mas o entenderei perfeitamente se preferir outro anel possivelmente com pedras preciosas. Este esta fora de moda e… – Este! Quero este. É perfeito! – Esperava que dissesse isso – disse Luke pondo o braço no respaldo da cadeira de Tasia – me perdoe por ontem – prosseguiu – Não é fácil para mim te ter tão perto e não poder te levar a minha cama. Tasia baixou os olhos. – Tampouco é fácil para mim – confessou. Invadida por um súbito desejo, aproximou-se um pouco mais a ele com os lábios entreabertos. Depois da briga tinha dormido mal. Só em seu quarto desejou seus beijos e o calor do corpo dele contra o seu. Luke retrocedeu sorrindo. – Não pequena, acenderia um fogo que não quer apagar. Levantou-se e pegou de novo a aliança mostrando-se vitorioso. – Mas assim que use este anel no dedo te terei tantas vezes como quero, prometo isso. O quarto que Emma escolheu para Tasia era um dos mais bonitos de Southgate Hall, com uma cama com dossel de seda cor pêssego e grandes borlas douradas. Emma estava deitada sobre o tapete diante de um prato de bolos que


tinha trazido da cozinha e dos quais também se estava aproveitando Sansão. O cão lambia as patas, feliz por sua boa sorte. Tasia, sentada em uma poltrona, estava costurando a manga de uma camisa de homem. Começou a rir ao ver o focinho coberto de açúcar de Sansão. – Acha que é bom que lhe dê tantas guloseimas? – perguntou – não acredito que o seja, nem para ele nem para ti tampouco. – Sempre tenho fome, quanto mais cresço mais fome tenho – suspirou Emma cruzando suas magras pernas – às vezes acredito que nunca terminarei de crescer. Espero que o estrangeiro com o qual vou me casar seja muito alto. Deve ser horrível que alguém seja mais alta que seu marido. Para ti será perfeito independentemente de sua altura – disse Tasia. Emma começou a folhear uma revista feminina comentando as imagens da moda do próximo outono. – O verde escuro vai fazer furor este ano – disse mostrando a revista a Tasia para que o visse – tem que ter um vestido como este, com o decote baixo e as fitas nos punhos. E umas botas de cano longo da mesma cor. – Não acredito que essa cor fique bem. – Sim! – protestou Emma – Além disso, qualquer cor ficaria bem em você depois de tanto negro e cinza. Tasia riu. – Eu gosto muito de rosa – disse sonhadora – um rosa muito pálido, quase branco. Não há nada mais bonito que as rosas pérolas. A jovenzinha virou as folhas rapidamente. – Vi algo no final…Um vestido de noite que seria fantástico… De repente se interrompeu olhando para Tasia entrecerrando os olhos. – O que acontece? – perguntou esta. – Só pensava…Como vou chamá-la a partir de agora? Miss Billings é impossível. Milady é muito formal. Não tem idade para ser minha mãe e não acredito que pudesse chamá-la mamãe não? Tasia, enternecida, deixou seu trabalho. – Não – disse suavemente – Sua mãe é Mary e sempre o será embora esteja no


Céu. Seu pai nunca a esquecerá e você tampouco. Eu serei a nova esposa de seu pai, mas nunca a substituirei, ela conservará seu lugar do mesmo modo que eu terei o meu próprio. Emma assentiu com a cabeça, tranquilizada, e se aproximou da poltrona de Tasia. – Às vezes, quando estou sozinha, digo a mim mesma que ela está me olhando escondida atrás de uma nuvem. Acredita que possa nos ver dali de cima? – Sim – respondeu Tasia séria – se o Paraíso for realmente um lugar de felicidade e paz, realmente é possível. Sua mãe seria muito infeliz se não pudesse ver por ela mesma que estas bem. – Ela sabe que você esta aqui e está muito contente miss Billings, estou segura. Possivelmente inclusive foi ela quem a ajudou a nos encontrar. Não gostaria que papai ficasse sozinho. Tasia se virou e Emma exclamou preocupada: Miss Billings! Zanguei-a? Tasia esboçou um trêmulo sorriso. – Não, só me emocionaste – disse antes de depositar um beijo no avermelhado cabelo da menina – Tenho que te dizer uma coisa Emma…não me chamo miss Billings. – Sei, chama-se Tasia. – Como sabe? – se espantou Tasia. – A outra noite, depois do jantar, papai a chamou assim quando eu saia. E não me surpreendeu porque sempre pensei que era algo mais que uma professora. Agora já pode me dizer a verdade Quem é você? Tasia sorriu ao ver os olhos azuis da menina cheios de curiosidade. – Meu verdadeiro nome é Anastásia Kaptereva. Nasci na Rússia e tive que abandonar meu país para me esconder na Inglaterra porque estava envolvida em um assunto ruim. – Fez alguma coisa errada? – perguntou Emma com incredulidade. – Não sei. Por muito estranho que possa parecer não recordo muito e prefiro não te dizer mais nada. Simplesmente deve saber que foi uma época de minha


vida espantosa, mas seu pai me convenceu para que a esqueça. Emma a pegou pela mão. – Posso ajudá-la? – Já o faz – disse Tasia apertando afetuosamente a mão da menina – Você e seu pai me deram as boas-vindas em sua família e isso foi o melhor que podia ter me acontecido. – Sigo sem saber como devo chamá-la – disse Emma com entusiasmo. – Por que não me chama “belle mamam” em francês? – sugeriu Tasia – “Belle” quer dizer bonita verdade? Então o farei, é um nome perfeito.

– Se tivéssemos tido tempo para te fazer um verdadeiro vestido de noiva! – gemeu Alicia ajudando Tasia – deveria usar um traje novo e não um velho dos meus. Tinham arrumado um vestido de cor marfim de Alicia, mas o resultado não ficou muito bom. – Ao menos te casará de branco – acrescentou. Em meu caso o branco é discutível – disse Tasia – deveria usar vermelho. Um escarlate como as mulheres alegres. – Prefiro ignorar esse comentário. Alicia estava pondo rosas no penteado de sua prima. – Não se sinta culpada por haver…né…tido um deslize com o Luke querida. A maioria das mulheres teriam feito o mesmo no fim de cinco minutos estando com ele. É um homem irresistível…a menos que alguém esteja casada com o Charles, evidentemente. Alicia fez que não viu que Tasia se ruborizava e continuou com tom leve: – É curioso, a primeira vez que lhe vi eu não gostei dele. – Não? – Tasia se surpreendeu. – Suponho que estava ciumenta da admiração sem limites que Charles sentia por ele. Em seu círculo de amizades, todos diziam coisas boas do Luke e


contavam suas últimas anedotas. Nenhum desses cavalheiros fazia nada sem perguntar a Luke sua opinião, inclusive se, se tratava de cortejar uma mulher. Quando lhe conheci pensei: “É um homem mimado e egocêntrico, Por Deus o que todos veem nele?” Tasia riu. – E que te fez mudar de opinião? – Percebi que era um marido maravilhoso. Realmente notável. Com a Mary, Luke se mostrava atento e carinhoso, uma atitude que os homens não gostam de ter por medo de que lhes faça parecer fracos ante seus amigos. E nunca olhava para outra mulher apesar de que muitas delas teriam se jogado a seu pescoço de boa vontade. Além disso, acabei por descobrir também sua fortaleza de caráter sob a aparente arrogância. Logo ocorreu o acidente… Alicia moveu a cabeça ao recordar o infeliz acontecimento. – Perder Mary e ver-se mutilado seria suficiente para converter-se em alguém amargurado que se compadecia de si mesmo. Isso era o que Charles temia quando foi lhe ver pela primeira vez depois da desgraça “Stokehurst nunca será o mesmo” me disse antes de sair. Mas Luke pelo contrário ficou mais forte. Confessou ao Charles que não tinha intenções de perder o tempo tendo piedade de si mesmo e que tampouco queria a compaixão de ninguém. Honraria a memória da Mary dando a Emma uma infância feliz e lhe ensinando que os defeitos físicos não são importantes que só importa o interior das pessoas. Charles voltou para casa com lágrimas nos olhos e dizendo que admirava Luke mais que ninguém neste mundo. – Por que está me contando tudo isto? – perguntou Tasia com a voz trêmula pela emoção. – Evidentemente para te dizer que aprovo o que fez querida, nunca te arrependerá de ter se casado com Luke. Incômoda, Tasia se voltou para ver seu penteado no espelho evitando olhar seus próprios olhos cheios de lágrimas. – Durante muito tempo só pude pensar nos Angelovsky e no terrível crime que possivelmente cometi. Não sei o que sinto por lorde Stokehurst, mas sei que confio nele mais que em nenhuma outra pessoa. – Esse é um bom começo. Alicia retrocedeu para ver melhor a Tasia.


– Encantadora! – disse. Tasia tocou seu penteado. – Quantas rosas há? – Quatro. – Pode acrescentar mais uma? – Temo que não há lugar. – Então tira uma por favor, só posso levar três ou cinco. – Por quê? Ah sim! Como pude esquecer? Alicia sorriu ao recordar o costume russo. – Um número ímpar de flores para os vivos e um número par para os mortos. Olhou o enorme ramo que Tasia ia levar até a capela. – Quer que conte também estas flores? Tasia sorriu agarrando o ramo – Já não há tempo. Suponhamos que o número é o correto. – Graças a Deus! – exclamou Alicia de todo coração. Apesar da solenidade do momento Tasia teve vontade de rir ao ver Sansão esperando pacientemente na porta da capela, tinham-no amarrado a um dos bancos do final para que não incomodasse durante a cerimônia e olhava ao reduzido grupo reunido em torno do altar com uma dignidade completamente inesperada. Sem dúvida estava contagiado pelo ambiente acolhedor já que só se movia de vez em quando para tentar livrar-se da grinalda de flores brancas que Emma lhe tinha posto no pescoço. A pequena capela cheirava a mofo, mas a luz dos candelabros fazia com que a pedra e a escura madeira brilhassem suavemente os rostos das estátuas dos Santos. Tasia se sentia estranhamente relaxada enquanto, de pé ao lado de Luke com os Ashbourne a sua esquerda e Emma a sua direita, repetia os votos com uma voz que não parecia a sua. Parecia singela e intima comparada com a interminável celebração que teria


tido que suportar em São Petersburgo. Se tivesse se casado com Mikhail Angelovsky, o teria feito diante de milhares de convidados e um bispo ortodoxo teria presidido a cerimônia. Teria usado um vestido de brocado branco, peles e uma coroa de prata combinando com a coroa de ouro de Mikhail. Teria havido uma procissão diante do altar e os Angelovsky teriam exigido que Mikhail levasse o símbolo tradicional da autoridade matrimonial: um látego de prata. Teria se visto obrigada a ajoelhar-se para beijar a barra do traje de cerimônia de seu futuro marido como último gesto de submissão. Mas tudo isso tinha ficado para trás junto com um rastro de sangue e de mentiras. Agora estava longe de sua pátria trocando promessas de matrimônio com um estranho. Luke a tinha firmemente agarrada pela mão enquanto pronunciava as palavras que os uniriam até que a morte os separasse, e quando ela levantou a cabeça e olhou seus olhos tão azuis, voltou para a realidade. Os últimos vínculos com o passado se romperam totalmente quando notou a aliança no dedo. Sentiu-se assaltada pelo pânico justo antes que Luke pusesse sua boca na dela em um beijo duro e breve. A partir de agora é minha queria dizer. Agora e para sempre. Nada poderá nos separar nunca. Quando lorde e lady Stokehurst fizeram sua aparição, os criados lhes aclamaram. Luke lhes tinha dado o dia seguinte livre e tinha proporcionado vinho e comida para uma noite inteira de festa. A gente do povo veio com seus instrumentos musicais para participar da festa e todos foram felicitar os recémcasados com uma sinceridade que emocionou a Tasia. – Que Deus a abençoe milady – gritavam as donzelas – que Deus abençoe a você e a milorde. – Nunca tinha visto uma noiva mais encantadora – exclamou Mrs. Plunkett com lágrimas nos olhos. – É um dia feliz para Southgate Hall – acrescentou Mrs. Knaggs. O primeiro brinde foi feito pelo senhor Orrie Shipton, o prefeito do povoado. Levantou seu copo completamente corado e dando-se importância. – Pela marquesa de Stokehurst! Que sua doçura e gentileza embelezem esta casa por muitos anos e que encha Southgate Hall de herdeiros.


Para regozijo dos pressente, Luke se inclinou para beijar a sua ruborizada esposa. Ninguém ouviu o que lhe murmurou no ouvido, mas suas bochechas avermelharam ainda mais. Tasia não demorou a retirar-se acompanhada de Mrs. Knaggs e lady Ashbourne enquanto Luke ficava perto de sua gente ao lado de um Charles tão radiante como se fosse o responsável por esse matrimônio. – Sabia que faria o correto – disse a seu amigo em voz baixa enquanto estreitava calorosamente sua mão – sabia que não podia ser o canalha sem escrúpulos que dizia Alicia. De fato te defendi acaloradamente quando te chamou porco pretensioso e lhe disse que estava exagerando. Quando disse que foi um arrogante sem coração lhe disse simplesmente que isso era falso. E quando começou a falar de sua cabeça torcida, de seu egoísmo… – Obrigado Charles – cortou Luke com bom humor – É muito agradável ter um defensor de seu calibre. – Deus Stokehurst, que dia mais bonito! – exclamou Charles assinalando a alegre reunião – Quem teria imaginado no dia em que lhe apresentei Tasia que ocorreria algo assim? Quem diria que Emma lhe teria tanto carinho e que você mesmo se apaixonaria por ela? Devo te dizer que me felicito por… – Nunca te disse que estou apaixonado por ela – disse Luke levantando uma sobrancelha. – Temo que seja evidente amigo. Conhecendo o que opina do matrimônio não teria te casado se não a amasse. E não tinha te visto feliz assim desde o colégio. Charles riu. – Mas eu não gostaria de estar em seu lugar quando a apresentar em Londres. Custara-te muito manter os homens separados de sua mulher. Pergunto-me com quem terá mais problemas se com os jovens dandys ou com os velhos sedutores. Tasia possui uma espécie de mistério que falta à maioria das inglesas e sua pálida pele e seu cabelo negro… – Sim – cortou Luke sombrio. Charles tinha razão, a juventude de Tasia e sua exótica beleza faziam dela o sonho de muitos homens, Luke estava ciumento e era um sentimento muito desagradável. Recordou o fácil e cômodo que era com Mary, nada de tombos no coração nem nada de ciúmes, só a cumplicidade de dois velhos amigos.


Charles lhe olhou de forma penetrante. – É muito diferente não? – perguntou com essa franqueza um pouco brusca que gostava de mostrar nos momentos importantes – confesso que eu não saberia como me comportar se tivesse que começar de novo sobre tudo com uma esposa tão jovem. Tasia não tem nem ideia do que viveste, e, entretanto, ver o mundo através de seus olhos deve ser como vê-lo de novo pela primeira vez. E te invejo por isso. Como se diz “a juventude nos traz o amor e as rosas e a velhice deixa os amigos e o vinho” Charles levantou seu copo. – Um bom conselho – continuou – aproveite desta segunda juventude Stokehurst, e me deixe com o prazer do vinho. A luz era suave quando Luke entrou no quarto onde lhe esperava Tasia, vestida só com uma camisola debruada com renda e o cabelo caindo como uma nuvem frisada sobre suas costas. Era tão linda, tão jovem, tão inocente! Luke viu o brilho do ouro em seu dedo e o que esse anel significava lhe emocionou. Nunca tinha desejado tanto fazer amor com uma mulher e nem se sentido tão feliz. A imensa felicidade que sentia, proporcionava ao mesmo tempo a estranha sensação de ser vulnerável, humilde e humano. – Parece um anjo vestida de branco, lady Stokehurst – disse abraçando-a. – Alicia me ajudou – respondeu ela lhe olhando com seus luminosos olhos de gato. – Encantador – murmurou ele. Ela parecia preocupada. – Tenho algo importante para lhe dizer milorde. – Sim? Luke estava brincando com as longas mechas enquanto esperava que ela continuasse. Tasia lhe pôs uma mão no peito. – Sabia que esta noite compartilharíamos seu quarto, mas devo te dizer às instruções que dei a Mrs. Knaggs: a partir de manhã eu gostaria que tivéssemos quartos separados. Luke levantou as sobrancelhas, a ideia lhe parecia absurda.


– Não me casei contigo para dormir sozinho – replicou. – É obvio, pode me visitar quando quiser – continuou ela com um sorriso dúbio, pois seus pais o faziam assim e os Ashbourne também. É mais adequado e Alicia afirma que na Inglaterra é muito frequente. Luke a olhava em silêncio, evidentemente muitos contratos matrimonial e muitas revistas femininas recomendava ter quartos separados, mas Luke pouco se importava como viviam os outros. No que concernia a ele, que lhe condenassem se passava uma só minuto de suas noites separado de Tasia com a desculpa de levar uma forma de vida “adequada”. Apertou-a um pouco mais forte contra ele. – Desejarei-te todas as noites Tasia, e eu não gosto muito da ideia de “visitar” minha esposa. Não acha que é mais fácil compartilhar o mesmo quarto? – Não se trata de que seja mais fácil – disse ela rapidamente – se compartilharmos o quarto todos saberão que dormimos na mesma cama. – Que horror! – exclamou ele fingindo estar escandalizado. Levantou-a, levou-a até a cama e a deixou cair em meio da colcha de seda cor marfim. Tasia estava contrariada pela expressão zombadora dele. – Estou falando de decência. – Escuto-te. Isso não era de tudo certo já que ele estava brincando com seu corpo e ela começou a balbuciar sem saber muito bem o que queria lhe dizer. Quando a boca de Luke encontrou a ponta de seu peito através da renda, sobressaltou-se e emudeceu. – Continue – disse ele lhe tirando a camisola – Me dizia algo sobre a decência. Ela se limitou a gemer suavemente lhe atraindo para ela e esquecendo qualquer pensamento sobre quartos separados quando ele lhe demonstrou sem palavras porque só necessitariam uma cama. Tasia tinha se casado com Luke com a esperança de encontrar a paz que lhe faltava há mais de um ano e só desejava uma vida tranquila e aprazível. Logo descobriu que seu marido tinha outras ideias na cabeça, começou a falar de levá-


la a Londres embora ela protestasse ante a ideia de deixar Emma. – Meus pais virão para casa – disse Luke deitado na cama enquanto olhava Tasia escovar a longa cabeleira – Minha filha entende perfeitamente que precisamos estar sozinhos um tempo para nos acostumar um com o outro. Além disso, adora atormentar a minha mãe. – Fará tolices – advertiu Tasia intranquila por ter que deixar uma adolescente aos cuidados dos criados e seus avós anciões. Luke lhe sorriu através do espelho. – Nós também. Tasia adorou a mansão londrina dos Stokehurst, uma vila de estilo italiano a beira do Tâmisa com três torres bicudas e pitorescas galerias cobertas. O proprietário anterior gostava tanto do som da água que tinha posto fontes e estátuas em muitas dependências. – Parece que está desabitada – Notou Tasia indo de quarto em quarto. Apesar de sua elegância, faltava a casa esses enfeites e pequenos detalhes que teriam lhe dado personalidade própria. – Ninguém saberia quem é o dono – continuou. – Comprei-a quando a outra foi destruída no incêndio – explicou Luke – Emma e eu vivemos aqui um tempo, teria que ter contratado alguém para que a decorasse. – Por que não viviam em Southgate Hall? – Muitas lembranças – respondeu ele encolhendo os ombros – pela noite despertava esperando… – Encontrar Mary a seu lado? – perguntou ela ao ver que ele não terminava a frase. Luke se deteve na metade do saguão circular com chão de mármore e fez com que Tasia se virasse. – Você se incomoda quando falo dela? Tasia afastou uma mecha de cabelo da testa de seu marido e sorriu com ternura.


– É obvio que não. Mary forma parte de seu passado e eu sou feliz sendo a que dorme a seu lado cada noite. Os azuis olhos dele estavam escurecidos e sua expressão era indecifrável quando a pegou pelo queixo. – Farei-te muito feliz. – Sou… – começou Tasia. – Não o bastante. Ainda não. Passou as duas primeiras semanas levando-a para ver Londres, dos lugares da ocupação romana até o Mayfair, Westminster e St James. Montaram em magníficos puros sangues nos belos caminhos do Hyde Park, percorreram Covent Garden e seu mercado coberto e se detiveram para ver um espetáculo de teatro de fantoches. Tasia sorriu ao ver as duas marionetes dando-se golpes com uma bengala, mas não chegou a compartilhar a buliçosa alegria do resto dos espectadores. Decididamente os ingleses tinham um curioso senso de humor, já que se divertiam com estúpidas manifestações de violência que pareciam estar nas antípodas de seu temperamento civilizado. Já que o espetáculo a aborrecia, puxou a manga de Luke para lhe levar para as barracas de flores e de brinquedos. – Parece como se estivéssemos no Gostinny Dvor – exclamou antes de rir ao ver a expressão confundida de Luke – É uma espécie de mercado que há em São Petersburgo onde as barracas ficam em filas iguais aqui. Este lugar se parece muito, salvo que em Londres não há vendedores de imagens. Luke sorriu, evidentemente Tasia pensava que um mercado onde não se vendiam imagens não merecia a pena – Necessita mais imagens? – perguntou – Nunca são suficientes. Traz sorte. Algumas pessoas levam uma sempre no bolso. Eu gostaria que você tivesse uma – anunciou séria – nunca se tem suficiente sorte. – É você quem me traz sorte – disse ele agarrando a pequena mão na sua. Foram a um alfaiate de Regent Street, o senhor Maitland, e Tasia gostou muito de seus modelos de linhas simples e puras. Os babados e as fitas não lhe agradaram muito. Custou muito conter sua excitação quando se viu sentada em


uma cadeira dourada diante de uma mesa coberta de desenhos de moda e de amostras de tecidos. – Antes eu sempre tinha vestidos franceses – disse provocando sem querer uma virulenta resposta. – Os alfaiates franceses! – exclamou o senhor Maitland com um gesto de profundo desprezo procurando alguns desenhos que mostrou a Tasia – recortam as saias, aumentam os decotes, acrescentam alguns enfeites, colocam tudo em um tecido de cor magenta bem forte…e apesar disso milhares de inglesas sonham vestindo-se em Paris! Mas você lady Stokehurst será a elegância personificada com os vestidos que nós criaremos para você. Não quererá nunca mais ter vestidos franceses. Inclinou-se, radiante, para ela com gesto conspirador. – Estará tão deslumbrante que lorde Stokehurst nem sequer olhará o preço. Tasia olhou de esguelha para seu marido o qual estava sentado em uma confortável poltrona enquanto duas jovens vendedoras se ocupavam de sua comodidade. Alguém lhe levou um café enquanto a outra o movia cuidadosamente até desfazer todo o açúcar. Irritada ao ver as duas mulheres dando voltas ao redor de Luke, Tasia lhe olhou franzindo o cenho e ele respondeu encolhendo os ombros com inocência. Tasia tinha notado que as mulheres se sentiam atraídas pela beleza sombria de seu marido. No transcurso de uma pequena recepção que deram os Ashbourne, assim que passavam perto de Luke lhe lançavam olhadas atrevidas. Ao princípio isso divertiu Tasia, mas não demorou a ferver por dentro. Não importava que Luke não fizesse nada para animá-las, de todas as formas odiava ver todas essas damas dando voltas ao redor de seu marido. Dava vontade de ir atrás dela para afastá-las. Alicia se aproximou e lhe pôs amigavelmente um braço nos ombros. – Está fuzilando meus convidados com o olhar Tasia. Te convidei para que faça amigos, mas essa não é a melhor forma de consegui-lo. – Estão tentando roubar meu marido – respondeu Tasia zangada. – Talvez, mas elas tiveram sua oportunidade durante anos e ele não se fixou nelas. Não acha que ele não se dá conta de sua reação, prima. Luke é perfeitamente capaz de se divertir com seu ciúme.


– Ciúme! – repetiu Tasia indignada e sinceramente surpreendida – eu não estou… Interrompeu-se ao dar-se conta de que a cólera que a invadia tinha sido precisamente provocada pelos ciúmes. Pela primeira vez se deu conta de que Luke lhe pertencia e passou o resto da noite grudada nele, dirigindo às mulheres que tinham a coragem de simplesmente olhar em sua direção, um frio gesto com a cabeça. Ao recordar esse episódio decidiu que já era hora de que usasse uns vestidos tão espetaculares que Luke não poderia separar o olhar dela. Apoiou a mão no braço do senhor Maitland que estava lhe mostrando mais desenhos. – Tudo é precioso – disse – o senhor tem muito talento. O alfaiate avermelhou de prazer, fascinado pelos olhos de gato de sua nova cliente. – Sentiria-me muito honrado se pudesse fazer justiça a sua beleza lady Stokehurst. – Não quero me parecer com ninguém senhor Maitland. Eu gostaria que criasse um estilo só para mim. Algo um pouco mais exótico que o que acaba de me mostrar. Entusiasmado com essa ideia, o senhor Maitland pediu a uma empregada que lhe trouxesse um caderno de desenho sem usar. Passaram um momento discutindo os detalhes enquanto bebiam chá e Luke não demorou a se cansar do ambiente da loja e das fastidiosas descrições de tecidos e modelos. Puxou Tasia à parte. – Incomodaria-te que te deixasse aqui um momento? – Absolutamente. Ainda demoraremos horas. – Não terá medo? Tasia se emocionou com sua preocupação, sabia o quanto ela temia que Nicolas a encontrasse, de modo que cuidava para não deixá-la nunca só em público. Sua casa estava cuidadosamente protegida com cercas e correntes, e os criados tinham recebido instruções com respeito a qualquer desconhecido que se aproximasse da mansão. Quando Tasia desejava sair a acompanhavam dois


lacaios e um chofer armado. E, além disso, continuava fazendo-se passar por Miss Karen Billings. Além de Emma e os Ashbourne, todo mundo acreditava que era uma professora que tinha tido a grande sorte de casar-se com um Stokehurst. Com estas precauções Tasia já não tinha nenhuma razão para preocupar-se com o Nicolas Angelovsky...entretanto seu medo secreto seguia estando aí. Sorriu a Luke. – Aqui estou segura, vá e não se preocupe comigo. Seu marido lhe deu um beijo na testa. Quando Tasia e o alfaiate chegaram ao fim, vários modelos estavam tampados por uma montanha de seda, veludo, merino e popelina. O senhor Maitland olhava para Tasia com uma admiração não dissimulada. – Quando usar estes trajes, lady Stokehurst, estou convencido de que todas as mulheres de Londres quererão imitá-la. Tasia sorriu enquanto ele a ajudava a levantar-se. Fazia tanto tempo que não tinha bonitos vestidos! De boa vontade teria queimado o que usava nesse momento. – Senhor Maitland – perguntou – você teria por acaso um vestido de dia já feito que pudesse me vender? Ele pensou um momento. – Devo ter uma saia e uma blusa – disse por fim. – Estaria muito agradecida. Uma das ajudantes, uma miúda loira chamada Gaby, acompanhou Tasia a um quarto forrado de espelhos que multiplicavam sua imagem até o infinito, e lhe trouxe uma saia vermelho escuro, uma blusa de pescoço alto e uma séries de rendas junto com uma jaqueta longa de cor marfim. Tasia, encantada, acariciou os delicados bordados de flores rosa e folhas verdes que enfeitavam os punhos. – É linda! – exclamou. Gaby a olhava com admiração. – Poucas mulheres podem permitir-se este modelo. Teria que ser muito magra. Entretanto a saia é muito grande. Se tiver um minuto milady, a estreitarei


em um minuto. Deixou-a sozinha para que se despisse e fechou a porta ao sair. Tasia começou a girar sobre si mesma, feliz ao notar o pesado tecido movendo-se em torno de suas pernas. O conjunto, refletido pelos numerosos espelhos, era ao mesmo tempo elegante e informal, imensamente mais sofisticado que os vestidos de jovenzinha que usava na Rússia. Não pôde evitar pensar o que diria Luke ao vê-la e soltou uma alegre gargalhada. Deteve-se no meio da sala para acariciar a seda da jaqueta com um gesto muito feminino quando uma sombra se moveu atrás dela. Invadiu-a um suor frio, ali estava ela, rodeada de vermelho e marfim e de centenas de olhos assustados. Seus olhos. Em meio desta imagem, uma sombra aparecia e desaparecia aproximando-se. Não podia ser real, mas, entretanto tinha muito medo. Os ouvidos lhe apitavam, estava paralisada, agarrada na armadilha do caleidoscópio formado pelos espelhos enquanto se esforçava em vão por respirar, tomar ar…ar… Alguém a agarrou pelo cotovelo e a obrigou a vira-se para encontrar-se frente a Mikhail Angelovsky com seu rito de morte e seus olhos amarelos. O sangue lhe caía pela garganta enquanto seus lábios pronunciavam seu nome: – Tasia… Deu um grito e tentou soltar-se. Havia uma terceira pessoa na estadia, formavam um trio macabro em meio de todo esse vermelho, o sangue e o ouro da decoração, e a cena se repetia até o infinito nos espelhos. Tasia cobriu a cara com as mãos. – Não – gemeu – Fora, saia. – Tasia, me olhe. Era a voz de Luke, levantou seus olhos para ele tremendo enquanto o assobio de seus ouvidos se desvanecia. Luke a abraçava, muito pálido sob o bronzeado e seus olhos mais azuis que nunca. Ela não se atrevia a deixar de lhe olhar por temor que desaparecesse e Mika ocupasse seu lugar. Estava ficando louca, tinha confundido seu marido com um fantasma. De repente lhe pareceu uma ideia tão absurda que começou a rir. Luke não compartilhava seu regozijo e seguia olhando-a com uma seriedade


que lhe fez entender quão desequilibrada devia parecer. Por fim conseguiu acalmar-se e secou os olhos. – Estava me recordando de Mikhail – disse com uma voz um pouco rouca – tinha voltado. Vi-o. Tinha uma adaga enterrada na garganta e saía sangue, não queria ir-se, segurava-me, e… Luke tentou aproximá-la, mas ela resistiu. – Havia outro homem na sala – continuou ela – havia outra pessoa, não o tinha recordado até agora. Luke a observava com intensidade. – Quem? Um criado? Um amigo de Mikhail? Ela negou com a cabeça. – Não sei quem era, mas estava ali. Estou segura de que tinha algo a ver. Interrompeu-se quando a porta se abriu para entrar a uma Gaby preocupada. – Milady? Pareceu-me que gritava. – Temo que assustei a minha esposa. Por favor, nos deixe a sós por um momento. – Certamente milorde – respondeu a jovem antes de retirar-se murmurando uma desculpa. – Recorda como era esse homem? – perguntou Luke. – Não. Tasia mordeu os lábios tentando tranquilizar-se. – Não quero pensar nele. – Era jovem ou velho? Loiro ou moreno? Tenta recordá-lo. Tasia fechou os olhos e tentou ver a imagem em sua mente. – Mais velho…e alto. Não estou segura do resto. Tinha náuseas e estava gelada até os ossos. – Não, não posso – murmurou. – Está bem – disse Luke agarrando-a em seus braços – não tenha medo. Seja qual for à verdade, não pode te machucar.


– Se for culpada… – Pouco me importa o que tenha feito. – A mim não! – protestou ela com o nariz colado ao colete de seu marido – Sempre me importarei. Não poderia viver sabendo… – Schh. Algum dia recordará com todos os detalhes o que aconteceu nessa sala com o Angelovsky, e então se sentirá livre. Eu estarei ao seu lado para te ajudar. – Mas não poderá impedir que Nicolas… – Eu me encarregarei do Nicolas. Tudo ficará bem. Tasia tentou lhe dizer que isso era impossível, que não o conseguiria, mas ele a fez calar com um beijo. Rendeu-se se deixando cair contra ele com os braços ao redor de seu pescoço, aferrando-se ao prazer de seu abraço. Quando levantou por fim a cabeça, ela notou o desejo dominando a. Abriu os olhos e viu nos do Luke a mesma emoção. – Eu gostaria de sair daqui – disse com voz insegura – todos estes espelhos… – Você não gosta dos espelhos? – Não quando há tantos. Luke fez uma careta de diversão. – A mim em troca eu gosto de ver vinte Tasia de uma vez. Ao ver que ela estava cansada ficou sério. – Voltemos para casa – disse ele. Sim, ela tinha vontade de estar em uma sala escura, se meter na cama e tampar a cabeça com os lençóis, não pensar nem sentir. Não, não deixaria que a macabra visão do Mikhail, nem a culpa, nem o medo, nem a loucura, dominassem-na. – Eu gostaria de seguir com as compras – disse. – Parece-me que já é suficiente por hoje. – Prometeu me levar ao Harrods, lembra? – protestou Tasia com expressão zangada para lhe convencer. Certamente, ele foi incapaz de negar-se. – Como queira.


Ela recuperou seu ânimo ante a quantidade de coisas luxuosas que havia na grande loja. Cada vez que se detinha diante de alguma coisa (um relógio, uma bandeja, um sombreiro adornado com plumas de ave do paraíso, uma bombonera que Emma poderia gostar), Luke pedia a um vendedor que o envolvesse e o levasse a carruagem. Tasia acabou por dizer que não quando ele quis lhe comprar mais um presente. – Já compramos muitas coisas. – Nunca pensei que às ricas herdeiras tinham medo de gastar muito – disse Luke divertido por sua cautela. – Nunca comprava nada para mim sem a permissão de minha mãe, horrorizava andar pela rua, dizia que lhe machucava os pés. Os vendedores e os joalheiros vinham ao palácio para lhe oferecer suas criações. Esta é a primeira vez que vou às compras com liberdade. – Gaste tanto como queira, meu amor – murmurou Luke – Terá que te esforçar muito para me custar tanto como uma amante. – Milorde! – sussurrou ela seria esperando que ninguém lhe tivesse ouvido. – Não sabe o valor que tem sua presença em minha cama. Se eu estivesse em seu lugar aproveitaria tudo o que pudesse. Ela estava dividida entre a necessidade de pôr um ponto final a esta conversa indecente e a vontade de prolongá-la. – Por que quis te casar comigo em vez de me converter em seu amante? – perguntou ela indecisa. A voz de Luke ficou mais grave. – Quer que voltemos para casa para que lhe mostre isso? Tasia ficou muda. De repente só podia pensar em estar na cama com ele, em sentir sua boca na pele, inundar-se nas maravilhosas sensações que ele despertava nela com tanta facilidade. Ele leu a resposta em seu olhar e se virou para o desventurado vendedor que se afastou uns passos deles. – Isso será tudo por hoje – disse – Lady Stokehurst está um pouco cansada.


Embora não tivesse experiência com os homens, Tasia sabia que seu marido era um magnífico amante, nunca fazia amor duas vezes do mesmo modo, sabia mostrar-se paciente, deixá-la louca de desejo e fazê-la suplicar. Outras vezes sussurrava como um menino e Tasia se afogava de risada. Assombrava-a forma como a excitava, a ela, que tinha sido uma menina sensata e bem educada. Luke fazia esquecer das inibições obrigando-a a responder de um modo que roçava os limites da indecência. Tasia teria preferido lhe amar de forma mais tranquila e tentava dominar seus sentimentos, mas estes se transbordavam. O cuidado com que a tratava, suas longas conversas, os sorrisos, tudo, enjoava-a como se fosse uma droga. E ele pedia muito pouco em troca. Ela se reprovava frequentemente por não lhe dizer que lhe amava, mas as palavras não lhe saíam, não podia entregar-se totalmente, encolhia-se de medo por razões que não sabia explicar. – Nunca tinham me mimado tanto – disse uma tarde enquanto descansavam no jardim privado da casa – não deveria te deixar fazer, seguro que não esta certo. Protegeram-se do calor do verão atrás de uma sebe, rodeados do aroma da madressilva e das rosas, Tasia acariciava com uma flor a mandíbula de Luke que tinha a cabeça apoiada em seus joelhos. – Até agora parece que te fez bem – disse ele – está mais linda que nunca. Tasia lhe deu um beijo no nariz. – É graças a ti. – De verdade? Deram-se um longo beijo e em seguida ela disse: – Os russos têm uma palavra para assinalar a chegada da primavera: Ottepel. Significa despertar. Assim é como me sinto. – Ensina-me o que despertei em ti? – perguntou Luke com os olhos brilhantes. – Não! – protestou ela brincalhona. – Quero sabê-lo! Fez-a rodar sobre a grama e se deitou em cima dela, ignorando seus gritos de


indignação. Nas três semanas que levavam em Londres, Luke tinha visto mil imagens de Tasia, mas nenhuma tão encantadora como a que via nesse momento, com ela tentando soltar-se com uma energia completamente desconhecida. Luke gostava mais de vê-la assim, mais forte, e embora tivesse perdido um pouco de sua graça etérea, em troca sua figura se tornou mais voluptuosa. A saia lhe subiu por cima do joelho quando ficou escarranchado sobre ele, triunfante. Ele se moveu levemente para lhe recordar que tinha ganhado porque o tinha querido. – Tenho que te pedir algo – disse ela. – Me diga. – Me prometa que me escutará até o final antes de te negar. – Fala! – grunhiu com impaciência fingida. Tasia respirou fundo antes de falar. – Quero escrever para minha mãe – disse muito depressa – Tem que saber que estou bem, tanto para minha tranquilidade como para a sua. Sei que esta preocupada e isso é ruim para sua saúde. Além disso, me lembro dela todos os dias. Não lhe direi nada que possa me descobrir, nem nomes de pessoas nem de lugares, mas preciso fazê-lo. Tem que entendê-lo. Luke se manteve em silêncio um momento. – Entendo-o. Os olhos de Tasia brilharam de alegria. – Então posso? – Não. Tasia se levantou de um salto e lhe olhou com determinação e teimosia. – A verdade é que não estava te pedindo permissão, só queria ser cortês, mas não é você quem decide. Trata-se de minha mãe e de minha segurança. – Mas você é minha mulher. – Sempre decidi sozinha os riscos que podia correr e agora você quer me privar de algo que necessito desesperadamente? – Sabe perfeitamente o que penso disso.


– Mas podemos confiar em minha mãe, não o dirá a ninguém! – Está segura? Então porque não lhe disse que não ia morrer de verdade? Por que Kirill insistiu em que não o dissesse? Tasia lhe olhava zangada, mas não podia discutir esse ponto. Entretanto essa limitação de sua independência a punha furiosa. Tinha que estabelecer um vínculo com seu passado, por frágil que fosse. Às vezes lhe dava a impressão de que não existia, separada assim de tudo o que tinha conhecido e sido, como se a antiga Tasia tivesse morrido. Ninguém podia entender seu mal-estar, a mescla de felicidade e de dor que lhe rasgavam o coração. E se seu marido não entendia de todas as formas se comportava de forma intratável. – Não poderá me impedir que faça o que queira! – rebelou-se – a menos que tenha a intenção de me vigiar a cada minuto do dia. – Efetivamente, não penso te impor os guarda-costas – concedeu ele – Não sou um tirano, sou seu marido, e como tal tenho o direito, e o dever, de te proteger. Tasia soube antes de falar, que sua explosão era injusta, mas não pôde conterse. – Farei com que anulem o matrimônio! – gritou. Luke a agarrou pelo pulso e ela se encontrou colada a ele. Ele estava rígido de ira. – Jurou diante de Deus que seria minha esposa – grunhiu entre dentes – isso significa mais que todas as leis do mundo juntas. Seria tão incapaz de quebrar um juramento como de matar a um homem a sangue frio. – Se isso for o que crê então não me conhece! – replicou Tasia com chamas nos olhos. Soltou-se com um gesto brusco e foi se refugiar em seu quarto correndo.


Oito

Não trocaram nenhuma só palavra durante o jantar, ao qual comeram na sala de jantar de mármore com móveis venezianos e cujos tetos estavam pintados com personagens mitológicos. Embora a comida fosse como sempre excelente, Tasia não conseguiu comer quase nada. Habitualmente esse era seu momento preferido do dia. Luke lhe contava onde tinha estado e com quem e pedia a ela que lhe contasse de sua vida na Rússia. Às vezes falavam de coisas importantes e outras brincavam alegremente. Uma noite Tasia passou virtualmente todo o jantar sentada nos joelhos de seu marido lhe ensinando as palavras em russo correspondentes aos bocados que ia pondo na boca. – Iabloko – dizia lhe pondo uma parte de maçã na boca – Gryb, cogumelo e ryba, pescado. Quando ele tentou dizê-lo, ela começou a rir. – Vocês ingleses pronunciam a “r” do fundo da garganta como se estivessem fazendo gargarejos. Diga-o de entre os dentes…”ryba”. Ele tentou obedientemente provocando um novo acesso de risada nela. – Espere, um gole de vinho talvez te solte a língua. Fez beber. – Veio bielayo. E para pronunciar bem o russo tem que cuspir um pouco e pôr a boca em forma de “ou”. Ela tinha tentado lhe colocar os lábios com os dedos e ao final os dois tinham explodido em gargalhadas. – Como se diz “um beijo”? – tinha perguntado ele. – Potzeloui – tinha respondido ela unindo o gesto à palavra. …Tasia teria dado qualquer coisa para que esta noite se desenvolvesse nesse mesmo ambiente descontraído. Já tinham passado várias horas desde sua briga,


era consciente de que tinha sido injusta, e nem sequer sabia que era o que tinha provocado esse acesso de mau humor. Tinha uma desculpa na ponta da língua, mas seu orgulho lhe impedia de dizê-la. Quanto a seu marido, Luke tinha se convertido em um estranho, frio e indiferente ao silêncio que se interpunha entre eles. Tasia se sentia cada vez mais triste, para tentar tranquilizar-se bebeu três copos de vinho seguidos e logo se levantou e se foi ao seu quarto. Depois de dispensar a donzela se despiu deixando cair suas roupas em um montão no chão e se meteu nua na enorme cama um pouco atordoada pelo vinho. Dormiu como uma pedra e mal notou quando Luke se deitou a seu lado a meia-noite. Seus sonhos a meteram em uma nuvem de cor vermelha escura. Estava em uma igreja rodeada de velas acesas e aroma de incenso. Não podia respirar e caiu no chão apertando sua garganta com as mãos e olhando suplicante às fileiras de imagens douradas. Por favor, por favor, me ajudem… Os rostos compassivos dos Santos se esfumaram, puseram-na em uma caixa estreita. Agarrou-se à beirada e tentou levantar-se. Nicolas Angelovsky, inclinado sobre ela, olhava-a com seus olhos amarelos e lhe mostra os dentes em uma careta atroz. “Nunca sairá daí” – vociferou ele antes de fechar de repente a tampa do ataúde. Ouviram-se uma série de golpes quando alguém pregava a madeira. Tasia soluçava, lutava e finalmente encontrou forças para gritar: – Luke! Luke! Ele se inclinou sobre ela e a sacudiu para despertá-la. – Estou aqui – repetia enquanto ela se aferrava com desespero a seu pescoço – Estou aqui, Tasia. – Me ajude… – Tudo vai bem, está a salvo. O pesadelo demorou a desaparecer. Tasia tremia de forma convulsiva, com seu rosto úmido de suor escondido no ombro de seu marido. – Nicolas… – explicou – ele…me prendia em um ataúde e eu não podia sair. Luke a balançava como se fosse uma menina, ela não podia lhe ver na escuridão, mas seus braços eram fortes e tranquilizadores e sua voz em seu ouvido a acalmava. – Só era um sonho. Nicolas está longe e eu estou te abraçando.


– Encontrara-me. Levara-me… – Minha doce menina querida, ninguém te separará de mim. Tasia fez um esforço para conter as lágrimas. – Eu…sinto muito sobre ontem, não sei por que disse todas essas coisas horríveis. – Shh. Já passou. De novo ela explodiu em histéricos soluços. – Vou ficar louca se estes pesadelos continuarem. Me dá medo dormir. Luke seguia abraçando-a com força e lhe murmurava palavras sem sentido só para tranquilizá-la. Ela aspirava seu aroma e podia sentir seus músculos em sua bochecha. – Não me deixe – gemeu ela agarrando-se mais a ele presa de um desejo tão violento que quase lhe dava medo. – Jamais! – prometeu ele antes de beijá-la apaixonadamente. Sem lhe dar tempo para falar, levou-a longe do país dos pesadelos levando-a ao reino do prazer. Acariciou os seios, beijou-os e Tasia, com a cabeça jogada para trás se deixou levar pela onda de sensualidade que a invadia. Finalmente ele a deitou sobre as costas e ela estendeu os braços para ele, desejosa por lhe sentir em seu interior, mas ele beijou seu ventre sem se importar com sua impaciência. Desfrutou de seu corpo enquanto ela gritava seu nome e se abria para ele. Quando esteve à beira do êxtase, ele deixou de brincar e ela gemeu de frustração, mas então ele a penetrou com um forte impulso fazendo-a gritar. Quando o prazer voltou a dominá-La se agarrou a ele com mais força. – Eu te amo – soluçou contra seu pescoço. Esticou-se ao redor dele em um último espasmo de prazer e ele se uniu a ela com uma espécie de grunhido selvagem. Permaneceram unidos, ofegando, até que se tranquilizaram um pouco. – Eu te amo – repetiu ela assim que teve forças para falar de novo – Tinha medo de lhe dizer isso antes… Ele acariciava seu cabelo lentamente.


– E porque me diz isso agora? – Porque não quero seguir vivendo com a angústia. Não deve haver segredos entre nós. Luke tinha os lábios em sua testa e ela notou como sorria. – Nada de segredos – disse ele – Nem mentiras, nem temores…nem passado. – Se tudo se acabasse amanhã – murmurou ela sonolenta – ao menos teríamos tido isso. Seria o bastante. – Uma vida inteira não seria suficiente! Luke a abraçou mais forte, o comprido cabelo dela estendido sobre ele como um lençol de seda, suas pontas misturadas com os seus e seu quente fôlego em seu ombro. Ela era uma mescla de fragilidade e resistência e, embora ele não fosse especialmente cristão, emitiu uma silenciosa prece. Obrigado meu Deus, por têla trazido até mim…Não queria saber o que tinha feito para merecê-la e não queria tentar a sorte. Emma parecia ter crescido mais durante esse mês. Entrou correndo na mansão de Londres com seu cabelo vermelho ondeando como uma bandeira em suas costas e se jogou ao pescoço de Tasia com uma alegre gargalhada. – “Belle mamam”! Senti muito a falta de vocês. – Eu também senti sua falta – exclamou Tasia abraçando-a – Como está Sansão? – Tivemos que lhe deixar no campo – explicou Emma com uma careta – chorava e foram necessários dois criados para impedir que corresse atrás da carruagem. Para… Lançou um gemido tão parecido ao de um cão que Tasia riu. – Mas lhe disse que voltaríamos logo – continuou a menina. – Estudaste muito? – Não, a avó não me obrigava nunca a estudar a menos que a incomodasse muito. Então me dizia “Desaparece e leia um livro grosso inteiro” E o avô passa o tempo visitando os amigos ou beliscando as donzelas pelos cantos. – Meu Deus!


Tasia seguia sorrindo quando se dirigiu à porta da casa onde a duquesa conversava com Luke. A duquesa de Kingston era uma mulher imponente; alta e magra com um belo cabelo prateado e um olhar de águia. Usava um conjunto cinza pérola e Bordeaux com um assombroso chapéu enfeitado com dois pássaros dissecados. – Caçou-os ela mesma – murmurou Emma muito séria. Riu ao ver que Tasia abria os olhos com assombro. Luke estava escutando atentamente sua mãe enquanto esta fazia um relatório detalhado do comportamento de Emma. – Estaria melhor entre animais selvagens que em uma casa civilizada – declarou – afortunadamente tenho muito boa influência sobre ela. Sempre tira proveito do tempo que estamos juntas. Comprovasse que melhorou… – Alegro-me – disse Luke piscando para sua filha que se aproximava dele – Onde esta papai? A duquesa franziu os lábios. – Certamente perseguindo alguém. Lança-se sobre as jovenzinhas como um gato aos pássaros. Deveria te alegrar de que não esteja, do contrário já estaria perseguindo a sua esposa pelos corredores da casa. Luke beijou a bochecha enrugada de sua mãe. – Bastaria lhe amarrar a uma poltrona. – Deveria havê-lo sugerido há anos – replicou a duquesa com um tom de amargura, mas sem rechaçar totalmente a ideia. Levantou a voz voltando-se para Tasia e Emma que estavam esperando prudentemente uns passos mais atrás. – Vim ver que tipo de mulher conseguiu levar meu filho até o altar. Depois de tanto tempo já não me parecia possível. Luke, muito orgulhoso, viu como Tasia se aproximava e saudava com elegância à duquesa. – Sua Graça – disse inclinando-se em uma reverência. A duquesa olhou para seu filho sem esconder sua surpresa, era evidente que não esperava que Luke se casasse com uma mulher tão educada.


Tasia estava especialmente bonita esse dia, com seu cabelo recolhido com umas forquilhas de diamante e um vestido azul que moldava sua magra figura. As únicas joias que usava eram a pesada aliança de ouro e uma cruz no pescoço. Luke tentou vê-la com os olhos de sua mãe. Tasia tinha um aspecto tranquilo que era difícil encontrar fora de um convento e seu olhar era sério como o de um menino rezando. Como podia parecer tão inocente apesar da influência de Luke? Era um mistério. Entretanto a duquesa aprovava a opção de seu filho apesar de que seguia acreditando que Tasia era uma simples professora. – Bem-vinda a nossa família – disse – Apesar de que tenha entrado nela em estranhas circunstâncias. – Sua Graça? – perguntou Tasia fingindo não entender. A duquesa franziu o cenho com impaciência. – Toda a Inglaterra fala de sua misteriosa aparição e de seu precipitado casamento com meu filho. Tão precipitado, que o duque e eu mesma nem sequer fomos convidados. – Preferimos ter uma cerimônia íntima mamãe – cortou Luke. – Isso parece! – respondeu a anciã com tom gelado. Tasia estremeceu ao recordar a reação de Luke quando lhe falou de convidar seus pais à cerimônia. Ele havia dito que a presença deles só contribuiria com incômodos e perguntas indiscretas. Com o leve movimento de Tasia a cruz se deslizou pela corrente atraindo a atenção da duquesa. – Que joia mais original – disse – Posso vê-la? Levantou a corrente para ver melhor a cruz, feita com o estilo de Kiev, com numerosos fios de ouro entrelaçados entre si e com pérolas de ouro entre eles. O centro da cruz era um diamante perfeito rodeado de rubis. – Nunca tinha visto algo assim – disse a duquesa. – Era de minha avó – explicou Tasia – Desde seu batismo até sua morte sempre levou uma cruz no pescoço e esta era sua preferida. Tirou impulsivamente o pendente e agarrando a mão da anciã o depositou nela. – Eu gostaria de lhe dar de presente.


A duquesa estava assombrada. – Não posso te privar de sua herança, minha filha. – O rogo – insistiu Tasia – Você me deu o melhor dos presentes…seu filho. Seria muito feliz se pudesse lhe dar algo em troca. Os olhos da duquesa foram da cruz a seu filho como se sopesasse o valor que tinha cada um. – Talvez algum dia pense que perdeste com a troca – disse com humor – mas aceite o presente. Pode usá-lo. Um sorriso iluminou seu rosto sulcado de rugas. – Aprovo a escolha de meu filho – continuou – Lembra a mim mesma quando acabava de me casar. Terei que falar com Luke para que seja um marido atento e respeitoso. – Trata-me muito bem – assegurou Tasia com um olhar travesso para seu marido que parecia totalmente assombrado pelos comentários da duquesa – Permitiria-me, Sua Graça, que a acompanhe às acomodações que mandei lhe preparem? – Certamente. As duas mulheres se afastaram agarradas pelo braço, seguidas pelos olhares de assombro de Emma e Luke. A adolescente foi a primeira a reagir. – Conseguiu conquistar à vovó! À avó que não gosta de ninguém! Luke soltou uma sonora gargalhada. – Talvez seja uma bruxa depois de tudo Emma. Mas não o diga! Os dias seguintes transcorreram agradavelmente bem, embora Tasia estivesse cansada de ver tão pouco seu marido. Quando voltava já tarde da noite, com suas roupas impregnadas de aroma de charuto e o fôlego cheirando a porto, dava poucas explicações sobre as reuniões de trabalho às quais se via obrigado a assistir. – Nessas reuniões só há homens? – perguntou um dia Tasia com suspeita enquanto ajudava Luke, que estava sentado na beira da cama, tirando as botas. – Só homens gordos com uma grande barriga, cabelo cinza e os dentes


amarelos. Tasia examinava sua camisa. – Melhor! Eu não gostaria de ser obrigada a revisar sua roupa cada noite procurando restos de perfume ou de carmim. Levemente bêbado, feliz por estar a sós com ela, Luke a sentou em seus joelhos. – Verifique tudo o que queira, não tenho nada a esconder. Inclusive pode olhar aqui…e ali. Rodou, brincalhão, junto com sua esposa que ria. Tasia habitualmente passava o dia com Emma e a duquesa percorrendo os antiquários ou visitando alguém. A duquesa tinha decidido apresentar a nora a suas melhores amigas, velhas leoas da alta sociedade que se mostraram encantadas da irreprovável educação da jovem. Que mulher tão modesta e bem educada! Exclamavam. Tão diferente dessas daminhas modernas incapazes de sustentar uma agulha e que não se davam nem sequer ao trabalho de usar luvas e não sabiam fazer uma reverência. As damas estavam encantadas com Tasia que lhes devolvia a esperança no futuro da sociedade. Entretanto Tasia não descuidava das lições de Emma, que tinha começado a escrever uma peça de teatro. – Serei atriz! – declarava – imagina-me, majestosa, no cenário do Teatro Real. Vou ser a melhor lady MacBeth de todos os tempos. Unindo o gesto à palavra começou a interpretar a cena de sonambulismo de MacBeth com tanto entusiasmo que a duquesa se viu obrigada a recorrer aos sais. Emma tinha recebido um convite de lady Walford para a festa de aniversário de sua filha, e jurou pelo mais sagrado que não iria por nada do mundo. – Vou ser a mais alta de todas! Inclusive mais que os meninos e seguro que farão observações estúpidas sobre a cor de meu cabelo, então me verei obrigada a lhes castigar e isso provocará uma cena terrível. Não, não irei! Foi inútil que Luke tentasse convencê-la. Tinha uma expressão de desconcerto quando Tasia lhe perguntou sobre a conversa que tinha mantido com sua filha. – Não quer ir – disse ele simplesmente – E obrigá-la seria pior.


– Acredito que não entende – suspirou Tasia. – Tem razão – respondeu ele abatido – apesar de meus esforços deixei de compreender a minha filha quando completou sete anos. Sua vez de cuidar dela. – Entendido Luke – respondeu Tasia com um pequeno sorriso. Luke era um pai carinhoso, mas quando não podia resolver os problemas com beijos e presentes se sentia completamente dominado. Tasia chamou suavemente à porta do quarto de Emma, ao ver que ninguém respondia, entrou, encontrando Emma deitada no tapete rodeado de bonecas e com uma expressão séria no rosto. – Suponho que vai dizer que devo ir a essa festa – resmungou. – Sim – respondeu Tasia sentando-se no chão com a saia ao redor dela – é uma magnífica oportunidade para conhecer gente de sua idade. – Não necessito amigas. Tenho a ti e a papai, e às pessoas de Souhgate Hall, e Sansão. – Todos nós lhe amamos Emma – respondeu Tasia amavelmente – mas isso não é suficiente. Sei por experiência própria. Eu cresci tão protegida como você, inclusive talvez mais, e nunca tive amigos de minha idade. Eu não gostaria que você estivesse sozinha. – Mas não saberei o que lhes dizer! – gemeu Emma. – Porque não está acostumada. – Papai disse que não insistiria se eu não quisesse ir. – Eu insisto – disse Tasia com muita calma. Viu uma nota de surpresa nos olhos da menina e continuou sem lhe dar tempo para protestar: – Vamos encomendar um novo vestido. Vi na loja do senhor Maitland uma seda cor pêssego preciosa que sentará maravilhosamente bem com seu tom de pele. Emma negou com a cabeça. – Mas, “belle mamam”, não posso… – Tem que tentar – insistiu Tasia suavemente – O que pode te acontecer? – Vou me aborrecer terrivelmente!


– É perfeitamente capaz de suportar uma noite aborrecida, estou segura. Além disso, é possível que te divirta. Emma gemeu com dramatismo antes de voltar sua atenção para as bonecas e Tasia sorriu. Tinha ganhado. Luke suspirou aliviado quando fechou a porta do quarto isolando-se do resto do mundo. Acabava de passar outro dia inteiro com banqueiros, advogados e homens de negócios e suas eternas conversas sobre assuntos financeiros lhe esgotavam. Formava parte do conselho de administração de uma sociedade ferroviária e de uma fábrica de cerveja e acabava de aceitar a contra gosto a direção de uma companhia de seguros. Odiava o mundo das finanças e preferia mil vezes ser latifundiário como tinha sido em sua família há gerações. Gostava de ver as terras aradas, os campos férteis e as boas colheitas. Mas havia se tornado impossível viver dos produtos da terra e, tanto pelo bem dos camponeses como pelo de sua família, viu-se obrigado a investir em empresas com benefícios, lhe permitindo assim manter baixos os aluguéis e melhorar os métodos de exploração das terras dos Stokehurst. Os aristocratas tradicionais lhe reprovavam que tivesse caído na armadilha mercenária do ganho, mas as propriedades deles se arruinavam, suas rendas diminuíam e seus camponeses se foram. A sociedade evoluía rapidamente, a forma de vida dos nobres latifundiários se acabava em favor dos industriais. Conheciam-se várias grandes famílias arruinadas porque se negavam ao progresso e à mudança. Luke não ia deixar que isso acontecesse aos que dependiam dele, suas terras nunca ficariam sem cultivar, sua filha não se veria nunca obrigada a casar-se por dinheiro. Com esse panorama, converter-se em um homem de negócios, embora não gostasse, era um preço pequeno que tinha que pagar. Luke sorriu ao olhar para sua mulher, vestida com uma puritana camisola branca de pescoço alto com renda, com seu longo cabelo solto brilhando sob a luz do candelabro. Estava sentada na cama com um livro nos joelhos. – Sentimos sua falta no jantar – disse ela. Parecia um pouco tensa. Estava zangada porque não lhe via o suficiente?


– Teria gostado de estar aqui – replicou ele – em vez de passar o tempo com homens aborrecidos que não pararam de discutir o preço do chá e de comparar os méritos de seus corretores na bolsa. – E a que conclusões chegaram? – A esta: O velho sistema não funciona, já não pode se ganhar a vida com as terras. Luke franziu o cenho enquanto tirava o casaco. – Não vou desfrutar da mesma vida de ócio que meu avô e meu pai. Meu pai nunca se ocupou de outra coisa que não fossem as mulheres, e às vezes, a contra gosto, da política. Para ele, minha vinculação com o comércio e a indústria sujam a honra da família. Tasia se levantou para lhe ajudar a despir-se. – Entretanto, se o fizer, é precisamente por sua família não? Desabotoou a camisa e lhe beijo o peito. – Definitivamente. Luke sorriu, colocou as mãos entre o cabelo de Tasia e lhe levantou a cabeça. – E sofro cada minuto que estou separado de ti. Tasia lhe rodeou a cintura com os braços. – Eu também. – Isso é o que te preocupa? Minhas frequentes ausências? – Não me preocupa nada, tudo vai maravilhosamente bem. – Nada de mentiras – recordou ele. Ela se ruborizou. – Bom, há algo… Interrompeu-se procurando as palavras adequadas. – Tenho atraso – continuou com um murmúrio. Luke moveu a cabeça desorientado. – Atraso por quê? – Meu…meu período mensal – articulou ela constrangida – deveria ter vindo faz uma semana. Sempre fui um pouco irregular, mas nunca tanto tempo. Certamente não deve ser nada. Não acredito que se trate de um…de um…


– De um bebê? – É muito cedo e não notei nenhuma mudança. Se fosse isso me sentiria diferente. Ele acariciava seu cabelo em silêncio. – Isso te desgostaria? – perguntou Tasia em voz muito baixa. Olhou Tasia com uma intensidade que a enjoou. – Seria a maior alegria de minha vida. Seja o que for o enfrentaremos juntos de acordo? Ela assentiu. – Então quer um menino? Ele pensou um momento. – Não tinha pensado nisso – confessou – Não acreditei que fosse ter mais filhos, mas…– interrompeu-se e sorriu. – Tua parte e outra minha…sim, queroo. Entretanto preferiria te ter um pouco mais de tempo só para mim. Você mesma é quase uma menina, eu gostaria que tivesse tempo de desfrutar da juventude e da liberdade, de tudo o que te faltou até agora. Quero te compensar pelo inferno que viveste, quero que seja feliz. Tasia se apertou mais contra ele. – Me leve para cama, nada pode me fazer mais feliz que isso. Ele levantou as sobrancelhas. – Bem lady Stokehurst, é a primeira vez que me provoca. Estou realmente aniquilado. Ela começou a soltar o cinturão. – Espero que não muito. – Então não te queixe se te mantenho acordada toda a noite – disse ele rindo. – Pode estar seguro. – É uma pena que papai não fume! – disse Emma detendo-se ante uma vitrine – É a caixa de charutos mais bonita que já vi. – E em troca estou encantada – disse Tasia – Sempre pensei que o tabaco era


uma praga. Alicia, que as tinha acompanhado esse dia ao Harrods, uniu-se a elas. – Eu lamento que Charles tenha pegado esse péssimo hábito. Mas é verdade que essa caixa é preciosa. As três mulheres admiravam o cofre de prata com incrustações de ouro e topázios, quando um vendedor se aproximou delas com as pontas enceradas de seu bigode tremendo de emoção. – As senhoras querem vê-lo melhor? – perguntou Tasia negou com a cabeça. – Estou procurando um presente de aniversário para meu marido, mas não isto. – Possivelmente gostaria de uma nécessaire para o cuidado do bigode? – Não usa bigode. – Um guarda-chuva com punho de madrepérola ou de prata? – Um pouco exagerado. – Uma caixa de lenços italianos bordados à mão? – Muito impessoal. – Um frasco de perfume francês? – Muito perfumado! – interveio Emma. Tasia riu ao ver a expressão perplexa do vendedor. – Vamos olhar um pouco mais – disse – estou segura de que acabaremos por encontrar o presente apropriado. – Certamente senhora – disse o pobre homem decepcionado antes de dirigirse aos outros clientes. Alicia se dirigiu a uma mesa coberta de bolsas de noite, luvas e lenços enquanto a atenção de Tasia se dirigia para um cavalo de balanço que estava no chão ao lado de uma fileira de berços. Acariciou-o com a ponta do pé e o cavalo começou a mover-se suavemente. Um sorriso secreto apareceu em seus lábios, estava cada vez mais segura de estar grávida e já imaginava seu filho, um menino alto de cabelo escuro e olhos azuis. “Belle mamam” – disse Emma que a tinha seguido – agora que dorme com papai vai ter um bebê?


– Certamente algum dia. Você gostaria? – Sim! Sobretudo se for um menino. A condição de que possa lhes ajudar a escolher seu nome. – Qual você gostaria? – Algo original. Leopold, por exemplo, ou Quentin, você gosta? – Muito – Concordou Tasia brincando com um chocalho. – Ou Gideon – continuou Emma – Ou Montgomery. Sim, Montgomery Stokehurst! Emma continuava dizendo nomes quando o sorriso de Tasia se desvaneceu. Ao outro lado de onde elas estavam se erguia a imagem de seus pesadelos, a imagem que a obcecava. Mikhail!...Entretanto não era Mikhail. O homem que ela tinha matado era pálido e de cabelo escuro. Quem ela estava vendo estava bronzeado e seu cabelo castanho tinha mechas loiras, mas os olhos eram os mesmos, olhos amarelos de lobo. Tasia estava hipnotizada pelo homem que estava na entrada da loja, bonito e desumano como um anjo da morte. Já não se tratava de um fantasma nem tampouco de um sonho. O príncipe Nicolas Angelovsky tinha vindo procurá-la. Que estranho era lhe ver em uma grande loja estando rodeados de porteiros, vendedores e multidão de mulheres! Às escuras roupas que ele usava em lugar de fazer com que se confundisse com as pessoas, acentuavam seu aspecto estrangeiro. Tinha uma beleza cruel e perigosa, com sua pele dourada, seu fino rosto e esse corpo de tigre convertido em homem pela varinha de algum mago. O chocalho tremia na mão de Tasia e o deixou na mesa. A pesar do esforço que supôs conseguiu sorrir para sua enteada. – Emma se não me engano necessita umas luvas. – Sim, Sansão comeu as que tinha. Não pode resistir às luvas brancas completamente novas. – Por que não pede a lady Ashbourne que te ajude a escolher outro par? Enquanto Emma se afastava, Tasia levantou os olhos procurando Nicolas. Tinha desaparecido. Seu coração começou a pulsar com rapidez e ela andou colada à parede com a maior velocidade possível. Ao atravessar a área de alimentação, com suas estantes cheias de pescado e carne, as pirâmides de caixas e seus bolos, Tasia notou que se voltavam para olhá-la.


Então notou que estava respirando muito forte, que quase soluçava, e se obrigou a fechar a boca, assustada e desfalecida. Emma está segura com Alicia, tranquilizou-se, só tenho que escapar de Nicolas e me esconder em algum lugar, logo mandarei alguém para procurar Luke. Dirigiu-se rapidamente para uma saída lateral, uma vez fora pensava mesclar-se com as pessoas e nem sequer Nicolas, com seu instinto predador, poderia encontrá-la em meio da multidão. Mal pôs um pé fora, no sufocante e fétido ar do verão, quando um braço se fechou brutalmente em sua cintura enquanto uma mão lhe tampava a boca. Rápidos e eficazes, dois homens a levaram a uma carruagem diante do qual estava Nicolas. Ele ainda não tinha vinte e cinco anos, mas toda sua juventude e toda sua bondade tinham desaparecido de seu rosto há muito tempo, caso que alguma vez houvesse possuído essas qualidades. Seus olhos dourados brilhavam frios e vazios. – Zdrasvouity priminha – murmurou – parece estar muito bem. Recolheu uma lágrima que pendurava das pestanas de Tasia e a esfregou entre seus dedos como se fosse um caro elixir. – Poderia ter me complicado as coisas sabe? Se tivesse te escondido no campo como uma camponesa teria necessitado anos para te encontrar. Em lugar disso te converteste no centro de todos os rumores de Londres. A misteriosa professora que se casou com um rico marquês. Só podia ser você! Seu olhar percorreu a figura vestida de seda com desprezo. – Aparentemente o gosto pelo luxo venceu a sensatez. Levantou a mão de Tasia para examinar o anel de ouro. – Como é seu marido? Um velho que gosta da carne fresca suponho. Deveria lhe dizer que é muito perigosa. Com um gesto ordenou a seus capangas que a subissem à carruagem quando viu que os olhos de Tasia se iluminavam. Virou-se rapidamente evitando por pouco o punho de um guarda-chuva dirigido a sua cabeça e que lhe bateu no ombro. Como um raio agarrou a improvisada arma e apanhou pelo braço à magra adolescente que tinha querido lhe bater e que nesse momento estava abrindo a boca para gritar.


– Se gritar – advertiu – quebrarei seu pescoço. A pequena se calou, mas lhe fuzilou com o olhar, completamente vermelha de ira e de medo. Com seu cabelo de uma cor âmbar tão estranha, oferecia um quadro encantador. Outra menina perigosa – disse Nicolas com um aprazível sorriso apertando o frágil corpo contra si. – Sua Alteza… – começou um dos homens. – Tudo ficará bem – respondeu ele secamente – sobe no carro com a mulher. A menina se debateu para soltar-se. – Deixe a minha madrasta em paz pedaço de monstro! – Temo que isso vai ser impossível minha encantadora gata selvagem. Quem te ensinou a falar assim? – Onde a leva? – A Rússia onde terá que pagar por seus crimes. Nicolas soltou por fim a Emma que retrocedeu tropeçando. – Adeus pequena. E obrigado…há muito que ninguém me fazia sorrir. Nicolas a seguiu um momento com os olhos enquanto ela voltava a entrar na loja correndo, mal subiu na carruagem e ordenou ao chofer que partisse. Sentada ao lado de seu marido no sofá da biblioteca, Alicia chorava em seu ombro. Emma parecia um novelo em uma poltrona, silenciosa e pálida de tristeza enquanto Luke, de pé diante da janela, olhava o Tâmisa sem vê-lo. Uma breve mensagem dizendo que lhe necessitavam em casa lhe tinha interrompido na metade de uma reunião em Northern Britan Railway Company, e tinha se apressado a voltar para a mansão para encontrar-se com os Ashbourne e uma Emma a beira da histeria. Tasia não estava. A pedido de Charles, Alicia se esforçou em contar o que sabia. – Deixei-a um momento para olhar os lenços e de repente ela e Emma tinham desaparecido. Depois Emma voltou gritando que um russo de olhos amarelos tinha obrigado Tasia a subir em sua carruagem. Não sei como pôde encontrá-la, a menos que tenha me seguido. Deus, não voltaremos a vê-la nunca mais!


Seus soluços se fizeram mais fortes e Charles lhe deu uns tapinhas no ombro para reconfortá-la. Além do som do pranto, a sala estava em silêncio. Luke se voltou por fim tremendo de raiva e com uma espécie de loucura que anunciava uma explosão. Mas se manteve em silêncio, pálido. – E agora, Stokehurst? – perguntou finalmente Charles para romper a tensão – Suponho que deveríamos tentar algum tipo de negociação através do governo. Depois de tudo temos um embaixador em São Petersburgo. Poderíamos mandar um enviado especial para… – Não necessito nenhum enviado especial! – declarou Luke dirigindo-se para a porta – Biddle! Sua voz ressonou como um trovão na silenciosa casa. O lacaio apareceu na porta imediatamente. – Sim milorde? – Arrume uma entrevista com o ministro dos exteriores para esta mesma tarde. – diga que é urgente. – E se, se nega milorde? – Diga que de todas as formas lhe encontrarei esteja onde estiver, de modo que seria melhor que aceite falar comigo imediatamente. – Alguma outra coisa milorde? – Sim. Reserve dois lugares para São Petersburgo nas próximas vinte e quatro horas. Se não houver nenhum navio que saia nesse tempo então frete um. – Posso lhe perguntar quem vai acompanhar? – Você. – Mas milorde – resmungou o criado – eu não posso… – Vá! Quando tiver terminado com os encargos que lhe ordenei pode começar a me preparar a bagagem. Biddle virou-se movendo vigorosamente a cabeça e grunhindo para si. Charles se aproximou de Luke. – Como posso te ajudar?


– Cuide de Emma em minha ausência. – É obvio! Um olhar ao triste rosto de sua filha lhe acalmou um pouco. Sentou-se a seu lado e a abraçou enquanto ela voltava a desfazer-se em pranto. – OH papai, não sabia o que fazer! – soluçava – havia começado a segui-la quando vi o que passava…Deveria ter ido procurar ajuda, mas não parei para pensar. – Não se preocupe. Não poderia ter evitado. É minha culpa e de ninguém mais. Não soube proteger a nenhuma das duas. O que queria esse homem? Quem é ela? Fez algo mau? Não entendo nada… – Não o duvido – murmurou Luke – Ela não fez nada, mas a acusam da morte de um homem e algumas pessoas, na Rússia, querem que seja castigada. É ali onde esse indivíduo a leva. – Trará-a para casa? – Sim. Não o duvide nem um segundo Emma – afirmou ele implacável, com uma fera determinação no olhar– o príncipe Nicolas Angelovsky não sabe o que acaba de fazer. Ninguém pega o que me pertence. O Luz do Oriente era um pequeno navio mercante que transportava trigo, porcelana e tecidos. O tempo era clemente e tudo levava a pensar que a travessia seria curta, sem dúvida não mais de uma semana. Como capitão Nicolas passava a maior parte do tempo na ponte para assegurar-se de que a tripulação fizesse seu trabalho com tanto rigor como ele. Se controlava o navio não era por um capricho de homem rico, mas sim porque era de fato um excelente navegante e um chefe inato. Por outra parte estava acostumado a essa viagem que levava desde o mar do Norte em direção ao Báltico até o golfo da Finlândia onde, na desembocadura do Neva, encontrava-se, majestosa, a cidade de São Petersburgo. Ao terminar o primeiro dia de navegação, dirigiu-se ao camarote onde estava presa Tasia. Até o grumete tinha proibido responder se ela chamava. Tasia, que tinha se deitado no camastro, levantou-se de um salto quando ele entrou. Usava a mesma roupa que quando ele a tinha sequestrado, um vestido de seda de cor âmbar enfeitado com fitas de veludo negro. Depois do sucedido, ela


não havia tornado a falar nem tinha derramado uma só lágrima. Devia estar em estado de choque, agora que o que mais temia no mundo tinha acontecido. Custava acostumar-se à ideia de que seu passado a tivesse apanhado com essa aterradora facilidade. Observou Nicolas sem dizer nada enquanto ele fechava a porta. Além de uma pequena careta, seu rosto era inexpressivo. – Perguntara-te o que espero de ti agora, prima. Logo saberá. Dirigiu-se para um cofre com bandas de couro cuja tampa bem azeitada se levantou sem fazer ruído. Tasia, tensa, retrocedeu até o camastro até que tocou a parede enquanto ele tirava um pacote de tecido. Aproximou-se dela. – Reconhece isto? Ela negou com a cabeça e ele abriu o pacote. Um grito saiu da garganta dela. Era a túnica branca que usava Mikhail no dia de sua morte, uma túnica tradicional de boyardo com pescoço alto bordado e manga longa. Estava coberta de manchas cor parda…o sangue de Mikhail. – Conservei-a para este momento – disse Nicolas baixando a voz – Quero que me diga o que passou exatamente essa noite. As últimas palavras de meu irmão, sua expressão…tudo. Deve-me isso. – Não me lembro – sussurrou ela com voz trêmula. – Então a olhe outra vez, possivelmente te refresque a memória. – Nicolas, rogo isso… – Olhe! Tasia obedeceu à beira das náuseas. Parecia que voltava a cheirar o sangue, o ar era espesso e pesado…e o camarote começou a girar ao redor dela. – Vou vomitar – conseguiu dizer com a boca cheia de bílis – tira isso… – Me diga o que aconteceu a Micha – insistiu ele aproximando mais a túnica ao rosto dela até que ela só pôde ver as terríveis mancha marrons. Gemeu e levou a mão à boca. Ele aproximou então um recipiente e ela vomitou sacudida por violentas arcadas com as lágrimas caindo por suas bochechas. Aceitou a toalha que ele lhe deu e secou o rosto. Quando levantou os olhos esteve a ponto de gritar de horror. Nicolas estava


pondo a túnica que era um pouco estreita nos ombros e levava as marcas da morte. Ela se lembrava. Mikhail, a adaga presa na garganta, os olhos em branco pela dor e o medo, andando vacilante para ela, tentando tocá-la. – Nãooooo! – gritou esticando os braços para frente para afastar Nicolas que continuava avançando como um pesadelo feito realidade – Saia, vá, vá! Seus gritos ressonaram no camarote, sua mente se encheu de uma luz deslumbrante que explodiu por fim substituída por uma bem-vinda escuridão. A memória estava voltando em devastadoras ondas. Micha – deu tempo de dizer com um soluço antes de cair em um poço sem fundo onde já não havia palavras, nem ruído, só as partes de sua alma despedaçada.


Nove

Quando Tasia voltou a si, Nicolas estava ao lado do camastro. Tinha tirado a túnica e parecia tranquilo e seguro de si mesmo; em realidade estava suando, possivelmente de angústia ou possivelmente de ira, mas sua camisa negra se colava a seu corpo como uma segunda pele. Está tão empenhado em saber! Pensou ela com injustificada compaixão. Mas lhe motivava a pena pela morte de seu irmão ou o desejo de vingança? Ainda um pouco aturdida, umedeceu os lábios. – Vou te contar o que aconteceu essa noite – disse com voz rouca – com todo detalhe, mas primeiro me dê algo para beber. Nicolas lhe deu um copo de água sem dizer uma palavra e se sentou na beira da cama olhando como ela se incorporava e bebia com avidez. Não sabia por onde começar, as lembranças se amontoavam em sua cabeça trazendo consigo as emoções daquela trágica noite. E o fato de saber por fim a verdade e poder falar lhe produzia um enorme alívio. – Eu não queria estar comprometida com Micha – começou – Pelo que tinha ouvido dizer era um homem estranho, atormentado, que brincava com as pessoas como se fossem bonecos. Temia mais do que lhe odiava. Todo mundo estava encantado pensando na boa influência que eu teria sobre ele. Riu com amargura. – Evidentemente tinham se convencido de que lhe levaria pelo caminho correto no referente às mulheres. Que absurdo! Inclusive eu, ingênua como era, sabia que um homem que gosta de outros homens nunca desejaria me ter em sua cama. No melhor dos casos lhe teria servido de cobertura para ter o aspecto de um marido respeitável. E no pior teria me utilizado como um entretenimento perverso, uma mulher para poder humilhar a seu desejo. Teria-me entregue a outros homens, teria me obrigado a fazer coisas contra natura… – Não pode estar segura disso.


– Sim – respondeu ela com suavidade – E você sabe muito bem. Ao ver que Nicolas permanecia em silêncio terminou o copo de água antes de continuar: Sentia-me apanhada em uma armadilha. Minha própria mãe insistia nesse matrimônio e curiosamente, a única pessoa a que podia pedir ajuda era o próprio Micha. Meditei-o vários dias até que decidi que não podia perder nada me dirigindo a ele, possivelmente me escutasse. Havia algo de infantil em Micha, às vezes parecia um menino pequeno que queria chamar a atenção. Era caprichoso. Acreditei que poderia lhe convencer para que me liberasse do compromisso. Umas poucas palavras de sua parte poderiam mudar muito facilmente meu destino. Então, um dia, fui vê-lo para suplicar sua ajuda. Tasia deixou o copo e apertou as mãos olhando fixamente a colcha cuidadosamente dobrada aos pés da cama. Voltou a falar como em um sonho. – O palácio estava quase deserto, só havia alguns criados se por acaso Micha necessitasse de algo. Eu usava um xale na cabeça quando cheguei à porta da casa, o ferrolho não estava fechado. Entrei sem ser anunciada e os únicos criados que encontrei não me fizeram perguntas. Estava terrivelmente nervosa e lembro-me de ter desejado com todas as minhas forças que Micha tivesse fumado muito ópio essa noite…Me custou lhe encontrar, fui de sala em sala, todas elas cheiravam a fumaça, vinho azedo e comida podre. Havia peles por toda parte e almofadas no chão, pratos meio vazios e objetos estranhos que Micha devia usar para…não sabia para que, e também não me importava. Tasia fez um gesto indeciso com a mão. – Fazia calor e tirei o xale. Chamei duas vezes “Micha, onde está?” Ninguém me respondeu. Pensei que possivelmente estaria fumando na biblioteca e me dirigi para lá. Ali havia dois homens discutindo e um deles estava chorando. As lembranças a dominavam e esqueceu que havia alguém escutando-a. – Amo-te Mika. Mil vezes mais do que ela poderá te amar. Não será capaz de te proporcionar o que necessita. – Pobre velho ciumento e decrépito! – replicava Mikhail – O que você pode saber de minhas necessidades? – Não te compartilharei com ninguém e muito menos com uma jovenzinha mimada!


A voz de Mikhail era muito suave, zombadora e provocadora. – Você se incomoda em imaginá-la em minha cama? Esse pequeno e jovem corpo, essa inocência a ponto de ser pervertida… – Mika não me torture assim! – Já não preciso de ti, vá e não volte nunca mais. Estou cansado de ver sua cara. Põe-me doente. – Não! Você é minha vida, é tudo para mim. – Estou farto de suas choramingações, e de suas patéticas tentativas para fazer amor comigo. Inclusive um cão me satisfaria mais que você. Fora daqui! O outro homem dava gritos de desespero, chorava, soluçava…Se ouviu um grito de surpresa, ruído de luta e violência… – Eu estava aterrada – disse Tasia esforçando-se para que a voz não lhe tremesse e notando o sabor salgado das lágrimas na boca – Entretanto não pude evitar entrar na sala para ver o que tinha acontecido, não o pensei. O outro homem estava tão quieto como uma estátua e Mikhail estava se afastando dele com passo vacilante. Depois me viu e se dirigiu para mim. Estava coberto de sangue e tinha um abridor de cartas em forma de adaga na garganta. Esticou sua mão para me agarrar, olhava-me como se esperasse que eu lhe ajudasse. Eu estava paralisada, era incapaz de dar um passo. E logo… Micha caiu em cima de mim e tudo se voltou negro. Quando recuperei o sentido tinha uma arma ensanguentada na mão. O outro homem tinha arrumado tudo para que os outros acreditassem que tinha sido eu quem tinha matado Micha, mas não o fiz. Soltou uma trêmula gargalhada em meio das lágrimas. – Todo este tempo estive convencida de que tinha matado a um homem, sofri um inferno acreditando que era culpada e que nenhuma oração e nenhum arrependimento poderia me salvar. E, entretanto, eu não fiz nada. – Como se chama o assassino de Micha? – perguntou Nicolas suavemente. – Samuel Ignatevitch, conde de Shurikovsky. Estou segura de que era ele, conheci no palácio de Inverno. Nicolas, imperturbável a olhava fixamente com seus atemorizantes olhos amarelos. Estava-se dirigindo para a porta quando lhe perguntou: – Não acredita em mim? – Não.


– Não me importa. Agora já sei a verdade. Nicolas se voltou com um sorriso de desprezo. – O conde Shurikovsky é um homem respeitável e um marido modelo e que, além disso, é um bom amigo do czar. Faz anos que é seu confidente e o conselheiro que mais escuta. Se, por acaso fosse pouco, acaba de ser renomado governador de São Petersburgo. Parece-me muito gracioso que lhe tenha escolhido para ser o amante e o assassino de meu irmão. E porque não o próprio czar? – A verdade é a verdade – respondeu ela simplesmente. – Como bem sabemos os russos, a verdade tem muitas caras – disse ele antes de deixar o camarote. Era normal que Biddle gostasse dos navios. Neles tudo estava limpo, organizado e perfeitamente ordenado. Luke se disse divertido que a obsessão de seu criado de quarto fosse perfeita para a vida a bordo enquanto que em terra era extremamente incômoda. Luke por sua parte não gostava particularmente do mar e esta viagem em concreto era a pior de todas as que tinha feito. Passeava sem cessar por seu camarote e a ponte, incapaz de sentar-se, relaxarse ou ficar quieto. Comia a contra gosto e só falava quando era absolutamente necessário. Passava por momentos de abatimento e outros de raiva e se consolava pensando no castigo que ia dar a Nicolas quando o encontrasse. Ao mesmo tempo estava aterrorizado pela segurança de Tasia e cheio de ódio por si mesmo. Não tinha sabido protegê-la e a tinham levado com uma facilidade assombrosa. Negava-se a pensar que podia perder Tasia para sempre, mas de noite o sono lhe traía. Depois da morte de Mary tinha conseguido voltar a levar uma vida quase normal, mas desta vez não o conseguiria. Perder Tasia acabaria com ele irremediavelmente; já não ficaria nem amor nem bondade para ninguém, nem sequer para sua filha. Uma noite esteve durante horas na popa do navio olhando a esteira de espuma. O céu estava coberto, não se via nenhuma estrela, mas o ruído das ondas contra o casco lhe tranquilizava um pouco. Recordou a noite que tinha tido Tasia em seus braços escutando os ruídos do bosque, um desses instantes absurdos e maravilhosos que só os amantes podiam compreender. E de repente a sentiu tão


perto que acreditou cheirar seu perfume. Olhou o anel que tinha lhe dado e a ouviu murmurar com sua melodiosa voz: “Tem escrito “o amor é uma lâmina de ouro que se dobra, mas que nunca se quebra” E a resposta dele: “Seremos felizes” Apertou os punhos. – Vou te buscar – disse ele gritando ao vento – Logo estarei contigo Tasia.


Dez

São Petersburgo, Rússia Assim que o navio atracou, Luke e Biddle desceram a terra. Perto do Almirantado de São Petersburgo havia um mercado e Luke abriu caminho pela rua principal enquanto Biddle lhe seguia com um jovem que carregava a bagagem. Era o espetáculo mais estranho que Luke já tinha visto. As casas em ambos os lados da rua estavam pintadas com vivas cores como se fossem carroças de circo, os vendedores ambulantes usavam longas túnicas de cor vermelha ou azul, as mulheres coloridos lenços. Parecia que todos estavam cantando, os vendedores vozeavam suas mercadorias com um tom musical, os olheiros cantarolavam enquanto passeavam entre as bancas, Luke tinha a impressão de que por acaso, encontrava-se no cenário de uma ópera. O aroma de pescado saturava o ar; não só por causa do oceano e dos barcos de pesca que se encontravam no Neva, mas também do mercado. Salmões, lucios, enguias e esturjões repousavam em caixas cobertas de gelo. Também se vendiam mais de meia dúzia de tipos distintos de caviar e uns minúsculos peixes que levavam em grandes baldes. Com o calor, o aroma era tão pestilento que qualquer gato britânico, digno de tal nome, teria fugido a toda velocidade. – Znitki – explicou um dos vendedores sorrindo ao ver a expressão de asco de Luke. São Petersburgo era a cidade mais povoada e mais importante da Europa. As ruas estavam cheias de gente, animais e veículos diversos; o rio e os canais ferviam de embarcações de todos os tamanhos e os sinos de inumeráveis Igrejas soavam ao mesmo tempo em uma alegre cacofonia. Ao fim de dez minutos Luke renunciou a tentar orientar-se. Não tinha intenções de permanecer em São Petersburgo muito tempo de modo que não merecia a pena fazer o esforço de conhecer melhor a cidade. Quão único desejava era encontrar a sua esposa e não voltar a pôr os pés nesse país.


Biddle por sua parte, não se dava por vencido tão facilmente, avançava resolutamente entre as bancas com o guarda-chuva sob um braço e um exemplar do Manual do viajante britânico na Rússia debaixo do outro. Passaram diante das bancas das floristas, um mascate se aproximou deles com um cesto de couro cheio de copos e uma jarra de um líquido escuro que o chamava kvas além de uns pedaços de bolo. A um gesto de Luke, Biddle comprou dois copos da bebida, que resultou ser uma espécie de cerveja leve aromatizada com mel de gosto estranho, mas agradável. Os rostos dos russos chamaram a atenção de Luke. A maioria deles eram loiros com olhos azuis e de finos traços, mas outros eram muito mais orientais: caras largas e belos olhos rasgados. Tasia era uma harmoniosa mescla dos dois. Ao pensar em sua esposa, Luke voltou a notar a onda de ira que não lhe tinha abandonado desde dia do sequestro. – Milorde – perguntou Biddle preocupado por sua furiosa expressão – não gostou da bebida? – Ao palácio Kurkov – resmungou Luke. Era a direção da Embaixada da Inglaterra e nada mais lhe interessava. – Imediatamente milorde. Vou tentar conseguir uma carruagem. O livro diz que se diz algo assim como drojki, e que não terá que achar estranho se o chofer fala com o cavalo, é um costume daqui. Biddle começou a fazer gestos e a mover o guarda-chuva para chamar a atenção de alguma carruagem. Acabaram por encontrar uma pequena calesa descoberta e ordenaram ao chofer que lhes levasse a Embaixada. Como era de esperar o homem não deixou de falar com seu cavalo o qual se chamava Ossip. O veículo se deslocava pelas ruas a uma velocidade vertiginosa e o chofer gritava frequentemente para que os pedestres se afastassem. Estiveram a ponto de atropelar várias pessoas que cruzaram em seu caminho. Fosse qual fosse o meio de locomoção, os russos conduziam como se estivessem loucos. São Petersburgo era uma cidade de pedras, águas e pontes; inclusive Luke, que estava decidido a odiá-la, teve que reconhecer que era magnífica. Segundo o manual de Biddle, Pedro, o Grande mandou construir a cidade um século e meio antes para permitir a entrada na Rússia da cultura oriental, e o tinha conseguido de modo admirável. Alguns bairros da cidade eram mais europeus que a própria


Europa. A carruagem passou em frente de fabulosos palácios que se alinhavam com o passar do rio. A Embaixada de lorde Sydney Branwell estava situada na rua principal da cidade, a famosa Nevski. A calesa se deteve ante um palácio de estilo clássico com colunas brancas, Luke subiu rapidamente os degraus de mármore deixando que Biddle cuidasse da bagagem e pagasse o chofer. Dois imponentes cossacos com túnicas escarlates e botas altas cor negra custodiavam as portas. – Devo ver lorde Branwell – declarou Luke bruscamente. Os cossacos se olharam entre eles e logo um deles respondeu em um inglês rudimentar: – Impossível. – Por quê? – Lorde Branwell está celebrando um banquete para o governador. Venha mais tarde. Amanhã. Próxima semana. Luke olhou para Biddle irritado. – Ouviste? Chegamos tarde ao banquete. Enquanto falava se virou e deu um murro no estômago do guarda que se dobrou de dor. Um golpe na nuca lhe mandou rodando pelo chão. O outro guarda estava a ponto de intervir, mas o aspecto ameaçador de Luke lhe fez voltar atrás. – Vejamos – disse a Biddle. O cossaco inclinou a cabeça e se afastou para lhes deixar passar. – Nunca tinha lhe visto atuar assim milorde – murmurou Biddle preocupado. – Já tinha me visto golpear um homem antes. – Sim, mas nunca com tanta vontade. – E isto só é o começo – grunhiu Luke empurrando uma porta. O palácio estava cheio de hera, magnólias e orquídeas. Os chãos de madeira encerada se estendiam até o infinito com desenhos que lhes davam o aspecto de tapetes persas. Uns lacaios com libré, perfeitamente imóveis, estavam colocados em todas as partes. Nem sequer levantaram o olhar quando os dois homens entraram.


– Onde posso encontrar lorde Bramwell? – perguntou Luke a um deles. Ao não receber resposta insistiu perdendo a paciência: Branwell! Timidamente o lacaio assinalou uma porta dupla ao final de um vestíbulo. – Branwell! – repetiu. – Milorde – começou Biddle que detestava as cenas – talvez fosse melhor se lhe esperasse na entrada com a bagagem. – Sim – respondeu Luke precipitando-se na direção que lhe tinham indicado. Biddle bateu em retirada com um evidente alívio. – Obrigado, milorde. Luke passou diante das fileiras de colunas decoradas com ouro e pedras semipreciosas atraído por uma conversa em francês (o idioma diplomático) e pelo delicado som de um instrumento de corda, sem dúvida uma cítara, como música de fundo. Abriu as portas duplas e entrou no salão onde se celebrava o banquete, onde perto de duzentos oficiais estrangeiros estavam sentados ao redor de uma imensa mesa de bronze. Os criados com librea de veludo e ouro que estavam servindo champanha gelado se imobilizaram ao lhe ver entrar. Em cima da mesa se viam assados, saladas, tortas, caviar e enormes terrinas transbordantes de cogumelos em vinagre. Um faisão assado presidia o centro da mesa com suas plumas cuidadosamente desdobradas em um leque multicolorido. Os convidados deixaram de falar com a entrada de Luke e a música se deteve. Luke reconheceu as insígnias dos embaixadores da Dinamarca, Polônia, Áustria e França e só dedicou um breve olhar ao convidado de honra; o governador, um homem magro com o peito coberto de condecorações. Notou imediatamente que o embaixador estava sentado à direita do governador e se dirigiu para ele com passo decidido. – Lorde Branwell – começou com todos os olhos fixos nele. O embaixador era um homem gordo com rosto rosado, com uns diminutos olhos afundados na cara. – Eu sou lorde Branwell – disse com altivez – esta intromissão é


completamente… – Tenho que falar com você. Uns soldados se adiantaram para lhe expulsar, mas ele se virou para lhes enfrentar, ameaçador. Esta bem! – declarou lorde Branwell autoritariamente levantando sua rechonchuda mão – é evidente que este homem enfrentou a muitas dificuldades para ver-me, escutemos o que tem a dizer, apesar de sua evidente falta de maneiras parece ser um cavalheiro. – Lorde Stokehurst – apresentou Luke – Marquês de Stokehurst. Branwell lhe olhou pensativo um momento. – Stokehurst…Stokehurst…Se não me equívoco é o desventurado marido de Anastásia Ivanova Kaptereva. Um murmúrio percorreu a mesa. – Sim, sou seu marido, e vim para falar com você sobre ela. Se quiser que falemos em privado… – Não, não. Não será necessário. Lorde Branwell olhou a seu redor como se quisesse demonstrar à concorrência de quão difícil era fazer raciocinar um louco. – Por desgraça, lorde Stokehurst, eu não posso fazer nada, a data da execução de sua esposa já foi fixada. Luke suspeitava que o governo não perderia tempo. Tinha vontade de afogar o embaixador com suas próprias mãos, mas conseguiu conservar a calma. – Quero que atue de forma oficial em defesa dos interesses de minha esposa. Você tem poder para atrasar a execução. – Não lorde Stokehurst. Para começar não estou disposto a arriscar meu nome e minha situação para defender a uma mulher de duvidoso passado. Por outra parte não posso fazer nada até que tenha recebido ordens de meus superiores de Assuntos Exteriores em Londres. Agora por favor, retire-se. Com um sorriso de suficiência, Branwell começou a comer de novo dando o assunto por resolvido. Luke pegou com cuidado um prato cheio de comida, cheirou-a e em seguida o


atirou ao chão onde a valiosa porcelana de Sevres se quebrou em mil pedaços. No salão se fez silêncio, Luke rebuscou no bolso interior de seu casaco. – Hum…Vejamos…Acredito recordar…Sim, aqui está! Atirou um cilindro de documentos na mesa diante de Branwell. Alguns convidados deram um salto. Isto o manda o ministro dos Assuntos Exteriores com ordens detalhadas das atuações diplomáticas que deve realizar com respeito a este assunto. E se você não conseguir convencer seus colegas russos de que todo este assunto corre o risco de converter-se em um incidente diplomático… Pôs a mão com dedos metálicos no ombro do embaixador. – …posso perder o sangue frio, isso seria lamentável. Evidentemente o embaixador compartilhava essa opinião. – Farei tudo o que possa para lhe ajudar – disse rapidamente. – Bom! – disse Luke sorrindo – E se agora falássemos em privado? – Certamente. Branwell se levantou tentando fazer o papel do perfeito anfitrião. – O rogo, Excelência, amigos, continuem como se não tivesse acontecido nada. O governador assentiu com a cabeça. Não se produziu nem um só ruído até que o embaixador saiu acompanhado do inglês; depois todos os convidados começaram a falar animadamente. Luke seguiu Branwell até um salãozinho privado e fecharam as portas. – Imagino que terá algumas pergunta – disse o embaixador olhando seu visitante com uma mescla de medo e antipatia. – No momento só uma. Onde diabos está minha mulher? – Terá que entendê-lo. A opinião pública está contra ela, ameaçam-na e seria extremamente perigoso que estivesse na prisão pública. Além disso, depois de sua fuga do ano passado… – Onde está? – grunhiu Luke. – Um importante cidadão de São Petersburgo ofereceu amavelmente


custodia-la em sua residência privada até que o Estado tivesse tomado às disposições necessárias. – Um importante cidadão? – repetiu Luke furioso – Angelovsky! Ao ver que Bramwell assentia, explodiu. – Esses porcos corruptos a puseram sob a custódia de Angelovsky? E que farão em seguida? Aceitarem sua “amável oferta” de executá-la com suas próprias mãos lhes economizando o trabalho de encarregar-se eles mesmos? Estamos acaso na Idade Média? Por Deus acabarei cometendo um assassinato também… Tranquilize-se milorde, por favor – exclamou o embaixador retrocedendo assustado – eu não sou responsável pelo que aconteceu. Os olhos azuis de Luke tinham um brilho demoníaco. – Se não fizer todo o possível para tirar minha mulher desta horrível situação, esmagarei sem piedade. – Lorde stokehurst, prometo… – começou Branwell. Mas Luke já tinha saído do salão de modo que lhe seguiu. Enquanto Stokehurst atravessava o vestíbulo andando com passo rápido, tropeçou com duas pessoas nas quais reconheceu o homem de cabelo cinza que estava em uma ponta da mesa e um jovem oficial que sem dúvida era seu assistente pessoal. – Governador – disse Bramwell preocupado – espero que a interrupção do banquete não tenha lhe incomodado muito. Shurikovsky olhou para Luke. – Queria ver o inglês. Luke se esticou. O que queria o governador? Experimentava uma espontânea aversão por este homem de olhos achinados negros e frios como o gelo. Enquanto os dois homens se olhavam, o jovem assistente disse com atrevimento: – Que sucedido mais estranho! O principie Mikhail Angelovsky é assassinado, a culpada “morre” na prisão, uns meses depois a trazem de volta a Rússia completamente viva, e agora temos um marido inglês que quer levar com ele. – Não o conseguirá – disse Shurikovsky – Posso afirmar, em nome do


governo que alguém deve pagar pelo assassinato de Angelovsky. – Não será minha mulher quem o pagará – respondeu Luke com suavidade. Antes que o governador pudesse responder, Luke se encaminhou como um tornado para o palácio Angelovsky. A residência dos Angelovsky era ainda mais majestosa que o palácio Kurkov com suas portas de ouro e janelas de prata lavrada. Quadros de Gainsborough e de Van Dyck com o Marcos incrustados de pedras preciosas e abajures de cristal e esmalte que pareciam acervos florais. Luke estava deslumbrado por esta opulência que ultrapassava de longe a da rainha da Inglaterra. Tampouco tinham descuidado da segurança. Cavaleiros uniformizados, cossacos e guardas circassianos faziam guarda com o passar do vestíbulo e as escadas de mármore. Para maior surpresa, quando Luke pediu para ver o príncipe Angelovsky, obedeceram imediatamente sem fazer nenhuma pergunta. Biddle ficou encantado na entrada, e acompanharam Luke até uma galeria cujas paredes estavam cobertas de armas antigas e tochas de guerra. No centro da sala havia um velador cheio de garrafas de licor. Estavam ali alguns guardas e aristocratas conversando, bebendo e fumando. Todos se viraram para olhar o recém-chegado. Um deles se separou do grupo e avançou para Luke dizendo umas palavras em russo. Ao ver que não lhe entendia começou a falar em um inglês com um leve acento. – Que deseja? Angelovsky! Era mais jovem do que Luke pensava, sem dúvida tinha menos de trinta anos e tinha uns assombrosos olhos amarelos em um rosto de uma impressionante beleza, tal e como o havia descrito Alicia Ashbourne. Luke nunca havia sentido antes essa necessidade quase irresistível de matar, mas conseguiu dominar-se. – Quero ver minha mulher – disse com calma. Angelovsky pareceu desconcertado por um momento. – Stokehurst? – articulou por fim – acreditava que era um ancião. Esboçou um sorriso insolente. – Bem-vindo a Rússia primo!


Luke estava apertando tanto os dentes que lhe tremia à mandíbula. Nicolas acreditou que tremia por respeito ou possivelmente por medo e seu sorriso se alargou. – Está perdendo o tempo. A prisioneira não está autorizada a receber visitas. Siga meu conselho: volte para seu país e procure outra mulher. Surpreendeu-se quando Luke, com a velocidade de um raio, empurrou contra a parede. Seus dedos de metal se afundaram dolorosamente no estômago do Nicolas. – Me deixe vê-la – soprou Luke com voz rouca – ou lhe arranco as tripas. Nicolas lhe olhou um momento antes de rir com malícia. – Tem muita coragem para me ameaçar assim em minha própria casa. Muito bem, pode ver Anastásia. Pouco importa, se você a vê, continua estando em meu poder. Motka Yurievitch – chamou sem deixar de sorrir – acompanha a meu novo primo para ver a prisioneira, e não te aproxime muito ou te morderá. Ouviram-se uns murmúrios de admiração. Não havia nada que os russos admirassem mais que a força bruta unida a uma vontade de ferro, e estavam assombrados ao ver ambas as coisas em um inglês. Tasia estava descansando em uma banqueta de madeira esculpida, suas acomodações constavam de uma pequena entrada, uma penteadeira e um dormitório luxuosamente mobiliados. Ainda que tivesse as visitas proibidas tinha recebido algumas cartas cheias de lágrimas de sua mãe e Nicolas tinha permitido a Maria que lhe enviasse roupa do palácio Kapterev. Tasia estava vestida com um traje de seda violeta bordada de renda com uma longa saia e mangas bufantes. Estava folheando distraidamente uma novela francesa; até esse momento suas tentativas para ler não tinham tido êxito, lia uma e outra vez as mesmas frases sem entender nada. Quando ouviu que a chave girava na fechadura, não se voltou para olhar, segura de que seria um criado com a bandeja do chá. – Deixe-a em cima da mesa, ao lado da janela – disse. Ao ver que ninguém respondia levantou a vista com frieza…e se encontrou com um olhar azul que lhe sorria.


– Disse que não queria dormir sem ti – disse Luke com voz rouca. Com um grito de incredulidade, Tasia se jogou em seus braços. Luke a levantou no ar rindo e afundou a cara em seu pescoço. – Deus como senti tua falta! – Luke…Luke…vieste me buscar! De verdade é você? Devo estar sonhando! Passou os braços pelo pescoço e lhe beijou apaixonadamente, feliz de poder lhe cheirar e lhe saborear e notar a solidez de seu corpo. Ele conseguiu soltar-se. – Temos que falar – resmungou. – Sim…sim. Tasia se negava a lhe soltar, beijou de novo lhe fazendo perder o sentido da realidade. Apoiou-a contra a parede, brincou com sua boca e sua língua e lhe acariciou os seios colado a ela. – Está bem? – perguntou por fim. Ela sorriu fracamente. – Eu sim... E Emma? Estive muito preocupada com ela. – Está desejando que volte o mais rápido possível. – Se somente… De repente Tasia se interrompeu e começou a falar excitada. – Luke, no navio recordei de tudo, sei exatamente o que aconteceu. Eu não fiz nada, simplesmente cheguei no pior momento e presenciei o assassinato. Eu não sou a assassina! – Quem foi? – perguntou Luke com os olhos entrecerrados. – O conde Samuel Shurikovsky. Era o amante de Mikhail. – Shurikovsky – repetiu Luke assombrado – O governador? Acabo de lhe conhecer. – Mas como… – Não tem importância. Conte-me o tudo. Escutou atentamente o que Tasia lhe disse sem deixar de abraçá-la.


– Mas Nicolas não acredita em mim – concluiu – Quer que eu seja culpada e não escuta mais nada. O conde Shurikovsky é um homem muito importante, é o companheiro favorito do czar. Os criados sabiam que essa noite estava no palácio, mas têm medo de falar. Pode ser que lhes tenham ameaçado ou possivelmente lhes tenha pagado para que ficassem calados. Luke refletia em silêncio. O coração de Tasia se enchia de amor cada vez que pensava que ele tinha percorrido todo esse caminho para ir em sua busca. Com um pequeno gemido de prazer se encolheu mais contra ele. – Está comendo bem? – perguntou ele pondo em seu lugar um cacho que escapou do penteado dela. – Sim. Tenho muito apetite e me dão o que eu mais gosto: bortsch, blinis com caviar e uns maravilhosos cogumelos com nata. E enormes jarras de kasha. – Não vou perguntar o que é isso – disse Luke com uma careta divertida. Olhou-a e seguiu com o dedo os círculos azulados debaixo de seus olhos como se assim pudesse fazê-los desaparecer. – Não descansou muito. Tasia sacudiu a cabeça. – Nunca me deixarão ir, Luke. Não pode fazer nada. – Sim! – protestou ele – vou deixar-te um momento, tente dormir até que volte. – Não! – gritou ela pendurada nele – Não me deixe, se não vou acreditar que sonhei. Me abrace forte. Luke a abraçou sólido e tranquilizador. – Meu amor – sussurrou – minha doce e preciosa esposa, brigaria com o mundo inteiro por ti. Ela sorriu insegura. – Possivelmente te veja obrigado a fazê-lo. – O dia de nosso matrimônio calculei o número de noites que passaríamos juntos. Ao menos dez mil. Roubaram-me sete e nada voltará a nos separar. – Schh…não tente o destino. – Vou te dizer qual é nosso destino – declarou Luke olhando-a nos olhos –


nove mil novecentas e noventa e três noites juntos. E as terei lady Stokehurst, custe o que custar. Sentado nos degraus com uma perna dobrada, Nicolas esperava ao Luke. – De modo que pôde comprovar que a tratamos bem; boa comida, livros, bonitos móveis… – De todas as formas é uma prisioneira – objetou Luke friamente. – Contou Tasia o conto de Samuel Ignatevitch? Ao ver que Luke parecia não entender de quem falava continuou: – O conde Shurikovsky. De pé no alto das escadas, Luke olhou o príncipe. – E você decidiu não acreditá-la. – Nunca houve nenhuma relação desse tipo entre Shurikovsky e Micha. – Perguntou a Shurikovsky? – Isso só serviria para me desacreditar. É uma mentira que Tasia inventou para nos fazer passar por tolos. – Então por que não o disse antes na corte, no momento do julgamento? Ela não mentiu então e tampouco o está fazendo agora. Mas você prefere enviar a uma mulher inocente à forca antes que enfrentar-se a desagradável verdade. – Atreve-se a pronunciar a palavra “verdade”? – grunhiu Nicolas. Levantou-se enfrentando Luke. Os dois homens eram aproximadamente da mesma estatura, mas a constituição de Luke era mais robusta enquanto que Nicolas era mais magro e leve, como um felino. – Vá interrogar Shurikovsky – continuou – tem minha permissão. Eu gostaria de ver sua cara quando compreender que a culpada é sua esposa. Luke fez intenção de ir-se. – Espere! – resmungou Nicolas – Não tente ver o Shurikovsky agora. Vá depois do pôr-do-sol. É assim como se fazem as coisas na Rússia o entende? – Entendo que aos russos adoram as intrigas. – Preferimos falar de “discrição” – objeto Nicolas – uma qualidade da qual


você parece carecer primo. Esta noite lhe acompanharei. Shurikovsky quase não fala inglês de modo que necessitará um intérprete. Luke soltou uma seca gargalhada. – Você é a última pessoa que quero ter a meu lado. – Se acredita que persigo a sua mulher por razões pessoais então você é um estúpido. Se, se demonstrar que me equívoco, se souber com certeza que Tasia é inocente, beijarei a prega de seu vestido e lhe suplicarei que me perdoe. Quão único desejo é que o assassino de meu irmão seja castigado. – Você necessita um culpado – respondeu Luke cáustico – Pouco te importa de quem se trate, contando que alguém morra em troca de Mikhail. Nicolas se esticou. – Irei com você esta noite Stokehurst – disse sem emoção – para trazer a luz todas as mentiras de Tasia e lhe demonstrar que é ela quem matou Micha. Luke passou a tarde chateando lorde Bramwell e seu secretário até que redigiram uma lista oficial dos maus entendimentos e o encarceramento ilegal sofridos pela esposa de um cidadão britânico. Ao anoitecer voltou para o palácio Angelovsky onde Nicolas lhe recebeu despreocupadamente enquanto mordia uma maçã. Ao ver a expressão de estranheza de Luke ao ver a fruta branca com a pele cor esmeralda, sorriu. – Uma especialidade russa – disse tirando outra de seu bolso – Quer provála? Embora não tivesse comido nada em todo o dia, Luke negou com a cabeça. – Que orgulhosos são os ingleses! – burlou-se Nicolas – Tem fome, mas nunca aceitará comida de minha mão. Entretanto só é uma maçã – disse atirando. Luke a apanhou habilmente. – Eu não sou seu primo! – disse antes de morder a doce fruta. – Certamente que sim! Tasia é a neta de um sobrinho de meu pai e você está casado com ela. Os russos são muito sensíveis aos laços familiares, embora sejam longínquos. – Mas parece que não os respeitam muito.


– O assassinato não ajuda a preservá-los. Trocaram um olhar assassino e se dirigiram para a carruagem que lhes esperava. O trajeto até o palácio Shurikovsky se fez em um pesado silêncio, as ruas estavam tranquilas, quase desertas. – É possível que o conde esteja com o czar esta noite – disse por fim Nicolas. Ao ver que Luke não respondia continuou em tom de conversa: – Estão muito unidos, quase como se fossem irmãos. Quando o czar vai ao campo sempre insiste para que Shurikovsky forme parte da corte. O governador é um homem poderoso e ardiloso. – Você lhe respeita? – Certamente que não! Shurikovsky ficaria de quatro patas e ladraria se o czar o pedisse. – O que sabe de suas relações extraconjugais? – Não tem, alguns homem se deixam dominar pelos desejos da carne, mas esse não é o caso de Shurikovsky. Além do poder político não há nada que lhe interesse. – Não é possível que seja ingênuo até esse ponto – protestou Luke. – Na Rússia a corte é um círculo muito restringido e não há nada que possa manter-se em segredo. Se Shurikovsky gostasse dos homens todo mundo saberia. Entretanto esse não é o caso. Por outra parte meu irmão, apesar dos esforços da família por impedir adorava vangloriar-se de suas conquistas. E nunca mencionou Shurikovsky, nem sequer disse que lhe conhecesse. É completamente seguro que não houve nada entre eles. – Então Mikhail era um incômodo para a família – refletiu Luke em voz alta – Até que ponto queriam que se calasse? Pela primeira vez os olhos amarelos refletiram um certo desconforto. Não – disse Nicolas em voz baixa – se, se atreve simplesmente a sugerir que… – Mataria-me? – sugeriu Luke – Imagino que você é capaz de matar…apesar da importância dos laços familiares. Nicolas lhe lançou um avesso olhar. Quando por fim chegaram à residência


Shurikovsky, uma mansão a beira do rio Neva, a tensão na carruagem era quase evidente. Dois homens estavam fazendo guarda diante da porta dourada. – Dvorniki – disse Nicolas descendo – São inofensivos. Antes de lhes esfolar me deixe que fale com eles. Luke lhe viu trocar umas palavras com os guardas e lhes deslizar umas moedas na mão. Por fim lhes deixaram entrar discretamente. Depois de falar com um mordomo, Nicolas fez gestos a Luke para que lhe acompanhasse por um corredor cheio de tapeçarias. – Não há ninguém da família. A condessa está no campo e o governador chegará tarde. – Então que vamos fazer? – Esperar. E beber. Gosta de álcool lorde Stokehurst? – Não muito. – Na Rússia dizemos “Quem não bebe não vive”. Entraram em uma biblioteca cujos móveis eram franceses, tinha umas estantes de mogno e grandes poltronas de couro. Um criado trouxe uma bandeja com garrafas geladas. – A vodca tem diferentes sabores – explicou – Brote de abedul, canela, pimenta, limão… – Provarei o de abedul – disse Luke. A uma ordem de Nicolas, o criado não demorou a voltar com outra bandeja com sardinhas, pão, manteiga e caviar. Nicolas se acomodou em uma poltrona com um suspiro de felicidade, com um copo em uma mão e uma fatia de pão negro com caviar na outra. Bebeu o conteúdo do copo de um gole e se serviu de outro. Olhava para Luke intensamente com seus estranhos olhos amarelos. – O que aconteceu? – perguntou assinalando os dedos metálicos de Luke. – Resultei ferido em um incêndio. – Ah! Nicolas, não expressou nem surpresa nem compaixão, simplesmente continuou lhe olhando. – Por que se casou com Tasia? Esperava apropriar-se de sua fortuna?


– Não necessito de seu dinheiro – respondeu Luke com tom gelado. – Então? Acreditou-se obrigado a fazê-lo por sua amizade com os Ashbourne? – Não. Luke jogou a cabeça para trás para beber sua vodca. O álcool parecia suave no princípio, mas de repente uma onda de calor lhe queimou a garganta e o nariz. – Então, por amor – continuou Nicolas sem a menor ironia – Nunca tinha conhecido alguém como ela, não é assim? – Não – reconheceu Luke à contra gosto. – Isso se deve a que foi educada segundo a antiga tradição do terem. Mantiveram-na no campo afastada de qualquer homem além de seu pai e alguns parentes. Protegeram-na como a um pássaro em uma jaula de ouro. Fazer isso antigamente era normal, mas fica cada vez mais estranho hoje em dia. Depois de seu baile de apresentação todos os homens de São Petersburgo a desejavam. Uma jovem tranquila, estranha, bonita e que diziam que era um pouco bruxa. Eu também poderia chegar a acreditá-lo quando olho em seus olhos. Todos a desejavam e a temiam ao mesmo. Salvo eu. Nicolas se interrompeu um momento para encher o copo de Luke. – Eu a queria para meu irmão. – Com que fim? – Mika necessitava alguém que se ocupasse dele e que compreendesse seus demônios. Necessitava uma esposa de sangue azul, intuitiva, capaz de ter uma infinita paciência e sobretudo necessitava uma mulher cujo sentido do dever a obrigasse a ficar a seu lado apesar de seus vícios. Todas essas qualidades as via em Tasia. Luke lhe fulminou com o olhar. – Não pensou que em vez de ajudar Mikhail ela corria o risco de que ele a destruíra? – Evidentemente, mas isso não importava se havia uma possibilidade de salvar Mika.


– Teve o que merecia – declarou Luke sombrio antes de dar outro gole. E agora é a vez de Tasia. Luke estava cheio de ódio, se algo chegasse a ocorrer a Tasia, Angelovsky o pagaria. Os dois homens, em silêncio, deixaram que a vodca lhes adormecesse. Foi sem dúvida graças a isso que Luke não saltou à garganta de seu inimigo. Um servente veio por fim para falar em voz baixa com Nicolas. Quando se retirou, este olhou para Luke com o cenho franzido. – Parece que Shurikovsky retornou, mais está doente. Bebeu demasiado – acrescentou encolhendo os ombros – Quer falar com ele de todas as formas esta noite? Luke ficou imediatamente de pé. – Onde está? – Em seu dormitório, preparando-se para deitar-se. Nicolas levantou os olhos ao céu ante a determinação de Luke. – De acordo, vamos. Com um pouco de sorte estará o bastante bêbado para havê-lo esquecido de tudo pela manhã. Só cinco minutos. Subiram até um luxuoso quarto em que Shurikovsky estava sentado na beira da cama, quieto enquanto um lacaio lhe despia. O governador parecia muito diferente do homem sofisticado e seguro de si mesmo que presidia o banquete celebrado em sua honra umas horas antes. Seu cabelo cinza estava revolto, seus olhos penetrantes estavam injetados de sangue e pelo decote da camisa se via seu peito fundo. Todo seu corpo cheirava a tabaco e álcool. – Realmente não sei o que estou fazendo aqui – resmungou Nicolas – Governador…Excelência – repetiu levantando a voz. O outro se dirigiu bruscamente ao lacaio que se sobressaltou. – Fora! O homem não o fez repetir. Passou sem dizer uma palavra diante de Luke que estava como uma sombra ao lado da porta. Seu instinto lhe dizia que se mantivesse escondido no momento e desse modo assistiu a uma estranha cena que se esforçou por entender apesar da barreira do idioma. – Perdoe que lhe incomode Excelência – dizia Nicolas em russo enquanto se


aproximava do homem magro na cama – serei breve e logo lhe deixarei descansar. Tenho que lhe fazer uma pergunta em relação à morte de meu irmão Mikhail Dmitrievitch. Vossa Excelência recorda ter conhecido a… Micha – disse o governador com voz pastosa levantando a vista para o homem de olhos amarelos. De repente pareceu voltar para a vida. Levantou os ombros, seus olhos se abriram como se estivesse vendo uma maravilhosa aparição e neles brilharam as lágrimas. – OH meu bonito, meu querido menino, quanto senti sua falta! Sabia que voltaria meu adorado, Mika. Nicolas ficou petrificado. – O que? – sussurrou. Shurikovsky puxou o casaco de Angelovsky insistentemente. Nicolas obedeceu à silenciosa ordem e se ajoelhou a seu lado. Seus olhos amarelos não deixavam de olhar a cara do governador e ficou completamente imóvel enquanto a mão trêmula do ancião lhe acariciava o cabelo. Os traços de Shurikovsky estavam deformados por uma dolorosa necessidade. – Mika, meu amor…Eu não queria te fazer mal, mas você tinha me machucado tanto dizendo que queria me deixar…E agora tornaste, lioubezny, e isso é quão único importa. Da porta Luke viu que Nicolas estremecia. – O que fez? – perguntou Angelovsky. O governador sorriu com êxtase como se estivesse um pouco louco. – Querido não vai mais me abandonar verdade? Tem toda a doçura do paraíso em suas mãos. E precisas de mim também, por isso voltou para mim. Seguiu com ternura a curva da mandíbula crispada de Nicolas. – A ideia de lhe perder me destroçava. Ninguém pode entendê-lo, ninguém se ama como nós. Quando te burlou de mim com tanta crueldade me voltei louco e agarrei o abridor de cartas. Só queria deter suas horríveis palavras e sua risada cruel. Prosseguiu com um gemido de queixa:


– Meu menino mal, meu belo menino, perdoo-te. Poremos isto na lista de nossos pequenos segredos, meu muito querido amor… Inclinou a cabeça para Nicolas que retrocedeu de um salto antes que os lábios de Shurikovsky tocassem os seus. Respirava com dificuldade e estava tremendo. Estupefato e pálido sacudiu a cabeça, em seguida, rápido como um felino Saiu do quarto enquanto o governador se afundava na cama soluçando. Luke seguiu Nicolas pelo palácio. Maldição Angelovsky – grunhiu – vai me dizer o que aconteceu? Nicolas não se deteve até que estiveram fora da casa. Andou uns metros tropeçando e depois ficou imóvel afastando a cara, tentando respirar. – O que lhe disse? – insistiu Luke – Pelo amor de Deus… – Confessou – disse por fim Nicolas. – Divagações de um velho bêbado sem dúvida – disse Luke embora seu coração desse um tombo. – Não. Matou Mika, disso não há nenhuma dúvida. Luke fechou os olhos. – Louvado seja Deus! – murmurou. O chofer, que lhes tinha visto, aproximou a carruagem de Angelovsky, mas Nicolas, ainda impressionado, não se deu conta. – Não posso acreditá-lo. Era muito mais fácil pensar que a culpada fosse Tasia. Muito mais fácil… – Agora vamos ver a polícia – disse Luke. Nicolas soltou uma amarga gargalhada. – Não entende nada da Rússia! Sem dúvida as coisas são diferentes na Inglaterra, mas aqui nenhum membro do governo é culpado nunca. Sobretudo um tão próximo ao czar como o governador. Muitas coisas, as reformas, a política, giram ao redor dele. Diga uma só palavra sobre Shurikovsky e se encontrará flutuando sem vida no Neva. Se ele cair, leva muita gente com ele. A justiça não existe aqui. Apostaria que os outros sabiam da relação entre o governador e meu irmão. O ministro do interior, por exemplo; fez sua carreira utilizando os pequenos vícios secretos dos outros. Mas era mais cômodo para todos falsear a investigação e o julgamento sacrificando Tasia pelo interesse


público. Luke estava furioso. – Se acredita que vou deixar que executem a minha esposa para que livrem um de seus oficiais… – Neste momento não acredito em nada – cortou Nicolas ameaçador. Estava começando a recuperar a cor e parecia respirar com mais facilidade. – Vou tirar Tasia tão depressa como me é possível deste maldito país – exclamou Luke. Nicolas assentiu com a cabeça. – Nesse ponto estamos de acordo. Luke esboçou um cínico sorriso. – Perdoe mais me custa aceitar essa mudança de julgamento. Faz uns minutos estava disposto a pendurá-la você mesmo. – Desde o começo só desejei saber a verdade. – Poderia havê-la buscado com maior interesse! – Vocês os ingleses são bons dando lições – sibilou Nicolas – Sempre fazem o que está certo não é assim? Todas suas leis e todas suas regras…Só respeitam o que é igual a vocês. Para vocês somente os britânicos são seres civilizados, os outros só são bárbaros. – E esta experiência deveria me demonstrar o contrário? – perguntou Luke sarcástico. Nicolas suspirou. – A vida de Tasia aqui acabou e não posso fazer nada para mudá-la. Mas lhe ajudarei a levá-la sã e salva a Inglaterra. É culpa minha que ela esteja em perigo agora. – E Shurikovsky? – quis saber Luke. Nicolas olhou de esguelha ao chofer que esperava perto deles e baixou a voz. – Ocuparei-me pessoalmente de que se faça justiça. – Não pode lhe matar a sangue frio! – protestou Luke. – Só há uma forma de fazê-lo e sou eu quem deve encarregar-se disso.


– Evidentemente o governador está caindo pelo peso de sua culpabilidade – argumentou Luke – Estou seguro de que não vai sobreviver. Por que não deixar que o tempo se encarregue dele? – Você poderia permanecer indiferente se tivessem assassinado a seu irmão? – Não tenho irmãos. – Então a sua irmã pequena. Não tentaria vingar você mesmo sua morte se essa fosse a única solução? Luke não respondeu. – Pode que pense que um parasita como Mika não vale a pena – continuou em voz baixa Nicolas – e sem dúvida tem razão. Mas nunca poderei esquecer que uma vez foi um menino inocente. E eu gostaria que entendesse algo: Micha não era culpado de converter-se no que se converteu. Nossa mãe era uma camponesa inculta, boa somente para ter filhos. Quanto a nosso pai, ele era um monstro. Ele… Nicolas engoliu em seco antes de prosseguir com tom neutro: – Às vezes encontrava meu irmão em um canto escuro ou dentro de um armário chorando. Todos sabiam que era o brinquedo sexual de meu pai. Por que Mika e não eu? Ignoro-o. Em qualquer caso ninguém se atrevia a intervir. Um dia tentei enfrentar meu pai, mas me golpeou até que perdi o sentido. Não é divertido estar à mercê de um indivíduo que ignora o que é a compaixão. Ao final fui o bastante velho para…convencer a meu pai de manter-se afastado de Micha, mas já era muito tarde, o mal já estava feito. Meu irmão tinha sido quebrantado antes que tivesse tempo de ter uma vida normal. E eu também – acrescentou Nicolas com um débil sorriso. Luke olhou a longa e melancólica avenida, a casa que se via ao longe e a que acabavam de abandonar. Nunca em sua vida havia se sentido tão mal, tão desconjurado, tão…britânico. Este belo país dobrava os homens a sua vontade, fossem orgulhosos ou humildes, ricos ou pobres. – O passado de Mikhail e sua morte não são de minha incumbência – disse com uma voz carente de entonação – Pouco me importa o que irá fazer, quão único desejo é levar a minha esposa a Inglaterra.


Tasia descansava tranquila. Deitou-se obedientemente na cama assim que Luke se foi e pela primeira vez em vários dias tinha sido capaz de relaxar. Seu marido a tinha encontrado e estava em algum lugar da cidade tentando salvá-la. Acontecesse o que acontecesse, ela tinha a consciência tranquila, já não havia dúvidas nem acusações que pudessem perturbá-la. Deitada sobre suas costas, com o longo cabelo estendido sobre o travesseiro, flutuava entre doces sonhos. Foi bruscamente despertada por uma grande mão em sua boca para afogar seu grito enquanto uma voz de homem lhe sussurrava no ouvido: – Ainda não terminei contigo.


Onze

Tasia abriu os olhos e se deu conta em seguida de que era seu marido. Com o coração golpeando fortemente em seu peito, relaxou ao mesmo tempo em que a mão a soltava. – Luke… – Schh… Ele se apoderou de seus lábios com paixão. – Como entraste? – perguntou ela depois em voz baixa – o coronel Radkov me disse que tinham reforçado a segurança e que já não tinha direito a receber visitas. – Nicolas anulou essa ordem. Estamos presos neste quarto por todo a noite. – Mas porque há… – Depois. Desejo-te tanto! Deitou-se em cima dela e o resto do mundo despareceu. Era tão maravilhoso sentir seu peso! Parecia que não lhe tinha visto há meses. Ela gemeu e se moveu para livrar-se do lençol que a incomodava enquanto ele continuava beijando-a. Ele acabou incorporando-se um pouco para admirar o corpo de Tasia mal coberto por uma leve camisola. Ela a fez cair e ele seguiu o mesmo caminho com os lábios beijando a ponta de seus seios. Deitados um ao lado do outro, tocavam-se e se acariciavam com tal frenesi que Luke não estava ainda completamente nu quando entrou nela. Tasia gritou de dor, mas seu corpo se amoldou em seguida à força do homem. Então ele começou a mover-se fazendo-a gemer de prazer. De repente, ele rodou sobre suas costas arrastando-a com ele, com a mão nas nádegas dela e ela se encontrou em cima dele, levando as rédeas, atrasando o instante do êxtase. Ele seguiu o ritmo que ela marcava com os olhos brilhando na escuridão como safiras.


Ao fim ela foi incapaz de resistir mais e uma maré maravilhosa a envolveu fazendo-a tremer mordendo os lábios. Luke a atraiu para ele e afogou com um beijo o grito que ia escapar de sua boca antes de explodir de êxtase também. Esgotado, dormiu com Tasia deitada sobre seu peito. Um pouco mais tarde permitiu que Tasia lhe despisse, como um sultão aceitando a adoração de sua favorita. – Não pode imaginar o quanto senti falta disto – disse ela atirando sua camisa ao chão. Beijou amorosamente o torso e acariciou seu sedoso cabelo. – Acredito que faço uma ideia. Fez constantes progressos nesse aspecto. Realmente tenho que te levar comigo a Inglaterra, seria uma pena desperdiçar um talento como este. – Estou completamente de acordo. Vamos em seguida. – Amanhã pela noite – respondeu Luke ficando sério de novo. Contou o que tinha acontecido e lhe explicou o plano que Nicolas tinha urdido enquanto voltavam para o palácio Angelovsky. Tasia lhe escutou sem dizer nada tentando dominar suas emoções. Alívio, esperança de poder seguir vivendo com Luke na Inglaterra, é obvio. Entretanto também experimentava um sentimento de injustiça ao pensar em todo aquilo do que se viu privada. – Sentirei-me feliz de abandonar a Rússia – disse por fim com amargura – A primeira vez me senti destroçada, mas agora não. É meu país, minha pátria, mas só tinha visto o aspecto brilhante dela. Não tinha compreendido até que ponto tudo estava corrompido sob todo esse esplendor. Quanta gente foi sacrificada pelo “bem público”? Aqui não há futuro. Dizem que todos somos filhos do czar ao qual chamam Batiouchka, pai de todas as Russias, um pai vigilante que nos ama e nos protege como o mesmo Deus. É uma mentira, um conto inventado para favorecer a alguns privilegiados lhes permitindo aproveitar-se da pobreza de outros. O czar, seus ministros, e todas as famílias como a minha, e a dos Angelovsky, pouco se importam o futuro da Rússia. Só querem assegurar-se de que nada ameace sua comodidade. Se consigo sair daqui não voltarei nunca mais, nem que me ofereçam essa possibilidade. Ao ouvi-la, Luke pôde notar ira e tristeza e tentou consolá-la.


– Perder as ilusões – disse delicadamente – é uma das coisas mais dolorosas de acontecer. Os homens mais honoráveis são capazes de trair e de ser cruéis, está na natureza humana. A escuridão e a luz formam parte de cada um de nós. – Graças a Deus tenho a ti! – suspirou Tasia apoiando a cabeça em seu ombro – Você nunca me traiu. – Jamais! – prometeu ele. – É o melhor homem que conheço. – Não conhece muitos – murmurou Luke com uma pequena gargalhada um pouco envergonhada – mas te amo mais que a minha vida, disso pode estar segura Tasia, e sempre será assim.

No dia seguinte pela manhã Nicolas abriu a porta e pediu para ficar um momento a sós com Tasia. Luke se negou imediatamente afirmando que o que tivesse que dizer podia dizê-lo em sua presença. Começou uma discussão a qual Tasia pôs fim ficando nas pontas dos pés para murmurar no ouvido de seu marido: – Rogo Luke, nos conceda uns minutos. Luke abandonou a contra gosto o quarto não sem antes olhar ameaçador para Nicolas. Tasia olhou a seu primo. – O que queria me falar Nicolas? Ele a olhou um momento em silencio com expressão indecifrável, ela não pôde evitar dar-se conta de quão atrativo era. Lhe cortou a respiração ao lhe ver dirigir-se para ela e ajoelhar-se com um fluido movimento. Inclinando a cabeça levantou a bainha de seu vestido e o beijou em um antigo gesto de comemoração, e depois se levantou. – Perdoe-me – disse ele com rigidez – Te fiz muito mau e estarei em dívida contigo durante duas gerações. Tasia tentou recuperar-se da surpresa, nunca teria pensado que Nicolas ia desculpar-se e, sobretudo não que o faria dessa forma tão solene e fora de moda. – Só te peço que cuide de minha mãe – disse – temo que a castiguem por me


haver ajudado a fugir. – Maria não tem nada que temer, tenho amigos no Ministério do Interior e na polícia. Ficarão furiosos com seu desaparecimento, mas só poderão fazer a Maria pergunta de rotina. Subornarei alguns oficiais de alta graduação para estar seguro de que não a meterão na prisão para interrogá-la e ao final cheguem à conclusão de que é uma mulher um pouco parva enganada por uma filha muito ardilosa. Confie em mim. – Acredito-te. – Perfeito. Já estava virando-se para sair quando lhe chamou suavemente. – Kolia… Ele a olhou de frente com uma expressão de surpresa em seu rosto habitualmente inexpressivo. Nunca ninguém havia utilizado antes o diminutivo de seu nome. – Sabe que às vezes tenho…premonições – continuou ela. – Sim – disse ele com um leve sorriso – Seus famosos dotes de bruxa. Se tiver “visto” algo sobre mim, prefiro não sabê-lo. – Está a ponto de te acontecer uma desgraça – insistiu – deves abandonar a Rússia o mais rapidamente possível. – Sou perfeitamente capaz de cuidar de mim mesmo prima. – Vai te acontecer algo terrível a menos que comece a pensar em começar de novo em outro lugar Nicolas. Tem que acreditar em mim! – Tudo o que desejo, tudo o que conheço, encontra-se aqui. Não há nada para mim fora da Rússia e prefiro morrer aqui antes que viver em outro lugar o resto de minha vida. Sorriu com ironia. – Vá-te com seu marido inglês, lhe dê uma dúzia de filhos e guarda sua preocupação para quem a necessite. Dou svidania prima. – Adeus Nicolas – respondeu ela cheia de compaixão e ansiedade enquanto ele saía do quarto.


Maria Petrovna Kaptereva entrou no palácio Angelovsky vestida com uma capa de cetim verde com capuz que a tampava da cabeça aos pés. Os guardas a saudaram com uma mescla de respeito e curiosidade. O coronel Radkov, o oficial enviado pelo czar para encarregar-se da segurança no palácio, aproximou-se dela. – A prisioneira não esta autorizada a receber visitas – disse com firmeza. Antes que Maria pudesse responder, Nicolas interveio: – Mrs. Kaptereva tem permissão para está dez minutos com sua filha sob minha responsabilidade. – Isso não é o que dizem as ordens que recebi. – Certamente, se quer apresentar uma queixa ante o ministro da Justiça, entenderei-o, não sou rancoroso – disse Nicolas com um sorriso frio que desmentia suas palavras. O homem empalideceu com a ameaça implícita e moveu a cabeça resmungando algo incompreensível. Angelovsky tinha ganhado com toda justiça uma grande fama de crueldade, e ninguém em seu são julgamento se atreveria a lhe contrariar. Maria pousou em silêncio sua pequena mão carregada de anéis no braço que Nicolas lhe oferecia e juntos subiram a escada. Luke estava no hall das acomodações de Tasia quando a porta se abriu. Trocou um furtivo olhar cúmplice com Nicolas; até agora tudo ia bem; e depois o príncipe se retirou murmurando: – Dez minutos. Fechou com chave a porta. Luke olhava à mulher que estava diante dele, dando-se conta distraído da semelhança superficial entre mãe e filha: a mesma estatura, o cabelo negro e o rosto de porcelana. – Senhora… – disse aproximando os lábios dos dedos de Maria. Maria Petrovna parecia jovem para sua idade, era muito bonita, com uns traços mais clássicos que os de sua filha, seus olhos eram mais redondos, as sobrancelhas mais delicadas, seus lábios formavam uma estudada careta muito diferente da sensualidade dos de Tasia, mas se percebia nela uma fragilidade que


com os anos se faria mais evidente. Luke preferia o brilho menos convencional de Tasia que ia lhe fascinar sempre. Maria lhe olhou e lhe sorriu com paquera. – Que agradável surpresa, lorde Stokehurst – disse em francês – esperava ver um pálido e magro britânico e me encontro com um belo homem moreno e forte. Eu adoro os homens altos, com eles uma mulher se sente segura e protegida. Soltou com elegância o fechamento de sua capa e lhe permitiu que a tirasse. Um vestido amarelo realçava sua figura e estava coberta de joias. – Mamãe! – exclamou Tasia com a voz trêmula pela emoção. Maria se voltou com um deslumbrante sorriso e estendeu os braços para sua filha que se apressou a jogar-se neles. Beijaram-se com uma mescla de lágrimas e exclamações de alegria. – Não me deixaram vir até hoje Tasia. – Sei. – Está tão bonita! – Você também mamãe, como sempre. Foram ao dormitório e se sentaram na cama com as mãos entrelaçadas. – Tenho tantas coisas que te contar! – exclamou Tasia abraçando sua mãe. Maria, que não gostava de muitas amostras de carinho, limitou-se a dar uns tapinhas nas costas de sua filha. – Como vai tudo na Inglaterra? – perguntou em russo. O rosto de Tasia se iluminou. – É como estar no Paraíso. Maria assinalou com a cabeça o quarto onde Luke esperava discretamente. – É um bom marido? – Maravilhoso, generoso, amável. Amo com toda minha alma. – Possui terras e mansões? – É muito rico. – Quantos criados?


– Ao menos uma centena, possivelmente mais. Maria franziu o cenho. Parecia bastante modesto para os parâmetros da aristocracia russa. Houve uma época em que os Kapterev tinham quase quinhentas pessoas empregadas e Nicolas Angelovsky, para manter suas vinte e sete propriedades tinha mais de mil. – Quantas casas tem? – Três mamãe. – Só… Maria suspirou decepcionada. – Enfim, se for bom contigo… – consolou-se – por outra parte é um homem bonito e isso é importante. Tasia esboçou um sorriso e apertou carinhosamente a mão de sua mãe. – Estou esperando um filho, mamãe. Estou quase segura. – De verdade? O rosto de Maria refletia alegria e desagrado ao mesmo tempo. – Mas Tasia…sou muito jovem para ser avó! Tasia riu antes de escutar os conselhos de sua mãe referentes ao que era necessário que comesse uma mulher grávida e o que tinha que fazer para voltar a recuperar a linha depois do parto. Maria também lhe prometeu lhe enviar o vestido de batismo que tinham usado quatro gerações dos Kapterev. Por desgraça os dez minutos passaram muito rápido. Bateram na porta e Luke entrou no dormitório. Tasia se sobressaltou e abriu os olhos preocupada. – É a hora – disse ele muito tranquilo. – Não me contou nada de Varka mamãe. – Esta bem, queria trazê-la comigo, mas Nicolas proibiu. – Queira lhe transmitir todo meu carinho e lhe dizer que sou feliz? – É obvio. Maria estava tirando o colar e os braceletes. – Tome ponha isso quero que fique com elas. Tasia negou com a cabeça surpreendida. – Não, sei o muito que você gosta de suas joias.


– Pegue-as! – insistiu Maria – Hoje só estou usando as menores, francamente, já estou cansada destas bagatelas. As bagatelas, como ela as chamava, valiam em realidade uma fortuna, havia duas fileiras de pérolas e diamantes e um bracelete de ouro com umas enormes safiras em cabochão. Ignorando os protestos de Tasia, Maria o pôs no pulso e deslizou os pesados anéis em seus dedos, um nó de rubis que se supunha que desencardiam o sangue, um diamante de dez quilates e um maravilhoso pássaro de fogo composto de esmeraldas, safiras e rubis. – Seu pai me deu isso de presente quando nasceu – Disse Maria pondo um broche feito de pedras preciosas no sutiã de sua filha. – Obrigado mamãe. Tasia se levantou e Luke lhe pôs a capa verde sobre os ombros, lhe jogando o capuz sobre a cabeça. Ela se dirigiu a sua mãe, preocupada. – Quando descobrirem que é você quem está aqui em meu lugar… – Tudo ficará bem – assegurou Maria – Nicolas me deu sua palavra. Nicolas entrou no quarto, impaciente de repente. – Basta de bate-papo! Vamos Tasia! Luke acariciou a bochecha de sua mulher antes de empurrá-la com suavidade para Angelovsky. – Reunirei-me contigo mais tarde. – O que? Tasia se voltou para ele muito pálida. Você não vem comigo? Ele negou com a cabeça. – Isso poderia parecer estranho. É melhor que Radkov e seus soldados creiam que fiquei para te consolar. Vigiam-nos de perto. Reunirei-me contigo e com Biddle na ilha Vassilievsky. Situada ao leste da cidade, a ilha tinha um porto que se abria ao golfo da Finlândia. Cheia de pânico, Tasia se agarrou à cintura de seu marido. – Não irei sem ti, não quero te deixar.


Luke sorriu tranquilizando-a; apesar da presença de Maria e de Nicolas, beijou-a nos lábios murmurando: – Tudo ficará bem, não demorarei, mas lhe suplico, vá sem protestar. – “Suplico”? – não pôde evitar repetir Nicolas – Agora já entendo porque os ingleses têm fama de deixar-se levar por suas mulheres. Suplicar que obedeça quando deveria lhe dar chicotadas! O dia que um russo que se preze se dirija assim a uma mulher… Tasia lhe fulminou com o olhar. – Graças a Deus não estou casada com “um russo que se preze”, pois não querem esposas e sim escravas. Compadeço às que têm um pouco de cérebro ou de caráter, ou simplesmente alguma opinião própria. Nicolas olhou par Luke por cima da cabeça de sua prima com um brilho divertido no olhar. – Estragaste-a – disse – É melhor que volte para a Inglaterra. Obedecendo finalmente à pressão de seu marido, Tasia se soltou e se dirigiu à porta quando viu uma sombra no salãozinho e ouviu passos amortecidos no tapete. Outros também o tinham ouvido e Luke foi o primeiro em reagir. Atravessou a sala sem fazer ruído para apanhar o intruso, um sentinela que estava escutando atrás da porta. Pô uma mão na boca mais o homem se debateu tão forte que os dois se chocaram contra a parede. Luke lutava com todas suas forças para dominar o indivíduo enquanto evitava que chamasse pedindo ajuda, um só grito e um exército de guardas acudiriam fazendo impossível à fuga de Tasia. Luke notou vagamente que Nicolas se unia a ele. Houve um brilho de aço, uma explosão silenciosa de luta, e o homem, deixou de debater-se e desabou nos braços de Luke. Este compreendeu que Nicolas tinha apunhalado o guarda antes de aplicar uma toalha, ou possivelmente uma jaqueta, na ferida para absorver o sangue. O soldado convulsionou pela última vez. – Não deixe que o sangue se estenda sobre o tapete – disse Nicolas. Maria estava muito pálida e Tasia sem saber o que fazer. Luke conteve com determinação uma arcada e ajudou Nicolas a tirar o sentinela dali. A algumas leva de distância, no corredor, havia uma estadia cheia de quadros e de móveis


quebrados. Puseram rapidamente o cadáver em um canto atrás de uma cômoda e escondido atrás de uns tecidos. – Outro esqueleto na câmara dos horrores da família – disse Nicolas com sarcasmo. Estava, como de costume, impassível com seus olhos amarelos. Luke sentiu asco por sua indiferença, mas se deu conta de que Nicolas estava apertando os punhos. – Se crê que a visão da morte me incomoda – murmurou Nicolas que tinha seguido a direção de seu olhar – te equivoca. Em outro tempo talvez, mas agora o que me incomoda é a falta de emoções. – Se você diz… – respondeu Luke pouco convencido. – Vamos! Fizemos um pouco de ruído, não demorarão a darem conta de que falta um soldado e subirá o regimento inteiro.

Tasia estava muito tranquila quando desceu as escadas agarrada pelo braço de Nicolas com a cabeça inclinada fingindo ser uma mãe afligida, o capuz escondia quase todo seu rosto. A morte do soldado a tinha impressionado e tirava forças graças à fria determinação de seu primo. Estava abandonando o palácio onde Micha tinha sido assassinado, o lugar onde tinha começado sua estranha odisseia. Mas agora tinha Luke e um lar. Pôs uma mão em seu ventre, por debaixo da capa, no lugar onde estava crescendo seu filho. Meu Deus me conceda a oportunidade de voltar para casa, nos ajude a estar a salvo. Seus lábios formavam as palavras em silencio enquanto sentia os olhares dos guardas. Um deles lhes cortou o passo fazendo com que se detivessem e Tasia apertou os dedos no pulso de Nicolas. – Coronel Radkov – disse este – Que deseja? – Dizem que Mrs. Kaptereva é muito bonita, Sua Alteza. Sentiria-me muito honrado se pudesse lhe ver o rosto. Nicolas respondeu com o maior desprezo: Esse é um pedido digno de um caipira. Não sente respeito algum pela tristeza de uma mãe para insultá-la dessa forma? Houve um longo silencio carregado de desafio e ao final foi Radkov quem se


bateu em retirada. – Me perdoe senhora – murmurou – Não queria ser grosseiro. Tasia assentiu com a cabeça e começou a andar de novo enquanto Radkov se afastava para lhes deixar passar. Transpassou a entrada saindo ao ar fresco da noite. Uma carruagem lhes estava esperando afastado da iluminação das tochas. – Rápido! – sussurrou Nicolas ajudando-a a subir na carruagem. Com um pé no estribo, ela se virou aferrando-se às mãos do homem com seus olhos de gata quase brilhando sob o capuz; estava subitamente aterrorizada, não pela ameaça que se abatia sobre ela, mas sim pelo perigo que espreitava a ele. Pôde lhe ver dando gritos de dor e com o rosto ensanguentado. Estremeceu-se. – Tem que abandonar a Rússia, Nicolas – disse com urgência – veem conosco a Inglaterra. – Não farei tal coisa embora me custe à vida – respondeu ele com uma seca gargalhada. – Justamente se trata disso! – insistiu ela. Nicolas a olhou sério e se inclinou para o interior da carruagem como se quisesse lhe dizer algo importante e confidencial. Ela se manteve completamente imóvel. – A gente como você e eu sempre sobrevivem – murmurou ele – Somos os donos de nossa sorte e a dobramos a nossa vontade. Quantas mulheres teriam passado da situação de presas em um sinistro cárcere russo a de esposa de um aristocrata inglês? Fez uso de sua beleza, de sua inteligência e de todo seu talento para conseguir o que desejava. Eu farei o mesmo. Não se preocupe comigo. Desejo-te que seja muito feliz. Seus frios lábios se pousaram sobre os de Tasia e ela estremeceu como se a houvesse tocado a morte. A porta da carruagem se fechou e ela se apoiou no assento quando o chofer açulou os cavalos. De repente se deu conta de que não estava sozinha. – OH! – Lady Stokehurst – disse Biddle em voz baixa – é um prazer ver que goza de boa saúde. Senhor Biddle! Começo a acreditar que realmente vou voltar para casa.


– Sim milady. Assim que nos reunamos com lorde Stokehurst no cais. Ela se esticou, preocupada. – Não é o suficientemente cedo para mim. Maria se manteve ao lado de Luke diante da janela enquanto a carruagem se afastava e suspirou aliviada. – Graças a Deus já está segura. Olhou a seu genro e lhe pôs uma mão no braço. – Obrigado por ter salvado Anastásia. Sinto-me reconfortada ao saber que tem um bom marido. Devo confessar que ao princípio estava um pouco contrariada por sua falta de fortuna, mas agora me dou conta que há coisas mais importantes em um matrimônio, como a confiança e o amor. Luke abriu a boca e voltou a fechar. Era o herdeiro de um ducado e, além disso, teria que acrescentar os ganhos procedentes das indústrias aos já por si consideráveis de suas propriedades que estavam repartidas por sete regiões; isso sem contar uma participação majoritária em uma importante companhia ferroviária. E nunca poderia imaginar que um dia ia enfrentar uma sogra que tinha o aprumo de lhe perdoar por sua “falta de fortuna” – Obrigado – conseguiu dizer entretanto. Os olhos de Maria se encheram de lágrimas. – É muito bom. Bom e responsável. Ivan, o pai de Tasia era como você. Sua filha era a felicidade de sua vida. “Meu tesouro, meu pássaro de fogo”, chamavaa. Seu último pensamento foi para ela, suplicou-me que me assegurasse de que se casaria com um homem que soubesse cuidar dela. Soprou delicadamente. – Convenci a mim mesma de que teria tudo o que desejasse se, se casava com um Angelovsky, neguei-me a escutá-la quando me suplicou que não a forçasse a casar-se com ele Acreditei que só era um capricho de uma adolescente muito romântica. Secou os olhos com o lenço que lhe entregava Luke. – Tudo o que lhe aconteceu é minha culpa.


– Não culpe a si mesma – disse Luke em voz baixa – é difícil para todos, mas Tasia estará a salvo a partir de agora. Sim – respondeu Maria lhe beijando na bochecha ao modo europeu – vá se reunir com ela rapidamente. – Essa é minha intenção, não se preocupe mais por sua filha, Mrs. Kaptereva, estará segura na Inglaterra, e mais feliz do que teria sonhado. Tasia e Biddle esperavam no final do mole entre marinheiros de licença, e comerciantes que se queixavam do mal estado de suas mercadorias. Escondida na sombra Tasia vigiava com ansiedade a chegada de seu marido. Biddle, notando-a cada vez mais nervosa, disse para tranquilizá-la: – É muito cedo para que tenha podido chegar à ilha, lady Stokehurst. Ela aspirou com força. – E se tiverem descoberto meu desaparecimento? É possível que lhe retenham para que a polícia lhe interrogue e lhe acuse de crimes contra o governo imperial e então… – Não demorará – tranquilizou Biddle embora com uma certa angústia na voz. Tasia se esticou ao ver que se aproximava um homem vestido de vermelho e negro, o uniforme dos guardas. Parecia suspeitar de algo, ia perguntar quem era e que estavam fazendo ali… – Meu Deus! – murmurou Tasia a beira do pânico. Pensou rapidamente e logo passou os braços ao redor do pescoço do assombrado lacaio. Ignorando sua exclamação de surpresa, apertou seus lábios contra os dele e não interrompeu o beijo até que o guarda esteve muito perto deles. – O que está acontecendo aqui? – grunhiu o policial. Tasia soltou Biddle com fingida surpresa. – OH senhor! – sussurrou – lhe suplico, não diga a ninguém que nos viu. Vim ver meu amante e meu pai certamente não passaria… O policial ficou sério. – Seu pai a açoitaria sem dúvida, e com razão, se soubesse o que está fazendo.


Tasia lhe olhou com os olhos cheios de lágrimas. – É nossa última noite juntos, senhor – gemeu pendurando-se no braço de Biddle. O soldado olhou a frágil silhueta de Biddle com cepticismo. Como podia um tipo assim inspirar tal devoção? Houve um terrível silêncio e ao fim cedeu: – Despeça-se dele e depois lhe diga que se vá – resmungou – E pode estar segura de que seu pai sabe o que lhe convém. As filhas obedientes são a alegria de seus pais. Uma bonita jovem como você…seguro que lhe encontram alguém melhor que este inglês magricela. Tasia agachou à cabeça. – Sim, senhor. – Vou fingir que não lhes vi e terminarei de fazer a ronda. Mas – acrescentou agitando um dedo ameaçador – espero não voltar vê-la quando passar de novo por aqui. – Spassivo – agradeceu ela tirando um de seus anéis para dar – Graças a esse presente certamente ele não se apressaria em voltar. O guarda aceitou a joia com um breve movimento de cabeça e, olhando avessamente para Biddle, continuou seu caminho. Tasia soltou o ar que estava contendo antes de olhar o lacaio com um sorriso de desculpa. – Lhe disse que você era meu amante, foi à única coisa que me ocorreu. Biddle a olhava assombrado, incapaz de pronunciar uma só palavra. – Encontra-se bem? – perguntou ela surpresa por seu silêncio – Escandalizei? Ele engoliu em seco com dificuldade e puxou o pescoço da camisa. – Eu…Não sei como vou poder olhar a Sua Senhoria à cara a partir de agora. – Estou segura de que o entenderá – Tasia começava a ficar com pena antes de sobressaltar-se ao ver que outro homem se aproximava deles. Biddle se esticou, preparando-se para um novo assalto, mas Tasia se lançou para o desconhecido com uma exclamação de prazer. – Tio Kirill! Sob a barba, o rosto de Kirill relaxou enquanto Tasia desaparecia entre seus


poderosos braços. – Minha pequena sobrinha – murmurou com ternura – Não serve de nada que te tiro da Rússia se insistir em voltar. Esta vez ficará na Inglaterra me promete isso? Tasia sorriu. Prometo tio. – Nicolas me escreveu contando tudo. Disse-me que tinha te casado. Kirill a afastou à distância de um braço para vê-la melhor. – Feliz como uma rosa – aprovou ele olhando por cima da cabeça dela para Biddle – Esse pequeno inglês deve ser um bom marido. – OH não! – retificou rapidamente Tasia – este é seu criado de quarto. Meu marido não demorará a reunir-se conosco…se tudo for bem. Franziu o cenho ao pensar no perigo que corria Luke. – Ah! – disse Kirill entendendo – vou a seu encontro, mas primeiro te acompanharei ao navio. – Não! Não penso ir a nenhuma parte sem ele. Kirill abriu a boca para protestar, mas logo assentiu com a cabeça. – Seu marido é alto? – Sim. – Moreno? – Sim. – Com uns dedos artificiais e com uma leve claudicação? Tasia olhou seu tio com assombro, em seguida se virou e viu Luke que se aproximava deles. Estava em um penoso estado e efetivamente coxeava um pouco mais nunca lhe tinha parecido mais atrativo. Correu para deitar-se em seus braços. – Luke, está bem? Ele lhe agarrou o rosto entre as mãos e a beijou nos lábios. – Não. Tenho vários machucados, doem-me todos os músculos e você vai ter que me curar na viagem de volta.


– Com muito prazer milorde. Agarrando sua mão lhe levou até seu tio e o apresentou. Kirill pronunciou algumas palavras em um inglês ruim e logo decidiram embarcar sem perder mais tempo. Recordando de repente a presença do criado, Luke se voltou para ele que estava retorcendo as mãos em silêncio. – Por que está tão vermelho Biddle? Parece que está à beira da apoplexia. O lacaio murmurou algo incompreensível antes de dirigir-se para o navio. – O que lhe passa? – perguntou Luke. Tasia encolheu os ombros. – Certamente as emoções desta difícil noite. Luke observou sua expressão de inocência com cepticismo. – Não importa, já me contará isso mais tarde, no momento vamos deste desgraçado lugar. – Sim – respondeu ela tranquila e serena – voltemos para casa.


Doze

Londres, Inglaterra Já fazia três meses que haviam retornado e Tasia estava cada vez mais feliz. Vivian em Londres por causa do trabalho de Luke e, pela primeira vez em sua vida, ela era completamente feliz. Não eram breves momentos de emoção e de alegria como os quais tinha conhecido no passado, a não ser um sentimento mais forte e sólido. Era um verdadeiro milagre despertar cada manhã ao lado de Luke e saber que era dele. Ele era diferente a cada vez que faziam amor, umas vezes paternal, outras diabólico e outras terno como um cachorrinho. Provocava-a, brincava com ela e a amava com paixão. Luke assistia fascinado à transformação do corpo de Tasia conforme avançava a gravidez. Às vezes a despia em metade da jornada só para olhá-la sem ter em conta seus protestos. Passava a mão pela curva de seu ventre acariciando-a como se fosse a mais valiosa das obras de arte. – Nunca tinha visto nada mais bonito – murmurou ele um dia admirando-a. – Será um menino – disse ela. – Pouco importa – respondeu ele beijando a tensa pele – Menino ou menina é uma parte de ti. – De nós – retificou ela sorrindo. Já que Tasia ainda podia dissimular seu estado com vestidos de cintura alta, permitia assistir a festas, ao teatro e à Ópera. Depois, quando a gravidez estivesse mais avançada, o decoro a obrigaria a ficar em casa. – Sendo você tão magra, acredito que não se notará até o final – disse Mrs. Knaggs. Tasia esperava que tivesse razão, depois de ter passado a maior parte de sua vida em uma jaula de ouro, agora queria aproveitar ao máximo sua liberdade. Continuava fazendo amigas entre as mulheres de seu entorno, ocupando-se


seu tempo em obras de caridade e exercendo seu papel de proprietária da casa e esposa de Luke. Também se esforçava por animar Emma para que conhecesse garotas de sua idade. Emma parecia estar saindo por fim de seu acanhamento e inclusive começava a desfrutar de algumas festas de aniversário. Quando chegou o temido dia de sua primeira regra, o disse a Tasia com uma mescla de chateio e de orgulho. – Isso significa que já não posso seguir brincando com as bonecas? – perguntou. Tasia a tranquilizou. O outono tingia a Inglaterra de vermelho e marrom quando chegaram às caixas e baús da Rússia. Alicia Ashbourne foi ajudar a desempacotar tudo. – Mais presentes de minha mãe – disse a jovem lendo uma carta que sua mãe lhe tinha mandado com o envio, enquanto Emma e Alicia olhavam os pacotes cheios de valiosos objetos. Tasia ficava feliz quando recebia boas notícias de sua mãe, o governo não tinha tomado represálias contra ela depois do desaparecimento de sua filha. Graças a Nicolas tinha sido interrogada de maneira superficial antes de deixá-la em liberdade. Depois já tinha mandado a sua filha várias cartas e lembranças da família: porcelanas, cristal, imagens, um magnífico vestido de batismo de renda, posavasos de prata com pedras preciosas incrustadas… Ouviu-se um grito de entusiasmo quando Alicia e Emma desembalaram a enorme samovar de prata. – Acredito que procede de Tula – disse Alicia observando a delicada gravura – sã os mais formosos. – Se pelo menos tivéssemos o chá apropriado! – queixou-se Tasia. Emma levantou os olhos surpreendida. – O melhor chá não é o inglês? – Certamente que não. Os russos têm o melhor chá da China – suspirou Tasia sonhadora – é o mais cheiroso e de melhor sabor de todos. Algumas pessoas o bebem através de uma parte de açúcar que seguram com os dentes. – Que estranho! – exclamou Emma enquanto Alicia tirava de uma mala um cilindro de renda dourado e o punha sob a luz.


– Que mais diz a carta de Maria? – perguntou. Tasia continuou lendo. – OH! – exclamou de repente com a mão tremendo. As outras duas a olharam espectadoras. – O que acontece? Tasia respondeu devagar e sem levantar a vista. – Recentemente encontraram o governador Shurikovsky morto em seu palácio. Veneno. Minha mãe diz que acreditam que se matou. Tasia trocou uma careta com Alicia. Apesar das aparências não havia nenhuma dúvida de que Nicolas ao fim se vingou. Tasia voltou para a carta. O czar está cheio de angustia – continuou – sua saúde física e mental estão a sério perigo pela perda de seu conselheiro favorito. Retirou-se de tal forma da política que os ministros e os funcionários do governo estão brigando pelo poder. – Fala do príncipe Angelovsky? – quis saber Alicia. Tasia assentiu com a cabeça franzindo o cenho. – Nicolas é suspeito de atividades subversivas e estão lhe interrogando há várias semanas. Dizem que poderiam lhe desterrar logo…caso sobreviva. Fez-se um pesado silêncio no quarto. – Fizeram algo mais que lhe interrogar – disse delicadamente Alicia – Pobre Nicolas! Isso é algo que não desejo nem a meu pior inimigo. – Por quê? O que lhe fizeram? – perguntou Emma sempre curiosa. Tasia recordou em silêncio as horríveis torturas das quais tinha ouvido falar em São Petersburgo, a maneira como se castigava os presuntos inimigos do governo imperial. Os verdugos utilizavam geralmente do knout, um látego que rasgava a carne até o osso, e também usavam tenazes ao vermelho vivo e outros métodos para deixar um homem louco de dor. O que teriam feito ao Nicolas? Repentinamente o prazer dos presentes desapareceu e só sentiu compaixão. – Pergunto-me como poderíamos lhe ajudar…


– Por que quereria fazê-lo? – indignou-se Emma – É malvado. Tem o que merece. – “Não condene e não será condenado” – citou Tasia – “Perdoa e será perdoado” Resmungando algo, Emma voltou para baú cheio de tesouros. – Em qualquer caso segue sendo um mau homem – insistiu. Tasia se sentiu decepcionada quando comprovou que Luke reagia da mesma maneira que sua filha. Quando de noite lhe contou o que dizia a carta de Maria, ele mostrou uma indiferença que lhe exasperou. – Angelovsky sabia o perigo que corria – disse – decidiu matar Shurikovsky arriscando sua vida. Gosta de brincar com o perigo Tasia. Devia esperar que seus inimigos encontrariam a maneira de lhe destruir. Nicolas sempre teve os olhos abertos. – Entretanto não posso evitar sentir por ele. Estou segura de que lhe fazem sofrer de um modo horrível. Luke encolheu os ombros. – Isso não é da nossa conta. – Não poderíamos ao menos pedir suas notícias por meio de suas amizades no Ministério de Assuntos Exteriores? Luke lhe lançou um duro olhar. – Por que se preocupa tanto pelo que acontece com Angelovsky? Deus é testemunha de que ele não se preocupou contigo nem com ninguém. – Para começar é um membro da família. – Longínquo. – E, além disso, é uma vítima dos governantes corruptos da mesma forma que eu fui. – Em seu caso há uma boa razão – disse Luke com cinismo – A menos que acredite que a morte de Shurikovsky foi realmente um suicídio. Ela se incomodou por sua atitude condescendente. – Te elegendo em juiz e jurado de Nicolas demonstra que não vale mais que o czar e seus ministros.


Desafiaram-se com o olhar e Luke avermelhou de cólera. – Então agora lhe defende! – Tenho direito a fazê-lo, sei como se sente alguém quando vê que todo mundo esta contra nós e deve suportar as acusações e o desprezo sem saber em quem apoiar-se. – Depois me pedirá que lhe acolha sob meu teto! – Seu teto? Acreditava que era nosso teto! E não, nem me tinha ocorrido, mas seria te pedir muito que oferecesse refúgio a alguém de minha família? – Sim, se esse alguém for Nicolas Angelovsky. Maldição Tasia, sabe igual a mim do que é capaz! Nem sequer merece a pena que discutamos depois do que nos fez. – Eu já lhe perdoei e se você não pode fazê-lo, ao menos tenta entender… – Verei no inferno antes que lhe perdoe a maneira como se meteu em nossa vida. – Porque seu orgulho está ferido! – cortou Tasia – Por isso é que fica louco de raiva assim que ouve seu nome. Foi um golpe baixo e Tasia soube assim que viu que Luke franzia o cenho e apertava os dentes para conter uma réplica. Conseguiu dominar-se, mas sua voz era insegura quando disse: – Acha que me importa mais meu orgulho que sua segurança? Tasia permaneceu em silêncio rasgada entre a cólera e o arrependimento. – De que estamos falando realmente? – disse Luke olhando-a friamente – O que é o que esperas que faça? – Só que tente averiguar se Nicolas está vivo ou morto. – E depois? – Eu… Tasia se voltou encolhendo os ombros. – Não sei. Luke fez uma careta. – É uma péssima mentirosa, Tasia. Abandonou a sala sem ter respondido afirmativamente a seu pedido e Tasia


sabia que seria uma imprudência por sua parte voltar para pedir.

Os seguintes dias se desenvolveram com normalidade, mas suas conversas eram tensas, seus silêncios cheios de perguntas sem resposta. Tasia teria sido incapaz de dizer por que a desgraçada situação de Nicolas a perturbava tanto, mas cada vez estava mais preocupada em saber o que lhe tinha acontecido. Uma noite, depois do jantar, quando Emma subiu para deitar-se, Luke se serviu de uma taça de conhaque e a fez girar em sua mão enquanto olhava pensativamente a sua mulher. Ela se removeu nervosa, mas lhe sustentou o olhar. Notou que ele tinha algo importante que lhe dizer. – O príncipe Nicolas foi desterrado – declarou sem nenhum preâmbulo – Segundo o ministro dos Assuntos Exteriores, está vivendo em Londres. Tasia deu um salto no assento. – Londres? Por que veio para a Inglaterra? Como está? Em que condições… Luke terminou secamente com a inundação de perguntas: – Isso é tudo o que sei. E lhe proíbo que tenha o mínimo contato com ele. – Você me proíbe? – Não pode fazer nada por ele. Aparentemente lhe permitiram levar a décima parte de sua fortuna, o qual é mais do que necessita para viver comodamente. – Sem dúvida – disse Tasia calculando rapidamente que a décima parte da fortuna dos Angelovsky devia representar ao menos trinta milhões de libras esterlinas – mas perder assim sua casa e sua herança. – Sobreviverá. Tasia se viu de novo surpreendida por sua intransigência. – Sabe o que fazem os inquisidores do governo quando um homem é suspeito de traição? Seu método preferido é lhe dar chicotadas até chegar ao osso antes de assá-lo no fogo como se fosse um porco. Seja o que for que tenham feito Nicolas, estou segura de que nenhuma quantidade de dinheiro é suficiente para compensá-lo. Não tem outra família na Inglaterra além de Alicia Ashbourne e eu.


– Charles nunca deixará que sua mulher vá visitar Angelovsky. – Então Charles e você são os donos absolutos de suas esposas? Ofendida se levantou da poltrona cheia de ira. – Quando me casei contigo esperava ter um marido inglês que me respeitaria, permitiria-me falar e me daria à liberdade de atuar como eu quisesse. Se o entendi bem isso é o que ofereceu a sua primeira esposa. Não pode dizer que Nicolas me poria em perigo ou que eu causaria algum dano indo ver. Não pode me proibir nada sem me dar uma explicação. Luke estava pálido de fúria. – Obedecera-me nisso – decretou – e maldito seja se te dou alguma explicação. Algumas vezes minhas decisões são irrevogáveis e não admitem discussão. – Só porque é meu marido? – Sim. Mary se dobrava ante esta regra e você também deverá fazê-lo. – Nem o sonhe! Tasia tremia com os punhos apertados. – Não sou uma menina a quem pode dar ordens! Nem um objeto, nem um animal que fica numa corrente e lhe leve aonde a gente quer e ainda menos uma dócil escrava. Meu corpo e minha mente me pertencem e se insistir em sua decisão de não me deixar ver Nicolas não voltará a me tocar nunca mais. Luke se moveu tão depressa que ela não teve tempo de reagir. Com um único movimento a colou a ele, colocou os dedos entre seu cabelo e se apoderou de seus lábios. Beijou-a com violência e ela notou o sabor do sangue na boca. Tentou lhe empurrar com um gemido e quando por fim ele a soltou ela rugia de raiva. Trêmula levou uma mão aos lábios intumescidos. – Tocarei-te quando o desejar – disse Luke – Não me leve até o limite ou te arrependerá, Tasia. Embora Alicia Ashbourne não tivesse nenhum desejo de ver Nicolas, morria de curiosidade e se interessou por sua situação. – Dizem que se necessitaram vinte carroças para trazer suas coisas do cais até


a casa – disse um dia tomando o chá com Tasia – Muita gente manifestou seu interesse em lhe ver, mas se nega a ter visitas. Na cidade só se fala disso, o misterioso exilado, o príncipe Angelovsky. – Pensa ir ver? – perguntou Tasia com calma. – Não tornei a ver o Nicolas desde que era uma menina, e agora não tenho nem vontade nem obrigação de lhe ver. Por outra parte Charles ficaria furioso se pusesse os pés na casa do Nicolas. – Não posso imaginar o Charles zangado, é o homem mais tranquilo que conheço. – Entretanto às vezes acontece – assegurou Alicia – De vez em quando a cada dois anos, mas te juro que não quereria estar perto quando ocorre. Tasia sorriu e depois deu um suspiro. – Luke está zangado comigo – confessou – Muito zangado. E sem dúvida com razão. Não saberia explicar porque preciso ver Nicolas, só sei que está sozinho, que está sofrendo e que deve haver uma forma de lhe ajudar. – Mas porque quer fazê-lo quando te causou tantos problemas? – Também pude escapar da Rússia graças a ele – recordou Tasia – Sabe seu endereço? Diga-me, Alicia. – Não irá desobedecer a seu marido? Tasia franziu o cenho. Nos últimos meses tinha mudado muito, pouco tempo antes não teria que lhe fazer essa pergunta, tinham-na educado para obedecer às ordens de seu marido e aceitar sua autoridade sem questioná-la. Recordava a amarga ironia de Carolina Pavlovna, uma escritora russa: “Aprende como esposa, o sofrimento de uma esposa, não deve procurar seus próprios sonhos nem seus próprios desejos, toda sua alma pertence a seu marido, inclusive seus pensamentos são prisioneiros”. Mas esse já não era seu destino, tinha chegado muito longe e tinha mudado muito para deixar que alguém possuísse sua alma. Atuaria conforme lhe ditasse sua consciência e amaria a seu marido como um sócio em lugar de um amo. Era importante que demonstrasse isso a si mesma e a Luke. – Me diga onde vive – disse em um tom que não admitia réplica. – 43 Upper Brook Street – murmurou Alicia de má vontade – a mansão de mármore branco. E, sobretudo, não te atreva a dizer que fui eu quem te deu o


endereço, porque o negarei até meu último fôlego.

No dia seguinte pela tarde, com Luke ocupando-se de seus negócios e Emma brigando com um tratado de filosofia, Tasia ordenou que lhe preparassem uma carruagem e saiu da casa dizendo que ia visitar os Ashbourne. Upper Brook Street não estava longe da residência dos Stokehurst. Quando a carruagem se deteve diante de uma imensa mansão. Um lacaio se adiantou para bater na porta que abriu a ama de chaves, uma anciã russa vestida de negro e com um gorro cinza na cabeça. Aparentemente, Nicolas não tinha acreditado necessário contratar um mordomo. A mulher resmungou algumas palavras em um péssimo inglês indicando a Tasia que se fosse. – Sou lady Anastásia Ivanovna Stokehurst – disse rapidamente Tasia – Queria ver meu primo. A mulher se surpreendeu ao ouvi-la falar em um russo perfeito e respondeu no mesmo idioma visivelmente feliz de encontrar-se ante uma compatriota. – O príncipe está doente. – Muito doente? – Está morrendo milady. Morrendo, muito lentamente. A ama de chaves se benzeu. – Alguém deve ter jogado um mal olhado à família Angelovsky. Ele está assim desde que o comitê especial lhe interrogou em São Petersburgo. – O comitê especial… – repetiu Tasia. Essa era uma denominação muito civilizada frente à terrível realidade. – Tem febre? Lhe infectaram as feridas? – Não milady. A maior parte das chagas cicatrizaram. O que está doente é sua mente, o príncipe está muito fraco para levantar-se e ordenou que seu dormitório esteja às escuras. Vomita tudo o que ingere, tanto a comida como a bebida, exceto um copo de vodca de vez em quando. Nega-se a que lhe movam ou lhe lavem. Assim que lhe toca treme ou grita como se lhe estivessem queimando com um ferro quente.


Tasia a escutava simulando indiferença quando em realidade seu coração estava encolhido de compaixão. – Há alguém a seu lado? – Ele não o permitiria milady. – Me leve ao seu quarto. Enquanto atravessavam a casa que se mantinha cuidadosamente na penumbra, Tasia percebeu que as salas estavam cheias dos valiosos tesouros do palácio Angelovsky de São Petersburgo. Inclusive haviam trazido uma maravilhosa imagem que ocupava toda uma parede. Ao aproximar-se do dormitório de Nicolas, o aroma de incenso se fez cada vez mais penetrante. Era o aroma que se usava para facilitar a passagem ao outro mundo dos que estavam agonizando, e Tasia recordou havê-lo notado também no leito de morte de seu pai. Entrou no quarto e rogou à ama de chaves que a deixasse sozinha. Estava escuro e Tasia se dirigiu até a janela para abrir as pesadas cortinas deixando entrar um pouco de luz, depois entreabriu a janela para deixar que saísse um pouco da fumaça do incenso. Por fim se aproximou da cama onde dormia Nicolas Angelovsky. Impressionou-se terrivelmente ao ver seu aspecto, estava abafado até o peito, mas um magro braço estava sobre o lençol e seus dedos se moviam sem dúvida devido a algum sonho. Umas recentes cicatrizes se enroscavam ao redor de suas mãos e seus cotovelos. Sentiu náuseas. O rosto do príncipe, tão bonito pouco tempo antes, agora só era ocos e sombras, o tom dourado de sua pele tinha agora em aspecto serio da morte, seu cabelo, antes cheio de reflexos dourados, estava agora fosco e condensado. Uma terrina de verduras sem tocar se esfriava na mesinha de noite ao lado de umas figurinhas de animais, destinadas a afastar os maus espíritos, e de um pote onde se queimava incenso. Tasia apagou a pequena chama e fechou a tampa para eliminar a fumaça. Nicolas despertou sobressaltado. – O que acontece? – murmurou – Fecha a janela, há muito ar e muita luz. – Diria-se que não quer te curar – disse Tasia com tranquilidade aproximando-se mais dele. Nicolas entrecerrou os olhos e a olhou com seus estranhos olhos amarelos que agora lhe pareceram mais vazios que nunca. Parecia um animal apático e


dolorido ao qual pouco importava viver ou morrer. – Anastásia! – sussurrou ele. – Sim, Nicolas. Sentou-se com cuidado na beira da cama. Embora não fez gesto de tocar, Nicolas se encolheu instintivamente. – Deixe-me – disse ele com voz rouca – não suporto lhe ver, nem a ti nem a ninguém. – Por que veio a Londres? Tem família na França, na Finlândia e inclusive na China, enquanto que aqui não há ninguém além de mim. Queria que viesse Nicolas. – Quando o desejar te mandarei um convite. Agora vá embora. Tasia ia replicar quando sentiu uma presença em suas costas e olhou por cima do ombro. Viu com horror que Emma estava na porta com seu magro corpo meio oculto na penumbra, traía-a sua chamejante cabeleira. Aproximou-se dela muito séria. – O que está fazendo aqui Emma Stokehurst? – murmurou secamente. – Segui-te a cavalo – respondeu a menina – Te ouvi falar com papai do príncipe Angelovsky e estava segura de que viria lhe ver. – Isto é algo que não te incumbe, não tinha direito a intervir. Já sabe o que opino de seu costume de escutar atrás das portas e de te colocar no que não te importa. Emma pareceu arrependida. – Tinha que vir para me assegurar de que ele não te causaria problemas outra vez. – O dormitório de um homem doente não é um lugar apropriado para uma jovenzinha. Quero que vá imediatamente Emma. Pegue a carruagem para voltar para casa e depois a mande de volta. – Não – interveio uma voz grave. Os olhos das duas mulheres se voltaram para a cama e os olhos de Emma se entrecerraram.


– Esse é o homem que vi no Harrods? – perguntou com um murmúrio – Não o reconheço. -Aproxime-se – ordenou Nicolas movendo uma mão imperiosamente. O esforço foi muito para ele e seu braço voltou a cair pesadamente sobre o lençol. Olhava fixamente o pequeno rosto cheio de sardas emoldurado por um cabelo que parecia fogo. – Então voltamos a nos encontrar – disse olhando-a sem pestanejar. – Aqui cheira muito mal – decretou Emma cruzando os braços sobre seu incipiente peito. Ignorando os protestos de Tasia se dirigiu à cama e sacudiu a cabeça com asco. – Olhe todas estas garrafas. Deve estar completamente bêbado! A sombra de um sorriso apareceu nos lábios de Nicolas. – O que quer dizer “bêbado”? – Completamente bêbado! – replicou Emma com atrevimento. Com uma rapidez assombrosa Nicolas apanhou um de seus brilhantes cachos. – Me escute – disse em voz baixa – uma história do folclore russo fala de uma jovem que salva um príncipe da morte, lhe trazendo uma pluma mágica, arrancada da cauda de um pássaro de fogo. As plumas desse pássaro têm uma cor que oscila entre o vermelho e o dourado. Como seu cabelo. Um ramalhete de chamas. Emma se separou de um salto e respondeu com uma careta: – Mas bem uma cesta de cenouras! Olhou para Tasia. – Vou voltar para casa agora que já comprovei que não há nada que temer deste indivíduo. Pôs nas últimas palavras todo o desdém de que era capaz, e em seguida abandonou o dormitório. Nicolas fez um esforço para virar a cabeça e segui-la com o olhar. Tasia estava assombrada da transformação que se operou nele. Tinha desaparecido qualquer sinal de apatia e inclusive tinha recuperado um pouco de


cor. – Diabinha! – disse ele – Como se chama? Tasia subiu as mangas e ignorou a pergunta. – Vou pedir aos criados que esquentem a sopa, e você vai comer tudo. – E depois me promete que irá? – Certamente que não. Vou te lavar e te curar as feridas que certamente tem. – Ordenarei que lhe joguem na rua. – Espera até estar o bastante forte e poderá te encarregar você mesmo de fazê-lo – sugeriu Tasia. As inchadas pálpebras se entrecerraram, o bate-papo tinha esgotado Nicolas. – Não sei se isso acontecerá algum dia; ainda não decidi se tenho desejo morrer ou seguir vivendo. – As pessoas como você e eu sempre sobrevivem – disse ela repetindo a frase que ele lhe havia dito antes que saísse da Rússia – Me temo que não tem opção Kolia. – Está aqui contra os desejos de seu marido. Era uma afirmação e não uma pergunta. – Ele nunca teria aceitado que viesse para ver-me. – Você não lhe conhece – disse tranquilamente Tasia. – Vai te golpear – continuou Nicolas com uma espécie de satisfação perversa – nem sequer um inglês seria capaz de suportar esta situação. – Não me baterá – protestou Tasia sem estar totalmente segura. – Vieste por mim ou só para lhe contrariar? Tasia permaneceu em silêncio um momento antes de responder com toda franqueza: – Pelas duas coisas. Desejava que Luke confiasse nela completamente, queria ter liberdade para atuar como melhor lhe parecesse. Na Rússia uma mulher de nobre berço estava sempre dirigida por seu marido, aqui tinha a oportunidade de ser alguém independente e tinha que ser capaz de fazer com que Luke o entendesse, fossem


quais fossem as consequências. Já era tarde quando retornou à mansão Stokehurst. Nicolas tinha demonstrado ser um paciente difícil e isso era dizer pouco. Enquanto Tasia lhe lavava com a ajuda da ama de chaves, ele passava dos insultos a mais completa imobilidade como se de novo lhe estivessem torturando. Alimentar foi outra difícil prova mais conseguiram lhe fazer tragar algumas colheradas de sopa e duas ou três partes de pão. Finalmente Tasia deixou-o em um estado muito melhor que o que tinha quando ela chegou, embora furioso por ter sido privado de sua vodca. Tasia pensava voltar o dia seguinte e todos os dias até que seu primo estivesse definitivamente fora de perigo. A visão do corpo mutilado de Nicolas lhe tinha destroçado o coração. Que cruéis podiam chegar a ser os homens! Só desejava uma coisa: jogar-se nos braços de Luke para que ele a consolasse. Em lugar disso ia se encontrar com uma guerra. Luke sabia o que ela tinha feito e porque chegava tarde em casa, tomaria sua atitude como um insulto a sua autoridade de macho. Possivelmente inclusive já tinha pensado em algum castigo. A menos que tivesse decidido lhe demonstrar um frio desprezo, o qual seria muito pior. A casa estava sumida em uma semipenumbra, era o dia de descanso dos criados e a mansão parecia deserta. Cansada, Tasia subiu ao quarto que compartilhava com Luke e lhe chamou. Não obteve resposta. Acendeu o abajur da mesinha de noite, despiu-se e em seguida, vestida só com a regata, sentou-se diante da penteadeira para escovar o cabelo. Ouviu que se abria a porta e ficou imóvel com os dedos crispados no cabo de marfim. – Luke? – arriscou-se a dizer olhando através do espelho. Ele estava de pé, com uma bata escura e a expressão que ela leu em seus olhos a fez ficar em pé de um salto. Quis fugir dele, mas só conseguiu dar uns passos vacilantes. Ele a agarrou e a empurrou contra a parede lhe agarrando o queixo com uma mão. Só se ouvia o ruído de suas respirações, a de Luke mais forte e a de Tasia mais rápida e assustada. Ele poderia lhe quebrar os ossos como se fossem cascas


de ovo. – Vai me castigar? – perguntou ela em voz baixa. Ele deslizou um joelho entre suas pernas queimando-a com o olhar. – Deveria fazê-lo? Tasia tremeu. – Tinha que ir – sussurrou – Luke eu…eu não queria te desobedecer. Sinto-o muito… – Não o sente! – contradisse-a. Ela não soube o que responder, nunca lhe tinha visto nesse estado. – Luke – murmurou – Não… Ele afogou suas palavras com um beijo apaixonado e violento, deslizou a mão sob uma alça e puxou-a até rasgá-la. Sua mão acariciou o peito de Tasia que se inchou como resposta. No começo Tasia estava muito nervosa para responder conscientemente, mas as mãos do Luke a obrigaram a fazê-lo e logo esteve enjoada de desejo. O sangue golpeava em seus ouvidos e ouviu vagamente a si mesma balbuciando palavras de amor, mas Luke não a escutava, dominado por uma paixão selvagem e desenfreada. Deslizou uma mão entre as pernas dela e ela se arqueou contra ele enquanto ele se apoderava novamente de seus lábios. Quando esteve muito enjoada para sustentar-se em pé, levou-a a cama. Permaneceu deitada de lado, passiva, incapaz de falar ou de pensar, com os olhos fechados. Esperou e ele se deitou a suas costas e a penetrou. Ela se arqueou para ele esquecendo-se de tudo o que não fosse essa deliciosa tortura. – Por favor – gemeu. – Ainda não – sussurrou ele em sua nuca. Ela sentiu as primeiras ondas de prazer. – Espera. Diminuiu o ritmo fazendo-a gritar de frustração e a manteve a beira do precipício durante uns eternos minutos, controlando as sensações da mulher que tão bem conhecia, até que esteve seguro de que a possuía em corpo e alma. Só então permitiu que alcançasse o orgasmo e se uniu a ela imediatamente.


Um pouco mais tarde ela se voltou para ele e escondeu a cara em seu torso. Nunca havia se sentido tão perto dele. Durante uns fascinantes momentos tinham encontrado um lugar fora do tempo cheio de um perfeito entendimento. Ficou entre eles como uma nuvem e ela soube o que lhe ia dizer Luke antes que este falasse. – É muito voluntariosa Tasia, e hoje compreendi que é assim como te amo. Me alegro de que não tenha medo de mim. Decidiu manter sua posição e não quero que isso mude. Não tinha nenhuma razão válida para impedir que visse Angelovsky. A verdade é que só estava ciumento. Acariciou o cabelo. – Algumas vezes quero te conservar só para mim, te escondendo dos olhos de outros. Quero ter toda sua atenção, todo seu tempo e todo seu amor. – Mas já o tem! – replicou ela suavemente – Não porque te pertença, mas sim porque o decidi assim. – Sei. Comportei-me de um modo desagradável e egoísta, e não estou muito orgulhoso de mim mesmo – suspirou ele. – Mas tentará se corrigir – sugeriu Tasia brincando. – Se conseguir – respondeu ele com uma careta. Rindo lhe pôs os braços ao redor do pescoço. – Nossa vida não estará desprovida de obstáculos, não é certo? – Sem dúvida! Mas desfrutarei de cada minuto. – Eu também. Nunca poderia imaginar que chegaria a ser tão feliz. – E isso não é tudo – murmurou ele contra seus lábios – espera e verá.


Epílogo

O vento frio de novembro impregnou Luke até os ossos no curto trajeto que havia entre seu escritório da companhia ferroviária e sua casa à beira do Tâmisa. Arrependia-se de não ter pegado uma carruagem, mas não esperava que o dia fosse tão frio. Desceu do cavalo e entregou as rédeas a um lacaio, depois subiu as escadas da entrada, o mordomo lhe abriu a porta e lhe tirou o casaco e o chapéu. Luke desfrutou do agradável calor da casa. – Sabe onde está lady Stokehurst? – Lady Stokehurst e a senhorita Emma estão no salãozinho com o príncipe Nicolas, milorde. Luke abriu os olhos com assombro, nunca antes Nicolas tinha ido visitar sua casa. Deixar que Tasia curasse seu primo era uma coisa, mas lhe receber em sua própria casa era um assunto completamente diferente. Apertando os dentes se dirigiu para o salão. Emma deve ter ouvido seus passos já que apareceu na porta completamente excitada. – Papai! Acaba de acontecer algo extraordinário, Nicolas veio nos ver e me trouxe um presente. – Que tipo de presente? – perguntou Luke muito sério enquanto seguia a sua filha ao interior. – Um gatinho doente. Suas pobres patinhas estão infectadas. O homem que o tinha antes lhe arrancou as unhas e agora o pobre animal tem tanta febre que é possível que não sobreviva. Tentamos fazer com que bebesse leite. Se, se salva poderei ficar com ele, por favor… – Não vejo porque poderia nos incomodar ter um gato… Luke se interrompeu em seco ante a cena que tinha ante os olhos. Tasia estava agachada ao lado de uma bola de cabelo de cores laranja, negras e


brancas que tinha a estatura de um cão. Ante o olhar incrédulo de Luke, o “gatinho” se dirigiu com suas patas enfaixadas até uma terrina de leite e começou a beber timidamente. Algumas donzelas, empelotadas no outro canto do salão, olhavam o animal com uma evidente desconfiança. – Comem homens, não é certo? – perguntou uma delas angustiada. Luke se deu conta de que era um filhote de tigre, olhou o pequeno rosto esperançado de sua filha e depois a expressão de causar pena de Tasia, por fim seus olhos se pousaram em Nicolas Angelovsky que estava instalado em um sofá. Era a primeira vez que Luke lhe via depois de sua estadia na Rússia. O príncipe tinha emagrecido muito e os ângulos de sua cara eram muito mais pronunciados, a cor de sua pele era de uma palidez doentia, mas seus olhos amarelos não tinham mudado e seu sorriso seguia estando cheio de ironia. – Zobrasvouity – disse. Luke não pôde apagar sua expressão de contrariedade. – Angelovsky – resmungou – eu gostaria que no futuro se abstivesse de trazer “presentes” a minha família. Já te colocaste bastante na vida dos Stokehurst. Nicolas não abandonou seu sorriso. – Não tive opção, tinha que trazer o filhotinho a minha prima Emma, a Santa guardiã dos animais feridos. A menina estava inclinada sobre o pobre bichinho com a mesma preocupação de uma mãe. Angelovsky não poderia escolher melhor presente, teve que reconhecer Luke. – Olhe papai – disse Emma comovida enquanto o filhote de tigre emitia um ronrono de prazer depois de cada lambida de leite – É tão pequeno! Não ocupará muito lugar. – Crescerá – replicou Luke muito sério – acabará pesando duzentos quilos ou mais. – De verdade? – perguntou Emma com cepticismo – Tanto? – Como diabos quer que conservemos um tigre? Luke olhava alternativamente a sua mulher e a Nicolas como se quisesse lhes


matar. – Têm que encontrar um modo de lhes liberar dele ou o farei eu pessoalmente. Tasia correu para ele com um sussurro de seda e lhe pôs uma mão no braço com suavidade. – Eu gostaria de falar contigo em privado Luke – disse em voz baixa antes de dirigir-se a seu primo – necessitas descansar Nicolas, não deve te arriscar te cansando muito. – Possivelmente devesse ir – assentiu Nicolas levantando-se. – Acompanho-te – propôs Emma – colocando no ombro o pequeno tigre que se derrubou feliz. Quando deixaram a estadia, Tasia ficou nas pontas dos pés para sussurrar no ouvido de seu marido: – Lhe rogo… seria tão feliz se pudesse ficar com ele. – Pelo amor de Deus, é um tigre! Luke retrocedeu um pouco para ver melhor a sua mulher e franziu o cenho. – Eu não gosto muito de chegar em casa e encontrar alguém como Angelovsky em meu salão. – Veio sem avisar – se desculpou Tasia um pouco incômoda – não podia lhe fechar a porta no nariz. – Não consentirei que comece a meter-se em nossa vida. – É obvio que não! – exclamou Tasia lhe seguindo pelo vestíbulo – Mas é o modo de Nicolas de fazer as pazes, não acredito que deseje nos fazer nenhum mal. – Eu não tenho sua tolerância – resmungou Luke – e no que me diz respeito não é bem-vindo a esta casa. Tasia ia alegar algo quando viu Emma na entrada olhando para Nicolas com o pequeno animal ainda em seus braços. Nicolas esticou a mão para acariciar o tigre e seus dedos roçaram uma mecha dos brilhantes cabelos de Emma. O gesto foi breve, quase imperceptível, mas um calafrio percorreu a espinho dorsal de Tasia. Teve uma repentina premonição: Nicolas estava olhando para uma Emma


mais velha com seu sedutor sorriso, levando-a para a escuridão na qual os dois desapareciam. Queria isso dizer que algum dia Emma estaria em perigo por culpa de Nicolas? Tasia se perguntou preocupada se devia dizer algo a Luke. Não, decidiu, era uma tolice lhe preocupar sem motivo. Entre os dois saberiam proteger Emma. Nada podia lhes ameaçar agora que eram uma família. – Possivelmente tenha razão – disse apertando o braço de seu marido – vou encarregar-me de que entenda que não deve vir muito frequentemente. – Bem! E agora voltando para esse animal… – Veem comigo – rogou ela levando-o para um canto escondido sob a escada. – Quanto ao tigre… – começou Luke. – Mais perto. Agarrou a mão de Luke e a pôs na curva de seu peito suspirando de felicidade antes de apertar-se mas contra ele. – Ainda estava dormindo quando saiu esta manhã – murmurou ela – senti falta de ti. – Tasia… Ela aproximou a cabeça dele e lhe mordiscou o pescoço. Enquanto ele a beijava todo o calor do corpo de Tasia se transmitiu ao dele. Sentiu-se invadido por uma onda de desejo, enjoado pela proximidade dela. Tasia voltou a lhe agarrar a mão e a deslizou por debaixo do veludo de seu sutiã, pondo-a diretamente sobre o mamilo. Ele a beijou de novo e lhe respondeu com mais paixão ainda. – Cheira a inverno – sussurrou ela. Luke estremeceu. – Lá fora faz frio. – Me leve ao dormitório e te esquentarei. – Mas o tigre… – Depois – disse ela desfazendo o nó de sua gravata – Agora me leve à cama. Luke a olhou com ironia – Sei reconhecer quando estou sendo manipulado – disse.


– Não estas sendo manipulado – assegurou ela. Deixou cair no chão à gravata. – Está sendo seduzido – continuou – deixe de resistir. A perspectiva de encontrar-se na cama com Tasia e tê-la a seu lado, apagou todo o resto da mente de Luke. Por muito que vivesse nunca encontraria nenhuma tentação, nem um prazer, nenhuma paixão mais intensa que as que sentia com ela. Levantou-a no ar. – Quem fala de resistir? – grunhiu subindo as escadas com ela em seus braços.


AUTOR: Lisa Kleypas TÍTULO ORIGINAL: Angel of Midnight SÉRIE: Os Stokehurst 01


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