BORDO LIVRE REVISTA DO CLUBE DE OFICIAIS DA MARINHA MERCANTE
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NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020
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EDITORIAL
JOÃO TAVARES
Eis que chegámos ao último número deste ano que veio repleto de novos e grandes desafios. Posso dizer que foi uma viagem e tanto como há muito não fazia, não só pela novidade que a rota apresentava, como pelos mares nunca navegados na história recente da humanidade. Estávamos no início do ano quando fomos surpreendidos pela tempestade, violenta, devastadora e prolongada no tempo que causou algumas perdas indirectas na família marítima a quem dirijo em primeiro lugar uma palavra de carinho e conforto sabendo que permanecerão na memória do colectivo da grande família em que nos tornámos. Em segundo lugar, o próprio CLUBE foi afectado ao não ter as necessárias condições para desenvolver as suas actividades com carácter regular e de não poder proporcionar os devidos benefícios a todos aqueles que usufruem das nossas instalações e demais serviços. As medidas e procedimentos adoptados tiveram como objectivo a segurança de toda a tripulação e a protecção do navio e aqui deixo um especial agradecimento à equipa que tornou possível esta navegação num oceano revolto o que nos permite, no meio da espuma branca, chegar ao início do novo ano com redobrada esperança e orientação para o futuro.
Prova disso são as manifestações de apoio dos nossos associados que nos incentivam a prosseguir com redobrado ânimo. O mundo continua a avançar e o CLUBE prepara-se para acompanhar essa dinâmica de evolução. As companhias de navegação estão a retomar as operações de turismo de cruzeiro após os significativos investimentos na área da segurança, ambiente, higiene e saúde a bordo dos navios com a adopção de rigorosos protocolos e normativos em estreita colaboração com as diversas entidades internacionais. Um novo operador Astro Ocean Cruise irá retomar os cruzeiros regionais no mercado chinês. De igual modo, estamos a preparar a nova época dos cruzeiros com um cruzeiro inicial aos Fiordes no final de Maio com embarque em Copenhaga e destino à Noruega passando pela Alemanha. Outros se seguirão de forma faseada e sustentável.
Continuaremos a acompanhar os desenvolvimentos a nível mundial da marinha mercante, seja o Golfo da Guiné que continua a ser a zona que regista mais incidentes de pirataria e sequestro de tripulantes; a adopção de energia eólica na forma de rotores verticais e o hidrogénio que ganham cada vez mais espaço com meios de propulsão; o lançamento dum navio contentor autónomo com propulsão eléctrica; 2020 será o melhor ano da última década para a indústria do transporte de contentores com ganhos previstos superiores a 30%; o crescente mercado da instalação de estruturas eólicas off-shore; a transferência de GNL ship-toship, etc… Serão estas e outras notícias que iremos acompanhar e servirão de base na programação dos seminários e conferências para o novo ano. Com estes novos desafios e suportados pela incansável equipa de navegação, estamos confiantes e entusiasmados que muito em breve podemos ordenar full steam ahead a bem dos associados que são a energia que nos move.
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SUMÁRIO
NOVEMBRO/DEZEMBRO 2020
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DIRETOR Lino Cardoso
Editorial
João Tavares
COMM Natura Sabedoria do Mar Alberto Fontes
Qual o Combustível Verde do Futuro? António Costa
Notícias Atribulada Aventura Numa Chris-craft Joaquim Bertão Saltão
Viagens Que Não Esquecem Oliveira Gonçalves
Os Jovens e o Mar Bárbara Chitas
Baile dos Bombeiros Voluntários António F. Lobo
COLABORARAM NESTE NÚMERO João Tavares, António Costa, Alberto Fontes, Joaquim Bertão Saltão, Bárbara Chitas, Oliveira Gonçalves, António F. Lobo
OS TEXTOS ASSINADOS SÃO DA RESPONSABILIDADE DOS SEUS AUTORES
COMPOSIÇÃO Mapa das Ideias TIRAGEM 1000 exemplares PERIODICIDADE Bimestral REG PUBL 117898 DEPÓSITO LEGAL 84303 CORREIO EDITORIAL Despacho DE00352020PE/PES PROPRIETÁRIO/EDITOR Clube de Oficiais da Marinha Mercante Trav S João da Praça, 21. 1100-522 Lisboa Tel (+351) 218880781. www.comm-pt.org secretaria@comm-pt.org CAPA © Vasco Pitschieller DISTRIBUIÇÃO GRATUITA AOS SÓCIOS DO CLUBE DE OFICIAIS DA MARINHA MERCANTE
A REVISTA ESTÁ DISPONÍVEL ONLINE para leitura, duma forma fácil e intuitiva em http://issuu.com/clubeoficiaismarinhamercante/docs/bl160 HORÁRIO DE FUNCIONAMENTO DA SEDE DO COMM 2.ª, 3.ª, 4.ª, 5.ª, 6.ªF - das 15h00 às 18h00 A SEDE DO CLUBE DISPÕE DE LIGAÇÃO PAGAMENTO DE COTAS: NIB 001000006142452000137
JOSÉ ALBERTO MALAQUIAS FERREIRA NOTA DE PESAR
A revista Bordo Livre, através dos seus colaboradores e Direção do Clube de Oficiais da Marinha Mercante (COMM) vem manifestar publicamente o mais profundo pesar pelo falecimento de José Alberto Malaquias Ferreira e endereçar à família as mais sinceras condolências. José Alberto Malaquias Ferreira nasceu em São Salvador, concelho de Ílhavo, a 6 de janeiro de 1946, ele próprio filho de Homem do Mar. Entrou na Escola Náutica, naquela altura ainda na Rua do Arsenal, tendo terminado o seu curso de Engenharia de Máquinas Marítimas em Julho de 1969 e logo de seguida embar-cado na Soponata, Sociedade Portuguesa de Navios Tanques.
No seu percurso profissional desempenhou as suas funções de Maquinista e Chefe de Máquinas em várias unidades da frota, passando pelas empresas Companhia Portuguesa de Transportes Marítimos (CTM) e Transinsular/Vieira e Silveira, Lda. Teve, ainda, uma experiência na pesca longínqua, como Maquinista no Santa Mafalda (da Empresa de Pesca de Aveiro, Lda.), em 1972. O Zé Malaquias, como era conhecido entre os pares, era associado do COMM desde 5 de novembro de 2002 e tinha o n.º 706. A partir de fevereiro de 2016, e até janeiro de 2017, pertenceu à Comissão Instaladora da Delegação Centro, sendo
seu dirigente desde a revisão dos Estatutos do Clube em 2019, que criaram e definiram as delegações em definitivo. A partir de janeiro de 2017 e até o seu falecimento, foi Vogal da Direção do COMM, além de dirigente da Delegação Centro. O legado da intervenção do Zé Malaquias, como Oficial da Marinha Mercante, tanto a nível profissional como humano, marcou profundamente os colegas com quem trabalhou e os que o conheceram no COMM. A sua capacidade de ultrapassar as dificuldades e o seu sorriso e alegria contagiante permanecem como um dos pilares do nosso associativismo marítimo e, em particular, do COMM.
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COMM NATURA
DESEQUILÍBRIO DOS OCEANOS É, AO MESMO TEMPO, CAUSA E EFEITO DA CRISE CLIMÁTICA
Os oceanos registaram, em 2019, o recorde de temperaturas mais altas da história da humanidade (pelo menos, dos últimos 60 anos). O aquecimento global causado pela atividade humana é o principal elemento desse desequilíbrio e do rápido aumento da temperatura dos oceanos. Segundo revela um estudo recente, o calor gerado pelo homem nos últimos 25 anos foi de 3,6 mil milhões de explosões da bomba de Hiroxima, ou seja, o oceano terá absorvido 228 sextiliões (228 seguido de 21 zeros) de joules de calor. Na verdade, a bomba de Hiroxima explodiu com uma energia de cerca de 63.000.000.000.000 (63 biliões) de joules. Segundo os cientistas, a temperatura média dos oceanos aumentou, no ano de 2019, em cerca de 0,075 graus centígrados face à média de 1981-2010. Desde 1970 que mais de 90% do calor do aquecimento global foi absorvido pelos oceanos, com menos de 4% desse calor a ir para a atmosfera ou para a terra. O oceano é base de economias e meios de subsistência locais, nacionais e globais. As zonas costeiras, embora sejam menos de 15% da área terrestre, albergam mais de 40% da população mundial. São mais de dois bilhões de pessoas que dependem, direta ou indiretamente, dos ecossistemas marinhos, que fornecem, aproximadamente, 170 milhões de toneladas de frutos do mar por ano, cerca de 15% de toda a proteína consumida pelos seres humanos. Por outro lado, são nessas zonas costeiras que se concentram recursos para a produção de bens e serviços e são o lar da maioria das atividades comerciais e industriais. Muita fonte de emissões, portanto. Além de fonte de alimento, energia, lazer e até matéria-prima de compostos medicinais, os oceanos exercem um papel fundamental na regulação do clima 6 | BORDO LIVRE 160 | NOV-DEZ 2020
global, absorvendo CO2 e calor da atmosfera e evitando um aquecimento ainda maior. Através da circulação oceânica, o calor é distribuído dos trópicos para os polos e ao fundo do mar, determinando os padrões de chuvas e as temperaturas da superfície, que, por sua vez, influenciam climas regionais. Os mares também circulam nutrientes que alimentam diferentes formas de vida marinha. Se hoje existe vida na Terra, é graças à quantidade de oxigénio produzida pelos oceanos e libertada na atmosfera – cerca de 70% do total. Pesquisas sobre os efeitos das mudanças climáticas, principalmente na última década, comprovam algumas consequências da crise climática nos oceanos. Entre elas, estão o aumento da temperatura das águas superficiais; o derretimento de gelo polar com consequente aumento do nível do mar, ameaçando populações costeiras; alterações de temperatura de correntes marinhas com efeitos no transporte de nutrientes e na produção de oxigénio; e mudanças nos ciclos oceânicos que potenciam fenómenos como o El Niño e as suas desastrosas consequências. As projeções para o futuro são dramáticas, observando-se, já, problemas em diversos ecossistemas marinhos, principalmente nos recifes de corais, que necessitam de algum equilíbrio para sobreviverem. Esses sistemas são sustentados por uma sensível interação entre espécies que têm limites estreitos de tolerância à variação da acidez da água do mar. Uma das preocupações dos cientistas é a vulnerabilidade das populações piscícolas sob o impacto das mudanças climáticas. Uma das previsões é a migração de cardumes para regiões mais frias, o que poderá levar à extinção local de espécies de peixes de elevado interesse económico.
Por outro lado, o aquecimento dos oceanos pode abrir caminho a um novo conjunto de criaturas que ameaçam a saúde dos ecossistemas marinhos, desde serpentes do mar e medusas aos peixesdragão-leão. A presença de espécies perigosas pode tornar-se cada vez mais comum em novas áreas de distribuição, em virtude do aquecimento dos oceanos. O aumento de frequência e intensidade de eventos extremos como ciclones e furacões e a acidificação nos oceanos também entram na lista – águas mais ácidas afetam, significativamente, os recifes de corais, ecossistemas indispensáveis para manter o equilíbrio dos oceanos. Estudos indicam que o aumento da frequência de ciclones e da intensidade
dos mesmos também está associado a esse desequilíbrio, e confirmam que os efeitos englobam questões muito sérias e que interferem no Planeta como um todo. O atual ano de 2020 torna-se o ano com mais tempestades ciclónicas de sempre na bacia atlântica – até 10 de novembro, já soma 29. Nunca antes tinha existido uma época de furacões (que só termina no final do mês) com tantos a chegarem ao ponto de ser batizados: o máximo (28) era de 2005, quando o Katrina devastou Nova Orleães. E, provavelmente, poderá haver mais: outra tempestade parece estar a formar-se ao sul de Porto Rico, que poderá ser a 30ª.
ANTÓNIO COSTA NOV-DEZ 2020 | BORDO LIVRE 160 | 7
SABEDORIA DO MAR
SILÊNCIO ENSURDECEDOR
ALBERTO FONTES
Oxalá em 2021 a Presidência Portuguesa do Conselho da União, tenha o engenho e arte para dar forma ao destino e paixão de explorarmos o Mar Ainda cheios de incertezas, sabemos já que as consequências desta pandemia, têm uma escala sem precedentes e que irão perdurar por muito tempo. Estamos expostos a acontecimentos que não controlamos, numa ilusão do amanhã que pretendemos previsível, por o assentarmos no saber que a experiência nos deu anteriormente. Mas este mundo está cheio de limitações, com a realidade a mudar a uma velocidade inesperada, desafiando as nossas competências para aprender de forma permanente ao longo da vida, com inteligência emocional, na capacidade para integrar o mundo tecnológico, para sermos capazes de dar resposta aos novos desafios. 8 | BORDO LIVRE 160 | NOV-DEZ 2020
Poderemos esperar, só por si, uma evolução da consciência dos portugueses em geral? O alcançar desse objectivo deverá partir do Estado, em todos os níveis do poder, na certeza de que bens e os serviços, são apenas meios, na procura de sectores, com repercussões sociais e económicas absolutamente incontornáveis. Preocupante é o silêncio dos bons portugueses que inseguros, com medo de tudo, ficam indiferentes na defesa dos valores e das causas comuns, face aqueles que com inteligências emocionais, em crescente desumanização, ignoram o conhecimento e as questões éticas, que foram desenvolvidas antes do Covid 19. Exige–se, pois, coragem e paixão, no enfrentar das dificuldades em mudar consciências bloqueadas pelo medo. No país que tem as fronteiras mais antigas da Europa, há problemas graves para resolver, haja o bom senso de pensar nas crianças e desenvolver nelas a socialização e o gosto pelo mar, num apoio ao seu crescimento. Não existe um espírito nacional, acerca da importância do transporte marítimo e este sente-se esquecido, por dele pouco ou nada se dizer. Há que promover um debate que envolva as empresas nacionais exportadoras e importadoras de matéria-prima, para que compreendam a importância de apoiarem a Marinha de Comércio nacional, como sector de futuro e uma das principais fileiras na Economia do Mar. Com noventa por cento do comércio mundial a ser transportado por mar, os navios dotados de eficiência energética, respondem aos desafios ambientais exigidos mundialmente, potenciam o emprego quer no mar quer em terra, criam sinergias ímpares para múltiplas actividades. Bom exemplo pode ser encontrado, na escritura efectuada a 13 Junho 1947, quando com uma sociedade por quotas, três armadores da marinha de comércio portuguesa, a Companhia Colonial de
Navegação (CCN), a Companhia Nacional de Navegação (CNN) e a Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes (SG), associaram-se às empresas petrolíferas SACOR, SHELL, SOCONY-VACUUN ATLANTIC e SONAP constituíram a SOPONATA – Sociedade Portuguesa de Navios Tanques, Lda. Portugal está bem posicionado para a prestação de serviços de transporte marítimo, enquanto ainda existe o knowhow das tripulações, podendo o investimento ser privado em navios, através do mercado de capitais, compensado na apreciação do valor dos navios, por capitais que procuram benefícios fiscais e mais valias. Apostar na reinvenção do sector dos transportes marítimos, após tempos de declínio, tem de ser possível, voltando a emergir e a crescer neste pós Covid 19, desde que as pessoas certas, com uma mudança de mentalidades, abandonem o silêncio ensurdecedor a que se remeteram e montem um verdadeiro laboratório de experiências económicas, ideológicas e financeiras ou seja, de prioridades, para um sector que é viável no nosso país, que pertence às vocações económicas naturais da economia portuguesa. Para que o transporte marítimo seja efectuado por navios, que possam gerar bons serviços económicos, para interesses nacionais, no transporte de graneis sólidos, produtos do petróleo e/ou cereais, basta que as respectivas indústrias importadoras, queiram marcar a História desta época, erguendo-se sobre as ruínas e as heranças da época anterior, para o bem-estar ou cultura da comunidade, num ambicionado Portugal mais sustentável e solidário. Oxalá em 2021 a Presidência Portuguesa do Conselho da União, tenha o engenho e arte para dar forma ao destino e paixão de explorarmos o Mar, onde necessariamente se têm de incluir os transportes marítimos, libertando-os de em Portugal, serem por vingança, um não-assunto da sociedade e da economia nacional.
23,8 METROS
É O RECORDE DE ALTURA DE ONDA NO MAR AUSTRAL
- do blogue Mar e Marinheiros, de António Costa O constante mau tempo do Oceano Antártico gerou uma onda monstruosa, que os pesquisadores declararam ser a maior onda alguma vez registada no Hemisfério Sul. Na noite de 9 de maio de 2018, uma bóia meteorológica ancorada perto da Ilha Campbell, ilha subantártica desabitada da Nova Zelândia, detetou uma onda de 23,8 metros, equivalente a um prédio de oito andares. Aconteceu durante a passagem de um núcleo de baixa pressão. A medição supera o recorde anterior no Hemisfério Sul. O recorde era de 19,4 metros e tinha sido medida em 2017. As bóias, monitorizadas pela MetOcean Solutions, têm vindo a fornecer aos cientistas uma visão privilegiada das tempestades incríveis que sucedem nesta pouco estudada região do mundo. O Oceano Antártico é uma bacia oceânica única. Infelizmente, é a menos estudada, apesar de ocupar 22% da área oceânica mundial. As condições de vento persistentes e fortes criam condições para o crescimento de enormes ondas. O oceano antártico é a sala de máquinas para gerar ondas que se propagam pelo planeta. Surfistas na Califórnia podem esperar que a energia chegue às suas praias em cerca de uma semana! Apesar de 23,8 metros, esta onda monstruosa não foi a maior gerada na ocasião. Como o mecanismo da bóia é acionado a energia solar, as suas baterias apenas têm energia suficiente para medir as condições oceânicas por apenas 20 minutos a cada três horas. “Durante esse período, a altura, o período e a direção de cada onda são medidos, sendo acrescentadas às estatísticas calculadas. Segundo os cientistas, “é muito provável que ondas maiores tenham ocorrido enquanto a boia não estava a gravar”. Ao contrário do Hemisfério Norte, que normalmente experimenta mares extremos, maioritariamente, durante os meses de inverno, o Hemisfério Sul é um
foco de formação frequente de tempestades durante todo o ano. O MetOcean tem atualmente sete bóias em funcionamento. As informações geradas são disponibilizadas para esclarecer a física das ondas em condições extremas na região.
E embora seja um recorde para o Oceano do Sul, não é nada comparado ao recorde mundial – a maior altura de onda significativa já registada ocorreu no Atlântico Norte em 2013, e atingiu uns impressionantes 26 metros.
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QUAL O COMBUSTÍVEL VERDE PARA O TRANSPORTE MARÍTIMO DO FUTURO? 1. QUAIS AS ALTERNATIVAS? O combustível do futuro deverá, não só, ter energia suficiente para propulsionar navios gigantescos, como produzir emissões muito baixas, permitir ser armazenado e transportado, e, claro, não ser, proibitivamente, caro. Elencamse as principais opções:
ANTÓNIO COSTA
O transporte marítimo, é o principal sustentáculo da economia global, com cerca de 90% do comércio mundial, embora represente quase 3% das emissões de dióxido de carbono produzidas pelo homem. Apesar de tudo, é, de longe, o meio de transporte com menor emissão na cadeia de abastecimento. Para poder atingir as metas de redução de emissões, os navios terão de começar a queimar combustível limpo até 2030. A questão que se coloca é a de se saber qual será.
Para poder atingir as metas de redução de emissões, os navios terão de começar a queimar combustível limpo até 2030
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1A AMONÍACO (AMÓNIA)
• A favor: Não produz quaisquer emissões de CO2 quando produzido de forma limpa – combinando o chamado hidrogénio verde com o azoto do ar (nitrogénio). • Contra: Energeticamente, mais pobre que os óleos de combustível tradicionais, por isso precisará de cerca de três vezes mais espaço para conter a mesma quantidade de energia, um problema para os projetistas de navios; além disso, é tóxico para os humanos e para a vida aquática. 1B HIDROGÉNIO
• A favor: Poderoso o suficiente para impulsionar foguetões para o espaço e pode ser produzido sem emitir CO2; pode ser usado no motor de combustão interna de um navio ou numa célula de combustível. • Contra: Precisa ser armazenado a -253º Celsius ou sob alta pressão, o que o torna uma dor de cabeça para os construtores navais, para além de ser potencialmente explosivo. 1C GÁS NATURAL LIQUEFEITO, OU GNL
• A favor: Alternativa bem conhecida, já disponível, tem menor emissão de CO2 comparado aos demais combustíveis à base de petróleo e que alguns navios já utilizam. • Contra: Continua a ser um combustível fóssil e não neutro em carbono, para além de necessitar de infraestruturas dispendiosas e causar emissões de metano. Também já existem os LNG’s biológico (Biogás) e sintéticos (e-fuels –
combinando hidrogénio (H2) e dióxido de carbono (CO2). 1D BIOCOMBUSTÍVEIS
• A favor: Produzidos a partir de óleos vegetais e compatíveis com vários motores marítimos comerciais e infraestruturas de combustível. • Contra: Além de mais caros do que os combustíveis fósseis, seria necessário um grande aumento da produção para satisfazer a procura marítima. Alguns projetos de biocombustíveis têm emissões totais de gases de efeito estufa (ou GEE) ainda mais elevadas do que alguns combustíveis fósseis. 1E METANOL
• A favor: É líquido à temperatura ambiente, pelo que pode ser armazenado em tanques regulares e não pressurizados; pode ser produzido de forma limpa e já é usado por alguns navios. • Contra: Energeticamente mais pobre do que os combustíveis à base de petróleo e a versão limpa tem produção dispendiosa. 1F NUCLEAR
• A favor: Emissões zero, extremamente energético e já utilizada por alguns navios, quase todos militares. • Contra: Embora já existam mecanismos de segurança contra falhas dos reatores, quem gostaria de passar meses a trabalhar num navio movido a energia nuclear? 1G VENTO
• A favor: Emissões zero e grátis. • Contra: Não será possível garantir uma disponibilidade constante e na quantidade e qualidade (velocidade e direção). Obrigará, sempre, a utilização de fonte propulsora alternativa, provavelmente, com recurso a combustível convencional. Inviabiliza carga sobre o convés.
2. POR QUE RAZÃO O TRANSPORTE MARÍTIMO TEM DE DAR ESTE PASSO?
3. JÁ ESTÁ A ACONTECER?
O Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas afirmou que as emissões de gases com efeito de estufa causadas pelo homem teriam de ser muito próximas de zero pelo ano 2050, para limitar o aquecimento global a 1,5º Celsius. Ora, a esmagadora maioria dos navios queima combustíveis derivados do petróleo. A OMI, como reguladora dos transportes marítimos, tem como objetivo a redução de 50% das emissões dos níveis de 2008 até 2050. Prevendose que o comércio internacional cresça, o objetivo requer uma redução de 85% das emissões por navio, até lá. Embora se possam obter ganhos através de alterações de conceção e operacionais, é imperativo que os navios comecem a usar combustíveis mais limpos. Segundo a Getting to Zero Coalition (grupo do setor que inclui mais de 120 empresas) terão de entrar ao serviço navios com emissões zero até 2030. A OMI projeta, ainda, que a indústria será neutra em emissões de carbono até 2100.
Sim. No final de agosto, estavam em curso 66 projetos piloto e de demonstração de emissões zero, a maioria na Europa, de acordo com a Getting to Zero Coalition. Eis alguns deles: 3A BIOCOMBUSTÍVEIS
3C HIDROGÉNIO E METANOL
• A petrolífera Exxon Mobil planeia vender biocombustível marítimo; • A MSC começou a usar biocombustíveis em Roterdão, no ano passado; • A Eastern Pacific Shipping está a testar biocombustíveis num petroleiro MR; os testes expandir-se-ão a outras classes de navios, num futuro próximo.
• A energética francesa Engie está a desenvolver equipamentos de produção de hidrogénio e vai promover o gás como combustível marinho limpo; • Investimento em megaprojeto de hidrogénio em Sines, com o governo a financiar uma unidade industrial com uma capacidade total em eletrolisadores de, pelo menos, um gigawatt (GW) até 2030; • A japonesa NYK Line faz parte de um grupo que desenvolve um navio turístico movido a pilhas de combustível; • O Porto de Antuérpia encomendou um rebocador híbrido hidrogénio / diesel, além de transformar outro para funcionar com metanol; está, ainda, a investir na produção de metanol verde.
3B AMONÍACO
• Um grupo de empresas concordou em desenvolver, em parceria, navios propulsionados a amoníaco; • Entretanto, a Lloyd's Register deu aprovação de princípio, a três projetos de navios alimentados a amoníaco: dois mega porta-contentores e um petroleiro; • A finlandesa Wärtsilä está a testar amoníaco num motor marítimo.
3D LNG
• Está previsto que os navios movidos a GNL aumentarão dos atuais 400 para mais de 1.000, em 2030; • Até 2025, deve estar disponível uma rede de infraestrutura de fornecimento de GNL a nível mundial.
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4. EXISTEM OUTROS DESENVOLVIMENTOS?
5. E A ELETRICIDADE, O VENTO E A ENERGIA SOLAR?
6. QUANTO VAI CUSTAR TUDO ISTO E QUEM O IRÁ PAGAR?
• A Wallenius Marine lançou o estudo e projeto OceanBird, uma alternativa de propulsão exclusiva a vento; o OceanBird tem cinco “velas” que são mais parecidas com asas de avião ou rotores de helicóptero, que usam o ar em velocidades diferentes para impulsionar o navio para a frente. • Foi manifestada a intenção de captura e armazenamento de carbono em navios. A Stena Bulk juntou-se à indústria petrolífera para estudar a sua viabilidade e uma companhia de navegação japonesa planeia implantar uma fábrica de demonstração de captura de CO2 em pequena escala num dos seus navios; • A União Europeia quer incluir, “pelo menos, o transporte marítimo intracomunitário, no seu regime de comércio de licenças de emissão”; • A indústria de transporte marítimo pretende criar o seu próprio fundo de investigação climática no valor de 5 mil milhões de dólares – financiado por imposto obrigatório por tonelada de combustível marítimo durante 10 anos; • As principais empresas de energia e transporte marítimo concordaram em divulgar o alinhamento das suas atividades marítimas com os objetivos climáticos da OMI; • O comerciante de petróleo Trafigura sugeriu um imposto sobre os combustíveis de transporte de 250 a 300 dólares por tonelada de CO2; • A Maersk pretende atingir o objetivo emissões zero em todas as suas operações até 2050; • A petrolífera Shell quer que o regulador endureça a meta de emissões para se atingir o “zero líquido” até 2050; • Maersk, Cargill e outros grandes operadores estão a lançar um centro de investigação que se concentre no estudo em combustíveis limpos.
A eletricidade (armazenada em baterias) não é funcionalmente capaz para o transporte marítimo oceânico. As baterias necessárias para alimentar os mega-navios, durante semanas, teriam de ser enormes. Mesmo conseguindo encolher as baterias e confiar no vento e/ou no solar para as recarregar ao longo da travessia, deparamo-nos com um problema que os marinheiros têm enfrentado desde sempre: a meteorologia nem sempre é o que se espera. Não podemos descartar o uso de energia eólica ou solar, mas a existir, apenas será suficiente para alimentar sistemas subsidiários, deixando ao motor principal a tarefa única de propulsão. Pelo menos no estádio atual de conhecimento.
De acordo com a University Maritime Advisory Services, entre 2030 e 2050, serão necessários de 1 a 1,4 mil milhões de dólares de investimento, a maioria gasta em centros de investigação. Segundo essa entidade, estamos perante a velha questão de quem veio primeiro, “se a galinha ou o ovo”: os carregadores ficarão felizes em mandar construir navios, desde que se garanta a disponibilidade dos combustíveis necessários; já as empresas de energia não estão interessadas em fornecer combustíveis sem um mercado estabelecido com garantia de continuidade. Em 2019, os bancos e entidades parabancárias da área marítima criaram os Princípios Poseidon, um quadro orientador para o financiamento do transporte marítimo, pelo qual as suas carteiras de empréstimos apontam às metas do acordo climático de Paris.
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NOTÍCIAS CIENTISTA ANA HILÁRIO LIDERA PROGRAMA INTERNACIONAL CHALLENGER 150 - do blogue Mar e Marinheiros, de António Costa A bióloga marinha Ana Hilário, investigadora do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar da Universidade de Aveiro (UA), é uma das mentoras do Challenger 150, um programa que quer reunir investigadores de todo o mundo para, nos próximos 10 anos, se debruçarem sobre o mar profundo. As extensões de água que se situam entre os 200 e os 11000 metros abaixo da superfície do oceano, conhecidas como mar profundo, ainda são, em muitos aspetos, um mistério. O programa, que foi desenvolvido em parceria com Kerry Howell, investigadora na Universidade de Plymouth (Reino Unido) e especialista em Ecologia do Mar Profundo, foi publicado esta quarta-feira nas revistas "Frontiers in Marine Science" e "Nature Ecology and Evolution".
O mar profundo, com vastas extensões de água e fundos marinhos, entre os 200 e os 11.000 metros abaixo da superfície do oceano, é reconhecido globalmente como uma importante fronteira da ciência e da descoberta”, aponta a bióloga marinha Ana Hilário, coordenadora do programa Challenger 150 a par com Kerry Howell. Ana Hilário, investigadora do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM) da Universidade de Aveiro (UA), observa que, “apesar de o mar profundo representar cerca de 60 por cento da superfície da Terra, uma grande parte permanece completamente inexplorada e a Humanidade conhece muito pouco sobre os seus habitats e como estes contribuem para a saúde de todo o planeta”. De Portugal, para além da UA, contribuíram para o desenho do programa também
cientistas do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (CIIMAR) da Universidade do Porto, do centro de investigação e desenvolvimento Okeanos da Universidade dos Açores e do Centro de Investigação Marinha e Ambiental (CIMA) da Universidade do Algarve.
relevo – Dr. Luís Palha da Silva, foi entregue à Cte Cristina Alves pelo Sr. Ministro do Mar. O prémio Padrão dos Descobrimentos 2020, também instituído pelos ALUMNI e da sua inteira responsabilidade, visa distinguir uma Personalidade pelo seu contri-
buto relevante para o Desenvolvimento da Economia do Mar. Foi atribuído ao Dr. Mário Ferreira da Douro Azul pela sua Carreira no seu todo tendo sido dado um destaque primordial ao desenvolvimento do seu projecto de Navios Cruzeiro Oceânicos de expedição.
PRÉMIOS ALUMNI 2020 No passado dia 14 de outubro de 2020, e no âmbito da Abertura Solene do Ano Lectivo 2020/2021 da ENIDH, os ALUMNI promoveram a entrega dos Prémios Carreira ENIDH 2020 à Sra. Cte Cristina Alves e o Prémio Padrão dos Descobrimentos 2020 ao Sr. Dr. Mário Ferreira, CEO da Douro Azul/Mystic Inv. Pelas razões obvias, não se realizou este ano o habitual Encontro anual ALUMNI, evento no qual se entregam os Prémios, tendo sido acordado com o Sr. Presidente da ENIDH a sua entrega no âmbito da Abertura do novo Ano Lectivo. O Prémio Carreira ENIDH, instituído pelos ALUMNI em 2017, visa distinguir um aluno da ENIDH pela excelência da sua Carreira. Celebramos assim, também a Escola e os seus Alunos e prestamos o merecido tributo a quem se distinguiu ao longo de uma Carreira. O Prémio, atribuído por um Júri que para além dos Alumni inclui a própria Escola e presidido neste ano por uma Personalidade de 14 | BORDO LIVRE 160 | NOV-DEZ 2020
CRUZEIROS: O ANO DE 2021 PROMETE COM MUITOS NAVIOS NOVOS - do blogue Mar e Marinheiros, de António Costa Depois de um ano em que vimos uma pausa mundial nos cruzeiros, é hora de esperar os novos navios de cruzeiro que vão chegar em 2021. Será um ano emocionante com a entrega de novas construções, sumptuosas unidades de enorme multiplicidade em design, objetivos, linhas e recursos. De entre eles, a Costa Cruzeiros, de propriedade da Carnival Corporation, irá, em breve, receber um novo meganavio de segunda geração, o Costa Toscana (será gémeo do Costa Smeralda). A construção do futuro navio já iniciou, tendo a sua entrega sido adiada para 2021. O Costa Toscana fará a sua estreia no Brasil com um cruzeiro inaugural de sete noites pelas cidades de Salvador e Ilhéus com partida de Santos em 26 de dezembro de 2021. O
navio fará mais 15 cruzeiros com o mesmo itinerário e deixará o Brasil para navegar para a Itália no dia 17 de abril de 2022. O Costa Toscana terá cerca de 185.000 toneladas brutas e 2.661 cabines e 1.678 tripulantes trabalharão a bordo. Além das amenidades e capacidades recreativas disponíveis a bordo, o novel navio terá uma propulsão a LNG, anunciando-se uma menor carga poluente na sua operação. Mas as novidades não se resumem ao Costa Toscana, serão perto de 20 os navios esperados surgir em 2021 (ou princípios de 2022). Assista ao vídeo abaixo e que destaca alguns dos mais importantes, começando com alguns cuja entrada ao serviço foi adiada em 2020.
COVID-19 AUMENTA CUSTOS OPERACIONAIS DOS NAVIOS - do blogue Mar e Marinheiros, de António Costa Os custos operacionais dos navios aumentaram, este ano, ao ritmo mais elevado em mais de uma década, devido a prémios de cobertura de seguros mais caros e despesas relacionadas com o COVID-19, diz o último relatório de Revisão Anual de Custos Operacionais de Navios e Previsão 2020/21 publicado pela consultora marítima Drewry. Esperam-se, contudo, custos mais moderados nos próximos anos, à medida que os custos relacionados com a pandemia se dissipem. Ou seja, a Drewry estima que os custos operacionais diários médios nos 47 tipos e diferentes tamanhos de navios abrangidos no relatório tenham aumentado 4,5% em 2020, em comparação com os aumentos anteriores de 2% e 2,5%, respetivamente, nos dois anos precedentes. Isso se seguiu a um período em
que os custos Opex estagnaram ou contraíram 8% no trénio 2015-17. Além disso, os custos de manning foram particularmente afetados, subindo 6,2% em 2020, em comparação com os aumentos subjacentes de 1,3%, enquanto os de casco e máquinas (H&M) e custos de proteção e indemnização (P&I) subiram 4,5% num mercado de seguros mais austero. Enquanto isso, a interrupção do fornecimento e disponibilidade de mão-de-obra causados pela pandemia levaram fornecedores e peças de reposição a inflacionar custos de reparação e manutenção em cerca de 3%, enquanto os custos com docagem a seco subiram 5%. O aumento dos custos foi geral em todos os principais setores de transporte de carga pelo terceiro ano consecutivo, já que todos os tipos de navios foram atingidos pelos efeitos COVID-
19. As últimas avaliações incluem navios nos setores de contentores, químicos, a granel seco, petroleiro, GNL, GLP, carga geral, reefer, roro e transportadores de automóveis. Olhando o futuro, espera-se que as condições comerciais permaneçam desafiadoras, diz a Drewry, um futuro dominado pelas incertezas comerciais induzidas pelo COVID-19 e pela constante sobrecapacidade em muitos setores, o que manterá pressão nos custos Opex.
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ATRIBULADA AVENTURA NUMA CHRIS-CRAFT DE CASCAIS À IRLANDA (OU A LEI DE MURPHY APLICADA AOS ACONTECIMENTOS DE MAR)
JOAQUIM BERTÃO SALTÃO CAPÍTULO I Decorria o mês de Agosto de 1976. Saboreava eu uma apreciada “bica” com alguns amigos na esplanada do café Nicola, na Figueira da Foz, quando, de supetão e de palmada nas costas, levanto os olhos e vislumbro o meu saudoso amigo (que Deus guarda), Leonel Oliveira, então gerente da agência de navegação FOZNAVE, na Figueira Da Foz. Tinha conhecido o Leonel em Luanda, quando ele era caixeiro de mar da Casa Inglesa (Hull & Blyth). Trazia-me então uma desafi-ante proposta, munido da certeza de que eu a aceitaria, conhecendo ele bem a minha natural idiossincrasia. Uma agência de navegação de Lisboa, a Willis, andava à procura de um náutico para pilotar uma Chris-Craft, que pertencia a um armador de navios (disposal ships), de Cascais para Cork, na Irlanda.
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A Chris-Craft, de “goelas abertas”, ultrapassava com facilidade os 25 nós, em mar chão. Era provida de dois motores a gasolina “super”… e pode dizer-se que “bebia bem”: de Cascais a Leixões, à velocidade média de 12 nós, “bebeu” 1000 litros de gasolina “super”, que nesse tempo era vendida a dezoito escudos o litro. Como já disse um famoso senhor da nossa praça “é só fazer as contas”. A proposta parecia-me aliciante, embora eu me preparasse para passar uns agradáveis dias de férias na praia da Claridade, revivendo os excelentes verões da minha juventude passados naquela magnifica praia de água gelada. Era na altura descomprometido e com queda para gozar bem a vida, sem compromissos matrimoniais ou como bem se diz “solteiro e bom rapaz”, e o sangue quente da juventude obliterava a gélida água, bem compensada com os cálidos bailes que se lhe seguiam no Casino Peninsular, muito concorrido de miúdas das melhores procedências e com esperança de conseguir um bom casamento. Eram os saudosos e quase já esquecidos bailes, de obrigatório fato e gravata, onde se dançava ao som de músicas românticas e onde era permitido o cheek-to-cheek… esse consentido “encosta a tua cabecinha no meu ombro”, desde que a chaperone de serviço não o visse. Tinham decorrido mais de 15 anos desde o último Verão que passara em Buarcos, lugar onde nasci e tinha residência, mas as esporádicas visitas à minha Terra Natal aconteciam sempre entre o regresso de Nova Iorque para Luanda, quando passava algumas semanas com a minha então família nova-iorquina. Mas regressando à palmada nas costas e à arrojada proposta, esta era nada menos do que seguir logo que pudesse para Lisboa para contactar o referido armador, que estava a residir próximo do Casino do Estoril, e fazer um contracto para levar a dita embarcação para Cork. Acontece que a nave fora comprada em Nice e manejada por uma tripulação inglesa, que tinha
levado um mês de Nice a Cascais, com umas trafulhices pelo meio, incluindo o desaparecimento de um pneumático e um motor fora de borda, que existiam como palamenta. O armador irlandês, casado com uma senhora sobrinha-neta de uma figura icónica da política inglesa dos anos 40, era dotado de um carácter especial. Tinha ficado órfão aos 14 anos e, no dia do falecimento da mãe, quando o padre tentava confortá-lo com o argumento de que a mãe tinha partido porque Deus precisava de-la, a resposta do jovem de 14 anos foi para além de certeira: “E eu, Sr. Padre, não preciso também da minha mãe?”. Colocado pelo pai num colégio interno em Londres, foi sol de pouca dura a sua permanência no internato, de onde rapidamente fugiu. A sua rota de fuga foi para as docas de Londres, introduzindo-se à socapa num navio, onde seguiu como “stowaway” até New York. Ali desembarcado, procurou integrar-se na comunidade irlandesa, que lhe deu guarida, mas o seu espírito irrequieto fê-lo saltar de emprego em emprego. Tendo trabalhado uma temporada numa estação meteorológica na baía de Hudson, daqui seguiu-selhe uma longa viagem até à América Central e do Sul. De regresso para Norte, instalou-se em Havana, tendo decidido ir lutar para a Sierra Maestra, ao lado de Fidel Castro. Após a entrada das forças revolucionárias em Havana, foi-lhe prometido um lugar de relevo na administração de Cuba, que recusou. Foi em Havana que conheceu um senhor muito rico, que tinha um enorme baú cheio de ouro, diamantes e dólares americanos… e que gratificaria com 100.000 “US dollars” quem o ajudasse a transportar o baú até aos States. Claro que o futuro ar-mador e então herói da Sierra Maestra não hesitou. Foi a Miami, alugou um iate à vela e voltou a Havana, onde gozava de privilégios, para proceder ao resgate. Pela calada da noite encetou a fuga com o milionário e o dito, imprescindível, baú. Chegado à Flórida, a
Port Everglades, o FBI não lhe perdoou a sua permanência na Sierra Maestra: herói ou não, a verdade é que constava da Lista Negra da polícia federal e foi compulsoriamente “devolvido” à Irlanda. Chegado à Irlanda, o agora “boss”, de seu nome J.C., munido com o montante proveniente do resgate dos teres e haveres do milionário cubano, comprou um pequeno navio tanque para ser empregue no agora dado como criminoso (mas que era na altura permitido) transporte de resíduos poluentes das indústrias químicas e lançálos ao largo da costa da Irlanda. Num ápice passou a armador de quatro “disposal ships”… e a uma faustosa vida de milionário.
CAPÍTULO II
Estando já apresentado o senhor “boss”, passamos agora à narrativa de uma viagem onde “qualquer coisa que poderia ocorrer mal, ocorreu mal, no pior momento possível”, cumprindo na íntegra o epigrama da Lei de Murphy. Partimos de Cascais pelas 17:00 horas no dia 04 de Agosto de 1976, com destino a Cork, na Irlanda, e com escalas previstas à medida em que íamos ter necessidade de abastecimento de combustível. Tendo em conta o elevado grau de “sede” da embarcação, já explicada, previa naturalmente algumas boas escalas. Debaixo de uma forte nortada, que impelia a embarcação a violentos saltos dentro de água, fomos ajustando a velocidade ao mar e doseando sabiamente o combustível. Acabámos por chegar a Leixões no limite da autonomia, porque as borras acumuladas nos filtros levaram à paragem de um dos motores. A tripulação, além deste vosso narrador, era constituída pelo “Boss” e um motorista naval, natural de Buarcos e já falecido, que foi meu colega na instrução primária e tinha por nome Manuel Marques. Nas pequenas comunidades todos são conhecidos por um nickname (assim mesmo em inglês, pois significava sempre mais do que uma vulgar alcunha). No caso do
Manuel, saudoso amigo, era conhecido por Manuel Samagaio. Eu, embora também natural de Buarcos, era uma excepção e não tinha nickname, porque o meu nome só por si já soava a uma bela alcunha: todos me conheciam e chamavam por Quim Saltão. Chegados a Leixões verificou-se uma avaria na fonia de bordo e num circuito eléctrico, que careceu de reparação e substituição de peças, tendo estas de vir de Lisboa. Ficámos 4 dias retidos em Leixões. De Leixões partimos para a Corunha, onde chegámos com chuva forte e prenúncio de mau tempo, o que nos reteve mais 3 dias. Ao quarto dia o senhor J.C., o dito “boss”, sugeriu que saíssemos, mesmo com ondulação e vento, pouco recomendável para aquele tipo de embarcação. Opus-me à saída, obviamente. Continuando o “Boss” a insistir, e sabendo eu que ele iria arrepender-se, quiçá amargamente, lá aceitei partir contrariado. Lá fomos debaixo de tempo indesejável, sabendo eu que aos primeiros saltos ele seria o primeiro a implorar de joelhos para que arribássemos. O meu presságio concretizou-se com um pedido angustiado do herói da Sierra Maestra a suplicar que voltássemos à Corunha! Limitei-me a responder-lhe (confesso que com um sorriso interior): eu avisei-o que não concordava, mas o senhor queria ir, por isso viemos. Para o castigar (apesar de eu próprio sentir algum incómodo, mas também boa
dose de temeridade), resolvi prosseguir viagem e arribar ao porto pesqueiro de Viveiros, já no Cantábrico, onde permanecemos até ao dia seguinte. Ora acontece que o senhor “boss” não deve ter enjoado o suficiente na aventura prévia e insistia que de Viveiros soltássemos o rumo para Brest, onde um deputado da Irlanda, seu amigo, esperava por nós para seguir para Cork. Difícil mesmo foi convencer o senhor J.C. que a embarcação não tinha autonomia suficiente para atravessar a Biscaia e que não era possível levar alguns tambores de reserva, como ele ainda resolveu aventar, porque a entrada para abastecer os tanques era feita através do convés, sujeito a embarque de água e, portanto, a haver contaminação do combustível. Depois de alguma persistente e “douta” catequização, finalmente consegui convencer o “boss” a adoptar a minha doutrina, que consistia em escalar os portos onde fosse possível o abastecimento de combustível, porque o “burro” em que navegávamos bebia mais do que ele próprio conseguia “carregar”. Seguimos então para Santander com mar chão. Pelas 04:00 horas, já com Santander à vista, um estrondo vindo de estibordo (EB), junto à hélice, seguido de vibração, obrigou-me a parar imediatamente o motor de EB. Chegados a Santander procurámos um mergulhador para inspeccionar o casco, o que não foi tarefa fácil porque os NOV-DEZ 2020 | BORDO LIVRE 160 | 17
mergulhadores disponíveis andavam na apanha do sargaço para a indústria farmacêutica. À tarde lá apareceu um mergulhador que, depois de inspeccionar o casco, diagnosticou tudo normal, com excepção das palhetas da hélice de EB, que estavam dobradas, e o veio parecia também afectado. Só a inspecção custou 3.000 pesetas. A embarcação foi encalhada no plano inclinado da doca de pesca para se proceder à reparação. Em princípio, tanto a hélice como o veio tinham de ir para Bilbao, por não haver em Santander quem reparasse a avaria. A situação complicavase porque havia greve dos transportes, tornando impossível transportar o veio e a hélice. Com a hábil intervenção do motorista e uma outra oficina que nos foi indicada, foi realizada com êxito a reparação pretendida. Depois da montagem da hélice e do veio procedeu-se à descida da embarcação. Mas como a viagem seguia a Lei de Murphy, quando já estávamos com parte das hélices mergulhadas outro imprevisto sucedeu: o cabo de aço que suportava o berço de lançamento esfiapou-se junto ao sarilho, impedindo a descida da embarcação. Solicitei a ajuda graciosa de uma traineira, que estava a chegar ao local, para nos dar um puxão. Auxílio solicitamente prestado…, porém quando liguei os motores para ajudar a entrada na água ouvi mais um barulho, acompanhado com trepidação, vindo das hélices, o que me obrigou a parar novamente os motores. Felizmente desta vez não houve problemas. Simplesmente os veios ainda não estavam bem apertados à caixa redutora dos motores e eu não tinha sido avisado. Alinhados os veios, hibernámos mais uns dias em Santander devido ao mau tempo. Na madrugada seguinte acordei ao som de uma grande algazarra dos meus vizinhos dos iates atracados de braço dado numa fila de piano, sendo o último de fora a 18 | BORDO LIVRE 160 | NOV-DEZ 2020
nossa nave. O motivo de tanta confusão e alarido era uma tormenta, tipo pirajá, que lançou o caos entre a marinhagem. Lembro-me da destreza de umas marinheiras francesas de uma embarcação que estava atracada ao nosso iate (não a “nosotros”, esclareça-se!), manejando de biquíni e impermeável, e que as indecorosas rajadas de vento teimavam em revoltear os trajes e mostrar as pudendas partes das galesas. Num frenesim impressionante foram reforçados os cabos de amarração e com o prestimoso auxílio da nossa embarcação foram os iates, de braço dado, levados a reboque para os seus primitivos postos de amarração. Após a faina terminar, juntámos no nosso iate francesas e suecas, bebendo chocolate quente e o saboroso café acompanhado por uns cakes de manteiga dinamarqueses. Os encontros começaram a ser frequentes e pela manhã, a bordo da nossa embarcação, eram servidas saborosas panquecas, diziam elas as marinheiras, regadas com Maple Syrup (Xarope de ácer). O pirajá foi motivo para uma franca amizade e a estada prolongou-se por mais de uma semana, com demorados jantares e finais de noite felizes. Houve até alturas em que implorámos aos deuses Éolo e Poseidon que continuassem a enviar vento forte e mar agitado, para prolongar a nossa estada em Santander. Para fim da nossa inesperada amizade e diversão, eis que passados uns dias esse tal deus Éolo (verdadeiro desmancha-prazeres) guardou o vento no saco de couro… e a dor de cabeça de Hália ou Anfitrite alegadamente terá passado, o que levou o outro deus, o Poseidon dos mares e do nosso descontentamento, a acalmar a sua fúria. E pronto, o tempo amainou um pouco contra nossa vontade…
CAPÍTULO III
Prosseguimos para La Rochelle. Quando navegávamos em frente à foz do rio
Gironde, com o presságio do regresso de mau tempo, indicado por nuvens muito carregadas e a intensidade do vento a aumentar, arribámos a Royan, na margem direita do rio Gironde. Ingloriamente, neste porto não havia maneira de abastecer. Embora ainda tivéssemos combustível, decidimos seguir para La Rochelle logo que o as condições de tempo permitissem. A pressa do J.C. para sair (que era admissível, não só porque tinha que pagar salários e alimentar a tripulação e tratar dos seus negócios), estava sempre a pressionar a saída da embarcação, mesmo havendo agravamento das condições atmosféricas. Apesar da agitação de mar e a maré de vazante (que eu acintosamente aproveitei para convencer o “boss”), lá resolvi sair, mas quando nos aproximámos da barra o cenário era bem pior do que tinha imaginado. A ondulação era de tal forma fortemente cavada que até eu me assustei. Pondo tudo a EB e uma máquina a vante e a outra a ré, demos uma volta de 180 graus, num ápice, e voltámos para Royan. O herói da Sierra Maestra estava pálido e tremia de tal monta que até eu me arrependi da proeza…, mas também não sei como estava eu de fácies, porque não tinha um espelho ao pé. Este episódio parece ter servido para convencer definitivamente o J.C. de que “Nobody is perfect, except the Captain”. O homem era difícil de convencer e compreender e só com trabalhos práticos (dando flagrantes exemplos) se podiam vincar e vingar as nossas considerações. Logo que o tempo melhorou seguimos para La Rochelle. Depois de abastecermos rumámos para Brest, correndo desta vez a viagem sem percalços. De Brest soltámos rumo para as ilhas Scillly, onde chegámos pelas 05:00 horas. Sem RADAR nem cartas de navegação do local, aguardámos pela alva para praticar a entrada com segu-
rança, praticando um canal balizado. Quando nos encontrávamos a meio do canal, mais um acontecimento de mar: uma vibração no veio de EB com redução das rotações. Prosseguimos a viagem até ao cais, só com o motor de bombordo (BB). Procurámos de novo um mergulhador para verificar o evento. Desta vez era um pedaço de retenida de nylon, dessas que se atiram para a água, fazendo do Mar caixote de lixo, que se enrolou no veio junto ao bucim. A operação do mergulhador custou 80 libras esterlinas e ainda lhe emprestei a minha faca para cortar a retenida. Sim, a minha faca! Porque marinheiro sem faca é como meretriz sem cama… A agitação atmosférica esteve quase sempre presente nesta viagem, como se a perversidade do Universo quisesse que tudo desse errado. Isto pode ser interpretado como um negativismo puro e simples, mas também como um alerta para se tomar sempre todas as precauções possíveis quando se trabalha numa actividade como é a vida do Mar. Permanecemos três dias em Hug Town, St. Mary´s, nas Ilhas de Scillly, aguardando melhoria de tempo. Consultada a carta de tempo num Pub, onde se reuniam os navegantes daquelas paragens, verificámos que havia uma janela de oportunidade, com alguma agitação, mas com uma possibilidade de largarmos para Cork, na Irlanda. A meio da viagem voltou o vento e a agitação marítima, de tal modo que pensei no pior. Felizmente a Divina Providência estava connosco e conseguimos entrar em Cork. Quando prosseguíamos no canal de acesso à Marina de Cork os dois motores pararam, devido ao entupimento dos filtros. Tivemos que fundear e solicitar reboque de uma lancha a motor ao serviço da Marina. Era um sábado e pernoitámos num Hotel ali existente. Sim… a sério, mas ainda não pára por aqui.
No Domingo à hora do almoço veio o “boss”, esposa e filha, de 12 anos, para almoçarmos juntos, mas a traquinice da filha, ao escorregar pelo corrimão de uma escada existente no hall do hotel, originou-lhe uma queda e teve de ir para o hospital, tendo-se verificado, depois, que os ferimentos não foram de grande monta. Na segunda-feira de manhã, quando fomos a bordo com as autoridades para dar entrada à embarcação, deparámos com um calado inusitado, que não correspondia à carga das caixas de whiskey, gin e rum da garrafeira do “boss”, que durante a viagem bebia a bom beber, nada menos do que uma garrafa por dia. Só os motores da embarcação é que competiam com ele na devida proporção. Depois de inspeccionado o porão, com as caixas a flutuar, verifiquei existir uma fissura no encolamento da proa a BB, que deduzi ter sido originada aquando do encalhe no plano inclinado em Santander. O berço de lançamento não teria sido ajustado à baliza da embarcação, ficando ao lado, resultando um esmagamento do casco liso de madeira. Durante a viagem, a elevação da proa e a bomba de esgoto ligada ao motor não permitiram o acumulo de água que eventualmente entrava. Com a embarcação parada, a água que porventura acumulasse seria esgotada por uma bomba (bildge pump) ligada às baterias, que actuava logo que a água atingisse um determinado nível (sistema bóia de autoclismo) … mas, como não podia deixar de ser, a bateria tinha sulfatado!!! Em 1877 o engenheiro Alfred Holt, numa reunião de engenheiros em Londres, para falarem sobre navios a vapor proferiu a seguinte lei epigramática: “Verifica-se que qualquer coisa que pode dar errado no mar, geralmente dá errado, mais cedo ou mais tarde”. E assim se acabavam de unir, de braço-dado, duas belas Leis: a de Murphy e a de Holt.
No final, o “boss” estava renitente em pagar o nosso atribulado trabalho, mas a sua honrada esposa, que era uma Lady, chegou-se à frente e pagou integralmente tudo o que era devido. Durante a viagem, o “boss”, depois de beber sozinho uma garrafa de whiskey ou gin, contava-nos as histórias da sua atribulada vida e uma delas dizia que: “se não fosse um homem honesto teria atirado ao mar o milionário e teria ficado com o baú e seu recheio”. O Manel Samagaio comentava comigo, sempre que havia um azar, que era, alegadamente, a alma do milionário que se estava a vingar. Parafraseando o Manuel Samagaio, com um toque de salero à mistura: não acredito em almas vingativas, pero que las hay, las hay… Terminava assim uma epopeia onde tudo o que de errado podia acontecer, aconteceu… e religiosos ou não ficámos sempre com a sensação que foi realmente graças à Divina Providência que salvámos o nosso corpo, pois pelo rumo dos acontecimentos nem a alma se nos aproveitaria. De Cork viajei de combóio para Dublin, onde permaneci três dias, e dali para Londres, onde gozei uma divertida semana de férias para depois regressar a Lisboa e preparar-me para novas aventuras marítimas. S. Domingos de Rana, 05/02/2020 P.S. O autornão segue o inconsistente novo acordo ortográfico.
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VIAGENS QUE NÃO ESQUECEM MOÇAMBIQUE
OLIVEIRA GONÇALVES
Em passeio pela baixa de Lisboa, acidentalmente encontrei o Comandante Serafim Costa, na altura chefe do serviço de pessoal da antiga Companhia Colonial de Navegação, CTM então. Era pessoa com quem não tinha muito contacto, mas ele sentia-se grato por eu ter acedido a manter-me como imediato do navio Ganda, até que ele pudesse tomar posse do lugar que lhe competia a ele . Da conversa que tivemos, perguntou-me se não queria embarcar na empresa dele. Tinha o n/m Malange a sair uns vinte dias depois, para cinco portos do Norte da Europa seguindo depois para Moçambique. Achei interessante ir a Moçambique ver como estava o que lá tinha deixado, e decidir de vez se valia a pena regressar ou esquecer para sempre aquele período da nossa vida. Pedi ao Capitão Ulisses Ribau para fazer uma viagem por mim como comandante do Praia de Âncora, e aceitei o desafio embarcando como 1.º Piloto no n/m Malange já que pretendia ter o mínimo de obrigações a bordo,tendo como primeiro comandante o Alpalhão, substituído pouco depois pelo Izidro Roque do Vale. Cheguei a embarcar no n/m Malange, mas 20 | BORDO LIVRE 160 | NOV-DEZ 2020
pouco antes da saída estala a célebre e prolongada greve de 1978. Como se arrastava a greve, solicitei ao Serafim Costa que me dispensasse daquela obrigação, o que ele aceitou. Como o Ulisses Ribau vivia em Ílhavo, e aquilo eram tempos conturbados, levou quase meio ano para fazer uma viagem e voltar a entregar-me o comando do Praia de Âncora. Quando reassumimos o comando n/m do Praia de Âncora tinha mudado a gestão do Praia de Âncora, do Praia do Restelo e do Praia de Buarcos saindo da SNAPA para a CPP.Nunca alguém me soube explicar a razão daquela mudança. Preparámos normalmente o navio para sair, coincidindo com o dia da nossa saída o início de uma greve no Cabo Branco. Chegámos a àguas da Guiné Bissau no dia 24 de Dezembro pelas 18 horas, tendo nós decidido fundear o navio e cear, começando o trabalho no dia 25 às seis da manhã. Suspendemos a essa hora e largámos a rede. Enquanto se largava a rede sentimos que o veio do guincho tinha partido. Naquele tempo as comunicações eram feitas através de Lisboa Radio e foi complicado apanhar alguém com poder de mando até que contactado o director de produção este deu ordem para regressarmos a Lisboa. A greve no Cabo Branco continuava e a tripulação ganhava à percentagem. Ainda tentámos que o veio fosse soldado em Dakar, alertávamos que o navio estava abastecido para 72 dias mas foi tudo inútil, a ordem continuou... voltem para Lisboa. Chegámos a Lisboa logo a seguir ao ano novo, ainda tentámos que nos dessem o veio do N/M Alcântara que era igual ao nosso, e o navio estava em reparação em Lisboa há muitos meses. Em determinada altura demos conta que era intenção da direcção da CPP deixar
apodrecer os mantimentos e impedirem a realização da nossa viagem. Estivemos quase a chegar a vias de facto com o director de produção ,capitão Tomé, tentámos falar com o Presidente do Conselho de Administração (que nós não conheciamos) e que não nos quis receber. Perante o sucedido, decidimos convocar toda a tripulação a Lisboa . Em plenário decidiram entregar a resolução do assunto ao comando do navio. Escrevemos então duas cartas, iguais, encarregando o Imediato António Ferreira (hoje na administração da Transtejo ou Soflusa) acompanhando-o, de as entregar no topo das escadas à direita e à esquerda , às secretárias de Suas Excias. o Ministro e o Secretário de Estado . Uma hora depois telefonava-nos a secretária do Presidente do Conselho de Administração da CPP a perguntar qual era a hora mais conveniente para nós a fim de sermos recebidos pelo Eng. Duarte Silva. Respeitosamente dissemos que durante as horas de serviço estávamos sempre disponíveis. Ficou então combinado que no dia seguinte seríamos recebidios pelas onze horas pelo Sr.Engº, conversa que durou três horas. Ao fim do dia fomos informados que a gestão e abastecimento do navio passaria a ser feito novamente pela SNAPA. Três dias depois, reparado o veio e devidamente abastecidos, saímos para o mar. Antes de sairmos para o mar, o Eng. Duarte Silva foi nomeado Secretário de Estado das Pescas, do governo de Sexa a Engª Lurdes Pintassilgo. Da conversa que tivemos naquelas três horas, além da despedida já ele era Secretário de Estado, como lamentamos que estas pessoas fora de série passem tão fugazmente pelo MAR. O mar seria outro com gente desta.
VALEMAX
OS GOLIAS DOS MARES
ANTÓNIO COSTA
Um graneleiro é um navio mercante projetado para transportar cargas a granel não embaladas, como grãos, carvão, minério, bobinas de aço e cimento. O primeiro graneleiro foi construído em 1852. Hoje, estes Golias dos mares são projetados para maximizar a capacidade, segurança, durabilidade e segurança e representam 21% da capacidade da frota mercante mundial. Os navios Valemax compõem uma frota de navios de grande porte (Very Large Ore Carrier – VLOC), pertencentes ou fretados pela mineradora brasileira Vale S.A., para transportar minério de ferro do Brasil para portos europeus e asiáticos. Com uma capacidade variável de entre as 380.000 e as 400.000 toneladas de porte bruto, os navios atendem ao padrão Chinamax, ou seja, às dimensões máximas suportadas pelos portos importadores de minério na China (calado e boca máximos). Os navios Valemax são os maiores graneleiros alguma vez construídos, no que concerne a sua tonelagem de porte bruto e largura total e estão entre os navios, atualmente em serviço e de qualquer tipo, mais longos. O primeiro navio Valemax construído, o MS “Vale Brasil”, foi entregue em 2011, tendo sido rebatizado de MS “Ore Brasil” em 2014. Inicialmente, todos os 35 navios da primeira série deveriam estar em serviço até 2013, mas o último só foi entregue em setembro de 2016. No final de 2015 e início de 2016, companhias de navegação chinesas encomendaram outros 30 navios com entregas programadas para
entre 2018 e 2020. Três navios adicionais foram encomendados por uma empresa de navegação japonesa. Isso perfaz o número total de 68 navios Valemax ao serviço, em construção ou encomendados. Em março de 2020, havia um total de 66 navios Valemax em serviço e dois em construção ou encomendados. O navio MS “Ore Brasil” tem 362 m de comprimento, 65 m de boca máxima e 30,4 m de calado máximo. Está equipado com sete porões de carga com um volume bruto combinado de 219.980 metros cúbicos e uma tonelagem líquida de 67.993. A sua tonelagem de porte bruto é de 402.347 toneladas. O MS “Ore Brasil” transporta minério de ferro do Brasil para a China ao longo da rota do Cabo, circundando a África do Sul. As dimensões destes navios permitem economia de escala ou, por outras palavras, ao permitirem transportar maiores quantidades de carga fazem baixar o seu preço de transporte, ou taxa de frete. Por
outro lado, e pelas mesmas razões, permite diminuir o consumo de combustível por tonelada/milha navegada, produzindo ganhos ao nível ambiental. É reconhecido que a indústria marítima é responsável por 3% das emissões de efeito de estufa. No que concerne aos navios Valemax, estes emitem menos 35% destes gases por tonelada de minério transportada, em comparação com um navio de tipo Capesize.
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OS JOVENS E O MAR
APRENDER A PARTIR DE CASA
BÁRBARA CHITAS Com o COVID, está tudo diferente, mesmo para quem está a estudar. Para quem está a estudar na ENIDH as aulas tiveram um início tardio, relativamente a outros anos, tendo começado a 12 de outubro. As duas primeiras semanas foram presenciais, a decorrer dentro da (quase) normalidade. Tínhamos de andar sempre de máscara, desinfetar as carteiras antes de nos sentarmos, as salas estavam limitadas ao número de alunos e mantínhamos a distância de segurança. O ponto mais problemático era quando tínhamos de almoçar. Uma vez que a comer juntos, mesmo que em pequenos grupos é a altura em que o contágio é mais provável de ocorrer.
Em consequência de as medidas do estado terem ficado mais apertadas, no dia 2 de novembro fomos todos mandados para casa para ter aulas online. Durante 15 dias estivemos sem aulas práticas. A partir de dia 16 de novembro voltamos a ter aulas práticas intensivas nos simuladores. Para reduzir o número de alunos na escola, fomos divididos em 3 grupos, sendo que vamos alternando semanalmente quem se dirige à escola.
horas em frente ao computador torna-se mais cansativo do que se estivesse a ter o mesmo número de horas de aulas presencias. Para explicar melhor a situação resolvi comparar por pontos as vantagens e desvantagens deste tipo de ensino. Claro que em tempo de pandemia, concordo a 100% com este método de aulas online, porque nada é mais importante que a saúde de todos!
COMO FUNCIONAM AS AULAS ONLINE?
Partes positivas:
Estamos a ter aulas através do Microsoft Teams. Cada disciplina tem a sua equipa específica, aonde entramos à hora da aula marcada. Além de servir para ter aulas por videochamada, os professores também nos deixam vários ficheiros importantes para descarregarmos e estudarmos. Nesta plataforma também apresentamos os nossos trabalhos aos nossos colegas. Há professores que utilizam câmera e outros não. Na minha opinião a interação professor-aluno ocorre melhor se nos estivermos a ver uns aos outros. SERÁ ISTO UMA REALIDADE DO FUTURO PÓS COVID?
Tudo tem a ver com a questão de adaptação. Não depende só dos alunos, mas também com a forma de os professores lecionarem as aulas e da capacidade de as tornar dinâmicas. O rendimento de cada aula lecionada online também depende do número de aulas seguidas no mesmo dia em que temos em frente ao computador. No caso prático da minha turma, como temos aulas práticas à segunda e terça para um dos grupos a cada semana, o resto das disciplinas ficam condensadas em dois dias, à quarta e à quinta, o que faz com que tenhamos muitas horas de aulas seguidas. No caso de quarta feira, para mim estar 9 22 | BORDO LIVRE 160 | NOV-DEZ 2020
• Não ter de acordar tão cedo para estar na escola às 0800; • Não ter de conduzir no trânsito até à escola; • É mais fácil expor duvidas e aceder aos materiais escolares online; •Épossívelgravaraulasparaquemnãopodeestarpresente.
Pontos negativos:
• Como estamos em casa é mais complicado manter o foco; • Muitas horas em frente a um ecrã; • Falta de socialização; • Por vezes a internet pode ter falhas.
No entanto para alunos em que o trabalho é em qualquer parte do mundo não faria sentido ter aulas online? No meu caso eu fiz uma pausa na minha carreira devido à paragem dos navios inerente à pandemia. Mas para muitos colegas abandonar, ou seja, ter de parar um ano inteiro e ficar em terra para fazer o mestrado é algo que custa bastante. Muitos optam por fazer um semestre de cada vez de forma à despesa ficar dividida em dois períodos. Outras vezes nem tem a ver com o aspeto económico, mas sim com a pessoa em questão fazer falta ao navio em que está embarcado, e por essa razão não poder ser dispensado por um ano inteiro. Acho que deveria de se procurar uma solução para possibilitar a realização do mestrado (ou pelo menos parte dele) sem forçosamente estar desembarcado. Queria também aproveitar para desejar a todos uma boa quadra de Natal, junto de quem mais gostam e com muita saúde! BOAS FESTAS!
BAILE DOS BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS
Esta é uma história curta mas, nem por isso menos distractiva. É à primeira de um todo que procura boas vontades. Algumas das características do conto levar-me-iam a classificá-lo de “sainete” (nome que existe em Espanha, França e que está presente nalguns dicionários em Portugal). Houve, tempos atrás, em Chaves, o chamado Baile dos Bombeiros. Chamavase assim, porque se realizava no salão nobre da corporação dos bombeiros voluntários flavienses, os bombeiros das freiras ou ainda os bombeiros de baixo, situado no largo das freiras, hoje biblioteca municipal. Que os frequentadores deste salão nobre, em tempos festivos, não atingissem a notoriedade, dito de outra maneira, fossem menos notáveis relativamente aos bailes da sociedade flaviense e quem aí afluía com propósito bailarino, é uma falácia. Em termos comparativos podemos dizer que os “Bombeiros” colhem mais apoio da escola comercial Júlio Martins e a sociedade flaviense mais do liceu Fernão de Magalhães. Nesse ano já remoto o “réveillon” prosseguia a um ritmo dentro dos limites da normalidade de qualquer “réveillon”. O comportamento dos convivas estava a ser correctíssimo e a ceia e o baile pareciam querer prolongar-se até ao almoço do dia seguinte. Os cálices nunca permaneciam cheios nem nunca vazios. A determinada altura do baile, certa jovem queixou-se a um familiar mais velho de determinada atitude menos simpática, grosseira, leviana (!?). O familiar, circunstancialmente tenente da policia local, pessoa de excelente carácter e muito boas maneiras, desde que qualquer provocação não lhe mordesse as
canelas, (tarimbeiro, assim se chamava aquele que subiu todos os postos desde soldado sem ter cursado estudos superiores), pediu para subir ao palco interrompendo a atuação do agrupamento musical “Hula-up” no clímax do desempenho da peça musical “Rua sem Luz””. Tratando-se de quem se tratava, acederam à suspensão temporária da música e proporcionaram o microfone do vocalista para que o tenente pudesse expressar o que lhe ia na alma, tão atónitos quão eriçados ficaram os minúsculos dos pelos que faziam cócegas na pele e entre os dedos: que de grave terá acontecido e suas consequências. Ordena e interroga com voz de comando – o Tenente Baltazar Chapouto – em tom ameaçador: – Alto e pára a dança, quem foi que apalpou a culatra (respiga a influência do léxico técnico castrense) à minha prima Constança?! Perante a ameaça e putativas consequências, o autor, por acaso presidente da edilidade Onésimo Valouras que aí tinha ido marcar presença, quer política quer de protecção civil, quer lúdico-lasciva, levantou o braço e assumiu a paternidade do ato irreflectido dizendo: – Fui eu! O Tenente reconheceu o presidente e recorrendo à inteligência emocional, reprogramou-se para não fazer ondas (quem tem culatra tem medo, por analogia de outro aforismo mais conhecido, ou não vá o diabo tecê-las!), pelo que deu o acontecimento por um mal menor, perfeitamente negligenciável naquele entorno de diversão, e disse, voltando-se para os músicos e dançantes com voz fagueira: – Siga a dança que é gente de confiança!
ANTÓNIO F. LOBO
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