Fuxico, sabores e saberes fotos cor

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Comecei fuxicando e contando histรณrias da minha horta, que me remeteram a um passeio hรก seis anos. Lรก, o reencontro com a cozinha das avรณs, me fez lembrar das minhas e do sabor da comida delas. Um novo passeio, o click para o arremate final.

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Copyright@2018 por Claudia Hirszman

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob qualquer meios existentes sem autorização por escrito do autor.

Foto da capa: Claudia Hirszman Edição e Programação Visual Denise Wasserman Revisão Heloisa Castro e Ana Maria de Andrade Araújo Impressão Wall Print

claudiahir@uol.com.br


Indice Linha na Agulha............................................................................ 7 Alinhavo .......................................................................................11 Costura........................................................................................ Fuxico.......................................................................................... Crista de Galo.............................................................................. Saião.............................................................................................. Tomate............................................................................................ Limão-Cravo ................................................................................. Espada de São Jorge..................................................................... Lavanda.......................................................................................... Manjericão..................................................................................... Orapronóbis ................................................................................. Babosa.............................................................................................. Antúrio........................................................................................... Pimenta............................................................................................ Beldroega e Urtiga....................................................................... Tanchagem................................................................................... Passeio na Horta 1...................................................................... Degustação.................................................................................... Vó Clara..................................................................................... Vó Aurora...................................................................................... Viagem........................................................................................... Passeio na Horta 2 ...................................................................... Arremate Final ...........................................................................

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Linha na agulha

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Fuxico é assim Começo sem fim Fio condutor De muito amor

Quando tinha três anos de idade, na apresentação de teatro no encerramento de ano do Jardim de Infância, coube a mim o papel do Sol. Lembro que, em dado momento, eu percorria o palco de um lado para o outro, sorrindo, mostrando um cartaz com o desenho de um sol. Foi uma aparição única. Adorei fazer o personagem. Nunca esqueci a cena e os comentários sorridentes, dizendo que eu tinha sido um lindo sol, que eu tinha alegrado as pessoas... A professora deu uma boa solução para a minha timidez. Acho que ela me inspirou depois. Como psicóloga ajudava a trazer a sombra para frente sob a forma de luz como se fosse a linha de uma nova costura vindo lá de dentro, da essência. Um desabrochar que vinha do interior para fora. Certa vez, uma menina ficou esquecida embaixo da mesa da sala de aula. Era festa da Páscoa, em um internato. Eu havia sido convidada a visitar essa instituição para ver se gostaria de


trabalhar com crianças para ajudar a encontrar seus talentos. Na mesma semana fui a outras escolas e vi a cena se repetir de diferentes maneiras. Logo soube o que poderia fazer – ajudar a clarear com meu olhar. Me senti bem interagindo com essas crianças, conversando posteriormente com suas mães, vendo o sorriso em seus rostos. Por dez anos fiz isso com centenas de crianças. Gosto de procurar o que está submerso, fora do campo de visão. De falar do que está do lado de lá. Do que não está na frente dos olhos. Mas que existe e é tão importante quanto a realidade do lado de cá. Enquanto artista e fotógrafa, também busco o outro lado. Detalhes e cores encobertos, envelhecidos pelo tempo. Como se fosse a ponta de um novo fuxico que me permite alinhavar a partir de cada detalhe, toda uma história, toda uma realidade. A realidade como meus olhos captam. Assim como as crianças, uma plantinha esquecida em um jardim ou uma casa abandonada com suas portas e janelas envelhecidas, despertam em mim o desejo de me aproximar e olhar, com a curiosidade de quem tem diante de si novos sabores e saberes a descobrir. Por anos fotografei portas, janelas e fachadas desgastadas pelo tempo e em algum momento a natureza que nascia espontaneamente no entorno começou a chamar a minha atenção. A partir daí comecei a me interessar por trazer plantinhas para perto do meu olhar, para dentro do meu apartamento. Uma viagem de reencontro com a natureza, do que é raiz, essência. 9


Gosto de começar uma coisa do zero, só porque na minha cabeça imaginei. Se me passou pela mente, tem chance de se tornar real. Criar desde o início me inspira e torna a jornada instigante. Esse caderno é uma reflexão, uma troca de ideias, que gira em torno do contar algumas histórias. Um fuxico poético contemporâneo. Quer saber mais? Vem comigo!


Alivanho

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Sempre me encantei com fuxico Hoje em dia quase não se faz mais

Estava precisando de vários. Queria colocar em cima das tampas dos potes de temperos. Fui a uma feira que acontece, uma vez por mês, aos domingos em Ipanema que tem esse nome, mas não encontrei fuxico para comprar. A moça que faz, não tinha vindo, conforme me informaram. Como a feira se chama Fuxico, fui na esperança de achar, mas não encontrei em barraca alguma. Após ir a várias feiras de artesanato — já bem gosto de uma — e não achar, pedi para uma amiga mineira me ensinar. Ela desenhou um círculo, me explicou e comecei a fazer. Minhas sobrinhas, que moram fora, vieram passar uns dias no Rio e, enquanto estavam aqui, foram a uma aula de costura. Aproveitei e fui também, achando que poderia aprender novas maneiras de fuxicar. As tampas dos potinhos têm medidas diferentes umas das outras. Então, perguntei pra professora: — Temos como saber o tamanho do fuxico, a partir do tamanho de cada molde?


— Só experimentando, respondeu ela. Bem, assim eu já estava fazendo em casa. Ao finalizar o primeiro fuxico, fiz nova pergunta: — Tem alguma coisa que eu possa colocar em cima do meu fuxico? — Fuxico é assim, se inventar, não é mais fuxico, respondeu a professora. Me dei conta que minha vontade é fazer fuxico junto, trocando experiências. Não tem certo, não tem errado. O que tem é a vontade de fazer e aprender. Não há professor, não há aluno. Ninguém sabe mais do que ninguém, somos sempre eternos aprendizes. Aqui tudo pode ser experimentado, não existe não pode. Fazer fuxico é um ato de dar e receber do outro um tempo. O tempo de falar, o tempo de ouvir, o tempo de refletir. Duas ou mais pessoas fuxicando juntas estão, ao mesmo tempo, fazendo e aprendendo, trocando e dialogando. Trocando experiências. Falando sobre o que importa para elas. Não cabe um falar qualquer. Não é um desabafar de problemas. Ao contrário de lavar roupa suja, a ideia é costurar uma roupa nova. Permitir ser, deixando espaço para o outro também ser. Um exercício de não atropelo, de respeito. 13


Penso no fuxico fisicamente falando, o ato manual de alinhavar, como um exercício entre pessoas, que, estando em contato com o que está dentro, interagem com o que está fora. É um espaço “entre”, assim como há as entrelinhas em um texto. Uma pausa, algo não verbal, que está presente, faz parte da troca, do que temos dentro de nós para compartilhar. Algo que não se encontra no agito, no barulho da vida cotidiana. Hoje vivemos sem ter o tempo de saborear. Fazer fuxico é uma experiência de aprendizagem e de troca. Não penso em fuxico só. Fuxico é: dou uma linha, você dá outra. Ninguém é dono da verdade, todos aprendemos com a troca de experiências. Fuxico é feito de alinhavo e não de ponto de costura. Isso faz toda a diferença. Você vai experimentando, tecendo e só no fim é que você puxa a linha para fechar o fuxico. Se puxar com força, ele ficará muito apertado; se deixar solto, ficará todo destrambelhado. É uma aprendizagem ir fazendo do jeito que faz sentido pra você. É como receita de bolo. Você aprende e depois vai testando com novos ingredientes. Cada pessoa conta como fez e na interação tudo vai ficando mais gostoso. Quem está aprendendo a costurar, no início precisa desfazer e refazer a costura até aprender, não é assim? Não é preciso que estejamos certos, o melhor é estarmos sempre aprendendo. A ideia do fuxico vem na contramão das pessoas que falam de si e não conseguem ouvir o outro. Pessoas que procuram porque precisam desabafar. Fuxico não é isso. Fuxico é fazer junto. Faz


bem pra mim. Faz bem pra você. É soma. Não dá para fuxicar com que não quer. Não é retirar de um pote para encher o outro. É prazeroso pra todo mundo. É a troca de saberes, em um compartilhar amoroso. É um toma lá, dá cá. É um degustar de vários sabores. Fuxico é um fio condutor de amor, sem limite de onde é possível chegar.

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Costura

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Fuxico é assim Começo sem fim Uma colcha de ideias Costuradas com amor Um belo dia o passado ressurge na forma de um convite. Domingo, pedagogo e escritor. Eu, na segunda profissão, entre as artes e a fotografia, na abertura de uma exposição da qual estava participando. Não nos víamos havia sete anos, quando trabalhamos juntos. E lá estava ele, discreto e meio calado, como sempre. Nem por isso deixou de dar o seu recado: — Vamos fazer um livro juntos? Entro com os versos e você com as fotografias. Gosto das suas fotos de portas e janelas, disse. Onde estávamos? No Castelinho do Flamengo, que fez parte do meu imaginário infantil. Morava no Flamengo e sempre passava por lá quando ia à praia. Era escuro, abandonado. Meu pai dizia que era mal-assombrado. Eu não tinha medo e sim, um certo fascínio. Olhava e pensava: “Tenho certeza que um dia vão dar valor e eu vou ver isso


quando for grande”. Em algum momento, ele foi invadido e ocupado por moradores de rua. Toalhas e roupas rasgadas secavam às janelas que tinham os vidros quebrados. Fiquei com medo de destruírem meu sonho, mas gostava da ideia de ter gente morando ali, emprestado. Um palacete vazio e tanta gente sem ter onde morar... “Alguém tinha que aproveitar”, pensava. Eles foram espertos, afinal, o lugar, pelo que diziam à época, vinha até então sendo habitado apenas por fantasmas. Cresci e lá estava eu, no Castelinho, todo iluminado e reformado, como num conto de fadas, na segunda metade da minha vida. E o convite chegou a mim justo naquele lugar. Passaram-se seis meses... Domingo me mandou uma mensagem privada no Facebook. O ateliê está pronto, podemos marcar para você vir conhecer. No entanto, minha cabeça andava a mil com a ideia desses escritos. Meu pensamento girava em torno de Horta e não de Porta. Apenas uma letra, mas muda muita coisa. Na hora marcada, estávamos os dois lá. Nos encontramos na portaria do seu prédio. De lá, fomos andando até o ateliê e ele foi me contando que estava às voltas com a finalização de um texto sobre a avó espanhola que não havia conhecido, a não ser por poucas fotos. Conversamos sobre um material infantil, que eu gostaria de editar e de vez em quando grita dentro de mim. Mas isso é uma outra história. 19


Entramos no ateliê. Ele perguntou: — Cadê as fotos pra gente montar o livro? — Não trouxe, respondi. Trouxe arroz com itens da minha horta para você experimentar. Ele guardou para levar para casa. — Pensei em te contar umas histórias da minha horta em vasinhos, lá no meu apartamento. Fez que sim com a cabeça. Comecei a contar. Ele começou a anotar. Rascunhou uma poesia enquanto eu contava. E logo percebemos que não seria por ali, a história não seria mais minha e sim, dele. — Você é a contadora das histórias, ele disse. E foi o que aconteceu. Peguei o fio dessa meada nas mãos.


Fuxico

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Quando comecei a fazer uma horta em casa, cada loja em que ia para aprender como plantar, comprar terra e adubo, me ensinava de um jeito diferente.  Eles queriam me vender produtos químicos. A grande preocupação dos vendedores era com a praga. Só tinham terra com veneno para vender. O máximo que encontrava pra comprar era salsinha, hortelã e manjericão, tudo com agrotóxico. Mas não queria comprar saquinhos de sementes que eles tinham para vender, meu objetivo era ter tudo orgânico e natural. Cada loja sugeria uma conduta diferente com tudo em pacotinhos prontos. Já em oficinas era muita regra: primeiro, você coloca pedras, tantos por cento de adubo, tantos por cento de folhinhas, x de areia... Tem gente que coloca jornal embaixo, tem gente que coloca areia da praia. Cada um que falava dizia que o seu jeito era o melhor e queriam que você saísse da loja fazendo igualzinho. Mas na prática não é bem assim que acontece. E comecei a achar que era muita regra pro meu gosto. Faculdade para mim, já fiz a de Psicologia. E lá se vão mais de 30 anos. Um dia, tinha pedra. Outro dia, não tinha folha ou então acabava o adubo etc. Tinha que ser sempre na mesma ordem.


Resolvi simplificar minha vida. Queria um adubo com composto orgânico para melhorar a qualidade do que iria oferecer como nutriente além do sol, da água e da moradia. Pesquisei na internet. E descobri o pessoal do Ciclo Orgânico. Liguei. Eles me informaram que recolhem o lixo orgânico na casa das pessoas e devolvem o composto pronto a partir do seu próprio lixo. Imaginei as formigas e baratas andando pela cozinha atrás do lixo até o dia da coleta. Informei que eu não tinha como administrar esse tipo de lixo. Cozinha muito pequena. Não tinha como fazer.  Eles sugeriram, à época, abrir uma exceção e me fornecer o composto feito com o lixo de outra pessoa. Achei ótimo. — É, assim vou querer! E até hoje faço isso. Compro esse composto porque tem muitos nutrientes. E a terra que uso não é tratada com produto químico. Não sei se recomendam fazer, já plantei só com o composto deles também. Dar certo não é uma questão de regra, há muitas variáveis envolvidas. Se tem terra, coloco. Se tem pedrinha, coloco. Como alguns vasos são muito pequenos, assim que começo a plantar, observei que, colocando mais água, como sugerem, as sementes ficam afogadas e a água não desce direito. Não há uma regra rígida. Decidi simplificar. Outra coisa que acontecia antes é que dava muita mosquinha 23


nas plantas e, desde que passei a usar o composto do Ciclo Orgânico, não apareceu mais. O que já encontrei na terra foi minhoca que nasce espontaneamente. Mas elas são educadas, não se preocupem, ficam lá dentro, nunca saíram do vaso por conta própria. Isso é um bom sinal, alimentam as plantinhas sem eu ter que fazer nada para isso. É só não matar as “pragas” com veneno que as minhocas aparecem em terra que é boa. Quando me perguntam como planto, digo que isso varia. É uma questão de opção no momento do plantio, levando-se em conta as variáveis que já foram intuitivamente experimentadas e o que vou descobrindo a cada dia.


Crista de Galo

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Era domingo, estava em casa separando uns tecidos recémcomprados. Tecidos de chita e outros bem coloridos. Depois de muito procurar, finalmente consegui uma loja em Copacabana que vendia cortes de 30 centímetros de cada peça. Comprei e estava montando um kit fuxico. Um kit viajante... Onde for, posso levar. Tem material para várias pessoas fazerem fuxico ao mesmo tempo. Ensinar e aprender. Trocar e compartilhar. Comprei linha e agulhas, separei moldes redondos de vários tamanhos. Uma bolsa grande bem colorida e o kit estava ficando pronto. Pensava com meus botões como seria possível colocar a ideia em prática. Enquanto estava mergulhada nesse fazer e pensar, recebi uma mensagem da minha amiga Nina. — Está acontecendo uma feirinha, aqui ao lado da minha casa, daquelas que você gosta. Tem comida, artesanato, roupas e plantas.  Gosto mesmo. Para quem quer novidade é bom fuxicar, se inteirar do que está acontecendo. É nesses lugares que os produtores começam a dar os primeiros passos e a expor os seus produtos.


E lá me despenquei sem ter tempo de pensar, pois a feirinha era sazonal e logo iria acabar. Encontrei minha amiga e fomos juntas para lá. Quando chegamos, a feirinha já estava terminando. Parei meu olhar curioso sobre uma barraca que vendia mudas, enquanto já empacotavam as coisas para recolher. Perguntei se tinham mudas para vender, que eu gostaria de comprar algumas. O vendedor falou: — Acabou tudo. Sobrou só essa mudinha. Mas, como está muito pequena, não dá para eu ver o que é. Eu indaguei: — É de comer? — Isso, eu garanto que é. A minha sócia, que conhece, disse que é, mas ela já foi embora e eu não tenho a menor ideia do que seja. Se quiser levar, é a única que sobrou. Percebi que tinha apenas uma sementinha lá dentro. Levei para casa e cuidei num vasinho. A planta cresceu com crinas muito bonitas. Umas cor de abóbora, outras amareladas. E fui ficando encantada com aquilo que crescia no pequeno jardim vertical em vasinhos dentro do apartamento. Fui molhando, ficaram bonitas, mas não podia comer, não sabia o que era.  Tive oportunidade e mostrei a foto pro Valdeli Knupp, que é 27


especialista em plantas comestíveis e autor do livro: “Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) do Brasil”. Ele me disse: — Claudia, é a crista de galo. Você pode comê-la. Empanada, é deliciosa, completou. E não foi só ele que quis fuxicar, não. Para minha surpresa outros homens entraram nesse fuxico. Descobri que amigos das artes também gostam de plantas. Quando contei essa história, me ensinaram que dentro da crina tem umas bolinhas pretas. É só abanar com todo cuidado em cima de um papel toalha, e pronto, já tem sementes para replantar. E quando a crista já deu o que tinha que dar, se você podar bem lá embaixo, ela nasce toda bonita e forte novamente. E, falando em semente, me lembrei de outra que ganhei de presente, também sem saber o que era.


Saião

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Fuxico é assim Começo sem fim É só começar Não dá mais pra parar

Um dia, ao saber que eu gostava de plantas, o Cadu, que dava aula na academia, me falou que na área externa que pertence ao condomínio onde ele morava, tinha uma planta espontânea que crescia muito. Não sabia o nome, mas alguém havia falado pra ele que era de comer. Ficou de dar uma muda pra mim. Sempre falava, mas nunca lembrava de trazer. Até que um dia, ele me deu, com todo o cuidado, um copo de cafezinho de plástico, com umas folhinhas em forma de bolinhas sambando na terra. Ainda nem haviam enraizado. Só que eu estava na rua e ia para um almoço de aniversário com as amigas da academia, num restaurante de um hotel em Ipanema. Imagina você. Cheguei lá, aquela mesa comprida, cheia de gente, todas muito arrumadas e eu com o copinho na mão. Ninguém entendeu nada, mas eu queria cuidar, para ela vingar. Como iria fazer? Ia esconder? Onde iria deixá-la até a hora de voltar para casa? Se


deixasse na ponta da mesa alguém podia esbarrar e ela cair. Deixei-a no centro da mesa. Virou assunto das conversas. Quando alguém perguntava: — O que é isso no meio da mesa? Alguém respondia: — A planta que o Cadu deu pra Claudinha. — Desse tamanho? Que presente... Mas é pra quem gosta de planta. A gente quer o trajeto da planta e não uma já grande pra enfeitar a estante da sala. “Só a Claudinha...” diziam minhas amigas. Acabei me divertindo. Não tinha outro jeito. Bom, a planta veio comigo pra casa. Fui cuidando, replantando e ela cresceu. Ficou cheia de bolinhas em volta de cada folha (hoje sei que foram essas bolinhas que o Cadu me deu). Dividi e coloquei em outro vaso. Está crescendo. Soube pelo Valdeli que é saião e dessa espécie também se pode comer. - “Você pode juntar umas folhas e cortar como couve em tiras bem fininhas. Aí é só refogar, temperar e colocar na comida”, sugeriu. O Cadu se mudou, já não tem mais a planta por perto e disse que vai querer uma muda pra sua nova casa. Eu havia dado 31


pra ele uma muda de limão, mas como ele saiu de lá, deixou de presente plantado na área comum do prédio em que morava. Na feira vi vendendo um saião grande e forte. Plantei aqui e até deu flor. É mais forte que o outro. O Valdeli viu a foto e falou que esse outro não pode comer, não. Há mais coisas entre o céu e a terra que a mera razão desconhece. Enquanto escrevia, me lembrei da semente de tomate que veio de avião comigo. É assim, vai se acostumando. Um fuxico puxa outro...


Tomate

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E lá se vão mais de dois anos que essa história aconteceu... tudo com apenas algumas sementinhas viajantes... Após um almoço em casa de amigos queridos, onde seis pessoas compartilharam espontaneamente conhecimentos, sabores e saberes, tive vontade de trazer algo como lembrança do encontro e da viagem. Algo que me remetesse àquele dia, àquele encontro. E lancei: será que dá certo eu levar umas sementinhas do tomate miúdo da salada pra plantar num vasinho lá em casa? Lá, todos incentivam os sonhos, nada é não, sempre vale a pena tentar. E lá fui eu pro aeroporto com algumas sementes em algodão embebido com água dentro de um tupperware, que deixei aberto para respirar durante o voo. Plantei as sementes que gostaram do espaço e do trato, cresceram bastante. O tomateiro ficou com mais de um metro de altura. Eu me animava, claro, já era quase mais um morando em casa. Foi tudo intuitivo, fui aprendendo, fazendo. Passou pelo desafio do intenso calor. No alto verão, cuja sensação térmica chega a mais de 40 graus aqui no Rio de Janeiro, elas aprenderam a conviver com o ar-condicionado.


Tive que ir dosando o quanto molhar a cada estação. Muito molhadas, surgiam bichinhos, ficavam amareladas; ressecadas, morriam de sede. Achei que foi melhor, quando molhava bem pouquinho de manhã e à noite. Antes dos tomates nascerem, apareciam flores amarelas. Ficava de olho, pois os tomates iriam aparecer logo em seguida. A cada dia que ia molhar, pensava: qual será a hora de comer? Mas um dia, como as plantas, a gente sabe que é o dia, parece que a natureza se oferta, ela acena dizendo: “Ei, olha eu aqui!” Mais ou menos em 30 dias, já dá para comer, de verde ficam vermelhinhos. O pé de tomate já estava tão alto que chegou a bater no teto. E aí começou a ficar com as folhas engorduradas, acho que ficou velho ou doente. Será que ele precisava de um vaso maior? Não sei... Só sei que ficou doente, foi murchando, murchando e partiu. Marcou presença e fez história por aqui. Quando meus amigos souberam que os tomates partiram, acho que ficaram pensando num jeito de me presentear e acabaram contribuindo, sem saber, para esse fuxico continuar.

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LimĂŁo- Cravo

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Passada a fase dos tomates cereja — hoje acho que não deveriam ser mesmo para o tamanho do meu apartamento — os mesmos amigos começaram a me mandar por Sedex limões abóbora do sítio deles. Ficavam tão empolgados com a farra que já me mandavam a caixa com os limões por Sedex 10. Chegava com um bilhete junto com a hora da postagem e rapidinho estava aqui. Meu liquidificador veio com uma peça peneira que retém a parte sólida. Nunca tinha usado. Mas, ao chegarem os limões, quando abri o liquidificador, a peça estava encaixada. Fui eu que coloquei pra ver se me lembrava de usar. Na hora certa! Coloquei um limão cortado em quatro com água, mel e bati. Virei o liquidificador na jarra e o suco ficou pronto em menos de um minuto e muito saboroso. Nem sei por que coloquei o mel lá dentro, os limões são tão docinhos, mas deu certo também. A gente dança conforme a música. Os limões começaram a fazer a festa por aqui, igual àquela que os tomates fizeram um dia. Lembro que contei que cheguei a comer tomatinhos cereja daquele vaso, só não contei que eram docinhos. Esses limões são doces também. Fiz torta, barrinha, biscoito e uma casquinha de limão que aprendi: corta em tirinhas bem finas, coloca em um copo com água filtrada na geladeira, vai trocando a água várias


vezes ao dia, por vários dias. Depois, escorre bem, e passa no açúcar mascavo em calda na frigideira. Tenho vontade de fazer pão, só que ainda não tive inspiração. Será que tem bolo de limão? Sei não. Sei que as coisas simples da vida me atraem. Quanto mais do tempo da vovó, mais eu gosto. Será que tem alguma ligação? No primeiro encontro poético literário, o Domingo estava às voltas com o texto da sua avó. E me colocou pilha, estou aqui escrevendo sem parar. Uma coisa puxa a outra e de horta fui pra limão, que também não deixa de ser horta. Ainda não contei, mas de vez em quando planto duas ou três sementes desses limões em vasinhos. Não é que já dei? Cresce e começa a precisar de mais espaço, então alguém gosta e eu dou. Gosto de dar pra quem gosta ou que vai levar para uma pessoa que aprecia. Por falar em dar e receber, o alinhavo continua, o processo não para e, além dos tomates que viraram limões, a espada de São Jorge, que um dia foi pequena, cresceu e sete anos após ganhou duas novas irmãs.

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Espada de São Jorge

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Quando se vive intensamente Parece que está tudo planejado Antes mesmo de você se dar conta E lá estava eu, no Centro de Convenções Sul América, em 2010, animada com o convite para expor minhas fotografias na ARTIGO, uma feira de arte contemporânea. Era um stand com seis artistas e eu estava muito feliz em participar. Acompanhei cada segundo da montagem, curti cada detalhe de estar ali. Quando tudo estava pronto, indo pra casa para voltar no dia seguinte para a abertura da Feira, o Raimundo me pergunta se consigo um vaso com uma espada de São Jorge grande para colocar no stand na hora da abertura. Uma festa para quem gosta de arte. Fiquei de procurar. Não encontrei vaso grande, o tempo para procurar era curto. O único vaso que achei era pequeno. Comprei e levei na mão, mas como já era esperado, não funcionou. E a espadinha passou a noite trancada em um depósito, enquanto a festa de abertura corria solta e muito animada. Não restando outra alternativa, no fim da abertura, fui atrás do funcionário para abrir a porta e resgatar a plantinha. Trouxe o vaso para casa.


Essa foi a primeira das plantas. Chegou quietinha e durante anos ficou ao lado da porta de entrada do meu apartamento. Em 2017, após uma ou duas trocas para vasos um pouco maiores, a espada já era gente grande e foi para a exposição de São Jorge no Cais do Porto, junto com as minhas fotos. Como tudo no fuxico, um ponto leva a outro e, de uma planta só, já tem a dois e a três. Na exposição de São Jorge, em 2016, no Centro Cultural Laurinda Santos Lobo, o Jorge distribuiu 600 mudas pequenas da espada de São Jorge. A Denise, uma amiga, perguntou: — Claudia, leva a minha pra sua casa também? E eu gosto, tudo vira observação e aprendizagem, que não vem da leitura e sim da experiência. Trouxe a minha e a da Denise pra casa. A planta dois já troquei de vaso uma vez, fica na janela do meu quarto ao lado da lavanda. São as duas que moram lá. Parecem se dar bem. Ela é robusta, forte e feliz. Acho que pede um vaso maior, mas como tudo aqui é questão de fuxico, conversando com um amigo que é curador nas artes, ele queria saber de novos projetos. Contei das histórias que estou escrevendo da horta. E não é que ele também é mais um que gosta de planta? Me sugeriu, já que o apartamento é pequeno, dividir a do quarto em dois vasos para ter mais espaço para poder molhar e adubar. Cada vez vou me dando conta de como esse fuxico é uma engrenagem. Um começo sem fim. 43


A planta três sempre esteve no mesmo vaso e não tem para onde se expandir. Todas são fortes e belas, cada uma no seu tamanho. Quando contei pro Jorge que as duas que ele distribuiu estão aqui, ele se espantou e comentou: — Não conheço ninguém que ainda tenha uma dessas plantas! Quem cuida tem e, no caso da lavanda, até eu me surpreendi. Tinha ouvido que no Brasil não dá certo, só na França. E não é que a minha deu?


Lavanda

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Fui deitar, olhei para ela. Como pode estar tão grande, pensei... O que me mostra mais uma vez que tentar sempre vale a pena. O não já é certo na boca dos outros, o sim pode ser uma grata surpresa. Coloquei uma plaquinha na horta recentemente. “É simples: Você não vai saber se não tentar”. A lavanda mora no quarto desde que chegou aqui de avião, uma muda que veio de São Paulo dentro da mochila da Cris, minha amiga, enrolada gentilmente em uma folha de jornal. A Cris é miudinha e delicada como a lavanda. Com toda suavidade e amor abriu aquele pacotinho na sala da minha casa ─ foi assim que a lavanda chegou aqui, já faz mais de dois anos. Li numa postagem do Facebook que é bom ter uma no quarto, que ajuda a dormir bem. Desde então ela se mudou para lá. Sabe, a gente se acostuma com tudo, ainda mais se for desde cedo na vida. Com ela não foi diferente... Dorme à noite no arcondicionado, pega sol e vento com a janela aberta durante o dia e, quando tem risco de chuva ou o apartamento está vazio, fica com a janela fechada. Mesmo assim, ela não parece infeliz. É a rainha do pedaço. Molho de manhã e à noite. Tem tratamento especial. É a


primeira a quem dou bom dia quando abro a janela e recebe boa noite, quando vou lá fechá-la. Ela responde exalando um perfume incrível. Agora há pouco, enquanto escrevia, exalou aquele cheiro no ar, parece até que sabia que eu estava falando dela. Uma vez o vento foi tão forte que ela se estatelou de cara no chão. Só ouvi o estrondo lá da sala. Era terra pra todo lado. Alguns galhinhos quebraram e ficaram no chão quando levantei o vaso. Esses não tiveram mais jeito. Sabe o que fiz? Fiquei observando os que estavam quebradinhos no pé e fui unindo e colando com durex transparente. Deu certo com aqueles que vi e colei. Estão vivinhos até hoje. Uns menores que não notei, quando cresceram, mostraram as sequelas da queda. Quando há um acidente, todo mundo não fica em observação? Mas esqueci que é assim. Então, com o tempo, ela começou a me mostrar que precisava ainda de mais atenção, pois todo dia tinha uma parte seca para tirar. Até que notei no emaranhado dos seus galhos que havia um que estava seco desde a raiz e enroscado junto com tudo. Quem tem cabelo enrolado, como eu, sabe o que é isso. Fui com calma e tirei o galho todo que era bem grande. Ela ficou menos cabeluda, mas com certeza mais saudável. Dei um trato na cabeleira. Às vezes, ao olhar para ela, fico tecendo considerações... Ela mora ao lado da espada de São Jorge, a número dois, a de tamanho médio da história anterior. Mas eu deixava uma pertinho da outra, como se fosse um parzinho e a espada fosse 47


proteger a lavanda. Mas não foi bem assim. Acho que ela tirava a energia da lavanda para ficar se sentindo mais forte. E não é assim nas relações também? Estou achando melhor, cada macaco ficar no seu galho, separei-as e vamos ver. Bom, também, a espada de São Jorge, a número dois, não tem mais um milímetro de espaço no vaso, que já aumentou desde que ela chegou. Quando quero molhar, é difícil até para colocar a água. A que não mudei de vasinho, desde que o Jorge me deu, na exposição de São Jorge em 2016, está pequena. Se mudar essa, não vai parar de crescer. Por isso a ideia do fuxico, fuxica de lá, fuxica de cá e vai se achando o compasso a cada nova situação. Não é um saber que vai de cá para lá. É uma roda que gira informações, numa espiral sem fim. Você, leitor, pode estar pensando, por que eu não tiro a muda? Por que não divido em dois? Por que não coloco em um vaso maior? Gostaria de poder te ouvir e fuxicar, é assim que deveria ser. Fuxico de cá e de lá. Outro dia iam me contar como se tira muda da lavanda. Todo jeito que fiz não deu certo. Tem gente na fila querendo, mas a pessoa sumiu, antes mesmo de me falar. Passando dia desses na barraca de flores da esquina, tinha lavanda bonita em vasos por lá. Comprei uma e dei de presente para uma amiga que viu a minha e manifestou também vontade de ter uma para cuidar. Só que ela viajou e a lavanda se foi. E como fuxico é assim, só mais um para o arremate, se você me der licença... A Cris, que me deu a lavanda e morava em São Paulo, agora mora na Itália. Animada com toda essa história, começou


a fazer fuxico. Inventou com novos tecidos, com escritos, com fotos, de várias formas. Agora? Ela, que nunca costurou, está procurando uma máquina de costura para comprar. Cuidado, você que está lendo, vai que também é fisgada(o) pelo ato de fuxicar.

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ManjericĂŁo

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A vida é uma aventura A gente nunca sabe onde vai dar Que caminhos vai tomar Sempre gosto de conhecer novas formas de me nutrir com alimentos saudáveis e saborosos. Era domingo, passeava com uma amiga pela feira da Junta Local, na Praça Santos Dumont, na Gávea, e percebi um pequeno movimento em frente a uma barraca que tinha uns vasos. Curiosa, soube que iria começar uma aula de temperos em vasos. Entrei, claro, e a minha amiga, que não tinha nada a ver com a história, acabou entrando e resolveu ficar também. A professora explicava que as plantas mais rígidas são mais resistentes e precisam de água menos vezes por semana. Mostrava os temperos e dizia que o alecrim precisa de menos água que o manjericão. Sempre, como toda regra, tem exceção, mas nem por isso deixa de valer a dica. Aqui em casa noto que as que ficam mais perto da janela exigem mais água e dão mais flores, mas como quem fica lá também é intuitivo, tenho que seguir fazendo e observando.


A lavanda, que não sei de que grupo é, bebe muito, de manhã e à noite. Descobri, colocando a mão na terra, olhando o pratinho embaixo e a saúde dela. Não sei como é a regra, ouvia que lavanda só dava na Europa ou em lugares muito frios. Era um desafio. Valeu a pena tentar. Por aqui ela passa bem. No fim da aula, saímos com um vasinho de manjericão de presente, dado pela professora. — Claudia, você pode levar pra sua casa e cuidar da minha? Não levo jeito pra isso... — Tá bom, eu levo. Aqui fuxicando: também já levei para casa a espada de São Jorge que a Denise ganhou do Jorge no dia de São Jorge e a pimentado-reino da vizinha, que ainda não contei, mas vou contar. As duas mudas de manjericão se deram bem aqui no espaço, davam gosto na comida e pareciam felizes. Até que um dia me contaram que a arruda se dá bem ao lado do manjericão. Levei uma delas (qual? não sei) para a mesinha ao lado da porta de entrada para lhe fazer companhia. A arruda não serve para comer, mas gosto de ter. Dizem que é bom pra energia da casa. Quem conhece arruda sabe que ela não dura muito tempo. Quando murcha vai se despedindo. Se volta, logo vai embora de vez, pelo menos aqui nos vasinhos é assim. Achei que poderia ser uma boa tática, ela ficando feliz e forte, ficaria mais tempo lá em casa. Sim, foi isso que aconteceu, ela ficou linda, não 53


murchava mais, só que o manjericão não gostou nada de ficar ao lado dela e, longe do sol, murchou por completo. Um dia, quando acordei, o manjericão estava moribundo e desfolhando também. Primeiro me senti uma assassina, fiz mal ao manjericão. O pensamento seguinte foi que não é certo um ser tirar energia de outro pra viver. Lá estava eu julgando a arruda, que D`s me perdoe. Na sequência me veio à cabeça o ditado popular: “Alhos são alhos, bugalhos são bugalhos”. Levei o manjericão de volta para perto da janela, sob atenção na enfermaria, e a arruda continua onde está, lidando com a sua missão sem envolver mais ninguém. Não está só, tem outra planta que mora lá e o manjericão é que se intrometeu onde não tinha sido chamado. Recebi um vídeo que ensina a usar o manjericão: deixar só umas folhinhas em cima do caule e colocar na água para criar raízes e poder replantar. Comigo não funcionou. Ficou por dois meses lá, não morreu, mas não criou raízes e nem cresceu.


Orapronรณbis

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Desde a minha adolescência sempre fui muito a Tiradentes, em Minas Gerais. Tem um prato típico e muito conhecido por lá. Frango com orapronóbis. No passado tinha que encomendar. Levava horas para preparar. Hoje não sei se ainda é assim. Orapronóbis foi um dos primeiros vasinhos da minha horta comestível. É rico em proteína e fibras, além de ter outras propriedades. Não sabia bem como começar, o que plantar. Vi no Facebook que ia ter uma feira de troca de sementes orgânicas no Parque Guinle, local em que ia brincar quando criança. Achei que seria bom dar uma passada por lá. Pensei no que iria levar. Desde cedo fui educada a não ir aos lugares de “mãos abanando”, ainda por cima em um evento que seria justamente de troca. Fui e acabei assumindo que era principiante e ainda não tinha nada para trocar, fora a minha boa vontade de plantar. O organizador, claro, me perguntou o que eu estava fazendo ali. Fiquei um pouco sem graça, todos se conheciam, mas expliquei, afinal eu estava me sentindo deslocada. Queria ter vasinhos em casa que fossem de plantas de comer. Ele me deu um talo de


uns cinco centímetros de orapronóbis, disse que tem muita proteína, mas que precisa branquear antes de usar na receita. Ou seja, passar rapidamente na água fervida e na água gelada. Esse processo tira as substâncias não desejáveis ao consumo, os antinutrientes dessa planta. Disse que a flor se come crua. Também fiquei sabendo que dá um fruto grande e pesado, mas que esse não é de comer. Ele também me explicou como fazer para dividir quando crescer para replantar. Comem-se as folhas da parte de cima, cortando o pedaço do talo de onde as folhas foram tiradas e replanta-se, colocando novamente no vaso. Ele disse que nunca tinha visto dar em vasinho, mas que não custava nada tentar. Fiz, deu certo, já tem dois anos, sempre replantando no mesmo vasinho. Só que as folhas de baixo estão ficando emaranhadas e sem sol, precisando de espaço para subir. Vida ou morte, será vida! Essa semana pensei em dividir pela primeira vez o conteúdo do vaso, colocando em outro do mesmo tamanho. Isto porque, se for aumentando o tamanho do vaso, não vai caber mais nada aqui em casa. Assim, a forma moldará o conteúdo. Sem espaço para ir além, se virará no espaço que tem. E não é assim com o ser humano também? A batata doce, então, se espalha até não parar mais. No vasinho que tenho aqui, vejo isso acontecer. É uma fartura de folhas só. Uma amiga, disse que se animou a plantar, depois que veio aqui 57


em casa. Estávamos ao telefone e ela me contou que passou no supermercado, viu tomilho e comprou. Tendo em casa poderá consumir. Ganhou um vaso com orapronóbis que não estava dando certo na parte de fora da sua casa. Levou para dentro e começou a dar flor. Enquanto ela me contava, eu estava com uma panela com feijão azuki no fogão. Lembrei de dividir o orapronóbis, era preciso consumir. E lá foram as folhas do orapronóbis cortadinhas pra panela do feijão! O tipo que tenho aqui, segundo o Valdeli, é o da flor rosa (Pereskiagrandifolia). Ele disse que só um pouquinho não tem problema ir direto pra panela do feijão. Não dá é para consumir demais. O vaso foi depenado. Agora são dois vasos com talos sem folhas. E quer saber o que acabei de descobrir? Que quanto mais você usa o orapronóbis, mais nasce e mais bonito ele fica. Vai recomeçar o ciclo todo de novo. Assim como no fuxico, não é? Quando um acaba, sempre tem um novo, surge uma nova ideia.


Babosa

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Aí estou indo pra São Paulo e quero dar um presente pros meus amigos, mas estou sem tempo de fazer bolo ou pão, que sei que eles iriam gostar. Estava de frente para a barraca do Eduardo e uma folha grande de babosa falou comigo: — Me leva pra eles! Peguei, mas logo o Eduardo me mostrou outra e disse: — Olha essa aqui, está bem maior. Levei! E quando fui ver a que ele escolheu não cabia nem na minha bolsa, pois como é uma ida rápida, vou só com a bolsa do dia a dia na mão. Não cabia, mas coube. Ficou com o rabinho para fora, ora bolas. Ela me ligou para saber se como peixe fresco da feira. Imagina se não? Aproveitei e perguntei da babosa. Ela logo disse que queria sim e, como seria o dia do jardineiro, ele poderia logo plantar. Pensei cá com meus botões, como ele vai plantar se a folha não tem raiz? Aí me lembrei que havia duas mudinhas aqui em


casa, uma maior e outra menor. A Cris não trouxe a lavanda na mochila de mão no avião? Retirei uma das babosinhas do vaso, sem a terra, só com a raiz. Aqui nesse vasinho, não vai poder se desenvolver muito. Lá eles têm espaço, ela poderá ser bem recebida. E lá fui eu levando a folha e a muda para plantar em São Paulo. Mas, só dá para usar babosa depois de cinco anos, pelo menos é o que eu ouvi falar. Pra mim é mais fácil comprar na feira, no ponto de usar. É bom ter um pedaço em casa para pequenos cortes e arranhões. É só passar o gel dela algumas vezes no local machucado que cicatriza rapidinho. A babosa, depois de cortada, fecha de novo, então dura bastante tempo se você não usar. É medicina natural. Você tá vendo, né? É da horta e, assim como a lavanda, também não é de comer. Bom, estando lá, o jardineiro me disse que ele só vai duas vezes por ano. E não é que fui justo no dia dele? Quando cheguei, ele estava pendurando orquídeas na árvore, em folhas de bananeira. Foi logo plantando e arrumando moradia pra babosa junto com as outras plantas do jardim. Lá é São Paulo, mas só se ouve barulho de passarinho. Disse ele que daqui a cinco meses a muda já vai estar bem crescida. A filha do casal ficou louca. Na verdade, a mãe também. 61


No dia seguinte era feriado, iriam aproveitar para passar nos cabelos, que são cacheados como os meus. Quem mora na roça quer comprar creme de cabelo na farmácia, já há quem more na cidade e valorize as coisas da roça. E lá ficaram o babosão e a babosinha em terras paulistas e douradas. Em boa companhia e em um lugar com alto astral. O babosão já chegou ofertado para uso imediato. Sabe como se chama o espaço lá? Terra Dourada. E é. Para concluir, os olhos da minha amiga brilharam quando perguntei se gostava de fuxico: — Adoro, ela exclamou!


Antúrio

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No Terra Dourada havia vários vasos com antúrios... Há anos fui a um sítio em Petrópolis que vendia plantas das mais variadas e exóticas. Nessa época, eu ainda não tinha hortinha em casa. Achei melhor comprar apenas uma muda de antúrio, que lá mesmo foi plantada em um vaso. Pra mim era uma planta nativa, forte e que seria um bom estudo acompanhar o que aconteceria com ela dentro do apartamento. Não era planta chique, nem de grife. Isso era um atrativo. Hoje, continua no mesmo pequeno vaso que veio de lá, o único de plástico marrom, todos os outros daqui foram trocados por vasos pretos. Só por isso sei que o vaso é o original. Bom, o antúrio fica no centro da mesa, longe do sol, na entrada do apartamento. Dá o ar da sua graça para quem chega. O tamanho? Pra mim, gigante, medindo 28 centímetros de comprimento as folhas verdes; 20 centímetros os corações vermelhos; e de cinco a oito centímetros as espigas verdes e amarelas. Ele bebe pouca água, dá pouco trabalho e se desenvolve quase que por vontade própria.


Algum tempo depois, também na estrada de Petrópolis, comprei outra muda. Queria um parâmetro para comparar. Já circula pela casa, pega mais sol, mora aqui e ali. Não tem lugar fixo, acompanha a decoração. Está bem menor que a primeira, mas nem por isso tem uma vida menos feliz. Hoje em dia está ao lado da espada de São Jorge, a grandona, na bancada da janela. Por algum motivo a considero parente próxima dela. Talvez, quem sabe um dia, venha para cá o saião do Eduardo das ervas. Um pedacinho que plantei, em uma semana, já cresceu de 15 para 23 centímetros. Esse não é de comer, mas já vi que dá uma bonita flor. Mais um alinhavo no fuxico e me lembrei do Antúrio Dourado na rua Barão do Flamengo. Era o nome de uma loja de flores no bairro do Flamengo, perto da Travessa dos Tamoios, onde morei. Era lá que minha mãe encomendava flores para mandar entregar de presente na casa da pessoa homenageada. Lembro que eram arranjos em forma de buquês e minha mãe checava flor a flor. Nunca encomendava vasos, dizia que não era fino. Gostava mais das rosas, mas tinham que estar todas tenras e perfeitas. Qualquer prenúncio de que à tarde já estariam passadas, ela vetava a compra. 65


Pedia por telefone, mas a gente ia lá para ela fazer o cartão e conferir. Eu sempre admirava os antúrios. A opulência, a força, o brilho, a simplicidade e a majestade em apenas uma flor. Não compreendia muito bem aquele fascínio. Achava que era rica e pobre, os dois ao mesmo tempo, não sei se me entende. Quando fiquei maior, ia até lá sozinha para levar o cartão já pronto. Sempre dava uma espiada nos antúrios. Eles não eram vendidos sozinhos, não eram caros como as rosas, que precisavam ser compradas logo, senão ficavam feias e entravam na promoção. Eram majestosos. E, ao comprar uma cesta, o dono logo oferecia: — De brinde vou colocar uns antúrios. Acho que eles funcionavam como a cereja do bolo. Pensando bem, para quem gosta de fuxico, ele não é também como a cereja do bolo?


Pimenta

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Quem gosta de fuxicar Sempre procura novidade Um novo lugar para ir E lá fui eu para uma oficina de horta caseira, num sábado de manhã, em Ipanema. A professora morava em um sítio fora do Rio. Ela falava mais de planta ao ar livre do que morando em apartamento. Dava pra sentir que tinha muito carinho por seu jardim. Ao chegar, havia quatro bonitos olhos verdes de cabelos loiros e com brincos grandes balançando, sorrindo para mim. Ficaram felizes de encontrar uma vizinha que também gosta de planta. Uma simpática colombiana mora aqui no meu prédio e tem uma irmã gêmea que mora na Colômbia, também muito simpática. Nunca havíamos nos falado, apenas nos cumprimentávamos no elevador ou na portaria, sempre de passagem. Nunca soube quem era quem. Só descobri que eram duas, pois um dia as vi saindo juntas do prédio. E aí percebi que eram gêmeas. Os mesmos olhos que sorriram pra mim não desgrudavam da professora enquanto ela falava da qualidade da água. Assim


como nós, as plantas precisam de água boa e de cuidado ao tocar nelas porque sentem calor, frio, sede e falta de espaço. Nesse último quesito, aliás, pedi perdão a algumas plantas por não ter como oferecer um latifúndio para elas. E as colombianas anotavam tudo sem parar. Ao fim da aula cada aluna recebeu cinco mudinhas e um vaso baixo e comprido para plantar ali sob a supervisão da professora. Ela colocava jornal por baixo. Uma vez, lá no começo, tive uma experiência com jornal. Não lembro qual, mas sei que não gostei. Lembro do jornal todo sujo e molhado no vaso. Deixei pra plantar as minhas em casa, do meu jeito. Cá entre nós, meu jeito também não é lá muito religioso. Uma das mudinhas em cada conjunto era de pimenta biquinho. Voltei com as gêmeas no mesmo táxi e fomos direto pro meu apartamento ver a horta para que tivessem ideia de como fazer a delas. Sendo no mesmo prédio e os apartamentos iguais, já ajudaria bastante. Era sua primeira investida. — Puxa, que boa ideia você teve nessa parede! É o local mais perto da janela e bate sol. Coloquei dois suportes de metal e prateleiras com tamanhos e profundidades diferentes. Por meio do suporte de metal vou regulando a altura das prateleiras. Há de se levar em conta que o jardim é vivo, cresce e se modifica. As prateleiras são colocadas de modo não-linear para permitir umas mais altas que as outras nas pontas. 69


Cada vaso de plástico furado embaixo fica dentro de outro vaso mais bonito que enfeita a horta. É para onde vai a água e fica fácil de limpar. Há de se levar sempre em conta que não é tão simples assim. A cada estação muda a necessidade de água de cada planta. Também interfere se tem flor ou fruto. Quem quer manual pronto, não deve se aventurar a ter hortinha em casa. Voltando ao assunto desse fuxico. Uma das pimentas das gêmeas logo morreu e a segunda já ia embora, esturricada de tão seca que estava, quando ela bateu na minha porta, sem graça, pedindo socorro: — Estou me sentindo muito mal. Morreram todas as mudas, sobrou só essa pimenta, que não sei se ainda tem jeito. Você fica com ela? Não quero continuar me sentindo uma assassina, disse. O vaso dela ficou lá em casa uns bons meses. Só que nunca deu nenhuma pimenta. O meu dá até flor e já nasceram umas 100 pimentas. Deixei uma ao lado da outra, elas eram gêmeas, vieram da mesma fonte, mas, ao contrário das minhas vizinhas, eram bem diferentes. Conversando com o Jorge, que me deu as espadas de São Jorge números dois e três, contei essa história. Ele me ensinou a fazer enxertia, a passar o gene de uma para a outra. Tecnologia avançada de DNA. Na hora em que me organizei toda para fazer, estava concentrada e com o aparato montado, tocou o interfone e chegou uma visita de surpresa. É um gesto de muita concentração, não dá pra fazer se dispersando. Então, perguntei pra minha amiga que


veio me visitar: — Você sabe fazer fuxico? Gostaria de aprender? Ela disse que começou a fazer bordado em tela, imagina só. Doutora em Matemática fazendo bordado. Viu só? Ela saiu toda feliz com seu fuxiquinho que vai colocar na porta do armário. Enquanto mexíamos com as mãos, as bocas falavam para lá e para cá. Acabei não fazendo o enxerto, mas vou contar como se faz. Com um estilete, a gente corta em diagonal um galhinho do pé de pimenta que tem pimenta ou flor, mas sem as folhas. No pé sem pimenta faz-se um talho em diagonal em uma das junções dos galhos, colocando a primeira dentro da segunda e envolvendo com filme plástico, daqueles de cozinha. Enxerto feito. Acho que poderia também colocar durex, como fiz com a lavanda quando caiu no chão. Outro amigo, ouvindo o papo das pimentas, ao saber que os vasos são pequenos, foi logo me sugerindo também plantar minipimentões. Comprei uns pequenininhos numa feira orgânica e plantei. Encerramos o assunto falando sobre pizza de pimenta biquinho com rúcula e que, bom como o café da Colômbia, não tem nenhum igual. O que aconteceu com a pimenta da vizinha é que um dia ficou toda seca e no vaso começou a nascer urtiga ─ que passa bem, obrigada ─ e quanto mais eu como, mais nasce. 71


E a vizinha, tempos depois, encontrei na portaria. Está apenas com um vaso recém-comprado na sua casa, curiosa fazendo experiências. Como todo mundo que gosta de planta, parecia eu falando das minhas. Veio aqui novamente fazer uma visita, aproveitei e servi chá de folha de pitanga pra ela.


Beldroega e Urtiga

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Adoro viajar. Com boas companhias, melhor ainda. Estávamos na estrada, paramos para um caldo de cana com pastel. O Valdeli apontou a beldroega no meio do mato. E com conhecimento de causa começou a falar dos seus benefícios para a saúde, entre eles o fato de ser antioxidante, rica em ômega 3 e com alto potencial de magnésio e zinco. A esposa do casal da barraca se virou para o marido e disse: — Meu bem, é o que você está precisando, e temos justo aqui do nosso lado. Vou levar e plantar lá em casa. Ele tentou dizer que não ia dar certo, mas ela carinhosamente falou que ia levar e plantar assim mesmo. Um dos amigos então pediu licença e levou uma pequena muda para plantar no sítio dele. Lembrei que tinha no celular a foto de uma beldroega que não vingou e, ao lado dela no mesmo vaso, havia outra planta, que tinha nascido espontaneamente. Mostrei pro Valdeli na estrada. Ele me disse que o que nasceu é urtiga, que também é comestível e com propriedades medicinais. E ainda contém muito ferro.


Chegando em casa, refoguei e comi. Com o tempo a urtiga cresceu novamente. Um dia olhei para ela e pensei: “Está na hora de comer!” Mas, o tempo passou e no corre-corre do dia a dia, não comi. E ela ficou plantada ali esperando e esperando, até que cansou... Foi ficando doente, com o caule cheio de fungos brancos, algumas folhas muito escuras e úmidas que começaram a cair. Ao mesmo tempo, a horta ficou cheia de formigas, que passeavam de cá para lá. Não sabia mais o que fazer. Nas mudas recém-plantadas havia mais formigas ainda. A dedetização vem todo mês nos apartamentos do meu prédio, está incluída no condomínio. Pedi e eles colocaram um pó rosa sem cheiro na horta, mas não houve nenhuma mudança. A Cris, aquela amiga que me deu a lavanda, ao ouvir falar da poeira rosa, logo ficou em polvorosa. — Nas suas plantas orgânicas? Pode ser tóxica e aí não vai dar pra você comer mais nenhuma. Já pensou elas levando veneno para todos os seus vasinhos? Resolvi fazer uma blitz, reorganizar e jogar a urtiga fora e também a beldroega que já estava em outro vasinho e nunca cresceu nem um milímetro. Para minha surpresa a beldroega estava com o mesmo fungo, a mesma doença que a urtiga e ficava longe dela, justo ao lado dos vasinhos recém-plantados. Sabe o que as formigas faziam? Andavam por todo lado. Assim que joguei fora a urtiga e a beldroega, as formigas desapareceram como num passe de mágica. 75


Agora, com a despedida delas, as formigas se desmaterializaram. Já pensou se as formigas espalham a doença para todos os outros vasos? Aí, veio aqui em casa um conhecido que entende de Feng Shui. Mostrei a foto da urtiga e ele falou que era pulgão branco e que a planta estava mesmo doente. Que seria muito difícil tratá-la. O local onde estava, disse ele, tem uma energia do solo que é insalubre, não só para as plantas, como para as pessoas também. Imagina só, agora, mais essa, energia do solo. Então perguntei: — A lavanda que está no quarto está na mesma direção. É melhor trocá-la de lugar? Para minha surpresa, ele disse que sim. E não é que a lavanda foi pra bancada da TV? Não se preocupem, lá venta e pega um pouco de sol também. Sabe que eu notei que os galhos mais velhos da lavanda estavam ficando fracotes e os mais novos viscosos? Será que era o local? Talvez sim. Depois que mudei, ela ficou mais viçosa. Ele disse que nenhuma pessoa deve ficar naquele local por muito tempo. Com a continuidade, pode acabar ficando doente também. Cada uma... Fiz uma experiência. Na mesma linha da “Faixa de Gaza”, da bancada da janela do quarto até a sala, coloquei a espada de São


Jorge número um, a grandona, e os dois antúrios para morarem ali durante o experimento, na bancada da janela da sala. Após três ou quatro semanas eles quase morreram. A espada ficou com as folhas dobradas para baixo e os antúrios começaram a secar um a um. Tirava as flores secas dos antúrios, mas não dava conta. Era todo dia mais uma que estava seca. Tive visita que quis me convencer que era fase de troca, que era normal. Queria que eu cortasse as folhas da espada de São Jorge. Nesse dia troquei-as de lugar e acredita que todas as folhas da espada de São Jorge estão firmes e em pé novamente? E que não secou mais nenhum antúrio? Tem coisas que ocorrem ao nosso redor que não nos damos conta... São como mundos paralelos que correm lado a lado com o nosso.

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Tanchagem

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Tem coisas que a gente se distrai e esquece Tinha um tupperware na geladeira que ficou escondido na prateleira embaixo da gaveta. Sem querer, estava lá fuxicando e dei de cara com ele. Era tanchagem que havia comprado na feirinha orgânica. Lavei, sequei e guardei bem vedado com papel toalha por cima e por baixo. Só que comi de outras coisas e a perdi de vista dentro da geladeira. Mais de 10 dias depois, quando abri, as folhas estavam novinhas, bem tenras e verdes. O que você acha que fiz? Refoguei a tanchagem. Misturei no arroz vermelho, ficou um pouquinho fibrosa, mas gostei do sabor mesmo assim. O gosto é suave, melhor eu picar ou refogar mais da próxima vez. O tempero fica a gosto de freguês. Dia desses, tinha feito como salada, bem picadinha com tomate e temperada com azeite e sal. Hummmm... Deu muito certo. Uma vez, quando estava numa barraca da feira, uma senhora passou com o marido pedindo “chachachá” pra garganta. Alguém deve ter falado sobre a tanchagem pra ela, ouviu o galo cantar, mas não soube se explicar. O feirante não entendeu


nada, aí traduzi para ele e expliquei para a senhora como usar: — Faz o chá pra bochecho, gargarejo, compressa. E se tiver dor de dente pode colocar no local as folhas que sobraram do chá. Ela sentiu firmeza e levou a tanchagem. Saí rindo sozinha. Nunca teria me imaginado nessa situação. Fui intérprete das plantas para os dois. Tanchagem é difícil pegar no vasinho, é do chão, precisa de espaço para rastejar. Desde que soube de suas propriedades para a saúde, a conheço de longe, tentava plantar, mas não vingava. Toda mulher deveria comer tanchagem. Conceição Trucon − que é química, cientista, palestrante e escritora de vários livros sobre alimentação natural e qualidade de vida, do site www.docelimao.com.br − diz que é a planta do feminino. Gostei de encontrar na feira, é o jeito de poder comer. Você pode soltar as bolinhas dos psílios que ficam em cima e colocar na salada, nas receitas. Penso em um dia colocar na massa do pão. Há dois meses ganhei duas mudinhas de tanchagem do quintal do amigo Zé. A da janela estava bem maior do que a que estava longe do sol. Mas um dia o sol veio forte e a esturricou. Cortei toda, deixei no talo e tirei do sol. Hoje, as duas passam bem, na sombra. Estão em vasinhos de violeta, imagina só, quando é que vai dar pra comer? Aqui é assim, não tem espaço maior para todos, é como dá, elas vão tentando se adaptar enquanto 81


eu observo, interajo e aprendo. Por enquanto, todas estão passando bem. Não devo ser a primeira nem a última pessoa que fica feliz com tanchagem ou com picão. É só você pesquisar os benefícios, dessas e de outras plantas, que talvez fique encantado também. O difícil é achar. Picão, por exemplo, não encontro por aqui. Fico triste quando vejo que, para não estragar a plantação nas hortas orgânicas e não orgânicas, jogam fora essa preciosidade que é cheia de zinco. Já tentei trazer, mas não resiste à viagem e plantar em vasinho não deu certo. Nunca como e tem um monte de gente jogando fora. Estava agora há pouco fuxicando com os meus próprios botões. Pensa comigo: a taioba tem mais nutrientes que a alface; a batata doce e o inhame seguem a mesma linha em relação à batata inglesa; amêndoas, castanhas e nozes são mais nutritivas que o amendoim. Por que em todo lugar só tem alface, batata frita e amendoim? Pelo menos poderiam aumentar o repertório, ampliando o leque de opções de sabores e saberes. Há, como eu, quem gosta e não encontra.


Passeio na Horta 1

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Uma coisa puxa a outra É só deixar fluir Dia desses, cheguei para fazer aula na academia, a sala estava cheia e não tinha mais colchonete. O professor foi logo avisando: — Sinto muito. Desci a escada, já tomando outro rumo. Resolvi seguir em direção à feira de rua perto da Cobal, no Leblon. Nunca fui lá, estava curiosa para conhecer. No meio do caminho, ao passar pela Praça Antero de Quental, notei que a feira orgânica, após as obras do metrô, tinha voltado para lá. Bom passeio, pensei. Vou dar uma olhada no que tem por aqui. Primeiro dei uma volta quase geral no sentido anti-horário. Fui olhando para ver o que queria antes de sair comprando, não queria carregar peso, pois pretendia seguir ainda até a outra feira mais adiante. Na metade da volta, achei uma barraca que me agradou muito. Logo pensei: “Vou querer o peixinho, a trapoeraba...” e fui separando o que queria. Achei tão legal que tirei logo uma foto da bancada. Parecia um déjà vu.


Enquanto ainda estava hipnotizada, o vendedor apontou para um cartaz na árvore avisando para um casal que no dia 08 de outubro de 2017 haveria a sétima visita à plantação dele. Um passeio de ônibus com almoço e colheita na horta. Tóimmm..., uma reviravolta na minha cabeça e fui imediatamente transportada para sete anos atrás. Nessa mesma praça, em um dia chuvoso, avistei uma filipeta de papel colada em um pequeno poste. Isso me chamou a atenção. A praça estava vazia naquele dia. Ainda nem conhecia a feirinha, estava começando a me interessar pelos orgânicos. Era um convite para uma visita a uma plantação orgânica, um passeio de dia inteiro. Fui atraída por esse pequeno papel. E não é que fui? Olhei para a árvore e para o cartaz de 2017. Eram enormes. Quando falei que tinha ido ao primeiro passeio, ele se lembrou de mim. Naquele dia tirei fotos com a câmara profissional. Todos interagiram ─ adultos, crianças e suas avós. Passei muito tempo na cozinha com elas. Ajudei a preparar e a servir o ensopado de frango com miúdos graúdos. Coisa difícil de encontrar na cidade grande. Lembranças do tempo das avós. Elas falavam dos hábitos de lá, eu contava dos de cá. Amei. Fotografei todos ali. Cheguei em casa e escrevi sem parar. Esse lugar fica depois de um outro, chamado Shangri-lá. Ainda pretendo voltar lá. Conversamos, imagina só, ele é o dono da plantação. Perguntou das fotos, falei que estavam impressas esperando o momento certo de levar, pois não sabia mais como chegar no local. Me contou do filho — me lembro dele, loirinho — que já tem 85


barraca na feira da Nossa Sra. da Paz. Foi me dando as notícias de lá e de cá. Que ele hoje tem mais de 400 clientes no Leblon e tá, tá, tá... não parava de falar. Tive intenção de fazer o passeio, mas um outro verde me chamou mais forte, era no mesmo dia e a retomada do fio da meada desse fuxico ainda não foi dessa vez. Na hora me passou pela cabeça: “Quem sabe não escrevo sobre isso mais pra frente?” Depois, seguindo adiante, passei pela feirinha com barracas de artesanato em frente à Cobal do Leblon. Também ainda não tinha ido lá. Vi várias opções de coadores de café de pano, do tipo que um camelô de Copacabana quase não quis me vender. Parecia até raridade, não queria desmontar o conjunto. Aqui tinha com fartura. Tive visita que entende de café e disse que é melhor o gosto daquele feito no coador de pano. Coloquei na cafeteira no lugar do filtro de papel. Experimentei e funcionou. De lá fui para outra feira de rua, que queria também conhecer. Quando chego, o feirante me vê. É o mesmo feirante da história em que fui intérprete da tanchagem, lembra? — E aí madame, vai querer o quê? Sei que a senhora gosta de saião. Tem aqui, esse é de presente. Pensei: “E agora que soube que o dele não é de comer?” — Se a senhora plantar, ele dá bem.


— Eu sei, plantei e já estão com os narizinhos pra fora, respondi. Logo me mostrou uma tanchagem e disse: — Trouxe 10, mas fora essa aí só tenho mais uma porque uma senhora veio aqui e comprou oito. Fiquei pensando com os meus botões... “Para que será que ela levou tantas?” Aí me veio à cabeça que compram para usar como remédio, que essa é a finalidade da barraca dele.

Degustação

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Degustação

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Domingo estava aqui perto, passou para saber o que eu andava aprontando. Fui contando histórias e apresentando cada planta da horta. — Olha as três espadas de São Jorge juntas, a diferença de tamanho entre elas. Ele ficou encantado quando viu a lavanda. Não conhecia. Mostrei para ele na horta o saião que pode e o que não pode comer. Ele achou bonitinho o que pode, a mudinha que o Cadu me deu. Perguntei se ele gostaria de provar alguns sabores diferentes. Fomos para a cozinha. Fui mostrando cada coisa e dizendo o nome, enquanto preparava. Domingo foi uma porta que se abriu para eu estar escrevendo, não ia perder a chance de ampliar o seu repertório também. Comecei oferecendo pão com orapronóbis que tinha feito na véspera. Reguei com azeite, salpiquei com alecrim e orégano que colhi da horta na hora. Naquele momento ele demonstrou um certo estranhamento, acho que porque o pão era verde, mas quis experimentar. Por


cima salpiquei flores picadas de orapronóbis rosa e temperei com bom azeite e sal. Ele comia, revirava os olhos e dizia: — É gostoso. Fazia expressão de que estava surpreso. Acho que ele comia e pensava na irmã. No que iria falar para ela. Comeu tudo até o fim. Perguntei se conhecia taioba, acenou com o rosto que não. Refogada é mais gostosa que a couve na feijoada, eu disse. É bom saber, para poder diversificar. Tirei umas cristas de galo do vaso, lavei, cortei em pedaços pequenos, temperei, refoguei com alho e cebola. Coloquei no arroz que tinha pronto. Peguei cana do brejo, cortei e coloquei no feijão. Para completar ainda perguntei: — Vai uma pimentinha da horta aí? Ele se sentou no sofá e ficou lá, sentado, comendo. Não fez menção de parar. Seus olhos mexiam, o que me sinalizou que o cérebro dele estava processando novas informações. Deixei-o à vontade. Por fim, ele falou: — É uma comida saudável, sem química, natural, depois falam que isso que é estranho. Tem é sabor de comida de verdade. Não sei explicar, mas esse assunto mexe com a raiz, faz a gente se voltar para dentro. Me faz lembrar do sabor da comida das minhas avós. 91


Não só gostou como quis mais.... Provou também molho pesto que fiz com folhas de manjericão. Fui colocando-as aos poucos no liquidificador com um dente de alho, queijo ralado, pinole (pode ser também com nozes, amêndoas, castanhas...), sal. Vai colocando azeite aos poucos e batendo. Como molho para macarrão, fica muito bom. Para comer com torrada também. O manjericão pode ser substituído pelas folhas da cenoura, fica ótimo! E, para terminar, quem não gosta de um docinho? Servi um bolo que tinha feito e que, para dar um toque diferente na receita, havia colocado umas gotas do licor de nêspera, aquele que estava dentro da garrafa de cachaça. Seus olhos reviraram, parecia que não encontrava parâmetros para comparação.


Vó Clara

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Foi assim... Eu estava diante de um verde abundante, no Horto, olhando pela janela. Falei para a minha amiga: — Estou sentindo falta de algo que nunca tive. De verde! Moro perto da praia, mas praia nunca foi a minha praia. Nunca morei no verde, fora as férias que passava em Teresópolis quando era criança e convivia com plantas e cavalos. Sinto falta de cheiro de mato: de brincar de tirar as saias do hibisco; de pegar um pedacinho de cedro do pé, esfregar na mão e ficar por horas esfregando e cheirando sem cansar. Tem um frescor de mato que adoro. Sinto falta de colocar os pés na terra. Para quem mora no 22º andar, deve fazer falta mesmo. Dia desses, pedi um galhinho de cedro para o feirante que enfeitava os arranjos de flores na feira. Entrei no vácuo ao cheirar. Lembrança de infância. Fui transportada para o passado e quem sabe, não estava ali justamente naquele momento, projetando o meu futuro? Duas amigas, no dia seguinte, me convidaram para um lugar que disseram ser a minha cara. E não é que gostei? Nunca tinha falado para elas do meu desejo de verde. Mas elas, sem saber uma da outra, falaram para mim: — Vi um lugar que você vai gostar! Tem cheiro de mato. Vamos lá? 95


Pela foto que mostraram, lembrei-me do condomínio do Higino em Teresópolis, onde meus avós maternos tinham um pequeno apartamento e iam pra lá de vez em quando. Nunca entendi por que isso fazia parte das minhas lembranças, aquelas que aparecem quando você menos espera. Um dia, estava na casa dos meus avós maternos, no Rio. Era muito menina ainda. Conversávamos, estávamos felizes e eles sugeriram irmos pra Teresópolis. Fiquei toda animada. Foi a única vez que viajei para lá com eles, pois meus pais alugavam uma casinha também em Teresópolis onde passávamos as férias e feriados. Minha avó recolheu as vasilhas de comida que estavam na geladeira. Elas já estavam no seu último suspiro. Depois do frango assado, tinham virado arroz de forno e, por fim, eram bolinhos. E lá foi ela recolhendo os potinhos para almoçarmos quando chegássemos lá. Uma memória que nunca esqueci. Parecia pouca comida para nós três, mas não é que deu certinho e não fiquei com “nadica” de fome? Desde cedo fui acostumada à fartura. Sempre comi bem, pois minha mãe, ao contrário da minha avó, abastecia a geladeira com abundância. Fui uma criança cheinha. Minhas avós adoravam, para elas era sinal de boa saúde. Mas, naquele dia, pela primeira vez, vi que com pouco é possível se sentir satisfeito. No fim do almoço, ela pegou uma caixa de chocolate Língua de Gato, da Kopenhagen, que havia levado sem eu saber, e falou: — Pode comer dois.


Foi perfeito. Menos é mais. Foi a lição daquele dia. Minha avó era muito caprichosa. Tudo limpinho e muito arrumado. Fazia arte de tudo, acho que daí veio a inspiração pro meu fuxico. Bordava, fazia sacolas com sacos de leite, enfeitava os potes com moedas e bordados. Ela era fotógrafa na Rússia. Fazia fotos políticas, sua câmara foi confiscada. Foi o que soube pelas minhas tias. Nunca a ouvi falar do passado. No Brasil, foi boa dona de casa, mãe de três filhos e artista em tempo integral. Os enfeites da casa eram feitos por ela. Não tinha um pote, um vaso, sem bordados floridos ou rendados. A Cris poetizou: — Heranças valiosas são forças condutoras, motrizes, que nos fazem prosseguir, sem nos render. A moeda não rendada vai, a moeda rendada transforma um percurso em outro. Os tapetes dos banheiros ela fazia trançados com as meiascalças de nylon que haviam desfiado. Era escritora, essa era a sua grande paixão. Escrevia contos em idish, frequentava o círculo literário na biblioteca Bialik, no bairro do Flamengo, onde morava, e dava palestras no palco com microfone. Ali era outra avó: chique, arrumadíssima, formal que só. Mas de tudo o que eu gostava mesmo era da parte do fogão. Lembro dela na frente do forno, assando os beigueles, que são uns bolinhos típicos da culinária judaica. Minha avó fazia dos 97


dois tipos, batata e queijo. O de batata era o mais disputado na nossa família. Em dias de festa ela colocava um pedacinho de casca de ovo dentro de um deles, pagava um mico danado quem achava e levava um susto com o “creque” no meio da maciez. A gente morria de rir. Eu e ela éramos as únicas que sabíamos em que beiguele estava o pedacinho da casca. Eu podia passar o dia todo vendo-a cozinhar. Queria saber de tudo. Sempre fui curiosa e perguntadeira. Até hoje lembro o cheiro da sua cozinha. Minhas avós, as duas, me deixaram o amor e o encanto pela arte de cozinhar. Cozinha como no tempo das avós. É dessa cozinha que gosto. Não gosto muito de receita que tem que copiar. Assim como a minha avó fazia, bom mesmo é criar. Aqui escrevendo me dei conta da herança: foto, escrita, criatividade, arte, cozinha... E eu aqui resgatando meu passado, costurando meu futuro. Aí entra o fuxico, entre as linhas e as entrelinhas. Recentemente passei na Kopenhagen e entrei para tomar um cafezinho. O waffle com chocolate que vem junto acaba logo no começo do café e fiquei querendo algo mais para acompanhar. Sabem o que tinha lá? Uma colher avulsa de chocolate, embalada individualmente, com a foto e o formato da língua de gato. Fiquei feliz, imagina só. Saboreei, uma só, relembrando o almoço daquele dia em Teresópolis na casa da minha avó. Menos é mais.


Essa receita foi escrita pela tia Sara, irmã da vó Clara e dedicada aos seus netos e bisnetos. Era a mesma que a minha avó fazia. Tenho guardada desde que ela escreveu e me deu.

“Tradução” da receita para quem se animar a fazer: Massa 200g de manteiga, 1 xícara e 2 colheres de água quente, 1 colher de vinagre, ½ kg de farinha de trigo. Misture todos os ingredientes com a água quase fervendo e amasse tudo com a farinha de trigo. Guarde na geladeira. Essa massa é de Israel e pode durar até 8 dias. 99


Recheio: 1 kg de batatas, ½ kg de cebola picada frita, pimenta, 1 ovo crú, farinha de rosca. Quanto mais cebola, melhor. Frite a cebola no óleo com pimenta, misture as batatas cozidas e o ovo crú. Na hora de fazer, retire a massa da geladeira, divida em bolinhas e com o rolo faça a massa ficar bem fina para rechear. Vá afinando cada vez mais a massa com o rolo para colocar o recheio. Prepare uma forma untada. A massa deve ser bem esticada na mesa enfarinhada. Coloque o recheio e cubra com as pontas da massa. Leve ao forno. Não entendi, onde entra a farinha de rosca... A irmã da minha avó quando escreveu essa receita já estava bem velhinha. Lembro que a minha avó pincelava gema por cima de cada beiguele.


Vรณ Aurora

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Vó Aurora

Costumo ser uma porta por onde as notícias entram

No dia de Rosh Hashaná, o ano novo judaico, logo após ter escrito o texto com as lembranças da minha avó materna, recebi um email de parentes do lado da minha avó paterna. Cabe mencionar que nunca conheci nenhum parente por parte dela, nem mesmo imaginava que ele existiam. O email explicava que a minha avó paterna, Aurora, tem um irmão mais novo, Jack Stecki, que completaria 80 anos em outubro. Eu nunca soube disso. Aliás, nunca soube de nada. Iriam fazer uma comemoração nos Estados Unidos, na Filadélfia, onde ele mora. Estavam convidando a família. Minha avó teria hoje 103 anos. Suas irmãs, assim como ela, já morreram. A esposa do Jack, Marcia Stecki, me achou na internet. Disse que viu a minha foto e teve certeza que era eu. Respondi com cópia para minha irmã e meu pai, abrindo mais a porta para que eles pudessem se chegar. Desde que minha avó veio da Polônia para o Brasil com meu avô, pelo que soube, nunca mais teve notícias da família... imagino que menos ainda do nascimento de seu irmão, 23 anos 103


mais novo do que ela. Da vida de lá tudo o que eu sabia é que ela morava em uma cidadezinha e meu avô em uma cidade grande. Eles namoravam. Um dia, ele foi agredido em uma ponte, quando voltava para casa, como era comum acontecer com os judeus na Polônia. Ficou assustado, deixou a família por lá, buscou a minha avó na cidade dela, casaram e vieram pro Brasil, escondidos no porão, junto com a carga de um navio. E aqui tiveram um filho, meu pai. Perguntava sem parar aos quatro avós sobre o passado e a vida além-mar. Nunca me contaram uma palavra sequer. Nenhum dos quatro. E não foi por falta de insistência da minha parte, desde muito cedo na vida. Ao chegarem aqui, os quatro — os avós maternos vindos da Rússia e os paternos da Polônia — todos escondidos nos porões de navios, porém em momentos diferentes, foram recebidos por judeus que esperavam lá no porto os conterrâneos que vinham da Europa. Eles os levavam para suas casas, davam cama e comida por uns dias. Forneciam um primeiro mostruário com produtos para serem vendidos por aí afora ou de porta em porta. Assim, logo iam se virando e reconstruindo suas vidas. Minhas duas avós, tinham em comum o gosto por cozinhar. Meus dois avôs seguiram na profissão de “clinteltic”, que era a venda a prestação, de porta em porta. Tocavam a campainha, a pessoa atendia e eles apresentavam um mostruário com a mercadoria. Com o tempo, havia encomendas. E as vendas e a clientela iam aumentando.


Meu avô materno vendia esses produtos de porta em porta desde sempre que me lembro. Naquela época era seguro as pessoas abrirem a porta para estranhos que tocavam a campainha. Meu avô paterno acabou montando uma loja de eletrodomésticos. Ficou conhecido por ter importado a primeira máquina de costura para o Brasil. Fuxicando, mais que isso... “encaraminholando” com meus botões... Fiquei curiosa pelo encontro e o que ele me reservava. O email dizia que meu tio, Michael Nash, da Polônia, estaria também lá comemorando o seu 95º aniversário. Será que ele conheceu a minha avó? Será que conheceu o meu avô? Como seria o irmão da minha avó? Iríamos nos emocionar? Saberia algo mais da minha avó, além do pequeno parágrafo que escrevi aqui? Voltando para minha avó, aos domingos, desde às cinco da manhã, ficava na frente do fogão preparando nosso almoço. Sempre dizia que o gás era muito fraco. Ela servia três fartas rodadas: as entradas frias, a sopa e depois os pratos quentes. As receitas eram da culinária judaica polonesa. Nunca faltava kartófle (batata). Comi um dia na casa da Mera, depois que a minha avó não estava mais aqui, borscht (sopa de beterraba) com sabor igualzinho ao dela. A Mera me disse que a receita era a mesma. Está com 90 anos e será coincidência??? Sua filha acabou de me mandar uma foto dela pelo WhatsApp. Perguntei se éramos parentes. Ela disse que não, que seus avós vieram junto com os 105


meus, no porão do mesmo navio da Polônia. Achava que a Mera era minha tia, sempre a chamei assim. Em algum momento me dei conta, que os parentes por parte do meu pai que eu achava que eram tios, na realidade, não eram. Meus avós paternos não tinham parentes no Brasil. O que me despertou a vontade de querer resgatar as raízes, as verdadeiras raízes. Bem, eu ia falar do borscht, né? Cozinha duas ou três beterrabas, dependendo do tamanho, uma batata doce e uma cebola, sem os temperos. Bate no liquidificador, tomando o cuidado para não estar muito quente na hora de bater, senão pode quebrar o copo. Já pensou beterraba espalhada por todo canto? Tempere com açúcar, limão, sal e pimenta enquanto estiver batendo. Minha avó Aurora, servia gelado, tinha um sabor adocicado. Passava pela peneira para ficar fino e servia com creme de leite fresco. Já a avó Clara, russa, servia ele quente, grosso e salgado. O da Mera, era grosso e quente, mais agridoce, e ela servia o prato dividido em três porções: borscht, purê de batatas e creme de leite. O que eu mais gostava era o da vó Aurora. Igual ao dela não tem. Não sou só eu que tenho preferência pelo paladar da comida da minha avó, todo judeu da minha geração é assim.


No meu caso, as duas avós cozinhavam bem e eram de origens diferentes. Tenho lá minhas preferências. Gosto do sabor adocicado da cozinha polonesa: gefiltefish (bolinhos de peixe), borscht, varenikes (pastéis assados com recheio de batata e muita cebola frita por cima), arenque (peixe que, apesar de muito salgado, à moda polonesa fica adocicado), kiguel (bolo de macarrão com passas e maçã). Já em relação aos pratos salgados, prefiro o tempero da avó russa: beiguele (os bolinhos assados no forno de queijo e de batata), kashe (o grão, cozido com muita cebola e tempero), Klóps (bolinhos de carne e de frango). Lembro de uma sensação dividida. O ioer, o caldo de galinha, preferia o da vó Aurora, mas os kneidlachs (os bolinhos que se come com o caldo) preferia os da vó Clara que eram mais saborosos. Comia na casa de uma, pensando no que faltava, que estava na casa da outra. Pensava calada, não falava. Para arrematar esse fuxico pensante, uma coisa que ainda não consegui, foi a receita da sopa de bertalha que a vó Aurora fazia. Era um caldo com as folhas soltas e pedaços de ovos pochês boiando. Já tentei de todo jeito, mas nada que chegue perto do sabor da sopa dela.

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Viagem

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Pensou que eu ia falar da viagem para ver o irmão da minha avó? Esse fuxico deu pano pra mangas. Quem sabe não vira assunto para um outro fuxico? Estava no aeroporto internacional aguardando a chegada do Valdeli, que vinha de Campo Grande. Ele mora em Manaus, mas estava em um evento por lá. Tínhamos um encontro em Juiz de Fora com pessoas que gostam do verde, de cozinhar e de fazer comidas diferentes. Rolam fuxicos e mais fuxicos sobre o tema desse livro. Desde a estrada ele vai falando de verde. Faz comentários, fica bobo como as terras são ociosas e o solo pobre e compactado. Diz que trazendo o lixo da cidade e colocando ali, o solo ficaria fértil e não haveria mais fome. Isso não é um plano que, se implementado em vários lugares, acabaria com a fome no país? Ele trouxe jabuticabas, comemos tudo, até a casca. Diz que é muito nutritiva, mas avisa: — Não é pra comer muita casca, só de uma ou de outra. Também trouxe um monte de iguarias. Barrinhas de jatobá, nunca tinha ouvido falar. E ainda jenipapo, mas esse comigo não teve papo, a história acabou logo no primeiro ato.


Vim contando que fiz uma receita que ele havia sugerido. Coloquei caroços de nêspera (que é uma fruta da minha infância) na garrafa da cachaça. Só que tinha pouca cachaça e muito caroço, o que deu um concentrado acastanhado forte, de sabor marcante e cheiro acentuadamente doce. Antes da viagem, coloquei num cafezinho. Ficou uma delícia e com um aroma perfumado. Ele diz que também fica bom se colocar em pão e bolo como essência. Ainda pretendo experimentar. Comentei com ele que um belo dia olhei para a urtiga e pensei: “Está na hora de comer”, é hoje. E os dias se passaram, eu entrava e saía e não tinha tempo de preparar para consumir, até que ela adoeceu. Valdeli me aconselhou: — Não deixe para comer amanhã o que você pode comer hoje, principalmente se forem flores. Muitas vezes, no dia seguinte já passaram do ponto e não dá mais pra comer. Notei isso com as pimentas. Fiquei esperando. Não queria comer para ver o número delas ir aumentando no vaso e poder contá-las uma a uma. Mas o ciclo precisa de cada etapa: nascer, crescer, florescer, frutificar, envelhecer e morrer. As pimentas não consumidas vão secando e enrugando até desidratarem. É um desperdício, não é? Vão servir só para adubar a terra? Ele disse que precisa comer toda semana. A partir daí, comecei a comer. Faz sentido. Afinal, pimenta não é só decorativa, é comestível. 111


Me lembrei que acabei não fazendo o enxerto das pimentas porque chegou visita, quem sabe não teria resolvido? Disso é feito esse livro, de histórias da vida real. Percebi nessa viagem que quando você fala com quem gosta do assunto, todos têm histórias igualmente interessantes pra contar. E, quando contam, parecem as minhas histórias com vivências diferentes. O tom, os entremeios e as entrelinhas são os mesmos. A Fátima, que também estava no carro, comentou que ela e a neta jogam as sementes das frutas que comem em locais públicos por onde passam, para que possam crescer. Elas se divertem. Achei engraçado quando ela me perguntou qual a praia que eu frequento. Rimos quando respondi: — Nenhuma. Realmente, carioca que não vai à praia não é lá muito comum. Comentei dos tatuís que catava nas areias da praia de Copacabana quando criança. Ouvi dizer que não os encontramos mais. A Fátima disse que fazia arroz com eles. Já eu levava no copinho plástico pra casa da vó Aurora e pedia para ela cozinhar. Ela achava estranho até que um dia se rendeu e cozinhou para mim. Acho que foi com arroz. Meu pai e minha mãe não gostaram nada do fato, levei bronca, mas lembro que fiquei feliz. E de repente, adulta, descubro que não sou a única que quis comer tatuí quando criança.


Que seria do verde se todos gostassem do amarelo? Escrevo aqui, também, para falar do verde — algo que esteve distante por muito tempo na minha vida. Soube também que terra dura atrai formiga e quando a terra é fofa elas somem. Faz sentido. Aqueles formigueiros que a gente encontra quando viaja, a terra não é sempre dura e seca? Aí fiz uma correlação. Vou ver como estão as minhas terras nos vasos. Se ficarem macias, quem sabe as formigas vão sumir. Quando uso o composto do Ciclo Orgânico, a terra fica fofinha. Aprendi que é bom deixar na terra as folhas secas que caem, viram adubo e enriquecem o solo. Aqui no Rio, fotografei uma encosta recoberta de trapoeraba roxa e mostrei pro Valdeli. Me confirmou, pode comer. Na salada, no suco ou refogada. Paramos para almoçar na estrada, não tinha nada de verde em nossa mesa. Estava bom à beça. Um panelão de galinha caipira ensopada. Ficou com água na boca? E não podia faltar, para quem não estava dirigindo, uma cerveja estupidamente gelada. O brinde! A viagem estava apenas começando...

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Passeio na Horta 2

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Lá em Juiz de Fora A gente anda no mato Na horta Pela propriedade Na estrada Em todo lugar o Valdeli aponta plantas que são de comer. Fico no foco, ligada ao que posso experimentar nos meus vasinhos. Provo um monte de coisas. De umas eu gosto, de outras nem tanto. Dependendo da cara das pessoas antes de mim, já nem provo. Sei que não vou gostar. Se sou a primeira a provar, minha cara é transparente, não dá para disfarçar se gostei ou não. O Valdeli vai mostrando muitas plantas que são fonte de abundância e riqueza, que daria pra ganhar muito dinheiro comercializando. Ele explica como plantar, preparar e vender. Tanta coisa entre o céu e a terra... E com tanta terra ociosa, ainda tem gente com fome. Há também um mercado promissor na alta gastronomia, mas ainda é mais ideal que real. As pessoas ainda não conhecem, por isso não dão o devido valor. Se alguém famoso começar a divulgar, logo muitos irão adotar. Aí, com o tempo, quem sabe, encontraremos esses itens com mais facilidade nas feiras, nos


supermercados. Num dos passeios, fomos visitar uma horta distante mais ou menos um quilômetro de onde estávamos hospedados. Já no caminho pela estrada, fui sentindo uma emoção. Éramos um grupo caminhando, adentrando um lugar tão mágico, assim como há seis anos. Em 2011, fomos ver e colher comestíveis da plantação convencional (brócolis, alface, beterraba, cenoura, couveflor...). Agora, em 2017, o foco era encontrar o que cresce nas entrelinhas e nos entremeios dos brócolis, da alface, da beterraba e das cenouras. As que nascem espontaneamente para além do espaço das alfaces. Meu sentimento era o de abundância. Tanto de lá, como de cá. Senti que um ciclo estava se completando. Assim como no outro passeio, íamos colhendo os itens para o preparo da refeição. Tirei uma foto e nesse momento tive certeza. Em minha memória, parecida com fotos que tirei lá. Tóimmm.... A alegria tomou conta do meu coração ao sentir que eu estava no lugar certo, na hora certa. E assim, voltamos para a cozinha, cada qual com o seu fazer. Eu, desde sempre, gostei de mexer a colher na panela do feijão. Minha mãe não deixava, minhas avós também não. Mas boa observadora que era, mesmo à distância, tomei o gosto e hoje bem sei como fazer. Não sei como sei, mas sei a hora certa de parar de mexer. 117


Fiquei responsável pelo molho verde com orapronóbis. Primeiro é preciso tirar folha por folha dos galhos. Os mais novos não têm espinhos; os mais velhos, sim. Nessa parte recebi ajuda; é preciso ter paciência e cautela, era muito orapronóbis para limpar. Depois, é só lavar muito bem e branquear. Lá estava eu com a colher de pau, mexendo no panelão. Para fazer o molho, refoga-se cebola e alho, colocando os temperos de preferência (sal, pimenta, orégano, tomilho, nozmoscada...). Mas lá, quem quisesse também podia mexer na colher. Colocaram azeite de dendê e ficou muito bom. Podia ser com molho branco ou com molho de tomate. Batemos no liquidificador. Como molho de macarrão, é só colocar queijo ralado por cima na hora de servir. Enquanto isso, um grupo lavou as flores rosa e os talos do orapronóbis. Colocaram no vapor. Serviram bem temperado e crocante “al dente”. Trouxe comigo para o Rio um talo grande de orapronóbis para plantar. Perto da casa tínhamos acabado de colher grão de bico verdinho dentro da casca. Foram para a panela com água, muito sal e temperos. Como tem casca, é preciso caprichar, senão, o tempero não irá entrar. Na hora de comer é só tirar a casca e degustar. Colhemos palmito de taboa que foi refogado e temperado. Fizemos também três geleias: de amora, hibisco e azedinha... Faz igual geleia comum... Coloca o açúcar e a fruta, flor ou


folha e vai mexendo. Hummm... Fizemos suco com as folhas do limão-cravo. Com água, gelo e mel. Podia ter colocado gengibre ou hortelã. Já pensou com cachaça? Deu água na boca. Enquanto fazíamos a comida, ouvia que as papilas gustativas se apuram à medida em que experimentamos novos sabores. A Tetê disse que existem muitos outros paladares além do doce, amargo, salgado e azedo. Que há notas gustativas que a gente desconhece. Que, quando nos abrimos para novas experiências, o coração e a mente também se abrem. O grupo era grande, se formaram subgrupos de trabalho, que iam mudando de acordo com as aptidões e os interesses. Me chamou atenção que, quando o pessoal foi terminando, ia se juntando espontaneamente em volta da mesa da cozinha, como no tempo das avós. Eu estava ainda mexendo a colher na panela no fogão, mas pude observar enquanto mexia. Todos sentados, tirando a casca do amendoim, ou será que era do grão de bico? Faziam exatamente o que é o tema desse fuxico. Com as mãos ocupadas fazendo, a conversa tinha um ritmo, uma harmonia e uma musicalidade, como se estivesse sendo regida por um maestro lá de cima com batutas invisíveis. As pausas eram integradas. Era como uma sinfonia regida silenciosamente lá no plano da criação, parafraseando Deepak Chopra. Eu me emocionei ao notar que essa concepção do fuxico existe independente de mim e de eu fazer alguma coisa para que isso aconteça. São situações nas quais é muito prazeroso e gratificante estar. 119


Arremate final


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Momento de troca em roda Melodia de assuntos nutre a alma Roda de fuxico Sabores e saberes Com seus aromas A cozinha despertava Sensações e memórias Ninguém falava sozinho Ninguém se atropelava A prosa seguia no ritmo Do ir Do silêncio Do vir Não havia mestre Não havia aluno Todos eternos aprendizes Aprendemos fazendo Aprendemos trocando Aprendemos convivendo Aprendemos compartilhando Aprendemos dando e recebendo Uma roda motriz Um caso de amor sem fim...

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