BORDO LIVRE REVISTA DO CLUBE DE OFICIAIS DA MARINHA MERCANTE
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SETEMBRO /OUTUBRO 2018
ALMOÇO ALMOÇO MENSAL DO COMM NORTE (21.09.2018)
Todas as penúltimas Sextas-feiras, no Restaurante Marisqueira Mauritânia, Leça da Palmeira. Inscrições através do comm.norte@gmail.com.
EDITORIAL
O NOSSO COMM: UMA VISÃO PARA O FUTURO Desculpem os nossos camaradas ao voltar a este tema mas ao longo destes anos, que já vão sendo muitos em que me tenho mantido nas diferentes Direções, pelo menos nas duas últimas décadas, aquilo que mais me preocupa e que deveria preocupar todos os meus/nossos amigos do nosso COMM.
JORGE RIBEIRO
Falarmos de Marinha Mercante Portuguesa, nesta altura do campeonato (como hoje em dia se diz) é como a discussão em termos termodinâmicos do zero e do zero absoluto, ou, mais simplesmente ela, Marinha Mercante Portuguesa, não existe. Resultado de vários fatores ao longo das últimas cinco décadas a que não serão alheias as más políticas dos sucessivos governos que nos têm (des)governado, mas também, e será bom que se diga, dos nossos (des)armadores que, continuando a sofrer daquela doença provocada pelo vírus da subsídiodependência, têm contribuído e de que maneira, para um ainda maior agigantamento de Marinhas de países da chamada CE e cujos ARMADORES têm feito aquilo que é normal num ARMADOR - arriscam, sim porque andar no mar sempre foi um negócio de risco, basta lembrarmo-nos dos nossos antepassados que chegaram a dar cartas no mundo marítimo. A nossa EN continua a remar contra a maré, continuando a formar jovens oficiais para uma nossa Marinha que é zero. Restam os tais Armadores de outros países que nos vão fazendo o favor de proporcionar estágios a meia dúzia desses jovens que se apercebem que foram de algum modo enganados, mas tarde demais.
Este é o panorama (triste) que se nos depara. No horizonte da nossa “Nau” chamada COMM é este o cenário. A matéria-prima que seria expetável transformar-se nos jovens sócios do nosso Clube e que garantiriam o seu futuro, vai definhando a olhos vistos. Ora, sabendo nós que a média etária dos nossos sócios atuais é razoavelmente elevada, é só fazermos as contas (como alguém dizia) e imaginarmos o que seria o nosso COMM, digamos, daqui a 15-20 anos. Isto se não fizermos nada para mudar o rumo dos acontecimentos mais que previsíveis. Temos que ter a coragem de tirar a cabeça da areia e decidirmos naquilo que possa depender de nós. Assim, esta Direção tem um projeto a apresentar que passará obrigatoriamente pela alteração cirúrgica dos nossos Estatutos, para além de uma quase completa reorganização de algumas secções do nosso COMM que nos levará para uma maior profissionalização das nossas atividades e que nos médio e longo prazos nos garanta que aquelas lindas instalações localizadas em local tão nobre irão continuar a ser um “abrigo” para todos os que adoram o mar, até porque ele faz parte de uma grande fatia das nossas vidas. É altura de tomarmos decisões fortes e deixarmos para trás falsos pruridos, típicos de alguns Portugueses certamente descendentes diretos dos tais “velhos do Restelo” e que nada fazem mas que ateimam em criticar quem tenta dobrar o Cabo das Tormentas. Ou será da Esperança…? Bom Tempo, Mar e Horizonte!
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SUMÁRIO
SETEMBRO/OUTUBRO 2018
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Editorial
Jorge Ribeiro
AEuropa, os Lóbis e os Navios em final de vida - parte 2 António Costa
Sabedoria do Mar Alberto Fontes
Homens do Mar Ana Maria Lopes
Os Jovens e o Mar Bárbara Chitas
Notícias
DIRETOR
Lino Cardoso
COLABORARAM NESTE NÚMERO
Jorge Ribeiro, Bárbara Chitas, António Costa, Alberto Fontes, Ana Maria Lopes
OS TEXTOS ASSINADOS SÃO DA RESPONSABILIDADE DOS SEUS AUTORES
COMPOSIÇÃO Mapa das Ideias TIRAGEM 1000 exemplares PERIODICIDADE Bimestral REG PUBL 117898 DEPÓSITO LEGAL 84303 CORREIO EDITORIAL Despacho eDE00512018RL/CCSuu
PROPRIETÁRIO/EDITOR
Clube de Oficiais da Marinha Mercante Trav S João da Praça, 21. 1100-522 Lisboa Tel (+351) 218880781. www.comm-pt.org secretaria.comm@gmail.com
CAPA © Jorge Chincho Macedo DISTRIBUIÇÃO GRATUITA AOS SÓCIOS DO CLUBE DE OFICIAIS DA MARINHA MERCANTE
A REVISTA ESTÁ DISPONÍVEL ONLINE para leitura, duma forma fácil e intuitiva em http://issuu.com/clubeoficiaismarinhamercante/docs/bl148
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A EUROPA OS LÓBIS
E OS NAVIOS EM FINAL DE VIDA PARTE 2
O Supremo Tribunal do Bangladesh suspendeu o desmantelamento do FSO North Sea Producer, após a descoberta de substâncias radioactivas a bordo do navio
E PARA ONDE VÃO?
ANTÓNIO COSTA
Amaior parte desta reciclagem de navios ocorre no sul da Ásia, frequentemente, em praias de maré e sob condições perigosas
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A Turquia, China, Bangladesh e Índia são, actualmente, os principais destinos escolhidos para o desmantelamento dos navios e, no seu conjunto, são responsáveis pelo desmantelamento de 84% dos navios em todo o mundo. E esta realidade tem uma razão muito simples: dinheiro! Embora os dados conhecidos e fiáveis sejam escassos, um estudo da DNV GL revelou que o custo de enviar um navio em fim de vida para ser reciclado numa instalação sustentável é aproximadamente 34% mais elevado – ou seja, tem um custo extra de € 120 por tonelada de deslocamento líquido – em comparação com a venda para compradores em países asiáticos. Mesmo os proprietários de navios com bandeira da UE que, segundo a SRR, têm a obrigação de reciclar adequadamente os seus navios, contornam essa exigência reembandeirando os seus navios, pouco antes de os enviar para desmantelamento, numa bandeira de conveniência como Palau, Comores e St Kitts and Nevis. A percentagem de bandeiras da UE em navios no final da vida cai para menos de 8%, de acordo com a ONG Shipbreaking Platform. As contínuas pressões nos mercados de frete desencadearam ajustes significativos no lado da oferta; a desaceleração das encomendas e a forte opção pela demolição fizeram com que o crescimento da frota caísse, no final de 2017, para o seu nível mais baixo em mais de uma década.
Nos últimos 18 meses, assistimos a portacontentores com apenas sete anos a serem vendidos para sucata, tendo a idade média dos navios enviados para demolição caído para 23,4 anos em 2016, quando era de 29,6 anos em 2011. Já neste 1º trimestre de 2018, foram vendidos 15 VLCCs para demolição, um volume surpreendente e que já excede o total de 2017. Para além destes, dois outros antigos VLCCs (convertidos em FSOs e usados em projectos de armazenamento) também foram vendidos para demolição. Segundo a Clarkson Research, os petroleiros abatidos são francamente mais recentes, em relação aos que foram demolidos no ano passado. A média de idade deste ano é de 18,5 anos, contra os 21,5 anos para os VLCCs demolidos em 2017. Os preços divulgados na semana passada de até US$ 460 por ldt5, permitiram aos proprietários receber um cheque que rondará os US$ 20 milhões por cada um seus VLCCs descartados. Entretanto, as corretoras E. A. Gibson e Affinity prevêem que mais VLCCs antigos serão abatidos nos próximos meses, atendendo à recente entrada em vigor da BWM e das limitações das emissões já em 1 de Janeiro de 2020, o que obrigaria a 5. Lightweight tonnage ou ldt: basicamente, o peso do navio, ou embarcação, sem carga, ou qualquer outro peso externo.
pesados investimentos nas próximas renovações quinquenais de certificação, em navios que já os não poderão amortizar. E o comportamento esperado para os navios de carga seca, tanto graneleiros como porta-contentores, deverá ser muito idêntico. Ou seja, custos demasiado pesados de adaptação às novas exigências internacionais (OMI) levam à opção de abater os navios mais antigos (embora, recentes). Segundo dados avançados pela GMS, os preços praticados, actualmente, para navios graneleiros e porta-contentores em final de vida nos mercados asiáticos são de, em média, US$ 430/ldt a US$ 450/ldt no Paquistão, US $ 420/ldt a US$ 420/ldt na Índia e US$ 410/ldt a US$ 440/ldt no Bangladesh.
QUAL É A REGULAMENTAÇÃO A RESPEITAR? A Convenção Internacional de Hong Kong para a Reciclagem Segura e Ambientalmente Adequada de Navios (HKC 2009) foi adoptada em 15 de Maio de 2009 pela Conferência Diplomática da OMI. Esta Convenção abrange a concepção, construção, operação e preparação de navios, de modo a facilitar uma reciclagem sustentável dos
navios, sem comprometer a segurança e a eficiência operacional dos navios. Também regulamenta o estabelecimento de um mecanismo de aplicação apropriado para reciclagem de navios, incorporando requisitos de certificação e relatórios. A partir de 2011, a OMI desenvolveu várias Directrizes para auxiliar os Estados Parte na implementação inicial dos padrões técnicos da Convenção. Mas, como na grande maioria das Convenções OMI, desde a sua adopção até à entrada plena de aplicação serão necessários vários anos. Não é esperado que a HKC 2009 entre em vigor antes de 2020 – e, mesmo assim, numa perspectiva optimista. Na Europa, o Regulamento Europeu de Reciclagem de Navios (SRR) entrou em vigor no final de 2013, mas a sua aplicação também vem sendo gradual, por etapas, apenas a partir da data de publicação da lista europeia de instalações de reciclagem de navios (final de 2016), que ainda não foi concluída – foi publicada uma inicial, não exaustiva, apenas com 18 estaleiros, todos localizados na UE. Assim, segundo o SRR, o mais tardar a partir de 31 de Dezembro de 2018, todos os grandes navios que naveguem com pavilhão de um Estado-Membro da UE devem utilizar uma instalação de reciclagem de
navios aprovada. Infe-lizmente, estes 18 estaleiros, em 10 países da EU, têm uma capacidade máxima de reciclagem anual de 303.085 ldt6, sendo que alguns não têm capacidade para navios acima das 5.000 ldt. O Regulamento SRR é o sucedâneo do anterior Regulamento CE nº 1013/2006, que fazia aplicar a Convenção de Basileia e estabelecia que “os navios que arvoram a bandeira de um Estado Membro da UE enviados para desmantelamento são classificados como resíduos perigosos, por neles estarem presentes substâncias perigosas, pelo que é proibida a sua exportação para reciclagem em estaleiros localizados em países que não são membros da OCDE”. No entanto, essa proibição de exportação para países não membros da OCDE nunca foi aplicada a nível internacional (em especial no caso dos navios de maior porte) devido à falta de capacidade de reciclagem nos países da OCDE. De qualquer forma, o SRR dispõe que o anterior Regulamento, no que respeita a considerar os navios como resíduos perigosos não exportáveis, deixa de ter 6. O que poderá representar entre 12% e 18% do total reciclado por ano, em todo o mundo, ficando bem longe do objectivo de 2,5 milhões toneladas de deslocamento líquido (ldt) até 31 de Dezembro de 2018.
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O aquecimento das chapas de aço pintadas com tintas de borracha clorada gera dioxinas e outros compostos tóxicos
aplicação a partir do momento da sua entrada plena em vigor, em virtude dos navios estarem sujeitos a regimes de controlo alternativos ao longo de todo o seu ciclo de vida – nomeadamente, os estabelecidos no próprio SRR. Tendo em conta o que precede, o recente anúncio da condenação do Tribunal Distrital de Roterdão contra a companhia marítima holandesa Seatrade, por violações ao Regulamento CE nº 1013/2006, em 2012, é, no mínimo, inesperado e provocou a preocupação geral dos proprietários de navios.
O PROCESSAMENTO É MUITO DIFERENTE POR PARTE DOS ESTALEIROS? a. Nos países em desenvolvimento
Principalmente no subcontinente indiano, os navios são varados em praias, durante a preia-mar de marés grandes, para que possam ficar acessíveis para a desmontagem. Demora cerca de três meses até que 50 trabalhadores consigam desmanchar um navio de 40.000 toneladas. O desmantelamento começa com a drenagem do combustível e óleos, além dos fluidos de combate a incêndio, que são vendidos no comércio tradicional. Quaisquer itens reutilizáveis – têxteis, móveis, equipamento e maquinaria – são enviados para os mercados locais ou para o comércio geral. Materiais indesejados são enviados para as empresas de tratamento de resíduos. Muitas vezes, em nações de baixo rendimento, essas indústrias são, extraordinariamente, deficientes: por exemplo, o isolamento plástico, altamente tóxico, é, geralmente, queimado com fio de cobre para aceder ao metal. Precauções de segurança básicas estão ausentes e os trabalhadores não possuem roupa, calçado e máscaras adequadas – o exemplo de introduzir galinhas em espaços confinados é paradigmático: se as aves retornam vivas, os espaços são considerados seguros.
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Normalmente, não são usados guindastes devido aos custos. Pedaços do casco simplesmente são desprendidos e arrastados para o interior, com recurso a um guincho ou tractor. São, então, cortados em pedaços menores longe da linha de água. 90% do aço é reutilizável, o restante é transportado para fornos onde é fundido em lingotes e onde o aquecimento das chapas de aço pintadas (em particular as pintadas com tintas de borracha clorada) gera dioxinas. Substâncias de difícil, ou dispendioso tratamento (ou descarte difícil), como resíduos perigosos, são deixadas na praia ou incendiadas. Até mesmo baterias velhas e latas com sobras de tinta. b. Nos países desenvolvidos
O processo de desmantelamento nestes países deve respeitar as directrizes técnicas para a gestão ambientalmente saudável do desmantelamento total e parcial de navios, publicada na Convenção de Basileia, em 2003. Nestas instalações poderão ser alcançadas taxas de reciclagem superiores de 98%. Antes do desmantelamento, deve ser compilado um inventário de substâncias perigosas. Todos os materiais perigosos e líquidos, como águas sujas, ou residuais, do porão ou duplos fundos, devem ser removidas antes de desmontar o navio. Devem ser abertos orifícios para ventilação e todos os vapores inflamáveis deverão ser extraídos. As embarcações são levadas para uma doca seca ou cais – embora a doca seca seja considerada mais ecológica, por que qualquer derrame será contido e, facilmente, limpo. O desmanche em flutuação é, no entanto, mais barato que em doca seca. Neste caso, as
instalações de descarga de águas pluviais devem ser impedidas de transbordar, para que não seja possível a passagem de qualquer líquido tóxico para os cursos de água. Os trabalhadores devem desmantelar, completamente, o navio até o casco ficar despido, sem recurso a objectos perigosos, como serras, rodas de corte abrasivas, tesouras manuais, maçaricos de plasma ou gás. Qualquer coisa de valor, como peças de reposição e equipamentos electrónicos, é vendida para reutilização, embora os custos de mão-de-obra levem a que itens de baixo valor não sejam rentáveis. A Convenção de Basileia exige que todos os estaleiros separem os resíduos perigosos e não perigosos e que os mesmos sejam colocados em unidades de armazenamento apropriadas, antes do casco ser cortado. O amianto, encontrado na casa da máquina, tem de ser isolado e armazenado em invólucros de plástico, feitos sob encomenda, antes de colocados em recipientes de aço seguros, para posterior aterro. Resulta daqui, que os métodos inseguros e perigosos de reciclagem de navios no sul da Ásia dominam hoje o mercado tendo, exclusivamente, o foco no lucro: é muito mais barato desmanchar os navios dessa forma, em vez de optar por instalações reguladas e controladas pela UE.
OS LÓBIS O marketing político e social tem vindo a ganhar crescente importância nas instâncias que governam os países da Europa ocidental. Presentemente, são vários os grupos de pressão inter-
nacionais que fazem lóbi junto dos políticos de Bruxelas e, claro, esta indústria não ficou imune à influência. A NGO Shipbreaking Platform é uma coligação de 20 organizações ambientais, de direitos humanos e sindicatos (incluindo o Greenpeace) que procura exercer pressão e influência política sobre questões de poluição e condições de trabalho, em especial no que respeita o desmantelamento de navios em fim de vida. A Plataforma foca-se, principalmente, nas práticas dos armadores europeus e procura influenciar as instituições europeias para assegurar uma legislação que impeça que os navios velhos possam ser, livremente, comercializados no mercado global. Além desta NGO, existem outros grupos de interesse ligados a diversos sindicatos metalúrgicos e a organizações ecológicas e políticas conhecidas pela sua militância activa. Em simultâneo, coexistem interesses económicos associados à própria indústria europeia, tanto metalúrgica como de construção naval.
CONCLUSÃO No final do ciclo de vida de um navio, este precisa ser descartado – desmantelado e, se possível, 100% reciclado – evitando a libertação de substâncias perigosas e sem pôr em risco a saúde dos trabalhadores que executam esses trabalhos. A idade de demolição tem vindo a baixar à medida que as taxas de frete têm ficado mais desfavoráveis e os navios têm de obedecer a novas obrigações técnicas. Sendo um activo, o seu proprietário pretende retirar dele o máximo de rentabilidade possível, pelo que qualquer cêntimo a mais por quilo, na sua venda, poderá representar dezenas (ou centenas) de milhares de dólares. A maior parte desta reciclagem de navios ocorre no sul da Ásia, frequentemente, em praias de maré e sob condições perigosas. Na verdade,
nestes varadouros, o trabalho é manual, não evitando a libertação de substâncias perigosas, pondo em risco a saúde dos trabalhadores que executam esses trabalhos e provocando graves danos ao meio-ambiente. Os estaleiros asiáticos também têm uma vantagem sobre os europeus: estão mais próximos das indústrias siderúrgicas. A razão pela qual os estaleiros da Ásia estão interessados em reciclar os navios é porque têm uma indústria de sucata de aço activa – o que não temos na Europa e, por isso, não faz sentido económico aqui fazê-lo. Por exemplo, o porto francês de Bordéus, uma das 18 instalações aprovadas pela UE, desmantela um navio por ano. No entanto, por norma, a opinião pública tem um défice de conhecimento da realidade económica e subsistência das populações que vivem e trabalham nestes locais. Por exemplo, mais de 8.000 navios foram demolidos em Alang, na costa oeste da Índia, desde 1983, gerando uma produção de aço superior a 90 milhões de toneladas. Num ano médio de laboração, os estaleiros aqui instalados reciclam cerca de 600 navios, com uma facturação anual de 1,6 mil milhões de USD. Mais, esta indústria em Alang emprega, directamente, cerca de 40 mil trabalhadores, com milhares de outros em empresas derivadas, que processam os materiais recuperados – transporte, construção, siderúrgicas, químicas e outras. Também a estrada, que percorre os 11 quilómetros de praia, está repleta de pessoas e veículos que frequentam centenas de lojas que vendem de tudo, desde louça a computadores, retirados dos navios. O súbito desaparecimento desta indústria representará um duro golpe na economia de milhões de pessoas 7. 7. Perto de 4 milhões de pessoas e respectivos agregados trabalham nesta indústria em toda a Península Indostânica – India, Bangladesh e Paquistão.
A Convenção HKC 2009, adoptada em maio de 2009, abrange a concepção, construção, operação e preparação de navios, de modo a facilitar uma reciclagem sustentável dos mesmos, sem comprometer a segurança e a eficiência operacional dos navios. Regulamenta, ainda, o estabelecimento de um mecanismo de aplicação apropriado para reciclagem de navios, incorporando requisitos de certificação e relatórios. A partir de 2011, a OMI desenvolveu várias Directrizes para auxiliar os Estados Partes na implementação inicial dos padrões técnicos da Convenção. Mas, ainda não entrou em vigor, apesar de alguns estaleiros do sul da Ásia já estarem certificados8, de acordo com as suas disposições. O Regulamento SRR da UE (1257/2013) entrou em vigor em 30 de Dezembro de 2013, visando reduzir os impactos negativos relacionados com a reciclagem de navios que arvoram pavilhão da UE, especialmente no Sul da Ásia. Aplica-se a grandes navios comerciais que arvoram pavilhão de EstadoMembro da UE e a navios que arvoram pavilhão de um país terceiro, mas façam escala em portos ou ancoradouros da UE. A fim de garantir clareza jurídica e evitar encargos administrativos, os navios que arvoram pavilhão de um Estado-Membro abrangido pela nova legislação são excluídos do âmbito de aplicação do Regulamento (CE) n.º 1013/2006 relativo a transferências de resíduos. De acordo com as novas regras, fica proibida a instalação ou utilização de certos materiais peri8. As primeiras Declarações de Conformidade com a Convenção de Hong Kong foram emitidas a estaleiros de varadouro de Alang, na Índia, pela certificadora japonesa Classe NK, no ano passado. Outras sociedades classificadoras, como a RINA e a Indian Ship Registry, passaram, entretanto, a emitir essas declarações, pelo que um total de 47 estaleiros na Índia está certificado, enquanto o PHP é o primeiro e, até agora, o único com certificação no Bangladesh.
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Desmantelamento do MSC Napoli em estaleiro de Belfast
gosos na construção de navios – europeus ou que escalem portos europeus – ficando obrigados a ter um inventário de matérias perigosas a bordo (IHMs), ao entrar nos portos da UE. As normas de aplicação incluem penalizações. A Comissão Europeia introduziu, assim, controlos ambientais mais rigorosos. Apesar de não proibirem, especificamente, o desmantelamento em praias, os proprietários de navios registados em países da UE terão que descartar os seus navios em instalações aprovadas, uma medida que irá favorecer, para já, 18 estaleiros de 10 países da UE – embora a capacidade instalada, até ao momento, se fique por 20% da desejável. Esses estaleiros, no entanto, não são destinos prováveis para navios comerciais oceânicos. Até agora, a Comissão Europeia tem vindo a atrasar a nomeação de estaleiros em países não membros da UE que solicitaram a inclusão na lista de estaleiros aprovados. A partir do final de Dezembro de 2018 – data de aplicação integral do SRR – os navios de bandeiras europeias serão excluídos do âmbito do “Regulamento Europeu Relativo às Transferências de Resíduos (CE) n.º 1013/2006”, enquanto os navios de pavilhão não-europeu, com destino ou procedência de portos da União Europeia, continuarão sujeitos a esse regime legal, sendo considerados
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resíduos, o que proíbe a sua exportação para países em desenvolvimento (definidos como países não pertencentes à OCDE). Segundo as entidades europeias, “a intenção da Comissão Europeia não é desencorajar os proprietários de navios a utilizar instalações fora da UE, mas desencorajar os proprietários de navios a utilizarem instalações que provam ser um perigo real para a vida humana e para o ambiente, em geral”. No entanto, e claramente, assistimos a uma diferença no tratamento entre armadores, proprietários e estaleiros europeus e não europeus. Ingvild Jenssen, fundador e director da ONG Shipbreaking Platform, após ser conhecida a condenação da Seatrade, declarou: “acolhemos com satisfação o veredicto do julgamento do Tribunal de Roterdão. A decisão envia uma mensagem clara de que a sucata suja e perigosa não será mais tolerada”. No entanto, para os grupos de pressão e associações sindicais e ecologistas, a malha legal regulatória deve, ainda, ser mais apertada, por considerarem existir soluções possíveis de contornar esta regulamentação. O veredicto do Tribunal Distrital de Roterdão de 15 de Março de 2018, que considerou a Seatrade culpada, veio criar enorme preocupação junto dos
proprietários de navios – de qualquer bandeira – que visitam os portos europeus, perto do final de vida. Sem saberem o que lhes poderá suceder, alguns dos proprietários poderão optar por voltar a bandeiras de conveniência e evitarem os portos europeus. A suceder tal evolução, os esforços levados a cabo por vários governos europeus (p. ex. Portugal), no sentido de melhorarem as condições de acesso dos navios à sua bandeira, cairão por terra. Entretanto, a Associações de Armadores da Comunidade Europeia (ECSA), a Associação de Armadores Asiáticos (ASA) e a International Chamber of Shipping (ICS) argumentam que algumas das medidas advogadas pelos decisores europeus são incompatíveis com a Convenção sobre o Direito do Mar da ONU (UNCLOS) e vão contra as regras da Organização Mundial do Comércio. Resumindo, em vez de um desfecho “win-win ” poderemos estar a um passo de uma situação “lose-lose”! – Março 2018
Fontes consultadas: Affinity Brokers Ltd; BIMCO; Clarkson Research Services Ltd; E. A. Gibson Shipbrokers Ltd; Global Marketing Systems, Inc (GMS); IHS Fairplay Maritime; ONG Shipbreaking Platform; The Maritime Executive.
SABEDORIA DO MAR
OS SEMINÁRIOS CULTURAIS NO COMM
ALBERTO FONTES
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A cultura na Marinha é algo que nos diferencia de outras entidades diversas. A cultura para toda a sociedade é essencial à existência individual e social. Pressupostos como a reforma do espaço europeu de educação, conhecido pelo “Processo de Bolonha” conduz-nos para a vontade de existência de um “espaço social e cultural comum”. Na Marinha sentem se ambições alargadas às experiências vividas a nível global, há interesses por assuntos ligados a esse mar, que sempre foi vital para o Homem do Mar.
Está implícito que a aquisição de conhecimento vá para além da preparação para desempenhar funções, é preciso dotar esse Homem do Mar de meios para pensar, para inovar, melhorar e aumentar o saber. É na cultura que se forja o desenvolvimento do conhecimento, da investigação, da economia, num esforço de formação permanente com respeito do ambiente e da vida. Tem sido nesta exigência da sociedade e dos conhecimentos que o Homem do Mar, muitas vezes de uma forma autodidacta e pelo exercício prático do saber, assente nas suas raízes, com sentido crítico, espírito inovador, sensibilidade, evidencia a sua cultura. Cabe aqui uma saudação ao professor Carvalho Rodrigues, grande amigo dos Homens do Mar que trouxe para a lembrança de todos a Marinha do Tejo, o primeiro aeroporto em Cabo Ruivo, chamando a atenção para a importância histórica da navegabilidade do rio Tejo de Abrantes até Paço de Arcos e à barra do rio, no transporte de pessoas e bens, a Estrada de Lisboa como era então denominada. Vastos são os temas que mereceram o destaque em livro, escritos por Homens do Mar. O Clube de Oficiais da Marinha Mercante dentro das suas instalações e por vezes também pelo país, vem realizando Seminários Culturais num esforço continuo de divulgação da história marítima, onde Portugal tanto se notabilizou. Mas não esquecemos de
O COMM trouxe o tema da Vela Profissional, para Seminário Cultural, convidando duas gerações de oficiais pilotos da marinha mercante, profissionais da vela, o João Cabeçadas com 57 anos e o António Fontes com 35 anos
acompanhar os temas do século XXI onde assume relevo a navegação autónoma ou os novos combustíveis para a Marinha de Comercio e de Pesca. O COMM trouxe o tema da Vela Profissional, para Seminário Cultural, convidando duas gerações de oficiais pilotos da marinha mercante, profissionais da vela, o João Cabeçadas com 57 anos e o António Fontes com 35 anos. O João Cabeçadas é o mais internacional dos navegadores portugueses da vela profissional. Desde 1989 fez dezasseis travessias do oceano Atlântico, três travessias do oceano Índico, duas travessias do oceano Pacífico. Vitórias na Taça América e participações na prova de circum-navegação Volvo Ocean Race, estando há vinte anos na equipa suíça ALINGHI que compete na Extreme Sailing Series. Ele é verdadeiramente o relojoeiro desta máquina Suíça que é a ALINGHI representante na vela de competição da Sociedade Náutica de Genebra. O António Fontes que desde 2006 nos habituou a ver nele um líder, ao comandar a equipa de vela da Escola Náutica, ganhando a medalha de prata nos campeonatos mundiais de vela universitária em França, tem aos 35 anos a oportunidade de ser navegador da equipa chinesa SHK Scallywag, na edição da VOR 2017/2018, continua a fazer a pulso desde 2005, uma carreira na vela profissional. Velejador solitário que em 2017/2018 navegou trinta e
cinco mil milhas, com um máximo de dezasseis dias sozinho no mar e cinco dias sem dormir. Uma vida de luta e persistência para ganhar, com mérito, um lugar no restricto mundo da vela profissional. No auditório da sede do COMM assistimos de inicio à projecção do filme oficial da VOR edição 2017/2018 que António Fontes usou como introito para nos contar o seu percurso até chegar onde está. Durante doze árduos anos fez todas as funções que este exigente mundo da vela lhe foram sendo proporcionadas. Durante um ano trabalhou no refit dos VO65, de sol a sol no Boatyard da VOR na Doca Pesca em Lisboa. Ali desmontou peça a peça, voltando a montar tudo nos barcos que terminaram a volta ao mundo em 2018, merecendo por parte do responsável pelo boatyard, Neil Cox rasgados elogios. Todas as equipas ficaram a conhecer o António Fontes e foi naturalmente que chegou à equipa Scallywag como velejador suplente, passando depois a efectivo e assumindo a navegação na etapa Cidade do CaboMelbourne. Foi com emoção que na
madrugada de 26 Março, em pleno Pacífico Sul entre a Nova Zelândia e o Cabo Horn, viveu a sua mais traumatizante tragédia de ver cair ao mar, o experiente tripulante, safety officer da sua equipa, o britânico John Fisher. Horas depois de intensas buscas, com toda a tripulação completamente congelada, com vento de 40 nós, o skipper David Witt deu-o como desaparecido e rumou ao Chile, onde à chegada embarcou uma tripulação de substitui-ção (com a mulher do António Fontes a Mariana Lobato incluída) para trazerem o barco para Itajaí no Brasil, porto de partida para a oitava etapa até Newport ( EUA ). Vivemos duas horas intensas de puro respeito e admiração por estes dois profissionais, que partilharam com quem esteve no COMM, o enorme sacrifício, levado por vezes aos limites humanos, para atingirem o sucesso. Se o segredo pode residir em estar no sítio certo, no momento próprio, com enorme disponibilidade para agarrar a oportunidade, é bem verdade que é essencial haver uma sólida formação técnica. Assim afirmou o João Cabeçadas “que os co-
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nhecimentos trazidos da Escola Náutica, junto com a experiência adquirida quando andámos embarcados (SOPONATA) dá-nos realmente algo que podemos trazer a estas equipas de vela profissional, complementando os outros membros da equipa. E também para o preenchendo de lacunas que necessitariam de mais uma pessoa, para realizar o trabalho que o António Fontes faz sozinho. Com a formação da nossa Escola Náutica podemos tomar vários rumos e espero que o exemplo do António Fontes, sirva para alguns dos velejadores portugueses, que ambicionam à vela profissional considerem começar por embarcarem na Marinha Mercante. “Saudamos a presença da Mariana Lobato, velejadora que ganhou em 2013 a medalha de ouro na Coreia e que está a fazer as clas-
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sificações para os jogos Olímpicos em Tóquio, que é sem dúvida alguma, o incondicional apoio familiar ao António Fontes, no vencer das inúmeras dificuldades. Actualmente João Cabeçadas gere a equipa multinacional da Alinghi que desenvolve um novo barco, com enormes desafios que procuram diariamente superar, vencendo as dificuldades que lhes vão surgindo. De momento fazem ensaios de navegação com uma plataforma de teste com 26’. O protótipo de 35’ começará a navegar na primavera de 2019, para a série de barcos começarem a correr em 2020. Oxalá mais velejadores portugueses integrem a vela profissional, guindando esta modalidade desportiva a patamares de sucesso que muito prestigiam Portugal.
No Seminário COMM ficou expresso o desejo de ver na oferta curricular do programa de formação da Escola Superior Náutica Infante Dom Henrique, possa vir a aparecer a formação de skippers, que boatyard se mantenha em Lisboa e que no desenho da VOR de 2021 se mantenha o stopover Lisboa. O Presidente do COMM Eng. Jorge Ribeiro entregou aos velejadores, a cresta da Escola Náutica, cujo lema é bem elucidativo do percurso que ambos estão efectuar na vela profissional mundial.
A NOSSA SEDE Vista pela objetiva do LuÃs Miguel Correia.
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HOMENS DO MAR FERNANDO LAU
ANA MARIA LOPES
– Vamos, rapazes. Isto não é posição de homem. Ou fora ou dentro, aqui não estou bem.
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Há muito que a história do «fora ou dentro» me bailava na cabeça, mas como sabia que ela vinha de um capitão pescador, dono de um feitio muito duro e austero, tinha de me certificar como a Família encararia esse reconto, sujeito a publicação no meu blogue Marintimidades. Faz quase um ano que, no intervalo de um evento levado a cabo na ENIDH, em Paço de Arcos, estive com o neto homónimo deste capitão, Fernando Matias Lau, meu amigo, pessoa dos meus tempos e também ele oficial da Marinha Mercante. A história veio a lume e apercebi-me que o Fernando cultivava a memória do avô, do que o caracterizava de bom e de menos bom, dizendo-me que talvez, além de umas fotografias, se propunha a umas conversas comigo, para meu enriquecimento, contando-me alguma das brejeirices dele, que ele tão bem sabia, contadas pelo seu pai, à mesa, enquanto saboreavam o repasto. E uns bons dez meses se passaram… Vimonos, no Verão, na Costa Nova, mas não falámos propriamente disso. Outras águas… Além de outros laços afectivos com o Fernando, os seus pais, em circunstâncias diversas, tinham sido meus professores do ensino primário, nas segunda e quarta classes, na dita Escola Nova, à época, em Ílhavo. Noutro dia, vindo em «missão de soberania», ao MMI, com alguns colegas do Clube de Oficiais da Marinha Mercante (COMM), encontrámo-nos e trouxe-me duas fotos de 1937, que me encantaram pela sua autenticidade, e projectámos, para além dos elementos de que me con-
seguia munir por cá, uma ida ao Arquivo Histórico de Marinha, em Lisboa. Ser-me-ia praticamente impossível testar, os seus primeiros anos de mar, devido à data de seu nascimento, mas a partir do posto de capitão, as coisas seriam mais fáceis, depois de consultadas várias fontes. Fernando Mathias (mais tarde, Matias) Lau, filho de Manoel Matias e de Josefa Rosa Esmerada, nasceu em Ílhavo, na Freguesia de S. Salvador, a 4 de Janeiro de 1881. Dos capitães mais antigos, no tempo, que me têm passado pelas mãos. Do casamento com Maria das Neves, em 1909, nasceram três rapazes e uma rapariga. Dos três rapazes, Armando Matias Lau veio a ser oficial da Marinha Mercante, Mário Matias Lau, motorista, e José Carrancho Lau, professor do ensino primário, bem como a irmã, Berta das Neves Lau. Com a cédula nº 3347 passada pela Capitania do Porto de Aveiro, em 5 de Fevereiro de 1895, teria ido para o mar com 14 anos, como a maior parte dos jovens do seu tempo, que assim o faziam entre os 9 e 14 anos de idade. A partir do momento em que chegou a capitão, na sua carreira marítima, e antes da existência do jornal O Ilhavense (1921), das fichas do Grémio (GANPB), (1936) e das fichas de inscrição de navios enviados ao bacalhau, de 1934 a 62, os elementos foram encontrados em blogues e livros credíveis, que citarei a seu tempo. A primeira vez que deparo com o seu nome, é no livro da autoria de Manuel Luís Pata, A Construção Naval e a indústria bacalhoeira na Foz do Mondego , em edição de autor, 2016, Figueira da Foz, pp. 65 a
DE CIMA PARA BAIXO: Capitão Fernando Mathias Lau; Hiate Júlia 3º . Colecção Delfim Nora/Napesmat; O lugre Júlia I . Cedência de Reimar; Lugre Júlia Quarto . Foto de autor desconhecido: Altaneiro…o Altair. De autor desconhecido.
76. Num resumo do Diário Náutico de 1906 do emblemático hiate Júlia 3º, sob o comando de Fernando Mathias Lau, levando como imediato João dos Santos Salgado, pelo punho do piloto praticante Adriano Alves Fernandes Águas, é-nos dada conta de uma viagem de 22 de Abril de 1906 até 14 de Setembro de 1906, perfazendo, no total, 48 dias de navegação à vela. Nas safras seguintes, nos anos de 1907 a 1909, essa rotina repetiu-se. O hiate Júlia 3º foi construído em Fão, por J. M. G. Branco em 1876, de que existe a última referência em 1927, para a firma Mariano &Irmãos, mais tarde Atllântica Companhia Portuguesa de Pesca, com sede na Figueira da Foz. Na campanha de 1910, o blogue Navios e Navegadores dá-o como capitão do lugre Júlia II, enquanto que Manuel Luís Pata (MLP.), em A Figueira da Foz e a Pesca do Bacalhau , vol. I., p. 97, lhe atribui o cargo de capitão no lugre lugre Júlia I.??? Como terá sido? Nas campanhas de 1911 a 1914, inclusive, o capitão Fernando continuou a exercer o comando, no lugre Júlia I, a que volta, na safra de 1918, conforme consulta do livro de Manuel Luís Pata, atrás referido, a pp. 98, 99 e 116. Entretanto, a Atllântica Companhia Portuguesa de Pesca, com sede na Figueira da Foz, mandou construir o lugre Júlia Quarto, ao mestre António Maria Bolais Mónica, num estaleiro da Figueira. Depois do lançamento à água em 4 de Outubro de 1914, fez a sua primeira campanha em 1915, comandado pelo capitão Fernando Matias Lau, de 34 anos e natural de Ílhavo, segundo informação de MLP., no seu livro já citado A Construção Naval…
p. 93. Teve o prazer de estrear o navio, o que é sempre uma honra. E entre os anos 1906 e 1918 (treze anos), com um pequeno interregno em que comandou o hiate Africano, entre 1916 e 17, pertença da Parceria Marítima Africana da Figueira da Foz, o «nosso» capitão, austero e de ríspido feitio, foi um herói dos Júlias da Figueira da Foz, propriedade da Atllântica Companhia Portuguesa de Pesca. No ano de 1919, não foi possível localizá-lo, mas em 1920, ressurge na praça de Aveiro, no comando do lugre Altair. Qual era este Altair? Lugre de madeira de três mastros, construído para a Companhia Aveirense de Navegação e Pesca, por Manuel Maria Bolais Mónica, em 1918, na Gafanha da Nazaré. Num belo dia de busca de imagens em Testa & Cunhas, já há uns anos largos, veio-me à mão, no fundo de uma gaveta, nem sei muito bem porquê, uma sugestiva imagem, identificada – era o lugre Altair. E a odisseia continua…. Entre 1921 e 1930, estreando-o, comandou o lugre Infante de Sagres III, construído para a Sociedade Infante de Sagres, Lda., por Manuel José Calção, em 1921, na Gafanha da Nazaré. Nesta época, revela-se também o espírito empreendedor do capitão Fernando, em tempos difíceis, ao ser armador, sob a Firma Martins, um dos três gerentes da referida sociedade, juntamente com o prior Alberto Ferreira Martins, da Gafanha da Nazaré, e José Maria da Silva. Com o lugre Luzitânia III, foram os primeiros navios a instalar motor para a campanha de 1932. Nestas viagens, foram seus pilotos, de
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Ílhavo, Manuel Lourenço Catarino (1921), António dos Santos Carrancho (23), Ambrósio Gordinho (26) e Augusto dos Santos Labrincha (27, 28 e 30) e Manuel dos Santos Malaquias (1929). O seu filho, o jovem José Lau, embarcou com o pai, como moço, quando tinha apenas onze anos comemorando o seu aniversário a bordo, o que era normal para quem queria seguir o caminho do mar, o que não veio a verificar-se, pois sofria de bronquite asmática sendo aconselhado pelo médico a não embarcar mais, dada a perigosidade. Sem registos entre 1931 e 33, volta a capitão nas safras de 1934, 35 e 37, no mesmo Infante de Sagres III, depois de ter passado para a Empresa de Pesca do Bacalhau do Norte, da praça do Porto, nesse mesmo ano. Levou como seu piloto, o irmão, Amândio Fernandes Matias, de alcunha Parracá, e, como motorista, o seu filho Mário Matias Lau. Na viagem de 1937, a bordo do seu navio Infante de Sagres III, estalou uma revolta, ao que se consta comandada pelo irmão que ocupava o lugar de piloto, liderando a vontade dos
pescadores de iniciar a viagem de regresso a Portugal. Dada a situação e porque o Gil Eannes iria zarpar para Portugal, o Capitão de Bandeira – Comandante José Martins – chamou o capitão Fernando para ver se o demovia a terminar a pesca pois iria ficar sozinho nos bancos e se sucedesse algo não teria quem o socorresse, ao que ele retorquiu perguntando se era uma ordem ou um pedido, afirmando o Comte José Martins que era um conselho, pois ele era soberano no seu navio para as decisões que melhor entendesse. Nessa altura e voltando ao navio decidiu adiar a viagem de regresso por mais uns tempos, iniciando-a passado um par de dias, pois o mau tempo e as capturas fracas assim o justificavam. Mas a sua disciplina, com uma companha difícil – se não houvesse uma mão dura, poderia gerar-se uma situação complicada – não podia ser posta em causa, sob pena de ser «engolido». Mas a resposta, na sua visão, não se ficou por aqui. Após os normais 15 dias de viagem de regresso aportou à barra de Aveiro e quando o
DA ESQUERDA PARA A DIREITA: O lugre Infante de Sagres III , em bom andamento. Foto do C. Almeida; O lugre Infante de Sagres III , no Porto. Foto de A. Villiers; O lugre com motor Delães , com pintura dos anos 40.
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rebocador se dirigia para fora da barra para pegar no navio, decidiu rumar para oeste não permitindo que se consumasse a entrada, o que sucedeu, passados uns dias à boca da barra, não sem avisar a mulher que não se preocupasse pois entraria quando entendesse. Era a sua visão de como lidar com a disciplina. E, de saco às costas com o enxoval , lá mudou para o último navio da sua vida, na safra de 1938 – o lugre com motor Delães, que teve o prazer de inaugurar, de que dizia, quando alguém, de bote, o transportava, mais tarde, já doente, para o Gil Eannes: – Ah, Delães, Delães, até o teu rolo já é diferente . O belo lugre com motor, de madeira, Delães, navio gémeo do Oliveirense, foi construído para a Empresa de Pesca do Bacalhau, do Porto, por António Bolais Mónica, na Gafanha da Nazaré, em 1938. Foi esta a sua última viagem, neste navio, após um grave acidente em que a ponta do chicote lhe apanhou brutalmente as costas, originando uma enfermidade de que não mais se libertou, tendo mesmo regressado, por
Comte José Martins e o cap. Fernando, a bordo do Gil Eannes , em 1937
conselho médico, mais cedo, para Ílhavo. E não durou muito tempo. Conforme notícia do jornal O Ilhavense, de 23 de Dezembro de 1939, com 58 anos de idade, faleceu na sua casa da rua Vasco da Gama, após grande sofrimento, desde as paragens da Terra Nova, onde foi recolhido pelo vaporhospital Gil Eannes, o oficial Fernando Matias Lau, que na última viagem, tinha ido à pesca, como capitão do Delães. Foi sempre um oficial arrojado e a isso se deveu a circunstância de, em muitos anos, trazer sempre bons carregamentos de peixe. Para atestar o seu espírito empreendedor, o seu neto homónimo confirmou-me que, além de sócio/gerente da Sociedade Infante de Sagres, Lda., na Gafanha da Nazaré, foi accionista do Banco Regional de Aveiro, da Fábrica da Moagem de Aveiro, criou a Sociedade de mercearias Lau & Filhos sediada na R. Comandante Rocha e Cunha em Aveiro, dirigida pelo seu filho Armando Lau, proprietário de duas marinhas de sal aRobalinha e a Afogada e sócio da Sociedade Ilhavense Turuna, Lda., dedicada à construção de navios e comercialização de bacalhau. Dentre as suas «estórias» que revelam um feitio duro e rígido, a mais famosa será a «do fora ou dentro». Um dia, durante uma das suas últimas viagens, a tripulação revoltou-se. Tendo-o amarrado de pés e mãos, prestes a baldeá-lo, mantinham-no sobre a borda, como ameaça de o deitar ao mar. Hesitavam… O velho capitão, num golpe de audácia: – Vamos, rapazes. Isto não é posição de homem. Ou fora ou dentro, aqui não estou bem . Surpreendidos e
dominados pela coragem do velho, os homens abrandaram e puseram-no dentro. Mas outras se conhecem. Uma das histórias que lhe é atribuída é a que
tem a ver com a sua áurea de destemido e afoito na faina da pesca. Assim num dado momento após vários dias de mau tempo os capitães estavam indecisos sobre o momento de começar a arriar os dóris para iniciar a safra desse determinado dia. Então, ele colocando um vertedouro debaixo da samarra, dirigiu-se à proa atirando o referido vertedouro ao mar, alertando a tripulação, imediatamente, para arriarem um dóri a fim de o apanhar. Os outros capitães que estavam à espera que algum tomasse a dianteira e vendo o capitão Fernando a arriar, logo lhe seguiram o exemplo. Alguns minutos após, o mar começou a encapelar acusando-o de ter dado inicio à pesca ao que ele respondeu que não somente tinha arriado o bote para apanhar o referido vertedouro. Era a concorrência a funcionar. Mais um naco de conversa entre mim e o Fernando: – O meu avô era uma pessoa que adaptava a sua personalidade às diversas circunstâncias, sendo, a bordo, uma pessoa muito dura, mas, em contrapartida, em casa era exactamente o contrário, tratando a minha avó com uma ternura e carinho inexcedíveis ao ponto de diariamente, com a minha avó, à janela, a vê-lo partir na sua bicicleta para a Gafanha despedia-se dela com a seguinte frase: – Ah, Marquinhas, já estou cheio de mavio – vocábulo esse que significava um misto de amor e saudade .
De outra vez, a bordo, acolheu e recolheu, em dia de nevoeiro cerrado,
um verde de outro navio, que veio ter ao seu navio, com o bote carregado. Içou-o, agasalhou-o e elogiou-o, chamando os seus homens, a quem disse: – Ó seus galiqueiros, estão a ver o que este verde pescou e o que vocês carregaram, leve que nem uma alface? Como outros tantos ílhavos, o Cap. Fer-
nando Lau ficou imortalizado pela pena de Santareno, em Nos Mares do Fim do Mundo , pondo estes registos na boca de pescadores mais antigos. Depois de já se ter referido também à história do «fora ou dentro», voltou à questão da morte. O ti Zé da Avó juntou: – Morreu há poucos anos ainda, senhor doutor, lá em Ílhavo. Tinha uma nascida ruim que, palmo a palmo, o foi minando todo… O alma do diabo dava urros que se ouviam lá longe, na estrada de Aveiro! Bem feito, bem feito (…). Vi, vi eu, com estes dois que a terra ou o mar há-de comer! Durante três dias e três noites, antes de ele morrer, os corvos, um bando de dez, pelo menos!, não lhe desamparam a casa: nem os gritos, nem as pedras, nem os foguetes foram capazes de os tresmalhar. Sempre ali, cerrados, a voarem como doidos em redor do prédio!(…).
E o pobre do Delães, talvez pela falta do seu capitão, também não durou muito mais, soçobrando ao bombardeamento de 1942, sem perda de vidas. Ílhavo, 29 de Março de 2018 Fotos com várias origens, incluindo as do neto Fernando Lau
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OS JOVENS E O MAR Gestão de transportes e logística (GTL): Em alguns dos cursos são colocados mais alunos do que as vagas inicialmente divulgadas, que é o caso de Gestão de Transportes e Logística, que admitiu 39 novos estudantes das 38 vagas iniciais. A média do último aluno colocado é de 129,8.
Gestão portuária (GP):
Em Gestão Portuária existiam 20 vagas e todas estas foram preenchidas. O último colocado tinha uma média de 129,8 valores.
BÁRBARA CHITAS
Pilotagem:
Tal como Gestão Portuária, Pilotagem colocou mais alunos que as suas 29 vagas iniciais, tendo colocado 32 novos alunos. O último colocado de pilotagem teve uma média de 140,6 valores.
Quais os cursos mais procurados na ENIDH?
Com o Verão a acabar, chega uma nova etapa para os alunos da ENIDH. Para os finalistas o fim da sua formação aproxima-se, enquanto para os caloiros está apenas a começar. Neste artigo do Bordo Livre irei analisar os dados relativos aos novos alunos da ENIDH. Resultados de colocados nos cursos da ENIDH:
Relativamente aos anos anteriores, pode-se dizer que o número de colocados tem vindo a aumentar. Os dados seguintes foram retirados da DGES para o ano letivo de 2018/2019 e poderão sofrer alterações, visto que nem sempre o número de colocados corresponde de facto ao número de alunos inscritos.
Engenharia de Máquinas Marítimas (LEMM): Para este novo ano letivo existiam 56 vagas, das quais apenas 13 foram ocupadas. O último aluno a ser colocado tinha uma média de 112,3 valores.
Engenharia (ETO):
eletrónica
marítima
Das 30 vagas que abriram para Enge-nharia Eletrónica, apenas existiram 2 colocações. O último colocado tinha uma média de 124,6 valores.
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No gráfico seguinte irei expor os dados relativos às candidaturas aos cursos da ENIDH.
Com base neste gráfico é possível ver que os cursos mais procurados são os de Gestão e de Pilotagem. Durante a candidatura ao ensino superior, os estudantes deverão colocar 7 opções de cursos, por ordem de preferência. Neste gráfico são expostas as candidaturas em qualquer das opções. Por essa razão, existem mais alunos candidatos aos cursos de engenharia, do que de facto os colocados. Próximos Eventos: Início das atividades letivas:
O início das atividades letivas tem o seu início a dia 23 de setembro de 2018.
Dia da Escola:
O dia da escola decorre no dia 27 de setembro pelas 1500, no auditório do campus da EIDH Programa do Evento:
. Intervenção da Vice-Presidente da Associação de Alunos da ENIDH, aluna Sara Pereira . Intervenção o Presidente da Associação de Antigos Alunos da ENIDH - Alumni, Eng. Rui Reis . Intervenção do Presidente do Conselho Geral, Dr. Rui Raposo . Intervenção do Presidente da ENIDH, Prof. Doutor Luis Baptista . Entrega dos prémios aos melhores alunos da ENIDH - ano letivo 2017/2018 . Entrega do prémio do concurso regional Poliempreende 2018 . Intervenção de encerramento pelo Sr. Presidente do CCISP, Prof. Doutor Pedro Dominguinhos . Atuação da Nautituna, Tuna da ENIDH . Encerramento . Beberete no átrio do auditório
Cerimónia de inauguração do Veleiro Anixa II:
A cerimónia irá realizar-se pelas 17h00, na marina de Oeiras com o seguinte programa:
17h: Atuação dos Cotta Jazz clube band 18h: Inauguração do veleiro pela atriz Sónia Balaco 18h14: Atuação da Nautituna, tuna mista da ENIDH.
A cerimónia terá uma degustação de produtos do mar. Até uma próxima, desejo-vos bons ventos e boas marés!
NOTÍCIAS INVESTIGADORES DETECTAM 32 FÁRMACOS NAS ÁGUAS DO TEJO -- do blog Mar e Marinheiros
Um grupo de cientistas identificou a presença de 32 fármacos nas águas do estuário do Tejo, no âmbito de uma investigação que ainda decorre, anunciou hoje a Universidade de Lisboa. Entre as substâncias encontradas estão resíduos de antibióticos, de anti-hipertensivos e anti-inflamatórios, que foram encontrados em mais de 90% das amostras de água recolhidas "em toda a extensão do estuário". Foram também identificados antidepressivos, reguladores lipídicos e anti-
REJEITADA PROPOSTA DE SANTUÁRIO PARA BALEIAS -- do blog Mar e Marinheiros
epiléticos. "A presença destes com-postos
pela instituição. As maiores concentrações de fármacos, usados na medicina humana e veterinária, foram observadas em áreas próximas da saída dos efluentes de
tratamento de águas residuais na margem norte da Área Metropolitana de Lisboa e na zona sul do estuário, próximo de Almada e da desembocadura do Tejo. O trabalho envolve 32 investigadores e as conclusões serão publicadas na edição impressa de outubro da "Marine Pollution Bulletin".
Falhou a proposta de criação de um santuário de baleias no Atlântico Sul na Comissão Baleeira Internacional, a CBI, com os opositores a defenderem que a ciência não tem provas de que tal seja necessário e porque não existe caça comercial às baleias naquela região. A medida foi apoiada por 39 países, mas 25 opuseram-se à ideia, que precisava de uma maioria qualificada para passar. Para os defensores do santuário, a medida iria permitir a proteção de baleias de várias ameaças para além da caça, como a poluição marítima e os problemas causados pelo aquecimento global. O encontro ficou marcado por fortes divisões. Se alguns países acreditam que a caça às baleias pode ser feita de forma sustentável, outros defendem que foram ultrapassados os limites e
que é necessário proteger as espécies. Foi em 1986 que a CBI baniu a caça comercial às baleias, mas o Japão deseja que volte a ser autorizada dentro de certos limites. Tanto o Japão, a Noruega ou a Islândia continuam a caçar os animais. O encontro da Comissão Baleeira Internacional começou na segundafeira na cidade brasileira de Florianópolis (sul), com uma reunião com representantes de 80 países, onde se confrontaram os defensores da flexibilização da moratória da caça às baleias e os que pretendem manter a moratória. A proposta foi apresentada pelo Brasil, que vem defendendo, há anos, a criação de um santuário para os cetáceos no Atlântico, apoiada pela Argentina, Gabão e África do Sul.
resulta do uso e consequente libertação contínua destes produtos nas águas residuais", lê-se num comunicado emitido
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