"A Comissão Nacional da Verdade e a Operação Condor"

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a comissão nacional da verdade e a operação condor



Antônio Campos

a comissão nacional da verdade e a operação condor

Recife, 2012


Copyright© 2012 Antônio Campos Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida, nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorização do Autor. Editor Antônio Campos Diretor executivo Lívio Meireles Capeleto Assessora técnico-administrativa Veronika Zydowicz Designer gráfica Patrícia Cruz Lima Revisora Geovania Alexandre de Andrade C198c

Campos, Antônio A comissão nacional da verdade e a operação condor/Antônio Campos. - Recife: Carpe Diem - Edições e Produções, 2012.

160p. ISBN 978-85-62648-29-8 Inclui cd com áudio do depoimento de Miguel Arraes sobre a Operação Condor 1. Comissão da verdade. 2. Operação condor - aliança político militar. 3. Aliança - regimes militares da América do Sul 4. Lei 12.527/11 - lei 12.528/11. I Título. CRB4/1544 CDU 343.301(81) Impresso no Brasil Printed in Brazil

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Rua do Chacon, 335, Casa Forte, Recife, PE 55 81 32696134 | www.editoracarpediem.com.br


Comissão da Verdade e Operação Condor no Brasil

Necessidade de Investigação: Verdade, Memória e Justiça. Lembrar para não Repetir: O Verdadeiro Memorial da Democracia. A Criação do Observatório Operação Condor na América Latina pelo Instituto Miguel Arraes – IMA, na internet, para contribuir com informações sobre a Comissão da Verdade na investigação da Operação Condor.


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ILMO. SR. PRESIDENTE DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE.

Representantes: 1) INSTITUTO MIGUEL ARRAES – IMA, associação de direito privado sem fins lucrativos, inscrita no CNPJ/MF sob o nº. 09.302.972/000144, com sede na cidade do Recife, Estado de Pernambuco, neste ato representado pelo seu presidente e advogado; 2) ANTÔNIO RICARDO ACCIOLY CAMPOS, brasileiro, divorciado, advogado, presidente do Instituto Miguel Arraes – IMA, inscrito na OAB/ PE sob o nº. 12.310, portador do título eleitoral nº. 0034.3241.0868, com endereço profissional à Rua do Chacon, nº. 335, Casa Forte, Recife, Pernambuco, CEP: 52061-400. Feito: REPRESENTAÇÃO PARA ABERTURA DE INVESTIGAÇÃO Objeto: Declarar a existência da Operação Condor no Brasil, examinando e esclarecendo as graves violações aos direitos humanos praticados em seu seio, a sua extensão e conexões internacionais, vítimas e algozes.


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Sumário

1. A Comissão da Verdade: Lei 12.528/11, 13 2. Objetivos da representação e os contornos da Operação Condor – um roteiro de trabalho investigativo, 17

2.1. Objetivos da representação, 17

2.2. Os contornos da Operação Condor, 17

2.2.1. A Operação Condor: Necessidade de Investigação – Ditaduras Entrelaçadas, 19

2.2.2. Depoimento do Governador Miguel Arraes, 21

3. As Misteriosas Mortes de Jango, JK e Lacerda, 34

3.1. A morte de Jango, 34

3.2. A morte de JK, 36

3.3. A morte de Lacerda, 45

3.4. A morte de Emmanuel Bezerra dos Santos, 48

3.5. A morte de David Capristano, 51

3.6. A morte de Joaquim Pires Cerveira, 56

3.7. Caso Edmur Péricles Camargo, 62

4. O Sequestro dos Uruguaios: Comprovação da real existência da Operação Condor no Brasil, 64


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5. A Matriz Verde-Amarela da Operação Condor, 66

5.1 A Ajuda do Brasil ao Chile de Pinochet, 74

5.2 Troca de favores, 76

6. Justiça Espanhola, 77 7. Justiça Italiana, 82 8. Decisões Judiciais das Justiças da Argentina e do Chile, 85

8.1. Argentina, 85

8.2. Chile, 87

9. O Direito Internacional de Direitos Humanos, 89 10. A Impunidade Fere a Democracia, 95 11. Intolerância à Tortura – Pedagogia, 99 12. Dos Pedidos, 106 13. Requerimentos de Provas, 107 14. Requisição de documentos, 108 15. Provas complementares no transcorrer do processo – o Observatório Condor, 109 16. Da procedimentalização da representação, 110 17. Referências, 111 18. Anexos, 114

Lei 12.528/11, 114

Lei 12.527/11, 121

Listagem de países latino-americanos em que se instituíram Comissões da Verdade e suas respectivas datas de início, 153

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“A natureza, como a história, segrega memória e vida e cedo ou tarde desova a verdade sobre a aurora. Não há cova funda que sepulte – a rasa covardia. Não há túmulo que oculte os frutos da rebeldia. Cai um dia em desgraça a mais torpe ditadura quando os vivos saem à praça “e os mortos da sepultura”. Affonso Romano de Sant’Anna, fragmentos de Os Desaparecidos.

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“É uma organização delitiva.” Baltasar Garzón, juiz espanhol, Audiência Nacional de Madri.

“Em 1976, alguns órgãos, contrários à abertura promovida pelo Presidente Geisel, buscavam soluções extralegais”. Armando Falcão, ministro da Justiça do governo Ernesto Geisel (1973-1979), em entrevista a O Globo.

“A verdade cura. Às vezes ela arde, mas cura”. Desmond Tutu, Bispo sul-africano, Prêmio Nobel da Paz.

“Só há uma causa maior: a verdade!” Moacir Danilo Rodrigues (1942-1998), juiz, Brasil.

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1. A Comissão da Verdade: Lei 12.528/11

Após décadas de protestos e intensos colóquios acerca das malsinações ocorridas no ainda recente período ditatorial brasileiro, foi instituída a Lei 12.528, em 18 de novembro de 2011. A referida lei deu existência a esta Comissão da Verdade, cuja maior finalidade é, nos termos da própria legislação em comento, Art. 1º. .[...] examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (de 1946 até a data de promulgação da atual Constituição), a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional. (Adaptado) (Grifos nossos)

Portanto, no espaço de tempo acima delimitado (de 1946 até a data de promulgação da atual Constituição), está incluído o regime de ditadura militar brasileiro (1964-1985), cujas práticas de violações de direitos humanos hão de ser apuradas. 13


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Consistem em objetivos da Comissão Nacional da Verdade, dentre outros, definidos no art. 3º da lei 12.528/111, determinar os órgãos e entidades responsáveis pelas práticas de violação de direitos humanos e elucidar as mortes e desaparecimentos àquela época, mesmo que realizados fora do âmbito nacional (a título de exemplo, no caso do ex-presidente Jango, cuja morte ocorreu no exterior, quando de seu exílio na Argentina). Como é sabido, a Comissão em pauta possui prazo de 2 (dois) anos para tecer um relatório minucioso acerca das investigações e conclusões realizadas. Outrossim, também deve realizar recomendações acerca de políticas públicas destinadas 1. Art. 3o. São objetivos da Comissão Nacional da Verdade: I – esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos mencionados no caput do art. 1o; II – promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior; III – identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas no caput do art. 1o e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade; IV – encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos, nos termos do art. 1o da Lei no 9.140, de 4 de dezembro de 1995; V – colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos humanos; VI – recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e VII – promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações.

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a evitar a violação de direitos humanos, prevenindo tais práticas ao máximo. Cumpre ressaltar, ainda, que as atividades da Comissão Nacional da Verdade são públicas e qualquer cidadão o qual deseje esclarecer alguma circunstância poderá solicitar informações à Comissão em pauta. Findo o período estipulado (2 anos), a Comissão será extinta em caráter definitivo2, bem como os cargos decorrentes de sua existência, através da exoneração dos participantes. Nos dizeres do atual Ministro da Defesa, Celso Amorim, em entrevista publicada na Revista Istoé de abril/2012: A Comissão da Verdade é o último capítulo da transição democrática, um epílogo. Há muito tempo estão sendo escritas outras coisas novas da fase democrática, mas ficou essa questão. É uma necessidade da sociedade em conciliar-se consigo própria conhecendo a verdade3.

O referido Ministro destacou ainda que a lei 12.528/11 recebeu a anuência de grande parte do Congresso Nacional, gerando incredulidade entre aqueles que não acreditavam na possibilidade de sua aprovação: 2. Art. 11. A Comissão Nacional da Verdade terá prazo de 2 (dois) anos, contado da data de sua instalação, para a conclusão dos trabalhos, devendo apresentar, ao final, relatório circunstanciado contendo as atividades realizadas, os fatos examinados, as conclusões e recomendações. (Grifos nossos) 3. AMORIM, Celso. “A Comissão da Verdade é o epílogo da transição democrática”. Entrevista publicada na Revista Istoé nº. 2212, Edição de 04 de abril de 2012.

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Sei que o (deputado) Jair Bolsonaro não votou, mas os demais deputados aprovaram a comissão. Aliás, foi uma das poucas leis aprovadas pelo Congresso com tanto consenso. Não vejo nenhuma razão para temer uma judicialização. A própria lei que estabelece a Comissão reitera a Lei da Anistia.

Em suma, essa Comissão é a grande oportunidade de colocar em pratos limpos acontecimentos ainda ocultos que em muito envergonham a memória do País, mas cujo esclarecimento é de extrema relevância, inclusive a fim de evitar reincidências futuras e efetivar a reconciliação nacional, assim como em respeito à memória das vítimas e de seus respectivos familiares.

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2. Objetivos da representação e os contornos da Operação Condor – um roteiro de trabalho investigativo

2.1. Objetivos da representação O presente instrumento de representação se destina a requerer investigações do período ditatorial, no Brasil, no sentido de declarar a existência da Operação Condor e a sua real extensão em nossa pátria, a fim de que seja revelada a verdade, preservada a memória e se faça justiça àqueles que porventura tiveram de suportar os amargos efeitos dela decorrentes. 2.2. Os contornos da Operação Condor No livro As Garras do Condor, Nilson Mariano assim define tal operação: “As ditaduras militares que subjugaram o Cone Sul, nas décadas de 1970 e 1980, planejaram uma organização terrorista, secreta e multinacional para caçar adversários políticos. Era a Operação Condor, a aliança que interligou os aparatos repressivos da Argentina, do Chile, do Uruguai,

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do Paraguai, da Bolívia e do Brasil. Agindo além das fronteiras, os sócios, do condor tinham permissão para prender, torturar, matar e ocultar cadáveres. Promoveram uma guerra de extermínio, sob patrocínio dos Estados.” “Com a Operação Condor as ditaduras derrubaram as fronteiras geográficas e políticas, aboliram tratados de proteção a refugiados e desrespeitaram regras de direito internacional. O horror passou a circular sem passaporte. Nas incursões além-fronteiras, não foram apanhados somente guerrilheiros e militantes marxistas – os alvos imediatos-, mas também ex-presidentes, ministros, parlamentares, generais legalistas, sindicalistas, estudantes, intelectuais. Enfim, todos que ousassem discordar.”

Segundo o Secretário de Direitos Humanos da Argentina, Eduardo Duhalde, indagado acerca da expectativa sobre os segredos que a Comissão Nacional da Verdade, cuja lei foi sancionada em novembro de 2011, traria à tona, “mais do que manter sua caixa-preta fechada, o Brasil foi o fiador da Condor, porque a Operação não poderia ter existido sem a vontade política do País hegemônico da região” 4.

4. AQUINO, WILSON. In: Ditaduras Entrelaçadas: documentos comprovam que a participação de autoridades brasileiras na Operação Condor foi fundamental para a aliança dos governos totalitários da América Latina. Revista Istoé, Edição de 30 de novembro de 2011.

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2.2.1. A Operação Condor: Necessidade de investigação – ditaduras entrelaçadas No livro O Beijo da Morte, de Carlos Heitor Cony e Anna Lee há a seguinte cronologia de fatos: 28 de setembro de 1975 Ofício confidencial do general Manuel Contreras, chefe do DINA (serviço secreto do governo chileno) ao general João Baptista Figueiredo, então chefe do SNI (serviço secreto do governo brasileiro), dando conta da mudança da política norte-americana em relação às ditaduras militares do Brasil, Chile, Argentina e Uruguai. Com a chegada de Jimmy Carter à Casa Branca, seria retirado o apoio de Washington aos regimes totalitários do Cone Sul. O general Contreras cita nominalmente Orlando Letelier, ex-ministro de Salvador Allende, e Juscelino Kubistchek, ex-presidente do Brasil, como lideranças que poderiam ser reabilitadas e criar problemas às ditaduras da região. 7 de agosto de 1976 Por volta das 18 horas deste sábado, corre a notícia de que Juscelino Kubitschek teria morrido num acidente de carro na estrada que liga Luziâ­nia a Brasília. JK iria fazer realmente este deslocamento, mas à última hora, preferiu ficar em sua fazendinha, em Luzitânia. À noite, recebe jornalistas e equipes de TV que procuram confirmar a notícia.

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22 de agosto de 1976 Às 18h15, morre Juscelino Kubitschek num acidente de carro no km 143 da Rio–São Paulo. Nos dias anteriores, JK escondera de seus parentes e amigos mais próximos esta viagem ao Rio, quando almoçaria, no dia seguinte, com o advogado e ex-ministro português Adriano Moreira, que cuidava de um processo movido pelo governo oriundo da Revolução dos Cravos, em Portugal, no qual estavam citados a empresária portuguesa Fernanda Pires de Melo, o ex-embaixador Hugo Gouthier e o próprio JK. Chegando ao Rio no final da tarde daquele domingo, ele dormiria com Lúcia Pedroso no apartamento dela, em Ipanema, sendo absurdo o insinuado encontro de alguns minutos dos dois num hotel da Rio-São Paulo. 21 de setembro de 1976 Morre, em Washignton, Orlando Letelier, quando uma bomba explodiu em seu carro. O atentado foi investigado pela polícia norte-americana, que culpou agentes do DINA e, em especial, o general Contreras, que atualmente cumpre pena de prisão perpétua no Chile. 6 de dezembro de 1976 Depois de receber numerosos avisos para que não dormisse duas noites no mesmo lugar, o ex-presidente João Goulart morre na Argentina, na cidade de Mercedes, próxima à fronteira com o Rio Grande do Sul. Ele continuava exilado pelo regime militar brasileiro, mas disposto a retornar brevemente a São Borja, sua cidade natal.

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21 de maio de 1977 Após internar-se na Clínica São Vicente, sem diagnóstico preciso, mas com suspeita de septicemia, morre Carlos Lacerda, ex-governador da Guanabara, que juntamente com Kubitschek e Jango havia criado a Frente Ampla, que seria a alternativa civil para o retorno do Brasil à democracia. Uma enfermeira portuguesa, que trabalhara para a Pide (polícia salazarista), comenta que já vira casos assim, de morte precipitada por medicamentos no soro hospitalar. 21 de agosto de 1982 O juiz Juan Espinoza, do tribunal argentino de Curuzu Cuatiá, pede a exumação do corpo de João Goulart, devido às suspeitas de que ele teria sido assassinado ao tomar remédios que foram trocados por pessoas próximas a ele. “Mais tarde, outro pedido de exumação também não foi atendido.”

2.2.2. Depoimento do Governador Miguel Arraes Transcrevemos a seguir trecho do relatório final contendo o depoimento do Governador Miguel Arraes5 na Comissão sobre a morte de Jango no Congresso Nacional Brasileiro, juntando também o áudio com o depoimento: “Além” de informações concretas sobre a forma como obteve conhecimento antecipado a respeito 5. Relatório final (Série Ação Parlamentar; n. 243). Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2004, p. 53-59.

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do processo de eliminação de lideranças políticas em curso na América do Sul, o Governador Miguel Arraes trouxe a esta Comissão a perspectiva de um agente político relevante, que acompanhava os acontecimentos de uma posição muito distinta da maioria de nossos entrevistados, exilado que estava na Argélia. Mais uma razão para reproduzirmos na íntegra seu depoimento, de maneira a registrar oficialmente sua visão dos acontecimentos. As considerações iniciais do ilustre depoente ilustram amplamente a realidade política do mundo na época em que faleceu o ex-presidente, João Goulart. Devo dizer que eu estava distante, na Argélia, e que certos fatos específicos me escapam, porque eu não tive contato, como o Neiva, Brizola e outros, com as pessoas que assistiram diretamente ao caso. Entretanto, vou citar alguns fatos que chegaram ao meu conhecimento naquele período. Eu estava exilado na Argélia. O asilo político me foi concedido pelo Governo argelino. Nós éramos alguns poucos que tínhamos esse asilo. Havia muitos refugiados: cerca de oito mil refugiados políticos em Argel, de todos os países, da Europa até a Indonésia. Havia gente de todo o lado. E os argelinos tinham especial cuidado com toda essa gente que estava lá refugiada, longe de seus países e, particularmente, com aqueles a quem tinham dado asilo político, porque se consideravam responsáveis por essas pessoas que o Governo tinha levado oficialmente para lá. E alguns fatos também faziam com que eles exercessem vigilância ou acompanhassem, não 22


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para saber da nossa vida, mas para dar a segurança que fosse possível às pessoas que estavam sob a responsabilidade do Governo argelino. E eles tinham tido casos concretos de assassinatos políticos, como o do General Humberto Delgado, assassinado na fronteira de Portugal com a Espanha, que estava lá na Argélia, saiu de lá contra a opinião deles, aliás. Há um assassinato de Ben Barka, líder marroquino muito conhecido, que também tinha a proteção da Argélia, que foi sequestrado e assassinado em Paris. E assim outros casos desse tipo que faziam com que eles tivessem esse cuidado, o cuidado não só na Argélia, porque não tinha perigo por lá. Basta dizer que fiquei na Argélia por 14 anos. Nunca ninguém me pediu um documento na rua ou em canto nenhum. Só nos hotéis e no aeroporto, porque é obrigado. Nunca ninguém me pediu documento. Nós tínhamos toda liberdade lá. Então, eles nos davam certas indicações para as viagens que fazíamos, porque haviam acontecido esses casos e eles nos preveniam que nós não deveríamos sair para outros lugares sem ter contato com a Embaixada, sem contato com alguém de confiança. E eles indicavam, quando era o caso, as pessoas de confiança a quem podíamos recorrer nesses países. Então, nós também tínhamos dificuldades. Era preciso às vezes recorrer à Embaixada. Por exemplo, eu estive proibido de entrar na França durante muitos anos. Era proibido oficialmente entrar na França por decreto do Ministro do Interior francês. Tenho esse documento comigo.

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Não podia entrar, não obstante eu tinha que entrar, porque eu tinha família lá. Eu tinha que entrar. Então, eu sabia como entrar na França, mas, uma vez lá, era preciso ter condições de apelar para alguém se houvesse qualquer coisa. Na Itália, não havia problema, mas havia setores na polícia italiana – que haviam sido contatados pelo Comissário Fleury – que abordavam os brasileiros e tomavam-lhe os passaportes. Eu mesmo presenciei casos como o do Carlos Sá. Carlos Sá foi membro do Tribunal do Trabalho de São Paulo, era exilado. Ele estava lá; quando ia sair do hotel o abordou, tomou o passaporte e deram 48 horas para deixar o país. Como ele poderia deixar o país em 48 horas sem documento, sem coisa nenhuma? Nós falamos com um senador italiano, e o senador falou com o primeiro-ministro, e o primeiro-ministro mandou uma pessoa resolver o caso. Mas havia todos os complicadores que exigiam essas informações etc. E nós, portanto, tínhamos pessoas na Argélia a quem podíamos recorrer para nos informar ou elas próprias nos chamavam para dar as informações que consideravam necessárias para a nossa vida no exterior. A principal pessoa encarregada em buscar essas informações, porque existiam outras, o chefe desses serviços, era o Coronel Sulleiman Hoffmann. Era assessor para assuntos internacionais do Presidente Boumedienne. De vez em quando, eu o via, falava com ele, dava-me muito com ele. Certo dia ele me telefona e diz que quer falar comigo. Eu fui lá. Ele me disse: 24


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“Arraes, amanhã e depois de amanhã, se amanhã não chegarem às pessoas, você espera até depois de amanhã. Você não sai de casa, espera em casa. Três pessoas vão lhe procurar”. Eu disse: “Pois não, está certo. Fico em casa”. E fiquei efetivamente em casa, e apareceram as três pessoas. As três pessoas exigiram muito cuidado na conversa, isto é, eles não queriam em casa ninguém que não fosse da família, não queriam testemunhas. Iam falar comigo. E me disseram o seguinte: “Nós estamos vindo do Cone Sul da América Latina”. Não disseram de onde. “Houve uma reunião da extrema direita para apreciar a questão de uma possível abertura”. Já se começava a falar, porque isso está ligado aqueles àqueles anos da Guerra do Vietnã. A Guerra do Vietnã estava sendo perdida. E todas as análises indicavam que, na medida em que a guerra fosse perdida, os Estados Unidos não poderiam ficar com o mundo militarizado debaixo das botas de soldado. Teria de ser dada uma solução intermediária qualquer, fosse de transição ou de qualquer outro tipo. Então, já se debatia essa questão, e os militares sabiam disso. Eles viram que essa era uma tendência que não mais seria revertida, porque, como falei, era impossível este mundo todo ficar com os militares mandando eternamente. Teria de haver um paradeiro para isso. Já era negativo esse fato na opinião pública internacional. 25


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Naquela fase, algumas figuras da Europa haviam se manifestado contra a Guerra da Vietnã, e havia protestos cada vez maiores, inclusive nos Estados Unidos. Uma das pessoas que em primeiro lugar realizou um ato que teve uma grande repercussão foi Olof Palme, primeiro-ministro sueco, do Partido Socialista da Suécia, que reuniu 10 mil pessoas na praça pública para se opor à Guerra do Vietnã. Portanto, essa opinião que se formava fazia com que a direita receasse uma mudança, uma transformação. Essa reunião examinava isso e estudava providências e precauções a serem tomadas para evitar que pessoas importantes que estavam presas e exiladas, em diferentes países, pudessem chegar e empalmar a opinião pública no caso de uma eleição, de uma mudança brusca da situação política. Nessa reunião, eles já haviam condenado à morte as pessoas que estivessem nessa situação e que atendessem a esse critério. Assim, eles me pediram que transmitisse essa informação a pessoas de outros países, pessoas que estivesses mais ou menos nessa situação. Enfim, que transmitisse a informação a alguém de confiança para que cada um fizesse o trabalho dentro das suas áreas de exilado. Eu perguntei por que elas, essas pessoas, pediam isso logo para mim. Eles me disseram: “Primeiro, por causa da referência que nos foi dada pelo Coronel Ho26


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ffmann; segundo, porque analisando os nomes, verificamos que o senhor é quem está em melhores condições de realizar este trabalho, pela sua condição de exilado aqui na Argélia. O senhor pode se deslocar para alguns lugares, porque nós não podemos contratar todo mundo. Não podemos contratar, porque nós não podemos aparecer em canto algum. Nós estamos aqui falando com o senhor excepcionalmente, porque é uma questão decisiva e importante. Assim, o senhor vai ter esta missão”. Dessa forma, eu procurei realizar a missão. Fui à Europa, procurei alguns exilados chilenos e pessoas de outros países para comunicar essa notícia que me tinham dado. Não se passou um mês desse acontecimento, foram assassinados Gutiérrez e Michelino, dois uruguaios, e uma sucessão de assassinatos se seguiu nos diferentes países da América Latina. Todos sabem, e aqui a Comissão pode até listar, que foi a partir dessa oportunidade que mataram o General Prats, mataram o Letelier, mataram não sei quem... Tudo isso no espaço de algum tempo. Então, vejam, qualquer pessoa sabe que as três pessoas mais importantes no caso da abertura no Brasil eram Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda. Eram essas pessoas que podiam aparecer como condutores de uma frente nacional para refazer o País. Portanto, se os senho27


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res pegam essas três pessoas e juntam com o critério que me foi comunicado naquela oportunidade, só podemos dizer que eles tinham sido condenados à morte. Como é que eles morreram? É outro fato. Mas que a condenação havia, havia. Outro fato é uma conversa que tive com o Carlos Castello Branco. Ele passou pela Europa depois da morte de Juscelino Kubitschek. Eu estive com ele em Paris por apenas um dia. Ele me procurou e estivemos juntos por um dia. Contei a ele essa história, e ele me disse que tinha procurado indagar as circunstâncias da morte de Juscelino. Circunstâncias que ninguém até hoje explicou, ninguém sabe delas efetivamente. Sabe-se que ele morreu em um desastre na via Dutra. Juscelino, que foi o homem que mais voou neste País, morre em um desastre de automóvel, em uma viagem que ele jamais faria de carro – de São Paulo para o Rio de Janeiro. Por que Juscelino saiu de carro? Ele mandou buscar o seu motorista – são detalhes que me informaram – no Rio de Janeiro, sendo que ele estava em São Paulo. O Sr. Adolfo Bloch deixava um carro á disposição de Juscelino, e ele tinha um motorista de confiança. Então, Juscelino manda buscar o seu motorista, que também morreu no acidente, para fazer essa viagem. E o motorista foi do Rio para São Paulo para fazer a viagem do ex-presidente. 28


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Pois bem. O Castello dizia que o inquérito tinha procurado lançar a culpa para o ônibus, mas que as perícias que fizeram – depois ninguém fez mais perícia, nem quis saber de nada, nem aprofundaram as investigações – tinham descartado o ônibus. Não podia ser o ônibus. A tinta que estava no carro de Juscelino era preta. O carro que bateu e desequilibrou o carro de Juscelino teria sido um carro de cor preta, pois a tinta estava lá. Mas que esse tal carro preto tinha sido visto por testemunhas. Então, o Castello Branco lançava muitas questões em cima da morte de Juscelino Kubitschek. Vejam, no meu caso, o que eu posso dizer, diante dessas informações e, sobretudo da comunicação que me foi feita, nas circunstâncias em que recebi tais informações, é que havia essa condenação e que morreram sucessivamente no Brasil Juscelino, Jango e Lacerda, os homens que haviam sido indicados na condenação prévia nessa reunião no Cone Sul. Então, na minha cabeça, eu não diria que nenhum deles morreu de morte natural. A suspeita e a dúvida existem evidentemente. Se esta Comissão puder aprofundar com fatos e testemunhas, penso que será da maior importância à apuração de tal procedimento. Era o que eu podia dizer, Sr. Presidente.

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Os debates que se seguiram à exposição inicial permitiram ao expositor precisar alguns fatos e tecer novas considerações. Registre-se, em primeiro lugar, que o depoente evitou falar de lista de pessoas a serem assassinadas. Deixou claro que seus informantes não falaram em lista. Eles estabeleceram o critério que havia sido adotado na reunião. O critério era esse, ou seja, quem tivesse certas condições ou ameaçasse levantar o País, levantar a população em uma posição oposta à deles tinha de morrer antes. Ora, nesse processo militar, era esse um dos objetivos: liquidar não só as grandes lideranças, mas liquidar as lideranças do País, seja pela prisão, pelo decurso do tempo, por tudo. Esse era um procedimento traçado por eles. Em segundo lugar, o depoente pôde precisar a data em que se reuniu com seus informantes: quinze, vinte dias antes do dia em que foram assassinados os Srs. Michelini e Gutiérrez. Em terceiro lugar, o depoente detalhou melhor a situação das pessoas que lhe transmitiram as informações sobre articulações da extrema direita para eliminar líderes populares na América do Sul. ... essas pessoas que me procuraram não deram o nome. Elas estavam credenciadas, quer dizer, eu sabia que eram pessoas que eu devia escutar, mas eram agentes. Ninguém pode saber quem são essas pessoas que se infiltraram para saber dessa reunião do Cone Sul, e evidentemente eu não tinha nem condições de pergun-

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tar. Se perguntasse, elas podiam até me dar um nome falso, porque não podiam aparecer. Essas pessoas me procuraram e explicaram – não sei se fui claro – que me escolhiam, porque não podiam procurar muita gente e aparecer para exilado chileno, para exilado daqui... Eles não podiam, pela função que exerciam, a função deles era ter a cara escondida, isso é uma coisa lógica. Daí o fato de terem conseguido essa informação de uma reunião ultrafechada. O coronel, que por sinal faleceu, é o homem do Governo argelino que disse que essas pessoas iam me procurar, e efetivamente me procuraram para dizer isso. Era o Coronel Sulleiman Hoffmann. Esse coronel já é falecido. Era assessor do Presidente Boumedienne.

Em quarto lugar, o depoente manifestou desconhecimento a respeito das pessoas que lidavam com o Presidente João Goulart no Uruguai, com exceção parcial de Cláudio Braga. Infelizmente, não posso dizer nada a esse respeito. Conheço o Cláudio Braga, porque ele foi presidente de sindicatos em Pernambuco. Não tinha muita ligação ou aproximação com ele, embora me dê com ele. Ele conhecia o Presidente João Goulart. Eu sei que ele conhecia já de antes, mas esse relacionamento mais próximo foi coisa do exílio. Não era um relacionamento que existia antes. Essa é uma coisa que só o pessoal que morava no Uruguai pode saber.

Em quinto lugar, o depoente voltou a emitir dúvidas sobre a morte de Juscelino Kubitschek. 31


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A perícia em relação a Juscelino conclui ter sido um acidente. Acidente foi; porém, foi provocado? A desestabilização de um carro é uma coisa que, para pessoas que sabem fazer, não é problema nenhum. É a coisa mais simples do mundo. Essa dúvida fica. Eu, pelo menos, duvido disso. Não estou pondo em dúvida as pessoas que fizeram os laudos, mas o testemunho que Carlos Castello Branco me deu foi esse: que testemunhas não foram ouvidas, gente que não quis depor; há toda essa história. Em meio a uma ditadura, quem iria depor e dizer que ele foi assassinado? Não é fácil. O que me ficou foi isso. Como salientou o deputado Miro, sou uma das pessoas, talvez, que soube antes dos fatos que isso iria acontecer. Ouvi a sentença que havia sido pronunciada nessa reunião do Cone Sul e que essa sentença começou a ser executada. Veja deputado, não acredito que Deus tivesse sido escolhido para ser carrasco dos três brasileiros que morreram em sequência. Se foi de morte natural e se foi obra de Deus, foi Deus quem executou essa sentença. É muito estranha a sequência dessas mortes, quando se liga a esse fato que relatei.

Em sexto lugar, o depoente distinguiu a repressão no Brasil pela precisão com que buscou seus alvos. O que podemos apreciar é o seguinte. As diferenças de método de um lugar para o outro, a sofisticação da repressão, a seletividade em cada um dos países. Aqui, no Brasil, a seletividade foi das mais importantes que já vi. Aqui existiram os excessos, a tortura, a morte das pessoas, mas observo que, no geral, aqui as coisas sempre foram 32


A ntô n io Camp o s

medidas e contadas, tanto quanto podia ser. A estrutura brasileira não era no estilo Pinochet, que mandava matar no meio da rua, matava quem era preciso matar. Se formos estudar isso, será um trabalho muito complicado.

Cabe destacar, ainda, a importante análise política que o depoente realizou em relação à possível neutralização da investigação pela impossibilidade de comprovar o assassinato. Na posição que estamos se negaram a autópsia, não podemos concluir que alguém matou que foi assim ou assado. Mas retirar dúvidas... Só quem quer retirar dúvidas é a extrema direita. Para nós, ela fica. Ela fica porque nem prova uma coisa nem outra. Ela fica e tem de ser mantida. Politicamente é fundamental que seja mantida, porque as mortes havidas aqui e em outros países mostram que essa sentença foi efetivamente pronunciada. “A morte de todos esses líderes em outros países é a prova de que a sentença efetivamente existia.”

O próprio Arraes não revelou, naquela ocasião, ante o seu temperamento discreto e recatado, que quase foi vítima da Operação Condor e dos agentes de Fleury, por mais de uma vez, na França, ele inclusive iria ao encontro de Ben Barka, quando minutos antes foi avisado do perigo pelo Serviço Secreto Argelino.

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