BL 166 novembro/dezembro 2021

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BORDO LIVRE REVISTA DO CLUBE DE OFICIAIS DA MARINHA MERCANTE

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NOVEMBRO/DEZEMBRO 2021


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EDITORIAL

JOÃO TAVARES

No mercado de cruzeiros, todos os meses tem surgido novidades o que traduz a retoma da actividade da parte dos principais operadores e, espera-se um ano de 2022 bastante activo. Nesse sentido vai a conferência que a UE irá organizar em Março próximo, em Bruxelas, para promover a sustentabilidade do turismo de cruzeiros no espaço europeu, nas suas vertentes económicas, sociais e ambientais identificando e promovendo as melhores práticas junto dos diversos parceiros de negócio. Do lado dos operadores, não deixam de surgir novas ofertas para atrair mais cruzeiristas e fidelizar os passageiros regulares. Há poucas semanas, foi a vez do baptismo do mais recente navio polar (iceclass POLAR 5) realizado em plena viagem inaugural na península da Antárctida (63º S) . A cerimónia teve a particularidade de ter sido realizada sobre uma placa de gelo, na baía Duse, com os passageiros a aplaudir, a brindar e a celebrar o acontecimento no exterior do navio e na companhia dos pinguins imperador. É o segundo navio da mesma companhia a ser baptizado em 2021 e tem a patenteada proa X-bow da Ulstein que proporciona níveis de conforto elevados mesmo em situação de águas mais agitadas. Vamos ter a oportunidade de o ver e de apreciar esta unidade tecnologicamente evoluída, em Lisboa no mês de Abril. A capital portuguesa serve de estreia no mercado europeu, com o início da

temporada de cruzeiros, com o embarque em Lisboa para um cruzeiro de 7 dias rumo ao porto de Bordéus. No COMM, temos em Maio e Junho, os nossos cruzeiros aos Fiordes da Noruega e à Islândia que estão quase completos. Poderão aproveitar os últimos camarotes disponíveis, mediante um email para: viagens@comm-pt.org e saber as condições de participação. No tema da descarbonização, continuam a surgir novos e inovadores projectos da parte dos construtores em que destacamos de forma particular o projecto desenvolvido pela Wartsila, cujo conceito é baseado na utilização de GNL combinado com vapor, para a produção de hidrogénio e dióxido de carbono. O hidrogénio será utilizado como combustível e o dióxido de carbono liquefeito irá para armazenagem em terra. A primeira vantagem é de apenas abastecer GNL a partir das infra-estruturas já existentes nos principais portos, não sendo necessário incorrer em custos adicionais com o abastecimento de hidrogénio. A segunda, que decorre da primeira, é não ter tancagem a bordo, uma vez que o processo pressupõe a utilização directa do hidrogénio. Os principais responsáveis da Wartsila acreditam que este projecto após a sua fase experimental, poderá dar um contributo muito significativo para cumprir os objectivos da IMO 2050. Está a decorrer um projecto co-financiado pela EU com o objectivo de disponibilizar e demonstrar um conjunto de soluções “zero-emissões” para os principais tipos de navios, até 2030. Assente no tripé da pesquisa, desenvolvimento e inovação, espera-se que se obtenha mais e melhor equipamentos para o sector marítimo que permitam aumentar e reforçar a posição da indústria europeia nos mercados mais complexos e tecnologicamente avançados. Actualmente o valor da produção europeia atinge o valor de 43 biliões de euros e emprega directamente mais de 285 mil trabalhadores. Recentemente, no início de Dezembro, a MSC lançou à água o casco do seu primeiro navio de cruzeiros que irá operar integralmente a GNL, o “MSC World

Europe”. Tem dois tanques de 300 m3 para armazenagem do combustível. Um outro navio com as mesmas tecnologias está em início de construção e será colocado no mercado em 2023. Ao nível da capacidade de transporte de carga contentorizada, a MSC que desde 2004 passou a ser a segunda maior companhia, atrás da líder Maersk, consegui recentemente atingir o topo e uma quota de mercado de 16,9% com 4,24 milhões de TEU. De forma a cimentar a sua liderança assinou uma carta de intenções com o estaleiro sul-coreano para a construção de 6 navios de 15.000 TEU movidos a GNL. No domínio da energia eólica, a Alfa Laval planeia lançar, em 2025, o primeiro navio com capacidade de 7.000 CEU e uma velocidade de cruzeiro de 10 nós para as travessias do Atlântico. Terá cinco velas de 80m de altura. Nestes últimos dias foram realizados alguns eventos com debates à volta da Economia do Mar e para quem assistiu, registou tal como eu registei que continuamos a falar em modelos, em estudos, em conhecimento mas com resultados muito pouco práticos. Talvez porque é tudo muito empírico e com memória curta sobre o passado marítimo de Portugal e dos grandes agentes, que no século passado, dinamizaram uma indústria de grande valor. Até ficamos com a impressão de que a subida dos oceanos, de que tanto se fala, só agora banhou o nosso litoral. Por agora, deixemos estes temas para os afamados especialistas, desta matéria que se tornou moda em todas as realidades. Neste tempo que se aproxima aproveito para desejar a todos e todas, da família COMM, uma Santa Quadra festiva com a esperança de um novo ano mais tranquilo e com muita saúde.

“Um marítimo nunca tem medo das tempestades porque é com elas que aprende a arte de navegar” e, assim também o

fazemos nas situações que enfrentamos na vida. São elas que nos ensinam a viver. Para o próximo ano voltaremos ao saudável convívio.

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SUMÁRIO

NOVEMBRO/DEZEMBRO 2021

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Editorial

João Tavares

COMM Natura Tipos de desenho de proa usados pelos navios - Parte 3 António Costa

O Meu Amigo Chuva Mendes Oliveira Gonçalves

Portugal Potência Económica Mundial J. J. Rocha Ramos

Sabedoria do Mar Alberto Fontes

O Grupo Sousa As Caravelas Portuguesas Luís Ribeiro Reis

Os Jovens e o Mar Bárbara Chitas

DIRETOR Lino Cardoso COLABORARAM NESTE NÚMERO João Tavares, António Costa, Bárbara Chitas, Alberto Fontes, Oliveira Gonçalves, J. J. Rocha Ramos, Luís Ribeiro Reis

OS TEXTOS ASSINADOS SÃO DA RESPONSABILIDADE DOS SEUS AUTORES

COMPOSIÇÃO Mapa das Ideias TIRAGEM 1000 exemplares PERIODICIDADE Bimestral REG PUBL 117898 DEPÓSITO LEGAL 84303 CORREIO EDITORIAL Despacho DE04842021SC-B2B PROPRIETÁRIO/EDITOR Clube de Oficiais da Marinha Mercante Trav S João da Praça, 21. 1100-522 Lisboa Tel (+351) 218880781. www.comm-pt.org secretaria@comm-pt.org CAPA @ Alberto Silveira Ramos DISTRIBUIÇÃO GRATUITA AOS SÓCIOS DO CLUBE DE OFICIAIS DA MARINHA MERCANTE

A REVISTA ESTÁ DISPONÍVEL ONLINE para leitura, duma forma fácil e intuitiva em http://issuu.com/clubeoficiaismarinhamercante/docs/bl166 HORÁRIO DE FUNCIONAMENTO DA SEDE DO COMM 2.ª, 3.ª, 4.ª, 5.ª, 6.ªF - das 15h00 às 18h00 A SEDE DO CLUBE DISPÕE DE LIGAÇÃO PAGAMENTO DE COTAS: NIB 001000006142452000137


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COMM NATURA

O transporte marítimo internacional é uma parte crucial da economia global – 90% do comércio mundial é transportado por mar. Mas quase todos os navios usam combustíveis fósseis e, portanto, o setor também é um grande emissor de gases de efeito estufa – com emissões quase no mesmo nível de toda a Alemanha. O progresso na redução das emissões no transporte marítimo tem sido lento. Na verdade, as emissões não são mais baixas agora do que há dez anos. O histórico do setor esteve sob escrutínio na COP26 – a última cimeira do clima da ONU em Glasgow. A Organização Marítima Internacional (OMI) – órgão da ONU encarregado de cumprir a estratégia do transporte marítimo internacional para enfrentar as mudanças climáticas – tem como meta reduzir as emissões em 50% até 2050. O secretário-geral da ONU, António Guterres, criticou esse facto, argumentando que as promessas da OMI não estão alinhadas com o objetivo do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global a 1,5 ° C, estando, antes, “mais próximas do aquecimento acima de 3 ° C”. Logo, no que respeita ao transporte marítimo, não estamos a ser tão ambiciosos quanto devíamos. O transporte marítimo internacional deve fazer uma mudança radical no seu percurso. Deve cortar as emissões num terço, nesta década, e entrar no caminho para emissões zero antes de 2050.

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As atuais metas da OMI permitiriam mais do que o dobro das emissões que o transporte marítimo pode emitir, se quiser cumprir a sua (justa) parte no cumprimento das metas de Paris. Assim sendo, essas metas devem ser revistas com urgência. Por outro lado, se os cortes nas emissões forem protelados, o percurso subsequente para as emissões zero terá de ser muito mais drástico para permanecer dentro do roteiro de carbono. Tal atraso compatível com a atual meta da IMO, aumentaria drasticamente a velocidade que o setor precisaria para reduzir as emissões a partir da década de 2030: até 15% ao ano. Para se perceber a magnitude da exigência, basta dizer que os vários bloqueios, em todo o mundo, durante a pandemia, apenas reduziram as emissões do transporte marítimo em cerca de 7%, durante 2020. Além disso, essas transformações drásticas são um problema particular sério para o setor de navegação. Os navios têm uma vida útil média de mais de 25 anos, pelo que ciclo de renovação das frotas é lento. Agora, some-se o facto de os investimentos necessários em novos navios e infraestrutura terrestre para combustíveis com zero carbono são colossais. Será (sempre) muito insensato confiar em quaisquer estratégias de descarbonização do transporte marítimo que levem menos de 25 anos. A inação nas décadas anteriores teve um custo. Mais atrasos não podem ser a opção. A ação imediata é agora a única estratégia compatível com a manutenção o aquecimento abaixo de 1,5 ° C.

A OMI tem de definir novas metas e políticas, o mais rápido possível, com grandes reduções de emissões nesta década. O setor precisará reduzir as emissões em cerca de 34% até 2030 para o colocar no rumo certo para emissões zero antes de 2050. Não vai ser fácil, mas há motivos para otimismo. Existem as práticas e as tecnologias para cumprir as metas. Podemos melhorar a operação e a eficiência do transporte marítimo, não só reduzindo a velocidade para economizar combustível, como deitando mão a nova tecnologia verde no mar (das velas à lubrificação do casco) e ligar os navios a redes de eletricidade, quando em porto. A rápida implementação de combustíveis de emissão zero, como o hidrogénio e amónia, para navios novos e existentes na década de 2030 é outro componente-chave embora, só por si, não chegue. Mais de 60% das reduções de emissões exigidas em 2050 virão de tecnologias que ainda não estão, comercialmente, disponíveis hoje, segundo a ICS.


A pressão política também está a crescer e a obrigar a ações mais ambiciosas. Há um apetite crescente dos proprietários de cargas por cadeias de abastecimentos de baixo carbono. As Ilhas Marshall estão a propor um imposto de poluição de US $ 100 por tonelada para permitir que os combustíveis mais limpos possam competir com o óleo diesel não tributado e, assim, financiar a descarbonização do transporte marítimo nos países em desenvolvimento. E 14 países, incluindo os EUA e o Reino Unido, assinaram recentemente uma declaração comprometendo-se a trabalhar com a OMI para entregar remessas internacionais com emissão zero até 2050, embora com “reduções significativas” na década de 2020. Falta, no entanto, investimento (dos estados) no desenvolvimento de tecnologias verdes. Embora as soluções existam e a vontade política cresça, o progresso da OMI é notoriamente lento. A COP26 veio colocar o holofote no setor de transporte marítimo. Em próxima reunião subsequente em novembro de 2021, a IMO discutirá planos para rever a sua estratégia climática em 2023. O protelamento não mais é sustentável. A nova estratégia da OMI deve permitir corrigir, urgentemente, o atual percurso, para poder reduzir a zero as emissões do transporte marítimo antes de 2050.

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TIPOS DE DESENHO DE PROA USADOS PELOS NAVIOS PARTE 3

6. RESSURGIMENTO PROAS VERTICAIS

ANTÓNIO COSTA

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DAS

Na verdade, quanto maior o comprimento da linha de flutuação, maior a "velocidade do casco" através da água. Mas essa caraterística não torna a proa inversa "mais eficiente". Significa, apenas, que o navio com proa inversa tem uma velocidade ótima superior ao que possui uma proa mais alargada, convencional. Esta última, tem a vantagem de aumentar o volume interno do casco, fornecendo maior flutuabilidade, subindo a proa para passar por cima da onda. A proa inversa não faz isso, entrando o navio mais fundo nas ondas, não passando por cima delas. Nestes tipos de proa resulta um “ambiente” mais húmido, com embarque mais frequente de água e surriada, embora com menores acelerações de inclinação e cabeceio. Acima de tudo, ganham velocidade – poupam combustível. Ora, as empresas de cruzeiros decidiram privilegiar a economia de combustível em detrimento do romântico passeio pelos conveses. As pressões comerciais e ambientalistas levaram a isso.

Um tanto perversamente, apresentam a opção pela nova proa vertical como mais eficiente e com melhor comportamento no mar agitado, comparada com a proa tradicional, mais larga. Também afirmam que causa menores esforços e tensão no navio e, como tal, permite melhor qualidade de vida a bordo e evita o desconforto do passageiro, enjoo e lesões. Em contrapartida, lá se vai o romantismo devido à abundância de água verde a entrar pela proa. Finalmente, uma proa quase vertical causa forte impacto visual, sendo, especialmente, atraente e plástica. São disso exemplo, as novas construções para o mercado de cruzeiro das famosas AIDA Cruises, Royal Caribbean Cruises Ltd., Virgin Voyages, Crystal Cruises e Hurtigruten que apresentam navios com proas quase verticais. Já o “Celebrity Edge” apresenta uma proa “ultraparabólica”, como o armador lhe chamou. Curva invertida, em vez de lançada, na parte superior e com um bolbo encapsulado, esta forma inovadora foi apresentada como mais eficiente a cortar a água e contribuindo para uma maior eficiência energética – cerca de 20% por passageiro, por dia. Afirmam, ainda, os responsáveis de projeto, que o navio apresenta uma efetiva redução de ruído subaquático, confirmada durante os testes de mar. A exceção à regra (há sempre uma exceção…) está na empresa de cruzeiros Aurora Expeditions que apresenta um navio (na verdade, são oito) com uma “crossbow” bem pronunciada, o “Greg Mortimer”. Tecnologicamente, é um dos navios de expedição mais avançados do mundo.


7. O FUTURO? Como serão as formas de proa num futuro próximo? Não tenho bola de cristal. Acredito, contudo, que a seleção de diferentes tipos de proa se tornará cada vez mais focada na aplicação e mais adequada ao propósito. Estão a surgir os primeiros navios híbridos e de energias limpas, p. ex. os 100% elétricos, que vão necessitar de mais estudo. Embora possamos argumentar que o estilo, a moda e o “marketing cosmético” desempenham um papel muito importante na adoção de alguns desenhos de proa (p. ex. a proa vertical), certamente existem alguns méritos técnicos na sua conceção. Independentemente da forma, porém, o importante é certificar-nos de que a proa cumpre o seu papel de rumar ao horizonte e continue a alimentar a nossa imaginação.

CIMA para BAIXO. Figura 15: O AIDAprima tem um design de casco inovador, desenvolvido pelo grupo proprietário em colaboração com a MHI e o Instituto de Pesquisa de Construção Naval de Hamburgo (HSVA). Figura 16: Celebrity Edge – A proa foi projetada para maximizar a eficiência energética devido à sua forma parabólica que se eleva verticalmente. O bolbo encapsulado dá revestimento extra aos hélices laterais para redução do arrasto. Figura 17: Na voz dos responsáveis: “Em mau tempo, o navio tem muito menos cabeceio, menos batidas, menos ruído, menos consumo de combustível e uma viagem muito mais confortável.”.

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O MEU AMIGO CHUVA MENDES OLIVEIRA GONÇALVES

O nosso camarada Chuva Mendes era um oficial da MM que vivia em Aveiro com a sua mulher e dois filhos e andava no bacalhau. Um médico negligente operou às amígdalas o seu filho varão de nove anos de idade e deixou-o morrer num pós-operatório desleixado e ausente não sei se ele estava no mar ou em terra. Com a dor pegou na família que restava e seguiu para Moçambique. Disse-me que não voltaria mais a Portugal. Quando eu fui para a Beira, o Chuva Mendes tinha acabado de construir uma linda vivenda no lugar mais elitista da Beira (Macuti). Era uma pessoa singular o Chuva Mendes. Andava sempre cheio de pressa, tinha sempre muito que fazer, nunca o vi durante tantos anos uma vez que fosse sentado numa esplanada tropical relaxando em conversas da treta entre amigos, como era habitual numa cidade com um clima daqueles. No porto ou mesmo na estrada se encontrava um parafuso ou porca, fosse de que dimensão fosse metia-a logo no bolso. Gostava de colecionar. Num país onde faltava tanta coisa, mais tarde ou mais cedo os amigos precisavam de alguma coisa que não havia em parte nenhuma… mas o Chuva Mendes tinha… Era incrível a alegria que manifestava quando conseguia desenrascar um amigo… normalmente acompanhada de um sermão por não sermos precavidos. Quando eu queria fazer qualquer coisa, expunha-lhe a situação e ele elencava logo ali todas as razões para aquilo não dar certo, não falhava nada, do positivo pensava eu e assim avançava ou não. 10 | BORDO LIVRE 166 | NOV-DEZ 2021

Partilhei situações curiosas com o Chuva Mendes: Encontrando-me eu à prática, embarquei num navio LIBERTY (navios que os americanos construíram em série para a segunda guerra mundial) na companhia do Piloto da Barra Sénior Chuva Mendes. O navio governava francamente mal . Fizemos uma tangente a uma das boias do canal, o homem do leme repetia as ordens que eu dava anormalmente alto, rodava a roda do leme no sentido da ordem recebida, mas aquilo era sempre ollo aristera (hard port) ollo dexia (hard starboard) o tempo todo… o Chuva Mendes nervoso dizia isto aqui tem história… o navio governava cada vez pior… Tanto procurou que encontrou. Os navios LIBERTY tinham a ponte de madeira. Fora da ponte, por trás do homem do leme, entre duas caixas de madeira que serviam para guardar aprestos marítimos por baixo de uma lona estava o 2º Piloto do navio com um walkie-talk na mão a repetir as ordens que o homem do leme replicava, (por isso falava tão alto), para alguém que, na casa da máquina do leme às cegas procurava governar… O período de treino de um Piloto da Barra é normalmente de seis meses. Como não tínhamos embarcações apropriadas para fazer o nosso serviço, era habitual sairmos cinco ou seis Pilotos da Barra num navio de noite de modo a que, de madrugada pudéssemos fornecer um Piloto da Barra por cada navio que queria entrar de modo a que os navios já estivessem atracados quando os ternos de estiva começavam a trabalhar de manhã.

Um dia, quando chegámos lá fora, na barra, estava mais um navio do que pensávamos e que queria entrar. O Chuva Mendes disse-me então: Você vai só e leva aquele navio. Dizia eu, não vou nada, só aqui estou há vinte e sete dias… Vai, … eu sou o Piloto mais antigo, você vai à minha responsabilidade, … vá que vai dar certo… Nesse tempo os navios não tinham hélice de proa e as máquinas pegavam quando pegavam…. Foi assim que comecei… Pouco tempo depois, recebemos ordem para ir com o rebocador GORONGOSA buscar um navio que já estava fundeado em Quelimane há mais de dois anos para a Beira a fim de ser rebocado para a Europa por um rebocador grego que o viria buscar ao porto da Beira. O Chuva Mendes era o comandante do rebocador por ser o Piloto mais antigo e eu o imediato. Enquanto estabelecíamos o cabo de reboque soube que o Comandante tinha dado ordem ao pessoal do reboque que se houvesse algo no navio que lhes interessasse podiam guardar. Quando vi o pessoal com tubos às costas e caixas de ferramentas na mão irritei-me com ele… e ele só dizia … isto é para ir ao fundo. Qual fundo, qual caraças, o navio está classificado pela American Bureau of Shipping dizia eu… dizia o Chuva Mendes… isto é para ir ao fundo, deixe à minha responsabilidade. Logo a seguir aparece-me o guarda fiscal que estava a tomar conta do navio: Sr. Imediato, roubaram-me a pistola!... Preocupado fui falar com o Chuva


Mendes, e ele disse… deixe estar que enquanto ele andar à procura da pistola não chateia ninguém… Quando chegámos ao porto da Beira com o rebocado, já lá estava o rebocador de alto mar que havia de levar o navio para a Europa. A bordo do rebocador estava o Armador, dono do navio, que antes mesmo de ir a bordo do navio já estava a reclamar onde é que estava aquele tabaco todo que ele tinha deixado a bordo… Aí, eu dei conta que o Chuva Mendes tinha razão… O navio saiu do porto da Beira pelas seis da tarde e à meia-noite já se sabia que o navio se tinha afundado. O lote de terreno onde o Chuva Mendes tinha mandado construir a sua vivenda era grande, mas ele utilizou um quarto do lote para construir um grande “passarário” onde ele criava pássaros de toda a espécie (canários, pintassilgos, noitibós, bicos de lacre etc.) … era agradável entrar naquele mundo, tinha porta e antecâmara e vermo-nos rodeados por tantos pássaros a cantar…até porque a presença de humanos representava comida para eles… Um dia o Chuva Mendes encomendou uma arara a um comandante amigo

dele que lha trouxe do Borneu. Era uma ave enorme, linda de morrer, que o Chuva, a mulher e a filha durante anos tentaram ensinar a falar. Todas as refeições a arara tinha lições mas nunca aprendeu nada, a não ser sujar tudo à volta… Se calhar era muda… Encontrei um dia o Chuva Mendes, em 1976 na ponte dos arcos em Aveiro. Vinha do cemitério (deve ser ali perto), tinha estado alimpar a sepultura do filho, disse-me que era o chefe da secretaria do Liceu de Aveiro, continuava cheio de pressa, fui alimentando conversa o mais que pude porque estava tão contente de o ver outra vez… até que ele parou junto de uma motorizada daquelas que tinham uma caixa atras para transportar botija de gás. Agora é o meu meio de transporte… assim ninguém me pede boleia. Tanta dor…acaba por deixar marcas… Nunca mais vi o Chuva Mendes… e nunca mais ouvi falar dele… O Chuva Mendes era um homem bom…

Foto: Luís Fonseca.

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PORTUGAL POTÊNCIA ECONÓMICA MUNDIAL J. J. ROCHA RAMOS

(Prelucidação: Segundo o “AIRHELP Internacional Ranking” o aeroporto de Lisboa foi considerado o pior aeroporto internacional do mundo nos últimos anos. Os parâmetros considerados e avaliados foram a “localização”, a “perigosidade”, a pontualidade, qualidade de serviço, etc. Se construírem o novo aeroporto no Montijo ficaremos com os 2 piores aeroportos internacionais do mundo... Será isto que os portugueses desejam?!)

AEROPORTOS E TRANSPORTE AÉREO 1. UM POUCO DE HISTÓRIA O Aeroporto da Portela foi construído em 1930, previsto para uma capacidade de tráfego de 300 mil passageiros ano. Em 1959, atingiu os 428 mil e em 1967, chegou a 1 milhão e 422 mil passageiros. Um estudo francês nessa data previa que em 1980, o aeroporto de Lisboa teria de receber 10 milhões de passageiros por ano e no ano 2000, um mínimo de 50 milhões de passageiros. Estas previsões levaram o governo da altura a sentir urgência em construir um novo aeroporto atendendo ao colapso eminente do aeroporto da Portela. Assim, iniciaram-se os estudos sobre a localização possível do futuro aeroporto perto de Lisboa. Será importante realçar as diferentes hipóteses que foram sendo equacionadas ao longo de mais de 40 anos: Fonte da Telha, Portela de Sacavém, Montijo, Alcochete, Porto Alto e Rio Frio. 12 | BORDO LIVRE 166 | NOV-DEZ 2021

PLATAFORMA INTERCONTINENTAL DE TRANSPORTES MARÍTIMOS E AÉREOS

Inicialmente concluiu-se que Rio Frio seria a solução mais adequada. Entre 1969 e 2017, decorridos 48 anos o único acontecimento digno de nota foi que em 1974/75, se ter concluído que Rio Frio não poderia ser viável para esse fim! Sugere-se então o encerramento da pista 01, agora 35, do atual aeroporto de Lisboa para se construírem mais portas de embarque e estacionamento de aeronaves contudo, essa decisão foi contestada veementemente por técnicos e comandantes das aeronaves, até ser cancelada e abandonada. Então, o Governo decide que a nova localização deveria ser a OTA. Em simultâneo discute-se muito a solução Portela + 1, considerando neste caso o Montijo. Posteriormente a opção OTA é abandonada, em consequência de ter surgido em Janeiro de 2008, um estudo inquestionável do LNEC – Laboratório de Engenharia Civil, muito bem elaborado e fundamentado, que comparava as soluções OTA/Montijo/Alcochete concluindo-se, sem margem para dúvidas, que a melhor solução para um novo aeroporto com futuro seria o C.T.A de Alcochete solução esta que, na altura, não sofreu qualquer contestação. Recorda-se que o então Presidente do LNEC era, na altura, o prestigiado Eng.º Carlos Ramos que, cumulativamente, era Presidente da Ordem Dos Engenheiros. Estranhamente contrariando os referidos estudos do LNEC, entidade altamente credenciada para o efeito, o Governo decidiu escolher o Montijo para construir o novo aeroporto supõe-

se que por imposição da empresa francesa “Da Vinci”, conforme afirmou o próprio LNEC que, através da ANA, superintende sobre todos os aeroportos nacionais! Esta decisão foi considerada um “enigma” pelo Eng.º Luís Todo Bom, Membro Conselheiro e Especialista em Engenharia e Gestão Industrial da Ordem dos Engenheiros e Membro da Academia de Engenharia. Este ilustre Engenheiro ainda escreveu que no caso do novo aeroporto vir a ser no Montijo prevê uma dupla humilhação para toda engenharia portuguesa pois iriam ignorar a opinião de todos os conceituados engenheiros nacionais especia.listas nesta matéria. Esta humilhação seria ainda maior se a obra vier a ser executada por empresas de engenharia e de construção, francesas e espanholas, como parece ser essa a intenção da “Da Vinci” o que o nosso governo parece estar, subservientemente, disponível para aceitar! Esta imposição alienante terá sido o resultado de um Memorando de Entendimento entre o Governo e a ANA no dia 14 de Fevereiro de 2017, estando prevista o início da operação no Montijo dentro de 5 anos e, segundo o Governo, sem custos para o Estado e para os contribuintes que já estão habituados a sofrer as consequências destes acordos nunca totalmente conhecidos do público em geral. Este estranho “Entendimento” significaria que o Aeroporto Humberto Delgado continuaria a coexistir com a cidade por mais 50 anos, conforme previsão da ANA e do Governo!... É óbvio que as decisões que têm vindo a ser adotadas enfermam de vários


vícios, irregularidades e contradições como se irá tentar demonstrar mais adiante.

2. RISCOS EM PRESENÇA Os riscos em presença sobre a coexistência do aeroporto existente encravado no meio de Lisboa e os perigos que representa para a sua população já ultrapassaram todos os limites do bom senso. A pista usada para descolagens, quando os ventos são do quadrante Sul mesmo com chuva ou mau tempo é a pista 21. Esta pista começa na zona de Sacavém e acaba na 2.ª Circular. A subida das aeronaves até à primeira altitude de segurança passa por cima, entre outros, dos seguintes edifícios a saber Para as aterragens, quando os ventos são do quadrante Norte, o tráfego sobrevoa a mesma zona em sentido Figura 1: (Infarmed, Instituto do Sangue, Escola Superior de Enfermagem, Universidade Lusófona, Universidade de Lisboa, Biblioteca Nacional, ISCTE, Hospital de Santa Maria, Hospital Curry Cabral, Museu Calust Gulbenkian, IPO, Universidade Nova, Estabelecimento Prisional, Palácio da Justiça, bem como de um elevadíssimo número de edifícios de habitação, hotéis, etc.).

contrário para aterragem na pista 03. De notar que, por dia, em média há 425 movimentos e, que em dias especiais, podem atingir os 740. Para além do perigo manifesto que paira sobre a cidade, também teremos de considerar a lei do silêncio que estabelece que os níveis de ruído devem estar compreendidos entre valores de 45 e os 70 dB que estão a ser escandalosamente ultrapassados na capital nos corredores de aproximação, acesso e descolagem ao aeroporto existente. Entre outros malefícios salienta-se que o excesso de ruído e as vibrações nos edifícios, incluindo hospitais já referidos, situados nesses corredores que provocam todo o tipo de desequilíbrios de saúde nas pessoas e danos estruturais nos prédios. Igualmente, será bom salientar a enorme concentração de poluição gerada pela aproximação, aterragem e descolagem do grande número de aeronaves que atravessam a cidade. A TAP está entre as empresas com maiores emissões de gases com efeito de estufa (GEE) e, se à TAP juntarmos as outras companhias aéreas que operam no aeroporto de Lisboa, poderemos admitir que já ultrapassámos em muito os níveis do insustentável. Estudos recentes demonstram que para além da poluição atmosférica em consequência de gases também temos que contar com outros ingredientes muito nocivos para a saúde constituídos por partículas finas, já conhecidas sobre Lisboa e também partículas ultrafinas ainda mais prejudiciais do que as anteriormente mencionadas resultantes do tráfego aeroportuário. Esta questão que já foi publicada na revista científica

CIMA. Figura 2: Aeroporto de Lisboa. BAIXO. Figura 3: (SERÁ BOM TER PRESENTE QUE OS AVIÕES TAMBÉM CAEM E, CERCA de 70%, NAS IMEDIAÕES DOS AEROPORTOS NUM RAIO DE CERCA DE 10 Kms…).

da especialidade Atmospheric Pollution Research revela que as concentrações de partículas ultrafinas são 18 a 26 vezes mais elevadas em áreas influenciadas pelos movimentos aéreos em Lisboa. Identicamente está demonstrada a relação clara entre os movimentos aéreos e os níveis de partículas ultrafinas, numa influência que se estende de forma significativa a zonas abrangidas pelos corredores aéreos, de acordo com principal autora do estudo desenvolvido no Departamento de Ciências e Engenharia do Ambiente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e no Centro de Investigação em Ambiente e Sustentabilidade. NOV-DEZ 2021 | BORDO LIVRE 166 | 13


Em 2016, houve um movimento de mais de 22 milhões de passageiros, enquanto que as estatísticas de 2008, indicavam que para o ano de 2017, o número de passageiros a movimentar seria de 19 milhões e de 130 mil toneladas de carga. Para 2050, as mesmas estatísticas indicam que o número de passageiros será de 43 milhões e 405 mil toneladas de carga a movimentar. Como se demonstra, as previsões já estão erradas por defeito e duvida-se muito que a capacidade do atual aeroporto, em complementaridade com o do Montijo possa suportar o aumento de passageiros e carga previstos durante os 50 anos que a ANA/Da Vinci estabelece. Felizmente, o transporte aéreo é, segundo as estatísticas, um dos mais seguros do mundo e, até ao presente, ainda não aconteceu nenhuma tragédia sobre Lisboa, mas convirá não abusar da sorte… Os estudos indicam que 50,39% dos acidentes ocorrem durante a operação de aterragem e 20,96% na descolagem, sendo que as zonas mais afetadas são aquelas que se encontram a menos de 10 Kms dos aeroportos. Por curiosidade, informa-se que 7 aeronaves de grande porte foram derrubadas, perto das pistas por raios durante trovoadas. Afinal, quantos incidentes e acidentes têm que acontecer mais para que se retire um aeroporto do centro de uma cidade em que os aviões para aterrar ou deslocar passam em voo rasante sobre moradias, hospitais, escolas, edifícios públicos e grandes aglomerados populacionais. Estarão à espera que a desgraça aconteça. Quanto tempo mais, os governantes irão submeter a 14 | BORDO LIVRE 166 | NOV-DEZ 2021

população de Lisboa a uma espécie letal e imprevisível desta “Roleta Russa”! Perante tais fatos, a cidade Lisboa, seus residentes e utilizadores vão ficar em “risco” por mais 50 anos em virtude das entidades responsáveis teimarem em não adotar a decisão correta sobre a localização do novo aeroporto. É do conhecimento geral, já há um projeto competente elaborado pelo LNEC – Laboratório de Engenharia Civil que propõe a localização correta do futuro Aeroporto de Lisboa em Alcochete que minimiza os riscos das consequências de qualquer acidente, reduz o impacto ambiental, satisfaz todos os requisitos técnicos exigidos por um aeroporto “Hub” e tem área de expansão ilimitada o que o tornará um projeto perfeito para o presente e para o futuro a longo prazo.

3. PROJETO MONTIJO C.T.A. ALCOCHETE

versus

Refere-se que o projeto no Montijo poderia durar 5 anos mesmo quando todo o processo não seguiu as regras que devia ter seguido ignorando os estudos feitos pelos peritos nacionais. Pergunta-se: e se o novo aeroporto fosse construído em Alcochete, quantos anos seriam necessários à sua construção quando todos os estudos preliminares estão feitos, como a direção das pistas, rotas de tráfego aéreo e implantação das infraestruturas, num terreno plano e do Estado sem restrições de qualquer espécie? Não seriam mais anos certamente e acrescentavam uma mais-valia de se poder construir um verdadeiro aeroporto para se manter operacional e

em segurança vocacionado para suportar 150 movimentos por hora para qualquer tipo de aviões de qualquer dimensão ou peso. Portugal/Lisboa teria assim um aeroporto que orgulharia os portugueses e permitia que a população de Lisboa passasse a dormir descansada. Esta infraestrutura não seria para “20 anos” como o proposto para o Montijo, mas sim para 150 anos ou mais, desde que fossem acauteladas as áreas circundantes dessa zona. Sabe-se que no ““aeródromo”” do Montijo há todo o tipo de limitações e incongruências tais como: a) Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC), entidade que certifica os aeroportos em Portugal, admite que o comprimento da pista do futuro aeroporto do Montijo pode ser motivo de grande preocupação; b) O projeto previsto para o novo aeroporto prevê que a obra aumente em 390 metros a única pista existente que ficará no total com 2.400 metros. O problema, explica a ANAC, é que esses 2.400 metros não satisfazem os requisitos de operação de aeronaves tipo B737 e Airbus 320 ou 322 o que condiciona a sua utilização pelas muitas empresas que utilizam esse tipo de aeronaves; c) O prolongamento desta pista para os recomendados 2.750 m, também não é possível em virtude dessa alteração invadir a zona protegida consolidada existente e obstruir os canais navegáveis do Montijo e de acesso ao Estaleiro da Moita; d) Em meados de Março de 2017, o presidente da Associação dos Pilotos Portugueses de Linha Aérea (APPLA)


disse à Lusa que a base aérea do Montijo não poderá ser alternativa ao aeroporto de Lisboa em situação de fenómenos atmosféricos moderados a severos que ocorrem durante três a quatro meses por ano, nomeadamente ventos cruzados e que naturalmente afetarão os dois aeroportos em simultâneo; e) As regras de circulação obrigam os aviões a contornar toda a pista “Taxi Way» para evitar cruzamentos com a pista principal o que fará perder imenso tempo, gastar mais combustível e aumentar a poluição contra a qual se luta na Europa e no resto do mundo; f) A pista no Montijo não permite aterragens e descolagens em simultâneo; g) A diferença de custos é outra falácia pois o Aeroporto de no C.T.A de Alcochete pode ser construído por fases consoante as disponibilidades orçamentais; h) O aeroporto no Montijo não mede todo o impacto do CO2 o que ameaça e colide com as metas estabelecidas pelo Acordo de Paris.

4 – ACESSIBILIDADES Para além dos fatores indicados, temos incluir os problemas de “trasfer” num aeroporto que se pretende do tipo “Hub” em que a transferência de passageiros se exige fácil, ágil e rápida o que jamais poderá acontecer em dois aeroportos separados por um grande rio em que as ligações não estão facilitadas, antes pelo contrário, no caso de ser escolhido o “aeródromo” do Montijo. Como se sabe a ligação ao Montijo por via-férrea não

é tecnicamente possível devido à tipologia do terreno envolvente, às cotas muito baixas e falta de consistência de que enfermam os terrenos dessa zona. A travessia do Tejo também está condicionada por condições adversas no Inverno que com alguma frequência a inviabilizam. O tráfego da Ponte Vasco da Gama é outro obstáculo a considerar principalmente em horas de ponta associado ao tráfego na cidade de Lisboa nessas mesmas horas. É óbvio que a necessidade de construir uma Ponte Ferroviária sobre o Tejo é mais do que evidente e necessária e já deveria ter sido construída há muitos anos. Esta ponte, para além de poder ligar a Linha Férrea do Norte à Linha Férrea do Sul agilizando o tão depauperado tráfego ferroviário teria ainda a vantagem de criar uma ligação rápida entre Alcochete e Lisboa, para além de promover a redução de gases de estufa em concordância como estabelece o acordo de Paris. Não deve ser só a distância que deve ser equacionada, mas sim o tempo que demora a percorrer essa mesma distância. Se o trajeto for maioritariamente por rodovia com via rápida, utilizando automóvel ou autocarro será muito diferente do que for por comboio ou metro, mesmo com uma ou duas paragens. Era esta importante lacuna que a ponte ferroviária solucionaria de uma forma eficiente e amiga do ambiente. A falta de recursos orçamentais é mais um embuste uma vez que se andaram a construir autoestradas a pedido e por medida, algumas delas paralelas e em abundância por todo o país, o que

torna Portugal num dos países com mais autoestradas por km2 da Europa. E os milhões gastos em incontáveis estudos que não serviram para nada e os que serviam foram ignorados! Por que razão não construíram, com essas verbas desperdiçadas a tão necessária Ponte Ferroviária sobre o Tejo?! Todavia, mesmo no caso de teimarem em não construírem a tão importante e necessária Ponte Ferroviária sobre o Tejo, a nível de ligações, Alcochete também oferece muito mais vantagens do que o Montijo. Como se pode demonstrar e com os meios atualmente disponíveis incluindo a Ponte 25 de Abril, construindo um pequeno desvio ferroviário de cerca de menos de 20 Kms para Norte na direção da Linha de Metro de Superfície existente um pouco depois do Pinhal Novo ficariam os problemas do “transfer” e do acesso a Lisboa resolvidos. A ligação ao Algarve e Madrid também se tornavam opções viáveis.

CONTINUA Figura 4: Ligações a Lisboa, Algarve e Madrid.

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SABEDORIA DO MAR

LEGADO DE UM CURSO

ALBERTO FONTES

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Dedico esta crónica aos magníficos camaradas do meu Curso para a formação de Oficiais da Marinha Mercante com quem convivi na Escola Náutica de 1965 a 1967, entre os quais, me sinto tão bem, ainda hoje. Sem dúvida que este bem-estar, se fica a dever às vivências que nos uniram nesses anos na aprendizagem de competências técnicas profissionais. Aí, sem o sabermos na altura, cada um intensamente, iniciava o seu projecto de vida, pela experiência prática recolhida através da escola que foi o Mar. Sem algoritmos a decidirem por e de nós, a designar os bons e os maus, não foi a máquina programada, que nos uniu, fomos nós que nos assumimos como Humanos na complexidade da vida e isso alimentou-nos o prazer para continuarmos juntos. À medida que os anos passam, lembro-me, cada vez com mais frequência, dos meus companheiros de curso, que volto a evocar nesta época de insegurança, repetindo as lembranças, com saudade acrescida, nas recordações afectivas que perduram. Mas o que nos faz gostar de estar juntos? A cultura, a experiência pessoal adquirida ao longo dos anos, a genética ou seremos dominados por uma verdadeira realidade virtual que nos manipula? Para tentar esclarecer esta questão o António Ferreira Lobo e o João Jaime Pinto Fernandes escreveram o 1º livro Cadetes de Elite – o reencontro 50 anos depois. Quando em Janeiro 2019, no numero 150 do Bordo Livre, vos apresentei o 2º

Livro Cadetes de Elite – uma vida … da autoria do João Jaime Fernandes, Francisco Jorge Gomes Lopes e António Manuel Farinha de Sena, sabia que aquelas 400 páginas iriam ser a maior prova do legado, embora escassas para explicarem, tudo o que havia para dizer, acerca do percurso de vida no mar, dos 86 oficiais da marinha mercante, formados na Escola Náutica em 1967. O rigor posto nos conteúdos do livro, veio trazer números impressionantes, para um período entre 16 Junho 1967 (primeiro embarque) e 31 Março 2011 (último a desembarcar) onde sobressaem os embarques em 325 navios, navegando 265897 dias, com escalas em 600 portos. No princípio dos anos 50 a nossa geração de oficiais da Marinha Mercante foi considerada pela Lloyd’s como dos melhores oficiais a nível mundial. Fomos a última geração que conduziu os navios pela astronomia. É pois com redobrada responsabilidade e orgulho, que em Setembro 2021, plena pandemia, o João Jaime Pinto Fernandes publica o 3º Livro Cadetes de Elite – 1965-67 Escola Náutica Recordando … Trata-se de um livro foto biográfico que junta nesta obra verdadeiramente ímpar, todo o acervo fotográfico existente, desde 1967 a 2020, enquadrado por diversos textos da autoria de elementos do curso. Fica assim um conteúdo riquíssimo, numa obra com 1334 páginas, dividida em dois volumes (volume I com 682 páginas e volume II com 662 páginas).


Apresentado em formato A4 mostra 6000 fotos, sendo a maioria a cores, com elevada definição. Neste trabalho, o autor mais do que a qualidade da foto, quis captar o momento. Tratou milhares de fotografias e adaptou-as ao formato do livro. No livro são mencionados 57 eventos, dispostos de uma forma cronológica desde 1966, com alguns textos intercalados, no intuito de quebrar o acto monótono de visualizar fotos. Os três livros que agora se completam, vão lembrar-nos o muito que ficou por dizer, contudo são fruto de imenso trabalho e acima de tudo recordar-nos que somos um curso realmente bem especial, que vivemos e preenchemos a nossa existência de inolvidáveis momentos. Os três livros não são, no seu conjunto, um Livro de Curso, mas sim um acervo de memórias, da arte de viver uma vida plena, que há muito iniciámos como oficiais da Marinha Mercante. Termino com uma justa palavra de gratidão para a TRANSGRÁFICA e para o seu responsável José Paiva, que sempre acreditou na importância para todos nós, destes conteúdos, produzindo uma obra gráfica de enorme qualidade, que muito nos orgulha. Uma certeza aqui vos quero ainda deixar, sem oficiais da Marinha Mercante, Portugal será sempre um país europeu, mas periférico.

POEMA AOS AMIGOS “Meus amigos são todos assim, metade loucura, outra metade santidade. Escolho-os não pela pele, mas pela pupila, que tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante. Escolho meus amigos pela cara lavada e pela alma exposta. Não quero só o ombro ou o colo, quero também a sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos. Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos, nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhos. Crianças para que não esqueçam o valor do vento no rosto, e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou, pois vendo-os loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a normalidade é uma ilusão imbecil e estéril.“ (Fernando Pessoa)

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O GRUPO SOUSA

MODELOS DE CRIAÇÃO DE VALOR

Ao longo dos últimos anos, o Grupo Sousa tem vindo a adaptar a sua estrutura organizacional e as Unidades de Negócio, no sentido de dar resposta às crescentes e exigentes necessidades do mercado, patente no crescimento do seu volume de negócios, que foi de 171 milhões de euros em 2020 (2009: 54 milhões de euros), contando hoje com mais de 1.000 pessoas, opera em 4 países. Os modelos de criação de valor do Grupo Sousa assentam em três vetores: Transporte de Carga, Transporte Marítimo de Passageiros e Energia, os quais, privilegiando a utilização de meios próprios, se complementam entre si, garantindo soluções logísticas integradas e otimizadas aos clientes.

TRANSPORTE DE CARGA Caraterizado como o modelo de criação de valor com maior representatividade no Grupo Sousa, apresenta-se ao mercado como um modelo global, assente na prestação de serviços porta-a-porta ou, numa perspetiva segmentada, em duas vertentes, de transporte marítimo e logística integrada. Agrega meios próprios e afretados como shipowner, a operação portuária, serviços de reboque, agenciamento de navios e shipmanagement, plataformas logísticas, transitários, transporte terN/M Raquel S (GS LINES).

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restre, e serviços de manutenção. O Transporte Marítimo é um setor muito competitivo, de livre acesso, e com players de grande dimensão, onde os 7 maiores do Mundo detêm mais de 75% da oferta global de transporte. A GS Lines é o maior armador nacional, e um dos 100 maiores do mundo, integrando a conceituada lista Alphaliner https://alphaliner.axsmarine.com/PublicTop100/.

A GS Lines opera atualmente 7 navios no transporte marítimo regular de carga no West Africa Trade, desde Portugal, com Algeciras, Canárias, Cabo Verde e Guiné-Bissau e, em Cross Trade, com o navio próprio “Raquel S” e navios afretados. Nas rotas nacionais, com os Açores e Madeira, opera com os navios próprios “Funchalense 5”, “Laura S” e “Rebecca S”. O Grupo Sousa dispõe da maior e mais recente frota em operação de navios porta-contentores dos armadores portugueses. Atualmente, dispõe de uma capacidade instalada de transporte de 6.778 TEU, sendo que 61% dessa capacidade está afeta às linhas internacionais. A Logística Integrada gere operações de consolidação, desconsolidação, armazenamento e distribuição em Portugal Continental, nos Açores e na Madeira. A aposta neste setor foi recenParque fotovoltaico para autoconsumo (Logislink, Cancela).

temente reforçada com a aquisição de 75% do capital e o controlo exclusivo sobre a LogiC – Logística Integrada, S.A., passando o Grupo Sousa a dispor de 13 terminais abrangendo uma área coberta total de 136.500m2. LogiC 120.000m2 (11 terminais) Logislink | Cancela, ilha da Madeira (10.500m2 de área coberta, sendo 2.000m2 frio) Logislink | Alverca (6.000m2) Atualmente, encontra-se em construção um novo terminal logístico da Logislink nos Açores, Ponta Delgada (8.500m2 de área coberta, sendo 1.650m2 de frio), que entrará em operação no 2º semestre de 2022. Estas capacidades logísticas operam de forma complementar com o Transporte Marítimo, proporcionando soluções adaptadas às necessidades específicas dos clientes.

TRANSPORTE MARÍTIMO DE PASSAGEIROS A Porto Santo Line, armador do Grupo Sousa, assegura o transporte marítimo regular de passageiros e mercadorias entre as ilhas da Madeira e do Porto Santo, com o ferry “Lobo Marinho”, numa concessão de serviço público que não beneficia de quaisquer indemnizações compensatórias do Estado ou da R.A.M., uma operação de sucesso que, desde 1995, fez crescer o tráfego anual de 100.000 para 360.000 passageiros, com benefício direto para a economia da ilha do Porto Santo. Este modelo de criação de valor agrega também operações com unidades hoteleiras na ilha do Porto Santo e uma Agência de Viagens. Ainda no âmbito deste modelo de criação de valor, importa referir que o Grupo Sousa é o único grupo empresarial português a integrar o


CIMA para BAIXO. Rotas Marítimas Nacionais e Internacionais. Terminal da LogiC. N/M Lobo Marinho (Porto Santo Line).

consórcio multinacional que opera o Terminal de Cruzeiros de Lisboa.

ENERGIA Pela Gáslink, mantém um “gasoduto virtual de gás natural”, operação pioneira e inovadora em ambiente insular, de logística intermodal “portaa-porta” de gás natural para produção de energia elétrica na ilha da Madeira, operando ainda uma Unidade Autónoma de Gás na ilha da Madeira (UAGSocorridos), a maior do País, localizada no Concelho do Funchal. Em conjunto com a produção eólica de três aerogeradores pela Windmad, este modelo de criação de valor do Grupo Sousa tem vindo a contribuir, desde 2014, para ganhos ambientais acu-mulados significativos, traduzidos na redução estimada das emissões de CO2 (270 mil toneladas), NOx (12 mil toneladas), SOx (3 mil toneladas) e Partículas (150 toneladas). O Grupo Sousa detém ainda um parque fotovoltaico com capacidade de produção de 280Kw para autoconsumo. Em 2020, as empresas do Grupo Sousa, na Madeira, atingiram 5,02 Gigawatthora de produção de energia verde, livre de emissões, através da energia eólica produzida pela Windmad e do sistema fotovoltaico da Logislink em autoconsumo. O consumo anual de energia do Grupo Sousa nas geografias onde opera, em Portugal Continental, nos Açores, na Madeira, em Cabo Verde e na GuinéBissau, cifrou-se em 3,20 Gigawatthora. Este superavit de 57%, no balanço energético entre a energia verde produzida e aquela que foi consumida por todas as empresas do Grupo Sousa, resulta da política de responsabilidade e sustentabilidade corporativa que tem vindo a ser prosseguida nas operações e serviços de apoio, em alinhamento com as melhores práticas ambientais. NOV-DEZ 2021 | BORDO LIVRE 166 | 19


AS CARAVELAS PORTUGUESAS

CONSTRUIDAS EM BRUXELAS NOS ANOS DE 1438 – 1439 O NASCIMENTO DA CARAVELA HENRIQUINA LUÍS RIBEIRO REIS A primeira notícia em Portugal sobre a construção destas caravelas em Bruxelas foi publicada no «Arqueólogo Português», série IV, 6/7, 1988-89, p. 307-331, mas editado só em 1993, com o título «Un compte de constrution de Caravelles Portugaises à Bruxelles en 1438-39 commenté par Jacques Paviot et Eric Rieth. O texto original é acompanhado da descrição dos «relatórios – conta» referentes à construção das caravelas (Bruxelles, Archives Generales du Royaume. Chambre de Comptes). Em Dezembro de 1993, na Revista «Oceanos» nº16, foi publicado um artigo assinado por Jacques Paviot e Eric Rieth – Laboratoire d´Histoire Marítime CNRS – Paris, com o título «Um relatório sobre a construção de Caravelas Portuguesas em Bruxelas (1438-1439) – com tradução de Isabel Gentil. Sabemos que esta «construção» inscrevia-se num programa de equipamento naval seguido pelo Duque de Borgonha, Philippe Le Bon, entre os anos de 1436 e 1441, que para se equipar com novos navios recorreu a carpinteiros navais vindos de Portugal, que construíram em 1436 uma Galé no porto de Écluse e no início de 1438, uma caravela pequena, também em Écluse; em 1438 e 1439, construíram duas caravelas em Bruxelas nas margens da ribeira de Senne e, entre 1439 e 1441 uma grande nau, em Anvers. Em Março de 1995, sob a chancela da FUNDAÇAO CALOUSTE GULBENKIAN, foi publicado o livro «PORTUGAL et BOURGOGNE au XVe Siècle (13841482) – Édition Présentée et commentée par JACQUES PAVIOT. CCCG/CNCDP – Lisbonne - Paris 1995. Este livro re20 | BORDO LIVRE 166 | NOV-DEZ 2021

produz documentação dos Arquivos oficiais, com referencias à construção de duas caravelas em Bruxelles. No ano de 1997, a Academia de Marinha publica o Livro «Navios, Marinheiros e Arte de Navegar 11391499», obra coordenada por Fernando Gomes Pedrosa e integrada na HISTORIA DA MARINHA PORTUGUESA. No Capítulo III – Os Navios de Vela – 6.1 - A Caravela redonda - na página 137 e seguintes, refere-se às Caravelas de Bruxelas e sua construção, julgo que foi a primeira vez que a historiografia portuguesa se debruçou sobre este tema. Em Maio de 2004 é publicado o Livro «OS NAVIOS DO MAR OCEANO – Teoria e empiria na arquitectura naval portuguesa dos séculos XVI e XVII» de Francisco Contente Domingues, reconhecido especialista em História da Náutica, falecido em 10 de Março de 2021, em que consta na Bibliografia o nome de Jacques Paviot; no prólogo o autor diz que este livro resultou de uma dissertação de doutoramento concluída no ano 2000 e apresentada em 2001 na Universidade de Lisboa. Na Parte II – OS NAVIOS NO MAR - No Capítulo I - 2. TEORIA E PRÁTICA NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO - na página 233, refere-se aos construtores navais portugueses na Flandres ao serviço de Filipe o Bom, no ano 1438. Em Setembro de 2009, João Paulo Oliveira e Costa publica o livro «HENRIQUE, O INFANTE», em que é abordado de novo a questão das «caravelas de Bruxelas» no Capítulo 8 – SENHOR DO MAR (1443-1448) - páginas 275 e seguintes. Em 2014 foi publicado o Livro «História da Expansão e do Império

Português» de João Paulo de Oliveira e Costa (coordenador), João Damião Rodrigues e Pedro Aires Oliveira, em que desenvolve o assunto das Caravelas construídas em Bruxelas em 1438-1439, no subtítulo «Das Barcas às Caravelas». A «barca» cedo se revelou pouco adequada para as viagens ordenadas pelo Infante, pois era uma embarcação que apenas dispunha de um mastro com vela quadrada, navio pequeno com uma coberta e sem estruturas relevantes à proa e à popa. Os primeiros navegadores constataram que por alturas do Cabo Bojador os ventos alíseos são constantes e sopram para o Sul durante todo o ano, o que dificultava a «torna viagem». Em 1434, Gil Eanes utilizando uma barca dobra o Cabo Bojador e nos anos de 1435-36 os marinheiros da casa de Viseu voltam a passar o Bojador, mas devido às dificuldades em avançar mais para o sul, que exigiam soluções inovadoras, só voltamos a ouvir falar de novas viagens depois de 1440. Sabemos que em 1438-39 alguns Oficiais portugueses, Mestres Carpinteiros e Calafates Navais, trabalharam na Flandres juntamente com Artesãos dos Países-Baixos, território que fazia parte dos domínios do Duque da Borgonha, que era casado com Isabel de Portugal, irmã do Infante D. Henrique. Também Sabemos que estes homens trabalharam em Bruxelas sob a orientação do Mestre João Afonso e seus companheiros, «mestres em construir navios de mar no país de Portugal», peritos na construção de navios de costado liso, cuja técnica se caracteriza por começar pela ossada, que constitui o elemento estrutural e


só depois aplicar o tabuado do costado justaposto pelo topo (carvel-built system) e com recurso a «calafetagem com estopa impregnada em pez»; este tipo de construção é bem diverso do usado nos navios de costado trincado, em que as tábuas de madeira são justapostas como as «telhas», método característico do Norte da Europa, em que a construção do casco precede a colocação das balizas (shell-first), uma vez que estas são apenas peças de reforço e não estruturais; estes homens tiveram por missão construir um novo PROTÓTIPO que se adequasse melhor às condições difíceis do MAR OCEANO e aos interesses COMERCIAIS que estavam subjacentes às viagens oceânicas. Depois de várias experiências nos canais entre Bruxelas e Antuérpia e algumas viagens no Mar do Norte, surgiu a CARAVELA. Já existiam embarcações deste nome, mas a que agora sulcava os mares tinha 2 ou 3 Mastros equipados com Velas Triangulares, próprias para a bolina, tinham arqueação maior, sendo capazes de transportar mais mercadorias e um maior número de homens e dispunham ainda de Castelo de Popa, que podia abrigar parte dos vinte e um membros da Equipagem. O principal contributo dos artesãos borgonheses foi na mastreação e na criação do castelo da popa, parecendo evidente a preocupação de D. Henrique e D. Isabel em articular o conhecimento dos portugueses sobre as águas ao sul do Bojador, com a capacidade dos construtores «valões e flamengos» de construírem navios adaptados à força do «Mar do Norte». Podemos afirmar com grande probabilidade de certeza que a «Caravela dos

Descobrimentos» resultou deste empreendimento luso-borgonhês desenvolvido em 1438-1439, hipótese também sustentada por Francisco Contente Domingues. Na Crónica da Guiné de Zurara, no Cap. XI pode-se ler a notícia da entrada súbita na cena atlântica das primeiras caravelas: - Bem é que no ano de quarenta (1440) se armaram duas caravelas, a fim de irem àquela terra, mas porque houveram «aquecimentos contrários, não contamos mais sua viagem». Estavam dados os primeiros passos, com as naturais contrariedades…E já no Capítulo XII podemos ler: … e foi assim que aqueste ano de quatrocentos e quarenta e um (1441) fez o Infante armar um navio pequeno, no qual mandou por Capitão um Antão Gonçalves; e no Cap. XIII... Ora saibamos como Nuno Tristão, um cavaleiro mancebo …. Chegou àquele lugar onde era Antão Gonçalves; o qual trazia uma caravela armada, com especial mandado de seu senhor, que passasse além do Porto da Galé, o mais longe que pudesse.…; depois da partida daquele, visto como «sua caravela cumpria ser repairada, feze-a poer em terra, onde a fez alimpar e correger do que cumpria, aguardando sua maré como se fosse ante o porto de Lisboa, de cujo atrevimento muitos foram

maravilhados». E seguindo sua viagem, passaram o Porto da Galé e «fizeram vela» até chegarem a um cabo, ao qual puseram o nome de Cabo Branco… A documentação do Ducado de Borgonha, tão rica em informação sobre a construção destes navios convida a um novo olhar sobre o surgimento da «Caravela Henriquina», que responde às questões e dúvidas levantadas por grandes figuras, tais como Damião Peres e Jaime Cortesão, um novo olhar que obriga a pesquisar onde e quando foi replicado no nosso território esta nova prática de construção das caravelas henriquinas, empresa que julgo ainda não foi posta em prática e que urge esclarecer a fim de abandonar a tese de que as caravelas Henriquinas são fruto do lento e continuado aperfeiçoamento das embarcações utilizadas no abastecimento a Ceuta. E por fim, as evidentes limitações da construção dos navios de casco trincado, por falta de garantia de rigidez estrutural, levaram a que a técnica oriunda do Sul acabasse por se impor e nos inícios do século XVI já se tornara uma prática comum em toda a Europa. Lisboa, 9 de Maio de 2021

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OS JOVENS E O MAR

BÁRBARA CHITAS

SAÚDE FÍSICA E MENTAL DOS MARÍTIMOS: Felizmente, cada vez mais as novas gerações se preocupam não só com a sua saúde física, mas com a mental. Cada vez mais as pessoas priorizam o balanço entre as suas vidas laborais com a sua vida pessoal. Um dos motivos que leva a esta consciencialização é sem dúvida a disseminação de informação através da internet, nomeadamente das redes sociais. Obviamente que as redes socias têm aspetos positivos. Podem por exemplo, através da partilha, ensinar a valorizar aspetos da sua vida, que antigamente não seriam valorizados. Porém podem intensificar pressão individual, no que toca à comparação com outros do que seria a vida perfeita. Uma vez que quando partilhamos algo com o mundo, fazemos maioritariamente acerca da parte que nos é mais conveniente, pode gerar nos outros a sensação que estão a alcançar menos nas suas vidas, ou os outros estão a chegar mais longe. Na vida a bordo isto poderá aplicar-se aos locais visitados ou à falsa leitura do estado emocional das pessoas que estão a bordo, uma vez que quando se pesquisa sobre pessoas a bordo de navios, não vemos endereçado os problemas que poderão estar relacionados com a sobrecarga dos seus trabalhos, horários de sono trocados, constante diminuição de tripulações, etc…

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O QUE NOS DIZEM OS ESTUDOS?

Comparando com outras profissões, o emprego marítimo conta com mais 20% de probabilidade de sofrer com depressão ou stress. Dentro dos marítimos, as populações mais jovens são mais propícias a desenvolver algum tipo de problema de saúde mental. A saúde mental ainda é encarada como alguma forma de fraqueza e falta de capacidade. Colocar à discussão este tema é essencial para a sua resolução. FATORES QUE IMPACTUAM A SAÚDE MENTAL DOS MARÍTIMOS:

Demasiadas horas de trabalho: Muitos marítimos admitem que as horas que são assinadas e as horas reais de trabalho são diferentes. Contratos longos: Contratos longos fazem com que o marítimo se sinta mais afastado da sua vida pessoal. Reduzido tempo em terra: Com as escalas em porto cada vez mais reduzidas, os marítimos perdem o tempo de visitar os portos que escalam, que são uma boa fonte de descontração nas horas livres de trabalho. Imprevisibilidade da vida: A grande maioria das empresas contrata os seus marítimos para um determinado tempo de férias, o que faz com que a

pessoa fique como se fosse “desempregada” no seu tempo de férias. Tempo longe da família: Estar longe da família e entes queridos pode fazer os marítimos se sentirem deslocados da sua vida pessoal. Falta de socialização: Quando falo com marítimos da “velha guarda” oiço muitas histórias das jogatanas na messe, os filmes que viam juntos, festas da tripulação, etc… Hoje em dia a tendência é mais de isolação, após o fim do turno, muitas vezes as pessoas querem simplesmente descansar e vão diretas para os seus camarotes. O QUE PODE SER MELHORADO?

Dentro do navio, disponibilizar instrumentos de comunicação como internet acessível aos seus trabalhadores, é de facto, algo bastante positivo, uma vez que ajuda os marítimos a manterem contacto com os seus familiares e amigos. Modernizar o sistema de quartos: Porquê ter turnos de 4 horas seguidos de 8 de descanso que sabemos que nunca iram ser de todo 8 horas? Seria mais positivo aranjar um sistema em que os marítimos tivessem num dos períodos mais que 8 horas de descaso, para poderem criar hábitos de sono saudáveis. Criar melhores instalações de convívio e de desporto a bordo dos navios. Oferecer contractos contínuos aos marítimos, especialmente aos que já trabalham com a empresa há alguns anos, tentando perceber as necessidades individuais de cada pessoa.


O QUE GANHAM OS ARMADORES EM PREOCUPAREM-SE COM A SAÚDE MENTAL DOS SEUS EMPREGADOS?

Após a pandemia, muitas das empresas viram os seus antigos trabalhadores seguirem diferentes vias, uma vez que tiveram de arranjar trabalho em terra na altura e não veem motivos suficientes nas suas antigas carreiras para voltarem. Tão importante como ter trabalhadores com competências, é ter trabalhadores motivados, não só pelo seu próprio interesse em subir nas suas carreiras, mas por de facto sentirem que são valorizados pela sua empresa. Aproveito também este, que é o último artigo do ano, para desejar a todos um Feliz Natal e um próspero Ano Novo!

NOV-DEZ 2021 | BORDO LIVRE 166 | 23



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