Bordo Livre 155 Novembro/Dezembro 2019

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BORDO LIVRE REVISTA DO CLUBE DE OFICIAIS DA MARINHA MERCANTE

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NOVEMBRO/DEZEMBRO 2019


WORLD EXPLORER DA MYSTIC CRUISES: ENTRE OS NAVIOS MAIS ECOLÓGICOS DA EUROPA O World Explorer, navio de cruzeiros oceânico da Mystic Cruises, está no top 20 da lista elaborada pela NABUNatural and Biodiversity Conservation Union, ranking que tem como finalidade ordenar as embarcações de cruzeiro menos poluentes da Europa. O World Explorer, que foi construído pela WestSea nos estaleiros de Viana do Castelo, foi projetado para visitar portos de pequena dimensão e mais próximos dos centros históricos das cidades, em oposição aos megapaquetes, oferecendo experiências no Mediterrâneo, no Mar Báltico, Gronelândia, O World Explorer, o primeiro de três navios de cruzeiro encomendados pela Mystic Cruises à WestSea, é um paquete eco-friendly sendo projetado para apresentar uma menor pegada ecológica, num trabalho desenvolvido em parceria entre a Mystic Cruises e a Rolls-Royce, de forma a poder ser equipado com motores híbridos e sem utilização de combustíveis pesados.

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“Integrar o top 20 dos navios mais ecológicos da Europa, segundo a NABU, é um marco para a classe de navios MS Explorer, projetados e concebidos tendo em linha de conta o que de mais sofisticado se utiliza na indústria naval em termos ambientais, não só de poupança de combustível como sustentabilidade energética”, referiu Mário Ferreira,

chairman e CEO da Mystic Invest, holding que controla as operadoras de cruzeiros Mystic Cruises, a DouroAzul e a Nicko. A NABU avaliou 88 embarcações, tendo colocado o World Explorer na 19ª posição. Com 100 cabines duplas que podem albergar 200 passageiros e uma equipa de 110 tripulantes, o World Explorer está preparado para navegar em águas polares.


EDITORIAL VIRAR DE PÁGINA

JORGE RIBEIRO

Primeiro editorial, segundo… trigésimo sexto editorial, este que inicio agora. Parece ter sido há meia dúzia de meses e já lá vão meia dúzia de anos, tantos como os que levo na presidência deste maravilhoso COMM. No início foi deveras complicado, refiro-me à escrita das três dúzias de editoriais que saíram deste mesmo computador, excetuando dois ou três que foram elaborados em viagem. Na verdade a escrita nunca foi bem a minha praia, no entanto, e à semelhança de outras coisas, o treino foi-me fazendo bem e neste momento quase me sinto um mau escritor, antes era péssimo. Já com “bilhete de desembarque” passado, é hora de ir fazendo o balanço do comando destes últimos seis anos dum total de cerca de 24 anos “embarcado” nesta nau chamada COMM. O nosso clube, felizmente, navega em águas tranquilas. Nos tempos que correm, uma instituição como a nossa não tem vida fácil. Conhecendo nós a história da destruição da nossa Marinha Mercante durante as últimas décadas e da dificuldade que é motivar jovens para virem a ser oficiais da nossa marinha, a razão salta à vista, tarefa quase impossível é conseguir que esses poucos que ainda vão remando contra a maré frequentem assiduamente as nossas instalações e venham a contribuir para o engrandecimento e o rejuvenescimento num futuro próximo. Por outro lado o valor das quotas cobradas aos sócios, excetuando a alteração que obrigatoriamente foi efetuada aquando da nossa adesão ao Euro, mantém-se o mesmo ao longo dos quase 30 anos de existência da nossa instituição. Foi necessário por isso criar alternativas de financiamento sem as quais não teríamos sobrevivido, a organização de cruzeiros durante a última década e que culminou na criação de uma agência de viagens, o “COMM Viagens”, foi talvez o melhor exemplo. Para isso tornou-se necessário alterar os estatutos que nos vão regendo, aproveitámos na mesma altura para criar uma outra vertente, a ambiental, com o “COMM Natura” abrimo-nos mais à sociedade em geral e, em especial, a todos aqueles que

mais do que nunca sentem a necessidade de reverter o “suicídio” que tem sido o modo como temos tratado o ambiente em geral e o mar em especial, temos essa obrigação moral. Durante estes últimos anos foi criada a delegação centro do COMM. Situada junto à zona portuária de Aveiro/Ílhavo ela tem sido, de algum modo, o porto de abrigo para os muitos colegas que habitam na zona. Ela veio colmatar uma falha importante que era precisamente a falta de um local de convívio para quem tantos anos andou na marinha mercante em geral e, especialmente, na pesca de alto mar. O virar de página está já aí, no próximo dia 7 de Dezembro durante mais um encontro Nacional de Oficiais da Marinha Mercante, desta vez nas nossas instalações – sede que serão com certeza pequenas para tantos colegas, uma nova equipa sairá dessas eleições. Uma equipa mais jovem, com um novo estilo e novas ideias e que irão continuar a engrandecer o nosso COMM. O apoio de todos será muito importante, mesmo para aqueles que por esta ou aquela razão não façam parte dos corpos sociais, a obrigação de colaborarem nos diferentes projetos que sempre existirão no nosso clube será crucial. Todos somos poucos para ajudar nesta tarefa. Eu? Eu vou andar por aí, a continuar a frequentar as instalações do nosso clube das quais sinto um enorme orgulho, a inscrever-me para almoçar os excelentes petiscos que o Chef Roque irá continuar a confecionar na bela cozinha recentemente inaugurada e a conviver com todos os que por lá apareçam. Quero por último agradecer a toda a tripulação (2) que me acompanharam nestes últimos seis anos de embarque contribuindo para os sucessos que conseguimos realizar. Também pedirlhes desculpa por alguns momentos de alguma ansiedade que existiram e que se manifestaram em algum mau feitio da minha parte. Bem hajam. Até sempre!

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SUMÁRIO

NOVEMBRO/DEZEMBRO 2019

3 6 8 12 14 15 16 19 22

DIRETOR

Editorial

Jorge Ribeiro

COMM Natura Liquefacção de carga - parte 1 António Costa

Viagens Que Não Esquecem Oliveira Gonçalves

Sabedoria do Mar Alberto Fontes

SA«Estória» da Joana Labrega Ana Maria Lopes

John de Sousa Joaquim Saial

Alunagem

António Lobo

Os Jovens e o Mar Bárbara Chitas

Lino Cardoso

COLABORARAM NESTE NÚMERO

Jorge Ribeiro, António Costa, Alberto Fontes, Bárbara Chitas , Oliveira Gonçalves, Joaquim Saial, Ana Maria Lopes

OS TEXTOS ASSINADOS SÃO DA RESPONSABILIDADE DOS SEUS AUTORES

COMPOSIÇÃO Mapa das Ideias TIRAGEM 1000 exemplares PERIODICIDADE Bimestral REG PUBL 117898 DEPÓSITO LEGAL 84303 CORREIO EDITORIAL Despacho DE00192019CRS

PROPRIETÁRIO/EDITOR

Clube de Oficiais da Marinha Mercante Trav S João da Praça, 21. 1100-522 Lisboa Tel (+351) 218880781. www.comm-pt.org secretaria@comm-pt.org

CAPA © Lino Cardoso DISTRIBUIÇÃO GRATUITA AOS SÓCIOS DO CLUBE DE OFICIAIS DA MARINHA MERCANTE

A REVISTA ESTÁ DISPONÍVEL ONLINE para leitura, duma forma fácil e intuitiva em http://issuu.com/clubeoficiaismarinhamercante/docs/bl155

HORÁRIO DE FUNCIONAMENTO DA SEDE DO COMM 2.ª, 3.ª, 4.ª, 5.ª, 6.ªF - das 15h00 às 18h00

A SEDE DO CLUBE DISPÕE DE LIGAÇÃO PAGAMENTO DE COTAS: NIB 001000006142452000137


GAGO COUTINHO Viajante e Explorador

Gago Coutinho, um dos raros oficiais da Marinha que chegaram ao posto mais elevado, o de almirante, por distinção, foi bem mais do que apenas o navegador do piloto Sacadura Cabral na epopeia da primeira travessia aérea do Atlântico Sul, em 1922, que ligou Lisboa ao Rio de Janeiro. Rebelde, fustigou os seus superiores na Marinha, por abuso de poder, e denunciou a prepotência dos roceiros de São Tomé - onde corrigiu a passagem da linha do equador. É esta faceta de Gago Coutinho, a de grande cientista, que ainda hoje continua a ser esquecida Coutinho percorreu milhares de quilómetros a pé, a cavalo ou em carroças .

puxadas por bois para delimitar fronteiras (e, com teimosia científica, ganhar território) em Timor, Angola e Moçambique. Além de geógrafo incansável, escreveu ensaios, desenhou inventos e explicou como os navegadores de Quinhentos alcançaram novos mundos. Muito a propósito o Museu de Marinha, em Lisboa, inaugurou no passado mês de Outubro, a propósito dos 150 anos do nascimento do Almirante, uma exposição intitulada Gago Coutinho - Viajante e Explorador, patente até 24 de Maio de 2020. A mostra conduz o visitante por feitos de Coutinho que a generalidade da sociedade desconhece.

NAVIO 'REBECCA S' DO GRUPO SOUSA reforça linhas marítimas entre o Continente e a Madeira O armador GSLINES, do Grupo Sousa, adquiriu recentemente o navio “Rebecca S” para reforço das linhas marítimas entre Portugal continental e as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, em substituição do navio afretado “Pantonio”. O “Rebecca S”, que até agora operava nas Caraíbas com o nome “Samba”, registado em Antígua e Barbuda, será registado no Registo Internacional de Navios da Madeira, RIN-MAR, passando a arvorar bandeira portuguesa. O navio é esperado em Lisboa no início de dezembro. Ficará sob o comando do Comandante Paulo Silva, contando na sua tripulação com dois oficiais madeirenses, a Imediato, Ana Melim, e o Chefe de Máquinas, Alexandre Bettencourt. O Grupo Sousa, que centra as suas actividades nas áreas dos Transportes marítimos (Shipping), Operações portuárias, Logística e Energia e Turismo, é hoje o maior armador nacional, o único a constar da lista dos 100 maiores armadores a nível mundial (86º na lista Alphaliner).

Opera 9 navios, sendo 5 próprios: “Lobo Marinho”, “Funchalense 5”, “Raquel S“, “Laura S” e “Rebecca S”, e 4 afretados: “Manatee”, “Leonie P”, “Insular”e “Lagoa”. O navio “Rebecca S” foi construído em 2007, tem 129,65 metros de comprimento, 20,83 m de boca, 7.584 tons GT, tem capacidade para 679 TEU.


COMM NATURA

No passado dia 20 de Novembro o COMM esteve presente na Ericeira para acompanhar a divulgação desta importante campanha junto da comunidade piscatória da Ericeira.

A reunião realizada em conjunto com o IADE, APLM e Docapesca, visa melhorar a gestão de resíduos a bordo das embarcações de pesca e nos portos de pesca. Em paralelo, procura sensibilizar os pescadores para a importância da adopção ou manutenção de boas práticas ambientais. Promovendo a recolha dos resíduos gerados a bordo e capturados nas artes de pesca e, disponibilizando as infraestruturas adequadas para a sua recepção, este projecto vem unir pescadores e portos na melhoria das condições ambientais da nossa zona costeira e na preservação dos ecossistemas marinhos portugueses. Este projecto teve início em 20 de Novembro de 2015 no porto de Peniche com a sua apresentação nacional e estendeu-se aos portos de Aveiro e da Ilha da Culatra, no ano de 2017. Estiveram presentes representantes da CMMafra, da Plasoeste, Mutua dos Pescadores, Sociedade de Geografia, Politécnico de Leiria e Tratolixo o que demonstra que não existem projectos vencedores sem a ampla participação dos diversos actores sociais e ambientais. O COMM através da sua área NATURA, apoia estas iniciativas contribuindo para a divulgação e sensibilização da sua massa associativa para a importância na gestão e recolha dos plásticos dos mares, em particular, nas zonas costeiras e balneares.

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ECOMAR XXI

Nos últimos meses o COMM tem vindo a trabalhar, de forma continuada, a temática da Economia do Mar e em parceria com a AORN iniciou um árduo e longo trabalho para dinamizar dentro das respectivas associações e fora delas, no primeiro plano a sociedade civil, as diversas vertentes que decorreram do estudo “Hypercluster da Economia do Mar”que foi publicado em 2009. Há época foram identificados os seguintes eixos estratégicos: 1 – Visibilidade, Comunicação, Imagem e Cultura Marítimas 2 – Náutica de Recreio e Turismo Náutico 3 – Transportes Marítimos, Portos e Logística 4 – Construção e Reparação Naval 5 – Pesca, Aquicultura e Industria do Pescado 6 – Energia, Minerais e Biotecnologia 7 – Obras Marítimas 8 – Serviços Marítimos 9 – Produção de Pensamento Estratégico 10 – Ambiente e Conservação da Natureza 11 – Defesa e Segurança no Mar 12 – Investigação Científica, Desenvolvimento e Inovação; Ensino e Formação

Aquilo que nos une é a constatação de que os portugueses continuam a confrontar-se com o enorme desafio de conseguir tirar pleno partido do seu maior recurso: o Mar. Foi preparada uma carta de intenções, que abaixo transcrevo, e enviada para diversas entidades com o objectivo de conseguir reunir o número desejável de vozes activas nesta demanda em prol do Mar. Contexto

Decorrida cerca de uma década desde a apresentação do estudo sobre o potencial estratégico do Hypercluster da Economia do Mar, entendemos que o momento é favorável à realização de um ponto de situação das ações entretanto imple-mentadas, tendo em vista contribuir para o reforço da economia do Mar

como fator de crescimento sustentável da economia de Portugal. Para o efeito, criámos o grupo de trabalho “EcoMar XXI” (1), aberto a representantes de entidades públicas e privadas, bem como a outros cidadãos dos mais diversos setores ligados ao Mar, que de forma voluntária pretendam dar um contributo pessoal para relançar o debate e, subsequentemente, atualizar o estudo estratégico do Hypercluster da Economia do Mar. Neste sentido, tencionamos promover a realização de uma série de encontros sobre a economia do Mar, que terão como base de trabalho o modelo desenvolvido pela AORN e as orientações estratégicas da SAER, respectivamente de 2005 e de 2009, e das quais resultará um relatório actualizado, identificando as prioridades estratégicas e o caminho a percorrer para uma dinamização mais efectiva dos diversos clusters da economia do Mar. A abordagem a adoptar nestes encontros passa pela identificação de pontos fortes e áreas a melhorar, articulados com riscos e oportunidades identificados por aqueles que, diariamente, trabalham em cada um destes clusters e estabelecem as pontes entre o sector do Mar e a sociedade, como as empresas, universidades, autarquias, departamentos governamentais, associações sectoriais ou outras entidades ligadas ao desenvolvimento da economia do Mar. Reconhecendo o significativo desafio que esta iniciativa acarreta, nomeadamente em termos dos recursos necessários para a organização destes eventos e para a

produção do novo relatório, estamos naturalmente abertos ao apoio institucional e individual de todos os que se queiram associar, em prol deste desígnio nacional, que é a valorização e rentabilização sustentada do Mar português e, consequentemente, a criação de gerações oceânicas.

Até à data, obtivemos a resposta positiva da Confraria Marítima-Liga Naval, Associação Portuguesa de Lixo Marinho, Estado-Maior da Armada, Estado-MaiorGeneral das Forças Armadas, Grupo da Amigos do Museu da Marinha e Universidade Europeia. Queremos e precisamos de mais entidades colectivas e individuais para integrar os diversos grupos de trabalho que foram criados para o efeito. Deixo aqui estas palavras de sensibilização, aos associados do COMM que disponham do seu conhecimento, da sua competência e da sua experiência a favor desta causa que é de todos. Contactem-me se pretenderem liderar ou contribuir para a reflexão de um dos eixos estratégicos, uma vez que a equipa vai organizar diversos eventos em todos os meses, ao longo do próximo ano. Vamos unir-nos e mostrar que no séc XXI Portugal, tem capacidades para dar novos mundo ao Mundo.

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LIQUEFACÇÃO DE CARGA

UM ASSASSINO À ESPREITA

ANTÓNIO COSTA

A INTERCARGO, no seu último relatório anual (cobrindo 2009 a 2018), publicado no início deste ano, regista 48 graneleiros acima dos 10.000 dwt como perdas totais e que custaram a vida a 188 pessoas. Mas, desses, nove desastres foram causados por liquefação da carga – a maior causa e que custou a vida de 101 marítimos. Os incidentes envolveram seis graneleiros com minério de níquel da Indonésia, dois com laterita (argila) de minério de ferro da Índia e um com bauxita da Malásia. Também num trabalho universitário de novembro de 2016, patrocinado pela ITOPF, se escreve: “O risco está a aumentar no comércio de graneleiros devido ao transporte de carga potencialmente instável. Essas cargas são inerentemente arriscadas quando estão expostas à humidade, agravando a possibilidade de um evento de liquefação a bordo.” A rápida liquefação da carga a bordo de um graneleiro pode resultar em naufrágio, o que representa, quase sempre, riscos de perda de vidas e de danos ambientais, não apenas referentes à carga, mas também ao combustível a bordo desses navios. Por sua vez, todas as sociedades classificadoras têm vindo a actualizar, sucessivamente, as suas directrizes e recomendações sobre a liquefação de cargas a granel. E já este ano voltaram a suceder acidentes deste tipo!

O que é liquefação de carga?

A liquefação é o fenómeno pelo qual um material semelhante a solo se transforma, abruptamente, do estado sólido para um estado fluido, quase líquido. As cargas

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consideradas susceptíveis à liquefação são, tipicamente, caracterizadas como materiais de granulação fina, não coesiva (facilmente desagregada), não embalados e húmidos. Muitas das comuns cargas a granel, como pós finos de minério de ferro, minério de níquel e vários concentrados de minérios, são exemplos de materiais que se podem liquefazer. A liquefação de carga é um risco bem conhecido no transporte de granéis sólidos.

E quais as consequências?

Como atrás disse, durante a liquefação, o material passa por uma transição de um estado sólido para um estado fluido (ou mesmo, líquido). Nesta eventualidade, a estabilidade de um navio fica reduzida devido ao efeito de superfície livre e deslocamento da carga, podendo resultar no adornamento do navio e, bastas vezes, no seu emborcamento. Também a estrutura do navio pode sair danificada por aumento da pressão da carga. Nos últimos dez anos, a liquefação da carga causou a perda de mais de 100 vidas de marítimos e a perda de doze navios graneleiros, mantendo-se como a questão de segurança mais importante no que respeita os graneleiros.

Qual a regulamentação pertinente?

O Código Marítimo Internacional para Cargas Sólidas a Granel (IMSBC Code) estabelece os procedimentos padronizados a serem aplicados nas diversas fases do transporte marítimo de cargas sólidas a granel e foi adoptado pela Resolução MSC.268(85) com carácter obrigatório a partir de 01/01/2011, de acordo com a


CIMA: Os movimentos e a vibração do navio podem fazer com que o minério, com um alto teor de humidade (à esquerda), se liquefaça e escorra dentro do porão, comprometendo a estabilidade do navio (à direita). BAIXO: Exemplo de teste de Flow Table efectuado com minério brasileiro: a) imediatamente abaixo e b) imediatamente acima do TML.

Regra VI/1-2 da Convenção SOLAS. Ao longo do tempo, têm vindo a ser nele introduzidas importantes alterações, além da publicação de recomendações e orientações por parte da OMI. Por exemplo, as alterações ao Código, que entraram em vigor no dia 1 de janeiro de 2019, tiveram um enorme impacto ao nível das cargas de carvão, já que passaram a ser incluídas no Grupo A – que se constituem como podendo liquefazer – além de as conservar no Grupo B – concernentes aos riscos químicos. As actualizações pertinentes incluem: alterações na secção 4.5 do Código, estipulando a responsabilidade do carregador/exportador, para garantir que os testes e amostras ao Limite de Humidade Transportável (Transportable Moisture Limit – TML) e do conteúdo de humidade sejam realizados nos intervalos correctos, para além da inclusão de um novo procedimento de teste para determinar o TML do carvão. Ao nível das recomendações e orientações, a OMI fez publicar um conjunto de “Orientações para o desenvolvimento e aprovação de procedimentos para amostragem, teste e controlo do teor de humidade para granéis sólidos que podem liquefazer” Paralelamente, foi validado em Setembro último, pelo Subcomité de Transporte de Cargas e Contentores da OMI, um novo Curso Modelo OMI sobre “Manuseio e Transporte Seguro de Cargas a Granel”. O curso concentrar-se-á nas medidas obrigatórias para o manuseio e transporte de cargas sólidas a granel descritas no Código Internacional Marítimo de Carga .

Sólida a Granel (IMSBC). O curso cobrirá todas as cargas sólidas a granel, incluindo aquelas que se podem liquefazer quando atingidos os limites de humidade e que possam causar instabilidade ao navio.

Quais as cargas que se podem liquefazer? Estas cargas podem parecer estar num estado granular relativamente seco no momento do carregamento e, mesmo assim, poderão conter humidade suficiente para se tornarem fluidas, pelo estímulo da compactação e vibração que ocorre durante a viagem, devido ao balanço e condições do mar. O Código classifica as cargas em três grandes grupos:

1)Cargas do grupo A (cargas que podem liquefazer) a) Concentrados de minérios: os concentrados minerais são minérios refinados, em que os seus componentes valiosos foram enriquecidos pela eliminação da maioria dos resíduos. Neles se incluem os concentrados de cobre, ferro, chumbo, níquel e zinco. b) Minério de níquel: existem vários tipos de minério de níquel que variam em cor, tamanho de partícula e teor de humidade. Alguns deles podem ter semelhanças com argila. c) Carvão: o carvão (betuminoso e antracite) é um material natural combustível, sólido e composto por carbono amorfo e hidrocarbonetos. É mais conhecida como uma carga pertencente ao Grupo B devido às suas propriedades inflamáveis e de auto-aquecimento ou reactivas à água, mas que também pode ser classificada como do Grupo A, já que se pode liquefazer se for, predominantemente, fino (ou seja, quando 75% da sua composição são partículas com menos de 5 mm de espessura). Nesses casos, é classificado como dos Grupos A e B. 2)Cargas do grupo B (cargas com riscos químicos): as

cargas do grupo B são classificadas de duas formas no Código: a) Mercadorias perigosas em forma sólida a granel (sob o Código Internacional de Mercadorias Marítimas Perigosas (IMDG): as cargas de materiais que atendem aos critérios de inclusão nas classes IMDG (de 1 a 9); e b) Materiais perigosos apenas a granel (MHB): são os materiais que apresentam riscos químicos quando transportados a granel e que não atendem aos critérios de inclusão nas classes IMDG. Apresentam riscos significativos quando transportados a granel e requerem precauções especiais. Os principais riscos associados às cargas do Grupo B são o incêndio e a explosão, a libertação de gases tóxicos e a corrosão. O carvão pode criar atmosferas inflamáveis, aquecer espontaneamente, esgotar a concentração de oxigénio e corroer estruturas metálicas. Alguns tipos de carvão podem produzir monóxido de carbono ou metano. 3)Cargas do grupo C (cargas que não são passíveis de liquefação nem possuem riscos químicos): embora estas cargas não apresentem os perigos associados às cargas do grupo A e B, elas podem, mesmo assim, apresentar outros riscos.

Existem, no entanto, outras que, embora não estejam listadas no Grupo A, são propensas à liquefação ou, de alguma forma ou em alguma ocasião, se comportaram como cargas propensas a liquefação. São exemplo, as barites (sulfato de bário) e a bauxita. A OMI, através do seu Subcomité de Transporte de Cargas e Contentores (CCC), na segunda sessão de 2015 (14 a 18 de setembro), veio considerar questões relacionadas ao transporte de bauxita, nomeadamente no rescaldo do naufrágio do M/V Bulk Jupiter com a perda de 18 vidas, em 2 de janeiro desse ano, acidente

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O deslizamento da carga desloca o centro de gravidade vertical de um navio e pode fazer com que o navio vire.

atribuído à liquefação de uma carga de bauxita. Ficou decidido incluir este tipo de material no Grupo A de cargas, devendo ser transportado de acordo com a subsecção 1.3 do Código, além de promover um projecto de emendas ao parágrafo 4 do código, a ser apresentado e adoptado pelo Comité de Segurança Marítima (MSC 101, em 2019), com data de entrada em vigor das propostas de emendas até janeiro de 2021.

Quais são os testes TML prescritos pelo código ISMBC? Quando a OMI fez publicar o Código IMSBC, estabeleceu o Limite de Humidade Transportável (TML), e indicou três métodos para a sua determinação: Proctor /Fagerberg, Flow Table e Penetration . Um amplo estudo apresentado à OMI em 2013, concluiu que estes métodos não são adequados para finos de minério de ferro, tendo sido desenvolvido um novo teste, o Proctor/Fagerberg Modificado .

Como pode ser prevenida?

A tomada de consciência das condições que podem causar a liquefação da carga é essencial para a operação segura dos navios que têm de carregar tais cargas. Como atrás é dito, são vários os guias publicados pelas classificadoras e outras organizações representativas dos armadores. A liquefação não ocorre quando uma das seguintes condições é satisfeita:

• Embora pequenas, se as partículas da carga tiverem boa coesão, a pressão da água entre as partículas da carga não aumentará. • Se a carga contiver grandes partículas ou pedaços, a água passará pelo espaço e, portanto, não haverá aumento da pressão da água. • Se a carga contiver uma alta percentagem de ar e um baixo teor de humidade. As cargas secas não se liquefazem.

Segundo a vasta literatura existente sobre o

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tema lista-se, de seguida, os cuidados a ter para poder prevenir as causas mais comuns de incidentes relacionados com a liquefação: • O Comandante e o carregador / operador devem sempre garantir que a carga é correctamente identificada antes do carregamento. O nome da carga deve ser o usado no BCSN (Bulk Cargo Shipping Name), tal como detalhado no Código IMSBC. Por vezes, os carregadores usam nomes ou marcas comerciais. A consequência de não usar o nome adequado está no não reconhecimento, atempado e correcto, dos riscos da carga. • O Comandante deve sempre garantir a recepção da documentação adequada sobre a carga que vai receber, antes do carregamento. Se a carga não estiver listada no Código IMSBC – como, por exemplo, a bauxita com alto teor de humidade – o carregador deve fornecer à autoridade competente do porto de carregamento as características e propriedades da carga. • O Comandante deve socorrer-se de perito independente. Embora seja da responsabilidade do carregador declarar a carga com risco de liquefação e fornecer um certificado TML, é, infelizmente, difícil para o Comandante verificar ou avaliar de forma independente o valor TML, excepto com um teste altamente impreciso. Para obter valores TML confiáveis, as amostras representativas da carga precisam ser testadas em laboratórios. O teste TML é uma tarefa especializada e, em todo o mundo, não existem muitos laboratórios competentes e independentes. Em alguns dos principais países exportadores do minério, existem poucos, ou nenhum, desses laboratórios. O problema da falta ou imprecisão dos testes é amplificado pelo facto de muitas minas não serem facilmente acessíveis devido ao seu afastamento – estão a milhares de quilómetros dos cais e a carga foi sofrendo alterações ao longo do percurso terrestre. É, assim, recomendada a nomeação de um perito/inspector independente, ou especialista naquela carga, para o devido aconselhamento. • Deve ser conhecido o conteúdo de humidade da carga antes do carregamento. O carregador está

obrigado a apresentar uma declaração do teor médio de humidade da carga antes do carregamento. Nesse processo, existem muitas fontes potenciais de erro e, claro, as cargas de minério não processadas são as mais vulneráveis. Para cargas de minério, as propriedades e o teor de humidade podem variar significativamente. As variações são, por vezes, tão grandes, que as cargas podem ser consideradas de tipos diferentes, pelo que o teor de humidade deve ser fornecido, de forma individualizada, para cada tipo de carga, mesmo que as cargas sejam misturadas no mesmo compartimento de carga. • O carregamento destas cargas obriga a um cálculo de estabilidade muito cuidadoso, precavendo os movimentos dos navios durante a viagem. A altura metacêntrica do navio deve ser cuidadosamente considerada ao transportar cargas que se podem liquefazer. Um valor excessivo de GM resulta em períodos de rolamento mais curtos e altas acelerações, o que poderá desencadear a liquefação. Se a condição de carga e a resistência estrutural do navio permitirem, o centro de gravidade da embarcação poderá ser elevado através da lastragem dos tanques laterais superiores (também conhecidos como wing tanks) ou carregando a carga de forma não homogénea. Por outro lado, o estudo e planeamento da viagem deve ser criteriosamente executado, procurando o roteamento mais aconselhado em relação à condição meteorológica que se irá encontrar durante a navegação, para se poderem evitar movimentos de balanço excessivos. • O Comandante deverá assegurar o rechego e alisamento da carga para evitar o deslocamento e, ou, deslizamento da mesma durante a viagem. O alisamento da carga (conhecido por trimming) é um método bem conhecido de redução do risco de deslocamento ou deslizamento da carga e deve poder garantir que a mesma está, razoavelmente, nivelada. Além disso, a estabilidade e a distribuição de peso sairão melhoradas. No entanto, estes procedimentos aumentam o tempo e o custo inerentes ao processo de carregamento.


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VIAGENS QUE NÃO ESQUECEM

GALAXIDION

OLIVEIRA GONÇALVES

Prosseguimos então viagem para Galaxidion. Era uma baía onde estavam uns trinta navios fundeados, em blocos de dez ou doze (proa/popa alternadamente).

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Não me lembro do ano (1985?) mas lembro-me do dia perfeitamente, um dia antes do meu aniversário, com férias marcadas e tudo.... comprei uma boa guerra em casa. A proposta que me foi apresentada era de ir buscar um VLCC a Galaxidion, da Grécia para Setúbal, com o rebocador NIPON, à data ainda propriedade da SOCARMAR. Em viagem demos conta que éramos o tripulante que ganhava menos a bordo, mas não tínhamos de que nos queixar pois pagaram o combinado. Saímos de Lisboa no dia 15 de junho, ao tempo o rebocador não tinha girobússola nem GPS, pelo que fizemos a zona dos “lanes” do Cabo S. Vicente, chamando o mestre que fazia de Imediato pelas 0130 do dia 16 e fomonos deitar. Pelas 0600 quando retomámos o serviço na ponte, amanhecia e aparentemente estava boa visibilidade. Estranhámos que estando um navio a 0.75 um pouco por nossa ré de través de EB não estivesse visível. No PPI detectámos um eco praticamente à proa à distância de 12 milhas. Quando este eco, que continuava na proa estava a 6 milhas guinámos 15 graus para estibordo, mas quando entrou nas 3 milhas não estava ainda a abrir claramente, estando o tal navio de EB a menos de 0.5 milhas sem que o pudessemos ver à vista desarmada. Decidimos então guinar para EB e colocarmo-nos na popa do referido navio.

Quando terminámos esta manobra estando pela popa deste navio a três décimos de milha e com ele visível, ouvimos um barulho enorme no mar, e o navio que ia à nossa proa a encolher. Nunca chegámos a ver o outro navio com o qual ele tinha abalroado. Isto passava-se mais ou menos a sul de Faro, o tempo estava calmo, pelo que nos pusemos a 10 metros pela popa deste navio. A tripulação apareceu a correr na direcção da baleeira, vestindo o colete salva-vidas e ficava surpreendida e aliviada por nos ver ali. Há risos que a gente não esquece mais. Ficámos por ali umas quatro horas dando apoio ao navio que era da Finlândia, ainda propusemos rebocar ou apoiar o navio até Cádis, mas o Comandante informou que, embora a colisão tivesse sido roda a roda e tivesse metido o castelo da proa e o porão nº 1 dentro, não havia sinais de alagamento no porão nº. 2 pelo que ele ia seguir viagem pelos próprios meios para Argel, dado o bom estado do tempo e mar. Como o outro navio não respondia às chamadas em VHF, perguntámos ao Comandante do navio finlandês se sabia o nome do navio que o tinha abalroado, respondendo-nos ele que se chamava TAUNUS e que era grego. Algum tempo depois, o navio grego confirmou chamar-se TAUNUS, que não precisava de ajuda e que ia para Lisboa. Prosseguimos então viagem para Galaxidion. Era uma baía onde estavam


uns trinta navios fundeados, em blocos de dez ou doze (proa/popa alternadamente). Preparámos o cabo de reboque e chamámos o perito da Lloyd` s que determinou que o navio só podia sair até às 1400, porque queria que o navio atravessasse o estreito de Patras com luz do dia. Todos os tripulantes deram a sua ajuda à proa do rebocado e no rebocador e até os gregos ajudaram, mas durante esse período a lancha que nos dava apoio foi três vezes a terra, o que nos pareceu estranho. Antes da hora combinada o navio estava pronto a sair, e como não havia formalidades portuárias, partimos. No dia seguinte era necessário abastecer o reboque de combustível, sabiamos que seria na Sicília, mas só soubemos o porto no dia (Augusta). Entrámos em Augusta cerca da dez da manhã, o tempo estava excelente, atracámos de braço dado ao rebocado e fundeámos. Chegou a Agência com um plano de lanchas até ao dia seguinte de hora a hora. Dissemos que não queríamos nada disso, queríamos era abastecer de combustível o mais depressa possível e sair. Deram conta que entendíamos italiano, começaram a falar entre eles em dialeto siciliano e não entendíamos uma palavra. Como não conseguiram impor a lancha de hora a hora, apareceu de seguida novamente o Agente a bordo que por determinação do Capitão do Porto o

Foto de Luís Miguel Correia (Blogue dos Navios e do Mar)

Comandante do rebocador tinha que ir a terra falar com ele. Lá fomos com ele, e chegados a terra, o Capitão do Porto tinha-se ausentado e já não precisava de falar connosco. De volta para bordo, quando nos aproximámos pela popa demos conta que eles estavam a passar uma cadeira por um cabo sem fim para a barcaça de abastecimento de combustível. Apanhados em flagrante, juraram que era a primeira, acabaram rápido o abastecimento de combustível e saímos. Era suposto fazer segundo abastecimento de combustível em Gibraltar, mas em viagem alteraram para Algeciras. Era nossa intenção fundear o rebocado em Gibraltar do lado do Mediterrâneo, ir a Algeciras abastecer o rebocador de combustível e restabelecer de novo o reboque. Desde as 0700 até às 1600 os tripulantes que subiram ao rebocado não conseguiram largar o ferro. Como o combustível estava a acabar e não dava até ao dia seguinte, dirigimonos com o rebocado para Algeciras,

solicitámos um rebocador para passar um cabo ao rebocado enquanto íamos a terra abastecer. Quando nos aproximávamos de Algeciras veio a lancha dos Pilotos e o rebocador, e quando estavam próximo estranhamente receberam ordem para regressar. Contactada a Agência a saber do que se passava, disseram que não sabiam, que era assunto para resolver no dia seguinte. Com a criança nos braços, e com a certeza de que o combustível não dava até ao dia seguinte, lembrei-me de contactar o chefe dos Pilotos de Algeciras, identificando-me e solicitando os seus bons ofícios dado que tinha necessidade urgente de chegar a Lisboa Cinco minutos depois apareceu de novo o rebocador e o barco de Pilotos...Ufa...que alivio. À chegada a Setúbal não havia roda de leme no rebocado... não sei se foi em Galaxidion quando estávamos todos no cabo de reboque, se foi em Augusta quando estávamos a abastecer..., mas em Setúbal fiquei convencido que o dono do navio achou que fui eu. .

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SABEDORIA DO MAR

O TRABALHO MARÍTIMO

ALBERTO FONTES Dream my dreams é o refrão de uma conhecida canção que nos inspirou, ao darmos conta quando do Seminário no auditório da sede do COMM, estar cheio de entusiastas do mais icónico navio português o paquete “FUNCHAL”. Tanto o comandante Amadeu Albuquerque que na sua apresentação trouxe memórias que lhe transmitiram muitos dos passageiros habituais; como o comandante António Morais que relatou as suas experiências vividas nos muitos anos ao comando do navio, conseguiram motivar os assistentes no período final do debate a completar toda a operação do navio desde 1961 a 2019. Especial relevância para a esclarecedora intervenção do Comandante José António Vicente que foi o primeiro imediato do navio e quis a sua longa carreira na Marinha de Comércio, já nos quadros de terra da Empresa Insulana de Navegação e também nos quadros directivos da Companhia de Transportes Marítimos – CTM, se visse como decisor de estratégias para a valorização comercial e operacional do navio. O FUNCHAL despertou sempre sentimentos de paixão quer nos seus armadores, quer nos tripulantes, tal como nos passageiros, onde a sua impressionante cifra de 40% de passageiros frequentes, ainda hoje é procurada pelos grandes operadores mundiais. Aqui no Clube de Oficiais da Marinha Mercante também alimentamos um sonho, que mais não passa de uma experiência da imaginação do incon-

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sciente, que como Freud disse “trata-se na busca pela realização de um desejo reprimido”. Utilizar o FUNCHAL para uma visão holística, para uma forma de ver e compreender a industria do transporte marítimo. O navio poderá ter na afirmação internacional, a mostra do mercado do transporte marítimo, na confluência com muitas áreas económicas, uma fronteira com diversificados interesses, na promoção do trabalho marítimo nacional, do Green Shipping português na idade do digital. Para tal conta-se segundo dados do Ministério do Mar em Portugal, com cinquenta e cinco mil trabalhadores que fazem do mar a sua profissão, dos quais trinta e seis mil são pescadores. Se em 2019 vemos com regozijo aparecer a Mirpuri Foundation Racing Team para numa das mais exigentes e competitivas competições da vela mundial, ir ter dentro de dois anos, um veleiro VO65 “Racing for the Planet”com tripulantes portugueses, na competição de volta ao mundo, levar a mensagem de Portugal “contra as alterações climáticas”, deixem-nos sonhar com o paquete “FUNCHAL” fazendo neuromarketing, aplicando conhecimentos dos processos emocionais implicados na tomada de decisão, a demonstrar que em Portugal se assume o Mar como um sector estratégico para o desenvolvimento, com uma aposta no futuro. Por sua vez a agora chamada The Ocean Race (a VOLVO deixa de estar associada ao

nome da prova de vela internacional de volta ao mundo por equipas) Lisboa deixa de ser escala (stopover). Esta falta de acordo entre os responsáveis da The Ocean Race e as entidades portuguesas, foi logo aproveitada por Cabo Verde, que terá uma escala em São Vicente mantendo-se a largada em Alicante – Espanha. Sentimos que nos falta uma mostra do transporte marítimo como o maior actor no transporte de mercadorias em todo o mundo, mas tal como outros sectores económicos e industriais, está sujeito a desafios e mudanças permanentes, para continuar competitivo no interesse das populações. Com a meta no horizonte de em 2050 para a industria marítima alcançar a neutralidade do transporte marítimo limpo; com a adopção de legislação amiga do sector; abraçando a digitalização na simplificação dos procedimentos administrativos; ou na redução dos resíduos dos navios nos mares; os trabalhadores marítimos assumem um papel primordial para alcançar este objectivo, sem nos esquecermos das empresas que assumem todos os esforços de transição para um transporte marítimo limpo. Também a Comissão Europeia apresenta um plano estratégico, para fazer da União Europeia um continente neutro em carbono. O chamado Green Deal que envolverá todos os sectores económicos num pacto climático, na busca da “Energia Limpa para os europeus”no que para isso muito contribuirá a mobilidade limpa, no rumo de um Planeta Limpo paraTodos.


A «ESTÓRIA» DA JOANA LABREGA -- do blog Marintimidades Dos Postais da CASA do BICO que Senos da Fonseca tem escrevinhado no blogue Terra da Lâmpada, não há dúvida que, para mim, o último, que relata um parto improvisado a bordo de uma bateira labrega, seduziu-me mais profundamente. Todos eles têm o seu atractivo, porque relatam histórias ficcionadas entre figuras características da Costa Nova, que, por sua vez, lhe são hipoteticamente relatadas pela Zefa e pela Bernarda, em encontros de passeios matinais. Elogio no autor, a capacidade criativa, a preocupação do registo dos nossos regionalismos, em contexto, bem como o entusiasmo com que nos brinda com os seus relatos. No entanto, a «estória» do parto da Joana Labrega fascinou-me demais… Porquê?

Por ter a ria como cenário, a bordo de uma bateira labrega, de vela bastarda, com toldo espalmado (pata de rã)? Por registar os tais regionalismos (vertedouro, escalamões, saltadouro, castelo da proa, traste, orça, etc.), sobretudo, de cariz marítimo? Por nos contar um parto improvisado, o desabrochar de uma vida, com toda a sua emoção? Eu, que assisti a partos e, principalmente, fui mãe, sem os artifícios que envolvem os partos actuais, pensei, depois de ter acabado de ler a história: – há cinquenta anos, quase que preferia ter parido a bordo de uma labrega que numa «cama de bilros», de pau-santo. E fiquei ferrada naquele pensamento!!!!!! que navegou comigo até de manhã. Que beleza!

ANA MARIA LOPES

Costa Nova, 29 de Agosto de 2019

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JOHN DE SOUSA

CURIOSOS ASPECTOS DA AVENTUROSA VIDA DO CAPITÃO CABO-VERDIANO DE VELEIROS

JOAQUIM SAIAL

Àmemória do capitão John, meu Pai – capitão que foi de veleiro e sabia protestar contra mar e vento e contra quem de direito for e pertencer possa.

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Em bombástica notícia de primeira página, o Diário de Notícias de New Bedford1 de 18 de Janeiro de 1929 referia que fora apreendida na Geórgia a escuna Fannie Belle Atwood e que o seu capitão, João L. Sousa2 fora preso, "acusado de passar ilegalmente para os Estados Unidos centenares de estrangeiros". Denominado como "chefe de uma das maiores companhias de contrabandistas estrangeiros no Sul" e procurado desde 1925, o capitão John (como também era conhecido) fora capturado na cidade costeira de Brunswick por um esquadrão de marshalls. Imediatamente conduzido a Boston, ali iria responder a um processo que lhe fora posto dois anos antes. Portugueses (decerto na maioria caboverdianos) mas também espanhóis, pagando entre 400 e 1000 dólares cada um, eram os passageiros que durante anos introduzira clandestinamente nos States. O capitão, que transferira a sua actividade de New Bedford para a zona costeira da Georgia cerca de 1925, era naturalizado americano desde Junho de 1926. Fora detentor da escuna William A. Graber que vendeu para depois adquirir a Fannie Belle Atwood3 com a qual fez várias viagens entre Cabo Verde e a Flórida. João de Sousa comandara também a Georgette que naufragou algures na América do

Sul, em desastre no qual se salvaram todos os tripulantes mas foram perdidos os bens que o barco transportava. No dia seguinte, o mesmo jornal titulava o desenvolvimento da notícia com um enigmático texto: "O capitão Sousa está secretamente acusado em Boston – Vem da Georgia, onde foi preso, para aquela cidade, onde responderá, crê-se que por passar passageiros ilegalmente neste porto". O esquema encontrado para o negócio, segundo as autoridades de imigração de Jacksonville, era o seguinte: o capitão tinha duas tripulações, uma composta de verdadeiros marinheiros e outra de patrícios portadores de documentos de navegação falsos que chegavam escondidos em carregamentos de sal4. Quando a escuna entrava no porto, estes passavam por marinheiros e indo para terra nunca mais regressavam. Na altura em que o navio se preparava para zarpar, as autoridades de imigração encontravam intacta a tripulação5. Na manhã de 28 de Janeiro, João de Sousa está no Tribunal Federal, perante o juiz James A. Lowell6. Mas alega inocência e sai sob fiança de 2500 dólares. Curiosa e estranhamente, a acusação referia-se apenas a um clandestino, Manuel Mendes, havia 18 meses residente em Hartford, Conn., também ele sujeito a fiança do

1. Longo jornal diário americano de língua portuguesa. Iniciou a sua publicação a 25 de Janeiro de 1919, na altura chamando-se Alvorada, e mudou de nome em 1927 para Diário de Notícias. Circulou por todo o país até 1973. 2. Tratava-se do capitão João Lúcio de Sousa (1892-1958), pai do notável e malogrado médico e escritor caboverdiano Henrique Teixeira de Sousa (1919-2006). Descendente de pescadores baleeiros madeirenses, era natural da ilha Brava. Casou em 1918 com a foguense Laura Martins Teixeira e fixou-se em São Filipe, ilha do Fogo, onde ainda existe o sobrado por ele mandado fazer. Teve outro filho, Orlando (1921-…), ainda vivo em 2013 e a residir

no Bombarral, Portugal. O capitão John faleceu respeitado, em São Vicente. Estas valiosas informações foram-nos prestadas pelo neto, o médico nosso amigo e colega de Liceu Gil Eanes do Mindelo, ilha de São Vicente, Aníbal Orlando "Landim"Teixeira de Sousa. 3. Que pertencera a Ernest A. Montrond, de New Bedford e fora barco de pesca em Gloucester, Mass.. 4. Há conhecimento da exportação de sal de Cabo Verde para os Estados Unidos da América, para aplicar nas ruas e sobretudo nos carris dos eléctricos, em altura de nevões. 5. DN, 19.01.1929, p. 1. 6. DN, 29.01.1929, p. 2. O capitão John é então dado


mesmo montante e que se esperava viesse a depor como testemunha principal no dia do julgamento. O capitão John acaba por se dar por culpado da entrada ilegal do Mendes nos EUA e é sentenciado ao pagamento de uma multa de 1000 dólares e a prisão durante quatro meses em New Bedford7. Em finais de Outubro de 1933, a escuna Corona estava amarrada ao cais do Gás, em New Bedford, a receber carga com destino a Cabo Verde8. Chegaria a São Vicente a 17 de Dezembro, após 28 dias de viagem, mais oito que o previsto, devido ao tempo desfavorável9. Inclusive, três tanques de água assentes no convés, destinados ao consumo da tripulação e passageiros haviam sido levados pelas ondas. A Corona, que fora construída em Bristol, R.I.10, como "navio de corridas", estava agora na carreira de Cabo Verde sob comando do nosso capitão, seu proprietário – o qual esperava voltar aos Estado Unidos da América na Primavera seguinte, com passageiros e carga. Assim aconteceu, de facto. Desta feita, porém, a viagem foi mais longa e durou 32 dias, desde a Brava. Trazia 25 passageiros e carga diversa. Chegado a New Bedford a 2 de Junho de 193411, esperava fundeado a 5 a visita das autoridades de saúde e da alfândega, antes de atracar ao cais. Em 1935, o navio era dirigido pelo capitão Rui B. Carvalho12. Chegou de novo a New Bedford, a 15 de Junho, numa das suas mais demoradas viagens, após 54 dias de bom tempo e muita calmaria. Trazia carga

diversa e oito passageiros, para além de 21 tripulantes. Dias depois de largar de Cabo Verde, o capitão Carvalho adoeceu gravemente e logo que chegado deu entrada no St. Luke’s Hospital, em perigo de vida. Ali faleceria a 27 de Junho, aos 44 anos13. A bordo vinha um passageiro distinto, o professor primário, poeta, jornalista e activista da africanidade Pedro Cardoso, mais conhecido por "Afro"14. Cardoso ia aos Estados Unidos com o objectivo de recolher entre os seus patrícios das colónias cabo-verdianas da América dinheiro para ajudar a população das ilhas, mais uma vez a passar fome15. A triste sina de sempre… Em Setembro, a Corona, então atracada no cais Merrils, preparava nova partida para Cabo Verde, com carga e 25 passageiros16. Era agora comandada pelo capitão João Silva e levava como imediato o seu proprietário, João de Sousa17. Mas em Outubro de 1938, este era de novo o comandante. Na altura amarrada ao cais Philadelphia & Reading, a Corona estava a carregar para partir antes do fim do mês, para a Brava. Levaria oito passageiros18. Contudo, parece que para além de 15

tripulantes transportava apenas dois passageiros, Ana Gomes, de 70 anos, e Teófilo da Silva Neves, de idêntica idade, que queriam acabar os seus dias na terra onde tinham nascido… 19. O barco chegou a São Vicente, a 14 de Dezembro, sem incidentes, após 37 dias de viagem20. Segundo o DN, em 1939, a Corona era à época o único navio da carreira de Cabo Verde21. Previa-se que chegasse, vinda da Brava a 20 de Julho, 35 dias depois, número aproximado que em geral levava no trajecto22. Afinal, dessa vez foram 45 os gastos. A notícia do DN é um pouco mais desenvolvida que habitualmente e mostra algumas facetas das chegadas de navios a New Bedford23. Assim que a escuna carregada com feijão e tabaco ancorou no porto, dirigiram-se para bordo o funcionário da Alfândega Dave J. Allen, o Dr. Edmond F. Cody, dos Serviços de Saúde Pública, o inspector dos Serviços de Imigração Charles F. Quinlan e uma tradutora, aparentemente de origem lusitana, Lucy Dias. Quanto aos 15 tripulantes, dizia-se que nove eram portugueses e os restantes naturalizados cidadãos americanos, eventualmente de

como morador no 79 de Grinnell St., New Bedford. 7. DN, 28.02.1929, p. 1. 8. DN, 31.10.1933, p. 2. 9. DN, 23.01.1934, p. 2. 10. DN, 18.08.1938, p. 7. 11. DN, 05.06.1934, p. 5. 12. DN, 16.07.1935, p. 2.

13. DN, 27.09.1935, p. 8. 14. Pedro Monteiro Cardoso (Fogo, 1890 – Praia, 1942). 15. Uma das acções resultantes desta visita de Pedro Monteiro Cardoso foi a soirée dançante que se realizou a 14 de Setembro na Aliança Liberal Portuguesa, na Delano St., 4, onde ele descreveu os horrores da fome que estava a lavrar no arquipélago (ver DN, 13.09.1935, p. 2).

16. DN. 19.09.1935, p. 2. 17. DN, 15.10.1935, p. 2. 18. DN, 27.10.1938, p. 8. 19. DN, 09.11.1939, p. 2. 20. DN, 15.12.1938, p. 3. 21. DN, 05.07.1939, p. 2. 22. DN, 01.08.1939, p. 2.

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origem portuguesa. Comandada ainda pelo capitão-proprietário João Sousa, largaria no Outono seguinte com passageiros que iriam passar o Inverno a Cabo Verde, ficando durante essa estação a fazer cabotagem entre Cabo Verde e a costa de África. A 18 de Setembro de 1940, em plena II Guerra Mundial, a Corona chegou de Cabo Verde após longa viagem de 47 dias, com 15 tripulantes e outros tantos passageiros24, sem avistar submarinos ou demais vasos militares alemães. Trazia também arroz, milho picado, feijão, tabaco e algumas latas de xarope de cana-de-açúcar. O capitão Sousa, questionado pela imprensa sobre a situação económica em Cabo Verde referia que os preços dos artigos estavam altos devido às contingências provocadas pelos efeitos da guerra. O barco entrou na doca seca para ser limpo e reparado, tendo em vista a sua partida em Outubro ou Novembro. Com efeito, em meados de Novembro estava pronta para voltar às ilhas25. Mais não sabemos da Corona. Relativamente ao capitão, ao invés de o considerarmos mero "contrabandista de estrangeiros"(como o classificava o DN de 18 de Janeiro de 1929), podemos sem grandes pruridos inclui-lo no vasto grupo de comandantes e donos de navios da carreira de Cabo Verde que, embora ganhando com o negócio mas arrostando contra inúmeros perigos no mar e em

terra, possibilitaram a saída e salvação de muita gente de um malfadado arquipélago onde neste tempo a fome, a miséria e a morte faziam teimosa parte do quotidiano26. De qualquer modo, se infracções praticou às rigorosas leis da imigração americana, não foram elas significativas a ponto de o impedirem de continuar nos Estados Unidos (e no Atlântico) a profissão que lhe granjeou a aura de um dos de

23. DN, 19.09.1939, p. 2. 24. DN, 20.09.1940, p. 2. 25. DN, 16.11.1940, p. 2. 26. DN, 25.09.1926, p. 1. Joaquim Duarte, comandante da

Lina ou Elizeu Neves, também capitão da Fannie Belle Atwood, entre muitos outros. Estes, por motivos semelhantes aos do capitão John, foram sentenciados cada um a um ano de cadeia e ao pagamento de 1000 dólares..

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maior sucesso na sua actividade. Para além disso, abstraindo o amor filial do escritor Teixeira de Sousa, há que fazer fé na dedicatória que este apôs ao seu livro de contos "Contra Mar e Vento": "À memória do capitão John, meu Pai – capitão que foi de veleiro e sabia protestar contra mar e vento e contra quem de direito for e pertencer possa"…


ALUNAGEM ANTÓNIO F. LOBO Entre muitos amigos que tive, e tenho, recordo o Zé Pedro Pinto de Freitas. <Como nota introdutória, este amigo, filho de boas famílias de Boticas, depois de ter rumado ao Porto para cursar medicina, devidamente instalado em vivênda de tio juiz, seu protector, estreou-se como excelente aluno. Vá se lá saber porquê, as chamadas coisas do diabo, as saias e demais chamamentos do mundo real, desviaram-lhe o rumo de portos importantes para ancoradouros de refugio, mais atractivos e libertários! Zarpou do Porto, fez cabotagem até à Foz do Mondego onde o som da “Cabra” lhe iria imprimir nova singradura à vida. Novamente o destino falou mais alto e acabou, entre factos, distrações e propensões já antes ditos, apaixonar-se por corrida de automóveis, dedicando-se com afinco. O autódromo constava de pista eléctrica de dois pares de carris, que um outro seu amigo e colega havia oferecido ao filho de tenrra idade, mas que os dois disputavam a melhor preparação a dedicar ao jovem, com vistas a um futuro campeão do asfalto (ainda não havia simuladores!). O mundo da fantasia levá-lo-ia a portos mais deslumbrantes que aqueles a que as baladas coimbrâs o restringiam. Acabaria por naufragar: sem barco e sem remos; nadou para praia incerta e aí permaneceu à espera de um resgate para outro porto seguro! Zé Pedro fora dispensado do serviço militar por antecedentes de primoinfecção, sem sequelas físicas, diga-se de passagem, mas de grande impacto psicológico para ele. Era vulgar vê-lo distraidamente a percutir a sua caixa torácica com a ponta dos dedos sobre um dedo da outra mão apoiado sobre a região do peito a explorar, como método de diagnóstico, ou de exclusão, de "cavernas", imitando o clínico que lhe diagnosticou e

tratou esse padecimento: Doutor Náná Videira. Como corolário da “tuberculose” livrou-se da preparação e mobilização para a Guerra Colonial Portuguesa em África. Pinto de Freitas, testemunha deste relato, acoitava-se, então, no Porto, vou repetir, após ter desistido do curso de medicina de que fora inicialmente brilhante aluno. Esta tomada de decisão condenou-o, mais tarde, a uma vida de forçada pacatez, bem oposta a todas as suas fantasias, que lhe fustigavam constantemente os componentes do sistema límbico, enquanto acordado e, muito provavelmente, na fase onírica que deveria ser longa. Viria a ser grande admirador do “Shell Tagus”, onde se sentiu no paraíso (momentos de repasto!). Era Primavera e corria o ano da graça de 1970. Os dias arrastavam-se lenta e imperturbavelmente, sem sobressaltos, teimosamente de esperança. A essa data, a minha morada principal situava-se no Porto Encontrámo-nos, como quase sempre, fortuitamente, algures no Porto, à noite, após o jantar. Depois de duas falas sobre tudo e sobre nada, convidámo-nos a aconchegar o estômago com um caldinho verde com migas, servido em malga, seguido de um pratinho de tripas, no restaurante Transmontano, junto à Praça dos Poveiros. Meia-noite. Entrámos, sentámo-nos e encomendámos as ditas vísceras, ex libris da culinária da Invicta. Relativamente perto de nós, sentavam-se a uma mesa três pessoas, saboreando os respectivos "finos”(sinónimo de “imperial”). De aspeto, andariam pelos sessenta anos: uma senhora e dois cavalheiros. O sotaque era tripeiro e só um dos três é que tinha direito à palavra: o Jorge. A senhora, Isménia, assim se chamava, era delgadita e vestia um casaco de peles, bem ao estilo de coelho do monte. Tinha cabelo alourado, parecendo esconder as cãs que a impiedosa marcha do tempo queria anunciar. Com respeito à nossa mesa, tudo decorria normalmente entre nós os dois que íamos desfiando a conversa ao sabor dos desejos, dos gostos e da amizade, degustando um ou outro “négus”, à espera da gostosa dobradinha. .

Talvez pela empatia que a nossa convivialidade estivesse a despertar, talvez porque na outra mesa o Jorge tivesse monopolizado a oratória sem emprestar a palavra aos demais, a senhora prendeu-se à nossa presença e pediu para se sentar à nossa mesa, o que teve a nossa aprovação. A partir dessa altura os papéis alteraramse. A senhora Isménia, tomou as rédeas da conversa e nós calámo-nos. A fala da senhora era a expressão da mágoa e o queixume do silêncio a que fora imposta naquela noite. Recordo-me que o tema da outra mesa era a alunagem. Relacionava-se com a Apollo 11 , a primeira missão tripulada a pousar na Lua, tendo então ficado célebre a frase dita pelo seu comandante, o astronauta Neil Armstrong ao pisar a superfície Lunar em 20 de Julho de 1969: “Este é um pequeno passo para um homem, mas um salto gigantesco para a humanidade”. Jorge, (personagem identificado pela senhora como um ilustre causídico do Porto, com escritório na rua Santa Catarina) dizia então para o seu interlocutor (identificado como taxista da urbe tripeira, fiel amigo e companheiro de route, que frequentemente amparava o Jorge até à porta de casa), "já te disse, isso da alunagem é uma coisa como outra qualquer, fazem disso uma coisa do carago, como só alguns fossem capazes de fazê-lo”. O outro olhava o Jorge com um ar tanto confuso quanto espantado, até porque tinha visto toda a reportagem da Apollo 11 na televisão. "Repito", disse o Jorge, “ir à lua, ou alunagem, como lhe queiram chamar, é uma coisa simples: cada um aluna como gosta e como pode, sempre que pode. Eu, por exemplo, alunei ali naquela puta...! E agora!” Nessa altura, a senhora Isménia levantou-se parecendo querer reparar o agravo. O salto alcantilado de um dos coçados sapatos de pele de cobra não lhe suportou correctamente o peso, porque mal colado. Parte da sua cerveja derramou-se na nossa mesa. Mesmo assim, disse em tom de desagravo, bem ao jeito do Mar da Tranquilidade daquela noite: "Jorge não te admito isso!... Pediu-nos que a levássemos a casa o que fizemos cavalheirescamente.

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CANAL DO SUEZ

150º ANIVERSÁRIO

No mês de Novembro, mais concretamente a 17, celebrámos os 150 anos da abertura do canal do Suez à navegação. Na época, em 1869, tivemos quatro representantes portugueses nas grandiosas cerimónias de inauguração e um deles escreveu o seguinte: “Tínhamos voltado, eu e o meu companheiro, o conde de Resende, de uma excursão às pirâmides de Gizé, aos templos de Sacara e às ruínas de Mênfis, quando no Cairo soubemos que estavam na baía de Alexandria os navios do quediva que deviam levar-nos a Port Said e Suez./ … / Nesse dia, porém, o ar estava nublado, chuvoso; o maquinista levou-nos rapidamente a Alexandria. Na baía esperavam o Marsh, o Fayoum, o Behera, navios do paxá. O embarque fezse com a confusão habitual, complicada com os embaraços de um mar agitado; os barcos iam cheios de gente; uns de pé, outros sentados na borda, roçando pela água, outros gravemente equilibrados sobre a acumulação pitoresca das bagagens; ria-se, fulminava-se a organização e a polícia das festas, gritava-se um pouco quando os barcos pesados oscilavam mais inquietadoramente. Nós subimos para o Fayaoum, que deveria levantar ferro nessa tarde, apesar do tempo contrário e dos mares que nós víamos partir de longe na linha de rochedos que precede a baía de Alexandria. E ao outro dia, por uma bela luz da manhã, entrávamos em Port Said por entre os dois grandes molhes que se adiantam paralelamente pelo mar, feitos de poderosos blocos de pedra solta. Port Said é uma cidade improvisada no deserto. É uma cidade de indústria e de operários: isto dá-lhe uma especialidade de fisionomia: estaleiros, forjas, serralharias, armazéns de materiais, aparelhos destilatórios. Tal é Port Said. A sua construção foi determinada pela necessidade de haver um vasto porto, que fosse uma estação de navios, à entrada do canal, e primitiva-

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mente, para que os engenheiros, maquinistas, directores de obras, tivessem um centro. Isto dá-lhe um aspecto de cidade provisória.” Foi deste modo que o redactor do Diário de Notícias, o então jovem Eça de Queiroz, iniciou os relatos da sua viagem através do Suez ao longo de 5 dias. E as festas começaram … “Naquele dia 17, da inauguração, Port Said, cheio de gente, coberto de bandeiras, todo ruidoso dos tiros dos canhões e hurras da marinhagem, tendo no seu porto as esquadras da Europa, cheio de flâmulas, de arcos, de flores, de músicas, de cafés improvisados, de barracas de acampamento, de uniformes, tinha um belo e poderoso aspecto de vida. A baía de Port Said estava triunfante. Era o primeiro dia de festas. Estavam ali as esquadras francesas do Levante, a esquadra italiana, os navios suecos, holandeses, alemães e russos, os iates dos príncipes, os vapores egípcios, a frota do paxá, as fragatas espanholas,a Aigle, com a imperatriz, o Mamondeh com

o quediva, e os navios com todas as amostras de realeza, desde o imperador cristianíssimo Francisco José até ao quediva árabe Abd el-Kader. As salvas faziam o ar sonoro. Em todos os navios, empavesados e cheios de pavilhões, a marinhagem perfilada nas vergas, saudava com vastos hurras. De todos os tombadilhos vinha o vivo ruído das músicas militares. O azul da baía era riscado em todos os sentidos pelos escaleres, a remos, a vapor, à vela: almirantes com os seus pavilhões, oficialidades todas resplandecentes de uniformes, gordos funcionários turcos afadigados e apopléticos, viajantes com os chapéus de véus e couffins, cruzavamse entre si ruidosamente por entre os grandes navios ancorados; as barcas decrépitas dos árabes, apinhadas de turbantes, abriam as suas largas velas riscadas de azul. Sobre tudo isto o céu do Egipto, de uma cor, de uma profundidade infinita.” Agora, passados 150 anos, foram 60 portugueses que fizeram a travessia do canal em menos de dois dias a bordo do


moderníssimo MSC Bellissima, já não com a companhia das frágeis embarcações da época mas de navios com igual estatuto: Aidaprima, Costa Diadema, Norwegian Jade, ms Europa, Mein Schiff 5, Sapphire Princess, Seabourn Ovation e Azamara Quest que, há vez, atravessaram o canal com os seus convidados equipados com calções e camisas largas de algodão. Ao chegar ao fim da sua aventura, o jovem Eça concluía com estas palavras: “Nas margens do canal começávamos nós a ver muitos acampamentos de operários: vinham quase até à água bater as palmas aos navios que passavam, acenando com lenços e véus entre grandes hurras. Dos navios respondiam. Havia um forte sol: o deserto luzia até ao horizonte. Víamos à nossa esquerda o caminho das caravanas, que vão a Meca, a Medina, a Bagdad e a Damasco, na lata Síria. A Arábia, a Ásia, ficavam para além daquele deserto. Do lado do Egipto, ao fundo do areal coberto de salinas, estava a escura e triste cidade do Suez./…/ Tínhamos feito a nossa peregrinação através do canal; a esquadra da Europa tinha as suas âncoras no mar Vermelho; a obra de Mr. De Lesseps estava completa. Havia dez anos que um grupo de trabalhadores, numa segunda-feira de Páscoa, estava reunido na praia do mar, no lugar que depois foi Port Said; não havia nada nesse lugar, senão a bandeira egípcia plantada sobre a areia. Um homem saiu do grupo, descobriu-se e disse: Em nome da companhia do Suez, eu dou a primeira pancada de alvião neste terreno que abrirá às raças do Oriente a civilização do Ocidente. E cavou a areia com o alvião. O homem que disse aquelas palavras era Mr. De Lesseps: e, como se vê, a pobre pancada de alvião tem feito largamente o seu caminho!”

Cérémonie d'inauguration du Canal de Suez à Port-Saïd (17 November 1869), Edouard Riou. Photo © RMNGrand Palais (domaine de Compiègne)/Daniel Arnaudet

Se quiser, e tiver curiosidade de ler o texto integral das quatro crónicas que o jovem Eça escreveu, consulte o Diário de Notícias, porque foi de lá que tirámos estes pequenos extractos.

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OS JOVENS E O MAR

BÁRBARA CHITAS NAVIO ESCOLA NA ENIDH

À medida que vou avançando no meu tempo de praticante, em vez de ter a sensação que este está quase a acabar, parece que ainda falta mais. Já terminei o curso há ano e meio e tenho neste momento feitos quase 8 meses de estágio. Obviamente que o estágio é necessário para adquirimos as competências práticas que corroboram o que aprendemos na escola, mas seria bem mais fácil e rápido se este pudesse ser intercalado com as atividades letivas… Indo conhecendo praticantes de outras nacionalidades, descobri que em alguns países os estágios não são feitos de seguida após a licenciatura como em Portugal… Seria bom puder fazer parte do estágio, por exemplo, durante as férias de Verão. Em alguns países até se faz os doze meses de praticante antes de se ter ingressado no ensino superior.

QUAIS AS VANTAGENS DE SE TER UM NAVIO ESCOLA

Um navio escola poderia ser uma ajuda na aquisição de tempo de mar e de conhecimentos práticos. Por maior esforço que seja feito pelos docentes e por mais interessante que a matéria seja, nada consegue igualar a aprendizagem que se consolida quando se consegue por os conhecimentos em prática. E isto aplica-se em todas as disciplinas…

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Imaginemos o quão diferente seria ter feito os primeiros cálculos de navegação astronómica a olhar as estrelas em alto mar, aprender a fazer o plano de carga olhando para o convés e porões e fazer exercícios de segurança a bordo. Já para não falar de que, por mais bem que estejamos informados, a ideia que temos do que é trabalhar no mar, nunca é completamente correta. Cá em Portugal é reconhecida a importância de um navio escola, na formação de marinheiros e oficiais da Marinha. Já tive a oportunidade de embarcar num dos navios de treino da Marinha, o NTM Creoula e considero que é bastante útil para a formação dos marítimos deles. Fiz com alguns colegas uma pequena viagem de 3 dias, que apesar de curta nos permitiu pôr em prática alguns dos conhecimentos adquiridos. Foi neste navio que pude disparar uma pistola de sinalização e ver outros sinais pirotécnicos usados para situações de urgência pela primeira vez.

BONS EXEMPLOS NO ESTRANGEIRO

Já fez dois anos que eu e alguns dos meus colegas visitamos o navio Empire State VI, da escola SUNY Maritime que fica em NY. Nesta universidade, os alunos todos os verões fazem um estágio no mar, para complementar os seus estudos em terra. Como este navio está já obsoleto, têm agora um projeto de 300 Milhões para a construção de um mega navio, o NSMV One.

NSMV - NATIONAL SECURITY MULTI-MISSION VESSEL Além de servir para treino dos futuros

oficiais, este navio também será usado para causas humanitárias em áreas afetadas por catástrofes naturais, como furacões. Características:

• Tipo de navio: Treino • Comprimento: 160m • Boca: 27m • Calado: 6,5m • Velocidade: 18 nós • Tripulação: 600 cadetes; 100 oficias e ainda capacidade para acolher 1000 pessoas vítimas de uma catástrofe natural.

Este navio tem espaço para contentores e um espaço dedicado para carga Ro/Ro, laboratórios, salas de aulas, oficinas e simuladores. Ainda tem uma ponte completamente equipada de simulação, no piso inferior ao da ponte de comando real, de forma a os cadetes terem a experiência real de navegação, sem interferirem com a segurança do navio.

PANORAMA NACIONAL

Sei que para o nosso quadro nacional atual, um projeto destes seria muito difícil… Mas é sempre positivo olhar para os bons exemplos que existem lá fora e aprender algo com estes. O navio que estão a construir, seria uma completa fantasia para nós, mas podemos tirar notas de que os navios escola podem ser lucrativos e de interesse nacional. Neste caso pegaram na necessidade de haver navios que apoiem o país em caso de catástrofes naturais e aliaram-na à formação dos seus futuros oficiais. Se tiverem alguma sugestão ou observação, poderão enviá-la para o meu email pessoal barbara@chitas.pt ou visitar o meu blog: www.Seagirl.pt.

ATÉ UMA PRÓXIMA E BOAS FESTAS!


OS PRIMEIROS AFRAMAXES COM TECNOLOGIA DE CÉLULAS DE COMBUSTÍVEL -- do Blog Mar e Marinheiros A construtora naval coreana Samsung HI viu aprovado, em princípio, o seu projecto de construção de navio-tanque Aframax com recurso à incorporação de células de combustível em substituição dos tradicionais geradores diesel.

Este projecto de navio-tanque proposto pela Samsung HI substituirá os geradores de combustível diesel/fuel por células de combustível Bloom Energy. A Bloom Energy, com sede nos EUA, é um líder de mercado na área das tecnologias e fornece células de combustível para regularizar os picos de energia numa variedade de configurações industriais terrestres onde as células de combustível substituem os geradores tradicionais. No projecto do petroleiro Aframax, que foi aprovado em princípio pela DNV GL, as células de combustível da Bloom Energy serão alimentadas por GNL. Isso sugere que o navio-tanque Aframax proposto também é alimentado pelo mesmo combustível ou, pelo menos, será híbrido. A Bloom Energy destacou que o projecto também pode usar hidrogénio como combustível, afirmando que “os

navios movidos a células de combustível podem fazer a transição do gás natural para o hidrogénio e se transformarem em emissores de zero carbono e zero poluição atmosférica”. A Samsung HI afirma, ainda, que a aprovação, em princípio, a torna a primeira construtora a desenvolver navios-tanque Aframax em resposta à política estrita de emissões da IMO: "Como os regulamentos para reduzir as emissões de GEE entram em vigor de forma gradual, a introdução de células de combustível nos navios vai ser inevitável. Esta aprovação e ser o primeiro construtor de navios a proteger esta tecnologia de célula de combustível marítima ilustra que a Samsung Heavy Industries tem grande probabilidade de vir a liderar o mercado", afirmou Kyunghee Kim, vice-presidente da HI da Samsung.

UNCTAD PUBLICOU O SEU RELATÓRIO DO TRANSPORTE MARÍTIMO 2019 -- do Blog Mar e Marinheiros Segundo a agência da UN, o comércio marítimo global teve um ritmo de expansão mais lento em 2018, tendo os volumes de carga transportada atingido as 11 mil milhões de toneladas. A desaceleração foi geral e afectou quase todos os segmentos de carga marítima, além de prejudicar as actividades globais de operação portuária de carga, tendo o crescimento da taxa de transferência portuária global em contentor desacelerado em relação a 2017 Foi um conjunto de factores que se intensificaram em 2018 e contribuíram para a desaceleração do crescimento do comércio marítimo. As tensões comerciais e o proteccionismo lideraram a lista, seguidos pela decisão do Reino Unido de .

deixar a União Européia ("Brexit"); a transição económica na China; a turbulência geopolítica; e as interrupções no lado da oferta, como as que têm vindo a ocorrer no sector petrolífero. As recessões de algumas economias emergentes, o enfraquecimento em sectores industriais em muitas regiões, a desaceleração ocorrida na China e a menor procura de importação nos países desenvolvidos, têm impedido o crescimento. A escalada da “guerra” de tarifas entre a China e os Estados Unidos dominou as manchetes em 2018 e o início de 2019. Estima-se que quase 2% do volume do comércio marítimo mundial tenha sido afectado pelos aumentos de tarifas aduaneiras aplicadas em setembro de 2018

e de maio a junho de 2019. A exposição ao risco de quebra varia de acordo com o tipo de carga e segmento de mercado. Os grãos, o comércio de contentores e os produtos siderúrgicos foram os mais afectados, bens que enformam a estrutura do comércio entre a China e os Estados Unidos. Além de reduzir os fluxos comerciais, as tarifas aduaneiras estão a gerar alterações nos mercados, dados os efeitos de substituição de produtos e fornecedores e desvio do comércio. Poderá, se o desejar, fazer o download grátis do documento, em https://unctad.org/en/PublicationsLibrary/rmt2 019_en.pdf

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