BORDO LIVRE REVISTA DO CLUBE DE OFICIAIS DA MARINHA MERCANTE
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SETEMBRO/OUTUBRO 2021
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EDITORIAL Recentemente celebrou-se o Dia Marítimo Mundial, este ano com um tema que não deixa de ser ambíguo: Trabalhadores Marítimos no centro do futuro do transporte marítimo. Por um lado, temos a necessidade de centrar o foco no trabalhador e na sua família como o ponto fulcral da actividade marítima, leia-se a propósito a chamada de atenção do Papa Francisco: …/ a "profunda contradição" que habita o mundo da indústria marítima, "altamente globalizada", mas marcada pela natureza fragmentária das regras sobre direitos e protecção dos trabalhadores./…
JOÃO TAVARES
Esta comemoração constituiu uma oportunidade para sensibilizar e dar a conhecer o contributo do trabalho desenvolvido pela IMO e os seus EstadosMembros para a concretização dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (ODS), incluídos na Agenda 2030.
Durante os últimos meses ficou bem patente, na Europa, a importância da via marítima para assegurar o abastecimento de bens essenciais e o transporte de pessoas no espaço europeu. Querendo posicionar-se como líder sustentável, o operador Stena Line, renovou a sua frota com cinco novos navios da classe “E-Flexer” (240 m comprimento; 1.000 pax) que são os mais eficientes e modernos ferries. Dotados de um desenho único de casco e com equipamento de propulsão preparado para as opções metanol ou LNG, tem permitido a redução de 30% nos consumos. Em porto utilizam o fornecimento eléctrico que também, está preparado para uma conversão híbrida-eléctrica. Bem perto de nós, o operador de ferry Balearia com a substituição do equipamento de propulsão, a par da introdução de automação nos sistemas internos, conseguiu não só cumprir as metas da IMO Tier II em relação às emissões mas prolongar a vida útil dos navios. Com idades a rondar os 25 anos os ferries agora renovados estão ao serviço das ilhas Ibiza e Maiorca.
Existem aspectos importantíssimos como a rendição de tripulações e o programa de vacinação que registam melhoria nos respectivos indicadores e apontam para o rumo certo no entanto, e por outro lado, temos valores globais elevados, cerca de 250.000 tripulantes, de acordo com o último relatório mensal da Global Maritime Forum, marítimos embarcados para além do prazo contratual baixou de 8,9% para 7,9%, marítimos que permanecem embarcados com um período superior a 11 meses, baixou de 1,2% para 1,0%. Tripulantes inoculados com vacina COVID-19 passaram de 21,9% para 31,1%. Claramente que os trabalhadores marítimos estão longe de serem considerados prioritários na grande maioria dos países e, como já mudamos de foco para a nova agenda de 2022 em que o tema elegido para as comemorações do DMM é: “Novas tecnologias para um transporte marítimo amigo do ambiente”, receamos que muito fique
por fazer em relação ao trabalhador marítimo sobretudo quando os operadores e as companhias confrontados com a análise custo-benefício elegem outras iniciativas como prioritárias em detrimento do trabalhador.
Um bom exemplo de soluções inovadoras vem da P&O Maritime, preocupada com a segurança dos trabalhadores e das suas operações, introduziu um equipamento (SmartCap) que monitoriza em tempo real a fadiga do tripulante e emite um alerta para o dispositivo móvel pessoal. Trata-se de uma banda colocada na cabeça, no boné ou capacete de segurança que usa a tecnologia para fazer a leitura das ondas eléctricas emanadas pelo cérebro. Com o início do ano lectivo em diversas instituições de ensino, aproveitamos para reflectir sobre alguns números da marinha mercante mundial que não deixam de ser expressivos. Cerca de 47% dos tripulantes tem a categoria de oficial MM e estima-se que para suprir as necessidades o valor deveria ser 51% o que traduz a falta de 147.000 oficiais a nível mundial, projectado para 2025. Com a estimativa de crescimento da frota mundial nos próximos anos e a consequente procura de oficiais certificados, obriga da parte da indústria e das diferentes partes interessadas, a uma profunda reflexão de modo a promover o recrutamento de jovens, a aumentar a atractividade das carreiras de mar com melhor formação, entre outras medidas, e a criar as condições para a retenção de capital humano. O Reino Unido tem cerca de 10 mil oficiais embarcados (1 por cada 3 com certificado de competências) e por cada 6 oficiais a bordo tem 1 jovem praticante a fazer o tirocínio. Por ano, entram cerca de 800 novos alunos para a formação superior o que em termos proporcionais, de país para país, alinha com as 119 vagas abertas para os cursos de mar, ministrados pela Escola Náutica. No entanto, os cursos de Engenharias Electrotécnica Marítima e de Máquinas Marítimas não esgotam a capacidade ficando aquém, em cerca de 50 lugares, do total das vagas. Como disse o poeta “Navegar é preciso” e sem essa rota fundada no estudo e na reflexão colaborativa não podemos construir um ensino náutico orientado para o séc. XXI. Saudações marítimas e até breve. SET-OUT 2021 | BORDO LIVRE 165 | 3
SUMÁRIO
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Editorial
João Tavares
COMM Natura Tipos de desenho de proa usados pelos navios - Parte 2 António Costa
Entrevista: Funchal Odisseia Marítima. A cobiça António Matos
O Santo André como polo museolõgico Jorge Branco
Sabedoria do Mar Alberto Fontes
O " Manuel Alfredo " Joaquim Saial
Os Jovens e o Mar Bárbara Chitas
DIRETOR Lino Cardoso COLABORARAM NESTE NÚMERO João Tavares, António Costa, Bárbara Chitas, Alberto Fontes, António Matos, Jorge Branco, Joaquim Saial
OS TEXTOS ASSINADOS SÃO DA RESPONSABILIDADE DOS SEUS AUTORES
COMPOSIÇÃO Mapa das Ideias TIRAGEM 1000 exemplares PERIODICIDADE Bimestral REG PUBL 117898 DEPÓSITO LEGAL 84303 CORREIO EDITORIAL Despacho DE04842021SC-B2B PROPRIETÁRIO/EDITOR Clube de Oficiais da Marinha Mercante Trav S João da Praça, 21. 1100-522 Lisboa Tel (+351) 218880781. www.comm-pt.org secretaria@comm-pt.org CAPA @ Pedro Formiga (Mestre Rebosado/Setúbal) DISTRIBUIÇÃO GRATUITA AOS SÓCIOS DO CLUBE DE OFICIAIS DA MARINHA MERCANTE
A REVISTA ESTÁ DISPONÍVEL ONLINE para leitura, duma forma fácil e intuitiva em http://issuu.com/clubeoficiaismarinhamercante/docs/bl165 HORÁRIO DE FUNCIONAMENTO DA SEDE DO COMM 2.ª, 3.ª, 4.ª, 5.ª, 6.ªF - das 15h00 às 18h00 A SEDE DO CLUBE DISPÕE DE LIGAÇÃO PAGAMENTO DE COTAS: NIB 001000006142452000137
COMM NATURA
DIA INTERNACIONAL DE LIMPEZA COSTEIRA No dia 18 de Setembro foi comemorado o Dia Internacional de Limpeza Costeira. A iniciativa tem como principais objetivos a conscientização ambiental e alertar para a importância da limpeza das praias, rios e lagos para a sustentabilidade dos oceanos. Foram milhões de voluntários, em todo o mundo, que procederam à limpeza de praias e zonas ribeirinhas e subaquáticas. Na imagem surge um grupo desses voluntários entusiastas que recolheram mais de 2000 litros de lixo – na sua grande maioria plástico proveniente da atividade piscatória – durante cerca de hora e meia, na Praia do Norte, na Nazaré. O ambiente em geral e o ambiente marinho, em particular, convoca-nos a todos.
tível, que são alimentadas por hidrogénio líquido. Como recurso de redundância, o navio também pode navegar com recurso a grupo gerador a diesel. O tanque de hidrogénio líquido do
Hydra com 80 cbm de capacidade permitirá navegar 24 horas por dia, 7 dias por semana, por até 3 semanas na área de fiordes entre Hjelmeland, Nesvik e Skipavik.
HYDRA ELEITO O NAVIO DO ANO! Hydra, o primeiro navio movido a hidrogénio líquido do mundo, acaba de receber o prémio de Navio do Ano da Skipsrevyen. O Hydra é mais do que apenas um ferry de emissões zero. O navio eleva a inovação a um nível até hoje nunca alcançado nos navios de transporte de passageiros. O layout exclusivo da coberta de passageiros atende a regras de segurança rígidas relacionadas ao uso e armazenamento de hidrogénio, além de simplificar os movimentos a bordo do navio, tornando o convés de automóveis e a coberta de assentos numa área sem barreiras, onde é possível caminhar sem problemas. O seu sofisticado sistema de propulsão permite que as baterias funcionem emparelhadas com células a combusSET-OUT 2021 | BORDO LIVRE 165 | 5
TIPOS DE DESENHO DE PROA USADOS PELOS NAVIOS PARTE 2
ANTÓNIO COSTA
5.1. A PROA DE MACHADO
Poderá parecer demasiado óbvio, mas tal como a lâmina do machado corta a madeira, a proa de um navio corta a água. Neste caso, o projetista inspirou-se nas características da vulgar peça de ferramenta. O desenho de proa de Machado tem, em geral, uma linha de proa vertical acoplada a uma seção dianteira longa, profunda e estreita do casco, semelhante à lâmina de PROA DE MACHADO Vantagens -Melhora o avanço, evitando o caturro e o cabeceamento -Torna a vivência a bordo mais cómoda, mitigando o balanço -Resposta linear e previsível às ondas -Menor esforço à propulsão, mantendo um regime de avanço mais uniforme -Linha da quilha rebaixada para evitar que a seção de proa saia da água e bata Desvantagens -Requer disciplina de design, já que haverá menor espaço disponível na seção de vante -Requer maiores comprimentos de navio, pelo menor aproveitamento da proa -A proa mais longa e estreita permite uma maior exposição ao vento na parte de vante -O maior comprimento requer custos estruturais ligeiramente mais elevados -O longo comprimento da proa pode criar movimentos de guinada excessivos ao negociar as ondas
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um machado. Esta forma permite que ela corte a água, passando facilmente pelas ondas, com menor inclinação do que uma proa normal. A parte inferior da extremidade dianteira do casco, chamada de antepé da roda (de proa), está rebaixada e, raramente, emerge da água, pelo que a embarcação também é menos suscetível a bater. Já no que respeita à manobrabilidade, o estudo dos seus parâmetros hidrodinâmicos e a experiência real em operação confirmam que este tipo de proa requer maior trabalho de leme. Resumidamente:
5.2. A GERAÇÃO DE PROAS FECHADAS E INVERSAS
E se o projeto do seu navio apresentar a proa como o maior elemento do casco? E se, ao mesmo tempo, lhe parecer que está de cabeça para baixo, em comparação com um casco de proa convencional? Ou, até, lhe sugere tudo, menos uma qualquer forma de casco que está habituado a ver em navios? 5.2.A. ULSTEIN X-BOW® (‘CROSSBOW’) OU A PROA EM X
A Proa em X tem a vantagem de permitir formas de casco com um comprimento superior à linha de flutuação, em comparação com navios convencionais de PROA EM X Vantagens -Maior velocidade de trânsito e serviço; menor consumo de energia -Melhor eficiência de combustível; redução das emissões -Eliminação de batida e impactos de proa; nível de vibração reduzido -Menores níveis de aceleração vertical; aumento do conforto e do descanso da tripulação Desvantagens -Requer disciplina de design, já que haverá menor espaço disponível na seção de vante -Grande quantidade de água verde subindo pela proa -Área de vento em locais mais altos na proa -Maior risco de mergulhar profundamente na onda
tamanho semelhante, conseguindo maiores velocidades ao beneficiar de menor esforço ao avanço. Tal como a Axe-Bow, estas proas têm menos borrifos de água a entrar além de menos movimento de cabeceio, sendo bastante significativa a redução de batida. Isso cria uma experiência bastante confortável à tripulação. O consumo de combustível também é reduzido de forma significativa. Esta proa pode operar de forma bastante eficiente em faixas de onda de tamanho médio, principalmente porque a maior parte do volume do navio, impactado diretamente pelas ondas, está acima e por avante. Estas formas de casco também funcionam como conveses interiores com espaço para acomodação do pessoal. Estas embarcações têm sido utilizadas em várias aplicações, como navios AHTS (Anchor Handling Tug Supply), navios sísmicos, navios offshore e de instalação de tubos, navios sonda e similares. Novos estudos vêm agora admitir que o desenho da proa em X poderá ajudar a resolver os desafios do calado aéreo nos navios porta-contentores. Com a ponte inserida na proa, o constrangimento da visibilidade sobre os contentores estivados acima do convés ficaria sanado, podendo a carga ser estivada a maior altura por ré do casario e sem constrangimentos. Resumindo, a seção da ponte (mastreação, antenas e etc.) pode ser mais baixa, por não ser necessário reduzir o ângulo morto de visão. A combinação pode oferecer maior versatilidade operacional em algumas das rotas destes navios. O primeiro navio a adotar este desenho foi o “Bourbon Orca”, da Bourbon Offshore, lançado em 2006. Esta unidade ganhou diversos prémios como o Norwegian Design Council’s Award, o Engineering Feat of the Year, o Offshore Support Journal’s Award e o prémio de navio do ano pela Skipsrevyen’s. O XBow® provou ser tão bem-sucedido que a Ulstein já criou e construiu um projeto XStern®.
CIMA para BAIXO. Figura 8: Desenvolvida pela Damen Shipyards, apresenta uma proa vertical com linhas finas e longas para cortar a água, resultando num perfil em forma de machado. Daí o nome Axe-Bow. Figura 9: Desenvolvida pelo Norwegian Ulstein Group, a X-Bow foi desenhada em forma geométrica axissimétrica, ou seja, «simétrica em relação a um eixo». O seu design revolucionário e inovador, causou sensação ao ser apresentado ao mundo. Figura 10: Esses navios carregariam contentores na parte traseira, empilhados a uma altura mais alta do que a ponte.
5.2.B. CONCEITO VARD NB
Os estaleiros noruegueses Vard, também possuem uma unidade de desenvolvimento de projetos, conhecida como Vard NB-SV (New Bow – Specialized Vessels). O projeto apresenta um desenho de casco novo, que otimiza a baixa resistência dos navios no que toca à parte submersa do navio e um desenho de proa especial com bolbo, para maior resistência às ondas e melhor conforto. 5.2.C. PROJETO PROA PERFURANTE (ROLLS-ROYCE)
A Rolls-Royce Marine desenvolveu recentemente um projeto de navio chamado Wave-Piercing Offshore Support Vessel (traduzido à letra como OSV perfurador de ondas). Este navio de utilização offshore, foi desenvolvido, especificamente, para missões no Ártico, com a proa projetada para perfurar as ondas em mar severo, permitindo manter uma velocidade constante, reduzir o consumo de combustível e aumentar a segurança a bordo. Conta também com a Rolls-Royce Unified Bridge®, tornando o centro de comando da embarcação um dos mais modernos que hoje existem. 5.2.D. PROJETO DAMEN E3 CD
Apresentando algumas semelhanças com os anteriores, este projeto foi desenvolvido pela empresa holandesa Damen Shipyards Groupse. Os seus objetivos são os mesmos: reduzir a batida de proa, manter uma boa velocidade de serviço em mar severo, reduzir o consumo e aumentar o conforto e segurança para os tripulantes, carga e navio. 5.2.E. PROAS PERFURANTES – WAVE-PIERCING BOWS
A maioria da literatura atribui a tecnologia de perfuração de ondas ao início do século XX. No entanto, ela foi empregada desde os tempos dos fenícios e dos antigos romanos. O conceito consiste no desenho de uma proa com pouca flutuabilidade, um casco que se inclina para dentro a partir da linha de água e, portanto, com SET-OUT 2021 | BORDO LIVRE 165 | 7
CIMA para BAIXO. Figura 11: A prioridade destes desenvolvimentos foi a de criar a proa e o casco certo para reduzir o consumo de combustível e aumentar a estabilidade de progressão em mar turbulento. Figura 12: A proa inversa perfurante é uma história de sucesso entre o renascimento de tecnologias que se tornaram obsoletas há mais de um século atrás. Figura 13: Esta forma de proa diminui a potência necessária em mar agitado de entre 4 a 5% em comparação com a proa convencional. Figura 14: Desenvolvida em maio de 2002 pela Kawasaki, a proa em flecha reduz a resistência das ondas em até metade, comparada à proa de bolbo convencional.
uma grande redução na resistência à formação de ondas. Embora funcione bem em mar agitado, as desvantagens incluem o volume interno reduzido a vante e um convés muito molhado, porque as ondas sobem a proa como é natural. Os perfuradores de ondas caíram em desuso por um período de tempo devido a essas desvantagens. Contudo, recentemente, desfrutaram de um ressurgimento de popularidade em razão dos ganhos dramáticos em velocidade e eficiência de combustível. Vimos proas perfurantes em monocascos estreitos, que parecem mais submarinos do que navios de superfície, ou em grandes multicascos onde o convés fica muito acima dos cascos principais. O casco perfurante das ondas concentra-se em manter a velocidade de avanço mesmo com mar turbulento. Isso reduz os movimentos de caturro, mas não as acelerações de arfagem, sendo comum a batida na parte inferior.
5.3. LEADGE-BOW®
A Universal Shipbuilding Corporation3 desenvolveu uma nova forma de proa para melhorar o desempenho propulsivo em ondulação. Em geral, as formas de proa com bolbo afetam as características de resistência à formação de ondas. Olhando esse facto e para reduzir essa resistência, o projetista achou mais eficaz “encher e afiar” toda a zona frontal, desenhando uma nova forma denominada de proa LEADGE, com a aglutinação das palavras "Leading e Edge" (proeminente e afiado). Esta linha permite aproximar os comportamentos do navio tanto em lastro como em carga total. 3. Universal Shipbuilding Corporation e a IHI Marine United Inc. uniram-se e formaram a Japan Marine United em 2013.
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FUNCHAL
MAKING HISTORY MORE BEAUTIFUL
5.4. SEA-ARROW® (SHARP ENTRANCE ANGLE BOW AS AN ARROW - PROA AFIADA COMO FLECHA)
A SEA-Arrow® é um desenho de proa recentemente desenvolvida e patenteada pela Kawasaki Shipbuilding para navios de velocidade média, nomeadamente, tanques de GLP. Este modelo ao reduzir, significativamente, a resistência da onda de proa, melhora o desempenho propulsivo do navio e permite uma redução no consumo de combustível. O conceito de proa em Flecha já foi aplicado a dezenas de navios-tanque de GLP. Analisados os respetivos dados de viagem, foi confirmado um alto desempenho propulsivo na condição de carregado. Com a mesma potência de motor principal de outros navios convencionais de GLP, houve um benefício de em 0,3 a 0,5 nó. Existe uma variedade aparentemente infinita de diferentes formatos de proa. Como será expectável, umas mais, outras menos, mas todas elas baseadas nas anteriores.
A triste sina do navio Funchal começa em 2010 quando fez uma paragem, tendo ficado atracado na Matinha, para renovação e adaptação às novas normas de segurança (SOLAS) para navios de cruzeiro nomeadamente, a retirada de materiais combustíveis do seu interior. Em Maio de 2011, com o falecimento do proprietário George Potamianos os acontecimentos precipitam-se e, os seus herdeiros na impossibilidade de garantirem o financiamento necessário para concluir os trabalhos em curso, acumulam dívidas que resultam no arresto do navio em Dezembro de 2012. Em Janeiro de 2013 é criada a Pearl Cruises – Transportes Marítimos, Unipessoal, Lda do empresário Rui Alegre que dá
um ar da sua graça ao adquirir o navio Funchal. Após várias peripécias realiza a sua última viagem em Dezembro de 2014 até que, em Setembro de 2015, a sociedade entra em processo de
insolvência e uma vez mais, o resistente Funchal acaba de novo na Matinha à espera dos novos aventureiros. Desta feita, o grupo hoteleiro britânico Signature Living, em Dezembro de 2018, adquire o Funchal com o projecto de o levar para Liverpool e o transformar em navio temático para a realização de viagens no mediterrâneo. Em Julho de 2019, aguardou-se pelo pagamento da última tranche, o que não aconteceu e uma vez mais, abre-se um novo capítulo da quase história trágico-marítima do Funchal. Em 29 de Janeiro de 2021, o navio foi adquirido por um grupo norteamericano e um dos responsáveis do projecto em Portugal aceitou o convite para visitar e conhecer o COMM, em Agosto passado, durante a qual acedeu a uma entrevista exclusiva para a Bordo Livre:
Foto:Luís Miguel Correia.
PROA PERFURANTE Vantagens -Permite manter a velocidade em ondulação forte; elimina os impactos de proa -Conveniente para navios que precisem da velocidade -Funciona bem em pequenas embarcações planadoras -Quando aplicada em navios maiores, reage gradualmente às ondas Desvantagens -Grande quantidade de água verde e surriada no convés -Má no contorno da onda seguinte; bate com a parte inferior -Convés e casario abertos ao vento -Pode criar movimentos de guinada excessivos ao encontrar mar de amura
CONTINUA SET-OUT 2021 | BORDO LIVRE 165 | 9
Como Clube de Oficiais da Marinha Mercante Portuguesa naturalmente, os associados estão muito ligados, até do ponto de vista emocional, às tripulações e aos navios onde exerceram a sua profissão. No meu caso pessoal, foi o meu primeiro embarque como jovem piloto no início de carreira, mas temos vários camaradas que durante anos trabalharam no Funchal e que hoje em dia, acompanham de perto toda esta evolução com a passagem de mãos entre diversos empresários sem no entanto, apresentarem num verdadeiro projecto credível de recuperação do navio e a consolidação do investimento. Faço a pergunta directa, no vosso caso como conheceram e se interessaram pelo navio e quais são as diferenças em relação aos anteriores projectos? BUTCH KEMP Foi exactamente um dos pontos que me atraiu para o projecto. Nos últimos 10 anos existiram 4 proprietários do navio e todos eles tinham ideias fantásticas mas eram ideias baseadas em realizar dinheiro e orientadas unicamente para o lucro em que o navio era apenas o meio de o conseguirem. No nosso grupo, e a minha opinião pessoal, é que o Funchal tem história e faz parte da história de Portugal e encaráramos, não como um projecto essencialmente comercial lucrativo, mas como um projecto histórico, é um projecto para a comunidade. Este navio, digamos que é conhecido pelas gerações com mais de 35 anos, mas os mais novos não conhecem sequer o nome e nós queremos mudar isso. Como parte da história do país queremos dizer aos portugueses que o nosso grupo não permitirá que este navio seja abatido e COMM
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desmantelado pelo valor de USD 12 a tonelada, isso não será possível e não irá acontecer! A nossa ideia é de que o navio é história e quando olhamos para 1961 e mais tarde nos anos 70, como navio de cruzeiros, quase todos os portugueses tem uma avó ou um pai ou mãe que viajaram no Funchal, que fizeram uma viagem ao Brasil ou às ilhas, mediterrâneo, Canárias, e por isso é muito importante devolver essas memórias, esta parte da história aos portugueses, não estamos aqui apenas pelo dinheiro mas pela imagem pública do que queremos recuperar. COMM Então pode afirmar-se que o vosso projecto é um equilíbrio entre a componente lucrativa e a vertente da história marítima, um museu? BK Sim, é isso mesmo! Para além de ser um hotel e um espaço de entretenimento para as famílias será também um museu, onde mediante o pagamento de um bilhete os visitantes poderão andar pelo navio numa visita guiada pela sala das máquinas, pelos camarotes, pela ponte de navegação e por todos os espaços para aprender a história deste belo navio. Este é um projecto histórico-comercial, não apenas comercial. COMM Em que medida este projecto terá envolvimento com a cidade de Lisboa e com a frente ribeirinha e na fruição do rio Tejo? BK Tem que entender que este rio não é apenas uma vista, não algo bonito apenas para contemplar. Este rio, deve ser o coração de Lisboa, no turismo, no comércio e nos negócios. Numa situação ideal de se construir um bom porto ou uma grande marina, essa infra-estrutura estaria cheia e com muito movimento, com turistas a visitar a cidade. Quando fazemos as
travessias do atlântico qual o porto principal que temos mais acessível, é Lisboa. Mas não é utilizado, está esquecido! Quando percorremos a margem do rio encontramos ao longo de 3 km os belos monumentos evocativos dos grandes tempos das descobertas mas que não são bem explorados, nem o próprio rio é bem explorado, e nós temos que recuperar isso. Em 1960 nos jogos olímpicos de verão, Portugal ganhava medalhas na vela e desde então só voltou a ganhar em 1996. Nós vamos construir um clube de vela e de remo, vamos oferecer essa possibilidade à comunidade para permitir que os jovens aprendam a usufruir do rio. Têm um plano de água perfeito e a vista magnífica o que levaria as pessoas a pagar milhões de dólares para usufruir da paisagem, não a estamos a usar como poderíamos. O rio é o coração da cidade e temos que fazer com que seja a principal razão para que as pessoas queiram vir e visitar Lisboa. COMM Quais são os factores principais e críticos para o sucesso do vosso projecto? BK Para este projecto e ambiente em Portugal, o factor crítico é o envolvimento da comunidade. As pessoas não gostam que uma empresa chinesa venha construir uma estrada, não gostam que uma empresa russa venha construir um hotel, as pessoas gostam de ver que os investidores querem os portugueses envolvidos no projecto. Todos os que estão a trabalhar na minha equipa vivem em Portugal, não trouxe ninguém da América nem de outro país, são todos portugueses que vivem em Portugal. Estamos a proporcionar centenas de emprego às pessoas e eles tem orgulho neste
projecto, é um projecto português. O Funchal é parte da história de Portugal e deve ser reabilitado pelos portugueses. COMM … será um projecto e ao mesmo tempo uma parte integrante daqueles que estiverem envolvidos? BK Sim as pessoas vão “sujar as mãos” e dizer que trabalharam no navio. Por exemplo, um engenheiro que trabalhou nos anos 70 no Funchal recorda os primeiros anos de vida mas eu quero que as pessoas recordem, de igual modo, os últimos anos do Funchal. Imagine um avô que trabalhou como engenheiro ou oficial de ponte e que vem visitar o navio com o neto e diz: «eu sentei-me naquela cadeira, eu trabalhei naquele motor», existe um orgulho nessa história e a comunidade volta ao navio, é a melhor educação que podemos dar aos jovens, não são os videojogos, aqui podemos entrar e caminhar na história. COMM … será uma experiência a transmitir de geração para geração BK Sim! Pensemos nas grandes cidades mundiais, por exemplo Nova Iorque, todos conhecem a estátua da Liberdade e as crianças visitam-na pela sua história. Londres com o belo monumento, a Catedral de São Paulo, é histórico e tem centenas de anos, mas aqui em Lisboa vamos ter o Funchal e podemos ensinar as crianças que este belo navio construído nos anos 60 era dos mais avançados na sua época e viajava pelo mundo, Brasil Mediterrâneo, com centenas de passageiros COMM … Escandinávia e fiordes BK … é verdade, foi dos primeiros navios a fazer os fiordes porque era pequeno e estreito, enquanto outros não o podiam fazer. Nós não falamos
disso, porquê? Porque as pessoas não sabem isso, então … vamos educá-los! COMM Em que medida o Funchal pode contribuir para a conservação do ambiente e da literacia dos oceanos? BK O Funchal deve ser parte deste movimento para um ambiente sustentável. Uma das primeiras preocupações quando o grupo comprou o Funchal foi que existiam a bordo 180 ton de amianto mas o que encontrámos foram 570 ton, e vamos retirar cada pedaço até não restar nada. O orçamento passou de 600 mil para 2 milhões de euros e não iríamos fazer isto se não acreditássemos no futuro do navio, caso contrário diríamos: vamos deixar estar como está! Não, o navio é uma ferramenta de formação, é como que uma universidade da vida para as pessoas, não só os mais jovens mas para todas as gerações. Eu quero um local onde as pessoas possam dizer: «Avô tu trabalhaste neste navio? Sim. Fala-me dele». É um momento de proximidade entre os membros da família que não é muito frequente nos nossos dias. O navio tem muitas histórias importantes para contar. Vamos ter memorabília nas paredes, extractos do diário de bordo para que os visitantes possam ler e compreender as viagens, as tempestades enfrentadas e conquistadas e tudo o mais, escrito pela mão dos oficiais. Isso é muito bonito e nada melhor do que ler um pedaço real para compreender a história. COMM Qual a mensagem que gostaria de deixar aos nossos leitores BK Todos aqueles que estiveram no mar como oficial mercante compreendem que servir a bordo dos navios, como exemplo no Funchal, é
como que ter uma mãe que toma conta de nós. Você sabe o que quero dizer: Quando temos um mau dia, quando o navio enfrenta uma situação difícil, sabemos que ele não nos deixa ficar mal. Quero que todos os vossos associados possam subir a bordo do Funchal e sentir que voltam aos braços da mãe, você sabe do que estou a falar, os vossos leitores compreendem o que estou a falar, o voltar aos braços da mãe, é a segurança, é o local seguro! E todos eles são bem-vindos a bordo. Queremos que participem e contribuam para a recuperação do navio. Muito obrigado Butch e da parte do CLUBE e dos seus membros associados, manifestamos a disponibilidade total de ajudar naquilo que for do nosso alcance.
Nota: Após esta entrevista e ao redigir o texto, soubemos que existiram dois incêndios a bordo do Funchal. Esperamos sinceramente, que não se traduza num esfumar do projecto.
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ODISSEIA MARÍTIMA A COBIÇA
ANTÓNIO MATOS Este é o relato verdadeiro das peripécias de uma das viagens mais marcantes de toda a minha vida de tripulante. Aconteceu nos idos de 1976, a bordo do navio Porto Amélia, da Companhia Nacional de Navegação, onde era 2° maquinista. Depois de uma longuíssima estadia de vários meses no caótico porto de Luanda, provocada pela sangrenta guerra civil entre os movimentos de libertação, iniciámos em junho, para grande alívio de toda a tripulação, a viagem de regresso a Lisboa. Devido às prolongadas estadias dos seus navios nos portos das ex-colónias, a
companhia começava a ver a sua situação financeira em degradação e buscava alternativas. Por isso e, na tentativa de rentabilizar a viagem, fomos aportando pelo norte de África em Pointe-Noire no Congo, Libreville no Gabão e Tema no Gana. Arribados a este porto já durante a noite, aí fundeámos ao largo ficando a atracação prevista para o dia seguinte. Pela manhã do dia seguinte e com o navio ainda fundeado, dirigi-me ao bar para tomar o habitual café antes de descer à casa da máquina para o início de quarto. Qual não é o meu espanto quando, ao abrir a porta, fui surpreendido pelo terceiro motorista, que, de um salto acrobático, se
ASSEMBLEIA GERAL PARA APROVAÇÃO DO ORÇAMENTO DE 2022 25 DE NOVEMBRO ÀS 17H30
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vira para mim, com o braço estendido e dois dedos em riste, pernas abertas, numa ridícula posição de karateca. Ao reconhecer-me, relaxou dizendo: – Ah! É você! Desculpe sôr segundo, mas eu hoje estou muito nervoso! Depois de conter o riso por ver a sua franzina figura, naquela cómica posição de luta, perguntei-lhe: – Então, estava à espera de algum terrorista para me receber com todo esse aparato? Luanda já ficou para trás, homem, tenha calma. – Oh segundo, como é que posso ter calma? Como é que posso ter calma? Já percebi que você não sabe nada do que se passou a bordo esta noite! – Então, houve algum azar? Diga lá, desembuche! – perguntei eu ansioso e alarmado. – É que, durante a noite, o navio foi atacado por alguns negros que se aproximaram sorrateiramente numa almadia e subiram a bordo escalando a amarra. Entraram pelo camarote do primeiro maquinista adentro, amarraram o homem e roubaram-lhe tudo o que puderam. Coitado do homem, está um farrapo! Surpreendido por aquele relato, corro de imediato para visitar o desgraçado primeiro que se encontrava em enorme prostração no seu camarote, ainda todo trémulo e repetindo vezes sem conta, a quem chegava, a odisseia porque tinha passado: – Acordei com um negro colossal a apertar-me o pescoço e a obrigar-me a levantar para lhe entregar todos os meus haveres. Isto enquanto outro, também enorme, ia enfiando num saco tudo o que lhe estava à mão. Roubaram-me tudo, dinheiro, roupa, os sapatos e até os óculos que tanta falta me fazem. Saíram a correr e eu para aqui fiquei em tal estado de
choque que nem coragem tive para ir atrás deles ou de gritar por ajuda. Depois de ouvir a triste história do infeliz primeiro maquinista, também eu fiquei em estado de choque porque, afinal, o primeiro camarote por onde passaram os negros foi o meu, que lhe ficava mesmo ao lado. Só que, por minha grande sorte e porque a estadia em Angola tinha sido demasiado prolongada, eu tinha pedido à minha mulher para ir ter comigo a Luanda e fazer a viagem de regresso a Lisboa em minha companhia. Por questões de privacidade, era evidente que o meu camarote ficava sempre fechado à chave durante a noite, ao contrário do que era usual quando se viajava sozinho. A minha sorte tinha sido o azar do primeiro maquinista! Os marinheiros de serviço contavam apenas que tinham ouvido tiros de metralhadora provenientes de um navio russo que também estava nas mesmas condições do Porto Amélia e que, em pânico, se tinham refugiado na ponte não tendo, por isso, dado por nada. E como um azar nunca vem só, mal atracámos na manhã seguinte, logo se levanta novo estardalhaço. Um negro estava a ser espancado por um dos polícias que tinham sido requisitados para fazer segurança ao navio naquele malfadado e perigoso porto de Tema. Depois de o homem ter sido manietado e levado dali, o polícia lá explicou que se suspeitava que ele e outros bandidos tinham assaltado o banco Barclays e roubado um lote de barras de ouro de 200 gramas cada. E não é que, para nosso grande espanto, umas horas depois, apareceram a bordo alguns negros a vender secretamente
barras de ouro de 200 gramas. Depois de apressadamente testadas com mercúrio e confirmada a sua veracidade, todos nós queríamos comprar barras, quantas mais melhor, não nos interessando se tinham sido roubadas ou não! Os preços eram bastante atrativos sendo que, para mais, no dia seguinte já estaríamos de partida e os problemas com a polícia ficariam para trás. A ganância propagou-se que nem vírus e a luta pelas cobiçadas barras criou sérios atritos entre a tripulação com acesas discussões e algum confronto físico à mistura. Ainda recordo que o despenseiro e o comandante foram os mais sortudos pois conseguiram, por artes mágicas de que todos nós suspeitávamos, comprar cerca de 12 barras. Eu, com algum esforço, lá consegui comprar uma barrita de 200 gramas pelo equivalente a 2 contos a um negro que tinha descido à casa da máquina. De Tema, afinal, o navio não seguiu para Lisboa, mas sim para os Estados Unidos. No dia 4 de julho de 1976, depois de atravessado o Atlântico e já atracados no cais de Hoboken, em frente a Nova Iorque, tivemos a felicidade de assistir às celebrações dos 200 anos da independência daquele país. Ainda retenho a imagem da nossa garbosa Sagres, velas enfunadas e toda engalanada, subindo o rio Hudson, acompanhada de quase todos os naviosescola do mundo no que era um verdadeiro espectáculo. Finalmente, como o navio não ia regressar, de imediato a Portugal, eu e a minha mulher decidimos regressar de avião a Lisboa. Não recordo como fui
rendido, mas a minha preciosa barra de ouro veio connosco, ingenuamente escondida numa lata de creme Nivea não fosse a alfândega confiscar-me o meu tesouro. Chegados a Aveiro, logo tratei de a passar a patacos. Negociei, com um familiar, a sua troca por uns electrodomésticos de que estávamos precisados. Não havia dúvidas que tinha feito um grande negócio porque, afinal, o que custara 2 havia rendido 45 contos. Fiquei deveras desconsolado por não ter conseguido comprar mais e com alguma inveja dos colegas que se tinham aboletado com inúmeras barras. Depois de algum tempo e, de novo embarcado, ia eu de viagem a bordo do navio António Carlos para Cabo Verde, quando recebo um telefonema da minha alarmada mulher. Aquele meu familiar, ao entregar a barra a um ourives para encomendar uns berloques para a esposa, levou com uma tremenda nega. Afinal, aquela barra, de ouro nada tinha, era 100% antimónio. A minha mulher, aflita e desfazendo-se em desculpas, lá foi devolver os 45 contos. O grande negócio transformara-se num grande fiasco e a minha alegria transformara-se numa grande vergonha e depressão. Como prémio de consolação, dei graças por só ter conseguido comprar uma. E, em conclusão, todos nós a bordo não tínhamos comprado ouro, mas sim enfiado grandes barretes. A encenação da detenção do bandido pelo polícia no porto ganês de Tema tinha surtido efeito. Naquele país os polícias eram bandidos e os bandidos eram polícias, todos em conluio para transformar a nossa ganância em envergonhada parvoíce. Onde a ganância nos levou!
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O SANTO ANDRÉ
COMO POLO MUSEOLÓGICO
JORGE BRANCO*
Após a campanha de 1997, o Amazonas (nome atribuído ao Santo André a partir de 1990) não voltaria a navegar, surgindo a oportunidade, através de uma conjugação de interesses, de preservar este arrastão clássico, o último navio desta tipologia da frota bacalhoeira nacional. A vontade expressa por parte da Câmara Municipal de Ílhavo (CMI) em musealizar esta embarcação já era antiga e como tal tudo apontava para que esse desejo se pudesse realizar. Todo o processo negocial visando a doação entre o último armador e a CMI durou cerca de ano e meio a ser concluído e contou com o auxílio da Associação dos Amigos do Museu1. A transferência da propriedade do navio, entretanto renomeado para Santo André, e de todo o seu recheio foi efetuada como doação sob a Lei do Mecenato, através de escritura pública de 4 de julho de 20002. A finalidade seria a musealização, tornando-se um polo do então renovado Museu Marítimo de Ílhavo (MMI). Seguiram-se as obras de beneficiação e reconversão dos espaços de modo a adaptar o navio às suas novas funcionalidades. Entre os trabalhos mais significativos sobressai a revisão e beneficiação integral do casco e da superestrutura, de forma a garantir a segurança da embarcação; a retirada da cobertura do tombadilho, de modo a reconstituir as características originais da popa do navio; e a adaptação dos porões a salas de exposição, sendo instalados acessos adequados a partir do parque de pesca. Salvo algumas exceções, os compartimentos não sofreram alteração para * Investigador do Museu Marítimo de Ílhavo. 1. MMI/CMI, Arquivo do Instituto Marítimo Portuário, N.º 17. 2. Idem.
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melhor evidenciar as condições existentes a bordo3. Com a finalização dos trabalhos, o Santo André é atracado no Porto Bacalhoeiro a 10 de agosto de 2001. É equacionada a possibilidade de este ser o seu local de repouso, mas alguns meses mais tarde é transferido para o Jardim Oudinot, onde se mantém até hoje. Todavia, foi no Porto Bacalhoeiro, no cais n.º 10, que se procedeu, a 23 de agosto, à inauguração do navio-museu, juntamente com a exposição “Terra Nova, Terra de Bacalhau”4. A inclusão do Santo André como polo museológico permitiu expandir os horizontes patrimoniais da pesca do bacalhau, complementando assim o discurso expositivo mais centrado na pesca à linha que o MMI ofereceria5. A musealização do Santo André surgiu num contexto de valorização de um património singular da pesca longínqua, um passo importante e pertinente para recordar toda uma vivência menos celebrada da pesca do bacalhau. O sucesso deste polo museológico levou o MMI a aproveitar uma obra de manutenção, em 2006, para apostar numa nova intervenção museológica assim que o navio regressasse da doca. Os objetivos passaram por consolidar o Santo André como um lugar de memória da pesca do bacalhau com artes de rede; por enriquecer o seu discurso expositivo, e reforçar o seu caráter didático no contexto da cidadania do mar. Desta renovação salientamos a reformulação
do discurso e percurso expositivo, bem como a legendagem de espaços. Algumas divisões que se encontravam vedadas ao público foram musealizadas e o paiol de redes adaptado para atividades do serviço educativo. No corrente ano de 2021, o navio-museu depara-se com uma nova reabilitação do seu espaço museológico que visa, respeitando e valorizando a sua identidade, dar-lhe uma “nova vida”, através da utilização de soluções inovadoras que venham a gerar experiências sensoriais nos visitantes. Outros intentos prendemse com o perpetuar na memória das gerações futuras as viagens e episódios da pesca do bacalhau no Atlântico Norte, dando maior destaque à pesca de arrasto a partir dos anos 70. Seguindo os novos pressupostos, propôsse ao visitante um renovado percurso de visita. Esta começa por introduzir o processo do arrasto lateral na divisão onde se encontra o Guincho, que enrolava e desenrolava os cabos usados no aparelho de pesca. O peixe era depois descarregado no Parque de Pesca, onde o pessoal do convés preparava o bacalhau e outras espécies, recorrendo à salga ou congelação, consoante o caso. O espaço de armazenagem no nível inferior era dividido entre o Porão de Salga, onde ia o bacalhau e seus subprodutos, e os Porões de Congelados, que acomodavam os restantes peixes. Visitados os porões, o percurso segue para o Paiol de Redes, convertido numa nova sala imersiva, que, com recurso a técnicas audiovisuais,
3. Santo André: memórias de um navio. [Textos Álvaro Garrido, Jorge Branco, Nuno Miguel Costa e Pedro Silva]. Ílhavo: Câmara Municipal de Ílhavo. Museu Marítimo de Ílhavo, 2019, p. 106. 4. MMI/CMI, Arquivo do Museu Marítimo de Ílhavo, Processo de musealização do Santo André.
5. Santo André: memórias de um navio. [Textos Álvaro Garrido, Jorge Branco, Nuno Miguel Costa e Pedro Silva]. Ílhavo: Câmara Municipal de Ílhavo. Museu Marítimo de Ílhavo, 2019, p. 106. 4. MMI/CMI, Arquivo do Museu Marítimo de Ílhavo, Processo de musealização do Santo André.
Figura 1: Santo André atracado no Jardim Oudinot (Setembro de 2021). Fotografia de Beatriz Lourenço. Figura 2: Musealização da Casa das Máquinas. Fotografia de Carlos Rocha.
convida o visitante a sentir a dureza da vida no mar. Ao nível do convés, encontramos de seguida as Camaratas da Proa, instaladas em 1975, em substituição do rancho, que acomodava o pessoal da marinhagem. À popa situam-se a Casa das Máquinas, o coração do navio que agrega a principal maquinaria e sistemas de suporte, a Casa do Leme e, por conveniência, os aposentos do pessoal das máquinas. A zona seguinte funcionava em torno da Cozinha. Na sua proximidade estão paióis de mantimentos, a Camarata do Cozinheiro e ajudantes e as messes da tripulação, onde o pessoal do convés tomava as refeições desde 1975. As habitações do Contramestre e Mestre de Redes completam as divisões desta área. Subindo as escadas junto à Cozinha temos acesso à Câmara dos Oficiais. Aqui encontra-se o Salão e a Copa dos Oficiais, que tinham um serviço de refeições distinto, e vários camarotes individuais (Capitão, Piloto e Enfermeiro). No último piso, numa posição propícia à supervisão geral das atividades do navio, está a Ponte de Comando e as divisões adstritas aos oficiais, como a Casa de Navegação, o Camarote do Imediato e a TSF. Na Ponte, principal espaço desta secção, os Oficiais Náuticos repartiam tarefas e planeavam a navegação do navio. O visitante terá a partir desta área um acesso ao convés superior onde poderá observar inúmeros elementos essenciais à navegação e à pesca antes de terminar a visita. Esta última remodelação museológica do Santo André constitui um marco importante na preservação patrimonial da Pesca do Bacalhau. Consciente do decorrer dos tempos, pretende-se cada vez mais valorizar memórias que, apesar de mais próximas, necessitam de preservação para que não sejam esquecidas. SET-OUT 2021 | BORDO LIVRE 165 | 15
SABEDORIA DO MAR
QUANDO A VERDADE NÃO É O QUE ACONTECE, MAS O QUE SE DIZ
ALBERTO FONTES Portugal é uma das nações da Europa com a mais alta cultura e identidade marítima, neste momento, também é uma das nações da Europa com menor consciência de si. É por isso incompreensível e intolerável que tal aconteça, num país cujo futuro está tão dependente do mar, há por isso que gerar e renovar o pensamento político e estratégico marítimo de Portugal, despertando a opinião publica em geral e os decisores políticos em particular para a importância de Portugal no mar. Se no passado o nosso mar territorial, era uma faixa de três milhas marítimas de largura, que correspondia ao alcance de um canhão no século XVII, há que ter em consideração que actualmente, a área das águas jurisdicionais tem 1,7 milhões de Km2, o equivalente a 19 vezes o território emerso nacional; onde ainda a extensão da plataforma continental, com quase 4.1 milhões de Km2, corresponde a 44 vezes o território emerso nacional. Para assegurar o desenvolvimento de Portugal, as preocupações, devem centrar-se na economia do mar como fonte de enriquecimento do país e dos cidadãos. Não podem ser ignoradas as oportunidades económicas ligadas à construção e reparação naval, ao transporte marítimo, à actividade portuária, à logística marítima, à pesca, à aquacultura, à indústria do pescado, à náutica de recreio e ao turismo náutico, empregando recursos, capacidades e as competências marítimas 16 | BORDO LIVRE 165 | SET-OUT 2021
necessárias, para afirmar o interesse nacional e o progresso do país. Pela Conta – Transportes Marítimos no âmbito da balança de pagamentos para a economia nacional, não é realçado o verdadeiro impacto da Marinha Mercante Nacional e o seu interesse público. Se tivermos em conta o impacto económico devastador que se vive no pós COVID-19 não se pode ignorar o segmento marítimo, tanto mais que o exemplo mundial, mostra a resiliência da indústria do shipping. O volume do transporte marítimo mundial baixou cerca de 3,6% em 2020, contudo no presente ano já se perspectiva ultrapassar os níveis de 2019, apesar da crise sentida no transporte de automóveis e na indústria dos cruzeiros, que são compensados pelas recuperações sentidas nos tráfegos dos petroleiros, graneleiros e contentores. Como ameaças para o negócio do shipping mundial, temos o congestionamento dos portos e a falta de contentores vazios, particularmente na Ásia, que prenunciam a futura carência de sobressalentes, na logística das indústrias com produção “just in time “. A continuação da situação das rendições de tripulações, é uma crise humanitária, que tem o maior impacto na saúde e no bem-estar dos marítimos. Em março 2021, estimava – se que 200.000 marítimos estavam retidos a bordo dos navios, com um número semelhante aguardando em terra, a possibilidade de embarque para rendições. Períodos tão longos de vida contínua no mar, ocasionam fadiga mental, afectando decisões, com efeitos nefastos para a segurança marítima. Tantos tripulantes retidos a bordo, levantam sérias preocupações, nas novas gerações de marítimos, com reflexo na formação e treino, arriscando mesmo, uma carência na atracção de vocações,
face às condições de trabalho garantidas pelos armadores. Qualquer estrangulamento que advenha dos impactos COVID-19 aqui apontados, aportará graves consequências para a organização logística da cadeia de abastecimentos na generalidade da Economia. Numa tentativa de procurar soluções, a IMO constituiu uma task force, denominada “Seafarer Crisis Action Team “que trabalha com a ICS no desenvolvimento de uma plataforma de protocolos que assegurem as rendições de tripulantes em segurança, prosseguindo a acção junto dos Governos, para que os marítimos e os portuários sejam designados "trabalhadores essenciais", isentando-os das restricções de viagem, facilitando as repatriações e priorizando as vacinações. Num apoio desesperado aos Governos e outros interessados, mais de 450 empresas de shipping e associadas, subscreveram a “Neptune Declaration on Seafarer Wellbeing and Crew Change” no sentido de todos, numa convergência de preocupações, poderem encontrar a solução deste gravíssimo problema para a gestão de tripulações. A actividade económica da marinha de comércio, procura remunerar os capitais investidos pelos seus investidores, que com inteligência, emoção e paixão, uma vez bem exercida manifestam sabedoria. A verdade é que o mundo não se move apenas por boas intenções, mas também pelos resultados inevitáveis de tudo o que fez do Ocidente, a referência da liberdade, do império da lei, dos direitos, do laicismo, do livre desenvolvimento da curiosidade e da ciência, é a tudo isto que chamamos “progresso”. Para o alcançar, as pessoas que lideram, têm de assumir o compromisso perante a sociedade e com a comunidade, mudando a forma como o procuram alcançar, e até o atingirem.
Em duzentos anos da marinha de comércio em Portugal, assinalamos os seguintes empresários que souberam ter visão e sonho, combinados com a capacidade para organizar equipas técnicas competentes e foram capazes de reunir os capitais necessários ao financiamento: Vasco Bensaúde: Empresa Insulana de Navegação; Alfredo da Silva: Sociedade Geral de Comércio Indústria e Transportes; Francisco Luís Tavares: Companhia de Navegação Carregadores Açorianos; Bernardino Correa: Companhia Colonial Navegação; José Manuel de Mello: Companhia Nacional Navegação e Soponata Sociedade Portuguesa Navios-Tanques António Figueiredo: Grupo ETE e Transinsular Transportes Marítimos Insulares; Stanley Ho: Portline - Transportes Marítimos Internacionais; George Potamianos: Arcalia Shipping e Classic International Cruises; José António Vicente: Vinave e Seacarrier Sociedade de Navegação e Transportes; Luís Miguel Sousa: Grupo Sousa - GS Lines e Porto Santo Line; Mário Ferreira: Douro Azul e Grupo Mystic
Invest - Mystic Cruises - Mystic Ocean - Nicko Atlas Ocean Voyages
Quem estudar estes duzentos anos da indústria em Portugal, irá compreender que as potencialidades do transporte marítimo, quando a operar no exigente mercado aberto mundial, além de exigir inovação, tem de estar preparado para a competitividade, como é indispensável ter
dimensão, como também precisam da qualidade e trabalho de talentosos empresários, como estes exemplos aqui referidos. Convicções, intuição, gosto pelo risco, com sentido da responsabilidade na avaliação das possibilidades, são ferramentas essenciais para um empresário e gestor estar à frente da empresa, fazendo obra e valorizando os capitais investidos.
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O “MANUEL ALFREDO”
NAVIOS QUE DEIXARAM SAUDADE NO MINDELO
JOAQUIM SAIAL
No n.º 157 da "Bordo Livre", em março/junho de 2020, falámos no navio misto de carga e passageiros “Alfredo da Silva”. É hoje a vez de nos referirmos ao seu gémeo “Manuel Alfredo” que também escalou o Porto Grande de São Vicente inúmeras vezes e no Mindelo igualmente deixou saudades. Foi a 5 de maio de 1954 que o “Manuel Alfredo” foi lançado à água, a partir dos estaleiros da Companhia União Fabril (CUF), em Lisboa, com a presença dos ministros da Marinha, Economia, Comunicações, Corporações e Ultramar1. O nome com que foi baptizado, tal como o do seu companheiro e de outros da
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Sociedade Geral2, tinham a ver com o fundador da CUF, o industrial Alfredo da Silva e familiares seus. Nota do “Diário de Notícias” de New Bedford da altura, dava-o como tendo 5500 toneladas, quatro porões, 103 metros de comprimento e dois motores com a potência de 2200 cavalos de força, a 300 rotações por minuto3, o que lhe permitia uma velocidade de 12 nós. Dizia-se ainda que o navio tinha “todos os requisitos de conforto, segurança e comodidade para passageiros e tripulantes”. Errava o enunciado, quando aludia a apenas 12 passageiros possíveis. Na realidade, a capacidade do “Manuel Alfredo” era bem maior. Segundo o blogue “O Grupo CUF – Elementos para a sua história”, este era apenas o número de passageiros da 1.ª classe, aos quais se juntariam mais 80 lugares na chamada “classe turística" ou “2.ª classe” e instalações para 62 tripulantes4. Contudo, só a 14 de setembro foi feita a entrega do navio ao Estado, no mesmo dia em que no estaleiro da CUF começou a construção de quatro draga-minas para a Armada, dois deles com auxílio americano, no âmbito da renovação da marinha de guerra portuguesa5. Presentes, entre outros, o embaixador dos Estados Unidos da América, coronel Robert Guggenheim, e o almirante Américo Thomaz, na altura ministro da Marinha. A 23 do mesmo mês, a entrada do “Manuel Alfredo” ao serviço seria comemorada com uma recepção a bordo, em que esteve de novo presente o ministro da Marinha, bem como diversas outras individualidades. Entre elas, um distinto cabo-verdiano, o comodoro Daniel Duarte Silva, então comandante da Escola Naval6. A 28 de Outubro, o “Diário de Lisboa” trazia um anúncio de cerca de meia página, da petrolífera Shell, no qual se divulgava que nos dois motores “Pollar
Atlas”, o “Manuel Alfredo” só utilizava lubrificantes da sua marca7. A primeira viagem de que temos conhecimento, feita pelo navio, vinha anunciada no “Diário de Lisboa” de 14 de dezembro8. Estivera à carga no Norte da Europa, de 6 a 13, para Lisboa, Matadi9, Pointe Noire10 (se conviesse) e Luanda. Na primeira quinzena de janeiro de 1955 regressaria de Matadi para Anvers, Roterdão (se conviesse), Bremen e Hamburgo. Estava, portanto, o “Manuel Alfredo” a fazer o seu percurso, de que aqui lembramos algumas notícias. D. José Filipe do Carmo Colaço, que fora nomeado bispo de Cabo Verde pelo Papa Pio XII em 28 de março de 1956, viajaria para Cabo Verde a bordo do “Manuel Alfredo” por volta do dia 13 de agosto11. Engalanada e florida, a cidade da Praia esperava-o em festa. Até aviões do aero-clube saíram para escoltar o barco na sua chegada à ilha de Santiago, para além de ter havido profusão de foguetes e morteiros, sessão de boasvindas nos Paços do Concelho, com presença do governador Abrantes Amaral, e Te-Deum na catedral12. Em maio de 1961, já com a guerra em Angola em andamento, o “Manuel Alfredo” regressava a Lisboa, proveniente da Guiné e de Cabo Verde, “com 96 passageiros, entre os quais algumas senhoras” 13. E é nele que viaja clandestinamente em junho desse ano um jovem de 20 anos, natural da ilha do Sal, que logo que o navio se afastou da costa (de São Vicente ou de Santiago, não o diz o periódico) procura o capitão e lhe diz que deseja ser apresentado às autoridades militares em Lisboa, pois quer servir em Angola “e combater os terroristas que perturbam a paz naquela nossa província” 14. A 19 de Fevereiro de 1962, mais uma vez proveniente da Guiné e de Cabo Verde, o “Manuel Alfredo” retornava a Lisboa, desta feita com 51 passageiros15. A 17 de Junho,
esse número aumentaria para 100, “entre os quais alguns funcionários públicos, que [vinham] tratar de assuntos oficiais ou em gozo de férias” 16. A 25 de Julho de 1962, o navio partia do Tejo para a Guiné e Cabo Verde com 80 passageiros civis, o que dá, juntamente com o que anteriormente divulgámos, uma ideia dos fluxos de passageiros que entre Portugal continental e aquelas duas colónias da costa ocidental africana eram praticados17. Mas na tarde de 10 de Setembro, ao largar da capital do Império, o “Manuel Alfredo” já levava “um pequeno contingente militar, constituído por oficiais, sargentos e praças”, o que demonstra alguma alteração no tipo dos seus utilizadores…18 O andamento da guerra agudizaria de tal modo a situação, que o “Manuel Alfredo” acabou por ser objecto de uma portaria do ministro da Marinha, Fernando Quintanilha Mendonça Dias, que, pelo seu interesse, aqui reproduzimos na totalidade: “Manda o Governo da República Portuguesa, pelo Ministro da Marinha, declarar que o navio “Manuel Alfredo”, da Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, é afretado pela Secretaria de Estado da Aeronáutica, a partir de 6 de Dezembro de 1966, para transporte de tropas e material de guerra. Enquanto o navio tiver capitão-de-bandeira19, só poderá ser utilizado em serviço do Estado, e não comercial. Nestas condições, tem direito ao uso de bandeira e flâmula e goza das imunidades inerentes aos navios públicos.” 20 Lembremos uma última e curiosa ocorrência, relacionada com o “Manuel Alfredo”. Na madrugada de 28 de fevereiro de 1969, um grande sismo com epicentro a cerca de 230 km a SW de Lisboa (grau 7,3 na escala de Mercalli) percorreu Portugal, tendo provocado inúmeros estragos em várias localidades. Ora sucede que o
“Manuel Alfredo”, que regressava mais uma vez da Guiné e de Cabo Verde, navegava no momento à latitude 37º 16' Norte e longitude de 11º Oeste, muito próximo do epicentro do sismo e por isso sentiu os seus efeitos. O “Diário de Lisboa” de dia 1 de março é um dos mais eloquentes no relato e por isso é dele que extraímos algumas informações que nos mostram como o sismo foi visto a partir de elementos da tripulação do navio – na altura, comandado pelo capitão Joaquim da Silva Oliveira21. O 3.º piloto, João Manuel Cadaval Rocha e o 3.º maquinista João António Pereira Chuva encontravam-se de "quarto" e por isso foram os que logo melhor se aperceberam de que algo de anormal se passava. Dizia João Rocha: “Senti um grande solavanco, seguido de outros, repetidos e semelhantes. Alguns segundos, talvez menos de meio minuto. Pensei logo que tinham sido as máquinas a avariar-se.” João Chuva, que por via da sua actividade estava na parte inferior do navio, referia: “Parecia que estávamos a andar por cima de rochas, que o navio subia escadas! Não recebendo ordens de cima, parei as máquinas, por julgar que encalháramos…” Só pelas 05h10m de Lisboa o mistério foi resolvido, quando alguém ouviu através do Rádio Clube Português que houvera um sismo22. Estivera o “Manuel Alfredo” a “apenas” 100 quilómetros do ponto mais crítico do fenómeno, numa altura em que a profundidade era de 4000 metros. Pode, pois, dizer-se que a sorte lhe sorriu nessa noite aziaga. Em 1973, quando foi abatido ao serviço, tinha muitas histórias para contar, de numerosos portos visitados, de milhares de passageiros que por ele passaram e de si próprio, como foi o caso maior deste perigoso episódio sísmico do qual, com a ajuda de Neptuno, airosamente escapou23.
1. "Diário de Notícias" de New Bedford (DNNB), 05.05.1954, p. 1. Não nos foi possível confirmar a data, com toda a certeza. A única referência que conhecemos é a desta edição do jornal, veiculada pela agência noticiosa portuguesa ANI no dia anterior. O estaleiro CUF situava-se na Rocha do Conde de Óbidos (Alcântara), na margem direita do Tejo. 2. Embora mais conhecida pelo seu nome reduzido, a empresa tinha como título completo o de Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes. 3. De 7 cilindros cada, construídos em 1949 por Aktiebolaget Atlas Diesel, em Estocolmo – Suécia, com potência de 2660 cavalos, segundoosítio"NaviosMercantesPortugueses"(vistoem15.07.2021). 4. No mesmo blogue (http://industriacuf.blogspot.com/ visto em 15.07.2021), que nos parece bastante fiável, afiançase que à velocidade máxima o "Manuel Alfredo" poderia atingir os 14 nós e que os 12 nós eram os da velocidade normal. Divulga-se ainda, entre outros dados técnicos, que o seu "porte bruto" era de 3297 toneladas. 5. "Diário de Lisboa" (DL), 14.09.1954, p. 3, e DNNB, 20.09.1954, p. 2. 6. DL, 22.09.1954, p. 12 e 23.09.1954, p. 8. 7. P. 12. 8. P. 14. 9. Actual República Democrática do Congo (Kinshasa). 10. Actual República do Congo (Brazzaville). 11. DNNB, 14.08.1956, p. 1. 12. DNNB, 08.09.1956, p. 3. 13. DL, 18.05.1961, p. 14. 14. DL, 17.06.1961, p. 16. 15. DL, 19.02.1962, p. 10. 16. DL, 17.06.1962, p. 7. O "gozo de férias" referia-se à chamada "licença graciosa", mais prolongada que aquela em vigor na Metrópole e totalmente paga, a que os funcionários públicos em serviço nas colónias tinham direito, após um certo tempo de serviço. 17. DL, 25.07.1962, p. 10. 18. DL, 01.09.1962, p. 7. 19. Geralmente um oficial da Armada que representa as autoridades navais num navio civil requisitado para serviço de transporte de militares e/ou material de guerra. 20. Portaria 22.354, de 06.12.1966. 21. DL, 01.03.1969, p. 9. 22. No "Diário de Notícias" (de Lisboa) do mesmo dia, diz-se que a estação ouvida era de Marrocos. 23. Nos anos finais, o "Manuel Alfredo" passou para a posse da Companhia Nacional de Navegação.
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O COMBUSTÍVEL MARÍTIMO E O DIA MUNDIAL DOS OCEANOS
ANTÓNIO COSTA O Dia Mundial dos Oceanos começou a ser comemorado em 8 de junho de 1992, durante a Rio-92 na cidade do Rio de Janeiro e tem a finalidade de, a cada ano, fazer um tributo aos oceanos e à riqueza que produzem. No entanto, até hoje, esta data não foi oficialmente reconhecida pelas Nações Unidas. Historicamente, as sociedades sempre se localizaram perto da água, em parte devido ao facto de as viagens sobre a mesma serem mais eficientes do que por terra. As grandes massas de água são extremamente importantes para o transporte de pessoas e mercadorias em todo o mundo. A complexa rede de conexões entre portos costeiros, portos interiores, ferrovias, rotas aéreas e camiões constitui a base da riqueza económica material em todo o mundo. Os oceanos são, pois, o meio privilegiado de comunicação para o comércio global. O facto que o comprova é que, atualmente, o número de navios mercantes de carga ativos é de cerca de 60.000. O oceano, como fonte alimentar, oferece inúmeras opções altamente nutritivas, repletas de vitaminas, minerais e ácidos gordos essenciais – e tem grande importância sociocultural e económica. Em 2018, o número total de embarcações de pesca, em todo o mundo, foi estimado em 4,6 milhões. Anualmente, cerca de 150 milhões de toneladas de pescado são 20 | BORDO LIVRE 165 | SET-OUT 2021
capturados e a estatística revela que esta quantidade é a principal fonte de proteína para 2.000 milhões de pessoas. Depois de milhares de estudos, conferências, debates e intenções políticas de maior, ou menor, alcance prático e temporal, a IMO definiu a necessidade de se atingir um corte de 50% nas emissões de gases de efeito estufa até 2050, o que veio provocar “forte comoção” no seio da indústria naval. Logo pela tecnologia de propulsão, fortemente assente na utilização de combustíveis de origem fóssil (líquidos) convencionais. Neste ponto chegados, as credenciais do GNL como combustível de transição são as alternativas mais verdes atualmente viáveis. No entanto, as supostas vantagens ambientais do GNL como uma das três principais opções de combustível de propulsão disponíveis para os armadores têm vindo a ser fortemente questionadas. A UMAS (University Maritime Advisory Services, uma divisão de consultoria da University College London), num estudo publicado em junho de 2018, concluiu que os gastos projetados pela União Europeia (UE) em infraestrutura de abastecimento de GNL não teriam benefícios climáticos significativos. Além disso, observou que tais investimentos poderiam aumentar as emissões de gases de efeito estufa (GEE) do transporte marítimo em resultado do escapamento de metano na cadeia de abastecimento de GNL. A UE gastou, até agora, em projetos que promovem o uso de GNL como combustível de transporte para navios, embarcações de navegação interior e veículos um pouco mais de 500 milhões de euros. Esse dinheiro foi responsável por até 50% do custo total dos projetos individuais, em geral combinando o investimento público com o do setor privado. Se este nível de subsídio fosse mantido a
longo prazo e se o cenário de elevado uso de GNL considerado pela UMAS se concretizar, a UE poderia desembolsar até 20 mil milhões de euros até 2050. Esta hipótese de elevado consumo poderá, muito bem, ocorrer se os preços do GNL permanecerem comparativamente baixos e combustíveis alternativos como o hidrogénio não estiverem disponíveis. Não há é bela sem senão... Os consultores da UMAS concluíram que tal compromisso financeiro proporcionaria, na melhor das hipóteses, apenas uma redução de 6% nas emissões de GEE até 2050, quando comparadas com as emissões que seriam produzidas pela queima do óleo diesel substituído. Embora possa ser a queima mais limpa dos combustíveis fósseis, o GNL tem algumas desvantagens inerentes. Para começar, o GNL fornece apenas uma redução de 20-25% nas emissões de CO2 em comparação com o diesel. Em segundo lugar, a cadeia de abastecimento de GNL, desde a produção do gás natural, à cabeça do poço, e da liquefação de GNL até ao manuseio, regaseificação e consumo de gás, está sujeita a algum grau de escapamento de metano. O gás natural e o GNL processado para transporte marítimo e uso como combustível de bancas são, normalmente, compostos por 95% de metano. O metano é um potente GEE devido à sua capacidade de reter a radiação e, portanto, promover o aquecimento global. Um estudo recente nos EUA sobre escapamento de metano pela Universidade de Delaware descobriu que, em termos de volume, o CO2 é responsável por cerca de 82% de todos os GEEs de atividades humanas naquele país, enquanto o metano é responsável por 9%. No entanto, comparando tonelada por tonelada, o metano tem um impacto nas mudanças
Figura 1: A poluição mundial e o consumo excessivo de peixe, tem causado drásticas reduções nas populações de muitas espécies. Figura 2: Apesar de se comprometer com uma ambição de poluição zero, o último plano de ação da Comissão Europeia não apresenta quaisquer novas ações vinculativas para limpar o ar, a água e o solo da Europa.
climáticas 25 vezes mais adverso do que o CO2. Embora as perdas de metano em toda a cadeia de abastecimento estejam estimadas em menos de 2,5% e os volumes de emissões de metano sejam relativamente pequenos, o escape de gás natural tem um quociente de potencial de aquecimento global (GWP), desproporcionalmente, alto. O escapamento de metano no contexto de navios movidos a GNL ocorre como resultado de fugas de gás durante as transferências de bancas e, também, quando uma pequena proporção do gás natural introduzido nas câmaras de combustão do motor não queima e escapa pelo sistema de escape para a atmosfera. Os entusiastas e “grupos de pressão”, que têm vindo a promover o GNL como combustível verde, afirmam-no como uma alternativa de queima limpa ao óleo diesel marítimo, mesmo com baixo teor de enxofre, e óleo combustível pesado com opção de catalisador de gases de escape. Na realidade, á a única dessas três opções atualmente viáveis que atende totalmente aos requisitos das restrições de limite global de enxofre de 0,5% da IMO e áreas de controlo de emissão de enxofre de 0,1% (SECAs), sem a necessidade de equipamento auxiliar. No entanto, embora promova um corte nas fugas de NOx de perto de 90%, a queima de GNL emite NOx, cujas quantidades enviadas à atmosfera variam com o tipo de motor a gás. No entanto, são cada vez mais as vozes que insistem que a UE deveria “em vez do GNL, apoiar tecnologias preparadas para o futuro que proporcionarão reduções de emissões de navios muito superiores, incluindo infraestrutura de hidrogénio liquefeito e carregamento de embarcações movidas a baterias”. Para isso, no entanto, serão precisos avanços consideráveis em química e
tecnologia para adequar o dimensionamento de baterias, capazes de abastecer grandes navios oceânicos. Simultaneamente, seriam necessárias infraestruturas de recarga global, com acesso à eletricidade de energia renovável, além de provocar a obrigatoriedade de escalas mais frequentes para permitir a recarga, com as inconveniências que daí decorrem: maiores custos (despesas portuárias e outras), menor velocidade de transporte (viagens mais longas) e disponibilidade de abastecimento em determinadas rotas. Por outro lado, atualmente, combustíveis alternativos como hidrogénio e amónia não são económicos, não estão disponíveis na escala necessária e são tecnologias não comprovadas para operações de transporte marítimo. Embora apelidadas de combustíveis do futuro, essas tecnologias precisam ser trabalhadas e serão necessários enormes investimentos ao longo de décadas. A produção de hidrogénio liquefeito (LH2) nos volumes necessários para movimentar os navios acarretará elevados custos, devido às obras necessárias para a sua libertação de outros elementos, bem como o fornecimento da infraestrutura de abastecimento necessária. O hidrogénio é uma substância de baixa densidade com ponto de ebulição de -253˚C, além de possuir uma ampla faixa de inflamabilidade – queima em concen-
trações de ar entre 4 a 75%. Para armazenar este combustível a bordo de um navio, no seu estado criogénico, seriam necessários tanques enormes, caríssimos e bem isolados, construídos com materiais especiais. Finalmente, o metanol. Embora este seja um combustível líquido biodegradável e de queima limpa, atualmente é mais caro do que o diesel e de queima menos eficiente. Também é tóxico e produz cerca de 67% da energia da gasolina por litro. Resumindo, ainda falta muito para que a frota mundial e os milhões de embarcações de pesca possam ser emissores de poluição igual a zero. A utilização do Gás Natural para fazer mover os navios, embora elimine as emissões de óxidos de enxofre – uma das principais emissões responsáveis pela acidificação dos oceanos – e da maior parte do particulado e do NOx, é uma solução de recurso e não definitiva. Embora não oficialmente reconhecido pelas Nações Unidas, o Dia Mundial dos Oceanos pretende reconhecer a importância crucial dos oceanos nas nossas vidas e promover o uso sustentável deste recurso precioso. Cabe a todos nós promover na nossa atividade diária, em terra, aquilo que estamos a exigir à indústria marítima. Menos lixo, menos consumo, menos emissões e zero desperdício. SET-OUT 2021 | BORDO LIVRE 165 | 21
OS JOVENS E O MAR
BÁRBARA CHITAS
UM MÊS A BORDO DO WORLD NAVIGATOR:
Olá a todos. Ao fim de algum tempo em casa e de estar a fazer o mestrado, embarquei finalmente de oficial, no World Navigator! O Mais recente navio da Mystic Cruises. Estar num navio novo é um desafio grande, uma vez que esta tudo a ser feito pela primeira vez e por essa razão há sempre coisas para serem organizadas. Este navio como é de expedição e de pequenas dimensões, permite ir onde navios maiores não cabem e ter um serviço mais personalizado. Em navios grandes temos cerca de um tripulante para cada 3 passageiros. Enquanto neste navio é quase um tripulante por passageiro, variando claro com a lotação do navio.
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VIVER APÓS COVID:
ITINERÁRIO:
NOVAS APRENDIZAGENS:
SERVIÇO DE TENDERS E OUTRAS EMBARCAÇÕES:
As pessoas estão a adorar a experiência de estar a bordo novamente após tanto tempo sem poderem viajar. Para manter a segurança de todos os tripulantes e passageiros, temos de respeitar protocolos rígidos para manter o navio livre de COVID. A operação está a correr de forma quase normal, com a exceção que todos temos de utilizar sempre máscaras e ainda existem alguns portos em que os tripulantes, por razões de segurança ou restrições do país, não podem sair. Como muitos dos praticantes destes últimos anos, os meus últimos meses de praticagem também foram passados em navios que não estavam a navegar como na sua operação normal. Adaptar-me a ser oficial, depois de ter estado parada um ano, foi algo desafiante, mas fez-me crescer como pessoa e profissional.
No mês de agosto e na primeira metade de setembro o navio fez maioritariamente as ilhas gregas e também foi o primeiro navio de passageiros a visitar a Alexandria, no Egito, desde o COVID. Na segunda metade de setembro até outubro o navio vai passar por Itália, França, Espanha e parar em Portugal. Depois disto vai passar nas Canárias, nas Caraíbas e seguir para a Antártida, onde irá ficar até abril.
Como muitas vezes visitamos portos de menores dimensões, nem sempre ficamos atracados, mas sim fundeados. Para levar os passageiros a porto, usamos os nossos Tenders de bordo. Os tenders são as nossas baleeiras que também foram desenhadas com o propósito de transporte de passageiros. Além dos serviços de tender oferecemos
aos passageiros visitas inesquecíveis a ver as paisagens das ilhas de uma outra perspetiva através dos nossos Zodíacos. Os zodíacos são lanchas rápidas como se pode ver nesta minha foto a frente do navio. Além destes Zodíacos também temos a bordo caiaques e motas de águas, mas esses ainda não tive oportunidade de utilizar.
TRIPULAÇÃO:
De oficias da ponte, neste navio, somos maioritariamente portugueses, só o Staff Captain e o Safety officer é que são de outras nacionalidades. De oficiais da máquina neste navio são todos portugueses. É um orgulho enorme puder partilhar um navio com pessoas que andaram na mesma escola que eu, alguns até na mesma altura. São ótimas notícias vermos a nossa frota nacional crescer!
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