Por uma geopolítica da água

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Por uma geopolítica da água: conheça o mapa dos conflitos. Osaspectos espetaculares das sucessivascrises do petróleo, com a escassezimediata e o aumento dos preços, fez com que grande parte da população mundial acreditasseque o esgotamento das reservas naturais do planeta era parte de uma questão energética, que poderia ser resolvida através do aporte tecnológico. De forma silenciosa, contudo, uma outra escassezavançava, sem ser vislumbrada em toda sua ameaça: a falta de água potável. Por: Francisco Carlos Teixeira* Pela própria natureza da Terra, a água doce, potável e de qualidade encontra-se distribuída de forma bastante desigual. As regiões setentrionais do planeta, embora com grandes rios – Danúbio, Reno, Volga, Lena – ou na América – o SãoLourenço, Mississipi, Missouri – concentram grandes aglomeraçõesdemográficas, que consomem volumes crescentes de água potável. Além disso, a generalização da agricultura moderna – subsidiada com milhares e milhares de dólares, tanto na União Européia, quanto nos EUA – ampliou tremendamente o consumo de água. Muitas vezes, a riqueza produzida por tal agricultura subsidiada não paga os imensos gastos de armazenamento, dutos e limpeza investidos no processode sua própria disponibilização. Em quasetodos os casos,as grandes reservas de água na Europa e nos EUA padecem de problemas que afetam sua qualidade. Na Europa, hoje, a água é um item de consumo semanal, constituindo-se item obrigatório nos supermercados. A grande poluição industrial – por exemplo, no Reno – ou a qualidade – o caso das águas calcáreasda França e da Alemanha – obrigaram a população a aceitar a água como mercadoria vendida em supermercados. Nos EUA a expansão da agricultura subsidiada consome a maior parte da água potável, além da poluição que avança sobre grandes reservatórios, como nos GrandesLagos. Além disso, a construção de cidades “artificiais”, muitas vezesem pleno deserto – como Las Vegas– implica numa pressão crescente sobre os reservatórios existentes. Osgrandes reservatórios encontram-se, ao contrário, nas áreas tropicais e subtropicais, quasesempre em função do regime de chuvas, a existência da floresta tropical úmida (the rain Forest, dizem os americanos) e aos grandes sistemas hídricos (tais como o Congo, o Amazonas, o Paraná-Paraguai ou os GrandesLagosda África Central). Coincide aqui a existência de grandes reservas hídricas, com populaçõesem expansão, forte conflitos étnicos e religiosos, além de escassezde recursos para a preservação, já que a maioria dos paísesda região encontram-se sob forte monitoramento financeira internacional visando a implantação de gestões neoliberais. Assim, o pessoal técnico, as estaçõesde tratamento, a reciclagem e a construção de mecanismos que evitem que o lixo contamine os aqüíferos entram, todos, na categoria de obras supérfluas, condenadaspelas medidas de manutenção de grandes saldos orçamentários. De qualquer forma, o consumo da água multiplicou-se por seis no século 20, duas vezesa taxa do crescimento demográfico do planeta. Baseando-se em tais dados, calcula-se que em 2025 cerca de 3,5 bilhões de pessoas estarão sofrendo com a escassezde água. Neste sentido, a água tornou-se uma questão de segurança e de defesado Estado-Nação, devendo constar do planejamento estratégico de todos os países,em especial daqueles considerados “fontes hídricas”.

Água: o desenho da crise Algumas regiões do planeta encontram-se, já hoje, em situação de escassezde água. Enquanto alguns simplesmente optaram, num primeiro momento, pela sua extrema mercantilização – como na União Européia –, outros procuram saídaspolíticas e científicas. As regiões mais críticas hoje são China Popular, Índia, México e Chifre da África e confrontantes. Em tais regiões, os lençóis freáticos têm registrado uma queda de 1 metro por ano, acima da taxa natural de reposição, apontando para uma grave crise no horizonte de 20/25 anos. Em outras regiões, onde a água existe, mas em pequena quantidade, a questão reside na sua divisão, no seu acessoe garantia de fluxo constante. Aqui as localidades mais atingidas são o Oriente Médio, Norte da África e mais uma vez o México. Algumas outras regiões, bastante ricas, expandiram sua população por cima da capacidade de abastecimento, produzindo poluição e escassez,como no caso de Taiwan, o cinturão renano europeu, a Austrália e as áreas centrais do Meio-oeste americano. Por fim, outras regiões possuem grandes aqüíferos, contudo a ausência de obras de infra-estrutura afeta sua distribuição e sua qualidade, como no Brasil, Indonésia ou Nigéria. Uma questão paralela junta-se ao problema da escassez:de água de boa qualidade supõe energia, uso extenso de energia. As estaçõesde filtragem e tratamento são grandes consumidoras de energia; as usinas de


dessalinização – em Israel e no Golfo Pérsico – são caras e consumidoras de energia em alta escala; os dutos e sua adução, distribuindo água de regiões abundantes para regiões de escassez(como é o caso do Brasil), implicam em grandes gastos de energia. Mesmo a purificação da água via vapor é, evidentemente, dependente do consumo de energia. Em alguns casos,a destruição de redes de transmissão de energia ou de estaçõesde energia, como na Croácia entre 1991 e 1994, e no Iraque, em 1991 e atualmente, paralisou o fornecimento de água potável, levando a grandes explosõesde pandemias, com elevadíssimastaxas de mortalidade infantil. Assim, muitos paísespassaram a investir em energia nuclear, visando baratear o acessoágua de boa qualidade, como é o caso do Irã, Brasil ou Finlândia.

A Guerra da Água Em alguns casoso acessoà água acabou por levar a conflitos abertos, outras vezes encontrava-se como elemento embutido em estratégias de Estados ao fazerem guerra aos seus vizinhos. O caso clássico é de Israel, onde a agricultura no deserto – fator fundamental de enraizamento de uma população desacostumada ao seu próprio país – implicava na multiplicação de colônias agrícolas, onde o padrão de vida (e logo o consumo de água) era mais elevado do que na maioria dos vizinhos. Assim, a garantia de controle dos aqüíferos – no Sul do Líbano, na bacia do Jordão – impunha-se como objetivo estratégico. Porém, este não é o caso mais grave. Existem hoje no mundo cerca de 200 sistemasfluviais que cruzam a fronteira de dois ou mais países,além de 13 grandes rios que banham 4 ou mais países,compartilhados por 100 diferentes nações. As chancesde conflito na gestão de tais recursos são bastante elevadas. Muitos desses sistemassão utilizados até a sua exaustão, e muitos já não atendem mais às necessidadesdos consumidores da ponta final. O rio Amarelo, na China, o Ganges,na Índia, o Nilo, na África, e o SãoFrancisco, no Brasil, estão notoriamente abaixo de suasmarcas históricas e o aumento do consumo pode exaurí-los em um espaço de 10 anos. No Norte da África, a escassez de água cria duas formas distintas de tensões: - tensõesinternacionais entre Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia pelo uso de reservas e do lençol freático, tendo na Tunísia seu epicentro; - tensõesinternas entre setores sociais e econômicos em disputa pela água. O setor hoteleiro – bastante desenvolvido pela Tunísia e Marrocos – é acusado de oferecer água em abundância aos turistas, enquanto a massada população sofre a penúria. Enquanto isso, acusam a agricultura marroquina, tunisiana e argelina de gastar água numa atividade de baixíssima remuneração. Ainda no Norte da África, Egito, Sudão e Abissínia discutem o regime do Nilo e as formas de aproveitamento, gerando crises cíclicas de relacionamento. No Oriente Médio – além do caso de Israel – a Turquia ameaçao controle das fontes do Eufrates, colocando a Síria e o Iraque em clara situação de dependência e alto risco. Na América do Norte, o aproveitamento do Rio Bravo (ou Grande), na fronteira dos EUA com o México é uma fonte constante de atritos, com os desvios crescentes para a irrigação e o abastecimento das cidades e da agricultura norte-americanas. Na Ásia Central, o controle do Tibet/Pamir, de onde provêm as fontes dos rios que correm para a China, Paquistão e Índia agudizam os conflitos na Cachemira, Nepal e Tibet. Na África do Sul, a situação da Namíbia é crítica, enquanto todo o Sahel (a franja entre o Shara e a savana semi-árida africana) ameaçaalguns milhões de pessoascom a fome. Ali, Chad, Mali, Niger e Líbia enfrentamse constantemente, visando o controle de lagos e oásis do deserto. A irrupção das crises Esta geopolítica da escassezda água pode levar muito rapidamente a agudização do quadro, desembocando em graves conflitos inter-estatais. Devemoster claro em mente que a questão da água não se encontra divorciada da chamada “questão ecológica”, e muitas das medidas referentes à preservação ambiental são de caráter preservacionista também em relação à água e de suasreservas. Assim, uma “guerra da água” seria também uma “guerra pela ecologia”. Oscenários mais claros de crise apontam para as seguintes situação de crise envolvendo a questão do multiuso das reservas: a região do Nilo; o acessoàs águasdo Eufrates; o controle dos mananciais na Ásia Central; o controle da terras altas chuvosasem Ruanda e na Somália; o controle das terras chuvosasno Quênia e Zimbábue; o controle de lagos e oásis no Sahel; a disputa pela Planície de Poljie, entre Croácia e Sérvia.


Estessão os pontos mais críticos numa geopolítica atual da água. Entretanto, a continuidade do efeito estufa e uma possibilidade de fracassodos mecanismos preservacionistas em escala mundial poderão acirrar a questão. Assim, os paísesconsiderados “reservas hídricas” não estariam a salvo de expediçõesvisando a internacionalização de seus recursos, que seriam declarados “bens coletivos da humanidade”. * Francisco Teixeira é professor titular de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


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