BL 164 julho/agosto 2021

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BORDO LIVRE REVISTA DO CLUBE DE OFICIAIS DA MARINHA MERCANTE

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JULHO/AGOSTO 2021


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EDITORIAL

JOÃO TAVARES

Chegamos ao período privilegiado de férias anuais dos associados em que a sede fecha as instalações para o seu período de inventário e de reorganização interna para recuperar as energias tão necessárias ao governo desta embarcação nos mares revoltos destes tempos que não param, nem esperam pelos mais “desfavorecidos”. A um ritmo gradualmente acelerado, as companhias de cruzeiro retomam as suas operações, nos EUA, em conformidade com os protocolos de saúde e de segurança recomendados pelas entidades sanitárias. Congratulamo-nos com as notícias que chegam da Bélgica na qual, a Associação de Armadores em parceria com a Equipa de Vacinação belga iniciou a campanha de vacinação para todos os tripulantes independentemente, da bandeira dos navios ou da nacionalidade dos marítimos. Este programa está disponível nos portos de Antuérpia, Gante e Zeebrugge com a vacina de toma única da Johnson & Johnson. Parece que as autoridades estão no bom caminho ao reconhecerem aos trabalhadores a condição de importância e prioridade que merecem e de valorizarem devidamente os marítimos

que por este mundo fora mantêm as economias em funcionamento. Esperamos iguais comportamentos dos restantes estados membros da União Europeia e, que esta possa sinalizar o rumo que as restantes regiões do globo, que ainda discriminam de forma negativa os tripulantes, devem prosseguir. A toda a força a vante segue o projecto e a construção de novos navios com propulsão a hidrogénio líquido, a saber pelas novas unidades que estão a ser colocadas em operação. Desde ferries, rebocadores oceânicos, navios de pesquisa e investigação, navios logísticos de bancas marítimas, etc. A investigação prossegue em domínios do hidrogénio sólido como uma nova aposta de combustível. Como suporte e apoio ao crescente número de unidades em navegação, os operadores logísticos estão a avançar com terminais e sistemas de abastecimento de bancas marítimas deste novo combustível. A firma inglesa Unitrove, uma das pioneiras em terminais de GNL em parceria com a Shell, está a expandir a sua actividade para os terminais de hidrogénio líquido (LH). Ao nível da logística comercial e bem perto de nós, surge um bom exemplo de como as oportunidades podem ser convertidas em pontos fortes que ajudam a promover uma nação. O porto de Tanger-Med situado na confluência das principais rotas marítimas mundiais que lhe garante um posicionamento estratégico, tem um modelo de negócio dos mais competitivos do continente africano o que aliado às recentes reformas do país com a criação da Autoridade do porto Tanger-Med, para a optimização e a eficiência das operações portuárias,

alavancou Marrocos como país atractivo ao investimento estrangeiro. Marrocos soube aproveitar as oportunidades criadas pelos efeitos negativos da pandemia nas cadeias logísticas mundiais (escassez de chips e a distância dos centros de produção situados na Ásia). Com uma crescente industria logística interna e uma infra-estrutura portuária competitiva (Tanger-Med), Marrocos afirma-se cada vez mais como um centro de produção para as diversas indústrias europeias. Recentemente, ganhou um contrato com a Tesla para a produção de chips para os veículos eléctricos o que vem reforçar a sua posição no sector automóvel. Estima-se que em 2023 a produção interna total de automóveis atinja as 700.000 unidades superando a África do Sul. No outro extremo do Mediterrâneo, temos uma nova infra-estrutura que entrará em operações no início de Setembro, o novo porto de Haifa com investimento de 1.300 milhões de euros vai permitir a afirmação de Israel como plataforma logística no médio-oriente. Nas principais características salientamos a construção offshore com cotas de -17,3m e zonas de acostagem com comprimento superior a 800m. Dotado das mais recentes inovações tecnológicas será gerido e operado pela China’s Shanghai International Port Group

pelo período de 25 anos. Aproveitando a boleia do escritor “Se o objetivo mais elevado de um capitão fosse preservar o seu navio, ele o manteria no porto para sempre.” Assim, também nós

regressaremos em Setembro com novos projectos e novas actividades para vos desafiar a navegar por novas aventuras. Boas férias em segurança e com saúde!

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SUMÁRIO

JULHO/AGOSTO 2021

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Editorial

João Tavares

COMM Natura As Tripulações do Santo André Pedro Silva

Tipos de desenho de proa usados pelos navios - Parte 1 António Costa

Sabedoria do Mar Alberto Fontes

O "Angoche" e Eu

Manuel Seabra e Melo

Mistérios do Mar Profundo António Costa

A Marinha Mercante Nacional Joaquim M. Marques

Os Jovens e o Mar Bárbara Chitas

DIRETOR Lino Cardoso COLABORARAM NESTE NÚMERO João Tavares, António Costa, Bárbara Chitas, Pedro Silva, Alberto Fontes, Manuel Seabra e Melo, Joaquim M. Marques OS TEXTOS ASSINADOS SÃO DA RESPONSABILIDADE DOS SEUS AUTORES

COMPOSIÇÃO Mapa das Ideias TIRAGEM 1000 exemplares PERIODICIDADE Bimestral REG PUBL 117898 DEPÓSITO LEGAL 84303 CORREIO EDITORIAL Despacho DE04842021SC-B2B PROPRIETÁRIO/EDITOR Clube de Oficiais da Marinha Mercante Trav S João da Praça, 21. 1100-522 Lisboa Tel (+351) 218880781. www.comm-pt.org secretaria@comm-pt.org CAPA @ Vasco Pitschieller DISTRIBUIÇÃO GRATUITA AOS SÓCIOS DO CLUBE DE OFICIAIS DA MARINHA MERCANTE

A REVISTA ESTÁ DISPONÍVEL ONLINE para leitura, duma forma fácil e intuitiva em http://issuu.com/clubeoficiaismarinhamercante/docs/bl164 HORÁRIO DE FUNCIONAMENTO DA SEDE DO COMM 2.ª, 3.ª, 4.ª, 5.ª, 6.ªF - das 15h00 às 18h00 A SEDE DO CLUBE DISPÕE DE LIGAÇÃO PAGAMENTO DE COTAS: NIB 001000006142452000137


RENASCE DELEGAÇÃO CENTRO DO COMM Sim, foi com muita alegria, esperança e alguma ansiedade que no dia 11 do passado mês de Junho abriram aos sócios e familiares do nosso COMM as fantásticas novas instalações da Delegação Centro do nosso Clube.

No dia da inauguração, salvaguardando todos os procedimentos de segurança recomendados, foi servido um excelente leitão assado à moda da Bairrada, cozinhado em forno particular – uma delícia!

Localizadas no centro da laboriosa Gafanha da Nazaré, mais precisamente no nº 3 da Rua S. Francisco Xavier, mesmo junto ao cruzamento com a avenida principal que atravessa a localidade – a José Estêvão, muito pertinho da Igreja Matriz, este novo local de convívio principalmente dedicado aos camaradas residentes naquela zona do País é um local polivalente, com excelentes condições tanto para organizar eventos “indoor” como “outdoor”, o que nesta última versão dá um jeitão enorme dado os tempos que correm com este maldito vírus a inibirmo-nos a liberdade.

As bebidas: havia para todos os gostos, desde o chamado vinho frisante até um grandioso espumante, passando por um tinto de se lhe tirar o chapéu, um verdadeiro espetáculo. Falta dizer que todos estes néctares foram produzidos e fornecidos pelo nosso grande amigo Fernando Ribau, o homem que trocou a vida de marinheiro/armador de pesca pela de agricultor/produtor de vinhos, em boa hora, diga-se. Um grande abraço amigo Fernando e parabéns pelo êxito.

camaradas locais que com o seu esforço e perseverança nos põem ao dispôr esta nova delegação que nos enche de orgulho. Para quem ainda não teve a oportunidade de conhecer e usufruir, recomenda-se.

Estão todos de parabéns, o nosso COMM e, principalmente o grupo de

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COMM NATURA

CIMA: O dióxido de carbono, na atmosfera e nos oceanos, limita a absorção de carbonato de cálcio pelos animais que dele necessitam para construir a concha. BAIXO: Os combustíveis fósseis estão a prejudicar os moluscos construtores de conchas.

Prevê-se que os níveis de pH da superfície do oceano sejam reduzidos de 0,3–0,4 unidades de pH até o final do século e, provavelmente, coincidirão com um aumento na temperatura da superfície do mar de 2–4 °C. O efeito combinado da acidificação e do aquecimento do oceano nas propriedades funcionais das conchas dos bivalves é amplamente desconhecido e de crescente preocu-

pação, pois a concha fornece proteção, tanto contra fenómenos mecânicos, como para os desafios ambientais. Os gastrópodes, bivalves e cefalópodes (com concha) podem vir a ter problemas na formação da concha no futuro, à medida que a alteração climática se intensifica, de acordo com novos estudos publicados pela comunidade científica. Os oceanos do mundo absorvem cerca de 30% do dióxido de carbono libertado na atmosfera, tendo a quantidade de CO2 dissolvido nos oceanos aumentado, drasticamente, ao longo do século passado, à medida que as emissões de gases de efeito de estufa continuam a subir, devido à queima contínua de combustíveis fósseis. Essa dissolução de CO2 provoca uma série de reações químicas nas águas do oceano (a que chamamos acidificação dos oceanos), fazendo diminuir os iões de carbonato (CaCO3) e aumentar os iões de hidrogénio, gerando a diminuição dos níveis gerais de pH no processo. Animais marinhos que formam conchas e outras superfícies duras, como os corais, dependem de iões de carbonato como blocos de construção nos seus processos de calcificação. À medida que os oceanos se acidificam, essa substância fundamental está a tornar-se escassa e a própria sobrevivência desses seres está em risco. Ao longo da última dezena de anos, vários foram os pesquisadores que promoveram testes, tendo, de uma forma geral, chegado à conclusão que alguns destes seres marinhos foram afetados no seu desenvolvimento em algumas regiões do mundo e que as suas conchas eram muito mais fracas. "A acidificação dos oceanos é uma clara ameaça à vida marinha, agindo como um fator de stress para muitos animais marinhos", disse o Dr. Ben Harvey,

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professor assistente do Centro de Pesquisa Marinha Shimoda da Universidade de Tsukuba, na publicação de um dos estudos. Se as emissões de dióxido de carbono continuarem a aumentar sem controlo, irão reduzir o pH das águas, tornando-as de tal forma ácidas, que algumas espécies calcificadas podem ser incapazes de se adaptar a essa água do mar. E, à medida que as águas marinhas, em todo o mundo, se acidificam, caracóis, caranguejos, lagostas, corais e muitas outras criaturas podem entrar em processo de extinção. Em casos extremos podem, até, desintegrarem-se em condições extremas. Os cientistas descobriram que os pterópodes, ou borboletas marinhas, se dissolvem em 45 dias após serem colocados em níveis de pH semelhantes aos previstos para 2100. Esta espécie é uma fonte crucial de alimento para o plâncton, baleias, salmão e outras criaturas. Para os mais descrentes basta dar o exemplo do atual desaparecimento de recifes de coral por todo o mundo. Razão? Os oceanos estão mais quentes e as suas águas acidificaram.

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AS TRIPULAÇÕES DO SANTO ANDRÉ

PEDRO SILVA

Nos quase 50 anos de viagens, de 1949 a 1997, embarcaram no Santo André mais de um milhar de tripulantes. Uma análise, a vários níveis, da composição dos seus bacalhoeiros poderá trazer alguma luz e dar uma perspetiva mais informada sobre a realidade histórica do Santo André. Ademais, contribuirá também para vislumbrar algumas tendências que se estenderiam a toda a frota, que carecem naturalmente de exercícios de verificação e de uma análise comparada. Noutro sentido, o estudo geográfico das tripulações do Santo André pode ajudar a melhorar o escopo de uma recolha memorial, antes que se caiam em definitivo no esquecimento. Na investigação que foi feita, no âmbito da publicação da monografia Santo André: memórias de um navio, recorreu-se à classificação convencional das tripulações, com a sua inserção em três grupos: a oficialidade, a mestrança e a marinhagem. Além disso, optou-se por separar algumas profissões específicas num conjunto à parte, onde se incluem eletricistas, enfermeiros e observadores e técnicos de pesca. Só a existência, nos róis de matrícula, destes dois últimos tripulantes reflete sintomas de contextos históricos muito próprios de uma época em que a pesca longínqua mundial e portuguesa foi 8 | BORDO LIVRE 164 | JUL-AGO 2021

em grande parte reconfigurada. É certo que o mesmo se poderia dizer de outras profissões, ligadas, por exemplo, às máquinas ou aos serviços de saúde, que, entretanto, tiveram a sua consolidação estabilizando a sua permanência nas campanhas da faina maior por longos períodos. Como seria de esperar, a marinhagem compunha cerca de três quartos das tripulações, seguida pelo grupo dos oficiais, da mestrança e das restantes profissões não classificadas. No âmbito da totalidade das tripulações, se compararmos ao restante período de atividade os anos de 1990 a 1997, quando o navio assumiu o nome de Amazonas e viajou com a bandeira de conveniência do Panamá, verificamos que a marinhagem aumentou o seu peso, de 74,6% para 81,1%, e que todos os restantes grupos enunciados perderam presença (oficiais, de 13,4% para 8,2%, e outros, de 5,5% para 3,3%), exceto a mestrança, que subiu ligeiramente de 6,5% para 7,4%. O aumento relativo da marinhagem à custa dos oficiais parece ser causada pela redução do número deste grupo desde 1990. De facto, a partir desse ano deixaram de embarcar no então Amazonas pilotos ou radiotelegrafistas, por razões certamente diferentes para cada caso, ficando os oficiais reduzidos a cinco elementos: o capitão, o imediato e três maquinistas. Olhando para os dados, conclui-se que, entre 1949 e 1989, havia um oficial para quase seis marinheiros, rácio que com a mudança de nome e de bandeira passou para um oficial para perto de dez marinheiros. Isto apesar do número absoluto de tripulantes ter descido nas últimas décadas de atividade. Analisando agora a geografia do recrutamento, tendo em conta apenas as naturalidades conhecidas, confirma-se a

predominância dos ilhavenses em quase todo o período. Considerando as matrículas por ano no Santo André, até 1973, Ílhavo foi o concelho que mais tripulantes teve, apresentando uma média anual de cerca de 50%, tendo a Murtosa, o concelho seguinte com maior presença, um valor perto de 20%. Provavelmente devido a vários fatores exógenos ao Santo André, desde 1966 que os ilhavenses tinham sistematicamente perdido terreno face ao aumento de tripulantes de outros concelhos, como Vagos, que atingiu o seu máximo (16%) em 1973, Mira e Aveiro. Além disso registou-se também um acréscimo do número de naturalidades, chegando este último ano a ter tripulantes de 21 municípios diferentes, um novo máximo histórico (que seria ultrapassado nas décadas seguintes), muito acima da média de 14, entre 1949 e 1965. Em 1974, com a introdução neste navio da pesca com redes de emalhar, a procura das respetivas competências terá sido satisfeita essencialmente pelo município de Vila do Conde, que chegou a ultrapassar o de Ílhavo em número de tripulantes em 1974 e entre 1979 e 1982. A presença deste concelho acabou por dissipar-se com o abandono deste método de pesca até 1990. Em paralelo, é a partir de inícios dos anos 70 que as tripulações assumem uma natureza geográfica cada vez mais heterogénea, com Ílhavo a reduzir a sua presença para percentagens na casa das duas a três dezenas, caindo mesmo para menos de 20% em 1994, 1995 e 1997, sendo ultrapassado pela Murtosa desde 1993. A diversidade registada chegou mesmo a incluir nacionalidades diferentes, tais como Angola, São Tomé e Moçambique. No universo dos oficiais, Ílhavo ocupou sempre a primeira posição em todo o período, tanto isolada como empatada com outros concelhos. O mesmo se pode


dizer, salvo alguns anos, da mestrança. Apesar da passagem para o regime democrático ter tido efeitos variados nestes grupos, que vieram quebrar uma certa estabilidade dos registos das naturalidades, as consequências não seriam tão profundas como as já verificadas na totalidade das tripulações e, por inerência, na marinhagem. Estes dados reforçam a importância nacional de Ílhavo no empreendimento da pesca do bacalhau, a um nível mais notável desde a aplicação das políticas do Estado Novo. Esta situação acabou por consolidar um importante polo de mãode-obra e de capital, que se manteve e se adaptou às novas realidades, sobrevivendo até aos dias de hoje. Por outro lado, as memórias e vivências, que se tornaram passadas com a profunda adaptação do setor nas últimas décadas, fizeram surgir o interesse pela sua preservação enquanto património, um objetivo que o Museu Marítimo de Ílhavo tomou como principal. Por terem tornado possíveis as duras campanhas, os tripulantes da frota bacalhoeira, no geral, e do Santo André, em particular, preservam recordações individuais e coletivas de grande valor patrimonial. As lembranças, que outrora deram vida ao navio, poderão hoje voltar a “humanizá-lo”. Esta realidade é tão ou mais preciosa, porque encerra a capacidade de memória, nos seus mais variados campos, reduto importante para completar a visão do passado a partir das fontes escritas e reforçar o património, personificando-o e permitindo que chegue a públicos mais vastos. Aliado a este projeto, uma análise mais atenta de vários fatores socioeconómicos, como a progressão ou a estabilidade profissionais, apenas irá complementar e enriquecer o caráter individual e qualitativo que os relatos orais podem oferecer.

BAIXO: Tripulantes a concertarem as redes na campanha de 1985. Fotografia gentilmente cedida por Helena Julião).

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TIPOS DE DESENHO DE PROA USADOS PELOS NAVIOS PARTE 1

entanto, têm surgido novos desenhos baseados nos antigos conceitos, aos quais foram introduzidas alterações através de investigação, desenvolvimento e inovação, por recurso às TIC (Tecnologias de Informação e das Comunicações). Em termos gerais, podemos considerar quatro categorias principais de configuração de proa:

ANTÓNIO COSTA

Pense no navio mais bonito que alguma vez viu e visualize aquilo que mais lhe chamou a atenção. Confesso que a característica que neles mais me fascina é a proa. É uma parte importantíssima do navio, tanto pela parte estética como pela ciência. O navio desloca-se num meio que oferece maior resistência em comparação com o ar. Este facto requer que o projeto de construção seja tal, que os componentes de resistência inerentes ao navio sejam mínimos. Especialmente, no caso de navios com formas mais cheias, nos quais as componentes da Resistência à Quebra de Onda se tornam mais significativos, por comparação com navios com formas delgadas e mais curvas, que têm menor Resistência à Criação de Ondas. Felizmente, isso pode ser controlado pela forma como a água e as ondas interagem com o navio na entrada na extremidade dianteira. A proa é onde a frente do navio contata com a água, em primeiro lugar, junto à linha de água (seja ela a de construção, ou a considerada), no seu movimento avante. Olhando para os diferentes desenhos de proa hoje existentes, a maioria das configurações possíveis, ou a combinação de duas ou mais delas, foi já testada. No 10 | BORDO LIVRE 164 | JUL-AGO 2021

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A proa normal (sem bolbo), A proa redonda, A proa com bolbo, Outras proas especiais (e específicas)

1. A PROA NORMAL (TRADICIONAL)

A proa dita “normal”, desenvolveu-se a partir da sua antecessora proa Vertical (straight-stem). Por vezes, é confundida com a proa Direita (plumb), que na sua parte inferior tem uma leve deflexão. A proa Lançada é um dos tipos mais tradicionais de desenho de proa e, também, dos mais usados. O lançamento1 é o ângulo de inclinação da roda de proa para vante. A roda de proa é plana. Não possui curvas. O ângulo, agudo, deve ser inferior a 45 graus. A proa lançada, às vezes, surge curvada para vante na sua parte superior, em bico, formando a chamada proa de Beque, como nos clippers. Além de facilitar os movimentos de caturro, o prolongamento mantém a água fora do convés. Como o nome sugere, a proa de Colher assemelha-se à silhueta de uma colher, dando uma aparência convexa à roda de proa. Estes arranjos têm, em geral, curvatura à linha de água, criando um padrão de esteira caraterístico, produzindo Resistência à Criação de Ondas. Além disso, uma proa deste formato aumenta a estabilidade inicial do navio, tornando-o mais largo na proa do que o de proa lançada, no ataque às ondas. Lançamento – Obliquidade para vante de todas as obras de proa. O ângulo é formado com a perpendicular.

A proa Arqueada, ou de forma Maier, é pouco usual e, no entanto, apresenta a vantagem de melhorar a velocidade e o comportamento do navio no mar; tem sido adotada por alguns navios de carga e quebra-gelos. Quem se lembra do N/T Angol? A proa de Esporão era vulgar nos antigos navios como arma de guerra por abalroamento. Hoje, foi recuperada e redesenhada, permitindo novas e importantes características em navios modernos. Esse tipo de desenho é hoje conhecido por proa Inversa (ou invertida).

2. PROAS REDONDAS (PARABÓLICAS E CILÍNDRICAS)

Por vezes, os projetistas desenham os navios com proas "cegas", por oposição à usual aparência afilada da seção da proa. Nestas se inclui a proa Parabólica, que se assemelha à curva matemática parábola. Lembremo-nos um pouco da matemática do liceu e do desenho da elipse: imaginemos o eixo menor como a boca do navio. Só por si, às vezes, projetar uma elipse como casco de um navio não é suficiente. Tem de se combinar com a forma parabólica para conseguir um fluxo maior em torno do casco. Estas proas elipsoides podem ser combinadas com bolbos, para levar em consideração a resistência à quebra de ondas (fig. 2). Uma “prima” próxima da anterior é a proa Bojuda ou Arredondada, que surge em projetos de formas mais cheias à linha de água máxima, ideal para uso em condições de carga total. Atualmente, estas proas, com formas mais completas, estão a ser usadas nos grandes graneleiros.

3. PROAS COM BOLBO

O bolbo é uma extensão (ou protuberância) do casco imediatamente abaixo da linha de água de carga máxima. O objetivo básico é criar uma zona de baixa pressão para reduzir, ou eliminar, a onda de proa e reduzir a resistência


resultante. O bolbo, como peça fundamental que hoje conhecemos, foi descoberto, não inventado. Antes de 1900, testes de reboque com navios de guerra nos EUA demonstraram que o esporão abaixo da linha de água diminuía a resistência. Num outro momento, um modelo de barco torpedeiro mostrou que um tubo de descarga de torpedo subaquático à proa também reduzia a resistência. Apesar da continuidade da sua presença, tanto a finalidade quanto a perceção do bolbo mudaram ao longo dos anos. A primeira proa de Bolbo foi usada em 1912 num navio da Marinha dos Estados Unidos. Apenas em 1929 surgiram os primeiros navios civis equipados com bolbo, os navios de passageiros alemães Bremen e Europa pertencentes ao Norddeutscher Lloyd. No entanto, a sua aplicação mais generalizada no transporte marítimo comercial apenas aconteceu na década de 1950. Hoje, o bolbo é uma componente normal dos navios modernos e tem sido desenhado e redesenhado, estando presente em quase todo o tipo de desenho de proa, muitas vezes, mal se percebendo a sua presença, tal a sofisticação da sua inserção.

4.OUTRAS ESPECIAIS

CIMA. Figura 1: A proa é projetada para permitir que o casco passe com eficiência pela água e o seu formato varia de acordo com a velocidade pretendida, os mares ou vias a navegar e a sua função. BAIXO: Figura 2: As proas redondas embora tenham uma resistência mínima à formação de ondas, desde que projetadas com atenção à curvatura da forma e da roda de proa aos diferentes calados, não cortam as águas. São comuns em navios mais lentos.

PROAS

Como sabemos, existe um tipo especial de navio usado nas regiões de água gelada, comumente designado por “Quebra-gelos”. Estes navios são concebidos para quebrar blocos e placas de gelo em áreas onde a água se encontra, maioritariamente, gelada. Na verdade, o desenho de proa Quebragelos é específico, pois o navio precisa cortar a água gelada. Enquanto outros navios apresentam uma proa delgada, a proa dos quebra-gelos tem uma estrutura superior mais arredondada para ajudar a embarcação a quebrar o gelo usando o seu próprio peso e avançar. No entanto, nem todos os navios que JUL-AGO 2021 | BORDO LIVRE 164 | 11


CIMA para BAIXO. Figura 3: O bolbo é a peça tecnológica mais vista da arquitetura naval atual, embora o seu uso remonte à antiguidade. O seu símbolo ISO é visto em quase todos os tipos de navio. Figura 4: Os bolbos de proa têm em uma enorme variedade de formas e tamanhos, desde o proeminente ao totalmente carenado. Figura 5: A zona reforçada de contacto é limitada pela linha superior (UWIL) e linha inferior de água gelada (LWIL). Essa zona respeita as regras de classificação (Ice Class rules), atendendo a resistência, espessura e rigidez do gelo.

navegam em zonas geladas são quebragelos, alguns são denominados como navios de “classe de gelo” ou “classe polar”, construídos de acordo com as “Ice Class rules”.

5. OS NOVOS DESENHOS DE PROA

A economia de energia e a proteção ambiental, através do menor teor de carbono emitido para a atmosfera, são as duas tendências inevitáveis na indústria de construção naval. Estes dois objetivos promoveram o rápido desenvolvimento da pesquisa em projeto e otimização de navios. E, aí, se incluem novos desenvolvimentos na conceção da proa, na maior parte das vezes, direcionando os resultados para o tipo de utilização do navio e a zona do globo onde vai operar – velocidade de trabalho, calado, condições de mar, gelo, etc. Melhora-se, portanto, a hidrodinâmica, a economia e o ambiente. Como no início referi, os novos desenhos partem, salvo raras exceções, dos modelos convencionais mais antigos. Surgem é, bastas vezes, com designações comerciais, parecendo ao leigo ou ao mais incauto, não diferirem entre elas ou do que já viram anos atrás. Além de compararem a inclusão de bolbo nas proas de navios, os projetistas têm procurado estudar outras conceções geométricas, em especial, porque existe uma enorme variedade de tipos de navios, que variam na sua geometria, dimensões e aspeto, sendo que este último fator está, sobretudo, relacionado com a sua utilização. Examinemos, de perto, as razões das alterações, que vão muito além da necessidade de “inventar” novas especificações e estilos, apenas para impressionar. Quais são, então, as verdadeiras vantagens de uma proa vertical, ou mesmo inversa, e as novas formas que a acompanham, tanto do ponto de vista técnico, ou seja, desempenho, segurança e conforto, quanto do ponto de vista 12 | BORDO LIVRE 164 | JUL-AGO 2021


estético e forma de uso. Em primeiro lugar, o comportamento no mar é aprimorado. Na verdade, proas direitas e afiladas ou, mesmo, proas “inversas”, são inevitavelmente, combinadas com seções de vante, igualmente, estreitas e elegantes que, se por um lado têm a desvantagem de reduzir o volume acima da linha de água, por outro, têm a vantagem de serem “wave piercing”2. Essas formas, na verdade, impedem que o casco siga o movimento da onda, perfurando-a, literalmente. Este pormenor, ligado ao comprimento do casco, ou melhor, uma alta relação L / B, permite manter uma velocidade elevada, mesmo em situação de vaga moderada. A figura 7 pretende ilustrar a grande tensão estrutural a que o navio é submetido por causa do "bater na vaga". Isso explica por que os navios com proa tradicional são forçados a reduzir a velocidade, em condições de mar agitado de proa.

CIMA: Figura 6: Essas “novas” formas de casco não são, apenas, uma questão de moda, elas devem melhorar o desempenho, a segurança, o conforto (de quem neles trabalha) e o ambiente. BAIXO: Figura 7: Na verdade, as formas “wave piercing” limitam o caturrar e o movimento sussultatório (o movimento oscilatório de cavalgar as ondas – cabeceio e arfagem conjugados), reduzindo o impacto estrutural desses efeitos.

Que perfura as ondas. O casco de um barco tem uma proa muito fina, com flutuabilidade reduzida nos delgados. Quando em contato com uma onda, a menor flutuabilidade da proa origina que o casco perfure a água, em vez de lhe passar por cima, reduzindo a resistência do casco à formação de ondas.

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SABEDORIA DO MAR

QUEM SÃO OS MARÍTIMOS

ALBERTO FONTES No século XVIII, a institucionalização do ensino náutico em Portugal provocou mudanças significativas na transmissão do conhecimento da arte de navegar. A lição dada pelo professor de náutica, o cosmógrafo mor, desapareceu para dar lugar a uma instrução mais profissional, apoiada pelo aparecimento da Academia Real de Marinha (1779), da Academia Real de Guardas Marinhas (1782), ambas em Lisboa, e da Academia Real de Marinha e Comércio no Porto (1803). Professores – formados pela nova Faculdade de Matemática da Universidade de Coimbra – e novos currículos: eis a fórmula encontrada para a formação dos oficiais de Marinha, neste que foi um tempo de novidade e de transição no ensino náutico, entre o aprender fazendo, nos conveses dos navios e uma formação matemática que obrigava à presença nos bancos da escola. Mas o drama para os marinheiros da navegação à vela adensa-se com a descida aos infernos, quando em 1840 surge a “marinha do fogo” com a propulsão dos navios a vapor, fazendo desaparecer a navegação comercial à vela. Foi ultrapassando variadas e sucessivas mudanças radicais que os marítimos chegaram ao século XXI, sempre com a ambição de ir mais longe, num desejo de dominar o desconhecido, num espírito de viagem e descoberta, num misto de História e desenvolvimento tecnológico. 14 | BORDO LIVRE 164 | JUL-AGO 2021

Novos instrumentos ao dispor dos marítimos, instalados em navios, cada vez com mais complexidade na sua condução até ao destino, contra ventos, correntes e marés, continuam a medir forças com ondas gigantes, fugindo dos icebergues, tudo afrontando, pela “aventura marítima “, pelo dever da protecção do navio, dos passageiros e pela entrega da carga dos seus carregadores. Ser marítimo é trabalho para uma vida. Daí que muitos são aqueles que ao deixarem o mar, consideram da maior importância publicar em livro os seus conhecimentos adquiridos ou as suas vivencias perante a sociedade do seu tempo, para memória dos Homens. Uma tripulação para um navio seja ele qual for, sempre constituiu para os armadores uma enorme dor de cabeça. Os custos associados ao posto de trabalho, as obrigações e garantias, as responsabilidades sociais, a formação para o posto de trabalho a bordo ao que se junta ultimamente a garantia aos tripulantes, para os motivar a embarcar, condições de vida a bordo em tudo semelhantes ao que podem usufruir nas profissões exercidas em terra. Horários de trabalho, tempos de descanso, boa alimentação, ginásio para actividade física, acesso à internet com disponibilidade para se poderem conectar com família e amigos, além de capacidade na rede para poderem descar-

regar filmes e música, sendo tudo isto, condições essenciais que devem estar ao dispor dos marítimos quando embarcados, para um armador poder aspirar a ter o seu navio devidamente tripulado. Para evitar que ainda possam existir armadores exploradores das suas tripulações, temos a Organização Internacional do Trabalho que desde 1930, procura assegurar trabalho digno através de normas actualizadas, contidas em Convenções e Recomendações para o Trabalho Marítimo, como as que aqui e agora referimos: • Convenção sobre o Trabalho Forçado, 1930; • Convenção sobre a Liberdade Sindical e a Protecção do Direito Sindical, 1948; • Convenção sobre Direito de Organização e de Negociação Colectiva, 1949; • Convenção sobre Igualdade de Remuneração, 1951; • Convenção sobre a Abolição do Trabalho Forçado, 1957; • Convenção sobre a Discriminação (emprego e profissão), 1958; • Convenção sobre Idade Mínima de Admissão ao Emprego, 1973; • Convenção sobre as Piores Formas de Trabalho das Crianças, 1999; • Declaração da OIT relativa aos Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, 1998; • Normas Internacionais sobre Segurança dos Navios; • Convenção Internacional para Salvaguarda da Vida Humana no Mar, 1974;


• Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar, 1972; • Convenção Internacional sobre Normas de Formação, de Certificação e de Serviço de Quartos para os Marítimos, 1978; • Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, 1982; • Deveres e Obrigações que incumbem ao Estado de bandeira, no que respeita a condições de trabalho, lotações e questões sociais a bordo dos navios, art.º. 94 Direito Mar ,1972; • Convenção do Trabalho Marítimo, 2006.

Em Portugal a Lei nº 146/2015 de 9 setembro regula a actividade do marítimo a bordo de navios que arvorem bandeira portuguesa, bem como as responsabilidades do Estado português enquanto Estado de bandeira ou do porto. Se um marítimo tem toda esta legislação dedicada, qual a razão por que o comum cidadão normalmente ignora a indústria do shipping e os seus tripulantes? Em Portugal não existe o espírito da importância do transporte marítimo e este sente–se esquecido e ignorado por aqueles a quem servem. Atentemos no discurso de Sabrina Chao, em maio 2021 na sua tomada de posse, como Presidente da BIMCO – Baltic and Internacional Maritime Council “… uma das minhas prioridades chave como Presidente, será usar esta oportunidade

para aumentar o foco, para a importância da nossa indústria e dos nossos marítimos. A pandemia evidenciou a falta de conhecimento dos decisores políticos acerca do importante papel que temos para a sociedade, assumindo a inacção quando se exigiam soluções urgentes para a crise da rendição de tripulações assim como da pirataria marítima. Precisamos de fazer-nos ouvir fora da nossa indústria...” De facto, não se mudam mentalidades a falar apenas para o nosso público-alvo e dentro da nossa bolha de contactos e redes sociais onde toda gente pensa da mesma forma. Em tempo de paz a Marinha de Comércio é uma das bases da civilização, pela sua capacidade de criar elos e trocas entre nações. Não basta ao armador construir navios novos e modernos, pois o seu maior valor está na competência das suas tripulações. Contudo, segundo recente estatística da Administração Marítima dos Estados Unidos em 2025, a carência mundial será de 147 000 marítimos. O desenvolvimento de novas e avançadas tecnologias, está a exercer influência abrangente sobre o sector do transporte marítimo, o que aprofunda ainda mais a integração do transporte na cadeia de abastecimento global, tornando–o mais suave, confiável e eficiente. Por sua vez a automação

continuará com a tendência de redução dos custos e mitigar os erros do pessoal a bordo. Navios não tripulados / remotamente controlados, dependerão de sistemas complexos e interdependentes, havendo sistemas de comunicação e troca digital de dados, fazendo o interface com múltiplos sistemas e sensores de navegação e de engenharia autónoma presentes a bordo. Tudo isto vai trazer desafios técnicos significativos, podendo as tarefas de supervisão a bordo para as tripulações, requerer um novo conjunto de habilidades e, novos regimes de treino. Decisões de alto impacto serão implementadas de forma a dar à tripulação, a oportunidade de interceder e se sobrepor a elas, caso sejam alvo de cyber crime quando no mar. Para este exercício de funções a bordo, aos tripulantes será exigida muita motivação e vontade em participar para a solução. Não é com o sentimento generalizado de desconsideração pela indústria, que se espera ver bem-sucedidos os esforços e recursos dos armadores no recrutamento e acolhimento dos tripulantes. Não se concretizará esse objectivo se não se encetarem processos de comunicação assertivos que divulguem as actividades dos tripulantes a bordo dos navios, que estão ao serviço da economia e da sociedade globalmente. JUL-AGO 2021 | BORDO LIVRE 164 | 15


O "ANGOCHE" E EU BAIXO. Fundeado em Quelimane. DIREITA. Parados em alto-mar com cabo reboque passado ao” Esso Port Dikson”. Fotografia tirada provavelmente da fragata “H. Capelo”.

MANUEL SEABRA E MELO

Comemora-se este ano o 50º aniversário da sabotagem do navio “Angoche”, propriedade da Companhia Nacional de Navegação, explorado pela sua subsidiária a Companhia Moçambicana de Navegação. Por esse motivo, fui desafiado a nesta altura, escrever algo sobre aquele navio uma vez que ele fez parte da minha vida de marinheiro. Cheguei a Lourenço Marques (hoje Maputo) no fim de outubro de 1963 a bordo do “Sofala” da CNN e logo recebi a

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visita do Inspetor da CNN em Moçambique que me convidou a desembarcar e seguir de avião para Quelimane a fim de embarcar no “Angoche”, uma vez que o 3º Piloto que lá estava tinha desembarcado. A novidade, a aventura depois dos 8 meses chatos na Soponata para fazer derrotas e principalmente a remuneração composta por um ordenado depositado em Lisboa e outro em escudos moçambicanos pagos em Moçambique, depressa me convenceram a fazer a mala e apanhar o avião para Quelimane no dia 2 de novembro de 1963. E é neste dia que começa a minha vida no “Angoche” que se vai prolongar por 19 meses. O período que estive no “Angoche” foi de facto uma boa escola de bons e maus momentos e acima de tudo de muito trabalho, especialmente nos pequenos portos que não tinham estiva organizada. Dos bons momentos, estou a recordarme das noites passadas em Lourenço Marques na Rua Rosa Araújo onde,

porta sim porta não, havia um bar ou um cabaret, dos jantares no Clube Naval, das idas à Costa do Sol, do Frango à Piri-piri, da Cervejaria Nacional onde a imperial era acompanhada por camarão frito ou estufado em lugar do tremoço, das estadias na Beira com passagem obrigatória pelo Moulin Rouge e outros locais e eram muitos, de diversão noturna e ainda das grandes almoçaradas e jantaradas ao longo de todos os portos de Moçambique. Dos maus, já nem me lembro… Não resisto, no entanto, a falar-vos de um episódio que ocorreu na única escala que o “Angoche” fez na Ilha do Ibo, capital da província de Cabo Delgado no séc. XIX com uma fortaleza e um fortim ainda em bom estado, comprovativo da importância da ilha naquela época e que escalámos para fazer um embarque de copra a ser baldeada para os navios de longo curso em Lourenço Marques. Algumas semanas antes, embarcou no “Angoche” um terceiro maquinista viciado em caça submarina que me desafiou para irmos mergulhar num baixo relativamente perto do fundeadouro do navio e próximo da ilha. Acedi, sugerindo a utilização da baleeira do navio equipada com uma vela porque os grandes marinheiros, que era o meu caso, navegam à vela. Arreámos a baleira por volta das 8 da manhã e lá seguimos para oeste com um belo vento na popa. Pelas 1100 horas depois de vários mergulhos na água a uns belos 30º, decidimos regressar a tempo do almoço e aí, começaram os nossos problemas, principalmente os meus como piloto, porque, com o vento na proa e a baleeira leve só com dois tripulantes, por mais bordadas que fizéssemos, íamo-nos afastando cada vez mais do navio aproximando-nos do continente.


Apesar da minha “vasta” experiência no mar, santa ignorância, não me ocorreu que o vento da popa se transformaria em vento da proa quando regressássemos. O tempo passava e o estômago reclamava. Finalmente decidi passar pela vergonha de, utilizando o “walkietalkie” com que o navio tinha sido recentemente equipado, pedir que mandassem o reboque dos batelões. Chegámos ao navio por volta das 1600 horas. A “ensaboadela” do Imediato Mello Machado era inevitável. Muitas histórias poderia contar passando pelas caçadas noturnas onde eramos literalmente comidos pelos mosquitos, das viagens de piroga no Chinde com noite serrada para jantaradas em terra, dos reboques dos batelões de açúcar que também transportavam passageiros e cujo sistema de propulsão era composto por uma máquina a vapor que movia uma roda de pás à popa uma vez que só embarcações deste tipo conseguiriam navegar neste rio, dos embarques de sacos de 100 kgs de açúcar a partir de velhos navios fundeados a que o “Angoche” atracava e que serviam de armazém mas que já só tinham os porões e uma caldeira para alimentar os guinchos dos paus de carga, e tantas outras… Desembarquei em Lourenço Marques em 19/05/65 e segui para Lisboa como passageiro no paquete “Moçambique”.

Temendo que a minha memória ao fim de 50 anos me atraiçoasse, consultei o que na internet existe sobre a sabotagem ao “Angoche” e concluí: Seis anos depois do meu desembarque, no dia 24 de abril de 1971 o “Angoche” não chega a Porto Amélia (atual Pemba) depois de ter saído de Nacala no dia anterior com um carregamento, na sua grande maioria, de material de guerra principalmente de bombas de avião que se destinavam a Mueda, zona de muita atividade da guerrilha da Frelimo. Há vários datas como sendo o dia em que é avistado pelo petroleiro de bandeira panamiana “Esso Port Dickson” a mais de 30 milhas da costa, entre Quelimane e a Beira, mas a apontada na Internet com mais frequência é o dia 24 o que a ser assim implicaria que o navio após a saída de Nacala tivesse navegado pelos seus próprios meios para o sul aproveitando as correntes que naquela zona são no sentido nortesul. Mesmo assim, acho impossível que o navio que fazia 10 a 12 nós mais, eventualmente, dois de corrente, conseguisse percorrer em tão pouco tempo tal distância que é mais de 350 milhas. Das duas uma, ou a data da descoberta do navio está errada ou então o local do encontro foi bem mais ao norte e eventualmente mais próximo da costa. A tripulação do petroleiro abordou o navio e combateu o incêndio que ainda grassava na superestrutura da popa. O navio não tinha tripulação e os únicos

seres vivos encontrados foram um cão, muito provavelmente uma cadela que encontrei em terra numa das passagens por Inhambane, que decidi levar para bordo e que batizei, sabe se lá porquê de “Josefina”, e um gato. O facto de o navio ter sido encontrado abandonado fez com que, ao abrigo do Direito Internacional Marítimo, o mesmo passasse a ser propriedade do navio e da tripulação que o encontrou. Por isso o comandante do petroleiro decidiu rebocá-lo para Durban. A 3 de maio, os navios são avistados pela fragata “Hermenegildo Capelo”, numa altura em que o petroleiro se preparava para passar o cabo de reboque ao salvádego alemão “Baltic”. Imagino que depois de complicadas negociações, a fragata “H. Capelo” conseguiu “forçar” o reboque a seguir com o “Angoche” para Lourenço Marques onde chegaram a 6 de maio. Várias teorias sobre o que se passou correram durante meses e anos, mas cinquenta anos depois, tudo se encontra envolvido em nevoeiro e continuase sem saber o que aconteceu à tripulação que era composta pelo comandante Adolfo Bernardino, imediato João Tavares, 1º maquinista António Sardo, 2º maquinista João Pascoal, 3º maquinista Floriano Matias, telegrafista Tormenta da Silva, eletricista José Coelho, padeiro Carlos Soares, contramestre José Estrela, maioritariamente naturais da Ericeira, 14 marinheiros JUL-AGO 2021 | BORDO LIVRE 164 | 17


moçambicanos e um passageiro empregado dos CFM a quem o Comandante tinha dado uma boleia para Porto Amélia. Tudo leva a crer que, antes da saída de Nacala, foram colocadas a bordo duas bombas-relógio uma na ponte alta junto à chaminé e por cima do camarote do comandante, e a outra na conduta de ventilação da casa da máquina. A versão oficial com base no relatório da PIDE/DGS foi que e resumindo, as bombas teriam sido colocadas a bordo durante a estadia em Nacala, que a deflagração das bombas teria ocorrido poucas horas depois, teria morto a maior parte da tripulação e os que se salvaram para fugir ao incêndio, abandonaram o navio e foram atacados por tubarões.

Agora pergunto eu: e a tripulação que se alojava no castelo da proa, zona que as bombas não afetaram e que apresentava indícios de ter sido abandonada à pressa, o que lhes aconteceu? Mais uma pergunta: quem terá estado numa baleeira, ou terá sido uma jangada que estava montada sobre um contentor frigorifico estivado entre o porão nº 1 e os alojamentos da tripulação, que foi encontrada numa praia ao sul de Porto Amélia alguns dias mais tarde? Mas outras teorias surgiram como por exemplo que a ação foi levada a cabo por oficias das forças armadas portuguesas dissidentes em conjunto com militantes da ARA (Acção Revolucionária Armada), que a operação tinha sido concebida por uma organização de extrema-direita de civis portugueses

O estado em que ficou o camarote do comandante. A seta indica o rasgo da chapa causado pela bomba.

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que controlavam a maioria dos bons negócios em Moçambique, que o assalto ao navio teria sido feito por um submarino soviético e isto para falar só de algumas. Em agosto de 1971 chego a Lourenço Marques como Imediato do “Niassa,” na altura utilizado como transporte de tropas, e o “Angoche” lá estava, atracado no cais da cabotagem. Cheio de curiosidade, logo que foi possível, fui ver o navio que tinha colocada uma escada de portaló que dava acesso ao convés que me apressei a subir, uma vez que não havia ninguém por perto que me pudesse impedir de o fazer. O porão número dois, que tinha a escotilha parcialmente aberta, continuava cheio de bombas de aviação. Ao mesmo nível do convés eram os alojamentos da mestragem, cozinha, etc., e neste pavimento só existiam as anteparas de aço e detritos pulverizados por todo o lado. Na copa, alguns pratos de porcelana ainda inteiros e outros em pó, o mesmo acontecendo nos pisos superiores. Das escadas que davam acesso aos pisos seguintes onde se encontravam primeiro os camarotes dos oficiais e a messe e em seguida à ponte e camarote do comandante e a estação de TSF, nem sinais. Impossibilitado de aceder por dentro aos pisos superiores, fui pelo exterior à ponte alta e, no lado de estibordo junto à saia da chaminé e por cimo do camarote do comandante, lá estava uma abertura no pavimento com a chapa torcida para o interior que não tenho dúvidas em admitir que foi ali que foi colocada uma das bombas que esteve na origem do ataque ao “Angoche”. E é assim que cinquenta anos depois, nada se sabe sobre o que realmente aconteceu ao “Angoche” e à sua tripulação no dia 24/04/1971. O navio acabou por ser vendido para a sucata a uma empresa local em março de 1972.


MISTÉRIOS DO MAR PROFUNDO O “MARY CELESTE”

Sob o convés, um cenário arrepiante indicava uma fuga apressada. Na cama do capitão estavam espalhadas roupas, cobertores e a boneca de uma criança, como se às pressas, os passageiros tivessem sido evacuados.

ANTÓNIO COSTA

Os oceanos cobrem mais de 70% do nosso planeta pelo que não é de admirar que as suas profundezas, aparentemente, impenetráveis, tenham fornecido uma série de mistérios fascinantes, desde navios perdidos a monstros misteriosos. Nos próximos números da revista, apresentam-se alguns desses mistérios – alguns dos quais explicados, pelo menos parcialmente, enquanto outros permanecem, verdadeiramente, intrigantes.

Em 5 de dezembro de 1872, a tripulação do navio britânico Dei Gratia avistou um navio à deriva a cerca de 400 milhas da costa dos Açores. Aproximaram-se do “Mary Celeste” para oferecer ajuda, mas após embarcarem no navio ficaram chocados por o encontrar sem tripulação. A tripulação havia desaparecido, sem deixar vestígios, com os seus pertences ainda acomodados nas suas camarinhas, seis meses de comida e bebida intocadas e a valiosa carga de álcool industrial ainda, na sua quase totalidade, arrumada. As únicas pistas eram um metro e meio de água no porão, um bote salva-vidas em falta e uma bomba desmontada. O “Mary Celeste” foi rebocado pelo Dei Gratia até o Estreito de Gibraltar, onde o representante da corte britânica e o cônsul norte-americano, Horatio Spra-

gue, embarcaram, com o objetivo de entender o que havia sucedido. Foi o início de um mistério, que perdura no tempo, sobre o que aconteceu à tripulação e por que razão foi abandonado um navio, aparentemente, em condição adequada de navegabilidade. Inúmeras teorias foram sugeridas, incluindo a do escritor policial Arthur Conan Doyle, que escreveu um conto em 1884, sugerindo que a tripulação havia sido vítima de um ex-escravo motivado pela vingança. Uma teoria mais recente apontou o dedo ao mar agitado e para a bomba de esgoto avariada, argumentando que esses fatores forçaram o capitão a ordenar o abandono do navio. Como a tripulação desaparecida nunca foi localizada, parece improvável que algum dia haja uma resposta satisfatória para o enigma.

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A MARINHA MERCANTE NACIONAL

JOAQUIM M. MARQUES

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Este singelo “depoimento” é, naturalmente, subjectivo, mas traduz o sentimento fruto de muitos anos de formação, experiência e sobretudo vivência no que o título documenta, e que parafraseando o Comandante da Armada António Pereira de Matos, que foi o grande impulsionador e timoneiro da Liga Naval Portuguesa, que a Confraria Marítima – Liga Naval Portuguesa em boa hora integrou, leva a afirmar que, a Marinha Mercante Portuguesa, chegou ao “zero absoluto”. Vem o título, propositadamente e a propósito, enfatizar a razão da designação Nacional, tão ao gosto do Estado Novo, em que não só no Estado, mas também nos empreendedores privados, se perseguia uma ideologia nacional, a qual recorrentemente incluía o adjectivo na sua própria designação comercial (Companhia Nacional de Navegação, Fábrica Nacional de Cordoaria, Fábrica Nacional de Sabões, Bolachas Nacional, etc.) e que tinha como objectivo estimular o carácter da produção e consumo a um todo território, unido sob as mesmas Língua, História e Bandeira, e que se pretendia ser uno e continuado e indivisível. Foi assim que o ressurgimento da Marinha Mercante Nacional foi feito, maioritariamente pelo Estado, mas com a grande e imprescindível participação dos privados que a ela estavam ligados. E isto porque a Marinha Mercante foi reerguida estrutural e economicamente para uma realidade Nacional que compreendia muito bem o Portugal Continental, Insular e Ultramarino, e compreendia muito mal a competitividade e o mercado do transporte marítimo internacional. Deveremos ser justos com algumas empresas que, com maior alcance e alicerçadas nos grupos que integravam, como foi o caso do armador Sociedade Geral, integrante do mundo CUF –

Companhia União Fabril, já nos idos anos 50 e 60 do século XX estabeleciam carreiras internacionais, escalando regularmente portos do Norte da Europa e Estados Unidos, não só para descarga de produtos ultramarinos, carreira que nunca menosprezaram, mas sendo competitivas também com as demais frotas mercantes internacionais nos transportes marítimos, muito para além da realidade nacional portuguesa. Mas foi esta realidade que sobretudo moldou o ressurgimento, a partir do pós-guerra 39/45, já que se intensificaram com o Portugal Ultramarino as trocas comerciais e os transportes de passageiros, estes com a construção de paquetes (designação dos navios cuja velocidade e número de portos escalados permitiam serem utilizados no transporte de correio), navios em quase tudo similares aos “ocean liners” internacionais, mas também, e não despicientemente, transportando nos seus porões quantidades muito apreciáveis de carga, sendo frequentemente "cargueiros" disfarçados de paquetes (como p/ ex.º os “N/T Pátria” “N/T IMPÉRIO” “N/M ANGOLA” “N/M MOÇAMBIQUE”, cujas T.A.B. eram cerca de 13.000 e as T.A.L. de cerca de 7.000). Essa realidade económico-políticocomercial, a que não seria de modo algum estranho o “proteccionismo de bandeira” que assegurava uma não concorrência das outras marinhas mercantes não nacionais nos transportes de e para o Portugal Ultramarino, condicionava praticamente tudo: os financiamentos à construção, as taxas e os serviços das dívidas e também, como nos exemplos atrás citados, o próprio tipo de construção dos navios, ajustado sobretudo quer à tipologia não só das cargas ultramarinas, como também dos passageiros que as utilizavam, não só nos trans-


portes metrópole – ultramar, mas, e também, nos transportes de passageiros inter – ultramar, observandose com frequência nos navios de carga a existência de cobertas superiores dotadas de vigias em ambos os bordos para os transportes de tropa / trabalhadores-contratados, em camaratas então montadas para o efeito e sendo o caso, nessas cobertas. No final da década de 60 do século XX a Marinha Marcante Nacional atingia o seu apogeu, quer em número de navios existentes (mais de 100), em construção e em compra a outras marinhas e/ou estaleiros, quer em transporte de passageiros (com uma capacidade superior a 8.000) quer ainda de carga (com uma arqueação total superior a 1 milhão de T.A.B) o que fazia dela, Marinha Mercante, mas apenas de per si, uma das melhores da Europa e das mais reconhecidas, quer pelas qualidades dos seus profissionais, quer pela apresentação e qualidade dos seus navios. Logo no início da década de 70 do século passado, o crescimento abrupto, inesperado, mas eficiente e ultra rápido do transporte aéreo de passageiros, com a ocorrência dos motores a jacto, tornaram o transporte marítimo de passageiros rapidamente obsoleto, quer em tempo (7 dias de Lisboa a Luanda via marítima contra 7 horas via aérea) quer em preço, conseguindo as companhias aéreas oferecer valores de transporte aéreo inferiores aos do marítimo. Assim e de uma assentada, ainda antes da fracturante data de 1974, praticamente todos os paquetes foram vendidos (“SANTA MARIA”, “VERA CRUZ”, “PÁTRIA”, “IMPÉRIO”, “UÍGE”, “ANGOLA”, “MOÇAMBIQUE”, “NIASSA”,“ ÍNDIA“, “TIMOR”, ANGRA DO HEROÍSMO”, “AMÉLIA DE MELLO”, ficando a agonizar os “flâmulas” “INFANTE DOM HENRIQUE”, “PRÍNCIPE PERFEITO” e

“FUNCHAL” (este o último e único existente, mas de duvidoso futuro…) Quando estalou o 25 de Abril de 1974, a “revolução francesa” da nossa realidade multi racial, geográfica e social, tudo teve de ser, ou teria de ser, reequacionado. A Marinha Mercante Nacional também. Só que o não foi. A vertiginosa queda da procura de transporte no ultramar, concomitante com a também abrupta quebra da produção nacionalultramarina agrícola e fabril, tornou a nossa frota mercante desajustada e incapaz de concorrer a um mercado internacional de transporte marítimo, já na altura excedentário face, e sobretudo, à primeira crise petrolífera de 1973. Para além desta realidade material, sobrepôs-se a realidade política, quer na precipitada independência concedida aos Estados de língua oficial portuguesa, quer na reorganização social do Estado, o que deixou, e ainda marca, profundas cicatrizes nos tecidos socioeconómicos, a que a Marinha Mercante não foi furtada, e que predisse a sua extinção. Poder e dever-se-á argumentar que outros tantos países europeus, alguns deles até sem mesmo terem Mar, mantêm e frutificam as “suas” Marinhas Mercantes. Reconhecemos que isso é verdade, mas sem o artigo possessivo. É que presentemente as Marinhas, e também os Portos e de algum modo as grandes empresas, perderam as suas “nacionalidades” e são conhecidas e negociadas, não como Noruegueses, Suecos, Espanhóis ou Portugueses, mas sim pelos grupos a que pertencem MAERSK, NEDLLOYD, MSC, PSA, PRISA, GALP, PORTUGAL TELECOM, etc., em que os capitais, ao arrepio da realidade portuguesa anterior, são internacionais e frequentemente de difícil assumida nacionalidade. Por último, a Europa. Quando em 1986 integrámos esta

Comunidade Económica, e passados uns escassos 6 anos, a União Europeia, sendo esta para além de económica uma comunidade política, com Justiça própria, com uma Política Externa e de Segurança comum, e ainda uma União Económica e Monetária, perguntamos: onde, e para quê o Nacional? Pertencemos, de facto e de jurae, a uma realidade sociopolítica única, supostamente una, identitária e de largo valor acrescentado, em que as potencialidades e as sinergias se não compadecem com o conceito de Nação, tanto ou tão pouco quanto ele valha nestes nossos novos tempos, que tão experimental e curiosamente estamos a viver e a dar deles testemunho. Termino com uma palavra de esperança, e ela chama-se Europa. Se soubermos tirar deste conjunto singular de Almas, História, Culturas, Experiências e Vidas tão díspares, a mais-valia de programarmos a nossa vida comunitária com os mesmos princípios de especialização das nações, com que David Ricardo veio caracterizar e fomentar quer o comércio internacional quer o liberalismo económico, pode ser que emerja uma nova Marinha Mercante, não Nacional mas Europeia, onde o know-how dos nossos profissionais, tão bem preparados pelas nossas Escolas de Marinha e Marinhagem, e sobretudo com a vocação para o Mar, tão evidente nos Portugueses e já tão esparsa nesta Europa, venha a ser a nossa contribuição para essa nova realidade.

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OS JOVENS E O MAR

O que fazer para aumentar o número de pessoas a trabalhar na marinha mercante?

BÁRBARA CHITAS

Tem sido muito falado nas últimas semanas sobre a necessidade de promover os cursos da escola náutica, nomeadamente os cursos de engenharia, de forma a conseguir preencher todas as vagas. Mas o que esta a faltar a estes cursos para encher?

O PROBLEMA DA DESINFORMAÇÃO

Continua a existir uma enorme desinformação quanto aos cursos marítimos em Portugal, os nossos estudantes raramente partilham as experiências com o publico em geral. Neste momento a melhor forma de comunicação com os mais jovens é sem dúvida os vídeos. Tentar comunicar com as empresas de forma a fazerem vídeos informais de algumas das tarefas que se tem a bordo dos navios é algo vantajoso não só para os futuros marítimos, mas também para as empresas. Sei que já foram feitos uns vídeos com a Vodafone sobre as carreiras, mas só estes vídeos não chegam. Mesmo com pessoas próximas de mim, por vezes acontece terem dificuldade em entender os diferentes tipos de navios e as suas indústrias, uma vez que é um mercado bastante fechado ao público em geral. É necessário também ir a mais escolas e feiras de emprego para dar a conhecer esta opção de carreira desde cedo! 22 | BORDO LIVRE 164 | JUL-AGO 2021

NEGATIVISMO CONTRA A NOSSA PRÓPRIA CARREIRA

Lembro-me de estar embarcada há pouco tempo e ter colegas mais velhos a aconselhar-me para seguir outra profissão porque o mar era um mundo muito difícil que trazia muita tristeza devido à solidão e ao estar longe de quem gostamos. Sim, trabalhar no mar não é um mar de rosas, mas nenhum sítio o é. Cá em Portugal, temos a tendência de só ver os aspetos negativos. Temos de refletir no porquê de termos escolhido esta carreira e saber transmitir aos jovens com clareza realmente o que é andar no mar, com os seus pontos positivos e negativos. Que mais trabalhos conhecem em que de facto exista emprego e que ofereçam grandes períodos de férias?

UM PROGRAMA DE MENTORIA

Na faculdade temos os ditos “padrinhos e madrinhas” que nos ajudam com a vida universitária, dando apontamentos e dicas sobre os professores e avaliações. Por muito boas que sejam as intenções destas pessoas, no mercado de trabalho não conseguirão ajudar tanto, uma vez que eles mesmos estão agora a começar e, neste caso, deveriam eles próprios estar a ser ajudados. Muitas vezes tenho colegas que me fazem perguntas e fico um pouco frustrada por não poder ajudar mais, mas a verdade é que eu também estou no início da minha carreira e pouco posso fazer. Apesar de fazer todos os esforços e dar todas as indicações que consigo, nem sempre é suficiente. Era importante existir uma pessoa que


PRÉMIO PADRÃO DOS DESCOBRIMENTOS 2021

nos guiasse na nossa carreira, seria uma melhor forma de manter e ajudar as pessoas a estarem motivadas no mar. Ter uma espécie de grupo que ajudasse todos os interessados desde a faculdade até ao mercado de trabalho. Poderia ser criado por exemplo, uma espécie de fórum digital onde se pudesse esclarecer as dúvidas uns de os outros e trocar impressões de determinadas empresas e experiências. Muitos de nós embarcamos em navios e empresas sem saber muito sobre estas, o que faz com que uma pessoa se sinta perdida no percurso que deverá seguir.

MÁS EXPERIÊNCIAS E COMO PODERIAM SER EVITADAS

Da minha turma tive colegas meus que decidiram desistir da profissão porque não conseguiram encontrar algo que fosse compatível com eles, não por não existir de facto, mas por falta de informação e de apoio. Na escola somos preparados para a parte teórica do trabalho, mas talvez não tanto para o que viver a bordo realmente significa. Deveríamos explicar melhor o que é suposto ser normal e o que já são mesmo más condições de trabalho, que infelizmente existem. Isto é, incentivar as pessoas a procurar algo que realmente vá mais de encontro à sua personalidade envés de simplesmente desistir da carreira.

A Entrega do prémio decorreu na sede do COMM – Clube de Oficiais da Marinha Mercante. O Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, Isaltino Morais, recebeu o “Prémio Padrão dos Descobrimentos” 2021, atribuído pelos ALUMNI – Associação de Antigos Alunos da Escola Náutica, num reconhecimento ao seu contributo relevante para o desenvolvimento da Economia do Mar.

“A Câmara Municipal de Oeiras, Município onde se insere o Campus da ENIDH, tem sido um parceiro relevante para a Escola Náutica, papel agora reforçado pelo recente protocolo estabelecido entre as duas Instituições. Para além da aposta estratégica na Educação por parte deste Município e o reconhecimento do papel fundamental que a Escola Náutica tem atualmente no desenvolvimento da Economia do Mar e da referência reforçada e ampliada que pode constituir neste domínio, quer a nível nacional ou internacional, é de salientar o contributo muito empenhado e pessoal do Dr. Isaltino Morais, fatores decisivos para a justa atribuição deste galardão”, referem os ALUMNI.

O que acham que poderia ser melhorado na comunicação acerca do nosso mundo de trabalho? JUL-AGO 2021 | BORDO LIVRE 164 | 23



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