BORDO LIVRE REVISTA DO CLUBE DE OFICIAIS DA MARINHA MERCANTE
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JANEIRO/FEVEREIRO 2022
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EDITORIAL
JOÃO TAVARES
Com um novo ano que se inicia muitos dos antigos (2021) temas são os novos de 2022. O mercado mundial de carga contentorizada teve uma evolução muito positiva ao longo de 2021 com lucros previstos de USD 190.000 milhões, um valor extraordinariamente elevado induzido pelas taxas de frete a atingirem valores muito altos, quer por navio quer por contentor: a título de exemplo, um navio Panamax de 4.400 TEU passou, num período de um ano, de USD 14.012 para USD 67.123 e um contentor de 20’, na linha ShanghaiEuropa viu subir o preço de frete de USD 1.204 para USD 6.119. As taxas spot atingiram o máximo em Outubro e embora tenham descido, não o suficiente, levou os afretadores a iniciarem, mais cedo – Novembro, a negociação dos novos contratos anuais de serviços para 2022-2023 de forma a garantir as melhores taxas e alcançar a previsibilidade e a estabilidade nos tempos e prazos de transporte. Por outro lado, estes ganhos históricos levaram a um recorde de investimento, da parte dos armadores, ao colocarem 548 novas ordens de encomenda correspondendo a um acréscimo de 4,2 milhões de TEU. Um terço destas novas construções será equipado com novas tecnologias para combustíveis alternativos. Também realizaram investimentos na aquisição de infra-estruturas logísticos para permitir uma maior integração vertical dos negócios.
A CSSC Qingdao Beihai Shipbuilding recebeu a encomenda para a construção de dois navios graneleiros de 210.000 dwt em conformidade com a IMO Tier III e a navegação carbono zero, recorrendo à amónia como combustível, armazenada em dois tanques com capacidades de 3.000 m3. Serão os primeiros navios desta categoria a nível mundial. Enquanto perdurar o congestionamento nas cadeias logísticas, as taxas de frete não baixarão e por consequência os lucros dos carregadores manter-se-ão em alta. No próximo mês de Fevereiro, entra em vigor o novo tarifário de portagens no canal do Suez, revisão de 6%, que irá originar custos acrescidos aos diversos carregadores, sendo particularmente afectado o mercado de exportação da Índia, que regista elevados níveis de procura. Além do mais, já estão a ser penalizados por uma taxa adicional (PPS – peak season surcharge) de USD 4.000 por contentor, para todas as cargas com destino aos EUA. Além destes dois grandes temas que irão dominar a agenda dos transportes marítimos durante 2022 e 2023, os Fretes e a Descarbonização, outros temas tais como, melhor controlo logístico e inventários de bens e matérias-primas, automatização e digitalização irão acompanhar o sector marítimo. O operador Svitzer celebrou uma adenda ao contrato existente com SCA (canal do Suez) para dois novos rebocadores de 28,4 m de 75 ton a serem disponibilizados no final do 1º semestre deste ano. Com desenho e projecto canadiano serão construídos na Turquia e irão auxiliar o crescente trânsito pelo canal.
Em 2021, a SCA registou receitas recordes de USD 6.300 milhões (crescimento de 12,8%) decorrentes de 20.649 navios (crescimento de 9,7 %). Ao nível da inovação, aquilo que parecia quase impossível de se concretizar, aconteceu pela mão da Mitsui OSK Lines (MOL) ao realizar a primeira prova de mar com um pequeno (194 teu) porta contentores em modo total autónomo durante uma rota de cabotagem (162 mi) no mar do Japão. Foram testados os sistemas ao nível de regras de navegação, ventos, correntes, manobrabilidade, controlo da máquina e regime dos motores. A acostagem também foi realizada em modo autónomo sendo as operações de amarração realizadas com recurso a um drone. Em Fevereiro irão realizar novo teste, desta vez com um navio de 11.410 GT (ropax) numa diferente rota de cabotagem. Ao nível do Clube, vamos retomar as actividades, em particular, a realização de três cruzeiros: Fiordes da Noruega, Islândia – gelo e fogo, e o mediterrâneo para as férias em Agosto. O tempo é favorável para a retoma gradual do convívio e como diz o poeta “Não são as marés que comandam o navio, é o marítimo que o governa”. Saudações marítimas
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SUMÁRIO
JANEIRO/FEVEREIRO 2022
3 6 10 12 14 16 18 20 22
Editorial
João Tavares
COMM Natura António Costa
In Memoriam Recordar o Spínola Pitta Oliveira Gonçalves
Tibério Paradela (1940-2021) Hugo Bastos
Sabedoria do Mar Alberto Fontes
Portugal Potência Económica Mundial - parte 2 J. J. Rocha Ramos
Terrível Batalha entre algarvios e saveiros Senos da Fonseca
Os Jovens e o Mar Bárbara Chitas
DIRETOR Lino Cardoso COLABORARAM NESTE NÚMERO João Tavares, António Costa, Bárbara Chitas, Alberto Fontes, Oliveira Gonçalves, J. J. Rocha Ramos, Senos da Fonseca, Diogo Santos, Manuel Morais, Hugo Bastos
OS TEXTOS ASSINADOS SÃO DA RESPONSABILIDADE DOS SEUS AUTORES
COMPOSIÇÃO Mapa das Ideias TIRAGEM 1000 exemplares PERIODICIDADE Bimestral REG PUBL 117898 DEPÓSITO LEGAL 84303 CORREIO EDITORIAL Despacho DE10012022GSB2B/jan PROPRIETÁRIO/EDITOR Clube de Oficiais da Marinha Mercante Trav S João da Praça, 21. 1100-522 Lisboa Tel (+351) 218880781. www.comm-pt.org secretaria@comm-pt.org CAPA @ Vasco Pitschieller DISTRIBUIÇÃO GRATUITA AOS SÓCIOS DO CLUBE DE OFICIAIS DA MARINHA MERCANTE
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PRIMEIROS EMBARQUES DIOGO SANTOS
Olá! O meu nome é Diogo Santos e sou Engenheiro de Máquinas Marítimas, licenciado na Escola Náutica Infante D. Henrique. Em 2021 decidi embarcar em duas aventuras: prosseguir os estudos através do mestrado na ENIDH em simultâneo com o tempo de praticantemaquinista. O meu primeiro embarque foi em janeiro na Promar Shipping Services, empresa que detém navios de apoio a plataformas em África. O primeiro navio onde embarquei encontrava-se em doca seca a efetuar a manutenção dos 10 anos, o que percebi logo que iria ser um início mais exigente pois é nesta paragem que é realizada a
grande manutenção planeada seja ela preventiva, correctiva ou de modernização, que não é possível quando o navio está operacional a navegar. Cheguei nervoso pela manhã ao navio, era tudo uma grande novidade, mas fui recebido pelo comandante e pelo chefe de máquinas que de seguida me acolheram e colocaram à vontade. Comecei nesse mesmo dia a trabalhar, pois a bordo não há folgas ou fins de semana, há horas de trabalho, horas de descanso e o domingo! Domingo é um dia como os outros, trabalha-se, mas para quem está a bordo é o significado de mais uma semana findada e de que estamos a menos uma
semana de voltarmos para casa. A primeira lição que nos é ensinada a bordo e que todos os dias é reforçada – segurança em primeiro lugar! Acima de tudo a nossa vida e dos nossos camaradas é mais importante do que tudo o resto. Na escola aprendi os funcionamentos e os componentes dos vários equipamentos que constituem a casa da máquina de um navio, mas foi só a bordo que os entendi verdadeiramente e que tudo começou a encaixar. Como se relacionam entre si e as interdependências entre os sistemas. Várias vezes perdido tive que recorrer à leitura do manual e, a olhar para um sistema até o perceber, persistir até fazer sentido. É uma profissão bem remunerada e que nunca se tornará indispensável, mas também tem os seus contras, abdicamos de passar tanto tempo com a nossa família e amigos. Na minha opinião, com uma rotina definida, um pensamento de que nos encontramos fora da nossa zona de conforto, mas de que estamos a fazer o que mais gostamos para podermos desfrutar ao máximo a posteriori e que temos acesso ao melhor nascer e pôr do sol é suficiente e gratificante. Sempre ouvi dizer que tem que se gostar muito do mar para se embarcar por muito tempo, no meu ponto de vista não é totalmente verdade. Os verdadeiros oficiais da marinha mercante, isto é, quem embarca, sabem que há uma coisa que nos faz gostar desta vida e voltar sempre: o espírito e a amizade criada por quem passa meses connosco a bordo e a vontade de chegar a bom porto. Embarcar por si só é um desafio a nós próprios, uma realidade que só descobrimos ser capazes de a enfrentar se a encararmos de frente. Estou neste momento no meu terceiro embarque, já lá vão alguns meses a bordo e algumas aventuras, mas de uma coisa já tenho a certeza, gosto muito do que faço! JAN-FEV 2022 | BORDO LIVRE 167 | 5
COMM NATURA O POTENCIAL DESASTRE DA ROTA DO MAR DO NORTE
O Canal de Suez esteve, recentemente, bloqueado pelo navio Ever Given, o que paralisou o comércio internacional ao longo dessa importante rota marítima e expôs as vulnerabilidades das cadeias de abastecimento globais. A Allianz, que segurou o Ever Given, indicou que o bloqueio de seis dias custou ao comércio global 6 a 10 mil milhões de dólares norte-americanos. Aproximadamente, 12% do comércio mundial e um milhão de barris de petróleo passam pelo canal todos os dias. Enquanto estavam em marcha os esforços para desencalhar o navio de 200.000 toneladas, a Rússia viu uma oportunidade de promover a Rota do Mar do Norte (NSR) como alternativa. Partindo do Mar de Barents, perto da fronteira entre a Rússia e a Noruega, até ao estreito de Bering, entre a Sibéria e o Alasca, o NSR pode vir a tornar-se uma rota essencial para a extração e transporte de recursos, incluindo hidrocarbonetos, do Ártico. Indo da Coreia do Sul para a Inglaterra, o NSR é mais curto em cerca de 4.000 milhas náuticas em comparação com a rota de Suez e também pode dar um grande impulso à indústria de petróleo e gás da Rússia.
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Em outubro de 2020, o presidente russo Vladimir Putin apresentou uma estratégia para o desenvolvimento da Zona Ártica Russa, onde incluía um plano para abrir o NSR, construir portos aéreos e marítimos e construir uma frota de navios quebra-gelo movidos a energia nuclear. Embora os russos elogiem o NSR como uma alternativa mais curta e segura, eles escondem os riscos climáticos adversos envolvidos. Permitir o transporte comercial pelo Ártico será nada menos que um desastre climático. O aumento do transporte marítimo significa maior risco de derrame de óleo, poluição do ar pela queima de combustível e acidentes. O óleo combustível pesado (HFO) é o combustível de navegação mais comum no Ártico e o seu uso produz carbono negro – ou fuligem – que pode acelerar a taxa de derretimento do gelo ártico. As emissões de carbono negro apenas do transporte marítimo do Ártico aumentaram 85% em apenas 3 anos, de 2015 a 2019. Em virtude das preocupações globais sobre HFOs e emissões associadas aumentarem, a OMI anunciou uma “proibição de papel” sobre o uso de HFOs em novembro de 2020. No entanto, a proibição apenas entra em vigor em julho de 2024 – para além de permitir isenções para certos tipos de navios até 2029. Para piorar, a carga de HFO será permitida na região do Ártico indefinidamente.
O gelo ártico reflete a radiação solar de volta ao espaço. No entanto, o carbono negro libertado fica suspenso na baixa atmosfera, absorve calor e, quando flutua sobre o gelo, reduz a refletividade. O gelo, então, absorve o calor que deveria ser refletido e derrete mais rápido. Na ausência deste "escudo branco", a superfície da Terra irá aquecer mais depressa. Nas últimas décadas, a atmosfera do Ártico aqueceu três vezes mais que a média global, no que resultou numa redução significativa na extensão do gelo ártico. À medida que, em particular, o permafrost1 descongela, é libertado dióxido de carbono e metano, ambos gases de efeito estufa que causam mais aquecimento (o metano é 80 vezes mais potente). Dos 15 milhões de quilómetros quadrados, ou mais, de permafrost, 3,4 milhões já descongelaram.
1 O permafrost é o solo que passa todo o ano congelado e que cobre 25% da superfície terrestre do Hemisfério Norte, sobretudo na Rússia, Canadá e Alasca. Contêm quase 1,7 milhão de milhões de toneladas de carbono, ou seja, quase o dobro do dióxido de carbono (CO2) presente na atmosfera. Com o aumento das temperaturas, o permafrost derrete, libertando os gases que estavam neutralizados.
Poderá ter sido tentador considerar a NSR quando o Canal de Suez esteve bloqueado. No entanto, o impacto sobre o clima deve dissuadir todos os formuladores de políticas de se avançar para a mudança. A proteção do Ártico exige uma ação global imediata para cortar o dióxido de carbono, mas também as emissões de poluentes climáticos de curta duração, como o metano e o carbono negro. Se não tomarmos essas medidas agora, ou pior, promovermos o transporte pela NSR, comprometeremos as nossas hipóteses de nos proteger contra o pior da mudança climática.
CIMA: A Rota do Mar do Norte poderá encurtar as viagens comerciais marítimas, mas constitui-se como presságio de desastre climático. BAIXO: Rota do Mar do Norte em comparação com a rota de transporte usada atualmente.
Na verdade, o mundo está a caminho de um aumento de temperatura de quase quatro graus Celsius até o final deste século. O calor intenso, já muito elevado nalguns países, pode-se tornar insuportável. Mais cedo do que se pensa, as enchentes inundarão a maioria das cidades costeiras do mundo – onde vive cerca de 40% da população do planeta. Fonte: The Wire Science
ANTÓNIO COSTA
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PRIMEIROS EMBARQUES
MANUEL MORAIS Escrevo este texto enquanto faço a minha passeata diária no convés do navio em que estou embarcado, contando-vos assim o meu percurso até agora. Estudar na Escola Náutica foi algo que sempre quis, desde criança. Inicialmente devido à ligação que tinha com o mar, posteriormente pela quantidade de conhecimento teórico e pela experiência prática que adquiri e venho a adquirir todos os dias, bem como pela elevada remuneração e motivado pela alta taxa de empregabilidade. Assim acabando o ensino secundário ingressei na ENIDH na licenciatura em Engenharia de Máquinas Marítimas e fiz parte da Associação de Alunos da ENIDH, tendo chegado a ser presidente da mesma. Durante todo o meu percurso académico estudei e trabalhei ao mesmo tempo, não é fácil, é preciso ter motivação e perseverança, mas não o faria de outra forma, pois adquiri 8 | BORDO LIVRE 167 | JAN-FEV 2022
assim um elevado sentido de disciplina e gestão. Tendo acabado a licenciatura prontamente iniciei a procura pelo meu primeiro embarque, sendo que com a elevada taxa de empregabilidade muito facilmente o encontrei. Mesmo certo de que estar embarcado seria uma aventura que não me deixaria muito tempo livre, ainda assim decidi também iniciar o Mestrado em Engenharia de Máquinas Marítimas, porque já que estou a lançar-me num desafio mais vale que seja a sério, sabendo que conhecimento nunca é em demasia, e deste modo ampliando o meu mar de oportunidades. Para o meu primeiro embarque fiz as malas com tudo o que precisava, e muito mais coisas que não precisava, fui para o aeroporto e iniciei a viagem para o navio que se encontrava em África. Logo que aterrei fui levado para a base da empresa e segui numa lancha que me levou até ao navio que se
encontrava fundeado ao largo da costa. Considero ter tido um primeiro embarque diferente, não só era uma estreia para mim, mas também para a empresa, pois fui o primeiro praticante que contrataram. Fui encaminhado à ponte para tratar de papelada e conhecer o comandante. Designaram-me um camarote e disseram-me para ir ter com a equipe de engenheiros que estariam na sala de controlo das máquinas, sala que demorei meia hora a encontrar. Desde o primeiro momento em que embarquei no navio até agora sempre fui acolhido como parte da família. Por padrão, temos horários fixos sendo que chegar a horas quer dizer chegar 15 minutos antes, de modo a ter tempo de receber o resumo do que se passou durante o turno anterior. Não existem desculpas para atrasos, vivemos onde trabalhamos, e por isso a meu ver os atrasos são inadmissíveis. Ser oficial da marinha mercante é
passar várias semanas ou mesmo meses a viver no trabalho, a viver com os camaradas de trabalho e com os chefes, é uma rotina de pôr a vida de terra em pausa para vir para o mar, e depois por a vida do mar em pausa para ir para terra. Não é de todo mau, é simplesmente diferente, por norma um marítimo ao longo do ano passa metade do tempo no navio a trabalhar e a outra metade em terra de férias, sendo que com o alto salário auferido, por regra está-se sempre numa situação económica mais que confortável comparando com as profissões comuns em terra. Os primeiros dias são os mais difíceis, é uma adaptação gradual. Foi no início que fiquei mais perdido dentro do navio sem saber onde é bombordo ou estibordo, ao mesmo tempo que estava concentrado para absorver o máximo de informação possível, a adaptar-me à rotina e procedimentos a bordo. É sem dúvida nas questões de segurança a
bordo que fui mais pressionado nesse período, a segurança a bordo é crucial, um navio está isolado de ajuda externa, logo qualquer coisa que aconteça tem de ser resolvida a bordo com os meios que estiverem disponíveis porque a ajuda exterior pode demorar, até dias, a chegar. Ao longo da licenciatura alguns professores iam relacionando o que estávamos a estudar nos livros com o que eles tinham experienciado quando estiveram embarcados, admito que na altura grande parte dessas coisas não me faziam sentido, só depois de estar embarcado é que me vou lembrando do que esses professores contavam e só consigo pensar “é obvio que é assim” ou “realmente ele tinha razão”. Os estudos e os livros são as bases de todas as carreiras, mas consigo afirmar que simplesmente num dia o que aprendo por experiência a bordo, se fosse possível, daria para escrever um livro, digo se fosse possível, porque a
pratica não é algo que consiga ser transmitida por livros. É no mar que iniciei o meu caminho profissional, numa aprendizagem contínua, é no mar que quero continuar e ter uma longa carreira, viajar por todo o mundo e conhecer novas tripulações, alargar a família do mar. E é aqui que quero terminar, num agradecimento aos docentes e todos aqueles que glorificaram a ENIDH e a puseram no radar de tantos futuros Oficiais da Marinha Mercante transformando jovens sonhadores em corajosos profissionais. Como eu sempre digo aos meus colegas “mar calmo nunca fez bom marinheiro”, e só “depois da tempestade é que vem a bonança”.
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IN MEMORIAM 10 | BORDO LIVRE 167 | JAN-FEV 2022
ENG. JOSÉ ANTÓNIO SOARES (1953/2022) A Direcção do COMM viu partir mais um elemento da sua equipa, o tesoureiro que desempenhava um papel vital na gestão do nosso Clube. O José António Tavares Soares, associado n.º 1153, concluiu o curso de Máquinas Marítimas em 1973 e em 1975, após a obtenção dos tirocínios exigidos, passou a ser titular da Carta de Oficial da Marinha Mercante com a categoria de Maquinista de 3ª classe. Em 1981 já como Maquinista de 1ª Classe era um dos oficiais sempre aprumado e garboso que convivia nos salões do navio “Funchal”. Durante o dia com o seu termómetro de bolso a ondular e a circundar pelo ar, avaliava e registava as temperaturas no salão Ilha Verde (o funcionamento do ar condicionado sempre foi um problema crónico do “Funchal”) e de noite, em animada parceria com os camaradas ou as passageiras. É num dos cruzeiros aos Fiordes da Noruega que conheceu o seu grande amor, a Filippa, de nacionalidade sueca viajava com a mãe e apaixonou-se por este almadense, que mais tarde seria a sua mulher e que o acompanhou nos derradeiros balanços até ao embarque final. Com a continuação dos estudos, na ENIDH, a par dos embarques obteve a
licenciatura em Engenharia de Máquinas Marítimas em 1998. O José António era um verdadeiro apaixonado pelas máquinas, sempre com automóveis novos e motos. Recordo-me de uma ocasião em que aproveitou os tempos livres para maquinar e tornear uma peça nova para personalizar o seu FIAT 128 e neste caso, era uma manete das mudanças de rácio curto que permitia passagens de caixa mais rápidas ou, as corridas até à Costa da Caparica e os piões na areia. Recentemente fazia os passeios em motos e motorizadas antigas que mantinha em estado de concurso. Já em terra, e depois da passagem pelos estaleiros da Lisnave, ingressou na Germanischer Lloyd (GL) como surveyor e o seu gosto pelos estudos levou-o até à Coreia do Sul onde uma vez mais em estaleiro, Hyundai Industries, deu formação e supervisionou a construção de novas unidades. Também em França, nos estaleiros da STX em Saint-Nazaire, acompanhou durante meses a finalização da construção de um dos maiores navios de cruzeiro. Recentemente reformado da vida activa, dedicava, como voluntário, de forma generosa o seu tempo à gestão da tesouraria do Clube.
COMANDANTE FERREIRA GORDO (1954/2021) A poucos dias de fazer 67 anos no final de novembro de 2021, demos conta de ter perdido alguém que era um amigo do Clube de Oficiais da Marinha Mercante. Todos o recordarão pela alegria com que envergava o emblema do COMM nos Encontros do Clube em que participava ou organizava como o do Grande Hotel ou aquele no Casino da Figueira da Foz. À sua iniciativa se ficou a dever os apreciados casacos/ camisolas de malha, de cor nave, tipo “Paul & Shark–Yachting“ que tanto sucesso tiveram no merchandise do COMM. A morte faz parte da vida, mas também nos lembra, como são preciosos aqueles que pelo que fizeram, jamais devem ser esquecidos.
O mundo mudou e o Ferreira Gordo sofreu com angústia existencial, a mudança dos costumes, dos comportamentos e dos estilos. Viveu com a vontade de que o COMM abrisse uma delegação na sua cidade natal – a Figueira da Foz, onde também desempenhou actividades ligadas ao conhecimento, adquirido como oficial da Marinha Mercante. Deixou-nos inconformado e resignado que a sua experiência, conseguida a pulso, não tenha contagiado os seus pares, para bem da sua Classe. Todos nós ao perdê-lo, aqui lembramos, com pesar e tristeza a memória do senhor comandante João Manuel Gomes Ferreira Gordo
DANIEL SPÍNOLA PITTA (1940/2022) A Direcção do COMM recorda com saudade o período, nos primeiros anos deste século, da grande contribuição voluntária e generosa dada pelo Cmdt. Spínola Pita, em prol do CLUBE nas diversas iniciativas desenvolvidas enquanto membro da equipa de gestão. A sua personalidade conciliadora e diplomática imprimiu um excelente ambiente de cordialidade dentro da equipa e de quem se gostava. A sua memória permanecerá viva e irá perdurar nos anais do COMM.
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RECORDAR O SPÍNOLA PITTA OLIVEIRA GONÇALVES
O nosso camarada, embora fosse do curso anterior ao meu, só o conheci na Beira, quando entrei para os Pilotos da Barra, onde ele já estava há mais de dois anos.Foi pessoa que me marcou profundamente, nos longos anos e acontecimentos que partilhámos. Vou só referir alguns: Em 1969/70 embarcámos no navio balizador n/m “Almada”, com ele no comando por ser mais antigo que eu, para repor a boia de fora, após manutenção desta. A posição desta boia era a cerca de trinta milhas da foz do rio PUNGUÉ. O porto da Beira estava sujeito a um bloqueio internacional, com um navio de guerra inglês em permanência à entrada da barra, controlando os movimentos de navios. Ao tempo não havia GPS e com o radar de bordo não se apanhava terra. A posição da boia foi determinada ao crepúsculo da manhã, fazendo o Pitta o seu ponto por estrelas e fazendo nós o nosso. Deu de diferença 0.2 milhas , dividiu-se ao meio, acertou-se a posição e largou-se a boia.
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Largada a boia na posição pela proa, o navio afastou-se de modo a poder encostar à boia, a fim de que o encarregado da ligação da óptica pudesse saltar para ela.Com o calor todos vestíamos calções. Retirou-se cerca de dez metros do varandim de BB por ante a vante da ponte e avisou-se o operador que ele saltaria ali. O convés do navio era sensivelmente da mesma altura da base da boia. Fez-se a manobra, o navio aproximouse lentamente da boia e como já estava perto, o operador contrariando o que lhe tinha sido dito, correu uns dez metros para vante, escarranchou-se em cima do varão da borda falsa, no preciso momento em que a ondulação feita à proa do navio atingiu a boia. A boia inclinou-se ligeiramente, o técnico tirou a perna que tinha do lado de fora do varandim, apanhou qualquer coisa do chão que trouxe nas mãos. Tinha rebentado o saco dos testículos. Os testículos tinham caído até ao convés, não havia sangue , só se via uma espécie de renda. clara. Como a aparelhagem era antiga, não se conseguia comunicar com terra , nem mesmo com o barco de pilotos. Perante a situação, foi decidido pedir apoio ao navio de guerra inglês… (O inimigo)
Responderam de imediato, e cerca de dez minutos depois fomos abordados por um zebro, com quatro homens, um deles pelo menos era médico. Analisando a situação, deu os medicamentos que achou convenientes e recomendou que o levássemos a um hospital o mais depressa possível, em terra. Logo que conseguimos comunicar com terra, organizou-se tudo para que o homem fosse operado logo que o navio atracasse. O pós operatório não correu muito bem e acabou por se reformar e ir viver para Salisbúria, onde tinha melhor acompanhamento médico. O Pitta, embora cultivasse o estilo “low profile”, era um homem muito corajoso. Como a Gabriela (esposa) não gostava de andar de avião, e queria visitar o irmão que estava em Tete, a cumprir o serviço militar, com o intuito de celebrar uma data festiva em conjunto, requisitou uma metralhadora na Capitania, e com a metralhadora e a pistola de serviço, atravessou todo o Moçambique de carro sozinho, com a mulher e filhos (Paula e Luís). Isto passou-se em 1971, com os problemas que havia já em Cabora-Bassa.
Após a independência, os Pilotos da Barra das colónias, embora tivessem pelo menos as mesmas qualificações dos da Metrópole, estranhamente foram impedidos por estes de exercer a sua profissão no continente por muitos anos. Um amigo íntimo nosso, quando soube da injustiça que nos estavam criando, deu conhecimento da nossa situação ao Dr. Lucas Pires. O Dr. Lucas Pires quis logo saber quais as razões para que o problema não se tivesse ainda resolvido, e quais as soluções. O Spínola Pita foi o colega que escolhemos para nos acompanhar, e de facto o problema resolveu-se logo a seguir. Curioso que enquanto estávamos nos Passos Perdidos à espera do Dr. Lucas Pires, passou por nós S.Exa. o Dr. Mário Soares acompanhado pelo Dr. Almeida Santos e outro deputado e com o seu charme habitual cumprimentou-nos: “Boa tarde senhores deputados”.
Há cerca de vinte e cinco anos os Dinamarqueses convidaram quatro Pilotos da Barra portugueses (Europa do Sul) para um estudo, apoiado pela Comunidade Europeia e quatro Pilotos da Barra Dinamarqueses (Europa do Norte), de modo a ver o que é que cada grupo achava mais importante ter mais visibilidade na ajuda a solucionar problemas que eles iam criando, com o intuito de criarem uma Pilot Box portátil. Logo na noite de chegada, o Spínola Pita ficou encantado por uma parka que estava na montra de uma loja junto ao nosso hotel. Ficou logo combinado que no dia seguinte após o pequenoalmoço iriamos à loja. Eu bem dizia que aquilo era muito caro, que se calhar era feito nas Filipinas ou na China, a vendedora garantia que aquilo era fabricação sueca… ele vestiu e comprou. Menos de uma hora depois entrou no meu quarto, a mostrar um pequeno quadrado no interior que dizia: made in Portugal. (Alhos Vedros) A mulher, que ele adorava, quando soube disse: O Daniel, quando gosta… não olha a preço.
Um alto dirigente nacional disse que o mar estava a arder mais do que os fogos de Pedrógão. Infelizmente perdemos mais um dos que mais sabiam como se podem acabar com muitos fogos… enquanto quem manda continua a chutar para o lado. Paz à tua alma Daniel
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TIBÉRIO PARADELA (1940-2021)
CAPITÃO DA MARINHA MERCANTE, UM "LOBO DO MAR" ILHAVENSE 1. Acabámos, ontem, ao fim da tarde, de receber a dolorosa notícia da morte de mais um colega, o Tibério Paradela. Sofria de doença de evolução prolongada. Em março passado, talvez premonitoriamente, já se tinha despedido do seu velho companheiro, o mar, conforme carta publicada em "O Ilhavense" (Vd. abaixo a reprodução dessa belíssima "carta de despedida"... ou de reconciliação ?!). Eis alguns apontamentos sobre a sua vida: (i) capitão da Marinha Mercante reformado; (ii) nascera em Ílhavo, em 1940; (iii) concluiu o curso de Pilotagem da Escola Náutica em 1960; (iv) embarcou como praticante de piloto em 1961, no arrastão "Santa Mafalda"; (v) e, no ano seguinte, aos 21 anos, como imediato no navio bacalhoeiro à linha "Novos Mares" , entre 1962 a 1964: esta embarcação foi o último bacalhoeiro em madeira, construído na Gafanha da Nazaré, fez parte da Frota Branca até 1986, data em que foi abatido à frota por ordem do Secretário de Estado das Pescas. (vi) trabalhou depois a cabotagem na costa de Moçambique, foi comandante de cargueiro, piloto da barra no Porto da Beira (Moçambique), superintendente duma Companhia de Estiva no Porto da Beira (Moçambique), e comandante de navios mercantes nas linhas do Norte da Europa, Mediterrâneo e Norte de África, Ilhas, Moçambique, Angola, África do Sul, Golfo da Guiné; (vii) terminou a carreira profissional no Lobito (Angola) na indústria petrolífera.
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(viii) vivia na Costa Nova, concelho de Ílhavo. (ix) aproveitando o tempo da reforma, fez parte de diversas tertúlias, dedicou-se a causas socias e estreou-se também na escrita; (x) deixa publicado, um romance (ou obra de ficção) que tem como horizonte temporal a campanha da pesca do bacalhau na Terra Nova e na Groenlândia, entre abril de 1965 e abril de 1966: "Neste mar é sempre inverno", edição de autor, Aveiro, 2014, 262 pp. (xi) deixa também, vários contos inéditos. 2. Temos 3 postes com notas de leitura do seu livro (**), sobre o qual escrevemos: (...) Se o livro tivesse sido escrito (e publicado) ainda no tempo do Estado Novo, teria pela certa um título mais prosaico e pitoresco: "Cenas da vida da pesca do bacalhau". Mas não, não de trata de um livro de memórias, muito menos de registo etnográfico das campanhas do bacalhau e da vida a bordo nos últimos barcos da pesca à linha da nossa "frota branca". Não é sequer um simples diário de bordo duma viagem, de seis meses, aos bancos de pesca da Terra Nova e da Groenlândia. O que não quer dizer que o livro não tenha uma grande riqueza de informação etnográfica, recomendando-se a sua leitura também por essa razão adicional. "Neste mar é sempre inverno" é um título de homenagem aos homens do mar. Na pág. 105, percebe-se melhor a escolha do título. O autor atribui ao filósofo grego Platão a afirmação segundo a qual haveria 3 espécies de homens: "os vivos, os mortos e os
homens que andam no mar"... Mas por que é que os homens do mar teimam em sê-lo pela vida fora, de modo contínuo? Para Tibério Paradela, há uma razão, "talvez a única", para explicar por que é que o homem do mar o é para toda a vida: seria o "esquecimento". E esclarece o autor: "Não o varrimento da memória, mas o alijamento das agruras e amarguras para o sótão das lembranças indesejadas numa sucessão infalível, porque no mar é sempre inverno" (p. 105). Poderia tresler-se: "neste mar é sempre inferno"... Neste mar, e na frota branca do bacalhau! É esta epopeia, já esquecida pelos portugueses nascidos no pós-25 de abril, que prende o leitor ao longo das mais de 260 páginas do romance.
Toldaram-se-te os olhos, marinheiro, Quando pra trás olhaste e já não viste A terra, que deixaste em adeus triste, Chorado no convés do teu veleiro. Se és tu do mar o grande caminheiro Em busca de destinos que cumpriste; Se o fado teu, ao qual nunca fugistes, Já fez de ti, no mundo, o Ser primeiro, Então, enxuga as faces, meu guerreiro, E volta para a frente o teu olhar. Não vá esse inimigo traiçoeiro A quem, por toda a parte, chamam mar, Revoltar-se e engolir-te por inteiro Numa onda vilã que vai passar
3. Deixamos aqui a nossa homenagem, de apreço e saudade, ao Tibério Paradela, com a reprodução de dois textos de sua autoria
Decidi despedir-me. Despedir-me de ti! Faço-o por escrito para que fique a constar dos teus vastíssimos arquivos, não caindo, assim, no esquecimento das palavras que o vento leva. Foste meu companheiro mais de três décadas e isso, só por si, devia ter feito nascer entre nós uma relação forte, impregnada de amizade e admiração mútuos. Porém, quis o teu mau humor tão frequente que, da minha parte, a confiança em ti se esgotasse na passagem do tempo. Não posso esquecer as tuas ameaças, os repentes dos teus humores, as tuas ciladas. Assim, obriguei-me a aprender a lidar contigo, sempre de prevenção, para não cair nas garras dos teus poderes. Até que, um dia, decidi encarar-te de frente com a coragem que os fracos também sabem assumir quando as
Carta a um Companheiro por Tibério Paradela O Ilhavense, 10 de Março de 2021
ameaças começam a roê-los por dentro. Curiosamente, a partir daí, a nossa relação melhorou bastante. E foi numa certa indiferença por ti que encontrei a solução final. Mas, para que as coisas não fiquem assim, companheiro, quero revelar-te que sinto que nem tudo foi mau entre nós! Proporcionaste-me lindos passeios, conheci muitos e lindos países, cidades maravilhosas, gentes as mais diversas. Deste-me também a possibilidade de me situar na vida, construir uma carreira, cimentar uma personalidade. Afinal, tu mais que ninguém, viste-me crescer e ensinaste-me a crescer. Sim! Porque trinta e tantos anos não são trinta e tantos dias; porque a dureza das relações nem sempre é perniciosa; e porque no fundo, no fundo, as tuas fúrias são filhas do vento, deixemos para esse maldito vento a expiação dos meus descontentamentos! Afinal tu, MAR, sempre foste meu amigo! E, se calhar, quando eu te rogava coriscos, estavas tu, nos teus rugidos, a pedir ao vento que te deixasse em paz. Assim, não posso deixar de fazer as pazes contigo e enviar-te aquele abraço salgado com estes pequenos braços humanos que te querem apertar com tanta força quanta aquela que tu tens. O teu companheiro e amigo, Tibério P.S. – MAR! Vou enviar cópia desta carta ao Criador. Ao nosso Criador! E pedir-lhe que prolongue tanto quanto Lhe aprouver o meu crepúsculo para que eu, por muitos, muitos anos, continue a ouvir falar de ti!
HUGO BASTOS JAN-FEV 2022 | BORDO LIVRE 167 | 15
SABEDORIA DO MAR
O GADUS MORHUA
ALBERTO FONTES Chega o Natal e eis que à mesa aparece o bacalhau. Apresentado na sua forma mais simples que é cozido acompanhado de batatas da terra e couve portuguesa. A temperar impõem-se a salsa, o alho, a cebola devidamente picados e tudo regado com um bom azeite, saboroso e nutritivo. Mas quem é este peixe ? O bacalhau é uma designação comum que pode incluir até três espécies diferentes da família dos Gadídeos, o de maior consumo, habita os mares próximos do Círculo Polar Ártico, sendo um carnívoro que se alimenta de arenque, pescada e tamboril, podendo viver mais de vinte anos e atingir até 90 Kgs. Uma fêmea pode produzir três a nove milhões de ovos de uma só vez. O bacalhau legítimo é o bacalhau do atlântico, sendo um recurso natural em que praticamente tudo é aproveitado, por isso chamado o “ porco dos mares “. Para além do saboroso músculo branco do corpo, consome-se desde as cabeças (as caras) às línguas; do bucho às tripas; do fígado (em óleo), às ovas, os samos que são as bexigas natatórias e à espinha dorsal. Graças às suas características seca facilmente e conserva-se por longos períodos, mesmo sem sal. Devido à abundância dos seus cardumes, tornou-se um dos peixes que há séculos Portugal é o maior consumidor mundial. Mais do que exaltar uma epopeia que foi a arte de pesca do bacalhau, importa sim analisar o relacionamento dos nossos homens que tomaram o mar como profissão, desafiando dia a dia naquelas paragens as contingências adversas, à vida humana, até ao limite da sua resistência. 16 | BORDO LIVRE 167 | JAN-FEV 2022
A História diz-nos que fizeram uma vida com muitos sacrifícios desde 1502, altura em que se encontram registos de campanhas anuais de maio a outubro aos bancos de bacalhau. Em 1504 encontra-se nas cartas marítimas portuguesas, a representação da “Ilha do Bacalhau “ no Círculo Polar Ártico. Não há dúvida que os abundantes bancos de pesca da Terra Nova foram descobertos por João Vaz Corte Real, quando em 1463, procurava a Índia por Ocidente, com Álvaro Martins Homem. Em 1500 dá-se início à presença portuguesa, para pescar bacalhau, no “grande banco”. No final da Idade Média, o homem do mar português é dos mais experimentados de toda a Europa. Por outro lado, tem ao seu alcance técnicas de navegação, embarcações e instrumentos náuticos cada vez mais desenvolvidos e aperfeiçoados. Isto para além de todo um saber que aumenta e se consolida a cada viagem, e do qual o conhecimento profundo das rotas, das correntes e dos ventos são exemplos paradigmáticos. A comprovar o avanço do saber marítimo, podemos citar de 1514 o “Tratado da Agulha de Marear” de João de Lisboa e de 1566 o “Livro de Marinharia“ de Pero Vaz de Caminha. Na busca da “Terra dos Bacalhaus” perderam a vida os Cortes Reais e os seus tripulantes anónimos, marítimos e pescadores. Com a perda da independência em 1580, os conflitos entre a Espanha e a Inglaterra levaram-nos a ficar sem a propriedade dos locais de pesca para a nossa frota do bacalhau e os portugueses
passaram a comer o peixe que mercadores estrangeiros nos vendiam. Assim foram os portugueses quem descobriu e primeiro explorou os bancos de pesca do Atlântico ocidental. D. Manuel I em 1550, de Aveiro, mandava para pescar bacalhau, 150 navios e, contudo, com a perda da independência nacional, pelo domínio espanhol, em 1611 não havia nenhum navio português na Terra Nova. Os ingleses ocuparam esses mesmos bancos pesqueiros e Portugal, para responder ao consumo interno, passou a importar o denominado bacalhau inglês. Com a revolução de 1640, com o país empobrecido e faminto, os ingleses exportaram bens alimentares para o nosso país, entre eles bacalhau, sendo que até 1648 entraram em Lisboa cinquenta navios carregados de bacalhau. Em 1658 chegaram sete navios para mercadores ingleses que dominaram o negócio durante todo o século XVII e até ao século XIX na base do Tratado de 1654 entre Portugal e a Inglaterra que abriu o Império Português, ao livre comércio inglês. Na primeira década do século XX o bacalhau pescado pela frota nacional era 10% dos 20 milhões de quilos consumidos. Em 1901 tivemos doze navios a pescar bacalhau; em 1904 dezassete navios; em 1908 trinta navios; em 1913 trinta e oito navios; em 1923 quarenta e sete navios; em 1924 sessenta e cinco navios; em 1930 quarenta e três navios. O aumento de navios e a percentagem de capturas subiram para 15% do consumo que foi de 50 milhões de quilos, no período da
primeira Guerra Mundial de 1914/1918. Entre 1926 e 1935 houve em Portugal uma indefinição governativa revolucionária que prejudicou gravemente a economia do país. Não faltavam então as queixas pelas actividades perniciosas dos comerciantes monopolistas e açambarcadores. Com o Estado Novo no ano de 1934 e até 1961 é adotado o desígnio de voltar Portugal a reencontrar o mar, e dá-se o arranque na organização da pesca do bacalhau, o denominado “ Pão dos Mares “. O governo publica então uma série de Decretos para Ajudas do Estado aos Armadores da Pesca do Bacalhau; noutro Decreto criou a Comissão Reguladora do Comércio do Bacalhau, cujas funções, era regular não só as pescas portuguesas de bacalhau como também a importação do bacalhau estrangeiro, fixando os preços. Com esta Organização Corporativa do Comércio, estabeleceram-se preços equilibrados entre bacalhau estrangeiro e o nacional, impuseram a disciplina da importação por um comprador único, fazendo baixar o custo do bacalhau estrangeiro, com a oportunidade e a quantidade da sua importação. Por outro lado, uma melhor exploração dos navios, reduzindo os encargos fixos, como foi o caso dos seguros ao ser criada a Mútua dos Navios Bacalhoeiros. Facilitar do crédito por meio de letras aceites pelos armadores com o aval do Ministério das Finanças. Foi criada a cooperativa dos armadores, essencial no abastecimento dos navios para as viagens. A preparação do isco, conservado em frigorífico até ao fornecimento aos navios, com qualidade e
em quantidade. Também foi feita uma aposta na melhoria do ensino técnico aos pescadores, sendo montada para isso a Escola de Pesca. O condicionamento das importações e regularização do preço no mercado interno que asfixiavam a produção nacional, trouxeram uma inicial melhoria nesta actividade económica e social de grande importância, regulada pelo Grémio dos Armadores de Navios de Pesca do Bacalhau. O Programa de Fomento das Pescas veio a actuar na renovação da frota, activando a construção naval nos estaleiros nacionais que em 1942 construirá 16 navios em madeira distribuídos por Aveiro, Figueira da Foz, Porto e Alcochete. A organização das pescas culminou em 1957 com a Corporação da Pesca e Conservas. Em 1936 a frota nacional, composta por cerca de 50 navios à linha pescou 16500 ton de bacalhau. Sendo Portugal país neutro no período da II Guerra Mundial (1939 a 1945), as capturas mantiveram-se, foram os navios pintados de branco, de forma a serem reconhecidos e os submarinos alemães não os torpedeassem. Nasce assim a frota branca da paz, nos mares em guerra. Entre 1938 e 1953 a frota nacional foi dotada com 55 navios novos, muitos em aço, com construção em Portugal. Com a entrada de navios novos na Marinha de Pesca entre 1937 e 1944 passaram nove navios para a Marinha de Comércio. Na campanha de 1943 saíram a pescar bacalhau 4 navios de arrasto e 44 navios à linha, em 1946 saíram 6 arrastões 50 navios de linha; em 1948 saíram para Terra
Nova e Gronelândia 54 navios; em 1949 saíram 62 navios; em 1952 saíram para a pesca do bacalhau 20 arrastões e 45 navios de linha. As medidas protecionistas de monopólio com tabelamento de preços e margens, vieram a mostrar-se bloqueadoras e condicionantes à evolução do mercado. Por sua vez o Estado não foi capaz de responder às ameaças impostas por potências interessadas na pesca do bacalhau. Após a Revolução de 1974 sem política de pesca do bacalhau e sem meios adequados, o Estado avançou para a liberalização o que levou ao fim da autonomia da fileira do bacalhau. Hoje, o método usado para tornar o bacalhau rijo, que era ao ar livre, com secagem ao sol, dado que chegava nos navios de pesca nacionais, salgado, já aberto, espalmado, desviscerado e sem cabeça (o denominado bacalhau verde) é história, pois agora "o fiel amigo" vem dos países nórdicos e chega aos armazenistas seco em estufas, conservado e transportado em frio, em regímen livre sem pautas aduaneiras. A adesão de Portugal à Comunidade Europeia a 1 de janeiro 1986 obrigou o nosso país a adoptar a Política de Pesca Comum, após um período de adaptação às novas condições e obrigações impostas pela legislação comunitária. Agrava-se desde então a capacidade para efectuar capturas pela Marinha de Pesca nacional, quer pela mudança do Direito do Mar quer pela dificuldade em encontrar tripulações, com vontade de trabalhar como pescadores de bacalhau, a bordo de navios, com identidade portuguesa.
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PORTUGAL POTÊNCIA ECONÓMICA MUNDIAL J. J. ROCHA RAMOS
PLATAFORMA INTERCONTINENTAL DE TRANSPORTES MARÍTIMOS E AÉREOS
5 – OUTROS CONSTRANGIMENTOS Questiona-se que estudos foram efetuados para que o controlo de tráfego aéreo em dois aeroportos separados por cerca de 12 kms em linha reta cumulativamente com os “aeródromos” de Cascais, Sintra e Alverca pois, de acordo com um estudo da Eurocontrol irão ser limitadas operação nestes moldes a partir de 2030. Para o efeito será necessário investir avultados montantes de dinheiro em tecnologia e equipamentos muito sofisticados, mas indispensáveis. Do mesmo modo, também se pode questionar que investigação foi efetuada sobre as condições meteorológicas adversas existentes junto ao aeroporto do Montijo que padece de nevoeiros persistentes, espessos e consequentes. Não se pode ignorar que os ambientalistas nacionais e internacionais conjuntamente contestam a localização no Montijo atendendo aos malefícios que os aviões iriam provocar na reserva natural adjacente que milhões de aves frequentam. Com o extraordinário número de aves médio e grande porte estariam reunidas as condições perfeitas para que acontecessem acidentes provocados por colisões com as aves existentes “Bird Strike” o que aliás já tem acontecido com os pequenos aviões militares que atualmente utilizam aquele aeródromo. Nos estudos efetuados ou a efetuar estarão incluídos a poluição sonora provocada pela atividade aeronáutica?! Será que os habitantes do Seixal, Barreiro, Lavradio, Baixa da Banheira, Vale da Amoreira, Samouco e outras povoações limítrofes estarão conscientes do que lhes vai acontecer?!
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A opinião da atual Ordem dos Engenheiros demonstrou claramente a sua discordância com a construção do novo aeroporto no Montijo. Ao não se escolher o local para o futuro aeroporto de acordo com as orientações técnicas de uma entidade prestigiada como o LNEC, de indiscutível competência internacional fica-se com a convicção de que, mais uma vez a política decide contra a corrente dos interesses do país favorecendo interesses privados mais ou menos invisíveis e misteriosos. Depois de tanto tempo perdido, finalmente, o processo Montijo foi inviabilizado devido ao veto da Câmaras da Moita e do Seixal e a Autoridade Nacional da Aviação Civil recusa-se emitir um parecer prévio de viabilidade para “aeroporto” do Montijo. Perante este obstáculo o Governo não tarda a pedir uma nova Avaliação Ambiental Estratégica (AAE), mas em simultâneo, vai criar nova legislação de modo a retirar às Câmaras envolvidas o direito de vetarem qualquer projeto que, supostamente, seja considerado de “interesse nacional”. Será que pretendem fazer o homem à medida do fato ou estarão a criar condições para finalmente aceitarem o C.T.A. de Alcochete como solução? “Quid júris”. O aeroporto em Alcochete terá potencialidades de futuro estando vocacionado para comportar aviões de qualquer dimensão. Naturalmente que, atendendo à posição geoestratégica privilegiada de Portugal, este país poder-se-á transformar rapidamente num dos maiores aeroportos europeus, o que por certo não irá agradar à concorrência dos seus congéneres deste continente. Não será
esta a verdadeira razão porque a ANA/Da Vinci prefere um ““aeródromo” no Montijo sem viabilidade e sem qualquer possibilidade de expansão ou de futuro? Os híper-aviões que já estão a voar ou em projeto e o transporte aéreo de extra grande dimensão poderão estar ao nosso alcance, com TAP ou sem TAP, desde que este país ofereça as infraestruturais adequadas. A “Mac Logistic” que em 2018 apontavam para um aumento de 73.1% só a nível da carga aérea. Com aviões que transportam passageiros a tendência é a mesma com vista a rentabilizar o negócio face à política instalada de “low cost”. Para que este objetivo seja viável tanto para navios como para aviões, torna-se indispensável a existência de uma jangada de pedra encalhada a oeste da Europa “onde a terra acaba e o mar começa” ou seja o C.T.A. de Alcochete com área de expansão ilimitada. Todos testemunharam que no programa de TV – Prós e Contras de Fátima Campos Ferreira em que o atual ministro da tutela Pedro Nuno Santos ficou sem palavras quando foi confrontada pelo subscritor do estudo do LNEC, Eng. Carlos Ramos, sobre a localização do novo aeroporto sobre as vantagens de o construir no CTA de Alcochete ainda que possa ser construído por fases. Foi claramente demonstrado por aquele competente especialista responsável defendendo o estudo oportunamente apresentado que o CTA de Alcochete era o local mais adequado de todos os que tinham sido avaliados e que os custos seriam totalmente idênticos aos do Montijo, mas com a enorme vantagem que haveria área de expansão suficiente para qualquer projeto futuro.
CONCLUSÃO
CIMA: Para além dos milhares de ambientalistas portugueses, mais de 26.300 holandeses já assinaram petição contra o aeroporto do Montijo Investigadores portugueses escrevem carta na Science para pressionar o Governo português a desistir do aeroporto do Montijo. BAIXO: Sobrevoo para as Pistas 01 e 26 do Montijo.
O dinheiro desbaratado em tentar adaptar, sem resultados significativos no aeroporto existente, mais o que se expendeu em inúmeros estudos milionários para determinar a localização de um novo aeroporto, mais o que se vai desperdiçar num qualquer pequeno aeródromo marginal de remedeio não daria para construir de raiz um bom e bem dimensionado aeroporto com futuro?! Esta política decisória deambulante dá que pensar, parece que, a consecução de todos os grandes empreendimentos estratégicos e económicos, navegam à bolina ao sabor de interesses que não são acessíveis ao cidadão comum. Quais foram os pareceres da Autoridade Aeronáutica Portuguesas e Europeias sobre esta questão? E as entidades ligadas à Aviação Nacional como GPIAA – Gabinete de Prevenção e Investigação de Aeronaves, que neste momento ainda tem cerca de 100 acidentes por investigar? E a APPLA – Associação dos Pilotos Portugueses de Linha Aérea, etc, etc. Afinal o que se deve discutir e defender prioritariamente é a segurança da aviação, a proteção do meio ambiente de Lisboa, salvaguarda dos seus cidadãos expostos a perigos não controláveis, tudo isto, compatibilizado com o interesse nacional. Mas, se ainda não se sabe quanto irá custar a construção das novas salas de embarque e respetivas mangas em Lisboa, mais tudo o que vai ser necessário no Montijo em obras e nas pistas, placa e parques de estacionamento, aerogares, salas de embarque e mangas, ajudas rádio, acessos e novos equipamentos incluindo bombeiros e para a gestão do tráfego
aéreo de Lisboa, com que base em que é que já se pode afirmar que “um novo aeroporto em Alcochete representaria um custo muito elevado comparado com o que se vai gastar nesta solução problemática e de resultados e futuro duvidosos no Montijo. A opção de Alcochete mesmo com construção faseada, com pistas paralelas, com possibilidade de expansão para mais uma ou duas, com espaço para aerogares, armazéns de carga, parques de estacionamento, infraestruturas afastadas para combustível, “catering”, hotéis e outras instalações que venham a ser necessárias a uma verdadeira cidade aeroportuária, libertando os hectares do aeroporto Humberto Delgado, não poderia ser mais vantajosa associada à possibilidade de poder vir a ser financiada pela Comunidade Europeia, para além do Estado Português? A melhor solução para uma decisão, como a que se preconiza neste caso, será a que não deixa o país refém de “lobbies” nem de medidas que não defendam os superiores interesses do país no seu todo o que só poderá ser conseguido com a contrução de um novo aeroporto no C.T.A. de Alcochete. MAIO 2021 J.J. ROCHA RAMOS (CAP. M.M.)
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TERRÍVEL BATALHA ENTRE ALGARVIOS E SAVEIROS SÉC. XVIII SENOS DA FONSECA No séc. XVIII, a Trafaria era um porto de abrigo ribeirinho, situado na margem sul do Tejo.Com relevância muito especial para os navios provenientes de zonas ou países pestíferos, sendo por isso obrigados a quarentena, antes de atracar a Lisboa. Ao lado do Forte de defesa que vinha já de longa data, fora edificado o chamado Lazareto (edificado em1714 ,substituindo um anterior, de dimensão e condições não satisfatórias, que, por esses motivos, foi destruído), para acolhimento de doentes infeciosos, a maior parte chegados por mar. A Trafaria, era, por essas razões, terra pouco procurada; por isso despovoada.Com fartos terrenos ribeirinhos livres, ali a duas remadas da boca da barra, logo cativaria os “irredutíveis ílhavos” para aí acamparem o arraial de pesca, com as suas características barracas. Pescadores famosos vindos do litoral “lá de cima”, nesse tempo interessados na pesca do sável ( de essas e todas as outras espécies que viessem à rede), a Trafaria, apartada “do mundo, mas fácil de, em ajustada e directa singradura nos seus rápidos saveiros alcançar, e assim abastecer, os mercados de peixe da outra banda. Logo a colónia piscatória de ílhavos e murtoseiros(pois estes por norma seguiam os ílhavos nas suas migrações) viu, ali ao lado, nos areais da Caparica, um excelente e prometedor campo piscoso para as mais diversas artes(arrasto, tresmalho).Antevendo o momento em que as ílhavas e chinchorras viriam a ser substituídas pelas embarcações das Artes Grandes, quando a colónia de pesca se estendeu no areal longo da Caparica, muito apropriada para aquelas artes de pesca. 20 | BORDO LIVRE 167 | JAN-FEV 2022
Com a chegada dos algarvios àquelas paragens, praticando outro tipo de artes(o cerco),logo os atritos e desavenças subiram de tom, tornados frequentes, em disputa da primazia nas marcações de territórios marinhos. Os algarvios eram, no entender dos ílhavos, mistura de gentes de ascendência mourisca, de trato, pouco ou nada fiável, desrespeitadores frequentes da propriedade alheia, incumpridores de acordos celebrados e, não menos notório, muito truculentos. Por sua banda, os ílhavos, gente pouco inclusiva, tremendamente fechada no seu grupo, avessos a misturas ou partilhas ,ou até a convivência estranhas, logo forçaram pela força, ao arredar lá para sul do areal, os algarvios, impedindo-os de utilizarem pesqueiros vizinhos da embocadura do Tejo. Os mais apetecidos, porque os mais piscosos. As relações mantiveram-se sempre tensas. O roubo em pleno mar, de peixe e até de armações, em acções tipo corso, eram frequentes. Por vezes com dimensão onde a tragédia esteve presente e em que muitas vidas foram, ingloriamente, sacrificadas nas disputas entre colónias piscatórias. E assim aconteceu...com a Terrível Batalha entre Algarvios e Saveiros, acontecida nos “Mares da Trafaria”... que abaixo relatamos. Era fim de uma tarde de Julho ensolarada por um sol brilhante a caminhar rápido para o ocaso. Entre a terra e o bugio, as aves marinhas grazinavam em voos cruzados, sem rumo, parecendo zonzas nas alturas, como que perdidas a detectar nas águas, peixe para a seu esfomeado
apetite. O barbaçudo do sol caía, prestes a esconder-se lá nos poentes, como que apressado para tirar um codorno nocturno para recuperação de tão estafado dia. Mas ainda aconchegava o remanso das águas que pareciam adormecidas, tal a calma esparralhada pelo seu azul. Foi então que vindas da entrada do bugio se destacaram os vultos de três lanchas do cerco algarvio, correndo em linha. Armada que parecia trazer poucas intenções de ser visita de cortesia. Antes faziam esperar actos gravemente atentórios de paz e vivência entre as gentes da faina. Em cada lancha vinham embarcados uns vinte algarvios, entre remadores bicheiros e redeiros, bem munidos de facas flamengas e navalhas de ponta bem afiada. Esta gente vinda lá dos algarves, descendente da mourisca da outra banda, quando acabada a apanha do figo verde, posto a bom recato, não podendo, já, fazer as corsas surtidas para o seu roubo, vinham por aí acima, dispostas a fazer dinheiro de qualquer modo, mesmo que esse modo fosse o assalto às artes na água, pilhando as ditas e o peixe, atum ou golfinho, nelas ensarilhados. Contornado o baixio frente ao bugio, logo viraram a estibordo. Numa das barcas o proeiro notou que na frente do seu nariz, a umas poucas dezenas de braças, um eriçado esbulhado fervente, das águas calmas .Logo perceberam que era peixe emalhado em tentativa de fuga das artes. mergulhadas. Sem hesitação ou delongas, atiraram-se às redes esfaqueando-as, esventrando-as, com pressa de meter o peixe emalhado na barriga das suas barcas, nem sequer ligando ou temendo, uma ou outra bateira saveira, por ali fainando,
ESQUERDA: saveiro da Trafaria. BAIXO: Forte da Trafaria.
estendendo as suas artes. Logo uma delas, mais afoita e rápida, içando o velame, fez rumo à enseada onde por norma os saveiros encalhavam as suas bateiras e se recolhiam, na maior parte do ano, aquartelados em suas pobres cabanas. Em grande e frenético alarido, mesmo antes de abicar à praia, já os tripulantes do saveiro avisador, faziam-se ouvir, em alta gritaria: - Aqui d’el Rei... maneai-vos lazarentos, que a moirama veio vingar-se de Ceuta. E começaram já a pilhar as nossas redes e peixe, os danados corifeus. A seguir vão as vossas mulheres e filhas... que aquela barbária vêm disposta a tudo.
Os ílhavos – gente nada mole, verdadeiras feras quando açoitados pelo mar ou pela desdita, sem conhecerem outra lei que não a da sua conveniência – logo se atiraram às bateiras, carregando-as com tudo com que pudessem pelejar. Em fila logo estrategicamente concertada, a mando imperativo do arrais da companha, logo rodearam, cercando, as lanchas algarvias. Velejando rápido, atacandoas para logo se afastarem, e logo voltarem para lhes atirar com ferros de fundear, fateixas, figas, bicheiros: – tudo que ferisse os arraçados ladranzanas. Zurzindo-os com as varas de marcar que, com as bandeirolas ainda içadas, batiam forte e tolhiam a reação aos invasores, ao tempo que os bombardeavam ferozmente com as pedras de fundear as artes. Tudo servia para desbaratar a temível armada mourisca/algarvia onde estáticos, surpreendidos pela feroz reacção, os embarcadiços vindos do sul, com os pesados remos empunhados, mas de
fraca utilidade na peleja, em gritaria bem maior que em destreza, tentavam defender-se dos ataques dos terríficos e eficazes ílhos, surgindo rápidos e simultaneamente, por ambas as amuras. As peças de redame que lhes eram atiradas, embaraçavam os algarvios, imobilizando-os ou ensarilhando-os, enguedelhando-os, colocando-os a jeito de serem fortemente zurzidos pelas varas brandidas pelos saveiros com endemoninhada ferocidade. Do marcial encontro saía furioso alarido, mistura daquelas bárbaras e rústicas linguagens. Do acampamento da Trafaria toda a gente (conta-se que, nem velha ficou na cama, nem velho ao degrau) tinha descido ao areal para presenciar tão medonha escaramuça. Aos gritos que iam no local da batalha, juntaram-se os gritos do mulherio de terra, acompanhados por um eriçar patético de braços ao alto, pedindo ao “seu” Deus ajuda contra aqueles berberes, filhos de Alá. No estramboto já cinco tinham morrido; e dois atirados à água, tinham perecido, afogados. O sangue vertido era tanto, que se afirmou, então, chegar a tingir as brancas areias das cristalinas praias, mais parecendo o então sanguíneo Tejo, um novo mar Morto”.
Faltando já as forças a uns, porque feridos, e a vida a outros, porque mortos, com o cair do sol, foi o fim da batalha com a fuga apressada das lanchas algarvias que juravam não voltar a intrometer-se com estes irredutíveis e temíveis filhos de Baco, tão ferozes na luta como nas lides com o mar. Gentes que só tinham medo que o mar secasse... Do forte da Trafaria, avisadas as autoridades marítimas, tinha embarcado força policial bem armada que, achegando-se às águas da batalha, logo com disparos de forte aviso, fez ver ao que vinha, dando por finda a luta, prendendo e conduzindo para o forte do Bugio trinta e tantos dos rapineiros ; e mais outros vinte, que conduziram à prisão da cidade. Com a noite, muitos outros conseguiram fugir à alçada da justiça. Termina assim o conto desta feroz batalha: “porque parte ficaffafe a victoria defta batalha não corre notícia certa, e fó fe fulfpeita com certeza que ella paflará por dez reis,para a maõ de qualquer curioso, que Deus guarde para fuitento dos Cegos, e amparo das tavernas.
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OS JOVENS E O MAR
BÁRBARA CHITAS
Olá a todos, estou de volta a bordo do World Voyager, para mais 4 meses de aprendizagem e esperamos que livres de complicações de COVID. Quem vê as fotos que metemos das paisagens pensa que estamos a visitar lugares fantásticos enquanto trabalhamos, mas a verdade é que neste momento como os casos de COVID aumentaram a nível mundial, a tripulação está mais uma vez impedida de ir a porto, o que faz com que visitar estes sítios se torne agridoce. Mesmo momentos mais sociais que existiam com os passageiros estão de momento desaconselhados. Quando cheguei a Bordo: Cheguei cá a bordo no dia 19 de janeiro, tive de fazer quarentena absoluta durante dois dias em que não podia sair da cabine.
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Como temos de estar completamente isolados, fazemos este tempo de quarentena em camarotes de passageiros, o que é uma maneira de passarmos o tempo em que temos de estar fechados de uma forma mais agradável e porque também não existem camarotes de tripulação suficientes para a tripulação que se encontra a trabalhar e os que estão de quarentena à espera de começar o seu trabalho. Eu tive a sorte de ficar numa suite, que são dos melhores que existem a bordo. Já sei que quando me reformar do mar, um dos objetivos de vida será vir de férias para um destes navios e ter a experiência de estar de férias num cruzeiro. Continuando com as histórias de quarentena, após os dois dias de isolamento, temos ainda uma semi
quarentena de 5 dias, em que podemos apenas sair do camarote para trabalhar, no meu caso apenas durante os quartos de navegação. Durante este período ainda temos de fazer as nossas refeições no camarote, já que é o momento em qua há maior possibilidade de contágio, uma vez que tiramos as máscaras. Após este tempo, vamos sempre fazendo testes todas as semanas para garantir que não ficamos com o vírus. Agora resta esperar que o número de casos diminua para que possamos novamente ir a terra, explorar os lugares maravilhosos que visitamos. Por enquanto temos-nos uns aos outros para nos entreter e vamos vendo os locais com o nosso tender enquanto levamos os nossos passageiros a porto!
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