A REVOLTA DA CARROCINHA
Por Adriano Garcia Ilustrações de André Izeis
Adriano Garcia 316105803 Editor Chefe
Cassiano Santos 316100815 Editor
Anderson Braga 316103113 Diretor Comercial
Claudio Junior 316104629 Redator
André Izeis 316103213 Diretor de Arte
©2016 Letras Mágicas
Uryel Garrido 316107123 Chefe de Planejamento
A Revolta da Carrocinha
O Sonho
A
stolfo Neves, zelador do centro de zoonoses – para onde a carrocinha leva os animais - tinha um jeito bastante fora do normal, costumava se embriagar durante a noite e se esquecer de trancar as jaulas que prendem os bichos. Um dia quando novamente isso ocorreu, percebeu-se uma organização dos bichos nos corredores. Era mais uma das reuniões onde Kaká – Um cão já bastante velho, referência para os demais animais – contava suas histórias. Já bem idoso, com 13 anos de idade, seu jeitão inconfundível, deitado apoiando-se na parede de barriga para o ar, Kaká viu os animais se juntarem a sua frente. Primeiro chegaram quatro vira-latas, as fêmeas Branca, Lulu e Zazá, e o macho Serapião, depois vieram os gatos, sempre espaçosos, Angela, Napoleão e Gogó, tomaram a frente e sentaram-se em frente a Kaká. Os coelhos vieram rapidamente, deixando para trás Benjamim, a tartaruga. Os ratos saíram de suas tocas, no talvez único momento onde fossem bem-vindos, até para os gatos. E por fim, Taciele, a poodle vaidosa chegou rebolando como sempre, enquanto chegaram lentamente os cavalos, Sansão e Nega Zuleica, sempre juntos. Com a chegada de Zuleica, os filhotes de todas as espécies, como de costume, foram se ajeitar no seu colo. Só não estava ali Saulo, a cobra de estimação de Astolfo, que vivia solta no escritório. Quando viu todos acomodados, Kaká entonou a voz e começou: “Parças, tive um sonho muito louco essa noite. Vou falar dele, mas direi antes algumas coisas. Todos nós sabemos que esses são meus últimos dias e antes de morrer quero dizer o que aprendi nessa vida, quero falar pra vocês da importância da liberdade. Todos nós estamos aqui por que em algum momento fomos abandonados, ou nem casa tivemos, todos estamos aqui jogados à própria sorte, com tudo racionado, ração, água e medicação. Ninguém aqui sabe o que é ser plenamente feliz. Será que é assim que tem que ser? Será mesmo que precisamos viver nas jaulas dessa carrocinha, dependendo da vontade de um bebum até o fim? Não meus parças, nós temos inteligência e força pra romper essas grades. Temos tudo pra tomar esse espaço e vivermos em igualdade, comendo o que conseguirmos, andando livres pelas ruas e sem ter de aturar esses humanos que aqui circulam e se levam pelas aparências, eles que nos colocam nessa condição, vamos tomar o comando 3
O Sonho
A
stolfo Neves, zelador do centro de zoonoses – para onde a carrocinha leva os animais - tinha um jeito bastante fora do normal, costumava se embriagar durante a noite e se esquecer de trancar as jaulas que prendem os bichos. Um dia quando novamente isso ocorreu, percebeu-se uma organização dos bichos nos corredores. Era mais uma das reuniões onde Kaká – Um cão já bastante velho, referência para os demais animais – contava suas histórias. Já bem idoso, com 13 anos de idade, seu jeitão inconfundível, deitado apoiando-se na parede de barriga para o ar, Kaká viu os animais se juntarem a sua frente. Primeiro chegaram quatro vira-latas, as fêmeas Branca, Lulu e Zazá, e o macho Serapião, depois vieram os gatos, sempre espaçosos, Angela, Napoleão e Gogó, tomaram a frente e sentaram-se em frente a Kaká. Os coelhos vieram rapidamente, deixando para trás Benjamim, a tartaruga. Os ratos saíram de suas tocas, no talvez único momento onde fossem bem-vindos, até para os gatos. E por fim, Taciele, a poodle vaidosa chegou rebolando como sempre, enquanto chegaram lentamente os cavalos, Sansão e Nega Zuleica, sempre juntos. Com a chegada de Zuleica, os filhotes de todas as espécies, como de costume, foram se ajeitar no seu colo. Só não estava ali Saulo, a cobra de estimação de Astolfo, que vivia solta no escritório. Quando viu todos acomodados, Kaká entonou a voz e começou: “Parças, tive um sonho muito louco essa noite. Vou falar dele, mas direi antes algumas coisas. Todos nós sabemos que esses são meus últimos dias e antes de morrer quero dizer o que aprendi nessa vida, quero falar pra vocês da importância da liberdade. Todos nós estamos aqui por que em algum momento fomos abandonados, ou nem casa tivemos, todos estamos aqui jogados à própria sorte, com tudo racionado, ração, água e medicação. Ninguém aqui sabe o que é ser plenamente feliz. Será que é assim que tem que ser? Será mesmo que precisamos viver nas jaulas dessa carrocinha, dependendo da vontade de um bebum até o fim? Não meus parças, nós temos inteligência e força pra romper essas grades. Temos tudo pra tomar esse espaço e vivermos em igualdade, comendo o que conseguirmos, andando livres pelas ruas e sem ter de aturar esses humanos que aqui circulam e se levam pelas aparências, eles que nos colocam nessa condição, vamos tomar o comando 04
A Revolta da Carrocinha
e transformar esse lugar num verdadeiro ‘Lar dos Bichos’”. Houve um princípio de confusão entre os animais e Kaká gritou: “Epa, parou! Parças, por que o tumulto?”. E Sansão disse: “É que estão tentando atacar os ratos e Zuleica está protegendo eles”. “Vamos votar então”, disse Kaká: “Quem é favorável à convivência amistosa entre os ratos e demais animais levante a pata? E contra?”. Venceu por maioria mínima de votos a convivência na paz, porém, com os ratos sendo responsáveis por trazer informações privilegiadas das ruas. Então Kaká disse: “Pouco mais tenho a dizer, fica aqui a lição que tirei do meu sonho, onde os animais eram livres, viviam todos com igualdade, conseguindo o que comem, sem precisar da supervisão humana ou de se enfeitar para conseguir uma casa pra morar. A partir de agora, não precisamos mais dos humanos”.
“
E pra comemorar esse pacto entre nós, sugiro um som que fiz:
Bichos Paulistanos Fazem muitos anos Dor e desencanto Tristeza e abandono Bichos Paulistanos Lutar com irmandade Pra sair dessas grades Pela Liberdade Bichos Paulistanos Não vamos parar É dessa revolta Que temos forças pra lutar Todos adoraram a música e começaram a cantar cada vez mais alto, o que acabou acordando Astolfo, que ficou furioso e veio com o taco do bilhar que tinha em seu escritório - na mão. Mas todos fugiram para suas jaulas antes de serem pegos. 5
A Revolta da Carrocinha
Três dias depois faleceu o velho Kaká. Morreu como queria, dormindo. Então, quanto mais passavam os dias, maior era o desejo de fazer cumprir as palavras de Kaká, de tornar livres os animais do comando humano. E começaram a se organizar, dois líderes natos apareceram, Angela e Napoleão, a primeira era conhecida por sua simpatia, mas havia sobre ela certas desconfianças. Napoleão era um tanto ameaçador, porém tinha fama de ser muito dedicado ao que fazia. Outro gato muito inteligente se uniu a eles para ser o porta voz do movimento: Gogó, capaz de vender até geladeira para esquimó. Eles organizaram as ideias de Kaká e as chamaram de “Animalismo”. Fizeram várias reuniões secretas, no começo havia um medo na maioria, porém o movimento foi ganhando força. Tiveram de convencer Taciele que dali em diante já não se importava em estar bem tosada ou com um lacinho, pois não tinha mais que agradar ninguém. Também fizeram os outros ignorarem as ideias de Saulo, que vivia dizendo que além do horizonte existia um lugar tranquilo e com ração à vontade, onde os bichos reinariam, porém só após a morte. Não tiveram dificuldade alguma com Sansão e Zuleica, ao contrário, tinham neles bons aliados. A revolução aconteceu rapidamente. Dias depois, após mais uma bebedeira daquelas, Astolfo deixou os animais sem ração e água, até que começassem a berrar. Somente a noite foi até eles, furioso e aos gritos com o taco na mão. Foi então que os gatos avançaram sobre ele, que os jogou longe, mas Sansão e Zuleica com coices e o apoio de outros animais, conseguiram botar Astolfo e seus ajudantes para correr. Estava tomada a carrocinha. Os bichos mal podiam acreditar que não estavam mais sob o comando humano, tinham todo aquele espaço, toda a ração, enfim, era tudo deles. Foi então que Angela jogou fora os cadeados que trancavam as celas e enfeites que gatos, coelhos e cachorros usavam a fim de se tornarem atraentes para os humanos. Com muita dificuldade, os gatos haviam aprendido a ler e escrever, não dominavam a língua, não escreviam do jeito certo todas as palavras, mas dava para entender. Estabeleceram então, os mandamentos do Animalismo, com base nas ideias do velho Kaká: Humanos não são bem-vindos Animais são bem-vindos Nenhum animal usará roupa Nenhum animal beberá “alcól” (Foi assim que Angela escreveu “álcool”) 6
A Revolta da Carrocinha
Nenhum animal matará outro animal Todos os animais são iguais E Angela falou: “São esses os mandamentos que temos que seguir. São eles que farão com que haja liberdade e igualdade entre nós, desse jeito não precisaremos dos humanos. Ainda contamos com bastante ração e medicação, mas isso logo vai acabar. Agora vamos ter que ir às ruas em busca de alimento e animais pra viver aqui. A partir desse momento, esse lugar não vai mais chamar ‘centro de zoo..sei lá’, vai se chamar ‘Lar dos Bichos’”.
A Revolta
E
ntão, com tecidos que achou e tinta, desenhou uma bandeira vermelha, com um circulo amarelo onde está centralizada patas de cachorro e orelhas de gato contornando o círculo. Com Gogó e Napoleão segurando a escada de madeira, Angela subiu com dificuldade os finos degraus, hasteou a bandeira e apagou o nome “Centro de Zoonoses” para escrever “Lar dos Bichos”. Os animais então passaram a estudar com livros encontrados no escritório, mas tinham muita dificuldade em aprender, exceto os gatos, que comandaram naturalmente. Diante disso, Angela determinou uma frase chave: “Humanos não são bem-vindos, bichos são bem-vindos”. Frase essa que passou a ser repetida de forma insuportável pelos coelhos. Com o passar dos dias, as atitudes de Napoleão chamaram atenção. Recolheu todos os filhotes das cadelas e deixo-os isolados. A comida, como ficou certo no início, até então tinha de ser dividida igualmente. A partir daí não mais, tudo tinha que passar pelos gatos antes e vinham somente as sobras para os outros animais. Gogó explicou: “Pra falar a verdade, nós nem gostaríamos de ter esse tipo de privilégio, mas o nosso trabalho é de inteligência, por isso precisamos de uma boa alimentação, pela nossa causa, tudo pela causa. Ou vocês querem que aqueles humanos achem que não temos como nos virar sozinhos?”. Diante de um argumento tão forte, mesmo insatisfeitos, os animais entenderam e aceitaram que os gatos tivessem prioridade na alimentação.
Os meses passavam e todos os bichos trabalhavam cada vez mais duro 7
A Revolta da Carrocinha
para conseguir comida, nas feiras, em casas de ração. Todos se esforçavam muito e viam pouco, principalmente Sansão, que sempre trazia no seu lombo, caixas e caixas de verduras e legumes, além de sacos de ração, mas misteriosamente, tudo sumia, no consumo dos gatos. Todos trabalhavam tanto que nem perceberam que Taciele havia sumido, dias depois, em uma das suas missões para descobrir novos locais para conseguir alimento, os ratos viram a poodle passeando de carro com uma madame, com lacinhos e o pelo bem tosado, então, Taciele acabou esquecida. Ficou acertado que todas as decisões em relação ao “Lar dos Bichos” seriam tomadas pelos gatos, sendo confirmadas pelo voto da maioria. Já que Angela e Napoleão, os líderes da revolução, divergiam em tudo. Porém, haviam duas divergências fundamentais: Angela era favorável à vinda de animais de todas as partes para o Lar, e queria que fossem construídos mais dormitórios para abrigá-los de forma digna. Já Napoleão era contrário à ideia, temendo que o “ideal fosse deturpado”, além da “perda de tempo”. Tempo que segundo ele, poderia ser dedicado a conseguir mais e melhores alimentos. Por outro lado, Angela defendeu a ideia, dizendo que quanto mais animais acolhidos, mais leve seria o trabalho e mais forte seria a revolução. Mesmo sem o apoio de Napoleão, Angela seguiu desenvolvendo o projeto e ordenou aos ratos que a partir de agora, passassem a recrutar animais para o “Lar dos Bichos”. Angela checou o estoque de comida e viu que havia o suficiente para que se focasse mais na construção desses dormitórios, e ordenou Sansão e os demais animais mais fortes a focarem nesse projeto. Napoleão foi duramente contra e alertou para a possibilidade dos animais morrerem de fome com toda essa “perda de tempo”. Criou-se um clima tenso, ninguém tinha certeza de qual dos dois seguir, Benjamim então tinha uma posição ainda menos clara, segundo ele: “com mais ou menos animais, com mais ou menos alimentos, a vida seguirá como sempre”. Ainda assim, o projeto foi votado. A argumentação de Angela quanto à necessidade de elevar a população do “Lar dos Bichos”, tirando de todos a sobrecarga de trabalho e levando a mais animais a mensagem de uma vida livre e sem interferência humana, além da possibilidade de ter água encanada e energia elétrica nos dormitórios acabou vencendo os argumentos de Napoleão de que isso era uma perda de tempo e que o foco era só abastecer a dispensa para os animais que já estavam lá.
8
A Revolta da Carrocinha
Nesse momento, Napoleão olhou de canto para Angela e berrou: “TRAIDORA! Espiã humana”, havia um pano cobrindo uma parte da parede onde Gogó tinha pichado justamente isso – como se já esperasse por esse momento – Houve então um latido do lado de fora, era uma tropa de cães de raça enormes, que atacaram Angela, que fugiu por um buraco pequeno na parede do galpão e saiu em disparada. Assustados, os animais se amontoaram na porta para observar a caçada. Mais rápida que os fortes, porém pesados cães, Angela disparou rumo à avenida, tropeçou num buraco e os cães se aproximaram, um deles abocanhou seu rabo, mas Angela conseguiu tirá-lo na hora H, e por milímetros Angela se salvou, conseguindo passar por debaixo do portão que separava o antigo centro de zoonoses da movimentada avenida. Muito assustados, os animais se afastaram do portão, enquanto os cachorros voltavam, rosnando de ódio, eram máquinas de medo e morte criadas por Napoleão. Ninguém sabia de onde tinham vindo aquelas criaturas terríveis. Mas logo Benjamin pensou e concluiu: “Esses são os filhotes de cães tirados das mães, ainda não estão adultos, mas foram muito bem alimentados e treinados para virar isso ai”. O mais curioso, é que eles tinham o mesmo hábito dos antigos cães de raça, da guarda de Astolfo, que quando o viam, balançavam o rabo. Com todos acomodados – seria melhor dizer ASSUSTADOS – Napoleão, seguido de sua tropa de elite, foi até o local onde Kaká fazia seus discursos 9
A Revolta da Carrocinha
e anunciou diversas mudanças. Acabavam ali as votações para as decisões dos temas do “Lar dos Bichos”, agora, as decisões seriam tomadas por uma comissão de gatos, por ele presidida. As reuniões ainda aconteceriam, mas apenas para saudar a bandeira, cantar o “RAP da Revolução” e receber as ordens da semana. Houve um princípio de protesto, Sansão estava bastante incomodado com a forma com que Angela havia sido expulsa. Outros cachorros e até alguns gatos passaram a latir e miar em protesto. Mas diante do latido ameaçador da guarda de Napoleão, os protestos pararam. Surgiu então o apoio dos coelhos a Napoleão, que por um bom tempo berraram: “Humanos não são bem-vindos, bichos são bem-vindos”. Isso acabou com qualquer possibilidade de debate. Como a tensão ainda era muito grande, Gogó foi chamado a falar aos animais que ainda estavam chateados: “Parças, vocês sabem o desafio que é comandar essa revolução? Vocês sabem que o parça Napoleão não fez isso por prazer, ao contrário, fez isso apenas por vocês, pela revolução. Ninguém mais que ele crê que todos os bichos são iguais, mas ele precisa proteger vocês de tomar decisões erradas, com essa de abrir espaço pra qualquer um e perder tempo com construções. Onde iriamos parar? Isso sem falar que agora sabemos que Angela não passava de uma traidora, criminosa”. “Mas ela foi valente na tomada do nosso lar”, disse Lulu, “mas valentia não basta”, respondeu Gogó. “É preciso obediência e lealdade. Não é qualquer ‘falsa bravura e bondade’ que vai nos enganar, afinal, vocês não querem aquele bebum aqui de volta, ou querem?”. Os bichos então entenderam, se a votação das decisões poderia colocar em risco a revolução, que isso acabasse. Após pensar, Sansão acabou concordando: “Se é isso que decidiu o parça Napoleão, é o melhor.Trabalharei ainda mais”. A partir de agora, Sansão tinha além do seu lema, o novo: “Napoleão tem sempre razão”. As reuniões mudaram completamente após a expulsão de Angela, os demais animais agora eram meros ouvintes. E olhavam assustados a comitiva de lideres, que tinha Napoleão e seu fiel escudeiro Gogó, também com eles Pitoco, um gato poeta especialista na composição de novas frases e hinos. Além claro da tropa de elite, sempre babando e rangendo os dentes. Numa das reuniões, os animais se surpreenderam ao saber que sim, os dormitórios seriam construídos. Sem maiores explicações, Napoleão alertou 10
A Revolta da Carrocinha
os bichos que essa tarefa daria muito trabalho e que a comida seria ainda mais racionada, já que a ida às ruas diminuiria. Gogó então discursou: “Napoleão nunca foi contra a construção dos dormitórios. Ao contrário, Angela roubou o projeto da construção entre seus papeis”. Alguém perguntou: “Por que ele falou tanto contra a construção, então?”. Gogó olhou ardilosamente e disse: “A esperteza do nosso parça Napoleão estava ai. Foi preciso para expulsar Angela e fazer o projeto seguir sem sua interferência”. “Estratégia meus parças, estratégia” e repetiu essa palavra várias vezes. Com o latido ameaçador da tropa, os animais desistiram de debater. Os bichos trabalhavam demais e comiam pouco, mas ainda assim estavam felizes, pois acreditavam que após todo aquele esforço, mais animais poderiam chegar para ajudar nas tarefas e assim, trabalhariam menos. E o melhor, sem depender dos humanos para nada. Os animais trabalharam duro na construção, cada um ajudava como podia, até Benjamin carregava numa lentidão desesperadora lascas de madeira e fardos de papelão. Mas quem na verdade fez quase todo o serviço foi Sansão, que trabalhava até quando todos dormiam. Zuleica pedia para ele se cuidar mais, não se esforçar tanto, mas Sansão só respondia: “Trabalharei ainda mais”. Os dias passaram e a construção foi avançando, mas os animais sentiam, cada vez mais, a falta de alimentos, além de itens básicos para a continuidade da obra, como pregos, cola, fios e canos para a eletricidade e água. Até que numa reunião, Napoleão disse que essas dificuldades aconteciam pela falta de contato com os humanos. Por isso, era necessário negociar com eles para conseguir esses itens, sem a ideia de lucro, claro. Os animais ficaram inquietos e houve certo tumulto, até que os cães da tropa latiram alto e os coelhos entoaram: “Humanos não são bem-vindos, bichos são bem-vindos”. Então Napoleão ergueu a pata e disse: “Silêncio idiotas, digo, parças! Nenhum de vocês animais vai precisar negociar e lidar com humano nenhum. Eu mesmo farei esse sacrifício”. Todas as segundas feiras, o político e jornalista Olavo Azevedo viria até o “Lar dos Bichos” para receber instruções. Sem mais esclarecimentos, Napoleão encerrou a reunião com seu grito: “Viva ao Lar dos Bichos”. No entanto, os bichos não se conformavam com o contato com os huma11
A Revolta da Carrocinha
nos. Sabendo disso, Napoleão ordenou a Gogó que fosse falar com os mais inquietos: “Vocês não sonharam? Vocês por acaso sabem se isso está escrito em algum lugar?”. Sem resposta, os bichos aceitaram o que disse Gogó. Toda segunda então, Azevedo vinha até ao “Lar dos Bichos”. Homem alto, calvo, magrelo e de óculos, era ele, carinhosamente chamado de “Olavinho” pelos gatos, que gerava a desconfiança silenciosa de todos. Com sua ajuda as obras passaram a andar mais rápido, surgiram matérias na imprensa e até no site da Prefeitura, falavam da organização independente dos animais. O “Lar dos Bichos” passou a ser considerada pelos humanos uma experiência de sucesso. Esse sucesso, porém não acalmava a insatisfação dos bichos, que viam os gatos vestindo roupas, andando – ainda que com dificuldades – sobre duas patas, com camas encomendadas por Azevedo, e cada vez mais gordos. Gogó novamente interferiu: “É sério meus parças que vocês tão questionando isso? Estamos livres, temos tudo o que precisamos, e tudo isso graças a nós. Nós fizemos e mantemos essa Revolução por vocês, será que não merecemos ter um descanso, um conforto?”. Então não se reclamou mais disso. O Verão chegou e os dormitórios após meses de trabalho duro ficaram prontos. Eles foram construídos com papelão e lascas de madeira, eram muito frágeis. E como era época de chuvas, sua resistência foi testada logo na madrugada seguinte. Antes do amanhecer se ouviu um tiro, Lulu, Branca e outras cadelas correram para ver o que tinha ocorrido. De repente começaram a uivar de desespero, eram os dormitórios em ruínas, espalhados além dos portões, arrasados pela chuva. Napoleão correu para ver o que tinha acontecido, algo raro, e ofegante pela sua corrida – estava extremamente gordo – se colocou a andar para um lado e outro a pensar, até que falou: “Parças”, disse calmamente, “Sabem quem foi o responsável por isso?”, “ANGELA!” Gritou ferozmente. “Foi essa maldita que fez isso na madrugada, ainda tentei acertar uma bala nela, mas ela conseguiu fugir, maldita! Ofereço meio balde cheio da melhor ração para quem a matar e um balde inteiro para quem a trouxer viva até mim”. Então, os bichos tiveram finalmente certeza, de que Angela era na realidade uma traidora. Napoleão ordenou que recomeçasse imediatamente a construção dos dormitórios.
12
A Revolta da Carrocinha
A
O Sonho acabou
s obras recomeçaram em condições cada vez mais terríveis para os bichos, que se alimentavam e descansavam cada vez menos e trabalhavam sempre mais. Todos os suprimentos de comida e medicação originais do “Lar dos Bichos” – da época da administração humana – tinham acabado, os animais então encarregados de ir às ruas em busca de alimento, viam tudo o que conseguiam ser reservado para os gatos, o que gerou muita desconfiança e silenciosa revolta em todos. Gogó então foi novamente orientado a falar aos animais, a razão de terem cada vez menos alimentos: “Parças, sabem qual a razão de termos cada vez menos comida? ANGELA, ela tem frequentado a nossa casa nas madrugadas e roubado todo nosso alimento”. Novamente uma confusão. E Gogó interrompeu berrando: “Silêncio imbecis, digo, parças. Descobrimos quem são os traidores, que nas madrugadas liberam o acesso para Angela nos roubar e com ela e outros animais das ruas, dividem o nosso suado alimento”. Entram então os cães rosnando e puxando pelos dentes amarrados, os quatro cães magros e surrados Lulu, Branca, Zazá e Serapião. Então, Napoleão disse olhando com ódio no fundo de seus olhos, e tão perto que era como se todos sentissem o bafo que os quatro sentiram: “CONFESSEM CANALHAS! Vocês ajudaram Angela a entrar aqui e nos roubar, comeram tudo junto com ela, não foi? Confessem e talvez eu possa perdoa-los”. Já com a arma engatilhada, com Serapião,Branca e Zazá paralisados de medo, Lulu berrou: “Sim, fomos nós, não estava certo não termos nada pra comer e vocês engordando cada vez mais. Fomos nós que fizemos isso e deveríamos ter feito por todos. Faça o que quiser”. Napoleão virou de costas e disse mansamente: “Vocês terão o seu perdão”. Deu três passos para trás e se virou berrando: ”MAS NÃO SERÁ O MEU”. Prontamente mandou um dos seus cães carrasco atirar. Um tiro certeiro, que atravessou os quatro vira-latas.
A Revolta da Carrocinha
Todos ficaram chocados, mas ninguém tinha coragem de dizer nada. Até que Sansão falou: “Eu não acredito. Angela esteve conosco desde o começo, decidiu ir embora e agora queria nos roubar. Ela não poderia conseguir alimento sozinha? E os outros, como dividiam comida se estavam tão magros?”. Napoleão respondeu: “Ela os enganou, os fazia pensar que estavam se alimentando bem, mas ficava com toda a comida, ELA É A TRAIDORA, ELA É QUEM NOS ENGANOU DESDE O COMEÇO”. Sansão perguntou ainda: “Será?”. E Gogó já sem paciência gritou: “É CLARO, tá difícil assim perceber!”, seguido de um ataque da tropa de elite. Porém Sansão liquidou o primeiro pit-bull com uma só patada. Napoleão ordenou que os cães parassem e contrariado, disse: “Desculpe Sansão, solte os outros, foi um lamentável engano, assim como você se engana ao questionar os fatos”. Então Sansão disse: “Se o parça Napoleão diz, deve estar certo. Trabalharei ainda mais e vamos sair do prejuízo”. Estranhamente, naquela mesma noite, Napoleão e sua tropa saíram aos arredores do local, acompanhados de longe pelos demais animais, para caçar vestígios de Angela. Curiosamente, apenas Napoleão e Gogó sentiam os cheiros e vestígios de pegadas da “traidora”, nenhum dos animais que não pertencia à elite sentiu tais vestígios, o que aumentou a silenciosa desconfiança. À noite, sozinhos no galpão os bichos revelaram-se aflitos, todos se juntaram em torno de Zuleica e uivaram de desespero. Sansão disse: “Nunca pensei que isso chegaria a esse ponto. Não me lembro bem, mas não era isso que pensava o parça Kaká quando viu essa revolta”. Sansão então arrebentou a porta do galpão e saiu em disparada, Zuleica gritou: “Aonde você vai?”, e ele disse: “Trabalharei ainda mais”. Os outros ficaram e chorando cantaram o “RAP da Revolta”. Até que Gogó chega apressado, com a gordura balançando e diz: “Parças, aprovamos uma medida urgente. Vocês não devem mais cantar este RAP, vocês estão PROIBIDOS de cantar essa canção, sob pena de morte”. Zuleica rebateu: “Mas por quê?”. “Por que essa canção expressava nossa revolta contra a opressão, por tempos melhores, pela liberdade. NÃO HÁ MAIS CONTRA O QUE SE REVOLTAR. Essa canção está PROIBIDA e está decidido!”, disse Gogó ríspido. “Agora vocês devem cantar a canção de Pitoco, que diz: ‘Lar dos Bichos’, Acabou a carrocinha. Seja leal e não te faremos mal”. A rápida reunião terminou com os coelhos dizendo: “Humanos não são bem-vindos, animais são bem-vindos”, repetidas vezes até que todos fossem para suas jaulas. Inconformada, Zuleica que tinha dificuldades para ler, arrastou na madrugada Benjamin até a parede no fundo do galpão, dizendo que lembrava que segundo os mandamentos, “nenhum animal mataria outro animal”. Então, com um sorriso sarcástico, Benjamin leu: “Nenhum animal matará outro animal, sem motivo”. Zuleica protes14
A Revolta da Carrocinha
tou: “Eu tinha certeza de que não era isso que estava ai”. E Benjamin retrucou: “Eu não disse a vocês que nada ia mudar, que tudo era uma ilusão. Eu já vivi o suficiente pra saber que NADA, NUNCA, vai mudar”. Nos dias seguintes várias ações para “limpar a barra” de Napoleão foram feitas, Pitoco tratou de criar alcunhas como: “O salvador”, “O magnífico”, “Nosso líder”, além de novos poemas e canções, que em todas as reuniões tinham de ser repetidas pelos animais. Descobriu-se que Saulo, que estava sumido há meses, na verdade viveu o tempo todo confinado onde dormia Napoleão e seus apoiadores. Certo dia ele veio novamente falar aos bichos: “Vejam aquela montanha onde atrás o sol se esconde, ali está vosso paraíso, muita tranquilidade, comida à vontade, animais no cio todo o tempo. Aceitem essa realidade, vão logo para lá, para a glória que vos espera”. E todo dia a partir dali, Saulo vinha com essas ideias, descobriu-se que os até então aliados Ratos, e até filhotes de coelhos eram oferecidos a ele como alimento, Saulo engordava cada vez mais. Mas todos se questionavam, a troco de quê? Os meses passaram, Sansão já estava velho, na idade de se aposentar, seu pelo no rosto e na testa já começava a ficar branco, seus músculos já não eram mais tão notáveis assim e todos viam que ele já fazia mais esforço que o comum, para carregar agora as pedras descartadas da construção de um estádio ali próximo. Zuleica implorou para que ele diminuísse os esforços, mas Sansão insistia em: “Trabalhar cada vez mais”, e assim, praticamente sozinho, Sansão construiu os dormitórios para os animais, que ficaram prontos após meses de trabalho duro e comemorou: “Finalmente, agora posso descansar”. No dia seguinte, Gogó anunciou: “É com muita alegria que inauguro os dormitórios para todos os animais de São Paulo, do mundo”. Viram-se então, várias caravanas de animais chegando. O estranho é que eles não chegaram sozinhos, chegavam em carrocinhas. Os animais estranharam muito, mas claro, ficaram satisfeitos por receberem os novos amigos e crerem que a partir de agora, trabalhariam menos. Nesse momento se ouviu um estrondo, era Sansão que caía suando frio. Escorria sangue de sua boca, desesperada, Zuleica galopou até ele e se abaixou dizendo: “O que aconteceu Sansão?”, “É o meu Pulmão, Zu, não consigo respirar. Mas já não importa, já cumpri minha missão, eles vão cuidar de mim, eu vou sair dessa, e aí poderei curtir minha aposentadoria, 15
A Revolta da Carrocinha
passando os dias conversando com o parça Benjamin”. Ao ver o amigo caído, Benjamin – a tartaruga – saiu em disparada, correndo o mais rápido que podia até chegar a Gogó e quase sem respirar disse: “Sansão está caído, façam alguma coisa”. Enquanto isso, Zuleica com a ajuda de alguns potros, tentavam colocar Sansão de volta na sua baia. Outros cachorros ajeitaram uma cama de palha para que Sansão pudesse se deitar e ali ficou. Na calada da noite, um estranho movimento na baia, mal havia se recuperado da primeira corrida, já estava de novo correndo Benjamin, agora para avisar Zuleica e os outros que uma carrocinha estava levando Sansão. Ela disse: “Vão tratar dele”. Nervoso, Benjamin gritou: “Não sejam idiotas! Leiam:” Gildo, matadouro de cavalos, pele e osso, ração para canis. Desesperada, Zuleica colocou Benjamin no lombo e correu para tentar deter o carroção, que arrancou. Zuleica gritou: “saia daí! fuja!”. Sansão ouviu e tentou arrebentar o caminhão que quase tombou, mas já sem forças, desistiu e foi levado. Zuleica ainda tentou entrar na frente do caminhão, mas um cavalo não podia contra 90 cavalos. Três dias depois, chegou a notícia do falecimento de Sansão. Gogó deu a notícia: “Parças, sua partida foi comovente. Eu e o ‘grande’ Napoleão estivemos ao seu lado durante todo o tempo, somos testemunhas de que ele partiu com dignidade. Suas últimas palavras foram: ‘Viva o magnífico Napoleão, viva a Revolução, Napoleão sempre tem razão’”. Zuleica questionou: “Mas não foi o caminhão do Gildo que o levou? Sabemos bem o que eles fazem com os animais”. Gogó respondeu: “Não seja tola, aquele caminhão ERA de Gildo, foi comprado por um hospital veterinário e não deu tempo de mudar o nome, Napoleão com a ajuda de Olavinho cuidou pessoalmente pra que Sansão fosse tratado com toda a dignidade”.
17
A Revolta da Carrocinha
Os anos passaram e tudo mudou, os “dormitórios” que Sansão e os outros tiveram tanto trabalho para construir, tornaram-se uma grande prisão de animais. Tudo era controlado, os bichos tinham horário de ir e voltar das ruas, eram vigiados por agentes da tropa de elite e não poderiam se desviar da busca por alimentos ou petiscar qualquer coisa que conseguissem antes de apresentar a Napoleão, sob pena de morte. Abandonou-se a ideia de que as celas tivessem água encanada, energia elétrica e até mesmo internet. O único galpão que tinha isso era o dos gatos, que também foi construído por Sansão e pelos outros. Este galpão tinha todas essas regalias, e ainda móveis de luxo adquiridos por Olavinho, com o lucro da revenda dos alimentos – que segundo Napoleão “sobravam” – conseguidos pelos animais. Só Zuleica e Benjamin, além de Saulo, se lembravam dos ideais da revolução. A insatisfação era enorme, pois cada vez mais os gatos enriqueciam e os demais animais tinham fome. Napoleão mandou confeccionar para si e para seus apoiadores, roupas sob medida de um grande costureiro e andava com um óculos banhado a ouro, tendo ao lado sua companheira, Marie, que também usava vestidos caríssimos, sob medida. Nas ruas, os bichos eram chicoteados pela tropa de elite, e quando voltavam mal bebiam água, Napoleão era mais cruel que os humanos, que um dia abandonaram todos que ali estavam. Dias depois, uma grande festa aconteceu no galpão principal, gatos, a tropa de elite fazendo a guarda com roupas com detalhes em ouro e uma comitiva de políticos, além claro, de muitas fêmeas, gatas e humanas, e muita bebida. Na cabeceira da mesa, com muita comida, Napoleão comandava a festa, sem perceber que Zuleica e os demais espiavam pela janela. Então, o prefeito Zezé Gloria pediu a palavra: “É com muita alegria que vemos esse sucesso do ‘Lar dos Bichos’, um local autossuficiente, que não gasta um centavo da Prefeitura, ao contrário, nos dá muito lucro. Viva o ‘Lar dos Bichos’”. E todos “Viva” e brindaram. Napoleão, com a voz embargada, claramente bêbado disse: “É..Obrigado, obrigado..Eu tenho um anúncio aqui pessoal. A partir de agora está abolido esse negócio de ‘Lar dos Bichos’, que nome mais idiota. Também não haverá mais culto a bandeira e ninguém mais chamará o outro de ‘parça’, não sei de onde saiu isso. Outra coisa, há bichos demais aqui, muito gasto, a partir de agora, os animais que não forem adotados serão sacrificados. Agora sim pessoal, VIVA!” . Todos bateram seus copos em comemoração. Os bichos olhavam de fora espantados, já era impossível distinguir quem era humano, quem era bicho. 17
A Revolta da Carrocinha
Outro mundo, o mesmo clássico Por Claudio Junior
A veracidade das situações vividas por Angela, Napoleão, Sansão e os demais personagens dessa fábula é estranhamente assustadora. É de impressionar o ar de subentendimento que o autor trouxe à releitura do livro “A Revolução dos Bichos”, do britânico George Orwell. São mais que semelhanças, o conto converte alguns fatos sociais do mundo contemporâneo em drama, ação e um pouco de humor, e numa junção, coloca-os no Centro de acolhimento de animais, a Zoonoses. Assim como fez a obra original, lançada em 1945, “A revolta da Carrocinha” mostra que é preciso discutir aquilo que se consideram como os caminhos e soluções para uma mudança. Destaca a distorção de ideias igualitárias que por meio da exploração e submissão a uma ultra manipulação que, ao se aproVEITAR da fragilidade dos animais, impõe uma vida que ultrapassa os limites da ficção, uma vida que é fabulosa e real ao mesmo tempo. Algo que muito se assemelha com a realidade das pouco mais de sete bilhões de vidas humanas espalhadas pelos mais de 500 milhões de km² da Terra.