Saberes Caiçaras - a cultura caiçara na história de Cananéia/SP

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Cleber Rocha Chiquinho

ISBN 978-85-86508-67-7

9 788586 508677 Projeto realizado com o apoio:

SaberesCaiçaras Caiçaras- -AAcultura culturacaiçara caiçarana nahistória históriadedeCananéia Cananéia Saberes

SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA

GOVERNO DO ESTADO DE

SÃO PAULO Realização:

Parceiros:

Ministério do Meio Ambiente Ministério da Educação Ministério da Cultura

Saberes Caiçaras A cultura caiçara na história de Cananéia Cleber Rocha Chiquinho

GOVERNO FEDERAL

capa saberes.p65

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19/11/2007, 16:17


Saberes Caiçaras A cultura caiçara na história de Cananéia Cleber Rocha Chiquinho

PÁGINAS & LETRAS

Organizador

São Paulo 2007

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© 2007, Cleber Rocha Chiquinho Av. Wilson Luiz Barbosa, 935 - CEP 11990-000 - Retiro das Caravelas - Cananéia - SP Organizador Cleber Rocha Chiquinho Fotografia Coletivo Executor Revisão José Luiz Mathais Coletivo Executor Aldrin Klimke André Murtinho Ribeiro Chaves Andrew Ferreira Grube Bianca Cruz Magdalena Bruna Ap. Silva Franco Cleber Rocha Chiquinho Danielle Moreira Cosso Dayane Cristina Almeida Cubas da Silva Denise Antunes Ferreira dos Reis Laís Cristine Xavier Lohan Kovacsics Marcéli Lucilene da Silva Pontes Talita Alves Shimodaira Thais Cristina de Oliveira William Cunha Gonçalves

Colaboradores Adão Paiva Ana Maria de Borba Antonio Carlos Diegues Antônio das Neves Augusta das Neves Cubas Benedito Alves Carlos França Delfina Ventura Batista Enedina da Costa Barbosa Ernesto Scharmann Fernando Oliveira Francisco de Sales Coutinho Frederico Mandira Idorino Ventura Santana Ivete Mateus João Cassiano Martins (“João da Toca”) João Cordeiro de Alencar Joaquina Rodrigues Ponte Jan Van Der Heijden (Padre João Trinta) José Coelho Luiz Camilo Mateus Maria Aparecida Xavier Pontes

Maria Juliana Pedro Rodrigues Patrícia Dunker Pedro Costa Quirino Ermes Coelho Roque Mateus Rosalina Gomes da Silva Rosangela Pereira Camilo Salvador Alberto das Neves Salvador Donato Barbosa Sílvio Atanásio Tereza dos Lemos Santana Zeneide Xavier Pontes Parceiros Associação Rede Cananéia Coletivo Jovem Caiçara Instituto de Pesquisas Cananéia – IPeC Ponto de Cultura “Caiçaras” Sala Verde Cananéia Projeto e produção gráfica Páginas & Letras Editora e Gráfica Ltda. Tels. (11) 6618-2461 - 6694-3449 e-mail: paginaseletras@uol.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Saberes caiçaras : a cultura caiçara na história de Cananéia / Cleber Rocha Chiquinho, organizador. -- São Paulo : Páginas & Letras Editora e Gráfica, 2007. ISBN 978-85-86508-67-7 Vários colaboradores. Bibliografia.

07-4925

1. Caiçaras - Cananéia (SP) 2. Cananéia (SP) - História 3. Cultura - Cananéia (SP) I. Chiquinho, Cleber Rocha. CDD-981.612 Índices para catálogo sistemático: 1. Caiçaras : Cultura : Cananéia : São Paulo : Estado : História 2. Cananéia : São Paulo : Estado : Cultura caiçara : História 3. Cultura caiçara : Cananéia : São Paulo : Estado : História

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981.612 981.612 981.612


Agradecimentos

À todos os caiçaras de Cananéia que nos acolheram humildemente em suas casas! Família “Lisboa da Veiga” Instituto de Pesquisas Cananéia – IPeC Núcleo de Pesquisa sobre Populações Humanas de Áreas Úmidas Brasileiras / Centro de Estudos Caiçaras (NUPAUB/CEC – USP) Paróquia da Igreja de São João Batista Ponto de Cultura “Caiçaras” Prefeitura Municipal da Estância de Cananéia através do Departamento de Meio Ambiente, Agricultura e Pesca Governo do Estado de São Paulo através da Secretaria de Estado da Cultura

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Apresentação

Este trabalho é fruto de uma grande persistência e confiança no potencial de jovens de Cananéia na busca de suas raízes e de suas identidades. Trata-se de um olhar da juventude sobre os fatos e aspectos ligados ao que um dia marcou (e até hoje marca!) a vida dos moradores de uma das mais antigas e principais cidades do Brasil. A iniciativa do projeto “Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia” partiu de um grupo de pessoas interessadas em contribuir para o resgate, registro e valorização da cultura caiçara em Cananéia. Propuseram para isto utilizar latas com um pequeno “furo de agulha” para o registro fotográfico do modo de vida caiçara1, realizar práticas artísticas, como a dança, para estimular jovens pelo gosto da cultura caiçara2 e registrar o saber popular na história de um povo, como é a iniciativa deste livro. O objetivo deste livro é contribuir para a valorização da cultura caiçara no município de Cananéia através da pesquisa, registro e disseminação do modo de vida caiçara dentro da história de Cananéia, possibilitando que a comunidade perceba seu pertencimento e co-responsabilidade na manutenção do saber tradicional e da cultura local.

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Projeto “O Caiçara se Revela no Município de Cananéia” que também foi aprovado pela Secretaria de Estado da Cultura através do PAC – Programa de Ação Cultural em seu edital nº 17 e que teve como proponente a turismóloga Patrícia Dunker.

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Projeto “Dançando o Batido Caiçara”, outro projeto aprovado pela Secretaria de Estado da Cultura através do PAC – Programa de Ação Cultural em seu edital nº 17 e que teve como proponente o artesão Amir de Oliveira.

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O coletivo executor do projeto contou diretamente com a participação de 15 jovens entre 14 e 26 anos que desde junho de 2006 estão organizados através do Coletivo Jovem Caiçara, grupo informal que vem discutindo, propondo e atuando em prol de melhorias socioambientais e culturais em Cananéia e que tem como parte de sua missão, promover ações de resgate e valorização da história e da cultura caiçara de Cananéia. O livro começa com uma introdução sobre a história caiçara nas palavras sábias de um grande defensor deste povo e de sua cultura, que merece ser aplaudido por tanta dedicação, o Professor Antonio Carlos Diegues. Ele aborda em seu texto a dificuldade de encontrarmos arquivos e documentos antigos que registrem a história ligada a existência e aos modos de vida caiçara, bem como a influência que isto teve para a identidade caiçara no litoral brasileiro. Finaliza com uma projeção atual das iniciativas no litoral paulista que estão trabalhando com a valorização da cultura caiçara. No segundo capítulo, o educador André Murtinho Ribeiro Chaves, deixa uma contribuição sobre o universo multicultural em que vivemos atualmente, fazendo uma reflexão sobre as questões sociais, econômicas e políticas que isto nos proporciona, bem como as dificuldades que enfrentamos diante da avalanche de imposições que são estabelecidas e as possibilidades de mudanças através da educação crítica e emancipatória. Aborda também o acesso e reprodução das informações através da mídia e o valor que isso pode ter para o enfrentamento das adversidades que essas culturas sofrem, entre elas a caiçara. Os capítulos três e quatro mostram um pouco da história caiçara nos bairros de Cananéia e foram escritos pelos próprios jovens. O coletivo optou por escolher apenas alguns bairros, já que o tempo que teríamos para realizar o projeto, seis meses, era curto. Com isso, ficaram de fora importantes bairros, urbanos e rurais, do município. Foi uma escolha difícil, mas tivemos que optar! A metodologia utilizada para a realização dos trabalhos contou com uma oficina ministrada pelo Prof. da USP, Antonio Carlos Diegues, que trouxe para estes jovens subsídios para o reconhecimento e registro da cultura caiçara. Foi VI


feito um levantamento bibliográfico sobre a história e a cultura caiçara em livros, artigos e documentos e também algumas vivências práticas, como o reconhecimento do Centro Histórico de Cananéia, acompanhados da monitora ambiental Ana Borba, uma verdadeira amante de nossa cidade. Através de um roteiro elaborado previamente, os grupos, subdivididos por bairros, foram a campo, entrevistaram pessoas, fotografaram e registraram tudo através de anotações, gravações de áudio e fotos. Em posse dos materiais bibliográficos e das transcrições, redigiram os textos finais e escolheram as fotografias que marcaram essa inesquecível experiência. Os textos escritos por eles sintetizam de forma bem simples as informações levantadas durante a realização do projeto e apresentam um pouco da história de alguns bairros de Cananéia, destacando aspectos importantes da cultura caiçara ligados a agricultura, pesca, artesanato, culinária, manifestações culturais, festas, causos e lendas, entre outras que eles e elas acharam importantes e merecedoras de registro. O último capítulo encerra o livro com uma recordação dos tempos de infância de um amante da cultura popular e parceiro em todas as “encrencas”, Fernando Oliveira. Neste texto as lembranças de boas histórias e momentos vividos por ele são evidenciadas de uma forma simples e emocionante. Com isso, ele contribui para mostrar o valor da história e da cultura imaterial caiçara, ou seja, a herança cultural intangível perpetuada ao longo dos tempos, bem como a importância dos saberes/fazeres, seu registro e sua reprodução social. O texto fornece também um bom referencial teórico para aqueles que se interessarem em aprofundar nas diversas nuance da cultura caiçara. Como foi visto em muitos trabalhos semelhantes, a pesquisa, reconhecimento e valorização cultura caiçara não está acabada, percebemos que ela deixa de ser contada em livros e perde-se no tempo e na lembrança de poucos. Portanto, fica aqui um pouco de nossa contribuição, pouquíssima... mas cheia de surpresas, desafios, expectativas, anseios e desejos de um dia poder colher os frutos de todo nosso esforço em manter viva essa riquíssima cultura. VII


A publicação deste livro teve apoio da Secretaria de Estado da Cultura através do Programa de Ação Cultural – PAC em seu edital nº 17 (Concurso de Apoio a Projetos de Promoção da Continuidade da Cultura Caipira, Caiçara, Piraquara e Afro), possibilitando a aquisição de materiais, despesas diversas e a impressão dos mesmos. Um agradecimento especial a todos e todas que se envolveram na concretização deste livro, em especial ao Coletivo Jovem Caiçara, que acreditou e descobriu que o trabalho foi muito mais do que a publicação de um livro, por meio dele tivemos uma experiência única que nos proporcionou momentos de alegria, tristeza, respeito, união, coletividade, organização, responsabilidade, realização, sol, chuva, conhecimento, aprendizado, amizade, desentendimento, atraso, perseverança enfim... Foi lindo!

Cleber Rocha Chiquinho3

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Bacharel e Licenciado em Ciências Biológicas, docente da Escola Estadual Profa. Yolanda Araújo Silva Paiva, coordenador da Sala Verde Cananéia e membro do Coletivo Jovem Caiçara.


Sumário

Agradecimentos ...................................................................................................

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Apresentação ........................................................................................................

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A História Caiçara de Cananéia Antonio Carlos Diegues .............................................................................................................................

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A Educação como Base para a Manutenção da Cultura Caiçara André Murtinho Ribeiro Chaves ...............................................................................................................

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A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia Centro ......................................................................................................... Rocio ........................................................................................................... Carijo .......................................................................................................... Morro São João .........................................................................................

13 31 35 45

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia Itapitangui ................................................................................................. Mandira ...................................................................................................... Santa Maria ................................................................................................ Ariri............................................................................................................. Varadouro ................................................................................................. Marujá ........................................................................................................ Foles e Cambriú .......................................................................................

53 63 77 93 109 127 143

Uma Memória Curta? Então, Curta a Memória! A Importância do Registro do Patrimônio Cultural Imaterial Caiçara Fernando de Oliveira .................................................................................................................................

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A História Caiçara de Cananéia Antonio Carlos Diegues1

Introdução A iniciativa dos jovens de Cananéia de pesquisar e divulgar a história e o modo de vida dos caiçaras dos diversos bairros rurais e urbanos de Cananéia é uma atividade inovadora que deveria ser seguida por iniciativas semelhantes nos municípios com comunidades caiçaras. Não se trata somente de resgatar a memória dos tempos passados, mas escrever a história contemporânea dessas comunidades, seu modo de vida, suas aspirações e visões de futuro a partir delas mesmas. Um pouco de história caiçara Os caiçaras raramente aparecem nos arquivos e documentos históricos. É como se eles nunca tivessem existido e mesmo os historiadores locais raramente se referem a eles, à gente dos sítios. Em alguns dicionários o termo caiçara é associado à pessoa indolente, preguiçoso. Até documentos recentes que se referem, por exemplo, à criação de áreas protegidas e reservas naturais em territórios sabidamente habitados por caiçaras os ignoram ou, às vezes, os classificam como “bons 1

Antropólogo e diretor científico do Núcleo de Pesquisa sobre Populações Humanas de Áreas Úmidas Brasileiras / Centro de Estudos Caiçaras (Nupaub/CEC – USP).

selvagens”, pessoas que viveriam imersas na natureza, sem direitos de cidadania. Os caiçaras fazem parte das populações brasileiras pobres e marginalizadas, apesar de terem mantido relações sociais e econômicas com as cidades da região. São poucos os documentos que mencionam a existência dos caiçaras no período anterior ao final do século XIX e a maioria dos historiadores trabalham sobre documentos referentes, seja à fundação das vilas, seja à história das “grandes famílias”, seus feitos, número de escravos etc. Na história mais recente, é importante a contribuição de alguns historiadores locais, como Antonio Paulino de Almeida, de Cananéia (SP), que recupera, através de documentos e de relatos a história caiçara através de trabalhos como “Usos e costumes praianos” (1945), “Memória Histórica da Ilha do Cardoso” (1946), “Memórias Memoráveis” (da Ilha de Cananéia) (1948), entre outros. Segundo Paulino de Almeida, em Memórias Memoráveis (1948) baseado nos documentos do Livro do Tombo afirma que Cananéia, vila fundada em 1587 era habitada inicialmente por lavradores e pescadores, “parecendo mais esquecidos que lembrados, porém assim mesmo vivião fartos no seu bastante e descansados no seu A História Caiçara de Cananéia

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descanso”. As indicações do texto abaixo sugerem que o modo de vida caiçara teria sido adotado no litoral sul paulista desde o início da colonização: “de poucos e pobres moradores, parte naturaes d´este Brazil (índios) e parte vindouros das ilhas dos Açores (...) que era pobres de posições e por isso não eram participantes da afluência do dinheiro, porem erão riquíssimos da muita abundancia, que este lugar então lhes oferecia do seu mar os peixes e dos matos as caças; que lhes não faltarão o seu necessário, porem cultivando a terra com suas lavouras e exercitando o mar em suas pescarias, assim bem se sustentavão e dos seus sobros negociavam (...) Não eram freqüentados de amiudado commercio, parecião mais deixados e esquecidos do que lembrados (...) porem assim mesmo vivião fartos no seu bastante e descansados no seu descanso”. (pág. 9) Como se observa pela citação acima, as populações locais, que já poderiam ser chamadas de caiçaras viviam bastante isoladas, mas mesmo assim, negociando seu pouco excedente com outras regiões: “cujo negocio fazião elles com alguma embarcação, que por cauza dos ditos gêneros aqui lhes vinha oferecer assim dinheiro, como tambem outros gêneros a elles necessários” . (pág. 9) Na Ilha do Cardoso, próxima à Cananéia existiu também uma vigorosa colonização, com mão-de-obra escrava e: “era considerada como um dos melhores celeiros do município, onde se erguiam as mais prósperas fazendas 2 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

com seus engenhos de pilar arroz, fábricas de aguardente, olarias e até um estaleiro de construção naval”. (ALMEIDA, 1946 : 22). “Já, no começo do século XX havia somente ruínas dos sobrados, em meio à mata frondosa”. (pág. 22) Nos anos de 1930-40, Paulino de Almeida nota que na Ilha do Cardoso somente: “podem ser vislumbrados raríssimos casebres de pequenos lavradores, estando a grande ilha quase que inteiramente deshabitada, a não ser nas proximidades do pontal do sul, onde se erguem choupanas de pescadores.” (1948 : 22) Está nessa descrição de Paulino de Almeida a base do mesmo processo de empobrecimento econômicosocial que se segue a um período de monocultura: sobram os pequenos lavradores-pescadores que formam a população caiçara e que no declínio desses ciclos passam a viver numa quase-subsistência, apesar de manter laços comerciais com as cidades. Em outro trabalho, Usos e Costumes Praianos (1945), Paulino de Almeida descreve o modo de vida caiçara nas primeiras décadas do século XX, definindo o caiçara como aquele que vive entre as atividades agrícolas e pesqueiras: “Nessa luta terrível, ora para a terra ora para o mar, consomem toda a energia, julgando-se felizes quando conseguem algumas roças de mandioca e os apetrechos principais para a pesca”. (pág. 70) A figura do caiçara, no entanto, começou a aparecer tardiamente, já nos anos 40-50 nos relatos e


trabalhos de antropólogos e geógrafos. Emilio Willems em 1952 escreveu: A Ilha de Búzios: uma comunidade caiçara no sul do Brasil (NUPAUB; 2003), sem dúvida o estudo mais completo sobre a cultura caiçara que “adquiriu muito de sua fisionomia cultural nos primeiros 250 anos da história colonial” (pág. 170). Empregando métodos da história econômica e social bem como entrevistas e história oral, Willems indicou um caminho profícuo para o estudo dos caiçaras, com um grau de perspicácia dificilmente atingido por pesquisadores que lhe sucederam. Entre os trabalhos antropológicos de grande importância nesse período destacam-se o de Donald Pierson e Teixeira, em 1947, em Survey de Icapara: uma vila de pescadores do litoral sul de São Paulo; de Maria Conceição Vicente de Carvalho em O pescador do litoral do Estado de São Paulo, em 1944. É importante se ressaltar também o trabalho de Carlos Borges Schmidt, A lavoura caiçara, publicado pelo Ministério da Agricultura, em 1958. Hoje já existe um conjunto de relatos orais de caiçaras de diversas áreas do litoral sudeste brasileiro que se constituem em verdadeiros arquivos orais que permitem conservar o rastro de testemunhos de caiçaras que nunca escreveram nada sobre suas vidas. Esses arquivos encontram-se, muitas vezes em trabalhos de pesquisa acadêmica contidos em teses com pouca divulgação, e também em fitas e vídeos parte dos quais foi divulgada recentemente pela Enciclopédia Caiçara, em cinco volumes, editada pelo Nupaub/Hucitec. Vários depoimentos de caiçaras indicam que, nos últimos anos, os caiçaras começaram a reafirmar seu papel social e seu território frente à expulsão de suas terras. Um dos temas mais recorrentes na memória

caiçara é o da perda de suas terras através da ação dos especuladores imobiliários, que algumas vezes usaram jagunços para ameaçar os moradores e incendiar suas moradias. Esse processo que se iniciou já pelos anos 30-40 é lembrado em vários depoimentos em toda a região caiçara. A partir dos anos 50-60 vários empreendimentos imobiliários começaram a se instalar em Cananéia, sobretudo na Ilha do Cardoso, onde compradores conseguiram as terras muitas vezes ludibriando os seus moradores. Um outro processo bastante presente na memória mais recente dos caiçaras é a implantação de áreas protegidas, na qual seu modo de vida se torna inviável pela proibição do exercício de suas atividades agrícolas e extrativas e mesmo pela transferência forçada de suas residências por representes dos órgãos ambientais do Estado. A implantação dessas áreas protegidas se iniciou no litoral com o Parque Estadual da Ilha do Cardoso, criado em 1962, e levou à expulsão gradativa de inúmeras comunidades caiçaras restando, hoje, um número reduzido de caiçaras que moram, sobretudo, no sul da Ilha. Se de um lado as implantações desses parques constam de documentos oficiais, que apresentam a visão do Estado, são raros os documentos que descrevem os traumas causados pela implantação autoritária dessas áreas protegidas, mas constam de inúmeros depoimentos orais em toda a extensão do território caiçara. Esses inúmeros relatos não são meras descrições da forma com que viviam os antigos moradores caiçaras, de seu modo de vida, mas expressam a tristeza e o A História Caiçara de Cananéia

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sofrimento associados ao processo de expulsão, a angústia em relação ao futuro incerto e à vida difícil nas favelas das muitas cidades litorâneas e ao descaso mostrado pelo Estado em relação a sua sorte. A identidade caiçara A partir do início da década de 80, começa a ser construída uma identidade caiçara, fruto dos embates contra a especulação imobiliária e contra o autoritarismo ambiental que não respeitou os direitos dos caiçaras às suas terras e modos de vida. Uma outra reação à perda do território é a implantação de reservas extrativistas marinhas; através das quais, os pescadores passam a controlar efetivamente o território de uso tradicional dos recursos pesqueiros ou de coleta. A Reserva Extrativista do Mandira, em Cananéia foi a primeira a ser decretada, para o manejo e comercialização de ostras. Várias outras estão sendo planejadas na região costeira. O êxito da Reserva Extrativista de Mandira, entre outros benefícios como o aumento de renda, o surgimento de lideranças atuantes, tem aumentado a auto-estima e a identidade caiçara. Um outro fenômeno recente é articulação de comunidades caiçaras, realizada por Organizações Não Governamentais – ONG’s, institutos de pesquisa e associações locais. Essas instituições têm promovido regularmente Congressos e Encontros Caiçaras no Litoral Norte e Sul de São Paulo, com a participação de líderes das comunidades tradicionais, para discussão e solução de problemas comuns.

4 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Nota-se também um renascer de grupos de fandango e danças caiçaras tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo e no Paraná. Uma oficina realizada em Cananéia no Parque Estadual da Ilha do Cardoso, em fevereiro de 2003, reunindo vários grupos de fandango do litoral paulista e paranaense, além da constituição de novos grupos de Reisado e Marujada tem servido também para mostrar os aspectos culturais comuns a essas regiões litorâneas. O apoio às organizações locais, através do programa federal de “Pontos de Cultura” tem também colaborado para manter viva a tradição musical caiçara. Algumas ONG’s locais, como a Associação dos Jovens da Juréia, em Iguape, a Mongue, de Peruíbe, a Rede Cananéia e o Instituto de Pesquisas Cananéia, em Cananéia, o Museu Caiçara, em Ubatuba, têm incentivado o surgimento de novos grupos culturais que, sem dúvida, tem contribuído para aumentar a auto-estima dos caiçaras e a sua identidade cultural. Merece destaque o trabalho da Ong Caburé que com seu projeto Museu Vivo do Fandango realizou um levantamento minucioso dos grupos de fandango e propiciou um intercâmbio frutuoso entre os fandangueiros do litoral paranaense e paulista através de diversos encontros. Hoje o fandango voltou a animar bailes populares em Cananéia, pela ação da Rede Cananéia e da Associação de Fandangueiros. Percebe-se, portanto, a construção de uma autoidentificação dos moradores tradicionais caiçaras, pela qual eles passam a valorizar suas origens e sua cultura.


A Educação como Base para a Manutenção da Cultura Caiçara André Murtinho Ribeiro Chaves1 “Um país não vive quando a juventude só tem acesso a valores de outros povos”. Ariano Suassuna O universo cultural Quando moleque – até uns 16 anos – eu era um destes torcedores fanáticos por futebol, que sabiam toda a escalação do time e lembrava, sem muito esforço, de todos os gols, datas e histórias dos ídolos. Com exceção de Argentina e Uruguai, que têm forte influência européia, sempre que um time sul-americano jogava com a nossa seleção, eram esperadas “goleadas históricas” – 5, 6, 7... a 0, 1... Quando a Bolívia, por exemplo, arriscava empatar, os locutores, comentaristas, repórteres de campo reagiam com um excessivo preconceito. “Desde quando futebol é um esporte na Bolívia”, diziam. ”Não podemos levar um gol deste timinho”. Nos dias que antecediam as partidas, havia um esforço tremendo em desqualificar o futebol dos “inimigos”. Um dia a Bolívia ganhou. Tragédia nacional... Este era o meu mundo e foi a partir daí que eu conhecia o restante da América do Sul.

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Mestre em Ecologia, docente da Escola Estadual Profa. Yolanda Araújo Silva Paiva e membro do Coletivo Educador de Cananéia.

Esta postura preconceituosa da mídia contra povos essencialmente originários se estendia em relação à economia e cultura: segundo se divulgava, não havia riquezas, nem coisas interessantes nestes países pobres periféricos. Quando falamos que um produto é do Paraguai, ainda é sinônimo de má qualidade. A imagem que se faz da Colômbia é de um lugar onde só existem traficantes e marginais, tudo gente perigosa, como narrado em filmes norteamericanos. A opinião, portanto, que eu tinha e que muita gente tem da América do Sul não europeizada é aquela que a televisão passa através do circo de suas informações. Parece verdade. Mas será que os povos originários, indígenas, eram por natureza pior do que os invasores europeus? Era uma questão genética ou algo historicamente construído? Por que negros e indígenas seriam piores do que os brancos? Um dia – aos 24 anos – eu consegui chegar na fronteira com a Bolívia. Ainda era Brasil – Corumbá, no Mato Grosso do Sul – e foi por algumas horas, mas minha opinião começou a mudar. Descobri que os bolivianos eram um povo, diferente sim, mas irmão. A Educação como Base para a Manutenção da Cultura Caiçara

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As mulheres se vestiam com trajes andinos, ainda que ao pé da “sierra”. Sentia que, mesmo no meu país, eu respirava uma outra cultura, a rica cultura indígena sul-americana. Isto me fez bem. A partir daí comecei a refletir sobre a minha formação cultural... Voltei no tempo... Nasci em Aracaju, capital sergipana, próximo ao baixo vale do São Francisco. Sempre viajei para o Rio de Janeiro para visitar a minha avó e tias. Aos 17 anos fui estudar numa universidade em Campinas. E mesmo com esta mobilidade precoce, o meu universo cultural era essencialmente televisivo, com valores externos insistentemente martelados na minha cabeça. Ter cultura era, para mim, saber a cultura dos outros povos, principalmente europeus. Isto era sinônimo de erudição. Assim, eu caminhava para ser ao mesmo tempo erudito e ignorante. Foi só após algum tempo, a partir dos 20 anos, conhecendo novos lugares e retornando periodicamente à minha terra é que eu (re)descobri a cultura sergipana: São Cristóvão, Itabaiana, Laranjeiras, Japaratuba, Nossa Senhora da Glória, Canindé do São Francisco, tantos lugares bonitos e ricos, ficaram 16 anos ali, do meu lado, e eu nunca havia percebido os ritmos, seus cantos, sua história: bacarmateiros, bumba-meu-boi, dança do parafuso, maracatu. Um novo mundo se abriu. No meio burguês em que cresci, pouco se valorizava esta cultura local. Hoje estou investigando a minha história. A terra da minha avó paterna – Porto Real do Colégio, lado alagoano do Rio São Francisco – era um território dos índios Kariri-Xocó. Também sei que por parte de mãe, tenho uma ascendência Bororo, do Mato Grosso. Além obviamente de genes europeus, que se mesclaram no Pará, e genes africanos, mis6 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

turados em Alagoas e Sergipe. Toda esta diversidade étnica culminou num encontro nas praias cariocas, do qual o fruto foi produzido em solo sergipano. O encontro de culturas Conto um pouco do pouco que conheço de minha história para me fazer entender. Sei que muitos jovens que crescem numa rica cultura, como a caiçara, não têm a devida compreensão da importância deste reconhecimento. A paisagem, o jeito de falar, as profissões e vocações, a culinária, as danças... Como disse o Padre João Trinta em entrevista realizada para este projeto: até a década de 1960, Cananéia era uma vila com uma cultura produzida pelo isolamento e que com a chegada de órgãos públicos estaduais e principalmente da televisão, houve um rompimento de valores, que causou uma forte instabilidade. O encontro de diferentes culturas pode ser um rico momento para produzir uma nova cultura, mas acredito que estupro cultural é o melhor termo para definir o que tenho ouvido sobre esta época em Cananéia. Havia uma grande pressão cultural externa, de pessoas e de mídia, para que houvesse uma mudança de comportamento, visando um “jeito civilizado”. Para ser mais claro: um comportamento presente na zona sul carioca (europeizado) e repetido ininterruptamente nos últimos 50 anos, através da TV e de diversos outros meios de invasão cultural. Caiçara, para quem chegava neste velho mundo, era sinônimo de preguiçoso. Isto gerou um descompasso violento entre a educação dos filhos e a formação dos pais. Somado às políticas de governo, deficiente nos diversos níveis, Cananéia vive hoje um


momento cultural difícil. O jovem caiçara está meio perdido no meio de tanta informação, mas sem muita oportunidade. O que fazer com tanto ruído externo? A situação do jovem em Cananéia Minha experiência nestes 2 anos e meio de magistério em solo caiçara, me permite ver que a juventude cananeense é extremamente criativa e muito inteligente, como disse o Padre João Trinta. Mas, com diversas carências básicas, que têm influenciado diretamente na sua vida e nas suas opções, impedindo o seu desenvolvimento pessoal e frustrando os seus sonhos. Podemos resumir estas carências em duas: a) carência econômica e b) carência afetiva, ambas resultado de uma falência estrutural da sociedade. A primeira diz respeito à falta de políticas de desenvolvimento, sejam para emprego e geração de renda, sejam para cultura e educação. A opção econômica é diretamente responsável pela situação educacional. Educação aqui, em termos mais amplos, se refere à formação de vida da pessoa, escolar ou não. A educação por sua vez, também tem um forte componente afetivo. A estrutura da escola brasileira como um todo e mais especificamente da escola paulista, é deficitária e atrasada. Mesmo com os recentes avanços da inclusão educacional, esta o foi essencialmente quantitativa, sem prezar pela qualidade do ensino e pelos novos métodos transformadores baseados na práxis pedagógica e na construção do próprio conhecimento. Como educar ou mesmo instruir um adolescente numa sala com 45 alunos? Como inovar pedagogicamente se não temos acesso facilitado a este conhecimento? Como sugerir

uma nova postura na alimentação (e na vida) se o próprio governo manda comida enlatada e embutida para os alunos? Por mais que haja um esforço dos professores, a escola não tem capacidade física e psicológica de dar conta de tantos problemas familiares. A carência afetiva das crianças e jovens caiçaras está atingindo índices alarmantes. Muito em razão da (des)estrutura econômica, poucos pais têm tempo disponível para oferecer o aconchego necessário para o desenvolvimento cognitivo da criança e do adolescente. A necessidade de permanecer fora de casa, a exploração pelo trabalho e suas conseqüências, são nefastas para a família. Além disso, muitas crianças são frutos de relações indesejadas, o que muitas vezes causam rejeições do pai, da mãe, ou do restante da família. O crescimento do aluno no meio de abandono é um dos motivos que contribuem para a dor de cabeça de muitos educadores. Como diversos relatos mostram, além deste abandono, a convivência com o alcoolismo e a violência familiar – muitas vezes sexual – também contribui para um desenvolvimento comprometido (no mau sentido) do jovem. Mas por que esta falta de planejamento familiar? Por que a gravidez na adolescência tem altos índices aqui no Vale do Ribeira e especificamente em Cananéia? Por que o alto índice de alcoolismo? Por que o abrupto crescimento do tráfico? Será que estas variáveis estão relacionadas? É preciso investigar mais a fundo e de forma científica estas relações indesejadas, mas posso arriscar algumas hipóteses. Uma delas é o desemprego e a falta de oportunidades econômicas e culturais, já colocada acima. Talvez só isto não baste. A Educação como Base para a Manutenção da Cultura Caiçara

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Outra hipótese complementar: a pressão da “sociedade do consumo”, embarcada pela grande mídia televisada e escrita, colocando na cabeça do jovem a sensação de incapacidade de construção do seu próprio destino. O modelo individualista de sucesso colocado como o único possível por estes meios, pode levar à frustração precoce e continuada do jovem, o que por sua vez pode levar à tristeza e depressão. Como sabemos, a adolescência é um momento de formação e instabilidade entre a vida infantil e a vida adulta. É delicado e caótico: qualquer alteração nesta fase pode alterar toda uma vida, sem previsão. Talvez seja por isto que muitas mães e professores se surpreendam que mesmo irmãos – até gêmeos – podem ter comportamentos e escolhas tão diferentes. Uma frase, um olhar... é o suficiente. Nesta situação de extrema incerteza, é muito fácil descambar pelo lado do individualismo, o que gera cada vez mais frustração. Afinal quando achamos que o sucesso e o fracasso é responsabilidade exclusivamente nossa, aumenta a nossa sensação de potência ou de impotência, conforme o lado. Como o sucesso – dizem os seus defensores – é para poucos, esta seleção natural resulta numa grande massa descartada e frustrada. O “consolo” pode estar no álcool e outras drogas. A busca rápida por um casamento pode ser um tipo de venda informal da vida, o que acontece com muitas adolescentes. Esta busca da felicidade, em último caso, pode resultar na prostituição. O acesso à informação Em todo este processo e neste meio sobra pouco tempo, energia e interesse para o jovem conhecer a 8 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

fundo a sua história, o seu ambiente e mesmo a vocação de sua economia. Qualquer iniciativa que preze por esta busca da identidade sociocultural traz novos elementos para a resistência de uma vida esmagada pelo gigante do capital. Novos interesses em velhos territórios, formação de novos quadros jovens, busca de novas oportunidades acabam gerando esperança e reconhecimento no jovem caiçara. Nos últimos anos tem havido algumas tentativas neste sentido. Projetos de valorização ambiental (como o Cananéia Tem Parque), cultural (Resgatando o Fandango Caiçara) e econômico (como os de Turismo Rural e Agricultura Ecológica) têm prezado pelo desenvolvimento através do reconhecimento do modo de ser caiçara. Outros projetos educativos de iniciativa governamental – como Educação de Chico Mendes, Ponto de Cultura “Caiçaras”, Sala Verde, Coletivo Jovem, Coletivos Educadores e mais recentemente este – Saberes Caiçaras, mesclados com impulsos locais, têm levado alguns professores e alunos das escolas públicas de Cananéia a conhecerem de perto a história e realidade socioambiental do município. Vivenciar este conhecimento local, indo à campo, agindo no seu resgate e manutenção, é uma maneira de educar esta molecada. Educar no sentido freiriano, de transformar a sua vida para melhor. Aumentar a auto-estima e o conhecimento de sua própria história é um requisito para um desenvolvimento legítimo. Se o jovem caiçara se sente capaz de se posicionar e de produzir (escrevendo, falando, tocando, cantando), é necessário dar capacitação técnica e ferramentas para que ele atinja seus objetivos. Com estas técnicas em mãos, num meio receptivo, não é tão difícil escrever um boletim, um zine ou um jornalzinho. Uma rádio


escola ou uma rádio livre (com transmissor simples) também não é tarefa complicada para jovens de uma cultura tecnológica (sim) que lida diariamente com a agricultura e a pesca. Padre João Trinta coloca com bastante propriedade que a profissão de pescador é a mais ampla em conhecimentos, incorporando informações e práticas de diversas profissões: meteorologia, física, navegação, mecânica, biologia, oceanografia e outras áreas do conhecimento. Para quem convive com isto, um pouco mais de apoio técnico na área de comunicação é o suficiente para montar um periódico ou uma rádio. Não existe maneira mais legítima de educar do que este processo de produção de um novo conhecimento, vivenciado, com jovens educando jovens, na sua linguagem. A capacidade de ser dono do nosso próprio destino é uma qualidade a ser alcançada por todo indivíduo e qualquer comunidade, em qualquer idade. É preciso ficar claro que quando se fala em resgate de sua cultura, nada impede que conheçamos outras culturas. Aliás, isto é preciso. Poucas pessoas compreendem que um índio da etnia M’bya Guarani não perde a sua identidade cultural se visita a cidade ou se adquire certos hábitos do ambiente visitado. Há um profundo preconceito em algumas posturas. Por que se critica tanto o uso de telefones celulares pelos indígenas? Nós não usamos os seus colares? O mesmo ocorre quando um negro alcança um posto de visibilidade na sociedade. Mas ele não era escravo, pobre? Como pode? A cultura não se perde por trocas, se perde por opressão, quando um grupo se coloca acima de outro. Segundo o professor da aldeia Morros dos Cavalos, em Palhoça, a uns 15 quilômetros de

Florianópolis, Marco Karaí Djekupé, “a única coisa que uma comunidade Guarani não pode nunca abrir mão é da sua Casa de Reza. Não importa onde ela esteja. Temos o exemplo de uma aldeia que está na periferia de São Paulo, no meio dos não-índios. Mas essa aldeia tem sua Casa de Reza e lá as pessoas vão escutar as palavras antigas, para que a nossa cultura nunca morra”. Assim, todo e qualquer preconceito social é mais uma tentativa de manutenção de privilégios de grupos historicamente dominantes, a custo da violência física ou moral contra povos oprimidos. O extermínio dos ancestrais guaranis ainda é incompreensível, ainda como não é possível para os seus descendentes entenderem a expulsão dos mesmos de terras a que historicamente lhes pertence. Para estes povos – assim como eram para os carijós – não existem fronteiras, existe um território: Ywy rupa. Se não existem fronteiras, para que guerras? A grande mídia Leio e ouço recentes episódios de ataques ferrenhos da grande imprensa aos povos e à cultura tradicional e penso no desserviço prestado por estes orgãos que deveriam informar criticamente o cidadão. Uma reportagem da revista Veja, de maneira preconceituosa, discriminatória e imoral se refere o povo M’bya Guarani (do qual os carijós eram um ramo) como invasor, estrangeiro, “Made in Paraguai”, como diz o título do artigo. Em matérias veiculadas recentemente e diariamente pelos Jornais da Globo, como “Crime no quilombo? Suspeitas de fraude e extração de madeira de Mata Atlântica” , também se denigre pessoas e locaA Educação como Base para a Manutenção da Cultura Caiçara

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lidades declaradas como remanescentes de quilombos, questionando a veracidade dos pareceres que tornam estas áreas de extrema importância histórica e cultural. Em ambos os casos há um desrespeito profundo por estas etnias, que se estende aos profissionais reconhecidamente idôneos de instituições reconhecidas, como a Fundação Palmares. Coincidência (?) ou não (!), após esta reportagem televisada do Jornal Nacional, aparece uma pesquisa sobre a miscigenação brasileira – amplamente divulgada pelo jornal Estado de S. Paulo, onde negros famosos fazem parte do público analisado. Entre eles, Neguinho da Beija-Flor (puxador de samba) e Daiane dos Santos (ginasta) descobrem que mais de 60% do seus genes têm ancestralidade européia. Já Sandra de Sá e Seu Jorge (cantores) têm uma ancestralidade predominantemente negra, cerca de 90%. Quanto aos métodos utilizados e à veracidade das informações ainda não tive oportunidade de analisar. Mas quanto à postura dos editores do Jornal Nacional, posso afirmar que houve manipulação completa, pois só foi divulgado por esta emissora os negros de ancestralidade predominantemente européia, em tom festivo. Sandra de Sá e Seu Jorge não apareceram na reportagem. Por que relato estes fatos? A grande maioria da população assiste o Jornal Nacional como se fosse o porta-voz da verdade, guardião da informação. Já a revista Veja é tida por boa parte dos “formadores de opinião” como uma referência. Os jovens e os pais

10 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

destes jovens estão sujeitos diariamente a este bombardeio. Se não há um conhecimento da história e da cultura de sua região, de forma a permitir que estes espectadores tenham uma avaliação crítica da informação veiculada por estas mídias, o cidadão fica sujeito ao que estas empresas querem veicular. Comentários Finais Uma das poucas formas de enfrentar esta tendência de extermínio da cultura caiçara é contribuindo para que os jovens se organizem, descubram e produzam. Neste processo, pode se descobrir – ao contrário do que conta a história oficial – que a cultura caiçara é o encontro da cultura portuguesa com a indígena, com pitadas africanas, espanholas e alemãs. Que quem não gosta de trabalhar por trabalhar, não é ser preguiçoso, e sim sábio. Também se descobre que, apesar da truculência dos portugueses que chegaram, temos que aceitar a sua cultura. Assim, como tive que aceitar por muito tempo torcer por um time de futebol, cujo nome representava toda esta violência: Vasco da Gama. Se o nome do time não é dos melhores, sua história é marcante. O Vasco foi o primeiro time brasileiro a aceitar jogadores negros. Até então, o futebol era um esporte da elite européia. Entre a violência portuguesa e a resistência negra, existe a cruz de malta, símbolo de Cananéia.


A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia “A proposta do nosso trabalho, desde o início, é fazer o resgate da cultura caiçara. Porém, só no decorrer do trabalho percebemos realmente a importância do resgate dessas informações e a gravidade de estarmos aos poucos perdendo essa cultura, pois vimos a dificuldade dos entrevistados em relatar certos costumes, já que grande parte dos caiçaras já não os utilizam”. “Apesar de ter sido uma entrevista apenas para treinamento, foi muito proveitosa e coletamos muitas informações importantes”. “Procuramos abordar as pessoas de maneira clara e precisa, pois antes de começar a perguntar explicávamos que a intenção desse trabalho é registrar os costumes para que sejam lembrados e vivenciados pelas futuras gerações. Optamos por ter uma conversa espontânea, o que deixava os entrevistados mais a vontade para contar suas histórias”. “Foi necessária até mesmo uma explicação mais detalhada com uma monitora ambiental (Ana Maria de Borba), cuja presença foi essencial para o desfecho do capítulo”. “As conversas com os mais antigos, nos revelaram o quanto são sábios, sendo relatadas histórias com muito respeito e verdade. Esperamos contribuir para que a cultura caiçara esteja sempre presente em nosso cotidiano, das maneiras mais diversas”. “A realização desse livro nos fez mudar o modo de ver nossa região (...). Também nos fez refletir sobre toda nossa cultura (caiçara) que está, infelizmente, desaparecendo aos poucos. O que faz a diferença em nosso trabalho é o fato de que é contado por pessoas que nos contavam com maior entusiasmo sobre suas vidas (algo tão íntimo), aprendemos muitas coisas, principalmente valorizar a nossa terra, a nossa cultura e os nossos costumes que nunca iremos deixar se perder”. A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia

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Poema Caiçara Rubens Paiva – Poeta e Compositor Cananeense Todo dia que Deus dá as quatro da madrugada, Pego remo e samburá, E vou dar uma pescada. Pego a tralha e a tarrafa, Vou ver se a maré tá boa, Levo água na garrafa, E uma rede de malha dentro da minha canoa. De lanceio e de currico, vou pescando mar a fora, E quando a pesca é farta e boa, Colho tudo e venho embora. Na minha casinha simples, Depois do almoço já feito, Descanso da minha lida e a mó de pensar na vida, Na minha rede eu me deito.

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Quando já pesca esta mais franca, E o peixe magro e sem peso, Tenho que achar um jeito, Passo com água no peito, Porque é tempo de defeso. Ai então vem a tristeza, E me bate o pessimismo, Sou um pescador seu moço, E pra não passar sufoco, Vou ter que viver do turismo. Nos mares audazes guerreiros, Pescadores de uma força rara, Em terra, na benção dos lares, O orgulho de ser caiçara.


Centro e Rocio Centro Dayane Cristina Almeida Cubas da Silva1 Talita Alves Shimodaira2

Rodeado por inúmeras construções históricas, que são um grande atrativo de nossa cidade, este bairro é onde se encontra o maior ponto comercial, palco das festas tradicionais e religiosas e de grande importância, não só para o município, mas para todo o Brasil.

Imagem de Satélite 1 2

Mapa geográfico do Centro

Membro do Coletivo Jovem Caiçara. Estudante do 1º ano do ensino médio da Escola Estadual Profa. Dinorah Silva dos Santos e membro do Coletivo Jovem Caiçara.

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia

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Cananéia atrai gente do mundo inteiro por causa de suas belezas naturais, porém poucos conhecem seu valor histórico e cultural.

Foi a partir daqui que surge o primeiro povoado brasileiro, em meados do ano de 1502. Historiadores afirmam que nessa data aportou em Cananéia a expedição exploratória dos portugueses Gonçalo Coelho e Américo Vespúcio, que dão o nome de “Barra do Rio Cananor” à região. Trazia com eles o “Bacharel”, Mestre Cosme Fernandes, que foi deportado, mas este local já era habitado pelos índios tupi-guarani e até mesmo antes pelo “homem do sambaqui”.

Imagem do Morro

Imagem do Morro nos dias atuais

Família Lisboa da Veiga

Imagem de satélite dos bairros

De característica nômade, estes habitantes se alimentavam de peixes, moluscos e crustáceos e tinham o costume de acumular os restos destes alimentos (ossos e conchas) em um único lugar. Os sambaquis (“samba” = concha; “qui” = monte), como são conhecidos, representam uma grande prova da passagem de seres humanos por esta região, há mais de 7.000 anos, como comprovada pela datação destes sítios arqueológicos.

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia

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O povoado inicialmente se instalou ao sul da Ilha Comprida, conhecida como Ilha Branca, provavelmente onde é hoje o sítio Boa Vista; chamada de Maratayama (“valoroso guerreiro”, em tupi-guarani) permaneceu ali por cerca de setenta anos. Família Lisboa da Veiga

Com o passar do tempo, se tornou notável a escassez de recursos naturais como água potável e terrenos para poder plantar e as pessoas tiveram que se retirar de lá. Por isso, vieram para onde é hoje Cananéia; local adequado como estratégia contra a invasão de índios bravios que queriam extrair dessa terra o que havia de melhor e pelo fácil acesso ao continente.

em 1895. A denominação do município foi alterada em 1905 abreviando-se o nome de São João Baptista de Cananéa para Cananéa. Já em 1932 é acrescentada a letra “i” ao nome, tornando-se assim Cananéia.

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Foi elevada à categoria de vila em 1578, com o nome de São João Baptista de Cananéa e, à cidade, Arquivos PEIC

Início da construção do aterro da Avenida Beira Mar

Família Lisboa da Veiga

Embora não existam documentos que informem com precisão a data de sua construção, a Igreja Matriz de São João Baptista provavelmente foi construída em meados do século XVI, com enormes e fortes

Foto aérea de Cananéia, mostrando alguns bairros, o Morro São João e a Ilha do Cardoso ao fundo 3

Ou distrito de paz como também é encontrado em livros e documentos antigos

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Igreja antiga, sem data.


portões, poucas janelas e com as seteiras (aberturas nas paredes em forma de seta) que serviam tanto para ventilação quanto para quem estivesse dentro poder se defender dos ataques de índios e piratas, servindo como uma espécie de fortaleza durante as batalhas que eram travadas.

Igreja nos dias atuais

Seteiras

Fachada da Igreja Matriz de São João Batista

Antes da bela edificação de agora, existia uma pequena capela com apenas quatro metros de fachada por nove na lateral; feita de taipa, suas paredes eram de cal e areia com estacas e ripas. A cobertura era feita com palha. Em volta existia um cemitério que foi posteriormente soterrado e por cima dele construída a atual igreja. A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia

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Instituto Geográfico e Cartográfico de São Paulo

Missa na praça Martim Afonso de Souza, sem data

A técnica utilizada para a construção foi trazida de Portugal e baseia-se no uso de pedra e cal. As pedras eram obtidas nos rios e nos morros próximos e a cal tirada dos sambaquis, tudo isso misturado a 4 óleo de baleia para dar ligadura e formar uma massa, 5 conhecida como berbigão . Foi feita com a frente voltada para o antigo porto de Cananéia, na desembocadura do rio Olaria, que então se localizava onde é situada a ponte do Morro São João. As grandes embarcações atracavam às margens deste rio e a tripulação seguia de canoa em direção ao extinto rio Piranguinha, que ficava defronte a igreja e que foi canalizado para as construções das atuais ruas Tales Bernardes e Ernesto Simões. 4

Na Ilha do Abrigo existiu uma armação de baleia que foi utilizada nos séculos XVI e XVII para extrair o óleo das baleias e utilizá-lo em construções e lamparinas. As ruínas estão lá até hoje, inclusive um grande tacho de cobre que está submerso, mas com as bordas à flor da água. 5 Nome de um molusco da família dos bivalves (Anomalocardia brasiliana).

18 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Mapa geográfico antigo do Centro Histórico

A igreja passou por três grandes reformas, a primeira ocorreu em 1723 e foi colocado um assoalho de madeira; a segunda, em 1769, foram construídos os botaréus (contraforte de reforço nas paredes) e a terceira, nos anos de 1977-1978 reformou o telhado e o altar.


Chegou a ter três importantes sinos que possuíam os seguintes nomes: Meão, Sião e Leão, hoje sabemos apenas que foram roubados, assim como a primeira imagem de São João Baptista esculpida em madeira e trazida de Portugal, a pedido de Martim Afonso. Com a foto do padroeiro em suas mãos nos relata com emoção uma moradora: “[...] vocês precisavam ver que beleza que era a igreja no estilo antigo, ela era toda forrada, era de escadaria, o santo ficava lá em cima [...] olha este aqui era o santo padroeiro que roubaram [...]”.

Paróquia de São João Batista

Interior da igreja atualmente

Antigo altar no interior da igreja, sem data

Imagem roubada de São João Batista A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia

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O milagre de São João Batista No tempo em que a região de Cananéia sofria com as guerras e invasões de piratas, muitos navios entravam pela barra e aqui saqueavam, roubavam e destruíam tudo o que encontravam pela frente. Os devotos de São João Batista afirmam que este santo tinha muita sabedoria e que saiu numa noite escura da igreja e foi até a barra de Cananéia e lá aterrou a entrada impedindo o acesso destes navios à baía de Trapandé. Contam que o sinal deste milagre estava registrado nos pés da imagem cobertos de lama no dia seguinte.

No altar da igreja existe uma pia batismal, construída em pedra, que é utilizada até hoje e está ali desde sua construção. Antigamente as missas eram cantadas, o coral ficava na parte de cima da igreja, o padre apenas complementava com algumas palavras. Hoje em dia ainda existe um coral que realiza apresentações em datas comemorativas religiosas, como a de Nossa 6 Senhora dos Navegantes (12 de agosto), em que os barcos são enfeitados para a procissão no Mar de Dentro; a de São João Batista, São Pedro (padroeiro dos pescadores) e a do Divino Espírito Santo.

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O simbolismo da mulher corajosa e orientadora dos viajantes fez com que Maria fosse vista como uma eterna vencedora dos inimigos das tempestades. Costuma-se festejar o dia que lhe é dedicado com uma grande procissão fluvial em muitos lugares no Brasil.

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Pia batismal Procissão terrestre de Nossa Senhora dos Navegantes, sem data


Família Lisboa da Veiga

Procissão marítima de Nossa Senhora dos Navegantes, sem data

Procissão marítima de Nossa Senhora dos Navegantes, agosto de 2005

“As festas religiosas ainda têm, não como antigamente, mas tem do Divino Espírito Santo, por exemplo, no dia treze de maio as bandeiras saíam para o sítio com violas, essas coisas, e eles são esses cantores repentistas”. (Relato de uma moradora local)

Chegada da Procissão de Nossa Senhora dos Navegantes, sem data

Ruas enfeitadas para a procissão de Corpus Christi A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia

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Procissão das bandeiras do Divino Espírito Santo

22 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia


As casas mais antigas situam-se onde hoje é a Rua Tristão Lobo, também chamada de “Rua do Fogo”, pois ali passavam os escravos que eram 7 açoitados pelos senhores. Nesta mesma rua também era comemorado o entrudo.

Família Lisboa da Veiga

A igreja tem uma importância enorme para Cananéia, não só por sua arquitetura, mas também pelo que tem a nos revelar em seus detalhes e histórias do povo caiçara. Com todos os relatos concluímos que as pessoas sentem muitas saudades dos objetos que não estão mais ali, das missas e da religiosidade, que está se perdendo em meio a tantas mudanças. Mas, com todos os esforços, os caiçaras não devem desistir nunca e buscar de todas as maneiras manterem vivas suas tradições religiosas.

Rua Tristão Lobo vista da igreja de São João Batista

Entrudo Em princípio era uma comemoração feita pelos escravos, após o casamento de um senhor de engenho, uma colheita bem sucedida ou o nascimento de alguma criança importante (rica). Os negros eram soltos nesta rua e saíam brincando e jogando farinha uns nos outros, enquanto os ricos ficavam em suas casas; estes juntavam em baldes, água suja com comida podre e até urina, e jogavam pela janela nos escravos que passavam pela rua. Essa comemoração não possuía música nem ritmo. Os ricos por ficarem dentro de casa tiveram vontade de brincar também e começaram a comprar máscaras importadas da Itália para saírem nas ruas e não serem reconhecidos. Posteriormente, o entrudo passou a ter novas características com a presença da população que saía fantasiada de “lacaios”, “diabinhos”, “frades” e até mesmo rapazes com roupa de moça jogando farinha e água nos transeuntes. Por volta da década de setenta eram usadas laranjinhas coloridas, feitas com cera derretida e corante, com perfume dentro. Essas eram vendidas aos foliões que jogavam nas costas das pessoas. A comemoração se dava durante o tríduo de momo e nas passagens de ano com o bloco “Zé Pereira”, aspirando muita alegria no decorrer de todos os meses. 7

Castigados com um instrumento de uma ou mais tiras de couro, flagelados

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia

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Um dos primeiros sobrados de Cananéia, localizado na Rua Tristão Lobo

Telhas feitas na “coxa”

As casas seguiam o mesmo padrão de construção da igreja e tinham em seu alicerce pedras, conchas (“berbigão”) e óleo de baleia. As telhas que cobriam estas residências eram confeccionadas nas coxas dos escravos. Misturava-se o barro vermelho (argila) com água até obter uma boa consistência, em seguida, amassava-se com os pés e depois modelavam a massa na coxa e retirava-se o excesso de massa. Colocavase ao sol para secar e, por último, levava-se para perto da fogueira onde a peça era queimada.

dono. Vem daí o ditado popular que se refere às pessoas com situação financeira desfavorável, “sem eira, nem beira”.

Suas fachadas mostravam o poder aquisitivo de seus moradores através das “beiras”, que são ondulações salientes abaixo do telhado, quanto mais “beiras” a casa possuía mais rica era a família que ali morava. Muitas dessas casas também tinham um lugar reservado, com tanques e mesas, que era chamado “eira”, onde os escravos preparavam os alimentos para seu 24 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Casas com as “beiras”


Por questão de segurança, as janelas padronizadas seguiam o modelo europeu e abriam para dentro, só existindo vidro nas casas das pessoas mais ricas, já que eram importados da Europa.

A atual Câmara Municipal localizada na Rua Pero Lobo era uma delegacia onde ficavam detidos em sua maioria pessoas com problemas mentais, loucos, já que o índice de criminalidade na época era

Detalhe das janelas das casas A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia

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bem mais baixo do que hoje em dia, como afirma seu Silvio Atanásio, morador do bairro Carijo que foi carcereiro na mesma.

a segunda série apenas, pois muitas tinham que ajudar os pais em trabalhos diários. Onde é a Escola Estadual Professora Yolanda Araújo Silva Paiva era um pasto de gado, seu terreno abrangia muito mais do que ela ocupa atualmente, quando construída foi considerada a escola mais moderna do estado de São Paulo, o que já faz mais de trinta anos. Este prédio foi o primeiro edifício da cidade em grandes proporções, de acordo com moradores do centro. Palco de inúmeras festas, como afirmado anteriormente, aqui o carnaval era festejado primeiramente em casas de famílias, depois é que foram criados os dois principais clubes da cidade, primeiro o Clube União e depois o Maratayama.

Câmara Municipal em 1938, mostrando a posse do prefeito

O primeiro posto de saúde era onde é o asilo “Amigos da Velhice de Cananéia”, na Rua Tristão Lobo, nessa época (início do século XX) existia apenas um médico, o Doutor Paulo Gomes, uma pessoa que estava sempre disposta a atender em sua casa (atual Pousada Caropá) ou na casa dos seus pacientes. A Santa Casa só foi construída em 1917 e tanto ela como a antiga escola pertenceram ao caiçara mais culto da época, Antonio Paulino de Almeida. A escola situava-se na antiga sede da prefeitura municipal (atual Departamento de Obras), localizada na Rua Pero Lopes; chamada de Grupo Escolar Martim Afonso de Souza, suas aulas ocorriam de primeira a quarta série, mas algumas crianças estudavam até 26 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

“O carnaval era como é hoje, sendo mais simples, sem tanta bagunça, tinha o desfile do bloco, que era bloco, não existia escola de samba, ali do União e o bloco do Carijo, era feito o carro alegórico em cima de caminhões com os desenhos da música e as máscaras, tinha a borração; entrava nas casas, borravam as moças, todo mundo se escondia, era com farinha de trigo, que era raro, só quem tinha um pouco mais abastado, hoje parece que tem e chamam de Pracô.” (Dona Maria Juliana) A história de Cananéia deixa evidente também que a região passou por vários ciclos que influenciaram diretamente a ocupação do município e principalmente os modos de vida caiçara, quer seja em seus aspectos sociais ou culturais. Mourão (2003), faz uma afirmativa dizendo que estes ciclos trouxeram estas mudanças:


Diante destas argumentações nota-se que o Centro esteve ligado intrinsecamente a estes ciclos econômicos. Durante o século XVI e XVII a região foi muito explorada para a extração de ouro, evidenciado pelos lugares que ainda preservam características desta época, como os municípios de Eldorado, Apiaí e Iporanga ou aqui, no bairro rural Rio das Minas. Neste período muitos moradores partiam em busca deste ouro, deixando para trás sua terra natal.

Fantasias usadas durante carnaval

“[...] quer lançando o homem na terra, quer dela o tirando. A passagem para a agricultura, nesta região, não nos parece que tenha correspondido, mesmo no passado, a um objetivo de vida. Recorre-se à agricultura ante o desaparecimento do ouro. Abandona-se a agricultura quando os estaleiros necessitam de madeira. Volta-se à agricultura quando a construção naval desaparece. Outros emigram. Abandona-se a agricultura quando o peixe, o palmito e, mais tarde, a caxeta, passam a ter mercado. Com a proibição do palmito e da caxeta, uma parte da população afeita a essa atividade, como parte dos que dependiam da coleta da ostra de mangue, que está desaparecendo, ou tenta a sorte em outras regiões ou, em menor número, tenta voltar às pequenas roças quando ainda detém sua posse”.

Cachoeira do Rio das Minas

Com o fim deste ciclo ou com o declínio da exploração do ouro, a população que outrora desbravou essa região acaba emigrando e boa parte que fica, dedica-se à agricultura, sendo que no século XVIII inicia-se em Cananéia um notável surto da agricultura e o desenvolvimento da construção naval. A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia

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Em 1711 começam a operar os primeiros estaleiros . A indústria de construção naval atinge o auge em 1782, existindo nessa época 16 estaleiros navais funcionando a todo vapor. Exportavam embarcações para todo o litoral brasileiro, inclusive para Portugal. A fartura provocada pela produção agrícola proporcionou um melhor escoamento dos produtos e um incentivo ao comércio regional. Junto com o advento da construção naval, Cananéia caracterizava-se por um equilíbrio econômico entre a área rural e a área urbana. Família Lisboa da Veiga

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vender seus excedentes e a economia local caísse bastante. Muitas famílias acabam abandonando os sítios e suas propriedades rurais para tentar melhores condições de vida no centro, trabalhando nos estaleiros e nos comércios em expansão. Com a decadência da agricultura, tiveram que vender ou abandonar seus sítios para trabalhar na cidade, assim, na pesca tiravam seu sustento, já que a oferta de mercado era grande e recebiam seu dinheiro após o término do serviço, o que não ocorria com a lavoura, pois tinham que plantar e esperar o tempo certo para colher. Esse interdito dura pouco tempo, voltando a economia de Cananéia a prosperar novamente, só que poucos retornam para seus sítios e os que lá ficaram voltam a produzir para a exportação, mas muitos sitiantes saem do continente para trabalhar no porto. Nota-se no final do século XIX e início do século XX grandes exportações de arroz e farinha de mandioca, como constatado em algumas entrevistas e relatado em outros capítulos que tratam de bairros específicos. Em meados de 1820, a produção de barcos entra em decadência.

Navios na baia de Trapandé em 1938

Em 1787 interditaram os principais portos da região, entre eles o de Iguape e de Cananéia, e isto fez com que muitos produtores não conseguissem 8

Lugar onde se constroem e consertam diversos tipos de embarcações e suas peças.

28 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Nessa época, existiam armazéns onde se compravam artigos como querosene, sal e demais produtos que não eram confeccionados artesanalmente; muitas casas possuíam uma pequena horta com plantas e ervas medicinais e criavam galinhas e porcos para o consumo familiar. No início do século XX (1910 aproximadamente), a pesca transforma-se na principal atividade econômica da cidade (pescados, camarões, ostras e


mariscos), facilitada pela introdução do papel moeda e pela pesca comercial. Em 1923, explorava-se muita madeira para a fabricação de barris; a fábrica que se situava na Rua 9 Dr. Alcoforado , atual Avenida Beira Mar, teve muitos empregados, mas fechou por falta de madeira.

Em 1958 a maioria da população que vivia no Centro se dedicava ao comércio e à prestação de serviços, especialmente nas fábricas que existiam aqui; destacam-se duas fábricas de conservas localizadas no Morro São João, uma de beneficiar arroz, outra de gelo e duas olarias (também no Morro).

Família Lisboa da Veiga

Com toda a sua história, cultura, magia, encantos, momentos e esquecimentos, Cananéia tem muito a oferecer aos visitantes, que além de suas belas paisagens e atrativos, abriga um povo receptivo que está sempre disposto a mostrar o melhor da cultura caiçara, com suas crenças, músicas, festas e tradições.

Fábrica de barris

Na década de vinte poucas estradas existiam, a maioria eram picadas que os próprios moradores abriam “no braço”, sem uso de qualquer máquina; somente na década de trinta é que começaram a construir estrada por terra, nessa época a travessia de Cananéia para o continente era feita por pequenas embarcações e depois por balsa, sendo que a ponte só foi construída em 1982.

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Atualmente, o turismo em expansão nos preocupa pelo fato de preservar e não agredir o meio ambiente e muito menos as famílias, especialmente as que residem em áreas rurais. É possível conhecer todas as maravilhas deste lugar sem interferir na cultura local e o que ainda existe conservado. Sem dúvida é o nosso maior patrimônio e para nós possui um valor incalculável já que como legítimos caiçaras valorizamos a nossa origem e a nossa terra. “Calmo, tranqüilo, indiferente a tudo, é de se ver o seu ardor patriótico e entusiástico regionalismo, quando se refere à terra em que nasceu.” (Antonio Paulino de Almeida)

Joaquim Guedes Alcoforado (1854 -1906) foi o primeiro magistrado (juiz) da Comarca de Cananéia.

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia

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Local onde existia uma fábrica de beneficiar arroz, hoje funciona um estabelecimento comercial

30 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia


Bairro Rocio 1

Talita Alves Shimodaira

Avenida Independência 1

Estudante do 1º ano do ensino médio da Escola Estadual Profª. Dinorah Silva dos Santos e membro do Coletivo Jovem Caiçara.

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia

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O bairro Rocio está localizado na área urbana de Cananéia, seu nome se origina da grande quantidade de plantações que existiam em seus arredores, no tempo em que as ruas ainda nem tinham pavimentação.

Todos os produtos cultivados nas lavouras serviam para a subsistência da população, como a mandioca, o arroz, a cana-de-açúcar e o feijão. Eram comprados apenas os mantimentos que não podiam ser produzidos, como o sal e a querosene.

Hoje em dia seu aspecto físico é outro, no lugar dos caminhos abertos no meio da mata, que outrora compunham a paisagem local, que por ação dos moradores foram se alargando, existe a Avenida Independência que cruza toda a cidade.

Um dos melhores lugares para o plantio ficava situado onde hoje é a Avenida Independência, antes chamada de Francisco Chaves.

As casas eram de pau-a-pique e entulho, feito com madeira cuja massa usava cal e areia branca, enquanto a cobertura era com a palha gamiova (Geonoma schottiana). Na década de 50 as construções mudaram, sendo feitas de madeira, já no início dos anos 80 se encontravam moradias de alvenaria, assim, ao decorrer dos anos o Rocio vem sofrendo algumas modificações em relação à arquitetura. A principal atividade econômica era a pesqueira, que se estendia do mês de abril a setembro, pois após esse período era interrompida para defeso das espécies marinhas. Havia vários estilos de pesca como, por exemplo, redes, cercos, tarrafas, espinhéis, pité e tacho. “Pité, estilo de pescar camarão, era feito através de duas canoas lado a lado, que iam com uma espécie de peneira, arrastando os camarões. Tacho era colocada a taquara pra ponta da canoa, acesa com uma tocha, um atrás ia remando e o outro ia fisgando os peixes com a lança”. (Relato de um morador local) 32 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

As mulheres, além de cuidar da casa, ajudavam seus maridos na roça, levando os filhos juntos para a lavoura, mesmo os homens ficando encarregados dos trabalhos mais pesados. Os alimentos típicos do bairro, fruto da própria produção local eram: o peixe seco com banana, preparado com banana verde, a batata doce, a abóbora, o cará, a batatinha desfiada servida com peixe ou então a caldeirada, preparada com óleo de dendê, creme de leite, pimentão (vermelho e verde), lula, pedaços de polvo, mariscos e outros ingredientes à preferência. 2

A cataia (Drymis brasiliensis), árvore típica da região, muito popular no Vale do Ribeira e norte do Paraná, possui folhas com propriedades medicinais, era usada para temperar alimentos e fazer chá, além de ser consumida curtida em cachaça pura ou com mel, que quando submersa na aguardente reduz drasticamente sua acidez, fazendo com que a bebida torne-se saborosíssima, por isso é também chamada de “uísque caiçara” ou “uísque da praia”.

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O nome cataia vem do tupi e quer dizer “folha que queima”.


O uso de fitoterápicos era muito corriqueiro, sendo que cada pessoa os usava de acordo com seus conhecimentos; os principais problemas de saúde 3 enfrentados antigamente eram verminoses , que acabavam ocasionando muitas mortes, pois até os indivíduos descobrirem o que tinham, já não havia mais solução, morrendo sem sequer saber qual doença lhes afetava. A educação era muito rígida, segundo relato de um morador tradicional “existia um inspetor de menores, e todos o respeitavam muito”. As famílias eram muito unidas, em épocas de festa comemoravam todas juntas. Os jovens trabalhavam com seus pais, faziam suas brincadeiras e tinham suas brigas, porém respeitavam uns aos outros. A cultura caiçara era muito mais valorizada antigamente. Havia várias festas tradicionais que se desenrolavam durante todo o ano; no mês de março era Festa de São José; em maio, Festa do Divino, em que a bandeira do Divino Espírito Santo passava por

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todos os bairros da cidade, inclusive os rurais; em junho, precisamente no dia 24, Festa de São João; agosto comemoração de Nossa Senhora dos Navegantes; já em outubro, Festa de Nossa Senhora do Rosário e dezembro, além das festas natalinas, Festa de São Benedito. O ritmo mais escutado era o fandango, onde se usavam instrumentos feitos artesanalmente como a viola, a rabeca, o cavaquinho, o adufo e o tamborim. Nos últimos tempos vem se tornando cada vez mais comum, inclusive com a participação de jovens tanto em grupos de tocadores, quanto nas festas em que a música e dança tipicamente caiçara enchem de alegria os salões com seu “arrasta pé”.

Referências Bibliográficas MOURÃO, Fernando A. Albuquerque. Os pescadores do Litoral Sul de São Paulo: um estudo de Sociologia diferencial. São Paulo: Editora HUCITEC/ NUPAUB/CEC/USP, 2003, pág. 131.

Espécie de infecção intestinal provocada por parasitas. Os principais sintomas relacionados com as verminoses são: cólicas abdominais, enjôos, mudança do apetite, falta de disposição, fraqueza, emagrecimento, tonturas, vômitos, diarréia com ou sem perda de sangue ou fome constante.

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia

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Bairro Carijo e Morro São João

Porto do Carijo e Morro São João

34 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia


Carijo

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André Murtinho Ribeiro Chaves 2 Lais Cristine Xavier 3 Sílvio Atanásio 3 Rosalina Gomes da Silva Jan Van Der Heijden3 4

“O Carijo hoje é um bairro eminentemente de pescadores artesanais, bem simples, bem pobres, mas que começaram a vender o pescado para o pessoal de Santos. Como método de preservar os peixes no passado, usava o sal”. (Padre João Trinta) O nome Carijo origina-se dos índios Carijós que habitavam a região sul do Brasil, encontrando-se esse povo desde Cananéia até a Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul. No ano de 1500 estima-se que existiam mais de 100.000 mil carijós, mas em 1700, a etnia carijó é massacrada e dizimada.

O bairro do Carijo se localiza circundando o Morro São João e seu acesso pode ser feito atravessando a ponte do rio Olaria, próximo ao centro da cidade. Teve sua formação definitiva em meados de 1902 com pequenas casas construídas pelas próprias famílias que ali chegaram e se estabeleceram em chácaras e sítios próximos ao rio.

Algumas terras que possivelmente abrigaram os carijós em nosso município foram o Varadouro, o Taquari, a costa oeste da Ilha do Cardoso (caminho do Canal do Ararapira) e, no Paraná, a Ilha do Superagui. 1

Mestre em Ecologia, docente da Escola Estadual Profa. Yolanda Araújo Silva Paiva e membro do Coletivo Educador de Cananéia. Membro do Coletivo Jovem Caiçara. 3 Moradores do bairro Carijo entrevistados durante a pesquisa de campo. 4 Tanto o povo como o bairro se escreve da mesma forma: Carijó (oxítona). Entretanto, os moradores de Cananéia historicamente, não se sabem muito os porquês, alteraram a pronúncia para Carijo (paroxítona), sem o acento. Isto também facilitará a leitura ao diferenciar a etnia indígena do bairro. 2

Imagem de satélite Cananéia A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia

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Índios Guarani M’Bya, em Cananéia existem quatro aldeias onde podemos encontrar esse povo

Imagem de satélite do bairro Carijo

“A oferta de numerário possibilitada pelo pescado e a possibilidade de se receber dinheiro logo após a pescaria, em vez de ter que aguardar o amadurecimento da pequena colheita que, no mercado de troca, atingia pequeno valor, determinaram a passagem para a pesca, como meio de subsistência, de cerca de cinqüenta famílias que ou venderam ou abandonaram seus sítios para se instalarem na cidade de Cananéia, onde formaram o bairro do Carijó, junto do morro São João”. Mourão (2003) 36 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

As primeiras famílias que ocuparam o bairro foram a Reis, a Rangel, a Gomes e a Teixeira. Ainda existem familiares delas no bairro, muitas vieram do Araçaúba (localidade próxima ao Ariri e Varadouro, na divisa com o Paraná). Outras moraram um tempo na Praia do Meio (atualmente Bairro do Marujá) na Ilha do Cardoso e depois migraram para o Carijo, formando pequenas chácaras com cerca de cinco casas. O Sr. Silvio Atanásio, morador do bairro a setenta e sete anos, já foi vereador, carcereiro e também presidente da Colônia de Pescadores e nos contou que quando ele chegou ao bairro, em 1930, “[...] morava seis famílias aqui, não tinha água, não tinha luz, não tinha nada, quem puxou a luz pra cá a primeira vez fui eu [...]”, e salienta que colocou postes de madeira, fez ligações elétricas e pagou todas as despesas, já que o prefeito nessa época não disponibilizou nenhum recurso financeiro e muito menos mão de obra.


Carijós Com o naufrágio de um navio português na ilha de Santa Catarina seus tripulantes conseguiram alcançar as terras dos guaranis, terras já então campeadas por eles. Esses homens acabaram se unindo às índias adotando um novo regime de vida, fator esse que ocasionou o nascimento de inúmeros mamelucos (portugueses mais índios), cafusos (índios mais negros) e mestiços (brancos mais negros); sofreram uma alteração onde mudou completamente o aspecto desses indígenas e desde aí, começou a surgir a etnia “carijós”, que significa arrancado do branco, mestiço. Os Carijós ocupavam o território que ia de Cananéia até a Ilha dos Patos, eles eram sem dúvida dóceis, trabalhadores e bem intencionados pertencentes ao ramo dos tupi-guaranis (tupi “o grande pai” ou “líder” e guarani “guerreiro”) e esse povo indígena fez um percurso do Paraguai para o sul do litoral brasileiro. As casas que eles construíam eram cobertas com cascas de árvores e cultivavam o algodão, este eles usavam pra fazer agasalhos e redes que enfeitavam com plumas e penas, eram um povo muito receptivo a todos os navios, mas, porém um dia foram traídos bruscamente e começaram a chamar o “homem branco” de inimigos. Com relação à cura e a bruxaria eles possuíam uma sabedoria maior do que a outros nativos. Por exemplo: quando eles queriam matar alguém, pegavam um sapo, amarravam a uma árvore e conforme o animal fosse desfalecendo a pessoa também iria, ou se desejassem que alguém ficasse cego, tinha que enterrar um ovo debaixo da rede, mas se alguém descobrisse, a mandinga deveria ser desfeita. Com certeza devemos aos índios o fato de nossa existência e principalmente todo o nosso respeito, pois eles obtiveram uma importância enorme por toda a sua história, seus conhecimentos... Foi um povo extremamente gentil e disposto a ajudar a qualquer um, será que nos povos de hoje encontramos pessoas assim???, Seres humanos com toda a sua cultura dispostos a ajudar ao seu semelhante sem receio algum??!! Se deixarmos a nossa “ignorância”, veríamos que eles são muito mais importantes para nós do que nós para eles.

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia

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Silvio Atanásio

A Sra. Rosalina Gomes da Silva, graciosamente chamada de “Rosinha”, moradora a sessenta e quatro anos no bairro, lembra como ele começou a crescer: “Depois de muito tempo é que foi crescendo, se formando mais gente [...] Minha mãe, ela diz que ela mesmo que fez esse caminho pra baixo, que era pouca estradinha [...] eu lembro assim até menina, esse caminho tinha aquela ponte grande que tem lá, o porto nós chamava de ponte grande, ali onde tem aquela manilha pra cá, mais ali onde tem aquelas coisa da Sabesp agora, nós chamava ponte pequena, já era uma pontinha mais pequena né, então o caminho era ali mesmo, sabe? Era só um caminho”. 38 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Ponte sobre o rio Olaria, antigamente chamada de Ponte Grande


As casas eram construídas de madeira cobertas 5 com guaricana (Geonoma schottiana) e o chão de barro, algumas apresentavam o assoalho de madeira, utilizando para tal a canela preta (Ocotea catharinensis), uma madeira muito resistente. Quando eles precisavam de barro iam buscar no morro São João, pois é o único local na Ilha de Cananéia que possui um tipo de solo diferente (argiloso). Dona Rosinha, falando de como eram as casas antigamente, lembra-se de algumas práticas comuns na época “[...] então quando se quebrava um pedaçinho de chão minha mãe pegava a latinha e ia lá pegá barro pra arrumá”. A base do sustento que predominava no bairro era a agricultura, dona Rosinha fala que “a gente antigamente vivia mais disso ai né, do que plantava né, a gente comia muito cará, essas coisas, batata-doce, a gente foi criado mais assim né, nessas coisas do lugar mesmo, fazia farinha, tinha o biju né [...]”, mas não como fonte de renda, e sim como forma de subsistência, além disso beneficiavam muitos produtos comuns na época, 6 como açúcar e farinha de mandioca. Nesse sentido nos conta o Sr. Sílvio Atanásio que ele e sua mãe faziam açúcar da seguinte maneira: “A gente pegava o caldo da cana punha num tacho grande pra fervê e vai fervendo, até ficar rijo, depois que esfria ele vira melado, rapadura, mas se quiser fazer açúcar vai batendo mais, até endurecer, endureceu você tira aqueles tabletes”. 5

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Esta cobertura de palha possui como característica o impedimento total da passagem de água e ainda retém calor no inverno e ameniza a temperatura no verão. Principalmente o mascavo, que não passa por processo de refinamento, mantendo assim as vitaminas e sais minerais do caldo da cana.

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia

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Atualmente, a pesca é a principal fonte de renda e o bairro abriga o maior número de pescadores do município, cuja profissão requer um amplo conhecimento de práticas e saberes tradicionais, pois depende de fatores como o clima, o barco, o motor, a rede, a procriação das espécies marinhas, a qualidade da água, enfim uma gama de situações de múltipla complexidade. Um dos fatores que contribui para a escassez de pescado é a pesca de arrasto, que é feita com um ou dois barcos que puxam uma rede encostada no fundo do mar, muito eficiente para arrastar tudo o que aparece pela frente e extremamente predatória do ponto de vista ambiental e da conservação dos estoques pesqueiros. Os pescadores tentam interceder para que esta prática acabe, pois traz grandes prejuízos para aqueles que possuem embarcações de pequeno porte.

Barcos de pesca no porto do Carijo

Nessa época, a pesca era pouco praticada e as embarcações eram bem menores; pescavam em pequenas canoas chamadas “canoas de um pau só”, sendo que não existiam as peixarias e os pescados eram vendidos para embarcações que vinham de Santos e Santa Catarina. 40 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Embarcação com suas redes de arrasto


Cerco O cerco possui uma importância enorme para a pesca, é uma armadilha fixa para reter os peixes. É a principal técnica empregada no estuário; os moradores afirmaram que quem trouxe essa arte para cá foi um pescador de Iguape que aprendeu com um catarinense e depois ensinou o pessoal. Feitos com bambu ou taquara mirim e arame sustentado por mourões, a forma de colocação do cerco depende do posicionamento das primeiras cinco madeiras na água, pois a partir delas que ele é estruturado. Existem dois tipos de cerco: o de inverno, com a malha maior por causa da tainha (que é pescada nesse período) e o de verão, com a malha menor (parati, corvina, robalo e a carapeva). A durabilidade do cerco é de três meses, aproximadamente, quando os bambus começam a se quebrar é trocado o arame ou feita a substituição.

É evidente a inocência das pessoas antigamente, algo fantástico e respeitado por todos, crianças, idosos e até mesmo jovens. Dona Rosinha lembra que “antigamente tinha a ‘procissão dos mortos’, no dia de finados, e colocavam medo na gente, a gente até hoje fala, né: ‘- não deixem a roupa na rua no dia de morto’. Dia um para o dia dois não deixava nada fora, os mortos iam passar [...]. Deus me livre, aqui era o caminho (aponta a localidade)”. Após término do carnaval e por mais quarenta dias (quaresma) ninguém podia ir para bailes, dançar, cantar e até assobiar, falavam que nascia rabo! Assim, devido ao medo todos seguiam essas orientações, pois naquela época as superstições eram tratadas com enorme respeito.

Moradias comuns antigamente no bairro Carijo A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia

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Lenda da Procissão dos Mortos Contam que em Cananéia existiam algumas mulheres que eram vizinhas e que tinham o costume de ficar conversando na rua depois da meia-noite. Elas moravam atrás do cemitério, num bairro um pouco distante do centro da cidade. Certa vez, numa dessas conversas, exatamente a meia-noite e meia, elas viram a “procissão dos mortos” vindo do cemitério, com todos seus componentes vestidos de preto e carregando uma vela nas mãos.

simples, principalmente o arroz com feijão e peixe, já em datas comemorativas existiam acompanhamentos especiais como vinhos e carnes nobres. Dona Rosinha 7 fazia a moqueca da ova de peixe preparada da seguinte forma: primeiro tempera-se bem as ovas amassando todas elas para depois juntar com a farinha de mandioca, para dar consistência, depois ela é então enrolada numa folha de bananeira e levada para debaixo da brasa do fogão a lenha, onde permanece até o cozimento final; prato esse sempre apreciado nas refeições matinais.

Elas pararam de conversar e prestaram atenção no cortejo e viram que um dos integrantes deixou uma vela na janela de uma delas. Depois que a procissão passou elas notaram que não era uma vela, mas sim um osso. Diz a lenda que uma vez por ano a procissão passa de madrugada e deixa uma vela na janela da casa das pessoas. Ou será um osso?

Em relação às festas, a única comemorada no bairro era a do padroeiro São Pedro, o protetor dos pescadores, pois as outras festividades ocorriam no centro de Cananéia.

Dona Rosinha em frente a sua casa

O modo de vida caiçara sempre foi muito simples, desde suas crenças, usos e costumes até o cuidado com sua alimentação; no dia-a-dia era refeição

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42 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Eram usados muitos tipos de peixes para as receitas caiçaras, mas o que foi citado com muita ênfase foi o bagre.


Antigamente no bairro do Carijo não existia rede de esgoto e a água era retirada de poços ou dos chafarizes que existiam espalhados pela cidade, sendo utilizadas para tudo, desde o preparo dos alimentos, para lavar roupas, beber e até mesmo tomar banho. Com relação à saúde havia apenas um médico, que morava no Centro da cidade, onde é a pousada “Caropá”, o Dr. Paulo Gomes, assim, com toda essa falta de tratamentos e medicamentos as pessoas notavam que era muito mais fácil cuidar de seus males em casa, cultivando ervas e plantas usadas para curar diversos tipos de doenças, como nos contou seu Silvio Atanásio que teve uma doença chamada de 8 Tracoma que quase o deixou cego: “Ele só me ensino lava o olho com água, chama rosa branca, aquela flor da rosa branca, coloca ela num copo com água, deixa em infusão, depois fica lavando o olho, no prazo de cinco dias tava bom, doença do Tracoma que chama”. Outro fator que contribuía para a utilização diária de saberes populares, bem como dos recursos naturais como plantas e ervas medicinais, coincidia com o nível da educação que existia na cidade. Existia apenas uma escola na cidade, chamada de Grupo Escolar “Martim Afonso de Souza” e os estudos acabavam na quarta série, quem quisesse 8

É uma doença da conjuntiva (tecido vivo formado por uma substância fundamental na qual estão inserida células e certas formações especiais ou fibras e que serve de sustentação e, simultaneamente, nutrição e proteção) e da córnea (região anterior da esclerótica, transparente e de maior curvatura do que esta, coberta na sua superfície exterior pela conjuntiva) que pode levar à cegueira.

prosseguir não tinha alternativa senão ir embora de Cananéia. Com isso, muitos paravam de estudar e dedicavam-se logo cedo aos trabalhos em expansão no município, como a agricultura e a pesca. Já os mais aventureiros iam dar aulas nos sítios, pois quem tinha até a quarta série já estava apto para isso, como salientado por Dona Rosinha. A estrutura familiar nunca foi bem definida entre os moradores do Carijo, o papel de cada membro da família era pouco estabelecido, a mãe sempre teve duas representações, a própria e a de pai, ao mesmo tempo, já o progenitor poucas vezes tomava a iniciativa de uma conversa “entre pai e filho” o que tornava a mulher muito mais forte. Como nos disse Dona Rosinha “antigamente eu acho que o mundo era melhor, não tinha o modernismo de hoje, mas também não tinha violência”. As pessoas podiam pescar, caçar e plantar com o máximo de segurança, pois sabiam que não seriam multadas por estarem praticando seu único meio de sustento, já que esta atividade ocorria apenas para consumo próprio e não para comercialização. Os caiçaras muitas vezes são chamados de preguiçosos, pois até na definição utilizada pelos dicionários está “indivíduo de pouco valor, caipira”, mas na verdade ele trabalha para obter apenas a sua subsistência, não possuíam a ganância que encontramos de querer sempre ter mais e mais dinheiro, para eles, poder sentar-se à sombra de uma árvore e conversar sobre qualquer assunto é sagrado. Jan Van Der Heijden, conhecido como Padre João Trinta, foi vigário da igreja de São João Batista de A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia

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Cananéia por trinta anos e conta que o modo de vida do caiçara pode ser exemplificado através dos diálogos cotidianos das pessoas, “damos nome a essa conversa de ping-pong de idéias” e ocorre quando existe um intervalo (pausa) entre a conversa de dois ou mais caiçaras: “ – É cumpadre, o tempo tá bom, não tá?”

crenças e seu modo de vida. Isso nos dá um enorme orgulho em sermos “CAIÇARAS”, pois ser caiçara “é uma maneira de viver que o povo de fora admira, não sabe o que é, mas dizem que é bonita. Uma cultura produzida pelo isolamento.”, como lembrado nas sábias palavras do Padre João Trinta.

“ – Mas à noite vai esfriá!” “ – Bem melhor que aquele calor de duas semanas atrás, hein?” Sem dúvida o povo caiçara é um povo muito inteligente com todas as suas características, suas

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Referências Bibliográficas MOURÃO, Fernando A. Albuquerque. Os pescadores do Litoral Sul de São Paulo: um estudo de Sociologia diferencial. São Paulo: Editora HUCITEC/ NUPAUB/CEC/USP, 2003, pág. 51.


Morro São João 1

Dayane Cristina Almeida Cubas da Silva 2 Maria Aparecida Xavier Pontes 2 Zeneide Xavier Pontes

Por do sol atrás do Morro São João

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Membro do Coletivo Jovem Caiçara. Moradoras do bairro Morro São João entrevistadas durante a pesquisa de campo.

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia

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O morro São João era chamado de Candairó; Dona Maria Aparecida Pontes, moradora local há 40 anos, lembra que “quando nós viemos pra cá, eu acho que só tinha quatro casas” e complementa falando sobre alguns residentes como “Seu Avelino Pontes, Seu Antenor Godoy e Seu Antonio Moaes, [...] que eram os moradores mais antigos e hoje só tem os filhos, porque eles já faleceram”. O nome do bairro vem do fato de sua localização ser na base do morro São João, único ponto alto de Cananéia que devido a processos de entemperismos (sol, chuva, vento) foi sofrendo desgaste e formando essa parte onde fica a ilha de Cananéia, isso no decorrer de milhões de anos. Avanços e recuos do mar também caracterizavam esse processo de formações insulares. Um dia a Ilha de Cananéia e a Ilha do Cardoso já foram ligadas ao continente, o que leva a comprovar o fato de existirem, por exemplo, animais em muitas ilhas distantes da costa.

Embarcações atracadas no bairro Morro São João

“[...] toda família que veio da ilha, veio porque lá virou um parque, então como nós éramos agricultores nós não podíamos ficar lá, porque tinha que cortar a mata, plantar, né, aí nós tivemos que sair, aí que a gente saiu e graças a Deus conseguimos lugar aqui, deu sorte[...]”. (Dona Maria)

Como salienta Dona Maria, “[...] é um bairro pequeno né, ele não cresce mais [...] porque não tem lugar, o morro é tombado” e realmente não cresce, pois de um lado temos o Morro São João e circundando o bairro do Carijo. As casas eram feitas de madeira, depois é que foram modificadas e passaram a ser de alvenaria. A origem do bairro é devida, principalmente, ao estabelecimento de muitas famílias provenientes da Ilha do Cardoso que saíram de lá após o local ter se tornado parque e ocorrido muitas restrições ambientais, que impediram, por exemplo, muitas práticas agrícolas. 46 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Após se estabelecerem tiveram a pesca como principal fonte de renda, já que as famílias que aqui chegaram, embora fossem agricultores, hesitavam em 3 plantar com medo de que o “solo despencasse” como afirma Dona Maria. Com isso, muitas pessoas começaram a praticar a pesca embarcada e os que 3

O solo do morro se diferencia do resto da cidade, já que lá é argiloso e nas demais localidades é arenoso.


não eram pescadores trabalhavam na fábrica de gelo que ficava na Ceagesp – Companhia de Entreposto e Armazéns Gerais do Estado São Paulo (inaugurada em 1958) ou em outros pontos comerciais. “Quando nós chegamos aqui era pesca, meu pai e meu irmão pescavam e quase todos, depois cada um foi conseguindo um trabalho, né [...] A Ceagesp tem faz tempo, meu marido quase se aposentou da Ceagesp. Tem um rapaz aqui também, o Aroldo, filho do seu Laudilino, ele se aposentou na Ceagesp”. (Dona Maria)

Este bairro, assim como o Carijo, concentra a maior parte da economia da cidade, pois é onde atracam o maior número de embarcações pesqueiras que vendem seu pescado para as peixarias e para as empresas que congelam e o revendem, gerando com isso empregos e renda para diversas famílias. No início, a pesca era feita à canoa, costume que mudou com a vinda de barcos de Santa Catarina, que introduziram os barcos à motor. Temos também o mercado municipal (ao lado da ponte) que atualmente está fechado, mas já funcionou vendendo pescados e demais frutos-domar que eram embalados ali mesmo. Notamos que atualmente há um número elevado de funcionários públicos no bairro. Apenas dois moradores têm o artesanato como fonte principal de renda, como foi citado nas entrevistas, ambos trabalham com madeira e raízes.

Atual Ceagesp

No entreposto de pesca conhecido como “Golfinho”, atrás do Morro São João, existia uma olaria onde se confeccionavam potes, panelas, cuscuzeiras e até mesmo as máscaras utilizadas para o carnaval, tudo artesanalmente. Lá também é um dos pontos turísticos de Cananéia e possui um valor histórico muito importante para a cidade, pois é onde se encontra o “argolão”, local onde fixaram enormes argolas para ancorar as naus no tempo da colonização. A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia

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Nesta época funcionava também uma fábrica de produtos enlatados, tudo era produzido lá mesmo, como nos relata Dona Rosinha que trabalhou no início da década de cinqüenta na mesma: “[...] tinha fábrica lá de palmito, doces [...] Depois eles começaram a plantar pêssego, ameixa, essas coisas”. O cotidiano dos moradores do bairro mescla os costumes da Ilha do Cardoso com os do centro, sendo notório nas lembranças dos entrevistados a vivência deles nos sítios com receitas, festas e costumes. Dona Maria nos conta uma receita de “calderada de peixe”. Primeiro você escolhe um peixe bom, como: caragutanga, robalo, bagre, tainha, entre outros; corta-se o peixe em postas e tempera-o apenas com limão e sal. Numa panela grande refogar cebola,

Entreposto particular de pescados, “Golfinho” e o histórico argolão

48 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

alho, pimentão, cheiro verde, salsinha, manjericão e outros ingredientes de sua preferência. O próximo passo é colocar o peixe para dourar e em seguida a água, alguns tomates e mais cebola. Quando ele estiver cozido você mistura o caldo do peixe com a farinha de mandioca. Ressaltando que esse é um prato típico de toda a região. Destacam-se no dia-a-dia destes moradores o uso de plantas e ervas medicinais, que ainda são lembradas e utilizadas pelos mais antigos, como a folha de caju, o jambolão e a carobinha que servem para controlar o diabetes. Temos também o exemplo da “garrafada”, contada pela mãe de Dona Maria, a Senhora Zeneide Xavier Pontes, que é uma infusão de ervas que as mulheres bebiam após dar à luz pelas mãos de sábias parteiras.


”Sabe o que a gente fazia depois que ganhava neném? A parteira que cuidava da gente torrava sal bem torradinho, fervia um pouco de água, punha uma colher de sal rasa, colocava numa caneca a água que fervia , borbulhava, aí deixava esfriar e a gente tomava aquilo parece que queimava a gente. Antes de ganhar o neném já vinha aqui na cidade comprar os preparativos, era pinga pixilim, noz-moscada, abutu, mana e sene, eram sete remédios que a gente comprava e ralava. Aquele abutu, o pixilim e a nozmoscada tudo bem raladinho no ralador, arrumava uma panelinha e torrava aquilo bem raladinho com o açúcar, fazia uma calda com o açúcar e enquanto tava quente a gente virava um pouquinho daquela pinga e deixava esfriar e tomava cinco dias, e também não saía do quarto antes dos cinco dias, não tomava água fria, nada, fazia uma dieta tanto dos pés como de comida. Quando uma mulher que ganhava neném, e elas se cuidavam tinha a quarentena, o negócio da comida minha mãe era muito medrosa para essas coisas e conhecia muito bem as coisas ela era do sítio, ela era muiDona Maria Aparecida Xavier Pontes to inteligente [...]” e Dona Zeneide Xavier Pontes

Todo esse conhecimento foi passado de geração para geração através das famílias que um dia viveram nos sítios, com todas suas facilidades e dificuldades. Hoje, notamos que os mais novos optaram pela praticidade de obter remédios na farmácia, sendo difícil encontrar entre estes o costume de utilizar medicamentos naturais.

Lenda da Fera do Morro São João Contam que há muitos anos dois caçadores foram ao Morro São João com suas espingardas e um cachorro. Chegando lá tomaram rumos diferentes, um deles escutou um disparo e supôs que seria da arma do companheiro, ouviu a seguir o latido do cachorro que estava com o outro caçador. Então, chamou várias vezes pelo companheiro. Não obtendo respostas, seguiu em direção aos latidos. Deparou-se com uma caverna e encontrou somente a espingarda na entrada. O caçador chamou mais uma vez seu companheiro, que não atendeu o seu chamado. Ele desistiu de procurar, não tendo coragem para entrar na caverna. Conta o mesmo que provavelmente tenha sido uma fera ou outro grande animal que tenha devorado seu companheiro e o cachorro. E desde o acontecido nunca mais o caçador e seu cachorro foram vistos. A Cultura Caiçara na História dos Bairros Urbanos de Cananéia

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Com todos esses aspectos da nossa cultura vimos que há necessidade de resgatar parte dela que se perdeu ao longo dos anos devido a mudanças socioambientais, mas sabemos que apesar das dificuldades que encontravam quando deixaram de realizar as práticas agrícolas em suas propriedades rurais, estes caiçaras souberam adaptar-se à pesca, que era no princípio para subsistência e agora se torna uma das principais fontes de renda.

Gruta de Nossa Senhora de Fátima

Percebemos que existe uma boa organização do bairro, com uma associação de moradores atuante que está sempre pronta para ajudar quem precisa, costume bem típico dos caiçaras. Embora não existam comemorações religiosas, os moradores estão ligados diretamente ao centro, participando dos eventos que lá acontecem.

50 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Sabemos que além de registrar os fatos, também é necessário incentivar a vivência das suas tradições para que as futuras gerações possam dar continuidade de maneira mais verdadeira, ressaltando sua simplicidade e bondade, relatado perfeitamente por Dona Maria: “Pra mim ser caiçara é não perder os nossos costumes, nossas raízes [...] o caiçara é o povo mais humilde, ele tem bom coração, o caiçara não tem ciúmes das coisas, ele não tem aquele egoísmo, aquela vontade de ter muita coisa, o caiçara mesmo é isso”.


A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia “Enquanto estávamos marcados pelo entusiasmo de ir à busca do descobrimento de nossas raízes, nem imaginávamos o que veríamos pela frente - histórias marcantes e uma lição de vida passada pelos mais velhos. Não esperávamos receber tanta informação, principalmente de lugares que são considerados o “fim do mundo” por muitos”. “Imaginávamos que por ser um bairro rural, afastado da cidade, os moradores iriam ter receio de nos contar sobre suas vidas. Mas não foi bem assim; fomos muito bem acolhidos e percebemos o prazer com que as pessoas nos contavam sobre suas crenças e seus cotidianos”. “Nestes lindos lugares, pudemos ter inesquecíveis experiências e aprender o suficiente para entender o valor, tanto histórico quanto natural, que possui nossa cidade”. “(...) ainda se encontram nesses lugares verdadeiros caiçaras, que têm orgulho de sua terra e sua vida, que lutam pelos seus direitos como qualquer outro cidadão”. “Enfim, temos agora muito mais consciência em relação a preservação de nossa cultura, ficamos indignados ao percebermos quais eram os fatores que estavam deteriorando a cultura, mas estamos cada vez mais orgulhosos de levantar nossa bandeira caiçara, pela perseverança que foi demonstrada pelos mais velhos em manter, através de seus conhecimentos, a cultura caiçara viva”. “Nós tivemos a sorte e por conseqüência a honra, de termos escolhido essas comunidades. Esperamos que um dia vocês também a tenham!” A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Cantiga Caiçara Rubens Paiva – Poeta e Compositor Cananeense

Vai indo a canoa, desliza no mar, Quem joga a rede, nesse espelho d’água, Vai pescar seus sonhos, afogar as mágoas. Pescador leva a tralha quando é madrugada, Currico ou lanceio, arrasta os anseios em cada remada. O menino no barranco esperando o pai voltar, Pra saciar sua fome com coisa que trás do mar. Oi mar, mareia A canoa é ribeirana Pescaria é de ameia Quando volta a tardezinha, caiçara retirante, Pouco peixe e a vontade de vencer maré vazante. A noite já foi, vem saindo o sol, Espinhel na água, isca no anzol, Cigarro de palha no canto da boca, Tarrafa de malha, esperança pouca. A razão que o consola é amanhã de um outro dia, Voltar pro mar jogar rede, E sonhar com a pescaria. Vanzeiro na proa, contra o vento norte, Eu sou caiçara, teimoso e forte.

52 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia


Bairro Itapitangui 1

Danielle Moreira Cosso 2 Laís Cristine Xavier 3 Benedito Alves 3 Delfina Ventura Batista 3 Idorino Ventura Santana 3 Tereza dos Lemos Santana

Ilha de Cananéia vista do continente, ao fundo a Ilha do Cardoso 1 2 3

Estudante do 3º ano do ensino médio da Escola Estadual Profa. Yolanda Araújo Silva Paiva e membro do Coletivo Jovem Caiçara. Membro do Coletivo Jovem Caiçara. Moradores tradicionais do bairro Itapitangui entrevistados durante a pesquisa de campo.

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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“Aqui era um lugar que tinha muita coisa, a gente trabalhava, caçava, pescava, hoje a gente já não faz mais nada disso porque as coisas tudo diminuiu...”. (Seu Idoro)

“Quando eu cheguei aqui, não tinha nada disso, não. Era um matão que só Deus pra entrá!”. (Benedito Alves)

O Bairro do Itapitangui localiza-se na área continental de Cananéia. O acesso pode ser feito por balsa a partir da Ilha de Cananéia, passando pelo bairro Porto Cubatão, distando 5 Km deste, ou pela rodovia SP 226, vindo de Pariquera-Açú. É um lugar que possui uma imensa beleza, principalmente por suas paisagens e atrativos naturais, como rios, cachoeiras, serras e mata, e pelo grande valor histórico para Cananéia, já que foi ponto de passagem de colonizadores, bandeirantes e tropas em direção ao interior. É habitado por pessoas simples, vindas de sítios próximos da região e de outros municípios vizinhos. Dia-a-dia no bairro Itapitangui

O nome Itapitangui vem do tupi-guarani e significa arroio (“pequeno rio”) da pedra vermelha, que é também o nome do rio que abastece a cidade de Cananéia e que deu origem ao nome do bairro. As principais famílias moradoras do bairro identificadas nas entrevistas foram: do Vale, Serrano e Almeida que já habitavam o local há mais de 50 anos atrás e trabalhavam na fabricação de tijolos e na linha do telégrafo.

Imagem de satélite

54 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Ao invés de ruas, pequenos caminhos eram abertos pelos próprios moradores, dando acesso às humildes casas, que eram construídas de madeira como


Sr. Benedito e sua família, em frente a sua casa

Detalhe de uma residência do bairro, nota-se que hoje algumas mudanças ocorreram nestas construções, na foto a presença de telhas de amianto

o “nhacatirão” ou jacatirão (Tibouchina mutabilis) e cobertas com palhas como a guaricana (Geonoma schottiana) e o jassapê, utilizavam também para a cobertura das casas o capim do brejo (Paspalum spp.) como nos conta o Sr. Idorino Ventura Santana ou “Seu Idoro” como é conhecido, e ainda complementa, “[...] quem era mais forte ia lá no mato buscá palha, né, mas quem não podia buscá palha cobria com capim, capim do brejo”. Antigamente não havia nenhum tipo de tratamento de água, mesmo porque os rios não enfrentavam tantos problemas como hoje. A água era retirada pelos moradores diretamente do rio e só muito tempo depois foi canalizada, fato causado pelo aumento do número de moradores no bairro e preocupações em relação à qualidade da mesma. Como nos contou Seu Idoro e sua esposa, quando se mudaram para o bairro, a espera foi de quinze anos para que chegasse energia elétrica (eles moram lá há cinqüenta e cinco anos!).

Detalhe de uma das ruas do bairro A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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A escola ficava onde hoje é a Unidade Básica de Saúde (UBS) conhecida popularmente como “postinho”, havia poucos alunos antigamente e o ensino era realizado até as séries iniciais e bem precário por sinal, como nos afirma o Seu Idoro: “[...] era muito fraquinha (...) vinha três pessoas, duas pessoas, quase não tinha ninguém”. Já hoje, a Escola Municipal de Ensino Fundamental Osvaldo Lucachaki está em outro prédio e atende alunos de 1ª a 4ª série do ensino fundamental (ciclo I), mas agora com uma estrutura física muito boa e um corpo docente muito dedicado. Os alunos que terminam o ciclo I do ensino funda-

E.M.E.F. Osvaldo Lucachaki

56 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

mental vão cursar o ciclo II (5ª a 8ª série) e o ensino médio na Escola Estadual do Bairro Cubatão. Conta-nos Seu Idoro que no bairro existia um inspetor de quarteirão, uma pessoa que o delegado da cidade elegia para fiscalizar e monitorar o bairro, qualquer acontecimento deveria ser encaminhado a ele e até mesmo um namoro deveria ser comunicado ao inspetor para evitar qualquer caso de traição, além da permissão do pai da moça é claro! A agricultura, a caça e a pesca eram muito praticadas nesta região, principalmente pela distância que existia em relação ao centro urbano de Cananéia dificultando a compra de mantimentos e produtos que não eram produzidos no local. Não é o caso da produção de farinha, por exemplo, como mostrou com muita generosidade Dona Delfina Ventura Batista, moradora do bairro há vinte e quatro anos e que 4 possui um tráfico de farinha em sua residência. Ela contou que não conseguiu deixá-lo no sítio onde residia antes de se mudar para o Itapitangui, devido a toda história dos usos e momentos de alegria vividos em todo o processo de utilização dos mesmos. O processo que nos mostrou é bem simples e semelhante a outros que existem em 4 Termo usado em diversas comunidades caiçaras para caracterizar o processo de produção da farinha de mandioca, desde o cultivo até o ensaque, também pode ser chamado de tráfego ou trasfego (BRANCO, 2005).


Cananéia, consiste na colheita da mandioca (rama), a retirada de sua casca e o primeiro contato com o tráfico que é no ralador, onde a mandioca é ralada e todo o produto cai no cocho, um compartimento grande logo abaixo do ralador. Essa mandioca ralada é então levada para um cesto trançado, chamado tipiti e depois

espremida na prensa, nesse processo é retirado um líquido branco, conhecido como mandiquera, que contém ácido cianídrico, tóxico para a saúde. Na seqüência é levada para o forno e torrada no tacho, normalmente feito de cobre.

Tipiti, cesto confeccionado artesanalmente

Ralador

Prensa A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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à falta da matéria prima, pois não tem um pedacinho de terra para plantar e todo o dinheiro que consegue é investido em sua “nova” residência. Mas, afirma, com um olhar cheio de esperanças que ainda está disposta a manter a tradição que é seguida por muitos anos pela sua família.

Delfina Ventura Batista

Forno com o tacho de cobre

Após ter sido torrada pode ser passada pela peneira, tanto por uma mais grossa e outra mais fina e depois está pronta para o consumo ou uso em outros pratos caiçaras. Atualmente Dona Delfina não está mais produzindo farinha de mandioca devido principalmente 58 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Para complementar, Dona Delfina nos conta uma receita simples e costumeira que sempre fazia, diz ela que “fica uma delícia” e que até hoje é muito apreciada, o chamado “pão de arroz”, é preparado da seguinte forma: coloca-se o arroz (cru) de molho em uma bacia por algumas horas, depois retira-se o excesso de água e leva-o para ser socado no pilão, toda essa massa é então passada numa peneira fina. Junta-se esse arroz pilado e peneirado com mistura básica de pão (farinha de trigo, ovos, leite, sal) e leva-


se ao forno para assar e quando estiver pronto pode ser servido com um cafezinho. Nas atividades cotidianas dos moradores do bairro prevalecia muito mais o sentido de subsistência do que o comércio sem si, como exemplo dessas atividades podemos citar as trocas que eram feitas

pelos moradores quando tinham um excedente de produtos agrícolas (milho, mandioca, batata-doce, cana-de-açúcar, arroz etc.) e precisam de outros alimentos ou produtos de gênero diversos. Para realização de um plantio ou colheita no sítio, eram feitos grandes mutirões, como lembra com muito entusiasmo o Sr. Idoro e sua esposa, “[...] ali juntava 50 pessoas, 60, 80, 100 pessoas, ali nós plantava 5, 6, 8 arquere de arroz, a gente fazia mutirão pra colhe, nós colhia 200 cestos, 500 cestos, às vez 1000 até [...], nóis trabalhava sábado, domingo, feriado [...] nóis tinha mil e seiscentos arquere de terra”. Após o término do trabalho, o dono da propriedade onde foi realizado o mutirão sempre oferecia um almoço, um café e um baile como pagamento, onde predominava o fandango e muita fartura na mesa dessa gente humilde. “[...] quando não cabia na mesa, então estendia uma esteira no chão, esteira de pirí, ali ficava cheio de bijú, sabe?, ali jogava aí um arqueire, meio arqueire, tudo aquilo a gente enchia de carne de paca, tatu, tateto, porco do mato, tinha muito né [...]” (Seu Idoro)

Neto do Sr. Benedito com uma batata-doce, costumes tradicionais sendo incorporado pelos mais novos!

Na pesca utilizavam-se artefatos como, anzol, fisga e rede. Era praticada nos rios mais próximos e os peixes de água doce pescados com maior freqüência eram o tairussu, aniá, o saguairu, acará, tairiputanga, alguns deles já não são encontrados com tanta facilidade, como nos afirma o Sr. Idoro, “[...] tinha aniá também, tinha muito, não tem mais. Aniá de dia tava dormindo assim, o senhor ia bem em cima da pedra, poderia atrair quantos quisesse, cê olhava tava assim no rio, no A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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poço, aí podia pegar porque ele é devagarzinho, um fisguinha de ferro e pegava, hoje em dia não tem mais, acabou!”.

Com todas essas dificuldades não havia outra saída a não ser aprender e realizar algumas simpatias, prática muito comum antigamente, mas que hoje não acontece com tanta freqüência pelo fato do acesso aos médicos ser mais fácil. Duas delas foram passadas da seguinte forma: • Quando uma mulher fosse ganhar bebê, virava-se um pilão com a boca para baixo e colocava-se em cima um santinho para rezar, para que o parto fosse bem realizado. 6

• Quando alguém pegava cobreiro apanhavam-se folhas de um mamoeiro (Carica papaya) com as próprias mãos numa sexta-feira e falava-se a simpatia abaixo. Passados oito dias a pessoa estava curada. Seu Idoro e sua esposa Sra. Tereza, no quintal de sua casa

Antigamente, pelo difícil acesso à cidade e ausência de atendimento médico especializado, como é lembrado nas palavras da Sra. Teresa, “[...] só fui conhecer um médico quando tinha 20 anos.”, os moradores se confortavam com a única maneira de curar-se de doenças e outras enfermidades, que era o uso de plantas ou ervas medicinais, como a rosa branca (Rosa alba), saguatajá, nhabutitana (Xyris jupicai), alfavaca (Ocimum basilicum) entre outras, utilizavam também uma mistura de várias ervas, 5 conhecida localmente como cordeá , para tratar diversos tipos problemas. 5

Cordeá: o mesmo que cordial; beberagem de ervas - “quem sabe se um cordeá de nhabutitana cum sete sangria não cura o mininozinho”. (Extraído do Pequeno Dicionário de Vocábulos e Expressões Cananéias, de Edgar Jaci Teixeira, 2005).

60 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

“com o que que eu curo, cobreiro sapero brabo, então corta a cabeça e corta o rabo”. Assim como as simpatias que eram levadas a sério, as lendas também eram. O saci, que por sua vez era um dos mais comentados pelos caiçaras, não deixou de ser lembrado em nossas entrevistas. Seu Idoro, por exemplo, nos afirma com a maior convicção que o saci bebe pinga! Pois certa noite, quando estava trabalhando no estaleiro, ele ouviu o saci cantando: 6

Cobreiro ou cobrêro: Doença da pele que consiste em estrias avermelhadas que provocam forte coceira no local afetado. (Extraído do Pequeno Dicionário de Vocábulos e Expressões Cananéias, de Edgar Jaci Teixeira, 2005).


“Saci saperê, cabelo cortado, vestido de godê a noite tá frio tô com vontade de bebê.” Naquela época poderia até não haver as facilidades que hoje temos, mas existia muito respeito entre todos como lembra muito bem Seu Idoro, “Naquele tempo não tinha nada disso, mas tinha respeito” e principalmente existia uma relação harmônica entre pais e filhos. Eles podiam ir trabalhar tranqüilos que suas casas estariam intactas quando eles voltassem, nos dias de hoje eles não podem mais fazer isso com tanta tranqüilidade, o desenvolvimento deixou o modo de vida do bairro melhor, porém modificou muito a cultura deles. Será que mudou para melhor mesmo? Nos dias atuais muitas famílias mantém pequenas hortas em suas residências, apenas para o consumo familiar, pois afirmam que tiveram que sair ou vender suas terras pelas dificuldades que estavam enfrentando, principalmente pelas restrições ambientais. “Eu sou de acordo com o meio ambiente não deixá tirá muito as coisa porque se a pessoa vai lá e pega as muda das coisa, se não daqui um dia não tem mais nada, daqui um dia não existe mais uma ostra, num existe mais um camarão, então tem que tê a época certa pra pegá”. (Seu Idoro)

Horta na residência do Seu Idoro

Acreditamos que certos valores já nascem com a gente, mas outros são aprendidos, adquiridos ou modificados ao longo de nossa jornada pelo mundo. O que não podemos modificar nunca é a nossa cultura caiçara. A sabedoria destas pessoas é a síntese de todo o nosso trabalho, que para muitos não tem tanto valor, mas que para nós e principalmente para eles possuem, é o que existe de mais gratificante em cada ato, em cada gesto, em cada fala desse povo da “terra”. Muitas vezes apresentam pouco estudo, mas são donos de um conhecimento tão vasto que ninguém pode lhes tirar, conhecimento este que teve como principal mestre, a “mãe natureza”. Se para muitos o mais importante é o desenvolvimento, para eles são os recursos naturais e o que podem extrair deles sem afetá-los negativa-

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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mente e a cultura, que é o que irão levar até o fim de suas vidas. Por isso todo esse trabalho, esse empenho e dedicação para que nunca fiquem esquecidos os saberes, costumes e crenças, e para que todos compartilhem juntos a nossa cultura, “a nossa cultura caiçara”. Referências Bibliográficas BRANCO, Alice. Cultura Caiçara resgate de um povo. Oficina do Livro e Cultura. Peruíbe, SP. 2005, página 97.

Alegria e espontaneidade nas antigas brincadeiras de crianças...

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TEIXEIRA, Edgar Jaci. Pequeno Dicionário de Vocábulos e Expressões Cananéias, 2005, 94 páginas.


Bairro Mandira 1

Bianca Cruz Magdalena 2 Bruna Aparecida Silva Franco 3 Thais Cristina de Oliveira 4 Francisco de Sales Coutinho 4 Frederico Mandira “Tendo o mar diante de si, e, para traz, o paredão da cordilheira marítima como que a interceptá-la do Planalto, – inteiramente isolada da civilização e do progresso, – passou a população da marinha como que a viver uma vida inteiramente à parte, conservando as suas lendas e tradições, usos e costumes, oriundos dos tempos coloniais”. (Antonio Paulino de Almeida)

5

quilombolas este bairro rural era uma fazenda do proprietário João José de Andrade, que engravidou uma de suas escravas, concebendo Francisco Vicente Mandira.

A comunidade do Mandira está localizada no continente de Cananéia e seu acesso pode ser feito pela Estrada Itapitangui/Ariri – Km 11. Na encosta da Serra do Mandira e banhado por vastos manguezais que provém o sustento desses remanescentes

1

Cientista Social, docente da Escola Estadual Profa. Yolanda Araújo Silva Paiva e membro do Coletivo Jovem Caiçara. Estudante do 3º ano do ensino médio da Escola Estadual Profa. Yolanda Araújo Silva Paiva e membro do Coletivo Jovem Caiçara. 3 Estudante do 1º ano do ensino médio da Escola Estadual Profa. Dinorah Silva dos Santos e membro do Coletivo Jovem Caiçara. 4 Moradores tradicionais do bairro Mandira entrevistados durante a pesquisa de campo. 2

Imagem satélite 5

O termo especifica a situação dos negros em diferentes regiões e contextos e sua ligação com o sistema escravista brasileiro, nomeia um legado, uma herança cultural e material, que confere um sentimento de pertencer a um lugar e a um grupo social específico.

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Trecho da estrada que liga o Bairro Mandira ao Bairro Itapitangui

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Francisco de Sales Coutinho, chamado por todos de “Chiquinho”, descendente desta família e morador 6 local desde seu nascimento, conta que em 1860 Celestina Vinicius de Andrade, irmã de Francisco Vicente Mandira por parte de pai, doou 1200 alqueires paulistas de terra ao irmão por ir embora do lugar. Francisco Vicente se casou, foi pai de vários filhos, porém, somente João Vicente Mandira e Antonio Vicente Mandira permaneceram no bairro, no entanto, devido a uma briga dos irmãos, a terra foi dividida. João Vicente lutou muito contra o grileiro Cabral que também queria a posse dessas terras até ganhar a causa na justiça e a propriedade ficar para a família, sendo que em 1912 a posse da área foi registrada no cartório de Cananéia em nome da família Mandira e desde então é passada de geração em geração, até os dias atuais, onde residem os moradores desta localidade. A primeira referência sobre o nome Mandira surge nas anotações em um cartório de Cananéia no ano de 1763, pois ocorreu um tremor de terra que fez expelir fumaça do Morro Mandira, conforme relata o documento que trás em suas anotações a frase, em latim, “et mandira fumavit”, numa paródia ao poeta latino Virgílio que escreveu “et vesuvio fumavit”, ao mencionar a explosão do Vulcão Vesúvio, localizado em Nápoles. Segundo Antonio Paulino de Almeida, (2006), no artigo “Memórias Memoráveis”, publicado na Revista do Arquivo Municipal, em 1948, foi no ano de 1784 que este fato ocorreu: 6

Em relação a esta data existem controvérsias, em outra publicação sobre o quilombo, consta a data de 1868 como o ano em que as terras foram doadas a Francisco Vicente Mandira (PIMENTEL, 2005).

“Sai a novidade de um fogo no cabeço do monte ‘Mandira’ (situado a oeste da cidade de Cananéia). O cabeço deste dito monte foi visto, por três dias sucessivos, lançar de si conhecido fumo misto com lavaredas. Causou admiração este novo e estranho acontecimento, porque ponderada a causa daquele incêndio, não se lhe podia atribuir motivo humano, por ser cabeço, que por íngreme e pedregoso, não tinha até então facilitado em si entrada para divertimento de caçadas ou para extração de algum mister necessário ou de pesquisas minerológicas. Não se podia deixar de acreditar ser o dito incêndio acontecimento do mesmo monte, quando de outros também se conta que de contínuo vomitam fogo. ‘Fumavit Mandira semel mons vertice nostrum; noctes atque die fumigat A Etna suo’. (O monte Mandira fumegou uma vez: o Etna fumegou noites e dias no seu vértice)”. Existem indícios de que os negros, que vinham sem sobrenome, procuraram o Salto do Ipiranguinha para se refugiar, um lugar que fica muito perto da Serra do Mandira, nas proximidades do bairro Santa Maria. Os primeiros registros históricos confirmam a presença de escravos, vindos da África, no final do século XVIII. A construção da linha do telégrafo nacional entre Santos e Iguape engrossou a lista de quilombolas; no trecho paulista, em 1868, trabalharam cerca de 800 escravos, mais tarde a linha avançou até o Porto de Paranaguá, no Paraná, e mais trabalhadores fugiram para as matas. A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado, emitir-lhes os respectivos títulos”.

Francisco de Sales Coutinho, o líder comunitário do bairro conhecido como “Chiquinho”, no 5º Encontro das Comunidades Negras do Vale do Ribeira, em maio de 2007

Contando com 21 famílias, atualmente residem no bairro cerca de 100 pessoas, concentradas em três sítios, o Boacica, o Porto do Meio e o Mandira, mas existem outros parentes espalhados por outras regiões do estado de São Paulo. O quilombo, que antes da disputa por suas terras entre os irmãos possuía 2.880 hectares e hoje conta somente com 651,14 hectares foi reconhecido como remanescente de quilombo em 2002, pela Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo “João Gomes da Silva” (ITESP), porém, não recebeu ainda a titulação de suas terras, sendo que a questão quilombola foi assumida como parte dos debates e preocupações da nação somente em 1988, com a Constituição Federal, que institui no seu Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, artigo 68: 66 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Antes o bairro concentrava-se nas proximidades da “Casa de Pedra”, como é chamada pelos moradores uma construção feita pelos escravos há mais 7 de trezentos anos e que usou calcário de sambaquis para edificar suas espessas paredes de rochas. Contam os antigos que lá foi um engenho de arroz e também já serviu como local de combate na Revolução de 8 1932 . Os moradores só se mudaram por causa das terras que existem próximas à Casa de Pedra terem sido vendidas pelos familiares, mas era lá onde todos moravam, trabalhavam, roçavam; salientam também que em tempos passados os escravos abriram uma vala na serra para puxar água de três cachoeiras para virar a roda d’água do moinho deste engenho.

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Estes sítios arqueológicos são muito encontrados nesta região do litoral sul paulista, especialmente na Ilha Comprida; oriundos de ocupações nômades datadas de 10.000 anos atrás são restos de conchas, peixes e até humanos que viveram nesta localidade. A Revolução Constitucionalista de 1932 foi o movimento armado ocorrido no Brasil entre julho e outubro, visando a derrubada do governo provisório de Getúlio Vargas e à instituição de um regime constitucional após a supressão da Constituição de 1891 pela Revolução de 1930. Na primeira metade do século XX, o Estado de São Paulo vivenciou um acelerado processo de industrialização e enriquecimento devido aos lucros da lavoura de café e à articulação da política do café-comleite, pela qual se alternavam na presidência da República políticos dos Estados de São Paulo e de Minas Gerais. Em meio à grave crise econômica devido à Grande Depressão de 1929, que derrubara os preços do café, eclodiu a Revolução de 1930, vindo Getúlio Vargas a assumir o poder, colocando fim à supremacia política das oligarquias paulistas.


A paisagem local já não conserva as mesmas características dos anos passados de escravidão, em que a segunda geração dos Mandira povoava a região.

Casa de Pedra, foto tirada por Cristiano Mateus Cunha, 13 anos idade, através da técnica “Pinhole” (Projeto “O Caiçara se Revela no Município de Cananéia”)

Das casas de pau-a-pique hoje podemos notar moradias de alvenaria, muito simples, mas feitas já com material vindo da Ilha de Cananéia, todas de chão 9 cimentado e caiadas ; da guaricana (Geonoma schottiana) que outrora cobriam os tetos, só vimos telhas de amianto; do fogão a lenha que aquecia o interior das residências e produzia com suas chamas o 10 fumeiro para o a gás, sendo que agora conservam seus alimentos em geladeiras; das prateleiras postas nas paredes para guardar os utensílios domésticos para os usuais armários que temos; dos lampiões de querosene que iluminava as noites para a energia elétrica, que abastece o bairro desde 1982; da agulha que costurava as vestes dos mandiranos para a máquina de costura, fonte de renda das mulheres nos dias atuais. No entanto, apesar de tantas transformações a população ainda guarda seus saberes e valores tradicionais caiçaras; ao ouvir a sapiência de Frederico Mandira, nascido em 1930 e residente no local desde essa data, constatamos que, mesmo depois de tantos anos e mudanças ocorridas, os causos fazem parte do imaginário do povo desse lugar e lembramos de Almeida (2005), que salientava ao pesquisar o típico caiçara: “(...) orgulham-se dos seus feitos e narram suas histórias ao pé do fogo, da mesma forma que afirmam a existência do Saci, do Boitatá, do Lobisomem ou das Almas Penadas”. 9 10

Casa de Pedra

Pintadas com cal. Fogo que esquenta os varais onde são postas as carnes de caça e de peixe para secarem e defumarem, depois de salgadas para não estragarem. Usava-se lenha verde para fazer bastante fumaça e para a mosca não chegar.

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Casa típica do bairro

Lampião a querosene utilizado nos tempos passados junto com o “bodoque”

“A história da onça é assim: quando deu o dilúvi, que encheu, existia um sambaqui ali embaixo, tinha um sambaqui (...) sambaqui é um poco de barro, de concha, de ostra, poco de mexilão, que ele amuntua tudo num lugá só (...) acumula (...) então a pessoa não tinha

68 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

aquilo ali né, quando seco a água pareceu ali, então, quando o pessoar, os escravo, naquele tempo eles trabalhavam, andavam de canoa, eles desceram, fazia a condução deles lá pra fora, leva o arroz, o feijão, pra vendê na cidade, quando chegaram lá embaixo onde tinha um, tem um pau até agora, agora tá, tá acabado, porque a água tá tafando ele, tinha um pau e tava uma onça em cima do toco parado, a água deu, ela foi trepada em cima do pau, o pau encalhou, ela ficou ali, não tinha como sair, quando eles descero ela tava lá, então fico, até hoje todo mundo chama o pau da onça, que tem lá embaixo, agora já tá o cupim, o pau da onça [...]”. (Frederico Mandira)


tainha com lanço de arrasto e dividiam o peixe colhido entre a comunidade. Fruto da ajuda de Marcos Campolim, de Renato Salles, do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas Úmidas Brasileiras (NUPAUB/USP) e do Instituto de Pesca, que cedeu as estruturas de engorda, a Reserva Extrativista através do Projeto de Ordenamento da Exploração de Ostras do Mangue no Estuário de Cananéia é um exemplo de manejo sustentado.

Os novos mandiranos: crianças do bairro Mandira em momento de descontração e brincadeira pelos arredores da praça

A principal fonte de renda da população é a extração de ostras dos manguezais que cortam a região, por isso, em 1997 foi criada a Cooperativa dos Produtos de Ostra de Cananéia (COOPEROSTRA), com o intuito de sair da clandestinidade e das mãos dos vendedores atravessadores, pois antes colhiam ostras e vendiam para firmas particulares. Estando inserida dentro da Reserva Extrativista 11 do Mandira é uma área muito produtiva onde os idosos, nos tempos de juventude, pescavam bagre e 11

Unidade de Conservação de uso sustentável criada em 2002 e gerenciada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), esta categoria de área protegida permite aos moradores tradicionais extraírem de forma sustentável e consciente os produtos que a região lhes oferece, como a ostra, sem prejudicar e desequilibrar o ecossistema manguezal.

Viveiros de ostras da COOPEROSTRA, situados na Reserva Extrativista do Mandira A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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André Murtinho Ribeiro Chaves

Artesanato, foto tirada por Jean Carlos Alves, 13 anos de idade, através da técnica “Pinhole” (Projeto “O Caiçara se Revela no Município de Cananéia”)

Francisco de Sales Coutinho na oficina sobre Economia Solidária realizada durante o Projeto de Formação de Educadores Socioambientais no Município de Cananéia Programa Educação de Chico Mendes em outubro de 2006

Outras atividades econômicas da localidade é a produção, principalmente pelas mulheres, de cestarias de cipó e bijuterias com sementes nativas como o capiá (Coix lacryma.), o olho de cabra (Abrus precatorius), o olho de boi (Anthemis tinctoria), além da cooperativa de corte e costura que confecciona camisetas estampadas com logotipos do Mandira e uniformes para apicultores. Trabalho artesanal este que substituiu a confecção de vários objetos que antes eram feitos pela comunidade, em sua maioria de caxeta (Tabebuia cassinoides), como as canoas, remos, gamelas, colheres de pau e bacias para tomar banho. 70 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Na década de 70, o bairro continha em torno de 200 pessoas que sobreviviam com o cultivo de roças, a retirada de caxeta e de palmito jussara (Euterpe edulis) das matas, porém, devido às restrições ambientais estão proibidos o corte destas plantas, que hoje estão sendo reflorestadas, além da prática da roça de coivara e a caça, desta maneira, a retirada de ostras para venda foi a alternativa encontrada para sobrevivência no início dos anos 80. Antigamente, plantavam arroz, milho, feijão, mandioca12, batata, cará, banana, cana-de-açúcar, 12

Chamada pelos habitantes de “rama”.


sendo que cada família fazia uma roça para que ela cuidasse. Como a terra era de todos, o trabalho era feito em conjunto, denominado ajutório, onde se trabalha durante o dia, a troco do almoço ou jantar feito pelo dono da roça, às vezes só café forte; a diferença entre o ajutório e o mutirão é que no primeiro não há fandango.

garantir formas de renda a todos. Uma de suas maiores conquistas foi a oficialização da COOPEROSTRA, eles a reivindicavam há muito tempo e com essa regularização passaram a trabalhar mais tranqüilos, agregando valor ao principal produto vendido fora da vila, que é comercializado e controlado, exclusivamente, por essa associação.

Quase todos tinham os aparatos do tráfico de mandioca: a roda, o forno, a prensa e o tipiti. Cada pessoa, dentre os mais velhos, tinha seu pé de café na beira do rio do Mandira, café esse adoçado com melado da cana ou garapa. Apesar da simplicidade em que vivem os mandiranos lutam para implantar novos projetos e

Pai de Chico Mandira

Moenda, foto tirada por Fatima Isabel Mateus Cunha, 5 anos de idade, através da técnica “Pinhole” (Projeto “O Caiçara se Revela no Município de Cananéia”)

Outro exemplo de orgulho é o Centro Comunitário; feito por eles próprios com material doado pela Fundação Florestal é o local de encontros, festividades, cursos e reuniões; situado no centro do bairro, ao lado de uma praça que ao entardecer ouve-se a prosa, a sabedoria, a situação da maré que varia conforme a Lua, os risos das crianças e os suspiros, como os nossos, por termos tido o privilégio de ter ao lado pessoas como Frederico Mandira, que relembra com graça a A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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história de seus antepassados, as folias de carnaval, onde se dançava fandango quatro dias e quatro noites na casa de alguém que tivesse a sala grande para acomodar todas as pessoas e o valor que aquela terra com nome de gente tem, sendo que até hoje se escuta a frase: “Se caso alguém der um tapa em um mandirano,

Praça situada no coração do bairro, ao lado do Centro Comunitário

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atinge a todos”, o que demonstra a fraternidade em que estas pessoas vivem e conservam seus saberes caiçaras. Em relação aos seus credos, pode-se perceber a fé que esta comunidade guarda; em sua maioria católica rezam na igreja local o terço cantado onde só os idosos puxam a “reza”, pois não há nenhum


jovem que saiba fazê-lo. João Vicente Mandira Filho era espírita, ao contrário do restante que conserva o catolicismo e a crença no padroeiro Santo Antônio, cujas festas são realizadas todos os anos, no dia 13 de junho, regadas de orações, bailes e comidas típicas

da localidade, como a carne de porco acompanhada de arroz, biju, cuscuz e farinha de mandioca ou o jabacuí, alimento a base de milho seco, torrado e socado no pilão, uma espécie de massa fina que é servida com ostras e café.

Igreja, foto tirada por Silvina Mateus de Castro Cunha, 30 anos de idade, Oratório com a imagem do padroeiro Santo Antônio; segundo relato de através da técnica “Pinhole” (Projeto “O Caiçara se Revela no Município de Francisco de Sales Coutinho esta peça existe há mais de trezentos anos, Cananéia”) desde o tempo dos escravos que habitavam a região

Igreja do Bairro Mandira onde são realizadas orações e terços cantados Santo Antonio, foto tirada por Irene Candida Mandira Coutinho através da pelos moradores mais antigos da comunidade técnica “Pinhole” (Projeto “O Caiçara se Revela no Município de Cananéia”)

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Permeado por lendas escutam-se ainda no Mandira as histórias das traquinagens e assobios do 13 Saci , ser da mata com uma perna só que existia muito mais antigamente do que hoje, pois já se misturou com as pessoas de agora e que apesar da bagunça que aprontava e das peças que pregava, ao esconder os objetos da casa, mexer nas panelas, não metia medo, ao contrário das bruxas que sobrevoavam o céu grunhindo “cricó, cricó, cricó”, na tentativa de capturar os bebês que acabavam de nascer, por isso tinham que deixar o lampião aceso por sete dias, além de uma tesoura aberta na cabeceira da cama, como proteção. Além de sacis que andavam sob as águas, bruxas que nas noites de sexta-feira amedrontavam os moradores voando em suas vassouras encantadas tinham também os lobisomens, o sétimo filho de uma mãe que havia tido somente meninas antes dele, que nas noites de Lua Cheia metamorfoseava-se num enorme cachorro que revirava os restos de comida nos lixos e que não podia ser “desencantado”, pois essa era a sina dele; Seu Frederico conta que um sujeito tentou “desencantar” seu amigo que se transformava em lobisomem e depois do ato levou um tiro de espingarda deste. Scarpin, (2006), relata a presença destas aparições no imaginário religioso do bairro São Paulo “Ba-

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Câmara Cascudo salienta a origem tupi-guarani desta entidade; proveniente do sul brasileiro o mito se espalhou até o norte, acompanhando as migrações tupis, da ave original incorporou outras características até chegar ao ser de uma só perna, com cachimbo na boca e gorro vermelho, que azucrina as mulheres na cozinha, trança a crina dos cavalos e assobia longe quando está perto e perto quando está longe, só para confundir os indivíduos.

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gre”, outra comunidade rural da Ilha de Cananéia, em que estas entidades representam os espíritos que rondam os espaços e convivem com os moradores dessas e outras localidades. Segundo suas análises: “Essas entidades míticas fluidas e, de certa forma ambíguas, poderiam ser vistas como signos de uma angústia difusa que permeia toda essa sociedade. Presente na mente dos indivíduos elas seriam a cristalização de seus próprios medos. Apenas os signos cristãos, quando usados em forma de conjuração, têm suficiente poder sobre essas forças misteriosas. Só pessoas especializadas conhecem as fórmulas e sabem como utilizá-las”. (SCARPIN, 2006, p. 282) No passado, tratavam seus males com plantas retiradas da mata, das quais faziam chás, como o de canela (Cinnamomum zeylanicum) para a menstruação 14 descer; emplastros , como o de santa-maria (Chenopodium ambrosioides), em que a erva é socada, esquentada e adicionada a sal e vinagre, para ser colocada em cima do ferimento; os machucados eram tratados com moela da ave macuco (Tinamus solitarius), matase o macuco, tira sua moela sem limpar, seca, põe no vinho e vai tomando até o machucado melhorar; as fraturas curadas com talas de embaúba vermelha (Cecropia glaziovii) lascada, da onde se extraíam também o linho para fazer corda e esteiras, enquanto seu broto servia para tosse comprida e pressão alta; para hemorragias femininas ninho de marimbondo fervido; abortos, borra de café com vinho; dor de dente e inchaço usava-se cipó abuta (Cissampelos pareira). 14

Medicamento que amolece ao calor e adere ao corpo.


Tradição também no bairro era dar um tiro de espingarda quando nascia um menino, para a criança ser um bom caçador. Das brincadeiras era costume pular amarelinha, brincar de roda, corda, escondeesconde, pega-pega, peteca (feita de palha de milho com pena de ave), bolinha de gude, bola, boneca e pião (feito com pau de laranjeira), além das armadilhas para apanhar pequenas aves como o baiá, esti15 lingue, bodoque .

Nos dias de hoje, as crianças, quase todas alfabetizadas, estudam da 1ª à 4ª série do ensino fundamental na Escola Estadual do Bairro Mandira e vão até o bairro Porto Cubatão para estudar da 5ª série até o 3º ano do ensino médio na Escola Estadual do Bairro Cubatão. Segundo relato de Chiquinho, expresso durante nossas visitas ao bairro, com sorriso nos lábios e brilho nos olhos:

Nascidos no bairro e residentes desde então, o casal Maria Matheus Mandira e Frederico Mandira revelam na simplicidade de seus gestos e olhares o mandirano que luta resignado por seus ideais

Paisagem local do bairro, ao fundo se vê a Serra do Mandira

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Segundo Luís da Câmara Cascudo, em Antologia do Folclore Brasileiro, do árabe bondok, bodoque são pequenos arcos feitos de madeira com duas cordas separadas por duas pecinhas de madeira; no meio as cordas se unem por intermédio de uma espécie de malha, onde se coloca a bola de barro ou uma pequena pedra redonda que se queira arremessar.

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“[...] o caiçara ele é da beira-mar memo, tem uma tradição já, tem um contato direto com a natureza, ele vive da natureza assim, tira sustento daquilo lá, dorme até na beira do mar, trabalha ali, então é uma coisa diferente pra nóis. Tenho orgulho de ser caiçara, orgulho de ser quilombola, mandirano, muito mais mandirano ainda viu (risos), com certeza. Aqui o que diferencia é um poco da organização e da união, um poco da união da família, aqui, graças a Deus, todo mundo um respeita o outro, isso é coisa já que vem, né, de nossos antepassado e mudou um poco, poquito só assim, mas ainda continua, se não tive união num vai, as coisa num acontece, né”. Referências Bibliográficas ALMEIDA, Antonio Paulino de. Usos e Costumes Praianos. IN: DIEGUES, Antonio Carlos (organizador). Enciclopédia Caiçara – Volume IV – História e Memória Caiçara. SP: Editora HUCITEC/NUPAUB/CEC/USP, 2005, p. 47-60. _________. Relatos e Lendas de Cananéia: “Memórias Memoráveis”. IN: DIEGUES, Antonio Carlos (organizador). Enciclopédia Caiçara – Volume V – Festas, Lendas e Mitos Caiçaras. SP: Editora HUCITEC/ NUPAUB/CEC/USP, 2006, p. 303-310. ANDRADE, Tânia; PEREIRA, Carlos Alberto Claro e ANDRADE, Marcia Regina de Oliveira (editores). Negros do Ribeira: reconhecimento étnico e con-

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quista do território. São Paulo: Páginas & Letras – Editora Gráfica, 2000. CASCUDO, Luís da Câmara. O Bodoque. IN: Antologia do Folclore Brasileiro. SP: Global, 2001, p. 79-81. GOMES, Selma Aparecida. Mandira. IN: Estudo de Etnobotânica em dois bairros do município de Cananéia/SP. TCC – UNESP, Rio Claro, 1995, p. 23-26. MALDONADO, Wanda Terezinha Passos de Vasconcellos. Mandira: nome de terra, nome de gente. IN: DIEGUES, Antonio Carlos (organizador). Enciclopédia Caiçara – Volume IV – História e Memória Caiçara. São Paulo: Editora HUCITEC/NUPAUB/ CEC, 2005, p. 357-369. MONTEIRO, Vandré Geraldo. Análise do Potencial para o Desenvolvimento Sustentável dos Participantes de uma Cooperativa de Produtores de Ostras em Cananéia/SP. TCC – UNESP, Rio Claro, 2005, 59 páginas. PIMENTEL, Alexandre; GRAMANI, Daniella e CORRÊA, Joana (organizadores). Cananéia. IN: Museu Vivo do Fandango. Rio de Janeiro: Associação Cultural Caburé, 2006, p. 136-167. SCARPIN, Elza. São Paulo “Bagre” – O imaginário religioso num bairro rural de Cananéia, litoral paulista. IN: DIEGUES, Antonio Carlos. Enciclopédia Caiçara – Volume V – Festas, Lendas e Mitos Caiçaras. SP: Editora HUCITEC/NUPAUB/CEC/USP, 2006, p. 271-302.


Bairro Santa Maria 1

Bianca Cruz Magdalena 2 Bruna Aparecida Silva Franco 3 Thais Cristina de Oliveira 4 Ernesto Scharmann 4 Carlos França

Paisagem do bairro 1 2 3 4

Cientista Social, docente da Escola Estadual Profa. Yolanda Araújo Silva Paiva e membro do Coletivo Jovem Caiçara. Estudante do 3º ano do ensino médio da Escola Estadual Profa. Yolanda Araújo Silva Paiva e membro do Coletivo Jovem Caiçara. Estudante do 1º ano do ensino médio da Escola Estadual Profa. Dinorah Silva dos Santos e membro do Coletivo Jovem Caiçara. Moradores tradicionais do bairro Santa Maria entrevistados durante a pesquisa de campo.

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interior, sendo que ainda guarda os saberes tradicionais dos sítios memoráveis dos antigos europeus que lá chegaram, no século XIX, por volta de 1820. Sua história remete-se a três famílias imigrantes: os França, os Scharmann e os Klimke.

Casa caiçara

A família França é a primeira a ocupar tais terras, vindos da França; Carlos França, mais conhecido como “Carlinhos”, nascido no bairro em 1954, conta que seu bisavô Lino da Silva França comprou o título, em 1860, de um sítio na localidade onde existia um engenho de arroz. Somente por volta do início do século XX a família Scharmann, cujo patriarca era Ricardo Scharmann, proveniente da Alemanha, vêm para o Brasil, como refugiados da Primeira Guerra Mundial, que assolava o Ocidente.

“[...] eu acho que todas as pessoas que moram aqui ele é feliz no bairro, porque o bairro que nós temo aqui tudo é da terra, no caso, e a gente, nós, temo uma beleza aqui, cachoera, mato, tudo o que é de bom nós temo aqui, no caso a gente vive uma vida que é uma beleza”. (Carlos França) O bairro continental Santa Maria localizado a 68 km da Ilha de Cananéia, vizinho do bairro Taquari, faz divisa com o estado do Paraná, cerca de 6 km do bairro rural Batuva, pertencente ao município de Guaraqueçaba. É um local de difícil acesso, sua estrada não asfaltada e esburacada, que tem como panorama a Serra do Gigante, antigamente era caminho para tropeiros e desbravadores dessas terras do 78 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Imagem de satélite


No início da ocupação os alemães moravam próximos ao Salto do Ipiranguinha, na década de 20 cerca de 33 famílias habitaram o local e fundaram a Colônia Agrícola de Santa Maria, onde já existiam engenhos de arroz, que era a base da economia e subsistência dos moradores, e alambiques de aguardente, sendo que a fazenda era conhecida como Fazenda Rio Branco Júlio Klimke.

Eixo (Alemanha, Itália e Japão) foram proibidos de habitar o litoral; fato confirmado através do relato de Manoel Grub, nascido na localidade e neto do alemão Karl Grub, que em 1927 habitava as terras da região. A família Klimke, também alemã, possuía um alambique de pinga e uma fábrica de tijolos, dado a abundante quantidade de argila existente na propriedade, sendo que, primeiramente, eram com os próprios pés que os trabalhadores amassavam a mistura de barro com areia, relembra Ernesto Scharmann, só depois é que construíram uma pipa, ou moinho, puxado por animais, para produzir o material que trazia impresso as seguintes letras JKFRB, que significava Júlio Klimke Fazenda Rio Branco. Outro ocorrido, narrado por “Ernestinho”, como também é chamado, era a confecção de telhas que usavam como moldes as coxas dos empregados, antes de criarem uma fôrma para tal.

Moradia da família Scharmann

Segundo Mourão (2003), a Colônia Agrícola de Santa Maria foi criada, precisamente, em 1915; o governo alemão até prestou auxílio a ela, enviando um engenheiro agrônomo para a localidade, porém, suas terras foram abandonadas devido a dificuldades para comercialização dos produtos, o que se agravou com a Segunda Guerra Mundial, onde a colônia sofreu seu maior revés, uma vez que os cidadãos das nações do

Tijolo fabricado na Fábrica Rio Branco, com as impressões JKFRB A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Ainda hoje, além do cemitério onde eram enterrados os “finados”, existe a casa sede, mesmo desocupada e abandonada, onde residiam os Klimke; sua construção de alvenaria com arcos na varanda utilizou como reboco a mistura de cal de ostras, barro, estrume de cavalos e cinzas, sendo que difere das outras casas de madeira típicas do bairro e aponta o poderio econômico dessa geração.

Antiga residência da família Klimke Cemitério

No entanto, outro fato deve ser salientado, a presença de escravos que eram trocados até por mercadorias, especialmente para a instalação dos postes 5 telegráficos da linha do telégrafo nacional entre Santos e Iguape, inaugurada em 1871, usados para transmitir mensagens em Código Morse atendendo às necessidades militares da Guerra do Paraguai. 5

O telégrafo elétrico é introduzido no Brasil em 1852, sob a direção do Barão de Capanema que inaugura a instalação do aparelho que ligava a Quinta Imperial ao Quartel do Campo de Santana, no Rio de Janeiro.

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A Trilha do Telégrafo ou Caminho do Imperador, como também é chamada, servia para passagem de informações entre o Império e outras regiões do Brasil e foi percorrida por portugueses no período da colonização, devido à procura de ouro. Conectava São Vicente a vila de São João Batista de Cananéia e era responsável também pelo transporte de mercadorias entre Iguape, Santos e todo o litoral norte paulista no trecho do bairro.


Patrícia Dunker

Vestígios dos centenários postes telegráficos ainda são encontrados na extensão da Trilha do Telégrafo

Trilha do Telégrafo

Outras famílias fundadoras do bairro são os Grub, os Paiva e os Almeida, além daquelas que são remanescentes de quilombo como os Pedro, os Garcia, os Paula, os Fundador e os Amaro. Na década de 80 muitas pessoas deixaram as terras de Santa Maria por disputas com grileiros que ameaçavam os moradores, muitas brigas existiram por

esse motivo; Doutor Manoel da Silva e Lisboa foram duas dessas pessoas que importunaram o cotidiano da população, mas como disse Carlinhos: “O medo faz você criar coragem!”, dessa forma, uma parcela lutou bravamente pelo que lhe era de direito, visto que as propriedades eram conquistadas mediante titulação, assim, através da Superintendência de Desenvolvimento do A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Litoral Paulista (SUDELPA) conseguiram a legalização fundiária merecida. Atualmente abriga 53 famílias, tendo 214 moradores que ainda conservam o modo de vida dos seus antepassados; a maioria da população vive em residências de madeira ausentes de energia elétrica, que chega até o perímetro da escola, aquecidas por fogões à lenha cuja piúna, fumaça exalada da queima das toras, aumenta a durabilidade e resistência dos tetos.

fundamental, ciclo I, esteve pronta em novembro de 1992, substituindo a antiga construção em madeira, na mesma localidade, porém foi inaugurada sem poço artesiano e iluminação, nas terras da família Klimke. A partir da 5ª série os alunos vão para a Escola Estadual do Bairro Cubatão saindo às 10 horas da manhã e retornando às 8 da noite, o que antigamente não acontecia, Ernestinho, por exemplo, estudou até a 1ª série do ensino fundamental na Ilha de Cananéia, no Grupo Escolar Martim Afonso de Sousa, que atendia até a 4ª série, onde hoje funciona o Departamento de Obras do município e já foi a antiga sede da Prefeitura Municipal da Estância de Cananéia.

Fogo de chão, foto tirada por Irineu da Silva Lopes, 12 anos de idade, através da técnica “Pinhole” (Projeto “O Caiçara se Revela no Município de Cananéia”)

A Escola Estadual do Bairro Santa Maria, pertencente à Diretoria de Ensino de Registro, onde 21 crianças entre sete a onze anos estudam numa única sala, multisseriada, de 1ª a 4ª série do ensino 82 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Alunos da Escola Estadual do Bairro Santa Maria com a professora Maria de Lourdes de Souza


A quantidade de lixo no bairro é pouca, sendo os restos orgânicos usados como adubo nas hortas e pequenas plantações; o restante, caso possa, é incinerado, pois não há coleta seletiva nos arredores do bairro.

Elisângela Fundador Scharmann

Abastecidas pelo Rio Taquari, as moradias 6 apresentam fossas sépticas , devido a ausência de saneamento ambiental, mas já começaram a constru7 ção dos sanitários secos compostáveis , como no Centro Comunitário do bairro e no bar “Batidão”, ponto de encontro das pessoas e local de forrós e festividades, porém o tradicional fandango é ouvido somente em cd´s, pois os tocadores da característica música e dança caiçara, tão reverenciadas nos mutirões dos anos passados, não estão organizados, outros como Lino Xavier, tio materno de Carlinhos, também construtor de instrumentos como violas, machetes, rabecas e cavaquinhos, mudou-se para a Ilha de Cananéia, assim, escutar as diversas modas, como a Chamarrita, o Anu, a Tonta, o Queromana, só pelo aparelho eletrônico mesmo. A agricultura ainda se destaca como forma de subsistência da população, porém o que mudou foi a liberdade que se tinha antigamente para cultivar nas 6

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Suelen dos Santos Scharmann no interior da típica casa caiçara; detalhe para o peixe e a lingüiça que estão sendo defumados no fogão a lenha, tradicional ainda nas residências até os dias de hoje

Unidades de tratamento de esgoto doméstico nas quais são feitas a separação e a transformação físico-química da matéria sólida contida no esgoto. É uma maneira simples e barata de disposição dos esgotos indicada, sobretudo, para a zona rural, todavia, o tratamento não é completo como numa Estação de Tratamento de Esgotos. Também conhecidos como bason, este tipo de banheiro ecológico dispensa rede de esgoto e é de baixo impacto ambiental, usando a reciclagem como fonte de materiais substitui o tradicional vaso sanitário, onde inclusive devem-se jogar os restos orgânicos domésticos, todo esse material sofre o processo biológico da compostagem aeróbica e se transforma em adubo.

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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propriedades. As leis ambientais, indiscutivelmente, são consideradas entraves, responsáveis pelo atraso do bairro, pois não se pode plantar em qualquer área, tampouco praticar a coivara, o legado indígena de cultivo do solo, onde se queima o local a ser plantado para realizar a adubação. Autorizados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e pelo Departamento Estadual de Proteção de Recursos Naturais (DEPRN), Carlinhos salienta que conseguiram, nos dias atuais, 84 licenças para roça onde plantam, sem o uso de agrotóxicos, feijão, arroz, mandioca, chamada pelos nativos de “rama”, café, inhame, milho e uma variedade de frutas, como laranja, limão, tangerina, goiaba, jabuticaba, banana.

Plantador de arroz, foto tirada por Ivan Paiva França, 7 anos de idade, através da técnica “Pinhole” (Projeto “O Caiçara se Revela no Município de Cananéia”)

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Além disso, para consumo próprio criam galinhas soltas pelos quintais, pescam nos rios de água doce que cortam a região, retiram ostras dos manguezais próximos e produzem nas casas de farinha a farinha de mandioca, alimento singular na mesa caiçara. Antigamente, existia mais fartura de produtos agrícolas provenientes de Santa Maria; na década de 50, por exemplo, as propriedades exportavam arroz para Santos, além de abastecer a Ilha de Cananéia, sendo o Rio Taquari o principal meio pelo qual navegavam as canoas que levavam os produtos, isso porque a estrada era péssima e até hoje é uma preocupação da população que vive nesses bairros continentais, porém, Ernestinho informa que existe um projeto do Parque Estadual de Jacupiranga, criado em 1969, para manutenção desta, o que facilitaria a venda das mercadorias locais. Nesta época em que a atividade primordial era a agricultura eles tinham o direito de plantar em qualquer área, de desmatar para cultivar, assim, deixavam 50% da mata intacta e os outros 50% era desmatado, através dos mutirões de derrubada e roçada, desta forma, colhiam 400 alqueires de arroz, em média, sendo que hoje não passam dos 50; também tinham 30 mil pés de banana maçã (Musa sapientum) contra 5 mil nos dias atuais que servem apenas para cobrir as despesas domésticas e caso não cumpram estas restrições “os homi cai com a caneta e a gente é processado, multado”, retruca Ernestinho; Carlinhos salienta ainda que “se hoje fosse naquela época uma hora dessa você tava vendo em cada canto desse aí uma roça de arroz, vocês andaram o dia inteiro hoje e vocês não viram uma roça de arroz”.


Família Lisboa da Veiga

Foto do Porto Bacharel com sacas de arroz

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realizar nos dias de hoje; tudo o que era usado, como 8 9 o remo, a canoa, a gamela , o tipití , a pá, a pia, a peneira, o pilão, o cesto, o balaio, entre outros artefatos, era feito de forma artesanal e trocado, barganhado, através dos “rolos” entre os membros da comunidade.

Pilão de socar arroz

Além de agricultores, os moradores de Santa Maria produziam desde a vassoura que utilizavam até suas casas, tradição esta que só os idosos sabem 86 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Rebolo: objeto centenário que servia de amolador para os machados e facões

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Vasilha larga, pouco funda, feita do tronco ou raiz da gameleira (Ficus doliaria). Cesto feito de taquara onde se põe a massa da mandioca ralada a fim de espremê-la na prensa.


“Forçado pelo meio em que vive, praiano é o homem que toca todos os instrumentos, como vulgarmente se diz, pois a necessidade de fazer a própria canoa, transformou-o no hábil carpinteiro na ribeira, mestre de construções navais, levando-o a realizar todos os trabalhos concernentes à arte, como a casa em que mora, o ‘tráfico’, para a farinha, artigos de cerâmica, tecimento de palhas para coberturas, esteiras de peri, violas e até violinos, caixas delicadas e uma infinidade de objetos de uso doméstico”. (ALMEIDA, 2005, p.51)

que ali residem; os valores e saberes tradicionais caiçaras ainda continuam conservados nas mãos que produzem o artesanato e nos olhares singelos e cheios de simpatia dessa “gente de sítio” que confirma, nas palavras de Carlinhos, que “aquilo que a gente aprendeu, a gente tem que tentar passar pro outro” e nos remete aquela letra de Zé Rodrix e Tavito que dizia: “Eu quero uma casa no campo / onde eu possa ficar no tamanho da paz (...) / Eu quero plantar e colher com a mão / a pimenta e o sal / Eu quero uma casa no campo / do tamanho ideal, pau-a-pique e sapé / Onde eu possa plantar meus amigos / meus discos e livros / e nada mais”.

Fato esse comprovado ao visitarmos o bairro durante a coleta de dados para esta pesquisa; assim que chegamos a Santa Maria já nos deparamos com Maria Patrícia Godoy Scharmann, chamada por todos de “Nezinha”, esposa de Ernestinho, carregando, em seu ombro, um tronco de árvore que acabara de extrair da mata, a fim de produzir lenha para iniciar os preparativos do almoço; enquanto isso, Ernestinho confeccionava uma “barrigueira”, utilizada para carregar mercadorias que serve como um arreio ou sela para o cavalo, feita de saco de ráfia, um tipo de material plástico que preenchido com palha e posto no dorso do animal equilibra o peso dos produtos que serão carregados, especialmente quando realizam viagens para Guaraqueçaba, onde fazem algumas compras, pois a cidade paranaense que faz divisa com o bairro é mais próxima do que eles irem até a Ilha de Cananéia.

Mesmo com tanta riqueza cultural e atrativos ecológicos para serem apreciados, o turismo na região é considerado fraco, apesar de existirem projetos voltados para essa iniciativa e a localidade estar inserida num circuito de turismo rural, que engloba propriedades rurais dos bairros continentais de Cananéia.

Percebemos a simplicidade e a humildade a partir destes pequenos atos observados nas pessoas

Em relação às festas, a dança de São Gonçalo era um dos ritos agrários realizados após os mutirões de colheita de arroz, como tinha muito arroz para colher, eram feitos esses “mutirões” em troca de alimentação e festividade, onde as mulheres ajudavam desde a colheita até a preparação das comidas típicas da localidade, como o peixe seco, defumado em cima dos fogões a lenha, servido com banana, farinha de 10 mandioca e biju , acompanhados de caipirinha de pinga com mel, tudo direto das terras de Santa Maria. 10

Também chamado de beiju, este alimento é uma espécie de biscoito feito de farinha de mandioca.

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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preocupação ao construírem suas salas no interior das casas, pois é o local de acomodação das folias e da hospitalidade, característica dos caiçaras, desta maneira, mediam, em média, de 6 metros de largura por 8 de comprimento. Em agradecimento ao santo, por não ter chovido durante a colheita, prometiam que a primeira moda do baile seria o São Gonçalo, dançada do jeito que viessem da roça, sendo que as mulheres eram quem convidavam os homens, com buquês de flores, para dançarem diante de uma mesa onde era posta a imagem do santo violeiro e casamenteiro, que na falta era representado pelas próprias flores. Scarpin (2006), evidencia este fato ao analisar o imaginário religioso do bairro São Paulo “Bagre”, no Volume V da Enciclopédia Caiçara sobre festas, lendas e mitos, organizada por Antônio Carlos Diegues. Através do relato de um morador local confirma:

Etelvina Porfilho de Almeida

Conforme Almeida (2005), não existia derrubada, plantação ou colheita, sem a diversão que rompia só com o nascer do sol. Ernestinho, ao contar sobre as festividades confirma o que Antônio Paulino de Almeida discorre em “Usos e Costumes Praianos”, de 1945, que afirma que os indivíduos têm uma certa 88 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

“[...] meu São Gonçalo, fazei que não chova no dia do meu sirviço, que a primera moda é vossa aí, de noite. Intão tinha gente que tinha memo im casa o São Gonçalo mesmo, qui é um santo cu’a viola e otros que não tinham punha um buquê de frô e aí o violero cantava. [...] Acho que já fico coisa di princípio, né, que a pessoa faiz promessa pra não chovê... Depos que dançáva o São Gonçalo intão tudo mundo ia tomá seu banho, seu café. Du jeito que o pessoar vinha da roça, tudo sujo, tinha que dançá o São Gonçalo premero”. A Folia do Divino Espírito Santo, também conhecida como “Romaria do Divino” ou “Bandeira”, de


Atualmente, realizam orações com terços nas moradias, de maioria católicas, já que a igreja existente caiu e suas sobras foram desmanchadas para ser reconstruída; um fato inusitado é que existe uma moradora considerada padroeira do bairro, Dona Maria das Dores Paiva Pedro. Ao escutar os causos, o conhecimento era passado de pai para filho; a lenda da cigana de sete saias que dançava e rodopiava em volta da centenária figueira (Fícus spp.) era ouvida em momentos domésticos como neste em que Carlinhos nos conta: “[...] eu mesmo ia pra casa do meu avô, chegava lá, ele tinha um fogão grande, a gente juntava cinco, seis, oito neto, né, 11 e brincava um poco, aloitava um poco, brincava um poco e depois escutava história [...] aloitava era pra ver qual era o camarada mais forte”. 11

Aloitá(r): lidar com; estar ao encontro com. (Extraído do Pequeno Dicionário de Vocábulos e Expressões Cananéias, de Edgar Jaci Teixeira, 2005).

Projeto de Formação de Educadores Socioambientais no Município de Cananéia - Programa Educação de Chico Mendes

origem portuguesa, era uma tradição realizada todo ano, iniciando-se na última semana de abril ia até o final de junho, antes das comemorações na sede do município, no primeiro domingo do mês de julho. As atividades do cortejo têm início com a saída das bandeiras da Igreja Matriz de São João Batista de Cananéia para todos os bairros, desde a zona urbana, com rezas, cantos e ladainhas nas casas dos fiéis até se embrenharem pelos sítios com a bandeira e seus músicos.

Figueira existente no bairro Santa Maria, onde a cigana de sete saias dança todas as noites, segundo a lenda local

Tanto Ernestinho quanto Carlinhos informam que o modo como brincavam e se alegravam pelas propriedades rurais era bem diferente das crianças de hoje; antigamente, se divertiam com piões, carrinhos, casinhas feitas de sabugo de milho e canoas que escorregavam em barrancos de terra. Quanto aos casamentos, uns eram oficializados; outros não, o que ainda acaba acontecendo; as diferenças entre os gêneros não existem, as mulheres realizam o mesmo trabalho dos homens, desde mexer com a terra até tirar lenha da mata. Os partos, antes, eram feitos no bairro, por parteiras e também parteiros, o pai de Ernestinho, Ricardo Scharmann, fez seu parto, em 1945, e de outros seis irmãos seus; atualmente, mesmo tendo uma Unidade Básica de Saúde A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Patrícia Dunker

(UBS) e um médico contratado pela prefeitura do município, que visita duas vezes ao mês o bairro, os nascimentos, assim como problemas mais graves, são feitos em Pariquera-Açu, no Hospital Regional do Vale do Ribeira (HRVR). Os informantes da entrevista dizem que as pessoas viviam mais, a tia de Ernestinho, por exemplo, Dona “Mariquinha”, faleceu com 113 anos ainda lúcida, porém, doenças como diabetes e pressão alta preocupam os idosos que usam das plantas medicinais suas qualidades fitoterápicas preparando chás das ervas locais: para cólica misturam pixilim com noz 12 moscada (Myristica fragrans), aquecido de água; pro13 blema nos rins toma-se chá de quebra-pedra (Phy14 llanthus niruri) com parietária (Parietaria officinalis) 15 ou fervem-se com água as folhas do abacateiro (Persea americana); para desnutrição, folhas de mandioca (Manihot esculenta) trituradas; gripes e resfriados, mel silvestre da localidade com extrato de própolis, aquecido com canela e gengibre, além de utilizarem a carqueja (Baccharis trimera) como diurético. 12

Utilizada ao longo dos tempos, sobretudo em culinária, esta especiaria oriunda da Indonésia também possuí características terapêuticas, é estimulante, adstringente, auxilia nos problemas genitais femininos, como leucorréias e em reumatismos. 13 Usada pela medicina popular no tratamento de cálculo renal, esta erva não funciona exatamente quebrando as pedras nos rins, na verdade evita que os cálculos se formem e relaxa o sistema urinário, o que ajuda a expeli-los. 14 Chamada também de alfavaca-de-cobra, esta planta com propriedades diuréticas também é empregada contra as moléstias inflamatórias das vias urinárias. 15 O chá também combate artrite, mal da gota, cálculos renais, dores e problemas de reumatismos, bem como gases intestinais. Comer o fruto adoçado com mel é ótimo para rejuvenescimento da pele e elimina manchas brancas. O abacate também é ótimo para inflamação dos dedos, doenças dos rins, debilidade do estômago e afecções da garganta.

90 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Enedina França Scharmann, mãe de Ernestinho, que com 84 anos conserva a vivacidade e a sapiência caiçara

Apesar de algumas adversidades em relação ao conforto que a vida contemporânea nos possibilita, os primos Ernestinho e Carlinhos têm orgulho de serem caiçaras, de terem seus sítios e de viverem de uma forma simples e humilde, tendo criado filhos e netos em Santa Maria, de onde não querem nunca sair.


Ernesto Scharmann e Carlos França

A história oral como método de pesquisa tem permitido elucidar como vivem certas populações tradicionais, como os caiçaras e seu modo de vida. Estes saberes da oralidade permeiam a memória dos idosos e estão contidos nos relatos e testemunhos que somados, compilam-se numa memória coletiva arquivada, transmitida de geração em geração. “O finado Pedro Egílio, ele era cunhado do finado veio Henrique, né, que é finado meu avô, ele era casado com a irmã dele, a Julia França, aí ele chego e disse que foram pesca de linha, no mar, aí falaram que tinha muita jamanta de primeiro, que pegava na linha e na poita da canoa e levava pro mar, lá fora, pra virar a canoa pra pegar o sujeito, né, aí o finado meu avô, veio Henrique, andava com uma garrucha, carregava pela boca,

aí o finado Pedro Egílio, muito marvado, ele disse assim: ‘Henrique, você leva essa tar garrucha pra nóis hoje dá um tiro na jamanta, que a jamanta vai pega na poita da canoa e vai carrega lá pra fora, e nóis somo capaz de vira a canoa, e pega nóis’ (...) ela tem dois chifre assim em cima, tipo uma arraia, aí ele pegou e disse que levou (...) começaram a pescar, daqui um poco pescaram, pescaram, mataram um poco de pexe, daqui um poco puxaram a poita, um pisco pro outro, pra fazê sacanagem, ‘Tá na hora’, como disse, ‘Agora’, puxo a poita, começo a fazê pra lá e pra cá, ‘Henrique, o bicho pego na poita, prepara a garrucha pra atira nele’ (...) ‘Pô dexa que eu vô atira!’ (...) daqui a poco armo a garrucha e diz que começo a aparece o vermelhão do barro, da lama, no mar. Chegaram em terra, disse assim: ‘Henrique, você mato a jamanta?’ (...) ‘Matei a jamanta’ (...) fez nada, fez um rombo na pedra chumbada (muitos risos). Acabaram com a vida dele, um cunhado aprontou com outro cunhado esse tipo de safadeza, né (...) ‘O vô é verdade que você atiro uma pedra?’ (...) ‘Veio mentiroso o finado Pedro Egílio’ ”. Com os olhos cheios d’água, ouvimos e apreciamos o falar desse povo sorridente nas vozes de Ernesto Scharmann, 62 anos, casado e pai de sete filhos e Carlos França, 53 anos, também casado e pai de cinco filhos, a eles agradecemos pelo tempo dispensado, pela atenção com que nos receberam e pelo café fresquinho que nos foi servido, produzido ali mesmo, nas terras de Santa Maria. A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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________. Cultura e meio-ambiente na região estuarina de Iguape-Cananéia-Paranaguá. IN: PIMENTEL, Alexandre; GRAMANI, Daniella e CORRÊA, Joana (organizadores). Museu Vivo do Fandango. Rio de Janeiro: Associação Cultural Caburé, 2006, pág. 12-19. MOREIRA, Ildeu de Castro e SILVA, Mauro Costa. Capanema: um professor de Física cria a Telegrafia Elétrica no Brasil. IN: Física na Escola, Volume 2, nº 2, 2001, pág. 31.

Casa caiçara

Referências Bibliográficas ALMEIDA, Antonio Paulino de. Usos e Costumes Praianos. IN: DIEGUES, Antonio Carlos (organizador). Enciclopédia Caiçara – Volume IV – História e Memória Caiçara. SP: Editora HUCITEC/NUPAUB/CEC/USP, 2005, p. 47-60. DIEGUES, Antonio Carlos. História e Memória Caiçara. IN: DIEGUES, Antonio Carlos (organizador). Enciclopédia Caiçara – Volume IV – História e Memória Caiçara. SP: Editora HUCITEC/NUPAUB/ CEC/USP, 2005, pág. 29-44.

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MOURÃO, Fernando A. Albuquerque. Os pescadores do Litoral Sul de São Paulo: um estudo de Sociologia diferencial. São Paulo: Editora HUCITEC/NUPAUB/CEC/USP, 2003, pág. 46. PIMENTEL, Alexandre, GRAMANI, Daniella e CORRÊA, Joana (organizadores). Cananéia. IN: Museu Vivo do Fandango. Rio de Janeiro: Associação Cultural Caburé, 2006, pág. 136-167. SCARPIN, Elza. São Paulo “Bagre”: o imaginário religioso num bairro rural de Cananéia, litoral paulista. IN: DIEGUES, Antonio Carlos (organizador). Enciclopédia Caiçara – Volume 5 – Festas, Lendas e Mitos Caiçaras. SP: Editora HUCITEC/NUPAUB/ CEC/USP, 2006, pág. 271-302. TEIXEIRA, Edgar Jaci. Pequeno Dicionário de Vocábulos e Expressões Cananéias, 2005. 94 páginas.


Bairro do Ariri 1

Aldrin Klimke 1 William Cunha Gonçalves 2 Enedina da Costa Barbosa 2 José Coelho 2 Quirino Ermes Coelho

1

2

Estudantes da 8ª série do ensino fundamental e 2º ano do ensino médio da Escola Estadual Profa. Yolanda Araújo Silva Paiva, respectivamente e membros do Coletivo Jovem Caiçara. Moradores tradicionais da comunidade do Ariri entrevistados durante a pesquisa de campo.

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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“No começo [...] vamos dizer do Brasil [...] era uma cultura que não destruía a natureza, era uma cultura que o povo trabalhava com muita dificuldade, só que a natureza continuava viçosa...”. (José Coelho) Entre os limites do Estado do Paraná e São Paulo encontra-se um bairro com 487 habitantes, o bairro do Ariri. Um lugar que sofreu muitas mudanças ao longo dos anos e hoje é um ótimo local para viver, descansar e desfrutar do que há de melhor em nossa região. O acesso pode ser feito por água através do Canal do Ararapira, passando pela comunidade do Marujá (Ilha do Cardoso) e Vila do Ararapira (Ilha do Superagui) ou por terra pela estrada do Itapitangui/Ariri.

Imagem de satélite

94 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

A origem do seu nome provém de uma espécie de palmeira nativa do Brasil e deveria ser pronunciado Iriry (nome dado à palmeira), mas com a variação de pronúncia ficou sendo chamado, nos dias atuais de Ariri. Antes de tocar na sua história e sua cultura local, vamos passar rapidamente pela história da Vila do Ararapira, que tem um total envolvimento com o bairro do Ariri. A Vila do Ararapira situa-se no Estado do Paraná, no extremo norte da ilha do Superagui, antes do Bairro do Ariri e logo após a Comunidade do Marujá. Essa região tinha diversos conflitos em termos de divisas territoriais. Antes o limite entre o Estado do Paraná e o Estado São Paulo se dava no meio da ilha do Superagui, que tinha como marco um “pé de jerivá”, assim São Paulo tinha toda a parte norte da

Entrada da Vila do Ararapira, pelo canal do Ararapira


Ilha, com as Vilas do Ararapira e da Barra do Ararapira fazendo parte de seu território e o Paraná com o trecho sul. Após muitas discussões políticas entre os dois Estados, o governo paranaense conseguiu com

que toda a ilha do Superagui passasse ao domínio do Paraná e São Paulo ficasse com o outro lado da margem do canal do Ararapira, sendo este o limite atual entre os Estados.

Igreja da Vila do Ararapira A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Antes a Vila do Ararapira pertencia ao Estado de São Paulo e lá produziam o arroz, um dos principais produtos de exportação pelos portos de Cananéia e Iguape, até metade do século XIX, como afirma Mourão (2003) e o escoamento desses produtos para esses municípios era feito através da Companhia 3 de Navegação Fluvial Sul Paulista, atual DERSA . Quando passado para o lado do Paraná essa Companhia de Navegação parou de atracar na Vila, fato devido à Vila agora pertencer ao Paraná e a Companhia de Navegação passou a atender somente o Estado de São Paulo. Com isso a Vila teria que comercializar seus produtos com os principais centros comerciais do Paraná, entre eles Guaraqueçaba e Paranaguá, o que tornaria mais difícil devido ao acesso. Preocupados, os moradores mandaram cartas à Câmara Municipal de Cananéia em meados de 1920, pedindo à prefeitura que doasse um pedaço de terra em território paulista para eles, e foi concedido o pedido, mas mesmo assim alguns moradores permaneceram na Vila do Ararapira local, quebrando o mito atual de “cidade fantasma”. O fato de hoje a vila se encontrar sem moradores é justificado pela dificuldade de acesso, ao processo erosivo que vem afetando aquela faixa de terra e principalmente à criação do Parque Nacional do Superagui, que limitou a ocupação e exploração do local através das leis ambientais. Felizmente, seus antigos moradores que não mais residem ali, ainda freqüentam o lugar, seja 3

DERSA - Desenvolvimento Rodoviário S/A é uma empresa estatal vinculada ao Governo do Estado de São Paulo, cujo objetivo é construir, operar, manter e administrar rodovias, balsas e embarcações.

96 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Imagem de satélite explicativo das dificuldades que os ararapienses teriam em comercializar com o Estado do Paraná

comemorando festas do padroeiro da Vila (São José do Ararapira), mantendo limpos os caminhos e as construções ou enterrando os antigos moradores no cemitério que lá existe. O pedaço de terra que a prefeitura doou encontra-se às margens do canal do Ararapira, terras em que já radicavam uma pequena população que morava em sítios. Esse local foi fundado por Washington Luiz em 25 de dezembro de 1921, como Vila do Ariry (hoje bairro do Ariri), com a intenção de formar entre as divisas dos Estados uma forte Vila – estratégia política – e em forma de gratidão a população ararapiense de ter mantida sua identidade paulista.


“Se a antiga população paulista de Ararapira, ou parte dela, se retirou para nova povoação paulista de Ariry, não realizou por isso mais do que um simples ato de gratidão e de reverência para com o pedaço de terra brasileira que foi seu berço. Realiza, outrossim, uma justa compensação. Quer dizer, se São Paulo perdeu um pedaço de território, não perdeu, no entanto, a estima de seus filhos”. (ALMEIDA, 1929)

Família Lisboa da Veiga

Cemitério da Vila do Ararapira

Visita do presidente Washington Luiz A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Falando um pouco das pessoas que ali moravam, segundo seu José Coelho, um dos moradores mais antigos do bairro do Ariri, os primeiros moradores do bairro eram donos de escravos, que trabalhavam nos engenhos de arroz, um era Alexandre de Lara e o outro era seu bisavô Joaquim Coelho, onde

Antigo engenho de arroz

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os dois não se davam muito bem e acabaram dividindo a terra. Depois que o Alexandre de Lara foi embora vieram outros moradores, migrantes dos sítios ali ao redor, formando um aglomerado de sítios até pouco depois da vinda dos ararapienses.


Após a fundação do bairro por Washington Luiz, foi dado início a construção da escola e do prédio da cadeia, dois elementos que seriam essenciais para seu desenvolvimento como Vila. O prédio da escola tem hoje mais de 80 anos e a cadeia foi demolida.

Escola do bairro do Ariri

O acesso para a sede de Cananéia era feito inicialmente por água através da Companhia de Navegação e posteriormente também pela estrada do Ariri, que faz o trajeto entre o bairro do Itapitangui e o bairro do Ariri. Sua construção ocorreu no início da Segunda Guerra Mundial, 1939, os moradores do bairro ajudaram na construção, eles abriram a estrada até o bairro do Taquari “no braço”, para facilitar o escoamento da produção do arroz. Em 1977, a Prefeitura Municipal da Estância de Cananéia fez uma melhoria na estrada facilitando ainda mais o acesso. Posteriormente outras melhorias foram feitas pelo poder

público municipal até chegar a estrada que temos nos dias atuais. Característica presente na maioria dos bairros que ficam afastados do centro de Cananéia é a atividade agrícola. No Ariri, cerca de 70% da população trabalha na lavoura produzindo principalmente arroz, milho, café, feijão, mandioca. Como tradição destacase o cultivo do arroz que era produzido em grandes quantidades e comercializado com a ilha de Cananéia ou Iguape, cujo transporte era feito através de canoas pelo canal do Ararapira (ou canal do Marujá), e dependendo do tempo, gastava-se cerca de três dias de viagem. O bairro recebia também as produções de arroz dos outros sítios mais próximos, exemplo, como o do Varadouro, Rio Vermelho, Rio Saneja, Rio Branco, Cataúva, Araçaúba, Itapanhoapina. A produção era praticamente de modo artesanal, com instrumentos de trabalho feitos por eles próprios, com isso a natureza não sofria tantos danos como hoje, já que agora são usadas ferramentas de trabalho mais sofisticadas, mas que maltratam as terras. Também como tradição, o sistema de plantio usado era a coivara, com a derrubada e queimada da vegetação para a preparação do solo. O arroz era a principal atividade econômica, hoje além dos produtos agrícolas é feito também o artesanato. Essa atividade no bairro sempre existiu, nas construções de canoas, remos, cestos, gamelas, instrumentos de trabalho, madeira para as construções das casas e instrumentos musicais. Tudo o que tinham era produzido ali mesmo, as matérias primas usadas eram as madeiras como, a A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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caxeta ou caixeta (Tabebuia cassinoides) que é uma madeira leve, mole, própria para construção de instrumentos musicais como a rabeca, viola e machete, o guapiruvu (Schizolobium parahyba), peroba (Aspidosperma polyneuron), angelim (Andira fraxinifolia), araribá (Centrolobium robustus), utilizadas para fabricação de canoas, gamelas, remos. Essas madeiras tinham que ser bem escolhidas e muitas são conhecidas como madeira de lei pelo fato de serem muito resistentes e duráveis. As canelas (Nectandra spp.) também eram muito utilizadas para a fabricação de móveis, canoas e re4 mos. Usava-se também a taquara (Merostachys ternata), alguns tipos de cipós como o imbé (Philodendron spp.) e a timbopeva, para a fabricação de cestos, vas-

Gamela 5

souras e amarrações de casas e gramíneas como o pirí 6 (Scirpus californicus) e a taboa (Typha dominguensis). 5

Seu José Coelho tocando uma viola feita artesanalmente de caxeta 4

Nome popular para algumas espécies de bambu.

100 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

6

Pirí: espécie de junco, uma folha longa com três quinas que nasce em terrenos pantanosos, utilizado para confeccionar esteiras. (Extraído do Pequeno Dicionário de Vocábulos e Expressões Cananéias, de Edgar Jaci Teixeira, 2005). A taboa é uma planta aquática típica de brejos, manguezais, várzeas e outros espelhos de águas. Mede cerca de dois metros e na época reprodutiva apresenta espigas da cor café contendo milhões de sementes que se espalham pelo vento.


Casa feita de taipa

Artesanato feito por Dona Enedina

Os que fazem artesanato hoje, contam que aprenderam com seus pais. Para chegar até o comércio, o artesanato sofre um processo muito lento, já que antes era só para o uso próprio, muitos sabiam fazer, mas com o passar do tempo isso se perdeu. Exemplo dessa queda é dado pela esposa do Seu José Coelho, Dona Enedina da Costa Barbosa que diz que aprendeu a fazer artesanato desde seus 15 anos com a sua mãe, elas utilizavam o pirí para a fabricação de seus artesanatos (principalmente tapetes e esteiras). Como o pirí é encontrado em lugares de difícil acesso, em específico no manguezal, passaram a usar no lugar a taboa, que ocorre em áreas alagadas e próximas da mata, mais fácil de encontrar. Ela afirma ainda que seus descendentes não sabem nem o que é o pirí. Havia uma relação amigável entre as comunidades mais próximas, mostradas através dos mutirões

Rede Cananéia

Preparação da taboa para a fabricação de artesanato

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Pirí

que eram feitos na lavoura e na organização de festas, e ainda há essa relação entre os bairros. Predominante nesses mutirões e outras festas, o fandango era a música e dança típica. Para o fandango no Ariri registra-se também a utilização dos instrumentos musicais, muitos confeccionados ali mesmo ou nos sítios próximos, como a rabeca, viola, adufo, bumbo e machete. Seus alimentos eram produzidos ali mesmo, como o arroz, cará, milho, produtos que dão origem aos pratos típicos de nossa região como o bijú, a pamonha, broinha de milho. Todos esses pratos eram servidos nos mutirões e outras festas comemorativas. Também era muito consumido o peixe seco, o qual era aberto e limpo, salgado e posto no sol ou em cima do fogão a lenha para secar. Algumas festas religiosas que se destacam no bairro são: festa de São Luis, padroeiro do bairro 102 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Peixe secando em cima do foto de chão

(comemorado no dia 21 de junho), Festa de Reis, evento católico que comemora a chegada dos três reis magos, São José (padroeiro dos trabalhadores), Santo Antônio (santo casamenteiro e padroeiro dos pobres), São Gonçalo (protetor das festas e mutirões, além de ser um santo casamenteiro).


fragrans), abuto (Cissampelos spp.), maná (Solanum sessiliflorum), sene (Senna alexandrina) e açúcar mascavo, era fornecida para as mulheres grávidas depois que pariam seus filhos, e também para o tratamento de outras doenças como feridas de difícil cicatrização ou para quando a pessoa se sentisse fraca, indisposta. Após tomar esse remédio natural a mulher tinha que cuidar da alimentação e ficar se cuidando durante 45 dias sem fazer qualquer tipo de esforço e sem comer carne muito forte, por exemplo, carne de porco, de paca etc., Além destes, Dona Enedina faz o uso das rezas que ainda são muito

Igreja do bairro do Ariri

Além da religião tradicional há outras crenças usadas para estimular a cura de certas doenças, efeito que só surtia dependendo da fé que a pessoa depositasse na condição proposta para sua enfermidade. Dona Enedina é parteira, já fez ao longo de sua vida cerca de 100 partos, na época não tinham acesso ao hospital, as mulheres ganhavam seus filhos em casa. Ela usava de seus conhecimentos para trazer ao mundo os frutos da nova geração, esses conhecimentos vão de usos de produtos naturais, como plantas e ervas medicinais, cuidados com a alimentação até a prática de simpatias e rezas. Muito usada era a “garrafada”, uma bebida que era feita com pinga, pixilim, noz-moscada (Myristica

Dona Enedina A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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procuradas. A função destas rezas é bem diversa e podiam ser usadas na hora do parto para trazer a criança ao mundo com facilidade, usadas para tirar o susto das crianças, para tirar vermes etc. “Segunda-feira santa, terça–feira santa, quarta-feira de trevas, quinta-feira grande, sexta-feira da paixão, sábado de aleluia e domingo da ressurreição, ai eu faço aquela minha oração: ‘se for uma doença que se acalme, se for dor que pare, se for ferida que seque, dor de cabeça que alivie, tudo assim [...], e que nessa sexta-feira da paixão, que Jesus sofreu e morreu na cruz, que essa água benzida que nos cure e não faça mal a ninguém’ [...]”. (Dona Enedina) E apesar de ser algo muito antigo, ainda aparece muita gente para ser benzida, principalmente na sexta feira da paixão. Uma reza feita por Dona Enedina: “Vinte ano de parteira, eu achava muito bom cuidava dos paciente com amor no coração quando eu saia de casa meu velho ficava no portão eu me despedia dele, meu velho fique com Deus que eu vou com nossa senhora e Deus no meu coração na casa donde chegai faço minha oração no outro dia estou de volta, já fiz minha obrigação”. (Dona Enedina)

Também tem as simpatias, por exemplo: todo o sábado, durante o período da gravidez de uma mulher, elas tomavam banho com folhas do algo104 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

doeiro cozidas, ao todo eram nove banhos destes, servia para endireitar o corpo da pessoa. Ainda fortes na região são os causos contados pelos mais velhos, que devido às suas experiências de vida, sempre possuem alguma história para contar. Conta-nos seu José Coelho de uma experiência que seu pai e seu tio tiveram em uma pescaria. Os dois ao subirem um rio para pescar à noite, não deram muita sorte e após algum tempo viram que não tinham pegado nenhum peixe, mata adentro escutavam um assovio que diziam ser do saci; seu tio, que era um cara que não tinha medo de nada, gritou fazendo um pedido para o saci: “ – Se você colocar peixe em nossa rede, nós deixamos um pouco pra você comer”. Parecera que o saci tinha os escutado, pois a pescaria foi farta. No caminho de volta às suas casas, perceberam que o saci continuava a segui-los pelo barranco com seu escabroso assovio. Os dois seguiram firmes até o porto da “sobra”, local onde atracaram a canoa e retornaram para suas casas felizes pela excelente pescaria. Quando voltaram no outro dia ao porto, se depararam com um enorme estrago na canoa, toda arranhada, estragada. Tudo isso porque eles não cumpriram com sua promessa de deixar o peixe para o saci!!! Também relata outras artimanhas do saci, de que ele fazia um fandango debaixo de uma figueira, mas quando alguém ia ver quem estava fazendo aquela festa não achavam ninguém. Esses são alguns de outras centenas de causos que existem por aí espalhados na memória dos mais velhos. A perspectiva de vida destes caiçaras era maior, as pessoas viviam mais tempo, isso se deve à alimen-


tação não ser industrializada e não conter produtos químicos. O alimento era retirado direto das lavouras. Com isso eram mais saudáveis. Dificilmente ficavam doentes, e quando ficavam, usavam e ainda usam plantas e ervas medicinais que fazem mais efeitos do que os remédios vendidos em farmácias (de acordo com muitos relatos). As plantas e ervas mais usadas são: salva-vida (Lippia citriodora), boldo (Pneumus boldus), arruda (Ruta graveolens) - também usada para espantar mal olhado, erva cidreira ou capim cidró (Cymbopogun citratus), babosa (Aloe vera) e outras que eram encontradas e coletadas na própria mata. Exemplos de uso: salva-vida para conter dores de estomago; arruda para cólica e vermes; capim cidró para dor de estômago e mal estar; flor de maio (Schlumbergera truncata) para dor de cabeça, prisão de ventre. Outros produtos naturais também eram utilizados para o

Planta medicinal - babosa

tratamento medicinal como o mel de abelha e alguns cipós, como um chamado milome (Aristolochia triangularis) que é usado para dor de barriga e vermes. Mesmo com tantas dificuldades enfrentadas pelos moradores do Ariri, estes mostram que possuem uma vida invejável, sabem desfrutar o máximo aquilo que a natureza lhes proporciona sem destruí-la. Como podemos observar na frase de Seu José Coelho ao início,“[...] era uma cultura que não destruía a natureza, era uma cultura que o povo trabalhava com muita dificuldade, só que a natureza continuava viçosa...”. Fora a saúde, tinha ainda um fator que ajudava na qualidade de vida, a relação de amizades entres os moradores. O respeito dos mais novos para com os mais velhos já não é a mesma coisa que antigamente. Relatam que quando um homem usava barba, este era chamado de senhor; na escola o professor tinha os direitos em cima de um aluno como aos dos pais, podiam corrigir os alunos de forma mais severa. Na escola do Ariri era usada a “sala do castigo”, um minúsculo espaço com porta e trincos onde alunos eram deixados de castigo quando cometiam algumas irregularidades ou mau comportamento. Hoje, é claro, não existe mais essa forma de disciplina e a sala se transformou num depósito. Hoje também existem leis que proíbem os professores de castigar os alunos dessa e outras maneiras. Concordamos que a forma que era imposta a disciplina na escola era meio exagerada, era usada até mesmo a violência para corrigir os alunos, mas pensamos que a autoridade, que os professores tinham, no sentido de respeito, deveria ser preservada. A cultura caiçara não é mais a mesma, existem famílias que a preserva, mas existem também aquelas A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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que não se preocupam em ensinar a seus filhos os conhecimentos adquiridos durante sua vida. Segundo Seu Quirino Ermes Coelho, filho de Seu José Coelho, atual presidente da Associação dos Moradores do Bairro do Ariri e nosso guia pelo bairro do Ariri, a cultura do bairro se perdeu dos anos 80 pra cá, com a vinda da energia elétrica, junto com a televisão, que fez a alusão aos jovens, facilitando a perda cultural, principalmente a cultura musical, fato devido aos jovens escutarem outros estilos de música, deixando de lado o fandango. Antes não tinham vergonha de dançar o fandango, hoje possuem. As dificuldades que existem atualmente para que ocorra um verdadeiro resgate do modo de vida, costumes e tradições caiçaras são muitas e encontram muitos entraves, desde a falta de apoios e de incentivos até de pessoas indispostas a ensinar ou passar tais conhecimentos. Então temos que resgatar e valorizar essa parte da cultura caiçara que está sendo perdida, enfocando os jovens com a base na educação. “Hoje o pessoal (os jovens) tá um pouquinho mais consciente, mas um tempo atrás não tinha consciência porque achava que era feio, ele ia se caçoado, que iam dizê que ele era caipira, que era caiçara, que dançava o fandango, então eles se envergonhava daquilo, porque eles se iludiram com essas coisas”. (Seu Quirino) Tendo em vista todos os aspectos apresentados, o bairro do Ariri teve grandes alterações tanto em termos culturais quanto em sua infra-estrutura. Hoje atrai muitos turistas por ser um lugar muito sossegado e ficar perto da comunidade do Marujá, um 106 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Sala do castigo, hoje usada como depósito na escola do bairro do Ariri

dos pontos turísticos de nossa cidade, alguns vão até o bairro e se hospedam nos hotéis e pousadas, já outros, como podemos perceber pelas inúmeras construções que estão sendo feitas no bairro, estão comprando terras e construindo suas casas, isso faz com que seja cada vez maior o número de pessoas que não são tradicionais do bairro, afetando assim o modo de vida dos que ali nasceram. Mas suas tradições ainda são mantidas com a sabedoria dos verdadeiros caiçaras que se dedicam à conservação ambiental e ao ensino de seus filhos preparando-os para que recebam e mantenham o título de caiçara pelo resto de suas vidas.


José Coelho, sua esposa Enedina e seu filho Quirino

Píer do Ariri

Bairro do Ariri

Rua do Ariri

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Referências bibliográficas ALMEIDA, Antonio Paulino de. Ariry – Histórico de Sua Fundação – Irmãos Ferraz – São Paulo, 1929.

ciologia diferencial. São Paulo: Editora HUCITEC/ NUPAUB/CEC/USP, 2003, pág. 36.

MOURÃO, Fernando A. Albuquerque. Os pescadores do Litoral Sul de São Paulo: um estudo de So-

TEIXEIRA, Edgar Jaci. Pequeno Dicionário de Vocábulos e Expressões Cananéias, 2005, 94 páginas.

Beira mar do Ariri

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Bairro do Varadouro 1

Aldrin Klimke 1 William Cunha Gonçalves 2 Ivete Mateus 2 Luiz Camilo Mateus 2 Rosangela Pereira Camilo 2 Roque Mateus 3 Quirino Ermes Coelho “[...] nasci aqui, aqui me casei, tô vivendo, eu acho que vai ser final de vida aqui, porque [...] pra mim saí, pra mim deixá minhas plantação aqui, tudo o que eu tenho, tudo o que eu fiz, eu acho que não encontro lugar melhor de vivê, pra mim sobrevivê, do que o Varadouro.” (Luiz Camilo Mateus)

grande cultura que vem se mantendo ao longo desses anos, mas devido às facilidades encontradas hoje na zona urbana, alguns preferiram morar em outro lugar deixando o bairro e dando origem a uma pequena perda na cultura caiçara do local.

Próximo à divisa com os Estados do Paraná e São Paulo encontra-se o bairro do Varadouro, um bairro rural, com pouco moradores, cerca de sete famílias, pouca infra-estrutura, difícil acesso. Apesar de todas essas dificuldades é uma comunidade unida, humilde, trabalhadora, um povo que possui uma 1

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3

Estudantes da 8ª série do ensino fundamental e 2º ano do ensino médio, respectivamente, da Escola Estadual Profa. Yolanda Araújo Silva Paiva e membros do Coletivo Jovem Caiçara. Moradores tradicionais do bairro do Varadouro entrevistados durante a pesquisa de campo. Morador tradicional do bairro do Ariri, entrevistado e acompanhante do grupo durante a pesquisa de campo.

Imagem de satélite A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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O Varadouro surgiu com a vinda dos moradores do Itapanhoapina, localizado ao longo do caminho que por terra dá acesso ao bairro do Ariri. O bairro surgiu porque estes moradores tinham que se deslocar de suas casas, no Itapanhoapina, para trabalharem em seus sítios que ficavam onde é hoje o Varadouro. A mudança definitiva ocorreu pela facilidade que encontrariam se residissem ali, pois não precisariam se deslocar longas distâncias para trabalhar. Passaram então a morar em seus sítios dando origem a uma pequena comunidade chamada Varadouro. Seu nome também provém de uma história, a do Major Vieira. Esse Major viajava bastante por esta região, passando sempre pelo barranco alto, local onde atracam as embarcações, o início da trilha que leva até a comunidade. Este local ficou conhecido na época como “Porto do Major”. Contam que este mesmo Major começou a fazer uma picada, varar, abrir caminho mata adentro, indo até o Morro dos Patos e por isso, a comunidade recebeu o nome de Varadouro. Antes dos moradores tradicionais, habitavam o Varadouro os quilombolas, que fugiram dos franceses e se escondiam na outra margem do rio que fica na Serra da Cachoeira, para não deixar vestígios, e montaram acampamento, por isso ficou conhecido pelos antigos como, Rio dos Quilombos, que mais tarde recebeu o nome de Rio Bonito pelos próprios quilombolas porque de lá tinha uma vista muito agradável. Muitas pessoas deixaram o Varadouro e segundo seu Luiz Camilo Mateus, morador nativo do bairro à 55 anos, o motivo dessa saída foi por ilusão, pela busca de melhores condições de vida, mas isto nem sempre acabou resultando nessa melhoria, já que muitos 110 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Barranco alto, local onde são deixadas as embarcações e que dá acesso à trilha que leva à comunidade

moradores acabavam indo embora, levando toda a família e passando muitas dificuldades fora dali.Também relata que havia um tal de “Pedrão”, que andava sempre armado e saía ameaçando os moradores. “[...] sabe que quem tem medo ele não põem na idéia de resistir a aquele medo, a vontade dele é de sai e ir pra um lugar mais sossegado [...]” (Luiz Camilo Mateus) Por meio desta declaração, podemos notar que muitos moradores sentiam dificuldades financeiras, ambientais e sociais, como o medo que tinham de perder suas terras, por isso acabaram-se mudando.


Antigamente as casas eram de taipa ou pau-apique. As madeiras eram tiradas da palmeira jissara ou jussara (Euterpe edulis), que são resistentes ao

tempo, suas amarrações eram feitas com cipó e a cobertura com palhas de palmeiras conhecidas como guaricana (Geonoma schottiana).

Casa de taipa ou pau-a-pique A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Estas casas duravam cerca de oito a dez anos; já as casas que tinham o fogão a lenha duravam um pouco mais, cerca de 12 anos, por causa principal4 mente da piúna que se formava nas madeiras e no telhado de palha. Depois com a construção da estrada que faz o trajeto entre o bairro do Itapitangui e Ariri, caminho este que dá acesso ao bairro do Varadouro, é que começaram a vir outros materiais para as construções das casas, como: telhas de amianto, madeira tratada, entre outros.

Casa de taipa com piúna

De acordo com os moradores, os caminhos para se chegar ao Varadouro eram verdadeiros atoleiros, situação que é vítima de uma enorme comparação com

Casa de taipa e ao fundo casa feita com outros materiais Fogão a lenha

112 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

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Piúna: fuligem preta deixada pela fumaça do fogão a lenha.


Casa feita com outros materiais e ao fundo uma casa de taipa

Trecho do caminho que faz o trajeto entre o barranco alto e a comunidade

o que existe atualmente. Hoje gasta-se a pé cerca de 45 minutos para ir do barranco alto até a comunidade do Varadouro, o que antigamente demorava cerca de três horas. É também possível realizar este trajeto de bicicleta ou até de motocicleta, lembrando que para chegar até o barranco alto saindo do Ariri, em embarcação de médio porte, gasta-se por volta de 20 minutos. Um fato histórico importante é que antes da construção da estrada que liga o bairro do Itapitangui ao Ariri, o deslocamento dos moradores e mercadorias para a sede do município, que se encontra na ilha de Cananéia, era feito através da navegação fluvial pelo canal do Ararapira, realizada pela antiga Companhia 5 de Navegação Fluvial Sul Paulista, atual DERSA .

Todos os seus moradores dedicavam-se e ainda dedicam-se à agricultura. Eram feitas plantações de arroz, café, milho, feijão, cará, mandioca, banana, entre outras e criações de animais como, por exemplo, galinhas, porcos, patos. Num lugar que existem tantas dificuldades, há uma enorme fartura, nunca faltou o alimento. Eles só compravam os produtos que não podiam ser produzidos no sítio, como: sal, querosene. Suas plantações, principalmente a de arroz, eram produzidas em grande escala e não era usado nenhum tipo de agrotóxico, seu escoamento era feito por canoa até o Ariri e de lá vendido. Essa produção ainda existe, mas desabafam que as leis ambientais mexeram bastante com suas produções. Para o plantio do arroz e outras culturas predominava o sistema chamado de coivara, que consistia na derrubada e queima da vegetação que ali existia, preparando o solo para o plantio, mas foi proibido pelas leis ambientais.

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DERSA - Desenvolvimento Rodoviário S/A é uma empresa estatal vinculada ao Governo do Estado de São Paulo, cujo objetivo é construir, operar, manter e administrar rodovias, balsas e embarcações.

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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A pesca, pouco praticada pelos moradores era somente para consumo próprio, na maioria das vezes utilizavam canoas com suas redes dentro do próprio canal do Varadouro e em outros rios ali perto. Uma das armadilhas utilizadas por eles para capturar o peixe é o covo, citado por Mourão (2003) e identificado em nossas entrevistas. “Os covos que encontramos, principalmente ao longo do canal de Varadouro, são um exemplo dessa reminiscência indígena”. (Mourão, 2003)

Alguns produtos produzidos no sítio

Criação de galinhas

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Covo – armadilha de pesca


Os conhecimentos tradicionais usados nas lavouras foram sempre passados de pais para filhos e os pais não insistiam para que seus filhos os ajudassem, todos viam que havia trabalho para ser feito, assim todos tinham suas obrigações e ajudavam para aumentar a renda da família. Hoje, segundo Seu Luiz Camilo, as crianças não se interessam pelo trabalho, e também seus pais têm pouco tempo disponível para passar seus conhecimentos a eles, devido ao acúmulo de tarefas.

Nem sonhava-se, naquela época, com maquinários para lavrar e fazer as colheitas, todo o processo era feito no braço, com enxadas, foices, pás. Não havia como apenas uma família fazer esse trabalho, então, surge aí os mutirões. Esses mutirões em época de derrubada, plantio ou colheita eram feitos em todos os sítios e todas as famílias iam ajudar, cabia ao dono do sítio sair e convidar as famílias para o mutirão, e em trabalho cooperativo a colheita era feita em um ou dois dias. O pagamento daqueles que participavam dos mutirões era feito através de comidas típicas, como o bijú, pamonha, carne seca etc., e um baile de fandango à noite, tudo custeado por aquele que os convidara para o mutirão. Além dos mutirões, grandes festas aconteciam como a festa do padroeiro da comunidade que é São Marcos (26 de abril), Festa de Reis e até mesmo o carnaval, ambas possuindo algumas características semelhantes, como o fandango e os comes e bebes típicos.

Luiz Camilo Mateus, sua esposa Rosangela Pereira Camilo e filhos

Fato que nos chamou muita atenção foi a comemoração do carnaval. Seus quatro dias de festejo eram marcados pelo fandango e uma de suas danças, o batido. Eram quatro dias repletos de A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Pilão utilizado para socar o arroz

Instrumentos usados no Fandango

alimentos produzidos ali mesmo pelas mulheres, como o bijú, que é feito da seguinte maneira: deixava-se o arroz de molho na água de um dia para o outro, no outro dia quando estivesse amolecido era passado na peneira e a massa formada era enrolada na folha da banana e colocada embaixo da brasa para que assasse. Pessoas que vinham de fora para prestigiar as festas ficavam alojadas nas casas dos moradores da região, havia regras, que cumpridas, mostravam sinal de respeito. Uma pessoa não podia entrar sem camisa na casa de outra; nos mutirões os primeiros que pegavam as moças para dançar eram aqueles que 116 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Casa de farinha, foto tirada por Dona Antonia Camilo, 56 anos de idade, através da técnica “Pinhole” (Projeto “O Caiçara se Revela no Município de Cananéia”)


trabalhavam o dia todo e aqueles que não trabalhavam iam, mas eram os últimos a dançar; uma vez tirada para dançar, a moça não poderia dançar com outro rapaz naquela noite. Esses são costumes que eram levados a sério! A religião predominante é a católica, sinais desta são mostrados nas procissões e festas religiosas que ocorrem. O uso do conhecimento de plantas e ervas medicinais também era válido, não tinha naquele tempo medicamentos encontrados hoje em dia nas farmácias. Todas as suas doenças e dores eram curadas através de plantas medicinais. A erva salvavida, por exemplo, era usada para conter dores de cabeça, mal-estar, combater os vermes, além desta, outras ervas existiam como: carqueja, arnica, santamaria etc. Essas eram muito mais eficazes do que os remédios de hoje, talvez pelo fato de serem 100%

Igreja católica do bairro do Varadouro

Igreja, foto tirada por Nelson Gonzaga da Silva Coelho, 16 anos de idade, através da técnica “Pinhole” (Projeto “O Caiçara se Revela no Município de Cananéia”)

Planta medicinal – salva-vida A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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naturais e não industrializadas. Para outros também era válido o uso de simpatias, efeitos que surtiam só para aqueles que cressem e respeitassem. Um exemplo de simpatia: Quando uma pessoa estava com pigarra (ou pigarro), forte gripe, pegavase um ovo de mangava (ou mamangava) e colocavao em um “blebezinho”, um pequeno pedaço de pano fino, em que a pessoa não veja seu conteúdo, sendo então pendurado com um fio, uma linha fina em volta do pescoço e isso ficava com a pessoa até se perder, quando perdida desaparecia junto a doença. Mas só vale quando realmente é perdida!!! A superstição era algo muito respeitado pelos moradores. Exemplo: quando uma mulher ficava grávida, seu marido não podia caçar, caso ele fosse, não conseguia pegar nada. Parece ser uma parte da tradição que nunca se perderá, os causos, lendas e histórias contadas pelos mais velhos. Sempre há uma para ser contada, seja ela de assombração, história de vida de um amigo, um fenômeno ou mesmo uma lenda. Seu Roque nos conta que no caminho que leva ao barranco alto, bem na metade do caminho, existe um tronco de madeira de uma árvore conhecida como canela preta (Ocotea catharinensis), que é uma madeira que demora muito para apodrecer, e ali os que passavam usavam esse tronco para descansar. Quando falecia uma pessoa, o sepultamento era feito no bairro mais próximo, por isso tinha que levar na mão o caixão. Como o caminho era longo e cansativo e o caixão pesado, eles paravam nesse tronco e arriavam o caixão em cima dele, para que não ficasse no chão em respeito ao morto, então esse tronco ficou conhecido como “pau do defunto”. 118 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

“Pau do defunto”

O artesanato no Varadouro é algo novo, nunca foi uma fonte de renda como é hoje. Claro que sempre existiu, na fabricação de seus próprios instrumentos de trabalho, como: remos, canoas, e instrumentos musicais. Grande conhecimento sobre o assunto é demonstrado pelo Seu Roque Mateus, talvez o único que tira toda a sua renda do artesanato no município de Cananéia, segundo Quirino Ermes Coelho, nosso guia pelo bairro do Varadouro.


O material usado para fazer os artesanatos são madeiras como a caxeta ou caixeta (Tabebuia cassinoides) (uma madeira leve, própria para fazer pequenos artesanatos), e o guapiruvu ou guapuruvu (Schizolobium parahyha) (muito usado na fabricação de ca-

noas e remos), além de outros materiais como a palha de guaricana (Geonoma schottiana), casca de bambu e cipós como a timbopeva (Philodendron spp.) e o imbé (Philodendron spp.), usados para fazer amarrações das casas, cestos, tapetes e outros utensílios .

Gamela

Remos feitos com madeiras diferentes A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Seqüência de fotos mostrando a preparação do cipó - timbopeva para a fabricação de cesto e vassouras

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Vassoura e cesto de timbopeva

Artesanato, foto tirada por Dona Antonia Camilo, 56 anos de idade, através da técnica “Pinhole” (Projeto “O Caiçara se Revela no Município de Cananéia”)

A extração desses materiais não sofria uma fiscalização rigorosa como é hoje em dia, porque antes não tinha leis ambientais tão severas, hoje com elas esses recursos ainda são extraídos, mas com uma certa moderação. O conhecimento sobre esta arte também é passada de pai para filho, Seu Roque lembra que ele tinha que observar apenas seu pai fazendo, porque o mesmo não gostava de ser observado enquanto trabalhava. Afirma também que hoje faz coisas que seu pai não fazia. É acompanhado de sua mulher Ivete que também faz artesanato e ajuda na renda familiar

Trançado de timbopeva para fabricação de cestos

No Varadouro sempre houve uma boa relação entre as famílias, havia um grande espírito de colaboração, coletividade, todos eram amigos de todos. O A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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fato de o Varadouro ter sido “esquecido” em tempos passados, ocasionou problemas que acarretaram mudanças na vida de muitos moradores, podemos dizer que o difícil acesso contribuiu bastante nessas mudanças, tanto é que os moradores costumam freqüentar mais o município de Guaraqueçaba – PR, na divisa entre os Estados, do que o seu próprio município.

Seu Roque e a esposa juntos a alguns dos artesanato confeccionados por eles

Tantos os homens quanto às mulheres e jovens, exerciam cada um as funções que lhe seriam cabíveis, os homens seguidos dos jovens trabalhavam na lavoura, fazendo o serviço pesado; as mulheres seguidas das jovens cuidavam da casa, limpeza, comida e ajudavam na lavoura, fazendo o plantio e a colheita. Essa distribuição de cargos nunca mudará, esses eram os papéis de cada um na sociedade. Hoje as mulheres também possuem habilidades como a confecção do artesanato, dito anteriormente, sendo algo que surgiu há pouco tempo, e está sendo uma grande ajuda financeira para as famílias. Então, hoje além dos produtos da lavoura, que ainda são bons, existe o artesanato e para alguns, a aposentadoria. Em termos de qualidade de vida, os moradores concordam que melhorou bastante, os caminhos estão mais transitáveis, os estudos estão mais fáceis, pois antes, segundo seu Luiz, quando ele estudava, iam para a escola apenas com um “cafezinho” muito fraquinho; hoje a escola fornece uma alimentação boa e bem reforçada.

Artesanato, foto tirada por Roque Mateus, 59 anos de idade, através da técnica “Pinhole” (Projeto “O Caiçara se Revela no Município de Cananéia”)

122 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Contam que antigamente eles não tinham nem alimentos na escola e que nessa época quando se almoçava, dificilmente havia jantar.


Escola, foto tirada por Patricia Dunker, 30 anos de idade, através da técnica “Pinhole” (Projeto “O Caiçara se Revela no Município de Cananéia”)

Escola do Varadouro A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Antigamente, no bairro, as pessoas tinham mais saúde, dificilmente ficavam doentes. Suas justificativas eram de que tudo o que comiam era natural, não tinha nenhum produto químico e quando ficavam doentes seus remédios eram normalmente caseiros, naturais. Essa cultura ainda hoje é mantida, por mais que eles já tenham como adquirir os remédios farmacêuticos e confirmaram que de vez em quando os usam, mas ainda preferem os caseiros. Afirmam também que a perspectiva de vida era maior, os homens viviam muito mais tempo do que hoje. Hoje a escola fica mais perto do que antigamente, possui uma estrutura bem melhor, mas mesmo assim, dentro do município de Cananéia, é uma das mais precárias, seu atendimento é até o ciclo I do ensino fundamental (1ª a 4ª série), possui apenas dois alunos. Quando eles terminam o I ciclo do ensino fundamental, passam a estudar na escola mais próxima que tenha o ciclo II do ensino fundamental (5ª a 8ª serie) e ensino médio, no caso a escola do Ariri. Os alunos têm que fazer o caminho do Varadouro ao Ariri quase todos os dias! Muitas coisas mudaram, algumas para a melhor e outras nem tanto, uma delas é a questão da energia elétrica, que antigamente utilizavam formas tradicionais de iluminação, herdadas das culturas indígenas, como sementes da árvore conhecida como bucuva (Virola oleifera), o óleo de baleia, muito utilizado no Período Colonial em lamparinas no centro de Cananéia, querosene e até velas confeccionadas com cera de abelha, como afirma Seu Roque e registrado por Serpa (2001): 124 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

“quando não tinha querosene a gente fazia vela de abelha mansa (gurupi preto), pega a cera, bate até ficar roliço e achatado. Aí pega um ‘prefil’ de pano e coloca no meio e começa a rolar a cera até fechar. O tamanho é de 20 a 30 centímetros e essa vela dura quatro horas e a luz é igual a do querosene”. (Seu Roque)

Hoje existem vários programas e apoios para a implantação de energia elétrica no Varadouro, mas mesmo assim o bairro ainda sofre com a falta eletricidade, chegaram a comentar do programa do Governo Federal “Luz Para Todos”, mas questionam: “[...] se é luz para todos, que venha também, porque nós também somo gente [...]” relata um morador do bairro. A única fonte de energia elétrica são as placas solares que eles têm, mas o custo de manutenção das mesmas é alto e não geram energia suficiente. Falam que se antes estivesse como hoje, os caminhos, a escola, a saúde, enfim, ninguém teria ido embora. Em geral, tudo que diz respeito a cultura caiçara foi relatado com o maior entusiasmo pelos moradores do bairro, motivo deste é de ver que existem pessoas preocupadas em valorizar sua cultura. Concordam que uma parte da cultura foi perdida, isso se deve ao avanço do homem, tecnologias, instrumentos de trabalho inovadores, que gerou uma facilidade em termos de condições de vida. O modo de viver dessas pessoas é um pouco duro, não podemos negar, mas para eles não tem nada comparável do que produzir seu próprio alimento, conviver em harmonia com a


natureza, desfrutar da invejável cooperação que existe entre os moradores. Como dito no início com a frase do seu Luiz, “[...] não encontro lugar melhor de vivê, pra mim sobrevivê, do que o Varadouro”, isso é muito contraditório com o que muitas pessoas dizem, que o Varadouro é um lugar que só tem mato, que você anda pra chegar em lugar nenhum... Bem, como visto o Varadouro é um lugar lindo, de aspecto amigável, um lugar que vale a pena conhecer, podendo assim desfrutar suas enormes maravilhas. Referências Bibliográficas MOURÃO, Fernando A. Albuquerque. Os pescadores do Litoral Sul de São Paulo: um estudo de Sociologia diferencial. São Paulo: Editora HUCITEC/NUPAUB/CEC/USP, 2003, pág. 50.

Lampião artesanal usado antigamente para iluminar os caminhos à noite

SERPA, Paulo Marcos Noronha. Eletrificação fotovoltaica em comunidades caiçaras e seus impactos socioculturais. Tese (Doutorado) – Programa Interunidades de Pós-graduação em Energia da Universidade de São Paulo. Universidade de São Paulo – USP. São Paulo, SP. 2001. 252 páginas.

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Belezas do Varadouro

126 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia


Bairro do Marujá 1

Aldrin Klimke 1 Andrew Ferreira Grube 1 William Cunha Gonçalves 2 Salvador Donato Barbosa 2 Joaquina Rodrigues Ponte 2 Antônio das Neves 2 Salvador Alberto das Neves

1

2

Estudantes da 8ª série do ensino fundamental, 1º ano e 2º ano do ensino médio, respectivamente, da Escola Estadual Profa. Yolanda Araújo Silva Paiva e membros do Coletivo Jovem Caiçara. Moradores tradicionais da comunidade do Marujá entrevistados durante a pesquisa de campo.

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Marcos Campolim

“[...] era muito bom demais, a comunidade unido, não tinha igreja, não tinha posto de saúde, escola, nada. Só tinha pra gente i pra cidade, ia a remo, ia de manhã voltava a tarde, era só no braço, braço que tivesse pra rema. Agora não, agora é facilidade”. (Salvador Donato)

Vista aérea da Ilha do Cardoso e Canal do Ararapira

128 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia


Grande ponto de referência turística no município de Cananéia é a Ilha do Cardoso, que se encontra na região estuarina - lagunar de Iguape, Cananéia e Paranaguá e apresenta uma área de aproximadamente 13.500 hectares com cerca de 90% de vegetação intocada, onde predomina a Mata Atlântica. Toda a 3 ilha faz parte do Parque Estadual da Ilha do Cardoso , mas apesar de pertencer ao município de Cananéia, é administrada pelo Governo Estadual de São Paulo através da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo. E uma área protegida por leis ambientais que asseguram a conservação de todos seus recursos naturais e por estar situada em uma área prioritária da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, o Parque foi reconhecido pela UNESCO, em 1992, como verdadeiro Patrimônio Natural da Humanidade. Nota-se a importância deste local quando constata-se que no início da colonização do Brasil existiam mais moradores na Ilha do Cardoso do que em Cananéia. Outro fato marcante e não menos importante é o registro da presença de um povo primitivo, talvez os primeiros habitantes dessa região, como comprovado pelos sambaquis, sítios arqueológicos com restos de alimentos (conchas e ossos) e artefatos manuais encontrados em muitos pontos da ilha com datação aproximada de sete mil anos! Nela se encontram várias comunidades caiçaras, citando do norte da ilha para o sul: comunidade de Itacuruçá, Cambriú, Foles, Marujá, Enseada da 3

A Ilha do Cardoso é considerada uma Unidade de Conservação de uso indireto ou de proteção integral, onde estão totalmente restringidos a exploração e/ou o aproveitamento dos recursos naturais. Seu objetivo maior é a preservação da biodiversidade, sendo que a interferência antrópica deve ser a menor possível (PARADA, 2001).

Sambaqui

Baleia e Pontal do Leste, todas encontradas na costa da ilha. O Marujá se destaca por ser a maior comunidade, com mais habitantes e oferecer mais opções de áreas de camping, pousadas e pontos de alimentação para o turismo, mas todas as outras também possuem estrutura para receber visitante. A Ilha do Cardoso possui as mais belas e poéticas praias da região, não se iguala a nenhuma outra, além de deter outras belezas naturais, como cachoeiras, piscinas naturais, rios e matas. Tudo ainda muito bem conservado. O acesso ao Marujá pode ser feito por embarcações partindo de Cananéia (lanchas rápidas – “voadeiras” ou escunas) ou pela estrada que liga o Itapitangui ao Ariri, chegando neste último deve-se ir de barco pelo Canal do Ararapira por mais alguns minutos. A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Rafael Xavier Arquivos PEIC

Imagem de satélite

Canal do Ararapira

A maioria das casas dos moradores se encontram próximas umas das outras e algumas um pouco mais afastadas. Hoje predominam as construções de alvenaria. Antigamente, porém, as casas eram em sua maioria de madeira. A fonte de renda hoje de muitas famílias é tirada, principalmente, através do turismo 4 de base comunitária , mas o bairro já foi visto como grande exportador de produtos agrícolas e pesqueiros e diferencia-se dos outros bairros próximos, como Ariri, por possuir como outra forma de sustento, a pesca. A comunidade do Marujá surgiu com migrações de pessoas de outras regiões, mas o grande contin4

Vista aérea da Praia do Marujá

130 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Turismo comunitário ou de base comunitária pode ser definido como aquele onde as sociedades locais possuem controle efetivo sobre seu desenvolvimento e gestão. E por meio do envolvimento participativo desde o início, qualquer ação voltada ao turismo deve proporcionar a maior parte de seus benefícios para as comunidades locais (WWFBrasil, 2002).


Arquivos PEIC

Trapiche Marujá

Praia da Lage

gente de moradores veio de outras localidades da Ilha do Cardoso, como a praia da Lage, entre a praia de Foles e a praia do Marujá.

o costume de fazer os mutirões, através da organização da comunidade para a realização das roçadas, plantios e colheitas nas lavouras, que ali tinham excelentes terras para o plantio de arroz, mandioca, cará, inhame, milho e até possuíam na praia da Lage uma santa padroeira da comunidade a Imaculada Conceição.

A praia da Lage recebe esse nome pelas pedras que existem próximas aos morros desta praia e que pareciam “lages” formando muitas vezes algumas piscinas naturais. Na verdade quando se ouve falar da praia da Lage, vimos uma única praia, mas esse nome só foi mais utilizado depois que a área foi desocupada, a praia da Lage era dividida em quatro partes, Tapera, Morretinho, Morrete Grande e Lage. Essa divisão foi feita pelos moradores locais, que viviam em diversos sítios ao longo da praia e, para facilitar a localização destes, foram denominados estes nomes. Viviam praticamente da agricultura e da pesca e todos moravam em casas feitas de madeiras. Tinham

“[...] era um povoadinho até que bem bonitinho, [...] era uma saúde que o pessoar tinha como se diz pra uma vitória [...] chegava pra ajuda um ao outro ia todos, você falava com um, ia dois, você falava com três ia quatro, então um queria ajudar o outro pra se ajudado também. Faziam mutirão, o qualé que não queria ir, não ficava ninguém, era todo o mundo ajudando o outro ali....” (Antônio Neves) A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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mudança da comunidade para onde é hoje o Marujá (antigamente conhecida como Praia do Meio talvez por causa de estar entre a Praia da Lage e a Vila do Ararapira) e também para o norte da Ilha onde existiam alguns sítios, principalmente onde é hoje a comunidade do Cambriú. “[...] e, finalmente, a mais bela e importante, que é a praia do meio, antigamente conhecida também por – praia de Ararapira, e hoje pela denominação de – praia de Ariri, – vila que lhe fica defronte”. (Almeida, 1946) Seu Antônio Neves

Como podemos observar, esses sítios tinham todos os aspectos que a comunidade do Marujá possuía no começo, pois bem, é daí que surge a comunidade do Marujá. As pessoas que viviam nesses sítios tinham muitas dificuldades de acesso, pois para chegarem até suas casas tinham que ir de canoa pelo rio da Tapera, passar pelo manguezal e pegar uma trilha na restinga até chegar à praia, por isso dependiam muito da maré e de condições climáticas favoráveis para conseguirem se deslocar até seus sítios. Isso dificultava muito o escoamento de suas produções. Após a criação do Parque, muitos moradores ficaram impossibilitados de realizarem suas práticas cotidianas (como plantar uma roça, caçar, derrubar uma árvore etc.) e todos esses fatores contribuíram para que ocorresse a 132 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

A Praia do Marujá, como visto, já possuiu diversos nomes, segundo Antonio Paulino de Almeida, era conhecida inicialmente como praia de Ararapira, depois praia do Ariri, praia do Meio e enfim praia do Marujá. A mudança do nome de praia do meio para praia do Marujá ocorreu depois que um homem chamado “Hugo Lippe” comprou umas terras na Praia do Meio e começou a desmatar uma grande área que ia até o pé do morro, abriu ruas e demarcou vários espaços para vender. Esse cara possuía uma imobiliária na cidade de São Paulo e queria vender suas terras recém adquiridas na praia do Meio na forma de lotes e como sempre ele ia até a comunidade com seu barco que se chamava “Marujá” esse pedaço de terra acabou ficando conhecido como Marujá. As atividades econômicas do bairro eram principalmente a agricultura e a pesca. A agricultura parou quando o local virou unidade de conservação;


Caminho principal do Marujá

Trilha que dá acesso à Praia do Marujá

com as leis criadas, os moradores tiveram que parar com suas atividade habituais relacionadas aos recursos naturais ali existentes. Eram produzidos o arroz, feijão, milho, batata, abóbora, melancia, moranga, até mesmo a cana para fazer o açúcar, o melado. Para os produtos que eram comercializados usava o sistema chamado de coivara, onde era derrubada uma área que serviria para o plantio e depois queimada fazendo assim a preparação do solo, muitos produtos que eram para consumo da própria família eram produzidos em hortas próximas a suas residências. Também havia outras formas de conseguir seus alimentos, tinha as criações, como as de galinhas, porcos, e a pesca artesanal. Nesse aspecto podemos observar que era muito bom, as mesas eram sempre fartas, mas para que isso não viesse a ser um problema, tinha que trabalhar muito para conseguir o pão de cada dia, todo

trabalho era feito manualmente, isso desgastava bastante a pessoa. Como podemos observar através do relato de Seu Salvador Donato, “mas a vida era difícil, a gente vivia só da lavoura e da pesca [...], em setembro tinha muito, muito peixe de mais [...], o que comprava, gastava dinheiro, era só no querosene, luz não tinha [...], mas era uma vida muito fácil de mais de vivê....” Além dos produtos que cultivavam e os peixes que matavam nos rios e na costa, tinham acesso a outros elementos que eram extraídos da natureza, como o palmito, a ostra, caranguejo e as caças. A maioria dos alimentos, com exceção do arroz, eram cultivados em qualquer lugar em que tivesse a terra boa, tudo o que se plantava dava resultado, só o arroz era plantado afastado dos outros produtos, era cultivado principalmente no pé dos morros, onde A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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teria melhores condições de adaptação. O arroz que ia para o comércio era levado de canoa até a sede de Cananéia pelo canal do Ararapira (conhecido também como canal do Marujá) e lá comercializado. Hoje em dia não existe mais a produção do arroz para o comércio, bem como as grandes roças, que um dia uniram famílias e trouxe alegria para aqueles que festejavam a fartura e a saúde de um povo humilde e batalhador. As leis ambientais não permitem essas 5 práticas e a fiscalização dentro do parque é continua .

mais os animais por perto, os moradores já teriam matado muitas das espécies, diminuindo assim a ocorrência dos animais nessa terra. A pesca era feita dentro do canal do Ararapira (canal do Marujá) e no Mar Grande, na costa do oceano atlântico.

Seu Salvador Donato nos fala que por um lado, foi bom ter essas leis, porque senão, hoje não teria

Alguns produtos agrícolas 5

Hoje existe o Plano de Manejo, que é um documento técnico mediante o qual, com fundamento nos objetivos gerais de uma unidade de conservação, se estabelece o seu zoneamento e as normas que devem presidir o uso e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação de estruturas físicas necessárias à gestão da unidade (art. 2, XVII da Lei 9.985/2000) (PARADA, 2001).

134 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Embarcações utilizadas pelos moradores na margem do Canal do Ararapira


Essa atividade ainda é feita pelos moradores mais jovens, mas não há tanto peixe como tinha antes. O peixe também era exportado para ilha de Cananéia, quando seus compradores não iam até o local para comprar o peixe, eles secavam o peixe e levavam para a sede de Cananéia. A

pesca de cerco, que é feito com mourões, taquaras e arame formando uma espécie de armadilha, permite que peixes adultos entrem e não consigam mais sair, não é uma prática tão antiga na região, é algo recente e é o que dá melhores resultados hoje na pesca.

Cerco fixo

Fazendo uma comparação do bairro do Marujá com os outros bairros rurais que ficam na divisa do Estado, podemos perceber que por mais próximos que estejam, existe uma diferença marcante entre eles, a comunidade do Marujá possui a pesca como parte A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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predominante de sua cultura, é até os dias atuais uma atividade econômica, e isso nos outros bairros não se encontra de forma tão acentuada, praticavam a

Embarcação realizando pesca no oceano (Mar Grande)

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pesca, mas era para consumo próprio, isso se deve ao fato de o Marujá ficar de frente para o mar aberto e os outros bairros não.


tipos de artesanato, crochê, bijuterias com conchas etc., já que não entram em contradição com as leis ambientais.

Antonio Neves fazendo artesanato

Rede de pesca pendurada, foto tirada por Willian de Oliveira Xavier, 8 anos de idade, através da técnica “Pinhole” (Projeto “O Caiçara se Revela no Município de Cananéia”)

Juliana Greco Yamaoka

O artesanato já foi feito no Marujá há muito tempo atrás, quando ainda extraíam a matéria prima da natureza, hoje eles não possuem o hábito muito

menos autorização para tal, como a caxeta (Tabebuia cassinoides), usada principalmente na fabricação de instrumentos musicais e diversos cipós, para a fabricação de cestarias e outros utensílios. Depois que pararam de fazer seus próprios artesanato, canoas, remos e outros utensílios, passaram a comprá-los no bairro do Ariri ou em Cananéia. Outros artesanato, como na fabricação das redes de pesca, que alguns fazem para si e outros vendem, e o cerco, ainda são feitos no bairro, bem como novos

Todos os seus conhecimentos são passados de geração a geração, mas muitos aspectos foram quase que esquecidos, devido a não poderem mais ser praticados. Com isso os moradores hoje aproveitam o que pode ser explorado (com seus devidos cuidados) e o que tem de mais significativo em nossa cidade, os atrativos naturais e a cultura local. Para tanto, muitos moradores começaram a desenvolver atividades A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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ligadas ao turismo com a proposta de ser uma atividade econômica que complementasse suas rendas. Alguns ainda mantém as práticas de tempos passados, como roças de mandioca, de banana, a pesca de lanço na praia e cerco no canal, conciliando com o turismo, mas já para outros, o turismo se tornou a principal atividade econômica.

O turismo hoje ocorre de uma forma comunitária, ou seja, são os próprios moradores que oferecem todas as comodidades para os visitantes, através das pousadas-residências, áreas para camping no quintal de suas casas, bares e restaurantes e serviços de monitoria ambiental.

Estabelecimento comercial na comunidade

Centro de Visitantes

138 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

No começo isso trouxe muitas dificuldades para os moradores. A partir da década de 70 começa a crescer a demanda turística no bairro e junto com ela muitos aspectos negativos, tanto na parte ambiental quanto na cultural. As pessoas que vinham de fora não colaboravam com a limpeza do local, iam praticamente só para “zoar” e também surgiu um outro fator que possibilitou com que uma parte da cultura fosse perdida, vieram outros costumes, outros estilos musicais, crenças, falas, que fizeram com que


a população, principalmente os mais jovens, voltassem seus olhares para essas novidades, que mal saberiam eles que iria fazer com que sua cultura mudasse bruscamente. A religião hoje se divide entre a igreja católica e evangélica, que apesar dessa divisão existem as freqüentes festas religiosas como a festa do padroeiro do bairro, São Vito Mártir (15 de junho) e é também ponto de passagem da Bandeira do Divino Espírito Santo que anualmente tem como local de cantos, rezas e recebimento de doações, as casas de seus fiéis em todo o bairro.

Igreja, foto tirada por Willian de Oliveira Xavier, 8 anos de idade, através da técnica “Pinhole” (Projeto “O Caiçara se Revela no Município de Cananéia”)

aspectos culturais, uma diversidade tem feito parte do dia-a-dia desse bairro, sendo que em feriados muitas bandas de diferentes estilos musicais animam as festas e bailes noturnos, principalmente com o forró, mas ainda o fandango é valorizado e hoje um grupo musical tenta contribuir para a manutenção dessa tradição realizando algumas apresentações e estimulando que mais pessoas, principalmente os jovens, participem e se interessem pelo fandango.

Igreja Católica do bairro

Outras festas que são realizadas também e que merecem destaque são: a Festa da Tainha (no começo do mês de julho), bingos, aniversários e as festas que são realizadas nos feriados. Com relação ainda aos

Viola caiçara, foto tirada por Eliane Mariete de Oliveira Neves através da técnica “Pinhole” (Projeto “O Caiçara se Revela no Município de Cananéia”) A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Como em outros bairros de Cananéia, não havia médico que atendesse essa localidade, por isso os medicamentos eram feitos com o que possuíam naquele local, como plantas e ervas medicinais, tudo de forma caseira. Algumas pessoas notáveis no bairro e com um conhecimento mais acentuado em questões de saúde, exerciam e ainda exercem um papel de agente comunitário de saúde, como é o caso do Senhor Ezequiel de Oliveira, mas hoje eles são atendidos por agentes municipais de saúde do Departamento de Saúde da Prefeitura Municipal de Cananéia no único posto de saúde que o bairro possui. A saúde do povo antigamente era melhor, segundo seu Salvador Donato é por que não compravam nada da venda, diz que o alimento comprado na venda já vem com remédio e seus produtos eram muito mais saudáveis por não possuírem químicas. Quando o remédio caseiro não surtia efeitos, aí não tinha outro jeito, então eles iam ao médico na ilha de Cananéia. As plantas usadas para uso medicinal eram o alfavacão-da-folha-grande (Ocimum basilicum) e a alfavaquinha-da-folha-pequena (Ocimum gratissimum), estas folhas eram batidas com a gema do ovo e a mistura usada para combater a gripe, o resfriado e a tosse, tinha o guandu (Cajanus cajan) – uma vagem igual ao feijão – que também serve para o resfriado, gripe e a tosse. Um remédio para combater a pressão alta e diabetes que foi nos passado por um morador do bairro, consiste no preparo de meio dente de alho em um copo pequeno com água. Eram de grande valia as superstições, muitas delas chegavam até a substituir os remédios caseiros, mas há as que caminhavam juntas, por exemplo, um 140 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Planta medicinal - alfavacão

remédio que era feito para combater vermes: utilizavase folhas da hortelã (Mentha spp.) e folhas da erva santa-maria (Chenopodium ambrosioides), essas folhas eram moídas juntas e o sumo produzido misturado com água, esse preparo era dado à pessoa de madrugada e para fazer efeito a pessoa doente não podia ver o mato, então ficavam no quarto até fazerem as fezes, só daí poderiam sair do quarto. Essa era uma superstição que era passada de geração para geração. No Marujá costumam dizer que os mais velhos contam muita mentira, mas esses contadores de causos e de lendas merecem dignos respeitos, pois são com eles que aprendemos muitas coisas e que mantém viva a imaginação e fantasia dos mais novos, são histórias da própria vida, de um amigo ou de um desconhecido que vão sendo preservadas com o passar dos anos.


Como já dito por Seu Salvador Donato, antigamente não tinha escola, médico, igreja, mas mesmo assim era bom de viver. Para fazer uma consulta no médico tinham que ir até a cidade, andavam um bom tanto de canoa. Uma parte dos moradores sente muita falta desses velhos tempos, em que podiam plantar, caçar, fazer seus artesanatos, mas acham que melhorou bastante as condições de vida, o transporte é

Arquivos PEIC

“Na primeira vez que fomos para fora, eu e Angelino e seus cinco filhos, nisso catamos cinco dias de rebojo, perto da costa do Cambriú, mas nisso nem estávamos preocupados, pois enquanto nós tivesse comida estava tudo bem, só importava que tinha mantimentos, como: farinha, bolacha e peixe fresco com farinha. E quando acabou os mantimentos, sorte que tinha uma árvore fuzilando por perto e nós estava passando na beira da praia, e os filhos de seu Angelino foram pelo outro lado da praia ver se tinha como conseguir uma canoa para transportar as redes do barco, já na praia de Cambriú, eu e Angelino vendo se passa algum navio, mas não passava se quer nenhum na costa, que azar foi esse dia que parecia que Deus não queria que nós voltássemos para as águas, pois o mar estava muito agitado, enquanto isso o barco já estava lá fora, passado da praia do cambriú, e com isso no outro lado da praia os filhos de seu Angelino pegaram uma canoa e foram buscar eu e seu Angelino para irmos até o barco, como o dia já tinha clareado o mar estava manco e disso facilitou o trajeto até a embarcação, após ter pego a embarcação todos foram a beira da praia de cambriú seguindo seu rumo”. (Salvador das Neves)

Seu Salvador das Neves e sua residência

Seu Salvador Donato e sua esposa Joaquina Rodrigues Ponte em frente a sua pousada A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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muito mais rápido, tem escola, possuem uma visita mensal do médico da família, tem as igrejas. Nos falam que agora melhorou porque trabalham menos e ganham mais. Isso se deve ao turismo. O trabalho pesado na roça e na pesca e o que ganhavam era pouco, foi substituído pela arrumação de camas de pousadas, ganhando muito mais e no Marujá é muito crescente o turismo, todo final de semana tem gente.

Eles têm o orgulho de levar o nome de “caiçara” e fazem o possível para valorizar ainda mais essa cultura. Assim não temos dúvidas da sabedoria desse povo mais velho, porque apesar das perdas que tiveram, souberam adequar-se a seus novos “estilos de vida”, preservando suas raízes.

Juliana Greco Yamaoka

Mas em termos culturais, apesar de agora terem uma vida melhor, se perdeu muita coisa, não é culpa dos moradores, pois mesmo com as restrições do parque ainda passam sua cultura para os mais jovens, pelo menos o que se pode ainda fazer.

Morro dos Três Irmãos

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Referências Bibliográficas ALMEIDA, Antonio Paulino de. Memória Histórica da Ilha do Cardoso. IN: DIEGUES, Antonio Carlos (organizador). Enciclopédia Caiçara – Volume IV – História e Memória Caiçara. SP: Editora HUCITEC/ NUPAUB/CEC/USP, 2005, pág. 61-75. MITRAUD, S. (Org.). Manual de Ecoturismo de base comunitária: ferramentas para um planejamento responsável. Brasília: WWF Brasil, 2003. PARADA, Isadora Le Senechal. Mudanças sócioambientais de duas comunidades caiçaras do Parque Estadual da Ilha do Cardoso – SP. Trabalho de conclusão de Curso. UNESP- Campos de Rio Claro. Rio Claro – SP, 2001.


Foles e Cambriú 1

Denise Antunes Ferreira dos Reis 1 Lohan Kovacsics 1 Marcéli Lucilene da Silva Pontes 2 Augusta das Neves Cubas 3 João Cordeiro de Alencar

1 2 3

Estudantes do 2° ano do ensino médio da Escola Estadual Profª Dinorah Silva dos Santos e membros do Coletivo Jovem Caiçara. Moradora tradicional da comunidade de Cambriú entrevistada durante a pesquisa de campo. Morador tradicional da comunidade de Foles entrevistado durante a pesquisa de campo.

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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“Eu colaboro nesse projeto, porque você veja, daqui a pouco eu tô morto e meus netos não vão vê mais nada, então isso ai se deixar na mão do homem, o homem acaba com tudo, ele derruba o mato, existe a seca, acaba as nascentes de água e vai acabá um desacerto em cima da terra, esse sol super quente que a gente tá sentindo aqui, isso aqui que aconteceu foi o desmatamento,

Praia de Foles

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o mundo inteiro tá vendo isso, porque ele forma calor. Da mata em si, embaixo da mata em si é perfumada, o perfume da mata é fresco embaixo do mato, só derrubá o mato é um desacerto, eu sou contra a derrubada da mata. Na época nós vivia disso, mais na época não existia isso, mas eu sou contra isso aí”. (Palavras de seu “João da Toca”, antigo morador do sítio Guaxixi).


“Nós nascemos aqui, nós vivemos aqui e nós morreremos aqui”. (Dona Augusta)

encontram nas localidades pesquisadas. São duas das seis comunidades existentes no Parque Estadual da Ilha do Cardoso – PEIC (criado em 1962). Devido ao difícil acesso e à sabedoria de seus moradores, que conhecem e sabem dar a devida importância ao lugar em que vivem, a fauna, a flora e principalmente a cultura destes caiçaras foram pouco modificadas. Algumas outras modificações que houveram foram devidas às leis ambientais e à criação do PEIC. Para chegar a estas praias é necessário atravessar de barco a “barra de Cananéia” margeando toda a costa norte da ilha, nesse trajeto é possível vislumbrar a Praia do 5 Itacuruçá, a ponta do Itacuruçá , a fantástica Praia do Ipanema e seu enorme costão rochoso, sendo que ao final deste, encontramse as belíssimas praias foco desta pesquisa.

Praia de Cambriú

A perfeita definição para as Praias de Foles e 4 Cambriú nada mais é do que “paraísos incógnitos”. As comunidades de Foles e Cambriú encontram-se situadas na Ilha do Cardoso, banhadas pelo oceano atlântico e próximas a Praia da Lage, que outrora abrigou boa parte dos moradores que hoje se 4

Muitas pessoas, inclusive moradores, chamam esta praia de Camboriú ou Camburiú.

As Praias de Foles e Cambriú, expostas à ação dos ventos oceânicos, apresentam uma paisagem peculiar, com vegetações típicas e ainda bem conservadas, como a restinga e a mata atlântica de encosta. 5

Local onde se encontra um marco de pedra em forma de cruz que assinalava a posse do lugar pela coroa portuguesa no início da colonização do Brasil, foi colocado lá a mando do português Gonçalo Coelho. Este marco, por ser de pedra e ter inscrições, deu origem ao nome “Itacoatiara”, uma vez que anteriormente o lugar não tinha denominação. Este marco encontra-se hoje no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no Rio de Janeiro e no lugar existe uma réplica. Alguns historiadores afirmam que o marco do Itacuruçá representava um dos pontos onde passava a linha imaginária do Tratado de Tordesilhas. Dele também se originou o nome de uma das mais belas praias da região, a Praia do Itacuruçá, que em Tupi significa “Cruz de Pedra”.

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Podemos observar, através de alguns estudos, que a ocupação de Foles e Cambriú têm cerca de um século. Atualmente, Cambriú hospeda em seu território cerca de onze famílias e em Foles apenas cinco. São comunidades tipicamente caiçaras formadas principalmente por pescadores e agricultores que vieram de sítios da Praia da Lage. As principais famílias destas comunidades são as seguintes: Cubas, Neves, Alencar e Cardoso. Atualmente o morador mais antigo em Foles é João Cordeiro de Alencar, mais conhecido como “Seu Cordeiro” e em Cambriú, Dona Augusta das Neves Cubas que mora no bairro há 79 anos. Com eles aprendemos muito sobre a cultura caiçara da região. O nome “Foles” provém de uma rocha que se encontra nessa praia em um de seus costões rochosos, que é conhecida localmente como “pedra do bufador”. 6 Esta, emite um som de um fole , o barulho é ocasionado pela água que chega ao costão rochoso. Esse efeito é muito simples de explicar, as ondas vêm e impulsionam o ar contra as rochas, este ar se desloca pelas suas fendas e sai por um buraco de uma pedra, transmitindo um som, que se fecharmos os olhos e prestarmos atenção, podemos sentir o barulho de um boi bufando! “Porque lá tem uma pedra. Aquela pedra grande que tem lá fora, lá da praia. Quando tem uma pedra oca por baxo, quando o mar vem na pedra, a pedra é foleada lá de cima, foleada por baxo então solta aquele 6

Instrumento que serve para fazer vento e ativar uma combustão, também é parte de um instrumento musical onde se comprime o ar produzindo sons.

146 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

“Pedra do bufador”

vento com força e quando a maré vem, aquilo chupa e quando a maré vem solta o vento, solta o vento e quando o mar desce, ele chupa o lenço, aquilo ali, onde tá aquela força, quando o mar vem aquele vento tira aquele lenço dali. Chupa a pedra depois, quando a água chupa pra fora, chupa aquele lenço, aquele paper pra dentro. Faz que nem o fole. Faz do jeito da pedra. Faz do jeito da pedra, a pedra ali perto, eu conheço. É Fole que gira a pedra. Aquela praia piquena é Folinho (...) Praia que é curtinha. A praia que é cumprida é Foles e a prainha que é curtinha então é Folinho. Folinho, o nome da pedra”. Arlindo Mendes (Serpa, 2005)


Arquivos PEIC

Foto aérea de Cambriú e Foles

Marco do Itacuruçá

Imagem de satélite

Arquivos PEIC

Ponta do Itacuruçá

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Todas as casas eram feitas de madeira, palha, barro, cipó e bambu. As cozinhas seguiam o mesmo padrão e predominava em quase todas as residências o uso do fogão a lenha. Todos esses materiais eram extraídos da mata, sendo que alguns dos moradores reutilizavam as madeiras que ficavam na beira da praia, vindas com a força do mar. Hoje algumas dessas residências possuem cozinhas improvisadas, feitas de madeira, algumas de bambus e cobertas por lonas e situam-se para o lado de fora das casas. São nesses ambientes que ainda encontramos os fogões à lenha, que eram muito usados e ainda continuam a fazer deliciosas comidas em diversas casas. São através desses olhares que percebemos as pequenas mudanças ocorridas nos detalhes da arquitetura local.

Conversando com os moradores podemos observar que para fazer qualquer modificação nas áreas atuais é preciso ter autorização do parque. Isso se aplica tanto para a extração de uma árvore para fazer uma canoa, quanto para fazer uma horta ou ampliar as casas.

Aspectos das residências de Foles e Cambriú, antigo e novo se misturam atualmente

Dona Augusta e seu filho

148 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

A matéria prima usada para o artesanato feito pelos moradores de Foles e Cambriú era retirada do próprio lugar em que moravam, por exemplo, as redes de pesca de antigamente eram totalmente artesanais, eles cortavam ao meio uma palmeira chamada brejaúva (Astrocaryum aculeatissimum) e tiravam-lhe um fio muito resistente, como uma linha, e desse fio eram feitas as malhas das redes. As canoas também eram feitas pelos próprios moradores com árvores comumente encontradas no local, assim como o balaio, a roda para ralar mandioca, o pilão, as colheres de pau etc.


Outro fato curioso do artesanato nesses locais, que vale a pena ser destacado, é sobre o destino dos objetos produzidos. Tudo o que era confeccionado era para uso da própria comunidade, ou seja, não era um tipo de artesanato comercial, como pequenas lembranças do local, mais sim para subsistência dos próprios moradores. “Naquele tempo a rede não era grilão, eles cortavam o pau da brejaúva no meio e tiravam um fio que o pessoal coxava na mão e faziam a rede”. (Morador de Foles) Pesquisando a fundo as manifestações culturais, podemos observar que o fandango foi indispensável em muitos momentos da história de Foles e de Cambriú, já que em todas as festas e comemorações ele

Morador tradicional tecendo rede

estava presente. Desde o final de um dia exaustivo de trabalho até as festas de aniversário das crianças, que “são quando as famílias se reúnem” – dizem os moradores. Mas nenhum dos moradores entrevistados deixou passar em branco os comentários sobre as festas 7 de fandango da Praia da Lage, eles dizem que era a maior festa da região, o povo não via a hora de chegar a época de fazer a roça lá na “Lage”, contam que era muito divertido poder dançar e brincar depois de um dia de muito esforço e trabalho. Além, é claro, de toda a integração e união das famílias que ajudavam umas as outras nos trabalhos na roça, sinal de respeito e harmonia entre estes caiçaras. 7

O termo fandango, para alguns pesquisadores e historiadores, teria vindo da Península Ibérica, do tempo em que Portugal e Espanha ainda não tinham definido suas fronteiras; já para outros seria de origem árabe.

Artesanato com madeira A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Para os caiçaras o fandango não é somente mais um ritmo musical, mas é compreendido como uma manifestação cultural brasileira, fortemente associado ao modo de vida caiçara, pois, sua prática sempre esteve vinculada à organização de trabalhos coletivos.

do fogo na hora de tocar, dizem os mais antigos) e por último a rabeca (um instrumento parecido com um violino, geralmente, feito com caxeta ou bambu). Como diria o seu João da Toca “sem rabeca não tem fandango”.

É composto por alguns instrumentos próprios, todos confeccionados artesanalmente, são eles: duas violas com estilo caiçara, um machete (pequena viola parecida com um cavaquinho, só que tem três cordas), um bumbo ou caixa de folia, como preferem muitos, um adufo (que é quase um pandeiro, só que ele não tem a peça que estica o couro, ele é afinado na beira

Uma curiosidade que descobrimos foi que as cordas da rabeca antigamente eram feitas com tripa de ouriço! Eles matavam o ouriço, arrancavam-lhe as suas tripas e escolhiam três, uma mais grossa, uma média e uma fina, esticavam elas em um prego e deixavam secar por 15 dias, depois disso já estavam prontas para serem colocadas na rabeca.

Pobre Pescador Letra de Valdemir Antonio Cordeiro “Vadico” Grupo Jovens Fandangueiros do Itacuruçá Sou um pobre pescador, ai Que vivo em alto mar Me levanto bem cedinho, ai Para o meu pão ganhar Acordo de madrugada Minha mãe está de pé Preparando a marmita, ai Temperando meu café Quando eu estou saindo Minha mãe me abençoa Pede que Deus me acompanhe, ai Pra que a pesca seja boa A vida do pescador Às vezes ela é bem sofrida Enfrentando a tempestade, ai No mar arriscando a vida 150 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Vendemos nosso pescado Para o atravessador Que vive as nossas custas, ai Mas não quer nos dar valor Pagam o preço que querem Não adianta reclamar Às vezes ainda demora, ai Uma semana pra pagar Amanhã eu vou embora Correr a costa do mar Se eu for vivo eu voltarei, ai Se a onda não me levar Vamos dar por despedida Que eu tenho por descansar Amanhã eu vou cedinho, ai Pra pescar em alto mar.


Moradores de Foles varando uma canoa após a pescaria

Moradores antigos nos contam que de uma pequena gruta que se encontra na Praia de Foles Pequeno, chamada de “Toca do Boi” por eles, surgiu

uma lenda que foi transmitida durante anos, de geração para geração, através das histórias contadas pelos mais velhos e até se tornou uma bela poesia: A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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NA TOCA DO BOI Na toca do boi encontramos,8 Um boi encantado e matreiro . Nas pedras se esconde de dia, E a noite apronta um piseiro.

Melou-se no mangue, Depois em muitas conchas ele rolou, De modos que o vil cetáceo, Em uma sereia se transformou.

E logo atirou-se no mar, Convidando o boi para um enlace. Na intenção de dar-lhe um caldo, Mas, sem que o mesmo se afoga-se.

Ouvimos dizer que este boi, Tem fama de namorador, E as donzelas desta ilha, Se derretem por esse galanteador.

O boi ao retornar para sua toca, Pensou de pronto “Que presente!” E nem notou que era uma armadilha, Do seu principal concorrente.

Depois de tomar muita água, Ainda com vida, em sua toca se enfiou, Conta-se que até hoje o boi, Pra ninguém a história contou.

Para camuflar suas guampas, De búzios ele costuma se enfeitar. E sai desfilando o seu charme, Na passarela do mar.

João Boto pra fazer troças, E com uma humildade aparente, Identificou-se como Sereia Maróca, Que o aguardava ansiosamente.

Porem o boi se arrepia todo, Se alguém fala em Sereia Maróca. E neste dia não há quem tire, O encantado boi de sua toca.

Mas... eis que surge João Boto Lendário, Neste momento a sereia camuflada, Por ser pai de muitos piás, Botou em prática o seu plano. Os quais trazem uma fenda na cuca, Convidando o boi encantado, Que o cetáceo lhe fez herdar. Para se banhar no oceano. Cansado João Boto da fama que corria, O boi então se encheu de pose, Do tal boi encantado e famoso, Abraçando pela cintura a sereia amada, Resolveu então acabar com a festa, Mas nem de longe imaginava, Antes que perdesse seu posto. Que era uma grande presepada. Assim, certa noite o arteiro João Boto, Percebendo que a toca tava vazia, Resolveu aprontar com o boi, Bem antes do clarear do dia.

8

Assim João Boto o brincalhão, Manteve a fantasia de sereia, Mas, a verdadeira intenção, Era de no boi pregar uma peia.

Astuto, sabido, muito experiente.

152 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Cananéia, 04 de outubro de 2006.

Adalgoberto Monteiro

(O nosso amigo Beto “gnomo” apareceu e sumiu tão rápido, deixou muitas saudades e também deixou plantadas suas sementes de sabedoria...)


Podemos observar que houve um pouco de mudança na cultura destes caiçaras. Antes eles viviam praticamente da agricultura e da pesca, hoje passaram a viver da pesca, complementando a renda com o turismo durante o verão ou em alguns feriados prolongados. E mesmo assim a pesca foi modificada, desde a maneira como eram confeccionadas as redes de pesca, até o material que era utilizado pra fazer os apetrechos. “Plantavam milho e mandioca... Os homens faziam as covas e as mulheres plantavam as ramas e nós fazíamos farinha”. (Seu Cordeiro)

Já no passado, não tão recente, a agricultura era uma das principais fontes de alimentos e como a pesca, era muito farta também. Os moradores disseram que chegava a estragar alguns legumes e verduras na roça, devido à quantidade que eram produzidos. Eles geralmente plantavam arroz, mandioca, melancia, milho, feijão etc. O povo conta que além de ter o trabalho de fazer a roça (plantar), tinham que tomar muito cuidado com as pragas que ocorriam eventualmente, como o gafanhoto e a gralha. Os agricultores realizavam sua própria ordenação territorial, administrando a extensão da roça de acordo com o sustento familiar e o número de pessoas disponíveis para trabalhar. Esses lavradores relatam que davam preferência para a abertura de roças em áreas de vegetação secundária, como as de 9 capoeira , e além de plantarem seus legumes na Praia de Foles e Cambriú, também tinham muitas roças espalhadas em outros pontos da ilha. Mendonça (2000), afirma que alguns moradores de Cambriú, por exemplo, cultivavam na Praia de Lage por considerála uma área de maior fertilidade. O dono da terra onde ia ser feita a roça passava de casa em casa, ora a pé, ora de canoa, para convidar a irmandade para o mutirão, de derrubada, roçada, plantio ou colheita. No dia marcado, ao amanhecer, os convidados chegavam de todos os lados, homens, 9

Seu Cordeiro, um dos moradores mais antigos da Praia de Foles

Capoeira: mato novo nascido em lugar de outro que fora derrubado ou queimado (Extraído do Pequeno Dicionário de Vocábulos e Expressões Cananéias, de Edgar Jaci Teixeira, 2005).

A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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mulheres e crianças, com enxadas, foices, enxadões, machados... Os homens ficavam com o trabalho pesado enquanto as mulheres se entretinham no preparo dos alimentos para as refeições durante e após o mutirão, como o arroz, o feijão, o peixe, a carne de caça ou de boi, comprada em Cananéia quando suas economias permitiam, além, é claro, da essencial farinha de mandioca. Pronta a comida, iam ajudar na lavoura deposi10 tando as sementes de arroz, de feijão, a rama , o aipim, as batatas e os demais cultivos. Também era tarefa das mulheres recolher os pequenos galhos para fazer o fogo do fogão à lenha. Todos paravam para o almoço e logo retornavam à roça. Tudo teria que ficar pronto no mesmo dia. Um jovem morador contou que na sua infância, ele acompanhava os adultos no trabalho da roça e falou que os caiçaras tinham o costume de colocar em volta da plantação, vários litros de pinga para espantar as pragas. Diz este morador também, que para trabalhar na roça tinha que ser ligeiro. Os homens passavam fazendo as covas (buracos feitos na terra) e as mulheres passavam jogando as sementes ou plantando a rama. Para realizar o plantio do jeito correto, não podia plantar com o “olho” da rama para baixo, tinha que ser para cima, pois se plantasse para baixo a planta secava e não crescia, diz também que tinham que observar a lua, pois dependendo “da lua” a roça não dava nada. Hoje as grandes roças e todos os procedimentos 10

Nome que recebe também as mudas de mandioca.

154 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

que eram utilizados para o corte, queima e pousio, já não podem mais ser feitas, por causa principalmente das restrições legais que foram impostas. As comunidades tradicionais que residem na Ilha do Cardoso ainda assim possuem algumas facilidades no que se referem às permissões de uso dos recursos naturais, como autorizações para fazerem pequenas roças, extraírem madeiras, palhas e outros recursos vegetais sustentavelmente. Mas são poucos que solicitam tais


autorizações, já que muitos hábitos e costumes caiçaras mudaram bastante. O modo como eles viviam antes era muito saudável, eles mesmos faziam as roças e colhiam o que plantavam. Hoje eles não têm todo esse esforço e dizem que ficou mais fácil agora, pois fazem compras em mercados e não tem mais a necessidade de plantar, economizando tempo e esforços. Pensando bem sobre o assunto, será mesmo que ficou mais fácil? Eles dependem muito do mar para se locomoverem de Foles e Cambriú para Cananéia e gastam de quarenta minutos à uma hora de viagem. Então pensando nisso, nós chegamos à conclusão que antes era mais fácil que atualmente, apesar de todo os esforços que eles tinham. “A pesca está diferente, antes tinha muita fartura, agora tem menos”. (Dona Augusta) A pesca antigamente era feita exclusivamente com canoas, pois na época eles

Apetrechos no rancho de pesca...

não tinham tantos apetrechos e muito menos embarcações grandes. Todo o pescado era para consumo próprio e o excedente trocado entre os moradores. Mas as mudanças nessa atividade foram e estão sendo muito evidentes, desde a quantidade de pescadores que existem, até a facilidade em adquirir barcos e apetrechos como redes e linhas industrializadas. Outro problema muito observado por estes moradores é a entrada de embarcações em nossa costa, vindo de Santa Catarina e Paraná. São barcos grandes como traineiras que realizam a pesca predatória, com suas redes de arrasto que são lançadas próximo ao continente, matando tudo quanto é organismos aquáticos e entre eles os filhotes de peixes. E também o óleo destas embarcações que é lançado diretamente no mar, ocasionando poluição e contaminando os animais marinhos. A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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feita uma fogueira no local onde foi posto; segundo os moradores, não existe um tempo certo para o peixe ficar pronto, depende do tipo de carne, se for dura, será preciso um tempo maior, já se for mole, em pouco tempo ficará pronta. Sem esquecer dos frutos do mar, como a ostra e o mexilhão, abundantes nos costões rochosos e manguezais e utilizados para fazer diversos pratos, como o lambe-lambe. Receita do lambe-lambe: Embarcação de pesca

Todos os moradores fazem muitos pratos típicamente caiçara, em Foles e Cambriú notamos que o peixe seco com banana, camarão, lambe-lambe, mexilhão, ostras, caranguejo, enfim, uma variedade de frutos do mar, são característicos da culinária local. Cada caiçara tem seu modo de preparar os pratos e os ingredientes normalmente não mudam muito. Nestes bairros os moradores consomem muito peixe, arroz, feijão, farinha de mandioca etc. A única maneira que utilizam para conservar os peixes é salgando-os e defumando-os em cima dos fogões a lenha. Esses peixes defumados serviam e ainda servem como produto principal de muitas receitas, como a caldeirada e o peixe seco com banana. Os caiçaras da região também têm o costume de preparar peixe na folha de bananeira. Enrola-se o peixe nas folhas, amarrando-as bem firmes para ser enterrado a um palmo e meio na areia. Por último é 156 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Ingredientes: 2 xícaras de arroz branco polido muito bem lavado e escorrido; 4 xícaras de água fervente; 1 cebola média bem picada; 5 dentes médios de alho amassado; 1 Kg de marisco limpo; Óleo; Cheiro verde bem picado. Modo de preparo: 1. Raspe as cascas, escove e lave muito bem os mariscos; 2. Descarte os mariscos abertos e os quebrados; 3. Refogue a cebola e o alho em óleo quente; 4. Quando a cebola murchar frite o arroz até secar; 5. Acrescente água fervente e os mariscos; 6. Quando ferver, abaixe o fogo e espere o arroz secar; 7. Apague o fogo, aguarde cerca de 15 minutos e sirva; 8. Descarte os mariscos que não abrirem; 9. Polvilhe cheiro verde a gosto; Opcional: coloque tomates bem picados junto com os mariscos.


Prato típico

Um aspecto importante e evidenciado nas conversas com os moradores foi a transmissão dos saberes caiçaras, os quais eram passados para filhos e netos através da convivência com os mais velhos e hoje também, através dos professores da escola. Em relação à educação, nota-se um grande problema de distância, já que antigamente a escola mais próxima ficava na Praia da Lage. Hoje existe apenas a Escola Estadual do Bairro Cambriú, onde estudam crianças que cursam de 1ª à 4ª série do ensino fundamental, em uma única sala com seis pessoas. Quando esses alunos concluem a 4ª série, geralmente param de estudar ou então se mudam para a cidade de Cananéia para poderem terminar os estudos. A escola recebe energia através de placas solares, como algumas casas do local, mas há tempos esperam por um outro modo de energia, a eólica. Esta alternativa energética ainda é experimental e está sendo testada apenas na escola.

Professor e alunos da escola e detalhe do cata-vento para geração de energia eólica A Cultura Caiçara na História dos Bairros Rurais de Cananéia

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Antigamente não havia visitas de médicos como existe hoje e essa dificuldade afetava muito a vida dos moradores. O único jeito que tinham de curar doenças ou feridas era através de chás e plantas medicinais como a erva santa-maria (Chenopodium ambrosioides), usada para matar verme; a folha de mangue, para sanar frieiras; a erva-cidreira (Cymbopogun citratus), utilizada como calmante; a folha de eucalipto, para tratar de bronquites; o “chapéu de coro” (Echinodorus grandiflorus), para problemas nos rins; a pata de vaca (Bauhinia fortificata), utilizada para diabetes etc. Quando não conseguiam sanar seus males com remédios naturais tinham que ir até a cidade de Cananéia para poder se tratar, mas não era sempre que tinham condições de fazer isso, dependiam muito de como se encontrava o mar, caso estivesse agitado, não tinha como ir ao município, aí então utilizavam essas ervas. E com todas essas informações e saberes podemos afirmar o quanto é importante a cultura caiçara e por isso, não podemos deixar que ela se perca, ou seja esquecida. Ao terminarmos as pesquisas, tivemos uma mistura de sabedoria e ignorância, pois aprendemos incontáveis coisas, sendo a principal delas o quanto ainda temos que aprender.

Nascer do sol na praia de Foles

158 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Referências Bibliográficas MENDONÇA, Ana Lucia Furquim. A Ilha do Cardoso - O Parque Estadual e os Moradores. Dissertação de mestrado – USP, Piracicaba, 2000, 168 páginas. PIMENTEL, A.; GRAMANI, D; CORRÊA, J. Museu do fandango vivo. Rio de Janeiro: Associação Cultural Caburé, 2006. 199 páginas. SERPA, Paulo. Memórias de um Caiçara da Comunidade de Foles, Ilha do Cardoso, Cananéia, SP. IN: DIEGUES, Antonio Carlos. Enciclopédia Caiçara – Volume IV – História e Memória Caiçara. SP: Editora HUCITEC/NUPAUB/CEC/USP, 2005, pág. 371-380. TEIXEIRA, Edgar Jaci. Pequeno Dicionário de Vocábulos e Expressões Cananéias, 2005, 94 páginas.


Uma Memória Curta? Então, Curta a Memória! A Importância do Registro do Patrimônio Cultural Imaterial Caiçara 1

Fernando Oliveira

“Tudo aprendemos com os velhos, ouvindo e vendo sua maneira de trabalhar. Depois já se vai conhecendo, comprovando que aquilo é verdade” Depoimento de um pescador (ALLUT, 2000) Tempo bom, não volta mais, saudades que esse tempo me trás... Correndo e gritando de um canto a outro da casa, escutamos uma voz firme ordenando: “Ara sô, vamo para com essa bagunça agora”. No mesmo instante, parávamos e escutávamos atentamente o velho Ovídio, meu avô materno. Negro alto e forte, rosto sereno e cansado, saúde invejável para o avançado da idade, meu avô trazia em suas mãos as marcas de quem já viveu da roça no interior de São Paulo. Bisneto de índio casou-se com a branca Luísa, filha de imigrantes italianos vindos para trabalhar nas plantações de café. 1

Licenciado e Bacharel em Ciências Biológicas, Especialista em Educação Ambiental e Mestre em Ecologia. Atualmente, é Diretor de Educação e Cultura do Instituto de Pesquisas Cananéia (IPeC), Coordenador do Ponto de Cultura “Caiçaras” e da Rede Caiçara de Cultura.

Na década de 1960, como tantos outros, foram morar na capital paulista para tentar ganhar a vida em meio ao acentuado processo de industrialização que lá se instalara. E lá continuaram a viver... Minha mãe, mulatinha espevitada, nasceu ainda na cidade de Olímpia, terra natal dos meus avós, hoje considerada a capital nacional do folclore. Meu pai, retirante nordestino, da pequena cidade de Sanharo, Pernambuco, veio para São Paulo ainda menino, fugido das tristezas e amarguras do sertão. Eu nasci no bairro da Mooca, um típico e famoso bairro paulistano em que facilmente se ouve o sotaque cantarolado do povo da capital. Lembro-me que aos domingos nos reuníamos e, como quase todas as famílias, degustávamos a deliciosa comida da vovó. Depois do almoço, meu avô nos levava para um

Uma Memória Curta? Então, Curta a Memória! A Importância do Registro do Patrimônio Cultural Imaterial Caiçara

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passeio ao redor do bairro. No caminho, cumprimentava a todos, sem exceção. Desde o moço da quitanda até o motorista do ônibus, passando pelo frentista do posto, pela moça da loja de discos e pelo senhor da banca de jornal. Era interessante perceber que as pessoas viviam como numa cidade pequena, onde todos se conhecem e se cumprimentam. E quase todos os domingos eram assim... As lembranças dos meus dias de guri ainda me trazem à mente as viagens de férias para a cidade de Olímpia. O vai e vem das pessoas nas ruas e o eterno “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”, igualzinho na cidade grande, no bairro onde vivíamos. Lá, depois de um dia intenso de atividades e brincadeiras, sentávamos na varanda da casa grande e ao pôr-dosol ouvíamos as histórias e mentiras que os adultos contavam. Olhos fixos e ouvidos antenados na conversa, assim íamos até a hora que o sono chegasse. Tudo guardado na memória... A vida nos leva ao vento, restam as lembranças! Lembro que aos seis anos de idade, mudamos para bairro mais periférico da cidade. Poucos anos depois, meus avós foram morar junto conosco. Algumas ruas asfaltadas, outras tantas sem energia elétrica, aquele era um lugar de gente muito simples, de falar simples e de vida simples. Cresci ali, ouvindo histórias de migrantes vindos de todos os cantos do Brasil. Jogo de bola, bola de gude. Pipa no ar, roda pião. Brincadeiras de meninos, ainda livres do compromisso férreo de ser adulto. Assim passaram-se meus últimos anos de infância... 160 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

E continuava a ouvir as histórias e conselhos do velho Ovídio. Em certo tempo, tais histórias e conselhos me pareciam demasiadamente exagerados. Dava de ombros, saía andando e pensava: “Por que ele acha que sabe mais do que eu?”. Coisas da adolescência, gente que sabe de tudo e mais um pouco, aquela vontade doida de ser gente grande e ganhar o mundo o mais rápido possível. Se soubéssemos de tudo, gostaríamos de voltar ao útero... Acho que aos 14 anos ganhei o mundo pela primeira vez. Primeiro emprego e grana no bolso, pouca é verdade, coloquei os pés na estrada (só nos feriados!) e conheci muitos lugares lindos desse nosso país. Tanta gente boa vivendo de um jeito tão simples! Descobri outros territórios e novas culturas. O caminho se faz ao caminhar... No meio dessas tantas andanças, vim parar em Cananéia no ano de 1994, poucos meses depois de entrar para a acadêmica. Na verdade, foram os botos que vivem na região que me fizeram descer a serra em direção ao extremo litoral sul do Estado de São Paulo pela primeira vez. Fiquei maravilhado com tudo o que vi e naquele momento decidi, de súbito, que aqui seria o lugar onde eu iria trabalhar e morar, viver! Assim, comecei a freqüentar a cidade de Cananéia com bastante freqüência, pois iniciei estudos sobre o comportamento dos botos nas águas do Lagamar. Pouco depois, no ano de 1997, ajudei a fundar uma organização não-governamental para atuar nas áreas de pesquisa, educação e cultura, principalmente na região conhecida como Complexo estuarino-lagunar Iguape/Cananéia/Paranaguá.


Fernando Oliveira

O boto (Sotalia guianensis) é facilmente avistado nas águas de Cananéia

Fazendo história para contar histórias... Um período fértil de crescimento e aperfeiçoamento profissional se fez. Instalou-se em mim um profundo questionamento sobre as dificuldades de se promover o desenvolvimento econômico aliado à conservação da natureza. Aquilo me parecia bastante utópico, uma vez que o modelo incutido na cabeça de boa parte da sociedade pressupunha o desenvolvimento com base no crescimento desordenado e na promoção cada vez maior da exclusão social de comunidades menos favorecidas. Observando o modo de vida das comunidades caiçaras, percebi que se tratava de um povo também excluído dos modelos de desenvolvimento predominantes, assim como aqueles oriundos dos bairros periféricos da cidade grande onde nasci e cresci. Percebi que empurrados em grande parte para áreas periféricas do município, por conta do desenvolvimento urbano desordenado ou pela transformação de seu espaço em Unidades de Conservação, os caiçaras de Cananéia sofriam demasiadamente os malefícios provenientes desse modelo

desenvolvimentista equivocado. Muitos eram obrigados a se adaptar a novas realidades e deixavam de lado práticas tradicionais para viver de acordo com os novos padrões. Por outro lado, o passar do tempo também se revelava cada vez mais interessante, pois comecei a notar como os pescadores tinham uma estreita relação com a natureza, tornando-se profundos conhecedores de aspectos da fauna e flora. Um bom exemplo é a sua relação com os botos, isso porque esses animais, segundo eles, os ajudam na 2 pescaria de cerco-fixo . A cada dia aumentava o meu interesse pelas histórias contadas por esses caiçaras e cada vez mais me apaixonada pelas terras e águas de Cananéia. Assim, fiz amigos caiçaras e aos poucos comecei a buscar mais informações sobre o seu peculiar modo de vida, me engajando de vez na luta pela defesa de seus direitos e na promoção e valorização da rica cultura. A essa altura minha família era uma referência sim, mas o valor dado outrora aos causos e histórias contados se perdia momentaneamente. Em 1999, recebi, em Cananéia, a notícia de que o velho Ovídio havia perdido a luta pela vida entregando-se aos mistérios da morte. Incrível sentir isso, mas foi então que percebi o quanto eu também estava perdendo em minha vida! Quantas histórias aquele negro-índio ainda teria para me contar? Quantas vez mais poderíamos passear pelo bairro trocando idéias e aprendendo um com o outro? 2

O cerco-fixo é uma armadilha de pesca confeccionada com taquaras e mourões, que apresenta como principais componentes a ‘casa do peixe’, uma espécie de tanque, o ‘gancho’, uma estrutura parecida com as asas de um avião, e a ‘espia’, uma barreira que liga a margem do canal estuarino à ‘casa do peixe’, e que serve para barrar os peixes que circulam próximos à margem (OLIVEIRA, 2007).

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Andréa D’Amato

O tradicional cerco-fixo de pesca

Percebi, talvez um pouco tarde demais, que a minha história estava umbilicalmente ligada à história do meu avô. Queria escutá-lo mais algumas vezes... Pouco tempo depois, juntei minhas coisas e mudei de vez para Cananéia. Era hora de viver as histórias caiçaras e de construir as minhas próprias histórias. Hora de buscar na memória as lembranças de infância e adolescência. Relembrar dos causos e dos momentos vividos. Ver, ouvir, viver e sentir a delícia de “ser um caiçara”, filho e neto de caipiras e nordestinos, bisneto de índios e afro-brasileiros... A importância dos saberes e da cultura caiçara De barco chegamos! Lá do outro lado da Barra de Cananéia, no cantinho norte da Ilha do Cardoso, a comunidade do Itacuruçá. Ou seria Pereirinha? Bom, já nos disseram há tempos atrás que isso vai depender de onde está a desembocadura do Rio 162 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Perequê. “Daqui pra lá era Itacuruçá e daqui pra cá era o Pereirinha! Mas aí a boca desse rio mudou de lugar e agora virou tudo Pereirinha! Ou Itacuruçá!”. Quem nos conta é Seu Daniel, um dos moradores da comunidade do Itacuruçá (ou Pereirinha?!), que hoje fica no Parque Estadual da Ilha do Cardoso, unidade de conservação criada no ano de 1962, em meio ao turbulento período militar brasileiro. Sentados a beiramar, ficamos horas e horas batendo papo e olhando o horizonte. Seu Daniel é um típico caiçara. Apaixonado pelo mar e pela pesca artesanal, nos conta como as coisas “funcionam” no mar, quais as artes de pesca que usa e que tipos de peixes pesca. Reclama, a todo momento, que antigamente as coisas eram melhores, que os homens da lei não os incomodavam e que a pesca lhe rendia muito mais do que hoje. De repente, um boto salta e nos impressiona! “Ele tá fazendo a pesca dele”, comenta Seu Daniel e complementa sabiamente: “A gente vê o boto como um amigo, como um parceiro. Porque ele tá ali fazendo a pesca dele e a gente aqui fazendo a nossa”. O tempo passa e ali ficamos a prosear até que o dia caía e começassem a surgir os primeiros sinais e sons da noite... A cena descrita mostra claramente um dos principais elementos que compõem o imaginário e a base da cultura caiçara, ou seja, a sua relação direta com o meio ambiente que os circunda. Profundos conhecedores dos lugares onde vivem, os caiçaras têm uma relação harmoniosa com a natureza, uma vez que dependem diretamente da manutenção da diversidade biológica para que possam manter o seu próprio modo de vida. Ocupando desde sempre os interiores da Floresta Atlântica, a sua cultura começou


a formar-se a partir do encontro dos europeus (portugueses e espanhóis) com os nativos que já viviam nas terras brasileiras e, num segundo momento, com os negros trazidos da África. Uma saudável mistura que forma não só a cultura caiçara, como também é base para formação de todo o povo brasileiro. As comunidades caiçaras se formaram nos interstícios dos grandes ciclos econômicos do período colonial, fortalecendo-se quando essas atividades voltadas para a exportação entraram em declínio. Sua decadência, em particular no setor agrícola, incentivou as atividades de pesca e coleta em ambientes aquáticos, sobretudo os de água salobra, como estuários e lagunas (MOURÃO, 1971; DIEGUES, 1983). De forma geral, caracterizam-se por sua relativa independência econômica e cultural, mesclando técnicas e conhecimentos europeus e indígenas otimizando, dessa forma, o aproveitamento dos recursos naturais da Mata Atlântica e de seus ecossistemas associados, como restingas, manguezais e corpos d´água. Essa cultura se desenvolveu principalmente nas áreas costeiras dos atuais Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e norte de Santa Catarina (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2001). Economicamente, desenvolvem um complexo sistema de atividades complementares, destacando-se a agricultura de coivara, o extrativismo vegetal, a caça, a coleta de moluscos e crustáceos e a pesca, seja em rios, lagunas ou mar aberto (MOREIRA; SALES, 1999). Habitantes autênticos das florestas tropicais brasileiras, os caiçaras possuem um importante conhecimento sobre os ecossistemas que habitam. Depen-

dentes de recursos aquáticos nas suas atividades de pesca e extrativismo, apresentam um detalhado conhecimento sobre a dinâmica do ecossistema estuarino-lagunar. Possuem ainda, um profundo conhecimento etnobiológico e etnoecológico, relacionado com as suas atividades de subsistência que incluem tanto recursos terrestres como recursos aquáticos (HANAZAKI, 2001). Eles exploram ambientes marinhos, estuarinos e de água doce e reconhecem uma alta diversidade de espécies de peixes e, muitas vezes, minimizam a incerteza da atividade pesqueira através do seu conhecimento sobre as espécies e o ambiente (PÁLSSON, 1991 apud HANAZAKI, 2001). Vivendo no interstício da Mata Atlântica e do mar, estuários, mangues, restingas e lagunas, usando seus recursos naturais para a reprodução de seu modo de vida, construíram um território rico em diversidade biológica e cultural. Os saberes tradicionais sobre os seres do mar e da mata desempenham papel fundamental na construção de sistemas de manejo da natureza, muitos deles marcados por grande engenhosidade. O folclore caiçara era um dos mais ricos do Brasil (DIEGUES, 1983). (MUSSOLINI, 1946; DIEGUES, 1983, 1996). As transformações e as mudanças sócio-culturais têm sido uma constante nas comunidades caiçaras (DIEGUES, 2004). Cada vez mais empurrado da terra para o mar, o caiçara do litoral paulista rearticulou seu modo de vida em função da pesca e da especialização em algumas tarefas antes desenvolvidas de modo interdependente – como a coleta de palmito e caixeta, por exemplo. Como pescador exclusivo, tornou-se escravo do mercado, da pesca

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predatória, da necessidade de motorização e de insumos industriais; como especialista em recursos extrativistas, sentiu-se constantemente ameaçado, perseguido por policiais florestais, em virtude do cercamento de suas antigas áreas de caça e coleta e sua subseqüente transformação em unidades de preservação ambiental. Desse modo, o “caiçara” viuse, no presente, caminhando pela tênue fronteira que separa o marginal social do sujeito portador de uma cultura e de uma identidade mais ou menos definidas, tal como estas haviam sido formatadas no passado (SILVA, 2004).

Andréa D’Amato

As comunidades caiçaras mantiveram sua forma tradicional de vida até a década de 1950, quando as primeiras estradas de rodagem interligaram as

Hoje em dia, a vida caiçara está ligada diretamente às atividades de pesca

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áreas litorâneas com o planalto, ocasionando o início do fluxo migratório. Uma das ameaças a essas comunidades e ao exercício de suas atividades tradicionais provém do avanço da especulação imobiliária, iniciada nas décadas de 1950 e 1960, sobretudo com a construção de residências secundárias ao longo do litoral. A especulação imobiliária privou grande parte dos caiçaras de suas posses nas praias, obrigando-os tanto a trabalhar como caseiros e pedreiros, quanto a se mudar para longe do local de trabalho, dificultando as atividades pesqueiras. O turismo de massa, sobretudo no litoral norte do Estado de São Paulo, também contribuiu para a desorganização das atividades tradicionais, criando uma nova estação ou safra nos meses do verão, quando muitos caiçaras se transformam em prestadores de serviços. Outro processo responsável pela desorganização da cultura caiçara é o fato de grande parte de seu território terse transformado em áreas naturais protegidas. A modificação do espaço de reprodução material e social para parques e reservas naturais resultou em graves limitações às atividades tradicionais de agricultura itinerante, caça, pesca e extrativismo. Emergiram assim, conflitos com os administradores das unidades de conservação além de uma migração ainda maior para as áreas urbanas, onde os caiçaras, expulsos de seus territórios, passaram a viver em verdadeiras favelas, fadados ao desemprego e ao subemprego. Essas contínuas agressões à cultura e ao modo de viver caiçara não aconteceram sem alguma reação dessas comunidades. A partir da década de 1980, quando a pressão dos órgãos governamentais ambientalistas sobre as comunidades caiçaras se fez maior, várias organizações não-governamentais e institutos de


pesquisa passaram a apoiá-las no esforço para permanecerem em seus territórios. Começaram a surgir, em alguns locais, associações de moradores, as quais se fizeram ouvir em reuniões governamentais e congressos, dando início a um processo de reafirmação da identidade cultural caiçara, abafada por décadas de discriminação por parte das autoridades e das elites urbanas interessadas na expropriação de suas terras (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2001). Apesar de esforços recentes para integrar comunidades locais com as propostas de desenvolvimento e conservação, estas comunidades, incluindo os bairros caiçaras nas áreas costeiras, quase sempre se situam à margem do desenvolvimento econômico. Além disso, a tendência geral de fragmentação da Mata Atlântica pode afetar diretamente o conhecimento tradicional caiçara, cuja tendência é tornar-se também fragmentado ou ser absorvido pelas culturas urbanas que os circundam. Considerando-se esta situação, as ameaças ao conhecimento local dos caiçaras são apenas conseqüências das ameaças a sua existência (HANAZAKI, 2001). As comunidades caiçaras passaram a chamar a atenção de pesquisadores em virtude das ameaças, maiores a cada dia, a sua sobrevivência material e cultural, e também por causa da contribuição histórica que têm dado à conservação da biodiversidade, pelo conhecimento que possuem da fauna e da flora e pelos sistemas tradicionais de manejo dos recursos naturais de que dispõem (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2001).

Dar voz e deixar perpetuar o saber fazer caiçara É amplamente reconhecida a importância de promover e proteger a memória e as manifestações culturais representadas, em todo o mundo, por monumentos, sítios históricos e paisagens culturais. Mas não só de aspectos físicos se constitui a cultura de um povo. Há muito mais, contido nas tradições, no folclore, nos saberes, nas línguas, nas festas e em diversos outros aspectos e manifestações, transmitidos oral ou gestualmente, recriados coletivamente e modificados ao longo do tempo. A essa porção intangível da herança cultural dos povos, dá-se o nome de patrimônio cultural imaterial (UNESCO, 2007). Para muitas pessoas, especialmente as minorias étnicas e os povos indígenas, o patrimônio imaterial é uma fonte de identidade e carrega a sua própria história. A filosofia, os valores e formas de pensar refletidos nas línguas, tradições orais e diversas manifestações culturais constituem o fundamento da vida comunitária. Num mundo de crescentes interações globais, a revitalização de culturas tradicionais e populares assegura a sobrevivência da diversidade de culturas dentro de cada comunidade, contribuindo para o alcance de um mundo plural (UNESCO, 2007). No caso das comunidades tradicionais caiçaras, a revalorização dos seus diferentes saberes/fazeres é de fundamental importância para se promover um desenvolvimento social ético e justo. Para tanto, necessitamos registrar tais saberes/fazeres sob as mais diferentes formas (pesquisas, dissertações e teses, livros, documentários, gravações entre outros). Além disso, é essencial garantir a perpetuação de seu modo de vida,

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garantindo-lhes formas de continuidade e reprodução social, sendo essa uma das formas mais eficazes de se preservar e valorizar esse patrimônio intangível.

Para Hanazaki (2001) faz-se necessário caracterizar as populações caiçaras e as suas principais 166 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

Fernando Oliveira

Recentemente, as comunidades caiçaras passaram a chamar a atenção de pesquisadores em virtude das ameaças, maiores a cada dia, a sua sobrevivência material e cultural, e também por causa da contribuição histórica que têm dado à conservação da biodiversidade, pelo conhecimento que possuem da fauna e da flora e pelos sistemas tradicionais de manejo dos recursos naturais de que dispõem (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2001). De forma geral, podemos destacar, dentre outros, os estudos sobre pesca (DIEGUES, 1983; CUNHA, 1987; FERNANDES-PINTO, 2001; BECCATO, 2002; CLAUZET; BARELLA, 2004; SOUZA; BARELLA, 2004), impacto do turismo sobre as comunidades (CALVENTE, 1993; MERLO, 1997; PARADA, 2001), comunidades que vivem em ilhas (BEGOSSI, 1989), ecologia humana (HANAZAKI, 2001; GARROTE, 2004) e, finalmente, etnoconservação e a relação e/ou conflitos entre populações caiçaras, áreas naturais protegidas e unidades de conservação (MALDONADO, 1997; DIEGUES; NOGARA, 1994; ADAMS, 2000; NUNES, 2003; OLIVEIRA, 2007). Finalmente, vale destacar, a publicação da “Enciclopédia Caiçara”, importante obra publicada pelo Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras (NUPAUB/USP), que traz em seus cinco volumes boa parte do que se conhece atualmente sobre os conhecimentos e saberes caiçaras, sobre seu modo de vida, incluindo história social, crenças, música e arte.

atividades econômicas, de forma que se possam compreender as mudanças recentes na sua relação com o meio-ambiente.

O cotidiano faz do caiçara um profundo conhecedor dos ecossistemas costeiros. A pesca artesanal é uma prática ainda comum, mas começa a perder espaço para outras atividades econômicas consideradas nãotradicionais

Mas como faremos para valorizar e, de certa forma, preservar o modo de vida das comunidades caiçaras ante o modelo desenvolvimentista predominante? Como faremos para garantir os seus direitos seculares adquiridos não por leis e decretos, mas sim pela presença histórica em seus territórios? Como frear esse movimento imobiliário especulativo que ameaça as suas vidas? Como integrá-los às antigas e novas Unidades de Conservação de forma a promover a sua inclusão sócio-ambiental? Enfim, perguntas que devem ser priorizadas na busca por soluções participativas e democráticas para a inclusão social dessas


comunidades tão importantes histórica e culturalmente para o nosso país.

rumos para a proteção da natureza nos trópicos. São Paulo: Hucitec, 2000. p. 101-123.

O tempo passa e as coisas mudam! Mas o tempo passa e muitas coisas não mudam! Hoje, percebo que tudo se transforma com as novas realidades. Nenhuma cultura é estática, congelada no tempo e no espaço. Nenhum ser humano é peça para ser colocada em museu. Lá na periferia, a quitanda mudou de dono, os ônibus ainda passam lotados e as crianças correm soltas por cima dos telhados. Aqui no Lagamar, os caiçaras tocam o fandango, pescam de tarrafa e vêem suas crianças correrem soltas pelas praias à beira-mar. E quanto dessa memória já se perdeu para todo o sempre?

BECCATO, M.A.B. Técnicas e Estratégias de pesca relacionadas a confecção do cerco-fixo por pescadores artesanais do Parque Estadual da Ilha do Cardoso e seu entorno. 2002. 51 p. Monografia (Bacharelado em Ciências Biológicas) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2002.

Sem dúvida, muito temos para ouvir dos antigos caiçaras, principalmente as suas histórias vividas ou até mesmo inventadas. Como essas que se seguiram capítulo a capítulo nesse livro. Histórias essas contadas pela galera do Coletivo Jovem Caiçara. Gente que decidiu de ir a campo perguntar aos seus pares como era a vida antigamente e na sua visão assumiu a responsabilidade de nos contar essas histórias pela memória dos antigos...

Referências Bibliográficas ADAMS, C. Caiçaras na Mata Atlântica: Pesquisa científica versus Planejamento e Gestão Ambiental. São Paulo: Annablume Editora e Comunicação, 2000. 337 p. ALLUT, A. O conhecimento dos especialistas e seu papel no desenho de novas políticas pesqueiras. In: DIEGUES, A. C. S. (Ed.) Etnoconservação: novos

BEGOSSI, A. Food diversity and choice and tecnology in Brazilian Fishing Community. 1989. 223 p. PhD – University of California. Davis, 1989. CALVENTE, M. DEL C.H.M. No território do azul marinho: a busca do espaço caiçara. 1993. 148 p. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993. CLAUZET, M.; BARELLA, W. A pesca artesanal na praia Grande do Bonete, Ubatuba, litoral norte de São Paulo. In: DIEGUES, A. C. S. (Ed.). Enciclopédia caiçara. O olhar do pesquisador. São Paulo: Hucitec, 2004. p 147-161. CUNHA, L.H.O. Entre o mar e a terra, tempo e espaço na pesca em Barra da Lagoa. 1987. 244 p. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Faculdade de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1987. DIEGUES, A.C.S. Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo: Editora Ática, 1983. 287 p. ________. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Editora Hucitec, 1996. 169 p.

Uma Memória Curta? Então, Curta a Memória! A Importância do Registro do Patrimônio Cultural Imaterial Caiçara

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________. A mudança como modelo cultural: o caso da cultura caiçara e a urbanização. In: ___________ Enciclopédia Caiçara. O olhar do pesquisador. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 21-48.

MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2001. Saberes Tradicionais e Biodiversidade no Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente; São Paulo: USP, 2001. 176 p.

DIEGUES, A. C.; NOGARA. P. J. O nosso lugar virou parque: estudo sócio-ambiental do Saco do Mamanguá, Parati, Rio de Janeiro. 2. ed. São Paulo: NUPAUB/USP, 1999. 187 p.

MOREIRA, A. C. C.; SALES, R. J. R. A cultura caiçara no Brasil. Debates sócio ambientais, 12, 1999.

FERNANDES-PINTO, E. Etnoictiologia dos pescadores da Barra do Superagui, Guaraqueçaba, PR: Aspectos Etnotaxonômicos, etnoecológicos e utilitários. 2001. 157 p. Dissertação (Mestrado em Ecologia e Recursos Naturais) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2001. GARROTE, V. Os quintais caiçaras, suas características sócio-ambientais e perspectivas para a comunidade do Saco do Mamanguá, Paray, RJ. 2004. 180 p. Dissertação (Mestrado em Recursos Florestais) – Universidade de São Paulo, Piracicaba, 2004. HANAZAKI, N. Ecologia de caiçaras: uso de recursos e dieta. 2001. 193 p. Dissertação (Mestrado em Ecologia) – Instituto de Biologia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001. MALDONADO, W. Comunidades caiçaras e o Parque Estadual de Ilha Bela. In: DIEGUES, A. C. S. (Ed.). Ilhas e sociedades insulares. São Paulo: NUPAUBUSP, 1997. p 123-136. MERLO, M. As vozes do Bonete, uma face de Ilhabela. In: DIEGUES, A.C.S. (Ed.). Ilhas e sociedades insulares. São Paulo: NUPAUB-USP, 1997. p. 111-136.

168 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia

MOURÃO, F.A.F. Os pescadores do litoral sul de São Paulo. Um estudo de sociologia diferencial. 1971. 264 p. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1971. MUSSOLINI, G. O cerco da tainha em São Sebastião. Revista de Sociologia, São Paulo, v. 8, n. 3, p. 135-147, 1946 NUNES, M. Do passado ao futuro dos moradores tradicionais da Estação Ecológica Juréia-Itatins/SP. 2003. 168 p. Dissertação (Mestrado em Geografia Física) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. OLIVEIRA, F. Conhecimento tradicional e etnoconservação de cetáceos em comunidades caiçaras do município de Cananéia, litoral sul de São Paulo. 2007. 110 p. Dissertação (Mestrado em Ecologia) – Universidade de São Paulo, Piracicaba, 2007. PARADA, I.L.S. Mudanças Sócio-Ambientais de duas comunidades caiçaras do Parque Estadual da Ilha do Cardoso – SP. 2001. 82 p. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso de Ecologia) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Rio Claro, 2001.


SILVA, L. G. Da terra ao mar: por uma etnografia histórica do mundo caiçara. In: DIEGUES, A. C. S. (Ed.). Enciclopédia caiçara. O olhar do pesquisador. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 49-70. SOUZA, M. R.; BARELLA, W. Etnoictiologia dos pescadores artesanais da Estação Ecológica Juréia-Itatins (São Paulo, Brasil). In: DIEGUES, A. C. S. (Ed.).

Enciclopédia Caiçara. O olhar do pesquisador. São Paulo: Hucitec, 2004. 117-131. UNESCO, 2007. Patrimônio Cultural Imaterial. Disponível em: http://www.unesco.org.br/areas/ cultura/areastematicas/patrimonio/patrimonioi material/index_html/mostra_documento. Acesso em 31 mai. 2007.

Uma Memória Curta? Então, Curta a Memória! A Importância do Registro do Patrimônio Cultural Imaterial Caiçara

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Fernanda Forato

Coletivo Executor

170 Saberes Caiçaras - A cultura caiçara na história de Cananéia


Cleber Rocha Chiquinho

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9 788586 508677 Projeto realizado com o apoio:

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19/11/2007, 16:17


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